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"Yltx^x/-
E.H.Gombrich
A HISTÓRIA
DA ARTE
398 ilustrações, ÍOO em cores
Quarta edição
Tradução
Ãlvaro Cabral
EDITORA.^^/GUANABARA
Âá
Capa: Erico
Diagramação: Orlando Fernandes
Composição: Linotipia Luna - RJ
Impressão: Gráfica Editora Hamburg
32. A grande
pirâmide de Gizé.
Construída cerca
de 2700 a.C.
A L G U M A F O R M A D E A R T E existe em todas as partes do globo, mas a
história da arte como u m esforço contínuo não principia nas cavernas do Sul
da F r a n ç a nem entre os índios norte-americanos. Não há u m a tradição direta
que ligue esses estranhos começos aos nossos próprios dias, mas existe u m a
tradição direta, t r a n s m i t i d a de mestre a discípulo, e de discípulo a a d m i r a d o r
ou copista, que liga a arte do nosso t e m p o , q u a l q u e r casa ou q u a l q u e r cartaz,
à arte do vale do Nilo de cerca de cinco mil anos atrás. Pois veremos que os
mestres gregos f r e q ü e n t a r a m a escola dos egípcios — e todos nós somos
discípulos dos gregos. Assim, a arte do Egito reveste-se de t r e m e n d a impor-
tância p a r a nós.
T o d o m u n d o sabe que o Egito é a t e r r a das pirâmides, essas m o n t a n h a s
de p e d r a que se erguem c o m o m a r c o s desgastados pelas intempéries no
horizonte distante da história. Por mais remotas e misteriosas que p a r e ç a m ,
elas c o n t a m - n o s muito sobre a nossa própria história. F a l a m - n o s de u m a
terra que estava tão c o m p l e t a m e n t e o r g a n i z a d a que foi possível e m p i l h a r
esses gigantescos morros t u m u l a r e s d u r a n t e a vida de u m único rei; e
falam-nos de reis que e r a m tão ricos e poderosos que p u d e r a m forçar
milhares e milhares de t r a b a l h a d o r e s ou escravos a l a b u t a r e m por eles, ano
após ano, a cortarem as p e d r a s , a a r r a s t a r e m - n a s p a r a o local da construção e
a deslocarem-nas por meios s u m a m e n t e primitivos até que o t ú m u l o ficou
pronto p a r a receber o rei. N e n h u m m o n a r c a e n e n h u m povo teria s u p o r t a d o
semelhante gasto, e p a s s a d o por t a n t a s dificuldades, caso se tratasse da
criação de u m m e r o m o n u m e n t o . D e fato, sabemos que as p i r â m i d e s t i n h a m
sua i m p o r t â n c i a prática aos olhos dos reis e seus súditos. O rei era conside-
ra<
32 3o u m ser divino que t i n h a completo domínio sobre eles e, ao p a r t i r deste
m u n d o , voltava a ascender p a r a j u n t o dos deuses d o n d e viera. As p i r â m i d e s
ARTE PARA elevando-se p a r a o céu ajudá-lo-iam provavelmente a fazer sua ascensão. E m
A todo o caso, elas preservariam seu c o r p o sagrado da decomposição. Pois os
ETERNIDADE egípcios acreditavam que o corpo deve ser preservado p a r a que a a l m a possa
c o n t i n u a r vivendo no além. P o r isso i m p e d i a m a desintegração do cadáver
m e d i a n t e u m m é t o d o e l a b o r a d o de e m b a l s a m a ç ã o e e n f a i x a m e n t o em tiras de
p a n o . E r a p a r a a m ú m i a do rei que a p i r â m i d e t i n h a sido erigida, e seu corpo
era colocado e x a t a m e n t e no centro d a gigantesca m o n t a n h a de p e d r a , n u m
esquife de p e d r a . E m t o d a a volta da c â m a r a f u n e r á r i a , f ó r m u l a s m á g i c a s e
33. Busto em
rocha calcária.
Encontrado num
túmulo em Gizé,
feito cerca de
2700 a. C. Viena,
Kunsthistorisches
Museum
encantamentos eram escritos p a r a ajudá-lo em sua j o r n a d a p a r a o outro
mundo.
Mas não são apenas essas antiqüíssimas relíquias da arquitetura h u m a n a
que nos contam o papel desempenhado por vetustas crenças na história da 33
arte. Os egípcios sustentavam a crença de que a preservação do corpo não era
ARTE PARA
bastante. Se a fiel imagem do rei t a m b é m fosse preservada, não havia dúvida
A
alguma de que ele continuaria vivendo para sempre. Assim, ordenavam aos
ETERNIDA
escultores que esculpissem a cabeça do rei em imperecível granito e a E
colocassem na t u m b a onde ninguém a via, p a r a aí exercer sua magia e a j u d a r
sua alma a manter-se viva na imagem e através desta. U m a expressão egípcia
para designar o escultor era, realmente, "Aquele que mantém vivo".
No começo, esses ritos eram reservados aos reis, mas logo os nobres da
casa real passaram a ter seus túmulos menores agrupados em filas bem
alinhadas em torno do túmulo do rei; e, gradualmente, toda pessoa que se
prezava tinha que tomar providências p a r a a vida no além, encomendando
uma dispendiosa t u m b a que abrigasse sua múmia e sua imagem, e onde sua
alma pudesse habitar e receber as oferendas de alimento e bebida que eram
feitas ao morto. Alguns desses primeiros retratos da era das pirâmides, a
quarta dinastia do "Antigo Império", estão entre as mais belas obras da arte
egípcia (fig. 33). Existe neles um ar de solenidade e simplicidade que não se
esquece facilmente. Vê-se que o escultor não estava tentando lisonjear seu
modelo nem preservar u m a expressão fugidia. Interessava-se apenas pelos
aspectos essenciais. Todos os pormenores secundários eram postos de lado.
Talvez seja por causa dessa estrita concentração nas formas básicas da cabeça
h u m a n a que esses retratos continuam sendo tão impressionantes. Pois, apesar
de sua rigidez quase geométrica, não são tão primitivos quanto as máscaras
rituais de que tratamos no Capítulo 1 (figs. 25 e 26). Nem são tão fiéis à
realidade quanto os retratos naturalistas dos artistas da Nigéria (fig. 23).
A observação da natureza e a regularidade do todo são equilibradas de um
modo tão uniforme que essas cabeças nos impressionam como reflexo fiel da
vida e, no entanto, remotas e duradouras.
Essa combinação de regularidade geométrica e aguda observação da
natureza é característica de toda a arte egípcia. Podemos estudá-la melhor
nos relevos e pinturas que adornavam as paredes dos túmulos. A palavra
" a d o r n a r " , é certo, ajusta-se mal a u m a arte que não pretendia ser vista por
ninguém, exceto a alma do morto. De fato, essas obras não tinham a
finalidade de serem objeto de deleite. T a m b é m elas se destinavam a " m a n t e r
vivo". Num passado sombrio e distante, tinha sido costume, q u a n d o morria
um homem poderoso, que seus servos e escravos o acompanhassem na
sepultura. Eles eram sacrificados p a r a que o senhor chegasse ao além com um
séquito condigno. Depois, esses horrores foram considerados excessivamente
cruéis ou excessivamente onerosos, e a arte acudiu em a j u d a . E m vez de
servos de carne e osso, aos poderosos da Terra passaram a ser oferecidas
imagens como substitutos. As pinturas e os modelos encontrados em túmulos
egípcios estavam associados à idéia de suprir a alma de ajudantes no outro
mundo.
Para nós, esses relevos e pinturas murais fornecem u m quadro extra-
ordinariamente vigoroso da vida no Egito há milhares de anos. E, no entanto,
olhando-os pela primeira vez, é muito provável que os achemos bastante
insólitos e nos causem u m a certa perplexidade. A r a z ã o é que os pintores
egípcios t i n h a m u m modo de representar a vida real muito diferente do nosso.
Talvez isso se relacione com a finalidade diferente que tinha de ser servida
34 por suas p i n t u r a s . O que mais importava não era a boniteza, mas a inteireza.
A t a r e f a do artista consistia e m preservar t u d o o mais clara e p e r n a m e n t e -
ARTE PARA mente possível. Assim, n ã o se p r o p u s e r a m b o s q u e j a r a n a t u r e z a tal como se
A
lhes apresentava sob q u a l q u e r ângulo fortuito. Eles desenhavam de m e m ó r i a ,
ETERNIDADE ^e a c 0 r d 0 c o m regras estritas que asseguravam que t u d o o que t i n h a de e n t r a r
no q u a d r o se destacaria com perfeita clareza. O método do artista, de fato,
assemelhava-se mais ao do c a r t ó g r a f o do que ao do pintor. A fig. 34
demonstra-o n u m exemplo simples, r e p r e s e n t a n d o u m j a r d i m com u m tan-
que. Se tivéssemos que desenhar tal motivo, p o n d e r a r í a m o s primeiro sob que
ângulo o focalizar. A f o r m a e as características das árvores somente p o d e r i a m
ser vistas dos lados, a f o r m a do t a n q u e somente seria visível se fosse vista de
cima. Os egípcios não t i n h a m tais escrúpulos ao a b o r d a r o p r o b l e m a .
Desenhavam simplesmente o t a n q u e como se fosse visto de cima e as árvores
de lado. Os peixes e pássaros no lago, p o r o u t r a parte, dificilmente seriam
reconhecíveis se vistos de cima, de modo que f o r a m desenhados de perfil.
N u m a cena tão simples, p o d e m o s facilmente e n t e n d e r o p r o c e d i m e n t o do
artista. U m método semelhante é u s a d o com f r e q ü ê n c i a pelas crianças. Mas
os egípcios e r a m m u i t o mais consistentes em sua aplicação desses métodos do
que as crianças j a m a i s o f o r a m . T u d o tinha que ser representado desde o seu
ângulo mais característico. A fig. 35 mostra o efeito que essa idéia teve na
34. Pintura de um
tanque. De um
túmulo em Tebas.
Cerca de
1400 a. C.
Londres, Museu
Britânico
ARTE PARA
A
ETERNIDADE
38. Rei
Amenófis IV.
Relevo em
calcário. Cerca de
1370 a.C. Berlim,
Museum
44. U m artífice
egípcio
trabalhando
numa esfinge
dourada. Mural
de um túmulo em
Tebas. Cerca de
1400 a. C.
3. O Grande Despertar
45. Um templo
dórico: o
Partenon. Atenas,
Acrópole.
Projetado por
Ictino, cerca de
450 a.C.
m
irmãos Cleóbis e
Bíton. Cerca de
vm 580 a.C. Delfos,
Museu
51. Hércules
carregando os
Céus. Do Templo
de Zeus, em
Olímpia. Cerca de
460 a.C. Olímpia,
Museu
lado de Hércules. Não é difícil pressentir nessas figuras a prolongada influên-
cia das regras que governaram a arte egípcia. Mas sentimos que a grandeza, a
calma e a força majestosas que pertencem à escultura grega t a m b é m são
5^ devidas a essa observância de antigas regras. Pois essas regras tinham deixado
de ser um obstáculo, cerceando a liberdade do artista. A antiga idéia de que
o GRANDE era importante mostrar a estrutura do corpo — suas principais articulações,
DESPERTAR por assim dizer, que nos ajudavam a entender como o todo se m a n t i n h a unido
e coeso — instigou o artista a continuar explorando a anatomia dos ossos e
músculos, e a f o r m a r u m a imagem convincente da figura h u m a n a , a qual
permanece visível mesmo sob a ondulação das roupagens. De fato, o modo
como os artistas gregos usaram as roupagens p a r a marcar essas principais
divisões do corpo ainda mostra a importância que eles atribuíam ao conhe-
cimento da f o r m a . É esse equilíbrio entre a adesão a regras e a liberdade de
criação dentro das regras que faz com que a arte grega seja tão a d m i r a d a em
séculos subseqüentes. Por isso é que artistas de épocas mais recentes retor-
naram u m a e outra vez às obras-primas da arte grega, em busca de orien-
tação e inspiração.
O tipo de trabalho que os artistas gregos eram freqüentemente solici-
tados a realizar poderá tê-los a j u d a d o a aperfeiçoar seus conhecimentos do
corpo h u m a n o em ação. U m templo como o de Olímpia estava rodeado de
estátuas de atletas vitoriosos dedicadas aos deuses. P a r a nós, isso talvez
pareça um estranho costume, pois não esperamos, por mais populares que
sejam os nossos campeões, ver seus retratos oferecidos a u m a igreja em
agradecimento por u m a vitória obtida no último certame. Mas as grandes
reuniões esportivas dos gregos, das quais os Jogos Olímpicos eram, evidente-
mente, os mais famosos, tinham características muito diferentes das nossas
modernas competições. Estavam muito mais intimamente ligadas às crenças
religiosas e aos ritos do povo. Os que participavam delas não eram esportistas
— amadores ou profissionais — mas membros das principais famílias da
Grécia, e o vencedor nesses jogos era olhado com reverência como um homem
a quem os deuses tinham favorecido com o dom da invencibilidade. Era p a r a
descobrir sobre quem essa bênção d a vitória recaíra que se celebravam
originalmente os jogos, e era p a r a comemorar e talvez perpetuar esses sinais
de graça divina que os vencedores encomendavam suas estátuas aos mais
renomados artistas do tempo.
Escavações em Olímpia puseram a descoberto grande número dos pedes-
tais em que essas famosas estátuas estavam assentadas, mas as estátuas
desapareceram. E r a m em sua maioria feitas de bronze e foram provavelmente
fundidas q u a n d o esse metal se tornou escasso na Idade Média. Somente em
Delfos u m a dessas estátuas foi encontrada, a figura de u m auriga, cuja
cabeça mostramos na fig. 52. É surpreendentemente diferente da idéia geral
que podemos formar com facilidade sobre a arte grega q u a n d o olhamos
apenas as cópias. Os olhos, que parecem freqüentemente vazios e sem
expressão nas estátuas de m á r m o r e ou são cegos nas cabeças de bronze, estão
marcados em pedras coloridas — como sempre foram nessa época. O cabelo,
olhos e lábios são levemente dourados, o que transmite a todo o rosto u m
efeito de riqueza e calor. E, no entanto, tal cabeça nunca pareceu pretensiosa
ou vulgar. Podemos ver que o artista não pretendia imitar u m a face real, com
todas as suas imperfeições, mas a modelou a partir de seu conhecimento da
forma h u m a n a . Ignoramos se o auriga é um bom retrato — provavelmente
52. Cabeça de
estátua de bronze
de um auriga.
Encontrada em
Delfos. Cerca de
470 a.C. Delfos,
Museu
53. Discóbolo.
Cópia romana em
mármore de uma
estátua em bronze
por Myron. Cerca
de 450 a. C.
Munique,
Glyptothek
imaginavam. Tinham esquecido que a estátua de Myron não é a fotografia de
uma cena de um documentário cinematográfico, mas u m a obra de arte grega.
De fato, se a observarmos mais cuidadosamente, descobriremos que Myron
logrou esse extraordinário efeito de movimento através, sobretudo, de u m a 59
nova adaptação de métodos artísticos muito antigos. Se nos colocarmos diante
da estátua e nos concentrarmos apenas em seus contornos, damo-nos súbita- o GRANDE
mente conta de sua relação com a tradição da arte egípcia. Tal como os DESPERTAR
pintores egípcios, Myron deu-nos o tronco em vista frontal, as pernas e os
braços em vista lateral; à semelhança daqueles, compôs a imagem do corpo
de um homem segundo os planos visuais mais característicos de suas partes.
Mas, em suas mãos, essa velha e gasta fórmula tornou-se algo inteiramente
diferente. E m vez de combinar esses planos visuais na representação inconvin-
cente de u m a pose rígida, pediu a um modelo real que posasse n u m a atitude
semelhante e adaptou-o de tal modo que nos dá a impressão de ser a
reprodução convincente de um corpo em movimento. Se isso corresponde ou
não ao movimento exato mais adequado e eficaz p a r a lançar o disco pouca
importância tem. O que importa é que Myron conquistou o movimento, tal
como os pintores de seu tempo conquistaram o espaço.
De todos os originais gregos que chegaram até nós, as esculturas do
Partenon refletem essa nova liberdade talvez da maneira mais digna de
admiração. O Partenon (fig. 45) foi completado uns vinte anos depois do
templo de Olímpia e, nesse breve espaço de tempo, os artistas tinham
adquirido u m a desenvoltura e facilidade cada vez maiores n a resolução de
problemas de convincente representação. Não sabemos quem foram os escul-
tores que fizeram essas decorações do templo, mas, como Fídias foi o autor
da estátua de Atena no santuário, parece provável que a sua oficina t a m b é m
tenha fornecido as outras esculturas.
As figs. 54 e 55 mostram fragmentos do longo friso que corria em toda a
volta da parte superior interna do edifício e representava o desfile anual
durante a festa solene da deusa. Havia sempre jogos e exibições esportivas no
decorrer dessas festividades; u m a das provas consistia na perigosa proeza de
conduzir u m carro e saltar p a r a dentro e fora dele com os quatro cavalos a
todo o galope. Essa é prova que se mostra na fig. 54. No começo, o
observador poderá ter dificuldade em orientar-se nesse primeiro fragmento,
pois o relevo está seriamente danificado. Não só u m a parte da superfície está
quebrada, mas toda a cor desapareceu, o que provavelmente fazia as figuras
destacarem-se de forma brilhante contra u m f u n d o intensamente colorido.
Para nós, a cor e contextura do mármore fino é algo tão maravilhoso que
jamais desejaríamos cobri-lo de tinta, mas os gregos pintavam até seus
templos com fortes cores contrastantes, como vermelho e azul. Mas, por
muito pouco que tenha restado do trabalho original, vale sempre a pena, no
caso de esculturas gregas, esquecer o que desapareceu em troca da alegria
pura de descobrir o que sobrou. A primeira coisa que vemos em nosso
fragmento são os cavalos, em número de quatro, todos emparelhados. As
cabeças e patas estão suficientemente bem preservadas p a r a nos darem u m a
ideia da mestria com que o artista logrou mostrar a estrutura de ossos e
musculos sem que o conjunto parecesse rígido ou árido. Logo percebemos que
o mesmo deve ter acontecido t a m b é m com as figuras h u m a n a s . Podemos
imaginar, pelos vestígios que restaram, com que liberdade elas se movimen-
tavam e com que clareza se destacavam os músculos de seus corpos. O
54. Aurigas. escorço j á não apresentava g r a n d e s p r o b l e m a s p a r a o artista. O b r a ç o com o
Detalhe do friso escudo é d e s e n h a d o com perfeita desenvoltura, assim c o m o o p e n a c h o esvoa-
de mármore do çante do elmo e a c a p a e n f u n a d a pelo vento. M a s todas essas novas desco-
Partenon. Cerca bertas não " d e s c o n t r o l a r a m " o artista. Por mais que o entusiasmasse essa
de 440 a. C. conquista do espaço e do movimento, não sentimos que ele estivesse ansioso
Londres, Museu
por exibir t u d o o que p o d i a fazer. A i n d a que os g r u p o s se t o r n a s s e m vivos e
Britânico
a n i m a d o s , nem por isso deixam de se a j u s t a r bem ao a r r a n j o de u m desfile
solene que m a r c h a ao longo da p a r e d e do edifício. O artista reteve a i n d a algo
da sabedoria da disposição que a arte grega derivou dos egípcios e do
t r e i n a m e n t o em p a d r õ e s geométricos que p r e c e d e r a o G r a n d e D e s p e r t a r .
É essa s e g u r a n ç a de m ã o que t o r n a c a d a detalhe do friso do P a r t e n o n tão
lúcido e " c o r r e t o " (fig. 55).
T o d a s as o b r a s gregas desse g r a n d e período m o s t r a m essa sabedoria e
habilidade n a distribuição de figuras, m a s o que os gregos de e n t ã o apre-
ciavam a i n d a mais era o u t r o aspecto: a recém-descoberta liberdade de
representar o corpo h u m a n o em q u a l q u e r posição ou movimento podia ser
u s a d a p a r a refletir a vida interior das figuras representadas. Ouvimos de u m
de seus discípulos ser isso o que o g r a n d e filósofo Sócrates, que t i n h a sido ele
m e s m o t r e i n a d o c o m o escultor, exortava os artistas a f a z e r e m . Deveriam
representar a "atividade da a l m a " , observando m i n u c i o s a m e n t e o m o d o c o m o
"os sentimentos a f e t a m o corpo em a ç ã o " .
U m a vez mais, os artífices que p i n t a v a m vasos t e n t a r a m manter-se a p a r
dessas descobertas dos grandes mestres c u j a s obras se p e r d e r a m . A fig. 56
representa o comovente episódio da história de Ulisses em que o herói volta
p a r a casa, após dezenove anos de ausência, disfarçado de mendigo, com O GRANDE
bordão, alforje e tigela, e é reconhecido por sua velha a m a Euricléia, que n o t a DESPERTAR
na p e r n a dele a cicatriz de u m velho ferimento, e n q u a n t o lhe lavava os pés.
O artista deve ter ilustrado u m a versão ligeiramente diferente da que lemos
em H o m e r o (onde a a m a tem nome diferente do que está inscrito no vaso e
Eumaios, o g u a r d a d o r de porcos, não está presente)*; talvez ele tivesse visto
55. Detalhe do
desfile de
cavaleiros, friso
de mármore do
Partenon. Cerca
de 440 a. C.
Londres, Museu
Britânico
* Cf. Odisséia, Rapsódia XXII. (N. do T.)
56. Ulisses u m a representação teatral e m que essa cena era i n t e r p r e t a d a , pois l e m b r a m o s
reconhecido por ter sido t a m b é m nesse século q u e os d r a m a t u r g o s gregos c r i a r a m a arte do
sua velha ama. T e a t r o . M a s não necessitamos do texto exato p a r a sentir que algo d r a m á t i c o e
De um vaso de comovente está acontecendo, pois a troca de olhares entre a a m a e o herói
figuras vermelhas, quase que nos diz m a i s do que as p a l a v r a s p o d e r i a m fazê-lo. O s artistas
século Va.C.
gregos t i n h a m , de fato, d o m i n a d o os meios de t r a n s m i t i r algo dos sentimentos
Chiusi, Museu
m u d o s estabelecidos entre pessoas.
Etrusco
É essa c a p a c i d a d e p a r a nos fazer ver a " a t i v i d a d e d a a l m a " n a p o s t u r a
do corpo que converte u m a simples lápide c o m o a da fig. 57 n u m a g r a n d e
o b r a de arte. O relevo mostra-nos Hegeso, que está s e p u l t a d a sob a lápide, tal
como era em vida. U m a jovem serva está d i a n t e dela em pé e oferece-lhe u m
estojo, do qual Hegeso parece escolher u m a jóia. É u m a c e n a t r a n q ü i l a q u e
p o d e r í a m o s c o m p a r a r com a r e p r e s e n t a ç ã o egípcia de T u t a n k h a m e n em seu
trono, com a esposa a j u s t a n d o - l h e a gola (fig. 39, p. 40). T a m b é m a o b r a
egípcia é m a r a v i l h o s a m e n t e clara e m seus contornos, mas, a p e s a r do f a t o de
d a t a r de u m período excepcional d a a r t e egípcia, é b a s t a n t e rígida e a f e t a d a .
O relevo grego desfez-se de t o d a s essas e m b a r a ç o s a s limitações, m a s reteve a
lucidez e a beleza do a r r a n j o , que deixou de ser geométrico e a n g u l a r p a r a se
t o r n a r livre e descontraído. O m o d o c o m o a m e t a d e superior é e m o l d u r a d a
pela curva dos braços das d u a s mulheres, o m o d o c o m o essas linhas são
57. Pedra tumular de Hegeso. Cerca de 420 a.C. Atenas, Museu Nacional
replicadas pelas curvas do escabelo, o m é t o d o simples pelo qual a bela m ã o
de Hegesto se t o r n a o centro de atenção, o o n d e a r das vestes que envolvem as
f o r m a s do corpo, d e s p r e n d e n d o de m a n e i r a tão expressiva u m a p r o f u n d a
sensação de c a l m a — t u d o se c o m b i n a , e n f i m , p a r a p r o d u z i r aquela har-
monia simples que só veio ao m u n d o com a arte grega do século V a . C .
O GRANDE
DESPERTAR
<
4. O Reino do Belo
59. Um Templo
Jónico: o
Erecteion.
Atenas, Acrópole,
Construído depois
de 420 a.C.
O G R A N D E D E S P E R T A R da arte p a r a a liberdade ocorrera nos cem anos
entre 520 e 420 a . C . , a p r o x i m a d a m e n t e . E m fins do século V, os artistas
tinham-se t o r n a d o p l e n a m e n t e cônscios de seu poder e mestria, e o m e s m o
acontecia com o público. E m b o r a os artistas ainda fossem olhados c o m o
artífices e, talvez, desprezados pelos esnobes, u m n ú m e r o crescente de
pessoas começou a se interessar pelo t r a b a l h o deles c o m o obras de arte e n ã o
apenas por suas funções religiosas ou políticas. As pessoas c o m p a r a v a m os
méritos das várias " e s c o l a s " de arte; quer dizer, dos vários métodos, estilos e
tradições que distinguiam os mestres em diferentes cidades. Não h á dúvida de
que a c o m p a r a ç ã o e a competição e n t r e essas escolas e s t i m u l a r a m o artista
para esforços ainda maiores, e a j u d a r a m a criar aquela variedade que
admiramos na arte grega. E m arquitetura, vários estilos começaram a ser
usados lado a lado. O Partenon fora construído no estilo dórico (fig. 45), mas,
fífá nos edifícios subseqüentes da Acrópole, foram introduzidas as formas do
c h a m a d o estilo jónico. O princípio desses templos é o mesmo dos dóricos,
o REINO mas, em seu todo, a aparência e o caráter são diferentes. O edifício que o
DO BELO mostra com o máximo de perfeição é o templo c h a m a d o Erecteion (fig. 59).
As colunas do templo jónico são muito menos robustas e fortes. São como
hastes mais esguias e o capitel ou remate da coluna deixou de ser u m a simples
almofada sem ornatos p a r a se tornar ricamente decorada com volutas late-
rais, as quais parecem t a m b é m expressar a função da parte que suporta a
viga transversal em que o telhado assenta. A impressão global desses edi-
fícios, com seus detalhes finalmente lavrados, é de infinita graciosidade e
leveza.
O mesmo caráter de graciosidade e leveza marca também a escultura e
pintura desse período, que começa com a geração seguinte à de Fídias.
Atenas, durante este período, esteve envolvida n u m a cruenta guerra com
Esparta, a qual pôs fim à sua prosperidade — e à da Grécia. E m 408 a.C.,
durante um breve interregno de paz, foi erigido na Acrópole um pequeno
templo consagrado à deusa da vitória, e suas esculturas e ornamentos
mostram a m u d a n ç a de gosto, na direção da delicadeza e do refinamento, que
t a m b é m se reflete no estilo jónico. As figuras foram deploravelmente mutila-
das, mas eu gostaria, não obstante, de ilustrar u m a delas (fig. 60), a fim de
mostrar como ainda é bela essa figura destroçada, mesmo sem cabeça nem
mãos. É a figura de u m a jovem, u m a das deusas da vitória, inclinando-se
para atar u m a sandália que se lhe desprendeu enquanto caminhava. Com que
supremo encanto essa p a r a d a súbita é retratada, e com que suavidade e
opulência a túnica diáfana cai sobre o belo corpo! Podemos ver nessas obras
que o artista poderá fazer tudo o que quiser. Já não tinha qualquer difi-
culdade em representar o movimento, a perspectiva ou o escorço. Sua própria
desenvoltura e virtuosismo talvez o tornassem um pouco presunçoso, cons-
ciente de sua própria mestria. O artista do friso do Partenon (fig. 54, p. 60)
não parecia pensar excessivamente acerca de sua arte ou do que estava
fazendo. Sabia que a sua tarefa era representar um desfile e esforçou-se por
representá-lo tão claramente quanto pudesse. Dificilmente estaria cônscio do
fato de que era um grande mestre, sobre quem velhos e jovens, indistinta-
mente, ainda estariam falando milhares de anos depois. O friso do templo da
Vitória mostra-nos, talvez, o início de u m a m u d a n ç a de atitude. Esse artista
estava orgulhoso de seu imenso poder, do que era perfeitamente justo que
estivesse. E assim, gradualmente, durante o século IV, o enfoque da arte
sofreu u m a m u d a n ç a . As estátuas de deuses de Fídias tinham ficado famosas
em toda a Grécia como representações dos deuses. As estátuas dos grandes
templos do século IV g r a n j e a r a m sua reputação mais em virtude de sua
beleza como obras de arte. Os gregos educados discutiam agora pinturas e
estátuas como discutiam poemas e teatro; elogiavam sua beleza ou criticavam
sua forma e concepção.
O maior artista desse século, Praxíteles, era sobretudo célebre pelo
encanto de sua obra, a doçura e caráter insinuante de suas criações. Sua mais
renomada obra, cujo louvor foi cantado em muitos poemas, representava a
deusa do Amor, a jovem Afrodite, entrando no banho. Pensa-se que u m a
O REINO
DO BELO
61. Praxiteles:
cabeça de
Hermes. Detalhe
da fig. 62
t a m b é m se p r e o c u p a em m o s t r a r - n o s as articulações mais i m p o r t a n t e s do
corpo, p a r a nos fazer e n t e n d e r seu f u n c i o n a m e n t o o mais c l a r a m e n t e possível.
Mas pode agora fazer t u d o isso sem m a n t e r sua estátua rígida e i n a n i m a d a .
Pode mostrar os músculos e ossos que se distendem e se movem sob a pele
macia, e d a r a impressão de u m corpo pleno de vitalidade, em toda a sua
graça e beleza. E n t r e t a n t o , é necessário e n t e n d e r que Praxíteles e os outros
artistas gregos atingiram essa beleza através do conhecimento. Não existe
corpo h u m a n o que seja tão simétrico, bem f o r m a d o e belo q u a n t o os das
estátuas gregas. As pessoas p e n s a m f r e q ü e n t e m e n t e que o método e m p r e g a d o
pelos artistas consistia em observarem muitos corpos e deixarem de fora
qualquer característica de que não gostavam; que começavam por copiar
meticulosamente a aparência de um h o m e m real e depois o embelezavam,
omitindo quaisquer irregularidades ou traços que não se h a r m o n i z a s s e m com
a idéia de u m corpo perfeito. Dizem que os artistas gregos " i d e a l i z a r a m " a
natureza, e p e n s a m nisso em termos de u m fotógrafo que retoca um retrato O REINO
eliminando p e q u e n o s defeitos. M a s u m a fotografia retocada e u m a e s t á t u a DO BELO
idealizada carecem u s u a l m e n t e de caráter e vigor. T a n t a coisa fica de fora e é
eliminada que pouco resta a não ser u m pálido e insípido espectro do modelo.
Na verdade, o e n f o q u e grego era e x a t a m e n t e o oposto. D u r a n t e todos esses
séculos, os artistas que vimos discutindo estavam e m p e n h a d o s em insuflar
cada vez mais vida nos corpulentos e s a n h u d o s modelos antigos. No t e m p o de
Praxíteles, esse método produziu seus frutos mais sazonados. Os velhos tipos
c o m e ç a r a m a se mover e a respirar sob as mãos do hábil escultor, e erguem-se
diante de nós como verdadeiros seres h u m a n o s ; mas, ao m e s m o t e m p o , c o m o
seres de u m m u n d o diferente e melhor. São, de fato, seres de u m m u n d o
diferente, não p o r q u e os gregos fossem mais sadios ou mais belos do que
62. Praxíteles:
Hermes com o
jovem Dioniso.
Cerca de 350 a. C.
Olímpia, Museu
63. (esquerda) outros h o m e n s — não existe r a z ã o a l g u m a p a r a p e n s a r que fossem — m a s
Apolo do Belveder. p o r q u e a arte, nesse m o m e n t o , atingira um p o n t o em que o típico e o
Cópia romana em individual e r a m colocados em u m novo e delicado equilíbrio.
mármore (as
mãos são M u i t a s das mais f a m o s a s obras da arte clássica que f o r a m a d m i r a d a s em
modernas), épocas mais recentes c o m o representativas dos mais perfeitos tipos de seres
segundo uma h u m a n o s são cópias ou variantes de e s t á t u a s criadas nesse período, m e a d o s
estátua grega do século IV a . C . O Apolo do Belveder (fig. 63) m o s t r a o modelo ideal do
datando corpo de u m h o m e m . Q u a n d o o temos diante dos olhos, em sua impressio-
provavelmente de
nante pose, s e g u r a n d o o arco no b r a ç o estendido e a cabeça de lado, c o m o se
350 a.C.
estivesse seguindo com a vista a trajetória da flecha, n ã o temos dificuldade
Vaticano, Museu
em reconhecer o t ê n u e eco do antigo e s q u e m a em que a c a d a p a r t e do corpo
64. (direita) A
era d a d o o seu p l a n o visual mais característico. E n t r e as f a m o s a s e s t á t u a s
Vénus de Milo.
clássicas de Vénus, a Vénus de Milo (assim c h a m a d a por ter sido e n c o n t r a d a
Estátua grega do
século I a. C. na ilha de Meios) talvez seja a mais conhecida (fig. 64). Pertenceu provavel-
Provavelmente mente a u m g r u p o de V é n u s e C u p i d o que foi realizado n u m período algo
imitação de uma mais recente, mas que usou as inovações e os métodos de Praxíteles. T a m b é m
obra do século IV. foi idealizada p a r a ser vista de lado ( V é n u s estendia os braços p a r a Cupido) e
Paris, Louvre podemos u m a vez mais a d m i r a r a clareza e simplicidade com que o artista
modelou o belo corpo, o modo como marcou suas principais divisões, sem
jamais se tornar desarmonioso ou vago.
É claro, esse método de criar beleza através da realização de u m a figura
geral e esquemática que se vai tornando cada vez mais real até a superfície do
mármore parecer animada de vida e respirar tem um inconveniente. Era
O REINO
possível criar tipos humanos convincentes por esse meio — mas tal método
DO BELO
levaria alguma vez à representação de seres humanos individuais e reais? Por
estranho que tal nos pareça, a idéia de um retrato, na acepção em que
usamos hoje a palavra, só viria a ocorrer aos gregos j á em fins do século IV.
É certo haver notícia de retratos feitos em épocas anteriores (fig. 52, p. 57),
mas essas estátuas não eram provavelmente representações muito fiéis. O
retrato de um general pouco mais era do que a imagem de qualquer soldado
de boa aparência, com um elmo e um bastão. O artista nunca reproduzia o
formato do nariz, as rugas da testa ou a expressão individual do retratado.
É um fato estranho, que ainda não examinamos, terem os artistas gregos, nas
obras que vimos, evitado dar às cabeças u m a expressão particular. Isso é
realmente mais surpreendente do que parece à primeira vista, pois é quase
impossível rabiscarmos qualquer rosto simples n u m a folha de rascunhos sem
lhe incutir alguma expressão marcada (usualmente u m a expressão divertida).
As cabeças de estátuas ou pinturas gregas do século V, é claro, não são
inexpressivas no sentido de parecerem opacas ou vazias, mas suas feições
nunca parecem expressar qualquer emoção forte. Era o corpo e seus movi-
mentos que esses mestres usavam para expressar o que Sócrates chamou " a
atividade da a l m a " (fig. 56, p p . 61-2), porquanto pressentiam que o jogo
fisionômico iria distorcer e destruir a simples regularidade da cabeça.
65. Cabeça de
Alexandre
Magno.
Provavelmente
uma versão de um
retrato por Lisipo.
Cerca de 330 a. C.
Istambul, Museu
A f u n d a ç ã o de u m império p o r Alexandre foi u m evento s u m a m e n t e
i m p o r t a n t e p a r a a arte grega, que de ser a p r e o c u p a ç ã o de u m p u n h a d o de
p e q u e n a s cidades se converteu desse m o d o na linguagem pictórica de quase
m e t a d e do m u n d o . Referimo-nos s o b r e t u d o a essa arte do período subse-
qüente não como arte grega, m a s como arte helenística, por ser esse o n o m e
u s u a l m e n t e d a d o aos impérios f u n d a d o s pelos sucessores de Alexandre em
solo oriental. As o p u l e n t a s capitais desses impérios, Alexandria no Egito,
Antioquia n a Síria e P é r g a m o n a Ásia M e n o r , fizeram aos artistas exigências
diferentes d a q u e l a s que estavam a c o s t u m a d o s na Grécia. M e s m o n a arqui-
tetura, as f o r m a s simples e robustas do estilo dórico e a graciosidade n a t u r a l
do estilo jónico não e r a m b a s t a n t e s . Preferiu-se u m a nova f o r m a de coluna, a
qual tinha sido inventada em começos do século IV e d e n o m i n a d a em
h o m e n a g e m à rica cidade e empório mercantil de Corinto (fig, 66). No estilo
coríntio, foi adicionada folhagem às volutas espiraladas jónicas p a r a decorar
o capitel, e havia geralmente o r n a m e n t o s mais numerosos e mais ricos em
todo o edifício. Esse m o d o luxuoso harmonizava-se com as suntuosas cons- ~J ^
truções que f o r a m e s p a l h a d a s em vasta escala pelas r e c é m - f u n d a d a s cidades
do Oriente Próximo. Poucas dentre elas f o r a m preservadas, mas o que resta o REINO
de períodos subseqüentes dá-nos u m a impressão de g r a n d e magnificência e DO BELO
esplendor. Os estilos e invenções da arte grega f o r a m aplicados à escala dos
reinos orientais e de acordo com as suas tradições.
Disse eu que a arte grega, como u m todo, estava destinada a sofrer u m a
p r o f u n d a m u d a n ç a no período helenístico. Essa m u d a n ç a pode ser n o t a d a em
algumas das mais f a m o s a s esculturas dessa era. U m a delas é u m altar
proveniente da cidade de Pérgamo, o qual foi erigido por volta de 170 a.C.
(fig. 67). O grupo representa a luta entre os deuses e os gigantes. É u m
trabalho suntuoso, m a s procura-se em vão a h a r m o n i a e o r e f i n a m e n t o da
anterior escultura grega. O artista visou, obviamente, a o b t e n ç ã o de fortes
efeitos dramáticos. A b a t a l h a desenrola-se com violência terrível. Os desajei-
tados gigantes são e s m a g a d o s pelos deuses triunfantes e o l h a m p a r a o alto
num desespero agônico. T u d o está cheio de movimento desordenado e vestes
esvoaçantes. P a r a t o r n a r o efeito a i n d a mais impressionante, o relevo deixou
de ser a c h a t a d o contra o p l a n o de f u n d o p a r a se c o m p o r de figuras quase
66. Capitel
"Coríntio".
Encontrado em
Epidauro. Cerca
de 300 a.C.
Epidauro, Museu
soltas, as quais, em sua luta, p a r e c e m t r a n s b o r d a r p a r a os degraus do altar,
como se pouco lhes importasse s a b e r e m a que p e r t e n c i a m . A arte helenística
adorava tais o b r a s t u m u l t u o s a s e veementes; desejavaj>er i m p r e s s i o n a n t e . . . e
impressionante ela era, por certo.
Algumas das o b r a s da escultura clássica que d e s f r u t a r a m maior f a m a ,
O REINO em épocas ulteriores, f o r a m criadas d u r a n t e o período helenístico. Q u a n d o o
DO BELO g r u p o de Laocoonte (fig. 68) foi descoberto em 1506, seu efeito trágico causou
p r o f u n d o i m p a c t o emocional nos artistas e a m a n t e s de arte. O g r u p o repre-
senta a terrível cena que é t a m b é m descrita na Eneida, de Virgílio: o
sacerdote troiano Laocoonte advertiu seus c o m p a t r i o t a s p a r a que n ã o acei-
tassem o cavalo de m a d e i r a em que estavam escondidos os soldados gregos.
Os deuses que viram seus planos de destruição de Tróia c o n t r a r i a d o s envia-
ram d u a s gigantescas serpentes-do-mar que a p a n h a r a m o sacerdote e seus
dois infelizes filhos em seus anéis e os e s t r a n g u l a r a m . É u m a das histórias de
a b s u r d a crueldade p e r p e t r a d a pelos deuses olímpicos contra pobres mortais, e
que são m u i t o f r e q ü e n t e s nas mitologias grega e latina. G o s t a r í a m o s de saber
como a história impressionou o artista grego que concebeu esse impressio-
n a n t e g r u p o . Q u e r e r i a ele que sentíssemos o horror de u m a cena em que se
fez sofrer u m a vítima inocente por ter f a l a d o a verdade? O u quereria,
67. Os Deuses principalmente, exibir seu p r ó p r i o p o d e r de representar u m a luta a t e r r a d o r a e
combatendo os algo sensacional e n t r e h o m e m e besta? Ele tinha todas as razões p a r a se
Gigantes. Do orgulhar de sua h a b i l i d a d e . A m a n e i r a c o m o os músculos do tronco e dos
altar de Zeus em braços t r a n s m i t e m a idéia de esforço e sofrimento da luta desesperada, a
Pérgamo. Erigido
expressão de dor no rosto do sacerdote, as contorções impotentes dos dois
cerca de 170 a. C.
r a p a z e s e o m o d o que todo esse movimento e agitação foi imobilizado n u m
Berlim,
Pergamon- g r u p o p e r m a n e n t e , têm excitado a a d m i r a ç ã o constante desde então. M a s n ã o
Museum posso deixar de suspeitar, por vezes, de que era u m a arte c u j a intenção
O REINO
DO BELO
68. Laocoonte e
seus filhos. Grupo
em mármore
proveniente da
oficina de
HAGESANDRO,
ATENODORO e
POLIDORO de
Rodes. Cerca de
25 a. C. Vaticano,
Museu
consistia em atrair u m público que t a m b é m se deleitava no horrível espe-
táculo das lutas de gladiadores. Talvez seja errôneo recriminar o artista por
isso. O fato é que provavelmente nessa época, o período do Helenismo, a arte
já perdera largamente suas antigas vinculações com a magia e a religião. Os
artistas p a s s a r a m a interessar-se pelos p r o b l e m a s de seu ofício em termos de
arte pela arte, e o p r o b l e m a de como representar tão d r a m á t i c a luta com todo
o seu movimento, sua expressão e tensão, era j u s t a m e n t e o tipo de t a r e f a que
testaria a audácia e a t ê m p e r a de u m artista. Os acertos ou erros do destino
reservado a Laocoonte p o d e m não ter ocorrido sequer ao espírito do escultor.
Foi nessa época, e nessa atmosfera, que as pessoas ricas c o m e ç a r a m a
colecionar obras de arte, m a n d a n d o copiar as mais f a m o s a s se não pudessem
obter as originais, e p a g a n d o preços fabulosos pelas que p o d i a m adquirir. Os
escritores c o m e ç a r a m a interessar-se por arte e escreveram sobre as vidas de
artistas, colecionaram a n e d o t a s sobre suas excentricidades e c o m p u s e r a m
.
69. Donzela colhendo flores. Mural proveniente de Stabiae. Século I d.C. Nápoles, Museo Nazionale
guias p a r a turistas. Muitos dos mestres mais famosos entre os antigos e r a m
pintores e não escultores, e n a d a sabemos a respeito de suas obras, exceto o
que e n c o n t r a m o s naqueles excertos de livros clássicos de arte que c h e g a r a m
até nós. T a m b é m sabemos que esses pintores estavam mais interessados nos ~J~J
problemas especiais de seu ofício do que em pôr sua arte a serviço de u m a
finalidade religiosa. Ouvimos de mestres que se especializaram em t e m a s O REINO
inspirados na vida cotidiana, que p i n t a r a m b a r b e a r i a s ou cenas de peças DO BELO
teatrais, mas todas essas p i n t u r a s estão perdidas p a r a nós. A única m a n e i r a
pela qual podemos f o r m a r a l g u m a idéia sobre o caráter da antiga p i n t u r a é
observando as p i n t u r a s m u r a i s e os mosaicos que f o r a m descobertos em
Pompéia e alhures. P o m p é i a era u m a cidade de c a m p o h a b i t a d a p o r famílias
a b a s t a d a s e foi soterrada pelas cinzas do Vesúvio em 79 d.C. Q u a s e todas as
casas e villas nessa cidade t i n h a m p i n t u r a s murais, colunas e galerias
pintadas, imitações de q u a d r o s e m o l d u r a d o s e de palcos teatrais. Nem todas
essas p i n t u r a s , evidentemente, e r a m obras-primas, e m b o r a s u r p r e e n d a ver o
grande n ú m e r o de boas o b r a s que havia n u m a cidade p e q u e n a e p o u c o
i m p o r t a n t e . Dificilmente f a r í a m o s tão boa figura se u m a de nossas estâncias
litorais de veraneio viesse a ser escavada pela posteridade. O s decoradores de
interiores de Pompéia e cidades vizinhas desenhavam livremente, é claro,
apoiados no estoque de invenções dos grandes artistas helénicos. E n t r e m u i t a
coisa que é trivial descobrimos por vezes u m a figura de r e q u i n t a d a beleza e
graciosidade, como a fig. 69, que representa u m a das H o r a s colhendo u m
botão de flor como se executasse u m a d a n ç a . O u s u r p r e e n d e m o s detalhes
como a cabeça de u m f a u n o (fig. 70), de o u t r a p i n t u r a , os quais nos
propiciam u m a idéia do domínio e liberdade que esses artistas haviam
adquirido na m a n i p u l a ç ã o d a expressão.
Q u a s e todas as espécies de coisas suscetíveis de participar de u m a
p i n t u r a serão e n c o n t r a d a s nesses m u r a i s decorativos. Bonitas naturezas-
mortas, por exemplo, como dois limões n u m copo de á g u a , e cenas com
animais. Já existiam ali, inclusive, p i n t u r a s de paisagens. Talvez t e n h a sido
essa a maior inovação do período helenístico. A antiga arte oriental não t i n h a
uso p a r a as paisagens, exceto como m o l d u r a p a r a as suas cenas de vida
h u m a n a ou de c a m p a n h a s militares. Q u a n t o à arte grega, nas épocas de
Fídias ou de Praxíteles, o h o m e m continuou sendo o t e m a principal de
interesse do artista. No período helenístico, a época em que poetas c o m o
Teócrito descobriram o e n c a n t o da vida simples entre pastores, os artistas
t a m b é m t e n t a r a m evocar os prazeres da existência c a m p e s t r e p a r a os sofisti-
cados h a b i t a n t e s d a cidade. Essas p i n t u r a s não são vistas reais de determi-
n a d a s casas de c a m p o ou bonitas paisagens. São, antes, coleções de t u d o o
que se compõe u m a cena idílica, pastores e gado, e r m i d a s rústicas, palacetes
e m o n t a n h a s distantes (fig. 71). T u d o estava e n c a n t a d o r a m e n t e disposto
nesses quadros, e todas as peças c o m p o n e n t e s se a p r e s e n t a v a m em seus
melhores aspectos. Sentimos realmente estar o l h a n d o p a r a u m a cena de
p r o f u n d a serenidade. Não obstante, m e s m o essas o b r a s são m u i t o menos
realistas do que p o d e r í a m o s p e n s a r à primeira vista. Se começássemos a fazer
p e r g u n t a s e m b a r a ç o s a s , ou tentássemos desenhar u m m a p a da localidade,
não t a r d a r í a m o s em descobrir que isso era impossível de se fazer. I g n o r a m o s
que distância existirá entre o p e q u e n o s a n t u á r i o e o palacete, e se a p o n t e está
perto ou longe do s a n t u á r i o . O fato é que os artistas do período helenístico
desconheciam o que c h a m a m o s as leis da perspectiva. A f a m o s a avenida de
choupos, que se a f a s t a até u m p o n t o de f u g a e que todos d e s e n h a m o s na
escola, n ã o constituía e n t ã o u m a t a r e f a corrente. Os artistas d e s e n h a v a m as
coisas distantes p e q u e n a s e as coisas perto ou i m p o r t a n t e s grandes, m a s a lei
78 da diminuição regular de objetos à m e d i d a que ficavam mais distantes, o
e n q u a d r a m e n t o fixo e m que p o d e m o s representar u m a vista, n ã o era a d o t a d a
O REINO pela a n t i g u i d a d e clássica. Com efeito, mais de mil anos t r a n s c o r r e r i a m antes
DO BELO QUE a lei passasse a ser a p l i c a d a . Assim, m e s m o as o b r a s mais recentes, mais
inovadoras e confiantes da a r t e antiga preservam ainda, pelo menos, u m
remanescente do princípio que discutimos em nossa descrição da p i n t u r a
egípcia. O c o n h e c i m e n t o do c o n t o r n o característico de c a d a objeto a i n d a
contava t a n t o q u a n t o a impressão real recebida através dos olhos. Reconhe-
cemos há m u i t o t e m p o que essa q u a l i d a d e n ã o é u m defeito e m o b r a s de arte,
a ser l a m e n t a d o e o l h a d o com sobranceria, mas que é possível atingir a
perfeição artística d e n t r o de q u a l q u e r estilo. Os gregos r o m p e r a m os rígidos
tabus do primitivo estilo oriental e e n v e r e d a r a m por u m r u m o de descoberta a
70. Cabeça de um
fauno. Detalhe
de um mural de
Herculano.
Provavelmente
cópia de uma
pintura
pergamena
datando do século
II a. C. Nápoles,
Museo Nazionale
fim de acrescentarem às imagens tradicionais do m u n d o u m n ú m e r o c a d a vez 71. Paisagem.
maior de características obtidas através d a observação. M a s suas o b r a s n u n c a Mural. Século
se parecem com espelhos em que se refletem todos os recantos, a i n d a os mais I d.C. Roma,
casuais ou insólitos, da n a t u r e z a . O s t e n t a m sempre o c u n h o do intelecto que Villa Albani
as criou.
73.Um anfiteatro
romano: o Coliseu
em Roma.
Construído cerca
de 80 d. C.
75. O Arco
Triunfal de
Tibério (reinou
14-37 d.C.).
Orange, Sul da
França
77. O Imperador
Vespasiano.
Busto em
tamanho superior
ao natural, cerca
de 70 d. C.
Nápoles, Museo
Nazionale
78. A parte
inferior da coluna
de Trajano, em
Roma.
Inaugurada em
114 d.C.
J
arte grega do retrato (fig. 76). Esses retratos, que e r a m c e r t a m e n t e feitos por
humildes artífices a u m baixo preço, a i n d a hoje nos s u r p r e e n d e m por seu
vigor e realismo. H á poucas obras de arte antiga que p a r e ç a m tão " m o d e r -
n a s " q u a n t o essas. 87
Os egípcios não f o r a m os únicos a a d a p t a r os novos métodos de arte às
suas necessidades religiosas. M e s m o n a distante í n d i a , o m o d o r o m a n o de CONQUIS-
contar u m a história e glorificar u m herói foi a d o t a d o por artistas que se TA DORES
DO MUNDO
Propuseram a t a r e f a de ilustrar a história de u m a conquista pacífica: a
história do B u d a .
A arte d a escultura t i n h a florescido na í n d i a muito antes dessa influência
helenística chegar ao país; m a s foi n a região fronteiriça de G â n d a r a que a
figura do B u d a foi pela primeira vez m o s t r a d a nos relevos que p a s s a r a m a ser
o modelo p a r a a arte b u d i s t a posterior. A fig. 79 representa o episódio da
lenda do B u d a conhecido pelo nome de A G r a n d e Renúncia.
O jovem príncipe G á u t a m a está deixando o palácio dos pais p a r a se fazer
eremita na floresta. Assim se dirige ao seu cavalo favorito, K a n t h a k a : " M e u
Querido K a n t h a k a , por favor, carrega-me u m a vez mais, somente por esta
noite. Q u a n d o me tiver t o r n a d o o B u d a com a tua a j u d a , trarei a salvação ao
m u n d o de deuses e h o m e n s " . Se K a n t h a k a tivesse a p e n a s relinchado ou feito
ruído com os cascos, a cidade teria a c o r d a d o e a partida do príncipe seria
descoberta. Assim, os deuses a b a f a v a m - l h e a voz e colocavam as m ã o s sob os
cascos do animal, sempre que este dava um passo.
79. Gáutama
(Buda)
abandonando sua
casa. Relevo
encontrado em
Gândara (índia
setentrional),
cerca do século
Ild.C. Calcutá,
Museu Indiano
A arte grega e r o m a n a , que e n s i n a r a o h o m e m a visualizar deuses e
heróis com belas f o r m a s , t a m b é m a j u d o u os indianos a criar u m a i m a g e m do
seu Salvador. A bela cabeça do B u d a , com sua expressão de p r o f u n d o
88 repouso e serenidade, t a m b é m foi feita nessa região fronteiriça de G â n d a r a
(fig. 8 0 ) . - 3. JJJRQrçB-
CONQUIS- Ainda o u t r a religião oriental que a p r e n d e u a representar suas histórias
TADORES sagradas p a r a instrução dos crentes foi(a j u d a i c a ? Na realidade, a j x i Judaica
DO MUNDO proibia a realização de imagens, CQM_jemo de que os judeus caíssem n a
idolatria. E n t r e t a n t o , as colônias j u d a i c a s nas c i d M e s _ x L a ^ j j s m t e i r a l e s t e
80. Cabeça de
Buda.
Encontrada em
Gândara (índia
setentrional).
Feita
aproximadamente
no século III d. C.
Londres, Victoria
and Albert
Museum