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Copyright O 1998 by Os Autores

Projeto gráfico e capa:


HISTÓRIA
Hélio de Almeida
sobre foto de ' DA VIDA PRIVADA
NO BRASIL
Propaganda de rádio em Seleções,
tomo 1, nº 2, março de 1942
Guardas:
Foto de Augusto Malta, Igreja de Santa Luzia e o Graf Zeppelin,
Rio de Janeiro, 1930, Acervo do Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro
Editoração eletrônica:
Acqua Estúdio Gráfico
Secretaria editorial:
Fernanda Carvalho
Pesquisa iconográfica:
Yara Schreiber
Índice remissivo:
República: da Belle
Maria Cláudia Carvalho Mattos
Preparação: Époque à Era do Rádio
Márcia Copola
Revisão:
Beatriz Moreira
Coordenador-geral da coleção:
Ana Maria Barbosa FERNANDO A. NOVAIS
Cláudia Cantarin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Organizador do volume:


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
NICOLAU SEVCENKO
História da vida privada no Brasil / coordenador-geral da cole-
ção FernandoA. Novais ; organizador do volume Nicolau
Sevcenko. — São Paulo : Companhia das Letras, 1998. — 4º reimpressão
(História da vida privada no Brasil; 3)

Vários autores.
Bibliografia.
IsBN 85-7164-651-1 (obra completa)
ISBN 85-7164-747-X

1. Brasil - Civilização 2, Brasil - História - República,


1889 - 3. Brasil - Usos e costumes 1. Novais, Fernando A., 1933 -
1. Sevcenko, Nicolau. 11. Série

98-0431 cDD-981

Índice para catálogo sistemático:


1. Brasil : Vida privada : Civilização : História 981

2001

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LIDA,
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp — Brasil
Telefone: (11) 3846-0801
Fax: (11) 3846-0814
www.companhiadasletras.com.br
a
COMPANHIA DAS LETRAS
7

A CAPITAL IRRADIANTE:;
TÉCNICA, RITMOS E
RITOS DO RIO

Nicolau Sevcenko
ORIG
o
RE] Bo
514 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 515

DI Secrava

Se você pretende compreender a sua própria época, leia as


obras de ficção produzidas nela. As pessoas quando estão vesti-
das em fantasias falam sem travas na língua.
Arthur Helps, Life and labours of mister Brassey, 1969

enhuma impressão marcou mais fortemente as gera-


ções que viveram entre o final do século xix e o
início do xx do que a mudança vertiginosa dos cená-
rios e dos comportamentos, sobretudo no âmbito das gran-
des cidades. Nas palavras de Ivan Tolstói:

O século xIx foi um período de avanços científicos pro-


digiosos, durante o qual campos completamente novos
da ciência surgiram [...] O desenvolvimento tecnológico
também foi espetacular — talvez mais ainda do que o
científico na mente do grande público. Transporte, ele-
trificação, indústrias químicas, controle de doenças — a
lista é infinita — estavam alterando a sociedade de
modo profundo e irreversível. Por volta de 1900 o poder
da tecnologia estava muito além do que qualquer outro Se essa era a pretensão declarada e o ideal máximo almeja- 1,2. O gigantesco Graf Zeppelin,
do pelos homens que mantinham posições decisórias no cur- primeiro dirigível a fazer vôos
século jamais sonhara. Não havia precedente históri-
comerciais transoceânicos
co para o que se passava... Isso suscitou um otimismo so da Revolução Científico-Tecnológica,? esse ideal implicava e intercontinentais, Suas proporções
curioso, uma fé que afirmava, com efeito, que estávamos também, o que é falacioso, observar o processo de uma pers- colossais o transformaram no símbolo
no caminho certo — um pouco mais de esforço, um pectiva externa e como que neutra em relação ao próprio por excelência do novo mundo
bocadinho mais de boa vontade e o nosso músculo cien- fluxo das transformações. Só um olhar que se arrogasse des- da máquina, a propaganda dos
tífico-tecnológico recém-adquirido, o poder do conheci- potenciais prodigiosos da tecnologia
prendido e imune aos efeitos turbulentos dessa transição das
pelos céus do mundo. (1, Aeronave
mento, resolveria todos os problemas e nos alçaria a condições materiais de reprodução do cotidiano, poderia em vôo, 1928; 2. Construção da
mundos novos e utópicos.! analisá-la pelos seus supostos efeitos de organização, racio- Aeronave 127: o Graf Zeppelin, 1928)
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nalização, controle e harmonização do mundo contingente. O O fato de que as gerações posteriores, cujos representan-
que ocorre é o contrário: os novos recursos técnicos, por suas tes já nasceram após a consolidação desse processo e portan-
características mesmo, desorientam, intimidam, perturbam, to foram acostumados desde pequenos à experiência das ve-
confundem, distorcem, alucinam. No mínimo porque as esca- locidades tecnológicas, consigam distinguir e interpretar as
las, potenciais e velocidades envolvidos nos novos equipamen- paisagens que vislumbram em movimento, é bastante revela-
tos e instalações excedem em absoluto as proporções e as limi- dor da capacidade humana para assimilar e adaptar-se aos
tadas possibilidades de percepção, força e deslocamento do efeitos desorientadores dos novos recursos e potenciais. Mas
corpo humano. Compare-se o símbolo máximo da nova técni- o preço dessa adaptação é a perda da capacidade de reconhe-
ca, a Torre Eiffel, com o tamanho de um ser humano médio. cer sua estranheza e os modos pelos quais elas reorientam a
Ou a força de uma locomotiva, ou a velocidade de um avião. percepção humana. O hábito, mais que a adaptação ativa,
Ou coteje-se a escala de uma casa familiar de proporções mé- gera a adesão conformada e a sensação de que, no que se
dias com as dimensões de uma usina hidroelétrica ou de um refere ao corpo e à mente, a mudança é pouco relevante e os
complexo siderúrgico ou de um aeroporto. Ou compare-se a homens continuam os mesmos desde que o primeiro mem-
luz de uma vela, acessório milenar da humanidade, com um bro da espécie surgiu na Terra.
holofote, ou uma página de livro com uma tela de cinema. Uma das primeiras apresentações de imagens em movi-
Os escritores do século x1x que já eram adultos quando mento na Europa ocorreu com a exibição do filme A chegada
viveram a experiência das suas primeiras viagens ferroviárias, do trem na estação, de Louis Lumiére, em 1895. Acompanhe-
deixaram registros muito reveladores sobre suas impressões. mos a descrição que o escritor Máximo Górki fez da sua
Eis como Victor Hugo comentou a vista da paisagem rural primeira impressão quando viu o filme: “De repente há um
pela janela do trem em movimento: “As flores ao longo da estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na
ferrovia não são mais flores mas manchas, ou melhor, fachos tela. Ele dispara como uma flecha na sua direção — cuidado!
de vermelho ou branco; não há mais pontos, tudo se converte A sensação que se tem é como se ele se arremessasse na escu-
em traços. Os campos de trigo são grandes cabeleiras loiras ridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um saco
desgrenhadas... As cidades, as torres das igrejas e as árvores de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio... tor-
desempenham uma dança louca em que se fundem no hori- nando tudo em fragmentos e pó..”.5
zonte”? Esse impacto sentido por -Górki correspondia fielmente
Pelas distorções registradas na percepção de Victor Hugo ao choque geral que o aparecimento da técnica cinematográ-
pode-se vislumbrar com perfeita clareza o percurso pelo qual fica desencadeou por toda parte. A primeira apresentação
as artes visuais mudaram suas linguagens sob o impacto das desse filme se deu em Lyon, durante o Congresso das Socie-
novas tecnologias. Sua descrição dos efeitos desfigurativos dades Fotográficas Francesas. O tipo de público reunido nes-
produzidos pela aceleração da locomotiva e o consegiiente se evento era bastante familiarizado portanto com instru-
deslocamento do olhar evocam as paisagens dissolvidas de mentos óticos e recursos relacionados à fotografia, não sendo
Turner, ou os efeitos irregulares das irradiações luminosas de esperar que fosse se alterar muito com o espetáculo. Mas o
captados pelos impressionistas, sua visão alucinada dos tri- que sucedeu foi curioso. Quando houve o anúncio da pri-
gais preconiza Van Gogh, a coreografia tresvariada das for- meira sessão de cinema, o desinteresse foi completo, os parti-
mas confundidas do campo e das cidades multiplica as pers- cipantes do Congresso reagiram com ceticismo e pouco-caso
pectivas e aponta para as experiências radicais do cubismo. à suposta “novidade” Apenas 33 gatos-pingados tomaram
Caso mais interessante ainda é o de Gustave Flaubert que, assento no salão para conferir a engenhoca. Quando a luz se
simplesmente, não conseguia interpretar nenhum elemento apagou e a imagem do trem se pôs em movimento, o resulta-
do que via pela janela do trem acelerado: “Eu não consigo do foi conforme o relato do escritor russo. Após a projeção os
captar nada da vista oferecida pela janela da cabine”.* espectadores saíram comentando sua experiência e, em bre-
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observadas através de uma objetiva por uma pessoa de cada


vez. A novidade era anunciada com entusiasmo pela imprensa,
nos dias que antecederam a exibição, como sendo “uma mara-
vilha da ciência moderna, tão surpreendente em suas desco-
bertas e aplicações” ou ainda como a “maravilhosa lanterna
mágica da ciência”. Quando a ansiada projeção se deu, a reação
dos jornais foi ainda mais eufórica: “Assistimos ontem à inau-
guração de um dos mais maravilhosos espetáculos, que excita
atualmente a admiração nas principais capitais européias...
Não falando no interesse científico que resulta dessas cenas
animadas, o espectador experimenta uma estranha sensação
3. Na primeira projeção vendo mover-se figuras do tamanho natural no écran onde a
cinematográfica, a exibição luz as fixou. Os enormes progressos realizados nestes últimos
da imagem do trem marchando anos na arte fotográfica permitiram que se pudesse oferecer ao
em direção à câmara gerou pânico
público o raro espetáculo que se vai exibir nesta capital e que
e correria na platéia. (Louis
Lumiêre, A chegada de um trem
ultrapassa tudo quanto pode sonhar a imaginação mais fantás-
em Ciotat, França, 1895) tica” Outro jornalista ficou ainda mais perturbado, alardeando
que “o omniógrafo deve ter o maior êxito. Os leitores [que]
ve, O salão de Lumitre estava completamente lotado. As pes- hão de ter a curiosidade de lá ir, terão que concordar conosco
soas viam e voltavam para rever, já acompanhadas de outros em que a fotografia é o vivo demônio”?
céticos. Nos dias seguintes havia disputa para conseguir en- “Um dos mais maravilhosos espetáculos”, “admiração”,
» «
“estranha sensação”,
» é
“sonho”, “imaginação”, “fantasia”,
» «€

trar, os mais afoitos tentavam forçar a entrada, começaram os “o vivo


sopapos e bengaladas, a polícia foi chamada e o tumulto vi- demônio”, as palavras denotam uma reação aturdida com a
rou um caso de segurança pública. Um jornalista que acom- experiência. É a mesma coisa por toda parte. Nesse mesmo
panhou as sessões se deu conta do efeito profundo que a
técnica cinematográfica estava destinada a ter na vida das
pessoas comuns: “Quando esses equipamentos [as máquinas
filmadoras] estiverem nas mãos do público, quando qualquer
um puder fotografar os seus entes queridos, não apenas na
sua forma imóvel, mas em movimento, ação, gestos familia-
res, e as palavras sendo ditas pelas suas bocas, aí então a
morte não será mais absoluta, não será o momento final?é
4, Nas palavras do filósofo Walter
Benjamin, a câmara “nos abre,
Já no ano seguinte, a 8 de julho de 1896, ocorreria a pri- pela primeira vez, a experiência
meira apresentação das imagens em movimento no Rio de do inconsciente visual, assim como
Janeiro. O aparelho projetor francês era anunciado como sen- a psicanálise nos abre
do um “omniógrafo”, para ressaltar a diferença entre ele e as a experiência do inconsciente
instintivo” (Câmaras
máquinas americanas de Edison, os chamados “kinetoscópios”, cinematográficas de Lumiêre,
que mostravam segiiências miniaturizadas de movimentos no primeira e segunda versões
interior de uma câmara, as quais, entretanto, só podiam ser aperfeiçoadas, 1895)
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ano de 1896, por exemplo, um dos historiadores pioneiros da


tecnologia, o americano William Kennedy Laurie Dickson,
tendo assistido à sua primeira sessão de cinema, vaticinou
em tom exaltado: “É a coroa e a flor da mágica do século xIx,
a cristalização de milênios de encantamentos acumulados.
Em suas leis integrais, luminosas e acessíveis se concentram
possibilidades jamais sonhadas pelas tradições ocultas do 5. A imagem da criatura
Oriente: a sabedoria conservadora do Egito, a erudição zelosa tecnológica que superaria
os atributos humanos, o “robot”
da Babilônia, os mistérios secretos dos templos délficos e
foi concebida pelo dramaturgo
eleusinos da Grécia. É o escopo da nova era, quando as gran- tcheco Karel Capek em 1921.
des potencialidades da vida não mais dependerão de fontes Mas seria o filme Metropolis
religiosas, acadêmicas ou do saco de dinheiro, mas transbor- de Fritz Lang, um enorme sucesso
darão aos rincões mais remotos da terra ao comando do mais no Brasil e em todo o mundo,
humilde herdeiro da inteligência divina”? que o transformaria num
dos principais mitos do mundo
A formulação de Dickson é preciosa. Ele observou com contemporâneo. (Metropolis,
rigor as quatro derivações mais significativas da nova técnica: laboratório, 1926)
a sensação de que ela comporta efeitos mágicos, a inferência
de que seu advento multiplica os potenciais humanos, a no espaço público, agenciam os desejos e as disposições psí-
consciência de que ela altera a percepção e a condição do quicas mais íntimas de cada um, influenciando a esfera mais
homem comum. Indo do geral ao particular, ele aponta co- estreita das suas deliberações em âmbito privado e interagin-
mo o impacto da tecnologia, contemplando expectativas da do decisivamente com esta. A segunda revelação do conto é o
sociedade, interfere, no entanto, nos projetos de cada indiví- modo privilegiado como os artistas conseguem articular sim-
duo. De fato a projeção de imagens móveis, luminosas e agi- bolicamente esses intercursos entre as tecnologias e os desti-
gantadas na tela do cinema escuro afeta de modo intenso nos individuais, tão contingentes e imprevisíveis como esses
simultaneamente a percepção visual e a imaginação. Walter processos o são, na medida mesmo em que a arte opera com
Benjamin foi um dos primeiros teóricos a analisar esse fenô- base em singularidades extraídas do real e projetadas numa
meno, avaliando como a câmara “nos abre, pela primeira vez, dimensão mítica. Do mito. do Frankenstein maldito ao do
a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanáli- Cyborg justiceiro, temos tanto a atualização tecnológica
se nos abre a experiência do inconsciente instintivo”? quanto a mudança de valores e a diversidade dos destinos
Esse percurso pelo qual a estimulação ótica mobiliza individuais. Daí a peculiar valia da ficção como fonte docu-
energias e conteúdos inconscientes foi rapidamente percebi- mental nessa linha de análise.
do pelos artistas. Em 1904 o escritor Rudyard Kipling criou Outra constante possível de ser observada nesses docu-
um conto no qual narra a história de um marujo que, após mentos e testemunhos pioneiros é a relação imediata que eles
assistir a um filme, desenvolve a estranha obsessão de que estabelecem entre as novas técnicas, o cinema e as grandes
uma mulher, vista numa cena de rua, estaria na realidade cidades. Vimos pouco antes o modo impetuoso como o jor-
procurando por ele. Incapaz de separar a fantasia do real, em nalista que relatava a primeira sessão de cinema no Rio de
virtude do poder da ilusão cinematográfica, o personagem é Janeiro, o louvava como “um dos mais maravilhosos espetá-
arrastado a um completo estado de loucura.!º O conto ilustra culos, que excita atualmente a admiração nas principais capi-
pelo menos duas situações muito interessantes. A primeira é tais européias”, De fato, a Revolução Técnico-Científica insti-
o mecanismo pelo qual as novas tecnologias, conquanto en- tuiu um encadeamento entre as novas tecnologias e, por
volvam procedimentos e recursos que são postos e operados conta da escalada na atividade produtiva, enormes movi-
522 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 , A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO » 523

mentações populacionais, especialmente voltadas para a con- de símbolos e de ritos sociais, estilos de arte, formas de retóri-
centração nas áreas urbanas que polarizam o processo. É o ca, ritmos de dança, regras de conduta, modas de trajo e de
que desencadeia o fenômeno da metropolização na sua mag- penteado” a fim de “tentar surpreender e interpretar o que
nitude contemporânea. Segundo o planejador Kingsley houve de mais íntimo no caráter de uma época”. O modo de
Davis, as sociedades urbanas “representam um passo novo e elaborar essa síntese interpretativa, porém, deve estar voltado
fundamental na evolução social humana” mas, ainda assim, para um esforço de reunir “verdades contraditórias”. Ou seja,
“nem a condição recente nem a velocidade desse desenvolvi- incorporar perspectivas distintas de pessoas de gerações e con-
mento evolutivo têm sido devidamente compreendidas”! dições sociais diferentes, que vivam e percebam os processos
O que implicaria um esforço para desvendar e compreender de mudança valendo-se de diferentes coordenadas, possibili-
o modo pelo qual a experiência de viver nas grandes cidades tando assim ao historiador uma apreensão mais ampla e varia-
modernas, planejadas em função dos novos fluxos energé- da dessa complexa experiência de transformação dos hábitos e
ticos e marcadas pela onipresença das novas técnicas, in- dos quadros culturais. Sua sugestão é seguir nesse sentido as
fluencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de lições do mestre espanhol Ortega y Gasset com seu método
disposição dos seus habitantes. Esse aspecto foi bem apreen- “perspectivista”: “É ele quem adverte muito lucidamente, sobre
dido pelo historiador da cultura James Donald, que o obser- as “visões distintas” não se excluírem: “mas ao contrário tende-
va pelo nexo estratégico que a ambiência das megalópoles rem a se integrar” pois nenhuma esgota a realidade.” É que,
mantém com o cinema. “A metrópole moderna e a instituição segundo Ortega, “uma realidade que vista a partir de qualquer
do cinema surgem praticamente no mesmo momento. Sua ponto permanecesse sempre idêntica, seria um conceito absur-
justaposição fornece várias chaves sobre a estética pragmática do” pois 'cada vida é um ponto de vista..” Mais, “a única pers-
pela qual experimentamos a cidade não apenas como cultura pectiva falsa é essa que pretende ser a única”!
visual, mas acima de tudo como um espaço psíquico”2 Nesse espírito, conduzimos esta pesquisa através dos tex-
No Brasil, no período estudado, esse papel de metrópo- tos de diferentes escritores do período, na tentativa de com-
le-modelo recai sem dúvida sobre o Rio de Janeiro, sede do preender tanto as mudanças provocadas pela introdução das
governo, centro cultural, maior porto, maior cidade e cartão novas técnicas e modos de vida quanto os efeitos da constru-
de visita do país, atraindo tanto estrangeiros quanto nacio- ção dos mitos da modernidade e da cidade moderna na expe-
nais. O desenvolvimento dos novos meios de comunicação, riência pessoal de diferentes grupos da sociedade carioca. O
telegrafia sem fio, telefone, os meios de transporte movidos a percurso se inicia com Machado de Assis e João do Rio, in-
derivados de petróleo, a aviação, a imprensa ilustrada, a in- corporando progressivamente outros autores, fontes e vozes
dústria fonográfica, o rádio e o cinema intensificarão esse na medida mesma em que o afluxo das experiências identifi-
papel da capital da República, tornando-a no eixo de irradia- cadas com a modernidade vai se adensando e intensificando.
ção e caixa de ressonância das grandes transformações em Machado e João do Rio são vias privilegiadas para captar
marcha pelo mundo, assim como no palco de sua visibilidade a força e as ressonâncias do impacto tecnológico. Cada um
e atuação em território brasileiro. O Rio passa a ditar não só atua como um sensor de registro diferente mas que se com-
as novas modas -e comportamentos, mas acima de tudo os pletam às maravilhas. Machado, mais velho, cuja sensibilida-
sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de se formou no cenário das instituições imperiais, assinala o
de espírito e as disposições pulsionais que articulam a mo- ímpeto e a velocidade das mudanças, a surpresa dos seus
dernidade como uma experiência existencial e íntima. É nes- contemporâneos e as resistências erguidas como meios de
se momento e graças a essa atuação que o Rio se torna, como defesa contra um fluxo que a tudo parecia levar de roldão.
o formulou Gilberto Freyre, numa cidade “panbrasileira”.!3 João do Rio, mais jovem, cujas possibilidades de carreira se
Esse mesmo autor, aliás, nos lembra o valor precioso que abriram com o advento da República, assinala a ampla difu-
assume o estudo das “predominâncias de palavras, como as são, os efeitos de mitificação e os modos de celebração en-
524 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 525

7. À imagem do Rio de Janeiro


é construída à imagem
e semelhança das grandes
metrópoles cosmopolitas modernas.
(Augusto Malta, O “Graf
Zeppelin” sobrevoando o Rio,
1936)

embora não incomum, que observou diretamente e lhe cha-


mou a atenção ao ponto de se tornar tema daquela sua seção:
6. A associação de Londres,
a capital do maior império Ontem, ia andando um bond, com pouca gente, três pes-
mundial, com o aeroplano soas. À uma dessas pareceu que o cocheiro estava fu-
e as técnicas de fotografia mando um cigarro; via-lhe ir a mão esquerda fregientes
e filmagem aérea constrói
vezes à boca, de onde saía um fiozinho de fumo, que não
a identificação entre metrópoles,
tecnologia e comunicação visual chegava a envolver-lhe a cabeça, porque, com o andar do
como os alicerces básicos da vida veículo, espalhava-se pelas pessoas que iam dentro deste.
moderna. (Capitão Alfred Os cocheiros podem fumar em serviço? Perguntou a
Buckham, O coração do Império, pessoa ao condutor.
c. 1926)
Fê-lo em voz baixa, trangiila, como quem quer saber
só por saber. O condutor, não menos serenamente, res-
tusiasmados dessas mudanças vertiginosas. A ironia cortante
pondeu-lhe que não era permitido fumar.
afina o diapasão crítico dos dois num arco tenso mas firme. De
— Então...
tal modo que os textos de Machado adquirem significados
— Mas ele fuma só aqui, no arrabalde; lá para o
mais agudos quando contrapostos aos de João do Rio e vice-
centro da cidade não fuma, não senhor.
versa. O modo como essa relação se estabelece, entretanto, é
Grande foi o espanto da pessoa, ouvindo essa tradu-
cheio de meandros, sinuosidades, personagens e pequenas his-
tórias das crônicas de Machado e da literatura-reportagem de
ção de Pascal, tão ajustada ao cigarro e ao bond. Verité en
deçà, erreur au dela.
João do Rio. Histórias miúdas, de gente pequena e grande, que
vão compondo o painel em que fica retratada a modernidade Como se vê, nem por ser corriqueiro o caso deixa de lhe
panbrasileira, na moldura mítica do Rio de Janeiro. parecer notável e suscitar uma proposição filosófica profun-
ORIGINAL

da. À linha do confronto parece bem clara. É para Machado


que o episódio causa espécie, não para os demais persona-
Se

Numa das crônicas escritas para a revista A Semana em gens envolvidos. O autor da pergunta inoportuna de fato se
1894, Machado de Assis relata um incidente muito curioso, espanta com a resposta ambivalente do condutor, mas o dado
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 527
526 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

relevante é que tanto antes do questionamento ele já não via ro poderia ser justificado por um mecanismo interno, de
a situação como problemática, como a narrativa leva a crer progressiva urbanização, incorporação das populações mar-
que, uma vez imperturbavelmente informado da ambigiida- ginais às práticas e demandas de uma rotina que define com
de definitiva, parece aceitá-la ele também, após a surpresa clareza os âmbitos do público e do privado e sua ulterior
inicial, como realidade imponderável. Sabedor desse consen- redenção pela elevação geral dos usos e costumes aos padrões
so tácito é que o cocheiro fuma tranquilamente seu cigarri- da doutrina liberal. Explicação que se lhe prova insuficiente.
nho, que a ele faz tanto gosto e apenas aos demais, no inte- Já pela segunda, não há que esperar mudanças significativas,
rior do veículo para onde toda a fumaça converge, é que mas, ao contrárió, um recrudescimento dos hábitos enraiza-
pode porventura causar qualquer desconforto ou inconve- dos. E mais uma vez Machado se revela um observador im-
niência. A convicção básica compartilhada por todos, porém, placável. Na sua sutil ironia, a verdade é aqui, o erro lá.
Machado incluído, é que pelo menos até se chegar à área É muito relevante que a cena se passe num bond.” Ainda
central, ninguém, mesmo que incomodado, há de advertir o que visto aqui na sua primeira versão, movido a tração ani-
fumante ou cobrar a aplicação da lei. Até lá, o conjunto do mal, ele já era um poderoso índice de urbanização, transfor-
veículo público é uma extensão do espaço privado do cochei- mação tecnológica e ampliação do espaço público. É fácil
ro e, sem dúvida, do condutor. A partir do centro, a história é deduzir que se o cocheiro fosse o criado de uma família abas-
outra.!é tada ou mesmo o condutor de uma caleça de aluguel, não
Como entender o paradoxo? Machado parece a certa al- fumaria na presença de seus patrões ou seus clientes. O fato
tura evocar o peso da tradição para explicá-lo. Na mesma de que ele fume no bond não se deve apenas à condição de
crônica faz uma indagação sugestiva. “Quem imaginará que este ser público, mas sobretudo porque ele constitui uma
se pegue de um homem dos campos, onde respira o ar livre e presença maciça, ruidosa e perturbadora de um novo poder
puro, para meter-lhe uns calções de Corte e fazê-lo dançar o tecnológico. Ao estabelecer uma intimidade privativa com
minueto?” Por certo, porém, reconhece que a questão é mais essa potência e suas conotações europeizadas, modernas, agi-
complexa e por isso recorre à eminência de Pascal. A referên- gantadas e céleres, o cocheiro e o condutor acentuam sua
cia à “verdade de cá e ao erro de lá”, pelo viés do filósofo identificação pessoal com a nova potestade, diferenciando-se
francês, sugere o confronto maior, entre a sociedade e cultura dos seus concidadãos comuns, sejam eles pedestres ou passa-
brasileiras e sua suposta matriz européia. De modo que, pela geiros ou mesmo gente de classe social superior. E natural-
primeira explicação, o comportamento impróprio do cochei- mente não desejavam se submeter a uma admoestação humi-

9. Manoel de Souza Pinto se refere


aos vários tipos de bondes no Rio
8. Segundo Olavo Bilac, “o bond de Janeiro, os de primeira
assim que nasceu matou e segunda classe, os de bagagens,
a gôndola e a diligência, limitou os “bondes de ceroula” destinados
despoticamente a esfera de ação ao público elegante dos teatros,
das caleças e dos coupês, tomou cujos bancos eram cobertos com
conta da cidade..., tornando-se uma capa branca, os bondes
“o servidor dos ricos de casamento e os de batizado,
e a providência dos pobres [...] revelando como o serviço público
pondo todas as classes no mesmo era não obstante apropriado para
MANDO
nível [...]”. (Armando Pacheco, E NECO a fruição privada dos privilegiados.
Bonde, s. d.)
E (Augusto Malta, sem título, s. d.)
528 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 529

10. Outra associação


imperativa do cigarro
é com a moda,
a atualidade
e o frescor aliciante
do que é novo.
(Sabbado D'Angelo,
Cigarros Sudan,
1924)

12. A identificação do cigarro com


SÃO SEMPRE a mulher jovem e ousada, além
=e de dotar o novo hábito de uma forte
UM PRESENTE carga erótica, integrava
EEEMa Co IEI
sro Tm
BEMVISTO a gesticulação que acompanhava
À > A
o ato de fumar à linguagem corporal
COSTA,PENNA L CIA SÃO-FELIX BAIA, da sedução. (Sem título, c. 1920)

11. O charuto representa o lhante, que os repusesse na sua condição subalterna, ao aden-
Prestígio das posições conquistadas,
dois termos, como conceitos correlatos ou equivalentes sim-
trar a área central, a mais policiada e fiscalizada da cidade.'º bólicos.
o prêmio do sucesso, a consagração
de uma reputação, trazendo como O fato de que o objeto das cogitações entre os persona- É com certeza por isso que quando João do Rio cria a
corolário a admiração feminina, gens seja um cigarro também não é de menor interesse. Os figura do janota típico da sociedade carioca no início do sé-
a promessa de maiores prazeres cigarros ou charutos industrializados, diferentemente do culo, na pessoa do elegante empertigado Jacques Pedreira,
e novas conquistas. Atente-se para fumo de corda ou fumo de pitar, eram presenças recentes na egoísta consumado e moderno dernier bateau, o gesto que
a óbvia insinvação fálica vida urbana e se distinguiam dos hábitos tradicionais de fu-
da imagem publicitária, melhor o define é seu jeito de fumar: “Acendeu um cigarro,
associando o charuto à virilidade.
mar ou mascar, sobretudo relacionados com o ambiente ru- acendeu-o à moda, não com fósforo, mas com um isqueiro.
(Charutos Príncipe de Gales, ral. Nas grandes cidades, era considerado de bom-tom o con- Para saber a que sociedade pertence um homem, basta vê-lo
1929) sumo do rapé, identificado como um uso da Corte. Machado fumar. Jacques fumando era de primeira classe, com o cigar-
de Assis, uma vez mais, nos lembra como ele se constituía ro grosso no meio do lábio carnudo, tragando vagarosamen-
não só numa nota de elegância, mas acima de tudo num te, nunca, jamais quebrando a cinza com o dedo mínimo”
forte elo de coesão da vida social. Comentando um encontro Por isso mesmo seu traje preferido era o smoking jacket, com
casual entre vetustos cavalheiros numa seção eleitoral, ele re- o qual frequentava o smoking room dos clubs da cidade, divi-
lata, em outra crônica de 1894, a imediata satisfação difundi- dindo seu tempo entre o poker e o flirt. Nesse início de sécu-
da no grupo, quando um deles sacou da “amostrinha”: “Um lo, o cigarro tinha portanto ainda uma conotação europeiza-
velho, ainda maduro, aventou uma boceta de rapé. Foi uma da. Afinal ele havia sido celebrizado, juntamente com o café,
alegria universal. Com quê, ainda tomava rapé? No meu pela juventude revolucionária nas agitações que assinalaram
tempo, disse o velho sorrindo, era o melhor laço de sociabi- a passagem do século xvil para o x1x, sendo ambos dissemi-
lidade; agora todos fumam, e o charuto é egoísta” Sem nados pelos exércitos de Napoleão, depois consagrados pela
dúvida um novo hábito: moderno e egoísta. Machado con- boêmia intelectual e artística da Paris do Segundo Império.
duz o relato de modo a sugerir um efeito de fusão entre esses Somente após a Primeira Guerra, sobretudo pela via do cine-
530 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 * 53]
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO

ma, eles se tornariam os símbolos clássicos do modo de vida


americano.
Contra esse quadro de fundo se pode entender ainda
melhor o comportamento daquele cocheiro da primeira his-
tória de Machado de Assis. Seu gesto era de algum modo
pioneiro e distinto, muito embora inoportuno. Mais do que
apenas um ato de relaxamento e fruição, ele envolvia além
disso uma forma inevitável de comunicação. Ele impedia jus-
tamente que o modesto funcionário fosse ignorado, como STORES
pela lógica social vigente ele estaria destinado a ser. Supunha-
se que os atrativos da situação fossem os passageiros, o pró-
prio bonde, alguns passantes, porventura a paisagem e, no
caso de algum incidente de percurso, talvez o condutor. Mas,
hélas, o cocheiro fuma! É uma outra história; mereceu até
crônica do maior escritor brasileiro. O que a anedota revela,
no seu âmbito restrito, é uma prática bastante disseminada
de jogo ou negociação social, que abrange vários níveis. Tra-
ta-se da iniciativa de impor formas de comunicação com
base em posições privilegiadas de superioridade, auferidas
graças aos potenciais postos pelos novos meios técnicos, para
em virtude delas invadir deliberada e agressivamente o espa-
ço comum. Se essas atitudes já tendiam a existir, numa socie-
dade assinalada por posições instáveis e situações ambíguas,
o fato é que as práticas e tecnologias que caracterizam a vida
moderna, associadas à turbulência do crescimento urbano sóbrio dos contatos e comunicações.” Mesmo o consumo 13, 14, 15. Desde a Belle Époque,
explosivo, as tornariam um padrão constante das tensões so- popular das infusões típicas da região meridional, de São o hábito do consumo do café
ciais decorrentes desses processos. Assim, na periferia, nosso se torna um ritual individual
Paulo ao Rio Grande do Sul, a congonha, a erva-mate, o
diário, que envolve um número
cocheiro refaz as regras, assumindo a iniciativa do jogo so- chimarrão, por exemplo, eram (e são), na sua despojada sim- cada vez maior de pessoas por todo
cial. No centro, ele se submete ao código que o anula. Diante plicidade, também consumidos em rituais de coesão social. Já o mundo. (13. Domenico Bristot,
da ausência de uma norma de cidadania que o reconheça, ele o cigarro e o café, de preferência juntos, podem também ser Rótulo de café, 1934; 14. Bodega
responde com a desestabilização do privilégio social que o consumidos em grupos ou até coletivamente, mas sua desti- do Café, 1930; 15. Sem título, s. d.)
direito à privacidade se tornou aqui. nação é acima de tudo individual. Isso não só pela sua tradi-
Essas alusões ao cigarro e ao café lembram esse outro ção associada às revoluções burguesas da passagem do século
elemento que,àà semelhança do rapé, estava desaparecendo XVIII a0 XIX, conforme mencionado antes, com o seu corolá-
na obsolescência: o chá. A situação é bastante ilustrativa. O rio representado pelo individualismo romântico. O café e o
consumo do chá também caracterizava muito mais uma ceri- cigarro, apesar de terem sido difundidos pelas agitações libe-
mônia social, um momento carregado de regras e conven- rais, permaneceram restritos a setores limitados da popula-
ções, destinado sobretudo a ressaltar traços de educação e ção e círculos estreitos das elites. Sua autêntica popularização
vínculos de afeto familiar ou reconhecimento social, do que só ocorreria na segunda metade do século xix, mediante so-
configurar um hábito individual. Daí seus horários rígidos, bretudo seu nexo histórico com a Revolução Científico-Tec-
aparelhos vários e delicados, vestimentas adequadas e o tom nológica, ao redor de 1870, e sua associação intrínseca, em
532 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 533

virtude de suas propriedades estimulantes, com os novos rit- para fazer a obra, não fazer a obra, fazer as malas e fazer a
mos do trabalho e a fragmentação da experiência urbana. viagem do céu, com escala pela Europa”
Como já anunciara nosso arauto Machado de Assis, “esse À referência ao céu é precisa, pois se tratava justamente
último quarto de século é o princípio de uma era nova e da nova utopia dos arrivistas: dinheiro a rodo, dinheiro seja
extraordinária”? Esse contexto é crucial para se entender, no
como for, dinheiro. já e já, para gastar com artigos importa-
rigor da palavra, o que significa a vida moderna. Na sua po- dos ou para viajar ao exterior. Naturalmente a contrapartida
sição de cronista do popular jornal Gazeta de Notícias, seu do arrivismo é a cupidez do melado havia muito almejado,
papel era exatamente o de atuar como um intermediário, fonte do clássico aforismo machadiano, “ao vencedor as bata-
comentando as matérias do noticiário internacional e estabe- tas”, Como comenta o autor mais adiante, na mesma crônica
lecendo a ponte para os acontecimentos locais. O que o tor- citada acima: “Mas o pior é que tudo o que agora me cerca
nava num sensor aguçado, captando a maré das mudanças são algarismos, e os mais deles grandes”? Um outro sobrevi-
que do hemisfério norte irradiava as tendências a que o res- vente do Império, o visconde de Taunay, comentou espanta-
tante do mundo se via na contingência de se ajustar e, ao do o espetáculo inusitado da “queima de fortunas seculares”

tm
mesmo tempo, observando as ressonâncias internas desse que, num curto intervalo, foram transferidas para as mãos de
panorama amplo e turbulento. Suas antenas sensíveis se de- “um mundo de desconhecidos”, devotados em sua sanha “à
ram conta do nexo ominoso existente entre as inovações tec- fome do ouro, à sede da riqueza, à sofreguidão do luxo, da
nológicas, a expansão européia, a instabilidade internacional posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo” Ninguém,
e o consequente fluxo de mudanças desencadeadas nas socie- porém, como Machado achou o exato tom sarcástico para
dades por toda parte, dramáticas, céleres e imprevisíveis. revelar o íntimo da consciência da nova burguesia argentária:
“Mas então que é o tempo?” se pergunta ele em crônica de “Mete dinheiro na bolsa — ou no bolso, diremos hoje — e
1894. “É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou esse anda, vai para diante, firme, confiança na alma, ainda que
tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não tenhas feito algum negócio escuro. Não há escuridão quando
há dúvida que os relógios, depois da morte de [Solano] Ló- há fósforos. Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não com-
pez, andam muito mais depressa” De fato, nessa conclusão
pres mal os outros, corrompe e sê corrompido, mas não te
mordente ele condensava a cadeia de eventos que, a partir da
esqueças do dinheiro, que é com que se compram os melões.
Guerra do Paraguai, provocaram a desestabilização do Impé- Mete dinheiro no bolso [...] Make money. E depressa, depres-
rio, a criação da oposição republicana, o golpe de 89, a altera- sa, antes que o dinheiro acabe”
ção da ordem econômica e financeira, a irrupção maciça de Uma vez mais as referências simbólicas são decisivas.
capitais, sobretudo ingleses e norte-americanos no país, a Temos o novo modelo da calça com bolsos, segundo o pa-
bandalheira especulativa do Encilhamento e a modernização drão smart do impecável corte inglês, acessório imprescindí-
acelerada e “a qualquer custo” do país.” vel da recente moda aquisitiva. Temos os melões, e não se
Machado de Assis assistiu impávido ao súbito desabar pode esquecer que eles então eram artigos importados, da
dessa atmosfera de fervor pelo enriquecimento ilícito, quanto Espanha, a preços inimagináveis em virtude das dificuldades
mais rápido mais admirável, que reformulou os quadros de de transporte e conservação, para ser degustados com o au-
valores da veneranda Corte imperial, impondo a febre aquisiti- têntico presunto cru de Parma. E, não menos importante,
va, a fraude escancarada e a exibição ostensiva do luxo como temos o make money, primeiro dos mandamentos da obriga-
os ideais mais elevados de uma nova horda de arrivistas. Numa tória cartilha anglo-saxônica, pela qual rezavam os discípulos
crônica de 1895 ele clamou ao novo panteão republicano: “Se recém-convertidos à nova ordem neocolonial. Se já tínhamos
alguma coisa merecem os meus pecados, peço a Deus a vida visto antes que ser identificado como moderno implicava
precisa para nesses dias futuros incorporar uma companhia, necessariamente algum modo de relação com a tecnologia e a
receber vinte por cento das entradas, levantar um empréstimo
atitude individualista, aqui fica claro que essa identificação
534 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 535

ESESIRAVON DE CHAPÉOS DA. MAISON


materiais, comprados num emergente mercado de “títulos
EM-INICA
BLANCHEES=— honoríficos” e “peças de época”. Esse é o caso, por exemplo,
DA UREGINAVANA-Za
desse magnata da nova situação, arrivista por excelência, o
personagem do barão Belfort, lídimo representante e símbolo
supremo dos “homens de negócio, a maior ou talvez a única
aristocracia do momento”. O “negócio” do “barão”, amigo ín-
timo do janota Jacques Pedreira, fique claro desde já, era um
só, tráfico de influências, usando uma rede de relações nos
cargos decisórios da nova República e definindo o resultado
das concorrências públicas com seu talão de cheques. Sua
divisa, colada na janela do automóvel, era, se não edificante,
pelo menos altissonante: “Esmago todo mundo e ninguém
me vê”. Suas duas paixões eram os carros e as mulheres. Para
isso mantinha uma garçonniêre, onde podia receber as coco-

E
16. Na Belle Époque, o objeto
tes com discrição e luxo. Um dia o nosso frívolo Jacques lhe
do desejo por excelência eram
os chapéus femininos. Os códigos pede a alcova emprestada para um affaire, do que resultou
eram complicadíssimos — essa notável descrição da maisonnette:
variavam conforme a idade, estado
civil, condição social, posição
Jacques submeteu-se ao fetichismo do homem superior
do pai ou marido, estação, [narra João do Rio] e no outro dia, o criado de Belfort,
ambiente, hora do dia, um criado francês, foi pessoalmente entregar-lhe uma
características dos vestidos e jóias chave de prata, com essa palavra a lápis em papel tim-
em uso, as modas das companhias
brado do barão: Excelsior!”
teatrais parisienses e os últimos
À garçonniêre era de um gosto apurado e fino. Ficava
ne H
lançamentos das butiques ego Ouvidor WS a:
francesas. Misteriosos, exuberantes, numa das ruas que desembocam no Flamengo. A casa MODELOS
ousados, eles catalisavam olhares, era própria. Constava de cinco peças. No salão pequeno
ocupavam o espaço, acrescentando havia por mobília um caro tapete, um baú medievo, um
traços de poder, sofisticação e ares contador espanhol, algumas telas de Corot, de Turner,
enigmáticos às usuárias, (Rayon
de Chapéus da Maison Blanche,
uma vitrine com esmaltes e medalhas antigas, cortinas
1908) pesadas de seda, Logo depois, uma sala maior à xvm
século, Jaca e tapeçaria de gobelino moderno. As paredes
17. As “elegâncias” necessariamente
não prescinde também de uma obrigatória associação com eram.forradas de seda rosa. As cortinas eram de seda
deveriam ser francesas, Note-se
símbolos cosmopolitas, em especial aqueles que conotam quase branca. Em medalhões, Lancret, Watteau, Boucher, como o gigantismo da sombra
origem européia ou norte-americana, consolidando a prática três telas em que o amor se repetia galante. O lustre, em projetada insinua o acréscimo
chic de ser snob.? bronze verde fantasiava a escalada dos amores. Havia simbólico com que as roupas
uma bergêre, um divan, um leito, e o ambiente estava e adereços de luxo importados
Mais curioso ainda, nessa miscelânea de emblemas que fariam qualquer criatura “crescer”
traduzem as novas relações de poder e prestígio, assumem impregnado de essência de rosas. A seguir, a sala de ba-
desproporcionalmente aos olhos
um papel da maior importância as referências ao passado,e nho, feita de mármore colorido, alabastro verde, e cris- da sociedade. (Sem título, 1929)
quanto mais remoto melhor, como efeito da insegurança crô- tais de tonalidades mortas. O conforto e a higiene ti-
nica de uma nova gente que não tendo história por trás de si, nham organizado aquela peça, Havia o leito de mármore
precisa criar uma ilusão dela utilizando símbolos e recursos forrado por um tapete persa para as massagens, havia a
536 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 537

MARCENARIA BRAZILEIRA
texto e anula qualquer significação precisa, define-se o pa-
drão eclético com que os “novos homens” disfarçavam com
um mosaico de fragmentos desencontrados a inconsistência
Antiga Moreira Santos de uma trajetória equívoca. Esse é o caldeirão prepóstero em
que fermenta a inautenticidade, decantando o kitsch. Justa-
MOVEIS E TAPEÇARIAS mente porque todo o quadro social se embaralhou, é preciso
reformular uma nova configuração da ordem e como já não
se pode buscar o apoio da história para dispor os papéis, os
heróis e as hierarquias, apela-se para o jornalismo, dando
18. Segundo a lógica eclética origem às indefectíveis colunas sociais.
da Belle Époque, a decoração Acompanham-nas as falanges emergentes dos fiscais do
dos interiores deveria criar uma gosto, os censores da correção, os ditadores da moda, procla-
atmosfera íntima do lar mando seus decretos pelos jornais e revistas mundanas. Por-
completamente isolada que afinal, nos informa João do Rio, em meio à maré mon-
das influências externas, fossem
tante do arrivismo, “ter gosto pode ser uma profissão, dada a
atmosféricas, poeira, sujeira
ou quaisquer agentes estranhos. raridade do gosto”? Nesse caso portanto, o gosto não se refe-
Portas e janelas fechadas, camadas re a nenhum padrão estético ou estável de excelência, típico
sucessivas de cortinados, chão de uma sociedade aristocrática, mas ao empenho dos recém-
acarpetado, paredes forradas,
móveis cobertos, luz indireta,
reflexos e simetrias rigorosamente
calculadas. Os estilos
e procedências variados dos objetos
sugeriam afluência e dissolviam
questões de origem. (Marcenaria
Brasileira, 1907)

máquina elétrica do leito condensador, tabuleiro de cris-


tal com frascos de todos os tamanhos, em que se encon-
travam desde as essências perfumadas até a terebintina.
E a piscina de alabastro verde, enchia pelo fundo de água
morna, água a ferver ou água gelada. Logo depois vinha
a sala de jantar, mobiliada ao gosto inglês, aconchegada e
agradável. Por fim a cozinha, com um fornecimento em
19. No melhor estilo eclético, esse
latas e garrafas de tudo o que faz mal e sabe bem: vinhos banheiro reúne obras de arte,
da Hungria e da Borgonha, champagne, foie-gras, trufas... “adereços decorativos neoclássicos,
Homem esplêndido! — fez Jacques.” mármores, carpetes, além de
QRIGINAL

modernos equipamentos de ducha


Do clássico ao contemporâneo, passando pelo medieval, e hidromassagem com elegantes
o renascentista, o neoclássico, o barroco, o orientalizante, o metais niquelados. Arte e higiene
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impressionista, o decadentista e o moderno, nesse caldo hete- se dão as mãos para estabelecer
o novo padrão de vida sofisticada.
rogêneo em que um pouco de tudo neutraliza qualquer con-
(Sem título, São Paulo, s. d.)
538 - HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 539

chegados às benesses do consumo em se diferenciar e distan-


ciar dos menos afortunados e dos despossuídos, de cujo seio
vieram. O que passa por gosto é na verdade a moda, que deve
mudar sempre para impedir a emulação e, por meio dela,
qualquer indesejável identificação. Prevalece agora não o de-
sejo de estar identificado, pelas suas vestes, adereços e ape-
trechos, com um meio social homogêneo, com um padrão i

funcional ou com um estrato cultural. O momento é o de Ê


Í
I

afinar-se com o tempo, com as notícias rápidas, com a cir-


cunstância européia atualizada pelo dernier bateau ou, em
breve, a americana do último filme. A cena agora perten-
cia ao individualismo exibicionista. Como decretou o cronis-
ta do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro, “o nosso
smartismo estragou a nossa fraternidade”: Ou conforme a
Ve.

lacônica e definitiva conclusão de Machado sobre a nova rea-


lidade, “o mundo é um par de suspensórios”” Uma vez mais
é o nosso solerte Jacques Pedreira quem melhor pode ilustrar
o fervor do novo culto:
[...] iniciava a sua toilette com cuidado. A escolha do
fato, da camisa e da gravata correspondente, punha-o
muita vez perplexo. Estas coisas absorviam sua atenção.
Conhecia gravatas ao longe. 21. Para as mulheres,
— Esta gravata não é daqui? o investimento na aparência,
nas roupas e no porte oferece
— Não.
oportunidades de romper
— É do Doucet.* Estavam em moda o ano passado, hierarquias e barreiras sociais,
Em fornecedores o seu conhecimento era doutoral. A conquistando legitimamente
menor alteração no corte dos fracks, uma insignificante posições pela beleza e elegância,
mudança na aba dos chapéus de Londres ou da Itália como antes só fora tolerado para
“les grandes horizontales”, “les
tinham nele um fiel. As cores das roupas de baixo tam-
saloniêres”, “les demi-mondaines”,
20. Para os “homens novos” bém. E a maneira de estar conforme manda a educação as “coristas” e as “protegidas”.
criaturas que assumem a cena dos salões — educação e maneiras que variam todos os (Eterno ídolo, 1903)
histórica com a “Regeneração”, anos. Ultimamente usava camisetas irisadas de morte-
a aparência se torna o cartão
cores imprevistas, abandonando nas gravatas os tons Além dos jornais e revistas mundanas, outra fonte de
de apresentação, legitimando sua
aspiração aos bens e às posições. monocromos, e nunca sentara para jantar sem estar de assimilação dos mandamentos sempre fugazes do gosto era 0
Juventude, beleza, elegância e estilo smoking ou de casaca. Um homem quando tem apetite, teatro, mormente o das companhias estrangeiras, as francesas
se tornam os requisitos do sucesso pode jantar até tendo apenas por fato a aliança do casa- em primeiro lugar. Era nelas qué Carlos Chagas, o persona-
na nova sociedade. (Sem título, mento. Ele, porém, achava aquilo necessidade impres-
c. 1930) gem que encarna o decorador da moda no Rio do início do
cindível, e mesmo em Teresópolis, num matagal horren- século, ia buscar a inspiração para as suas composições ceno-
do de cura, aparecia sempre, com espanto do hotel, de gráficas dos interiores das casas da nova burguesia. João do
smoking e sapatos de verniz.” Rio comenta o resultado de sua intervenção'na mansão do
540 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 541

deputado Arcanjo dos Santos, um dos poderosos do momen- nos magazines mundanos a tecnologia, a língua confusa
to, da qual fazia parte “um faqueiro histórico, faqueiro de da alta-roda, aliás tão limitada! Quando chegou, não quis
setecentas peças de prata lavrada, oferta de um amigo em usar nenhum dos antigos vestidos, nenhum dos antigos
delírio ao Generalíssimo Deodoro”. Após a reforma do deco-. chapéus, que, entretanto, já eram grandes. Esteve incógni-
rador, “a casa ficou vistosa. Parecia um cenário de Antoine,“ ta oito ou dez dias, à espera de toilettes estupendas.º
quando se propõe reproduzir, na montagem das peças, salões
Naturalmente o que Alice dos Santos sentia em relação
de luxo”! Aliás o próprio Jacques Pedreira só se interessava
ao Rio era o equivalente ao que Arcanjo sentia em relação a
nas apresentações teatrais por essas exterioridades do cenário
Paris e Jacques Pedreira em relação a Londres, tudo sendo
ou então do estilo visual dos atores, penteados, maquiagem,
uma questão de posição num amplo movimento geral de
apetrechos, roupas, gestos, tiques. Na platéia, ele ignorava o
emulação, em que a busca sôfrega de modelos indicava justa-
enredo e as falas dos personagens para se concentrar nos
mente a ausência de parâmetros seguros. Isso acontecia por
detalhes da aparência: “Entretinha-se, durante o espetáculo, a
toda parte no mundo, em decorrência da já comentada in-
comparar a elegância das atrizes com a das suas companhei-
tensificação da influência européia no contexto da Revolução
ras e a verificar o mau alfaiate dos atores”.2
Científico-Tecnológica. Mas ocorria de um modo muito par-
Mais interessante ainda do que o caso desse deputado ticular nesta parte do mundo, conforme as pesquisas do his-
Arcanjo dos Santos, alçado ao novo panteão dos “favoritos” toriador britânico Eric Hobsbawm: “A América Latina, nesse
do poder republicano recém-instaurado, era o de sua mulher, período sob estudo, tomou o caminho da “ocidentalização' na
Alice dos Santos. Nascida no interior do Rio Grande do Sul, sua forma burguesa e liberal com grande zelo e ocasional-
filha dileta de um grande estancieiro, coronel local, ela devo- mente grande brutalidade, de uma forma mais virtual que
tara toda a sua vida a uma única e absorvente fantasia: o Rio qualquer outra região do mundo, com exceção do Japão”.
de Janeiro. Assim a descreve João do Rio, com um misto de Graças a essa intensificação dos laços neocolonais e ao
excitação e sarcasmo: prodigioso afluxo de riquezas decorrente, alguns subiam na
Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e escala social e outros, literalmente, subiam expulsos para os
sensual comum. Passara até os vinte e três anos na pro- morros da cidade. Esse contraste de destinos foi exemplar-
víncia, com a atenção voltada para a vida elegante da mente figurado no decurso do célebre processo da “Regene-
capital. Fizera assim uma idéia exagerada de tudo: da ração” do Rio de Janeiro, a febre reformadora do “bota-abai-
moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos xo” Esse episódio e seus desdobramentos, como a Revolta
costumes, acreditando em quanta fantasia lia nos jornais da Vacina, revelaram a amplitude daquele zelo e daquela bru-
e em quanta invenção narram os provincianos de volta, talidade a que se refere o historiador inglês. João do Rio, na
para se darem ares. Os seus modos causavam impressão. sua moderna atuação como reporter dos novos tempos, subiu
Ela os tinha, entretanto, porque os considerava extrema- ele também num desses morros, o de Santo Antônio, que iam
mente cariocas. Ao casar com Arcanjo, muito mais velho sendo rapidamente cobertos por uma densa concentração de
e pobre, posto que com posição política, casara com a barracos de madeira, erguidos pela população despejada pelo
novo projeto urbanístico republicano. O reporter toma como
mira de vir instalar-se no Rio, desejo a que se recusara
guias um grupo de “malandros” que subiam o morro em
sempre o velho estancieiro, seu pai; e não só para gozar
plena noite para uma seresta de violões:
os refinamentos da cidade como para dominar e ser a
primeira entre as senhoras faladas pela beleza, pela for- Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação
tuna e pela posição. O cuidado com que se comparava à desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da ci-
fotografia das grandes damas nos jornais ilustrados para dade. O caminho, que serpeava descendo era ora estrei-
se achar melhor sempre! A pertinácia com que estudava to, ora longo, mas cheio de depressões e de buracos. De
542 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 543

fica perplexo ao se dar conta de ter encontrado, “bem no


centro de uma grande cidade, a construção inédita de um
22. A contrapartida
da “Regeneração” foi a proliferação
acampamento de indolência, livre de todas as leis”, Na ver-
das “favelas” logo identificadas dade, constata ele, surgiam dois Rios de Janeiros frutos da
como focos do caos e das ameaças reforma, o da Regeneração e da nova norma urbanística, ra-
que pairavam sobre a cidade cional e técnica e o outro, o labirinto das malocas, do desem-
moderna e a civilização: sujeira, prego compulsório e “livre de todas as leis”. O escritor Lima
epidemias, ócio, criminalidade,
Barreto já havia assinalado essa cisão social, considerando-a
sensualidade, ignorância, rituais
mágicos e regressão cultural
como efeito constitutivo e inerente da nova ordenação repu-
primitiva. (E. B. C. Casebres blicana. Para ele o círculo das favelas que cingia o topo dos
de Favela, 1905) morros ao redor da cidade “era a coroa, o laurel daquela
transformação política..”.*” A população segregada, contudo,
um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de não se limitava àquela dispersa pelas ribanceiras íngremes,
caixão[...] Como se criou ali aquela curiosa vila de misé- uma outra parte se compactava pelos meandros esconsos da
ria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de qui- cidade abaixo, em condições iguais ou piores, nos cortiços,
nhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abriga- hotéis baratos e freges, onde o reporter horrorizado testemu-
das lá por cima [...] Todas são feitas sobre o chão, sem nhou multidões que alugavam esteiras para dormir alinha-
importar as depressões do terreno, com caixões de ma- dos lado a lado, em salas sufocantes, como nas disposições
deira, folhas-de-flandres, taquaras [...] Tinha-se, na treva de corpos dos navios negreiros. Ele fez essa visita acom-
luminosa da noite estrelada, a impressão lida da entrada panhando a escolta de uma batida policial, mas não agúen-
do arraial de Canudos [...] Pergunto a profissão de cada tou as imagens daquela acumulação desumana de corpos e a
um. Quase todos são operários, “mas estão parados”. atmosfera sufocante do ar estagnado e do cheiro nauseante
Como Benedito [um dos seresteiros) fizesse questão, fui da promiscuidade dos corpos suados: “Desci. Doíam-me as
até sua casa, sede também do Clube das Violetas, de que têmporas. Era impossível o cheiro de todo aquele entulho
é presidente. [Ele] [...] empurrou a porta, acendendo humano” &
uma candeia. Eu vi, então isso: um espaço de teto baixo, Note-se o paradoxo, tão caro a João do Rio, a começar
separado por uma cortina de saco. Por trás dessa parede 23. Festas tradicionais como
pelo irônico título do seu volume de reportagens, A alma
a da Penha e outras manifestações
de estopa, uma velha cama, onde dormiam várias damas. encantadora das ruas, entre a ampliação da dimensão indivi- úpicasda cultura negra,
Benedito apresentou vagamente: — “Minha mulher”. dos ex-escravos, seus descendentes
Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas figu- e todos os que com eles mantinham
rinhas na parede, o estandarte do clube, o vexilo das afinidades, foram em grande parte
Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três postas na ilegalidade, passando
homens moços roncando sobre a esteira fria ao lado de a ser sistematicamente perseguidas
pelas autoridades policiais.
dois cães, e, numa rede, tossindo e escarrando [...] um
Às pressões que cercaram seu modo
mulato esquálido, que parecia tísico [...] Benedito mu- de sobrevivência clandestina, suas
dou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me adaptações e versões abrandadas,
quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo intensificaram o sentimento
seco e musculoso.“ de exclusão, marginalização
e desprezo com que se sentiam
Quando volta da seresta, pela madrugada, olhando para atingidos os membros dessas
a cidade iluminada aos pés do morro, ele imagina estar vol- comunidades. (Festa da Penha,
tando de “uma longa viagem a um outro ponto da terra”, mas Rio de Janeiro, 1912) |
544 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 545

estes, por sua vez, imaginavam estar penetrando no âmbito


clandestino latente à margem da boa ordem.“
O símbolo máximo da Regeneração, porém, ficou sendo
o eixo fundamental do projeto de reurbanização, a avenida
Central. Inspirada no planejamento dos bulevares parisien-
ses, conforme o projeto dos amplos corredores comerciais do
barão de Haussmann, prefeito plenipotenciário de Paris sob
o império de Napoleão 1, a Avenida introduzira na capital a
atmosfera cosmopolita ansiada pela nova sociedade republi-
cana. Não só os produtos à venda nas vitrines de cristal eram
24. Os grupos beneficiados com
via de regra franceses, assim também eram as roupas e os
a “Regeneração” não demoraram
em ocupar a passarela urbana modos dos consumidores, tanto quanto os bandos de pardais
recém-inaugurada para o desfile encomendados pelo prefeito Pereira Passos, por serem típicos
ostensivo da nova sociedade. de Paris. O caráter suntuoso da Avenida era acentuado pelas
(Augusto Malta, sem título, fachadas em arquitetura eclética, oferecendo um cenário para
Rio de Janeiro, 1912) o desfile ostensivo da nova sociedade e instigando a anima-
ção do consumo conspícuo. Como observou atento Lima
dual, intrínseca como vimos à própria concepção da moder- Barreto, “de uma hora para outra, a antiga cidade desapare-
nidade, que assinala o modo de vida das camadas abastadas e ceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de
a sua paralela dissolução para os concidadãos menos afortu- teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenografia”5º Um
nados. Essa retração do espaço privado não se dava apenas novo cenário, uma nova peça e uma nova ética. É o lúbrico
pela promiscuidade a que a política urbana compelia os gru- barão Belfort quem nos expõe o estranho nexo pelo qual o
pos carentes, mas sobretudo pelo modo como os expunha à rearranjo urbanístico remodelou também as almas: “[...] o
intromissão abrupta e ameaçadora da autoridade a qualquer Rio de Janeiro é outro depois da Avenida Central [...] Em
hora e em qualquer lugar. Comprimidos entre seus compa- regra geral, [antes] não havia senão ambições relativas. Com
nheiros de infortúnio, seus animais domésticos, os percevejos a abertura das avenidas, os apetites, as ambições, os vícios
e a polícia, a privacidade para essas pessoas se torna em espe- jorraram. Há homens que querem furiosamente enriquecer
cial uma fantasia, o privilégio almejado de compartilhar o |...) Faz-se uma sociedade e constituem-se capitais com vio-
mundo secreto daqueles que quebram os valores e as regras Jência, É uma mistura convulsionada, em que uns vindo do
da ordem dominante, tendo o cuidado de manter a aparência nada trabalham, exploram, roubam para conquistar com o
das conveniências oficiais. dinheiro o primeiro lugar ou para pelas posições conquistar
O caso talvez mais notável de como esses mundos para- o dinheiro”
lelos conviviam e se cruzavam, seria o da célebre casa da Tia A Avenida, como se vê, operava como o principal índice
Ciata, na praça Onze, em cujos fundos se processavam rigo- simbólico da cidade, irradiando -com suas fachadas de cristal
rosos rituais africanos, sumariamente proibidos nessa época, e mármore, suas vitrines cintilantes, os modernos globos elé-
enquanto nos espaços sociais da frente da casa essas danças tricos da iluminação pública, os faróis dos carros e o vestuá-
recebiam uma versão mais diluída, para o grande consumo, rio suntuoso dos transeuntes, mudanças profundas na estru-
ORIGINAL

que viria a ser comercializada como o samba carioca. Assim, tura da sociedade e cultura. Grande parte do impacto que ela
por meio do maxixe e do samba, de apresentações e mais teve sobre a imaginação dos contemporâneos se devia, como
sc

tarde da indústria fonográfica, os cidadãos pobres tinham sugeria a observação de Lima Barreto, à rapidez inédita das
um acesso parcial à privacidade do lar dos mais abastados e técnicas de construção, permitindo que o aspecto da área
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 547
546 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

central fosse transfigurado num tempo recorde, como num bonde elétrico [...] Um amigo de casa informava: — O
passe de mágica. Essa mágica era a eletricidade, pois fora bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas,
graças à iluminação noturna de arcos voltaicos e ao comple- aí é uma disparada dos diabos. Ninguém agiienta. É ca-
xo sistema de esteiras e polias movidas pela nova energia que paz de saltar dos trilhos! E matar todo mundo...
o prefeito pôde coordenar a rápida retirada do entulho das A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se
demolições bem como a recepção dos novos materiais.” Ha- locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam
via, contudo, outros emblemas igualmente relevantes dessas ir até a temeridade de entrar no bonde elétrico! [...]
transformações. Os bondes, por exemplo, como já observa- Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá
mos. Eles são um dos objetos favoritos do olhar escrutinador vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os
de Machado de Assis. Na crônica de 2 de outubro de 1892, às trilhos no centro da via pública [...) Gritavam:
vésperas da abertura da primeira linha eletrificada no Rio, ele — Cuidado! Vem a nove pontos! [...]
faz esta reveladora comparação: “Tannhiiuser e bondes elétri- Uma mulher exclamou:
cos. Teremos finalmente na terra essas grandes novidades. O — Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça! [...]
empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de dar a famosa E ficou no ar, ante o povo boquiaberto que rumava
ópera de Wagner, enquanto a Companhia do Botafogo to- para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos.
mou a peito transportar-nos mais depressa. Cairão de uma
vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias”
Significativamente, Machado anuncia o evento, mas não
se inclina a ir pessoalmente testemunhar a cerimônia pública
de inauguração do novo serviço. (Não fica claro tampouco se
foi assistir ao Wagner.) Um outro escritor mais jovem, po-
rém, anotou em suas memórias a atmosfera de incerteza com
que as pessoas receberam os novos bondes, inseguras ainda
quanto ao impacto que a eletricidade teria em suas vidas, so-
bretudo devido a sussurros e boatos vindos do Rio, Oswald de
Andrade registrou assim suas lembranças de criança dessas
transformações decisivas na São Paulo do início do século:
Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia
como era. Caso é que funcionava. Para isso as ruas da pe-
quena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes [..] 25. A eletricidade representada
Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos como uma figura misteriosa,
[...] Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as ca- que a autoridade pública cativa
sas, os grupos. Como seriam os novos bondes que anda- e controla, e da qual ela deriva
o seu grande poder simbólico.
vam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notí- Apresentando-se como a fonte
cia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha que monopoliza o novo potencial
tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de miraculoso, a que todos desejam
eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali ter acesso, os dirigentes políticos
grudado e seria esmagado fatalmente pelo bonde. Preci- se revestem da imagem de agentes
legítimos e incontestáveis
sava pular [...]
da modernização. (Calixto
Anunciaram que numa manhã apareceria o primeiro Cordeiro, sem título, 1907)
548 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 549

O texto revela bem as reservas e hesitações com que as Anteontem [...] vindo pela praia da Lapa, em um bonde
pessoas receberam desconfiadas a eletricidade e suas novas comum, encontrei um dos elétricos que descia. Era o
criaturas. Mas as resistências foram obviamente passageiras. primeiro que estes meus olhos viam andar.
Logo ficou claro para todos o potencial extraordinário que os Para não mentir, direi que o que me impressionou,
novos recursos comportavam e a profundidade com que po- antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos
diam alterar as feições e rotinas cotidianas de tudo, de todos do homem passavam por cima da gente que ia no meu
e de cada um. A demanda cresceu muito mais rápido que a bonde, com um grande ar de superioridade. Posto não
oferta, e em breve as seções de cartas dos leitores nos jornais se fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam
acumulavam de queixas contra a demora da companhia em aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inven-
instalar redes de distribuição de energia elétrica em tal ou qual tara, não só o bonde elétrico, mas a eletricidade.
bairro e novas linhas e mais bondes servindo essa ou aquela
À parte esse elã, que dava à corrente elétrica o fulgor do
localidade. Receber ou não energia elétrica e ter ou não aces-
prestígio e a aura do poder a quem se associava com ela, a
so fácil.à rede de bondes passou a ser não apenas o principal
característica que mais a assinalava em sua utilização no
referencial da especulação imobiliária mas também um dos
transporte público era a velocidade. Na crônica seguinte à
mais distintivos elementos de status, para a população que não
citada, Machado voltava ao preeminente assunto dos bondes,
dispunha de veículos próprios. De vilã sinistra, a eletricidade
comentando o súbito aumento no número de atropelamen-
se tornou logo a vedete cobiçada do espetáculo urbano. O pró-
tos, sobretudo de pessoas mais idosas, não adaptadas ainda
prio e relutante Machado, que evitara deliberadamente se en-
ao novo ritmo de deslocamento dos veículos elétricos. “Um
volver no alvoroço ao redor da inauguração do serviço de bon-
precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não
des elétricos, poucos dias após o evento não escapou de cruzar
passava pela frente de um bonde, sem calcular a hipótese de
com a nova criatura, percebendo logo a enorme alteração
comportamental que ela introduzira, brindando-nos com ou-
cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar do
outro lado [...] Eu [...] levo o cálculo adiante: calculo ainda o
tra de suas impagáveis histórias do dia-a-dia:
tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser
longe, mas muito mais longe é a eternidade”s” Esse espírito
de quem sai à rua entre cauteloso e alarmado, imaginando

27. O porte e a aceleração elétrica


do bonde o tornam uma fonte
ORIGINAL

26. O advento do bonde elétrico permanente de acidentes, pondo


é o centro da euforia urbana em polvorosa a população ainda
na Belle Époque e a peça despreparada para incorporar
sc

estratégica do processo acelerado os novos recursos tecnológicos


de metropolização das capitais. na sua rotina cotidiana. (Calixto
(Viagem inaugural do bonde, Cordeiro, Um desastre do perigo
São Paulo, 1900) amatelo, 1907)
* HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RIIMOS E RITOS DO RIO * 55]
550

referências ao “passo inglês”, são reveladores por si só. Eles


And

autenticam não só a fonte legitimadora externa do novo


comportamento, como impõem nele a chancela das mudan-
ças inevitáveis e irreversíveis, porque são as marcas de um
novo tempo, cintilações compondo o facho retilíneo do pro-
gresso.
Outro modo elegante de referir-se ao hábito inovador de
caminhar pelas ruas sozinho e às pressas era chamá-lo de
“andar à americana” Diferentemente da curiosidade escru-
tinadora do flâneur ou do envolvimento afetivo com a paisa-
gem urbana, típico da dérive, o que caracteriza o “passo in-
glês” ou o “andar à americana” é sobretudo a atitude de total
desprendimento por tudo e por todos que estão ao redor. 29, O passo inglês ou andar
Esse ato de introversão implica ao mesmo tempo uma possi- americano implicam tanto uma
concentração máxima do cidadão
bilidade de concentração em outros assuntos alheios àquele
em razão de suas circunstâncias
lugar e àquelas pessoas, ganhando tempo pessoal, que é por- individuais, alheando-se do mundo
tanto entendido como mais importante que a realidade adja- ao seu redor, quanto um ritmo
cente imediata, e numa sincronização como ritmo acelerado e determinação em sintonia com
dos novos equipamentos tecnológicos. Paradoxalmente por- a aceleração dos novos recursos
tanto, ampliação do tempo e espaço privados para o interior tecnológicos. (Calixto Cordeiro,
Passageiros de bonds, 1907) E
do âmbito público e inserção da experiência íntima no plano
regulado das energias aceleradas e dos mecanismos massifi-
28. Cria-se na cidade moderna que estará sempre na iminência de cortar o caminho para o cantes. No primeiro caso há um desinvestimento do público
um campo de batalha diário entre necrotério, tornou-se uma espécie de segunda natureza do em favor do privado; no segundo, é o privado que passa a se
os pedestres e os novos veículos transeunte moderno, indefeso nas suas negociações com um modular por uma norma cada vez mais coletiva. Essa antítese
automotores. Qualquer percurso
trânsito urbano cada vez mais complicado, maciço e acelera- caracteriza a condição por excelência do homem moderno.
exige atenção máxima,
concentração, reflexos rápidos,
do. Não por acaso, um antigo lema militar, muito difundido Na interseção entre os dois termos dessa dualidade, ti-
golpe de vista, gestos atléticos pela rápida expansão do escotismo após a Grande Guerra, se rando todo o proveito da hesitação entre essas duas fidelida-
e instinto de sobrevivência. tornaria um slogan batido e rebatido à exaustão na educação des incompatíveis, vai se inserir rapidamente o espaço da
A máxima dominante é o “Sempre das crianças daqui por diante: “Sempre alerta”. publicidade, preenchendo a absorção “à inglesa” com o senso
ES

alerta”. (Augusto Malta, sem Se por um lado, porém, a velocidade das máquinas urba- de oportunidade “à americana”, Não por acaso, o suporte
título, Rio de Janeiro, 1920-30)
nas modernas exigia uma redobrada precaução, pelo outro privilegiado das primeiras campanhas publicitárias com car-
ela se incorporava ao próprio subconsciente das pessoas e, tazes eram as paredes internas e externas dos bondes. En-
inevitavelmente, como toda manifestação de adesão aos con- quanto as antigas caleças, landôs, “aranhas” ou charretes
dicionamentos modernos, virava um sinal de distinção da- (como os futuros táxis) eram em geral alugadas por um gru-
queles que mais ostensivamente os exibiam. Nisso, como não po de pessoas que se conheciam, os bondes (como os futuros
poderia deixar de ser, o nosso estouvado Jacques Pedreira era ônibus e metrôs) introduziram a convivência de multidões
também um mestre: “Safa invariavelmente depois do almoço, de estranhos, anônimos e desconhecidos uns dos outros,
só, com uma pasta cor de granada com fecho douro, saltava além de competidores irascíveis pelo espaço e conforto limi-
do tramway apressado como um businessman, atravessava à tados. A luta na refrega dos bondes era por um respeito míni-
Avenida a passo inglés” Os termos da descrição, mais as mo à privacidade de cada um, mantida como última defesa
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 553
552 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

naquele veículo público, e às vezes demarcada pelos próprios


limites do corpo de cada um. Isolar-se na privacidade signifi-
cava em geral absorver-se no silêncio das próprias reflexões
ou, na falta delas, do mero tédio. Era dessa disponibilidade da
imaginação que a publicidade carecia, captando-a com tru- 30. As novas técnicas publicitárias
se espalham por todos os espaços
ques sensoriais, cativando-a pelas promessas e seduzindo-a
da cidade, tentando penetrar
pelo desejo. Zélia Gattai, evocando a candura da sua infância, nos olhos e na imaginação
ainda antes da alfabetização, revela com extrema clareza o dos cidadãos, onde quer que eles
mecanismo intrincado que enredava o bonde, as mercado- estejam disponíveis. O interior
rias, os anúncios e as fantasias íntimas das pessoas. dos bondes se constitui num
microcosmo da invasão
Wanda e Vera [irmãs de Zélia] liam em voz alta os anún- publicitária, que em escala
cios de remédios fixados no bonde. Até eu, que não sabia ampliada se estende por toda
ler (não lia mas podia apontar com o dedo, sem errar, o a cidade, penetrando nas casas
por meio da imprensa e, em breve,
remédio anunciado), entrava no páreo, repetindo rapi-
por meio do rádio e da TV.
damente os textos decorados de tanto ouvir. Muita gente (Bonde aberto, São Paulo, 1938)
se admirava de ver criança tão pequena ler daquele jeito.
“Veja ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor porém, é: por que tanta ênfase para os remédios? Uma razão
tem ao seu lado,/ E no entanto acredite/ quase morreu de bastante evidente para isso é que o intenso surto de urbaniza-
bronquite/ salvou-o o Rum Creosotado” “Cantando espa- ção, trazendo para as cidades gentes sobretudo de origem ru-
lharei por toda parte: Tosse? Bromil”; quem tomava Bro- ral, rompeu o contexto da família ampla e a cadeia de trans-
mil era Bruno, meu primo, sempre com bronquite. “Pí- missão do conhecimento das ervas, tratamentos e processos
lulas de vida do dr. Ross”, o remédio de tia Clara, mulher tradicionais de cura. O lapso foi rapidamente preenchido pe-
de tio Remo, que sofria de prisão de ventre crônica, “Tô- los novos laboratórios químicos e, sobretudo, pela rapidez dos
nico Iracema, conserva os cabelos negros naturalmente”, oportunistas em se dar conta da nova situação. Ademais, as
esse era de tio Augusto, marido de tia Dina. “Fermento próprias condições de aceleração, concorrência, isolamento,
Lático Fontoura, contra azia e má digestão”, esse o de ma- individualismo, ansiedade e a crescente carência de contatos
mãe; inventei muitas vezes dor de estômago para ganhar afetivos tinham um indubitável reflexo na somatização de in-
algumas das deliciosas pastilhinhas. “Abaixo drogas cace- disposições, instilando o proverbial “mal-estar da vida moder-
tes/ no mundo dos sabonetes/ raiou deslumbrante sol/ apa- na”, Os remédios não ajudam nesse caso, mas são um deri-.
receu o bendito/ sabonete de Eucalipto/ denominado Euca- vativo capaz de, partindo de um sintoma tópico, exorcismar
lol” Esse mamãe não comprava; ela gostava de um — uma opressão complexa por meio de gotas amargas ou pílulas
não lembro a marca — perfumado a heliotrópio [...] doces. Não era isso que insinuava o provecto Machado ao in-
Os anúncios de remédios, nos bondes, nos distrafam sistir: “[...] concedo o vigário, mas não me tirem o boticário”?!
tanto — a mim pelo menos, com as associações de idéias Nesse sentido, estranhamente, os remédios também são um
— que me faziam esquecer a canseira de viajar a pé, índice relevante da modernidade: um seguro contra as fraque-
encurtava o tempo do trajeto. Quando menos esperava, zas e vulnerabilidades do corpo, um estímulo para a iniciativa
já estávamos chegando.” e uma caução para o sucesso. Machado resumiu assim essa
Se o desenvolvimento das técnicas publicitárias era com- equação: “O mundo caminha para a saúde e para a riqueza
preensível nesse período marcado por um grande salto na universais [...] assim se explicam os debates sobre medicina e
produção e consumo de mercadorias, a pergunta que fica, economia e a fé crescente nos xaropes e seus derivados”?
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 555
554 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

Mas nem só de remédios viviam as pessoas neste novo as providenciais “Estrelas Americanas, para serem coladas ao
século. Se vimos que há um mal por excelência de que todos rosto onde se quer eliminar manchas, rugas ou verrugas”; o
sofrem, é sobretudo da falta de amor, seja no sentido do afeto fantástico “Emagrecedor de Narizes”; o indispensável “De-
companheiro e fraternal, seja no sentido direto do amor en- senvolvedor de Seios”; o “Sabonete Para Pessoas Peludas”,
tre seres que se desejam intensamente. Uma vez mais é preci- implacável depilador; o infalível “Aparelho Ades” para a cor-
so pensar como a urbanização acelerada pôs em contato gen- reção das orelhas, e por aí afora.
tes estranhas entre si, vindas de diferentes partes do país ou Entre os vários portentos mirabolantes recolhidos pelo
de diferentes regiões do mundo. A passagem do século, por dr. Tosti destaca-se muito particularmente a assombrosa
conta dos reajustamentos populacionais forçados pela Revo- “palmilha elétrica” Ela não só resolvia os problemas de reu-
lução Científico-Tecnológica, assinalou “o maior movimento matismo, artrite, gota, ciática, nevralgias e má circulação,
migratório de toda a história”. Nessa nova situação de mul- como também aliviava as câimbras, secava as bolhas, elimi-
tidões de estranhos vivendo amalgamados entre si, num pro- nava os olhos-de-peixe e neutralizava os calos. Ou seja, ela era
cesso aleatório, dirigido pelas correntes cegas da economia o acessório indispensável para o bom desempenho do “passo
mundial, encontrar o seu par e ser feliz com ele se parece à inglesa” ou do “andar americano”, Pensemos na urbaniza-
cada vez mais com uma gigantesca e inescrutável loteria. Não ção acelerada e na remodelação da cidade. Elas criaram espa-
surpreende portanto que haja uma escalada alarmante das ços de desfile e exibição social, mais ou menos ostensivos,
práticas do jogo, com destaque para essa grande contribuição
carioca ao repertório lúdico da humanidade que é o jogo do A CURA DO GANCRO E DE OUTRAS APPECÇÕES MALIGNAS PELOS RAIOS X
Ganincte do Dr. Alvaro
Alrio — Ruy qu Gonçalves Dias mn. 48 — Rio die Jasalnil

bicho. Como pontifica João do Rio, “ninguém mais acredita media seaslloivo ua ento dicosess são do tal itopurmaaq)

senão na felicidade e a felicidade é pelo menos um pouco de


quem nela acredita”.
Se a loteria é imprevisível e a sorte difícil, o único jeito é
trapacear. Nos jornais e revistas do início do século abundam
anúncios oferecendo recursos milagrosos, por meio dos quais
se poderiam concertar ou aprimorar os atributos físicos que
Deus distribuiu tão parcimoniosa e desigualmente entre suas
criaturas. Isso seria possível graças sobretudo à intervenção
dessa nova entidade todo-poderosa, transcendente e sublime,
a tecnologia moderna. O dr. Antonio Tosti recolheu paciente- 31. Nada fascinou mais o público
mente uma série desses prodígios garantidos, fonte de fortu- na Belle Époque do que
a descoberta dos misteriosos
nas prodigiosas e asseguradas para seus inventores, e os pu-
raios X, a respeito dos quais
blicou num livro com o áspero título de Contribuição ao apenas se sabia que, por meio
conhecimento da estupidez humana. Lá estão, entre vários ou- de algum prodigioso poder,
tros, a “Cinta Elétrica, o verdadeiro talismã contra todas as permitiam ao olhar atravessar
doenças, pará homens e senhoras de qualquer condição so- quaisquer superfícies e penetrar
cia”; a “Cruz Elétrica de Volta”, para todos os males reumáti- no interior da matéria.
Rapidamente seus potenciais foram
cos, nevrálgicos, cutâneos e subcutâneos, hemorróidas, tosse,
apresentados como a grande
surdez, anemia, paralisia, hipocondria, diarréia, dor de den- panacéia da ciência moderna.
tes, pés frios e asma; os inefáveis “Pós de Águas, para males (A cura do cancro e de outras
do sangue e doenças hereditárias, ganhadores da medalha de afecções malignas pelos raios X,
prata na Exposição de Milão” (o que teria ganho a de ouro?);
A care da foderretan polmonar m uutras. alucçõos pala Lt usts,
1903)
556 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 557

conforme a área e conforme o público, implicados no consu-


mo, o qual pela publicidade preenchia o repertório das fanta-
sias associadas ao sucesso nos negócios e no amor. O grande
CCDO
segredo, aliás de conhecimento geral, para angariar atenção e
ampliar seu repertório de opções era parecer “moderno”. Isso O
FOX
mais afamado calçudo de luxo

torna os sapatos decisivos, pela simples razão de que um pa- Em qualquer Sapa-
letó e gravata qualquer homem pode vestir, como qualquer taria peça as nossas
incomparaveis fôrmas
mulher usa um vestido que caia bem. Mas é no andar que o 20, 210 80
passado se revela.
Se, como era o caso, muitos vinham de uma área rural,
habituados a andar descalços, ou de ambientes rústicos que
obrigassem ao uso da bota, ou ainda de atividades subalter-
Fabrica de Calçado Fox
nas exercidas com tamancos ou chinelas, adaptar-se aos sapa- RIO DE JANEIRO

tos era um martírio, imediatamente revelado pelo ridículo do


andar claudicante. No caso das moças essa complicação era
acrescida pela exigência elegante dos saltos altos. Esse seria
mesmo um efeito cômico largamente utilizado no circo, no
teatro de revista e no cinema popular brasileiros. O andar
não nega a origem se os sapatos renegam os pés que os cal-
çam. Daí porque os calçados finos adquirem um valor sim-
bólico muito especial, ficando o toque de classe final do nos-
so entojado Jacques Pedreira com os seus impecáveis “sapatos
de verniz”, sempre brilhantes, muito estreitos e denotando a
mais completa autoconfiança. Essa é também a origem do que a partir do último quarto do século x1x “os relógios an- 32. No contexto da modernidade,
jeito de “pisar macio”, destacando a plástica do sapato branco dam muito mais depressa”, o acesso ao calçado constitui por
E com a pressa dos relógios, a pressa dos homens — daí excelência o símbolo de entrada
ou de duas cores, elemento tão distintivo do malandro carioca.
para a sociedade civilizada e o
Se dos bondes à velocidade, aos elixires e às palmilhas as palmilhas elétricas. Aliás, quando João do Rio quis encon-
circuito dos bens de consumo. (Ande
parece haver um salto muito grande, ressalve-se que a passa- trar uma imagem visual que representasse com clareza o “tre- calçado e pise sossegado, 1940)
gem se dá sob um mesmo ritmo, deveras intenso. Esse foi um medal”, a que lhe ocorreu, genialmente, foi a da “trepidação
insight que ocorreu ao estúrdio Jacques Pedreira, quando cinematográfica da sociedade” Ele se referia às primeiras 33. À associação do sapato com
sentiu o gozo secreto do sucesso batendo-lhe à porta, em obras do cinema, cuja técnica de filmagem causava o curioso o acelerador do carro pode parecer,
meio à sua habitual caminhada apressada pelo burburinho efeito de acelerar comicamente o movimento das imagens, em princípio, contraditória. E, no
das ruas centrais do Rio de Janeiro. “Oh! Ele agora compreen- acrescentando-lhes ademais uma espécie de tremor febril. entanto, a mensagem é clara. Ela
distingue o calçado dos que dele
dia”, narra João do Rio, “aquela febre estranha que agitava a Era um efeito indesejado, que seria mais tarde eliminado
precisam para caminhar, e que por
maioria dos seus contemporâneos: as faces machucadas, as com o aperfeiçoamento e a automação das câmaras. Mas, isso deve ser sólido e resistente,
neurastenias, a pressa, o ar de corrida por um tremedal em naquele momento, não poderia haver uma metáfora mais daquele outro, destinado às pessoas
que quase toda a sua sociedade e ele também, pela força das adequada para o pandemônio da modernidade que se abateu elegantes que só se deslocam em
uma palavra
Ciça nO

circunstâncias, viviam” Tremedal soa como sobre o mundo. Machado, uma vez mais, anteviu com sur- veículos automotores e só
e e

precisa e uma bela definição para essa febre estranha. Macha- preendente argúcia o que estava por vir: “Quem põe o nariz caminham sobre tapetes e carpetes,
o qual, portanto, deverá ser leve,
do aliás, homem de outra geração, já havia detectado com fora da porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência fino e suave, como o escarpim da
ps

alarme esse fenômeno geral de aceleração, quando observara


E,

Havas é melancólica. Todos os dias enche os jornais de uma propaganda. (Calçados Fox, 1930)
Ê
f
a
A
a

g
558 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 559

torrente de notícias que, se não matam, afligem profunda- veis. O automóvel é um emblema de poder e força, indispen-
mente [...) Por isso digo que o mundo não vai bem, e descon- sável para atrair as mulheres. O carro permite multiplicar as
fio que há algum plano divino, oculto aos olhos humanos. oportunidades de contato, convívio e desfrute da companhia
Talvez a terra esteja grávida. Que animal se move no útero feminina. O carro é ele mesmo uma mulher, digno de conhe-
desta imensa bolinha de barro, em que nos despedaçamos cimento íntimo, zelo, atavios, carinho e amor. Daí a volúpia
uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra social, de ter e dirigir vários carros, de cobiçar o alheio e de trocá-
nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou los tão frequentemente quanto possível. A publicidade desde
de raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárba- cedo se aperceberia desse potencial erótico associado aos au-
ros, uma nova moral, a queda dos suspensórios, O apareci- tomóveis e passaria a explorá-lo em extremo. Os Automóvel
mento dos autos”. Clubs surgiam por toda parte e com eles essa desconcertante
Ele acertou em quase tudo, mas especialmente em prever revelação, a de que os homens preferiam ficar em seus auto-
que a Terra estava grávida de um bando de bárbaros belico- móveis ou então reunir-se para falar de automóveis do que
sos, com uma nova moral, embalados em seus automóveis estar em casa ou tratar de assuntos familiares. Com o tempo
ameaçadores. Uma vez mais, uma tecnologia desenvolvida e a escassez cada vez maior de espaço nas cidades, eles acaba-
nos prestigiosos países do Norte chegava aqui investida de riam dando um jeito de reformar suas casas, diminuindo o
mais que seu potencial utilitário, sobretudo de uma densa espaço das famílias, para colocar os carros dentro do lar. Se-
aura mítica. Como se tratava ademais de um equipamento ria como morar com a mulher e ter a amante sempre ao lado.
capaz de deslocar uma estrutura pesada de ferro maciço a Outra das virtudes do automóvel era facilitar essa co-
uma velocidade inédita em pleno espaço urbano, ela instan- queluche dos novos tempos, o turismo, O grande impulso
taneamente se tornou num símbolo de poder e instrumento para o desenvolvimento do turismo interno, curiosamente,
de terror. Ademais, os carros começaram a afluir para cá an- foi dado pela Primeira Guerra Mundial. Com a Europa vir-
tes que existissem uma estrutura viária, sinalização ou códi- tualmente bloqueada pela guerra de submarinos, os que
gos de trânsito, gerando uma situação calamitosa, agravada antes tenderiam a gastar suas sobras com a clássica viagem
pelo fato de que atropelamentos, mesmo seguidos da morte à Meca do Velho Mundo buscavam outros atrativos locais.
das vítimas, eram apenas passíveis de uma multa pecuniária Essa circunstância veio se compor com uma tendência já
de valor ínfimo para os infratores. Era o convite para o terro- crescente a partir deste século, que era a grande vocação pa-
rismo automotor que veio para ficar, acrescentando tonalida- ra o corpo e a saúde despertada no coração dos “novos ho-
des mecânicas aos sistemas de privilégios e opressão típicos mens” pelo seu impulso instintivo para a concorrência, a
da sociedade brasileira.” agressividade e o sucesso. A saúde, nesse sentido, imprimia
Nem seria preciso dizer que os automóveis eram o sport uma conotação de auto-estima, autoconfiança e combativi-
predileto do nosso endiabrado Jacques Pedreira. Sim, porque dade, inscrita na coloração irradiante da pele, nos músculos
era como uma modalidade esportiva que os carros eram en- tonificados, na estrutura sólida, nas proporções adequadas,
carados em suas primeiras aparições na cena urbana, impor- nas formas esbeltas e na insinuação de uma sexualidade des-
tados pelos novos protagonistas sociais, o que contribuiu de perta e fértil. A saúde enfim era a chave de um corpo moder-
forma decisiva para sua instantânea identificação como o clí- no. Já vimos o papel que os tônicos, modeladores e aparatos
max da modernidade. Ademais, havia outra associação que elétricos cumpriam para esse fim. Papel semelhante passa-
assinalaria em definitivo o destino mitológico do automóvel, vam a ter também os banhos de mar, os passeios ao ar livre,
tornando-o a base da vaidade masculina, conforme inferên- os piqueniques, o clima das montanhas e as estâncias hidro-
cia de João do Rio sobre a imaginação de seu personagem: “A minerais.
fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports: Até fins do século passado os rapazes e moças se co-
o automóvel e a mulher”. Essa associação opera em três ní- briam da cabeça aos pés, evitando sair nos horários mais en-
560 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 56]

34. A associação entre o carro e a 37. Aldinho, que viria a ser


mulher constituiu o mais perfeito o futuro artista plástico Bonadei,
e duradouro casamento da de orientação modernista, quando
publicidade. Nunca houve ameaça criança costumava desfilar nesse
de divórcio e eles se tornam mais fantástico triciclo, inventado por
íntimos a cada nova linha de seu pai, o engenheiro Cláudio
lançamento. (A vida parece mais Bonadei, que também montou
linda — Visite a exposição o primeiro carro brasileiro. (Aldo
Hudson, 1941) Cláudio Bonadei, Engenheiro
Cláudio, 1911)

35. Na guerra cotidiana que solarados, a fim de preservar um tom pálido, macilento, fu-
se estabelece nas cidades entre néreo, sinal de distinção daqueles que não precisavam traba-
os pedestres e os veículos lhar sob o sol. Sombrinhas, chapéus, luvas eram indispensá-
automotores, nenhuma arma
veis, além de anquinhas, ombreiras, estofos para os seios e as
é mais poderosa, disseminando
maior pânico e maior número nádegas e espartilhos para a cintura. Algumas moças chega-
de vítimas, que o automóvel. (Raul vam a tomar vinagre pela manhã, com o intuito de produzir
Pederneiras, sem título, 1907) um efeito esverdeado e musgoso à cútis. Ágora a cena era
outra. Havia uma intenção deliberada de denotar o trabalho.
Não o trabalho braçal sob o sol inclemente dos trópicos, mas
a prática metódica, custosa e de longa duração aplicada no
desenvolvimento da exuberância saudável.
Para isso eram necessários não apenas os banhos de mar,
36. Num país como o Brasil, aonde banhos de sol, caminhadas, exercícios físicos, check-ups pe-
os automóveis chegaram como riódicos, tônicos, laxantes, elixires e emolientes, mas também
produtos importados de alto luxo, todo um repertório de pós, loções, cremes, pomadas, emplas-
eles logo se tornaram instrumentos |
tros, sabões, sabonetes, xampus, tinturas, descolorantes, en- ,
de ostentação, prestígio e poder.
Inicialmente são adquiridos para
fim, “dessas coisas que servem ao apuro da higiene cor-
fins desportivos, ou seja, correr pórea””! Como todo esse arsenal tendia a se concentrar no
pelas ruas da cidade, as únicas banheiro das casas, ele acaba assumindo novas funções e no-
pavimentadas. Em seguida, vas feições. É nesse momento que se inicia o desaparecimen-
atormentar os pedestres com to “da latrina de barril, do penico, do “tigre”, que serão então
a buzina ou aterrorizá-los com
substituídos “pelo iwater-closet, completado nas residências
as rodas passa a ser, por si só, um E
mais elegantes pelo bidet” francês.” Os banheiros reforma-
esporte de elite. (Calixto Cordeiro, |
sem título, 1907) dos acabam se tornando o foco dessa incansável energia
ORIGINAL
Sc
562 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 “A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 563

NO TURMILRAD O 7
DA VIDA MODERNA PO despendida todo dia para produzir a exuberância física. Por
AVICTORIA CABE AUS isso e pela sua associação com a higiene e a saúde, eles aca- UMA VIAGEM A

A GALVES'TON
CERESROS FORTES!
bam se tornando a peça mais “moderna” das casas, mesmo as
que tenham um estilo mais sóbrio ou clássico, como ocorria De qm Corno ml palnêeio ve Pepe. jam Podem cqeseper “com deh

na célebre garçonniêre do barão Belfort, já comentada. Ali


prevalecem os metais brilhando com o design da moda, as
louças e azulejos cujas superfícies lisas e polidas irradiam a
sensação de limpeza, uma ênfase no utilitário, no funcional,
no ágil e uma profusão de espelhos e reflexos que permitem a
visão do ocupante por todos os ângulos. Instância máxima RICA ESCOLHA
miniaãa
DE cocmam
da privacidade, os banheiros (ou “privadas”, como também ESTOJOS PARA
são conhecidos) ao mesmo tempo revelam o quanto a esfera
privada mantém uma estreita interdependência com as fan-
tasias coletivas.
João do Rio sondou esse curioso nexo entre o corpo, a RIQ DE JANEIRO,

saúde e os valores culturais no seu romance À correspondên-


38. Os recursos de que a natureza
cia de uma estação de cura, de 1917. Nele um dos persona-
dotou os homens não são suficientes
para garantir seu adequado gens, Teodomiro Pacheco, chega à estação hidromineral tra- 39. Juventude, saúde e beleza,
desempenho na vida moderna. Os zendo duas grandes malas, uma contendo roupas e objetos se transformam no núcleo
: - Dinheito não dá,
pessoais e a outra totalmente repleta, apenas e tão-somente,
dê a ninguém, riasé. Bei melhor
novos ritmos, as múltiplas pressões ser feliz au infeliz com ella -dó que sem elle... predominante dos valores
e as demandas intensas do cotidiano, de produtos de higiene e beleza. Numa troca de correspon-
00 CONTOS POR 188000 APENAS:. modernos. Os modos
EM SsoRTEOS + EM BDG CORRENTE
que pulsa segundo as novas de cultivar esses valores eram
dência com uma amiga que não havia percebido bem o espí- a nutrição adequada, as consultas
tecnologias, exigem o acréscimo
de aditivos químicos. Cada pessoa rito da coisa, ele provê os necessários esclarecimentos: médicas e dentárias regulares,
é induzida a desenvolver uma Ou seja, o que as pessoas buscavam na estação de cura, a higiene pessoal e doméstica
A minha neurastenia! Perguntas se melhorei da minha
engenharia pessoal dos seus próprios ironicamente, era uma oportunidade para dar vazão às suas
diária, as roupas leves seguindo
recursos físicos, mentais e energéticos,
neurastenia? Decididamente não conheces uma estação de as formas do corpo, os banhos,
com a ajuda naturalmente da cura no Brasil. É o caos de uma grande cidade abrindo em mais desabridas propensões “patológicas”. Era a política da massagens e exercícios metódicos,
publicidade e das novas indústrias vício num local ingênuo. Cá encontrei toda a gente das saúde, em vias de se tornar o esteio do turismo e, mais tarde, a exposição periódica ao sol,
da saúde. (T. Tarquino, Neurobiol, festas e toda gente menos boa do Rio e de São Paulo. Duas quando em meados dos anos 30 6 Estado varguista instituísse as caminhadas ao ar livre e,
sobretudo, a prática constante
o tônico do cérebro, 1934) horas depois de chegar comecei a ouvir o rumor das fi- o direito geral ao repouso anual, a fonte dessa fantasia magna
dos esportes. (Uma viagem
chas, compassado pelos sons roucos dos ancinhos nos pa- de todos os que tivessem acesso aos bens do mercado, à lou- a Galveston, 1929)
nos verdes [...] Mais do que em Nice, mais do que em cura das férias. Era uma espécie de vale-tudo, as regras se 40. Os objetos de toucador, artigos
Monte Carlo, onde só se ouve as fichas quando se quer. afrouxavam e a idéia era partir pará algum lugar distante, de higiene pessoal, cosméticos
Para exprimir esse ruído seria preciso inventar, como onde se pudesse escapar do controle dos familiares, dos vizi- e produtos de beleza se tornam
não apenas imprescindíveis
Aristófanes, uma série de onomatopéias sem sentido. É nhos, das hierarquias profissionais, dos papéis sociais e das
como parte integrante da
uma eterna e irônica música, uma cavatina indiferente e reservas de conduta. E também de convergir para onde se construção da individualidade.
cínica. Dá-me a impressão de Satanás remexendo em pas- encontravam outras pessoas em idêntico estado de excitação Assim, em caso de viagem,
tilhas os ossos dos pecadores e atraindo, como um alqui- emocional é pouca disposição para ceder a controles exter- é indispensável que eles se
nos ou internos. Eis uma breve imagem da rótina noturna do desloquem junto com a pessoa
mista, todos os doentes, todos os ambiciosos, todos os
que recriam a cada dia.
levianos que acreditam na transmutação dessas pastilhas Grande Hotel, onde se reúnem os personagens de João do (Rica escolha de estojos para
em moedas de ouro. Pura magia. Puro delírio!” Rio: “Jantar. Não há quem ultrapasse o quarto de hora. Os viagem, 1921)
564 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 565

A estação de cura a que João do Rio se refere era Poços


de Caldas, o foco mais eufórico da agitação mundana até pe-
lo menos os anos 30. Situada na divisa entre os estados do
r. Ses o =
Jd. 631,49
ME 68.51
IL 50.32
E s6.34 Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, ela atraía toda a
gama dos beneficiados com o esquema dominante do “café-
com-leite” e a vasta máquina política e burocrática do Rio de
Janeiro. Pela ampla cobertura dos jornais e revistas munda-
nas, entretanto, ela se tornou um símbolo nacional. Acabou
consolidando esse fenômeno cultural peculiar, o “Rio-São
Paulo”. Machado de Assis, com sua notável capacidade de
previsão, já o havia antecipado em fins do século passado.
Comentando a atuação de dois músicos extraordinários a
4 Aros, HA
cujo concerto assistira na véspera, faz a seguinte observação:
ft) “Li que vão a São Paulo em breve; é de rigor. São Paulo é
R Al estação obrigatória, é metade do Rio de Janeiro, se estas duas
cidades não formam já, como Buda-Peste, artisticamente fa-
lando, uma só capital”?
Se para Machado a percepção desse novo fenômeno ti-
nha ainda um quê de cogitação, para João do Rio era já um
fato consumado e irreversível. Ele o distingue nitidamente
manifestado no espírito de seus personagens, enredados no
burburinho do Grande Hotel: “[...] o cérebro de cada um está
preso no Rio e em São Paulo, a conversa só cresce de anima-
ção quando se fala de gente do Rio ou de São Paulo. Fala-se
em geral muito mal dos ausentes”, Ele observa atento como,
41, 42. Nada revela melhor os ideais garçons voam. À precipitação é tal que, mesmo não comen- após passar o dia se revezando entre os banhos, os passeios, as
modernos de higiene e limpeza do, não é possível escapar à afrontação. Há um motivo: que- atividades físicas, as recreações, os flertes, os concertos, as
que o ambiente dos banheiros rem todos ir ao Politeama, que começa às sete e meia; consta danças, as beberagens e toda forma de jogo de azar, ao fim do
domésticos e seus recursos
sanitários. Superfícies laváveis
de cinema e de cançonetas e termina antes das dez, com a dia “os hóspedes descem ao saguão à espera dos jornais do
em cores claras, metais niguelados, mesma orquestra, que, tendo começado no salão, vai voltar Rio, de São Paulo, da sua vida.” O que buscam eles nesses
azulejos, louças, fórmicas ao salão até as onze e meia, para terminar no clube pela jornais? O conforto das notícias do lar, garantindo que tudo
e laqueados, aromas anti-sépticos, madrugada. Os banhistas voltam ainda à roleta”! segue sua boa rotina, os negócios andam e as instituições per-
brilho cristalino, claridade Na descrição que faz da variada gama de frequentadores manecem firmes? Não; é a dose extra de excitação que ainda
irradiante, espelhos em molduras da estação de cura, uma pequena referência chama a atenção, lá, em meio àquele frenesi das tensões, de algum modo lhes
de formato clássico, água corrente
por se tratar de um caso totalmente singular e destoante do falta. Pois como declara perturbado Teodomiro Pacheco: “O
abundante e toalhas felpudas.
(41. Leon Liberman, sem título,
conjunto: “Há uma outra família — marido mulher e filho. Rio enerva-me. São Paulo faz-me perder a calma”””
1938; 42. Aparelhos sanitários, Amam-se e andam sempre juntos os três. Só entre gente sim- O “Rio-São Paulo”, como se vê, não é o Rio de Janeiro
1937) ples ainda encontramos esse fenômeno”. Mais representativo nem é São Paulo, como realidades concretas, variadas e atra-
era outro caso: “A Tris Serpa Lessa rompera o casamento. vessadas de contradições, tratando-se acima de tudo de um
Creio que o terceiro” Eis aí o espírito da coisa, se para al- estado de espírito, de um modo peculiar de anseio pela in-
guém ainda restava qualquer dúvida, tensidade e a aceleração. Ele é uma simplificação para a di-
ORIGINAL
8c
566 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 567

vulgação propagandística e o consumo exaltado de uma


idéia. Assim como essa fórmula matricial, o “American way
of life”, não descreve a realidade empírica de nenhuma comu-
nidade americana específica, o mesmo tende a ocorrer com
esse seu correlato, que também se poderia chamar de “agita-
ção Rio-São Paulo”. Não é preciso estar nos Estados Unidos
para sentir e viver o “American way of life”, do mesmo modo
como não é preciso estar no Rio de Janeiro ou em São Paulo
= para se imbuir neste “Rio-São Paulo” “artístico” de que falava
SYiM DHON IA. o Machado, e ser parte dele, uma vez que ele é um fato gera-
DAMETROPOLE do e difundido pelas novas formas de comunicação social e
não uma mera realidade territorial. Ninguém melhor portan-
Co PR 3 to do que o próprio Mestre para nos explicar como esses
Aa fenômenos operam: “Não quero mal às ficções, amo-as, acre-
dito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso dei-
| xo de filosofar sobre o destino das coisas tangíveis em com-
paração com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um
pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar
acreditando que não há pássaros com asas..”.78
Mas se os pássaros perderam asas e as idéias as ganha-
ram, o que terá acontecido com os corpos dos homens, te-
riam aprendido a voar? Num certo sentido sim, como se sabe.
Afinal se o tipo mais representativo do herói público herdado
da tradição do século xIx era um homem de erudição imensa
como Ruy Barbosa, o Águia de Haia, os tipos mais festejados
de heróis do novo século seriam gente como Santos Dumont,
Blériot, Lindbergh, Edu Chaves, enfim, os Águias dos Ares. |
Nesse espírito, um autêntico representante dos novos tempos
era esse Jacques Fontoura, da entourage do Grande Hotel em
Poços de Caldas e que em correspondência com Jorge Pedra,
| presidente do Automóvel Club de São Paulo, conclui após
uma carta muito curta: “Até breve, para conversarmos longa-
| mente. Essa história de escrever faz-me dor de cabeça. Sou
muito mais homem de ação”? Ele se compara nesse sentido
| ao seu homônimo, o inquieto Jacques Pedreira, que também
| tinha ojeriza a ler e escrever, não suportando sequer peças de
43. A imagem de uma São Paulo teatro, preferindo como se viu os automóveis e as moças.
intensamente industrializada dá TR Fê | Portanto se algo ocorreu com os homens, foi que além de
. A M CçÇÃO DA : o. . : ,
era imprescindível para compor REGORM REX FT LM | adquirir asas, descobriram que tinham músculos e passaram
simbólica
Pinel (São
odo país. di modernidade DISTRIBUIDA PELA Su | a explorar as vantagens destes sobre os velhos e surrados
Paulo, A Sinfonia
miolos.
da Metrópole, c. 1929)
568 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 569

44, Para os jovens anônimos,


os esportes e a exuberância física 46. Não é mais possível
do corpo atlético criaram novas contentar-se com as formas com
oportunidades de visibilidade que a natureza contemplou cada
no espaço público e possibilidades um. Ser moderno implica modelar
inéditas de ascensão social, o corpo conforme o padrão ideal
(L. Musso & Cia., O campeonato das modas do dia. (Arnaldo,
do remo, 1908) Consegiiências esportivas, 1903)

O resultado dessa curiosa mutação cultural foi o desen- ralização de uma ética do ativismo, a idéia de que é na ação e
cadeamento de uma febre esportiva que assolou o século xx portanto no engajamento corporal que se concentra a mais
desde os seus primórdios, tendo seu grande salto, tanto qua- plena realização do destino humano. As filosofias da ação, os
litativo quanto quantitativo, logo após a Primeira Guerra e ao homens de ação, as doutrinas militantes, os atos de arrebata-
longo dos anos 20 e 30. Machado de Assis, o arauto de plan- mento e bravura se tornam os índices nos quais as pessoas
tão, vislumbrou logo cedo o furor que se avizinhava e saiu-se passam a se inspirar e pelos quais passam a se guiar. É o
com esta peça preciosa: “Vamos ter... Leitor amigo, prepara-te tremedal de que falava João do Rio. Era a eletricidade pas-
para lamber os beiços. Vamos ter jogos olímpicos, corridas de sando para os corpos, imprimindo-lhes a compulsão do mo-
bigas e quadrigas, ao modo romano e grego, torneios da ida- vimento, da ação, fosse espontânea, fosse mecânica, fosse em
de média, conquista de diademas e cortejo às damas, corridas coordenação de massas. A educação física se torna obriga-
atléticas, caça ao veado. Não é tudo; vamos ter naumaquias. tória nas escolas, mas as pessoas se exercitam voluntariamen-
Encher-se-á de água a arena do anfiteatro até a altura de um te em academias, associações atléticas e na sua própria casa.
metro e vinte centímetros. Aí se farão desafios de barcos à Vicejam os filmes de ação e aventura, os thrillers, os westerns,
maneira antiga, e podemos acrescentar que à de Oxford e as histórias em quadrinhos, os desenhos animados, os livros
Cambridge, torneios em gôndolas de Veneza, e repetir-se-á o de bolso com histórias de detetive, de espionagem e de guer-
cortejo às damas. Combates navais. Desafio de nadadores. ra. Os clubes pululam, com o destaque para o futebol, mas
Caça aos patos, aos marrecos, etc. Tudo acabará com um envolvendo todos os esportes. As modas mudam para se tor-
grande fogo de artifício sobre a água. É quase um sonho essa nar esportivas, leves, curtas, coladas ao corpo, expondo amplas
renascença dos séculos, esta mistura de tempos gregos, roma- áreas para a respiração e a insolação, exibindo os músculos e
45, O ideal clássico da Vênus nos, medievais e modernos, que formarão assim uma ima- formas torneadas do físico. A modelação e o condicionamen-
recebe uma versão modernizada, gem cabal da civilização esportiva” to do corpo e da mente se tornam uma obsessão, um culto.
que funde a alegoria republicana
Essa expressão “civilização esportiva” portanto não deve João do Rio, num texto memorável, descreveu a introdu-
no ideal da beleza desportiva.
(Baraúna & Cia. Calçados Vênus, ser entendida como se referindo exclusivamente à prática ge- ção dessa religião do corpo no Rio de Janeiro do início do
1905) neralizada de diferentes modalidades de esporte, mas à gene- século:
570 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO 571

O Club de Regatas do Flamengo tem, há vinte anos pelo automóveis espalhados pela avenida Beira-Mar e de toda par-
menos, uma dívida a cobrar dos cariocas. Dali partiu a te vinham embarcações com decorações festivas, que se con-
formação das novas gerações, a glorificação do exercício centravam ao redor das balizas, inclusive as barcas da Canta-
físico para a saúde do corpo e a saúde da alma. Fazer reira, apinhadas de povo, que tocava, cantava e dançava
sport há vinte anos ainda era para o Rio uma extravagân- animadamente durante toda a prova. Os ídolos das torcidas
cia. As mães punham a mão na cabeça quando um dos gozavam de enorme popularidade e a população excitada os
meninos arranjava um haltere. Estava perdido. Rapaz aclamava pelo nome.º2 Era o início da vocação balneária que
sem pince-nez, sem discutir literatura dos outros, sem o Rio de Janeiro haveria de levar às últimas consegiências,
cursar as academias — era homem estragado. fazendo das praias o foco principal do lazer e uma extensão
E o Club de Regatas do Flamengo foi o núcleo de natural dos quintais e das salas.
onde irradiou a avassaladora paixão pelos sports. O Fla- Que Pereira Passos concebesse “aquilo”, isto é, a prolife-
mengo era o parapeito sobre o mar [...] As pessoas gra- ração da cultura desportiva como o complemento lógico da
ves olhavam “aquilo” a princípio com susto. O povo en- Regeneração, não era obviamente casual. As regatas do Bota-
cheu-se de simpatia. E os rapazes passavam de calção e fogo correspondiam ao corso e às corridas de carros, bicicle-
camisa-de-meia dentro do mar a manhã inteira e a noite tas e motocicletas disputadas na recém-inaugurada avenida
inteira. Beira-Mar. O desenvolvimento dos esportes na passagem do
Então, de repente, veio outro club, depois outro, mais século se destinava justamente a adaptar os corpos e as men-
outro, enfim, uma porção. O Boqueirão, a Misericórdia, tes à demanda acelerada das novas tecnologias.” Como as
Botafogo, Icaraí, estavam cheios de centros de regatas, metrópoles eram o palco por excelência para o desempenho
Rapazes discutiam muque em toda parte. Pela cidade, dos novos potenciais técnicos, nada mais natural que a refor-
jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos ma urbana incluísse também a reforma dos corpos e das
peitorais e a cinta fina e a perna nervosa e a musculatura mentes. Esse amplo processo de transformação comportaria
herculana dos braços. Era o delírio do rowing, era a pai- uma alteração crucial no quadro de valores. Nessa nova so-
xão dos sports. ciedade da cultura desportiva o valor máximo é necessaria-
Mas se o Club de Regatas do Flamengo teve a precedên- mente a idéia de saúde, cuja condição básica é a limpeza e
cia, a responsabilidade maior pela popularização e rápida di- cuja prova patente é a beleza. Não surpreende por isso que os
fusão dos esportes aquáticos se deveu a ninguém menos que
termos por meio dos quais eram expressos os conflitos so-
ao mentor da reforma urbana e da avenida Central, o enge-
ciais passem a ser mediados pelos conceitos da profilaxia, da
nheiro Pereira Passos. Foi ele que estabeleceu o nexo entre a higiene e da eugenia. Assim, a justificativa para evacuar a
Regeneração, a modernidade e os esportes, ao construir o população pobre da cidade, empurrando-a para os morros e
Pavilhão de Regatas na praia do Botafogo.O novo logradou- os subúrbios, era formulada em termos de “política sanitária”.
ro se tornou o foco da juventude elegante da cidade. As famí- Na longa e dramática repressão que se seguiu à Revolta da
lias e as moças cercavam o local em seus carros, do interior Vacina, em que eram visados genericamente “todos aqueles
dos quais acompanhavam a movimentação intrépida dos ra- que não puderem comprovar residência ou emprego fixos” o
pazes nadando e remando de shorts e camisetas, exibindo chefe de polícia do Rio de Janeiro se referia a essa operação
seus músculos e os corpos bronzeados. João do Rio observou como sendo destinada a “varrer das ruas” aquilo que ele de-
com precisão que de início os adultos mais conservadores nominava “o rebotalho ou as fezes sociais”
viram “aquilo” com receios, mas que a população no geral se Além de controlar o espaço social, em nome da “política
contagiou da animação desportiva. De fato, nos dias em que sanitária” os “exércitos de fiscalizadores”, os “esquadrões
se realizavam as grandes competições de regatas, a população mata-mosquitos” e os “batalhões de vacinadores” eram auto-
acorria em massa para acompanhar o evento em meio aos rizados a invadir tanto a privacidade das casas quanto a in-
572 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 573

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47. As regatas se tornam 49. O Pavilhão de Regatas coroou


a primeira manifestação da febre o projeto da Regeneração,
desportiva no Rio de Janeiro, completando a reforma urbana
ligando definitivamente a vida com a reforma desportiva
social da cidade com a agitação e vinculando o desfile
charmosa das praias, antes tão das elegâncias na Avenida
evitadas, temidas e desprezadas, à exibição da beleza dos corpos
como área de riscos, ilícitos, atléticos nas praias, O Rio
superstições, crimes, sujeira, de Janeiro constrói o modelo
doenças e a indesejável insolação. peculiar da modernidade tropical.
(Na enseada de Botafogo, 1921) (Anteprojeto de um pavilhão
à beira-mar para regatas e festas
timidade dos corpos. As pessoas abordadas eram submetidas no novo cais de Botafogo, 1904)
a questionários sobre suas origens, suas condições físicas,
as normas para 0 funcionamento dos balneários. Apesar de
seus familiares, seus hábitos, sua vida sexual, suas atividades e
suas andanças. Um decreto de 1905 determinava que todo charmosa, a prática dos banhos era vista como arriscada e
48. No início os banhos deveriam
indivíduo recolhido à Casa de Detenção fosse imediatamente por isso cercada de controles de segurança. As moças, por
ser de sal, por recomendação
médica, e não de sol, cujos efeitos “vacinado e revacinado”8 Eventualmente as marcas da vaci- exemplo, só poderiam se banhar acompanhadas cada qual de
maléficos deveriam ser evitados nação serviriam para revelar de pronto a passagem do seu um “banhista”, um empregado subalterno do estabelecimen-
a todo custo. Daí os trajes to, encarregado de mantê-las seguras pela mão o tempo todo.
portador pelo sistema penitenciário.
se assemelharem mais a uma Além dessa prevenção, o estabelecimento deveria manter
armadura que a trajes de banhista.
Questão de saúde também eram os banhos de mar, já
que pela passagem do século eles são incorporados às técni- também uma “sala ampla e arejada, destinada a receber os
(Daniel, Traje de banho de mar,
cas terapêuticas, com os médicos “aconselhando para todas afogados” e todo um repertório de instrumentos médicos in-
c: 1938)
as moléstias um mergulho no salso elemento”. Como a idéia dispensáveis: “Abridor de boca, tesouras, pinças de Laborde,
inicialmente não era expor-se ao sol, mas ao sal, a indumen-
mordaça para manter a boca aberta [sic], pincéis para provo-
tária era de uma complicação bizantina: “Os banhistas iam car vômitos, seringas de injeção hipodérmica, algodão hidró-
para a praia de madrugada, antes de sair o sol. As mulheres filo, máquina elétrica Paradin de Gaeff, camisolas especiais
vestiam umas roupas enormes de baeta azul-marinho, de- de flanela, luvas de clina e escovas para fricções”8
bruadas com cadarços brancos (as mais ousadas usavam Novas regulamentações introduzidas em 1917 limitavam
debrum vermelho, o que dava o que falar). As calças vinham os horários de banho aos períodos de menor insolação, no
até os pés, terminavam com uns babadinhos também em início da manhã e fim da tarde, além de exigir trajes decentes,
debrum. E como complemento da complicada indumentária: proibir “ruídos e vozerias na praia e no mar” e estabelecér »

toucas de baeta e sapatos de corda ou de lona”.*” multas e penas de detenção para os transgressores. Apenas
Os banhos de mar só viriam a se tornar uma moda ele- com o boom desportivo dos anos 20 e por emulação das
gante, é claro, no período da reforma urbana, quando então modas vindas dos balneários franceses de Deuville e da Côte
os jovens convergem para o balneário do Flamengo. Em d'Azur, os trajes se tornariam mais leves, curtos e colantes,
1906, ano da inauguração da avenida Beira-Mar, o prefeito enfatizando o sol como a principal atração do banho de mar,
Pereira Passos publica o primeiro regulamento estipulando não por efeitos terapêuticos, mas estéticos, Completa-se as-
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 575
574 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
tação e de sobrevivência, intensificação das tensões sociais e
1 As Praias do Rio disseminação da violência em nível individual ou organiza-
do.” Como uma compensação simbólica para a insegurança
ECOPACABAN; das classes dominantes e grupos ascendentes, nesse momento
de grandes transformações econômicas e sociais, esse sistema
de valores se dissemina por todas as áreas atingidas pela
constituição do mercado em escala mundial. Seus sinais são
visíveis por toda parte na multiplicação das publicações, có-
digos e campanhas destinados a abolir as práticas e materiais
considerados passíveis de acumular sujeiras e propor novas
soluções, equipamentos e produtos de cunho profilático e
efeito higiênico. No âmbito do próprio design dos objetos
50; 51. Os banhos de mar eram industriais padronizados essa preocupação era evidente.” O
originalmente feitos sob condições estilo art nouveau procurava apresentar os objetos industria-
de estrita privacidade, donde lizados em formas que evocassem elementos naturais ou cul-
a necessidade das fortalezas turas pré-industriais. Seu sucessor, o estilo art déco, difun-
em que se internavam sobretudo
dido sobretudo no entreguerras, investia no sentido inverso,
as moças, a fim de se submeterem
ao tratamento terapêutico, mais baseando suas linhas e volumes em projeções futuristas, pre-
por exigência médica do que por nunciando um mundo em que a vitória total da técnica supri-
sua vontade. Aos poucos misse em definitivo as ameaças de contaminação e degeneres-
os trajes foram se encurtando, cência. Ao contrário dos casarões antigos, as casas deveriam
ganhando leveza, modelando ser arejadas, claras, ensolaradas, sem cortinados pesados, de
6 corpo, revelando as formas
estrutura simples e funcional. O mobiliário e objetos decora-
e expondo a pele ao sol
e aos olhares indiscretos. ada tivos deveriam ser mínimos, se possível embutidos, de mate-
sim o círculo que leva de uma atividade profilática destin riais que não absorvessem pó, com superfícies contínuas e
Um grande escândalo sempre saudável voltada para O
acompanhava cada inovação,
a incrementar a saúde a uma prática fáceis de limpar, sem toalhinhas rendadas ou quaisquer co-
o Amado , testem unhand o
ameaçando sobretudo as moças desenvolvimento da beleza. Gilbert berturas de tecidos que absorvessem poeira.
com o quinto dos infernos essa evolução, destaca seu sentido fundamentalmente eugêni- Nesse complexo sistema articulado pelas noções básicas
ou com um quarto no prostíbulo co: “A praia transformou-se. Uma grande transmutação se
de limpeza, saúde e beleza, o símbolo central era sem dúvida
do Mangue. (50. Armando operou [...] Hoje Copacabana, praia multicor, distendendo- a imagem do corpo humano, utilizado intensamente pela
Pacheco, A casa de banhos da tua (4 uma 39 Teblon, entontece o olhar do homem normal publicidade comercial ou pela oficial, e apresentado em geral
ce a o as do Ros que gosta de ver corpo bonito e modo de andar gracioso |
semidespido, jovem, saudável, atlético e impoluto. Desde o
Copacabana, 1921) A nossa capital é a única que, sede de governo, centro indus
mesmo fim da Grande Guerra as tendências de moda são para rou-
trial, universitário, comercial, bancário, político, é ao
pas leves e “esportivas”, caindo com naturalidade, sem cintos
tempo balneário de primeiro de janeiro a trinta é um de ou constrições, de maneira a ressaltar as formas da anatomia
dezembro. Qualquer que tenha sido do ponto de vista moral
e a textura da pele.” Nesse contexto o esporte, e tudo o que
a consegiência desse fato, quanto à melhoria da grei, do traga as suas conotações, se torna de fato um dos códigos
ponto de vista físico, ele foi espantoso Ro
mais expressivos para estabelecer os signos da distinção so-
Essa ética da limpeza, saúde e beleza se torna a con-
cial, Ele surgiu e se impôs como um ritual elitista, revestido
trapartida do amplo processo de industrialização, com seus dos valores aristocráticos do" ócio, do adestramento militar e
efeitos de poluição, toxidez, deslocamentos e migrações for-
do sportsmanship (cavalheirismo, imparcialidade e lealdade).
cadas, difusão da miséria, degradação das condições de habi-
576 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 577

de
Ao se apropriar dele a burguesia o traduziria em e que os gregos venceram em Salamina! Depois disso [...] o
e impera tivo da vitória. ( : a
agressividade, competitividade Rio compreendeu definitivamente a necessidade dos exerci-
prestígio crescente garantiu que as conversões prosseguis E cios[...)”
ao longo da escala social, Daí a sua rápida popularização O primeiro momento de clímax dessa euforia desporti-
fins do século x1x até o boom dos anos 20.% ,

nim
va viria no Rio de Janeiro com a vitória sobre a Seleção do
Um personagem decisivo na configuração e nova Uruguai em 1919, que tornou o Brasil em Campeão Sul-
ética do corpo e da ação” foi o poeta Olavo Bilac. ne oi um Americano de Futebol. Desde então ninguém mais conteve a
dos principais arautos e grande incentivador da re orma E febre dos esportes. Se o prestígio social atraía a população, o
bana e do espírito estético-higienista da Regeneração, de- fato é que a cultura popular da cidade já era marcada tanto
fendendo-a e ao prefeito com acalorado entusiasmo nos pelos valores da exuberância física quanto pelo espírito lúdi-
principais jornais e revistas do Rio. Em seguida Pb co de precipitar os oponentes no ridículo pela destreza e ra-
F
propagandista e fá ardoroso das práticas € competições pidez de movimentos. Uma era evidente pela ampla difusão
Grande Guerra fundou a Liga E
portivas. Na conjuntura da das tatuagens e decorações do corpo, as vestes das negras
Defesa Nacional e se lançou em campa nha obstin ada pela minas e os adereços das “baianas” e o outro pela tradição
criação do serviço militar obrigatório para todos os ioga! popular da capoeira.” Seja como for, o fato é que os esportes
da
brasileiros de dezoito anos. Vemos pela sua progressão que vieram para ficar. Como disse Marques Rebelo, “o carioca é
reforma e sanitização da cidade ele se voltou para a saúde, louco por futebol, sua veste é de torcedor pobre, seu andar é
modelagem e beleza dos corpos, para afinal a a de drible, seu entusiasmo é de braços levantados e punhos
alin ni o)
apelo ao nacionalismo militante de massas. Do cerrados, como quando aplaude um gol” Naturalmente as-
das ruas, ao aprumo dos corpos, às fileiras march ando em sim também era o nosso aloprado Jacques Pedreira, a quem
ordem unida. João do Rio percebeu claramente o seu pa- João do Rio pinta como um devoto da religião dos esportes:
a
pel pioneiro e articulador: “[...] era a paixão dos sports “Tudo na vida é sport. O maior sportsman de todos os tempos
52. O estilo art déco condensava
Faltava apenas a sagração de um poeta. Olavo Bilac escr foi positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, pre-
assim
todos os símbolos do mundo veu a sua celebrada ode de 'Salamina. — Rapazes, foi destinado de fato, venceu todas as performances e todos os 53. À historiadora Paula Fass
moderno, da ciência e das técnicas, handicaps, e, segundo observações inteligentes foi o inventor denominou os anos 20 de “a era
linhas retas, planos ortogonais, do puzzle na organização do caos. Não é de admirar que a da plástica”. De fato, logo após
superfícies chapadas, silhuetas humanidade, à proporção que conhece mais intimamente a Grande Guerra se propagou
mecânicas, metais cromados, Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é o anseio de fundar um mundo
plásticos, cores industriais, novo, fonte de um novo homem,
particularmente esportiva. Os jornais falam de matches, de
com temas decorativos sugerindo uma nova mulher e uma nova
maquinários, aviões,
velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida ou a sociedade, A noção imperativa
transatlânticos, esportes, danças cada pontapé; as pessoas andam na rua como quem vai para era a do ideal da juventude como
frenéticas, criaturas exóticas um desafio ou pelo menos para uma aposta. Jacques, além da símbolo do renascimento cultural
e energias primitivas.
A arquitetura pressupunha grandes À corrente pertencia ao grupo que tinha por chefe Jorge de
Araújo [proprietário de seis carros de corrida, além do “len-
da civilização em novas bases:
coletivas, disciplinadas,
janelas, abertas à insolação, soar rigorosamente coordenadas como
dário modelo 720-A-E”]. Comprou um reloginho para pren-
puro e frescor dos jardins, divisões um mecanisino perfeito, efetivas
funcionais, fluxos livres, grandes der no pulso e foi das velocidades”.100 no seu desempenho, agressivas,
volumes espaciais, mobiliário Muito particularmente revelador esse detalhe do relogi- com fibras e músculos de aço
mínimo, sóbrio e objetivo. nho. Ele é o sucessor natural do clássico patacão ou o popu- e conquistadoras, Os esportes,
(Antonio Gomide, Residência lar cebolão, o relógio grande de bolso, sacado através de uma como sucedâneos da guerra,
de Frederico de Souza Queiroz, corrente longa, em geral de ouro, que cruzava toda a frente se difundiram então como o meio
Jardim Europa, São Paulo, mais efetivo para se atingir esse
anos 30)
das casacas dos cavalheiros. Era o relógio do Ruy Barbosa. Já ideal. (Creme e óleo Nivea, 1934)
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 579
578 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

Essa contradição pode ser melhor observada numa ativi-


7 NE
(ds crcunças premiadas nda)
Ee de É eg do Parra *
Tasao
Revistada Seman
Angu RN x. Hide) ne 1922
dade original que se tornará típica dos novos tempos, a torci-
da. A palavra por si só é interessante e tem conotações parti-
cularmente reveladoras na língua portuguesa. Torcer por um
atleta ou uma equipe significa, em sentido geral, atuar por
meio sobretudo de agitação e ruído, de modo a comunicar
sua excitação aos atletas, estimulando-lhes com isso o desem-
penho. Mas a palavra é mais esclarecedora ainda. Ela implica
torcer-se, contorcer-se, remoer-se, contrair-se e, no momento
climático, expandir-se num êxtase catártico. Ou seja, o “tor-
cedor” não é um espectador passivo, ele incorpora os lances
da disputa na sua própria estrutura física e vai reproduzindo
em seu corpo, na vibração de seus sentidos, nas crispações de
seus músculos e nervos, cada uma das tensões e reflexos des-
dobrados no embate, como se ele mesmo estivesse na arena.
As competições são espetáculos públicos e quem a eles acorre
vai atraído pelo desejo de compor um ato coletivo. E, no
entanto, o nexo do torcedor com a ação coletiva só ocorre
quando seu corpo reflete no público o resultado dos senti-
mentos, emoções, frustrações e inquietações da sua vida pes-
soal. Daí a simbologia associada a determinados atletas e
equipes e as razões obscuras que levam as pessoas a torcer
por uns ou pelos outros. Daí o modo pelo qual o esporte
atua como um termômetro e um termostato da vida social. 56. Poeta de maior popularidade
54. A ampla difusão de crenças, o modelo menor e prático de pulso, consta que foi inventado no primeiro período republicano,
Por isso uma maneira de se conhecer melhor a individuali-
princípios e práticas associados por ninguém menos que o próprio Santos Dumont, o Águia Bilac promoveu a convergência
dade de uma pessoa pressupõe saber seus hábitos, ídolos e
à eugenia revelava-se pelo dos Ares, para permitir a consulta rápida e fácil em meio ao e fusão dos símbolos relacionados
surgimento e rápida difusão dos preferências esportivas. “Como sempre servem as perfor-
concursos de robustez infantil. (Uma
desempenho físico das suas manobras acronáuticas.'» O mo- à herança cultural greco-romana,
mances,, "102
raça que se afirma — As crianças delo passou a ser produzido pela Casa Cartier, tornando-se às belas-letras, ao urbanismo,
Outra ilação interessante suscitada pelos espetáculos de
conhecido como o “modelo Santôs” e se transformando num
ao atletismo, ao vigor físico,
premiadas no Concurso de
massa, cada vez mais frequentes, maiores e mais complexos, à exuberância corporal,
Robustez do Paraná, 1922) sucesso mundial de vendas. Era o relógio dos homens de ao engajamento militar e ao
era o seu potencial para aliviar as pessoas da ansiedade afliti-
ação. Tornou-se um apetrecho indispensável para os homens patriotismo. (Olavo Bilac, 1921)
va gerada num meio social marcado pela concorrência sem-
e mulheres modernos. O caso é bastante revelador. Rapida-
pre crescente e mais agressiva. Eles tendiam a catalisar o mal-
55. O marco mais notável do novo mente se torna um mandamento difundido que o relógio de
estar das pressões, tensões e negociações cotidianas, o peso
pulso é um instrumento decisivo para caracterizar, pelo seu
culto à juventude, à saúde,
ao vigor físico e à formosura foi elemento das decisões exigidas a cada momento e o preço de suas con-
o surgimento dos concursos estilo, design, marca, material de confecção, um
segiiências, num mundo em que os prêmios e as punições
de beleza feminina, que se tornam definidor da individualidade de cada um. Mas se todos o
dependem de um absurdo sistema de privilégios e exclusões,
rapidamente um dos filões usam, em que sentido pode ser individual? Essa é a equação
se historicamente herdado, combinado com as incertezas de um
da grande imprensa e uma mania interessante, indicadora de que, neste século, a privacidade
mercado instável que cada vez mais decreta o destino das
nacional. (As Três Formosuras
constrói com elementos hauridos da fantasia coletiva, o indi-
Premiadas no Concurso do Diário pessoas. O fato é que cogitar permanentemente nessas vicis-
vidual é uma concretização peculiar, uma constelação pessoal
de Minas, de Belo Horizonte, situdes sufoca a consciência, limita a imaginação, deprime os
1922) composta com base no padrão massificado.
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 581
580 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

58. A segunda grande febre


a
i

desportiva do Rio de Janeiro veio


57. No âmbito da cultura popular com o futebol e logo se tornou
carioca, de predominância negra ainda mais intensa do que
e fortes vínculos com as tradições as regatas, Inicialmente difundido
africanas e afro-brasileiras, valores entre as elites, ele seria adotado
que passaram a ser vigentes com com enorme entusiasmo pelos
a modernidade, como o vigor grupos populares que, com base
e a exuberância física, os ritmos em suas tradições rítmicas
vertiginosos das danças e a malícia e lúdicas, relacionadas à destreza
lúdica dos esportes, já eram parte do uso dos pés e movimentos
permanente de seus rituais do corpo e da cintura,
e experiências cotidianas. Portanto, construiriam sua própria versão
com base nas próprias tradições, do esporte britânico, mais para
esses grupos poderiam negociar sua a diversão e o carnaval que para
entrada e trajetórias pelas sendas a agressividade, disciplina tática
da cidade moderna. (Calixto e objetividade. (Palmeiras x
Cordeiro, Rabo-de-arraia Portuguesa: Aimoré (gol)
na capoeira, Rio de Janeiro, 1906) e Romeu, década de 30)
“Supressão da transpiração do espírito”, que pista mais
humores, reduz a auto-estima, tornando ainda mais precária
oportuna para sondar os tortuosos caminhos em que se deu
a disposição para enfrentar os problemas. João do Rio, incor-
a gestação do populismo. Machado o intuiu com sua singular
porando o estouvado Jacques Pedreira, percebeu bem para
genialidade. Outros personagens, menos brilhantes mas mui-
onde esse torvelinho arrastava o ânimo do seu personagem:
to mais sinistros, iriam aprender aos poucos, como aprendi-
“Conhece-te a ti mesmo; disse o sábio. Era um sábio antigo.
zes de feiticeiros, o poder temível dessa química explosiva das
O verdadeiro saber está em cada um ignorar-se a si mes-
multidões. Tanto ela poderia ser detonada com consegiiên-
mo”13 Podia não ser uma filosofia edificante, mas era sem
dúvida moderna. O próprio Machado sentia o rumo que as cias imprevisíveis, como poderia ser metodicamente canali-
coisas estavam tomando e como o efeito de perder-se na zada em impulsos de devoção adesista, de conformismo pla-
massa, dissolvendo suas limitações individuais e adquirindo nejado. João do Rio assistiu a esse processo num ponto já
uma espécie de dimensão ampliada e poderosa pela associa- mais avançado. Ele se deu conta dessa ponte que, das proje-
ção com o coletivo, se tornava uma tentação a que as pessoas ções e expectativas individuais, leva ao sopé da pirâmide do
estavam cada vez menos dispostas a resistir. Comentando poder, engrossando este e consolidando aquelas. Eis como ele
como sempre um episódio de rua, em que um orador desas- descreve o metabolismo turvo de uma festa republicana:
trado quase é linchado por uma multidão furiosa, ele produz Era no conjunto um misto de encanto de feira, de impal-
uma conclusão rica da mais estranha lucidez: “Que o contá-
pável luxúria, de contrariedades enervadas, de promis-
gio da idéia é que produzia esse acordo de tantos, é coisa cuidades confusas [...] Pelas aléias, pespontadas pela luz
natural e sabida. Aquilo que não nasce em trinta cabeças das lanternas de cor, acesas na palpitação das grandes
a
separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme lâmpadas elétricas, a turba movia-se policroma e agita-
ocasião e as circunstâncias [...] A familiaridade com à morte da: chapéus, gazes, cabeças nuas, paletots, capas, uma
é bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, além de confusão de corpos a passar devagar ou a correr, en-
necessária. Mas, aplicada aos eventos miúdos, perde a graça quanto um rumor feito de mil rumores, de sons metáli-
natural e poder cívico, para se converter em derivação de cos das bandas, de gritos, risos, frases perdidas, conversas
maus humores [...] Que é a loucura senão uma supressão da
multiplicadas, subia ao ar aberto em clamor. Nas gran-
transpiração do espírito?”1%
ORIGINAL
Ro
Ri
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 583
582 » HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
N .
sua circunstância, inseri-la num espaço, mas à primeira
des festas, em que há multidão, sempre em dado mo-
tentativa de alguém de carne e osso se aproximar, tapa-se
mento, instala um surdo incêndio de apetites, de anima-
imediatamente o bocal do aparelho e enxota-se o invasor in-
lidade que a civilização retém a custo. É o momento
turbilhão das pequenas licenças, dos olhos acesos, dos desejável. O sinal telefônico, frouxo e surdo, distante e imate-
rial, sem cor, cheiro, substância ou forma, se preenche, no
apertos febris, dos desejos imediatos, que nem sempre se
realizam. Então, por um fenômeno de projeções órfi- entanto, das pulsões cruas que neles projetamos, como perce-
cas)!º como que o ambiente, as coisas imóveis, o inani-
beu João Cabral de Melo Neto no seu delicioso “Paisagem
mado, as luzes, as árvores, o ar se embebem de senti- pelo telefone”:
mento geral, e há como que um frenesi de posse final, Pois assim no telefone
mesmo nos menos aptos e nos mais fracos [...] O pri- tua voz me parecia
meiro magistrado da nação dizia gravemente palavras de como se de tal manhã
cumprimentos estudadas pela manhã. Estava encantado estivesses envolvida,
[...] Um toque de clarim varou o ar. Cem caixas rufaram
a um tempo. Na semitreva um pavilhão nacional adejou fresca e clara, como se
[...] telefonasses despida[...]'º?
— Viva o presidente! — berrou um sujeito.
— Vival [...|'º6 No caso do Rio de Janeiro não deixa de ser muito signi-
ficativo que a primeira elaboração do telefone como tema
Luzes, eletricidade, sons, ritmos, pompa e circunstân- lírico tenha partido de um sambista negro do morro, Ernesto
cia: a ocasião faz o bandido. Num mundo que é cada vez dos Santos, o Donga, com letra de Mauro de Almeida, o Peru
mais da ação, dos impulsos, dos reflexos, é natural que as dos Pés Frios. E também que esse samba tenha sido simulta-
doutrinas e plataformas com que se justifica o poder não neamente 0 primeiro a ter sua pauta musical impressa e o
contem necessariamente mais do que sua capacidade de cata- primeiro a ser gravado pela nascente indústria fonográfica,
lisar as impressões sensoriais, suscitar os instintos e agenciar em 1916. O caso é bastante revelador do processo pelo qual o
as expectativas. Para entender melhor como esse processo se potencial de uso transforma o objeto num fetiche, disputado
59. O relógio de pulso, apetrecho
indispensável do homem moderno,
engendra convém lembrar uma vez mais, como ressaltamos na fronteira cultural em que se projetam as tensões sociais.
tanto para o controle de sua rotina no início deste capítulo, que a moderna sociedade de massas Nos inícios de sua difusão pela cidade, o telefone era um
cotidiana quanto para só se tornou possível, operacionável, graças aos recursos das aparato raro e identificado com os privilegiados. Ele era um
a caracterização da sua novas tecnologias. E que essas tecnologias atuam para muito
símbolo cujo prestígio denotava a relação intrínseca entre a
individualidade. A segunda além dos limites da escala, da força e da percepção humanas.
invenção mais importante tecnologia moderna e as elites dominantes. E por isso mesmo
Como, porém, somos criaturas dessa mesma tecnologia, te-
de Santos Dumont, consagrada era um convite ao assalto pelas populações segregadas, ainda
nas trincheiras da Grande Guerra mos dificuldade de nos desprender o suficiente dela para po-
que essa apropriação fosse meramente simbólica. A música e
e transformada na bússola der, de fora, reconhecer toda a sua imensa estranheza.
o ritmo amaxixado são aliciantes por si sós, mas a imagem
temporal para orientar o habitante Tomemos o caso do transporte público. Só a sua carac-
glamourizada e apoderada do ícone falante certamente teve
das metrópoles na correria diária terística técnica de vetor de deslocamento de massas é que
de suas aventuras pela cidade. seu peso na enorme repercussão do samba, gravado pelo po-
explica como várias dezenas de pessoas podem ficar compac-
pular Baiano, que acabou virando sucesso de Carnaval e até
tadas durante longos períodos, sem ceder à disposição espon-
(Sem título, c. 1930)
um dos primeiros jingles, ainda na sua versão como spot di-
tânea do ser humano à comunicação com seus iguais. Ou ao
vulgado pela indústria fonográfica, promovendo uma marca
contrário, como no caso do telefone, as pessoas podem des-
de cerveja. Era a apropriação da apropriação:
pender um longo tempo se comunicando por meio de um
impulso eletromagnético, sem ver a outra criatura, perceber a
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 585
584 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

E ALMADA CIDADE!

60. A rápida sofisticação O chefe da polícia


tecnológica da telefonia em pouco Pelo telefone
tempo dispensaria a figura Mandou me dizer
intermediária da telefonista, Que há em toda parte
peculiar ocupação feminina,
Cerveja Fidalga
tornando as comunicações
telefônicas mais rápidas, diretas Para se beber. E
e íntimas. (The Rio de Janeiro ARA ie
São situações desse tipo ainda que explicam como nos
and São Paulo Telephone
Cos. d.) prédios de apartamentos, que verticalizam o espaço urbano
cada vez mais saturado, as pessoas moram todas agregadas,
61. Essa fotomontagem do anúncio
publicitário deixa bem claro
mas agonizam de constrangimento se um infeliz acaso as põe o papel do telefone como o mais
juntas no mesmo elevador. Daí o também inacreditável hábi- rápido e vital recurso articulador
to de apertar rapidamente o botão do elevador, se se percebe das comunicações na metrópole
que algum vizinho se aproxima na ameaçadora intenção de moderna. (Telefone, alma
compartilhá-lo. Já a questão da divisão e ocupação dos espa- da cidade!, 1941)

ços internos, em geral bastante restritos nas habitações verti-


embevecidas, se o fluxo da comunicação vier, por exemplo,
cais, com os provedores e empregados de serviço, expõe cla-
por meio do rádio. Partindo cada um do seu isolamento real,
ramente os limites da engenharia e da modernidade na
se encontram todos nesse território etéreo, nessa dimensão
gestão do contencioso social. Nesse sentido, os elevadores
eletromagnética, nessa voz sem corpo que sussurra suave,
acrescentaram à sua mera função técnica, um papel suple-
vinda de um aparato elétrico no recanto mais íntimo do lar,
mentar de recurso discriminatório. O poeta Carlos Drummond
repousando sobre uma toalhinha de renda caprichosamente
de Andrade deu dimensão paródica a um anúncio de venda bordada e ecoando no fundo da alma dos ouvintes, milhares,
de kitchenette que glamourizava a segregação: “Não precisa milhões, por toda parte e todos anônimos. O rádio religa o
arranjar/ empregada pequena:/ ela cabe no quarto [Rapto que a tecnologia havia separado. Nesse sentido ele é o Orfeu
Já por outro lado é fenômeno igualmente notável como
moderno ou a “projeção órfica” a que aludia João do Rio, no
essas mesmas pessoas que não conseguem ou não toleram seu sentido mais amplo e mais pleno. Não por acaso, na
estabelecer comunicação entre si, se entregam uma a uma
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 587
586 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

Canto, pois sei que a minha canção


Vai dissipar a tristeza que mora no teu coração.º
Como seria muito poder viver sob o embalo permanente
das diabinhas do rádio, não tardou a que os instintos fossem
submetidos a uma vingança cruel, representada pelo retor-
no sorrateiro do reprimido. Já no início dos anos 20, o po-
pulismo descobrira no rádio a sua pedra filosofal, capaz de
transformar a massa amorfa de ouvintes na força agregada da
paixão política. Claro que as primeiras descobertas do poten-
cial aliciador da caixa falante foram feitas pela publicidade
em sua destinação comercial. O modelo norte-americano de
62, 63. A primeira versão do linguagem popular ele costumava ser carinhosamente cha- radiodifusão tinha como base as agências de publicidade,
rádio-galena era ainda uma mado de “capelinha”, tanto pelo formato dos rádios com cai- cujo interesse em explorar e testar recursos os mais variados
engenhoca precária e de uso xa em arco quanto pelo simbolismo transcendente que ele, para conquistar audiências acirrou a concorrência, desen-
limitado. Mais uma curiosidade volvendo as técnicas de administração, programação, edição,
literalmente, irradiava.
e extravagância tecnológica que
um recurso de comunicação social. Era um modo de remeter a um recôndito familiar das locução, propaganda, distribuição e controle de mercados
A evolução técnica do rádio foi tradições e das memórias um artefato moderno e de efeito que acabaram prevalecendo no contexto sul-americano e
acelerada e forçou a adaptação arrebatador. Cada um põe naquela voz aliciante o rosto e O brasileiro. Foi nessa escola que se educou Franklin Delano
de novas concepções de design que corpo dos seus sonhos. Como o som se transmite pelo espa- Roosevelt. Breve ele aprendeu que o que é dito no rádio vale
o tornassem assimilável, podendo ço, onde quer que se ande pela casa, aquela voz penetrante mais pelas qualidades sensíveis da elocução da voz do que
ser adotado sem maiores receios
vai atrás. Em breve seria possível introduzi-la no carro tam- pelo conteúdo do que é comunicado. É o que os jornais co-
e resistências como uma peça
evocativa das tradições familiares. bém, circulando e se afagando nela em meio à rispidez mecà- mentavam surpreendidos desde que ele iniciou sua atuação
Daí a sua adaptação a um móvel nica do trânsito. Antes todas as pessoas tinham uma voz in- política: “A voz do candidato democrata cai com uma tal
de madeira em formato cessante que lhes falava de dentro do corpo, que os teólogos e cadência no ouvido, que a suavidade expressiva dela chega
de capelinha. Nessa versão afetiva filósofos chamavam de “consciência” e que por sinal era um por vezes a abafar qualquer crítica racional objetiva”, Sua
ele logo se tornaria o centro
bocado severa e sem graça. Um cientista da passagem do grande especialidade se tornaram os discursos em estádios
articulador do cotidiano,
do consumo, dos valores,
século a identificou com a introjeção despótica da autoridade desportivos, com irradiação direta, em que à sua voz se agre-
das conversas, do imaginário paterna. O rádio, milagre dos milagres da tecnologia, permi- gavam os alaridos de adesão das multidões e as ovações estre- í
e dos rituais familiares. tiu substituir aquela voz tétrica pela voz das abençoadas, as pitosas e unânimes.H!! O Rio de Janeiro e o Brasil conhece-
(62. Aparelho de rádio-galena, irresistíveis, as diabólicas irmãs Miranda: riam o fenômeno mais tarde, quando Getúlio Vargas viesse a
1922; 63. Rádio RCA Victor, tornar institucional a prática da irradiação de sua voz drama-
1942) Nós somos as garotas do rádio, levamos a vida a cantar
tizada pela Rádio Nacional, nos discursos oficiais do Estádio
De noite embalamos teu sono, de manhã nós vamos te
[acordar de São Januário: “—Tra-ba-lha-do-res do Bra-sil!,.?.12
Mas como era de se esperar, o rádio teve um desenvolvi-
Nós somos as garotas do rádio, nossas canções cruzando 0
[espaço azul mento defasado e mais tardio no Brasil que nos países indus-
trializados, onde as pesquisas sobre a radiotransmissão foram
Vão reunindo num grande abraço corações de norte a sul
aceleradas sobretudo no contexto da Primeira Guerra. Sua
introdução aqui só se deu no início dos anos 20, mas tantos
Canto pelos espaços afora
eram seus problemas técnicos de transmissão, difusão, quali-
Vou semeando cantigas, dando alegria a quem chora
dade de sinal e programação, que só a partir dos anos 30 é
(bum, bum, bum, bum, bum, bum)
588 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 589

65. Uma vez mais as elites


dirigentes, em paralelo aos técnicos
de publicidade, seriam pioneiras
em explorar o potencial aliciante
da audição radiofônica para seus
propósitos específicos. Getúlio
Vargas, mestre da comunicação
social, fez do rádio seu pólo
de contato emocional direto com
as massas de ouvintes, unificando
o país pelas ondas do ar. (Storni,
Zé — Cuidado, General, não vá
alguém meter o bedelho na onda
e provocar o raio da confusão!...,
1934)

“uu MIRANDA ni adquiri cantor e locutor carioca Renato Murce, revelou dois episó-

um novo Rabi DE 722, Mb2nnod


dios que ajudam a compreender o tipo de incidentes casuais
que acabaram definindo os rumos que a radiodifusão toma-
Os novos. rotEnores 6. E Tom Natural, pelo inegualavel pureza e sur- ria no país. O primeiro tem como protagonista ninguém me-
preandente fidelidade do seu som, farão com nuas Y.S. sinta” os seus astros nos que Charles Augustus Lindbergh, o mais célebre dos
favoritos cantando a seu lado.
Após q:Vitoria Total, os vastos recursos construtivos é experiencia da Águias dos Ares. Nos anos 20 a mais cobiçada proeza era a
. General Electric, levarão qo seu alcance este maravilhoso radio, constru- travessia aérea do Atlântico Norte. Quatro experientes pilotos
Sd á prova de clima tropical, que além de sua esmerada construção
técnica, é apresentado sob a forma de um americanos e dois franceses já haviam perdido a vida tentan-
do a façanha e o trajeto era considerado um sonho impossí-
L x)
. L gante móvel, exp al,

“ao gosto latino.


* Como. a “pequeng notável”, prepare- vel. Lindbergh, um jovem carteiro humilde e desconhecido,
64. O acesso instantâneo à música, ss para adquirir um receptor GE. Tom
decidiu tentar a loucura, equipado com o que conseguiu: um
“com todo o seu poder de alterar os Natural,
estados psicológicos e as disposições
simples monomotor de estrutura metálica e asas de madeira,
emocionais dos ouvintes, tornou-se com um motor de 220 Hp modificado por ele mesmo, deno-
logo o aspecto mais contagiante e
irresistível da audição radiofônica
E | “a pio minado O Espírito de Saint Louis. Partiu de Nova York com

e a principal fonte de seu poder de à E A meia dúzia de sanduíches de presunto, uma garrafa térmica
de café e um gatinho rajado como companhia. Os jornais
ET Eu DANieSa AM TELEVISÃO EEE
transformação cultural. ([Carmen
faziam galhofa dele tratando-o como O Idiota Voador. Às dez
Miranda] anunciando Rádio G.E.
Tom Natural, 1945)
horas do dia seguinte, sem ter feito nenhuma escala, ele des-
cia suavemente no aeroporto de le Bourget em Paris, saudado
que ele teria um impacto decisivo para a transformação da às lágrimas e sorrisos por uma multidão excitada de mais de
cultura brasileira. A idéia inicial era fazer dele uma espécie de 200 mil pessoas. Foi instantaneamente louvado como o herói
teatro burguês irradiado, com músicas clássicas, leituras de emblemático do século xx. Seu nome e sua foto estavam em
longos textos literários, recitação poética e discursos políticos todos os jornais e revistas do mundo. Da obscuridade para a
intermináveis. Portanto, a forma era precária e o conteúdo glória, ele era chamado agora de O Águia Solitária e conside-
tedioso. = rado a prova viva da redenção do homem pela máquina, ten-
da introduçã o do rádio no Brasil, o do abolido os limites do espaço, do tempo e dos elementos.
Um dos pioneiros ORIGINAL.
5€
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 591
590 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

Além do seu recorde aéreo, Lindbergh assinalou outro, o


RES da rapidez e da amplitude com que os novos meios de comu-
é pa SETE . nicação podiam criar mitos. No início dos anos 30, porém, o
Rs piloto foi vítima de um crime horrível. Seu filho foi raptado
' de sua casa e pouco depois encontrado morto num bosque
próximo. Nunca se soube o autor do crime. O alarde na im-
prensa mundial foi estrepitoso. Na busca insana da polícia
por um culpado, acabaram incriminando um pobre carpin-
ia ! teiro alemão, com meras acusações circunstanciais e incon-
EI: sistentes. Isso só redobrou o drama, criando agora duas víti-
mas, uma do rapto e outra da polícia. Segundo o relato de
Renato Murce, foi percebendo a enorme comoção que causa-
| va qualquer menção a esse caso que as rádios do Rio, onde
A. ele circulava, e em especial a Rádio Mayrink Veiga, começa-
E
20
ram a trabalhar as potencialidades do tema a seu favor. À
idéia era manter o assunto “quente”, com revelações dos me-
nores detalhes sobre a vida dos envolvidos no episódio, dra-
matização dos momentos mais candentes da tragédia e de-
poimentos comoventes a favor ou contra os implicados. O
sucesso de audiência não só se mantinha, mas aumentava. As
rádios haviam descoberto uma dupla vocação: primeiro criar
mitos, depois penetrar e divulgar com estardalhaço os deta-
lhes mais palpitantes de suas vidas privadas. Isso estabelecia o
circuito ídolos-fás-dramas-lances bombásticos-recordes de
audiência como o projeto ideal. Não raro sua aplicação
implicava erguer uma criatura anônima aos píncaros da gló- :
ria, para no ato seguinte precipitá-la ou a alguma de suas
relações no opróbrio da lama. A matéria-prima sendo sem-
pre a vida íntima e o equilíbrio emocional do ídolo, com o
qual cada ouvinte anônimo tendia a se identificar, fosse pelo
amor, fosse pelo ódio.
A explicação para esse fenômeno é muito interessante.
Segundo um eminente neurologista os seres humanos têm
) uma capacidade limitada para o reconhecimento visual e 5 Charles Lindbergh se prepara
Tg! | . menor ainda para a identificação psicológica de seus seme- — para pousar após o vôo pioneiro
sarah “a e Mm lhantes. Como espécie, a natureza nos adaptou para viver em . através do Atlântico. Seu feito
| ;
— os E = pequenos grupos, como ocorre com os outros primatas. foi solitário, mas quando a saga
|| 1 E MR a ESSA Numa situação de crescimento urbano explosivo, como a que foi louvada pelos radialistas,
Pat ele se tornou o primeiro herói )
ir mg É foi criada pela Revolução Científico-Tecnológica e graças à em escala global do século XX. |
rapidez dos transportes e ao alcance onímodo dos meios de (The Spirit of Saint Louis voando
comunicação, as pessoas nas grandes cidades estão expostas a sobre Paris, c. 1927)
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 593
592 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

arrebatadas pelo grupo, que novas apresentações e excursões


uma massa tão densa de, perfis fisionômicos e traços psicoló-
foram rapidamente marcadas por todo o Sul. Naturalmente
gicos peculiares, que lhes é humanamente impossível assimi-
as rádios também os contataram para apresentações e o que
lá-los. Daí sua tendência para concentrar sua memória de
fora até então um grande sucesso transformou-se numa fe-
referência em grupos limitados de pessoas, mais ou menos
bre, um autêntico delírio coletivo. Essa demanda
flutuantes, em que algumas lembranças podem ser abando- excitada
atraiu outro grupo nordestino, A Voz do Sertão, encabeçado
nadas e outras adquiridas, desde que seja mantido um reper-
pelo cantor Minoma Carneiro e o violonista Romualdo Mi-
tório ao mesmo tempo limitado e bem discriminado de figu-
randa. À vibração do público só ampliava e se multiplicava.!16
ras-chaves, imediatamente reconhecíveis como familiares.
Mas agora as gravadoras e emissoras de rádio já sabiam o
- Com o esgarçamento das famílias extensivas, dos laços
caminho. Não foi o rádio que lançou a música popular, mas
de compadrio e das relações de vizinhança na situação pecu-
e o contrário. As coisas estando nesse pé, deu-se o lançamento
liar das grandes cidades, é muito mais nos ícones exibidos
de Carmen Miranda pela gravadora Victor, sob as expressas
repetidos à saciedade pelos meios de comunicação que as
recomendações de seu diretor artístico, Rogério Guimarães:
pessoas tendem a definir essa situação de reconhecimento
“A senhorita somente cantará música brasileira. Sei que tem
familiar. O fato de eles não serem de carne e osso, mas repro-
cantado alguns tangos, mas a Victor quer lançar músicas bra-
duções fotográficas, imagens de cinema ou vozes de disco e
sileiras típicas. Não revelará também a sua origem portugue-
rádio só ajuda nesse processo, já que a imagem fica resolvida
sa, para não prejudicar a imagem brasileira dos discos”,1?
num clichê visual ou auditivo e a estrutura psicológica num
Depois de iniciar com o repertório clássico, alguns bole-
personagem típico, o que os torna por isso imensamente
ros e tangos argentinos e com os ritmos americanos, o jazz,
mais fáceis de assimilar do que quaisquer pessoas concretas,
foxtrote, one-step, a indústria fonográfica local já havia des-
com suas contradições, complexidades de comportamento,
coberto e prosperava com a música popular, com destaque
mudanças constantes ditadas pelo humor, saúde ou idade.
até então para os maxixes e sambas cariocas, as marchinhas
Nada a estranhar portanto se as pessoas se sentem mais pró-
de Carnaval, além de algumas toadas, descantes e canções
ximas e emocionalmente ligadas ao Águia Solitária, ao astro
i- sertanejas paulistas. Mas foi quando as gravadoras se cruza-
de cinema, às garotas do rádio ou ao líder político carismát
ram com o potencial do rádio na difusão da música popular
co do que a um familiar distante ou ao vizinho do outro lado
que a grande mágica se deu. Essa conjunção originou o que
da rua ou aquele do apartamento 1212 do 12º andar.
Renato Murce denominou de “a era de ouro da música popu-
Outra revelação interessante de Renato Murce, a qual con-
lar brasileira, principalmente no gênero carnavalesco”118 Na-
tribuiu para que as emissoras de rádio descobrissem seu po-
turalmente nessa nova sociedade centrada no culto da ação,
tencial de impacto junto ao público, foi o seu encontro casual
em paralelo ao grande desenvolvimento dos esportes há um
com a música certa. Entre 1928 e 1929 veio em excursão para
surto das danças. Não qualquer tipo de dança e não a dança
o Rio um conjunto pernambucano, com um repertório espe- no seu sentido tradicional de entretenimento social cortês,
cializado de ritmos nordestinos, os Turunas da Mauricéia,
praticada em grupos maiores ou menores, movendo-se em
tendo como destaques o extraordinário cantor e compositor figurações coordenadas e gestos convencionais delicados. A
Augusto Calheiros, apelidado muito a propósito de Patativa
dança que surge para empolgar o panorama cultural do sécu-
do Norte, e o genial violonista cego Manoel de Lima, entre
lo xx é baseada no ritmo pulsante, sincopado, frenético, de
vários outros músicos notáveis. Eles tocavam uma grande
base negra, cigana ou latina e o que é buscado nela é um
variedade de ritmos, praticamente desconhecidos do público
estado de completo abandono, excitação e euforia extática.
carioca, cocos, emboladas, trizadas, baiões, martelos... Ti-
Foi essa dança que assustou Machado, que a via invadir a
nham uma série de apresentações marcadas para O Teatro
cena cultural com perplexidade e alarme. Referindo-se a ela,
Lírico, no largo da Carioca, comq uma curiosidade e só. Mas
ele perdia seu proverbial humor e esbravejava “a arte da dan-
'o sucesso foi tão retumbante, as platéias ficaram de tal modo
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 595
594 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

chado voltava à carga, dessa vez recuperando o humor: “Que


belo-dia para deixar aqui uma coluna em branco! Ninguém
hoje quer ler crônicas [...] O carnaval é o momento histórico
do ano. Paixões, interesses, mazelas, tristezas, tudo pega em si
e vai viver em outra parte”, Ele finaliza a crônica que queria
ter deixado em branco, descrevendo a imagem que fazia da
folia e dos foliões com base em uma antiga peça sobre a
entronização de Baco: “As damas decentemente vestidas de
calças de seda tão justinhas que pareciam ser as próprias per-
nas em carne e osso, mandavam o pé aos narizes dos parcei-
67. A descoberta quase acidental ros. Os parceiros, com igual brio e ginástica, faziam a mesma
dos ritmos nordestinos constituiu coisa aos narizes das damas, a orquestra engrossava, o povo
um sucesso de amplas proporções, aplaudia, a princípio louco, depois louco furioso, até que
ensejando a primeira grande
tudo acabava em delírio universal, dos pés, das mãos, dos
repercussão em massa do rádio
no Rio de Janeiro. (Mendez, trombones [...] Evoé! Momus est roi!”2t Mas se Machado
Os Turunas Pernambucanos, 1922) ps po tinha suas reservas, um outro poeta incorporou completa- 68. De raiz negra e latina, a música
mente a explosão feérica do Carnaval. Eis alguns trechos do de ritmo sincopado, base das danças
ça não edifica, apenas destrói e altera. Com ela o anarquismo sublime “Bacanal” de Manuel Bandeira: sensuais, era o esteio da cultura
dispensa todas as artes, não se fazendo mais que ação violen- popular carioca; a elite considerava
ta e arrasadora. Para que livros?”!1º Quero beber! cantar asneiras essas danças grosseiras e imorais.
Há um consenso entre vários pesquisadores quanto ao No esto brutal das bebedeiras (Mendez, Fazendo miséria, 1900)
Que tudo emborca e faz em caco...
fato de que foi a atmosfera tensa, gerada pela Primeira Guer-
ra Mundial, que deu o impulso decisivo para a dança baseada
Evoé Baco!
em ritmos frenéticos tornar-se uma das atividades simbólicas
Lá se me parte a alma levada
preponderantes da vida social.!?º João do Rio testemunha no
como a dança centralizava as No torvelim da mascarada,
mesmo sentido, observando
A gargalhar em doudo assomo...
atividades no Grande Hotel: “[...] a orquestra toca os mes-
Evoé Momo! [...]
mos tangos e maxixes que temos a angústia de ouvir, há pelo
em
menos cinco anos, em Paris, Londres, em Odessa, no Rio,
Buenos Aires, por toda parte onde se tem a idéia da civiliza-
de
ção. A iconografia da civilização, antes da guerra, deixara
ser a figura de uma dama romana vestida com os aim dutos
do progresso. A iconografia da civilização era um sujeito de
69. A dança se torna o fôco central
cabeleira arranhando tangos ao violino”! Não por acaso, O das artes cênicas ao redor
maior sucesso daquela temporada no Grande Hotel era um da Primeira Guerra Mundial,
novo passo chamado de a “dança das trincheiras » que segun- representando a superação
do o comentário de uma das hóspedes “é de primeira ordem da cultura calcada na palavra
por uma nova civilização baseada
e escandaliza mesmo”!2 nos valores do corpo, da ação,
Machado percebeu o quanto a coisa pegou forte aqui ao dos movimentos de coordenação
concluir: “[...] nós amamos a dança sobre todas as coisas, € coletiva, bem como na articulação
ao nosso par como a nós mesmos"? Mas se à dança se tor- da realidade como ritual de comoção
nou uma paixão, seu clímax era sem dúvida o Carnaval. Ma- e catarse. (Sem título, 1922)
596 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 597

Mascara de dominó

Serpantina

identidade e se incorpore na dimensão maior da multidão 71. À polícia saiu à cata dos
enlouquecida. Se alguém que o conhece permanecer perto mascarados e foliões descomedidos,
dele, ele não pode deixar de se reconhecer no olhar que o dispostos a desafiar o rigor da lei,
O Carnaval popular se converteu
identifica, Daí a necessidade da fantasia e das máscaras como
70. O Carnaval foi sanitizado num melancólico espetáculo
para adquirir ares de festa
recurso auxiliar de despersonalização. O efeito do Carnaval é de caça às bruxas... e aos diabos.
civilizada, ao estilo do Carnaval dissolver a consciência individual na pulsação sensual dos (Calixto Cordeiro, Os caiporas,
de Veneza, com Pierrôs vetustos, corpos em comunicação por meio do ritmo. É apenas estan- 1903)
Arlequins cerimoniosos do sozinho, portanto, que se pode viver a emoção do coletivo.
e Colombinas comedidas. (R. Cs
Nesse sentido Machado tem toda a razão em falar em anar-
Sábado Gordo, 1903)
quismo e Bandeira em vislumbrar a sociedade desfeita em
cacos. À loucura de todos só pode nascer da loucura indivi-
A Lira etérea, a grande Liral...
dual'de cada um. Isso faz do Carnaval uma hora da verdade,
Por que eu extático desfira
ninguém mais precisa manter a personalidade construída
Em seu louvor versos obscenos, 72. As tradicionais brincadeiras
para contemplar as pressões, demandas e convenções sociais.
Evoé Vênus! e máscaras de Carnaval,
Viver em consonância com esse potencial resguardado, por-
em especial a grande favorita,
Manuel Bandeira, porque tinha a paixão do Carnaval, tanto, significa viver “se guardando para quando o Carnaval de diabo, foram reinterpretadas
interpreta com propriedade a perspectiva pela qual a magia chegar”, como bem intuiu essa outra alma foliã, Chico Buar- como armas, instrumentos
da folia se manifesta e que, paradoxalmente, é a individual. É que de Holanda. anti-sociais e ameaças à ordem
preciso que o folião penetre, se integre e se entregue a uma Mas se havia uma prática cultural mais forte ainda que a pública, sendo postas fora da lei
(A, D., Um pequeno arsenal
massa de estranhos para que ele perca as referências da sua dança, a música e o esporte, era sem dúvida o cinema, que
carnavalesco, s. d.)
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 599
598 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

“AS
em ão ngm

74. O luxo, os ares de futuro,


as linhas arrojadas, geométricas,
repletas de alusões à eficácia
tecnológica, tornaram
73. O cinema de Hollywood criou os cinemas os principais templos
e difundiu, com a força onde se cultuava a modernidade,
de um dogma, o padrão de beleza numa atmosfera de sonho e magia.
hipnótica das estrelas de cinema. (Cine Roxy, Rio de Janeiro, 1939)
(Madge Evans, 1934)
Renato Mur- nentes, suntuosas, edificadas segundo o código modernista e
era uma soma disso tudo e muito mais. Se para ousado do art déco. Ir ao cinema pelo menos uma vez por
a brasileira, para
ce os anos 30 foram a era de ouro da músic semana, vestido com a melhor roupa, tornou-se uma obriga-
período po-
o mundo como um todo, Brasil incluído, esse ção para garantir a condição de moderno e manter o reco-
era do cinema, As
deria ser igualmente conhecido como a nhecimento social. E se cinema era Hollywood, Hollywood
indúst ria cine-
razões são muitas. Com a Primeira Guerra a eram os astros e estrelas, que era preciso conhecer intima-
latino-
matográfica européia entrou em colapso e nos países mente, na sua filmografia completa e nos detalhes da vida
ide e equi-
americanos não havia mais como comprar celuló pessoal, amplamente divulgados pelos estúdios por meio de
s Unidos
pamentos baratos do mercado europeu. Os Estado revistas especializadas. E era inevitável apaixonar-se por eles,
ólio vir-
herdaram tudo, construindo uma situação de monop eventualmente escrevendo cartas para as revistas, para os es-
ão em todo o mundo.
tual de produção, distribuição e exibiç túdios ou para os milhares de fás-clubes. Entre os solteiros,
enorme-
Quando surgiram os filmes falados, aumentando principalmente as moças, era prática habitual colecionar fo-
m e
mente os custos de produção, os pequenos estúdios falira tos dos astros favoritos, ampla e generosamente distribuídas
Ali foi
só sobraram as grandes corporações de Hollywood. pelos estúdios, e tê-las espalhadas pelas paredes da casa ou do
racionalizava, oti-
desenvolvido o sistema de estúdios, que quarto de aluguel. Era inevitável. Até poetas eruditos, sofisti-
€ foi criada
mizava e reduzia significativamente os custos cados e sensíveis, como Carlos Drummond, se apaixonavam
ciona l, E) star system. Se
também a sua contrapartida promo perdidamente pelas estrelas, como ele confessa com nostalgia
era
os anos 30 foram portanto a era do cinema, cinema nessa no poema “Os 27 filmes de Greta Garbo”, dos quais ele assis-
quenc ias dessa
significava estritamente Hollywood. As conse tiu a 24, várias vezes cada:
o
situação mudaram a história do mundo.
ão
Desde inícios dos anos 20, impulsionado pela situaç
Agora estou sozinho com a memória
O mer- de que um dia, não importa em sonho,
privilegiada da indústria cinematográfica americana,
u rapid ament e e as salas de cine- imaginei, maquiei, vesti, amei Greta Garbo.
cado de distribuição cresce
impo-
ma se multiplicaram por toda parte, se tornando mais
E esse dia durou 15 anos.
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO
+ HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 * 60]

"Se
600

E nada se passou além do sonho


diante do qual, em torno ao qual, silencioso,
fatalizado,
iiija
amável estado
fui apenas voyeur!” “uh
PCA
Vinicius de Moraes tem um poema chamado “História
passional, Hollywood, California” no qual ele se coloca numa com o Novo e
posição em que toda a sua vida é reinterpretada como uma PERFUMADÍSSIMO
sucessão de clichês hollywoodianos. O jeito de sentar, de diri- Sabonete Lever
gir o carro, de acender o cigarro, de olhar a moça de lado, de Elimbec Teylor sabe. pols ela também ui
namorar ao pôr-do-sol, de segurar um copo, de implicar com o saboneis de beleza das estréia Luma

a moça, de ser esnobado por ela, de comer fast-food, de se


matavilha so seu alcance, o povo Lever envolve
vock em seu remúmico, imebsiance perfume,
torsan mais adurável,
do-scais cxtlvsose,
dirigir ao garçom, as roupas que ela veste, O jogo de boliche, esta noite mesmo! De ulvónhas pucesa
em limds exbelegem ross, vem sempre com

o meio sorriso sarcástico, a mudança repentina de humor, o tua famosa espaima rápida + econômica.
Não hesite: não bb siboveta mais

truque de acender o isqueiro num golpe só, tudo vem da tela fina, luxuoso « perfumado do que

do cinema. Para ele, sua vida não resulta de uma interação


com as pessoas imediatamente ao seu redor, mas do trabalho
coletivo de uma equipe desconhecida de técnicos do outro
lado do continente. Não é um exagero. O cinema hollywoo-
diano é uma arte complexa, um somatório de técnicas revo-
lucionárias de comunicação visual, como o close-up, os efei-
tos emocionais dos recursos de edição, cadência, ritmo,
iluminação, som, música, expressão facial, corporal, os en-
75. O cinema de Hollywood
cantos da juventude, os movimentos coreográficos, atléticos, e o star system se tornaram
a maquiagem, os penteados, as roupas e fantasias, as peças € a grande alavanca promotora
figuras de estilo e essa força de poder tão esmagador quanto de novos hábitos de consumo
misterioso que é o sex-appeal, tudo isso ampliado na tela e de estilos de vida identificados
com o American way of life,
colossal, irradiando seu hipnótico brilho prateado no escuro
(Elizabeth Taylor anunciando
do teatro. O que Hollywood levou às últimas consequências
foi a descoberta, em grande parte haurida dos surrealistas e USADO POR 9 ENTRE 10 ESTRÊLAS DO CINEMA | "|
“Seja mais adorável esta noite”
— Sabonete Lever, 1951)
expressionistas que fugidos da Europa nos anos 30 iriam en-
contrar trabalho na Califórnia, de que o cinema é uma arte pude testemunhar que ó filme foi de fato um tremendo su-
feita para os olhos e o subconsciente, não para a razão ou a cesso no Rio de Janeiro, pois em menos de uma semana todas
explanação verbal. É por isso que o cinema está mais próxi- as lindas mulatas e negras caprichosas que saem de suas casas
mo da mitologia que da narrativa ou da história, com sua ao pôr-do-sol para passear na avenida Central, se exibindo e
estrutura orgânica e base verbal. O cinema não explica nem gozando da brisa fresca vinda da orla do mar, na praia do
persuade, ele seduz. O poeta franco-suíço Blaise Cendrars, Flamengo, haviam descolorido seu cabelo e maquiado o ros-
um dos criadores da poesia cubista e um dos mais importan- to com tons cor-de-rosa”128
tes artistas modernos, comenta como age esse “efeito Hol- O mesmo fenômeno já havia sido detectado por João do
lywood”: “Eu estava no Brasil na época em que 0 filme Plati- Rio, quando ao visitar a sede do grupo carnavalesco Rei de
ne Blonde foi exibido [em fins dos anos 20], de forma que Ouros, descobriu, para sua surpresa, que a porta-bandeira
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 603
602 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

“uma mulatinha com cabelo à Cleo de Mérode”.: Nunca ser baratos, resistentes, multicoloridos e democratizar o aces-
era
um único sistema cultural teve tanto impacto e exerceu efeito so a um enorme acervo de bens, utilitários, eletrodomésticos,
tão profundo na mudança do comportamento e dos padrões móveis, estofados, tapetes e carpetes para grupos sociais que
de gosto e consumo de populações por todo o mundo, como não teriam condições de adquirir madeiras nobres, cristais,
o cinema de Hollywood no seu apogeu. Foi assistindo a essa porcelanas, veludos, sedas, tapeçarias e tecidos finos. As pró-
metamorfose exótica nas ruas do Rio de Janeiro que o poeta prias pesquisas das indústrias americanas relativas, por
Blaise Cendrars decidiu viajar para a Califórnia e entender exemplo, à racionalização do espaço e das atividades da cozi-
como funcionava a maior máquina de sonhos jamais supos- nha, produzindo o arranjo tornado clássico do fogão, armá-
ta, pelo seu poder e eficácia, por qualquer cientista, poeta ou rios embutidos, geladeira, freezer, pia multifuncional e mesa
político. É por causa desse novo poder que ele iria se referir a acabavam se universalizando por meio do showroom da tela
Hollywood como “a Meca”, “a nova Bizâncio” ou “a Babilônia do cinema.!»º O mesmo vale para a convenção das duas pol-
renascida”, Naturalmente os mesmos técnicos de Hollywood tronas, o sofá, a mesa de centro, o abajur, a televisão e o vaso
foram rápidos em perceber como o glamour dos astros do de antúrio ao lado, para o arranjo de todas as salas de estar.
cinema se transmitia diretamente para tudo o que estivesse Assim para os dormitórios, os quartos das crianças, as gara-
ao seu redor, o que eles vestiam, o que tocavam e aquilo gens etc. As casas passam a ser basicamente iguais, as pessoas
sobre o que falavam. Em primeiro lugar, o que calava fundo executam basicamente os mesmos movimentos durante as
nas platéias era a beleza mirífica daqueles seres diáfanos, fei- mesmas rotinas e se parecem elas mesmas muito umas com
tos de maquiagem, coiffure, luz e close-up. O conjunto dos as outras. A televisão viria completar e dar o toque final a
recursos desenvolvidos para as finalidades técnicas das filma- esse processo iniciado pelo cinema, invadindo e comandando
gens passa a ser assim introduzido no mercado, sugerindo a a vida das pessoas dentro do próprio lar e organizando o
possibilidade de as pessoas manipularem suas próprias apa- ritmo e as atividades das famílias pelo fluxo variado da pro-
rências para se assemelharem aos deuses da tela. O mercado gramação e dos intervalos comerciais.!!
será invadido de xampus, condicionadores, bases, ruge, rímel, Além da televisão, outra fonte que se beneficiou da ero-
lápis, sombras, batons, um enorme repertório de cortes, pen- tização dos objetos generalizada pelo cinema foi a publicida-
teados e permanentes, tinturas, cílios, unhas postiças, e natu- de. Os objetos passaram a ser alvo do mesmo culto fetichista
ralmente o “sabonete das estrelas de cinema”. As cabeleireiras, que a imagem dos astros e estrelas, e era muito comum os
barbeiros, modistas, costureiras, chapeleiros, alfaiates, acu- estúdios reforçarem essa associação, para além das roupas, |
jóias e adereços, distribuindo fotos de seus contratados ao
i

mulavam pilhas de revistas Cinelândia em suas lojas e ateliês |

para facilitar as decisões de seus clientes. lado de telefones, motocicletas, discos e aparelhos sonoros,
Os cenários passam também a ditar os estilos, objetos e televisores, carros, móveis e ambientes com design moderno,
arranjos obrigatórios para os interiores das casas. Nos perío- além de paisagens, hotéis e locações turísticas. O objeto do
dos de prosperidade e grande diversificação de consumo, desejo se torna inseparável do desejo do objeto e um pode
como após a Segunda Guerra, o cinema se tornou a vitrine suprir simbolicamente a ausência do outro. O ato do consu-
por excelênciada exibição e glamourização dos novos mate- mo se torna assim, ele próprio, carregado de uma energia
riais, objetos utilitários e equipamentos de conforto e decora- sensual, ao mesmo tempo fetichista e voyeurista, marcado
ção doméstica. Ele é a fonte irradiadora dos modelos que se pelo gozo de desfilar entre os artigos, ver bem de perto e
convertem numa ampla demanda, atendida pela invasão tocar os objetos, eventualmente possuí-los e exibi-los a ou-
crescente dos plásticos, polímeros, náilon, raiom, banlon, tros olhos cobiçosos. O poeta Carlos Drummond fez uma
bouclê, blue jeans, acrílico, acetatos, multirresinas, baquelita, ode linda, assinalando essa estranha volúpia do consumo
fórmicas, courvin, linóleos, napas etc. Materiais, todos esses, pela perspectiva de cinco manequins de loja:
que tinham a imensa vantagem de ser produzidos em massa,
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 605
604 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

nesse tempo de mudanças aceleradas é a do estiolamento das


tradições e o afrouxamento das relações familiares, comuni-
tárias e interpessoais de uma forma geral. As pressões de to-
dos os lados concorrem para um reforço do individualismo,
do isolamento e das relações frias entre papéis sociais mais do
que a troca de afetos entre pessoas. Conforme grita Drum-
mond amargurado,
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América. [...]

Esta cidade do Rio!


Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Cinco estátuas recamadas de verde
Estou cercado de olhos,
na loja, pela manhã, aguardam o acontecimento. [...]
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
Sabem que Vênus cedo ou tarde,
o que há é apenas a noite
provavelmente tarde e sem pintura,
e uma espantosa solidão.!33
chegará.
Chega, e o simples vulto Nessas condições, os rituais e celebrações mais relevantes
aciona as esculturas. passam a ser aqueles que consagram o indivíduo ou relações
pessoais imediatas, como o aniversário, que diz respeito a ca-
Ao cintilar de vitrinas e escaninhos, da um, o réveillon, que é uma festa propiciatória do sucesso e
objetos deixam de ser inanimados. prosperidade individuais, o casamento, os aniversários de ca-
Antes de chegar à pele rósea, samento e os dias das mães, dos pais, dos namorados, das
a pulseira cinge no ar o braço imaginário. crianças etc. E todos eles estão centrados na troca de presen-
O enfeite ocioso ganha majestade tes ou de cartões. Ou seja, indispostas ou incapazes de se
76, 77. As próprias residências, própria de divinos atributos. tocarem, de se falarem abrindo o coração, de transmitirem
a distribuição dos espaços,
Tudo que a nudez torna mais bela carinho pela vibração emocional ou pelo contato físico, as
o mobiliário e rotinas domésticas
acende faíscas no desejo. E pessoas os substituem cada vez thais pelos objetos, na convic-
foram fortemente influenciados
pelos filmes de Hollywood. Com As estátuas sabem disto e propiciam ção, é claro, de que quem recebe também prefere a comuni-
a redução do espaço nas construções a cada centímetro de carne cação pela mercadoria. Drummond comentou comicamente
verticais, os apartamentos compactos uma satisfação de luxo erótico."? essa inversão pela qual os objetos adquiriram autonomia e,
exigem mobiliário mínimo,
Uma decorrência curiosa dessa magnificação e animação
em vez de serem meios para os fins determinados pelas pes-
caracterizado pela funcionalidade,
oas, se tornaram o núcleo simbólico para o interior do qual
e recursos que criem a ilusão sensual dos objetos é o modo como eles passam a operar
as criaturas são dragadas. O poeta parte de uma metonímia,
de ampliação espacial. (76. Sem
como sucedâneos da comunicação e do contato afetivo entre
título, 1939; 77. Um apartamento “O bolo”, que representa a festa do consumo:
mínimo, 1937)
as pessoas. Como vimos, a tendência social predominante

ORIGINAL |
E]

t
| + 607
3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO
606 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL
O musical era centrado no mito do par amoroso. Esse
Na mesa interminável comíamos o bolo
mito vem da tradição romântica e mais além ainda tem suas
interminável
raízes remotas nos rituais do amor cortês e na lenda da prin-
e de súbito O bolo nos comeu. cesa longínqua, difundidos na Idade Média tardia e repletos
Vimo-nos mastigados, deglutidos de conteúdo místicos O que nos interessa, porém, é que o
pela boca de esponja. cinema americano vai resgatá-lo das suas versões diluídas
nos clichês folhetinescos, vai modificá-lo atualizando-o e
No interior da massa não sabemos transformando-o num veículo para suas próprias finalidades.
o que nos acontece mas lá fora Nessa versão, o casal amoroso se torna uma entidade autôno-
o bolo interminável ma, que existe num contexto auto-referido, em que tudo o
na interminável mesa a que preside que acontece ao seu redor só assume significado em virtude
sente falta de nós do desdobramento cômico-dramático da sua relação amo-
f gula saudosa.º* rosa. Nesse sentido é como se eles existissem à parte da socie-
a, mais
Curiosamente ou não, essa imagem de uma pesso dade, tendo como único nexo explicativo de seu comporta-
sumários, sain mento e das demais pessoas que circulam em seu meio a sua
precisamente de uma garota linda, em trajes
a (est é am
do de dentro de um bolo gigantesco no clímax ia,
ligação passional intensa. Eles assim se indispõem sucessiva-
clichê hollywoodiano. Mais do que a erotização a a o mente contra seus pais e familiares, contra seus amigos e
o, da celebração circunstantes, contra as hierarquias e convenções sociais do-
ele represent a a sensualização do aniversári
do indivíduo porta nto. Era uma cena frequ ente nos filmes minantes, enfim, e que, de uma forma ou outra, interferem
se sabe foram o carro-chefe da nesse fim absoluto que é a consumação da sua relação amo-
musicais. Esses musicais com o
rafia americana dos ano s 30 até mead os dos anos rosa. Assim sendo, o par amoroso não realiza seu destino
i
suces so era estrondoso ficcional inserido numa sociedade, mas voltados um para o
50. a era dourada do cinema. Seu
ssiva s da e a outro e ambos investindo contra a sociedade que lhes é hos-
porque fundiam as linguagens mais expre
ut, a coorder so til. Paradoxalmente portanto, o amor se torna um fermento
modernidade, o esporte, a dança, 0 glamo
Sua fonte origin anti-social. Vista de uma perspectiva, essa representação su-
coletiva e o primado do destino individual.
e extras A ca gere a emancipação das noções tradicionais de hierarquia e
eram as grandes apoteoses cênicas de luxo
do pro y a autoridade; de outra, a inserção na lógica do individualismo
dos musicais da Broadway. O gênio por trás
é é ce o) : e da exacerbação da expectativa de realização passional, com
Busby Berkeley, com uma longa experiencia
Se PA toda a carga de ansiedades e frustrações que ela comporta.
dança nos teatros da Broadway antes que Samue
s a concep-
levasse para Hollywood. Ali ele se exceder ma
Outro dos efeitos que essa construção ficcional tem é o
ões Sjo de compor o casal como uma unidade básica de percepção
ção de figurações caleidoscópicas de multt
es pr im e do mundo ao seu redor, como se eles conformassem uma
compostos em formações complexas, grand
com seu: tar única individualidade bipolarizada. O casal se torna assim o
ratórias, padrões geométricos intrincados,
os trajes sumários e gran É pen dios único esteio solidário num meio que não se constitui mais
nos oscilando entre
o o ses numa sociedade propriamente, mas muito mais numa miría-
tules, sedas, paetês, tecidos dourados e pratea
ligas salto A de de individualidades em competição agressiva e constante.
braceletes, pulseiras, tiaras, corpetes e cintas
desenca aa Isso poderia ser assustador e fonte de angústia, mas, hélas!,
e bicos finos. Era o período da grande recessão eles dançam, cantam, sapateiam, se abraçam, pulam, flutuam
do cinema era j
pela crise de 1929. O que as pessoas queriam no ar e os problemas se desvanecem. O público assiste, chora,
que o prazer existi
as mais delirantes fantasias, a certeza de ri, sapateia discretamente no assoalho do cinema, canta jun-
era possível desejá-lo. to, depois sai, compra o disco e ouve aquela música mais
608 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO + 609

milhares de vezes. Afinal, ao cinema, ou se vai sozinho, ou se novos, produtos novos, mais atualizados, mais versáteis, mais
vai em casal. Quando a luz apaga e nada mais se vê além da identificadores da individualidade do jovem casal em relação
tela prateada, ou se fica isolado na poltrona, ou, se se tem a à geração de seus pais ou mesmo de seus irmãos mais velhos,
suprema felicidade, há um corpo ao lado para afagar. Nesse rearranjo das coisas, a moça é sobretudo a porta-
Há portanto vários sentidos na frase quando as pessoas dora das fantasias relativas ao conforto, ao bem-estar e à de-
dizem que amam o cinema. Ele é, afinal de contas, uma má- coração da casa, enquanto o rapaz fica no papel do provedor
quina de simbolização e difusão do amor, à sua maneira. E é e do provador. É no sentido dessa representação estereotipa-
claro que a partir do cinema e seus desdobramentos pelo star da e desequilibrada dos papéis sexuais que atuam as chama-
system, como vimos, essa forma simbólica transborda para a das revistas femininas, o grosso da publicidade e as diferentes
publicidade, as histórias em quadrinhos, as fotonovelas, as formas de ficção que circulam na cultura massificada. É as-
radionovelas, os livros de bolso, as canções populares, as re- sim com os brinquedos também, ao menos se observarmos
vistas de fofocas, as fórmulas pelas quais a imprensa modela pelo viés da campeã mundial e indisputável de vendas, a bo-
as informações sobre as pessoas e suas vidas, chegando aos neca Barbie.!:? Um dos slogans de promoção da célebre cria-
olhos, ouvidos, mentes e corações de todos, por toda parte. tura é “Eu quero ser como a Barbie, ela tem tudo!” De fato
No limite, o esteio da felicidade em vida é a realização amo- tem, além de roupas, chapéus, carros, casa, móveis, os eletro-
rosa. Obtê-la é o objetivo primordial, a obsessão dominante. domésticos mais modernos e uma decoração doméstica toda
Em caso de dúvida, não se hesite em tentar novamente. Des- cor-de-rosa como o seu baby-doll. Ela também possui o Ken
quite, divórcio e flerte, com todo o seu aparato de bares, que, com o seu robe de chambre azul, tem como único senti-
salões e boates, além dos consegiuentes hotéis, drive-ins e mo- do da sua existência olhar e admirar os apetrechos, as modas,
téis, se incorporam às demandas dos direitos fundamentais o corpo bronzeado, anoréxico e a eterna juventude da sua
do cidadão e da cidadã. No entretempo de um amor ao ou- Barbie. Enfim, eles são de plástico, portanto eles se enten-
tro, o estágio obrigatório pelos serviços esotéricos ou o divã dem. E como seu exemplo sugere, caso alguém queira ser
do analista. Encontrar um interlocutor para as ansiedades, feliz como eles, pode sempre recorrer à intervenção provi-
inseguranças e fantasias individuais se torna um valor de dencial da cirurgia plástica também.
mercado. Valor caro aliás, já que se trata de um mercado Quanto às composições cênicas mirabolantes dos filmes
inflacionário, a luta pela felicidade imaginada fica sempre musicais, o visual de luxo e esplendor dos figurinos e a at-
muito aquém das ofertas reais e cada qual está por demais mosfera mista de sonho, fantasia e mitos modernos/mitos
preocupado com a própria realização para se dispor a cogitar americanos de suas produções, em meio ao vasto âmbito de
na de outros. nm sua influência, eles tiveram também um papel significativo,
Ainda outro efeito interessante dessa ênfase nas peripé- no Brasil e a partir do Rio de Janeiro, na configuração da
cias do par romântico é o seu impacto sobre O consumo. Num estética do Carnaval em geral e das escolas de samba em
mercado cuja competitividade obriga à inovação, variedade especial.':º Muito colaboraram para essa fertilização cruzada,
e sofisticação constante dos produtos, o casal jovem é o alvo tanto o desenvolvimento da forma paródica da chanchada!s
ideal. É fundamental para a indústria de bens de consumo, quanto o apoio que o Estado varguista passou a dar às escolas
usando dos recursos prodigiosos da publicidade, quebrar os de samba, com vistas a fazer delas uma alavanca na difusão
elos de família e a cadeia das gerações. “Você ainda lava o de seu ideário nacionalista, calcado numa versão de cultura
chão como a vovô?” ou “Não perca mais tempo cortando popular amalgamada como pastiche populista. Não por aca-
legumes como a mamãe!” ou “Se seu pai não teve uma conta so essa fusão de influências e intenções ocorreu durante 0
bancária, então ele nunca soube o que são os anos dourados namoro do governo americano com as ditaduras latino-ame-
da juventude? A idéia é que a vida deve começar do zero para ricanas, durante o contexto da Segunda Guerra, conhecido
cada casal que inicia a vida em comum: casa nova, hábitos como a “política de boa vizinhança”, conduzida pela tripla via
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 61]
610 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

se a oposição não se acabou, algo com certeza estava mudan-


dos investimentos econômicos, da diplomacia e da glamouri-
do e é no bojo desse curso de mudança que se abrem novos
zação da imagem da América Latina no cinema de Hol-
espaços para a negociação. Que espécie de mudança era essa?
Iywood.!º É quando o Pato Donald vem ao Rio e conhece o
Assis Valente nos dá uma idéia do que estava se passando
Zé Carioca.!!
com a marchinha ironicamente denominada “Good-Bye”:
O Zé Carioca, como se sabe, morava, e mora ainda, com
sua camisa listrada, sua palheta, pandeiro e violão, numa fa- [...] Não é mais boa noite, nem bom dia
vela num dos morros da cidade do Rio de Janeiro. Era de Só se fala “good-morning” “good-nigh?”
onde a música, o maxixe, o samba, o choro e a marchinha Já se desprezou o lampião de querosene
vinham também. Mas essa era a área em que se instalara a Lá no morro só se usa a luz da Light
população pobre que fora excluída da remodelação da cida- Oh! Yes.143
de, vivendo precariamente em suas malocas, sem qualquer
infra-estrutura nem serviços básicos e com escassa probabili-
A modernidade, afinal de contas, chegava diferente, em
proporções imensamente desiguais, mas atingia a todos. O
dade de conseguir emprego, ainda que muito mal pago. Mas,
então, o que é que esse astro, entre os mais famosos de Hol-
que cada um faria com o que obtivesse era um novo fator
aleatório e estranhamente imprevisível. Os perfis começam a
lywood, o Pato Donald, foi fazer lá? Bem, pode-se imaginar
que se ele fosse para o Copacabana Palace ou o Cassino da ficar enevoados e os papéis a se embaralhar. O fato é que as
Urca encontraria um ambiente muito parecido com o de Las populações excluídas aos poucos vão se apercebendo de que
Vegas e que ele já conhecia muito bem. Por outro lado, não é possível dispor de elementos dessa modernidade para refor-
foi tanto assim o Pato Donald que subiu, quanto foi o Zé çar as características de infixidez, jogo e reajustamentos cons-
Carioca que desceu. As coisas estavam mudando muito de- tantes, que sempre lhes garantiram maiores oportunidades
pressa e o que foi separado de modo radical no espaço, agora no confronto social, mas que precisamente as novas políticas
começava curiosamente a se aproximar nesse âmbito difuso e de controle, segregação e cerceamento das cidades planejadas
onipresente da cultura eletrificada. Custódio Mesquita e Ma- procuravam tolher. Havia portanto elementos nessa moder-
rio Lago registraram essa maré crescente da mudança por nidade que depunham contra, mas outros que poderiam ser
meio dessa figura ambígua, o Sambista da Cinelândia, que se aproveitados na sua gestão por melhores oportunidades e re-
exibe na área mais moderna do centro do Rio. Qualquer se- cursos. É claro que a percepção dessa situação é simetrica-
melhança com Zé Carioca é acaso histórico. mente oposta, dependendo da perspectiva em que se está.
Alguns vão reclamar daqueles que “não sabem o seu lugar”,
Sambista desce o morro outros vão se aproveitar para jamais ficar no lugar em que se
Vem pra Cinelândia, vem sambar desejaria que eles permanecessem. Almirante compôs num
A cidade já aceita o samba [estribilho] choro um retrato poético brilhante dessa nova situação, num
E na Cinelândia só se vê gente a cantar diálogo hilário com a Cozinheira Grã-Fina:
Hoje está tudo mudado e acabou-se a oposição Coz. — Faça o favor de me dizer
Escolas por todo lado, de pandeiro e violão se foi aqui que anunciaram precisar
de uma empregada como eu?
O morro já foi aclamado e com um sucesso colossal
E o samba já foi proclamado sinfonia nacional! Alm. — Foi! Foi aqui mesmo que se anunciou
precisar de cozinheira de forno e fogão...
Sinfonia nacional sem dúvida, mas que a oposição tenha
Que entenda de fato do seu métier
se acabado, só no sentido paródico em que os compositores
Que saiba fazer com perfeição...
imprimem comicidade ao seu otimismo em tom oficial. Mas
612 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 613

Coz. — O quê? A julgar por esse diálogo, como se vê, havia muito que o
Pato Donald poderia ter aprendido com o Zé Carioca. Se
Alm. — ...croquetes, empadas, cozido, ensopado compararmos no mesmo espírito os musicais cariocas e essa
peru recheado, tutu de feijão outra arte que de algum modo eles influenciaram, as escolas
Que acorde bem cedo e durma no aluguel de samba, podemos igualmente inferir coisas interessantes. A
Que seja asseada e que seja fiel estrutura do musical se baseia na perfeita, milimétrica coor-
Para evitar depois complicações denação de conjunto do coro, contrastando com a extrema
eu quero saber já as suas condições mobilidade e desprendimento da dança atlética do par ro-
máântico central. No caso das escolas de samba em particular
Coz. — As minhas condições agora eu vou dizer ou do Carnaval em geral, há também o aspecto da coordena-
Primeiramente aviso não quero saber ção de conjunto, como no caso das alas ou das coreografias
de lavar panelas e varrer cozinha alusivas. Mas simultaneamente se espera do sambista o seu
Não sou uma qualquer e guardo certa linha número particular, todos querem ver o gabarito do seu de-
E louca por cinema eu sou de natureza sempenho rítmico, da sua expressividade corporal, da sua
E gosto de um moreno que é um colosso vibração sensual. Nesse sentido, o musical é altamente estu-
Adoto o sistema da semana inglesa dado e suas performances obedecem a um rigor cronométri-
Aos sábados eu saio depois do almoço co e a uma geometria de deslocamento espacial tecnicamente
Sou empregada sindicalizada impecável. Já no Carnaval prevalecem aqueles elementos de
e quero férias, quero meus papéis esfacelamento e anarquia de que falavam Manuel Bandeira e
Não sou nada exigente, trezentos mil réis Machado de Assis,
vou querer de ordenado, pago adiantado Uma maneira de tentar entender a peculiaridade desse
Carnaval é avaliando uma palavra, já um tanto desgastada
Alm. — E... não sei ainda como é que se chama... mas que pela sua riqueza de significado merece ser sondada.
E será que a madama sabe fazer sala? Trata-se da palavra ginga ou gingado. A origem dessa palavra
é obscura, mas há duas bases principais para a sua interpreta-
Coz. — Pois decerto “seu” moço, isso nem se fala... ção. Uma é de origem náutica e se refere àqueles barcos com
um remo grande na popa, que um navegador move para um
Alm. — E vai ver que a “princesa” toca o seu piano lado ou para o outro quando quer mudar o rumo da embar-
cação. O remo se chama “ginga” e diz-se do navegador que
Coz. — E arranho o francês e o italiano está gingando ou, mais arcaicamente, ginglando.! A outra
acepção é muito mais promissora. Ela procede da capoeira e
Alm. — Então eu lhe faço uma contraproposta se refere à movimentação fundamental do capoeirista, que
balança seu corpo constantemente, de modo rítmico mas
Coz. — Pois seja “seu” moço, mas não tou disposta imprevisível, impedindo assim que o adversário tenha uma
a aceitar coisa que não satisfaça referência fixa para definir sua estratégia de ataque. O se-
gredo da eficácia do capoeirista, portanto, está na qualidade
Alm. — É mais negócio eu me casar consigo do seu gingado. Outro aspecto interessante é que o capoeiris-
que a senhora trabalha para mim de graça ta não se põe a gingar para precipitar a luta, mas ginga a
partir do momento em que está sob assédio. Ou seja, o efeito
Coz. — Ah! éra da ginga é desestabilizar a lógica combativa do oponente.
Nesse sentido a ginga é literalmente uma contrafação, um
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 615
614 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

mais alto de Hollywood.!*” Segundo seus próprios depoimen-


tos, desde pequena ela era extremamente fascinada por cine-
ma e só pensava em ser estrela, um pouco como a Cozinheira
de Almirante. Com o seu talento e esforço pessoal, assistindo
a filmes, estudando fotografias, pesquisando modas, ouvindo
discos, ela se tornou mestra em todo tipo de linguagem não
verbal: risos, olhares, gestos, poses, movimentação corporal,
coreografias, maquiagem, penteados, roupas, chapéus, adere-
ços, saltos altos, gritos, gemidos, sussurros, canto e encanto.
Quando chegou aos grandes veículos de comunicação já era
praticamente uma estrela completa. Não só entendeu a natu-
reza da cultura moderna, mas usava as tecnologias para o
máximo proveito de suas qualidades expressivas. Fez a paró-
dia do narcisismo da Broadway e de Hollywood. No limite foi
dragada pelo gigantismo incontrolável das engrenagens do
seu próprio sucesso. No ano seguinte, porém, o mundo teria
outra surpresa arrasadora desse encontro da modernidade
com a ginga, no desempenho da linha irresistível que arreba-
78. Graças às suas prodigiosas
habilidades vocais, rítmicas
tou a Copa de 1958 na Suécia: Didi, Garrincha e Pelé. Dois
e seu domínio de técnicas negros e um mulato, vindos da população “invisível” do país,
de comunicação não verbal, agora heróis no palco irradiado do mundo.
desenvolvidas pelo seu esforço Quando Carmen Miranda morreu, em 1957, as coisas já
pessoal em se tornar uma estrela estavam mudando de novo. Se o seu mundo foi o do cinema,
do rádio e do cinema, Carmen
a tragédia íntima da sua morte se tornou o primeiro grande
Miranda teria uma carreira
meteórica até se tornar o maior
espetáculo transmitido ao vivo pela televisão brasileira e vis-
salário da Broadway e Hollywood to simultaneamente por multidões por toda parte em que
e consumir-se nas gigantescas houvesse um receptor. Assim como, na Copa do Mundo de
engrenagens de seu próprio sucesso. 58, magotes de gentes se espremiam para assistir na telinha à
(Sem título, s. d.) retransmissão filmada dos jogos do Brasil. A televisão herda-
va do rádio e do cinema as funções de máquina de fazer
jogo, uma destreza desenvolvida em um nível instintivo que mitos, se aproveitando da maior intimidade com que dispu-
rouba ao adversário a sua capacidade de ação ao lhe tolher os taria o espaço doméstico e o cotidiano dos seus espectadores.
padrões usuais de percepção e representação. Ela tem suas Relembremos agora o tênue filete de fumaça do cocheiro que
técnicas, mas seu desempenho efetivo exige um estado de
penetrou o bonde em que viajava Machado de Assis no início
espírito, aquele dos que vêem o mundo pelo viés do que é
do nosso percurso, causando-lhe um desconfortável senti-
fluido, inconstante, vário e contingente.
mento de invasão da privacidade. Comparemos esse filete
Entre as muitas histórias pessoais, essa é uma possibilida-
esvoaçante com o facho de luz que partindo da tela da Tv
de para entender a trajetória desse meteoro moderno que foi
invade o interior das casas. Mais que isso, consideremos todo
Carmen Miranda. A pequena imigrante portuguesa que foi en-
o fluxo de informações, imagens, ícones, sons, ruídos, condi-
tregadora de marmitas na pensão de seu pai, foi costureira, foi
cionamentos, publicidade, discursos, notícias, filmes, novelas,
chapeleira até se tornar, num curtíssimo espaço de tempo,
comédias, debates, programas de auditório, esportes, gastro-
uma das mais disputadas estrelas da Broadway e o salário
616 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 617

“te... ae... E bend

“EVOLUÇÃO MARCANTE. o

“Homenigem da
«GravAre à indústria

80. A chegada da televisão. A caixa


de pandora tecnológica penetra
nos lares e libera suas cabeças
falantes, astros, novelas, noticiários
e as fabulosas, irresistíveis
garotas-propagandas, versões
ÁRTE LTDA modernizadas do tradicional
RES RANQUESDE irt, 98 homem-sanduíche. (Tv Invictus,
79. O dia em que o futebol foi nomia, curiosidades, turismo, entrevistas, fofocas, rádio, dis- c. 1952)
promovido a mágica: Brasil cos, redes, telefone, jornais, revistas, gibis, panfletos, formulá-
campeão mundial de futebol, rios, livros, almanaques, agendas, enciclopédias, listas, catálo- Abre mesmo sem rei.
na Suécia, em 1958. Na frente,
gos, cadastros, manuais, mala-direta e extratos bancários, que Abre, sozinho ou grei.
os mestres feiticeiros: Didi,
Garrincha e Pelé. (Seleção entram nos lares sem parar, pelos olhos, ouvidos, boca, tato e Não, não abras; à força
Brasileira — pose de grupo olfato todo dia e o dia todo. E o que entra no seu lar, entra no de intimar-te, repara:
completo, 1958) do vizinho, e no vizinho do vizinho e por todo lado pelos eu já te desventrei.!48
milhares de quilômetros quadrados das grandes conurbações
metropolitanas e pelas suas congêneres pelo mundo afora. O Desventrada mesmo ficou a cidade do Rio quando, em
1960, a capital federal foi transferida para a recém-inaugura-
que diria Machado agora? É difícil imaginar. Mas Carlos
da Brasília. De fato, a primeira Constituição, de 1891, já pre-
Drummond percebeu que hoje ninguém mais está só, nem
via que uma nova capital republicana deveria ser criada no
que queira nem que não queira. A invasão da privacidade
planalto de Goiás. Machado de Assis, revoltado contra o ato
não é mais uma possibilidade, uma negociação ou uma arbi-
que esbulhava a cidade de seu papel político e sua vocação
trariedade. Ela é uma condição histórica.
natural, atribuiu o decreto perverso à cupidez inconsegiiente
Abre em nome da lei. da nova elite arrivista. Absortos pelo carrossel financeiro das
Abre sem nome e lei. negociatas do Encilhamento, os “homens novos” ignoraram
618 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3
A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOS DO RIO * 619

o destino da cidade, deixando-o à deriva da sanha dos inte-


resses das facções políticas. “Sim, não houve movimento [...]
a própria cidade do Rio de Janeiro não reclamou nada, quan-
do se discutiu a Constituição, não levou aos pés do legislador
o seu passado, nem o seu presente, nem o seu provável futu-
ro, não examinou se as capitais são ou não obras da história,
não disse coisa nenhuma; comprou debêntures, que eram os
bichos de então”14º
Como bem percebeu Machado, a intenção das facções
era separar a política da história, a fim de tornar os círculos
dirigentes imunes à pressão crescente das tensões sociais. Era
um modo de privatizar a política, distanciando-a da cena
pública. Quando o decreto se cumpriu, em 1960, não foi i
I
casual ele coincidir com a difusão da Tv. Afinal, seria media- i

do por ela que o público agora poderia, à distância, assistir ao


I
'

espetáculo político de Brasília. A mudança foi completa. O


Rio de Janeiro nunca mais foi o mesmo. Nem o Brasil.

81. A identificação da novidade


da TV com o projeto utópico
de Brasília, por meio dos arcos
do Palácio da Alvorada, indica
o advento de um novo tempo.
Nesse tempo da tecnocracia
e do desenvolvimento, o Rio
de Janeiro, com seus ritmos, seu
humor, sua vocação lúdica, seus
corpos exuberantes, seu cotidiano
cruzado de tradições
em transformação e modernismos
adaptados, começa a soar como
eco nostálgico. Muda-se a capital,
mudam-se os tempos. Nada mais
será como antes, menos convivas
e mais figurantes. (TV Philco
Predicta e mesa no estilo
Niemeyer, c. 1960)
648 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 NOTAS - 649

(74) CEM. M. terre, “O retrato de casamento”, em Retratos de família, p. 111. As (95) J. americano, “Durante a semana” em São Paulo nesse tempo (1915-1935), pp. 112-4.
demais citações, salvo indicação em contrário, foram extraídas desse ensaio. (96) As referências aos objetos decorativos aparecem em diversas obras, veja, por
(75) CÉ L. LEwrN, Política e parentela na Paraíba, pp. 156-7. exemplo: J. D. NEEDELL, Belle Époque tropical, M. C. N. Homem, O palacete paulistano e
(76) A. de Alcântara macHaDO, “A sociedade”, em Brás, Bexiga e Barra Funda, p. 46. outras formas de morar da elite cafeeira (1867-1918); ]. amerICANO, “Residências”, em São
Warren Dean tece comentários agudos sobre o desejo de nobilitação dos magnatas italia- Paulo nesse tempo (1915-1935); G. rrevrE, Ordem e progresso.
nos em São Paulo e suas estratégias matrimoniais. “Quando podiam, e eram suficiente- (97) 1. D. nezpeiL, Belle Époque tropical, p. 174.
mente ricos, desposavam aristocratas européias, cujas patentes de nobreza consideravam, (98) S. miceuy, “Olhar sociológico”, em Imagens negociadas, p. 95. Embora ancorado
sem dúvida, mais autênticas. Assim, dos doze filhos casados de Matarazzo, três ingressa- em outros pressupostos, mas explicitando a teia de dependências que assolavam os pinto-
ram em famílias de fazendeiros, mas cinco se consorciaram com nobres italianos, entre os res acadêmicos do final do século xtx; veja Q. camporioRITO, História da pintura brasileira
quais dois príncipes e um conde. Os títulos e honrarias eram mais rapidamente granjea- no século XIX, especialmente vols. 4 e 5.
dos por uns poucos industriais que contribuam para os fundos de beneficência da Itália (99) ]. B. M. LoBaro, “A criação do estilo. A propósito do Liceu de Artes e Ofícios”,
ou do Papa. Matarazzo e Crespi foram nomeados condes por Victor Emmanuel; Siciliano em Idéias do Jeca Tatu, pp. 25-6. '
tornou-se conde papal, e muitos outros foram feitos cavaleiros ou comendadores de (100) T. A. Lima, “Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e
várias ordens italianas”; À industrialização de São Paulo (1880-1945), p. 182. limites sociais no Rio de Janeiro, século xr; Anais do Museu Paulista, 1995, vol. 3, p. 136.
(77) W. BENJAMIN, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em Obras (101) Veja, por exemplo: Cozinheiro nacional (Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1897),
escolhidas, p. 174. apud L. da Câmara cascupo (org.), Antologia da alimentação no Brasil, pp. 27-30; ou ainda
(78) M.M. 1errz, “A mostra”, em Retratos de família, p. 169. o ensaio já mencionado de T. A. LIMA.
(79) M. E. porcas, “Arte funerária: representação da criança despida”, Revista de His- (102) T. A. LIMA, OP. cit., pp. 162-3.
tória, vol. 14, p. 177. Sobre arte tumular no Brasil, veja H. R. BELLOMO, “À estatuária funerária (103) . B. M. LosatO, “Curioso caso de materialização”, em Idéias do Jeca Tatu,
em Porto Alegre” (1900-1950); M. E. sorses, “Arte tumular”; T. A. LIMA, “De morcegos e , 133,
caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século xix º (104) M. C. N. Homem, O palacete paulistano e outras formas de morar da elite
(estudo de identidade e mobilidade social)”, Anais do Museu Paulista, 1994, vol. BJ. E. cafeeira (1867-1918), pp. 165 e 250.
RIBEIRO, “Arte e morte”; C, do Prado vALLADARES, Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. (105) Cf. depoimento concedido pelo sr. Sebastião Martins Vieira.
(80) E B. rerraz, Caderno de recordações de viagem, s. p. O baron d'Anthouard, (106) S. B. de HOLANDA, “Novos tempos”, em Raízes do Brasil, pp. 122-3.
antigo ministro da França no Rio, deixou registrado no seu livro Le progrês brésilien — la (107) J. D. negpELL, Belle Époque tropical, p. 180.
participation de la France (1911) as seguintes observações sobre as estadas parisienses: (108) M. DE csrTEAU, “Espaços privados”, em idem, L. GIARD e P. MAYOL, À invenção do
“Ninguém ignora que nossos hóspedes estrangeiros gastam muito entre nós [...] eo que cotidiano, p. 205,
sabemos dos hábitos brasileiros permite-nos afirmar que participam com uma parte im- (109) A. corsin, “O segredo do indivíduo”, em M. perror (org.), História da vida
portante nessa importação de ouro. Um brasileiro, após ter trabalhado mais ou menos privada, vol. 4, p. 448.
longamente em sua terra, parte com uma forte letra de crédito, além de uma lista enorme (110) Cf. depoimento de d. Nina, apud M. A. S, sita et alii, Memórias e brincadeiras
de encomendas de seus amigos, e volta ao fim de alguns meses com inúmeros pacotes que na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, p. 113.
faz entrar como bagagem pessoal, e que contêm toaletes, vestidos, jóias, obras de arte, etc. (111) Afonso Arino de Mello rranco, “Casa dos Mello Franco em Copacabana”, em
Ele gastou sem medidas, para desfrutar de todas as seduções da vida francesa. Depois M. BANDEIRA € C. D, de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 402-3. A
dessas férias, ele volta ao trabalho”; apud M. carELLI, Culturas cruzadas, p. 189. valorização de peças “barrocas” e “coloniais” é relatada pelo marchand José Claudino da
(81) C. E de LacerDa, Caderneta de apontamentos, s. p. Nóbrega, “Memórias de um viajante”, apud J. C. DURAND, Arte, privilégio e distinção, p. 94,
(82) M. BANDEIRA, “Evocação do Recife”, em Estrela da vida inteira, p. 104. ao anotar que “depois da Segunda Grande Guerra o gosto do brasileiro transformou-se e
(83) “A mulher e a praia”, Eu sei tudo, 1937, nº 7, pp. 34-5. os potentados passaram a interessar-se pelo nosso barroco e por todas as peças usadas no
(84) CEM. 1.M. B. pinto, “Trabalho temporário, ritmo de vida e lazer”, em Cotidia- tempo colonial: cômodas e mesas de encosto D. João v e D. José; camas e mochos de
no e sobrevivência, pp. 229-55. jacarandá da Bahia, sofás e cadeirões. As igrejas passaram a ser o alvo dos compradores de
(85) Apud E. posi, Memória e sociedade, p. 306. antiguidades, pois os tocheiros de prata, as navetas, os turíbulos e até os cálices de comu-
(86) Cf. depoimento concedido por d. Júlia Simmi Carlletti. nhão alcançavam altos preços no mercado de arte. Os entalhes barrocos passaram a ser
(87) Apud E. M. sirva, “As operárias da agulha”, Revista de História, 1991, nº 2-3, p. 222. elementos indispensáveis às mais finas decorações”.
(88) FM. de cru, Novedades para bordar letras y monogramas, s. p. (112) Clarice Lispector, O lustre (1946), apud M. de Lourdes M, jaNorrr (dir.),
(89) J. americano, “Distintivos”, em São Paulo nesse tempo (1915-1935), p. 180. Leitura de fragmentos, p. 17.
(90) CÉ. M. nz certrau, “Espaços privados”, em idem, L. GIARD e P. MAYOL, À invenção
do cotidiano, vol. 2, pp. 203-7,
(91) Guilherme de ALMEIDA, “A casa”, Revista do Arquivo Municipal, 1942, nº 82, 7. A CAPITAL IRRADIANTE: TÉCNICA, RITMOS E RITOSDO RIO (pp. 513-619)
pp. 177-84. Todas as citações reproduzidas no texto foram extraídas desse ensaio,
(92) N. G. reis Fº, “Residências” e “Crítica do ecletismo”, em Quadro da arquitetura (1) 1. ToLsTÓr, The knowledge and the power, p. 205.
no Brasil, pp. 169-87. Veja também C. A. C. LeMos, “Os novos partidos e os estilos do povo”, (2) Sobre o conceito e significado da Revolução Científico-Tecnológica, ver a intro-
em Alvenaria burguesa, especialmente pp. 102-200. dução deste volume.
(93) G. BACHELARD, “A poética do espaço”, em Bachelard. O autor define a topoaná- (3) Victor HuGo, cit. por I. cHRIsTIE, The last machine, p. 16.
lise como “o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima”, (4) Gustave ELAUBERT, cit. por 1. CHRISTIE, The last machine, p. 16.
acrescentando ainda que “no teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém (5) Máximo córxy, cit. por I. cHRIsTIE, The last machine, p. 15.
Os personagens em seu papel dominante. Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, (6) E. TouLET, Birth of the motion picture, p. 17.
ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, (7) As informações e citações do parágrafo acima procedem de A. GonGazaA, Palácios
de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca e poeiras, pp. 50-3; as citações estão na página 53.
do tempo perdido, quer 'suspender o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém (8) E. TouLET, Birth of the motion picture, cit. na capa interna a partir de W. K.L.
o tempo comprimido. O espaço serve para isso”, p. 202. DICKSON, History of the photographic and scientific experiments and developments leading to
(94) J. Hanermas, Mudança estrutural da esfera pública, p. 62. the perfection of the Vitascope, 1896.
650 * HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3 NOTAS * 651

(9) W. BeNtaMaN, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, p. 29. (32) Gilberto Freyre observou como há nesse período de acentuada cosmopolitiza-
(10) R. xiLinc, “Mrs. Bathurst”, em Collected stories, pp. 577-600. ção do Rio de Janeiro da Belle Époque uma voga amplamente difundida de dar às crianças
(11) Kingsley Davis, Scientific American, 1965, cit. por V. sMiL, p. 208; ver também nomes em especial anglo-saxônicos, tais como Washington, Franklin, Nelson, Edison,
ibidem, pp. 208-10. , Milton, Darwin, Elizabeth, Lincoln, Gladstone, Spencer etc. Aliás, o período é imensa-
(12) James ponaro, “The city, the cinema: modern spaces”, em C. jexxs (ed.), Visual mente fértil na incorporação de novas palavras de origem estrangeira, tanto pelo efeito
culture, p. 84. cultural da atmosfera cosmopolita como pela necessidade de absorver termos e expressões
(13) G. rrevre, “O carioca Villa-Lobos”, em M. BANDEIRA e C. D. de ANDRADE (orgs.), que nomeassem os novos recursos, artigos, situações e equipamentos advindos da trans-
Rio de Janeiro em prosa & verso, p. 531. Eis um quadro da evolução demográfica da capital formação do modo de vida. O sociólogo fornece uma lista longa mas muito reveladora do
federal, alinhada, para efeitos de comparação, com outras capitais brasileiras. grau e alcance imensos em que o cotidiano das pessoas mudou, num curto período. Fis
alguns exemplos: “madame ou madama, five-o'clock tea, jockey, turfe, spleen, snob,
| População | | IH | causer, wagon ou vagão, dogue, toilette, bife, menu, restaurante, funding, impeachment,
residente, | 1872 | 1890 | 1900 | 1920 | 1940 | 1950 | 1960 tilburi, cabriolé, landô, cupê, deck, smart, ragu, élan, warrantagem, casse-tête, lorgnon,
| 1872-1960 | | charrete, raquette, pince-nez, étagere, etiqueta, clube, clichê, peignoir, repórter, tête-a-tête,
| Recife 16671 | 111556 | bonde, bulevar, water-closet, vaudeville, enveloppe, élite, comitê, clown, bureau, iole, iate,
115106 238843 | 348424] 524682 | 788336 faisandé, trust, maple, bufete, box, rosbife, toast, tênis, pule, linchamento, coterie, high-
[Salvador | 129109| 174412] 205813] 283422] 290443] 417235 | 649453 life, sabotagem, hotel, macadame, bombom, festival, batiste, atelier, meeting, echarpe, bal-
Belo Horizonte | | | 13472] 55563] 211577] 352724] 683908 | masqué, iale, adresse, bebê, book-maker, claque, châtelaine, calembur, bouquet, abajur,
Rio de Janeiro | 274972 522651, 811443| 1157873| 1764141 | 2377451 | 3281908 soirée, marionette, garçon, récamier, surmenage, grogue, chalé, vitrine, turista, chaise-
longue, breque, mise-en-scêne, valet, vieux rose, marrom, boudget, líder, groom, cache-
| São Paulo 31385] 64934 | 239820 579033 | 1326281 | 2198096
| 3781446
nez, gare, pastel, detalhe, apache, escalope, puré, gaffe, canard, placard, entourage,
Porto Alegre 43998 | 52421 | 73647, 179263] 272232 | 394151 635125 dreadnought, scout, destroyer, tender, boycott, boulanger, conhaque, Noel, pônei, lorde,
blague, suite, omelette, bluff, truc, trottoir, detective, maquete, mayonnaise, institutrice,
Fonte: População residente segundo os municípios das capitais. Anuário Estatístico do Bra- dossier, mitaine, manteau, beige, gris, perle, diseuse, passe-partout, marquise, guichet,
sil, 18GE, 1995, forfait, film, gaucherie, matinée, guidon, croquis, mignon, gigolot, demi-monde, crochet,
crêche, debutar, nuance, cocotte, champanha, gendarme, hors d'oeuvre, bijoux, joujou,
(14) As citações estão em G. rrevre, Ordem e progresso, pp. Xvil-a e xvi-b; a tradu-
fin-de-siêcle, frappé, flaneur, robe de chambre, tableau, tailleur, plastron, rótisserie,
ção da citação de Ortega y Gasset é minha.
rendez-vous, lanche, bibelot, écran, plateau, demarche, complot, raté, caften, micaremê,
(15) “Verdade aqui, erro lá”. M. de assis, crônica, A Semana, 21/1/1894.
match, goal, troupe, tournée, équipe, crayon, vernissage, aplomb, bijuteria, boudoir,
(16) Essa nítida separação entre o centro e a periferia era um dos temas mais
carnet, reporter, interview. Vários outros” Cf. G. rrerrE, Ordem e progresso; a primeira
candentes de Lima Barreto. Conforme nos ilustra M. P. vELLOSO em As tradições populares
na Belle Époque carioca: “Quando ultrapassa as fronteiras da sua cidade — que é o subúr- citação está na página cxLiv e a segunda nas páginas 215 e 216.
(33) O que em latim significa “ao mais alto”; cf. nota de R. T. vaLENÇA, em J. do RIO,
bio — o personagem barretiano começa a perder sua identidade. “Passado o Campo de
Santana, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabavam a A profissão de Jacques Pedreira. Cabe atentar ao mau gosto sintomático da dupla
sua fama e o seu valimento..”, p. 45. conotação insinuada pelo barão fogoso.
(17) Uma primeira tentativa de instalar um serviço de bonde puxado a burros no (34) J. do ro, À profissão de Jacques Pedreira, pp. 18 e 48-9.
Rio de Janeiro foi malsucedida, durando apenas de 1859 a 1864. Somente em 1868 o novo (35) Idem, ibidem, p. 40.
sistema se firmaria, através da linha que ligava a Cidade Velha ao Flamengo, Botafogo e (36) N. sevcenxo, Literatura como missão, p. 41.
Jardim Botânico, acomparihando e definindo o eixo da especulação imobiliária e a ins- (37) M. de assis, crônica, A Semana, 6/10/1895.
talação das residências mais luxuosas. Os bondes elétricos só seriam instalados em 1892. (38) Jacques Doucet foi um célebre modista parisiense do início do século.
J. D. nespeLL, Belle Époque tropical, pp. 46 e 182. (39) T. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 17.
(18) Os bondes pertenciam à Companhia anglo-americana-canadense Light and (40) Referência ao ator e diretor de teatro francês André Antoine, em grande vigên-
Power, porém a concessão do serviço era prerrogativa exclusiva da autoridade pública. cia no período e especializado em peças ambientadas em interiores burgueses.
(19) N. sevcenro, Literatura como missão, pp. 34-5. (41) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 41.
(20) M. de assis, crônica, A Semana, 4/3/1894. (42) Idem, ibidem, p. 15.
(21) Ver a respeito do cigarro como símbolo de modernidade, M. KogTZIE é U. (43) Idem, ibidem, pp. 38-9.
SCHEID, Feu d'amour, pp. 6-15. (44) E, HOBSBAWM, À era do capital, pp. 135-6.
(22) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 32. (45) Ver Introdução e capítulo 2.
(23) N. sevcenko, “Ascensão e queda de uma cultura”, Jornal da Tarde, Caderno (46) ]. do Rio, J. R., L. MARTINS (ed.), pp. 54-8.
Idéias, 28/1/1995, p. 3. A respeito do café, sua identificação com a recém-empossada elite (47) L. BarrETO, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, pp. 268-9.
republicana era tal que Machado, abusando de sua ironia, espicaçava ao mesmo tempo os (48) . do rio, À alma encantadora das ruas, pp. 160-3.
“novos homens” e o novo regime, alterando a reverenciada máxima de Augusto Comte: (49) H. vianna, O mistério do samba, pp. 50-4.
“Nem só de pão vive o homem” para: “Nem só de café vive o homem”. Cf. A Semana, (50) L. sarreto, Os bruzundangas, p. 106.
19/1/1896, p. 93. (51) J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, pp. 36-7.
(24) A, purcess, “Preface”, em M. waLTER (ed.), The book of tea, pp. 9-19. (52) M. de Souza pinto, “O bota-abaixo de Pereira Passos”, em M. BANDEIRA € C, D.
(25) M. de assis, crônica, A Semana, 22/4/1894. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 408-9.
(26) Idem, crônica, A Semana, 25/3/1894. (53) M. de assis, crônica, A Semana, 2/10/1892.
(27) CE. Introdução, pp. 13-4. (54) O. de anvraDe, Um homem sem profissão, pp. 34-6.
(28) M. de assis, crônica, A Semana, 3/11/1895. (55) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 122-4.
(29) Idem, ibidem. (56) M. de assis, crônica, A Semana, 16/10/1892; note-se a graça especial do autor
(30) Visconde de Taunay, O Encilhamento, pp. 16-7. ao referir-se ao motorneiro como “o cocheiro”,
(31) M. de assis, crônica, A Semana, 2/8/1896. (57) Idem, ibidem, 23/10/1892.
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(58) J. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, p. 23. profissão de Jacques Pedreira, tal foi o excesso de erros tipográficos que comprometiam a
(59) Idem, ibidem, p. 36: publicação. Na segunda edição, cujo texto foi anotado e estabelecido por Rachel Valença,
(60) Z. GaTTAL Anarquistas graças a Deus, pp. 247-8. Devo a indicação dessa citação ela registra nesse ponto a expressão “projeções odicas”, cogitando em nota tratar-se de um
a Paulo Roguruna. R ; provável arcaísmo de cunho esotérico, há muito caído em desuso. O contexto, entretanto,
(61) M, de assis, crônica, A Semana, 22/12/1895. nos parece indicar de forma cristalina que se trata de uma referência às teorias sobre as
(62) Idem, ibidem, 2/2/1896. “projeções órficas” e ao orfismo, em plena vigência na Paris do início do século. Cf. N.
(63) E. HoBSBAWM, The age of empire, p. 14. REID & J. GOLDING (orgs.), Léger and purist Paris, passim.
(64) M. HERSCHMANN € K. LERNER, Lance de sorte, pp. 61-79, e C. MATOS, Acertei no (106) 7. do mo, A profissão de Jacques Pedreira, pp. 93-4.
milhar. (107) F.C. de meio NETO, Antologia poética, p. 86.
(65) J. do mo, A profissão de Jacques Pedreira, p. 126. (108) R. simões, “Do pregão ao jingle”, em R. L. MARTENSEN & E REIS, História da
(66) A. TosTI, Contributo alla conoscenza della stupidità umana, passim. Devo a propaganda no Brasil, p. 173. .
indicação desse belo texto a Giulia Crippa. (109) C. D. de anDraDE, Às impurezas do branco, p. 12.
(67) J. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, pp. 26-7. (110) A. Ribeiro, J. de Barros e L. Babo, “Cantoras do rádio”, com Carmen e Aurora
(68) Idem, ibidem, Miranda e a Orquestra Odeon, maio 1936. Cf. A. caRDOSO JR. Carmen Miranda, pp. 399-400.
(69) M. de assis, crônica, A Semana, 6/10/1895. (111) A. maRwiCK, Beauty in history, p. 307.
(70) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 73-7. (112) D. E Haussen, Rádio e política, pp. 13-60.
(71) J. do rio, A correspondência de uma estação de cura, p. 20. (113) R. murce, Bastidores do rádio, pp. 27-8.
(72) G. rrevrE, Ordem e progresso, p. Gov. (114) R. punBaR, Grooming, gossip and the evolution of language, passim. No mesmo
(73) J. do RIO, À correspondência de uma estação de cura, p. 23. sentido ver também W. E ALLMAN, The stone age present, especialmente pp. 52-70.
(74) Idem, ibidem, p. 5. (115) A respeito dessa redução das relações de vizinhanças a seres anônimos, mera-
(75) Idem, ibidem, pp. 5-6. mente identificados pelo número dos seus prédios e apartamento, Rubem Braga tem uma
(76) M. de assis, crônica, A Semana, 5/7/1896. crônica impagável, em que escreve a um vizinho que reclamou de seu barulho noturno, o
(77) J. do ro, A correspondência de uma estação de cura, pp. 4, 5 e 24 respectivamente, qual lhe incomodava o sono. “Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso notur-
(78) M. de assis, crônica, A Semana, 5/8/1894: no e é impossível repousar no 903 quando há vozes e passos e música no 1003. Ou
(79) J. do rio, À correspondência de uma estação de cura, p. 75. melhor, é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois, como não sei o seu
(80) M. de assis, crônica, A Semana, 29/3/1896. nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números
(81) ]. do rio, “Hora do footbalP; extraído de Pall-Mall Rio, em R. Ramos (org.), À empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo
palavra é futebol, pp. 18-9. 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo
(82) G. crus, Aparência do Rio de Janeiro, pp. 800-8. 903 — que é o senhor [...] Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número)
(83) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 46-50. será convidado a se retirar às 21h45m, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois
(84) Idem, A Revolta da Vacina, pp. 70-1. às 8h15m deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele
(85) Idem, ibidem, p. 75. trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só
(86) J. do rio, “A parada da ilusão” em H. P, cunHa (sel.), Os melhores contos de João pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita
do Rio, p. 78. ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas — e prometo silêncio”
(87) E. de Assis BargOSA, “Dona Filó é quem diz”, em M. BANDEIRA € C. D. de ANDRADE “Vizinho” em M. BANDEIRA e C. D. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp.
(orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 538-9. 308-9.
(88) Idem, ibidem, p. 539. (116) R, murce, Bastidores do rádio, pp. 24-5. '
(89) Idem, ibidem, pp. 539-40. -— (117) A. carposo jR.; Carmen Miranda, pp. 39-47; a citação está na página 46.
(90) D. e M. jonnson, The age of illusion, pp. 60-3. (118) R. murce, Bastidores do rádio, p. 33.
(91) G. amapo, em M. BANDEIRA € C. D. de ANDRADE (orgs.), Rio de Janeiro em prosa (119) M. de assis, crônica, A Semana, 22/4/1894,
& verso, p. 297. (120) N. sevcenko, Orfeu extático na metrópole, pp. 160-81.
(92) K. Baverz, “Biology and beauty: science and aesthtics in fin de siêcie”, em M. (121) ]. do rio, À correspondência de uma estação de cura, p. 4.
TEICH e R, PORTER, Fin de siêcle and its legacy, pp. 278-95. Ver também M. teicH, “The (122) Idem, ibidem, p. 97.
unmastered past of human genetics”, em ibidem, pp. 296-34. (123) M. de assis, crônica, A Semana, 24/11/1895.
(93) A. rorTY, Objects of desire, pp. 156-81. (124) Idem, ibidem, 23/2/1896.
(94) Idem, ibidem, pp. 94-119. (125) M. BanpEiRa, “Carnaval”, da coletânea Poesias, pp. 83-4.
(95) Idem, ibidem, pp. 174. (126) Essas e as subsequentes considerações sobre o cinema americano e o Brasil
(96) N. sevcenxo, Orfeu extático na metrópole, pp. 43-8. fazem parte de um texto inédito de N. sevcenko, “Brazilian Follies: the casting,
(97) J. do rio, “Hora de footbalP, em R. ramos (org.), A palavra é futebol, p. 19. broadcasting and consumption of images of Brazil on both sides of the continent, 1930-
(98) CE E. C. acassiz, “Nobreza e elegância dos Minas”, em M. BANDEIRA e C. D. de 50”, apresentado no simpósio internacional “Ways of Working in Latin American Cultural
ANDRADE (Orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, pp. 103-4; ]. do rio, “O corpo marcado”, Studies” ocorrido no Institute of Latin American Studies do University College da Univer-
em ibidem, pp. 187-91; L. campos, “Capoeira, esgrima dos olhos”, em ibidem, pp. 191-4. sidade de Londres em abril de 1995.
(99) M. reBELO, “Corpo que era baile e canção”, em M. BANDEIRA e C. D, de ANDRADE (127) €. D. de annraDE, Farewell, pp. 85-6.
(orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso, p. 220. (128) B. cenprars, Hollywood, la Mecque du cinéma, p. 162.
(100) J. do RIO, A profissão de Jacques Pedreira, p. 108. (129) 7. do rio, . R., p. 31.
(101) Cf. nota de R. 'T. vaLENÇA em J. do rio, À profissão de Jacques Pedreira, p. 150. (130) D. Norman, Turn signs are the facial expressions of automobiles, pp. 19-34; A.
(102) 3. do rio, A profissão de Jacques Pedreira, p. 114. FORTY, Objects of desire, pp. 94-119 e 207-21.
(103) Idem, ibidem, p. 34. (131) M. ranuccHI, Nossa próxima atração, pp. 151-62.
(104) M. de assis, crônica, A Semana, 13/10/1893. (132) €. D. de anpraDE, Farewell, pp. 22-3.
(105) João do Rio mandou destruir por ordem judicial toda a primeira edição de A (133) Idem, Reunião, p. 63.
654 + HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 3

(134) Idem, Lição de coisas, p. 74.


(135) 1. LonGE, Hollywood'1930', pp. 34-49,
(136) D. de roucemont, Love in the Western World, pp. 58-140.
(137) M. G. LorD, Forever. Barbie.
(138) N. sevcenxo, “Brazilian Follies”, po.
(139) S. augusto, Este mundo é um pandeiro, passim.
(140) G. moura, Tio Sam chega ao Brasil, pp. 13-89.
(141) Sobre o contexto da criação do personagem Zé Carioca e suas ressonâncias
na configuração dos estereótipos do “brasileiro”, ver L. M. sciwancz, “Complexo de Zé
Carioca, notas sobre uma identidade mestiça e malandra”, Revista Brasileira de Ciências
Sociais, out. 1995, ano 10, nº 29, pp. 49-63.
(142) A. carDoSo JR., Carmen Miranda, p. 404.
(143) Idem, ibidem, p. 336.
(144) Idem, ibidem, p. 456.
(145) Cf. verbete Gingar, C. auLere, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa.
(146) Cf verbete Gingar em A. B. de Holanda FERREIRA, Novo dicionário da lingua
portuguesa.
(147) M. c-monteiro, Carmen Miranda, a Pequena Notável, pp. 13-85.
(148) C. D. de anDRADE, Reunião, p. 280.
(149) M. de assis, crônica, A Semana, 7/4/1896. Por meio da referência a “os bichos”
o escritor identifica a bandalheira financeira do Encilhamento com a febre do jogo do
bicho, que tomava conta da cidade desde 1892. Cf M. HERSCHMANN e K. LERNER, Lance de
sorte.

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