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DIREITO SOCIETÁRIO

AMERICANO
Estudo Comparativo

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


1 5/7/2011, 18:04
“A QUARTIER LATIN teve o mérito de dar início a uma nova
fase, na apresentação gráfica dos livros jurídicos, quebrando a
frieza das capas neutras e trocando-as por edições artísticas.
Seu pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inúmeras
Editoras seguiram seu modelo.”
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Editora Quartier Latin do Brasil


Empresa Brasileira, fundada em 20 de novembro de 2001
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2 5/7/2011, 18:04
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR

DIREITO SOCIETÁRIO
AMERICANO

Estudo Comparativo

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, inverno de 2011
quartierlatin@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


3 5/7/2011, 18:04
EDITORA QUARTIER LATIN DO BRASIL
Rua Santo Amaro, 316 - Centro - São Paulo
Contato: quartierlatin@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br

Coordenação editorial: Vinicius Vieira

Diagramação: Thaís Fernanda S. L. Silva

Revisão gramatical: Tarsila Nascimento Marchetti

Capa: Bruno Laguna Paim

VILLAMIZAR, Francisco Reyes – Direito Societário Americano –


Estudo Comparativo. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

ISBN 85-7674-

1. Direito I. Título

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Direito
2. Brasil: Contratos

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de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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SUMÁRIO

PRÓLOGO, 11

CAPÍTULO I
HARMONIZAÇÃO E UNIFICAÇÃO DO DIREITO SOCIETÁRIO, 17

1. A Análise Econômica do Direito Societário ...................................... 19


A. A separação entre titularidade do capital e gestão social ............... 21
B. O debate sobre a extensão da responsabilidade .............................. 27
C. Tornando o Direito Societário global ............................................. 29
D. A natureza da firma societária ....................................................... 33
i. Teoria do Nexo Contratual .......................................................... 35
ii. Custos de Transação (Transaction Costs) .................................... 39
iii. Custos de Agência (Agency Costs) .............................................. 43
2. Relevância do Direito Societário Comparado .................................... 45
3. Harmonização da Legislação Societária ............................................. 54
4. Algumas diferenças entre a tradição jurídica Romano-Germânica e
o Sistema Norte-Americano .............................................................. 63

CAPÍTULO II
CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA JURÍDICO NORTE-AMERICANO RELEVANTES
PARA O DIREITO SOCIETÁRIO, 77

1. Relativa ausência de dicotomia entre Direito Público e Privado ....... 79


2. Carência de Divisão do Direito Privado ............................................ 81
3. Liberdade contratual e autonomia da vontade privada ...................... 85
4. Regime falimentar unificado .............................................................. 86
5. Regulação do Mercado de Valores Mobiliários ................................. 88
6. Regulação Ambiental ......................................................................... 92
7. Caráter Híbrido do Direito Societário ............................................... 96
8. Leis Societárias dos Estados ............................................................... 99
A. O mercado das leis de sociedades ................................................... 102
B. O caso de Delaware ........................................................................ 106

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CAPÍTULO III
PRINCIPAIS FORMAS SOCIETÁRIAS, 109

1. Considerações Preliminares ................................................................ 111


2. A Sociedade de Pessoas (Partnership) ................................................. 112
A. Distinção com relação aos consórcios ............................................. 118
B. A Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas ..................................... 119
C. Constituição e outros aspectos relevantes ....................................... 121
D. Regime de responsabilidade ........................................................... 125
E. Direitos e obrigações dos sócios ...................................................... 128
F. Dissolução e liquidação ................................................................... 130
G. Formas especiais da sociedade de pessoas ....................................... 132
i. Sociedade comanditária (limited partnership) ............................... 132
ii. Sociedade de pessoas de responsabilidade limitada (limited
liability partnership) ..................................................................... 135
iii. Sociedade comanditária com responsabilidade limitada dos
sócios gestores (limited liability limited partnership) .................... 139
3. A Sociedade de Responsabilidade Limitada (Limited
Liability Company) ............................................................................. 140
4. A Sociedade de Capitais (Corporation) .............................................. 146
A. Termo indefinido (continuity of existence) ...................................... 157
B. Administração centralizada (centralized management) ................... 157
1. Presidente ...................................................................................... 160
2. Vice-presidente ............................................................................. 161
3. Secretário ....................................................................................... 161
4. Auditor de contas (comptroller) e tesoureiro ................................. 161
5. Membros do Conselho de Administração .................................... 162
C. Limitação da responsabilidade dos sócios (limited liability) .......... 164
D. Livre negociação das ações (free negotiability of estoque) ................. 164
i. Restrição absoluta ou submetida a aprovação (absolute or
consent restraint) .......................................................................... 165
ii. Direito de preferência (right of first refusal e right of first option) . 165
iii. Direito à recompra de ações (call option ou redemption right) ... 165
E. Sociedade capitalista fechada (Close Corporation) .......................... 166
5. Tipos de Sociedades nos Estados Unidos .......................................... 168

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CAPÍTULO IV
CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADES DE CAPITAL, 171

1. Procedimento para Constituir uma Sociedade de Capitais ............... 173


A. Ata de constituição (articles of incorporation) e estatutos (by laws) 175
i. O nome da sociedade ................................................................... 175
ii. O termo de duração da sociedade ............................................... 176
iii. Os nomes e direções dos fundadores ......................................... 177
iv. O objeto social para o qual se formou ........................................ 178
v. O endereço da sede registrada e o nome do procurador inscrito . 179
vi. A estrutura financeira da sociedade, com indicação do número
e a classe de ações que a sociedade está autorizada para emitir .. 179
vii. Informação relacionada com o primeiro Conselho
de Administração ........................................................................ 181
viii. Cláusulas relacionadas com a estrutura interna da sociedade .. 181
2. Constituição Efetiva e Defeituosa ..................................................... 182
A. Sociedades validamente constituídas (de iure corporations) ............. 183
B. Doutrina da existência societária suposta (de facto corporations) .... 183
C. Doutrina da proteção de procuradores e acionistas (corporations
by estoppel) ...................................................................................... 184

CAPÍTULO V
REGIME DE RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS, 187

1. O Debate sobre a Responsabilidade Comunitária das Companhias . 189


2. Doutrinas sobre a Necessidade de uma Extensão da Responsabilidade
na Sociedade de Capital ..................................................................... 190
A. Oportunidade para estender a responsabilidade aos acionistas ...... 192
B. Responsabilidade limitada ante os credores contratuais ................. 192
C. Mecanismos de aplicação do regime de extensão
de responsabilidade ........................................................................ 193
3. Importância da Limitação de Responsabilidade nas Sociedades
de Capital ........................................................................................... 195
4. Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade (Piercing
the Corporate Veil) ............................................................................... 200

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A. Operações com o sócio controlador ou majoritário
(self-dealing transactions) ................................................................ 208
B. Violação de formalidades legais e estatutárias (break-down
of procedures) .................................................................................... 209
C. Confusão de ativos e negócios (commingling of assetsand business) .. 210
D. Restabelecimento da equidade (achieving equity) .......................... 210
E. Fraude aos sócios ou merecedores (fraud) ....................................... 210
F. Sub-capitalizaçao (undercapitalization) .......................................... 211

CAPÍTULO VI
REGIME DE PROTEÇÃO DE SÓCIOS E INVESTIDORES, 215

1. Mecanismos Judiciais de Proteção de Sócios ..................................... 217


A. Regra da arbitrariedade (business judgment rule) ............................. 218
B. Dever de cuidado (duty of care) ....................................................... 222
C. Dever de lealdade (duty of loyalty) .................................................. 225
i. Operações nas que há conflito de interesse (self
dealing transactions) ..................................................................... 226
ii. Remunerações excessivas (executive compensation) ...................... 228
iii. Usurpação das oportunidades da sociedade (usurpation of
corporate opportunity) ................................................................... 229
iv. Uso indevido de informação privilegiada (insider trading) ......... 230
2. Regulação Federal sobre a Contabilidade das Sociedades de Capital
Aberto (Sarbanes-Oxley Act) .............................................................. 232
3. Princípios de Organização Societária (Corporate Governance) .......... 236

CAPÍTULO VII
ACORDOS PRIVADOS ENTRE OS SÓCIOS, 241

1. Descrição e Eficácia Jurídica dos Acordos de Acionistas


(Shareholders Agreements) .................................................................... 243
2. Modalidades de Acordos de Acionistas ............................................. 251
A. Acordos fiduciários de votação (voting trusts) ................................... 251
B. Acordos de votação (pooling agreements) ............................................ 254
3. Outros Pactos de Freqüente Utilização em Acordos de Acionistas .. 256
A. Cláusulas que alteram os direitos de assinatura preferencial ........ 257

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B. Prerrogativas especiais de transferência .......................................... 259
i. Cláusulas adesivas (tag along) e de arraste (drag along) ................ 259
ii. Acordos de compra e de venda forçada (buy sell agreements) ...... 261
iii. Opções de compra (call options) ou de venda (put options) ........ 264

CAPÍTULO VIII
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPITAL SOCIAL E O PAGAMENTO DE DIVIDENDOS, 267

1. Considerações Preliminares ................................................................ 269


2. O Capital Social ................................................................................. 270
A. Títulos de participação ................................................................... 271
B. Financiamento por meio de títulos de dívida ................................ 279
3. Dividendos ......................................................................................... 281
4. Obrigações Tributárias da Sociedade ................................................. 286

CAPÍTULO IX
FUSÕES E AQUISIÇÕES, 295

1. Considerações Preliminares ................................................................ 297


2. Regulação Aplicável às Concentrações ............................................... 301
A. Códigos societários estaduais .......................................................... 302
B. Leis do mercado de valores mobiliários .......................................... 303
C. Leis sobre concorrência .................................................................. 305
3. Mecanismos Previstos nas Leis Estaduais (Statutory
Acquisition Techniques) ........................................................................ 307
A. Fusão (merger) ................................................................................. 307
i. Modalidades ................................................................................. 307
ii. A contraprestação nas operações de fusão ................................... 311
iii. Fusão triangular (triangular merger) ........................................... 313
B. Transferência global de ativos (sell of all or substantially all assets) .. 319
4. Mecanismos de Proteção para Acionistas e Credores sob as
Leis Estaduais ..................................................................................... 321
A. Direito de retirada .......................................................................... 322
B. Doutrina da fusão “de fato” e doutrina da responsabilidade
“do cessionário” ............................................................................... 324

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5. Mecanismos de Concentração Não Previstos sob as Legislações
Estaduais (Non-Statutory Acquisition Techniques) .............................. 326
A. Aquisições de participações significativas de capital ...................... 326
i. Aquisição de ações no mercado público de valores ...................... 327
ii. Aquisição a respeito de sociedades de capital fechado ............... 330
B. Competições para obtenção de procurações de voto
(proxy contests) ...................................................................................... 332
6. Mecanismos de Defesa em Tomadas Hostis de Controle ................. 334

BIBLIOGRAFIA, 341

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PRÓLOGO
As colônias espanholas na América, o Brasil como representante das co-
lônias portuguesas e a antiga possessão francesa do Haiti, herdaram de seus
colonizadores o Direito Europeu Continental.
Este mesmo Direito, por sua vez, resultou das heranças que estes países
colonizadores receberam, há mais de mil anos, de seus conquistadores roma-
nos, e, que foram sendo alteradas e incorporadas em sua cultura jurídica ao
longo do tempo.
Direito Romano este, que em suas mais diversas formas de manifestação
e distintos campos jurídicos de atuação, chegou à máxima expressão da lógica
e eqüidade, sendo ainda considerado modelo de boa-fé. Razão pela qual, ape-
sar de inúmeras tentativas de relegá-lo à condição de mais um capítulo da
história antiga, mantém sua autonomia e utilidade como coluna vertebral na
formação dos juristas.
Geração após geração, desde o século XII, todos os estudiosos do conti-
nente europeu e seus discípulos além-mar, tiveram sua formação jurídico-
profissional conforme os métodos instituídos por Gayo e Justiniano e através
do conhecimento e experiência acumulados nas sentenças do Digesto.
Esta tradição deixou raízes, gerando hábitos e estilos próprios nos juris-
tas do Continente Europeu. A cultura jurídica estrangeira foi incorporada
por assimilação, não ocorrendo a criação de uma tradição própria, afinal, o
rigor e a profundidade dos conceitos jurídicos romano-germânicos são únicos
e conservam intactas suas qualidades, como um verdadeiro patrimônio vivo e
não como mera relíquia histórica.
Até um pouco mais de uma geração, era de entendimento comum que
os administrativistas e os ius-privatistas que desejassem prosseguir seus estu-
dos, teriam a França como destino mais natural, da mesma forma que a Itália
seria para os penalistas e processualistas. Em relação à Alemanha, apenas exis-
tiam referências às traduções de uns poucos autores que se destacavam no
Direito Constitucional e no Direito Civil. Já a Espanha, sequer era citada
durante o período de repressão e obscurantismo que atravessou.
Por fim, o Common Law, cujos melhores exemplos eram a Grã-Bretanha
e seu herdeiro norte-americano, não passava de um sistema muito peculiar,
uma espécie de curiosidade para uns poucos iniciados que estavam interessa-
dos na novidade.

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Hoje o panorama mudou sensivelmente. A divisão nítida, quase mani-
queísta, entre Direito Privado e Público, deu lugar a uma integração com o
aproveitamento recíproco destes distintos ramos do Direito. A unificação do
Direito Privado vem se tornando uma realidade conceitual, assim como é ve-
rificada na prática, apesar da inércia do estatal. Esta unificação segue avançan-
do, ainda que lentamente, na Europa e por influência desta, o mesmo começa
a ocorrer na América Latina.
O domínio dos Estados Unidos, em praticamente todas as esferas da
economia: industrial, comercial e financeira, além da política vem provocando
um aumento na utilização dos institutos jurídicos do Common Law, especial-
mente de origem norte-americana. Como conseqüência natural, tornou-se
forçoso estudá-los uma vez que o convívio com os mesmos só tende a crescer.
Estas circunstâncias, por sua vez, provocam o aparecimento de um sub-
produto inquietante, para dizer o mínimo. Trata-se de um hibridismo que
surge da inserção do Direito norte-americano no tronco dos Direitos que po-
deriam ser qualificados como nativos. Por força da recepção da terminologia,
redação, estilo e códigos de conduta utilizados por bancos e agências interna-
cionais, este fenômeno de penetração, que é mais antigo e visível em Porto
Rico e Panamá, intensificou-se por toda a América Latina. Atualmente, tem
se projetado também sobre os países da Europa Central e Oriental, recente-
mente abertos à economia de mercado. Na medida em que bancos e agências
internacionais se preocupam em oferecer assistência técnica e econômica a
estes países, é preciso lembrar que empresas norte-americanas atuando nestes
países impõem cláusulas em seus contratos escolhendo o estado ianque que
será o foro para a resolução de eventuais controvérsias futuras. Elas também
determinam o Direito Americano que será utilizado nos Tribunais de Arbi-
tragem Internacional para a resolução das disputas em que estão envolvidas.
Com o Common Law está ocorrendo, e pelas mesmas razões, algo análo-
go ao acontecido com o idioma inglês. A simplicidade da gramática inglesa,
foi um fator muito mais importante para tornar o inglês uma língua de status
global do que o fato dos principais países anglófonos serem potências econô-
micas e políticas.
Da mesma forma o Common Law, vai entrando lenta, porém de forma
persistente, inicialmente na Europa Ocidental, posteriormente na América
Latina para em seguida chegar à Ásia Oriental. Isto ocorre não por causa da

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hegemonia dos países aos quais esta tradição jurídica pertence, mas em razão
da simplicidade e do pragmatismo dos institutos e instituições jurídicas.
Entretanto, lamentavelmente, devemos acrescentar outro fator justifica-
dor deste movimento de expansão do Common Law: a cultura de dominação.
Nela se combinam e se completam o gosto e a comodidade que o dominador
experimenta ao ser acolhido com reverência por onde quer que vá, através da
submissão do dominado. Isso ocorre especialmente quando da sua reverencia
deriva vantagens e distinções ostentáveis e notórias, com tudo o seu efeito
perverso de demonstração.
Como demonstração desta presença crescente de institutos jurídicos do
Common Law na realidade de muitos países que pertencem ao Civil Law
podemos citar os contratos de Leasing, Factoring, Franchising, Engineering e
inúmeras outras figuras engenhosamente criadas para assegurar o crédito.
Outros institutos tiveram o seu desenvolvimento impulsionado pelo
Direito Consuetudinário, dos quais os melhores exemplos são: (i) a sociedade
por ações, (ii) os seguros, (iii) os contratos bancários e os (iv) os títulos de
crédito. Todos eles imprimiram ao Common Law uma força e um poder de
sedução singulares.
Desta forma, mesmo os mais conservadores juristas do Direito Europeu-
Continental reconhecem as vantagens do Common Law pelas razões já men-
cionadas. Inclusive, percebemos a abundância do número de diretrizes da
União Européia recomendando o acolhimento dos institutos relacionados a
temas do Direito Empresarial, em mais uma tentativa de aproximação destas
duas distintas tradições.
É fundamental mencionarmos a necessidade de preservarmos nossa iden-
tidade jurídica nacional, de origem romano-germânica, não por uma simples
questão de capricho, mas para a manutenção de nossa própria autenticidade.
Porém, isso não significa simplesmente negligenciarmos as vantagens de ou-
tros sistemas, ou de maneira mais específica, deixarmos de utilizar determina-
dos institutos que poderiam enriquecer o Civil Law. Este intercâmbio seria
muito importante para o aumento da celeridade, precisão e segurança das
operações econômicas, principalmente nos negócios internacionais.
O conhecimento Direito de outros países, e mais ainda, de outros siste-
mas, é sempre saudável, e muitas vezes indispensável, e para este objetivo o
Direito Comparado é fundamental. Nenhuma área do conhecimento conse-

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gue sobreviver no isolamento. A necessidade de inserção de todos os países no
Mercado Internacional exige o conhecimento de outras culturas, a começar
pelas hegemônicas, contribuindo para o desenvolvimento das culturas locais.
O Direito Comparado não se reduz ao acesso a diferentes sistemas, afi-
nal, é de suma importância o conhecimento das distintas figuras dos regimes
que possuem certa afinidade ou que pertencem a uma mesma família. Com
esta metodologia, podemos examinar as razões que justificam as diferenças
entre os institutos, e assim, abrimos a possibilidade de modificações através da
via legislativa, além de pautar as criações jurisprudenciais.
Nosso Direito Privado deve muito dos avanços experimentados, à utili-
zação do Direito Comparado, tanto em matéria legislativa como no campo
jurisprudencial, inclusive por tê-lo empregado como instrumento para vencer
resistências e superar o conservadorismo tão arraigado em nosso modo de ser,
principalmente em questões jurídicas.
Assim, a citação das novas legislações européias, facilitou no início do
século XX a adoção de novas de modernas figuras jurídicas em vários países da
América Latina. O Código Civil Italiano de 1942 constituiu uma fonte ins-
piradora para a elaboração dos Códigos Civis do Peru em 1984 e do Paraguai
em 1987, significando avanço importante para a unificação do Direito Priva-
do na América Latina.
As Sociedades, figura jurídica e econômica antiqüíssima, têm recupera-
do no mundo de hoje seu vigor. Este fenômeno é particularmente verdade em
sua forma mais ampla, ou seja, as sociedades por ações (“anônimas”) a ponto
de ser considerada como a melhor expressão do Sistema Capitalista. O mais
importante não é percebermos, que esta forma de aglutinação de capitais e
esforços, tenha resistido ao teste do tempo, mas, o quanto esta figura já foi
incorporada pela sociedade como forma de associação empresarial.
Isso ocorre graças à legislação disciplinadora deste instituto jurídico, que
favorece o espírito associativo, assegurando a igualdade, a eqüidade e a lealda-
de não apenas no interior da sociedade, mas também em relação aos terceiros
que contratam com ela e que poderiam ser lesados.
Certamente as sociedades por ações não se desenvolveram com a mesma
vitalidade que a economia se desenvolveu, e, ao investigarmos as razões não
podemos atribuí-las à falta de espírito associativo dos latino-americanos.

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Muitos dos obstáculos enfrentados estão relacionados com a legislação,
que ao negligenciar os direitos dos minoritários e a confiança daqueles que con-
tratam com a sociedade não proporciona os meios e estímulos para a associação.
Faz-se necessário uma legislação que discipline tanto a constituição quan-
to o funcionamento da sociedade, neste mesmo sentido, também mostra-se
fundamental que regule o processo de falência de uma empresa, através de
distintos instrumentos sucessivamente testados, ajustados e implementados:
quebra, concordata, intervenção e liquidação estatal.
Francisco Reyes Villamizar é um estudioso do direito, dotado de curio-
sidade intelectual e renomeada experiência jurídica.
Não se contentando apenas em atuar no Direito, onde possui sólida for-
mação acadêmica e profissional, estendeu suas inquietações à cultura básica,
onde mais uma vez mostrou todo o seu talento.
No Direito Privado, ramo do Direito em que actua com mestria, faz uso
do método dedutivo, sempre partindo do caso geral em direção ao particular.
Na área do Direito Societário, tem transitado com desenvoltura em atividades
tão diversas quanto a docência, a advocacia consultiva e a dogmática, desta-
cando-se precocemente na comunidade jurídica em razão da seriedade e res-
ponsabilidade que sempre marcaram sua atuação profissional. Tal desempenho
o qualificou para exercer dentro do Ministério da Justiça Colombiano, a fun-
ção de Coordenador dos trabalhos preparatórios para a reforma do Código
Comercial daquele país.
Esta obra, o sexto livro do autor, é fundamentalmente fruto de sua gene-
rosidade espiritual. Após ter aproveitado a oportunidade de aprofundar seus
conhecimentos no Direito Societário do Common Law, e, tendo acesso a in-
formações valiosas que só a prática profissional aliada a uma sólida base bibli-
ográfica podem proporcionar, quis compartilhar sua experiência com o leitor.
A leitura da obra é uma experiência agradabilíssima. Bem concebida e
com a distribuição dos temas metodologicamente planejada, o leitor é condu-
zido pela mão do autor, sem sentir-se menosprezado como neófito. Somos
estimulados a avançar através da leitura, e, para aqueles que desejarem apro-
fundar o estudo de algum tema, em particular, o autor nos brinda com uma
extensa e cuidadosamente selecionada.
Reyes Villamizar não se deixa facilmente seduzir pelas vantagens dos
institutos jurídicos do Common Law, porém, ao apresentá-los toma todo o

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cuidado de suas limitações. Desta forma seu trabalho pode ser caracterizado,
sem dúvida alguma, como dotado da maior honestidade intelectual. O autor
esforça-se para conjugar informação e análise, reflexão com imparcialidade,
sempre por meio de uma exposição clara, concisa e agradável.
Como estudioso do Direito, agradeço ao autor pela obra com a qual toda
a comunidade jurídica da América Latina é brindada, e, pessoalmente, agra-
deço a honra de prefaciar este livro. Ainda que não me considere a pessoa mais
indicada para tamanha tarefa. São obras como esta que nos permitem ter
esperanças sobre o futuro do Direito, a começar pelo resgate de sua distinção
e a restauração de sua qualidade.

FERNANDO HINESTROSA

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Capítulo I
HARMONIZAÇÃO E UNIFICAÇÃO
DO DIREITO SOCIETÁRIO

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 19

1. A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO SOCIETÁRIO


Em virtude daquilo que os economistas chamam de economia de escala,
a associação de capitais é um elemento essencial na conformação do modo de
produção capitalista. Esta simples noção microeconômica justifica a figura
das sociedades comerciais e sua importância como elementos sem os quais é
muito difícil conceber a estrutura produtiva. Não sabemos ao certo onde nas-
ceu a idéia de aglutinarmos em torno de um objetivo único os recursos finan-
ceiros de modo permanente e institucionalizado. Porém, em todo o mundo há
um consenso sobre a localização geográfica onde estes mecanismos obtiveram
o maior êxito, e tem operado com maior perfeição para construir o modo de
produção capitalista. Este lugar, indubitavelmente, é o mundo anglo-saxão.
Primeiro a Inglaterra, e agora os Estados Unidos da América, legítimos her-
deiros dos ingleses.
A Primeira Revolução Industrial ocorrida no século XVIII não foi ape-
nas um conjunto de avanços tecnológicos que passaram a pertencer à vida
cotidiana, como fruto da divisão do trabalho e especialização dos trabalhado-
res. Ela só tornou-se viável graças a um conjunto de teorias e práticas de natu-
reza econômica, financeira e jurídica. Sendo que muitas delas ainda estão
presentes nas formas como o capital, proveniente de diferentes procedências e
titularidades, é atualmente organizado para a produção.
Para acompanhar os avanços que nasceram com as novas formas produ-
tivas, surge a necessidade de garantirmos a eficácia, a confiabilidade e a estabi-
lidade das relações e isto implicou a criação de novas instituições jurídicas
mais adequadas a este propósito. Desnecessário dizer que este desenvolvimen-
to das instituições e dos institutos jurídicos ocorreu onde a necessidade mos-
trou-se mais imperiosa, ou seja, nos países anglo-saxões.
A perda da hegemonia econômica e política da Inglaterra no cenário
mundial, e o correspondente florescimento de uma nova nação na América do
Norte, os Estados Unidos, fez com este último se deparasse com novos desa-
fios na área jurídica que exigiam uma solução. Afinal, os Estados Unidos
receberam o transplante de instituições que já estavam consolidadas tanto nas
possessões, quanto nas ilhas britânicas, com uma legislação e um desenvolvi-
mento jurisprudencial já amadurecidos e estáveis.
É indiscutível que o progresso do Direito Econômico, e particularmente
do Direito Societário possui como principal motor propulsor a legislação e a

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20 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

prática dos Estados Unidos. Esta é uma situação de fato contra a qual, como
ocorre com muitas outras, não devemos enfrentar apenas com base no capricho
ou no calor das emoções, afinal, a verdade está posta e provavelmente quem
mais poderia aproveitá-la é quem se sente mais inclinado a desconhecê-la e
rejeitá-la.
O Direito Societário Norte-Americano tem se transformado em um ponto
de referência obrigatório para os que pretendem conhecer as abordagens mais
modernas sobre a matéria. Desta forma, suas concepções pragmáticas são freqüen-
temente invocadas como subsídio de teses acadêmicas (página 2), propostas de
reformas legislativas e outras análises jurídicas. Porém, devemos reconhecer que,
de modo geral, ainda falta um melhor esclarecimento sobre os complexos e
dinâmicos desenvolvimentos ocorridos tanto na esfera legislativa quanto na
jurisprudencial. Isso se deve, em parte, pela ausência de orientações doutrinárias
(página 2) que permitam ao leitor uma visão geral deste ramo do Direito1, sem
um excessivo aprofundamento jurídico que afasta o iniciante no tema.
Quem se aproxima do Direito Societário norte-americano deve estar cons-
ciente da especificidade deste Sistema Legal, cujo fundamento se encontra de
modo especial nas circunstâncias econômicas particulares que têm prevalecido
nos Estados Unidos. Sabemos que existe neste país um mercado público de
valores mobiliários muito desenvolvido e que apresenta notória dispersão acio-
nária. Esta e outras características peculiares da economia norte-americana são
determinantes na criação das instituições jurídicas societárias, desenvolvidas, em
geral, para a resolução de problemas que pertencem a este avançado Sistema
Capitalista. Uma das principais conseqüências deste complexo mercado de ca-
pitais, é a separação existente entre a propriedade das ações nas sociedades de
capital aberto e o controle administrativo destas últimas. Esta distinção ocorre
em razão das ações das sociedades anônimas de grande dimensão pertencerem a
um grande número de acionistas, cujas participações individuais não alcançam
porcentagens significativas. Esta dispersão do capital dificulta a possibilidade
dos acionistas se organizarem com o objetivo de adquirir o controle acionário da

1 No entanto, TUNC afirma que, “conquanto os Estados Unidos levaram mais longe do que
qualquer outro país seu esforço de elaboração de um Direito Societário que se adapta, até
onde isso é possível, àqueles imperativos de eficácia e de moralidade que correspondem a um
capitalismo moderno, isso se fez ao lado costa de uma regulamentação as vezes aparatosa, que
pode dar lugar a litígios infernais” (TUNC, André. Le Droit Anglais dês Sociétés Anonymes. 3ª
edit. Paris: Edit. Dalloz, 1987, p. 2).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 21

sociedade, e desta forma, torna-se necessária a delegação do controle e do domí-


nio da gestão empresarial à figura dos administradores2.

A. A SEPARAÇÃO ENTRE TITULARIDADE DO CAPITAL E GESTÃO SOCIAL


Os célebres autores Berle e Means, em sua clássica obra sobre a sociedade
moderna e a propriedade privada, analisaram a distinção, verificada empirica-
mente nos Estados Unidos, entre a titularidade do capital e a gestão social
realizada pelos administradores3. Esta obra representou um marco histórico
para a compreensão da organização interna das sociedades norte-americanas
no último século. Nela é ilustrada, de maneira inédita, a mudança ocorrida no
tradicional conceito da propriedade privada, conforme explicado anteriormente.
Segundo os autores, a propriedade, entendida como o poder de disposição e a
faculdade de usar e gozar, no caso das ações está dividida entre uma titularida-
de nominal e o verdadeiro poder que está vinculado a ela4. A partir de análises
estatísticas, Berle e Means demonstraram que cinqüenta e oito por cento –
medidos em relação ao valor dos ativos – das duzentas maiores sociedades
eram dirigidas por administradores5.
Além disso, os autores citados identificaram pela primeira vez o conflito
de interesse que ocorre entre os acionistas e os administradores como conseqüência
desta separação entre a titularidade do capital e a administração social. A partir
de então, passa-se a entender que estes últimos poderiam ter motivações distintas
daqueles. Desta forma, estes interesses antagônicos originam problemas de
coordenação entre acionistas e administradores, que podem gerar comportamentos
abusivos por parte dos que dirigem a sociedade.

2 Segundo GALBRAITH, John Kenneth, “o fracionamento do capital entre uma multidão de


acionista não é a única causa da difusão dos proprietários da sociedade anônima. Sua falta de
informação contribui, igualmente, a distanciá-los das alavancas de comando. Nenhum propri-
etário, possua um pacote grande ou pequeno de ações, pode saber o suficiente, a não ser que
seja membro da tecnoestructura, para julgar com conhecimento de causa as decisões tomadas”
(Introdução à Economia. Barcelona: Edit. Crítica, 1978, p. 91).
3 BERLE, Adolf A. & MEANS, Gardiner C. The Modern Corporation and Private Property. New
York: Transaction Publishers, 1991. A primeira edição desta célebre obra data de 1932,
durante a vigência do denominado “New Deal”.
4 Ibidem, p. 113.
5 Cfr. BUCHHOLZ, Rogene A. Business Environment and Public Policy. Implications for Management
and Strategy. Fourth Edition, Englewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, 1992, p. 246. Segundo
GALBRAITH, “O professor R.S. Larner repetiu o estudo nas duzentas principais empresas em
1963: Em 85 por cento delas nenhum acionista individual ou grupo de acionistas possuía
mais dos 10 por cento do capital. Nas companhias gigantes, ninguém possuía mais do 1 por
cento”. (GALBRAITH, John Kenneth. Introdução... cit., p. 91).

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22 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Tão relevantes foram os resultados empíricos demonstrados pelo traba-


lho de Berle e Means, que desde então existe a preocupação de colocar em
prática normas e mecanismos de controle orientados a minorar as tensões ori-
ginadas do mencionado antagonismo entre acionista e administradores.
Inicialmente o objetivo perseguido, ainda que com resultados apenas
relativos, foi o de restabelecer a correspondência entre a titularidade do capital
e o poder de gestão, através da concessão de maiores poderes de controle aos
acionistas. Uma das primeiras manifestações desta tendência de regulação foi
dada através das legislações federais sobre a representação dos acionistas nas
Assembléias deliberativas da sociedade. Mediante estas disposições, procu-
rou-se restringir a capacidade de os administradores manipularem as decisões
tomadas no órgão social máximo. Para que este objetivo fosse alcançado, a
regulação do mercado de valores mobiliários criou maiores óbices à delegação
de poderes dos acionistas aos administradores, a não ser naqueles casos estrita-
mente previstos pela Comissão de Valores Mobiliários6.
Com o propósito de fazer frente ao problema da ausência de controles
efetivos sobre a administração societária, construiu-se jurisprudencialmente o
conceito de dever fiduciário dos administradores7. Ele surgiu para contrapor o
domínio irrestrito dos gestores das sociedades e, desta forma, assegurar o di-
reito dos acionistas. Outras medidas adotadas mais recentemente para neutra-
lizar este conflito de interesse entre os acionistas e os administradores são de
origem legal e objetivam a criação de incentivos que harmonizem a maximi-
zação da utilidade de cada uma das partes.
A maneira mais eficiente de alcançar tal objetivo, certamente, consiste em
proporcionar aos administradores participação no capital da sociedade de modo
que ocorra um paralelismo de interesse entre os acionistas e aqueles que possuem

6 Dentro de tais regras se estabeleceu, por exemplo, aquela segundo a qual existe a obrigação de
fornecer aos sócios suficiente informação a respeito dos assuntos em que se ocupará a assem-
bléia, de modo que estes possam assumir uma posição informada sobre tais assuntos [Regra
14(a)-11 da Comissão de Valores]. Cfr. Capítulo IX.
7 Em síntese, os autores afirmam que os acionistas perderam tanto o poder como o controle sobre
a sociedade. É por isso que, na sua opinião, eliminaram-se os controles (“checks and balan-
ços”) que os acionistas costumavam exercer sobre os administradores. A concentração de
poder em mãos de indivíduos que não tem a propriedade sobre as ações facilitou a criação de
verdadeiros impérios econômicos, nos quais uma verdadeira forma de absolutismo permite
relegar aos acionistas ao papel de simples provedores de capital, enquanto os novos reis
exercem seu poder (Ibidem, p. 116). Sobre este mesmo aspecto cfr. também BAINBRIDGE,
Stephen M. Corporation Law and Economics. New York: Foundation Press, 2002, p. 11.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 23

poder de decisão na sociedade. Para obter esta simetria de propósitos, são


estabelecidos, por exemplo, incentivos fiscais para que os administradores possam
adquirir participação societária sem incorrer em altos custos tributários.
A clara dissociação entre a titularidade do capital e o controle da gestão
sobre a sociedade tem girado em torno da Doutrina Econômica relativa às
sociedades de capitais, desde sua formulação inicial, feita por Berle e Means.
O célebre economista John Kenneth Galbraith também insistiu nesta contra-
posição de interesses. Em seu Novo Estado Industrial avançou fazendo novas
análises sobre o tema, postulando que o verdadeiro domínio sobre a atividade
empresarial se encontra na denominada tecnoestrutura, em lugar de repousar
simplesmente nas mãos dos administradores da empresa. Este conceito – no-
toriamente distinto da mera administração da sociedade – foi desenvolvido
por Galbraith com base na idéia de uma intrincada organização de indivíduos
que são responsáveis pela adoção de decisões cruciais na vida da sociedade8. O
fenômeno da tecnoestrutura ainda é muito relevante nas empresas de nossos
dias, isto fica patente quando verificamos que as principais determinações
adotadas pelas sociedades são produtos da conjunção das decisões particulares
de inúmeros indivíduos que ocupam cargos de direção ou que assessoram a
organização societária9.

8 “Na grande empresa, as decisões importantes não são tomadas por uma pessoa isolada, senão por
muitas pessoas. Ninguém tem por si só todos os elementos necessários para decidir (...). Faz-se
necessário aludir aos conhecimentos, à experiência e ao juízo dos gerentes, dos diretores comer-
ciais, dos engenheiros, dos cientistas, dos advogados, dos contadores, dos chefes de pessoal e de
todos os demais depositários de um saber especializado. Cada qual contribui contribuindo a
parcela de sua experiência de especialista. É a esse aparelho colegiado de decisão ao que dei o
nome de tecnoestructura”. (GALBRAITH, John Kenneth et al. Introdução..., cit., p. 89).
9 Os grupos que fazem parte da tecnoestructura costumam ser numerosos. Tais grupos estão sujeitos
a mutações constantes em sua composição. Em cada um deles se destacam aqueles indivíduos
que têm acesso a informação relevante sobre aspectos específicos da organização. Estes atuam em
conjunto com outros servidores públicos encarregados de formular conclusões a partir da infor-
mação que os primeiros lhes fornecem. Esta organização permite às agrupações mencionadas
realizar uma atuação de sucesso em assuntos nos que nenhum sujeito, individualmente conside-
rado, poderia desempenhar. Assim, a conjunção e articulação de frações do conhecimento
facilita a realização de atividades de negócios. (GALBRAITH, John Kenneth. The New Industrial
State. New York: The New American Library, 1967, p. 76). Nas grandes organizações empresariais,
as determinações de alguma importância raras vezes recaem sobre uma só pessoa. Daí que se
costume voltar-se a um grande número de profissionais, entre os que se contam advogados,
economistas, engenheiros etc. Isso se deve à complexidade das determinações que se deve adotar.
A organização é, precisamente, a tecnoestructura à que se aludiu. Em vista de que a agrupação
destes indivíduos constitui o verdadeiro governo das companhias, GALBRAITH afirma que nem
os acionistas nem o Conselho de Administração participam realmente na tomada de decisões.
Nas palavras do autor, “não são os administradores quem decidem; o poder efetivo de decisão
radica nos grupos técnicos, de planos e outras agrupações especializadas”. (Ibidem, p. 79).

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24 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

O enfoque adotado por Galbraith em relação ao conflito existente entre


acionistas e administradores foi muito distinto do adotado por Berle e Means.
Apesar de também ter identificado o mesmo antagonismo, aquele autor entendia
que o advento das tecnoestruturas atenuaria os potenciais abusos que seriam
cometidos pelos administradores10. Contudo, ele reconhecia a sensatez da proposta
de Berle e Means para combater o conflito de interesse analisado. Segundo
Galbraith, uma das conclusões mais sugestivas – e talvez a mais ignorada –
presente na obra daqueles autores consistiu em ressaltar a necessidade de que o
Estado assuma seu papel como agente regulador que disciplina o controle de
gestão das companhias. Segundo estes autores, diante da impossibilidade de ser
resolvida na prática o conflito entre acionistas e administradores, seria
indispensável o exercício irrestrito do poder federal sobre a gestão societária11.
A interação entre doutrinas econômicas e jurídicas é uma constante na
evolução do Direito Societário norte-americano. A denominada análise funcional
das instituições e dos diplomas normativos produziu uma significativa influência
do pensamento econômico na formulação de novas teorias relacionadas com o
regime das sociedades. Um claro exemplo desta influência da análise funcional é
a orientação federalista sugerida pelos professores Berle e Means que foi retomada
em certa medida por William A. Cary. Este jurista chama a atenção para o que
ele denomina de competição predatória (“race to the bottom”)12 entre os estados
que pertencem à União norte-americana em matéria de Direito Societário e, que
resultaria em uma diminuição da proteção dos acionistas.
Como cada um dos estados norte-americanos possui competência para
instituir sua própria legislação societária, cria-se o incentivo para que cada ente
da federação desenvolva um desenho legislativo que estimule o maior número
de sociedades a se estabelecerem em seu território. Afinal, estas sociedades se
tornarão fonte de recursos tributários para o estado.
Como são os administradores os responsáveis pela escolha do estado onde
a companhia será constituída, eles acabam sendo os destinatários finais dos ex-
clusivos benefícios incorporados às legislações societárias, provocando a paulati-
na redução das proteções conferidas aos acionistas.

10 Ibidem, p. 130.
11 Ibidem.
12 Cfr. CARY, William A. Federalism and Corporate Law: Reflections upon Delaware. In: Yale Law
Journal, Vol. 663, 1974, nº 83.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 25

Com base nos presumíveis efeitos nocivos deste verdadeiro Mercado de Legis-
lação Societária, Cary propôs em 1974 a fixação das regras imperativas de ordem
federal, permitindo subtrair dos estados competência em relação à edição de nor-
mas societárias.
Certamente, o aludido Mercado de Legislação Societária também possui sua
origem justificada nas particularidades do sistema econômico dos Estados Uni-
dos. Roberta Romano, em sua consagrada obra que explica as razões das vantagens
do regime societário norte-americano, também afirma que a existência desta com-
petição entre os estados está relacionada com ímpeto estatal em captar recursos
econômicos através da cobrança de tributos. Desta forma, aqueles que oferecerem
uma legislação mais alinhada com as necessidades dos investidores e dos adminis-
tradores, conseguirão atrair um maior número de companhias, e, desta forma, um
incremento dos recursos tributários13.
Ainda que as teorias de Cary tenham alcançado certa repercussão, não se
passou muito tempo até tornarem-se alvo de severas críticas e – como só ocorre no
meio acadêmico – passaram a ser contestadas por parte da comunidade dos
doutrinadores norte-americanos. O juiz Ralph K. Winter, por exemplo, refutou
a hipótese formulada por Cary ao demonstrar o sofisma segundo o qual no estado
de Delaware “o acionista sempre perde”14. De acordo com Winter, esta falsa premissa,
devido ao seu determinismo, significaria que os acionistas de companhias
domiciliadas neste estado perderiam o interesse em entrar em litígio nas cortes de
Delaware. Não haveria o menor sentido procurar satisfazer, em juízo, um direito
se existisse, a priori, a certeza de obter do judiciário um pronunciamento desfavorável.
Caso a hipótese de Cary estivesse correta, uma empresa constituída em Delaware
teria, necessariamente, diminuída sua capacidade de atrair novos investidores até o
ponto de tornar-se uma presa fácil de outras empresas domiciliadas nos estados
onde há uma legislação societária com maiores garantias para os acionistas15.

13 Cfr. ROMANO, Roberta. The Genius of American Corporate Law. Washington D.C.: The AEI
Press, 1993, p. 14. A citada autora resume este fenômeno nos seguintes termos: “Os códigos
societários estaduais podem ser considerados como um produto elaborado pelos diferentes
Estados que se destina aos consumidores finais, vale dizer, às sociedades”. (Ibidem, p. 6).
14 Três anos depois da publicação do ensaio de CARY, WINTER publicou sua resposta à hipótese
de CARY em seu ensaio intitulado “Legislação estadual, proteção dos acionistas e teoria
societária” (“State Law, Shareholder Protection, and the Theory of the Corporation”. In: Journal
of Legal Studies, Vol. 6, 1977, nº 251).
15 WINTERM, Ralph K. citado por ROEOMANO, Mark J. Delaware’s Competition. In: Discussion
Paper Series, nº 423; John M. Olin Center for Law, Economics and Bussiness, Harvard Law
School, 2003, p. 5.

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26 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Winter conclui que, devido a esta circunstância, os órgãos legislativos


tanto de Delaware como dos demais estados da União ficariam obrigados a
editar normas avançadas e eqüitativas, de maneira que elas refletissem o ne-
cessário equilíbrio que deve existir entre os diversos sujeitos interessados na
atividade da sociedade.
A tese descrita desconhece a doutrina norte-americana conhecida como
“race to the top” (competência edificante). Segundo esta concepção, os estados
competem para encontrar um equilíbrio normativo entre os interesses dos
acionistas e dos administradores16. Assim, qualquer modalidade de interven-
ção federal na autonomia legislativa dos estados seria contrária à criação de um
ambiente de competição entre os estados em relação às legislações societárias.
Uma intervenção estatal desta natureza produziria efeitos nocivos para a con-
tínua evolução das normas societárias estaduais.
Por este motivo, os autores que pertencem a esta última corrente doutri-
nária, preferem a maior autonomia legislativa dos estados em relação às maté-
rias de Direito Societário, existindo um consenso, dentro desta corrente de
pensamento, de que a intervenção do governo federal nos assuntos dos estados
é prejudicial tanto para os acionistas quanto os administradores17.
O debate entre as teorias expostas pelos partidários de Cary, e os segui-
dores de seu antagonista Winter, ainda não acabou. Contudo, o fato de não
existir uma intromissão federal generalizada na regulação societária, nos faz
acreditar que a tese da “race to the top” tenha recebido uma maior acolhida nos
Estados Unidos18.

16 Cfr. ROMANO, op. cit., pp. 14-31; BAINBRIDGE, Stephen M. Mergers and Acquisitions. New
York: Foundation Press, 2003, pp. 69-72.
17 PALMITER, Alan R. The CTS Gambit: Stanching the Federalization of Corporate Law. In: Washing-
ton University Law Quarterly, Vol. 69, 1991, nº 2, p. 462. A incessante atividade acadêmica norte-
americana deu lugar ao surgimento de novas posturas doutrinárias em torno do debate mencio-
nado. Tem-se notícia de autores que postulam a impossibilidade prática de uma verdadeira
concorrência legislativa entre os Estados. Isso se deve, em parte, à supremacia do governo federal,
cujos poderes o facultam para intervir nos assuntos societários estaduais a qualquer momento.
MARK J. ROE, um dos mais reconhecidos expositores desta teoria, sustenta que as autoridades
federais podem tomar partido em qualquer matéria que revestisse algum grau de importância. Por
tal motivo, afirma que os Estados carecem de uma autonomia irrestrita para legislar sobre Direito
Societário. O autor conclui que “nos Estados Unidos não é apropriado falar da existência de uma
competição interestadual em matéria societária” (Op. cit., p. 44).
18 Ainda que, em estrito sentido, a regulação federal não se ocupe de matérias próprias do Direito
Societário, tais normas afetam, sem dúvida, às companhias que realizam seus negócios nos
Estados Unidos. Como exemplo, pode-se mencionar as normas sobre falência (bankruptcy), o
sistema de bônus de pensões (retirement income securities), o regime de proteção ambiental

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 27

“Na prática, os críticos do Direito Societário tradicional não têm produ-


zido maior impacto no desenvolvimento deste ramo do Direito. O movimen-
to que apóia um sistema de constituição federal das companhias, assim como
uma maior responsabilidade comunitária da sociedade, encontrou seu auge
em meados da década de setenta e oitenta. Porém, tal movimento não conse-
guiu implementar as regras mínimas de caráter federal que preconizavam os
críticos do excessivo poder das sociedades”19.

B. O DEBATE SOBRE A EXTENSÃO DA RESPONSABILIDADE


Sem dúvida, a dicotomia entre as duas visões analisadas não exclui um
debate conexo e não menos importante, como o relativo aos regimes estaduais
de limitação da responsabilidade. Eles permitem, segundo uma ótica estrita-
mente capitalista, que os acionistas gozem de uma imunidade quase plena
diante das reivindicações de terceiros nas hipóteses de insuficiência de ativos.
Esta imunidade, virtualmente irrestrita que as sociedades de capital aberto
desfrutam tem provocado a reação de muitos autores contemporâneos solicitan-
do a intervenção federal no sistema societário norte-americano com o objetivo
de evitar os eventuais abusos que podem surgir desta proteção. Certamente, esta
é uma das maiores controvérsias doutrinárias do Direito Societário. É necessário
um maior debate na esfera legislativa, em relação às discrepâncias na concepção
normativa a ser adotada em relação aos limites deste sistema de proteção patri-
monial dos acionistas, que é próprio das sociedades de capital. A relevância da
discussão deste importantíssimo princípio do Direito Societário norte-america-
no reside no fato de inúmeros regimes jurídicos, inscritos em diversas tradições
jurídicas, terem acolhido com entusiasmo tal instituto jurídico.
Com razão, afirmam alguns autores que na atualidade a limitação da res-
ponsabilidade converteu-se em traço distinto das sociedades de capital nos sis-
temas jurídicos mais avançados20. Apesar de existir consenso nos Estados Unidos
em relação à importância crucial deste postulado, a doutrina encontra-se atual-
mente dividida quanto à atribuição imutável deste benefício de limitação de

conteúdo na denominada Cercla (Comprehensive Environmental Response, Compensation


and Liability Act) e as normas relativas ao mercado público de valores mobiliários (securities).
19 MORRIS, Glenn G. et al., op. cit., Vol. 7, p. 282.
20 Cfr. KRAAKMAN, Reinier et al. The Anatomy of Corporate Law. Oxford: Oxford University
Press, 2004, pp. 8-10.

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28 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

responsabilidade. Em uma comunidade acadêmica com acentuada tendência


capitalista, parecia inusitado pensar que alguém pudesse questionar o sistema
de limitação da responsabilidade de que gozam os acionistas das sociedades
inscritas na Bolsa de Valores mobiliários.
Hansmann e Kraakman desafiaram a corrente vigente entre os doutrinares,
ao propor salvaguardas para tutelar, em circunstâncias excepcionais, os interesses
de credores indefesos. A análise destes autores partiu da formulação geral que
permite distinguir entre credores voluntários e aqueles que são involuntários. A
diferença está na relação de crédito que vincula as partes. No caso dos primeiros,
a relação com a sociedade surge como o resultado do consenso entre a sociedade
e o terceiro, em oposição à falta de manifestação da vontade por parte do credor,
no caso dos credores involuntários. Dito de outra forma, os credores involuntá-
rios teriam direito ao crédito derivado da responsabilidade extracontratual.
Assim, podemos perceber quão desprotegidos estão os credores involuntá-
rios nos casos de insuficiência de ativos da sociedade, devido à impossibilidade
deste tipo de credor ter os meios de prever a futura insolvência da sociedade. Por
isso, tais doutrinadores consideram que o benefício da limitação de risco não
deveria ser utilizado no caso de credores involuntários. Consideram, com efeito,
que tal prerrogativa deveria circunscrever-se nas relações contratuais da socieda-
de21. Esta tese apresentada não foi acolhida pelas legislações estaduais.
Pelo contrário, tem produzido virulentas reações por parte de consagrados
doutrinadores, que percebem nesta doutrina o risco de provocar uma grave fis-
sura na autonomia patrimonial das companhias, com efeitos devastadores no
mercado público de valores mobiliários mobiliários e no sistema econômico
norte-americano.
Easterbrook e Fischel tem refutado, com ênfase, a possibilidade de estabe-
lecer sistemas de extensão de responsabilidade nas sociedades de capital. Estes
autores em suas reflexões, partem da premissa de que o mercado público de
valores mobiliários depende em grande parte desta blindagem patrimonial, e a
conseqüente proteção daqueles que investem em ações.

21 Cfr. HANSMANN, Henry e KRAAKMAN, Reinier. Toward Unlimited Shareholder Liability for
Corporate Torts. In: Yale Law Journal, Vol. 100, 1991. Ainda que HANSMANN e KRAAKMAN
proponham que o regime de extensão de responsabilidade seja introduzido nas legislações
estaduais de maneira voluntária, outros autores consideram que só as autoridades federais
poderiam impor isto com sucesso em todos os Estados da União. Para uma descrição mais
detalhada da tese, cfr. Capítulo IV, infra.

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Ainda de acordo com estes autores, qualquer alteração nesta regra fun-
damental provocaria conseqüências catastróficas para o sistema. Afinal, além
de encarecer os custos de fiscalização sobre os administradores da empresa,
criaria óbices para fluxo de informação no mercado e poderia tornar inviável a
diversificação do portfólio dos acionistas.
Como se todas as razões já expostas não fossem suficientes, os autores
sustentam que o regime de extensão de responsabilidades nas sociedades que
negociam suas ações em Bolsa de Valores mobiliários criaria obstáculos à apli-
cação da hipótese de mercado eficiente, devido à dificuldade de efetuar aqui-
sições de controle sobre companhias que possuam administração ineficiente.
Por isso, Easterbrook e Fischel propuseram soluções alternativas, como a
adoção, por parte das sociedades, de seguros obrigatórios que cubram certos
riscos de responsabilidade extracontratual. Outras medidas recomendadas são:
a fixação de requisitos mínimos de capitalização para alguns tipos de socieda-
des, a estrita aplicação dos deveres fiduciários aos administradores e a descon-
sideração da personalidade jurídica da sociedade quando existirem os
pressupostos que a justifique22.
De todas as soluções propostas, as únicas que parecem ocorrer com certa
regularidade são as últimas. Talvez isso ocorra porque tanto as aplicações de
sanções aos administradores sociais quanto a imposição de responsabilidade aos
acionistas por obrigações da companhia são determinações de competência ju-
dicial. A ampla discricionariedade dos juízes anglo-saxões, somada ao método
de raciocínio indutivo que eles utilizam, permite estas soluções sejam adotadas
em casos individuais, sem a necessidade de complexos processos legislativos.

C. TORNANDO O DIREITO SOCIETÁRIO GLOBAL


O dogma da separação patrimonial continua reinando em todo o âmbito
do Direito Societário norte-americano. A necessidade de garantir a segurança
dos investidores, proteger o mercado público de valores mobiliários e assegu-
rar a estabilidade e credibilidade do regime societário são razões suficientes
para manutenção deste instituto jurídico.
Entretanto, uma nova corrente doutrinária começa a surgir. O tradicional
isolamento da doutrina jurídica norte-americana – muito relacionada à sua ín-

22 Cfr. EASTERBROOK, Frank e FISCHEL, Daniel. The Economic Structure of Corporate Law.
Cambridge: Harvard University Press, 1991, pp. 40-62. Cfr. Capítulo IV, infra.

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30 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

dole individualista – parece sofrer uma ruptura diante do surgimento da abor-


dagem utilizada pelo Direito Comparado. Talvez a interação comercial entre as
nações, proporcionada pelo auge das comunicações nas últimas décadas, os trata-
dos de livre comércio e um maior entendimento recíproco entre culturas diver-
sas, sejam as causas desta nova tendência do pensamento jurídico norte-americano.
Desta forma, têm surgido análises inéditas que integram realidades tão distantes
geograficamente, quanto próximas pela necessidade de resolver dificuldades re-
lacionadas com situações fáticas que guardam certa semelhança.
Um exemplo notório desta tendência constitui a recente obra de Reinier
Kraakman, que reuniu alguns dos maiores expoentes internacionais do Direito
Societário, para apresentar uma análise conjunta dos sistemas legais contempo-
râneos. Na Anatomia do Direito Societário é formulado um enfoque funcional e
econômico das instituições que poderiam considerar-se comuns a todos os siste-
mas jurídicos avançados. O texto parte do pressuposto segundo o qual, ao me-
nos nos países de maior desenvolvimento econômico, os problemas fundamentais
deste ramo do Direito são idênticos. Por isso, apesar das diferenças de enfoque
existentes, que derivam das diversas tradições jurídicas, os autores sustentam
que todos os regimes legais analisados terminam por oferecer soluções relativa-
mente homogêneas para controvérsias semelhantes.
O enfoque direto e pragmático desta obra revela um claro contraste com
os ensinamentos – muitas vezes já ultrapassados – dos doutrinadores europeus
da primeira metade do século XX, muito difundidos na América Latina. No
texto são destacados três tipos de conflitos de interesse que surgem na socieda-
de de capitais.
O primeiro deles está relacionado com o comportamento oportunista
dos administradores em relação à sociedade que dirigem, o interesse próprio
do administrador pode não estar alinhado em relação aos direitos e motivações
de todos os acionistas da empresa. O segundo tipo de conflito surge da dico-
tomia de interesse entre os acionistas majoritários em relação aos direitos e
objetivos dos acionistas minoritários. Por fim, faz-se necessário destacar o con-
flito que surge das pretensões entre a sociedade e os terceiros que contratam
com ela, como por exemplo, seus credores, funcionários etc.
Assim, em lugar da imagem, um tanto quanto romântica, de um harmô-
nico contrato multilateral que corresponderia à sociedade, os autores assu-
mem uma postura que, apesar de incômoda, é reveladora de uma realidade
prática irrefutável.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 31

Ao contrário do que poderíamos pensar, esta visão dos autores é muito


otimista em relação ao papel que o Direito Societário deve cumprir. Segundo
eles, todos os regimes societários avançados perseguem um mesmo objetivo, a
saber, a satisfação dos interesses gerais da comunidade. Isto é alcançado por
meio do bem-estar dos acionistas, funcionários, fornecedores e clientes, sem que
a satisfação de qualquer um deles ocorra através do sacrifício injustificado de
nenhum dos demais. Na medida do possível, procuram-se também alcançar os
benefícios de terceiros, aqui incluídas as comunidades locais. Trata-se do que os
economistas chamam de busca da eficiência social23.
Estas notas introdutórias, que acabam de ser apresentadas, revelam com
clareza a existência de uma constante evolução que a disciplina vem experi-
mentando ao longo dos últimos anos. A influência do Direito Societário norte-
americano é tão significativa, que a cultura jurídica de origem romano-germânica
vem incorporando paulatinamente as teses e as instituições originárias do Common
Law ao sistema jurídico de origem continental européia24.
Por motivos óbvios, os primeiros sistemas legais a adotar estas normas
pertencem à própria União norte-americana. Assim, tanto Porto Rico como o
estado de Louisiana incorporaram a suas legislações institutos próprios do

23 KRAAKMAN, Reinier et al., op. cit. Na obra também se estabelece um paralelismo entre as
regulações contemporâneas das sociedades de capital, a partir de elementos homogêneos que
aparecem como uma constante nos diferentes regimes jurídicos. Trata-se de cinco característi-
cas que os autores analisam ao longo do texto. São elas: a personalidade jurídica da socieda-
de, o sistema de responsabilidade limitada, a livre negociação das ações, a administração
delegada a um Conselho de Administração e a titularidade do capital por parte de investidores.
Na opinião dos autores, esta simetria de regulação na matéria se deve às exigências econômi-
cas inerentes a qualquer sociedade capitalista de grandes dimensões. Por isso, independente-
mente das tradições jurídicas diferentes que são objeto de análise no livro, as facetas mencio-
nadas terminam por imporem-se de modo imperativo e sem as distorções próprias de sistemas
menos avançados.
24 MIROW adverte a respeito da crescente tendência que se apresenta nos países ibero-america-
nos a adotar normas e princípios próprios do Common law. Nas palavras do autor, “pode-se
sustentar a tese segundo a qual, o século XX se caracterizou na América Latina pela transição
entre o Direito europeu-continental e a tradição jurídica norte-americana. Ao apartar-se do
tradicional sistema romano-germânico, visando conceber uma legislação própria, os países
pertencentes a esta região acolheram algumas das figuras jurídicas existentes nos Estados
Unidos. Ainda que ainda se possa recusar esta tese com fundamento em novas verificações
empíricas [...] é inegável que, desde a Segunda Guerra Mundial, a educação recebida pelos
juristas latino-americanos nas universidades estadunidenses deixou impressão indelével nas
legislações de Direito Privado de seus respectivos países” (MIROW, Matthew C. Latin American
Law: A History of Private Law and Institutions in Latin America. Austin: University of Texas
Press, p. 170). O autor também cita alguns exemplos da influência que teve o Direito Societário
dos Estados Unidos em Latino América. “No México, por exemplo, a Lei da Comissão Nacio-
nal de Valores de 1953 se baseou na legislação de valores mobiliários norte-americana. Assim,
a lei societária colombiana inclui numerosas figuras adaptadas das leis do Estado de Delaware”.
(Ibidem, p. 169).

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32 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Direito Privado Anglo-Saxão25. Também os países da Europa continental


também sucumbiram ante a necessidade de incorporar em seus regimes jurí-
dicos algumas instituições próprias do Common Law. Isto é tão evidente, que
figuras já consagradas há muito tempo nas legislações estaduais norte-ameri-
canas têm sido incluídas nos sistemas jurídicos das nações da União Européia,
através das diretivas comunitárias sobre o tema. Esta mesma influência come-
ça a ser notória também nos países da América Latina26.
Não é nenhum exagero afirmar que o Direito Societário norte-americano
é um dos mais avançados ordenamentos jurídicos no contexto do Direito Mer-
cantil contemporâneo. A admirável combinação entre um regime, flexível e fa-
cilitador da atividade societária, com a celeridade nas instâncias encarregadas de
aplicá-lo, têm gerado um justificado interesse acadêmico na análise de seus prin-
cípios orientadores e de seus desenvolvimentos legislativos e jurisprudenciais27.

25 Um dos mais interessantes debates do Direito Civil contemporâneo é o que se relaciona às


origens, à evolução e às perspectivas do denominado Código Civil de Luisiana. Apesar da
cessão do território de Orleans ocorrida em 1803, mediante a compra efetuada pelos Estados
Unidos da França, pode-se dizer que o fenômeno da penetração do ‘Common Law’ no Estado
de Luisiana é relativamente recente. De maneira que sua consolidação mal começou. Assim, o
virtuoso sistema jurídico legado por espanhóis e franceses resistiu durante mais de dois séculos
ao lugar e à ocupação do Direito anglo-saxão, que só agora começa a dominar em múltiplos
âmbitos do Direito Privado de Luisiana. À margem dessa inevitável intromissão, a doutrina
mantém um debate inacabado sobre as verdadeiras origens da codificação do Estado. Assim,
enquanto para muitos a obra fundamental do Direito Civil de Luisiana está baseada no Direito
Civil francês e, em especial, no Code Napoléon de 1804, outros sustentam que o Digesto
Luisianés de 1808 se baseia, em essência, em normas de origem espanhola que se remontam
inclusive a estatutos tão remotos como as Doze Partidas de Alfonso X, O Sábio. (Cfr. PASCAL,
ROBERT A. The Louisiana Civil Code and Its Study. In: Luisiana Law Review, Vol. 60, nº 1,
outubro de 1991, pp. 1-12).
26 Efetivamente, a legislação brasileira incorpora múltiplas figuras do Direito norte-americano.
Assim, a reforma efetuada pela Lei 6.404 do 15 de dezembro de 1976 contém figuras tais
como os acordos de acionistas de que dá conta o artigo 118, a classificação de ações,
regulada nos artigos 15 e seguintes etc. Mais recentemente, a Lei 10.303 do 31 de outubro
de 2001 introduziu significativas alterações à lei de sociedades anônimas (6.404, citada),
mediante a inclusão de preceitos de clara ascendência norte-americana. Dentro deles se
encontra, por exemplo, uma regulação sobre acordos de acionistas em que é evidente a
influência do “Common Law”. No artigo 118, Parágrafo 3 da Lei 10.303, determina-se a
seguinte solução tomada, sem dúvida, dos remédios próprios da “equity”: “Nas condições
próprias do acordo, os acionistas podem promover a execução específica das obrigações
assumidas”. (Cfr. BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Sociedade anônima atual. São Paulo:
Editora Atlas S.A., 2004, p. 125).
27 Para o caso europeu, esta influência é especialmente relevante no âmbito da regulação do
mercado público de valores mobiliários. Assim nota a tratadista espanhola NURIA FERNÁNDEZ
PÉREZ, quando afirma que o Direito americano constitui um ponto de referência indispensável
no âmbito da proteção jurídica do acionista investidor. “Não em vão a importância e dimen-
sões das sociedades cotadas em Estados Unidos é tal, que se converteram em autênticos
instrumentos jurídicos de canalização da poupança dos particulares para as atividades empre-
sariais” (A proteção jurídica do acionista investidor. Madri: Edit. Aranzadi, 2000, p. 147).

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D. A NATUREZA DA FIRMA SOCIETÁRIA


Atualmente, não é possível conceber nenhuma instituição do Direito
Societário norte-americano sem fazer referência à teoria econômica28. Como
será analisado mais adiante nesta obra, tanto o legislador de direito societário
quanto o juiz que aplica esta mesma legislação em um caso concreto envol-
vendo sociedades, cada um ao seu modo, sabem a relevância econômica que
cada instituto jurídico ou sentença judicial podem ter para o desenvolvimento
da atividade empresarial.
Assim, por exemplo, a doutrina conhecida como a regra da discricionarieda-
de (“business judgement rule”) baseia-se na concepção do trabalho dos adminis-
tradores como uma função rigorosamente econômica, consistindo na assunção
calculada dos riscos que podem levar a inovação empresarial e à criação de rique-
za. A determinação consciente dos juízes norte-americanos, no sentido de não
interferir nas decisões tomadas pelas companhias em relação à atividade empre-
sarial das mesmas é uma contundente demonstração da prevalência da concep-
ção econômica em relação à estrita reverência aos raciocínios jurídicos29.
Assim, podemos perceber uma clara relação de dependência entre economia
e direito não apenas nos textos especializados na matéria, mas também, nos
desenvolvimentos legislativos e nas sentenças judiciais que são proferidas em
relação à disciplina societária. A explicação teórica sobre a natureza da sociedade,
sua finalidade e a forma como a mesma opera na realidade tem migrado das
tradicionais concepções jurídicas para começarmos a analisá-la a partir de teorias
econômicas30. Um dos principais movimentos acadêmicos baseia-se no célebre
texto de Ronald H. Coase, publicado em 1937, sobre a natureza da firma (“The
Nature of the Firm”)31. A obra procura definir o conceito de firma, a partir da

28 Na opinião de EDUARDO GOULART PIMENTA, “a empresa talvez seja o objeto de estudo e


regramento que mais aproxime Direito e Economia. Isto porque se trata de uma categoria cujos
contornos foram inicialmente ensaiados pelos economistas, que dela se valem para entender
e explicar a forma pela qual a sociedade se dedica a produzir e distribuir os bens e serviços de
que necessita ou deseja.” (Direito Societário. Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2010, p. 17).
29 Em regimes jurídicos de tradição romano-germânica, a aplicação da regra da arbitrariedade
enfrenta dificuldades procedentes do rigor conceitual do direito civil. É, efetivamente, difícil
justificar uma imunidade de responsabilidade dos administradores sociais em hipóteses nas
quais sua conduta poderia se classificada como culposa. Assim, o incentivo para a assunção
de riscos empresariais se restringe pela ameaça de sanções e responsabilidades impostas aos
administradores que atuem de maneira audaz.
30 Escassa relevância é outorgada à teorias como a da realidade, a da instituição, a da ficção jurídica
etc., salvo que tais teses sirvam para explicar, na prática, a finalidade econômica da sociedade.
31 COASE, Ronald H. The Nature of the Firm. In: Econômica, nº 4, 386, novembro, 1937, pp. 386-405.

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34 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

função econômica na organização dos recursos produtivos32. O conceito criado


por Coase demonstra os benefícios que representa a organização em termos de
redução dos custos empresariais.
Segundo a concepção do economista inglês, a firma permite atenuar aque-
les custos em que o empresário individual tenderia a incorrer para adquirir insu-
mos produtivos, caso tivesse que reger-se pelos preços e condições de mercado33.
Coase também introduziu o conceito de custos de transação (transaction costs),
entendidos como aquele em que deve incorrer o empresário para negociar com
êxito e de maneira individual com cada um de seus fornecedores de bens e servi-
ços34. Segundo o autor, uma das justificativas para a existência da firma se encon-
tra, exatamente, na possibilidade de reduzir tais custos. Isso ocorre porque, ao
invés de existir uma multiplicidade de contratos temporários que precisam ser
negociados individualmente e de maneira constante, o empresário reduz tais
contratos a um único através da constituição da empresa que melhor atenda aos
seus interesses35. Outros custos que o autor considera importantes são os relativos

32 Tradicionalmente, o “Common Law” norte-americano baseava a teoria do contrato no famoso


caso do Dartmouth College, proferido em 1819 pela Corte Suprema dos Estados Unidos. Neste
caso, se considerou que a ata de constituição certificada (charter) constituía um “contrato entre
os fundadores e o estado de constituição, de maneira que este último não estava facultado
para modificar tal acordo, sob a disposição constitucional que proíbe a modificação unilateral
de contratos por parte do Estado”. (MORRIS, Glenn G. op. cit., Vol. 7, p. 283).
33 Por este motivo, alguns autores sustentam que “a ‘mão invisível’ de um mercado aberto e
horizontal, concebida pelos economistas neoclássicos, veio sendo substituída paulatinamen-
te pela mão ‘visível’ de grandes organizações empresariais que, por meio de complexas redes
de controle inter-societario, organizado hierarquicamente, permitem eliminar, de forma muito
benéfica, os riscos e custos inerentes às negociações que se cumprem nos mercados abertos.
Isso é viável devido à capacidade de agrupar recursos e de coordenar a ação das unidades que
os compõem” (ENGRACIA-ANTUNES, José. Liability of Corporate Groups: Autonomy and
Controle in Parent-Subsidiary Relationships in US, German and EU, an International and
Comparative Perspective. Deventer: Kluwer Law and Taxation Publishers, 1994, p. 27).
34 Para COASE, “a razão principal pela qual é rentável estabelecer uma firma é a existência de um
custo inerente ao mecanismo de fixação de preços sob condições de mercado. O custo mais
evidente relacionado com a ‘organização’ da produção a partir do referido mecanismo de
fixação de preços consiste, precisamente, em descobrir quais são os valores dos insumos no
mercado [...]. Também devem ser levados em conta os custos que implica negociar e concluir
um contrato separado para cada operação de troca que se realize no mercado” (Ibidem).
GOULART explica os custos de transação assim: “O empresário, no exercício da empresa,
precisa constituir, como salientamos, uma série de transações jurídicas destinadas a viabilizar
a organização dos fatores de produção. A cada fator de produção ele deve remunerar por meio
de salários, renda, juros ou preços (custos de produção). Entretanto, para implementar as
transações – estabelecer as relações jurídicas – destinadas a estipular como vai se efetuar a troca
de salário por trabalho, capital por juros, terra por renda e teconologia por royalties e garantir
que sejam respeitados e protegidos os términos destas mesmas relações o empresário tem uma
outra ordem de custos, os custos de transação.” (GOULART. Direito Societário, op. cit., p. 23).
35 Nas palavras de COASE, “o administrador (ou o dono do negócio) não tem que celebrar uma
série de contratos com aqueles dependentes com quem estabeleceu uma cooperação dentro da

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à identificação dos preços de mercado, tarefa que nem sempre é fácil. Ele ainda
faz referência a outras despesas relevantes, como as relativas à intervenção das
autoridades governamentais em relação às operações celebradas no mercado. Co-
ase menciona, por exemplo, as despesas relacionadas com os impostos de vendas,
as quais evidentemente nas negociações internas à firma. O mesmo pode ser dito
em relação a outras medidas governamentais, como as relativas à cota de produ-
ção, controles de preços e racionamento de bens e serviços. Com base nas consi-
derações anteriores, o autor conclui que uma firma “consiste no sistema de relações
que surgem quando a direção dos recursos depende de um empresário”36.
“De acordo com a teoria coaseana da firma, as sociedades surgem quando
é possível reduzir os custos mediante a delegação de seu poder de negociação
a um administrador, a quem será atribuído a capacidade organizar os fatores
de produção.”37.
Tem-se afirmado, inclusive, que a teoria econômica da sociedade “consti-
tui hoje o paradigma dominante no Direito Societário”38. Segundo Bainbridge,
o modelo usado para explicar o fenômeno societário a partir de uma perspectiva
econômica se integra a partir de três componentes essenciais: i) teoria do nexo
contratual societário (corporation as a nexus of contracts); ii) análise da redução
dos custos de transação (transaction costs); e iii) os denominados custos de agên-
cia (agency costs).
I. TEORIA DO NEXO CONTRATUAL
Mediante a teoria do nexo contratual societário, procura-se explicar a
função econômica essencial que cumpre a sociedade, como sendo um centro
de atribuição de direitos e deveres, em lugar de concebê-la e justificá-la como
um ente jurídico.

firma, como si seria necessário se tal cooperação fora o resultado direto do mecanismo de preços
de mercado. Isso se deve ao fato que essa série de contratos é substituída por um só.” (Ibidem).
36 Ibidem. Com fundamento nas considerações anteriores, o autor formula uma teoria sobre os
fatores de crescimento de uma firma. Em seu critério, esta propenderá para uma maior dimensão
na presença dos seguintes fatores: “a) Quando os custos de organização sejam baixos, sempre
que seu incremento se produza lentamente à medida que aumenta o número de negócios
organizados; b) Quando a propensão do empresário a cometer erros seja baixa, sempre que ela
se mantenha controlada à medida que aumenta o número de negócios organizados, e c)
Quando se obtenham maiores descontos (ou se evite o aumento de preços) respeito do
fornecimento de fatores de produção, à medida que a firma aumenta seu tamanho” (Ibidem).
37 BAINBRIDGE. Corporation Law...cit., p. 35.
38 Ibidem, p. 26.

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36 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Esta teoria procura explicar a utilidade da sociedade como sendo o pon-


to focal em torno do qual converge numa infinidade de relações e vínculos
obrigacionais, diretos e indiretos, em relação a todos os sujeitos que possuem
algum interesse na operação da sociedade. Tal interesse é oriundo das relações
jurídicas existentes entre a sociedade e o sujeito interessado39.
Dentro dos interessados encontram-se, por exemplos os sócios, os admi-
nistradores e todos os terceiros que tenham algum tipo de relação com a socie-
dade (stakeholders40). Devem ser incluídos nesta categoria os trabalhadores, os
fornecedores, os bancos e outras instituições financeiras, os subscritores de títu-
los de crédito, os consumidores, o Estado, os municípios e a comunidade na
qual a sociedade opera. Nas palavras de Bainbridge “os empregados oferecem seu
trabalho à sociedade. Os credores entregam os recursos financeiros. A contri-
buição inicial dos acionistas consiste no aporte de capital integralizado ao patri-
mônio da sociedade, assumindo o risco da perda do investimento, como
conseqüência, surge seu dever de vigilância em relação à conduta dos adminis-
tradores. Estes últimos por sua vez, supervisionam a atuação dos trabalhadores e
coordenam as atividades relativas aos insumos que a sociedade requer. Assim,
pois, a companhia é uma ficção jurídica que representa um conjunto complexo
de relações contratuais entre todos estes atores. Podemos dizer então, que a
sociedade não é um ente com existência em si mesmo, melhor seria dizer que ela
é um ponto de confluência de contratos explícitos e implícitos mediante os
quais são estabelecidos direitos e deveres entre todos os participantes”41.
Ante o exposto pelo autor, conclui-se que a companhia constitui-se pela
soma dos indivíduos unidos em uma multiplicidade de relações contratuais. Por
esta razão, nenhum dos participantes pode ser considerado, em sentido econô-

39 “O conjunto de contratos que constituem a firma consiste, em grande parte, numa multiplicidade
de acordos implícitos, os quais, além de ser incompletos, não são susceptíveis de execução
coativa”. (BAINBRIDGE. Corporation Law...cit., p. 35).
40 Na opinião de JAIRO SADDI, “o conceito de stakeholder é de difícil transposição, mas pode ser
resumido ao ponto de vista do agente que pode potencialmente afetar a firma. Ou seja, assim
como o acionista – que também é um stakeholder –, há outros atores que têm o potencial, os
meios ou até mesmo os obstáculos para influenciar os objetivos corporativos. Uma das defini-
ções inicias de R. Edward Freeman estabelece que stakeholder é aquele que tem algo a prêmio,
tem interesse e pode afetar ou pode ser afetado pela organização da firma (transparecendo uma
visão sociológica da empresa). Sua contribuição ao estudo coseano da firma é considerar cada
agente econômico com vontades e agendas distintas, razões práticas (no sentido aristotélico) que
podem não ser necessariamente coincidentes.” (SADDI, Jairo. Conflitos de interesse no Mercado
de Capitais. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteneiro de et. al. Sociedade Anônima, op. cit., p. 347).
41 Ibidem, p. 27.

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mico, como o proprietário pleno da sociedade. Neste contexto norte-americano,


este enfoque conduz, necessariamente, a uma substituição do tradicional para-
digma da primazia dos acionistas (Shareholder primacy), pelo novo postulado da
primazia dos membros da Administração da sociedade (director primacy)42. Este
novo paradigma mostra que o poder de decisão nas sociedades norte-americanas
está legalmente centralizado nos membros da Administração da Sociedade, so-
bre os quais recaem os deveres fiduciários que regem a conduta da companhia.
A Teria do Nexo Contratual procura justificar o Direito Societário como
um sistema de critérios legais ou contratuais mínimos, que permitem alcançar
um ponto de equilíbrio ótimo, de maneira que os direitos de todos sejam
suficientemente protegidos. Com base nesta concepção, o regime de sociedades
é um mecanismo de redução dos custos de negociação (bargaining costs). Vale dizer,
que as normas legais evitam que os interessados incorram nas despesas que teriam
que incorrem caso pretendessem chegar a um acordo negociado sobre cada um
dos aspectos requeridos para estabelecer seus respectivos direitos e deveres.
Desta forma, as normas legais cumprem uma função essencialmente su-
pletiva da vontade das partes43. Estes preceitos representam a obtenção de um
ponto de equilíbrio, considerando-se minuciosamente todos os fatores rele-
vantes e os interesse das partes. Como a negociação entre todas as partes en-
volvidas, que conduza a uma solução ótima em termos contratuais, seria
excessivamente custosa e demorada, surge a figura do legislador para auxiliar
neste desafio. A função que cabe ao legislador de direito societário, consiste
exatamente em colocar-se no lugar destes sujeitos, com o propósito de conce-
ber garantias e proteções mínimas, para cada uma das partes envolvidas em
caso de um eventual conflito.
Este resultado é obtido, a partir do que se convencionou chamar de ne-
gociação hipotética (hypothetical bargain), ou seja, o exercício simulado de pro-
postas e contrapropostas que conduzem a premissas jurídicas equilibradas
para redigir, com alcance geral, todas as referidas relações negociais. Este mé-
todo adquire relevância crucial na análise das inovações que devem ser intro-

42 Esta perspectiva considera a sociedade como um veículo por meio do qual os membros do
Conselho de Administração se apropriam do capital que administram dos acionistas e credores
(ibidem).
43 Claro que, sob a concepção predominante na doutrina dos Estados Unidos, esses preceitos
normativos deveriam ter um alcance meramente dispositivo, de tal forma que se facilite a mais
ampla possibilidade de estipulação contratual. (Cfr. Capítulo II, supra).

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38 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

duzidas no Direito Societário, uma vez que ele constitui um modelo orienta-
dor, com grande utilidade prática.
Parte dos doutrinadores tem encontrado dificuldades em aceitar a teoria
do nexo contratual44. Por isso, tem sido proposta em sua substituição, a deno-
minada teoria contratual incompleta (incomplete contracts theory). Este postulado
propõe a impossibilidade de regular, ex ante, uma parte significativa das regras
que devem ser impostas às partes vinculadas no decurso da existência da socie-
dade45. Assim, considera-se que entre os diversos participantes da sociedade
originam-se vínculos jurídicos incompletos, que exigirão uma definição, na
medida em que ocorrem em concreto, das relações que deles surgem. A concre-
tização de tais vínculos, exigirá a participação dos indivíduos escolhidos para
definir unilateralmente ou para negociar com as partes envolvidas, as condições
em que serão solucionadas as relações jurídicas incompletas a que nos referimos.
Alguns autores consideram que esta concentração de poderes decisórios
em um só funcionário ou órgão da administração, permite incrementar a eficiência
da sociedade. Na verdade, a teoria contratual incompleta parte da dificuldade
de regular contratualmente as relações de negócios que se concretizarão no futuro.
Por isso que a delegação de poder decisório para resolver estas relações contratuais,
exerce um papel cada vez mais importante no aprimoramento da produtividade
da firma46.
McCahery formula uma síntese, muito apropriada, da teoria contratual in-
completa. Segundo o autor, “as sociedades são caracterizadas, normalmente, como
um conjunto de relações negociais. Devido às incertezas futuras e como o com-

44 Estas dificuldades se originam em diversos fatores como são os relativos à complexidade, a


incerteza e a propensão para condutas oportunistas. Sobre o primeiro dos problemas propos-
tos tem-se que as conseqüências jurídicas das relações societárias são dificilmente reguláveis
a priori. Este problema se põe de manifesto em circunstâncias litigiosas, devido ao fato que a
conduta de demandantes e demandados em relação a seus direitos, pode variar significativa-
mente a respeito da percepção que eles poderiam ter no momento de vincular-se inicialmente
com a sociedade. A incerteza, como se analisará em detalhe mais adiante, surge da incapaci-
dade de predizer a conduta futura que terão de observar as pessoas vinculadas à organização
societária. Por último, é evidente que o palco descrito é propício para condutas oportunistas
daqueles dotados do poder decisório suficiente para definir a forma em que terão de comple-
tar-se as relações jurídicas que surgem no meio complexo e incerto ao qual se fez referência.
45 Segundo WILLIAM BRATTON, não é possível considerar que as partes assinantes de um contrato
tenham a capacidade de prever ex ante, soluções racionais aplicáveis a todos os problemas que
poderiam surgir entre elas. “Ainda que uma cláusula contratual pudesse ser concebida desde o
começo da relação, na prática seria difícil um acordo entre as partes para estipulá-la, devido à
impossibilidade de verificar a execução futura das prestações derivadas da cláusula, tanto pela
contraparte como pelas autoridades competentes”. (Op. cit., pp. 273-274).
46 BRATTON, op. cit., p. 275.

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portamento que as partes terão no por vir é impossível de especificar e observar ex


ante, assume-se que as relações contratuais são incompletas por natureza”47.
II. CUSTOS DE TRANSAÇÃO (TRANSACTION COSTS)
O segundo aspecto relacionado com a teoria econômica das sociedades
refere-se aos denominados custos de contratação. Como a própria terminologia
indica, significa as despesas incorridas com o propósito de celebrar contratos e
realizar operações negociais para o desenvolvimento das atividades empresariais.
Isso significa que quanto mais altos são os custos, menores serão os números
de negócios que se realizam, com a conseqüente perda de valor para o
empresário48. De uma perspectiva econômica, justifica-se a constituição de uma
sociedade, pois ao compararmos os custos de contratação que o indivíduo incorre
em relação ao empresário que se organiza segundo algum dos tipos societários,
o custo deste último é menor49. É lógico que os custos que surgiriam para um
empresário organizado sob a forma societária seriam menores do que aqueles de
quem atua individualmente.
Richard Posner analisou as diferenças econômicas existentes entre estes
dois extremos de atuação empresarial50. Segundo o autor, uma das vantagens
que surge da escolha da sociedade pode originar-se da redução dos custos de
aparelhamento de sua estrutura organizacional. O empresário individual rea-
liza contratos com distintos provedores por meio de negócios bilaterais, para
os quais deve incorrer em altos custos de contratação.
O fato de a contra parte do contrato (provedores, prestadores de serviço,
etc.) atuarem motivados por interesses individuais, pode implicar em um au-
mento dos custos de produção. Além disso, qualquer modificação das condi-

47 McCAHERY, Joseph A. et al. Understanding (Un)incorporated Business Forms. In: Topics in


Corporate Finance, Amsterdam Center for Corporate Finance, nº 12, 2005, p. 9.
48 De acordo com GOULART, “quanto mais baixos forem os custos de transação maiores e mais
eficientes serão as transações contratuais realizadas pelos empresários com o intuito de orga-
nizar os fatores de produção. Sob este perfil, a eficiência do Direito está em minimizar (ou,
hipoteticamente, acabar) com os custos de transação – mediante redução ou eliminação das
dificuldades e gastos para contratação – de forma que, no exercício da empresa, haja uma
maior quantidade e qualidade de trocas e relações jurídicas destinadas à organização dos
fatores de produção.” (GOULART. Direito Societário, op. cit., p. 33).
49 Na teoria econômica fala-se também do problema dos custos de agência (agency costs), quer
dizer os custos que tem de assumir o principal para atingir resultados fieis e efetivos dos seus
empregados e contratantes. (POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. New York: Aspen
Law and Business, 1998, p. 428).
50 Ibidem, p. 427.

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40 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ções contratuais iniciais deverá ser resolvida por meio de uma nova negocia-
ção51. Estes fatores limitam o âmbito de ação do empresário, que não possuem
um controle direto sobre estes agentes que são externos à sociedade, de ma-
neira que sua rentabilidade também é reduzida52. Em contraste com o ante-
riormente exposto, no interior de uma estrutura societária, torna-se mais fácil
para o empresário contratar o número requerido de empregados, cuja remu-
neração está definida nos contratos celebrados com a sociedade. Com isso, a
remuneração que é paga ao funcionário confere à sociedade a possibilidade de
dirigir a atuação de seus trabalhadores em relação a uma grande quantidade
de serviços requeridos para a exploração econômica. Assim, enquanto no mo-
delo de organização individual cada um que contrata com a empresa deseja
receber o pagamento pela execução específica de cada tarefa contratada, o
empresário societário pode reduzir seus custos mediante a modalidade de con-
tratação referida.
Além disso, a reunião formal de empregados, cuja vinculação conjunta é
facilitada pelo esquema societário, cria no funcionário o sentimento de per-
tencer à organização, estimulando no mesmo o desejo de que a empresa tor-
ne-se mais eficiente53. Ao organizar a atividade empresarial por meio de uma

51 No mesmo sentido, a professora britânica JANET DINE assinala que “a legislação societária tem
como único objeto prevenir e reduzir os altos custos ocasionados pela negociação individual”.
(The Governance of Corporate Groups. Cambridge University Press, 2000, p. 10).
52 Para ilustrar a comparação, é conveniente imaginar dois empresários que se dedicam à mesma
atividade de exploração econômica, mas que a organizaram com técnicas diferentes. O primeiro
deles contrata com pessoas independentes para obter o fornecimento de matérias primas, os
labores de transformação e as vendas do produto findo. O segundo, organizado sob uma
estrutura societária, vincula e dirige a todos os anteriores mediante contratos de trabalho. A
característica principal do método utilizado pelo empresário individual consiste na multiplicidade
de relações contratuais que o vinculam a cada um dos provedores e prestadores de serviços. Esta
contratação plural implica, para o empresário, a necessidade de efetuar negociações individuais
com cada um deles, com o propósito de definir as condições de preço, quantidade, qualidade,
data de entrega, modos de pagamento e garantias para o cumprimento dos diversos labores
contratadas. Como se disse, a circunstância de que os contratantes (provedores, prestadores de
serviços, etc.) atuem motivados por interesses pessoais, pode implicar um aumento nos custos de
produção. Assim, a independência entre o empresário e seus contratantes significa que o
controle daquele a respeito da atividade que desenvolvem estes depende das cláusulas contratuais
que se pactuaram ab initio e dos específicos mecanismos convencionais que nelas se contempla-
ram. Desta maneira, o empresário deve atribuir uma parte considerável de seus recursos à
negociação original com cada um de seus contratantes. Adicionalmente, se o estado do mercado
varia ou aparecem fatores não contemplados durante a negociação inicial, o empresário deverá
proceder a efetuar negociações adicionais a respeito das condições contratuais primitivas, com
os custos adicionais que isso implica. As desvantagens mencionadas não afetarão no mesmo
nível o empresário organizado sob a estrutura societária, devido a sua capacidade de negociar a
priori as condições contratuais com seus colaboradores.
53 Contudo, é bom advertir que o empresário societário também deve assumir certos custos
relacionados com o controle sobre sua estrutura produtiva. Efetivamente, em virtude da

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sociedade, reduzimos os custos de contratação em que incorre um empreen-


dedor ao desenvolver sua atividade econômica54. Além das teorias formuladas
por Posner, Bainbridge propôs também, que a sociedade contribui para redu-
zir os custos de contratação ao atuar como uma unidade centralizada facili-
tando a diminuição dos gastos relacionados com a incerteza, complexidade e
propensão ao oportunismo.
A incerteza surge da impossibilidade de antecipar todas as conseqüências
jurídicas derivadas dos atos e operações nos quais uma sociedade participa du-
rante sua existência. Com efeito, desconhecemos a conduta futura daqueles que
participam das relações jurídicas com a sociedade – incluídos os provedores, as
instituições financeiras, os empregados, os contratantes etc. – além de ignorar-
mos as circunstâncias econômicas em que a sociedade terá que cumprir suas
próprias obrigações e exigir o cumprimento por parte de terceiros. Esta incerte-
za também está relacionada com o acesso à informação que os participantes

inexistência de uma relação estreita entre o resultado da atividade do empregado e sua


remuneração, o empregador deve criar incentivos para que seus trabalhadores se sintam
motivados a reduzir os custos de produção. Como regra geral, parece sensato assumir que aos
dependentes seja indiferente o custo de aquisição dos insumos produtivos e sua otimização.
No mesmo sentido, é preciso levar em conta que a atividade dos empregados da sociedade
depende das instruções dadas pelo empresário. Assim, é claro que este deve incorrer em custos
adicionais para garantir que ditas instruções sejam transmitidas fielmente aos empregados.
Assim, enquanto no esquema de organização individual o empresário assume custos de gestão
consideravelmente altos, o empresário societário está exonerado deles, em virtude das relações
com seus dependentes, ainda que incorrera em outros custos referentes ao controle sobre sua
organização produtiva.
54 JOSÉ ENGRACIA-ANTUNES resume de maneira apropriada a teoria de COASE, desenvolvida
posteriormente por WILLIAMSON, relativa aos custos de contratação: “os empresários vão ao
sistema que represente menores custos de contratação. No contexto de um modelo de mercado
aberto, a única alternativa disponível para este efeito constitui o mecanismo de preços: A
atividade econômica é o resultado de operações individuais de intercâmbio de recursos, cuja
celebração se cumpre entre os agentes econômicos (empresas). A figura contratual aparece bem
como o principal mecanismo jurídico para respaldar o funcionamento deste sistema. Não
obstante, os contratos individuais não estão livres de custos; pelo contrário, estes negócios
jurídicos implicam gastos para os operadores econômicos respeitivos, cujo origem está na
necessidade de negociar, executar e vigiar cada um dos vínculos contratuais. Outros custos
surgem da existência de um componente de incerteza relacionado com o oportunismo dos
atores econômicos etc. Por tal razão, o empresário se vê motivado a tentar novas estruturas de
organização, que permitam uma distribuição mais eficiente e menos custosa de seus recursos
produtivos. Isso se obtém, essencialmente, em duas formas. Num primeiro momento, mediante
a adoção de estruturas mais complexas de contratação dentro do mercado (v.gr. contratos de
longo prazo). Mais adiante, por meio da assunção interna de tais relações de negócios dentro
dos limites de sua própria organização, de modo de sujeitá-las à coordenação que surge de sua
própria estrutura hierárquica. Poder-se-ia dizer, então, que a empresa já não está numa perma-
nente interação com o mercado, senão que se apresenta como um mercado internamente
organizado no qual a conjunção e distribuição de recursos se consegue mediante uma estru-
tura hierárquica de comando”. (Liability of Corporate Groups...cit., p. 27).

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possuem, afinal, a disponibilidade é heterogênea. Esta assimetria informacional


pode ser exemplificada, no fato de os administradores da empresa possuírem
uma maior facilidade de acesso a dados que os demais indivíduos desconhecem.
Assim, os gestores da companhia possuem informação privilegiada sobre
as verdadeiras perspectivas de futuros negócios, sobre as reais possibilidades
de alcançar os objetivos propostos no desenvolvimento do objeto social. Tam-
bém são estes gestores quem podem avaliar tanto a disponibilidade de recur-
sos para o alcance dos mesmos objetivos estipulados, como a idoneidade das
pessoas responsáveis pela consecução destas metas.
A incerteza origina complexidade, em razão da grande quantidade de
consequências jurídicas que podem derivar das sucessivas operações das quais
participam uma companhia55. Tais relações dão lugar a uma multiplicidade
de vínculos jurídicos e econômicos que produzem inúmeros efeitos para a
sociedade, os sócios e terceiros. A complexidade surge quando as partes pro-
põem estabelecer mecanismos contratuais com o objetivo de estabelecer a
maneira como se comportarão no futuro. À medida que o vínculo contratual
se prolonga no tempo, torna-se cada vez mais difícil prever a forma de resolver
as circunstâncias futuras. A partir deste momento, as múltiplas situações pos-
síveis vão exigir que sejam providenciadas as soluções à medida que as contro-
vérsias surgirem. Assim, quanto maior o grau de incertezas, e o número de
contingências possíveis no futuro, menor será a possibilidade das partes redi-
girem contratos que tenham a especificidade necessária para tratar as situa-
ções não previstas56.
Quem administra a sociedade dispõem do poder decisório para resolver,
de maneira definitiva, as situações que ocorrem em virtude da incerteza e
complexidade aludidas. Na verdade, o Direito Societário outorga aos adminis-
tradores as faculdades legais necessárias para propor executar soluções especí-
ficas, na medida em que elas são necessárias. É exatamente esta ampla atribuição
de prerrogativas para decidir, que permite a possibilidade de um comporta-
mento oportunista por parte destes funcionários. Com isso, a expectativa é que
os diretores e demais administradores da empresa, estejam propensos a agir em

55 “Esta complexidade se apresenta quando os participantes se propõem, ab initio, a encontrarem


soluções contratuais para determinar a maneira em que terão de comportar-se respeito de
situações futuras”. (Ibidem, p. 34).
56 BAINBRIDGE. Corporation Law... cit, p. 34.

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benefício próprio, e, em algumas situações até mesmo contra os interesses da


sociedade. Esta constatação, por mais dura que possa parecer, já havia sido
detectada durante a primeira revolução industrial por ninguém menos que
Adam Smith. Segundo o economista e filósofo escocês: “a função dos membros
da diretoria das companhias por ações não é a administração de seus próprios
recursos, mas sim os de terceiros. Assim, não é razoável esperar que na custódia
deste capital financeiro eles empreguem a mesma diligência que os sócios de
uma companhia no trato de assuntos de seu próprio interesse, teriam. Da
mesma forma que ocorre com o mordomo de um homem próspero, os admi-
nistradores estarão propensos a preocupar-se mais com os detalhes menores,
em detrimento do cuidado com os pontos relevantes para o seu patrão, de
modo que, com certa freqüência, procurarão afastar-se do cumprimento ade-
quado de seus deveres. Assim, a negligência e a prodigalidade prevalecerão, em
grande medida, na condução da administração da empresa”57.
III. CUSTOS DE AGÊNCIA (AGENCY COSTS)
A conduta oportunista dos administradores provoca um dos principais con-
flitos de interesse no interior da sociedade, sendo um dos maiores custos de agên-
cia (agency costs) que estão presentes na sociedade. Isto corresponde, em geral ao
valor que deixa de ser auferido em razão da execução incompleta, por parte do
agente, das tarefas esperadas pelo principal, assim como o custo decorrente da
vigilância que o principal precisa exercer sobre o agente para evitar o descumpri-
mento das prestações. Somente através de um exame rigoroso sobre a atividade
do agente, poderá o principal atenuar o impacto econômico adverso que surge da
atuação oportunista do agente. Para Bainbridge, o valor total dos custos de agên-
cia incluem a soma dos custos de vigilância e os que são decorrência da necessi-
dade de criar para o agente um sentido de pertencer à sociedade somado à qualquer
perda residual que tenha ocorrido para evitar imperícia na administração contra-
tada pelo principal (shirking). Este último conceito inclui qualquer ação que não
corresponda aos interesses dos funcionários da sociedade, considerados em con-
junto, e que tenha sido executada por qualquer dos funcionários da sociedade.
Assim, a imperícia administrativa inclui não somente ações equivocadas,
mas também negligência, falta de ação e erros de boa-fé. Vale dizer, que a

57 Citado por JENSEN, Michael C. et al. Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Costs and
Ownership Structure. In: Journal of Financial Economics. Vol. 3, nº 4, outubro, 1976, p. 305.

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imperícia administrativa na gestão da empresa (shirking) consiste, simples-


mente, na consequência inevitável das capacidades limitada de conhecimento
das pessoas (bounded rationality), assim como do oportunismo no contexto
das relações de agência58.
A teoria dos custos de agência também é um elemento crucial para a
análise econômica do Direito Societário. Aquilo que os economistas classifi-
cam como problemas de agência (agency problems), no sentido mais genérico da
expressão, corresponde às dificuldades que surgem quando o bem estar de
uma das partes, denominada principal (principal), depende das ações executa-
das por um terceiro, denominado agente (agent).
O problema consiste em motivar o agente para que ele atue em benefício
do principal, ao invés de agir buscando o seu próprio bem estar. Praticamente
todas as relações negociais em que uma das partes (o agente) se compromete
com uma prestação em favor de um terceiro (o principal), estão expostas a
problemas de agência. A essência desta questão reside no fato de que, em
geral, o agente detém mais informações e em com melhor qualidade, em rela-
ção ao principal, no que diz respeito aos fatos mais relevantes da sociedade.
O principal não pode, sem incorrer em custos, garantir que o agente cum-
pra com o que foi acordado entre as partes. Como conseqüência, o agente
poderia estar inclinado a atuar de maneira abusiva, mediante uma execução
descuidada da prestação, ou ainda pior, poderia aproveitar-se de maneira in-
devida dos benefícios privados da administração.
Tal conduta implicará, por sua vez, em perda de valor na prestação con-
tratada pelo principal. A perda econômica poderia surgir de modo direto ou
indireto, como naqueles casos em que é preciso incorrer em altos custos de
fiscalização para garantir o cumprimento da execução por parte do agente.
Quanto mais complexa for a atividade delegada ao agente e quanto maior
for o grau de discricionariedade que seja conferida à sua atuação, maior será
também o custo de agência (agency costs) que principal deverá gastar59.
A partir das considerações precedentes, podemos inferir com base nas
concepções econômicas mencionadas, que os custos de agência constituem
uma conseqüência inevitável de todas as organizações societárias. A delegação

58 BAINBRIDGE. Corporation Law... cit, pp. 35-36.


59 KRAAKMAN, Reinier R. et al. The Anatomy of Corporate Law... cit, pp. 21-22.

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de funções constitui um elemento imprescindível na organização empresarial,


no entanto, possibilita que os agentes incumbidos de representar os interesses
dos principais desviem de suas atribuições durante a execução.
Teoricamente, é possível evitar os custos de agência mediante uma deter-
minação precisa das funções delegadas, de modo que o agente fique privado de
qualquer flexibilidade que permitiria atuar de um modo contrário às determi-
nações impostas pelo principal. Devemos fazer uma advertência, porém, mos-
trando que esse controle rígido não é desejável. Tal procedimento acarretaria,
sem dúvida, em uma restrição excessiva na liberdade de atuação do agente,
provocando a perda de sua criatividade e capacidade de inovação. É por isso
que a sociedade se organiza de modo que a totalidade do custo de agência se
reduza a um nível eficiente, em lugar de suprimi-lo completamente, alcançan-
do o ponto médio entre os extremos analisados neste texto, ambos indesejáveis.
Não podemos aumentar excessivamente as medidas de responsabilidade
dos administradores, sem que isso afete sua capacidade de decisão. O princi-
pal problema na administração da empresa consiste em estabelecer uma com-
binação adequada entre a concessão de discricionariedade e o estabelecimento
de parâmetros para a responsabilização60.

2. RELEVÂNCIA DO DIREITO SOCIETÁRIO COMPARADO


O crescente comércio internacional de bens e serviços, somado aos acor-
dos sub-regionais, aos pactos de redução tarifária, ao comércio eletrônico e a
outros instrumentos que facilitam a atividade mercantil, impõe também a adoção
de processos de adequação legislativa. Tal assertiva é particularmente válida no
campo das sociedades, em razão da constante interação normativa que obriga a
comparação de regras jurídicas existentes em países de tradições jurídicas se-
melhantes, assim como distintas61. Por isso afirma-se, de maneira acertada, que
“o conhecimento das legislações estrangeiras torna-se útil na medida em que as

60 BAINBRIDGE. Corporation Law... cit., p. 38.


61 Sabe-se que o entendimento de modelos jurídicos diferentes representa notórias dificuldades
analíticas. A simples confusão semântica a que dão lugar as más traduções, somada ao
obstáculo que representa o entendimento das condições jurídicas e culturais em que surgem
as instituições respectivas, faz tanto mais difícil a assimilação destas últimas. Talvez por isso
mesmo, qualquer tentativa de difusão a respeito de institutos procedentes de tradições jurídi-
cas diversas pressupõe, mais do que uma tradução literal de normas e conceitos, uma adapta-
ção deles que permita a equivalência de termos e funções jurídicas, de maneira que o resultado
final seja inteligível para seus destinatários.

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atividades das sociedades se estendem além das fronteiras dos países em que
foram constituídas”62. Sobre o mesmo ponto se afirma que “a cada revisão do
Código Comercial ele é penetrado por uma profunda influência do Direito
estrangeiro, marcando um progresso mais ou menos sensível em direção a um
Direito uniforme”63.
O intercâmbio referido tem proporcionado uma forte tendência à har-
monização nas regulações mercantis. A integração das nações, alcançada em
diversos pontos da terra, tem facilitado uma relativa harmonização normativa.
Os acordos sub-regionais significam um permanente intercâmbio de normas
jurídicas, cuja síntese é materializada através de diretivas, regulamentos, deci-
sões e outras exigências de adequação legislativa multinacional64.
Hoje se reconhece, de forma quase unânime, a necessidade de harmoni-
zação normativa como um imperativo da vida dos negócios internacionais, e
muitos admitem consideram como uma condição quase inevitável, para o de-
senvolvimento econômico.

62 RIPERT, Georges et al. Traité de droit commercial, tome I, volume 2, Lhes sociétés commerciales,
18e édition. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 2002, p. 6. Tão importante é
o Direito Comparado, que o mesmo Ripert afirma que “todo o direito comercial pode ultimamen-
te inspirar-se nas reformas realizadas nos países estrangeiros” (RIPERT, Georges. Tratado elementar
de Direito Comercial. T. II, Sociedades. Buenos Aires: Edições Jurídicas Labor, 1988, p. 32).
63 VIVANTE, César. Tratado de Direito Mercantil. Madri: Edit. Reus S.A., 1932, p. 18. O esforço de
confrontar tradições jurídicas também permite contribuir ao legislador a oportunidade de
enriquecer as normas legais e de reformular concepções anacrônicas. Assim, se podem também
modificar posturas dogmáticas que em muito pouco contribuem ao exercício de uma função
criativa na produção do Direito. E mais útil ainda é aproveitar a valiosa experiência das
organizações internacionais especializadas como a Comissão das Nações Unidas para o
Direito Mercantil Internacional (Cnudmi ou Uncitral, por suas siglas em inglês), cujos esforços
se encaminham a conseguir a harmonização normativa. É reconhecido que a legislação mer-
cantil também contribui a orientar a conduta dos servidores públicos judiciais e administrati-
vos chamados a aplicá-la. Essa é uma das razões que justificam a elaboração das leis modelo
da Uncitral: promover uma nova visão e conseguir que as comunidades menos progressistas
possam também avançar para novos horizontes no Direito.
64 Sobre este ponto afirma JOSÉ ENGRACIA ANTUNES o seguinte: “A resposta do Direito Mercantil
à globalização das relações econômicas se cumpriu por meio de uma crescente internacionalização
e da uniformidade que se difundiu em numerosas convenções internacionais destinadas a
unificar os ordenamentos nacionais de Direito Comercial para determinadas matérias mercantis
(em particular, as convenções de Genebra de 1930 e 1931, sobre letras e cheques), com o fim de
criar um Direito uniforme baseado em costumes de natureza supra estadual, para a regulação de
litígios comerciais. Já se fala do surgimento de uma nova ‘lex mercatoria’” (Direito das sociedades
comerciais, Perspectivas do seu ensino. Lisboa: Edit. Almedina, 2000, p. 28). Esta nova lex
mercatoria parece ter características semelhantes àquelas que teve sua antecessora medieval.
Trata-se, efetivamente, de um acervo de princípios, regras vinculantes e instituições fundadas ou
expressadas nos costumes e usos convencionais de quem participam no tráfico multinacional,
bem como nos precedentes decididos pelas cortes de arbitragem internacional. Pode-se dizer
que este conjunto de preceitos encontra consagração positiva nas compilações e sistematizações
que de tais princípios se formulam em leis modelo e outras pautas de harmonização.

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Assim, verificamos com uma freqüência cada vez maior a adoção destas
iniciativas e, de modo crescente, verificamos a ampliação do âmbito de aplica-
ção destas normas supranacionais65. Vão sendo superadas as teses renascentis-
tas que proclamavam um princípio de soberania a qualquer custo. A rígida
concepção segundo a qual, apenas as regras jurídicas do local de execução de
um contrato poderiam ser utilizadas para disciplinar os seus aspectos subs-
tantivos (loci regi actu) tem perdido vigor com o tempo, convertendo-se mui-
tas vezes em princípio meramente supletivo.
Desta forma, na atualidade, sua aplicação circunscreve-se àqueles casos em
que as partes não tenham convencionado os parâmetros normativos que regerão
sua conduta e para resolver as controvérsias que surjam durante a vigência do
negócio jurídico. O que dizer da verdadeira anátema em que se constituía,
anteriormente, a escolha pelas partes do foro para a resolução dos conflitos.
Os tempos atuais exigem a ruptura com os antigos “dogmas inquestio-
náveis”, que devem ser revistos, sem prejuízo da manutenção dos princípios
próprios de cada sistema jurídico. A harmonização normativa contemporâ-
nea, geralmente, permite a atualização das legislações nacionais em torno dos
parâmetros mais avançados. É evidente que a adoção de regras homogêneas,
de um modo geral, não pretende a defesa a qualquer custo das tradições jurí-
dicas locais, mas sim a implantação de princípios que sejam o reflexo das
vanguardas do pensamento jurídico. Outra vantagem desta tendência con-
temporânea de harmonização é dada pelo caráter próprio do processo de ado-
ção de regras legislativas, sendo, portanto, o resultado da combinação entre
especialistas de diversos âmbitos geográficos e culturais66. Esta interação é

65 Ainda que nem todas as iniciativas da Cnudmi (UNCITRAL) foram igualmente acolhidas, é
evidente que sua atividade implicou um avanço significativo no desenvolvimento de regras
uniformes para a atividade mercantil transnacional. Estes esforços de adequação normativa
multilateral se refletiram, em particular, no âmbito da compra internacional de mercadorias,
que tradicionalmente se considerava reservado à órbita das legislações internas. Nestes mode-
los de regulação internacional se percebe um enfoque “facilitador” de grande flexibilidade
para a atividade mercantil, tanto do ponto de vista substantivo como processual. A incorpora-
ção de razoáveis normas de conduta derivadas empiricamente, cuja inclusão contratual de-
pende em grande parte da vontade das partes, constitui um dos mais vantajosos aspectos dessa
regulação. (Cfr. <www.uncitral.com>).
66 Um exemplo muito representativo da tendência a harmonizar se acha no denominado Código
de Comércio Uniforme (Uniform Commercial Code ou UCC), adotado total ou parcialmente
pelos 50 Estados da União Americana. “O objetivo primeiro e principal do Código de Comér-
cio Uniforme (UCC) foi o de introduzir uma verdadeira uniformidade para remediar a
multiplicidade e extrema variedade de regimes jurídicos em vigor nos Estados federados dos
Estados Unidos, em matéria de regulamentação de negócios comerciais. Estes negócios trata-

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proveitosa, porque facilita o intercâmbio de concepções jurídicas de modo


que a mais conveniente ao conjunto acaba por impor-se.
Talvez o exemplo mais significativo se encontre no sistema criado na Eu-
ropa a partir do Tratado de Roma de 1957. Em seu artigo 100, facultou-se ao
Conselho de Ministros da União Européia expedir diretivas condizentes com a
“aproximação” das leis nacionais que afetavam diretamente o estabelecimento
ou a operação do Mercado Comum67. No campo específico das sociedades têm
sido notáveis as diretivas comunitárias sobre os mais diversos aspectos. Isto tem
sido desta forma desde 1968, o Conselho da União, previa uma proposta de
Comissão, tendo expedido mais de uma dezena de diretivas sobre a matéria68.
Além das mencionadas normas, têm sido proferidos regulamentos sobre
os grupos europeus de interesse econômico (Nº 2137/85) e companhias eu-
ropéias (societas europeae) (Nº 2157/01)69.

dos nele são a venda, a fiança, os títulos valorizes, os depósitos bancários, as cartas de crédito, as
cessões globais, os títulos de propriedade, os títulos de participação e os negócios jurídicos sob
garantia. Os trabalhos preparatórios do UCC começaram em 1942 sob a orientação tanto do
Instituto de Direito Americano e da Conferência Nacionais de Redatores de Leis Estaduais Unifor-
mes. A primeira versão do UCC foi promulgada em 1951 e adotada pelo Estado de Pensilvânia, em
1953. Posteriormente, outros Estados adotaram o UCC, ainda que alguns o fizeram com modifica-
ções que em numerosos casos introduziram importantes mudanças ao texto original”. (FOLSOM,
Ralph H.; LEVASSEUR, Alain A. Pratique dês droit dês affairs aux États-Unis. Paris: Editorial Dalloz,
1995, p. 192).
67 FOLSOM, Ralph H. European Community Law. Saint Paul, Minn.: West Publishing Co., 1992, p.
170. Como se sabe, ao passo que os “regulamentos” constituem legislação diretamente aplicável
aos Estados membros, as “diretivas” implicam a necessidade de que cada nação modifique seu
ordenamento interno para adequá-lo às exigências comunitárias. De maneira que existe arbitrarieda-
de para tais países quanto à forma de legislar para adaptar-se às diretivas. A implantação das regras
de política legislativa contidas numa diretiva “comunitária” pode exigir a expedição de leis, decre-
tos, atos administrativos ou, inclusive, reformas constitucionais. Quando o ordenamento existente
no Estado membro é compatível com as regras traçadas numa diretiva, não se exige nenhuma medida
interna. A competência para emitir regulamentos e diretivas concerne ao Conselho de Ministros e à
Comissão, por virtude do previsto no artigo 189 do Tratado de Roma. (Ibidem, p. 38).
68 Dentro delas se contam, entre outras, as seguintes: a) Primeira Diretiva (março de 1968) sobre
capacidade da sociedade; b) Terceira Diretiva (outubro de 1978) sobre fusões de sociedades; c)
Sexta Diretiva (dezembro de 1982) sobre cisão de sociedades; d) Sétima Diretiva (junho de 1983)
sobre consolidação de contas de sociedades e) Décima segunda Diretiva (dezembro de 1989)
sobre sociedades individuais. Evidentemente, as Diretiva comunitárias contribuem à moderniza-
ção das legislações de todos os Estados membros, cujas normas devem ser atualizadas conforme
aos últimos avanços do respectivo campo do direito, em torno de uma posição unificada. Assim,
por exemplo, a respeito da décima segunda Diretiva, afirma o professor Alonso que, subajecente a
ela há “uma tentativa de reconduzir as recentes reformas [às leis de sociedades], de um lado, as
operadas nos países de influência francesa (França, Bélgica e Luxemburgo), e, de outro, as realiza-
das na órbita de influência germânica (Alemanha, Dinamarca e Países Baixos), para uma posição
comum” (ALONSO UREBA, Alberto. A Décima segunda Diretiva Comunitária em matéria de
sociedades relativa à sociedade de capital individual, Revista de Derecho Bancario y Bursátil, nº 41,
janeiro-março de 1991, p. 66).
69 FOLSOM, op. cit., p. 171. O primeiro de tais regulamentos comunitários foi aprovado em julho
de 1985 e está vigente desde julho de 1989. Este regulamento constitui “um corpo normativo

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 49

As divergências de fundo que gravitaram durante três décadas nos ór-


gãos decisórios da União Européia a respeito da adoção da societas europae
foram sanadas em 200170. Assim, as diferenças em relação a questões como a
participação dos trabalhadores nos órgãos sociais da empresa, que pareciam
intransponíveis, encontraram finalmente uma posição harmônica que acomo-
dasse os interesses dos envolvidos. Vale lembrar que este sucesso foi alcançado
apesar do forte embate existente entre os países de orientação germânica em
relação aos países do Reino Unido71.
A solução em relação a este aspecto específico resultou equilibrada: per-
mitir que os acionistas escolhessem entre um sistema de administração monista
e um sistema de administração dualista. No primeiro, um único órgão assume
as funções de direção e gestão, no segundo a sociedade é dotada de um órgão
de administração e outro de controle72.
A interessante possibilidade, também tolerada segundo as regras adota-
das recentemente pela União Européia, de permitir a societas migrar de seu
regime excepcional para o de uma sociedade anônima sujeita ao ordenamento
jurídico do Estado correspondente ao seu domicílio social, também constitui
em um benefício de grande pragmatismo, revelador, da relativa amplitude das
orientações comunitárias73.

supranacional que deve coexistir, ainda que separadamente, com as leis nacionais dos Estados
membros” (OLIVER, M.S. et al. Company Law. Twelfth Edition, London: Pitman Publishing,
1994, p. 6).
70 Regulamento do Conselho 2157/2001/EC, 2001 OJL 294/1.
71 Pelo critério de DUPRAT, “numerosos obstáculos de natureza jurídica, econômica, fiscal e
política pararam o projeto e desalentaram a idéia de criar uma sociedade comercial comunitá-
ria [...]. Estes problemas que, durante anos, puseram obstáculos a adoção de um estatuto de
sociedade comercial européia, serviram para forçar o redesenho de um novo estatuto, como
assim também a eleição correta dos instrumentos pelos quais o mesmo se adotaria”. (DUPRAT,
Diego A. A societas europeae: origem e desenvolvimento do estatuto da sociedade anônima
européia. A Prata: Livraria Editora Platense, 2004, p. 55).
72 Segundo a letra b) do artigo 38 do Regulamento, citado, os constituintes estarão facultados
para escolher entre uma estrutura de administração monista ou dualista para reger o funciona-
mento da “societas européia”, independentemente do sistema jurídico vigente no Estado de
sua constituição. (Cfr. RAAIJMAKERS, Theo. The Statute for a European Company: Its Impact
on Board Structures, and Corporate Governance in the European Union. In: European Business
Law Review, Vol. 5. The Hague: TMC Asser Press, 2004, p. 159).
73 Na opinião de RAAIJMAKERS, o regulamento citado “aumenta o leque de opções organizativas
disponíveis para os empresários europeus […]. As disposições relativas ao governo societário
da SE ‘societas européia’ e as relacionadas com seu Conselho de Administração têm caráter
dispositivo em lugar de imperativo. Estas normas constituem um compêndio dos princípios e
tradições jurídicos que fazem parte da evolução do Direito Societário europeu” (op. cit., p.
160). O mesmo autor aclara que a societas europeae terá, em todo caso, um caráter nacional
devido ao fato que uma percentagem significativa de suas regras substantivas aplicáveis estará

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Porém, ainda hoje subsiste certo debate em relação à conveniência de ex-


pedir normas supranacionais que regulem genericamente a atividade societária
na União Européia. Suspeita-se que tal prática poderia limitar a flexibilidade
das legislações internas para disciplinar, situações particulares de cada um dos
países membros, cujos costumes podem ser consideravelmente distintos. Isso
obedece ao imperativo próprio da legislação societária de ajustar-se aos diferen-
tes contextos regionais, determinados principalmente por fatores como o grau
de investimento local e as condições políticas e comerciais, entre outras74.
Outro debate presente ocorre pela rejeição da harmonização da legisla-
ção societária, fundamentado nos presumíveis efeitos adversos que teriam a
imposição de um diploma normativo, restringindo a possibilidade de escolha.
Para alguns autores, como se verá mais adiante, tal prática poderia restringir a
evolução do Direito Societário e limitar a existência de um mercado de legis-
lação societária75.
O estudo do Direito Comparado adquire importância crescente no Di-
reito Societário em razão da interdependência dos sistemas legislativos con-
temporâneos e da semelhança entre os problemas jurídicos que ele suscitam76.
Obviamente a análise de instituições de direito estrangeiro só terá utili-
dade quando se procura superar a finalidade meramente descritiva, e se pro-
cura desvendar o sentido funcional dos institutos estudados dentro do contexto
em que operam. Desta forma, para iniciarmos um estudo desta natureza é
fundamental também abandonar todo preconceito que possa impedir uma
visão objetiva do sistema analisado. Não se trata, portanto, de “elogiar ou cri-

constituído pelas normas internas do Direito Societário do país membro em que a sociedade
tenha sua “sede registrada” (art. 23) (Ibidem).
74 DORRESTEIJN, por exemplo, expõe os inconvenientes que causa a diversidade de legislações
societárias entre os diversos Estados da União Européia, cuja heterogeneidade é percebida
como um obstáculo para a integração de suas diversas economias. No entanto, o mesmo autor
afirma que “é razoável sustentar também que os benefícios de uma maior harmonização e dos
desenvolvimentos normativos comunitários não seriam superiores aos custos que se teria que
incorrer para o efeito […]”. (DORRESTEIJN, Adriaan et al. European Corporate Law. Deventer,
The Netherlands, Kluwer, Law and Taxation Publishers, 1995, p. VII).
75 Cfr. McCAHERY, Joseph et al. Limited Partnership Reform in the U.K. In: European Business
Organization Law Review, vol. 5. The Hague: TMC Asser Press, 2004, p. 73.
76 Assim, por exemplo, LARRY CATÁ assinala que, nos Estados Unidos, a análise do regulamento
da União Européia em matéria de sociedades é cada vez mais relevante, “devido à crescente
harmonização do Direito Societário entre seus países membros, à importância que têm os órgãos
da União na promulgação de leis de sociedades e à afluência de empresários norte-americanos
ao continente europeu”. (BAKER, Larry Catá. Comparative Corporate Law: United States, European
Union. China and Japan. North Carolina: Carolina Academic Press, 2002, p. xxxvii).

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ticar um regime jurídico em particular”77, pelo contrário, trata-se de procurar


compreender e desvendar a utilidade prática que certas instituições jurídicas
podem ter em um contexto específico78.
Como temos afirmado, a compreensão das legislações possui importância
nos processos de reforma legislativa em matéria societária. É comum que nor-
mas jurídicas mais recentes, tomem emprestadas figuras de outras legislações,
ou pelo menos, que sejam originárias de pontos de referência derivados de dis-
posições de Direito estrangeiro. Não há nada de reprovável nisso, o importante
como afirma Means é que tais empréstimos ocorram de maneira consciente e
com pleno conhecimento das mais importantes alternativas que oferece o Direi-
to Comparado79.
São conhecidas as tensões que surgem inexoravelmente das diversas formas
de entender o Direito. Os países de Common Law se esforçam para aceitar – às
vezes a contragosto – as rigorosas formas de expressão e o virtuosismo dialético
próprio das tradições jurídicas romano-germânicas. Aqueles que pertencem à
tradição do Civil Law também reconhecem a importância dos enfoques práti-
cos do sistema jurídico norte-americano.
Sabemos que o transplante de dispositivos jurídicos estrangeiros é arriscado
e que pode ser nocivo quando ignoramos as condições segundo as quais eles se
desenvolveram no interior de seu sistema jurídico original. Na verdade, o desco-
nhecimento em relação à estrutura legal originária, do contexto judicial, econô-
mico ou cultural onde as normas operam pode ocasionar mais dificuldades que
vantagens para o ordenamento que acolherá o instituto jurídico importado80.

77 GLENDON, Mary Ann et al. Comparative Legal Traditions, Texts, Materials and Cases. Second
Edition. Minnesota: West Publishing Co., 1994, p. 11.
78 O Direito Comparado também representa uma utilidade significativa nos processos de reforma
das legislações internas. “Na arquitetura, encanta-nos observar aquelas fazendas onde cada
geração deixou seu aporte. No Direito, nos encantará ver a bagunça e a edificação de uma
construção nova [...]. Nos encantará questionar-nos o por que de suas regras. [...]. Mas qual é
o limite destas pesquisas? Não se trata de ceder à moda, senão de perguntar-se qual é a
verdadeira relação custo-beneficio” (TUNC, André. Lhe Droit Anglais... cit., p. 23).
79 MEANS, Robert Charles. Underdevelopment and the Development of Law, Corporations and
Corporation Law in Nineteenth-Century Colombia. North Carolina: University of North Caroli-
na Press, p. 276.
80 Não faltava razão a PORTALIS quando afirmava em seu discurso preliminar sobre o Código
Civil francês que “é preciso ser sóbrio quanto a novidades em matéria de legislação, porque,
se, ante uma instituição nova, é possível calcular as vantagens que a teoria nos oferece, não o
é conhecer todos os inconvenientes que só a prática pode descobrir” (Discurso Preliminar
sobre o Projeto de Código Civil, Bogotá, Universidade Javeriana, 1994, p. 6). Sobre um
assunto conexo e não menos importante afirma Ripert do que “os reformadores não sempre têm

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52 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

O professor Eduardo Favier-Dubois chega inclusive a afirmar que o trans-


plante de institutos jurídicos norte-americanos nos países da América Espa-
nhola é praticamente inviável, devido a fato dos valores mobiliários do Common
Law serem diversos dos que resultam de nossas tradições sociais, religiosas e
culturais. De acordo com Favier-Dubois: “uma instituição jurídica que funcio-
ne de modo adequado dentro da realidade individualista e protestante, não
poderá ter o mesmo funcionamento em um meio de tradição coletiva e solidária
como a presente nos países da América Latina”81.
Podemos também fazer referência a opinião de Gledson, segundo o qual
a mera comparação de regras legais pode desorientar perigosamente quando se
refere a sistemas jurídicos com instituições jurídicas legais diferentes, proce-
dimentos processuais distintos ou classificações diversas das regras de direito.
Assim, por exemplo, os resultados judiciais em duas nações cujas regras pro-
cessuais são distintas, podem também ser diversos, ainda que as normas subs-
tantivas sobre o litígio em particular sejam idênticas82.
Apenas as diferenças provenientes do idioma já são suficientes para gerar
não raras vezes equívocos e confusões interpretativas. Os falsos cognatos, tão
freqüentes entre idiomas de raízes comuns, estão muito presentes no Direito
Comparado. No âmbito específico do direito anglo-saxão, é fundamental estar
prevenido em relação a este risco83. Devido a uma parte significativa da língua
inglesa, ter sua origem no latim (mais precisamente, no francês), é muito fre-
qüente encontrar expressões jurídicas que, apesar de partilhar a raiz de uma
mesma língua românica, possui um significado técnico distinto nos países an-
glo-saxões. As expressões Commercial Law (Lei ou Direito Comercial), Civil

as qualidades exigidas aos juristas. As leis se multiplicam sem que se possa saber no seu
nascimento se são os primeiros pilares de uma construção ou material disperso que será
abandonado por inútil” (Tratado elementar..., t. I, p. XII).
81 FAVIER-DUBOIS, Eduardo. Doctrina societária y concursal. Buenos Aires, nº 181, 2002, p. 825.
82 GLENDON et al., op. cit., p. 101. Segundo a mesma autora, outro exemplo que se pode conside-
rar “é a importante distinção ainda vigente no ‘Common Law’ entre as regras e ações em Direito
[‘Law’] e em equidade [‘equity’], cujo entendimento resulta tão difícil para os advogados forma-
dos nos países de sistema jurídico romano-germânico, onde tal distinção é inexistente”. (Ibidem).
83 Deve-se considerar que o inglês legal representa para o jurista latino reptos adicionais, deriva-
dos da complexa estrutura que costuma acompanhar à redação de textos jurídicos. “O estilo de
escritura dos antigos advogados ingleses chegou a américa do norte simultaneamente ao
transplante do common law. Em 1817, THOMAS JEFFERSON se lamentava que, seus colegas
advogados, ao redigir as leis, acostumassem a fazer ‘que em cada palavra se dissesse o citado
ou o precitado e a que se repetisse cada coisa duas ou três vezes, de modo que ninguém
diferente de pudesse desenvolver o embrulho...’” (WYDICK, Richard C. Plain English for
Lawyers. 4ª edit. North Carolina: Carolina Academic Press, 1998, pp. 3-4).

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Law (Lei ou Direito Civil), Corporation (corporação), guarantee (garantia) e


agency (agência), para citar uns poucos exemplos, possuem nos Estados Unidos
um significado diverso do que recebem em países de língua castelhana84.
Não por acaso, afirma Rotman que: “as traduções jurídicas além de ne-
cessitarem de uma maior precisão e uniformidade, também precisam recorrer
à indispensáveis abstrações cujos significados derivam de contextos culturais e
sociais dinâmicos. Tais contextos podem ocasionar um certo grau de ambigüi-
dade, que são mais notórios naqueles casos em que os sistemas legais e cultu-
rais são radicalmente diferentes. A tradução de um texto proveniente de um
país pertencente ao Civil Law em um idioma de outro país da mesma tradi-
ção jurídica é menos complexa que a tradução do mesmo texto para o idioma
de um país do Common Law ”85.
Não obstante todo o exposto, com freqüência é possível a implantação de
normas estrangeiras às legislações nacionais, mediante um processo de adaptação
às circunstâncias locais. No entanto, é evidente que tal processo não pode limitar-
se a simples leitura ou tradução das normas que se intenta acolher86. Por razões
meramente práticas, é preferível buscarmos modelos jurídicos que obedeçam a
princípios gerais – substantivos e processuais – semelhantes87. Contudo, o fato

84 Efetivamente, o Commercial Law norte-americano, diferentemente do europeu-continental e do


latino-americano, se circunscreve à regulação do contrato de compra e a algumas matérias
conexas; a expressão Civil Law não alude às matérias que entre nós aparecem reguladas nos
códigos civis, mas sim a toda a tradição jurídica proveniente do continente europeu; o
vocábulo corporation, como se verá mais adiante em detalhe, identifica às sociedades de
capital e não às pessoas jurídicas sem ânimo de lucro que costumam denominar-se dessa forma
nos regimes romano-germânicos; a palavra guarantee se refere ao regime de obrigações
estadunidense a uma relação equivalente à que surge da denominada “solidariedade passiva”
e não ao conceito genérico de “garantia” dos sistemas romano-germânicos; por último, a
agency do sistema anglo-saxão alude de modo genérico ao contrato de mandato.
85 ROTMAN, Edgardo. The Inherent Problems of Legal Translation: Theoretical Aspects. In:
Indiana International & Comparative Law Review, Vol 6, 1996, nº 1, p. 189. Outros autores
exporam também a importância de se levar em conta a origem histórica das instituições
jurídicas a respeito das quais versa a tradução (cfr. MIROW, Matthew C. Latin American Legal
History: Some Essential Spanish Terms. In: Raça Law Journal, Vol. 12, 2000-2001, nº 1).
86 Muitos dos termos jurídicos anglo-saxões que foram desenvolvidos dentro da tradição jurídica
do Common Law carecem de equivalentes na língua espanhola devido ao fato que esses
mesmos conceitos não existem nos sistemas de tradição civilista. Precisamente, por essa mesma
razão, alguns termos jurídicos espanhóis não encontram um equivalente na língua inglesa.
“Ainda naqueles casos nos quais existem conceitos semelhantes em ambos idiomas, os termos
jurídicos em inglês e em espanhol serão, no máximo, meras analogias funcionais, cujos
significados diferirão de modo significativo. [...]. A acepção de um termo jurídico pode variar
inclusive entre países pertencentes ao mesmo bloco lingüístico”. (ROSENN, Keith S. Dahl’s
Law Dictionary. In: Inter-American Law Review. Vol. 24, nº 3, p. 607).
87 Nas nações latinoamericanas se olhou tradicionalmente às legislações da Europa continental
e, em especial, às de origem latina. Isso se deve ao fato que “França e os países de América

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de a norma que pretendemos efetuar o transplante ter sua origem em uma tradi-
ção jurídica diversa, não constitui um obstáculo insuperável para a sua adaptação.
A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e sua im-
portante conseqüência, tem afetado o panorama do Direito Comparado. O
desaparecimento dos regimes socialistas tem dado lugar ao que tem se dado o
nome de mundo ocidental apenas subsistiram duas tradições jurídicas plena-
mente diferenciadas.
Trata-se de um lado, daqueles ordenamentos que pertencem à tradição
romano-germânica, e de outro, daqueles sistemas que fazem parte do Common
Law. A tradição jurídica socialista, se ela pudesse ser considerada como tal,
apresentava-se como uma harmonização entre os princípios jusnaturalistas, o
conceito de lei natural, o direito romano, a tradição civilista, a herança jurídica
pré-revolucionária de cada país socialista e os fundamentos gerais do marxis-
mo-leninismo88. Esta tradição jurídica, praticamente superada na atualidade,
tem sido substituída nos países que pertenciam ao mundo socialista, por sis-
temas de direito positivo de caráter romano-germânico.

3. HARMONIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO SOCIETÁRIA


Um dos campos do Direito em que verificamos um maior grau de har-
monização é o Societário. Porém, ainda hoje, se considera que o domínio do
Direito Societário pertence ao âmbito da legislação nacional, assim, é natural
encontrarmos uma variedade de enfoques particulares sobre esta disciplina
proporcional ao número de países que positivam a questão.
Merryman afirma que “para a maioria dos autores de Direito Compara-
do a ambiciosa meta de unificação internacional do Direito – muito presente

Latina têm um Direito inspirado na mesma concepção e estabelecido segundo a mesma


técnica” (RIPERT. Tratado elementar…, t. I, cit., p. XIII). Em sentido análogo, se pode afirmar
como Watson que existem certos fatores cujo estudo facilita o transplante de normas jurídi-
cas. Na opinião deste autor, eles são: 1. Relações históricas-políticas entre os países envol-
vidos no transplante; 2. Existência de uma linguagem comum e proximidade de ambos
países; 3. Considerações nacionalistas do país receptor; 4. Carência de um sistema jurídico
suficientemente desenvolvido no país receptor; 5. Interpretação da lei do país doador, por
parte do país receptor; e 6. Maior grau de maturidade “jurídica” no país doador (WATSON,
Allan, citado por MIROW, Matthew C. Borrowing Private Law in Latin America: Andrés
Belo’s Use of the Code Napoleon in drafting the Chilean Civil Code. In: Louisiana Law
Review, vol. 61, nº 2, p. 303).
88 GLENDON et al, op. cit., p. 259.

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no final do século XIX – não é por enquanto uma possibilidade realista”89.


Atualmente, este objetivo de unificação enfrentará uma multiplicidade de
opções tanto no plano teórico, quanto no prático. Além da dificuldade in-
transponível para alcançarmos um acordo internacional sobre todas as matéri-
as que fragmentam o Direito, devemos considerar que o fundamento desta
tendência de unificação se mostra em via de esgotamento. Schlesinger afirma
com acerto que “se reconhece que os sistemas legais refletem os valores de
culturas diversas”, expressa também que “a diversidade cultural não deve con-
verter-se em unidade, a menos que existam fortes razões para isso” e por fim,
acrescenta que “não existe nenhuma razão poderosa o suficiente para justificar
a unificação mundial de todo Direito vigente”90. Com acerto ainda maior
assevera Ripert que “a unificação do Direito Comercial no mundo, é menos
importante que a recíproca compreensão das diferentes legislações que disci-
plinam o tema”91.
Apesar das inúmeras diferenças, que naturalmente separam as legisla-
ções societárias de um país em relação aos outros, podemos afirmar que exis-
tem alguns princípios jurídicos essenciais que balizam a organização das
sociedades privadas tanto nas nações européias, quanto nos países da América.
Segundo Eder, ainda que as legislações possam claramente diferir em
relação a alguns detalhes, as normas de Direito Societário são essencialmente
iguais no mundo inteiro. Tratam-se dos mesmos fenômenos e dos mesmos
conceitos gerais, de modo que as soluções propostas também guardarão algu-
ma semelhança. O fato de alguns países serem mais avançados em seu desen-

89 MERRYMAN, John Henry et al. Comparative Law, Western European and Latin American Legal
Systems, Cases and Materials. California: The Michie Company, 1978, p. 21. Os mesmos
autores afirmam, no entanto, que “a unificação do ‘Common Law’ com o sistema romano-
germânico é provavelmente exeqüível, bem como também é possível que o ingresso da Grã-
Bretanha na União Européia proporcione uma maior harmonização dos dois sistemas” (Ibidem).
Esta última afirmação é altamente demonstrável devido à incidência das diretivas e regulamen-
tos da União Européia no Reino Unido. No ano seguinte, as diretivas expedidas pelo Conse-
lho da União Européia se converteram na principal fonte de legislação escrita. Em estrito
sentido, a grande maioria de regras societárias supranacionais emitidas pela União Européia
não são fonte direta de Direito, devido ao fato que devem ser submetidas a um processo de
incorporação na legislação interna por parte de cada Estado membro. Só depois deste proces-
so, as normas supranacionais podem ser aplicáveis localmente. No entanto, não se pode
desconhecer do impacto da União Européia no Direito Societário local” (GOULDING, Simon.
Principles of Company Law. London: Cavendish Publishing Ltd., 1996, p. 17).
90 SCHLESINGER, Rudolf et al. Comparative Law, Cases, Texts, Materials. Fifth edition, Foundation
Press, 1988, p. 32.
91 RIPERT. Tratado elemental…, cit., t. I, p. XIII.

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56 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

volvimento industrial e financeiro, faz com que os relativamente menos de-


senvolvidos acompanhem os desenvolvimentos legislativos das nações mais
progressistas e acolham sua visão vanguardista92.
Não é difícil percebermos que a maioria dos regimes jurídicos da Amé-
rica Latina em matéria de Direito Societário assemelham-se aos sistemas dos
países europeus que seguem os modelos conceituais derivados dos Códigos de
Comércio francês e espanhol de 1807 e 1829 respectivamente93. Certamente,
a influência dessas obras ainda está presente não apenas nos países europeus94,
mas também em vários Estados da América Central e do Sul95.

92 EDER, Phanor. Company Law in Latin America. In: Notre Dame Lawyer, Vol. XXVII, 1951, nº 1, p. 5.
93 A legislação panamenha constitui uma exceção significativa a este princípio. Efetivamente, as
disposições jurídicas contidas no Código de Comércio panamenho se situam a metade de
caminho entre o sistema norte-americano e o continental europeu. Não se deve esquecer que
dita nação centro americana outorgou benefícios significativos aos investidores internacio-
nais, em termos de grande flexibilidade legislativa, com o propósito de atrair capital estrangei-
ro. A natureza híbrida do sistema pode ser apreciada na Lei 32 do 26 de fevereiro de 1927,
sobre sociedades anônimas. Com respeito às origens desta lei, Durling explica que, até onde
pôde esclarecer-se, o projeto original se baseou nas leis dos Estados de New Jersey e Delaware.
“No entanto, não faltam autores que sustentam que dita lei teve por modelo a Lei de Socieda-
des Anônimas do Estado de Arizona” (DURLING, Ricardo. Sociedade anônima em Panamá.
Cidade de Panamá, 1986, p. 27).
94 A legislação espanhola e a portuguesa denotam notórias semelhanças com a da França. No
ano de 1989 o regulamento espanhol experimentou mudanças significativas em matéria de
Direito Mercantil. Em primeiro lugar, expediu-se a Lei 19 desse ano, por meio da qual se
adaptou a legislação mercantil às diretivas da União Européia no atinente a sociedades
mercantis. Do mesmo modo, expediram-se os reais decretos 1564 e 1597 do 22 e 29 de
dezembro do mesmo ano, pelos quais se aprovaram o texto refundido da Lei de Sociedades
Anônimas e o Regulamento do Registo Mercantil, respectivamente. Ademais, expediu-se, mais
adiante, a Lei 2 do 23 de março de 1995, relativa ao regime de sociedades de responsabilidade
limitada. Em Portugal, o Código Comercial de 1888 foi derrogado pelo Decreto-Lei 262 do 2
de setembro de 1986, que regula integralmente a matéria de sociedades comerciais e adapta o
sistema às precitadas diretivas da União Européia. A legislação portuguesa é uma das que mais
rápida vantagem tomou das instituições modernas do Direito Societário. Um bom exemplo é
a adoção da “sociedade por quotas de responsabilidade limitada” incluída no sistema jurídico
português, mediante Lei do 11 de abril de 1901. (ABILIO NETO. Código Comercial, Código das
Sociedades, Legislação complementar, anotados, 9ª ed. Lisboa, 1988, p. 427). Mediante Ordem
2000-912 do 18 de setembro de 2000, ratificada pela Lei 2003-7 do 3 de janeiro de 2003,
expediu-se na França o novo Código de Comércio. Segundo Ripert e Roblot, “no fundo, este
Código de Comércio, subjacente a ambição de reagrupar o conjunto de regras legais de Direito
Comercial, incorpora a Lei do 24 de julho de 1966, sem variar praticamente em nada os textos
contidos nesse estatuto. As mesmas disposições mudam somente de numeração” (RIPERT,
Georges. et al. Traité de droit commercial…, cit., p. 4).
95 Segundo a opinião de EDER, as origens da regulação normativa das sociedades por ações na
América Latina se encontram no Código de Comércio francês de 1807 e no Código de
Comércio espanhol de 1829. “O código espanhol foi muito superior ao francês no que tem a
ver com a tarefa de codificação. Este último não foi, em sua maior parte, mais do que uma
simples reprodução das ordens francesas. O código francês, no entanto, regulou pela primeira
vez à ‘société anonyme’ e deu a esse termo uma conotação diferente da que tinham empregado
Pothier e outros juristas no século XVIII […]. Os códigos latino-americanos foram em seus
inícios simples cópias ou adaptações dos códigos francês e espanhol mencionados” (op. cit.,

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 57

Apesar das inúmeras modificações introduzidas nas legislações mercantis


destes países, as regras gerais contidas nos Códigos francês e espanhol do come-
ço do Século XIX mantiveram-se quase intactas96. De maneira, que os tipos
essenciais de sociedades comerciais contidos na legislação destes países que ser-
viram de paradigma para o Direito Societário, ainda estão presentes em países
como México, Argentina, Chile e Colômbia97. Além disso, a estrutura geral da
maioria dos tipos societários nestes países segue, todavia, com ligeiras modifi-
cações balizadas pelos delineamentos gerais dos modelos mencionados.
Menos evidente, no entanto, são as razões pelas quais existem em países do
Common Law formas associativas com regimes jurídicos muito semelhantes aos
que caracterizam o sistema dos países que seguem o referido modelo europeu-
continental. Como será visto ao longo deste estudo, os dois extremos da associação
mercantil, representados por uma sociedade com índole capitalista e outra de
ordem personalista, parece manifestar-se no direito norte-americano através dos
institutos jurídicos denominados corporation e partnership, respectivamente.
É interessante notar que as sociedades pessoais, tanto no sistema europeu-
continental como no norte-americano, possuem suas origens mais remotas no
Direito Romano. Tal como afirma Rowley, “no sistema que surge do Código de
Justiniano encontramos o que, com poucas variações, poderia ser considerada
como a lei norte-americana das sociedades coletivas que vigora atualmente”98.

pp. 21 e 22). Segundo Apple, “os processos modernos de codificação tão só começaram em
América Latina em meados do século XIX […]. A preparação e adoção do Código Civil chileno
[em 1856] constituiu um evento de grande importância tanto na América do Sul como na
América Central, pois foi adotado em termos quase idênticos por Colômbia e Equador e foi
utilizado como um modelo para os Códigos Civis de Argentina, Paraguai, Venezuela, El Salvador
e Nicarágua. Ainda hoje o Código Chileno e o sistema legal no qual se baseia são vistos como
os mais avançados e influentes dentro dos países da America espanhola” (op. cit., p. 17).
96 A sociedade de responsabilidade limitada (“G.m.b.H.” do sistema alemão) é, obviamente, uma
exceção a este princípio, pois ela foi introduzida pelo legislador germânico em 1892 e mais tarde
por outros regimes europeus e americanos (cfr. ULMER, Peter. Princípios fundamentais do Direito
alemão de sociedades de responsabilidade limitada. Madri: Edit. Civitas, 1998, pp. 22 et seq.).
“No âmbito internacional, a sociedade de responsabilidade limitada foi acolhida nos ordenamentos
jurídicos de diversos países. Assim, por exemplo, já em princípios do século [XX], incorporou-se
aos ordenamentos de Portugal, Equador, Áustria e Brasil, bem como à legislação espanhola. Mais
de cem Estados adotaram a idéia central que data do ano 1892, entre eles, depois da queda dos
sistemas comunistas, também Rússia, Polônia e Rumania” (TREIBER, Helmut. no G.m.b.H.,
Comentários e versão bilíngüe, Frankfurt an Main, Internat., 1995, p. v).
97 Na Europa continental o desenvolvimento da lei de sociedades está em rápida evolução. Para
uma análise completa deste aspecto cfr. SCHLESINGER et al., op. cit., p. 792.
98 ROWLEY, Scott. Rowley on Partnership. Vol. I, Indianapolis, NY: The Bobbs-Merrill Company
Inc., 1960, p. 5. O mesmo autor afirma, como o fazem vários tratadistas norte-americanos e
ingleses, que – apesar da crença errônea em contrário – existe uma proximidade notória entre
o Common Law e o Direito Romano (Ibidem).

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58 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Como se o caso anterior fosse apenas coincidência, nos Estados Unidos


também se apresenta o tipo híbrido que permite a coexistência de sócios
capitalistas e gestores, através de uma modalidade quase idêntica à sociedade
em comandita, chamada genericamente de limited partnership. Curiosamente,
a primeira regulação da sociedade em comandita na legislação norte-americana
foi a Lei do Estado de Nova Iorque no ano de 1822, cujo texto correspondia,
praticamente, a uma cópia da legislação francesa99. A diferença significativa,
até bem pouco tempo, era a sociedade de responsabilidade limitada, inexistente
até três décadas no sistema norte-americano. Porém, em épocas recentes foi
introduzido este tipo associativo através da denominação de limited liability
company100. Além disso, como será analisado neste livro, o presumível vazio
que causava a carência desta espécie de sociedade era suprida amplamente
com a sociedade capitalista de pequenas dimensões, conhecida por alguns
como statutory close corporation.
Por outro lado, a pressão exercida por sócios e administradores de sociedades
para que se reduza sua exposição ao risco nas formas societárias pessoais
(partnerships) tem dado lugar ao desenvolvimento de novas formas societárias
tais como a sociedade personalista de responsabilidade limitada (limited liability
partnership), cuja estruturação permite restringir o âmbito de compromisso
patrimonial de todos os sócios, sem a desnaturação das características próprias
do elemento intuitu personae próprio destas formas associativas. Da mesma forma,
a curiosa e pragmática invenção da sociedade de comandita com limitação da
responsabilidade dos sócios gestores (limited liability limited partnership) tem
constituído em um avanço significativo na estruturação de modalidades inéditas
de atuação societária. Esta formulação normativa constitui, sem dúvida, um dos
mais importantes modelos de sociedade comanditária desde a origem da própria
commenda na Idade Média101.

99 SCHLESINGER et al., op. cit., p. 806.


100 Cfr. Capítulo II, infra.
101 “As publicações contemporâneas sobre história do comércio dão conta da freqüente presença
no Medievo dos contratos conhecidos por sua denominação italiana de ‘commenda’ na
Europa Continental” (ROGERS, James Steven. The Early History of the Law of Bills and Notes, a
Study of the Origins of Anglo-American Commercial Law. Cambridge: Cambridge University
Press, 1995, p. 18). No entanto, os historiadores afirmam que esta importante modalidade
contratual tem suas origens no Império Babilônico. “A respeito da interessante história da
‘commenda’, que foi conhecida pelos babilônios e introduzida em Grécia e Roma por merca-
dores fenícios, pode ver-se a obra de LOBINGIER, ‘The Natural History of the Private Artificial
Person: A Comparative Study in Corporate Origins’, em Thirteen Tule. L. Rev. 41, 56-57
(1938)” (SCHLESINGER, et. al., op. cit., p. 799).

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Pois bem, para compreender as diferenças entre a legislação societária


existente nos países de Common Law e aquela presente nas nações de tradição
romano-germânica, é indispensável estudar alguns dos principais fatores que
contribuíram para o desenvolvimento do Direito Societário nos Estados Unidos.
O importante acervo de pronunciamentos da jurisprudência e sua posterior
codificação em legislações estaduais têm determinado a notável evolução do
sistema societário dos Estados Unidos102. Ao longo do século XX, os juízes
norte-americanos empregaram sua maior engenhosidade para criar um Direito
Societário mais flexível e apto para favorecer a criação de mecanismos alternativos
de organização. Por sua vez, os diferentes estados da União norte-americana se
dedicaram a sintetizar os desenvolvimentos jurisprudenciais mencionados
mediante a elaboração de completas codificações de Direito Societário103.
Enquanto o processo de codificação ocorria, os juízes desenvolviam em menor
grau os parâmetros normativos contidos nos Códigos de cada estado. O resultado
inevitável desta interação entre juízes e códigos refletiu-se em um constante
aperfeiçoamento das legislações dos Estados, em benefício de uma maior
flexibilidade das normas societárias existentes104.
O permanente intercâmbio de avanços legislativos entre os Estados foi
outro fator de notória influência na evolução societária norte-americana. Assim
que um dos estados desenvolve novas figuras e teorias, os demais procuram
adotá-las para acompanhar as inovações legislativas. Os estados que não procu-
ram atualizar suas legislações societárias tornam-se menos competitivos no de-

102 “Uma aproximação preliminar ao Direito Societário norte-americano suscita certa perplexidade,
enquanto se consegue reconhecer a enorme diversidade normativa existente, integrada por
numerosas leis, regras e antecedentes judiciais. Não existe na nação americana nem em seus
Estados um Código de Comércio sistemático no qual se estabeleçam regras gerais para a publici-
dade das sociedades ou para a conservação de seus livros de comércio. “As regras fundamentais
de Direito de Sociedades se encontram nas legislações dos cinqüenta Estados da União. Estas
normas são similares em múltiplos aspectos, mas rara vez pode dizer-se que sejam idênticas. As
leis estaduais se justapõem em certos casos à legislação federal e à jurisprudência. Contudo, seus
elementos essenciais se mantêm unidos aos órgãos legislativos e às cortes estaduais” (CONARD,
Alfred F. Business Enterprises. In: CLARK, David S. et. al. Introduction to the Law of the United
States. Deventer (Boston): Kluwer Law and Taxation Publishers, 1992, p. 311).
103 “Cada Estado tem seu próprio código de sociedades, em cujo texto se regulam integralmente os
processos de constituição das companhias, bem como os de tomada de decisões para aqueles
empresários que se constituam sob seus preceitos”. (Ibidem, p. 312).
104 Na opinião de MANUEL VARGAS VARGAS, esta interação de normas escritas e antecedentes
judiciais permitiu solucionar parte dos problemas derivados da dicotomia entre a titularidade
da propriedade e o controle da gestão societária: “A legislação tanto federal como estadual dos
Estados Unidos e, sobretudo, uma jurisprudência dinâmica e impregnada de equidade, de-
frontaram com bastante sucesso os problemas derivados deste fenômeno”. (A sociedade anô-
nima no Direito anglo americano. Santiago: Editora Jurídica de Chile, 1964, p. 16).

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nominado mercado das leis societárias, uma vez que suas legislações perderiam seu
principal atrativo, ou seja, oferecer aos empresários regras mais flexíveis que se
adaptem às necessidades destes últimos. Esta desvantagem comparativa de cer-
tos estados também se manifesta na impossibilidade de receber os numerosos
recursos derivados dos tributos e demais direitos estatais relacionados com o
funcionamento das sociedades105.
É evidente que os objetivos de modernização deste regime têm sido al-
cançados graças à interação das legislações estatais sobre a matéria. A dinâmica
deste impressionante sistema jurídico se explica pela concorrência de uma
multiplicidade de modernas leis societárias. Este constante exercício de com-
paração entre institutos jurídicos distintos permite uma evolução continuada
das instituições societárias.
O processo de positivação destas normas é caracterizado por um espírito
de inovação, com o qual se busca como objetivo essencial a adaptação da regu-
lação normativa, às situações econômicas que o estado pretende disciplinar.
O sistema de harmonização da legislação societária norte-americana con-
trasta com a forma pela qual foi produzido o mesmo fenômeno na União
Européia. Nesta última, segundo já afirmamos, a aproximação das legislações
ocorreu mediante a fixação de parâmetros de observância obrigatória, intro-
duzidos através de diretivas da comunidade européia. A natureza coercitiva
desta modalidade de harmonização reduz, segundo a opinião de alguns, a
possibilidade de contar com um sistema dinâmico de inovação legislativa, si-
milar ao que ocorre nos Estados Unidos106. Da mesma forma, a promulgação
de regulamentos e diretivas pode provocar efeitos negativos sobre a atividade

105 Cfr. ROMANO. The Genius.., cit., pp. 1-13.


106 “A aparente imunidade das leis de sociedades na Europa, ante as vantagens dinâmicas da
competência normativa em assuntos societários, deve-se, em parte, à necessidade de implantar
as diretivas comunitárias, cujo conteúdo determinou que as normas societárias substantivas
dos Estados membros tenham um caráter imperativo. Assim, o esquema básico do Direito
Societário europeu está integrado por uma multiplicidade de disposições imperativas, no que
se refere aos princípios contábeis, às regras sobre capital social, à divulgação de informação,
às fusões nacionais, à constituição de companhias e à regulação do mercado público de
valores mobiliários.” (McCAHERY, Joseph A. et al. The Governance of Close Corporations and
Partnerships, US and European Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 195).
Sem prejuízo das críticas formuladas pelo autor, deve-se assinalar que este também trata das
vantagens do sistema de harmonização que impera na Europa contemporânea. Sobre este
particular, McCahery afirma que “uma das virtudes das normas de natureza uniforme é sua
simplicidade e a assunção de menores custos administrativos em sua promulgação. Da mesma
forma, deve-se mencionar que estas disposições podem chegar a ser mais sugestivas, na medida
em que proporcionam regras homogêneas para toda classe de companhias” (Ibidem).

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das sociedades na Europa. Esta circunstância tem sido exposta por McCahery,
que afirma “o caráter naturalmente heterogêneo das companhias européias
determina a necessidade de que os sistemas legislativos ofereçam alternativas
jurídicas suficientemente variadas, com o objetivo de reduzir o risco da uni-
formidade normativa, o que implica em geral, que a legislação não apresente
níveis ótimos de eficiência”107.
Claro que a necessidade de contar com parâmetros obrigatórios de har-
monização, é limitada pela ausência de competência legislativa entre as nações
da União Européia. De fato, a inexistência de um verdadeiro mercado euro-
peu de legislação societária, determina a necessidade de impor aos estados
membros uma pauta essencial que possa ser considerada útil para o intercâm-
bio comercial entre eles.
Porém, estas exigências de adequação jurídica multilateral têm a vanta-
gem de, no geral, incorporar as tendências mais avançadas, sem a força inercial
das tradições jurídicas locais possa impedir a modernização dos sistemas.
Pois bem, a adoção na Europa da doutrina da sede real (effective seat ou siège
réel) parece ser o principal impedimento para o desenvolvimento de uma com-
petência legislativa entre o os países da União Européia. De acordo com esta
teoria, o critério decisivo para estabelecer a legislação aplicável a uma companhia
é a sede principal de seus negócios, determinado pelo território nacional em que
se encontra seu escritório principal108. Esta doutrina contrasta nitidamente com
a teoria dos assuntos internos (internal affairs doctrine) que prevalece nos Estados
Unidos, segundo a qual, as normas que regem o funcionamento interno de uma
sociedade são as do Estado previsto em seus estatutos como domicílio princi-
pal109. Esta divergência doutrinária, que a primeira vista pode parecer inócua,

107 Ibidem, p. 192.


108 Alguns autores se pronunciaram a respeito do fundamento da doutrina da sede real, nos
seguintes termos: “Não parece razoável que uma companhia conte com vantagens comparati-
vas com relação a outras sociedades, pelo simples fato de ter-se constituído sob as regras mais
liberais e permissivas de um país estrangeiro. Esta situação se acentua ainda mais naquelas
hipóteses nas quais as regras do lugar em que se desenvolve o objeto social impõem à
companhia exigentes requisitos, consagrados para a proteção de credores, empregados e
credores”. (EBKE, Werner F. The Limited Partnership and Transnational Combinations of Business
Forms. In: The International Lawyer. Vol. 22, nº 1, p. 196).
109 Dentro de tais assuntos internos se contam, naturalmente, os relativos ao funcionamento dos
órgãos sociais, o capital, as utilidades, as reformas estatutárias, os direitos subjetivos dos
acionistas etc. Como importante exceção a esta “doutrina dos assuntos internos”, deve-se
mencionar o previsto nas legislações societárias dos Estados de Nova York e Califórnia. Sob
estas duas legislações, “o critério não está constituído pela localização do escritório principal,

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dificulta sobremaneira a possibilidade de os empresários europeus selecionarem


a seu arbítrio as normas jurídicas que consideram mais adequadas para a disci-
plina dos assuntos internos da sociedade110. Assim, resta evidente que a doutri-
na da sede real constitui um desestímulo para o desenvolvimento do mercado
europeu de legislação societária, uma vez que poucas companhias estariam dis-
postas a transferir seus escritórios principais de um país para outro, com o obje-
tivo de ser acolhido em uma legislação societária mais favorável.
Em anos recentes, em grande medida em razão do espírito reformista pre-
sente nas nações européias, tem-se produzido importantes avanços que permi-
tem vislumbrar o surgimento de um mercado europeu de leis societárias. Este
notável desenvolvimento é resultado da interpretação judicial que se tem for-
mado em relação à liberdade de estabelecimento consagrada nos artigos 52 e 58
do Tratado de Roma111. A Corte Européia de Justiça vem se tornando a precur-
sora desta mudança, em razão de sua defesa intransigente da aplicação do prin-
cípio referido. No já celebre caso Centros Ltd. v. Erthversog este alto tribunal se
pronunciou contra a violação infundada de postulado a que fizemos referência,
nos seguintes termos: “Alguns Estados Membros incorrem em prática, clara-
mente arbitrária, de negar a inscrição em seus registros locais de sociedades
constituídas em outros países pertencentes a União Européia. Esta conduta
contraria flagrantemente, o princípio da liberdade de estabelecimento a que o
Tratado de Roma faz referência.” (Sent. C-212 de 19 de Março de 1997). A
importância deste precedente jurisprudencial reside no fato de ser a primeira
decisão que contraria abertamente a doutrina da sede real. Muitas outras sen-

como ocorre nos países europeus, mas sim pela determinação daquele lugar no qual a socie-
dade cumpre a maioria das atividades previstas em seu objeto social, definidas por fatores tais
como o volume de ativos, a maioria de sua força trabalhista medida pelo número de emprega-
dos e as vendas”. (CONARD, op. cit., p. 313).
110 Na verdade, “por virtude da doutrina da ‘sede real’, faz-se demasiado oneroso aceder a uma
mudança de legislação aplicável devido ao fato que isso requereria mudar o domicílio social
a um país diferente (‘reincorporation’). Ademais, as pronunciadas diferenças culturais que
ainda subsistem na União Européia permitem supor que os administradores sociais veriam com
certa reticência a possibilidade de estabelecer-se de maneira permanente num país vizinho, ou
de viajar a ele diariamente para poder cumprir suas funções” (ROMANO, op. cit., p. 132). Em
sentido análogo, MCCAHERY estima que “a União Européia não conta ainda com um verda-
deiro sistema de competência legislativa em torno da legislação societária, em grande parte,
devido à doutrina da ‘siège réel’ que adotaram a maioria dos países que integram a União”
(McCAHERY, Joseph A. et al. Limited Partnership Reform..., cit., p. 73).
111 Na opinião de RAAIJMAKERS, “é relevante a aceleração do processo de competência regulatória
em Europa e o movimento reformista das leis de sociedades em vários dos Estados membros. Para
estes efeitos foi crucial a jurisprudência da Corte Européia de Justiça a respeito da liberdade de
estabelecimento e o reconhecimento das sociedades estrangeiras” (op. cit., p. 162).

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tenças da Corte Européia de Justiça vêm pacificando o mesmo entendimento,


assim, os doutrinadores começam a ter esperanças no surgimento de um merca-
do europeu de legislação societária112.
Sobre essa questão específica, McCahery considera que “recentemente
tem-se propagado entre as diferentes jurisdições um crescente interesse por
empreender uma competência legislativa em questões relativas ao Direito So-
cietário, originado principalmente dos importantes pronunciamentos da Corte
Européia de Justiça e como forma de criar óbices ao programa europeu de
harmonização societária [...]. Por isso, o debate atual na União Européia gira
em torno da possibilidade de desenvolver neste continente um mercado legis-
lativo de direito societário que se aproxime do modelo norte-americano, de
maneira que as companhias européias podem escolher livremente a legislação
societária aplicável”113.

4. ALGUMAS DIFERENÇAS ENTRE A TRADIÇÃO JURÍDICA


ROMANO-GERMÂNICA E O SISTEMA NORTE-AMERICANO
O Direito Societário norte-americano é orientado por um conjunto de
princípios determinados de maneira especial, através de um sistema de precedentes
judiciais. Na realidade, apesar da grande quantidade de legislações sobre Direito
Societário que os estados têm promulgado, as regras jurídicas prevalecentes
continuam sendo definidas pelas decisões jurisprudenciais114. Esta é provavelmente
a característica mais relevante do Common Law, como assevera Karlem: “o imenso
corpo de precedentes criado pelos juízes ao decidir os casos, e que encontram
seus conteúdos, em sua maioria, nas decisões das cortes de apelação”115. As cortes

112 Também é relevante o caso Überseering BV v. Nordic Construction Company Baumanagement


GmbH (C-208/00), no qual a Corte Européia de Justiça assumiu uma postura mais enérgica a
respeito da violação do princípio da liberdade de estabelecimento. A ratio decidendi neste
caso esteve relacionada com a obrigação dos países membros da União Européia de dar um
tratamento eqüitativo às companhias que decidam acolher-se a uma jurisdição diferente da-
quela do país no que têm seu escritório principal.
113 McCAHERY et al. Limited Partnership Reform..., cit., p. 73.
114 A lei escrita cumpre no sistema anglo-saxão a importantíssima função de servir como mecanis-
mo de moderação a respeito da jurisprudência. Por isso, afirmou-se, com razão, que “no direito
privado as poucas disposições legais escritas existentes tiveram, essencialmente, dois propósi-
tos: (i) corrigir abusos e introduzir reformas, e (ii) tentar a uniformidade do direito criado pelos
juízes” (EDER, Phanor. A Comparative Survey of anglo-americano and Latin American Law. New
York: N.E. University Press, 1950, p. 15).
115 KARLEM, Delmar. The Citizen in Court, p. 16. A respeito das origens do ‘Common Law’ se
afirmou o seguinte: “A chegada e a adoção de júris de consciência como mecanismo de

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estão organizadas hierarquicamente, de maneira que a sentença de um juiz de


hierarquia superior vincula a decisão dos juízes de instância inferior116. Esta é a
base do sistema de precedentes judiciais117. O exposto anteriormente também é
válido na Grã-Bretanha onde, apesar da Lei Consolidada das Companhias de
1985, as regras do Common Law e da equidade (equity) continuam sendo a base
sobre a qual são construídas as normas jurídicas positivadas. Da mesma forma, na
falta de normas jurídicas positivadas, são aplicadas as mencionadas regras. Portanto,
além do grande acervo de legislação, a legislação societária se encontra parcialmente
nos casos, onde adquire vida própria118.
Talvez não seja apropriado afirmar hoje que o Common Law seja de
caráter consuetudinário119. Na verdade, o costume constituiu uma fonte fun-

resolução de conflitos, a criação de cortes monárquicas para administrar justiça, presididas e


administradas por juízes versados em assuntos jurídicos, somados ao auge do comércio em
Londres, determinaram um afastamento das normas do Direito romano e canônico. Os advoga-
dos e juízes dessa cidade criaram a nova instituição das pensões do tribunal (‘inns of court’),
para inserir aos aprendizes do Direito nas artes do litígio e a advocacia. Paulatinamente
surgiram outras características do novo sistema, tais como a utilização dos júris de consciência
também em casos de Direito Civil, a prática judicial de basear-se nos antecedentes judiciais,
sob um sistema de raciocínio fundado em tais precedentes, e a expedição de normas legais
aplicáveis em todo o território da Inglaterra. Estas características contribuíram a sentar as bases
para a criação de uma jurisprudência generalizada, cuja vigência permitiu substituir o velho
esquema feudal do direito, cujo âmbito de aplicação era tão só local. O sistema denominado
‘Common Law’ tinha nascido” (APPLE, James G. et al. A Primeiro on the Civil Law System,
Federal Judicial Center, p. 34).
116 “A regra conhecida como o ‘stare decisis’ significa que um juiz está obrigado por aquilo que
foi decidido. Um juiz de inferior hierarquia está absolutamente na obrigação de seguir o
princípio de Direito que foi decidido por uma corte ou tribunal de superior nível. O juiz
inferior não tem o direito de interpretar uma lei escrita de modo independente nem o de
desconhecer uma regra de Direito estabelecida previamente por parte de uma corte superior.
Cada corte, incluídas as mais altas, deve seguir as próprias regras que ela mesma tiver estabe-
lecido, de maneira que não se produza flutuação na lei e que possa garantir-se a segurança
jurídica” (EDER. A Comparative Survey..., cit., p. 14).
117 BOND, Helen J. et al. Business Law. London: Blackstone Press Limited, 1950, p. 5.
118 M.S. OLIVER et al., op. cit., p. 2. Eduardo Favier-Dubois afirma, no entanto, que, “no caso dos
Estados Unidos, vai em permanente aumento a quantidade de leis, estatutos e regulamentos
escritos (‘statute law’) que substituem, alteram ou dão forma legislativa ao ‘common law’, o
que obrigou a organizar sistematicamente o material em ‘códigos’, sendo o mais conhecido o
‘United States Code’, que compreende cinqüenta ‘títulos’” (op. cit., p. 825). A coexistência de
normas jurídicas escritas e precedentes judiciais permite estabelecer um verdadeiro equilíbrio
entre o trabalho dos juízes e a dos legisladores. Assim, não é raro que os órgãos legislativos
federais e estatais atenuem o alcance e a relativa insegurança jurídica a que podem dar lugar as
sentenças judiciais, mediante preceitos positivos nos que se incorpore a “regra de Direito”
imposta judicialmente e as circunstâncias fácticas em que poderia dar-se em casos futuros.
119 Apesar disso, subsiste ainda hoje a discrepância entre as denominadas posições idealistas e as
correntes do chamado realismo jurídico. Segundo as primeiras, de quem foi expoente principal
o jurista inglês Blackstone no século XVIII, o Common Law não se deriva dos antecedentes
judiciais senão dos costumes reiterados da nação inglesa, de maneira que as sentenças tão só
seriam o reflexo de tais costumes. No outro extremo, sustenta-se que é o juiz quem cria o
Direito aplicável a cada caso, sem referência necessária ao costume. Neste último grupo se

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damental do sistema inglês na Idade Média120. A importância disso reflete-


se, no caso da Inglaterra, na falta de uma Constituição Política escrita121. Esta
carência, que não é visível em outros sistemas de origem anglo-saxão como o
norte-americano, dá lugar a uma estrutura política de Estado no Reino Unido
seja regida, ainda hoje, pelos costumes e tradições próprias da Coroa Inglesa.
Em outros sistemas jurídicos, deve-se admitir que, atualmente, o costume
ocupa um papel apenas secundário como fonte do Direito122 e, por tanto, não
prevalece frente à legislação nem em relação aos precedentes123. Além disso, os
requisitos para fazê-lo valer frente aos juízes são tão exigentes, que raramente
os costumes tornam-se obrigatórios. Com efeito, o estabelecimento original
do costume requer prova de sua existência continuada por um longo período
de tempo, assim como tenha existido como conseqüência de acordo entre as
partes não em virtude do uso da força. Igualmente, deve estar de acordo com
outros costumes, ter certeza e ser aceito como obrigatório e de importância
significativa, além de ser razoável124.
Por outro lado, é importante observar que o método raciocínio no siste-
ma de Common Law é altamente indutivo125. Em lugar de observar o princí-
pio jurídico contido em uma norma legal positivada, o intérprete deve buscar

destaca o juiz norte-americano Holmes, para quem, “o Common Law é um judge made law ou
direito criado pelos juízes. A sentença é regulamento tanto para o caso particular como para os
vindouros, não porque o juiz recolha nela o direito expressado nos costumes dos maiores,
senão simplesmente porque é o próprio juiz que, ao resolver o caso num sentido determinado,
cria a norma de direito” (VARGAS VARGAS, op. cit., p. 20).
120 No clássico livro de SIR MATTHEW HALE sobre a história do Direito Comum de Inglaterra se
menciona a coexistência, própria do direito anglo-saxão, entre as leis escritas e os costumes do
Reino Inglês. “O Direito Inglês pode ser justamente dividido em duas classes, v.gr. Lis Scripta,
o direito escrito e Lex Non Scripta: Ainda que no direito deste reino se encontram alguns
monumentos ou reminiscências por escrito, nem todas as normas foram concebidas assim; isso
se deve ao fato que algumas destas leis derivam sua força de usos ou costumes muito antigas,
de maneira que tais normas se denominam apropriadamente Leges Non Scriptae ou normas ou
costumes não escritos”. (The History of the Common Law of England. London: The Univerisity
of Chicago Press, 1971, p. 3).
121 “No entanto, deve-se considerar a existência de um corpo de leis do parlamento proferidos sob
o reinado de Henrique segundo, conhecido comummente como as constituições de Clarendon”.
(Ibidem). Estas normas não podem ser consideradas propriamente como uma constituição no
sentido moderno da palavra.
122 É óbvio que o costume foi incorporado desde tempos remotos não somente em leis escritas
senão também em sentenças judiciais (Cfr. HALE, Sir Matthew. Op. cit., p. 16).
123 BOND et al., op. cit., p. 21.
124 GLENDON et al., op. cit., p. 241.
125 Segundo JOSÉ FERRATER MORA, a indução consiste num “método dialético, o qual vai
recusando hipóteses para elevar-se a proposições de caráter mais e mais universal” (Dicionário
de filosofia, 4ª edit. Buenos Aires: Edit. Sul-americana, 1958, p. 697).

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sentenças prévias relacionadas com a matéria específica para determinar qual é


a norma jurídica aplicável126. Nesta estrutura de sentenças judiciais, a situação
fática possui importância significativa. É fundamental que os juízes analisem
detalhadamente os fatos, para determinar a aplicação do princípio de Direito
invocado ou ratio decidendi. Isso significa que a decisão do juiz, além de incor-
porar os fatos relevantes do litígio, também contém a posição adotada por ele.
Além disso, a regra de Direito contida na decisão (rule of law), compreende o
princípio jurídico fundamental cuja autoridade se impõe de maneira irrefutá-
vel nos casos futuros que serão decididos com base em fatos semelhantes127.
A ratio decidendi se distingue, com relativa clareza, de outros fundamen-
tos jurídicos expressos na sentença e conhecidos no sistema como obter dicta,
que apesar de relacionar-se com o caso em questão, não são vinculantes128.
Isso significa que são observações isoladas que pertencem ao caso particular,
cujo conteúdo não é necessário observar nos casos futuros. Contudo, destas
decisões pode derivar certa autoridade, de acordo com a reputação do juiz, a
importância do tribunal que profere a sentença e as circunstâncias em que a
decisão foi tomada129.
A jurisprudência alcança tamanha relevância que, normalmente, para
estabelecer a aplicação correta de uma norma jurídica escrita, é importante

126 Não se deve incorrer na confusão a que dá lugar o vocábulo inglês law. O significado desta
palavra não só se relaciona com a lei (em sentido formal ou material), senão também com uma
acepção mais ampla: Direito. Assim, quando se utiliza a palavra law, ela pode referir-se não só à
“lei” expedida por um órgão legislativo (que se conhece, mais bem, com os vocábulos statute, act
ou bill), senão também à regra jurídica (rule of law) estabelecida numa sentença judicial.
127 Sobre a explicação do denominado princípio do stare decisis, afirmou-se que “é verdadeiro
que as decisões dos tribunais de justiça são obrigatórias em virtude das leis deste reino e
constituem o direito aplicável entre as partes concernentes, com respeito ao caso particular
que se decide [...]. Elas têm uma grande força e autoridade para explicar, declarar e publicar o
direito vigente neste reino, especialmente, quando tais decisões mostram consonância e
congruência com as resoluções e decisões proferidas em épocas anteriores. (HALE, Sir Matthew.
op. cit., p. 45).
128 Naturalmente, poder-se-ia afirmar que uma vez sentada a regra de Direito, o sistema assume
também um caráter dedutivo, porque os tribunais e juízes de hierarquia inferior ficam obriga-
dos a aplicar tal princípio, de forma geral, a todos os casos que daqui por diante se apresentem.
129 Se trata do que se denominou de capacidade persuasiva de afirmações acidentais (persuasive
authority of obiter dita). “Um exemplo poderia consistir numa regra de Direito mencionada no
texto da sentença a título de simples ilustração ou analogia, ou outra regra sugerida na qual não
está baseada a decisão final. Estima-se que o ‘dito de passagem’ não é vincular dentro da
sentença, porque, provavelmente, o juiz não o afirmou depois de efetuar uma análise detalhada
dos antecedentes sobre o caso. Ademais, se aquilo considerado como obiter dictum é demasia-
do vago ou de excessiva amplitude, é provável que o juiz o tenha expressado sem valorizar de
modo suficiente todas as conseqüências que se seguiriam de sua aplicação” (WILLIAMS, Glanville.
Learning the Law. Eleventh Edition. London: Stevens & Sons Limited, 1982, pp. 77-78).

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esperar o pronunciamento dos juízes em relação ao alcance da mesma130. Esta


é, com freqüência, a melhor forma de conhecer qual é o verdadeiro alcance da
legislação. Segundo as palavras de Glendon: “usualmente considera-se que,
enquanto a legislação positivada não for interpretada pelos juízes, carece da
autoridade derivada da aprovação dos tribunais”131. A característica apresen-
tada expõe as duas faces que caracterizam o Common Law, ou seja, em primei-
ro lugar um maior grau de incerteza e em segundo lugar, um nível superior de
flexibilidade. Na verdade, apesar do princípio do stare decisis132, cujo funda-
mento é proporcionar relativa segurança em relação ao direito aplicável133, os
juízes e tribunais dos Estados Unidos podem deixar de aplicar as decisões
previamente aplicadas, quando as circunstâncias excepcionais assim exigirem134.

130 Se sabe que os juízes se mostram reticentes ante a aplicação de normas escritas quando elas
contradizem as regras de Direito decididas no Common Law. “Com muita freqüência e a não ser
que o ânimo de codificação seja patente, vê-se os juízes anglo-saxões sustentarem que um
determinado ‘statute’ só teve por objeto recopilar ou codificar o ‘Common Law’ e que,
portanto, deve ser interpretado no sentido que este se tinha entendido anteriormente à
codificação” (VARGAS, op. cit., p. 19). Além disso, a enorme difusão da jurisprudência anglo-
saxã permite que sua consulta se efetue na atualidade mediante completas bases de dados, às
quais é viável aceder por meios eletrônicos. A publicação das sentenças dos juízes corresponde
a uma tradição inveterada que afunda suas raízes na época Medieval. “Desde épocas remotas,
o Direito inglês se desenvolveu a partir de sentenças mediante as quais se decidem casos reais.
Desde o ano de 1295 se tem notícia da publicação consecutiva de sentenças, primeiro na
forma de anuários (‘yearbooks’) e mais adiante nos denominados ‘reportes ou compilações de
casos” (EDER, Phanor. A Comparative Survey…, cit., p. 8).
131 GLENDON et al., op. cit., p. 235.
132 Por virtude deste princípio, os juízes de menor hierarquia devem submeter-se em suas senten-
ças ao decidido pelas cortes de apelações e pelas cortes supremas. Estas últimas, por sua vez,
devem respeitar seus próprios precedentes jurisprudenciais, de maneira que as mudanças de
apreciação sobre um ponto previamente decidido devem estar plenamente justificados. De
acordo com o dicionário Black’s Law, o “stare decisis” é definido como “aquela doutrina
segundo a qual quando um tribunal decidiu um princípio jurídico aplicável a determinados
fatos, continuará baseando-se em dito princípio e o aplicará a todos os casos futuros, sempre
que os fatos sejam substancialmente iguais, sem prejuízo de que o regrado recaia sobre as
mesmas partes ou os mesmos bens” (Sixth Edition. Saint Paul, Minn.: West Publishing Company,
1990, p. 1406). “A importância da doutrina do stare decisis se expõe naqueles casos em que
é viável identificar uma ou várias sentenças judiciais a respeito de algum ponto de Direito. A
doutrina significa que os casos semelhantes devem ser resolvidos no presente, de forma
idêntica a como o foram no passado. A doutrina se vale da denominada ‘ratio decidendi’ ou
sustento (‘holding’), que não é nada diferente de uma breve referência a uma sentença judicial
prévia. Esta, por sua vez, é uma regra específica, cuja utilidade consiste em que mediante ela
pode-se resolver o conflito que surge de uma situação fática particular. O resto do texto da
sentença é relativamente irrelevante, pois se considera simplesmente como ‘dita’. A ‘ratio
decidendi’ pode comparar-se com um princípio jurídico, já que constitui uma norma geral que
se nutre de razões que serviram como fundamento a uma série de sentenças judiciais consecu-
tivas” (CLARK, David S. et. al., op. cit., p. 36).
133 HOWELL, Rate A. et al. Business Law. Third Alternate Edition. Chicago: The Dryden Press,
1986, p. 65.
134 Para Eder, existe uma vantagem adicional do método de decisão judicial (case law) com relação
aos sistemas de Direito escrito: “Um princípio geralmente reconhecido tanto no direito de

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No reino Unido, as cortes contam com uma menor flexibilidade para revogar
(overrule) suas próprias sentenças judiciais135. Certamente, a validade de um
princípio de direito previamente definido por um juiz, só pode ser desconsi-
derada por uma corte hierarquicamente superior, com exceção da Câmara dos
Lordes. Somente a partir de 1966 estabeleceu-se que esta última corporação
poderia revogar suas próprias determinações.
Por outro lado, o sistema de codificação dos países de tradição romano-
germânica possibilita aos litigantes uma maior previsibilidade em relação aos
resultados dos processos. Isso se deve ao princípio segundo o qual “a lei deve ser
clara e deve ser escrita, tanto quanto possível, de maneira que cada cidadão possa
conhecer quais são seus direitos e seus deveres. Somente mediante esta clareza é
possível minimizar os litígios, evitar as injustiças e preservar a liberdade”136. A
segurança é, a propósito, o objetivo de todo sistema jurídico, porém, como afirma
acertadamente, Merryman “na tradição romano-germânica ela tem se
transformado em uma espécie de valor supremo, dogma inquestionável e meta
fundamental [...]. No mundo do Direito que pertence à tradição do Civil Law,
o argumento de que qualquer proposta de alteração legislativa afetará a segurança
jurídica sempre é utilizada para o avanço da legislação”137. A segunda característica
mencionada, isto é, a flexibilidade, é particularmente relevante no campo do
direito societário, em razão dos juízes possuírem uma grande liberdade para

origem românica como no anglo-americano, é aquele, segundo o qual, uma lei escrita não
pode ser derrogada por ter caído em desuso ou por existir um costume contra legem. Pelo
contrário, no sistema de precedentes, próprio do ‘Common Law’, existe uma conhecida
exceção à regra do stare decisis. Os antecedentes judiciais ficam derrogados por simples
obsolescência, o qual ocorre pelo curso do tempo e pela mudança nas circunstâncias. Quan-
do os motivos que se levaram em conta para expedir uma antiga regra variam por razão de uma
mudança nas circunstâncias, o juiz fica em liberdade para desconhecer a velha regra, de
maneira que seu dever será o de aplicar outros princípios que sejam consoantes com as
exigências da época presente (‘cessante ratione, cessat et lex ipsa’)” (A Comparative Survey...,
cit., pp. 21-22).
135 “O sistema norte-americano de antecedentes judiciais, ainda no caso da Corte Suprema de
Justiça, é mais flexível e maleável do que o da jurisprudência inglesa, sem que isso signifique que
aquele se aparte do princípio de igualdade frente à lei, da segurança jurídica, da possibilidade
de predizer os resultados de um processo judicial ou da economia no uso dos meios. O caráter
eclético dos tribunais, inclusive os de caráter federal, a ampla formação intelectual e jurídica dos
juízes, o fato de que estes participam na formulação de regras de ordem pública, econômica,
social e moral, bem como sua capacidade de adaptar-se às idéias e teorias predominantes em sua
época, marcam a diferença entre as concepções inglesas e norte-americanas a respeito do sistema
de precedentes judiciais”. (LEVASSEUR, Alain A. Le Droit..., cit., pp. 79-80).
136 TUNC. The Code Napoléon and the Common Law World, citado por SCHLESINGER et al., op.
cit., p. 19.
137 MERRYMAN et al., op. cit., p. 612.

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decidir cada caso de acordo com as características particulares do caso concreto138.


Isso resulta em uma maior importância na proteção dos acionistas minoritários.
As decisões com base na equidade quando não existe outro recurso para o
demandante, é um claro exemplo da conveniente amplitude do sistema139. Estas
decisões com base na equidade justificam sua existência através da evolução
histórica que experimentaram.
Sabe-se que a rigidez do sistema procedimental do antigo Common Law,
baseado exclusivamente nas denominadas ações do antigo Direito anglo-saxão
(writs), dava lugar a uma forma de injustiça quando as circunstâncias de fato
não se adequavam em nenhum dos procedimentos estabelecidos140. Os writs
eram ações especiais para cada caso em particular, de modo que o demandante
devia seguir rigorosamente tais procedimentos, sob penas de suas penas não
serem deferidas141. A inflexibilidade do sistema já era patente na Inglaterra do
começo do século XIV. Tal rigidez fez com que o Common Law não pudesse
adaptar-se rapidamente às mudanças sociais e econômicas neste país142. Para
contrabalançar a rigorosidade do sistema dos writs e permitir condenações dis-
tintas da simples indenização financeira por prejuízos, introduziu-se um siste-

138 De acordo com HOWELL, “em toda nação, e em especial nas altamente industrializadas como
os Estados Unidos, as mudanças sociais ocorrem com acelerada rapidez. Cada mutação
apresenta novos problemas que devem ser resolvidos sem demoras indevidas. Esta necessidade
foi reconhecida pelo juiz Cardozo, quando escreveu que “o Direito, como o viajante, deve
estar sempre pronto para o amanhã” (HOWELL, Rate A. et al., op. cit., p. 7).
139 “Remedy” é a expressão inglesa equivalente a recurso (ROBB, Louis A. Dicionário de Termos
Legais, Espanhol-Inglês e Inglês-Espanhol”. México: Edit. Limusa, 1991, p. 206).
140 “O progresso do Direito nunca foi constante. Oscilou pendularmente entre épocas vigorosas e
épocas de decadência. Por razões desconhecidas, o ‘Common Law’, teve uma etapa de
estancamento. Num ponto determinado, cessou a criatividade dos juízes da coroa para inven-
tar procedimentos, inovadores ‘writs’ e ordens para instituir novas ações. A situação criou
preocupação na consciência do rei. Este, pai do país e fonte da justiça, tinha o dever de
verificar que a nenhum súbdito se denegasse o acesso a ela, em casos em que, em critério do
monarca, deveria existir um processo disponível. Este dever foi delegado ao Chanceler, quem
se converteu, entre os séculos XV e XVI, no guardião e depositário da consciência do rei”
(EDER. A Comparative Survey..., cit., p. 67).
141 No dicionário Black’s Law se faz a seguinte referência a respeito das origens dos denominados
writs: “No antigo Direito Inglês, o writ era um instrumento em forma de carta […]. Nos antigos
livros a palavra writ se usa como um equivalente de ação. Por tanto, os writs se dividem em
ocasiões em reais, pessoais ou mistos”. (Op. cit., p. 1608).
142 BOND et al., op. cit., p. 5. “Tanto o ‘Common Law’ como a ‘equity’ se originaram na Inglaterra
a partir da invasão normanda de 1066. Ambos os sistemas se mantiveram relativamente
unificados por cerca de três séculos […] Só no século XIII, estabeleceram-se entre eles certas
fronteiras, ainda que de modo vago e tão só para algumas ações judiciais […]. No século XIV,
a jurisdição da ‘equity’ surge, finalmente, como um sistema autônomo” (NOLAN, Joseph R. et
al. Equitable Remedeies. Massachussets: West Publishing Company, 1993, p. 10).

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ma distinto que originou a instituição da equity143. Assim eram resolvidos os


litígios que não podiam julgados segundo as regras do Common Law144.
Além do mais, as cortes de equidade (equity) introduziram soluções dis-
tintas das pecuniárias, tais como as denominadas injunction, remedy of specific
performance, rectification e rescission145. Atualmente são muito relevantes estas
soluções e de maneira especial as duas primeiras. Certamente, no Direito So-
cietário e no Direito Contratual, tanto as ordens coercitivas (injunctions) como
as providências de execução de uma prestação específica (specific performance)
possuem importância nos casos em que uma indenização de prejuízos não
constitui uma solução apropriada para restabelecer o equilíbrio entre as par-
tes. As ordens coercitivas são fundamentais, por exemplo, para o cumprimen-
to de deliberações tomadas no âmbito de acordos de acionistas ou de certas
deliberações tomadas nas assembléias da empresa ou ainda pela Administra-
ção. Afinal, é preferível exigir que as partes atuem de uma forma determinada
do que exigir que se abstenham de uma conduta que possam produzir resul-

143 No célebre caso Dudley v. Dudley (1705) encontra-se uma excelente definição do conceito em
estudo: “A ‘Equity’ não faz parte da lei, senão que é, mais bem, uma virtude moral que qualifica,
modera e reforma o rigor, a dureza e o fio da lei, e constitui uma verdade universal. Também
complementa à lei, quando ela é defeituosa ou débil em sua constituição [...]. Portanto, a
‘equity’ não destrói nem cria a lei, tão só a complementa” (BOND et al., op. cit., p. 6).
144 “A jurisdição de equidade nasceu na Inglaterra e traz sua origem da idéia de que o rei é ‘a fonte
da justiça’. Segundo esta concepção o rei, como ‘pater patriae’ tem o dever de velar por que a
nenhum de seus súbditos se denegue um remédio ou uma reparação quando a consciência
requer que tenham alguma. A equidade se obtém por graça do rei, não por direito. Portanto,
os remédios eqüitativos são essencialmente discricionários, o que se põe de relevo na máxima
de equidade segundo a qual esta ‘depende do tamanho do pé do chanceler’ (equity depends
on the length of the Chancellor’s foot) […]. A partir do século XIV o rei começou a delegar as
funções relacionadas com a equidade no ‘Chancellor’ ou Chanceler, quem decidia os casos
em seu nome. Daí que o Chanceler recebesse o título de keeper ‘of the king’s conscience’ ou
guardador da consciência do rei. Os chanceleres, que até tempos de Henrique VIII (século XVI)
foram eclesiásticos, inspiraram fortemente suas decisões no Direito Canônico” (VARGAS
VARGAS, op. cit., p. 22).
145 BOND fornece as seguintes definições destas medidas excepcionais: “a) Ordem coercitiva ou
de abstenção (‘injunction’): Trata-se de uma providência judicial por meio da que se ordena a
execução ou abstenção de um determinado ato. Quando está dirigida a ordenar a execução de
certo ato, recebe o nome de ordem coerciva (‘mandatory injunction’); se trata-se de uma ordem
judicial orientada a que seu destinatário se abstenha de realizar uma ação, usualmente ilegal,
recebe o nome de ordem de abstenção (‘prohibitory injunction’). b) Execução específica da
prestação (‘specific performance’): Trata-se de uma providência judicial da qual se deriva um
mandato mediante o qual se obriga a um indivíduo a cumprir uma obrigação derivada de um
contrato ou de um negócio fiduciário (‘trust’). c) Retificação (‘rectification’): Quando um
documento notarial não reflete a verdadeira intenção das partes, devido a um erro de transcri-
ção, a corte de chancelaria adquire concorrência para ‘retificar’ tal documento. d) Rescisão
(‘rescision’): de maneira análoga à retificação, este remédio surgiu da impossibilidade que
existia sob o ‘common law’ de impedir a uma parte exigir à outra judicialmente uma responsa-
bilidade contratual, em circunstâncias tais nas quais a demanda fosse manifestamente injusta,
devido a fatores acidentais” (op. cit., pp. 6-7).

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tados injustos146. É preciso perceber também que soluções que impõe o dever
de executar uma obrigação derivada de um contrato, cumpre também um
papel preponderante no âmbito do direito societário147.
A antiga divisão entre cortes de Direito e de equidade (Courts of Law and
Courts of Equity) foi abolida tanto na Inglaterra quanto nos Estados Uni-
dos148. Apesar, de ainda subsistirem as duas instituições do judiciário, com
suas regras perfeitamente definidas149. Quando a sentença é proferida com
base na equidade, os princípios jurídicos aplicáveis são adotados com ampli-
tude pelo juiz, mas a decisão depende em parte da discricionariedade do fun-
cionário, este deve guiar-se por precedentes judiciais sobre fatos semelhantes e
observar as regras próprias desta forma de atuação judicial150. Os recursos

146 Cfr. Capítulo VII, infra.


147 “No Direito anglo-saxão existe a possibilidade de obter a execução ‘in natura’ de uma obriga-
ção, sempre que isso se solicite ante os tribunais da ‘equity’. Este mecanismo da execução
específica da obrigação se considera como um recurso extraordinário para o demandante.
Depois de ter-se adotado a doutrina da ‘consideration’ segundo as regras fixadas pelas cortes
de Common ‘Law’, a jurisdição da ‘equity’ se converteu num sistema judicial paralelo a
respeito daquele, em relação com a execução dos contratos. Quem iam à jurisdição da
‘equity’, faziam-no pelo interesse de aceder à execução específica de uma obrigação, em lugar
de obter a simples indenização pecuniária ou o reconhecimento de interesses, que eram
remédios próprios da jurisdição do ‘Common Law’” (LEVASSEUR, Alain. Le contrat em droit
américain. Paris: Éditions Dalloz, 1996, p. 63).
148 “A unificação das duas jurisdições se produziu na Inglaterra mediante a Lei de Judiciário de
1873. No entanto, estas se mantiveram separadas até 1875, ano no qual as velhas cortes de
‘common law’ e de ‘chancelaria’ foram definitivamente abolidas. Em seu lugar se estabeleceu
uma Corte Suprema do Judiciário, com atribuições suficientes para administrar os assuntos ‘de
common law’ e da ‘equity’” (WILLIAMS, Glanville. op. cit., p. 27).
149 “Dentro das principais distinções entre o ‘Common Law’ e a ‘equity’, podem mencionar-se as
seguintes: o ‘Common Law’ era um sistema de Direito estrito; a ‘equity’ era o Direito da boa
consciência. Devido ao fato que a Chancelaria era uma corte que decidia em consciência, nunca
estava obrigada a conferir a pretensão solicitada. Tal determinação era discricionária para a corte,
de maneira que a parte que estivesse afastada da justiça, não tinha direito algum ante esta
jurisdição. Uma série de regras definitivas surgiram, cuja consolidação se produziu no século
XVIII, com respeito ao exercício de poderes discricionários, que não arbitrários. Algumas destas
regras são conhecidas como as ‘máximas da equity’. As sentenças proferidas pelas cortes do
‘Common Law’ incorporavam, como regra geral, uma condenação monetária. As cortes da
‘equity’, decretavam, com freqüência, o cumprimento específico de prestações contratuais e sua
arma mais poderosa consistia em exercer as ordens coercivas ou proferir interditos para evitar a
realização de atos ilegais ou precaver um prejuízo iminente. Sua função era, por tanto, preven-
tiva. As cortes do ‘Common Law’, atuavam somente depois que o ato se tinha consumado ou
cometido, sua função era, por tanto, de reparação. Naturalmente, este paralelismo ou dualidade
resultava insatisfatório, de maneira que foi abolido a partir do grande movimento de reforma
legislativa do século XIX: em Nova York, em 1948, e em Inglaterra, em 1873. As cortes da ‘equity’
e do ‘Common Law’ se fundiram, mas se estabeleceu a regra de que, em caso de conflito, a
‘equity’ prevaleceria” (EDER. A Comparative Survey..., cit., p. 68).
150 HOWELL, Rate A. et al., op. cit., pp. 25 e ss. “Gradualmente, a ‘equity’ foi convertida em regras
ou máximas de decisão às quais deviam se ajustar as decisões, ou seja, a ‘equity’ foi perdendo
seu caráter de norma puramente moral para transformar-se em norma jurídica, condensada em
diversas máximas, como a que diz que ‘o que procura equidade deve ter as mãos limpas’ ou a
que expressa que ‘o que reclama equidade deve proceder também com equidade’ ou, por

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utilizados no julgamento com base na equidade (remedies in equity) possuem a


particularidade de que não se apresentam com um direito do demandante,
mas com um poder discricionário do juiz, cujo exercício depende de sua apre-
ciação dos fatos e da própria boa-fé de quem invoca o recurso151. É por isso
que se afirma que a equity atua in personam, ou seja, sobre a responsabilidade
do demandado. Uma pessoa que invoca a igualdade “deve atuar com igualda-
de [...]. Aquele que solicita a igualdade deve vir com “mãos limpas” ou não
poderá invocar o recurso”152.
Deve-se destacar a diferença que existe entre o sentido que deve atri-
buir-se a palavra equity e o vocábulo eqüidade presente em nosso idioma cas-
telhano. “Ao fim, equity constitui um claro exemplo da afirmação segundo a
qual algumas palavras possuem um significado no Direito que não coincidem
com a acepção dada pela linguagem comum. Segundo esta última, equity sig-
nifica justiça natural, no entanto, o aprendiz de Direito deve apartar-se deste
conceito quando tomar contato com o instituto jurídico conhecido como equity.
Em suas origens este sistema se inspirou em concepções próprias de justiça
natural. De onde adquiriu a denominação que ainda hoje utiliza. Na atuali-
dade, o vocábulo equity representa um idêntico grau de justiça natural quan-
do comparado com o Common Law”153.
As características anteriores pareciam denotar um maior grau de autono-
mia nas decisões proferidas em equity154. No entanto, nas sentenças proferidas
no Common Law também existe a discricionariedade dos juízes dos tribunais.
Na realidade, o juiz possui “tradicionalmente poderes inerentes de equidade,
podendo adequar o resultado do caso as condições fáticas, adaptar a regra do
Direito quando isso for necessário para alcançar a justiça substancial, inter-
pretara e reinterpretar a lei para que ela acompanhe a mudança social”155.

último, aquela segundo a qual, ‘a equidade não tolera agravo sem reparação’” (VARGAS
VARGAS, op. cit., p. 22).
151 “As jurisdições de equidade são jurisdições de consciência. Os remédios que estas jurisdições
outorgam aos litigantes se inspiram na idéia de que repugna à consciência deixar a alguém
privado de uma reparação adequada quando assim o requer a justiça, ainda que a aplicação
estrita das normas de Direito leve à conclusão contrária” (Ibidem, p. 23).
152 BOND et al., op. cit., p. 8.
153 WILLIAMS, Glanville. op. cit., pp. 25-26.
154 Para HELEN J. BOND, “apesar de que as regras da equity eram proferidas em consciência,
rapidamente se tornaram num conjunto de regras dotadas, em grande parte, de uniformidade
e certeza. Quase todas estas regras foram criadas entre 1529 e 1827. Daí que a equity já não
dependa do tamanho do pé do Chanceler”. (Op. cit., p. 6).
155 MERRYMAN et al., op. cit., p. 614.

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É bom recordar, por outro lado, que a legislação adotada desde o sécu-
lo XIX pelos distintos Estados da União Americana demonstrou não ser
uma garantia suficiente na proteção dos interesses dos acionistas minoritá-
rios e credores. Por isso, tal proteção teve que ser alcançada externamente às
leis estaduais, mediante decisões judiciais em equity, que impuseram aos
administradores e sócios majoritários deveres fiduciários por meio da legis-
lação federal sobre valores mobiliários mobiliários dos anos trinta e quaren-
ta. Como conseqüência disso – e em contraste com o método tradicionalmente
seguido nos países de Civil Law – os mais importantes mecanismos usados
nos Estados Unidos para proteger os investidores não se encontram na le-
gislação de Direito Societário, mas existem como um corpo separado de
regras de Direito156.
Segundo afirmado anteriormente nesta obra, o Direito Societário pró-
prio dos países de tradição romano-germânica são considerados pela doutrina
anglo-saxônica como um sistema de menor dinamismo, em comparação com
o Common Law. Isso se deve ao fato de que geralmente, o juiz está obrigado a
aplicar a lei estritamente como aparece nos textos legais157. Poderíamos dizer
que os procedimentos tendem a ser menos efetivos, particularmente no que se
refere às ações de proteção dos sócios minoritários e de terceiros credores158. A
carência de equivalente aos recursos em equity determina uma considerável
restrição aos poderes dos juízes cujo campo de atuação se vê limitada por
rígidas fronteiras que os Códigos estabelecem.

156 SCHLESINGER, et al., op. cit., p. 803. “O Direito das sociedades anônimas é Direito legislado,
matéria própria do ‘statute law’. No entanto, este Direito está penetrado de equidade […]. A
preeminência da equidade no campo do direito das sociedades anônimas – e em general do
Direito Societário –, tem uma explicação histórica: os tribunais de Direito tiveram sempre
repugnância a intervir nos conflitos propostos entre os sócios de uma ‘partnership’ ou socie-
dade coletiva, dada a complexidade dos problemas que ditos conflitos propunham. Ante esta
negativa dos tribunais de Direito não ficava aos sócios outro remédio que ocorrer aos tribunais
de equidade” (VARGAS VARGAS, op. cit., p. 25).
157 “O papel do juiz é simples e restringido, limitado pela noção estrita da supremacia legislativa.
Os juízes dos países civilistas são, em teoria, ‘operadores’ de um sistema que foi desenhado
por cientistas do Direito e construído pelos legisladores. Devido ao fato que somente existe
uma solução correta a um problema jurídico, segundo o têm sentado a doutrina e a ciência
jurídica, a arbitrariedade no juiz ou a amplitude interpretativa se fazem essencialmente desne-
cessárias” (APPLE, James G. et al., op. cit., p. 30).
158 Segundo EDER, os autores do Common Law costumam estar de acordo em considerar que,
“este sistema de Direito criado pelos juízes (‘judge made law’), ajusta-se mais apropriadamente
às necessidades da vida, está mais orientado pelo sentido comum e está mais próximo dos
assuntos relevantes para o homem do que qualquer outro sistema jurídico no mundo” (A
Comparative Survey..., cit., 1950, p. 20).

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É muito comum o juiz ter que enfrentar o dilema de adotar uma decisão
injusta ou ter a necessidade de se afastar da interpretação exegética do texto
legal. Existe ainda como agravante o fato de que a presença de lacunas na
legislação cria uma situação iníqua ou alguma classe de bloqueio no processo
de adoção de decisões judiciais, cuja única solução possível consiste na inter-
venção do órgão legislativo159. Por isso torna-se pertinente a observação de
Piero Calamandrei segundo a qual a prática judicial dos países de tradição
romano-germânica “é rica em virtuosismo dialético, porém como conseqüên-
cia, menos sensibilidade e abertura às exigências de cada caso individual, que
os países do Common Law”160.
Trata-se, portanto, de uma jurisprudência essencialmente conceitual em
que conta mais o rigor exegético que os valores mobiliários de justiça e equi-
dade. “Somente poucos países de tradição jurídica ligada ao Civil Law como a
suíça, por exemplo, tem dado aos juízes amplos poderes para criar Direito e
atuar, em certos casos, como legislador”161.
Porém, podemos antecipar que o dinamismo da função judicial, por ser
um imperativo dos sistemas jurídicos contemporâneos, acabará por impor-se
aos países de maior rigidez exegética.
É interessante recordar que nos tribunais privados das corporações for-
madas por comerciantes (curiae mercatorum) da Idade Média, que formavam
parte da denominada jurisdição consular, as determinações eram adotadas ex
aequo et bono. Atualmente existe a possibilidade de atribuir a um tribunal de

159 MERRYMAN afirma que “no mundo de tradição romano-germânica, se os fatos que originam o
litígio não encaixam no marco normativo, devem ser distorcidos para fazê-los encaixar nele.
Ademais, a construção de dito marco normativo, em teoria, sempre corresponde ao legislador”
(op. cit., p. 614).
160 Citado por JOHN HENRY MERRYMAN et al., op. cit., p. 623. DAVID S. CLARK considera o
pragmatismo como a característica fundamental do sistema norte-americano. Em sua opinião,
“os norte-americanos, em geral, tendem a interessar-se muito pouco na filosofia ou nas abstra-
ções metafísicas. De uma visão européia, os estadunidenses vulgarizaram a filosofia de um
modo semelhante a como desarticularam sua linguagem, a comida ou as boas maneiras. De
uma perspectiva norte-americana, estas condutas são aceitáveis na medida em que tenham
uma utilidade prática” (CLARK, David S. et al., op. cit., p. 8). Não menos surpreendente é a
progressiva mudança de uma sofisticada cultura livresca para outra na que predomina a
informação difundida em materiais audiovisuais produzidos para a sociedade de consumo
Assim, por exemplo, suscita perplexidade que no texto de eruditas elaborações doutrinárias se
incluam citações procedentes do V Episódio da “Guerra das Estrelas” (Cfr. BIERY, Evelyn H. et
al. A Look at Transnational Insolvencies and Chapter 15 of the Bankruptcy Abuse Prevention
and Consumer Protection Act of 2005. In: Boston College Law Review. Vol. 47, nº 23, 2005,
pé de pág. 229).
161 Artigo I do Código Civil da Suíça.

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arbitragem a faculdade de decidir por equidade162. Porém, na prática, tal prá-


tica não é tão freqüente. Além disso, em razão de a América Latina adotar um
sistema formalista de aplicação e interpretação da lei, criou-se uma dificulda-
de adicional para que o judiciário participe de forma mais ativa no processo de
evolução do Direito. De acordo com Schlesinger, esta recusa dos juízes latino-
americanos em preencher as lacunas legislativas e desenvolver o Direito impe-
de o exercício de uma função judicial criativa e moderna163.

162 No entanto, deve-se evitar a confusão que faz alguns pensar que as decisões falhas em ‘equity’
são equivalentes aos laudos arbitrais em equidade. Na realidade, no sistema anglo americano
existem regras bem definidas ainda para as decisões mencionadas. De maneira que a ‘equity’,
igualmente ao ‘Common Law’, está integrada por um corpo de regras de Direito, igualmente
vinculantes para os juízes chamados a aplicá-las, cuja difusão também se produz de maneira
periódica. Naturalmente, devido ao fato que a ‘equity’ se desenvolveu nos tribunais da
chancelaria (‘courts of chancery’), que dependiam diretamente do rei, o chanceler não estava
obrigado a acatar as regras do ‘Common Law’.
163 SCHLESINGER et al., op. cit., p. 651. É interessante mencionar neste ponto a opinião um tanto
extrema de ROSENN sobre a situação atual do Direito na América Latina. Vejamos: “Conquanto
existe em todos os países alguma diferença entre o Direito tal como aparece nos livros e a efetiva
aplicação da lei, dita distorção é especialmente notória na América Latina. Pese a preocupação
impressionante pela aparência de legalidade, uma significativa quantidade de normas se conhece
só na medida em que elas são violadas. Phanor Eder, estudioso incansável do Direito Latino-
americano, referiu-se a este paradoxo nos seguintes termos: ‘Como se pode entender e harmonizar
a curiosa combinação entre um respeito notório pelos formalismos legais e os rituais – o que
demonstra uma verdadeira reverência pelo Direito – e um mínimo respeito pelas leis escritas? Boa
parte da explicação a esta ampla disparidade entre o direito nos livros e a prática real, encontra-
se num complexo de fatores históricos e culturais que condicionaram as atitudes que imperam na
América Latina frente ao direito’” (ROSENN, Keith. “Latin American Law”, conferências
mimeografadas, University of Miami, 1992). Merryman também alude às causas ancestrais da
escassa criatividade judicial presente nos países de tradição romano-germânica: “Esta tradição,
onde o juiz nunca foi concebido como um funcionário que deva exercer uma função criativa,
fortaleceu-se mediante a ideologia antijudicial da revolução européia, somada às conseqüências
lógicas da doutrina racionalista da estrita separação dos poderes públicos. Portanto, o juiz
romano-germânico exerce um papel substancialmente mais modesto do que o juiz da tradição
anglo-saxã. Além disso, tanto o sistema de eleição dos juízes como a carreira judicial são
eloqüentes a respeito do status inferior que nos países romano-germânicos ostenta a profissão
judicial” (MERRYMAN, John Henry. The Civil Law Tradition: An Introduction to the Legal Systems
of Western Europe and Latin America. Califórnia: Stanford University Press, 1969, p. 37).

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Capítulo II
CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA
JURÍDICO NORTE-AMERICANO
RELEVANTES PARA O
DIREITO SOCIETÁRIO

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1. RELATIVA AUSÊNCIA DE DICOTOMIA ENTRE DIREITO


PÚBLICO E PRIVADO
Uma das mais importantes diferenças entre as duas tradições jurídicas, e
que é estudada pelos juristas, é a ausência nos países de Common Law de vários
ramos do Direito relacionados com as sociedades164. Um outro ponto que me-
rece destaque é o fato da distinção entre Direito Público e Privado possuir
pouca importância para o advogado norte-americano165. Na verdade, ainda que
esta diferença esteja implícita no sistema, não possui conseqüências práticas de
maior importância. Segundo Glendon, “na tradição anglo-saxônica, são raras as
vezes em que se menciona a divisão entre Direito Público e o Privado. Na rea-
lidade, é mais marcante a distinção feita entre Direito Substantivo, e por oposi-
ção, o Direito Processual”166.
Desta forma, a dicotomia nos países de tradição romano-germânica refle-
te-se não apenas em uma diferenciação das normas substantivas, mas também
de procedimento167. Realmente, a idéia revolucionária de evitar a todo custo a
concentração dos poderes estatais conduziram o sistema francês à criação de
uma jurisdição separada para a resolução de conflitos entre aqueles que faziam
parte do Estado. Como é de conhecimento público, na época de Napoleão tal

164 O professor EMILIO LANGLE afirma que “o povo inglês foi sempre inimigo do sistema de
codificação e também o é da dissociação do Direito privado”. (Manual de Direito Mercantil
Espanhol. T. I. Barcelona: Edit. Bosch, 1950, p. 184).
165 ROSENN, Keith. Law and Inflation, Contractual Adaptations to Inflation, p. 447. Nos Estados
Unidos a diferença significativa se encontra entre as cortes federais e as estatais. Sabe-se que
“os tribunais federais têm uma competência restringida: ‘ratione materiae’, conhecem das
questões regidas pela Constituição e pelas leis federais; e ‘ratione personae’, dos litígios entre
cidadãos de diferentes Estados, seja qual for a lei que governe o pleito”. (Ibidem p. 20). Outra
distinção, ainda que de menor importância, existe entre a jurisdição penal e a ordinária. Esta
última se refere a todo tipo de assuntos diferentes dos penais. É curioso observar, contudo, que
a Corte Suprema de Justiça norte-americana tem jurisdição para decidir quaisquer casos que se
apresentem a sua consideração, sem distinção substantiva nem de procedimento. Naturalmen-
te, o máximo órgão jurisdicional tem arbitrariedade para determinar que casos atende, com
fundamento no denominado writ of certiorari.
166 GLENDON et al. Comparative Legal Traditions..., cit., p. 752.
167 “A forma geralmente aceitada de dividir e classificar o Direito no mundo civilista é muito
diferente daquela à que estão acostumados os advogados formados no ‘Common Law’. A
divisão fundamental nos modernos sistemas de Direito Civil é aquela que distingue entre
Direito Público e Direito Privado. Para um advogado civilista, esta distinção é básica, neces-
sária e óbvia. Apesar do reconhecimento universal desta distinção nos países de tradição
civilista, não existe acordo entre os advogados de tais países a respeito de seu fundamento
teórico (ao menos nenhuma fundamentação diferente da histórica, isto é, por exemplo, que
está baseada no Corpus Iuris Civilis). Também não existe uniformidade entre estes países a
respeito do âmbito de aplicação do Direito Público e o Privado”. (APPLE et. al., op. cit. p. 23).

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autoridade jurisdicional foi conferida ao Conselho de Estado, que no Ancien


Régime começou como um corpo consultivo ligado ao monarca168.
Segundo as palavras de Schlesinger, “a grande importância da dicotomia
está em seu aspecto jurisdicional. Com base na influência da teoria da separa-
ção dos poderes de Montesquieu, e, mais especificamente como reação às re-
formas monárquicas nos parlamentos franceses, na maioria dos países
continentais estabeleceu-se o princípio de que – com exceção dos casos que
pertenciam à esfera penal – a jurisdição dos tribunais ordinários estaria limi-
tada às controvérsias ditadas pelo Direito Privado”169.
É curioso observarmos que o Direito Público, como ramo plenamente
diferenciado da Ciência Jurídica, ainda é uma categoria relativamente recente
nos países que pertencem à tradição do Civil Law. O auge do Direito Admi-
nistrativo francês corresponde à centralização do Estado e a notória atividade
e diversidade de seus órgãos, ocorrida no século XIX170. Além do mais, de
acordo com a visão norte-americana, a dicotomia entre o Direito Público e o
Privado reflete-se unicamente no Direito Administrativo, o Direito Consti-
tucional, relativo à forma e estrutura do Estado, assim como seus órgãos, é
considerado como pertencente à Ciência Política171.
A ausência de dicotomia entre as duas grandes vertentes do Direito tem
servido de argumento para desestimular o desenvolvimento do Common Law,
que se considera de modo geral, menos evoluído deste ponto de vista teórico. No
entanto, a maior interação entre esta tradição jurídica e as culturas romano-ger-

168 GLENDON, op. cit., p. 61.


169 SCHLESINGER et al., op. cit., pp. 300-301.
170 “Apesar disso, a dicotomia entre o Direito Público e o Privado foi reconhecida por ULPIANO
(ano 223 d.C.) e se refletia já no Digesto de JUSTINIANO (Dig. 1,1,1,2) [...]. Os advogados
civilistas se concentraram no Direito Privado e descuidaram o Público. Este último teve vida
própria no século XVI; os tratados e textos sobre o particular apareceram no século XVII e as
cátedras da matéria apareceram em Europa continental em época mais recente. O Direito
Constitucional e o Administrativo se consolidaram como matérias de estudo acadêmico no
século XIX” (SCHLESINGER, et al., op. cit., p. 300). É evidente que ainda nos países de tradição
civilista esta artificiosa distinção tende a reduzir-se, na medida em que se borram as diferenças
entre ambos os ramos do direito. Segundo APPLE, “durante o século XX, um grande número de
fatores deram lugar a uma redefinição da estrita divisão entre o Direito Público e o Privado.
Dentro destes fatores cabe mencionar a influência crescente do ‘Common Law’, o aumento da
intervenção governamental em áreas do Direito tradicionalmente consideradas como privadas,
a tendência geral à adoção de constituições escritas, a aceitação de controles de cons-
titucionalidade sobre as leis, a influência de sindicatos e outras organizações e o surgimento
de novos âmbitos do Direito que não é possível classificar como de Direito Público ou
Privado”. (APPLE et al., op. cit., p. 24).
171 GLENDON, et al., op. cit., p. 104.

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mânicas do continente europeu tem revelado ao advogado formado na tradição


do Civil Law, que o Common Law norte-americano não é qualitativamente me-
nos lógico, eficiente ou justo do que o Direito da tradição continental européia.
Também parece razoável pensar que outras comunidades capitalistas e
democráticas do hemisfério ocidental conseguiram alcançar um estado avan-
çado de desenvolvimento de seu sistema jurídico sem necessidade de fazer a
distinção técnica entre o Direito Público e o Privado172. Pois bem, do ponto
de vista das sociedades comerciais, a falta da referida dicotomia tem implica-
ções significativas. O sistema jurídico desenvolvido para as associações de ne-
gócios está unificado em torno de princípios homogêneos, de maneira que
não existe diferença adicional como decorrência da espécie ou tipo societário
constituído. Com isso queremos dizer que uma companhia pode constituir-
se com aportes de capital privado ou estatal, sem que tal circunstância impli-
que na aplicação de uma ou outra legislação. Além do mais, no caso de conflito
em razão do contrato societário, a ação judicial correspondente pertencerá à
esfera de competência da jurisdição ordinária173.
Por último, fica muito claro que no mundo anglo-americano as expres-
sões sociedade ou companhia pública (public corporation ou public company) não
possuem nenhuma relação com a referida dicotomia, nem com a identidade
estatal ou privada daqueles que aportaram o capital. Refere-se simplesmente,
a circunstância de encontrar suas ações inscritas em um registro púbico.

2. CARÊNCIA DE DIVISÃO DO DIREITO PRIVADO


Como se sabe, a falta de uma dualidade entre o Direito Civil e o Mer-
cantil no sistema anglo-americano obedece a uma evolução histórica, cujas
características foram diferentes quando comparamos a Europa insular com a

172 MERRYMAN, et al., op. cit., p. 804.


173 Outra importante distinção é dada pela necessidade de contar com um júri de consciência em
certos processos civis. Também é relevante a diferença existente entre a jurisdição geral (priva-
da e pública ao mesmo tempo) e a penal. Não obstante, é interessante observar que os nove
juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos, considerada como o órgão judicial mais pode-
roso do mundo, têm competência para resolver toda classe de assuntos que se apresentem a
sua consideração, incluídos os de caráter penal. (Cfr. WILLIAMS, Jerre S. Constitutional Analysis.
Minn.: West Publishing Company, 1979, p. 1). “Poderia fazer-se um paralelo, por um lado,
entre a criação da Corte Suprema em 1787 e a importância que ela deu a si mesma em
decorrência de dois séculos e, de outro, a criação da Corte de Justiça das comunidades
européias e, o papel fundamental que esta última. atribuiu-se no curso de algumas décadas”
(LEVASSEUR, Alain. Lhe Droit..., cit., pp. 49-50).

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continental174. Com efeito, mesmo a denominada lex mercatoria, criada por


ocasião do surgimento das corporações de mercadores na Idade Média, deu
origem a um corpo normativo diferenciado do Direito Comum daquela épo-
ca (Romano, Germânico e Canônico), a dualidade entre Direito Substantivo
e Jurisdicional apenas se manteve no continente175. Desta forma, enquanto a
Inglaterra foi absorvida pela corrente jurídica do Common Law nos séculos
XVII e XVIII176, a França optou por uma solução diferente. Apesar da deter-
minação pós-revolucionária de abolir as corporações de mercadores, mediante
o edito de Turgot de 1776, os redatores do Código de Comércio Napoleônico
de 1807 optaram por manter a dualidade normativa e a jurisdição do comér-
cio separada177.

174 “O desenvolvimento da ‘lex mercatoria’ no continente europeu foi devido aos desenvolvimen-
tos comerciais acontecidos na península italiana e em outras partes de Europa. Dentro destes
deve-se incluir, ao menos, os seguintes fatores: 1. A criação e expansão de relações comerciais
entre as cidades-Estado italianas e outros centros urbanos fora de Itália; 2. O crescimento de
atividades marítimas de natureza mercantil e a necessidade de uma infra-estrutura de normas
jurídicas para regular tais atividades de comércio; 3. O incremento das feiras e mercados ao
longo do continente europeu, somado à crescente importância de regular os negócios jurídi-
cos celebrados neles; 4. O aumento no número de associações de mercadores em centros de
comércio, cuja criação servia aos propósitos de proteger as mercadorias em trânsito, criar
mecanismos de garantia para as operações financeiras e estabelecer sistemas céleres de resolu-
ção de conflitos”. (APPLE et al., op. cit., p. 10).
175 Muito antes do surgimento das nacionalidades européias, os italianos assimilaram parte das
práticas legais e os usos mercantis próprios dos mercadores árabes, com quem estabeleceram
intensas relações de troca nas costas orientais do Mediterrâneo. Tais práticas se estenderam da
Itália às demais nações da Europa Continental e, mais adiante, passaram dos Países Baixos a
Inglaterra. No que hoje se conhece como o Reino Unido, também existiu um Direito Mercantil
diferenciado do Direito Comum, ainda que no território insular a linha divisória não tenha
sido tão marcada como ocorreu no continente europeu e, em especial, nos países de tradição
latina (Cfr. ROGERS, op. cit., p. 18). Na opinião de APPLE, “O estabelecimento de tribunais
comerciais com jurisdição especial para resolver litígios de natureza mercantil – tanto nas
cidades mediante as corporações de mercadores, como nas feiras e mercados – abriu o cami-
nho à prática estendida em alguns países de Europa continental de separar o Direito Comercial
e seu procedimento especial em relação com outros âmbitos do Direito. Criaram-se códigos
diferenciados para agrupar tanto as normas substantivas de Direito Comercial como as dispo-
sições de procedimento. De maneira análoga, estabeleceram-se tribunais de comércio para
administrar os litígios relacionados com esse ramo do Direito”. (Op. cit., p. 11).
176 SCHLESINGER et al., op. cit., p. 303. Usualmente se atribui a Lorde Mansfield a unificação
definitiva das duas vertentes do Direito inglês. “As cortes da coroa inglesa tiveram na pessoa de
Lorde Mansfield a um juiz dotado de entusiasmo por sua profissão e com o espírito filosófico
suficiente para realizar a grande tarefa de absorver dentro do ‘Common Law’ aquelas regras da
‘lex mercatoria’ que não fossem discordantes com os princípios fundamentais do Direito
inglês”. (EDER. A Comparative Survey..., cit., p. 10).
177 “Com o surgimento do Código Comercial Francês, “Code de Commerce”, iniciou-se a fase que
marcou a passagem da caracterização do direito comercial da pessoa do comerciante (fase
subjetiva) para os atos jurídicos por qualquer pessoa praticados (fase objetiva); o legislador
identificou atos jurídicos e os relacionou como sendo atos de mercancia. Foi o início da
objetivação do Direito Comercial.” (LIPPERT, Márcia Mallmann. A Empresa no Código Civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 49, citada em GOULART, Direito Societário, op. cit.,

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 83

A dicotomia do Direito Privado não é imperativa nem mesmo nas tradi-


ções jurídicas romano-germânicas. O Código das obrigações da Suíça apre-
senta um regime normativo unificado, ocorrendo o mesmo com os Códigos
Civis, italiano de 1942 e Peruano de 1985. Um outro exemplo desta unifica-
ção é o moderno estatuto da província de Quebec, em vigor desde primeiro de
janeiro de 1994.
O tema relativo à unificação do Direito Privado constitui, sem dúvida,
um dos mais debatidos do Direito nas tradições romano-germânica. Contu-
do, não se trata de um assunto novo na doutrina mercantil universal sobre a
matéria. Transcorridos mais de um século desde que César Vivante formulou
pela primeira vez a necessidade de unificar as disciplinas civis e mercantis,
com o propósito de evitar a ancestral dicotomia entre os dois ramos do Direito
Privado. A unidade essencial da vida econômica conflita com esta separação
artificial, como enfatizava Vivante em uma de suas dissertações.
Aqueles que defendem a manutenção da dualidade de ordenamentos
baseiam-se especialmente nas principais conseqüências de seu aspecto juris-
dicional178. Por isso tem-se enfatizado o fato da própria gênese do Direito
Mercantil coincidir, no tempo, com o surgimento da denominada jurisdição
consular. Afirma-se, pois, que se tratava então de estabelecer instâncias de
resolução de conflitos mais ajustadas às realidades do tráfico mercantil. Sendo
assim, era mais adequado separar os tribunais e criar uma justiça especializada
em assuntos relacionados ao comércio. Justiça, que aliás mostrou ser mais efi-
caz e célere que a administrada pelos tribunais comuns.
Não obstante, se o argumento central fundamenta-se em uma aparente
incapacidade da jurisdição comum para solucionar com presteza assuntos liga-
dos ao comércio, o bom senso aconselharia melhorar tais jurisdições ao invés de

p. 25). Para o caso brasileiro é interessante observar que o código de 1850 “adotou o
posicionamento do Código francês relegando, entretanto, ao Regulamento nº 737 do mesmo
ano a tarefa de enumerar, em seu art. 19, aqueles atos apartados da disciplina do Direito Civil.”
(GOULART, op. cit., p. 25).
178 Nos países em que não existe uma jurisdição separada de comércio, a dicotomia se faz ainda
mais inútil. Na França se defende a manutenção da dicotomia jurisdicional, devido à maior
celeridade dos tribunais de comércio. No critério de COUTANT, os tribunais de comércio “são
o fruto de uma longa e lenta evolução derivada das necessidades particulares do comércio, como
são a celeridade, a importância da palavra empenhada e o escasso formalismo do Direito
Comercial. Estas características especiais deram origem ao surgimento de uma justiça comercial”.
(COUTANT, Michel-Frederic. Les tribunaux de commerce. Paris: Presses Universitaires de France,
1998, p. 5).

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criar ou manter desnecessárias duplicidades. Não devemos esquecer que a dico-


tomia jurisdicional acarreta igualmente na adoção de normas especiais de pro-
cedimento, cuja vigência pode representar mais dificuldades que vantagens.
Em relação ao aspecto substancial, também parece indispensável que o
denominado critério objetivo ou do ato de comércio seja suprido. Não é sen-
sato exigir a realização de complexas comparações entre diversos atos jurídi-
cos, ou indagar os motivos ou intenções subjetivas de quem participa do
comércio, para elucidar se é pertinente a aplicação das disposições de uma ou
outra legislação. Não existe, na verdade, razão alguma para que esta dificulda-
de persista. Isso é incompatível com a subsistência de instituições especiais
consideradas tradicionalmente como sendo tipicamente mercantis, como os
títulos de crédito, as atividades nas Bolsas de Valores mobiliários, assim como
as atividades financeira e empresarial.
Nos Estados Unidos é desconhecida, de modo geral, a dicotomia do Direi-
to Privado, de maneira que não há diferença entre o Direito Civil e o Mercantil.
Portanto, a grande maioria dos negócios jurídicos de conteúdo econômi-
co é regulada uniformemente por apenas um ramo do Direito, sem distinção
substantiva nem jurisdicional alguma179. Isso representa indubitáveis vanta-
gens práticas no campo das sociedades, na medida em que não é necessário
indagar acerca da natureza da companhia para saber qual será a lei aplicável180.

179 Curiosamente, o conceito de comerciante (merchant) foi desenvolvido pela legislação norte-
americana para alguns efeitos do contrato de compra. Efetivamente, a Seção 2-104 do Uniform
Commercial Code (UCC) estabelece três critérios diferentes para determinar se um indivíduo
é comerciante.
180 Devido ao fato que este ponto deu lugar a várias dificuldades nos países de Direito Civil, a lei
francesa de sociedades comerciais, 66-537 do 24 de julho de 1966, previu que todas as
formas societárias reguladas em dito estatuto se considerassem sociedades comerciais, inde-
pendentemente do conteúdo de seu objeto social. Assim, na França existe a sociedade civil
como um tipo autônomo de companhia, cuja regulação se encontra por fora da mencionada
lei. Efetivamente, de acordo com o disposto no inciso 2º do artigo 1º de dita lei, “são
comerciais em razão de sua forma, qualquer que seja seu objeto, a sociedade em nome
coletivo, as sociedades em comandita simples, as sociedades de responsabilidade limitada e as
sociedades por ações”. Esta disposição foi reproduzida pelo Novo Código de Comércio
francês em cujo artigo L. 210-01 se mantém incólume o texto citado da lei societária de 1966.
(Cfr. Code dês Sociétés et dês Marchés Financieres, 20e edition, Paris: Dalloz, 2003, p. 134).
Por sua vez, no inciso segundo do artigo 1845 do Código Civil se considera que têm caráter
civil “todas as sociedades a respeito das quais não se atribua um caráter diferente na lei, em
razão de sua forma, de sua natureza ou de seu objeto” (Ibidem, p. 76). Da mesma forma, na
Espanha, o Real Decreto 1564 de 1989 acolheu o mesmo princípio a respeito das sociedades
anônimas. De maneira que, nos termos do artigo 3º de dito estatuto, “a sociedade anônima,
qualquer que seja seu objeto, terá caráter mercantil, e quanto não se reja por disposição que
lhe seja especificamente aplicável, ficará submetida aos preceitos desta lei”.

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É importante insistir no fato de que a expressão Commercial Law, existente


no Direito norte-americano não se relaciona de forma alguma com a referida
dicotomia. A denominação faz referência apenas aos contratos de compra e venda
em todas suas modalidades, inclusive às relacionadas aos títulos de crédito e mo-
dalidades afins181. Por fim, a denominação Civil Law possui duas acepções dife-
rentes no mundo anglo-saxão. Na primeira, faz alusão à parte substantiva e de
procedimento do Direito interno não regulada pela lei penal, a segunda refere-se
a todos os sistemas estrangeiros que pertencem a tradição romano-germânica182.

3. LIBERDADE CONTRATUAL E AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA


A maioria dos sistemas jurídicos modernos favorece amplamente o princí-
pio da liberdade contratual. Porém, o grau de autonomia de que dispõem os
particulares pode variar consideravelmente de um sistema para outro. Existe
consenso de que, em matéria de sociedades comerciais, a lei dos Estados Unidos
oferece ao investidor amplíssima liberdade para estipular quaisquer cláusulas
que considerem adequadas aos seus interesses pessoais.
Certamente, existe uma estreita relação entre as características assinaladas e
os termos quase vagos pelo quais são definidas as distintas formas de associação

No caso brasileiro, antes da expedição do código civil de 2002, “o critério para a distinção
entre sociedades civis e comerciais é do objeto. Dedicando-se a sociedade àquelas atividades
consideradas como compreendidas entre as atividades ditas comerciais quer no sentido estrito
(intermediação ou comércio propriamente dito) ou no sentido amplo (aquelas que facilitam,
complementam ou se agregam às primeiras, como o crédito, o transporte, a indústria etc.),
considera-se comercial. Pelo contrário, se se dedicar a atividades eminentemente civis, como
agricultura, profissões liberais ou imóveis, será considerada civil. Exceção a essa regra geral
encontra-se na legislação brasileira, para as sociedades anônimas, em que se adotou o critério
da forma, sobrepondo-o ao so objeto. Destarte, qualquer que seja o objeto da sociedade, se
ela adotar a forma anônima será considerada comercial.” (BULGARELLI, Waldirio. Sociedades
Comerciais, 7ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998, p. 22). Esta dicotomia entre sociedades civis
e comerciais está ainda pressente em muitos países latinoamericanos.
181 O Uniform Commercial Code regula essencialmente o contrato de compra. Dita codificação
não é um estatuto federal. Constitui simplesmente um modelo preparado por particulares
filiados ao Instituto de Direito Americano, cujo texto pode ser adotado pelos Estados, se seus
respectivos órgãos legislativos decidem adotá-lo.
182 Não obstante a inexistência da referida dicotomia, certos Estados optaram por classificar e
especializar as matérias tratadas por seus respectivas Cortes. Um claro exemplo da assinalada
tendência a diluir a unidade jurídica existente nos Estados Unidos são as decisões das cortes
estatais do Estado de Delaware, as quais foram desenhadas para tratar primordialmente de
temas societários. Assim, o grau de especialização das mencionadas cortes é de tal magnitude
que se constituem num dos maiores atrativos do referido Estado em assuntos jurídicos societários.
No entanto, cabe precisar que o antecedente decidido por Delaware não reflete, no absoluto,
a tendência da maioria dos Estados da União, onde se desconhece por completo a menciona-
da dicotomia do Direito Privado.

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existentes nos Estados Unidos183. Existem ocasiões em que é difícil estabelecer


as fronteiras entre os distintos subtipos que podem ser utilizados dentro de
uma mesma espécie societária184. Podemos, por tanto, entender a sociedade norte-
americana como um esquema amplo por meio do qual é possível alcançar as
mais diversas finalidades185. De maneira que ela poderia canalizar recursos de
entidades públicas e privadas para realizar atividades com objetivo de lucro ou
de caráter beneficente, para captar um número significativo de investidores na
Bolsa de Valores mobiliários ou para realizar um pequeno negócio familiar.
Todas estas alternativas são viáveis dentro do mesmo esquema legal.

4. REGIME FALIMENTAR UNIFICADO

Nos Estados Unidos não existe, como nos sistemas romano-germânicos,


uma distinção em relação ao regime falimentar aplicável a uma sociedade em
razão do desenvolvimento de sua atividade ser no âmbito do direito civil ou
comercial. De modo que todos os casos de inadimplemento são tratados uni-
formemente segundo a figura da falência (bankruptcy).

183 ANDRÉ TUNC se pronunciou nos seguintes termos a respeito desta importante característica
do Direito Societário estadunidense: “Um jurista francês que estude a Lei Geral de Sociedades
de Delaware ou inclusive a Lei Tipo de Sociedades de Capital, consideraria que tais textos
carecem de disposições suficientes a respeito dos assuntos fundamentais do Direito Societários
ou, ao menos, estimaria que eles são excessivamente permissivos” (A French Lawyer Looks at
American Corporation Law and Securities Regulation. In: University of Pennsylvania Law
Review, nº 757, Vol. 130, 1982, p. 764). O autor também acrescenta que se um advogado
norte-americano estudasse a regulação societária vigente em França, “chegaria sem duvida à
conclusão de que as leis francesas foram redigidas por indivíduos obtusos e suspicazes, cuja
tarefa não é outra que a de compilar normas de pouca significação prática” (Ibidem).
184 “Nunca teve no Direito romano-germânico a confusão que se deu no ‘Common Law’ entre
sociedades com ânimo de lucro (‘business corporations’) e outras formas associativas, tais
como as fundações, as associações sem ânimo de lucro e as entidades públicas. A sociedade
comercial foi uma criação exclusiva da ‘lex mercatoria’. Quaisquer que sejam suas origens
remotas no Direito Romano, o Direito Societário foi escassamente permeado pelas teorias
medievais concernentes a outras formas societárias. Os códigos se ocupam na regulação das
pessoas jurídicas sob o título geral das pessoas, enquanto a ‘societas’ pertence ao âmbito dos
contratos”. (EDER. Company Law..., cit., p. 16).
185 Esta ampla liberdade de estipulação contratual em matéria societária não é exclusiva dos
sistemas pertencentes à órbita do Common Law. Certamente, faz mais de uma década que o
ordenamento jurídico francês permite aos particulares a adoção do tipo societário conhecido
como sociedade por ações simplificada (société par actions simplifiée). As principais normas
que regulam esta matéria (Leis 94-1 do 3 janeiro 1994 e 99-587 do 12 julho de 1999) –
compiladas no artigo 227 do Código de Comércio francês de 2003– autorizam aos sócios a
pactuar quaisquer regras que estimem convenientes para regular tanto suas relações, como o
funcionamento da companhia. Conforme à acertada opinião de CONSTANTIN, “trata-se de
um tipo social cujos cara teres foram relegados quase por completo à liberdade de estipulação
contratual e à imaginação dos sócios” (CONSTANTIN, Alexis. Droit commun et droit spécial
dês sociétés, 2e édition. Paris: Éditions Dalloz, 2005, p. 229).

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Esta apresenta duas modalidades que dependem das maiores ou meno-


res possibilidades de recuperação da empresa. Os casos críticos são tratados
conforme o Capítulo 7 do Código Nacional de Falência (Federal Bankruptcy
Code), que regula aquilo que se relaciona com a liquidação da sociedade.
“Ao ser apresentada a correspondente solicitação, o juiz determina se o
devedor possui os pressupostos para ser declarado em falência, para só
depois ser declarado em falência. Nas ocasiões em que faltarem justifi-
cativas suficientes, será negada a admissão do devedor no processo
falimentar. Porém, isso não ocorre com freqüência [...] Posteriormente, o
juiz designa um síndico para a massa falida (‘trustee’) encarregado de
liquidar os créditos não extintos do devedor, se eles existirem, e saudar
os débitos junto aos credores. O processo de liberação do devedor ocor-
re simultaneamente. É concedida uma audiência em que os credores
terão oportunidade de oporem-se em relação à liberação do devedor,
ainda que na prática muito raramente o façam, e geralmente tal bene-
fício é concedido. Considerando que tal benefício tenha sido concedido
e tenha concluído o processo administrativo dos bens do falido, o juiz
concede a liberação do síndico e o processo termina”.186
Por sua vez, o Capítulo 11 do mesmo estatuto se refere à possibilidade de
reorganizar e recuperar a empresa (reorganization in bankruptcy), conforme a
um plano submetido à consideração do juiz, aprovado pelos credores e confir-
mado por aquele, antes de que seja posto em prática pelos interessados. “A
reorganização a que se refere o Capítulo 11 algumas vezes constitui o meio pelo
qual uma empresa em dificuldades pode continuar operando enquanto se revi-
taliza, paga-lhes aos credores de maneira simultânea e mantém aos trabalhado-
res vinculados à empresa. Em épocas recentes, também se utilizou como um
veículo para salvar grandes companhias que foram demandadas em multidão de
ações de responsabilidade civil extracontratual ao longo do país. Desta maneira,
também se lhes permite às vítimas beneficiar-se de um método centralizado
num só foro, para obter a correspondente indenização. Em síntese, pode ser
uma alternativa favorável frente à liquidação prevista no Capítulo 7”187.
Na verdade, as duas figuras mencionadas são muito parecidas às da que-
bra e da concordata preventiva existentes em vários países de tradição roma-

186 BOSHKOFF, Douglass. Bankruptcy and Creditor’s Rights, Fifth Edition, Herbert Legal Séries,
Santa Monica, CA, Sum & Substance, 1989, p. 72.
187 WAXMAN, Ned W. Bankruptcy, first edition. Illinois: Gilbert Law Summaries, 1990, p. 179.

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88 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

no-germânica, mas a diferença destas, como ficou dito, são aplicáveis a qual-
quer pessoa natural ou jurídica que se encontre em impossibilidade de de-
frontar com suas obrigações patrimoniais188.

5. REGULAÇÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS


Naturalmente, por não existir uma dicotomia no Direito Privado, não há
diferença em razão do objeto social, no referente às obrigações que devem
cumprir as sociedades. Estas, em geral, sujeitam-se a um regime unificado,
que se manifesta, como se verá mais adiante, em leis estaduais permissivas
(enabling statutes). Contudo, as companhias que se dedicam a atividades fi-
nanceiras ou seguradoras constituem uma notória exceção a este princípio,
pois elas estão, como na maioria de regimes jurídicos, submetidas a normas de
caráter excepcional189.
Diversamente ocorre com aquelas sociedades de capitais que negociam
suas ações nos mercados públicos de valores mobiliários. Estas, por esse único
fato, ficam submetidas a importantes regulações federais e estaduais190. As
primeiras derivam, fundamentalmente, do disposto na Lei do Mercado de
Valores mobiliários de 1933 (Securities Act), mediante a qual se organizou a
Comissão de Valores mobiliários (Securities and Exchange Commission, SEC) e
foram assinaladas as regras e obrigações a que se devem submeter estas socie-
dades, com o propósito de proteger o público de fraude ou engano nas ofertas
de ações191. As segundas, são conhecidas genericamente pela expressão leis de
céu azul (blue sky laws), cujo alcance varia de um Estado a outro192. Tanto

188 Cfr. Capítulo X, infra, onde se encontra uma análise completa dos processos a que se referem
os Capítulos 7 e 11 do Código Federal de Falências.
189 HAMILTON, Robert W. The Law of Corporations. Saint Paul, Minn.: West Publishing Company,
1987, p. 36.
190 Na Comunidade Européia existem sendas diretivas a respeito dos requisitos exigidos para
registrar ações no mercado público e daquelas informações que as companhias inscritas devem
publicar (Cfr. Oliver et al., op. cit., p. 71).
191 Securities and Exchange Commission, The Work of the SEC, 1988, p. 7. Outras disposições
federais de importância são as seguintes: 1. Securities and Exchange “Act, de 1934”, 2. “Public
Utility Holding Company Act de 1935”; 3. Trust Indenture “Act, de 1939”; 4. Investment
Company “Act, de 1940”; 5. Investment Advisors “Act, de 1940”; 6. Securities Investor
Protection “Act, de 1970”; 7. Market Reform “Act, de 1990”, e 7. Penny Stock Reform “Act, de
1990”. Sobre o particular cfr. Compilation of Securities Laws, Washington D.C., Superintendence
of Documents of the U.S. Government, 1991.
192 Estas normas estão usualmente relacionadas com a obrigação de fornecer ao público informa-
ção. Muitas delas exigem uma divulgação total e justa da informação concernente às coloca-
ções públicas de ações (full and fair disclosure).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 89

umas como outras regulações determinam requisitos relacionados com a in-


formação que deve fornecer aos terceiros no momento de formular ofertas
públicas de ações, as restrições que se impõem para levar a cabo aquisições
hostis de controle (hostile takeovers), a impossibilidade de diretores e empre-
gados de valer-se de informação privilegiada, as faculdades de sanção das co-
missões estaduais e federal, etc.
De acordo com a mencionada Lei do Mercado de Valores mobiliários de
1933, para realizar ofertas públicas de ações é necessário efetuar o registro prévio
ante a Comissão de Valores mobiliários (SEC), para a qual deverá apresentar o
correspondente prospecto que será submetido à consideração dos investidores193.
Essa norma exige da sociedade emissora e de seus administradores o maior grau
possível de diligência, de maneira que a menor violação dos requisitos legais gera
responsabilidade por parte daqueles, ainda que não tenha existido propósito de
fraudar terceiros. Por sua vez, a Lei de Negociação de Valores mobiliários de
1934 (Securities Exchange Act) regula mais detalhadamente as obrigações que
devem ser cumpridas uma vez que as ações foram registradas194. Dentro delas,
são relevantes as obrigações de publicidade que a norma regula de forma muito
severa. Efetivamente, qualquer omissão ou falsificação de um fato relevante no
processo de negociação de títulos no mercado de valores mobiliários, constitui
uma grave infração do estatuto citado195. As normas mencionadas foram
promulgadas para atenuar as causas do devastador colapso financeiro que se
iniciou com a queda da Bolsa de Valores mobiliários de Nova York em 1929. As
leis federais do mercado de valores mobiliários se deferência das normas estatais
de Direito Societário em três aspectos significativos:

193 Os requisitos exigidos pela SEC, são complexos e exigentes. Isso se deve, em parte, à faculdade
de regulação que tem a Comissão. As regulações americanas sobre o mercado de valores têm
tido influência universal. Assim, “o direito brasileiro adotou o modelo norte-americano de
controle estatal do mercado de capitais, de acordo com o qual toda a atividade de distribuição
ao público e posterior negociação de valores mobiliários é submetida à fiscalização de um
órgão estatal dotado de autonomia, ao qual é conferido poder regulamentar e disciplinar”.
“A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), inspirada na ‘Securities and Exchange Commission’
(SEC) norte-americana, faz, entre nós, este papel, como autarquia federal e assumindo a
qualidade de agência regulatória...” (BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Sociedade Anônima
Atual, op. cit., p. 21)
194 São relevantes as disposições que regulam o relativo a outorga de poderes em sociedades por
ações abertas ao público (proxy solicitations and proxy campaigns). Particularmente
transcendentais são as disposições contidas na denominada Lei Williams (Williams Act) de
1968. Cfr. Capítulo IX, infra, para uma análise mais detalhada da regulação do mercado de
valores mobiliários estadunidense.
195 Cfr. PALMITER, Alan R. Securities Regulation, Examples and Explanations. Second Edition. New
York: Aspen Law and Business, 2002, p. 267.

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90 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

1. A emissão de valores mobiliários no mercado público está sujeita


a supervisão governamental e a requisitos federais de forneci-
mento de informação;
2. A solicitação de poderes para a votação de assembléias de socie-
dades inscritas em bolsa está submetida a requisitos federais de
fornecimento de informação; e
3. O fornecimento de informação aos acionistas de sociedades ins-
critas em bolsa (e ao mercado de valores mobiliários) está regula-
do mediante um sistema de revelação periódica de informação e
por meio de regras de prevenção da fraude, em conformidade
com a Regra 10b-5.
A Comissão de Valores mobiliários constitui o principal palco para a
resolução de conflitos com respeito àqueles assuntos regulados pelas leis federais
do mercado de valores mobiliários. Reitera-se que dentro destes assuntos merecem
especial atenção os relativos à emissão de ações, às votações por procurações e à
divulgação de informação aos investidores. A Lei do Mercado de Valores
mobiliários de 1933 estabelece um sofisticado sistema de responsabilidades para
aqueles casos em que se apresente informação incorreta dentro dos documentos
que devem ser fornecidos ao público, quando se efetua uma oferta pública de
valores mobiliários. Também são de grande importância dentro desta regulação
as exceções estabelecidas a estas exigências, como, por exemplo, as relativas às
ofertas que não transcendem as fronteiras de um só Estado, as ofertas que não
têm o caráter de públicas e as operações de negociação (a diferença do que
ocorre com as de emissão) de valores mobiliários. As cortes federais se ocuparam,
de maneira especial, em fazer valer estas exceções. As proteções contidas nas
regulações da Comissão de Valores mobiliários, bem como as normas de
interpretação deste órgão, desenvolveram-se depois de identificar claramente
estas exceções.
A Lei de Negociação de Valores mobiliários de 1934 faculta a Comissão
regular os assuntos relacionados com as solicitações de procurações em socie-
dades abertas196. A Comissão se limitou nesta matéria a definir os requisitos
de fornecimento de informação e as formalidades que deve cumprir tal solici-

196 No Brasil, a Lei 6.385 de 1976 que cria a CVM, faculta a Comissão para “fiscalizar e inspecionar
as companhias abertas dada prioridade às que não apresentem lucro em balanço ou às que
deixem de pagar o dividendo mínimo obrigatório” (Art. 8º, V, do Lei 6.385 de 1976).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 91

tação. A definição de quais assuntos constituem fraude neste procedimento


tem sido deferida à jurisdição ordinária. Por via de interpretação jurispruden-
cial, os tribunais estabeleceram os elementos requeridos para iniciar ações ju-
diciais por fraude. Dentro destes elementos podem ser mencionados, entre
outros, a intenção positiva de causar o dano, o prejuízo e a circunstância de
que a fraude tenha sido determinante na conduta adotada pelo danificado.
Segundo as regras de interpretação sentadas a vontade pela jurisprudência, o
demandante deve demonstrar, simplesmente, que a votação que originou o
prejuízo se realizou com fundamento na informação inexata ou falsa contida
nos documentos que se anexaram à carta de solicitação de procurações.
Na mencionada Lei de Negociação de Valores mobiliários, o legislador
regulou timidamente um assunto acessório que com o tempo adquiriu uma
grande importância. Na Seção 10b da lei, o Congresso delegou à Comissão a
tarefa de proibir mecanismos ou esquemas de má-fé considerados por esse órgão
como manipuladores ou enganosos. Uma década mais tarde, a Comissão proi-
biu a utilização de meios fraudulentos relacionados com a compra ou venda de
valores mobiliários na Regra 10b-5. Desde estes inícios, pouco promissórios, as
cortes federais converteram esta regra no mecanismo mais drástico de prevenção
de fraude nos mercados de valores mobiliários contemporâneos. As menciona-
das cortes impuseram responsabilidades para aquelas companhias que introdu-
zem informação fraudulenta nos mercados públicos de valores mobiliários. De
igual forma, exigiram o fornecimento de informação detalhada na venda de
valores mobiliários em outros países, quando tais operações têm efeitos nos mer-
cados estadunidenses. Inclusive, consideraram que a proibição do engano a que
se refere a mencionada regra deve ser estendida às omissões de revelação ou ao
silêncio em que podem incorrer quem, baseados na informação privilegiada de
que dispõem, efetuam negociações de valores mobiliários nos mercados públi-
cos197. A Comissão apenas cumpriu uma função tangencial com respeito à ju-
risprudência que as cortes desenvolveram sobre este particular. Efetivamente,
um dos poucos assuntos nos que a Comissão desempenhou papel preponderan-

197 “A Regra 10 (b)(5), incorporada na Lei de Negociação de Valores Mobiliários de 1934, é uma
pedra angular da legislação de valores norte-americana. Cada operação de bolsa está amparada
por esta proteção legal e sujeita à ameaça das sanções que dela se derivam. Esta regra de
conduta se orienta a garantir àqueles que realizam operações de bolsa que a informação
relevante para o mercado que tiver sido divulgada conscientemente por aqueles que estão
obrigados a fornecê-la estará isenta de falsidade ou inexatidão. Para estes últimos, a regra
impõe regras de transparência cuja violação arca o risco de graves responsabilidades” (Ibidem).

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92 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

te se refere à regra segundo a qual é viável fornecer aos investidores informação


relativa às projeções financeiras da sociedade. Nesta área, o Congresso se viu na
necessidade de intervir para que exista clareza sobre o assunto.
Não obstante, as cortes federais não se ocuparam, em geral, na resolução
de conflitos relativos ao mercado de valores mobiliários. A Comissão se reser-
va importantes faculdades administrativas para a resolução de conflitos entre
acionistas e administradores sociais. Em primeiro lugar, a Comissão pode ini-
ciar, de ofício, investigações com respeito a irregularidades na emissão de ações,
a votação mediante procuradores ou o fornecimento de informação inexata,
errônea ou falsa. É freqüente que estas investigações sejam iniciadas pelos
servidores públicos desse órgão, a petição de parte interessada.
Em segundo lugar, os funcionários da Comissão resolvem consultas me-
diante as denominadas cartas de não intervenção. Este mecanismo tem por
objetivo fornecer ao público em geral, e em especial aos advogados, as regras
de interpretação das leis vigentes e das resoluções expedidas por esse órgão.
Apesar de que estas cartas não têm poder vinculante ante terceiros, nem re-
presentam a opinião do pleno da Comissão, refletem a opinião dos funcioná-
rios do órgão. Além disso, estes pronunciamentos gozam de grande
respeitabilidade em certas áreas – algumas de grande complexidade – nas que
não existem precedentes jurisprudenciais nem interpretações oficiais emitidas
pelo pleno da Comissão. As cartas de não intervenção têm grande utilidade
para os advogados e outros profissionais especializados na área. Estes pronun-
ciamentos, disponíveis para consulta pública198, facilitam a assessoria em ope-
rações de cuja realização podem surgir assuntos de entendimento duvidoso
segundo as leis federais do mercado de valores mobiliários.

6. REGULAÇÃO AMBIENTAL
Um dos âmbitos normativos de maior incidência no funcionamento atual
das sociedades é o relacionado com o meio ambiente, em parte, devido à maior
difusão de conceitos relacionados com a responsabilidade comunitária (social res-
ponsibility) dos empresários. A relevância deste aspecto se põe de presente tam-
bém na promulgação de leis severas orientadas a evitar o dano ambiental e a
reprimir as práticas que possam gerá-lo. Uma das mais severas disposições nesta

198 Cfr. Lei de Regulação 6764 de 1988.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 93

matéria é a denominada Lei Integral de Resposta, Reparação e Responsabilidade


em Matéria Ambiental (Comprehensive Environmental Response, Compensation
and Liability Act ou CERCLA, por suas siglas em inglês)199. Esta importante
norma foi objeto de debates no meio jurídico estadunidense, devido, em grande
parte, ao aparente antagonismo entre o imperativo de proteger o meio ambiente
e a necessidade de abastecer, de modo suficiente, o mercado de bens de consumo.
A história dos Estados Unidos parece indicar, ao menos no passado recente, uma
maior preocupação por este último aspecto que pelas considerações ambientais200.
Contudo, a vertiginosa deterioração dos recursos naturais no mundo, somado ao
achado de numerosas zonas clandestinas destinadas a resíduos tóxicos, parece ter
propiciado uma mudança na mentalidade norte-americana201. Efetivamente, a
promulgação da citada Lei Integral obedeceu à determinação dos órgãos federais
de dar maior relevância aos até então desatendidos assuntos do meio ambiente. A
norma contém múltiplas disposições orientadas a evitar “o derramamento de subs-
tâncias que afetem o meio ambiente, a remediar qualquer dano ocasionado e a
imputar-lhe os custos que tal atividade demande aos sujeitos responsáveis”202.
Talvez uma das previsões da Lei Integral mais relevante para o Direito
Societário seja a contida na Seção 107 (a)203. Trata-se de uma importante dis-

199 “Esta Lei (Cercla) foi adotada com o fim de assegurar a eliminação de substâncias perigosas
(hazardous substances) e de implantar um programa de responsabilidade objetiva para garantir
o desaparecimento de tais substâncias. O estatuto foi interpretado pelos tribunais no sentido
de impor um critério de responsabilidade objetiva ou strict liability. A lei também impõe uma
responsabilidade solidária (joint and several liability) para a totalidade dos prejuízos (in
solido). As disposições desta norma que aludam à responsabilidade dos autores de tipos
criminais compreendidos nela, foram interpretados pelos tribunais como se tivessem uma
aplicação retroativa em relação àqueles atos cometidos antes da entrada em vigor da lei, isto é,
o 11 de dezembro de 1980. Contudo, o tribunal pode dispor que a responsabilidade se
distribua entre as partes processadas”. (FOLSOM, Ralph H. et al., op. cit., pp. 353.354).
200 A doutrina informa sobre este particular que “no curso do crescimento econômico do mundo
capitalista, muitas vezes se fez caso omisso das advertências formuladas em matéria ambiental.
Depois de trezentos anos de contínua exploração, nos terrenos férteis dos Estados Unidos [...]
se produzem maçãs cujo sabor se assemelha ao das pelotas de tênis” (GUZZANO, Christian A.
United States v. Bestfoods: Decree on Parent Corporation Liability for Illegal Discharges made
by Subsidiaries under the Comprehensive Environmental Response, Compensation, and Liability
Act. In: Nova Law Review, vol. 23, 1999, nº 927, p. 928).
201 São bem conhecidos os incidentes que tiveram lugar nos Estados de Nova York (Love Canal) e
Kentucky (Valley of the Drums), nos quais foram descobertas zonas ilegais em que se tinham
jogado resíduos tóxicos. “Estes desastres conduziram à promulgação da Lei Integral de Respos-
ta, Reparação e Responsabilidade em Matéria Ambiental por parte do Congresso Federal”
(SUTPHIN JR., Robert J. Owners or Operators: Two Distinct Paths to Parent Corporation
Liability under CERCLA. In: New Mexico Law Journal, vol. 30, 2000, nº 109, p. 109).
202 Ibidem.
203 A norma citada, incorporada na Seção 9607 (a)(1)-(4) do Código dos Estados Unidos (United
States Code), dispõe que os seguintes sujeitos serão responsáveis pelo ressarcimento dos

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94 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

posição em matéria de responsabilidade por danos ambientais que, depois de


um amplo debate, deu lugar a inovadores esquemas de responsabilidade socie-
tária204. Efetivamente, na relevante interpretação jurisprudencial formulada pela
Suprema Corte de Justiça norte-americana no caso United States v. Bestfoods,
estabelecem-se novos caminhos de extensão de responsabilidade em hipótese de
subordinação societária205.
Os antecedentes fáticos do caso se remontam ao ano de 1965, no qual a
sociedade Corn Product Company (posteriormente denominada Bestfoods) ad-
quiriu o controle sobre uma companhia sob cuja direção se encontrava a ope-
ração de uma planta de produtos químicos no Estado de Michigan. A sociedade
filial, denominada Ott Chemical Company, continuou sob direção da planta
até 1972. Durante o tempo em que esta subordinada realizou a operação da
planta de químicos, “arrojaram-se alguns resíduos tóxicos em lagoas em redor
dessa planta, enquanto outros enterraram em terrenos que ficavam perto dali.
Ademais, grande quantidade de galões de químicos se verteram nos trilhos
ferroviários próximos à planta, ao mesmo tempo em que resíduos adicionais
eram despejados nos bosques contínuos [...] A total irresponsabilidade no
manejo de resíduos tóxicos ocorrida durante todos estes anos teve por efeito
uma desmedida contaminação dos terrenos contínuos à planta”206.
Na primeira instância, o tribunal do Distrito de Michigan decidiu con-
denar a Bestfoods com fundamento no Seção 107 (a) da Lei Integral (CER-
CLA), por considerar que a sociedade matriz tinha a “operação” da planta de
sua filial Ott Chemical Company. Ao julgar o recurso interposto contra a sen-
tença inicial, o Tribunal de Apelações para o Sexto Circuito Judicial revogou

danos ocasionados ao meio ambiente: “(1) o proprietário ou o operador do veículo ou a


indústria que gerou o dano; (2) o proprietário ou o encarregado de operar qualquer indústria
na que se produza um derramamento de resíduos tóxicos; (3) qualquer sujeito que, por virtude
de um contrato ou qualquer classe de acordo, verta ou disponha o derrame de substâncias
tóxicas; e (4) qualquer sujeito que transporte substâncias tóxicas até zonas de derrame”.
204 “A promulgação da Lei Integral em 1980 foi o ponto de partida para a iniciação de um
prolongado debate entre os juízes federais a respeito dos limites da extensão de responsabili-
dade que se deriva da norma. Uma das posturas mais debatidas se relaciona com a possibili-
dade de estender a responsabilidade por danos ambientais aos sujeitos com maior capacidade
econômica, que tiverem alguma relação com os prejuízos causados [...]. Trata-se de uma
interpretação ampla da norma, cujo fundamento pode encontrar-se na intenção de evitar que
as autoridades federais incorram em altos custos de reparação” (ROLL, Mary Elliot. United
States v. Bestfoods, Clarifying Parent Corporation Liability Under CERCLA. In: Wisconsin
Environmental Law Journal, Vol. 6, 1999, nº 145, p. 146).
205 United States v. Bestfoods, [524 U.S. 51 (1998)].
206 ROLL, op. cit., p. 559.

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a sentença apelada, mediante o argumento de que não era viável estendê-la à


matriz Bestfoods a responsabilidade atribuível à filial. A determinação judi-
cial se baseou na inaplicabilidade da Seção 107 (a) citada, devido ao fato que
não coincidiam os elementos requeridos para ordenar a extensão de responsa-
bilidade à matriz, em razão da impossibilidade de desestimar a personalidade
jurídica da sociedade filial, conforme o Direito estadual. Por último, a Supre-
ma Corte de Justiça resolveu de forma definitiva o célebre caso Bestfoods.
Com fundamento na relação de subordinação existente entre Bestfoods e
Ott Chemical Company, a Suprema Corte considerou pertinente sancionar
exemplarmente à sociedade matriz207. A análise do alto tribunal se baseou nas
duas modalidades de imposição de responsabilidade societária que surgem da
aplicação do estatuto ambiental. A primeira, e talvez mais expedita, deriva-se
da operação direta ou indireta de uma planta, responsável pelos danos
ambientais. Nela, é claro que a causa da responsabilidade é o fato mesmo da
operação, tal como o previne a Seção 107 (a) da lei. A segunda possibilidade
de responsabilidade – cujas bases não se encontram, propriamente, no estatuto
ambiental senão no Direito Societário estadual – se deriva da construção
jurisprudencial da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.
Este último mecanismo tem particular utilidade prática quando o operador
direto da planta é uma sociedade subordinada, pois em caso de insolvência
poderá proceder com a responsabilização de sua matriz. Para a eficácia desta
responsabilidade imposta judicialmente se requer que coincidam os pressu-
postos jurisprudenciais que dão origem à perfuração do véu societário.
No caso específico de Bestfoods, a Suprema Corte estadunidense conside-
rou que não estavam presentes as circunstâncias que de acordo com o Direito
estadual permitem desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade. No en-
tanto – e talvez pela gravidade dos fatos e a necessidade de sentar um preceden-
te paradigmático – o alto tribunal, em todo caso, considerou necessário

207 Um dos indícios probatórios de maior relevância para a Corte Suprema ao decidir o caso
Bestfoods, foi a participação de um empregado desta companhia no derramamento de resíduos
tóxicos. Tal circunstância conduziu a Corte a concluir que Bestfoods realizava trabalhos de
operação respeito da planta de químicos, o que a situava sob a hipótese fática da Seção 107
da Lei Integral. Sobre o particular, SUTPHIN informa que “aquele sujeito, chamado Williams,
trabalhava de modo exclusivo na CPC [Bestfoods]. Esta circunstância serviu de base para
concluir que as atuações de Williams tinham sido induzidas por esta última companhia [...].
Assim, a Corte se valeu da relação existente entre Williams e CPC para aplicar a responsabili-
dade por danos ambientais que contém a Lei Integral” (SUTPHIN JR., op. cit., p. 129).

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96 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

responsabilizar a matriz, por considerar que ela tinha de modo indireto a opera-
ção da planta. Com fundamento no texto da citada seção do estatuto ambiental,
a Corte sustentou que se pode estender a responsabilidade à sociedade matriz,
caso se verifique que “esta exerceu alguma espécie de controle ‘efetivo’ sobre
uma determinada planta ou fábrica”208.

7. CARÁTER HÍBRIDO DO DIREITO SOCIETÁRIO


Como já se explicou, o sistema jurídico norte-americano se nutre de três
fontes diferentes: o Common Law, a equity e a legislação escrita. Esta última pode
ser de origem estadual ou federal, segundo prova dos órgãos legislativos locais ou
do Congresso dos Estados Unidos209. É claro, ademais, que a estrutura federal
dos Estados Unidos ocasiona, como se expressou, a coexistência de normas de
vigência nacional com as disposições proferidas pelos cinqüenta Estados da União
e pelo Distrito de Colúmbia. A Constituição determina uma órbita reduzida de
competência para a Federação. Portanto, o Congresso federal somente pode le-
gislar sobre matérias previamente definidas pela Carta Política. Com acerto afir-
ma GLENDON que “o governo federal só tem poderes delegados. Assim, carece
de atribuições a não ser que elas lhe sejam atribuídas pela Constituição. Mas
quando tais faculdades lhe foram conferidas, os poderes federais são supremos”210.
Deve-se ressaltar que o Direito Societário dos Estados Unidos é uma com-
binação singular entre as normas federais e as estaduais. Os assuntos relativos à

208 ROLL, op. cit., p. 155. Ainda que neste caso a Corte não tenha se valido da doutrina da
desconsideração da personalidade jurídica para sancionar a Bestfoods, a sentença correspon-
dente contém as bases para sua aplicação em matéria ambiental. Assim, a respeito dos proprie-
tários (owners) a que alude a Seção 107 citada, determinou-se a necessidade de estabelecer “uma
relação de subordinação entre a matriz e a subordinada dona da fábrica correspondente”. Uma
vez estabelecida essa relação, os juízes poderão aplicar as demais causais de levantamento do
véu existente sob o Common Law. Cfr. Capítulo V, infra.
209 Na autorizada opinião de MERRYMAN, “A distinção existente entre o Direito criado
jurisprudencialmente e o que surge da legislação pode dar lugar a confusões. Provavelmente,
existem tantas leis escritas nos Estados Unidos como teria numa nação latino-americana ou
européia. Igualmente a como ocorre em qualquer país de tradição civilista, as leis expedidas
nos Estados Unidos constituem uma fonte de Direito válida que deve ser interpretada e
aplicada pelos juízes, segundo seu tenor e tendo em conta o espírito do legislador. A hierar-
quia da legislação escrita é superior à dos precedentes judiciais. Ademais, enquanto as leis
escritas podem derrogar as regras de Direito contidas naquelas sentenças judiciais que lhes
sejam contrárias (sem menoscabo das questões de constitucionalidade que possam propor-se),
o contrário não poderia ocorrer. Daí que nem a quantidade de leis escritas nem a hierarquia
destas em relação com a jurisprudência possam ser critérios úteis para distinguir entre os
sistemas de tradição civilista e os anglo-saxões” (op. cit., p. 26).
210 GLENDON, op. cit., p. 313

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 97

constituição de sociedades, bem como os concernentes à direção e gestão socie-


tária, as regras de manejo interno, a dissolução e a liquidação da companhia,
pertencem ao âmbito da legislação estatal. Pelo contrário, a legislação federal
governa, em primeiro lugar, todos aqueles aspectos próprios das sociedades ins-
critas em bolsa, em particular relacionados com a divulgação de informação aos
investidores. Da mesma forma, o Congresso Federal também proferiu legislação
em matéria falimentar, especificamente no relacionado com a reorganização (con-
cordata) e a liquidação das sociedades.
Ora bem, poder-se-ia pensar que a denominada cláusula de comércio
(commerce clause) da Constituição dos Estados Unidos permitiria uma regulação
nacional do Direito Societário. Na verdade, a cláusula dá faculdade ao poder
central para regular tudo o que se relaciona com o comércio inter-estadual. Os
alcances desta cláusula são amplíssimos, ainda apesar da crescente tendência em
limitá-los, de maneira que múltiplos assuntos que guardam tão só uma relação
indireta com a matéria mencionada foram objeto de regulação federal. No célebre
caso García v. San Antonio Metropolitan Transit Authority211, a Suprema Corte
dos Estados Unidos, ao determinar a aplicação obrigatória de uma lei fede-
ral212 sobre jornada máxima de trabalho aos empregados de dita companhia de
transportes, definiu a supremacia constitucional da Federação para regular
assuntos indiretamente relacionados com a cláusula de comércio. Segundo
PALMITER, “a cláusula de comércio permite um poder federal legislativo
virtualmente ilimitado para regular o comércio inter-estadual”213.
Não obstante, tendo em vista que a mesma Constituição estabelece limi-
tes muito claros aos poderes das autoridades federais, a expedição de regula-
ções de caráter nacional pode ser difícil na prática. Apesar disso, é importante
assinalar que múltiplas regulações federais, protegidas por diversas interpreta-
ções jurisprudenciais, afetam de modo indireto o regime societário estaduni-
dense. Precisamente, a Suprema Corte dos Estados Unidos interpretou a
mencionada cláusula de comércio de maneira ampla, o qual permitiu às auto-
ridades federais se sobreporem às limitações constitucionais antes aludidas.
As interpretações da Suprema Corte, unidas à crescente tendência das autori-
dades federais de compartilharem assuntos estatais, deram lugar à interação

211 469 U.S. 528, 105 S. Ct. 1005, 83 L. Ed. 2d 1016 (1985).
212 “Fair Labor Standards Act” (FLSA).
213 PALMITER. The CTS Gambit..., p. 493.

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das legislações dos Estados com as regulações expedidas pelas autoridades


federais. Assim, como se verá posteriormente, existem normas sobre regime
anti-monopolio, controle da contaminação, segurança social, oportunidade
eqüitativa para os trabalhadores, qualidade dos produtos e responsabilidade
de fabricantes e distribuidores etc.214.
Além disso, não se deve perder de vista a vigência irrestrita da denomina-
da cláusula de supremacia (supremacy clause), em virtude da qual a lei federal
é superior a respeito da lei estatal. De acordo com CORLEY, esta cláusula
“invalida todas as leis estaduais que contravenham às leis expedidas pelo Con-
gresso federal”215. Este aspecto está intimamente ligado à idéia de que as áreas
dominadas pela legislação federal impedem que os Estados da União promul-
guem normas sobre os mesmos aspectos216. Assim, considera-se que “quando
uma legislação estadual se apresenta como um obstáculo para o cumprimento
e execução dos propósitos assinalados pelo Congresso nacional, aplica-se a
supremacia da lei federal, de tal maneira que torna inaplicável a norma esta-
dual217. Esta tese denominada simplesmente de preemption, expressão que
significa uma espécie de competência inibitória.
Já se indicou que os Estados tiveram que ceder ante uma crescente legislação
federal que afeta o campo dos negócios. Normas relativas ao meio ambiente, à

214 ROBERT C. CLARK se refere a algumas das normas que afetam de uma forma ou outra às sociedades
estadunidenses. Em suas palavras, “a Lei de Bônus de Pensões (‘Retirement Income Security Act’) e
a Lei de Segurança Ocupacional e Saúde (‘Occupational Safety and Health Act’) são claros
exemplos de normas federais que têm relevância no regime societário. Na verdade, as relações
trabalhistas são objeto de extensa regulação por parte do Congresso dos Estados Unidos. Ademais,
as relações entre os provedores e as companhias se encontram reguladas no Código de Comércio
Uniforme (‘Uniform Comercial Code’). Os credores sociais gozam dos benefícios derivados do
mesmo Código e da legislação sobre processos falimentares contida no Código de Falências.
Também existe legislação sobre proteção do consumidor, consagrada na Lei de Segurança de
Produtos Oferecidos ao Consumidor (‘Consumer Product Safety Act’), a Lei de Alimentos, Drogas
e Cosméticos (‘Food, Drug and Cosmetic Act’) e várias outras disposições [...]. O público em geral,
por sua vez, está protegido dos efeitos nocivos que a atividade de certas companhias pode gerar no
âmbito externo, tais como a contaminação ambiental. Dentro destas normas federais, encontram-
se a denominada Lei de Ar Limpo (‘Clean Air Act’) e a Lei de Controle de Contaminação da Água
(‘Water Pollution Controle Act’) [...]”. (Corporate Law. Boston: Little, Brown and Co., 1986, p. 31).
215 CORLEY, Robert N. et al. The Legal Environment of Business. Eight Edition. New York: McGraw
Hill Publishing Co., 1990, p. 139.
216 “A maneira mais adequada de limitar os poderes do Governo federal, de maneira que os
Estados contem com todos os demais poderes, consistiu em estabelecer, de comum acordo
entre os Estados, uma lista de faculdades que necessariamente deviam ser atribuídas ao
Congresso. Esta lista, redigida pelos delegados à Convenção, contém dezessete atribuições
enumeradas de modo explícito na Seção 8 do artigo primeiro da Constituição” (LEVASSEUR,
Alain A. Le Droit Américain. Paris: Editorial Dalloz, 2004, p. 32).
217 PALMITER. The CTS Gambit..., cit., p. 487.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 99

segurança industrial, às instalações para uso de inválidos, entre outras tantas,


demonstram o exercício irrestrito do mencionado poder federal. O anterior se
soma às inumeráveis disposições de ordem administrativa, expedidas pelas
instituições federais de regulação. Entre estas últimas é digna de destacar a
Comissão de Valores mobiliários (SEC), cuja permanente atividade de regulação
determina uma notável influência no funcionamento das sociedades que
participam no mercado público de valores mobiliários218.

8. LEIS SOCIETÁRIAS DOS ESTADOS


À margem das disposições federais aludidas, cada um dos Estados da
União conserva amplas faculdades legislativas. Esta circunstância, somada à
opção de que dispõem os empresários de constituir-se e operar em qualquer
parte do país, deu lugar ao aludido “mercado de leis de sociedades”. Como já
foi explicado, sob este sistema de harmonização a lei se converte num bem de
consumo, que depende da oferta e demanda dos particulares. Neste sentido,
“a legislação societária moderna se apresenta como um serviço que prestam os
Estados, em virtude do qual se oferece, a quem precisam estruturar suas rela-
ções de negócios, um conjunto, relativamente uniforme, que compreende a
estrutura da sociedade, sua personalidade jurídica, os direitos básicos dos in-
vestidores e a responsabilidade limitada a que têm direito os participantes”219.
Assim mesmo, as leis aplicáveis nos diferentes Estados cumprem um papel
principal no mercado normativo, pois é claro que o produto mais vantajoso
prevalecerá sobre os demais220. De tal modo que “as legislações desfavoráveis
podem subsistir num Estado, mas as sociedades constituídas nele não conta-

218 Para PALMITER, o fato de que a lei societária seja estatal “constitui um venerado lucro do
federalismo. É uma tradição inveterada que a regulação das relações entre administradores e
acionistas – o Direito Societário – corresponda em princípio aos Estados” (Ibidem, p. 451).
219 Ibidem, p. 454.
220 Por outro lado, o princípio constitucional segundo o qual todas as autoridades administrativas
e judiciais devem outorgar fé e total crédito (full faith and credit) a tudo o que se decida por
outras autoridades em qualquer parte da União Americana, permite que os particulares esco-
lham voluntariamente a legislação societária à que desejam submeter-se. A Seção 1 do artigo IV
da Constituição dos Estados Unidos determina que “em cada Estado deverá outorgar-se total
crédito e fé às atuações públicas, registros e procedimentos judiciais de todos os demais
Estados”. (The Constitution of the United States. Washington D.C., The Federalist Society for
Law & Public Policy Studies, p. 17). Sem prejuízo do problema a que pode dar lugar o conflito
de leis, é inegável que a multiplicidade de regimes jurídicos ocasiona a mais ampla oferta de
normas societárias. Isso permite que os investidores tenham a sua disposição uma infinidade
de possibilidades de contratação, determinadas pela maior ou menor flexibilidade da lei
estatal à que desejem acolher-se.

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rão com a mesma sorte”221. Em vista de sua importância, a competência esta-


dual em matéria de leis de sociedades será analisada em detalhe mais adiante.
Formuladas as anteriores exceções, convém observar que o princípio ge-
ral respeito das regulações aplicáveis consiste em que a sociedade se submete
fundamental e primeiramente às disposições jurídicas do Estado no qual se
constituiu (incorporation state), e só eventualmente àquelas do Estado ou Es-
tados nos quais realiza negócios (operation state). Curiosamente, uma compa-
nhia que opera fora do Estado de sua constituição se considera “sociedade
estrangeira” no território de operação. Apesar da aplicação da tese do full faith
and credit, a justaposição de legislações pode dar lugar a complexos problemas
de conflito de legislações. Ditos problemas se resolvem, em geral, à luz “da
doutrina dos assuntos internos” (internal affairs doctrine), a cuja virtude “as leis
societárias do Estado onde se constituiu a companhia governam exclusiva-
mente as relações entre sócios e administradores”222. Assim, pelo menos em
teoria, os demais Estados nos que a sociedade desenvolve seu objeto social têm
faculdade para regular o funcionamento de sociedades constituídas fora de
seu território. Apesar disso, “os Estados se mostraram reticentes frente ao exer-
cício desta faculdade”223.
Desta forma uma sociedade pode, por exemplo, constituir-se ante a Se-
cretaria de Estado da Florida e realizar suas atividades de exploração econô-
mica em Geórgia ou Luisiana224. Neste caso, as disposições aplicáveis em relação

221 ROE, op. cit., p. 5.


222 Segundo afirma PALMITER, “a maioria das leis estaduais impedem de maneira expressa que o
Estado e seus órgãos judiciais regulem os assuntos internos de uma sociedade estrangeira.
Assim, por exemplo, a Seção 15.05 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA)
estabelece que ‘esta lei não autoriza ao Estado para regular a organização dos assuntos
internos de uma sociedade estrangeira autorizada para desenvolver seu objeto social neste
Estado’. Da mesma maneira, a Seção 106 do mesmo estatuto prevê que ‘nada do contido nesta
lei poderá ser interpretado para autorizar ao Estado para regular a organização dos assuntos
internos de uma sociedade estrangeira’” (The CTS Gambit..., cit., pp. 456-457).
223 Ibidem, p. 457.
224 A jurisprudência norte-americana demonstrou em várias ocasiões uma estrita aplicação da
doutrina dos assuntos internos. O seguinte caso ilustra adequadamente o particular: “Acme
Inc., foi constituída no Estado de Delaware, apesar de que seus ativos estão localizados no
Estado de Illinois. Todos os acionistas, administradores e empregados da sociedade residem no
último Estado a que se fez referência. A sociedade também desenvolve seu objeto social em
Illinois. Se um acionista de Acme Inc. pretendesse demandar aos membros do Conselho de
Administração da sociedade, com fundamento numa suposta violação de seus deveres
fiduciários, os juízes do Estado de Illinois se veriam forçados a aplicar as leis do Estado de
Delaware, sem importar os vínculos existentes com aquele Estado”. (Paulman v. Kritzer, [219
N.E.2d 541 (Ill. App. 1966), aff’d, 230 N.E.2d 262 (Ill. 1967)]. (“Applying Delaware Fiduciary
Duties to the Directors of a Delaware Corporation”, citado por BAINBRIDGE, op. cit., p. 14).

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aos direitos dos acionistas, ao funcionamento de assembléias e Conselhos de


Administração, às faculdades dos representantes legais e à capacidade jurídica
da sociedade serão regidas pelas disposições da Florida, onde a companhia se
constituiu. Contudo, alguns Estados restringiram o alcance da doutrina dos
assuntos internos, já citada, ao estabelecer que aquelas sociedades que reali-
zem uma parte importante de suas operações num determinado território,
terão que se submeter, em geral, à lei do correspondente Estado, mesmo para
os efeitos derivados do manejo interno da sociedade225.
Por outro lado, o interesse de criar uma legislação mais ou menos uniforme
ao longo da União Americana, deu lugar à preparação das denominadas leis
tipo, que contêm regulações detalhadas sobre cada uma das formas de associação
comercial226. Além da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas, podem-se
mencionar a Lei Tipo de Sociedades de Capital (Model Business Corporation
Act) e a Lei Uniforme de Sociedades em comandita (Uniform Limited Partnership
Act, “ULPA”), junto com suas correspondentes versões revisadas (“RMBCA” e
“RULPA”). A maioria de Estados adotou estas leis tipo com maiores ou menores
variações com relação ao modelo original227. Desta forma, alguns autores
afirmaram que, aparte da legislação do Estado de Delaware, as leis tipo constituem
a fonte de maior relevância do Direito Societário escrito nos Estados Unidos. “A
principal alternativa que surge ante as vantagens que oferece a legislação do

225 A Seção 2115 do Código de Sociedades de Califórnia é um claro exemplo desta tendência a
desconhecer a doutrina dos assuntos internos da sociedade.
226 Além disso, pode-se afirmar que também existe um alto grau de harmonização na jurisprudên-
cia dos diferentes Estados da União, que configura uma espécie de Common Law nacional.
“Existem grandes similitudes e com freqüência uma identidade total entre os sistemas de
common law dos Estados norte-americanos. Naturalmente que na tradição do common law
estes instrumentos fundamentais de criação e preservação do common law, que são os tribu-
nais dos Estados, inspirem-se uns nas decisões de outros, de maneira de terminar por copiarem-
se reciprocamente. Esta harmonização nacional do common law se motiva pelo fato de que os
juízes dos tribunais e cortes dos estados receberam a mesma classe de instrução e a mesma
formação jurídica de base nas faculdades de direito. Ademais, existe comunicação freqüente
entre eles. Estes mesmos juízes estão conscientes de que o common law de cada Estado
necessariamente deve ser adaptado, em pontos específicos, às circunstâncias e particularida-
des locais, sem que isso obste que o common law possa ser harmonizado em grande parte sem
que se converta num direito federal” (LEVASSEUR, Alain A. Lhe Droit..., cit., p. 71).
227 Ainda que seja um tanto assombroso, o Estado de Luisiana, cujo sistema legal é o mais próximo
à tradição romano-germânica, foi o primeiro a acolher as regras da Lei Tipo de Sociedades de
Capital (Model Business Corporation Act). “Em 1928, Luisiana, se tornou o primeiro Estado do país
a adotar a Lei Tipo de Sociedades de Capital, tal como foi promulgada pela Conferência Nacional
de Redatores de Leis Estaduais Uniformes” (MORRIS et al., op. cit., vol. 7., p. 271). A inserção
desse texto na legislação societária do Estado de Luisiana contrasta marcadamente com a resistên-
cia inicial de reformar o sistema de sociedades de pessoas. Efetivamente, Luisiana, não adotou a
versão original nem a revisada da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas (UPA e RUPA).

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Estado de Delaware está dada pela Lei Tipo de Sociedades de Capital (‘Model
Business Corporation Act’) redigida pela Associação Americana de Colégios de
Advogados (‘American Bar Association’)”228.

A. O MERCADO DAS LEIS DE SOCIEDADES


Como se analisou no começo deste livro, o mercado de leis de sociedades
foi em seu momento censurado com severidade, por ter gerado, supostamente,
um relaxamento das restrições dos administradores, em detrimento dos direi-
tos dos acionistas e terceiros. Nessa desenfreada atividade legislativa, o ganha-
dor da competição seria, sem dúvida alguma, Delaware, cujos registros societários
são mostra eloqüente da grande quantidade de sociedades de capital abertas
que foram constituídas nesse Estado229.
A doutrina se viu tradicionalmente dividida em torno da conveniência
da competição que se apresenta entre os diferentes Estados norte-americanos.
A constante modificação das legislações estaduais, orientada na maioria dos
casos à obtenção de recursos por meio da imposição de tributos e outros taxas,
é um dos fatores de maior importância na evolução societária estadunidense.
Os encargos em questão são considerados por diversos autores como a causa
principal das modificações legislativas nos diferentes Estados. Na verdade, tais
tributos e direitos constituem um “poderoso incentivo para que os Estados
incluam em suas legislações normas tendentes a evitar o êxodo das sociedades
ali constituídas e, também, para atrair a novos investidores que possam gerar
recursos adicionais para eles”230. Um exemplo significativo da afirmação que
acaba de ser feita constitui a atitude que sobre este particular assumiram os
legisladores do Estado de Delaware. Dito Estado deriva uma parte importante
de seu orçamento da arrecadação de taxas das sociedades de capital. Contudo,

228 “Em 1950 o Comitê de Direito Societário da Associação Americana de Colégios de Advogados
publicou a primeira Lei Tipo de Sociedades de Capital (Model Business Corporation Act ou
MBCA, por suas siglas). Esta Lei Tipo, bem como suas versões revisadas, serviram como base das
leis de sociedades de 36 Estados [da União Americana]. Em 1984, o mesmo comitê, procedeu a
uma nova redação e sistematização da Lei Tipo. Em 1993, 16 Estados tinham adotado leis de
sociedades baseadas na revisão de 1984”. (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 9). Delaware,
Califórnia e Nova York são ainda os Estados de maior importância econômica que se recusam a
adotar a referida Lei Tipo. Cada um deles preservou uma legislação de características peculiares,
ainda que se reconhece que também adotaram alguns elementos da Lei Tipo.
229 “A maioria das 500 maiores sociedades que publica a revista Fortune e cerca do quarenta e
cinco por cento daquelas inscritas na bolsa de Nova York estão constituídas nesse Estado”
(PALMITER. The CTS Gambit..., cit., p. 459).
230 ROMANO, Roberta, op. cit., p. 87.

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“o sucesso de Delaware no mercado de leis de sociedades constitui, paradoxal-


mente, uma desvantagem: a continuidade na arrecadação de taxas implica uma
obrigatória evolução da legislação societária nesse Estado. Por tanto, Delaware
não pode abster-se de atualizar e aperfeiçoar suas leis de sociedades, já que isto
teria como conseqüência a perda de valiosos recursos”231.
Ora bem, como se mencionou antes, não existe unanimidade doutrinária a
respeito da conveniência do mercado das leis de sociedades. Enquanto alguns
autores dão conta da possível inconveniência do sistema mencionado, outros
vêem nele benefícios consideráveis para a evolução do regime societário
estadunidense. O juiz BRANDEIS, no caso Ligget v. Lee, sentou as bases do
que viria denominar-se a tese da competência degradante (race to the bottom)232.
Na sentença aludida, pôs-se de presente que “os Estados mais pobres da União
têm envilecido suas respectivas legislações, num afã por captar os recursos derivados
do tráfico de normas societárias”233. Vários anos depois desse pronunciamento,
WILLIAM CARY desenvolveu a teoria do juiz BRANDEIS, ao sustentar
que os Estados teriam sido compelidos a participar de uma competição imoral,
com o único propósito de participar dos grandes recursos procedentes da atividade
societária. Para este propósito, teriam concedido amplas prerrogativas aos
administradores sociais, em prejuízo dos direitos de acionistas e terceiros.
Ao ser aqueles os encarregados de decidir o Estado de constituição das
companhias, “as legislaturas estaduais teriam procurado atraí-los de qualquer
forma possível”234. CARY, em sua qualidade de presidente da Comissão de
Valores mobiliários (SEC), emitiu a opinião que se transcreve em seguida,
segundo a qual “o primeiro passo para melhorar a legislação societária consiste
em superar a situação atual, em que os Estados menos favorecidos entre os
cinqüenta que fazem parte da União procedem a interpretar e a denegrir a
legislação societária, com o único propósito de tentar que um número maior
de sociedades sejam constituídas dentro de seus territórios”235. As mais mo-
dernas doutrinas pretenderam desvirtuar essa análise com argumentos tão su-
gestivos como sensatos. Vários autores adotaram a teoria de que o resultado da

231 Ibidem, p. 90
232 Ligget v. Lee, [288 U.S. 517, 577-60 (1932)].
233 Ibidem.
234 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 15.
235 CARY, William, citado por ROE, op. cit., p. 4.

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concorrência estadual deu lugar a incontáveis benefícios representados na


modernização das instituições societárias. O mais reconhecido expositor da
denominada teoria da concorrência edificante (race to the top), é RALPH K.
WINTER, quem pela vez primeira contradisse as hipóteses propostas por
CARY. WINTER argüiu que “os Estados que carecem de uma legislação de
vanguarda para as companhias fazem que estas incorram em maiores custos
operativos. Assim, tarde ou cedo, os investidores se darão conta de que a situ-
ação das sociedades constituídas em tais Estados é comparativamente menos
favorável em relação a o que ocorreria sob a legislação avançada promulgada
por outros Estados. Esta desvantagem comparativa poderia propiciar a aquisi-
ção das companhias constituídas sob legislações atrasadas por parte de outras
domiciliadas em Estados dotados de leis progressistas. A mesma situação po-
deria dar lugar à extinção daquelas sociedades”236.
ALAN PALMITER, por sua vez, também se refere à concorrência
edificante, cujas características, em sua opinião, longe de prejudicar a atividade
econômica, teriam produzido enormes benefícios para ela237. De acordo com
esta tese, a sã concorrência entre legislações, foros e advogados especializados,
realizada durante décadas entre os diferentes Estados, teria dado lugar a um
alto grau de sofisticação no Direito Societário norte-americano. O autor sustenta,
igualmente, que a liberdade das leis societárias se converteu num mecanismo
facilitador da atividade das companhias. Isso se deve ao fato que os preceitos
jurídicos contidos nas leis estaduais são crescentemente dispositivos, em lugar
de ter natureza coerciva238. “Ainda as poucas regras imperativas que subsistem
na legislação – em particular as relativas a deveres fiduciários – não devem ser
vistas como normas realmente obrigatórias, mas sim permissivas Na realidade, a
maior parte delas representa o que os administradores e sócios teriam exigido se

236 WINTER, Ralph K. e ROMANO, Roberta, citados por ROE, op. cit., p. 5.
237 Na autorizada opinião de ROBERTA ROMANO, “as sociedades mudam seu domicílio estatutário
quando esperam realizar operações comerciais que possam ser efetuadas a menor custo sob uma
legislação diferente. As normas de um Estado em particular podem ter por efeito a redução dos
custos de gestão. Um exemplo desta afirmação estaria dado pelas normas relativas às votações
requeridas para permitir que se efetue uma aquisição. Estas variam de um Estado a outro, de
maneira que têm a virtualidade de impor aos interessados diferentes custos para realizar tais
operações ou, contrário sensu, reduzir tais custos de modo indireto” (op. cit., p. 32).
238 Deve advertir-se, como o faz ANDRÉ TUNC que “é compreensível que nos Estados Unidos se
distingue entre o direito societário propriamente dito, cada vez mais permissivo (com exceção
da exigência imposta aos administradores de atuar com extrema honorabilidade no exercício
de suas funções) e, por outro lado, a regulamentação dos valorizes mobiliários, que se tornou
extremamente elaborada” (Lhe Droit Anglais...cit., p. 20).

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tivessem tido a oportunidade de efetuar uma negociação plena de suas relações


mercantis. Servem, pois, para poupar-lhe às partes o custo de negociar e verificar
o que estas teriam incluído, em todo caso, no contrato social. A proliferação de
leis e sentenças judiciais que permitem prescindir de normas que antes se
consideravam imperativas confirma este asserto”239.
De maneira que, na atualidade, as leis estaduais de sociedades se limitam a
reconhecer os direitos de acionistas e administradores, bem como a garantir o
regime de limitação da responsabilidade que surge da pessoa jurídica da socie-
dade devidamente constituída (incorporated)240.
Não obstante, alguns autores afirmam que o debate em questão foi
desvirtuado em razão da enorme influência das autoridades federais sobre a
autonomia legislativa de cada um dos Estados da União. É claro que, ainda que
os Estados tivessem um interesse desenfreado e imoral em reduzir todas as regras
mínimas de conduta dos administradores, tal atitude enfrentaria o obstáculo
insuperável dos poderes federais, dotados de amplas faculdades de intervenção.
Como é sabido, com fundamento na cláusula de comércio da Constituição
norte-americana o Congresso federal tem faculdades legislativas para regular
assuntos que atinem às operações mercantis que são realizadas entre cidadãos de
vários Estados. Além disso, as instituições federais de fiscalização governamental,
tais como a Comissão de Valores mobiliários (SEC), estão dotadas de amplas
faculdades de intervenção. Neste sentido, MARK J. ROE indicou que “a análise
da carreira legislativa carece de validez dentro do contexto de um Estado federativo.
Enquanto não exista uma reforma constitucional que proíba a intervenção dos
poderes centrais em assuntos dos Estados, os órgãos federais terão a faculdade
de definir as principais regras do governo societário”241.

239 PALMITER, The CTS Gambit... cit., p. 455. Da mesma forma afirma o autor que, “apesar de fazer
um século a legislação societária participava de muitas das características das tradicionais
regulações estatais – ao exigir a especificação da classe de negócio, as atividades dos proprietá-
rios, a estrutura do capital e as regras de direção e administração das sociedades –, na atualidade
essa legislação é permissiva e facilitadora” (Ibidem, p. 453).
240 Estas leis facilitam o funcionamento da sociedade, ao estabelecer estruturas e disposições
supletivas, cuja adoção depende de uma ampla arbitrariedade das partes. As normas imperativas
e as proibições legais são a exceção (PALMITER. The CTS Gambit..., cit., p. 454). “Estruturar um
acordo societário toma tempo e dinheiro. Muitos investidores não estariam interessados em
pagar assessoria jurídica para redigir um acordo completo no qual se regulassem todos os
assuntos que poderiam surgir. Os mecanismos de resolução de conflitos previstos nas leis
societárias incluem sistemas para resolver estes desacordos depois de que ocorram”. (THOMPSON,
Robert B. Close corporations in the United States of America. In: The European Private Company?
Tilburg: Metro Publishing, 1995, p. 187).
241 ROE, op. cit., p. 38.

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Diante de tudo o exposto, é evidente a complexidade do sistema societá-


rio norte-americano, dada a multiplicidade de normas jurídicas positivas fe-
derais e estaduais, somada às decisões jurisprudenciais sobre a matéria. Não
obstante, segundo se afirmou, as leis tipo contribuíram significativamente à
simplificação do Direito Societário. Apesar disso, ainda resulta difícil apre-
sentar um panorama geral do ainda extenso e complexo campo das sociedades
comerciais nos Estados Unidos. A evolução constante de uma jurisprudência
heterogênea dificulta o processo de sistematização do Direito vigente. Por
isso, terá que se levar em conta sempre que, pese aos esforços para uniformizar
a legislação, subsistirá algum grau de diversidade entre as normas de um Esta-
do e as de outro.

B. O CASO DE DELAWARE
De acordo com o que já se explicou, a legislação do Estado de Delaware é
uma das mais avançadas nos Estados Unidos. É óbvio que tal legislação não está
inspirada em nenhuma das diferentes leis tipo. Antes, poder-se-ia dizer que as
regulações societárias de dito Estado constituíram uma influência notória tanto
nas legislações de outros Estados, como na redação das leis tipo. “No começo do
presente século [XX], Delaware adotou uma legislação geral de sociedades me-
nos conservadora, que liberava aos gerentes e administradores de sociedades ali
constituídas de várias restrições existentes sob as leis de outros Estados. Desta
forma, ficavam estes servidores públicos facultados para atuar com maior flexi-
bilidade e liberdade, protegidos de eventuais ataques por parte dos acionistas e
do próprio Estado [...]. Em tempos relativamente recentes, numerosos Estados
modificaram ou revisado suas leis gerais de sociedades, de maneira que muitas
normas de Delaware foram incluídas nos textos daquelas”242.
Ora bem, a principal vantagem de Delaware em relação aos demais Esta-
dos da União consiste na demonstração de ter uma maior capacidade para adap-
tar-se às mutantes necessidades econômicas dos empresários. Esta circunstância,
na opinião de alguns autores, é conseqüência da já mencionada dependência de
Delaware a respeito dos rendimentos derivados dos tributos e outros direitos
estaduais. Assim, por exemplo, ROMANO alega que “um Estado cujas rendas
dependem em alto grau dos direitos que pagam as sociedades nele constituídas

242 FREY, Alexander H. et al. Cases and Materials on Corporations. Law School Casebook Series,
1966, pp. 19-20.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 107

deve responder adequadamente ante as necessidades dessas companhias. Se não


o fizer, assumirá o grave risco de perder grandes recursos”243.
Por outro lado, SOLOMON também assinalou alguns dos principais
motivos que mantiveram a Delaware à cabeça do mercado das leis de socieda-
des. “A legislação de Delaware está desenhada para conceder-lhe à adminis-
tração de uma sociedade um maior grau de flexibilidade na estruturação e
manejo de seus negócios. As Cortes do Estado de Delaware demonstram um
grau muito avançado de sofisticação em temas societários. A legislação de
Delaware foi interpretada e desenvolvida consideravelmente, o que implica
uma maior segurança jurídica para os empresários.
A referida legislação evolui à medida que surgem novos problemas e
necessidades”244. O aspecto jurisdicional neste, como em outros muitos casos,
constitui diferença específica entre o regime jurídico do Estado de Delaware e
o de outros estados da União Americana. Convém expor dois aspectos essenciais
que denotam uma distinção fundamental entre essa e as demais jurisdições. De
uma parte, a eficiência dessa jurisdição medida em termos do tempo empregado
para resolver os litígios societários e, de outra, o conhecimento técnico dos
juízes em assuntos de Direito Societário. Deve ter-se em conta que também
nos Estados Unidos a função judicial enfrenta problemas de eficiência e, em
ocasiões, de profundidade na análise dos conflitos que se ventilam ante o foro.
Daí que se tenha afirmado, com razão, que também os juízes estadunidenses
em ocasiões são vítimas da lei do menor esforço. “A habilidade cognoscitiva é
um recurso tão escasso, que qualquer indivíduo investido do poder de adotar
certa determinação, tentará utilizar esse poder da forma mais eficiente possível,
devido, precisamente, à restrição do seu raciocínio. A partir desta circunstância,
verificou-se empiricamente que qualquer pessoa que se veja enfrentada a

243 ROMANO, op. cit., p. 38. Parece claro, pois, que a capacidade que dito Estado tem para atrair
companhias é decisiva na permanente modernização de sua legislação societária. Para ROMANO,
“a preeminência da legislação societária do Estado de Delaware foi um fator estável e recorrente
na história legislativa dos Estados Unidos; desde a década de 1920, este foi o Estado no qual
se constituíram o maior número de sociedades comerciais (…). Ainda que se sustentasse que
Delaware não é o pioneiro das inovações legais introduzidas nos Estados Unidos, ninguém
poderia negar que suas normas societárias são as que mais foram acolhidas.” A mesma autora
sustenta que os acionistas de companhias domiciliadas nesse Estado também derivam incontáveis
benefícios das normas societárias promulgadas pela legislatura de Delaware. Nas suas palavras,
“uma simples análise empírica permite concluir que a legislação societária promulgada no
Estado de Delaware gera benefícios notórios para os acionistas das companhias constituídas
nesse Estado” (Ibidem, p. 6).
244 SOLOMON et. al., op. cit., p. 40.

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108 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

situações complexas ou ambíguas, optará por realizar o mínimo esforço possível


no momento de resolver essas dificuldades. [...]. É por isso que, em geral, um
juiz adotará aquelas determinações que lhe resultem mais singelas. Um
expediente conhecido para fazê-lo, consiste em tomar o caminho mais curto,
mediante a criação de soluções artificiosas que lhe permitam resolver o conflito
judicial da forma menos complexa possível”245.
Este princípio parece não se aplica integralmente no Estado de Delaware.
Os juízes dessa jurisdição defendem a reputação do sistema societário do qual
depende seu predomínio e prestígio. Para BAINBRIDGE, uma vez que se
designou um juiz para ocupar uma cadeira na prestigiosa Corte da Chancelaria,
o funcionário terá todo incentivo para desenvolver um conhecimento especializado
para resolver assuntos complexos de Direito Societário. “A possibilidade de
deliberar e decidir sem a presença de júris numa corte de equity, põe em jogo a
reputação do juiz cada vez que se profere uma nova sentença. Devido a que a
maioria das sociedades de grande dimensão estão domiciliadas em Delaware, as
sentenças proferidas nas cortes do Estado são freqüentemente objeto de
atendimento por parte dos meios de comunicação, os professores universitários
e os advogados praticantes”246.

245 BAINBRIDGE, Stephen M. Mergers...cit., p. 134.


246 Ibidem, p. 135.

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Capítulo III
PRINCIPAIS FORMAS SOCIETÁRIAS

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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Uma diferença recorrente na análise comparada entre o Direito Societá-
rio anglo-saxão e aquele que rege em países de tradição romano-germânica
alude à forma de classificação jurídica das formas societárias. Enquanto nos
sistemas de tradição civilista todos os tipos com intuito de lucro são classifica-
dos sob o conceito genérico de companhia ou sociedade247, nas nações do
Common Law se faz uma cortante diferenciação entre as sociedades de pessoas
e as companhias de capital248. Esta summa divisio das formas associativas obe-
dece não só a razões históricas, senão também a diferenças nas concepções
econômicas e jurídicas subjacentes a tal distinção. Assim, a sociedade de pes-
soas, denominada de modo uniforme como partnership ou general partnership,
alude a uma estrutura associativa flexível em seus requisitos de constituição
na qual a origem contratual e o regime de responsabilidade aparecem como
nota determinante249. Pelo contrário, a sociedade capitalista ou corporation,
cuja origem se identifica melhor com a teoria da concessão estatal250, apresen-

247 Como uma exceção, o Brasil utiliza o termo “companhia” para referir-se as sociedades anônimas.
248 SCHLESINGER ressalta a diferença terminológica em matéria societária existente nos países de
tradição romano-germânica em comparação com os do Common Law. “O termo utilizado para
denominar às sociedades comerciais de capital (‘corporations’), nos idiomas de países de
tradição civilista demonstra como, historicamente, estas formas societárias provem dos contra-
tos de sociedade coletiva (‘partnerships’), que se celebravam ao amparo da ‘lex mercatoria’. A
palavra latina mediante a qual se denomina o contrato de sociedade coletiva é societas. Este
vocábulo, ou seu equivalente nas línguas modernas (société, companhia, gesellschaft, usual-
mente traduzida ao inglês com a palavra ‘company’), foi adotado pela ‘lex mercatoria’ e, mais
adiante, introduzido nas codificações. Ainda hoje significa, na tradição civilista, qualquer
espécie de associação contratual com fins lucrativos, incluídas aquelas formas dotadas de
personalidade jurídica, tais como a sociedade por ações (às quais os códigos e leis denominam
como ‘sociedade anônima’ ou ‘companhia por ações’), bem como a companhia em comandita
conhecida no mundo de língua espanhola. A indicação segundo a qual uma determinada
entidade é uma société, gesellschaft, società, sem que se formule uma precisão adicional,
impede determinar se essa entidade está dotada de personalidade jurídica ou estabelecer se
seus sócios desfrutam do benefício da limitação de responsabilidade” (op. cit., p. 779).
249 A origem desta forma societária, como bem o evoca a doutrina estadunidense, remonta-se
àquelas épocas em que “os primeiros seres humanos, sumidos nas mais primitivas condições,
uniram esforços na contramão da fome e estabeleceram os elementos para qualificar a primeira
sociedade de pessoas, em procura da cooperação recíproca” (ROWLEY, op. cit., p. 2). Desde
então, a sociedade de pessoas foi acolhida por diversas culturas, incluído o antigo Império
Babilônico e os sistemas jurídicos orientais, passando pela Europa Continental e pelo mundo
anglo-saxão, onde se adotou como a forma societária por excelência. A figura que conhece-
mos hoje, portanto, não é senão o resultado de um extenso processo de aperfeiçoamento,
gerido por vias legais e pelos costumes. Em isto coincidem, além de ROWLEY (op. cit., pp. 2-
9), vários autores de origem anglo-saxã (cfr., por exemplo, os seguintes textos: HAMILTON,
Robert W. et al. Business Basics for Law Students. Second Edition. New York: Aspen Law &
Business Publishers Inc., 1998, p. 263, ou HOWELL et al., Business Law, cit., pp. 601-602).
250 Segundo GLENN G. MORRIS, “na atualidade, a observação segundo a qual a sociedade de
capitais é uma espécie de privilégio conferido pelo Estado parece ser uma descrição inexata.

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112 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ta-se como um esquema formal de realização de negócios, no que só o cum-


primento de formalidades legais, somado ao reconhecimento governamental,
dá lugar à separação patrimonial que permite isolar o risco assumido por seus
acionistas251. Estas e outras distinções justificam um tratamento legal plena-
mente diferenciado tanto nas disposições de Direito escrito aplicáveis a umas
e outras, como na jurisprudência que se desenvolveu de modo individual para
cada uma delas252.

2. A SOCIEDADE DE PESSOAS (PARTNERSHIP)


O regime jurídico subjacente ao sistema das sociedades de pessoas nos
Estados Unidos é derivado dos princípios jurisprudenciais relativos ao contrato
de mandato (agency). Neste, como em outros casos, o termo mandato se utiliza
em sentido amplo, na falta de uma instituição diferente em sistemas de tradi-
ção romano-germânica, que sirva como equivalente funcional. As conseqüên-
cias legais que a jurisprudência determinou a respeito deste negócio jurídico
têm aplicações de grande significação no contexto das sociedades. Não em vão
afirmam alguns autores que, “o regime jurídico do mandato [“agency”] lhe ser-

Qualquer pessoa que tenha capacidade jurídica pode redigir dois ou três simples documentos,
notarizá-los e inscrevê-los mediante o pagamento de sessenta dólares e assim constituir uma
sociedade de capital. Diferentemente das licenças de condução, a constituição de sociedades
não pressupõe um exame ou o credenciamento de qualidades específicas (...). Talvez ainda
seja possível insistir, apesar desta extraordinária liberalidade no Direito Societário, que somen-
te o Estado pode originar a personalidade jurídica da sociedade, ao menos em termos pura-
mente formais. Mas, na realidade, o registo da ata constitutiva corresponde mais à inscrição de
um ato privado do que a uma solicitação formulada ante um funcionário público para que este
exerça uma função oficial. Isso se deve ao fato que o Estado carece de arbitrariedade para
recusar a inscrição”. (Op. cit. Vol. 7, p. 283).
251 Apesar de que no Direito Societário norte-americano, o processo de constituição de socieda-
des é mais célere do que em qualquer outra parte do mundo, a formalidade consistente na
apresentação da ata de constituição ante a Secretaria do Estado segue sendo uma clara
reminiscência da teoria da concessão estatal. Ela afunda suas raízes nas tradições da coroa
inglesa e, ainda hoje, serve para distinguir entre as formas societárias nas quais tal reconheci-
mento governamental determina um claro sistema de limitação de responsabilidade para os
sócios. “Para BLACKSTONE, o consentimento do Rei era absolutamente necessário para a
criação de uma entidade societária. Precisamente dai surge a idéia de que, em Inglaterra, a
constituição de uma sociedade e a criação de uma pessoa jurídica constituem uma concessão”
(GOULDING, Simon, op. cit., p. 5).
252 Esta visão jurídica contrasta com a presente nos países de tradição Romano-Germânica onde,
“a distância entre o conceito de sociedade de pessoas e de capitais se reduziu com o propósito
de encontrar um conceito comum que possa abarcá-las a ambas. Trata-se, do conceito da
sociedade ou companhia. Este não se refere a um tipo de sociedade determinado, senão a uma
estrutura contratual específica. Não é nada diferente de uma organização multilateral que, por
meio das contribuições de seus sócios, tenta obter um proveito econômico para ser distribuído
entre eles” (ETCHEVERRY, Raúl Aníbal. The: Business Enterprise Organization and Joint Ventures.
In: Saint Louis University Law Journal, nº 39, 1994-1995, p. 988).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 113

ve de fundamento a grande parte da legislação existente em matéria de socie-


dades de pessoas. O fato de que exista um amplo acervo de antecedentes judi-
ciais em matéria de companhias de pessoas, não desvirtua a relação de
dependência entre tais precedentes e sua fonte primitiva que não é outra que a
que surge do regime do mandato”253.
A conexão entre ambos os regimes deriva das relações jurídicas existentes
entre os sócios destas formas societárias. Segundo será analisado mais adiante,
numa companhia de pessoas, os sócios atuam sob o esquema da representação
recíproca (mutual agency), por cuja virtude cada um deles é mandante e man-
datário a respeito dos demais sócios. Não surpreende, então, que a Nova Lei
Uniforme de Sociedades de Pessoas (Revised Uniform Partnership Act) conte-
nha uma remissão expressa ao regime do contrato de mandato, a qual permite
aplicar as regras deste negócio jurídico às relações que surjam entre os sócios
de companhias personalistas254. É por isso que a vinculação entre o referido
contrato e a sociedade de pessoas estadunidense se manifesta em múltiplas
circunstâncias, tais como a possibilidade de que a sociedade responda pelas
infrações de um de seus sócios ou que resulte vinculada a respeito dos atos
celebrados por qualquer destes em nome da sociedade255. A importância do
contrato de mandato, como se verá mais adiante, não se circunscreve de modo
exclusivo ao regime de sociedades de pessoas, mas muitos de seus princípios
também permeiam o sistema legal de outras espécies societárias e ainda em
outros âmbitos do direito empresarial.
Esta circunstância levou ao Instituto Americano de Direito (American
Law Institute) a compilar num código uniforme, os princípios fundamentais
que governam o mencionado negócio jurídico. Este verdadeiro compêndio de
antecedentes jurisprudenciais, denominado Codificação do Regime Jurídico
do Mandato (Restatement of the Law of Agency ou “RD”), contém as definições
das instituições jurídicas relacionadas com o contrato de mandato, bem como
as regras relativas a sua celebração e à execução das prestações que surgem do
contrato. A constante atualização dos preceitos contidos naquele estatuto,
conduziu à expedição da Segunda Codificação do Regime Jurídico do Man-

253 ROWLEY, op. cit., p. 27.


254 Cfr. RUPA, Seção 104 (a). Neste sentido, Ou’KELLEY expressou que “as regras contidas tanto na
Lei Uniforme da Sociedade de Pessoas (UPA) como em sua versão revisada (RUPA), devem ser
interpretadas à luz das leis do mandato”. (Op. cit., p. 94).
255 Cfr. ROWLEY, op. cit., PP. 27-28.

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dato (Restatement Second of the Law of Agency ou “R2D”), cujo texto foi difun-
dido inicialmente em 1958.
Segundo a definição contida na versão mais recente da mencionada com-
pilação de antecedentes, o mandato é “uma relação de natureza fiduciária, que
surge da manifestação de vontade efetuada por uma pessoa, a fim de que
outra consinta em atuar em seu nome e sob seu controle”256. O trecho citado
permite inferir, com relativa clareza, quais são os elementos essenciais das re-
lações de mandato. Trata-se, em primeiro lugar, da subordinação do mandatá-
rio em relação ao mandante, em segundo lugar, da representação que se
materializa nos atos que o mandatário realiza em nome do mandante e, em
último lugar, do consentimento expressado por este último para o efeito257.
Sempre que estejam presentes estes elementos numa determinada relação de
negócio, poderão surgir as conseqüências jurídicas derivadas do mandato, in-
dependentemente da denominação que se houver dado ao negócio jurídico ou
do fato que o mandato coexista com outras relações258. Assim, o mandato,
longe de ser um contrato limitado por tipificações legais, pode compreender
uma multiplicidade de vínculos jurídicos259. Daí que as relações de mandato
estejam presentes em matérias tão diversas como a vinculação de trabalhado-
res260, a celebração de contratos de franquia, as relações entre administradores
e as companhias que administram etc.

256 Cfr. R2D, Seção 1. A mesma seção do R2D estabelece que a pessoa que confere a procuração
se denomina mandante, enquanto aquela que se obriga a realizá-la se chama mandatário.
257 Cfr. BAINBRIDGE, Corporation Law... cit., p. 235. O princípio subjacente às relações de
mandato provem do antigo princípio romano segundo o qual, qui facet per alium, facet per se.
Segundo este postulado, “as atuações que realize uma pessoa em nome de outra, entendem-se
realizadas diretamente por esta última” (HYNE, J. Dennis. Agency, Partnership and the LLC. St.
Paul, Minn.: West Publishing Co., 1997., p. 10).
258 “Esta relação entre mandante e mandatário pode surgir ainda que as partes não sejam conscien-
tes das conseqüências jurídicas derivadas de sua vinculação. Ademais, na verificação da
presença dos requisitos pertinentes, a relação de mandato poderia apresentar-se inclusive se as
partes a recusaram de modo expresso” (HYNES, J. Dennis, op. cit., p. 5).
259 Não se trata, pois, do negócio jurídico conhecido em alguns sistemas romano-germânicos
como agência mercantil, cuja tipificação dá lugar a conseqüências jurídicas especiais, mais
restritivas do que aquelas derivadas das relações de mandato. Para uma descrição dos princi-
pais regimes existentes em matéria da denominada agência comercial (commercial agency) e do
contrato de mandato, vide CAROLITA L. OLIVEROS, Commercial Agency Agreements, American
Law Institute, Course of Study SE47 ALIAVA 917, pp. 938-991.
260 Sob o regime norte-americano, a vinculação trabalhista se produz mediante um contrato de
direito privado, que dá lugar a uma relação de mandato. Se tal vínculo faculta ao patrono
estabelecer os meios físicos ou manuais que terá de utilizar o empregado para a realização da
respectiva obrigação, poderia configurar-se uma relação entre maestro e servente (master and
servant). Nestas hipóteses, acolheu-se a doutrina de respondeat superior, originada no Direito

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Mais ainda, em termos econômicos, a acepção do termo mandato adqui-


re maior amplitude, pois compreende toda relação na qual um indivíduo es-
pere uma contraprestação de conteúdo econômico de outra pessoa. Assim, por
exemplo, os vínculos diretos que unem aos acionistas majoritários com os
minoritários e as relações indiretas entre a totalidade dos acionistas e os tercei-
ros com os quais se vincula a sociedade (stakeholders) suscitam relações de
mandato em sentido econômico. Os problemas que se derivam destes nexos
contratuais originam conseqüências pecuniárias de significativa transcendên-
cia no âmbito empresarial. Segundo se analisou, os economistas derivaram da
análise destas relações uma teoria sobre os custos inerentes à execução de todo
mandato (agency costs)261. Assim, uma das facetas mais interessantes do man-
dato consiste no estrito regime de deveres e responsabilidade que surge entre
mandantes e mandatários, devido à existência de uma relação fiduciária entre
ambas as partes262. Estas regras de conduta se refletem em todo o regime
societário estadunidense. Uma conseqüência fundamental das relações de
mandato esta dada pelo surgimento dos denominados deveres fiduciários dos
administradores, cuja origem se encontra na interdependência entre estes fun-
cionários e os sócios de uma sociedade263. A relação fiduciária mencionada
adquire uma relevância crucial, em especial, pelo sistema de representação que

Romano. Por virtude desta antiga postulação, os atos dolosos e os fatos prejudiciais que
realiza o empregado-servente dão lugar à responsabilidade subsidiária de forma subsidiária
(Cfr. HYNES, J. Dennis, op. cit., p. 11). A adoção do princípio subsidiário a respeito dos atos
dos serventes, corresponde à consideração econômica segundo a qual se presume que o
patrono estaria em melhor disposição do que seus empregados para assumir o risco que se
deriva da atividade destes. Estima-se que o patrono poderia incluir o valor que se deriva das
indenizações a que poderia ver-se obrigado pela ação de seus trabalhadores, dentro dos custos
de produção. Assim, a comunidade assumiria, pelo menos em parte, os custos que implica a
assunção de tal responsabilidade subsidiária (Ibidem, p. 65). Sobre a aplicação da doutrina
respondeat superior, é relevante conferir o caso de Singleton International v. Dairy Queen Inc.,
Superior Court of Delaware, 332 A.2d 160 (1975).
261 Cfr. Capítulo I, supra.
262 É interessante conferir a explicação efetuada por POSNER a respeito das razões econômicas
subjacentes à existência desta relação fiduciária. O autor alude à redução dos custos relacio-
nados com as possíveis atuações oportunistas do mandatário, mediante a imposição de rígidas
regras de conduta, tais como o dever de boa fé. “O mandatário recebe uma remuneração para
que sua conduta ante o mandante se assemelhe à que observaria no manejo de seus próprios
assuntos; isto é, como se fosse o alter ego. [...]. Assim, ao impor-lhe [ao mandatário] um dever
de boa fé qualificado – mais rígido do que o princípio contratual de boa fé simples –, reduzem-
se ao mínimo os custos que implicaria proteger ao mandante dos atos abusivos do mandatário”
(Op. cit. p. 126).
263 Segundo a opinião de ROBERT CHARLES CLARK, no contexto específico das relações de
mandato entre os administradores e a companhia, “o mandante é a sociedade de capitais
considerada como uma pessoa jurídica autônoma” (Op. cit., p. 114). Para uma análise mais
detalhada dos deveres fiduciários dos administradores, vide Capítulo VI, infra.

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surge das relações entre mandante e mandatário. A possibilidade de que os


atos deste último vinculem o mandante, pressupõe a existência de regras rígi-
das que permitam regular as atividades adiantadas pelo mandatário em de-
senvolvimento de sua obrigação264. Desta maneira, tenta-se harmonizar, na
medida do possível, os interesses contrapostos de mandatários e mandantes,
com o ânimo de neutralizar, ao menos em parte, os referidos problemas do
mandato (agency problems).
Outra característica relevante do mandato, concerne às teorias relativas à
legitimação do mandatário para atuar em nome de seu mandante. Em geral,
conceberam-se dois postulados cardinais para determinar a efetividade das
faculdades de representação conferidas ao mandatário. Por um lado, a legiti-
mação real (actual authority) consiste na concessão expressa por parte do man-
dante, de poderes suficientes para vinculá-lo frente a terceiras pessoas. Assim,
o mandatário se encontra legitimado para atuar em nome de seu mandante
devido ao consentimento que este último outorgou265. Devido ao fato que a
manifestação de vontade do mandante pode efetuar-se sob diferentes formas,
a doutrina classificou a legitimação real em duas modalidades: legitimação
expressa (express authority) e inerente (implied authority)266. Assim, o consen-
timento do mandante “pode manifestar-se de maneira explícita, como, por
exemplo, quando o mandante instrui ao mandatário verbalmente ou por es-
crito a respeito das faculdades de representação que lhe foram conferidas.
Este consentimento pode ser implícito, como quando se infere de certas atu-
ações do mandante [...]. Em caso de existir legitimação real, as atuações do
mandatário que tiverem sido autorizadas vincularão a seu mandante, ainda

264 Conforme o expressado no Dicionário Jurídico Black’s, estes deveres fiduciários que surgem
para os mandatários ante seus mandantes, “constituem a mais exigentes das regras de conduta
previstas na lei” (Op. cit., p. 625).
265 HYNES, J. Dennis, op. cit., p. 99
266 Em matéria de sociedades de capital, a aplicação da teoria da legitimação inerente “se deriva
das sentenças judiciais relativas aos usos e costumes vigentes nas companhias ou das práticas
que se cumprem numa determinada companhia, sempre que os acionistas ou administradores
que são conscientes de sua existência, não as tiverem objetado” (CLARK, Robert Charles. Op.
cit., p. 115). Por outro lado, HOWELL aclara que a legitimação inerente se apresenta na maioria
dos casos em relação a todas as atuações que deva realizar um mandatário com o propósito de
dar estrito cumprimento a sua obrigação. “Uma das manifestações mais comuns da legitimação
inerente se apresenta a respeito de todos aqueles atos de natureza acessória que deva realizar
o mandatário, com o propósito de cumprir o objeto do mandato. [...]. Em matéria de legitimação
inerente deve-se levar em conta a seguinte regra: salvo estipulação em contrário por parte do
mandante, o mandatário tem legitimação inerente para realizar todas as atividades que se
estimem necessárias para dar cumprimento ao objeto geral do mandato, em conformidade com
os critérios que o costume e a lógica aconselhem”. (Op. cit., pp. 568-569).

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que o terceiro não tivesse tido conhecimento a respeito de tal legitimação, por
mais estranho que tiver resultado a concessão de poderes a um determinado
mandatário”267. Também é possível que as faculdades que tem um mandatá-
rio derivem da denominada legitimação aparente. Sob esta teoria, se o man-
dante dá a terceiros a aparência de que um sujeito tem aptidão para celebrar
negócios em seu nome, esta circunstância dará lugar a que tal pessoa possa
vincular juridicamente o mandante268.
Ora bem, a carência absoluta de legitimação real, inerente ou aparente
pode ser reparada mediante a figura da ratificação. Segundo HOWELL, por
virtude deste ato de natureza unilateral, “o mandante pode assumir os efeitos
jurídicos derivados das atuações não autorizadas que realize o mandatário,
enquanto consinta em ratificar (ou confirmar) tais atos”269. O mesmo autor
alude à diferença que existe entre a ratificação expressa e a implícita. A pri-
meira delas implica uma manifestação explícita de vontade, no sentido de
aceitar os atos realizados pelo mandatário. Por sua vez, a ratificação implícita
se apresenta se “as atuações ou manifestações verbais do mandante permitem
inferir que esteja consente em ratificar as atividades do mandatário”270.
Algumas considerações devem ser formuladas a respeito do término das
relações entre um mandante e mandatário. Neste, como em outros negócios
jurídicos no direito estadunidense, se dá plena eficácia ao convindo pelas partes
no desenvolvimento de uma ampla liberdade contratual. Nos termos da Seção
117 do R2D, “a cessação das faculdades do mandatário se regerá pelos termos
previstos no acordo existente entre mandante e mandatário para esse efeito”.
Conquanto a hipótese a que alude a seção anterior se relaciona com o término
consensual das relações de mandato, é viável que o mandante decida, de maneira
unilateral, revogar as faculdades conferidas ao mandatário. Efetivamente, “o
mandante poderá dar por finda a capacidade de representação do mandatário
em qualquer momento, ainda que esta circunstância tenha por conseqüência o
não cumprimento do contrato. Isso se deve à necessidade de que o mandante
conte em todo momento com a possibilidade de administrar seus próprios ne-
gócios e de escolher à pessoa que deva atuar em seu nome”271. Da mesma forma,

267 O’KELLEY. Op. cit., p. 36.


268 HYNES, J. Dennis. Op. cit., p. 105.
269 HOWELL, Rate A. Op. cit., p. 571
270 Ibidem.
271 HYNES, J. Dennis. Op. cit., p. 139.

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o mandatário poderá, em qualquer tempo, renunciar ao mandato outorgado272.


Contudo, é evidente que, em qualquer caso, a renúncia ou a revogação do negó-
cio jurídico concernente pode dar lugar à obrigação de indenizar àquela parte
que tiver sido prejudicada por efeito da terminação unilateral das relações de
mandato273. Além das casuais convencionais, existem outras de índole diferen-
tes, tais como a morte ou a incapacidade posterior de alguma das partes, cuja
ocorrência pode significar a revogação automática do mandato274.

A. DISTINÇÃO COM RELAÇÃO AOS CONSÓRCIOS


A sociedade de pessoas ou partnership nos países de tradição jurídica
anglo-saxão, concebe-se como uma associação de duas ou mais pessoas, que se
reúnem, em qualidade de co-proprietários, para acometer um negócio, com
uma finalidade lucrativa275.
Devido à semelhança da sociedade de pessoas em relação com outros
negócios jurídicos, é prudente distingui-la, em primeiro termo, do denomi-
nado joint venture276. A jurisprudência norte-americana qualificou este con-
trato de colaboração empresarial como “a união de várias pessoas que tentam
um benefício patrimonial mediante a exploração de um negócio específico”277.
Diferentemente da sociedade de pessoas, aquela figura se restringe à realiza-
ção temporária de uma atividade de exploração econômica plenamente deter-
minada. A semelhança existente entre ambas as formas societárias permite
formular a apreciação analógica de alguns autores segundo a qual as joint
ventures podem também ser definidas como “sociedades de pessoas criadas
para acometer uma operação específica”278. Outra diferença relevante para os
fins do presente estudo consiste na disparidade que se observa entre as solu-

272 CFR. R2D, SEÇÃO 118.


273 Sobre esta indenização é ilustrativo o comentário formulado à Seção 118 da Segunda Codificação
do Regime Jurídico do Mandato pelo Instituto Americano de Direito: “a única conseqüência
de uma cláusula contratual pela qual se tenta evitar a faculdade de dá-lo por findo pelas partes,
consistirá na indenização de prejuízos”.
274 CFR. ROWLEY, op. cit., p. 27.
275 A definição mencionada está contida na Seção 202 (a) da Nova Lei Uniforme de Sociedades
de Pessoas (RUPA).
276 A concepção mais utilizada define esta figura como uma “entidade legal encarregada de gerir
uma determina operação, orientada para fins lucrativos e cuja natureza se assemelha à da
sociedade de pessoas”. (Black’s Law Dictionary. Sixth Edition. Saint Paul, Minn.: West Publishing
Company, 1990).
277 O’KELLEY, Charles R. et al. Corporations and other Business Associations, Selected Statutes,
Rules and Forms. Boston: Little, Brown and Company, 1996, p. 65.
278 HAMILTON et al., op. cit, p. 270.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 119

ções falimentares disponíveis para cada forma societárias. A sociedade de pes-


soas, ao ser expressamente reconhecida pelo Código Federal de Falências (Fe-
deral Bankruptcy Code), está permitida de utilizar os procedimentos ali
consignados279. Um consórcio (joint venture), pelo contrário, ao não encontrar
consagração expressa nesse estatuto280, não estaria em condições de recorrer a
esse regulamento. Os membros desta empresa comum deverão então ir ao foro
falimentar de maneira independente.
As divergências discutidas não impedem, no entanto, que as normas pró-
prias das sociedades de pessoas sejam, em ocasiões, aplicáveis aos consórcios
(joint ventures). Assim, por exemplo, a relação existente entre os participantes
se rege por postulados afins aos concebidos para as sociedades de pessoas281.
As normas fiscais dos Estados Unidos também tentaram assimilar ambas as
figuras, ao dispor que, em matéria impositiva, as regras próprias das socieda-
des de pessoas serão assim mesmo aplicáveis às joint ventures. Efetivamente, a
seção correspondente do estatuto tributário estadunidense (Internal Revenue
Code) preceitua que “o termo sociedade de pessoas compreende a qualquer
grupo, joint venture ou a qualquer outra organização diferente das sociedades
de capital que se proponha acometer a exploração econômica de empresas
comerciais ou financeiras [...] O termo associado inclui às pessoas que façam
parte desse grupo, ‘joint venture’ ou organização”282.

B. A LEI UNIFORME DE SOCIEDADES DE PESSOAS


Uma das particularidades de maior relevância no estudo comparado do
regime norte-americano das sociedades de pessoas é a relacionada com as re-
gras legais aplicáveis a essa forma associativa. A importância que reveste este
tema se manifesta na relativa homogeneidade da orientação legal acolhida por
cada um dos Estados da União. Na procura dessa convergência, muitos deles
adotaram a lei uniforme que se propôs a regular a matéria283.

279 O Código de Falências se encontra incluído no Título 11 do denominado Código dos Estados
Unidos (USC), que não é senão um compêndio das leis federais desse país.
280 Cfr. Código de Falências, Capítulo 1 (101)(41).
281 Nesses termos se pronuncia KELLEY, ao afirmar que “as sociedades de pessoas e as ‘joint
ventures’ estão regulados por princípios que, apesar de não ser idênticos, são, em essência,
análogos” (KELLEY, R. et al. Corporations and Other Business Associations, Cases and Materials,
Second edit. Boston: Little, Brown and Co., 1996, p. 65). O regime particular das relações
intersocii próprias das sociedades personalistas será examinado posteriormente.
282 Cfr. “Internal Revenue Code”, Seção 7701 (a)(2).
283 Segundo se expressou, o ânimo de criar uma legislação relativamente uniforme nos Estados
Unidos deu lugar à preparação das denominadas leis tipo.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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120 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

A Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas (Uniform Partnership Act ou,


por suas siglas em inglês, UPA), redigida inicialmente em 1914, é o antecedente
mais remoto deste compêndio normativo. Seu texto original dá conta do espírito
inovador que suscitou a tendência – hoje já plenamente difundida – a
homogeneizar a legislação comercial norte-americana. Talvez por isso, nos anos
que seguiram a sua promulgação, os diferentes Estados se apressaram a submeter-
se às previsões ali contidas. Desde então, registraram-se numerosas iniciativas
para revisar e complementar esse estatuto. Em 1994, em grande parte devido
aos esforços conjuntos da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos (American
Bar Association) e de um capítulo da Conferência Nacional para a Redação de
Leis Tipo (National Conference of Commissioners on Uniform State Laws),
preparou-se a Nova Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas (Revised Uniform
Partnership Act, ou RUPA, por suas siglas em inglês). Os redatores desta proposta
normativa introduziram consideráveis comentários e modificações aos artigos
iniciais da Lei Uniforme, bem como um número significativo de comentários
explicativos. A importância de tais comentários está em sua utilidade
hermenêutica, pois pode evitar dificuldades no entendimento do sentido de
disposições ambíguas ou que dêem lugar a discussões interpretativas. Ora bem,
as reformas mencionadas se orientaram a renovar a figura estudada, de modo a
preservar sua vigência e utilidade prática frente a outras formas societárias mais
complexas. Sem se concentrar no detalhe de tais inovações, convém assinalar
como alguns Estados se abstiveram de acolher o novo estatuto (RUPA), de
maneira que preferiram manter em vigor a Lei Uniforme de Sociedades de
Pessoas (UPA)284. Disso emana também uma relativa disparidade existente, na

284 Segundo aclaram alguns autores, “Luisiana é o único estado no país que não adotou nenhuma
das versões da Lei Tipo de Sociedades de Pessoas” (MORRIS, Glenn G. et al. Louisiana Civil Law
Treatise, vol. 8, Saint Paul: West Publishing Group, 1999, p. 9). A ascendência do Direito
Privado francês e espanhol no Estado de Luisiana se refletia claramente na definição que a
respeito da sociedade de pessoas existiu até 1980 no artigo 2801 do Código Civil, o qual
definia esta sociedade como “um contrato sinalagmático e comutativo, celebrado entre dois
ou mais pessoas para a participação mútua nos resultados que podem surgir de aportes em
dinheiro, crédito ou serviço, fornecidos em determinadas proporções pelas partes” (Ibidem).
Ainda posteriormente à reforma introduzida nesse ano, o artigo citado do Código Civil de
Luisiana continua utilizando uma terminologia muito próxima à dos países de tradição roma-
no-germânica. “Artigo 2801. Uma sociedade de pessoas é uma pessoa jurídica diferente de
seus sócios, criada mediante contrato entre duas ou mais pessoas para quem contribuem seus
esforços e recursos em determinadas proporções, com o propósito de colaborar nos riscos
comuns, a fim de obter resultados comuns ou um benefício comercial” (Ibidem). O conceito de
pessoa jurídica, a ênfase na natureza contratual da sociedade e a presença de elementos
essenciais idênticos aos previstos em países de tradição civilista são clara demonstração da
identidade e especialidade do regime jurídico do Estado de Luisiana. Muito diferente, pelo

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 121

medida que a norma estudada já não resulta tão uniforme como pretenderam
seus redatores originais.
Outra menção que deve ser feita sobre o particular regime aplicável a esta
classe de companhias alude à remissão expressa que faz a citada Lei Uniforme de
Sociedades de Pessoas a outros corpos normativos. A Seção 4 dessa Lei Uniforme
dispõe que, além das previsões ali contempladas, se apliquem às sociedades de
pessoas as regras jurídicas do mandato (agency), bem como as do estoppel285. A
Nova Lei Uniforme complementou essa remissão normativa, ao ampliar a ordem
de aplicação das disposições legais pertinentes286. Portanto, naqueles Estados
que incorporaram o texto da proposta revisada dentro de sua legislação interna,
as sociedades de pessoas se regem pelo novo estatuto, pelas regras próprias do
mandato, pelos princípios jurídicos próprios do estoppel e pelas regras contidas
na Seção 1-103 do Código de Comércio Uniforme (Uniform Commercial
Code)287. O regime excepcional supletivo instaurado por ambas as leis tipo, como
será explicado mais adiante, incide em diversos aspectos relacionados com a
formação e o funcionamento da sociedade de pessoas estadunidense.

C. CONSTITUIÇÃO E OUTROS ASPECTOS RELEVANTES


Os requisitos de constituição desta forma societárias se caracterizam por
sua singeleza. Nas leis dos diversos Estados não se estabelecem significativas
restrições de forma a tal processo. Em conseqüência, o simples acordo das
partes – escrito, verbal ou inclusive tácito – costuma ser suficiente para a
criação de uma sociedade de pessoas. A orientação “consensual” do sistema é
tão notória que pode formar-se ainda naqueles casos em que as partes não são
conscientes das conseqüências derivadas do acordo explícito ou implícito que
celebram. A já citada Seção 202 (a) da Nova Lei Uniforme de Sociedades de

contrário, foi a evolução do Direito de sociedades de capital nesse mesmo Estado. Luisiana foi,
efetivamente, o primeiro dos Estados da União a adotar a Lei Tipo de Sociedades de Capital
(Model Business Corporation Act).
285 Cfr. as seções 4 (2) e 4 (3) da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas (UPA). Deve-se levar em
conta, além disso, que as regras de Direito decididas pelas cortes estadunidenses em matéria de
partnerships se originam em interpretações extensivas sobre as regras do mandato (agency). Por
outro lado, a doutrina anglo-saxã do estoppel consiste em impedir que uma pessoa que atuou
de determinada forma reclame um direito em detrimento de outro indivíduo que, por achar-se
legitimado para confiar no valor jurídico da atuação do primeiro, tenha agido em conformida-
de com ela. (Cfr. Black’s Law Dictionary, cit.).
286 Cfr. RUPA, Seção 104 (a).
287 Tratam-se das normas sobre contratos (contracts), atuações fraudulentas (fraudulent
misrepresentation) e procedimentos falimentares (bankruptcy).

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122 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Pessoas (RUPA.) estabelece, nesse sentido, que “a associação de duas ou mais


pessoas, que se reúnem em qualidade de co-proprietários, para um negócio
com uma finalidade lucrativa, constituirá uma sociedade de pessoas ainda que
não exista vontade dos sócios para conformá-la”.
Os pressupostos fáticos aos quais se aludiu constituem verdadeiras pre-
sunções legais a respeito da qualidade de sócio de uma partnership. A primeira
de tais hipóteses se configura na participação na partilha de utilidades sociais.
Apenas o feito de participar de forma simultânea com outras pessoas nos
rendimentos gerados por um determinado negócio levou às cortes norte-ame-
ricanas a presumir a existência da figura em estudo288. A administração con-
junta da empresa social ou a propriedade em comum de bens móveis ou
imóveis289 também se consideram pressupostos fáticos suficientes para admi-
tir essa presunção. Cabe ressaltar, ademais, que a presença de qualquer dessas
situações não impede que se desvirtue judicialmente a suposta existência de
uma sociedade de pessoas ou a inclusão involuntária de um sócio. O anterior
se deve ao fato que as relações analisadas poderiam ter surgido de acordos
particulares entre os supostos sócios, dos que não se poderia derivar uma rela-
ção própria das sociedades de pessoas. Corresponderá, pois, às instâncias judi-
ciais dar aplicação a tais presunções e valorizar as provas em contrário que
possam ser alegadas para desvirtuá-las.

288 Ao verificar-se a participação na partilha de resultados, as cortes podem declarar a existência


forçada de uma sociedade de pessoas, com fundamento nas regras contidas na Nova Lei Unifor-
me de Sociedades de Pessoas (RUPA), a não ser que se verifiquem as seguintes circunstâncias:
(i) Que o pagamento tenha sido feito para satisfazer uma obrigação preexistente;
(ii) Que o pagamento tenha sido efetuado como contraprestação por serviços que não
constituam uma relação trabalhista;
(iii) Que o pagamento tenha correspondido à cancelamento de quotas de arrendamento;
(iv) Que o pagamento tenha sido efetuado a título de benefícios de pensões ao beneficiário
de um sócio falecido ou retirado;
(v) Que o pagamento tenha correspondido a juros endividados, e
(vi) Que o pagamento tenha sido efetuado a título de venda do good will. Cfr. Seção 202 (c)(3).
289 A nova Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas contém uma ilustração a respeito dos bens que
fazem parte do patrimônio social. Assim, a Seção 204 deste modelo normativo estabelece que
os bens serão de propriedade da sociedade nos seguintes eventos:
(i) Quando os bens foram adquiridos pela companhia, ou por um sócio em nome desta, ainda
que não se mencione expressamente essa circunstância no título correspondente;
(ii) Quando os bens foram transferidos à sociedade a qualquer título;
(iii) Quando os bens foram transferidos aos sócios e no título correspondente se especifica o
nome da sociedade; e
(iv) Quando os bens tiverem sido adquiridos com ativos sociais, ainda que não se tiver
especificado à companhia como adquirente.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 123

Uma das controvérsias mais conhecidas no sistema societário norte-ameri-


cano, por outro lado, refere-se aos efeitos jurídicos resultantes da presença dos
elementos constitutivos da sociedade de pessoas. A discussão gira em torno de se
deve outorgar personalidade jurídica à partnership apesar de não existir formali-
dades legais para sua constituição nem um regime de responsabilidade limitada
para os sócios. Enquanto alguns sustentam que sua criação não dá origem a um
sujeito de direito diferente dos sócios individualmente considerados290, os de-
fensores da denominada teoria da personalidade jurídica da sociedade de pessoas
(entity theory) acolheram a postura contrária291.
Esta discussão parece ter se originado na confusa redação original de certas
disposições contidas na Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas inicial (UPA),
cuja ambivalência foi identificada pelos redatores da nova versão dessa lei (RUPA)292.
Por isso, nesta última se adotou a segunda das hipóteses expostas, vale dizer, que a
forma associativa estudada conta com a entidade suficiente para formar um sujei-
to jurídico autônomo e diferente de seus sócios individualmente considerados293.
Assim está claro na nova versão da Lei Uniforme, porquanto ela “recolhe a deno-
minada teoria da personalidade jurídica da sociedade de pessoas. Para corrigir as
previsões um tanto ambíguas da Lei Uniforme (UPA) sobre a natureza desta
forma associativa, a Seção 201 (a) da Nova Lei Uniforme (RUPA) acolhe a pos-
tura que gozou de aceitação generalizada no sistema jurídico [estadunidense]”294.
A aceitação parcial desta versão revisada, contudo, faz necessário ir à tradição juris-
prudencial de cada Estado, para verificar a natureza conferida à sociedade perso-
nalista. Esta diferença de critério está, pois, longe de ser superada por completo.
A vinculação de novos sócios à companhia de pessoas dá origem a outro
distintivo próprio do regime aplicável a esta classe de sociedade. Trata-se do

290 Existem vários antecedentes jurisprudenciais nos Estados Unidos que permitiriam sustentar esta
posição. Sobre o particular, pode-se conferir, por exemplo, o importante caso Randolph Products
Co. v. Manning (176 F 2d 190), onde se afirma que “ante disposições tais como o Estatuto
Tributário Federal ou a lei estatal aplicável, cujas normas negam a personalidade jurídica à
sociedade de pessoas, a postura judicial apropriada deve coincidir com tais normas legais”
(citado por ROWLEY, op. cit., p. 15).
291 HOWELL, a titulo de exemplo, adere-se aos referidos postulados ao afirmar que, “a simples
leitura do UPA permite concluir que a maioria de seus artigos se baseiam na teoria de que a
sociedade de pessoas é uma pessoa jurídica diferente dos sócios. O ponto relativo à transferên-
cia dos bens sociais por parte da companhia de pessoas constitui uma demonstração clara
desta circunstância” (op. cit., p. 91).
292 Cfr. seções 2, 8 (3) e 9 (1) da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas.
293 Cfr. Comentário à Seção 201 (a) da Nova Lei Uniforme.
294 Ibidem.

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124 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

requisito de unanimidade exigido para a admissão de terceiros295. Existe, não


obstante, uma curiosa exceção, desconhecida na tradição continental européia,
que se deriva da doutrina denominada partners by estoppel. Nos termos da Seção
308 (a) da Nova Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas, quando um sócio,
depois de ter-conferido de fato tal qualidade a terceiras pessoas, realiza negócios
jurídicos de maneira conjunta com os supostos sócios, estes ascendem, ainda
que sem intenção à qualidade de sócios. Assim, com o ânimo de precaver os
prejuízos que poderiam derivar dessa vinculação, a Nova Lei Uniforme dispõe
que o sócio e os supostos sócios respondam ante terceiros contratantes como se
efetivamente fizessem parte de uma mesma sociedade de pessoas296.
Este fenômeno jurídico é, sem dúvida alguma, uma clara amostra da apli-
cação dos postulados e princípios jurídicos do estoppel a esta forma associativa.
Para que isso ocorra, no entanto, é indispensável que os sócios ilegítimos te-
nham consentido em contratar conjuntamente297. Neste sentido se pronun-
ciou ROWLEY ao sustentar que, “como requisito fundamental para que opere
esta exceção, é indispensável que haja um ato culposo ou doloso. É bem como
estará isenta de responsabilidade a pessoa que, sem fazer parte da sociedade,
tiver sido apresentada como se fosse sócio dela sem seu consentimento e sem
que tiver incorrido numa conduta culposa ou dolosa”298.
No referente aos encargos previstos para esta forma societária, resulta
importante assinalar, por último, que “devido ao fato que os sócios estão sujei-
tos a imposto pelas utilidades que obtenha da sociedade, ainda que estas não
se distribuam, o sócio pode resultar gravado por somas que nem sequer rece-
beu”299. Assim, deve-se destacar que a sociedade de pessoas não é considerada

295 Cfr. Seção 401 (2)(i) da Nova Lei Uniforme. Como será exposto mais adiante, esta situação se
deriva do estrito regime de responsabilidade aplicável aos sócios nas sociedades de pessoas.
296 Um exemplo permitiria ilustrar esta figura com maior clareza. A e B, dois dos cinco sócios de
Alfa, junto com C, quem não ostenta essa qualidade, celebram em nome da sociedade
contratos de arrendamento financeiro sobre várias aeronaves. Apesar de não ser C sócio de
Alfa, este consente em fazer parte do negócio jurídico aludido como se ostentasse essa
qualidade. A, B e C, mediante decisão judicial, responderão então frente aos terceiros de
maneira pessoal, solidária e ilimitada, como se todos fossem sócios.
297 É interessante considerar, no entanto, que a Nova Lei Uniforme não exige que os supostos
sócios se oponham expressamente a sua indevida inclusão na sociedade. Assim, será suficien-
te que estes guardem silêncio para que não se configure a extensão de responsabilidade. Bem
diferente seria, contudo, se suas atuações permitirem concluir de maneira razoável uma
vinculação à sociedade. Neste último caso, a lei do “estoppel” seria plenamente aplicável. Cfr.
Seção 308 da Nova Lei Tipo.
298 ROWLEY, op. cit., p. 429.
299 CORLEY et al., op. cit., p. 772.

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como um sujeito de direito autônomo do ponto de vista tributário, de manei-


ra que não está sujeita ao imposto de renda federal, a não ser que ao apresentar
a declaração tributária, escolha ser tributada como uma sociedade de capital
(Check the box regulation).

D. REGIME DE RESPONSABILIDADE
A principal vantagem da sociedade de pessoas estadunidense consiste no
controle e na participação direta que os sócios poderão exercer na administração
da companhia. Como contraprestação relacionada, os sócios deverão responder de
maneira, solidária e ilimitada por certas obrigações contraídas pela sociedade300.
Antes de enumerar as circunstâncias em que se pode pregar esta classe de
responsabilidade, cabe assinalar que todas elas emanam dos postulados pró-
prios do mandato, aplicáveis às sociedades de pessoas, segundo a remissão
legal já indicada. As ações que um sócio realiza, de acordo com tais princípios,
comprometem ou obrigam todos os demais. De acordo com o esquema do
mandato recíproco (mutual agency), cada um dos sócios é mandante e manda-
tário em relação aos demais sócios301. De acordo com ROWLEY, “As regras
jurídicas do mandato são, em boa parte, o fundamento da lei aplicável às
sociedades de pessoas. [...] As conseqüências da aplicação das normas relativas
ao mandato se fazem particularmente notórias no fato de que o mandato
recíproco constitui um efeito – e em alguns casos também a prova determi-

300 Para alguns efeitos pode-se assimilar a sociedade de pessoas com a sociedade de fato própria dos
sistemas de tradição romano-germânica. Tanto a sociedade de pessoas norte-americana como a
mencionada sociedade de fato se constituem pelo simples acordo, inclusive tácito, das partes,
sem necessidade de observar formalidades como as exigidas para as demais formas societárias.
No entanto, segundo se analisou antes, naqueles Estados em que se acolhe o disposto na Nova
Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas, é possível pregar a personalidade jurídica da companhia
de pessoas. A sociedade de fato, como se sabe, não pode ser tida como uma entidade diferente
dos sócios considerados de maneira individual. Por último, o regime de responsabilidade
previsto para aquela sociedade de pessoas apresenta algumas diferenças com o sistema que
caracteriza à sociedade de fato. Na verdade, a Lei Tipo prevê que os sócios responderão de
maneira conjunta por certas obrigações contratuais da sociedade. Para uma análise mais detalha-
da da sociedade de fato, cfr. ADROGUÉ, Manuel E. Irregularidade e invalidez na constituição de
sociedade. In: Sociedades comerciais. Buenos Aires: Edições Depalma, 1997).
301 Parece prudente mencionar, nesse sentido, os diferentes tipos de legitimação que se despren-
dem dessa classe de relações. São eles a legitimação aparente, a real e a inerente. A primeira
compreende os poderes que resultam frente a terceiros, da atuação de um determinado sócio.
Trata-se, pois, de uma atitude do sócio, que faz presumir aos terceiros que aquele tem capaci-
dade para obrigar à companhia. A legitimação real, como sua própria denominação o sugere,
implica que o sócio está, na verdade, investido das faculdades que lhe permitem atuar em
nome e por conta da companhia. Por último, a legitimação inerente é a que surge da posição
que ocupa o indivíduo dentro da hierarquia administrativa da sociedade.

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126 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

nante – da existência da sociedade de pessoas”302. Ao ser cada sócio mandante


e mandatário em relação aos demais sócios, é apenas lógico que todos respon-
dam de maneira solidária pelas obrigações da companhia303. Desta circuns-
tância se valem também os que refutam a idéia de atribuir a personalidade
jurídica a esta classe de companhias. A tese permite desvirtuar a possibilidade
de que elas contem com os atributos que são derivados daquela. Se a socieda-
de de pessoas conta com a separação patrimonial derivada da personalidade
jurídica, não existiria motivo algum para estender aos demais sócios a respon-
sabilidade pelas obrigações sociais.
Por outro lado, existe uma importante diferença de índole processual
entre as disposições contidas na Lei Uniforme de Sociedade de Pessoas (UPA)
e em sua versão revisada (RUPA). Na primeira das normas aludidas, se estabe-
lecia uma distinção entre a responsabilidade atribuída aos sócios pelas obriga-
ções sociais derivadas das relações contratuais e extracontratuais. Certamente,
conforme o previsto na Seção 15 da Lei Uniforme de Sociedade de Pessoas
(UPA), o sócio que for chamado a responder por obrigações sociais de nature-
za extracontratual pode exigir que os demais sócios também sejam chamados
a responder judicialmente. Pelo contrário, na hipótese de responsabilidade por
obrigações contratuais, o sócio demandado não contava com esse benefício304.
A prerrogativa descrita no parágrafo anterior podia se converter em um
simples expediente protelatório, cuja utilização poderia significar aos credores
sociais dificuldades de natureza processual. As modificações introduzidas à
antiga Lei Uniforme (UPA) permitiram reduzir os trâmites requeridos para
fazer efetiva a responsabilidade dos sócios das companhias de pessoas305. Efe-
tivamente, na nova Lei Uniforme (RUPA) suprimiu-se o direito que tinha
um sócio demandado a exigir que os demais associados fossem chamados a
juízo. Assim, nos Estados que adotaram esta versão da Lei Uniforme (RUPA),

302 ROWLEY, op. cit., p. 27.


303 Pelo contrário, os credores pessoais dos sócios não podem perseguir bens sociais para exigir o
pagamento por partes dos outros sócios: tais credores poderiam apenas buscar a participação
societária do sócio devedor na companhia.
304 Cfr Seção 15 da antiga Lei Uniforme (UPA). Deve-se esclarecer que as atuações realizadas por
um determinado sócio fora de suas funções ou atribuições, cujo conteúdo exceda o âmbito da
empresa social, não comprometem a responsabilidade dos demais sócios (Cfr. Seções 13 e 14
da UPA e 305 e 306 da RUPA).
305 Hyne afirma, ainda, que mesmo nos Estados que optaram por conservar a Lei Uniforme de
Sociedades de Pessoas (UPA) foram introduzidas modificações tendentes a suprimir a diferen-
ça existente entre obrigações de natureza contratual e extracontratual (op. cit., p. 163).

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a demanda correspondente poderá tentar-se na contramão de um dos sócios,


sem que este possa dilatar o processo mediante o expediente de invocar a
presença dos demais sócios. “Ainda que esta diferença pareça subtil, a possibi-
lidade de solicitar a inclusão dos demais sócios no litígio respectivo pode re-
sultar custosa e até inconveniente. Nessa medida, numerosos estados optaram
por modificar suas legislações societárias, a fim de acolher-se a esta inovação
da Lei Uniforme”306.
Contudo, a nova versão da Lei Uniforme (RUPA) conserva o exigente
regime de responsabilidade solidária307. Assim, a Seção 306 (a) da Nova Lei
Uniforme (RUPA) dispõe de maneira peremptória que “os sócios são respon-
sáveis de maneira pessoal, solidária e ilimitada por todas as obrigações contra-
ídas pela companhia, a não ser que o reclamante renuncie a esse benefício ou
do que a lei assim o estabeleça”. Esta previsão, ao igual que a contida no
estatuto anterior (UPA), é de ordem imperativo e, por tanto, não pode ser
modificada mediante disposição estatutária dos sócios. Não obstante, a norma
consagra uma importante exceção ao princípio discutido, ao permitir que aquele
que formule uma reclamação ou demanda possa renunciar de modo expresso
a esse benefício respeito de um ou vários sócios. A Nova Lei Uniforme (RUPA)
estabelece, em iguais termos, que os novos sócios não responderão pelas obri-
gações contraídas anteriormente a sua vinculação à companhia308.
Além disso, deve ressaltar-se que a Seção 307 (d) da Nova Lei Uniforme
sujeita a analisada solidariedade à insuficiência dos ativos sociais para satisfazer
uma determinada obrigação. Os credores, a diferença do que ocorreria sob a
antiga versão da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas, não poderão perseguir
o patrimônio individual dos sócios enquanto não se tiver esgotado em sua tota-
lidade o ativo social. Esta inovadora assimilação a outras formas associativas309 sem

306 Ibidem.
307 Esta característica foi empregada por alguns autores para ressaltar as vantagens da sociedade de
capital em relação às companhias de pessoas. RICHARD POSNER, por exemplo, afirma que os
custos de gestão que surgem ao associar-se sob esta figura são maiores aos que resultariam de
constituir uma sociedade de capital. Assim, “na medida em cada um dos sócios é responsável
de maneira solidária pelas obrigações da companhia, os possíveis investidores procurarão
informar-se sobre a exposição do risco projetado da sociedade e ainda participar diretamente
na gestão administrativa, para evitar que se contraiam dívidas que superem sua capacidade
econômica” (op. cit., p. 429). O autor conclui por fim que esta circunstância diminui, em
grande parte, a possibilidade de obter recursos sociais por parte de terceiros investidores, o que
reduz de maneira radical os benefícios deste tipo societário.
308 Cfr. Seção 306 (b) da nova lei uniforme.
309 Pode-se mencionar, por exemplo, a “limited liability partnership”, LLP.

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128 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

dúvida está dirigida à consecução dos fins antes discutidos. Por fim, o regime
explicado não impossibilita a assinatura de pactos privados entre os sócios, ainda
que neles se estabeleçam garantias recíprocas, orientadas a evitar certos inconve-
nientes que poderiam surgir no desenvolvimento de seus negócios. De igual
forma, é possível a celebração de acordos orientados à assunção de um maior
grau de responsabilidade por parte de um ou alguns dos sócios. No entanto, o
caráter imperativo de algumas das regras contidas na Lei Uniforme, pode res-
tringir a possibilidade de incluir tais pactos nos estatutos sociais.

E. DIREITOS E OBRIGAÇÕES DOS SÓCIOS


A Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas (UPA), igualmente à versão
revisada (RUPA), inclui um amplo espectro de direitos e obrigações supleti-
vos da vontade dos sócios. Todos eles são expressões normativas dos princípios
do Common Law que encerram ambas as leis uniformes. Uma primeira mani-
festação de tais regras está contida na Seção 404 da Nova Lei Uniforme, que
inclui os conhecidos deveres fiduciários de lealdade e de cuidado. Não obs-
tante, no texto deste regulamento se limitam tais deveres de conduta para
adequá-los a esta forma societária. De tal maneira, o cuidado a que alude a
norma se circunscreve a ordenar a abstenção de condutas negligentes, dolosas
ou que violem disposições legais ou estatutárias310. O dever de lealdade se
encontra de igual forma definido, mas só faz referência aos conflitos de inte-
resses e à usurpação das oportunidades da companhia311. Uma última menção
deve ser feita a respeito do dever de boa fé, que também é mencionado na
Nova Lei312. A esta regra de conduta se sujeitam não só os sócios, mas todos os
que empreendam atividades mercantis relacionadas com a sociedade.
Outro dentre os deveres consagrados na Nova Lei Uniforme se refere, de
modo específico, à informação sobre o desenvolvimento da empresa social. As
generosas prerrogativas que concede a norma se desprendem sem dúvida do
inflexível regime de responsabilidade a que se aludiu. A possibilidade de que
um sócio enseje a responsabilidade pessoal de outros sócios levou ao legislador
norte-americano a estabelecer estritas regras rígidas de divulgação de informa-
ção. Previu-se, por um lado, que todos os suportes contábeis da companhia

310 Cfr. Seção 404 (c) da Nova Lei Uniforme (RUPA)


311 Cfr. Seções 404 (b)(1) e (2) Ibidem.
312 Cfr. secciones 404 (d) Ibidem.

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deverão ser conservados nos escritórios de administração da sociedade313. Em


relação a este dever, a Seção 403 (c) da Nova Lei Uniforme também estabelece
que a informação necessária para que os sócios possam exercer seus direitos e
obrigações sociais deve estar, em todo momento, a sua disposição. Assim o ex-
pressou ROWLEY, ao comentar que esta prerrogativa “é um efeito imediato do
direito de cada sócio de participar de maneira direta na gestão administrativa da
sociedade”314. Ademais, deve-se advertir que a inobservância deste dever pode-
ria trazer consigo a dissolução da sociedade, como conseqüência de uma rendi-
ção provocada de contas (formal accounting), figura que será estudada mais adiante.
A repartição de utilidades ou, pelo contrário, a assunção das perdas sociais,
também se encontra regulada de maneira extensa pela lei tipo. Como regra
geral, o modelo legislativo dispôs a distribuição uniforme de perdas e ganhos315.
Isso não obsta, como já foi explicado, que os sócios ajustem essa medida a sua
percentagem de participação no capital social. É possível, por tanto, que “os
sócios concordam em repartir os resultados positivos ou negativos de um exercício
contábil de qualquer maneira. É viável ainda que a distribuição de utilidades
não corresponda de forma alguma à atribuição das perdas do exercício”316. Outro
preceito contido neste estatuto modelo permite que os sócios exijam o reembolso
dos gastos em que tiverem incorrido durante o desenvolvimento da gestão da
companhia (incluídas as somas entregadas a terceiros credores para preservar o
patrimônio social)317 ou do aporte de dinheiro que supere os compromissos de
contribuição que o sócio tiver adquirido para com a sociedade318. Neste último
caso, as somas que excedam a obrigação de contribuir se assemelham a um
empréstimo que ensejará os juros correspondentes.
Existem outras prerrogativas outorgadas aos sócios, cuja importância não
deve ser desconhecida. Pode-se mencionar, por exemplo, o direito a utilizar os
ativos sociais319 ou o de recusar qualquer distribuição de resultados em espé-

313 Cfr. Seção 403 (a) Ibidem.


314 ROWLEY, Scott op. cit., p. 481.
315 Cfr. Seção 401 (b) da Nova Lei Uniforme.
316 HAMILTON, et al., op. cit., p. 265.
317 Cfr. Seção 401 (c) da Nova Lei Uniforme (RUPA).
318 Cfr. Seção 401 (d) Ibidem. A este respeito, ROWLEY sustenta que “as somas endividadas a um
sócio por ter excedido o montante do aporte de capital novo, devem ser satisfeitas em sua
totalidade antes de proceder à partilha de resultados” (op. cit., p. 465).
319 No entanto, só poderão fazê-lo em nome e por conta da companhia. Cfr. Seção 401 (g) da
Nova Lei Uniforme.

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130 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

cie320. Também se pode mencionar a prerrogativa que têm os antigos sócios de


acessar informações correspondentes ao período durante o qual fizeram parte
da sociedade321, bem como o de celebrar contratos com a companhia, em cujo
caso perderão sua qualidade de sócios, ainda que só no relacionado a esse
negócio específico322.

F. DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO
Diferentemente do que ocorre na sociedade de capitais norte-americana,
a sociedade de pessoas não é constitui por prazo indeterminado. Daí que a
sociedade se dissolva quando ocorram circunstâncias que afetem o status pes-
soal de algum dos sócios. Neste aspecto se torna evidente a semelhança com as
legislações próprias dos países de tradição romano-germânica. A legislação
francesa, por exemplo, ainda hoje permite a dissolução da sociedade por mor-
te, quebra, impossibilidade para exercer uma profissão comercial ou incapaci-
dade posterior de algum dos sócios, a não ser que sua continuação esteja prevista
pelos estatutos sociais ou que os outros sócios a decidam por unanimidade323.
Sobre este mesmo assunto, convém recordar como a Nova Lei Uniforme
(RUPA) também contempla a figura denominada sociedade de pessoas com
prazo indeterminado (partnership at will)324, cujo único fim parece ser o de
distinguir entre as companhias cuja vigência se encontra sujeita a um termo de
duração definido e as que carecem de tal prazo. Uma análise sistemática da Lei
Uniforme permite, no entanto, elucidar a utilidade desta doutrina. Na realida-
de, só nesta classe de companhias a vontade unívoca de um sócio tem a virtua-
lidade de dar por finda a empresa social325. Esta drástica circunstância se deve

320 Ao não contar as sociedades de pessoas com a possibilidade de repartir dividendos em bens,
os sócios não poderão decidir, nem sequer de maneira unânime, que isso se faça. Mais ainda,
em caso de liquidar-se a companhia, o pagamento do passivo interno poderá fazer-se somente
em dinheiro, conforme o dispõe a Seção 807 (a) da Nova Lei.
321 Cfr. Seção 403 (b), Ibidem.
322 Cfr. Seção 404 (f), Ibidem.
323 Cfr. Art. L. 221-15 do Código de Comércio francês. Naturalmente a dissolução por vencimento
do termo de duração e o término antecipado da sociedade por vontade dos sócios também
estão previstos no sistema francês, como causas generais. De novo pode-se verificar uma
aproximação análoga à adotada por sistemas inspirados no Direito europeu-continental. As
legislações de diversos países latino-americanos costumam consagrar causas de dissolução
semelhantes às comentadas.
324 Esta classe de sociedades de pessoas foi definida como “as concebidas para perdurar por
espaços de tempo indeterminados, mas cuja dissolução pode ser requerida por qualquer sócio
em qualquer momento” (Black’s Law Dictionary, at.).
325 Cfr. Seção 801 (1) da Nova Lei Uniforme (RUPA).

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claramente à incerteza que gera a indeterminação do período de existência da


companhia. Não parece razoável, pois, que os sócios se vejam vinculados a per-
petuidade com seus sócios, não obstante as dificuldades que podem derivar da
retirada injustificada da sociedade326. Então, uma solução mais apropriada te-
ria consistido em facilitar a retirada de um sócio nesses termos, mediante a
revogação das conseqüências pecuniárias que isso implica327.
Contrário sensu, as companhias cujo termo de duração tenha sido fixado
nos estatutos sociais não estarão sujeitas à causa mencionada. Para que a disso-
lução ocorra se exige o vencimento desse termo328, ou a ocorrência de qual-
quer das causais gerais de dissolução [seções 31 da antiga Lei Uniforme (UPA)
e 801 da Nova Lei (RUPA)]. Estas são aplicáveis de maneira homogênea a
todas as sociedades de pessoas. Entre elas, para efeitos deste estudo compara-
do, cabe destacar a rendição provocada de contas (formal accounting) como
causa de término do contrato que dá origem à sociedade de pessoas.
O antiquado princípio segundo o qual os sócios não poderão impetrar
ações ante a jurisdição do Common Law por conflitos intra-societarios é a
origem da figura que agora se estuda. Os redatores da Lei Uniforme quise-
ram conceder aos sócios um maior grau de proteção, frente às diferenças

326 Sobre o particular, a Nova Lei Uniforme dispõe em sua Seção 601 que os sócios poderão retirar-
se da sociedade quando:
(i) Assim o manifestem de maneira antecipada à data de sua retirada;
(ii) Aconteça alguma das causas específicas previstas nos estatutos;
(iii) Produza-se a expulsão provocada de um sócio, em conformidade com as disposições
estatutárias pertinentes;
(iv) Haja uma votação unânime para excluir um sócio, mas só nos seguintes eventos: a)
Se a continuidade do sócio constitui uma violação de disposições legais. b) Se tal sócio tiver
transferido a terceiros toda a sua participação na companhia, a não ser que o tenha feito em
virtude de ordem judicial. c) Se decorreram 90 dias a partir da data em que se notifique que a
sociedade foi dissolvida de maneira judicial ou voluntária. d) Se o sócio é uma sociedade de
pessoas e entrou em falência.
(v) Haja uma ordem judicial nesse sentido, originada em: a) Atuações de um sócio que
tenham prejudicado de maneira substancial a empresa social. b) Não cumprimento continua-
do dos deveres estabelecidos por lei ou pelos estatutos. c) Atuações de um sócio que não
permitam seguir realizando negócios de maneira conjunta.
(vi) Se o sócio é uma pessoa natural, nos seguintes casos: a) Morte do sócio. b) Nomeação
de tutor ou curador de seus bens. c) Declaração judicial de incapacidade.
(vii) Renuncia, em qualquer forma, de um sócio que não seja uma pessoa natural, uma
sociedade de capital ou um patrimônio autônomo (trust).
327 A maioria das causas de retirada antes expostas dá lugar a sanções de índole pecuniária, tais
como a não restituição dos aportes ou o não pagamento das somas devidas a título de
repartição de resultados.
328 Cfr. Seção 801 (2) da Nova Lei Uniforme (RUPA).

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132 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

suscitadas nesta classe de companhias. É esse, ao que parece, o espírito sub-


jacente ao sistema de rendição provocada de contas. Nos termos da versão
revisada da Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas, a inobservância dos de-
veres fiduciários de informação e, em geral, o não cumprimento de qualquer
outro dever dos sócios dá origem a esta prerrogativa, que pode conduzir à
dissolução e liquidação da sociedade329. Além disso, cabe recordar que se a
sociedade se dissolve, sempre poderá ser formada uma nova companhia, de
maneira que as atividades empresariais da sociedade dissolvida possam con-
tinuar serem realizadas.

G. FORMAS ESPECIAIS DA SOCIEDADE DE PESSOAS


A notória atividade mercantil dos países pertencentes à órbita do Common
Law marcou profundamente a evolução estrutural da sociedade de pessoas. O
surgimento de novas modalidades desta classe de associação contribuiu,
igualmente aos comentados esforços legislativos, à propagação de seu uso em
diversos meios empresariais.
I. SOCIEDADE COMANDITÁRIA (LIMITED PARTNERSHIP)

A limited partnership pode ser considerada como a versão anglo-saxão da


sociedade comanditária existente nas legislações romano-germânicas330. Aquela
forma associativa surgiu como uma companhia de pessoas na qual se limitava
a responsabilidade dos sócios capitalistas ao montante de seus aportes. Em
seus inícios, este tipo social costumava reger-se em vários Estados da União
Americana pelos preceitos contidos na Lei Uniforme de Sociedades de Pessoas
(UPA). A promulgação da Lei Uniforme de Sociedades Comanditárias
(Uniform Limited Partnership Act, ou ULPA) em 1916, e a correspondente
versão revisada de 1976, deram lugar a um novo meio normativo para estas
espécies societárias. Ainda que a utilização da versão revisada desta Lei
Uniforme (RULPA) tem sido reduzida, a sociedade comanditária estadu-
nidense passou a ser uma alternativa interessante em relação à sociedade de
pessoas tradicional.

329 Cfr. Seção 405 (b) da Nova Lei Uniforme (RUPA).


330 McCAHERY se referiu às razões que podem levar a um indivíduo a escolher o tipo da socieda-
de comanditária: “A sociedade comanditária é o veículo idôneo quando um ou mais sócios se
propõem assumir uma atitude passiva em relação ao desenvolvimento do objeto social, vale
dizer, quando sua participação na sociedade se limita à contribuição de recursos de capital”
(“Understanding (Um)incorporated...cit”, p. 15).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 133

É curioso observar que o esquema vigente nos Estados Unidos nesta


matéria, tem suas raízes no sistema europeu-continental331. ROWLEY ex-
plica que “a origem da sociedade em comandita não se encontra no ‘Common
Law’ inglês nem no norte-americano. Estas sociedades foram conhecidas e
aceitas pela primeira vez nos centros italianos de Pisa e Florença no século
XII, onde eram usadas pelos proprietários da riqueza, principalmente os no-
bres e o clero, como um meio para investir sua capital sem ser conhecidos ou
assinalados. O sistema se transladou rapidamente para a França e desde então
constituiu ali uma das mais importantes formas de societárias de negócios.
Dita forma societária associativa era conhecida em Florença como ‘società em
commandita’ ou provavelmente, em termos mais coloquiais, “accomenda”; em
França se denominou, em forma semelhante, ‘société em commandite’.
“O sistema de sociedades em comandita foi introduzido pela primeira
vez na América do Norte pelos franceses em Luisiana e na Florida. Em Lui-
siana se conheceu como ‘partnership in commendam’. A partir da lei nova-
iorquina de 1822, vários Estados expediram leis sobre sociedades em
comandita, de acordo com os lineamentos traçados pelo Código francês”332.
Trata-se, portanto, de uma sociedade de caráter misto, na qual participam
duas categorias de sócios submetidos a regimes jurídicos diferentes: os pri-
meiros têm a administração exclusiva dos negócios sociais e os segundos estão
separados dela, mas participam nos resultados em proporção com seus respec-
tivos aportes de capital.
Segundo HOWELL, trata-se de uma companhia “formada por duas ou
mais pessoas, de tal forma que existe pelo menos um sócio gestor (‘general
partner’) e outro comanditário (‘limited partner’). Os gestores, essencialmen-
te administram a empresa social como o fariam os sócios de uma companhia
de pessoas (‘partnership’). Os outros sócios, por sua vez, são meros investido-

331 Segundo afirmam alguns autores, “a limited partnership não existia no direito anglo-saxão. Ela
surgiu a partir da noção de sociedade em comandita, própria dos sistemas de tradição romano-
germânica, com o propósito de que uma pessoa pudesse investir recursos e compartilhar os
benefícios derivados da atividade de uma companhia, sem expor sua responsabilidade além do
montante dos aportes que tenha efetuado ao fundo social” (FOLSOM, Ralph H. op. cit., p. 250).
332 ROWLEY, op. cit., p. 550. Tanto a sociedade coletiva como a comanditária foram “no baixa
Idade Media, criação direta da nascente classe capitalista, produto dos estatutos das corporações
dos mercadores; os códigos modernos se limitaram a uma obra de simples recepção, e de
recepção totalmente formal, desde o momento que os atuais caracteres normativos destes tipos
de sociedade reproduzem, sem variações substanciais, seus caracteres originais” (GALGANO,
Francesco. As instituições da economia capitalista, sociedade anônima, Estado e classes sociais.
Barcelona: Edit. Ariel, 1990, p. 77).

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134 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

res. Estes últimos não têm maior ingerência na operação básica do negócio e
sua responsabilidade usualmente se limita ao montante de seu investimento
na sociedade”333. Naturalmente, o sócio gestor pode também participar como
capitalista e, em tal condição, fazer aportes à companhia. Nesta hipótese, de
acordo com o disposto na Seção 404 da Lei Uniforme correspondente (ULPA),
“a pessoa que seja simultaneamente sócia gestora e comanditária terá os direi-
tos e poderes e estará sujeita às restrições e responsabilidades do sócio gestor, e,
salvo o disposto no acordo de sociedade comanditária, terá igualmente os po-
deres e estará sujeita às restrições de um sócio comanditário, na medida de sua
participação na companhia como sócio capitalista”334.
Como bem afirma KANE, “um dos atrativos da sociedade em comandita,
aparte da limitação da responsabilidade dos sócios silenciosos [comanditários],
está na possibilidade de restringir a órbita do objeto social a atividades
determinadas e limitar igualmente as faculdades dos sócios coletivos que a
administram. Numa sociedade coletiva, para concluir o convênio definitivo dos
sócios, tal como terá de incorporar-se no ata de associação [‘articles of
copartnership’], requer-se um alto grau de negociação entre os sócios. Em
mudança, numa sociedade comanditária, em geral é escassa a negociação que se
apresenta a respeito dos termos do convênio. Como resultado, o texto do acordo
é notoriamente favorável aos promotores”335.
A Suprema Corte de Connecticut, no caso Clapp v. Lacey (35 Conn.
463), desentranha a natureza deste tipo de companhia ao afirmar que “encon-
tramos um claro propósito geral na legislação, orientado a incentivar o comércio,
ao permitir a um capitalista investir numa companhia cujos sócios gestores são
idôneos para os negócios, sem adquirir a qualidade de sócio coletivo nem pôr em
perigo no negócio nenhum bem, salvo o capital inicialmente contribuído”.
A constituição da sociedade a que se aludiu, assemelha-se à prevista para a
criação de sociedades capitalistas. A legislação exige o registro do documento de
constituição ante a correspondente autoridade estatal (usualmente a Secretaria
de Estado). A lei tipo desta classe de companhias (Uniform Limited Partnership

333 HOWELL, Rate A. et al., op. cit., p. 647.


334 O’KELLEY et al. Corporations and Business Associations..., cit., p. 81. A norma citada corresponde
à versão aprovada em 1976, com as modificações introduzidas em 1985.
335 KANE, Daniel R. Graduate Lectures in Law, Public Policy and the Business Environment. Washington
D.C., School of Business and Public Management, The George Washington University, 1992,
Session Eight, p. 4.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 135

Act, ULPA) estabelece a necessidade de efetuar o referido trâmite. Em confor-


midade com a Seção 201 do modelo legal, “para formar uma sociedade em
comandita deverá apresentar-se ante o escritório do Secretário de Estado a cor-
respondente ata de constituição da sociedade comanditária. O documento de-
verá conter as seguintes menções:
“1) O nome da sociedade em comandita;
“2) O endereço da sede e o nome do procurador que atenderá as noti-
ficações dos processos, segundo o estabelecido na Seção 104;
“3) O nome e o endereço comercial de cada sócio gestor;
“4) A data máxima em que a sociedade em comandita terá de dissol-
ver-se; e
“5) Quaisquer outras circunstâncias que os sócios gestores decidam
incluir no certificado”.336
Convém fazer referência à redução significativa das menções exigidas atu-
almente para a constituição de sociedades comanditárias, com respeito às reque-
ridas pela Seção 2 da Lei de 1976 (ULPA). A modificação aludida obedece à
consideração segundo a qual o documento que realmente contenha as cláusulas
relacionadas com a vida da companhia é o contrato de sociedade em comandita
(limited partnership agreement), em lugar do ata que se apresenta ante a Secreta-
ria de Estado. Naquele se inclui, além da estrutura orgânica da sociedade, as
cláusulas relacionadas com o capital e sua estrutura financeira, bem como todas
aquelas menções acidentais que os sócios desejam concordar para regular as
relações jurídicas que são derivadas da existência e funcionamento da sociedade.
Diferentemente da sociedade comanditária do sistema “latino”, nos Es-
tados Unidos não é obrigação mencionar os nomes dos sócios gestores dentro
da razão social. Basta, incluir a expressão limited partnership para dar-lhe cum-
primento à exigência prevista na Seção 102 ibidem.
II. SOCIEDADE DE PESSOAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (LIMITED
LIABILITY PARTNERSHIP)

Existe outra forma societária derivada da concepção inicial da compa-


nhia de pessoas. Trata-se da sociedade de pessoas de responsabilidade limita-

336 Ibidem, pp. 72 e 73.

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136 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

da (limited liability partnership ou, por suas siglas em inglês, LLP), um dos
tipos societários mais interessantes que se concebeu no sistema norte-ameri-
cano nos últimos anos337. As características próprias desta forma associativa
permitem que os sócios contem com prerrogativas que não têm aplicação em
outros tipos sociais. Por exemplo, diferentemente da tradicional companhia
de pessoas (general partnership), neste tipo social híbrido os sócios não são
responsáveis de maneira solidária e ilimitada por todas as obrigações sociais. A
primeira lei sobre sociedades de pessoas de responsabilidade limitada foi pro-
mulgada pelo Estado de Texas em 1991 visando proteger às companhias de
profissionais liberais – em especial, advogados, médicos e contadores – da
responsabilidade originada pelo exercício de suas respectivas profissões. Não
obstante, a norma não eximia os sócios da responsabilidade por obrigações
derivadas de causas diferentes do exercício culposo na prática profissional, de
maneira que ficavam excluídas outras modalidades de responsabilidade con-
tratual e extracontratual. Daí que nesta primeira tentativa de regular a ativi-
dade das sociedades de pessoas de responsabilidade limitada só se tenha limitado
o risco dos sócios a respeito da denominada responsabilidade por atos de ou-
tro (vicarious liability)338.

337 A origem desta forma societária nos Estados Unidos parece rememorar a discussão que deu
lugar à criação da sociedade de responsabilidade limitada no século XIX em Alemanha. No
debate legislativo correspondente, considerou-se dotar à sociedade coletiva de um sistema de
limitação de responsabilidade. Segundo PETER ULMER, no processo de adoção da denomina-
da GmbH existiam dois pontos de partida enfrentados: “O primeiro pretendia utilizar o modelo
da sociedade coletiva adicionando unicamente a limitação de responsabilidade. Tratava-se,
conseqüentemente, de um modelo claramente individualista […] O segundo modelo preten-
dia criar uma sociedade anônima ‘suavizada’ eliminando as estritas disposições sobre a
fundação” (Princípios fundamentais do Direito alemão de sociedades de responsabilidade limita-
da. Madri: Edit. Civitas, 1998, pp. 29-30).
338 Alguns dos Estados que com maior presteza adotaram as leis sobre sociedades de pessoas de
responsabilidade limitada (LLP) foram Luisiana (1992), Delaware, Carolina do Norte e Washington
(1993). Muitos outros Estados promulgaram leis similares desde 1994 até a data de hoje
(CALLISON, William L. Limited Liability Parnerships & Limited Liability Limited Partnerships, Lectric
Law Library, 1995, p. 2.). Segundo o dicionário Black’s Law, pode definir-se a expressão vicarious
liability nos seguintes termos: “esta modalidade de responsabilidade se define como aquela que
é imposta a uma pessoa por uma conduta atribuível a outra, cujo fundamento exclusivo está na
relação existente entre as duas pessoas. É a responsabilidade indireta por atos de outro; por
exemplo, a responsabilidade de um patrono pelos atos de um empregado, ou a de um mandante
pelos não cumprimentos contratuais, delitos do seu mandatário” (op. cit, p. 1566). Desde seus
inícios, a utilização do tipo societário em questão se orientou a proteger os sócios dos riscos
relacionados com a responsabilidade ocasionada na negligência dos outros sócios na prática
profissional (malpractice). Esta especial proteção é de grande valor nessa classe de sociedades,
devido ao fato que a negligência profissional constitui uma das principais causas de demandas
de responsabilidade civil extracontratual. Como já se viu, é mister distinguir a responsabilidade
derivada dos contratos (Contract Liability) daquela derivada de obrigações extracontratuais (tort
liability). Vale precisar que enquanto nas sociedades de pessoas (general partnerships), segundo a

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 137

Ainda que em seus inícios a possibilidade de constituir sociedades de


pessoas de responsabilidade limitada se limitou àquelas companhias cuja ati-
vidade de exploração econômica consistisse no exercício de profissões liberais,
na atualidade muitos Estados permitem que companhias dedicadas a qual-
quer objeto social sejam constituídas sob o regime da sociedade de pessoas de
responsabilidade limitada339.
Na atualidade, o alcance da limitação de responsabilidade nesta forma
societária depende do Estado em que a sociedade seja constituída. Algumas
legislações estaduais contemplaram, inclusive, a limitação de responsabilidade
em matéria contratual340. Em vista desta circunstância, há autores que asseguram
que se tem perdido a natureza deste tipo societário até o ponto de que é possível
assemelhá-lo com maior propriedade às sociedades de capitais que às de
pessoas341. É por isso que esta espécie de sociedade está sujeita a particulares
exigências legais, com o objetivo de preservar os direitos dos credores sociais.
Assim, por exemplo, com freqüência estas sociedades se vêem obrigadas a assinar
apólices de seguros que possam servir como garantia adicional de respon-
sabilidade ante os credores sociais. Claro que estas limitações não excluem a
responsabilidade direta que possa caber à sociedade e que, como ocorre com
outras espécies societárias, está respaldada com o patrimônio social. Daí que,
em todo caso, a sociedade de pessoas de responsabilidade limitada pode ser
demandada pelos atos e omissões de seus sócios, sempre que a origem da
responsabilidade tenha relação com a atividade e o funcionamento da sociedade.

versão revisada da Lei Tipo Uniforme correspondente (RUPA), a responsabilidade é solidária em


relação às duas modalidades de obrigações, em várias das regulações estaduais sobre a socieda-
de de pessoas de responsabilidade limitada (LLP) estabelece-se que os sócios só responderão
solidariamente pelas obrigações derivadas do não cumprimento contratual da sociedade.
339 Contudo, em alguns Estados não se permite que as companhias de profissionais elejam formas
societárias diferentes das sociedades de pessoas. Esta restrição favoreceu o auge das socieda-
des de pessoas de responsabilidade limitada para o exercício de atividades inerentes a profis-
sões liberais. Um exemplo notável da popularidade desta figura pode-se ver no Estado de
Texas, onde mais de 900 sociedades de pessoas mudaram sua forma organizativa para a de
sociedade de pessoas de responsabilidade limitada, desde que esta figura foi aceita neste
Estado. Das anteriores, ao redor de 90% eram firmas de profissionais (CODDAN CPM, What is
a Limited Liability Partnership?, Delaware Business Law, 1993 op. cit., p. 3).
340 Na verdade, várias legislações estaduais outorgam aos sócios proteção ante possíveis ações de
responsabilidade contratual, em especial, para aqueles casos em que o montante da obrigação
a cargo da sociedade, seja superior ao montante do aporte de capital efetuado pelo respectivo
sócio (Ibidem).
341 Ibidem, p. 2. Entre os Estados em que se outorga proteção a respeito de responsabilidade
contratual, contam-se Colorado, Maryland, Minnesota, New York, Oregon e Pennsylvania
(Callison, op. cit., p. 2).

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138 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Deve ressaltar-se, além disso, que o benefício de limitação de responsa-


bilidade conferido aos sócios não é absoluto. Os Estados estabeleceram causas
mais ou menos homogêneas de extensão de responsabilidade para os sócios
destas espécies societárias. Assim, quem se encontre envolvido de maneira
direta na atividade específica que deu lugar ao prejuízo, ou aquele que tiver
tido conhecimento de tal ato e não tiver realizado nenhuma ação para evitar o
seu acontecer, será responsável pelas obrigações derivadas de tais atos, de modo
solidário junto com a companhia e, possivelmente, com outros sócios342. Para
se transformarem nesse tipo societário, as sociedades regulares de pessoas só
devem formular uma solicitação (registration ou application) ante a autorida-
de estadual competente, na qual se expressa a vontade dos peticionários, no
sentido de que a sociedade seja considerada a partir desse momento como
uma sociedade de pessoas de responsabilidade limitada343. No demais, deverá
seguir-se o procedimento previsto na legislação de cada Estado.
Por outro lado, a sociedade de pessoas de responsabilidade limitada está
sujeita ao mesmo tratamento que a administração federal de impostos lhe
outorga à sociedade de pessoas que carece dessa qualificação. Portanto, a figu-
ra em questão não se encontra sujeita ao regime de dupla tributação aplicável
às sociedades de capital, a não ser que opte por declarar renda como se fosse
uma delas344.
Apesar dos benefícios que foram analisados, alguns autores consideram
que esta forma societária não oferece tantas vantagens como as que se espera-
ria ao se efetuar uma análise preliminar. Por isso, estimam que a figura poderia
não ser tão aconselhável como parece a primeira vista345. Alega-se, efetiva-
mente, que nestas companhias se apresenta um desestímulo a respeito do
exercício de uma rígida vigilância e controle de uns sócios sobre outros. Isso se
deve, em primeiro termo, à limitação de responsabilidade pelos atos de outros
sócios. Certamente, na tradicional sociedade de pessoas, a inexistência deste
benefício constitui um incentivo para supervisionar as atuações de cada um

342 RICH, Bruce A. A New Form of Partnership: the Registered Limited Liability Partnership. In:
CPA Journal, agosto, 1993, p. 4.
343 A partir desse momento, a sociedade deverá identificar-se com seu nome seguido do tipo
societário que se elegeu: Limited Liability Partnership ou Registered Limited Liability Partnership,
por suas siglas LLP ou RLLP.
344 Cfr. Capítulo VIII, infra.
345 Cfr. SAAB, Susan. Potential Pitfalls of pacticing as a Limited Liability Partnership. In: Business
Law Today, vol. 12, nº 3, 2003, Chicago, American Bar Association, p. 46.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 139

dos sócios. Na medida que todos respondem em forma solidária pelos atos dos
demais, cada um dos sócios se verá inclinado a exercer a referida vigilância.
Pelo contrário, nas sociedades de pessoas de responsabilidade limitada, bem
como nas companhias de capital, a limitação de responsabilidade elimina a
necessidade de supervisionar a atividade dos demais sócios346.
Outro argumento que dá notícia os detratores desta classe de companhias
consiste no fato que a eliminação da responsabilidade solidária pode criar con-
flitos entre os sócios347, problemas financeiros ou inconvenientes ante terceiros,
toda vez que a companhia pode estar sub-capitalizada para cumprir com suas
responsabilidades ante seus credores.
III. SOCIEDADE COMANDITÁRIA COM RESPONSABILIDADE LIMITADA DOS
SÓCIOS GESTORES (LIMITED LIABILITY LIMITED PARTNERSHIP)

Uma das mais recentes modalidades societárias existentes na legislação


norte-americana é a forma híbrida que resulta ao agregar aos gestores de uma
sociedade em comandita o benefício de limitação de responsabilidade (limited
liability limited partnership ou LLLP, por suas siglas em inglês). Nos Estados
nos quais se acolheu esta espécie societária, a formação e o funcionamento da
companhia se rege, em geral, pelas disposições próprias da sociedade coman-
ditária. Uma vez constituída, nem os comanditários nem os gestores assumem
responsabilidade alguma pelas obrigações sociais.
As leis existentes sobre o particular consentem, ademais, na transforma-
ção de sociedades comanditárias que já se encontrem constituídas nesta nova
modalidade associativa348. Claro que a transformação não afeta, de forma al-
guma, as responsabilidades assumidas pelos gestores anteriormente à adoção
da nova roupagem jurídica.
Ainda que possa parecer de grande audácia para juristas formados na
tradição romano-germânica, deve-se reconhecer que por meio de certas mo-
dalidades de sociedade comanditária existentes nos países europeus e latino-
americanos pode-se obter resultados muito similares aqueles que se conseguem

346 Paradoxalmente, a circunstância de reduzir-se os custos de supervisão é vista como uma das
principais vantagens que surgem do sistema de limitação de responsabilidade na sociedade de
capital (Cfr. Capítulo V, infra).
347 Os sócios que não são pessoalmente responsáveis pelas dívidas da companhia poderiam ver-
se inclinados a abandoná-la, em detrimento dos interesses sociais.
348 Assim, por exemplo, pode-se ver a Lei Nº 852 do 5 de abril de 1996, promulgada no Estado
de Geórgia.

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mediante as LLLP. Tal seria o caso, por exemplo, da sociedade comanditária


na qual o gestor é uma sociedade anônima ou uma companhia de responsabi-
lidade limitada, cujo capital é exíguo e insuficiente para cobrir as obrigações
ante terceiros. Este esquema societário confere também vantagens a quem
controla a sociedade gestora, já que obtém o privilégio exclusivo de adminis-
trar à sociedade em comandita, sem expor seu risco além do contribuído; os
comanditários, por sua vez, ficam excluídos da gestão dos negócios sociais e
assumem um risco que se restringe ao montante do contribuído; os terceiros
se atêm, para garantia de seus créditos, à quantia do patrimônio da sociedade
em comandita somado ao da companhia gestora. Estes valores mobiliários
determinam o limite de garantia dos passivos sociais. Como é também evi-
dente, igualmente a como ocorre nas sociedades comanditárias com responsa-
bilidade limitada dos gestores (LLLP), o patrimônio dos sócios não é afetado
pelas obrigações da sociedade com terceiros.

3. A SOCIEDADE DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (LIMITED


LIABILITY COMPANY)
É interessante verificar que a sociedade de responsabilidade limitada
constitui uma novidade nos Estados Unidos. Apesar de esta forma societária
existir há mais de um século nos países de tradição Romano-Germânica, faz
pouco que se estabeleceu no sistema norte-americano349. Claro que a carência
deste tipo de sociedade tinha sido preenchida pela sociedade de capitais fe-
chada, cujas características são muito parecidas às da sociedade limitada350.
Esta forma societária se caracteriza por ter elementos próprios das socie-
dades de pessoas e das de capitais351. É, em certo sentido, uma forma híbrida

349 Introduzida pela primeira vez nos Estados Unidos pelo Estado de Wyoming em 1977. Na
atualidade, os 50 Estados da União Americana, além do Distrito de Colúmbia, contemplam à
sociedade de responsabilidade limitada dentro de suas leis (BURNHAM, William. Introduction
to the Law and Legal System of the United States, West Group, Minnesota, 2002, p. 571).
350 No entanto, também existem diferenças notórias entre a sociedade limitada e a sociedade de
capitais fechada (Cfr. KEATINGE, Robert. The Limited Liability Company: A Study of the
Emerging Entity. In: The Business Lawyer, vol. 47, fevereiro de 1992, p. 382). De acordo com
BURNHAM, a sociedade de responsabilidade limitada oferece vantagens significativas, a
respeito da gestão dos negócios sociais em relação ao regime jurídico aplicável às sociedades
de capital fechadas (closely held corporations). Certamente, as disposições legais que gover-
nam a administração destas últimas costumam ser rígidas, pois estabelecem hierarquias entre os
acionistas, diretores e executivos” (Op. cit., p. 571).
351 SOLOMON e PALMITER definem acertadamente a este tipo societária como “um híbrido entre as
sociedades de pessoas e de capitais. Igualmente às sociedades de pessoas, os sócios desta

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na qual se conjugam caracteres que conferem relevância ao intuitu personae e a


elementos que denotam claramente a presença do intuitu pecuniae. Contudo,
nela não se apresenta, como nas sociedades comanditárias, uma coexistência
de sócios sujeitos a regimes jurídicos diferenciados.
Talvez o estímulo fundamental pelo que se introduziu esta forma societá-
ria no sistema estadunidense esteja no regime tributário aplicável a esta espécie
de sociedade. Efetivamente, a sociedade de responsabilidade limitada está sub-
metida a um sistema de tributação similar ao aplicável à sociedade de pessoas
(partnership). Diferentemente de como ocorre com a sociedade de capitais, nesta
não existe a denominada dupla tributação. Isto significa que a administração
fiscal dos Estados Unidos (Internal Revenue Service, IRS), eximiu estas compa-
nhias do pagamento de impostos federais. Os resultados que distribuam estas
sociedades estão sujeitos a encargos tributários sob responsabilidade de cada um
dos sócios. Estes últimos, além de estar obrigados a pagar ditos tributos, têm a
possibilidade de fazer valer as deduções ou isenções que tiverem gerado em
favor da sociedade.
Nos inícios da sociedade de responsabilidade limitada, a administração
federal de impostos verificava se uma entidade deste tipo não estivesse estrutu-
rada como uma companhia de capitais, como requisito para determinar que se
encontrava isenta do regime de dupla tributação. Para essa análise, levava-se em
conta o fato de não coincidir nela as características próprias das sociedades
capitalistas (corporations). Caso depois de cumprir tal análise se concluísse que,
apesar de ter sido constituída como sociedade de responsabilidade limitada,
coincidiam mais de duas características próprias das sociedades de capitais, ela
era tratava como uma delas, de maneira que ficava sujeita à dupla tributação352.
Na atualidade, a administração de impostos modificou o mecanismo
anterior de classificação tributária. Esta determinação administrativa permitiu

espécie societária lhe fornecem recursos de capital, ao mesmo tempo em que estão facultados a
gerir os negócios sociais em conformidade com seu objeto social. Do mesmo modo, existem
restrições significativas à transferência das quotas sociais. Igualmente às sociedades de capital, os
sócios não são pessoalmente responsáveis pelas obrigações sociais” (Corporations..., cit., p. 20).
352 As características mencionadas foram estabelecidas pela administração de impostos para deter-
minar se um sujeito constituído sob alguma das legislações estaduais, independentemente da
denominação que lhe tiverem atribuído seus associados fundadores, podia ser considerado
como sociedade de capitais e, conseqüentemente, submeter-se ao regime de tributação em dois
níveis. Tais características ainda hoje são a duração indefinida, a administração centralizada, a
limitação da responsabilidade dos sócios e a livre negociação das participações de capital (cfr.
HYNES, J. Dennis. Agency, Partnertship and the LLC. Minn.: West Publishing Co., 1997, p. 219).

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a consolidação desta figura como uma forma societária autônoma. Permite-se,


efetivamente, que os contribuintes determinem, de modo voluntário, se irão
classificar à sociedade de responsabilidade limitada, para propósitos tributários,
como entidade societária de pessoas ou de capitais. Assim, os interessados
escolherão o mecanismo de tributação segundo as necessidades específicas da
companhia (check the box regulation). É lógico que as conseqüências da
determinação que se adote sobre este particular se circunscrevem aos aspectos
relacionados com a tributação federal. Para os demais efeitos legais, a companhia
manterá em seus assuntos jurídicos internos e externos as características próprias
de uma sociedade de responsabilidade limitada353.
Ressalte-se que o auge desta modalidade de associação mercantil se deve
no sistema estadunidense às suas vantagens tributárias. Ao poder se enquadrar
no sistema impositivo próprio das sociedades de pessoas, o sujeito passa a ser
um mero declarante de rendas. Assim, se impõe à sociedade o dever de apre-
sentar uma declaração de renda ante a administração tributária, sem que isso
implique a obrigação de pagar tributos sobre tais rendimentos. Na verdade,
quando estes são transferidos aos sócios, ocorre uma repercussão tributária, por
virtude da qual eles são obrigados a declarar as rendas obtidas e a pagar os
tributos correspondentes. A este sistema impositivo – conhecido como tras-
passo da tributação (pass-through taxation) – deve atribuir-se a popularidade
crescente no sistema legal estadunidense do tipo societário que se analisa. Aqueles
que acolhem esta modalidade de associação mercantil terão a possibilidade de
contar com o benefício da limitação de responsabilidade, próprio das socieda-
des de capital, sem ver-se sujeitos ao oneroso regime tributário aplicável a esta
classe de companhias. Sobre este particular se reconhece na doutrina estaduni-
dense que “a enorme preferência de que goza esta forma societária está na
existência de normas tributárias favoráveis, tais como a exoneração do regime
da dupla tributação; estas circunstâncias se unem ao interesse de pequenos
investidores de utilizar o benefício de limitação de responsabilidade e à vonta-
de de vários Estados de criar um ambiente atraente para os negócios”354.
A disparidade normativa que se fez patente posteriormente à inclusão
desta forma societária em vários dos Estados da União Americana tornou evi-

353 Para mais informação, cfr. o artigo editado pela Administração Federal de Impostos intitulado
“Tax Issues for Limited Liability Companies”, em Publications, IRS, 2003.
354 KEATINGE. The Limited Liability Company..., cit., p. 378.

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dente a necessidade de promulgar uma lei tipo, de modo a criar certa homoge-
neidade a respeito das regras e princípios aplicáveis às sociedades de responsabi-
lidade limitada. A expedição da lei tipo correspondente em 1996 (Uniform
Limited Liability Companies Act ou, por suas siglas em inglês, ULLCA) também
permitiu preencher certas lacunas jurídicas que existiam em algumas das legis-
lações estaduais sobre a matéria.
Sem dúvida a principal característica desta forma associativa é, precisa-
mente, o regime de limitação de responsabilidade. Igualmente a o que ocorre
nos países de tradição romano-germânica, os sócios só arriscam o montante de
seus respectivos aportes. Esta limitação de risco se estende, em princípio e
salvo as exceções previstas em certas leis estaduais, às obrigações sociais deriva-
das tanto de responsabilidade contratual como extracontratual da sociedade.
Naturalmente que a separação patrimonial que se produz posteriormente à
constituição da sociedade não impede aos credores pessoais dos sócios perse-
guir a participação de capital que estes tenham na companhia.
O princípio da limitação de responsabilidade tem como conseqüência o
verdadeiro desamparo em que ficam os terceiros credores, quem, como é óbvio,
só contarão com as proteções societárias derivadas das regras sobre publicidade,
partilha dos resultados e dissolução da sociedade sob certas circunstâncias. É
por isso que algumas das leis estatais sobre este tipo de sociedade consagram
estas proteções mediante normas de caráter imperativo, cuja revogação por acor-
do privado das partes não é viável.
Outro avanço significativo dentro da moderna regulação da sociedade de
responsabilidade limitada tem a ver com a liberdade de estipulação que se dá
em relação ao objeto social. Antes da vigência da Lei Tipo de Sociedades de
Responsabilidade Limitada (ULLCA), existia controvérsia a respeito da pos-
sibilidade de acometer certas atividades restritivas por meio de uma sociedade
de responsabilidade limitada. No entanto, a Seção 112 da citada lei acabou
com a incerteza naqueles Estados que a acolheram, ao permitir a formação de
sociedades limitadas para a realização de qualquer objeto lícito, de maneira
que a sociedade goza de capacidade para celebrar todos os negócios e ativida-
des que sejam necessários e conformes com seu objeto social355.

355 A Seção 201 da Lei Tipo estabelece a personalidade jurídica desta figura como “legalmente
diferente de seus sócios, quem, em geral, não são responsáveis pelas dívidas, obrigações e
responsabilidades da companhia”.

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A Lei Tipo não exige pluralidade356 para a constituição das sociedades de


responsabilidade limitada357. Igualmente a como ocorre com as sociedades de
capital, exige-se a confecção de um “ata de constituição” (articles of organization),
cujo texto deve ser apresentado ante o funcionário estatal competente. Uma vez
que tal trâmite se cumpriu, surge a personalidade jurídica da companhia. A
certificação emitida pelo funcionário governamental competente atua como uma
presunção de Direito a respeito da existência da sociedade. No ata de constitui-
ção devem ser incluídas menções tais como o nome da companhia358, seu domi-
cílio, o nome e o endereço dos fundadores e de seu procurador inscrito, bem
como o termo de duração359.
A estrutura orgânica da sociedade de responsabilidade limitada do sistema
norte-americano é muito semelhante à presente no modelo que existe nos paí-
ses de tradição romano-germânica. Trata-se de um esquema de gestão leviano
em que os sócios exercem tanto as funções de direção como as de administração
da sociedade. Na assembléia ou reunião de sócios as determinações da compa-
nhia são adotadas por maioria absoluta dos sócios presentes360. Assim, cada só-
cio tem idênticos direitos de voz e voto nas reuniões desse órgão colegiado. O

356 Ao permitir que a sociedade de responsabilidade limitada possa ser constituída por um só
indivíduo, o regulamento estadunidense formula um desenvolvimento pragmático ante o
velho sistema teórico de Direito positivo, de origem romano-germânica, de onde provem
originalmente esta figura societária. Claro que nos países da União Européia também se
admitiu a limitada de um só sócio, em desenvolvimento da Décima Segunda Diretiva Comu-
nitária em matéria de sociedades de capital individual. Segundo informa ANTONIO RONCERO
SÁNCHEZ, “até o momento da incorporação da 12ª Diretiva ao Direito espanhol pela LSRL [Lei
de Sociedades de Responsabilidade Limitada], a mesma já se produziu na prática totalidade
dos países membros da União Européia (o prazo para a adaptação finalizou o 31 de dezembro
de 1991)” (A sociedade de capital individual. In: Direito de sociedades de responsabilidade
limitada, t. II. Madri: Edit. McGraw Hill, p. 1128).
357 A possibilidade de que as sociedades limitadas possam ser constituídas por uma só pessoa
representa um grande avanço neste regime jurídico. Este preceito permite que os empresários
individuais (sole propietorships) obtenham o benefício da limitação de responsabilidade sem
necessidade de ir à rígida forma societária de capitais (Seção 202 ULLCA). No entanto, há que
anotar que, para efeitos tributários, as sociedades de responsabilidade limitada de um só
indivíduo são tributadas de maneira diferente daquelas formadas por duas ou mais sócios (cfr.
IRS “Tax Issues for Limited Liability Companies”, op. cit. p. 4).
358 O nome da sociedade de responsabilidade limitada deve vir acompanhado da indicação a
respeito do tipo societário que a identifica (Limited Liability Company) ou de suas siglas em
inglês (LLC, LC ou LTD.): Seção 105 ULLCA.
359 Tal como ocorre nas sociedades de capital, a ata de constituição se diferencia dos estatutos
sociais (conhecidos na terminologia anglo-saxão como by laws). Neles deve-se especificar, em
detalhe, quais serão as atividades de exploração econômica as quais se dedicará a sociedade,
bem como as normas de funcionamento interno da companhia. (Seção 203 ULLCA).
360 Não obstante, algumas decisões da companhia devem ser tomadas por unanimidade, tais como
1. a reforma dos estatutos; 2. a reforma das menções contidas no ata de constituição; 3. A
admissão de um novo sócio, e 4. A decisão de dissolver a companhia [Seção 404 (c) ULLCA].

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regime normativo contido na Lei Tipo de Sociedades de Responsabilidade Li-


mitada é, no entanto, dispositivo, no ponto da administração e representação da
sociedade, de maneira que é viável delegar a gestão social a algum deles ou,
inclusive, a um terceiro. Neste último caso, entende-se que os sócios exercem
indiretamente a gestão da companhia, por intermédio de gestores temporários e
revogáveis (manager-managed company). Naturalmente que este sistema impli-
ca a denominada administração centralizada da sociedade. Este último aspecto
tinha a desvantagem de que a organização do tipo societário pudesse asseme-
lhar-se às sociedades fechadas de capital361.
Isso se devia à configuração de mais dois elementos próprios da socieda-
de de capitais (que poderiam ser a duração indefinida, a limitação de respon-
sabilidade e a administração centralizada). Se tal coisa ocorresse, assumia-se o
risco de que a sociedade fosse tratada pela administração federal como uma
companhia capitalista, de maneira a acabar submetida a dupla tributação. No
entanto, devido à inovadora política, já mencionada, da administração federal
de impostos, a sociedade de responsabilidade limitada permite aos interessa-
dos escolher a forma de tributação aplicável, independentemente das caracte-
rísticas antes aludidas.
O regime de contribuições dos sócios também é revelador da flexibilida-
de do tipo societário que se estuda. As normas permitem, efetivamente, que se
realizem aportes em dinheiro, em serviços ou em bens susceptíveis de valora-
ção pecuniária. Como é óbvio, a obrigação de pagar os aportes ao fundo social
pode fazer-se valer pela sociedade mediante execução coativa. Esta obrigação
também é transmissível mortis causa, de maneira que os herdeiros ficam obri-
gados a entregar à sociedade o bem prometido ou, em sua ausência, a compen-
sar em dinheiro o aporte deixado de receber pela sociedade362. Ainda que seja
viável estipular uma participação nos resultados proporcional aos aportes de
capital efetuados ao fundo social, a regra supletiva existente sob a Lei Tipo
determina que os benefícios sociais devem ser distribuídos em dinheiro em
partes iguais entre os sócios. Os sócios não estão obrigados a receber os lucros
em espécie. Um direito correlativo ao pagamento dos resultados sociais é o
que se refere à fiscalização individual (right of access). Cada sócio conta com a
prerrogativa de acesso aos livros de contabilidade e os restantes registros con-

361 Seção 203 ULLCA.


362 Seção 401 ULLCA.

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146 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

tábeis a qualquer tempo e sem que se requeira autorização prévia por parte
dos demais sócios363.
O Capítulo 5 da Lei Tipo regula a forma em que se divide o capital da
sociedade de responsabilidade limitada. Nas normas correspondentes se esta-
belece que este se dividirá em participações sociais (distributional interest),
cuja alienação total ou parcial por parte de seu titular se sujeita ao consenti-
mento unânime dos sócios. No entanto, existe uma interessante particulari-
dade no regime normativo da cessão da participação social. A transferência de
participação não faculta per se ao terceiro adquirente tomar parte na adminis-
tração da companhia. Assim, tal operação apenas dá direito a participar nos
resultados sociais de maneira proporcional à percentagem que tiver sido obje-
to de transferência364.
Por último, é relevante considerar as causas de dissolução da sociedade de
responsabilidade limitada previstas na Seção 801 da Lei Tipo. Segundo a norma
citada, a sociedade se dissolverá quando ocorre qualquer das seguintes circuns-
tâncias: 1. A ocorrência dos fatos previstos nos estatutos; 2. Decisão dos sócios; 3.
Por ter-se incorrido em ilegalidade no manejo da sociedade, se as causas que a
originaram não se reparem dentro dos 90 dias seguintes ao fato respectivo; 4.
Pela transferência da totalidade da participação de capital de um sócio, cuja ati-
vidade seja indispensável para o funcionamento normal da sociedade; 5. Por
ordem judicial, e 6. Pelo vencimento do termo de duração da sociedade.

4. A SOCIEDADE DE CAPITAIS (CORPORATION)


A Suprema Corte do Estado de Missouri, no caso Jones v. Williams
ECT al. (139, Mo 1, 39 S.W. 486, 490, 1897), definiu esta forma societária
como “um ente artificial que existe só por ministério da lei; uma entidade
jurídica, uma pessoa fictícia dotada de capacidade legal para adquirir e alienar

363 Seções 405 a 408 ULLCA.


364 Contudo, considera-se que a transferência da totalidade da participação societária por parte de
um dos sócios implica a retirada efetiva do cedente (dissociation) e, possivelmente, a ocorrên-
cia de uma causa de dissolução, caso quem se separa da companhia cumprisse atividades
fundamentais para o funcionamento da sociedade (cfr. Capítulo 6 ULLCA). Disse-se que a
forma de dividir o capital na sociedade de responsabilidade limitada é uma das maiores
desvantagens desta forma societária em relação às sociedades de capital. BURNHAM opina
que a circunstância de que as participações societárias não sejam negociáveis em bolsa,
constitui uma restrição significativa para acessar os recursos nos mercados de capitais; esta
limitação impede, em grande parte, o crescimento econômico da companhia de responsabili-
dade limitada (cfr. op. cit., p. 571).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 147

bens e para acometer atividades de exploração econômica como se fosse uma


pessoa natural. Está composta de um número de indivíduos e autorizada para
atuar como se eles fossem uma só pessoa. Os sócios individualmente conside-
rados são as partes constituintes por meio de cuja inteligência, juízo e arbitra-
riedade a sociedade atua”365.
De acordo com a autorizada opinião de CLARK366, a sociedade capita-
lista (corporation) é a forma prevalecente para realizar atividades empresariais
nos Estados Unidos367. Assim, enquanto no começo do século XIX a maior
parte da atividade econômica dos particulares era desenvolvida mediante esta-
belecimentos de comércio e sociedades de pessoas, na atualidade a grande
maioria dos rendimentos provenientes de tais atividades se obtêm por meio de
sociedades de capitais368. Segundo o mesmo autor, apesar de que em épocas

365 A definição de sociedade anônima no direito brasileiro, segundo CARVALHOSA, é a seguinte:


é uma “pessoa jurídica de direito privado, de natureza mercantil, em que o capital se divide em
ações de livre negociabilidade, limitando-se a responsabilidade dos subscritores ou acionistas
ao preço de emissão das ações por eles subscritas ou adquiridas” (CARVALHOSA, Modesto.
Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 1º vol., 5ª ed. Editora Saraiva, 2009, p. 4). Sobre
as origens da sociedade de capitais, convém citar a autorizada opinião de GALGANO: “A
sociedade anônima é desde sua primeira aparição a forma jurídica da grande empresa. As
primeiras grandes empresas da era moderna, as companhias das Índias do século XVII, são ao
mesmo tempo a primeira forma de sociedade anônima; nelas aparecem pela primeira vez, os
caracteres próprios deste tipo de sociedade: a limitação da responsabilidade dos sócios e a
divisão do capital social em ações” (op. cit., p. 77). A evolução do Direito Societário “se
observa especialmente na famosa East Índia Company, criada em 1600 por uma cédula real
que lhe conferia o monopólio do comércio com as Índias. Depois, em 1692, se proibiu aos
sócios dedicar-se a uma atividade comercial particular. Desde este momento, os membros da
sociedade não teriam outro interesse na companhia, diferente do interesse comum. A socieda-
de dominante formada naquele tempo corresponde àquela que tanto nessa época como na
atual se denomina uma sociedade em mão comum (joint estoque company)” (TUNC, André.
Lhe Droit Anglais...cit., p. 6).
366 CLARK, Robert Charles, op. cit., p. 1. Segundo informa CATÁ, “as sociedades de capital
constituem a principal forma societária na maior parte do mundo industrializado. Esta figura
surgiu no século XIX, na medida em que os particulares necessitavam de meios propícios para
gerar riqueza mediante a concentração de capital e a organização de insumos produtivos”
(BAKER, Larry Catá, op. cit., p. 3). “A grande sociedade anônima moderna é uma inovação
muito recente. Até cerca de cento vinte e cinco anos, as sociedades anônimas inspiravam as
maiores suspeitas. Ao desencadear a febre especulativa que se apoderou da Inglaterra no
começo do século XVIII, a South Seja Bubble de Londres atraiu o descrédito sobre as socieda-
des por ações” (GALBRAITH, John Kenneth. Introdução..., cit., pp. 80-81).
367 Também EDER afirma que “o processo muito simples requerido para a constituição das socie-
dades de capital, somado ao benefício de limitação de responsabilidade, fazem que esta forma
societária seja a favorita dos empresários estadunidenses” (EDER, Phanor. A Comparative
Survey…, cit., p. 136).
368 E é razoável que assim seja, porque, certamente, a estrutura flexível da sociedade de capitais
permite um grau eficiente de adequação aos variados interesses dos empresários. ROBERT W.
THOMPSON assinala como as leis societárias estaduais conferem aos particulares a liberdade
para escolher regras gerais para organizar o funcionamento de uma sociedade, mediante um
processo singelo que implica apenas apresentar uma ata de constituição ante a Secretaria do

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148 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

recentes “existiam somente cerca de três milhões de sociedades de capitais


ativas (em comparação com uns treze milhões de estabelecimentos de comér-
cio e um milhão de sociedades de pessoas), as sociedades de capitais canaliza-
vam aproximadamente oitenta e nove por cento do total dos rendimentos
derivados das atividades de negócios”369.
Ainda que o grau de concentração de capital nas companhias norte-
americanas seja muito menos acentuado do que nos denominados mercados
emergentes, é evidente, em todo caso, que o mesmo fenômeno também seja
visível, em certo grau, nos Estados Unidos370. EISENBERG apresenta esta-
tísticas sugestivas sobre o particular, como pode-se verificar na tabela que
transcrita adiante371. Esta mostra estatística permite comprovar que, para a
época em que se tomaram os dados, a sociedade capitalista fechada seguia
sendo notoriamente mais numerosa do que a companhia inscrita em bolsa de
valores mobiliários. Não obstante, a importância econômica da grande socie-
dade capitalista norte-americana é apreciável tanto em termos de ativos e ren-
dimentos como dos impostos que pagos ao governo federal e às administrações
tributárias estaduais372.

Estado correspondente: “Na maioria de Estados basta indicar na ata constitutiva o nome da
sociedade, o número de ações autorizadas e outras menções básicas” (Corporations and Other
Business Associations, Cases and Materials. Boston: Little, Brown and Company, 1996, p. 175).
369 CLARK, Robert C. op. cit., p. 1.
370 EISENBERG concluiu que, “existe informação substancial que demonstra um grau significativo
de concentração de capital social ainda onde menos se esperaria, isto é, nas companhias de
maiores dimensões” (EISENBERG, Melvin Aaron. The Structure of the Corporation, A legal
Analysis. Boston, MA: Little, Brown and Company, 1976, p. 45).
371 Ibidem, p. 42.
372 De acordo com HAMILTON, “só em 1984, as 100 sociedades abertas de maior dimensão nos
Estados Unidos eram titulares de cerca de quarenta e nove por cento dos ativos do setor
industrial; dentro delas, as 200 maiores possuíam sessenta por cento” (HAMILTON, op. cit., p.
14). Por sua vez, ENGRACIA ANTUNES fornece a seguinte informação estatística: “o caso os
Estados Unidos de América é ilustrativo, já que já na décadas de oitenta existiam mais de dois
milhões setecentas mil sociedades anônimas, frente a doze milhões de empresas individuais e
um pouco mais de um milhão de sociedades de pessoas (‘partnerships’). Protótipos deste
fenômeno são as grandes sociedades anônimas norte-americanas (‘public corporations’). Estas,
por si sós, contam com mais de trinta milhões de acionistas, sendo as maiores as seguintes
sociedades: AT&T (com três milhões de acionistas), Geral Motor (um milhão trezentos mil),
Standard Oil (oitocentos mil), IBM (quinhentos oitenta e sete mil) e Geral Electric (quinhentos
vinte e um mil)” (Direito das sociedades comerciais..., cit., p. 107).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 149

Ora bem, a sociedade capitalista do sistema norte-americano se submete


a um regime jurídico diferenciado a respeito do aplicável às demais formas
societárias373. Desse tratamento legal se derivam características diferentes quan-
to a sua constituição, funcionamento e extinção. É claro dentro deste regula-
mento que, diferentemente da sociedade de pessoas (partnership), a companhia
em estudo não pode ser criada mediante um acordo informal dos sócios. Para
sua constituição deve-se, portanto, cumprir as formalidades legais próprias do
denominado processo de constituição (incorporation). Como se analisará em
detalhe mais adiante, a subscrição da ata de constituição ante o corresponden-
te funcionário oficial e a aprovação que este dá a esse documento cria a perso-
nalidade jurídica da sociedade de capitais.
Segundo EASTERBROOK e FISCHEL, “a legislação societária está in-
tegrada por uma série de conceitos e regras normativas de grande disponibilida-
de, concebidas com o fim de que os investidores possam reduzir os custos de
negociação no desenvolvimento de seus negócios. Existem na lei numerosas dis-
posições relativas a quorum, maiorias decisórias e outras regras tão razoáveis que
grande parte dos investidores estariam dispostos a adotar sem modificação algu-

373 O mesmo acontece com a “companhia” brasileira, que é regulada pela Lei 6.404 de 1976
(também denominada “Lei de Sociedades Anônimas”), modificada pelas leis 9.457 de 1997 e
10.303 de 2001.

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ma”374. Conquanto, por razões óbvias, a sociedade capitalista norte-americana


está regulada de forma mais restritiva do que a sociedade de pessoas, é indubitá-
vel que o regulamento estadual que se aplica àquela é comparativamente mais
flexível que aquele que costuma existir a respeito das sociedades anônimas nos
países de tradição civilista. Na verdade, as características da regulação sobre as
sociedades de capitais nos Estados Unidos contribuíram à idéia muito difundi-
da de que a legislação societária estadunidense é comparativamente mais avan-
çada do que a existente em outros países.
Não em vão, o sistema que se analisa inovou de forma substancial sobre
uma multiplicidade de aspectos que, de uma ou outra forma, foram-se esten-
dendo a outros sistemas. Dentro de tais circunstâncias cabe mencionar a possi-
bilidade de indeterminar o objeto social, a abolição da tese de ultra vires, a
possibilidade de sociedades individuais, os sistemas de representação legal apa-
rente, os deveres fiduciários dos administradores, a desconsideração da persona-
lidade jurídica, a subordinação de créditos em caso de processo de falência, entre
outras instituições bem conhecidas. A seguir se analisam algumas dessas carac-
terísticas e inovações.
Ainda que em muitos países latino-americanos se conserve ainda hoje a
anacrônica teoria da especialidade do objeto social e o conseqüente corolário da
tese de ultra vires375, as normas societárias estadunidenses de maneira unânime

374 EASTERBROOK, Frank H. et al. The Economic Structure..., cit., p. 34. Os mesmos autores agregam
que “essa legislação societária e os antecedentes judiciais existentes são fornecidos sem nenhum
custo a todos os empresários por igual. Isso lhes permite concentrar-se nos assuntos relativos à
gestão dos negócios sociais [...]. A legislação societária complementa e suplementa, mas nunca
desloca as intenções das partes em decorrência de seus negócios, a não ser que haja efeitos
nocivos para terceiros” (Ibidem).
375 “Se voltou inútil ressaltar os desenvolvimentos da teoria de ultra vires, à luz de seus perigos e da
reticência compreensível dos tribunais de aplicá-la. Desde 1945, efetivamente, a Comissão
Cohen tinha proposto que a cláusula do objeto tivesse um âmbito de aplicação puramente
interno: a sociedade teria, para todos os efeitos, a capacidade de uma pessoa jurídica, mas a
cláusula implicaria simplesmente a proibição imposta pelos sócios aos administradores de realizar
atividades da sociedade por fora de certos limites” (TUNC, André. Lhe Droit Anglais....cit., p. 49).
O sistema brasileiro é um dos exemplos onde o objeto deve ser claramente descrito. “A definição
precisa e completa do objeto possibilita a caracterização das modalidades de abuso de poder e de
desvio de atividade. [...] Assim, quando a sociedade pratica atos ou exerce atividades não
previstas no seu objeto social, em decorrência da conduta ultra vires de seus administradores e
controladores, será ela responsável perante aqueles de boa-fé que sofreram os respectivos danos,
sejam os próprios acionistas, sejam os credores ou os concorrentes ou mesmo terceiros indireta-
mente prejudicados.” (CARVALHOSA, Modesto. 1º vol., op. cit., p. 17-18). Essa responsabilidade
é fundamentada, no direito brasileiro, nos seguintes princípios: 1) todos os atos praticados pela
sociedade com desvio de objeto são ilícitos; 2) princípio de responsabilidade autônoma da
pessoa jurídica sem embargo da responsabilidade pessoal dos administradores; e 3) responsabili-
dade autônoma da companhia pela política que lhe é imprimida pelos controladores (Ibidem).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 151

aboliram ambas as doutrinas376. É por isso que desde faz várias décadas é viável
constituir sociedades de capitais sem efetuar determinação alguma do objeto
social. Assim, por exemplo, de acordo com a Seção 2.02 da Nova Lei Tipo de
Sociedades de Capital (Revised Model Business Corporation Act, RMBCA), não é
necessário incluir no ata de constituição uma determinação do objeto social para
o qual a sociedade foi constituída. No comentário oficial à norma mencionada,
preparado por um comitê especializado da Ordem dos Advogados dos Estados
Unidos (American Bar Association), afirma-se que “quando uma sociedade se
constitui sem estipular qual terá de ser sua atividade econômica, terá
automaticamente um objeto social que lhe permita comprometer-se em qualquer
atividade lícita de negócios, nos termos da Seção 3.01 (a). A opção de estipular
um objeto social mais restringido também outorga aos interessados nas seções
2.02 (b)(2) e 3.01”377. Uma disposição semelhante às mencionadas se encontra
na Seção 102 (3) da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware, segundo
a qual é suficiente mencionar no ata de constituição que a sociedade poderá
realizar qualquer atividade lícita de acordo com a lei378. A característica assinalada,
também presente no sistema jurídico do Reino Unido, é eloqüente em relação à
concepção econômica da sociedade de capitais no mundo anglo-saxão. Dentro
do sistema de objeto social indefinido, os Conselhos de Administração e os
restantes administradores sociais não têm que modificar os estatutos das
companhias nem obter autorização alguma para comprometer a sociedade em
qualquer classe de atividade de negócios. Já no ano de 1968 o célebre economista
JOHN KENNETH GALBRAITH assinalava esta e outras características da
sociedade de capitais norte-americana como fatores transcendentais no
desenvolvimento econômico do “Novo Estado Industrial”. Segundo
GALBRAITH, “A sociedade comercial tem uma imagem jurídica definida.
Seu propósito é desenvolver negócios como se fosse um indivíduo, mas com a

376 Segundo a teoria latina da especialidade, a empresa social deve estar plenamente determinada
na ata de constituição da sociedade. Esta exigência concorda com a limitação da capacidade
da companhia, em razão da qual esta só pode realizar atividades relacionadas diretamente com
a atividade de exploração econômica prevista no objeto social. A tese em menção arca a grave
conseqüência de que qualquer ato não compreendido dentro do objeto é nulo e, por tanto,
não vincula à sociedade. Nos sistemas jurídicos latino-americanos é freqüente a inclusão deste
esquema legal, que corresponde ao que se conhece como a teoria de ultra “vires”.
377 Corporations and Business Associations, Statutes, Rules and Forms, 1992 Edition, Foundation
Press, p. 198.
378 Para uma análise detalhada do ponto em questão, cfr. BJUR, Timothy et al. Fletcher Cyclopedia
of the Law of Private Corporations, Revised Volume, New York: CBC, 1993, p. 102.

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habilidade adicional para arrecadar capital e realizar atividades que nenhuma


pessoa poderia realizar individualmente”379.
ROBERT HAMILTON explica o desenvolvimento histórico das cláu-
sulas sobre objeto social nos Estados Unidos nos seguintes termos: “no século
XIX as sociedades só podiam ser constituídas para fins específicos, e segundo
várias regulações estaduais só podiam estipular um objeto único. Ditas disposi-
ções também costumavam exigir que os objetos da sociedade fossem ‘plena-
mente determinados’. Considerava-se que estas disposições davam lugar a uma
estrutura legal de grande rigidez: as sociedades eram vistas com desconfiança e a
autorização para funcionar sob as leis de sociedades se concedia com receio. A
aplicação destes princípios restritivos com freqüência ocasionava problemas de
ultra vires, o que originava grande quantidade de litígios a respeito da interpre-
tação das cláusulas de objeto social. A primeira inovação importante foi a de
permitir à sociedade pactuar um objeto múltiplo, sempre que as atividades de
exploração econômica estivessem plenamente determinadas e sob a noção que a
companhia era constituída somente para os fins limitados estipulados na ata de
constituição. Isso, no entanto, abriu portas de escape, já que não tinha limitação
a respeito das atividades para as quais a sociedade era constituída. Era teorica-
mente possível que a cláusula de objeto social de uma companhia enumerasse
todas as atividades possíveis às quais uma sociedade se podia dedicar. Estas clá-
usulas tinham, portanto a tendência a ser demasiadamente prolixas, difíceis de
ler e, com freqüência, não informavam a respeito das atividades comerciais às
quais a sociedade realmente ia dedicar. O seguinte passo consistiu em permitir
às sociedades estipular uma cláusula muito simples e geral, como por exemplo:
‘esta sociedade pode dedicar-se a qualquer negócio lícito’”380.

379 GALBRAITH. The New Industrial State..., cit., p. 83.


380 HAMILTON. The Law of Corporations..., cit., pp. 40 e 41. De acordo com MORRIS, “apesar de
que seja viável pactuar cláusulas de objeto social determinado, isso rara vez ocorre nas
sociedades de capital devido ao fato que os riscos que surgem de tal prática superam os
benefícios potenciais de pactuá-la. Os acionistas majoritários, obviamente, não têm interesse
em restringir suas próprias faculdades para conseguir que a sociedade acometa qualquer
atividade econômica lícita que considerem necessária. Também não os acionistas minoritários
consideram útil um objeto social restringido, pois estimam que este teria o efeito de interferir
nas operações que a sociedade se propõe a realizar, em lugar de constituir uma proteção
verdadeira ante o abuso no poder dos administradores (...). A modificação abusiva do objeto
social por parte de quem controla à sociedade constitui o menor dos temores que poderia
albergar um acionista minoritário a respeito da conduta daqueles. Resultam muitos mais
preocupantes e poderiam causar mais problemas as condutas em que esteja apresente o
conflito de interesse ou a negligência administrativa. Um investidor minoritário tem, sem

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 153

A abolição da tese de ultra vires no sistema norte-americano, há mais de


meio século, constitui uma das mais evidentes manifestações do caráter avan-
çado da lei societária norte-americana381. Já no ano de 1950, a Lei Tipo de
Sociedades de Capital (MBCA) preceituava em sua Seção 7 que “nenhum
ato de uma sociedade e nenhuma transferência de direitos reais ou pessoais,
seja a sociedade cedente ou adquirente, poderá ser declarado nulo com funda-
mento que a sociedade carecia de capacidade para realizar dito ato ou para
efetuar tal transferência”.
Mas ainda subsistem certos mecanismos que permitem aos sócios evitar
que os administradores realizem atos não compreendidos dentro do objeto
social, quando este foi determinado plenamente nas atas de constituição. Cla-
ro que estes mecanismos legais não implicam uma restrição na capacidade da
sociedade nem a nulidade dos atos realizados além do objeto. Apenas signifi-
cam a possibilidade de defender o direito dos sócios que os administradores
desempenhem suas funções dentro do âmbito do objeto social definido.
A Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (Revised Model Business
Corporation Act ou, RMBCA) estabelece três procedimentos que podem ser
iniciados para conseguir o propósito mencionado:
1. Os acionistas podem pedir a um tribunal que ordene à sociedade
abster-se de celebrar um contrato que está fora do objeto social;
2. A sociedade, por si mesma ou por intermédio de um terceiro,
pode demandar aos diretores e demais administradores para que
se abstenham de realizar atos não compreendidos no objeto ou
para que suspendam aqueles que se encontrem em curso ou, sub-
sidiariamente, para que indenizem os prejuízos causados, e
3. O Procurador Geral do Estado (Attorney General) pode tentar a
dissolução forçada da sociedade, se esta realiza operações que não
estão autorizadas382.
Na Inglaterra, como se precisou anteriormente, também se suprimiu a
tese de ultra vires por considerar que sua consagração causava mais incerteza

dúvida, boas razões para preocupar-se a respeito da debilidade de sua posição jurídica numa
sociedade. Mas tal acionista não deveria tentar fortalecer sua posição mediante a imposição de
limitações no objeto social” (MORRIS, Glenn G., op. cit., vol. 7, pp. 293-294)
381 Segundo PALMITER, nos Estados Unidos “a tese de ultra vires se converteu numa curiosidade
histórica” (The CTS Gambit..., p. 454).
382 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 47.

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154 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

do que benefício. Tal como explica OLIVER, “teoricamente, a doutrina de


ultra vires constituía uma garantia para os sócios e credores de uma compa-
nhia. Mediante a revisão do objeto social pactuado no ata de constituição
(‘memorandum of incorporation’) uns e outros podiam descobrir se um negó-
cio específico excederia a órbita do objeto social e, por tanto, daria lugar à
nulidade do ato. Na prática, no entanto, ninguém revisava o ata, de maneira
que não existia tal proteção”383. Por isso, a legislação britânica, mediante as leis
de companhias de 1985 e 1989, suprimiu a referida limitação na capacidade
da sociedade. Assim, na atualidade a doutrina foi abolida, com o propósito de
proteger terceiros que contratam com a sociedade. Contudo, existe a possibi-
lidade de fazer valer as limitações estatutárias no objeto social, com os propó-
sitos exclusivos de estabelecer responsabilidade dos administradores ou de
tentar uma ação de oposição a respeito de atos propostos que possam exceder
a capacidade da sociedade, sempre que a ação seja interposta antes de sua
celebração. A doutrina de ultra vires, como se explicou antes, subsiste ainda
em diversos países de tradição latina, de maneira que neles não é possível a
estipulação de um objeto social indeterminado, nem a realização de atos fora
do âmbito dessa cláusula estatutária, sem que se incorra nas sanções de nuli-
dade usualmente previstas para o efeito384.
O requisito de pluralidade, usualmente paquerado as doutrinas contra-
tuais de origem francesa385, aparece como um verdadeiro anacronismo na le-
gislação norte-americana. Na verdade, todas as legislações estaduais permitem
a existência de sociedades com um só sócio ou acionista. Assim, por exemplo,
a Seção 101 (a) da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware preceitua
que “qualquer pessoa, sociedade de pessoas, associação ou sociedade de capi-
tais, individual ou conjuntamente com outros e sem consideração a seu lugar
de residência, domicílio ou Estado de constituição, pode formar uma socieda-
de de capitais, nos termos deste capítulo” (se ressalta)386.

383 OLIVER, M.S. et al., Company Law, cit., pp. 36 y ss.


384 No entanto, as sanções aplicáveis podem variar de um país a outro, segundo a maior ou menor
rigidez da legislação.
385 Não obstante o anterior, no ano 1985 a legislação francesa, mais em atendimento a razões
práticas que doutrinárias, abriu espaço à empresa “individual de responsabilidade limitada”.
Alemanha já tinha permitido a figura jurídica em questão, mediante a “Ein Mann Gesellschaft”.
Cfr. MCCORMICK, Carol. Legal and Financial Aspects of International Business. New York:
Oceana Publications Inc., 1980, p. 6.
386 Corporations and Business Associations, Statutes, Rules and Forms, cit., p. 96.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 155

A sociedade de capital individual não deve ser confundida com a empre-


sa individual. Esta é a forma mais elementar, mas também a mais comum,
para realizar negócios nos Estados Unidos. Como é apenas óbvio, o empresá-
rio individual, denominado sole proprietorship, ao atuar sob essa estrutura sim-
plificada, compromete sua responsabilidade pessoal por quaisquer obrigações
derivadas do exercício de sua atividade. Naturalmente, o dono do estabeleci-
mento dispõe da livre administração dos bens que fazem parte de aquele387.
Por isso, pode alienar globalmente o patrimônio destinado à atividade de ex-
ploração econômica, de forma semelhante à prevista nas legislações latinas em
matéria de transferência de estabelecimentos de comércio.
As empresas individuais se classificam usualmente dentro do gênero das
“organizações de negócios” (business associations), entre outras razões porque
“adquirem um verdadeiro grau de identidade psicológica e sociológica que as
separa de seus proprietários individuais [...] e porque geralmente estes últimos
não realizam seus negócios por si mesmos, senão que contratam a diversas
pessoas – vendedores, mecânicos, gerentes – para que atuem em seu nome na
realização dos negócios”388. As relações entre o titular do negócio ou estabele-
cimento e quem realizam a atividade de exploração econômica em seu nome
são regidas pelas normas próprias do contrato de mandato (agency). A base
deste negócio jurídico é o mútuo consentimento entre o mandante (principal)
e seu mandatário (agent), que fazem sob o entendido de que aquele controla a
relação e este atua em nome e por conta do mandante. Naturalmente, o con-
trato de mandato é revogável a qualquer tempo, ainda que se tenha pactuado
um termo definido. A rescisão unilateral implicará o pagamento da corres-
pondente indenização. Ademais, é importante levar em conta que as relações
de mandato levam implícito um dever de lealdade, que se manifesta numas
obrigações de confiança (fiduciary duties). Ditos deveres implicam que o man-
datário deve atuar de boa fé e sem derivar benefício pessoal dos negócios do

387 “A empresa de proprietário único é a mais antiga e a mais simples das formas de atividade
comercial. O proprietário desta classe de empresa maneja seus assuntos segundo seu próprio
saber e entender. É possível que a empresa individual empregue uma razão social. O proprie-
tário é pessoalmente responsável por todas as dívidas da empresa. Ademais, incluirá todos os
rendimentos e perdas dela, de modo direto, em sua própria declaração tributária. A empresa
deixa de existir quando morre seu proprietário ou se retira se dos negócios... Em grande parte,
o regime fiscal aplicável à empresa de proprietário único é idêntico àquele aplicável a uma
sociedade de pessoas (partnership)” (FOLSOM, Ralph H. op. cit., p. 249).
388 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 1.

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156 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

mandante. Assim, significam que aquele está sujeito a um particular dever de


cuidado (duty of care) em relação com os negócios do mandante389.
Por outro lado, é interessante observar que a maioria dos Estados permi-
tem às empresas individuais a utilização de nomes fictícios, de tal forma que
podem identificar-se com os distintivos próprios das sociedades390, sempre que
a finalidade que se pretenda não seja fraudulenta e que não constitua concor-
rência desleal. Por tanto, as expressões company, incorporated ou corporation, bem
como suas abreviaturas “Co.”, “Inc.” ou “Corp.”, não necessariamente corres-
pondem a formas societárias, mas podem referir-se a negócios individuais que
pertencem a uma pessoa natural autorizada para exercer atividades de negócios
sob um nome fictício (doing business as...).
Diferentemente das sociedades individuais, as empresas individuais não estão
sujeitas a formalidades legais específicas para iniciar suas operações e praticamente
não se submetem a disposições imperativas a respeito de sua estrutura legal. Estas
devem observar as normas relacionadas com a classe de atividade econômica, a
regulação dos mercados e os produtos que pretendam comercializar391. A extinção
da empresa individual se produz por venda, insolvência, cessação voluntária dos
negócios, morte ou incapacidade do proprietário392.
Outra das características em que se insistiu reiteradamente tem a ver
com o caráter estatal da legislação societária. Aparte das já explicadas conse-
qüências desta faceta do sistema, deve-se levar em conta um efeito adicional,
que consiste na falta de uma identidade legislativa de caráter federal para as
companhias de capitais. A carência de uma definição normativa específica

389 Restatement Second of the Law of Agency, Section 1,140.


390 Pode se citar, por exemplo, a lei de nomes fictícios do Estado da Florida (Florida Fictitious
Names Statute). “Nestas leis se exige que a pessoa que usa o nome fictício para realizar
negócios registre perante o secretario do condado (‘County Clerk’) o seu próprio nome, o
nome sob o qual atua e o endereço da sua residência e do seu estabelecimento” (CARY y
EISENBERG, op. cit., p. 1).
391 HARDWICKE, John W. et al. Business Law. New York: Barron’s Business Review Series, 1987, p. 247.
392 Ibidem, p. 250. Estes avanços legislativos influíram notoriamente os sistemas jurídicos europeus,
até o ponto de que a Décima Segunda Diretiva Comunitária exigiu aos Estados membros expedir
legislações internas que permitissem esta figura. Em alguns países da América Latina começa a
introduzir-se o referido conceito, com bom acolhimento (por exemplo, em Colômbia, a partir da
Lei 222 de 1995, e em Chile, mediante lei 19.857 de 2003). Na verdade, não se justificam os
números as situações de simulação a que dá lugar o requisito de pluralidade presente em muitos
códigos de comércio de origem francesa. Dita exigência parece não se compadecer das verdadei-
ras necessidades econômicas da atividade empresarial. Se se concede o benefício de separação
patrimonial e limitação de responsabilidade à pequena sociedade comercial, não se vê razão
para negar esse mesmo benefício à empresa ou à sociedade individual.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 157

para efeitos federais, forçou a certas instituições do governo nacional dos Es-
tados Unidos a definir critérios que permitam identificar de modo pleno as
companhias de capitais. Uma de tais instituições federais é, precisamente, a
administração de impostos (Internal Revenue Service). É evidente que esta
definição tem relevantes conseqüências na determinação do sistema de tribu-
tação aplicável às pessoas jurídicas. Como já se explicou em detalhe, as socie-
dades de capitais estão submetidas a um sistema de dupla tributação. Por isso,
como também se assinalou, resulta crucial à administração tributária fixar
critérios que permitam detectar a presença de contribuintes que possam clas-
sificar como sociedades capitalistas, sem levar em conta para esse efeito a no-
menclatura ou classificação que os diferentes Estados da União utilizem. Aparte
de que os critérios mencionados foram sentados há tempo, estes permitem
uma caracterização de traços definidos a respeito da sociedade de capitais,
conforme as características que configuram o tipo societário nas diversas legis-
lações estaduais. Os já resenhados critérios propostos pela administração de
impostos são os seguintes: termo indefinido, administração centralizada, li-
mitação de responsabilidade e livre negociação das ações. Devido à significati-
va importância destas características e a sua utilidade para a análise comparada
da sociedade capitalista norte-americana, convém fazer breve referência a cada
uma delas.

A. TERMO INDEFINIDO (CONTINUITY OF EXISTENCE)


Esta característica implica a possibilidade de pactuar no documento cons-
titutivo a duração perpétua da sociedade. De modo correlativo, significa que a
morte de um acionista, sua retirada, quebra, incapacidade posterior ou a trans-
ferência forçada de sua participação no capital não deve, normalmente, pro-
duzir a dissolução da companhia. Assim, esta pode continuar com os herdeiros
ou sucessores do acionista afetado por alguma destas circunstâncias.

B. ADMINISTRAÇÃO CENTRALIZADA (CENTRALIZED MANAGEMENT)


Devido ao fato que os acionistas não têm a faculdade legal de administrar
os negócios sociais, estes só ascendem aos órgãos de administração e representa-
ção da sociedade na medida que sejam eleitos ou designados, conforme ao dis-
posto nos estatutos sociais. Existe um Conselho de Administração que,
diferentemente de como ocorre em outros sistemas, pode ter por um só mem-

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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158 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

bro393. Em geral, este órgão é designado por um sistema muito semelhante ao


de quociente eleitoral, denominado votação acumulativa (cummulative voting).
Este sistema permite a representação proporcional de todas as facções de acio-
nistas no órgão de administração. Curiosamente, em alguns Estados se permitiu
a escolha de um sistema de eleição diferente, tal como o de voto majoritário.
Assim, seria possível sob certas legislações que se estipulasse que a totalidade do
Conselho se designará por um só acionista ou por um só grupo, sempre que a
chapa correspondente obtivesse a aprovação majoritária na assembléia.
Ainda mais inovador é o mecanismo de eleição escalonada (staggered boards),
que restringe a possibilidade de substituir membros do Conselho de
Administração, mediante a determinação de um número máximo de indivíduos
que podem ser trocados anualmente. Trata-se, então, de um sistema de
classificação dos diretores, no qual cada membro ou grupo de membros ocupa o
cargo por um período determinado (verbi gratia, um, dois ou três anos), antes de
poder ser substituído394. De maneira que se, por exemplo, o órgão tem 10
membros, pode pactuar-se que cada ano poderão ser trocados somente dois
integrantes de dito órgão, sem que seja permitido à assembléia remover aos
outros oito integrantes. Desta forma se consegue prolongar no tempo as estruturas
de controle e impedir que se produzam aquisições hostis de controle. Uma
cláusula desta natureza recebe usualmente, na terminologia do Direito de
Sociedades norte-americano, o nome de pílula venenosa (poison pill)395. O

393 No direito brasileiro o conselho de administração tem uma regulação menos flexível. De fato,
segundo as leis brasileiras, este órgão está sujeito as seguintes regras: 1) deve ser composto por,
no mínimo, três membros (art. 140 do Lei 6.404 de 1976); 2) os membros devem ser acionistas
(art. 146 do Lei 6.404 de 1976); 3) é um órgão necessário apenas nas sociedades de economia
mista, nas companhias abertas e nas que adotam o regime de capital autorizado. (CARVALHOSA,
Modesto, op. cit., 3º vol., p. 10-11).
394 HAMILTON, op. cit., p. 476.
395 De acordo com ROBERT W. HAMILTON, uma pílula venenosa “é uma tática utilizada por uma
companhia em perigo de ser adquirida hostilmente, para fazer suas ações menos atraentes. Por
exemplo, uma sociedade pode expedir uma nova série de ações preferenciais que confiram aos
acionistas o direito de ser resgatada por um valor superior ao real se chegar a produzir-se uma
tomada de controle. Uma pílula venenosa eleva os custos de uma aquisição, de maneira que
aqueles que a criam esperam bloquear qualquer oferta de tomada de controle”. (Ibidem, p.
466). “Nos Estados Unidos tais pílulas de veneno tiveram a sua legalidade chancelada no ano
de 1985 pela corte de Delaware no caso Moran vs. Household International [Moran v.
Household Intern., Inc., 490 A.2D 1059 (Del. Ch. 1984)] – o primeiro caso judicial que
reconhece a importância e oportunidade dessa espécie de previsão estatutária no sentido de
equalizar as forças dos acionistas, por meio do Conselho de Administração da empresa-alvo da
oferta, e do ofertante, na negociação.” (PRADO, Roberta Nioac. Desconcentração do Poder de
Controle e Poison Pills: Evolução no Mercado de Capitais Brasileiro. In: CASTRO, Rodrigo R.
Monteiro de et. al. Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


158 5/7/2011, 18:04
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 159

Conselho tem a administração da companhia e determina as diretrizes econômicas


e as políticas gerais da sociedade. Este órgão tem, assim, a atribuição de designar
os funcionários que se encarregarão de realizar os atos de representação e gestão
dos negócios sociais. Nas sociedades de grandes dimensões podem existir muitos
e variados classes de diretores (officers), cujas funções podem ser determinadas
pelos estatutos (by-laws) ou por regulamentos internos. São usuais as
denominações de presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário.
Ora bem, diferentemente do sistema que costuma prevalecer nos países
latino-americanos, não existe uma determinação legal das funções de represen-
tação legal da sociedade, nem do funcionário que as possui396. Sob as diversas
legislações estaduais, diferenciam-se as noções de objeto social (purpose clause) e
atribuições da companhia (powers). Por isso é que, em certas ocasiões, é difícil
determinar quem ostenta a representação legal da sociedade o que pode, por
tanto, comprometê-la em suas relações frente a terceiros. Para enfrentar este
problema, no Direito Societário norte-americano se estenderam as regras e
princípios gerais aplicáveis ao mandato (agency), com o propósito de aplicá-las
no contexto dos administradores sociais. Em termos gerais, considera-se que
estes funcionários são mandatários da sociedade (agents) e, em conseqüência,
estão facultados a obrigá-la, na medida em que tenham suficiente legitimação
para tanto (authority).
Existem diferentes modalidades de legitimação para atuar em nome da
sociedade, dentro das quais se contam a aparente, a real e a inerente. A pri-
meira alude, em essência, à faculdade de gestão que um indivíduo assume
ante terceiros e que se deriva das aparências que a sociedade criou a respeito da
aptidão para atuar de um determinado funcionário. Trata-se, pois, de uma

Capitais. Editora Quartier Latin, 2010, p. 387). “(...) no Brasil, embora alguns estudos e
conclusões estrangeiras possam ser aproveitadas, a realidade e a maturidade do mercado são
muito diversas da norte-americana. Ademais, as nossas poison pills assumiram uma forma
distinta – em regra, tendendo a consubstanciar uma oferta pública obrigatória, à semelhança
do tag along previsto no artigo 254-A da Lei Societária de 1976. E, embora também tenham
como um dos objetivos impedir, ou ao menos dificultar, um takeover hostil, foram previstas
inclusive em companhias com controle definido, podendo potencialmente trazer outro tipo
de distorção ao funcionamento do mercado (...)” (Ibidem, p. 388).
396 Para o caso do Brasil, por exemplo, a representação legal da empresa está nas mãos da diretoria.
“Os poderes de representação da companhia cabem privativamente aos diretores e não podem
ser suprimidos pelo estatuto, nem por estes partilhados com outro órgão da sociedade (v.g.,
Conselho de Administração ou assembléia geral). Trata-se de representação orgânica. [...] Nas
companhias, a manifestação da vontade social perante terceiros faz-se eficazmente por meio
dos diretores.” (CARVALHOSA, Modesto, op. cit., 3º vol., p. 13).

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atitude do indivíduo e da mesma sociedade que faz pensar aos terceiros que a
pessoa tem capacidade para obrigar a companhia. O Tribunal Federal de Ape-
lações do Segundo Circuito disse sobre o particular que “muitos juízes nota-
ram a injustiça que se causa pela prática de permitir que as sociedades atuem
geralmente por conduto de seus executivos e que, mais tarde, ao dar-se conta
de que o contrato não resulta conveniente ou benéfico, decidam separar-se do
cumprimento dos contratos assim celebrados, mediante o argumento de que
o funcionário carecia de legitimação real para o efeito”397.
A legitimação real, como sua própria denominação o sugere, significa
que o funcionário está, na verdade, investido de poderes que lhe permitem
atuar em nome e por conta da companhia, bem porque os estatutos sociais lhe
outorgaram tais funções, ou porque a própria lei se as conferiu. Por último, a
legitimação inerente é a que surge da posição que ocupa o indivíduo dentro
da hierarquia administrativa da sociedade, em virtude da qual certas funções
de representação estão implícitas em determinados cargos de direção ou con-
fiança da companhia. Em termos muito gerais, a doutrina e a jurisprudência
definiram diferentes graus de legitimidade inerente que dependem da posi-
ção que ocupe o funcionário na companhia. Sobre o particular, vale a pena
seguir o esquema, e as explicações, que apresenta WILLIAM CARY398, no
que se assinalam as faculdades de representação que ostentam os principais
funcionários da sociedade.
1. PRESIDENTE
Há um número significativo de antecedentes judiciais em que se alude à
legitimação inerente do presidente, que surge de modo inequívoco dessa po-
sição administrativa. Curiosamente, em alguns de tais casos se afirma que o
presidente não tem legitimação inerente por virtude de seu cargo, mas sim a
legitimação real que de modo explícito lhe tiver conferido o Conselho de
Administração. No entanto, essa teoria, devido a seu escasso realismo, foi subs-
tituída por outra regra que adquire importância prática naqueles casos em
que o presidente ostenta também o caráter de diretor presidente ou o de
executivo chefe (chief executive officer ou CEO, por suas siglas em inglês). Afir-
mou-se, efetivamente, que “quando o presidente da sociedade ocupa também

397 Lee v. Jenkins Brothers, [268 F.2d. 357 (2d Cir 1959)].
398 CARY e EISENBERG, op. cit., pp. 236 e ss.

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o cargo de diretor presidente, devido ao poder que tem para supervisionar e


conduzir os negócios sociais, goza de legitimação implícita para celebrar qual-
quer contrato ou realizar qualquer ato que esteja dentro do curso ordinário
dos negócios. Em tais casos, seus poderes são maiores que os que teria o presi-
dente por si mesmo”399.
2. VICE-PRESIDENTE
Em matéria de legitimação do vice-presidente a jurisprudência é exígua.
À luz da visão relativamente estrita que surge dos antecedentes judiciais mais
antigos, o vice-presidente não teria maior legitimação inerente para atuar a
nome da sociedade. No entanto, “existe algum indício de que, segundo a am-
pla interpretação no caso de Lee v. Jenkins Brothers, poder-se-ia considerar
que os vice-presidentes têm legitimação inerente para comprometer à socie-
dade, sempre que, ao menos aparentemente, estes funcionários se encontrem
próximos da cúpula dentro da hierarquia administrativa da sociedade”400.
3. SECRETÁRIO
Com relação a este funcionário, afirma-se que tem legitimação inerente
para certificar resoluções, de modo que estas se convertem com sua assinatura
em atos autênticos do Conselho de Administração. Uma multiplicidade de
atos que se relacionam com as determinações administrativas e de direção da
sociedade, tais como a designação de funcionários, a adoção ou modificação de
estatutos, os aumentos de capital, a criação de novas classes de ações e a aber-
tura de filiais (branches) ou agências, entre outras, devem ser adotadas pelo
Conselho e certificadas pelo secretário da sociedade.
4. AUDITOR DE CONTAS (COMPTROLLER) E TESOUREIRO
É claro no Direito Societário norte-americano que estes empregados da
companhia carecem de legitimação para obrigar a sociedade em suas relações
com terceiros. Sua falta de aptidão para atuar em nome daquela implica que
sua legitimação não transcende à esfera das relações com terceiros, isto é, trata-
se de uma legitimação exclusivamente interna. O tesoureiro teria, no entanto,
legitimação inerente para assinar cheques em nome da sociedade.

399 Memorial Hospital Association of Stanislaus County v. Pacific Grape Products Co., [45 Cal.2d
634, 637, 290 P.2d 481, 483 (1955)].
400 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 239.

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5. MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO


Devido ao caráter eminentemente interno das faculdades que assumem
estes administradores sociais, a jurisprudência norte-americana não lhes con-
feriu legitimação inerente em suas relações com terceiros. Por isso, suas atua-
ções se refletem essencialmente no exercício do direito de voto nas reuniões do
órgão de administração.
Aclarado o ponto relativo à legitimação de que gozam os diferentes fun-
cionários da sociedade, convém revisar brevemente a forma com que se exerce
na prática a administração dos negócios sociais nas sociedades de capital. Co-
nhecem-se vários estudos que se orientam a explicar as diversas estruturas de
controle das companhias nos Estados Unidos. Um dos mais influentes é o já
resenhado de BERLE e MEANS401. Como se assinalou no começo deste
livro, nessa obra se propôs pela primeira vez a teoria da separação da titulari-
dade do capital e o controle de gestão. Este último, depois de ter-se cindido
da propriedade sobre as ações, seria exercido nas grandes sociedades de capital
pelos administradores sociais (managerialism).
Da mesma forma, efetuou-se uma classificação do controle societário em
três categorias diferentes. O primeiro sistema, denominado controle das maiorias
(majority controle), apresenta-se naquelas sociedades em que um só acionista ou
um grupo consolidado de acionistas possui a maioria das ações ou uma quantidade
tão significativa (35-40%) que, em todo caso, lhe permitirá uma votação
majoritária em qualquer votação que efetue a assembléia. Nesta categoria de
controle não se apresenta uma separação entre a administração da sociedade e o
controle societário. Assim, os administradores e os acionistas compartilham a
administração da sociedade. Um segundo sistema corresponde à classe
denominada controle gerencial (management control), que se apresenta em
sociedades nas quais o grupo maior de acionistas é muito pequeno (possui o 5-
10% das ações). Isso faz que o controle da companhia não possa ser atingido, em
princípio, por nenhum acionista ou grupo. Apresenta-se, portanto, uma completa
separação entre a administração e a titularidade do capital. Considera-se que
esta é, geralmente, a situação ideal, devido ao fato que os administradores não
trabalham para um grupo específico de acionistas, o que faz que seu trabalho

401 BERLE e MEANS, op. cit.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 163

seja altamente técnico e profissional402. Finalmente, distingue-se uma forma de


controle na que as minorias por si mesmas ou junto com os administradores
assumem a gestão dos negócios sociais (minority / joint controle). Nesta última
hipótese, o bloco maior de ações detidas por um acionista ou por um grupo
consolidado de acionistas se situa entre o controle gerencial e o controle
majoritário. Existe, pois, um controle compartilhado, de maneira que se o referido
bloco de ações está em poder dos administradores, serão eles quem manejem a
sociedade. Pelo contrário, se alguém diferente dos administradores sociais tem
uma percentagem significativa de ações, os administradores terão que negociar
com essa pessoa403.
Segundo BUCHHOLZ, se pode-se aceitar a tese do controle de gestão
por parte dos administradores (em cerca do 85% das 200 sociedades maiores
dos Estados Unidos) e se acolhe-se a teoria da separação da propriedade e o
controle, deve-se aceitar também “que os gerentes não somente manejam a
companhia nos negócios cotidianos, mas também exercem um controle defi-
nitivo sobre os recursos da sociedade. Os críticos do sistema sustentam que a
administração controla a maquinaria dos poderes para a assembléia, de ma-
neira que os gerentes só escolherão os poderes outorgados para reeleger àque-
les membros do Conselho de Administração que se encontram comprometidos
na reeleição de quem tem a administração da sociedade”404.

402 GOULART identifica os requisitos do controle gerencial: “Para que possa falar em controle
gerencial é necessário: 1) os titulares da administração social no sejam também os titulares do
capital social – distinção administração/propriedade do capital; 2) os titulares do capital social
estejam de tal forma afastados dos negócios sociais que nem sequer compareçam pessoalmente
às deliberações da sociedade, delegando este poder aos administradores; 3) os administrado-
res, dotados da capacidade de deliberação, assumam não apenas a gerência das atividades
sociais, mas também a tomada de todas as decisões a respeito.” (GOULART, Eduardo. Direito
Societário, op. cit., p. 92).
403 O doutrinador EDUARDO GOULART refere-se a três tipos de controle: majoritário, minoritário
e conjunto. O primeiro é o mais comum e acontece “quando o controle societário é exercido
por um sócio (ou grupo unido por acordo) que detém, sozinho, mais de 50% das ações
votantes” (Ibidem p. 87); o segundo acontece “quando o sócio majoritário não exerce seu
poder de controle (seu controle em potência, decorrente de sua ascendência sobre o capital
social) deixando margem para que outros o façam; b) quando o capital da sociedade está de
tal forma pulverizado entre inúmeros sócios que não há uma única pessoa ou grupo de pessoas
unidas por acordo capaz de totalizar mais de 50% do capital votante.” (Ibidem, p. 88-89); o
terceiro ocorre “quando: 1) duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas estão, de fato, exercendo
o poder de controle sobre uma mesma sociedade e, além disso, 2) duas ou mais pessoas físicas
ou jurídicas controladoras estão unidas por um vínculo de caráter jurídico (acordo de vonta-
des) ou, no caso das pessoas jurídicas, por um vínculo de fato (ambas são controladas por uma
mesma pessoa).” (Ibidem, p. 89).
404 BUCHHOLZ, op. cit, p. 247.

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164 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

C. LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS (LIMITED LIABILITY)


Como já se indicou, a vantagem principal da forma societária que se
estuda consiste na limitação de responsabilidade dos acionistas ao montante
de suas contribuições405. É claro que dito princípio encontra uma notória
exceção nos casos relacionados com a célebre elaboração jurisprudencial da
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. Esta ocorre, como se
verá mais adiante em detalhe, quando se verifica fraude aos credores, confusão
de operações entre os acionistas e a companhia, contabilidade irregular, infra-
capitalizaçao da sociedade ou outras circunstâncias fáticas verificadas pelo juiz
no momento de efetuar o respectivo pronunciamento.

D. LIVRE NEGOCIAÇÃO DAS AÇÕES (FREE NEGOTIABILITY OF ESTOQUE)


Em princípio e como regra geral que admite exceções, as ações da socie-
dade de capitais são livremente negociáveis. Este caráter se faz patente em
particular naquelas sociedades cujos títulos se encontram inscritos nos regis-
tros de valores mobiliários que realizam as bolsas das diferentes cidades norte-
americanas. Dada a carência absoluta do conceito de ações ao portador406,
todos os títulos que se emitem são nominais, o que implica que se transferem
mediante inscrição no livro de registro de acionistas ou outra identificação de
cedente e adquirente. Nas sociedades de caráter fechado ou familiar é perfei-
tamente válido estipular restrições à livre negociação das ações. Os tribunais
deram a esta classe de cláusulas uma interpretação restritiva, de maneira que a
validez de tais pactos depende, usualmente, de duas circunstâncias: 1ª Que a
pessoa que adquire as ações tenha conhecimento das restrições a sua livre
negociação, e 2ª Que a restrição não seja total, vale dizer, que não impeça o
acionista alienar suas ações por um preço razoável ou próximo a seu valor real.
Os acordos particulares desenvolveram as diversas restrições que podem im-
por-se à livre transferência de ações em três figuras plenamente diferenciadas,
cuja natureza se explica a seguir.

405 Devido à relevância deste atributo derivado da autonomia patrimonial da sociedade de


capital, trata-se neste livro num capítulo separado: Cfr. Capítulo V.
406 Estas ações são conhecidas na doutrina estadunidense como bearer shares e são consideradas
como figura esquisita no Direito Societário europeu. (Cfr. SCHLESINGER, et al., op. cit., pp.
807 et seq).

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I. RESTRIÇÃO ABSOLUTA OU SUBMETIDA A APROVAÇÃO (ABSOLUTE OR


CONSENT RESTRAINT)

É a mais restritiva de todas as limitações à negociação das ações. Significa


que o acionista não pode ceder seus títulos, a não ser que exista uma autoriza-
ção expressa por parte da assembléia geral de acionistas ou do Conselho de
Administração. A validade desta modalidade de estipulações é incerta sob as
regras do Common Law, salvo se existir uma lei estatal de sociedades que
expressamente as autorize.
II. DIREITO DE PREFERÊNCIA (RIGHT OF FIRST REFUSAL E RIGHT OF
FIRST OPTION)

O direito de preferência no sistema norte-americano apresenta duas


modalidades que se diferenciam sutilmente. Na primeira (right of first refusal),
proíbe-se a venda das ações a não ser que tenham sido oferecidas à sociedade,
aos acionistas ou a ambos, em idênticos termos, preços e condições aos que um
terceiro interessado tiver oferecido adquiri-las. De maneira que somente di-
ante da falta de interesse daqueles poderá o acionista vender ao terceiro nas
condições por ele oferecidas.
A outra modalidade do direito de preferência (right of first option) repre-
senta a proibição de transferir as ações a terceiros, a não ser que estas tenham
sido oferecidas previamente à sociedade, aos demais acionistas ou a ambos, ao
preço e nas condições assinaladas na opção preexistente. A determinação das
pessoas a favor de quem se confere a opção deve estar contida na correspon-
dente estipulação que a estabelece. Nesta hipótese, diferentemente da anterior,
quem fixa as condições da oferta não é o terceiro, senão a própria sociedade407.
III. DIREITO À RECOMPRA DE AÇÕES (CALL OPTION OU REDEMPTION RIGHT)
Esta restrição implica que a sociedade tem o direito de readquirir ações
em circulação, quando ocorram determinadas circunstâncias previamente es-
tabelecidas. O direito que obtém a sociedade a retrair suas ações poderia ope-
rar ainda nas hipóteses em que o acionista não esteja interessado em vender. O
preço ao que a sociedade recompra suas ações pode ser determinado no mo-

407 O caráter mais ou menos restritivo desta limitação, depende essencialmente da relação que
existe entre o preço fixado para a opção e o justo valor da ação no momento em que a oferta
é formula. Sobre este particular pode conferir-se o caso Allen v. Biltmore Tissue Corp., [2N.E.2d.
534, 161 N.E.S.2d. 418, 141 N.E.2d. 812 (1957)].

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166 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

mento em que opera a opção (call option) ou pode estar definido a priori,
como um valor de recompra da ação, de acordo com o previsto na correspon-
dente estipulação contratual (redemption right).

E. SOCIEDADE CAPITALISTA FECHADA (CLOSE CORPORATION)


Ainda que não existam, em geral, diferenças básicas com respeito à
estrutura das sociedades de capitais de grandes dimensões e as que pertencem
a um grupo reduzido de acionistas 408, costuma fazer-se uma distinção
doutrinária entre as denominadas sociedades possuídas pelo público ou abertas
(publicly held corporations) e as pequenas sociedades de caráter fechado, cujas
ações se encontram em poder de um reduzido número de acionistas (closely
held corporations)409. Efetivamente, ao passo que naquelas existe um afastamento
quase total de uma parte substancial de seus acionistas ante a atividade e
administração da sociedade, nestas é usual que os sócios sejam empregados da
companhia e, com freqüência, derivem sua sustento exclusivamente da
vinculação à sociedade. Além disso, enquanto o acionista da companhia aberta
ou pública está em condições de negociar livremente suas ações e tem a
possibilidade de vendê-las diretamente no mercado aberto, ou por intermédio
de um agente de bolsa410, o titular de participações de capital numa companhia
pequena ou fechada não tem outro recurso do que oferecer aos demais
acionistas. Estes últimos, por sua vez, podem estar interessados em oprimir
indevidamente às minorias e em forçar aos acionistas a vender a menor preço411.
Para tanto, os acionistas que têm o controle sobre a sociedade podem recusar-
se a declarar dividendos, distribuir os resultados sociais em forma de salários
ou bônus exorbitantes aos diretores ou administradores etc.

408 As primeiras estão sujeitas aos requisitos de publicidade e divulgação, contidos nas disposi-
ções federais e estatais sobre o mercado de valores mobiliários (Securities and Exchange Act de
1934, blue sky laws, etc.).
409 “As companhias fechadas, tanto no Brasil, quanto em outras partes do Mundo, constituem uma
solução adequada para as atividades em que, ausente a necessidade do uso intensivo de capital
e da produção em larga escala, prevalecem as pequenas e as médias empresas. Marcadas, em
grande parte, pelo isolamento familiar, elas apresentam dois fundamentais obstáculos a seu
desenvolvimento, ou seja, a inflexibilidade das práticas gerenciais e a limitação patrimonial a sua
expansão, merecendo um tratamento específico e peculiar (SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil
2002, p. 120-121)”. (BARBOSA, Marcelo Fortes. Sociedade Anônima Atual, op. cit., p. 18).
410 Esta característica se conhece usualmente como availability of ready market for the shares e implica
a possibilidade de vender em condições rápidas e favoráveis e de obter, com grande celeridade,
um avaliação comercial da ação, segundo as cotações da respectiva bolsa de valores.
411 A expressão que se utiliza freqüentemente é a da minority freeze out (cfr. HENN, Harry G. et al.
Laws of Corporations, Third Edition, Hornbook Séries. Saint Paul, Minn.: West Publishing Co.,
1983, p. 736).

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A jurisprudência, a legislação e a doutrina norte-americanas se preocupa-


ram notoriamente por combater estas práticas irregulares e sancionar os que
incorrem nelas. A doutrina, já mencionada, dos deveres de confiança (fiduciary
duties) dos acionistas que controlam à sociedade com respeito aos minoritários é
corolário obrigado de tais tendências412. Da mesma forma, já se assinalou que os
juízes gozam de ampla arbitrariedade para proferir sentenças que permitam
restabelecer o equilíbrio que deve existir entre os sócios.
No famoso caso Donahue v. Rodd Electrotype Co. [367 Mass. 578,
328 N.E.2d. 505 (1975)], a Corte de Massachusetts determinou que os
sócios majoritários estão submetidos a uma obrigação de lealdade com relação
aos minoritários413, de maneira que não podem excluí-los da sociedade ou
negar-lhes a possibilidade de participar na administração da companhia, nem
muito menos privá-los da participação nos resultados sociais. A Corte
igualmente afirmou que existem certas características próprias das sociedades
fechadas (closely held corporations) que determinam que os referidos deveres
fiduciários sejam ainda mais exigentes do que nas sociedades que negociam
suas ações nos mercados de valores mobiliários. Tais condições se resumem no
escasso número de acionistas, a inexistência de um mercado público para as
ações e a participação substancial dos acionistas no manejo administrativo da
sociedade414. Trata-se, portanto, de sociedades que, apesar de constituir-se
como companhias de capitais, aproxima-se mais ao esquema da sociedade de
pessoas. Por isso, faz-se que o dever de boa fé neste tipo de companhias não
implica simplesmente uma atuação honesta, senão o mais alto grau possível
de lealdade.
Com o propósito de proteger aos titulares da minoria do capital, permitem-
se várias estipulações contratuais que se apresentam como um mecanismo de
defesa contra eventuais atuações opressivas por parte dos acionistas que tem o
controle. Dentro de tais cláusulas se encontram as de quorum e maiorias
extraordinárias (superquorum and supermajority requirements), os acordos de votação

412 Os denominados deveres de cuidado (duty of care) e de lealdade (duty of royalty) significam que
tanto os acionistas como os administradores estão obrigados a fazer diligentemente e de boa fé,
em exclusivo benefício da sociedade e seus acionistas como os administradores estão obrigados
a fazer diligentemente e de boa fé, em exclusivo benefício da sociedade e seus acionistas.
413 Isso nada mais é do que advertir que os acionistas minoritários também têm deveres de
lealdade frente aos majoritários.
414 Esta figura é bem semelhante à sociedade de responsabilidade limitada.

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168 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

(pooling agreements), as causas voluntárias de dissolução (voluntary dissolution) e


a participação direta dos acionistas na administração da sociedade415.
Por outro lado, algumas legislações, como as dos Estados de Delaware e
Califórnia, consagraram uma figura específica denominada sociedade fechada
(statutory close corporation), cujos contornos aparecem plenamente definidos
nas leis que sobre esse particular foram promulgadas. A vantagem desta definição
legal consiste em caso se verifiquem as características requeridas para configurar
essa qualificação, os acionistas podem utilizar diversos mecanismos de proteção,
cuja adoção não seria viável sob as disposições gerais da legislação societária. O
Sub-capítulo XIV da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware, por
exemplo, é aplicável com exclusividade às sociedades fechadas. De acordo com
a Seção 342 desse estatuto, para que uma companhia possa ser considerada
como sociedade fechada (close corporation) é indispensável que em sua ata de
constituição se expresse de modo explícito que a sociedade se enquadra no
regime das sociedades fechadas, que não tenha mais de trinta acionistas, que
as ações não sejam negociadas no mercado público de valores mobiliários e
que as ações emitidas estejam sujeitas a pelo menos uma das restrições à livre
negociação autorizadas pela lei416. Uma vez que se cumpriram os requisitos
aludidos, a sociedade pode aplicar todas as restrições próprias da forma societária
mencionada417. A escolha desta modalidade, como se afirmou, implicará uma
proteção muito maior para os acionistas minoritários.

5. TIPOS DE SOCIEDADES NOS ESTADOS UNIDOS

falta tavela

415 Vale a pena recordar que no sistema norte-americano a administração da sociedade corresponde
ao Conselho de Administração.
416 Tais restrições são as contidas na Seção 202 da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware.
417 Algumas das vantajosas estipulações que podem pactuar-se são as seguintes: 1. Acordos
privados que restrinjam a arbitrariedade dos administradores (Sec. 350); 2. Administração
direta pelos acionistas (Sec. 351); 3. Designação judicial de um administrador da sociedade
(Sec. 352); 4. Designação de diretores provisórios em certos casos (Sec. 353); 5. Operação da
sociedade como se tratasse de uma sociedade de pessoas (partnership), e 6. Opção dos
acionistas para dissolver a sociedade (Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware).

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falta tabela

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Capítulo IV
CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADES
DE CAPITAL

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1. PROCEDIMENTO PARA CONSTITUIR UMA SOCIEDADE


DE CAPITAIS

A maioria de Estados da União Americana, simplificaram enormemente


o processo de constituição de sociedades de capitais (corporation). Com isso se
tentou, naturalmente, oferecer um incentivo à atividade econômica dos parti-
culares e também atrair, em forma expedita, contribuintes do imposto sobre a
renda, bem como outros direitos relacionados com a atividade das sociedades.
Deve levar em conta que, como já se sugeriu, os requisitos para a constituição
de sociedades comerciais e de entidades sem ânimo de lucro tendem a ser
homogêneos418. O trâmite fundamental para constituir uma sociedade se conhece
com a expressão de constituição (incorporation). Dito vocábulo pode definir-se
como “o método por meio do qual um ou vários sujeitos de direito se unem
num novo ente jurídico”419. É um processo na verdade expedito no qual o
fundador ou fundadores (incorporator) apresenta ante o funcionário estatal
competente (usualmente o Secretário de Estado) a ata de constituição da
sociedade420. Este documento contém somente as menções essenciais requeridas
para identificar à sociedade ante a autoridade pública competente. Se os requisitos
legais se cumprem, o Secretário ou o funcionário respectivo expede um certificado
de constituição (certificate of incorporation ou charter), que dá lugar ao início da
existência legal da sociedade421. “Este certificado representa a permissão
outorgada pelo Estado para levar a cabo negócios sob a forma de sociedade
comercial” 422. De acordo com CLARK, “uma das contribuições mais

418 BJUR, Timothy et al. Fletcher Cyclopedia of the Law of Private Corporations, cit., p. 149.
419 CORLEY, Robert et al. Fundamentals of Business Law, Fourth Edition, Englewood Cliffs, NJ:
Prentice-Hall, 1986, p. 829.
420 Em inglês, articles of incorporation, certificate of incorporation ou, simplesmente, charter.
421 No Brasil existem duas formas de constituição da sociedade anônima: por subscrição pública
e por subscrição particular. A primeira “depende do prévio registro da emissão na Comissão de
Valores Mobiliários, e a subscrição somente poderá ser efetuada com a intermediação de
instituição financeira” (art. 82, Lei 6.404 de 1976). Esta é uma diferença fundamental com o
sistema americano, onde a subscrição ao público faz-se depois de constituída a sociedade
(CARVALHOSA, Modesto, op. cit., 2º Volume, p. 96). A subscrição particular não requer
registro na Comissão, e pode fazer-se de duas maneiras: por deliberação dos subscritores em
assembléia-geral ou por escritura pública (art. 88, Lei 6.404 de 1976).
422 HOWELL, Rate A. et al., op. cit., p. 673. É bem conhecida na doutrina anglo-saxão a denomi-
nada teoria da concessão, em virtude da qual o surgimento da personalidade jurídica depende
de uma “graça” estadual, que no Direito contemporâneo norte-americano é outorgada, geral-
mente, pela Secretaria de Estado. “A ‘lex mercatoria’ espanhola, igualmente ao ‘Common Law’,
baseava-se no realismo. A sociedade por ações não é uma criação do poder soberano. Não é
o Estado quem lhe dá vida. Não há, pois, teoria da concessão, também não existe a necessida-

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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174 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

significativas do Direito ao sistema econômico – apesar de ser geralmente


esquecida pelos advogados por sua escassa propensão a gerar litígios – foi a
criação de pessoas ou entidades fictícias, cujo reconhecimento legal permite
que sejam tratadas como se tivessem alguns dos atributos das pessoas naturais”423.
Por outro lado, é bem importante ter em mente a diferença que existe entre
as denominadas atas de constituição e os estatutos propriamente ditos (by laws).
A diferença do que ocorre nos países de Direito Civil, no sistema anglo americano
as cláusulas que regulam a existência e o funcionamento da sociedade se encontram
divididas em dois documentos separados424. Por um lado, as menções relacionadas
com as bases da sociedade, cujo conteúdo resulta especialmente relevante para o
Estado e os terceiros, devem aparecer nas atas de constituição425. Como se verá
mais adiante, somente estas menções básicas estão sujeitas à formalidade de registro
frente ao Secretário de Estado ou funcionário competente, seja no momento de
constituir-se a sociedade ou no evento de requerer-se uma reforma daquelas. Isto
se deve à consideração de que são estas as únicas circunstâncias que revestem um
verdadeiro interesse geral, que justifica o cumprimento de solenidades legais
específicas. Por outro lado, os estatutos426 “são as regras e regulações ou leis privadas
adotadas pela sociedade para governar, controlar e regular as ações e relações entre
os sócios, os membros do Conselho de Administração e os administradores sociais.
Usualmente os estatutos não se registram em nenhum escritório público e, por
tanto, só podem obter-se a partir dos arquivos de cada companhia”427.

de de que o legislador confira o atributo de responsabilidade limitada; este surge automatica-


mente sob a ‘lex mercatoria’, da simples associação de indivíduos numa sociedade por ações.
Diferentemente de como ocorreu historicamente no ‘Common Law’, não se requereu na
tradição civilista um pronunciamento legislativo para essa limitação; os códigos e leis em tais
sistemas cumprem tão só uma função declarativa a respeito do Direito vigente” (EDER. Company
Law..., cit., p. 16). Por exemplo, o art. 45 do Código Civil brasileiro diz “Começa a existência
legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo
registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo,
averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo” (Art. 45 do
Código Civil). O “respectivo registro” são o Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das
Juntas Comerciais, para o empresário e a sociedade empresária, ou Registro Civil das Pessoas
Jurídicas para a sociedade simples (art. 1.150 do Código Civil).
423 CLARK, Robert C. op. cit., p. 15.
424 Também na Inglaterra existe a distinção entre o denominado memorando de associação
(memorandum of association), que equivale à ata de constituição norte-americana (articles of
incorporation) e os artigos de associação (articles of association), que são assimiláveis aos
estatutos no regime estadunidense (by laws) (TUNC, André. Le Droit Anglais... cit., pp. 43-46).
425 Na Inglaterra recebem o nome de memorandum of association.
426 Nesse mesmo país recebem o nome de articles of association.
427 GRUSON, Michael et al. Legal Opinions in International Transactions, Foreign Lawyer’s Response
to US Opinion Requests, Second Edition, London: International Bar Association, 1989, p. 26.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 175

A. ATA DE CONSTITUIÇÃO (ARTICLES OF INCORPORATION) E


ESTATUTOS (BY LAWS)

Como já se mencionou, a maioria dos Estados reduziu significativamente


os requisitos legais exigidos para constituir uma sociedade de capitais (corporation).
Atualmente existe um grau significativo de uniformidade, de forma que as
formalidades são praticamente iguais em toda a União Americana. O processo
deve ser realizado sempre pelos sócios fundadores (incorporators)428. A função
destes últimos se limita a assinar e apresentar o ata de constituição (articles of
incorporation) ante o Secretário de Estado ou funcionário competente segundo
a lei estadual e, ocasionalmente, cumprir com as formalidades posteriores para
completar a organização da sociedade. Os “fundadores” não têm que ser membros
da administração da companhia, nem de sua Conselho de Administração, nem
acionistas da mesma. Sua participação na atividade da sociedade é usualmente
nula e se limita exclusivamente às formalidades iniciais de constituição.
Os fundadores devem indicar aquelas circunstâncias que segundo a lei do
Estado correspondente devem ser incluídas no ata de constituição. Então, as
modificações da ata devem ser aprovadas pela assembléia de acionistas e
posteriormente submetidas ao mesmo trâmite de registro ante a Secretaria de Estado.
Em conformidade com o disposto na Nova Lei Tipo de Sociedades de
Capital (RMBCA), é imperativo incluir as seguintes estipulações no ata de
constituição.
I. O NOME DA SOCIEDADE
Praticamente qualquer nome pode ser usado por uma sociedade constituída
em alguns dos Estados da União Americana. Exige-se, a utilização de uma palavra
ou abreviatura que lhe indique aos terceiros que se trata de uma sociedade. Tais

428 Alguns Estados costumavam exigir a presença de vários fundadores (usualmente três). No
entanto, a possibilidade de constituir sociedades individuais conduziu, geralmente, à supres-
são do requisito de pluralidade também no momento da constituição. Por isso, de acordo com
a Seção 2.01 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA), basta um só sócio
fundador. No caso do Brasil, a lei exige duas pessoas pela constituição da companhia (art. 80
da Lei 6.404 de 1976). A Lei 6.404 de 1976 tem entre as cláusulas de dissolução de pleno
direito, a redução a um único sócio: “Dissolve-se a companhia: [..] pela existência de 1 (um)
único acionista, verificada em assembléia-geral ordinária, se o mínimo de 2 (dois) não for
reconstituído até à do ano seguinte, ressalvado o disposto no artigo 251” (art. 206 da menci-
onada Lei). Em todo caso, na legislação brasileira, no artigo 251 da Lei 6.404/76, é viável a
criação da chamada subsidiária integral que, obviamente, pode se constituir com um só
acionista que é a sociedade controladora.

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176 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

vocábulos são, tipicamente, corporation, incorporated ou company (“corp.”, “inc.”


ou “co.”)429. Não se pode incluir no nome de uma sociedade palavras reservadas a
entidades sujeitas a regimes especiais ou a autorizações governamentais específicas.
Assim, por exemplo, os vocábulos bank, trust, certificate of deposit e insurance,
entre outros, não devem ser empregados em sociedades que não obtenham a
permissão correspondente. Existe, naturalmente, uma proteção importante ao
nome comercial, que implica que não é possível inscrever uma sociedade com
uma denominação igual, semelhante ou enganosamente similar à de outra,
registrada no mesmo Estado430. De acordo com a Nova Lei Tipo de Sociedades
de Capital (RMBCA), o nome da companhia deve ser necessariamente diferente
aos que aparecem inscritos na Secretaria de Estado correspondente.
Ademais, na maioria dos Estados existe a figura da reserva do nome431,
que permite aos particulares registrar uma determinada razão ou denominação
sociais ante a Secretaria de Estado enquanto se realizam os passos prévios à
constituição da companhia. A reserva se faz, usualmente, por um termo inicial
de três meses, prorrogáveis, mediante o pagamento das taxas respectivas.
II. O TERMO DE DURAÇÃO DA SOCIEDADE
A cláusula do termo de duração da sociedade no sistema norte-america-
no apresenta uma interessante evolução que poderia ser imitada nos sistemas
que ainda conservam rígidas limitações sobre o particular. Efetivamente, há
algum tempo, em certos Estados se exigia limitar o termo de duração das
sociedades, de maneira que a cláusula correspondente devia estabelecer um
lapso perfeitamente definido não superior a cinqüenta anos. Naqueles Esta-
dos nos quais a única obrigação consistia em estabelecer um termo definido
sem que se fixasse um prazo máximo, estendeu-se o costume de estabelecer
cláusulas de duração perpétua. Isso produziu uma mudança paulatina nas
legislações estaduais, que foram dando passos em direção à sistemas mais fle-

429 A legislação brasileira também contém essa exigência. Nos termos do artigo 3º da Lei 6.404 de
1976, “A sociedade será designada por denominação acompanhada das expressões ‘compa-
nhia’ ou ‘sociedade anônima’, expressas por extenso ou abreviadamente mas vedada a utiliza-
ção da primeira ao final”.
430 Segundo a lei societária do Brasil, existe uma proteção semelhante a existente nos Estados
Unidos para evitar a homonímia. “Se a denominação for idêntica ou semelhante a de compa-
nhia já existente, assistirá à prejudicada o direito de requerer a modificação, por via adminis-
trativa (artigo 97) ou em juízo, e demandar as perdas e danos resultantes” (artigo 3º, § 2º dela
Lei 6.404 de 1976).
431 A Seção 4.03 da Nova Lei Tipo de Sociedades Comerciais (RMBCA) consagra esta figura.

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xíveis. Na atualidade, em todos os Estados se suprimiu o requisito aludido.


Além disso, a Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) determina
que se nada se diz a respeito da duração da companhia, se entenderá que esta
é indefinida. Nada se opõe a que os sócios fixem prazos determinados. No
entanto, tal como o afirma ROBERT HAMILTON, “provavelmente não é
muito acertado fixar um prazo menor ao perpétuo, ainda que se queira que a
sociedade exista só por um período de tempo limitado. Ditas cláusulas podem
criar mais problemas do que benefícios a longo prazo, já que a expiração da
vigência antes de que se terminem as operações de uma sociedade pode dar
lugar a que ela tenha uma existência incerta. Se isto ocorre, sempre é possível
reformar o ata de constituição para ampliar sua vigência (ou estipular um
termo de duração perpétuo); mas, qual é a razão de pactuar cláusulas que
requeiram que alguém se lembre oportunamente de reformar?”432.
III. OS NOMES E DIREÇÕES DOS FUNDADORES

Segundo se afirmou, os fundadores são as pessoas que assinam os docu-


mentos de constituição433. Tanto as leis dos Estados, como a Nova Lei Tipo
de Sociedades de Capital (RMBCA) permitem que uma só pessoa cumpra as
formalidades próprias de dito processo. À luz de tais normas, o papel do
fundador se reduziu significativamente, de forma que simplesmente assina o
ata de constituição e a apresenta ante a Secretaria de Estado ou ante a entida-
de oficial competente. É importante ter em mente que tal figura não é equi-
valente às do acionista, promotor ou sócio fundador. Trata-se unicamente de
um ou vários mandatários que, em nome e por conta de um ou vários tercei-
ros, cumprem as solenidades exigidas para a criação da sociedade. Os funda-
dores estão facultados para receber o certificado de constituição ou charter,
uma vez expedido pelo Secretário de Estado, e para realizar a reunião para
culminar a organização da sociedade. Também podem convocar a primeira
reunião da Conselho de Administração e, ocasionalmente, podem reformar a
ata de constituição ou dissolver voluntariamente a sociedade, desde que não se
tenham iniciado operações nem se tenham emitido ações.
Tradicionalmente, os fundadores efetuavam uma reunião para concluir a
organização da sociedade. No entanto, a Nova Lei Tipo de Sociedades de

432 HAMILTON, Robert W. op. cit., p. 39. No caso brasileiro, o vencimento do prazo de duração é
causal de dissolução de pleno direito de sociedades anônimas (art. 206 dela Lei 6.404 de 1976).
433 Black’s Law, cit.

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178 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Capital permite que os membros do Conselho de Administração inicial se


designem no ata de constituição e que sejam eles mesmos quem completem a
organização da companhia, mediante a aprovação dos estatutos (by laws) e a
emissão das ações em que se divide o capital434.
Assim, a gestão dos fundadores se voltou, na verdade, rotineira. É por
isso que usualmente uma assinatura de advogados se encarrega de dito proces-
so. A atuação a título de fundador não arca maior risco nem responsabilidade
para a pessoa que a realiza.
IV. O OBJETO SOCIAL PARA O QUAL SE FORMOU
Como já se explicou, uma das diferenças fundamentais entre o sistema
estadunidense e o dos países que seguem a orientação europeu-continental
está na cláusula do objeto social. Efetivamente, estes últimos mantêm uma
constante devoção pela denominada teoria da especialidade, em virtude da
qual uma sociedade comercial somente está facultada a realizar as atividades
relacionadas diretamente com a cláusula que contém o objeto social435. Isso
implica uma incapacidade especial que pode gerar nulidade dos atos ultra
vires e que gera uma limitação notória à atividade dos órgãos de administração
e representação legal. À margem da discussão já proposta sobre a utilidade ou
obsolescência destas disposições restritivas, o verdadeiro é que o sistema se
caracterizou por uma significativa desconfiança nos administradores sociais.
Afirma-se que a obrigação de determinar precisamente as atividades às que se
dedicará a sociedade proporciona aos sócios uma garantia de que seus investi-
mentos não serão desviados em temerárias e inseguras empresas não previstas
no momento de constituir a companhia.
É importante ter em mente a sutil distinção conceitual, própria do siste-
ma estadunidense, entre a noção de objeto social (purpose) e a de atribuições
da sociedade (powers). Ao passo que a primeira se refere à empresa para a que
se constitui a sociedade, a segunda se relaciona com as atividades que ela pode
realizar para cumprir tal objetivo. De acordo com a Seção 3.02 da Nova Lei
Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA), “a não ser que as atas de constitui-
ção disponham o contrário, toda sociedade terá existência perpétua e conti-

434 Seções 2.02 (b)(1) y 2.05 (a) RMBCA.


435 Por exemplo, no caso brasileiro o objeto social deve ser claramente definido nos termos do art. 2º
do Lei 6.404 de 1976 que diz: “O estatuto social definirá o objeto de modo preciso e completo.”

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nuidade de seu nome e terá as mesmas atribuições que uma pessoa natural,
para fazer todas as coisas necessárias ou convenientes para realizar seus negó-
cios ou assuntos”436.
V. O ENDEREÇO DA SEDE REGISTRADA E O NOME DO PROCURADOR INSCRITO
A necessidade de que exista certeza com relação ao lugar onde a sociedade
pode ser notificada das demandas ou atuações administrativas que cursam
contra ela e de que exista uma pessoa que possa responder a tais notificações
em nome da companhia justifica a exigência em estudo. É, pois, indispensável
que a sociedade registre ante a correspondente Secretaria de Estado o endereço
da sede que receberá os referidos requerimentos judiciais ou administrativos e
o nome da pessoa que representará à companhia ante tais autoridades. Trata-
se de evitar que a correspondência relacionada com os assuntos mencionados
se confunda com outras comunicações dirigidas à sociedade, que possivelmente
não têm a mesma importância ou não requerem o atendimento imediato por
parte da companhia. Tanto a sede como o procurador inscrito são, usualmente,
uma assinatura de advogados que cumpre dita representação mediante um
contrato que se renova anualmente.
VI. A ESTRUTURA FINANCEIRA DA SOCIEDADE, COM INDICAÇÃO DO
NÚMERO E A CLASSE DE AÇÕES QUE A SOCIEDADE ESTÁ AUTORIZADA
PARA EMITIR

Um dos mais significativos avanços da legislação norte-americana com


relação aos regimes jurídicos de Europa continental e aos países que seguem

436 Tais atribuições incluem, entre outras, a possibilidade de demandar em nome da sociedade, ter
um selo distintivo da companhia, expedir e modificar os estatutos sociais (by laws), sempre que
não contrariem as atas de constituição ou as leis do Estado, comprar, receber, arrendar ou adquirir
a qualquer título toda classe de propriedades, vender, ceder, hipotecar, permutar ou dispor de
qualquer forma a propriedade, celebrar contratos, contrair obrigações, tomar dinheiro em mútuo,
expedir títulos, bônus e outros valores que poderão ou não ser convertíveis em ações, garantir
suas obrigações com garantia ou hipoteca, prestar dinheiro, investir e reinvestir seus recursos, ser
promotor, sócio, membro, acionista ou gerente de qualquer sociedade, joint venture, convênio
de interesse ou outra entidade, eleger diretores e designar administradores, empregados e
apoderados da sociedade, definir seus deveres, fixar suas remunerações e outorgar-lhes créditos,
pagar pensões e estabelecer planos de aposentadoria, fundos de pensões ou planos de partici-
pação nos resultados sociais para todos ou alguns de seus conselheiros, diretores, empregados
ou mandatários, efetuar doações a entidades de beneficência, caridade, ciência ou educação,
realizar qualquer negócio lícito que loja a apoiar as políticas governamentais, realizar seus
próprios negócios, estabelecer escritórios, e exercer as atribuições outorgadas pela lei, dentro ou
fora do Estado de constituição, efetuar pagamentos, doações ou realizar qualquer outro ato lícito
que ajude a cumprir os negócios e assuntos da sociedade (Cfr. os números 1 a 15 da Seção 3.02
da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA).

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180 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

essa orientação é o relativo à classificação das diferentes ações em que se pode


dividir o capital de uma companhia. Na realidade, existe sobre este particular
uma amplíssima liberdade contratual, que permite efetuar diversas classifica-
ções das ações que a sociedade pode emitir. Assim, a fim de facilitar a manu-
tenção da estrutura de controle de uma sociedade em determinados grupos de
pessoas, a lei permite atribuir-lhes às diferentes facções de acionistas o direito
de eleger um número específico de membros do Conselho de Administração.
De maneira que, por exemplo, aos grupos de acionistas das classes A, B e C,
que pertencem a três famílias diferentes, pode-se conferir a possibilidade de
eleger, cada um, três membros de um Conselho de Administração de nove.
Por outro lado, o sistema norte-americano tem acolhido a distinção entre
as ações ordinárias (common estoque) e as que têm dividendo preferencial sem
direito a voto (non voting common estoque). As primeiras, obviamente, outor-
gam todos os direitos que se derivam regularmente da qualidade de acionista,
incluídos os denominados “direitos políticos” do acionista, que lhe permitem
participar e decidir nas reuniões da assembléia geral. As ações preferenciais,
por sua vez, não outorgam ao seu titular o direito de voto, mas poderiam
conferir o direito a um dividendo que se paga com preferência no tempo com
relação aos acionistas ordinários. Dito dividendo pode consistir num valor ou
soma determinada ou pode ser calculado de maneira proporcional sobre a
percentagem de ações assinadas. Se o dividendo não é pago oportunamente,
pode ser acumulado com os resultados de exercícios posteriores, na forma
definida nos estatutos ou no prospecto. Também pode-se pactuar um direito
a reembolso preferencial com relação à quota social que lhe corresponde a
cada acionista no momento de liquidar-se a sociedade. Segundo COX, “o
efeito da preferência no processo de liquidação consiste em outorgar-lhe ao
acionista preferencial um risco menor ao que é inerente às ações comuns, as
que, em últimas, resultarão subordinadas à liquidação prioritária das ações
preferenciais. Claro que, como é lógico, os acionistas preferenciais só terão
direito a receber sua quota social de liquidação quando tenham sido satisfei-
tas todas as obrigações a favor de credores externos”437.
Finalmente, como já se indicou, é possível estipular diversas restrições à
livre negociação das ações. A eficácia, o alcance e as condições de tais restrições

437 COX, James D. Corporations, Fifth Edition, Herbert Legal Series, Sum & Substance, 1988, p. 278.

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podem aparecer na ata de constituição438. Como é apenas óbvio, é indispensá-


vel que a restrição conste em cada um dos títulos de ações, para assegurar que
os cessionários tenham adequada informação ao respecto.
VII. INFORMAÇÃO RELACIONADA COM O PRIMEIRO CONSELHO
DE ADMINISTRAÇÃO
Como já se explicou, na atualidade não é indispensável definir quem
ocuparão os cargos de membros do Conselho de Administração inicial. É por
isso que na maioria de Estados é possível não fazer expressa referência aos
conselheiros da companhia na ata de constituição. Nestes casos, os fundadores
deverão celebrar uma reunião posterior de organização da sociedade na qual se
efetuará a correspondente eleição. Não se requer pluralidade para integrar a
Conselho de Administração, de maneira que uma só pessoa pode constituí-la
integralmente. Nos casos nos quais o órgão sé plural, aplicam-se as disposições
sobre convocação, quorum e maiorias decisórias, na forma pactuada nos esta-
tutos. Permite-se, em geral, a denominada renúncia à convocação (waiver of
notice), que consiste em um ou vários membros do Conselho podem expressar
por escrito sua aquiescência frente à falta de convocação, sem que isso afete, de
forma alguma, a validez das determinações adotadas. É esta uma modalidade
que oferece inegáveis vantagens práticas, especialmente nos casos em que a
urgência dos assuntos para decidir não dá tempo para cumprir com formalis-
mos que implicam informação antecipada aos conselheiros a respeito da data,
lugar e natureza da reunião. Também são úteis as denominadas reuniões tele-
fônicas, nas que não existe presença física dos membros da Conselho de Ad-
ministração num só recinto, mas apenas que os conselheiros se comuniquem
por telefone, de tal forma que todos possam ouvir de maneira simultânea o
que os outros estão dizendo.
VIII. CLÁUSULAS RELACIONADAS COM A ESTRUTURA INTERNA
DA SOCIEDADE

Tal como se expressou anteriormente, não é obrigatório incluir na ata de


constituição as estipulações acidentais que se relacionam com a vida interna
da sociedade. Tais cláusulas se enquadram melhor nos estatutos sociais (by
laws). No entanto, os fundadores podem preferir que ditas regras sejam in-

438 Também é possível introduzi-las nos estatutos (by laws) ou em acordos privados entre os sócios
(shareholders| agreements).

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181 5/7/2011, 18:04
182 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

cluídas no documento que se apresenta a consideração do Secretário de Esta-


do. Procura-se com isso dar uma maior solenidade a cláusulas que, de acordo
com a lei, não a requerem. Trata-se de uma formalidade ad voluntatem, que
os sócios acolhem com o propósito de obter maior segurança jurídica a respei-
to de tais estipulações. A inclusão de cláusulas acidentais na ata de constitui-
ção pode, contudo, criar mais dificuldades do que vantagens, como exige que
qualquer modificação que se pretenda efetuar às mesmas requererá não so-
mente o cumprimento do mesmo trâmite de registro ante a Secretaria de
Estado, senão ademais a aprovação obrigatória da reforma por parte da assem-
bléia de acionistas.

2. CONSTITUIÇÃO EFETIVA E DEFEITUOSA


O procedimento para a correta e efetiva constituição de sociedades ad-
quire grande importância devido às severas conseqüências que implica a cons-
tituição de uma sociedade sem a observância dos requisitos mencionados
anteriormente. Precisamente, a defeituosa constituição da companhia dá lu-
gar a que os juízes se neguem a considerá-la como uma pessoa jurídica dife-
rente dos sócios individualmente considerados. Isso implica que, ao não se
produzir uma separação patrimonial entre os bens de uma e outros, os acio-
nistas devam responder pessoalmente pelas obrigações da companhia, como se
tratasse de uma sociedade de pessoas (partnership)439.
No entanto, e com o fim de resolver o problema da extensão de
responsabilidade em hipótese de constituição defeituosa de uma sociedade, a
jurisprudência e as legislações estaduais estabeleceram teorias que representam
verdadeiras exceções a esta regra. Tais sistemas se denominam doutrina da
existência societária suposta (de facto corporation) e doutrina da proteção de
procuradores e acionistas (corporation by estoppel), as quais, em conjunto com
a figura da sociedade validamente constituída (De Iure Corporation), cons-
tituem as principais teorias em torno da constituição devida ou indevida de
sociedades.

439 Este tipo de sociedade sem personalidade jurídica é contemplada pela legislação brasileira, no
art. 986 do Código Civil, e se denomina “sociedade em comum”. Nos termos do artigo 986,
“enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em
organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele
forem compatíveis, as normas da sociedade simples”.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 183

A. SOCIEDADES VALIDAMENTE CONSTITUÍDAS (DE IURE CORPORATIONS)


Uma vez satisfeitos em sua totalidade os requisitos para a constituição
previamente enumerados, a sociedade é considerada uma entidade legal, e é
possível equipará-la à sociedade regularmente constituída dos sistemas romano-
germânicos. Na autorizada opinião do professor STEPHEN M.
BAINBRIDGE, “a sociedade de Iure é uma verdadeira sociedade: uma pessoa
jurídica que foi validamente constituída, mediante o cumprimento de todos
os requisitos exigidos pela lei”440.

B. DOUTRINA DA EXISTÊNCIA SOCIETÁRIA SUPOSTA (DE


FACTO CORPORATIONS)

Para que esta doutrina possa ser aplicada, é indispensável que os acionis-
tas ou procuradores tenham procedido de boa fé no processo de constituição
da sociedade, que se tenham observado a maioria de solenidades próprias do
processo de constituição441 e que os administradores tenham exercido as atri-
buições da sociedade, por meio do efetivo desenvolvimento do objeto social.
Frente a tais circunstâncias, o juiz pode considerar que, pese à irregularidade
de sua constituição, a sociedade mereça ser tratada como uma entidade legal
(de iure corporation) e, em conseqüência, a responsabilidade dos acionistas deve
ser restringida ao montante de suas respectivas contribuições.
BAINBRIDGE expressou, sobre a doutrina da existência societária su-
posta, que “o argumento do ponto de vista econômico para não permitir que
os credores de uma sociedade de facto atribuíam responsabilidade pessoal a
seus acionistas é essencialmente o mesmo que foi utilizado para sustentar a
limitação de responsabilidade numa sociedade de iure”442. Efetivamente, a
necessidade de proteger os sócios que confiaram no benefício da limitação de
responsabilidade se reflete em idêntica forma no caso da sociedade regular-
mente constituída e na sociedade criada de forma defeituosa. Ainda que nesta
última, alguma irregularidade menor impediu o surgimento de um sujeito de
Direito independente, as condições relativas ao processo de constituição da

440 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 52.


441 Com exceção de algumas realmente intransponíveis, tais como a falta de autenticação das
assinaturas dos fundadores ante notário, o não pagamento das taxas de constituição, a omis-
são de algum registo requerido pela legislação estatal etc.
442 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 53.

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184 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

sociedade permitem inferir, sem dúvida alguma, que a vontade dos sócios
estava encaminhada para o efetivo acontecimento daquele fato. Não seria pro-
cedente, então, sancionar a quem, confiado na eficácia do ato constitutivo da
sociedade, é posteriormente surpreendido por alguma situação irregular da
que não era consciente.
No entanto, o benefício outorgado às sociedades de facto pelas cortes
não é, em nenhum caso, absoluto. Pelo contrário, é viável que uma sociedade
de facto perca o referido benefício como conseqüência de uma sentença judi-
cial. Assim, o professor BAINBRIDGE expressou sobre o particular que “o
benefício outorgado às sociedades de facto não impede que o Estado possa
refutá-lo por meio de um procedimento orientado a deslegitimar a existência
suposta de uma sociedade criada de forma defeituosa”443.
Também é importante ressaltar que, dada a relativa simplicidade dos trâ-
mites necessários para a constituição de sociedades em Estados Unidos, foi-se
desenvolvendo certa tendência a eliminar a doutrina da existência societária
suposta. Esta tendência foi expressa com grande clareza nos comentários à Lei
Tipo de Sociedades de Capital (Model Business Corporation Act, MBCA), nos
quais se precisa que “a abolição do conceito da constituição de facto de uma
sociedade é acertada. Não existe razão alguma para defender a existência e vali-
dez de uma sociedade de facto sob o regime societário, na medida que o proces-
so para a devida constituição de sociedades é suficientemente simples e claro”444.

C. DOUTRINA DA PROTEÇÃO DE PROCURADORES E ACIONISTAS


(CORPORATIONS BY ESTOPPEL)
A figura anglo-saxão do estoppel impede que uma pessoa que atuou em
determinada forma reclame um direito em detrimento de outro indivíduo
que, por estar legitimado para confiar no valor jurídico de tal atuação, tiver
atuado de conformidade com ela445. A referida figura foi acolhida pelo Direi-

443 Ibidem, p. 53.


444 §146 do Model Business Corporation Act (pre-1984), citado pelo juiz Denecke no caso
Timberline Equipment Co. v. Davenport, Oregon Supreme Court, [267 Or. 64, 514 p. 2d 1109
(1973)], a sua vez citado por Ou’KELLEY e THOMPSON, op. cit., p. 695.
445 Graham v. Asbury, (112 Ariz. 184, 540 p. 2d 656, 658), citado em Black’s Law Dictionary,
Centennial Edition, 1991, p. 551. Segundo EDER, o “estoppel” “constitui uma extensão da
regra segundo a qual ninguém pode aproveitar-se indevidamente de seus próprios atos. Em
virtude de uma presunção juris et de jure, o ‘estoppel’ impede juridicamente a uma pessoa
afirmar ou negar a existência de um fato quando tal pessoa realizou um ato, formulado uma

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


184 5/7/2011, 18:04
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 185

to Societário estadunidense e é a base para a doutrina da proteção de procura-


dores e acionistas (corporations by estoppel). Segundo esta teoria, os terceiros
que lhe deram à sociedade defeituosamente constituída o tratamento de pes-
soa jurídica em suas relações de negócios não podem posteriormente, ante a
insolvência da sociedade, alegar a irregularidade de sua constituição, com o
propósito de tentar uma responsabilidade direta dos acionistas ou procurado-
res pelas obrigações sociais446. A importância da doutrina mencionada radica
em que, para sua aplicação, não é necessário provar a boa-fé no processo de
constituição da sociedade. A vantagem desta doutrina consiste em que só se
requer provar que um terceiro, depois de ter reconhecido a existência de uma
sociedade constituída de maneira deficiente, tiver tentado valer-se de dita
anomalia para lucrar-se.
A doutrina da proteção de procuradores e acionistas, não obstante, foi
empregada de diversas formas, e por isso não existem ainda regras definidas
para sua aplicação. No entanto, o caso Thompson Optical Institute v. Thompson
constitui um precedente de suma importância no desenvolvimento da referi-
da doutrina. Este se refere à demanda de R.A. Thompson em face da socieda-
de Thompson Optical Institute, à qual aquele, na qualidade de acionista
majoritário, vendeu uma ótica que tinha administrado por vários anos. A ven-
da implicava também a celebração de um acordo para que não tivesse concor-
rência entre a sociedade e o senhor Thompson. No entanto, passados alguns
anos, este último vendeu sua participação na sociedade a um terceiro, para

declaração ou efetuado uma negação em sentido contrário. Uma pessoa está impedida
(‘estopped’) por sua própria conduta, se outra pessoa, induzida por tal comportamento, bem
intencional ou fraudulentamente, adquire uma obrigação ou se vê prejudicada em sua pessoa
ou em seus bens” (A Comparative Survey..., cit., p. 75).
446 Sobre este particular é interessante conferir o caso Cranson v. International Business Machine,
Corp. [234 Md. 477, 200 A.2d 33 (1964)], no qual “a Corte de Apelações do Estado de
Maryland estabeleceu a diferença entre a doutrina de proteção de procuradores e acionistas
(‘corporations by estoppel’) e a doutrina da existência societária suposta (‘De facto corporations’).
A Corte explicou que esta última só pode ser aplicada nos casos nos quais a ata de constitui-
ção tiver sido devidamente radicadas para a constituição da sociedade. A doutrina da proteção
de procuradores e acionistas (‘corporation by estoppel’), por sua vez, pode ser alegada quando
se demonstra que um ou vários terceiros contrataram com uma sociedade defeituosamente
constituída depois de tê-la tratado como uma sociedade de iure, vale dizer, que diversos
terceiros confiavam em que a sociedade cumprisse suas obrigações, em lugar de seus adminis-
tradores individualmente considerados. Ainda que exista consenso a respeito da aplicação da
doutrina da existência societária suposta (‘de facto corporations’) em casos nos quais se
procedeu de boa fé durante o procedimento de constituição, a opinião está dividida a respeito
de se na falha de Cranson se estabeleceu que a falta de registo da ata de constituição, por si só,
eliminava a possibilidade de sua aplicação” (BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 54).

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186 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

depois violar o referido acordo, mediante o estabelecimento de uma nova óti-


ca. Ao se ver demandado pela sociedade, Thompson alegou que a demandan-
te não tinha sido validamente constituída. A Corte do Estado de Oregon
aplicou a doutrina da proteção de procuradores e acionistas, mediante o argu-
mento, segundo o qual, Thompson não poderia beneficiar-se da constituição
irregular da sociedade quando no passado tinha contratado com ela como se
fosse um ente jurídico validamente constituído447.

447 Thompson Optical Institute v. Thompson, (119 Or. 252, 237, p. 965), citado por O’KELLEY,
Charles R. e THOMPSON, op. cit., p. 695.

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Capítulo V
REGIME DERESPONSABILIDADE
DOS SÓCIOS

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 189

1. O DEBATE SOBRE A RESPONSABILIDADE COMUNITÁRIA


DAS COMPANHIAS

O regime jurídico das sociedades de capital se orientou, tradicionalmen-


te, para a limitação da responsabilidade dos acionistas ao montante de seus
respectivos aportes448. No entanto, este benefício é utilizado em ocasiões para
propósitos que excedem aquelas finalidades para as quais foi outorgado449.
Portanto, surgiram vozes que clamam por uma extensão da responsabilidade
para atingir também os acionistas das sociedades de capital, em especial nas
hipóteses de responsabilidade civil extracontratual. Os possíveis abusos na uti-
lização da sociedade, cujos efeitos podem repercutir em detrimento dos credo-
res sociais, geraram, além disso, uma tendência a estabelecer regimes excepcionais
para comprometer a responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais450.

448 Na autorizada opinião de GALGANO, “o beneficio da limitação de responsabilidade estava


interditado, na época precapitalista, à classe empresarial: qualquer que fosse a forma jurídica
assumida – a de empresário individual ou a de sócio de uma sociedade coletiva ou a de sócio
coletivo de uma sociedade comanditária – o empresário estava, inevitavelmente, submetido a
responsabilidade ilimitada. A vantagem de limitar, assumindo a figura de sócio comanditário,
a responsabilidade própria ao capital contribuído, era, em troca, oferecida a outras classes
proprietárias de riqueza mobiliaria e, sobretudo, às classes proprietárias de terras: a estas a
figura jurídica da sociedade comanditária permitia investir em atividades mercantis parte das
próprias rendas sem correr outro risco que o de perder o capital contribuído. O fato novo que
se apresenta com a sociedade anônima é a chegada de um tipo de sociedade na que todos os
sócios, e não somente uma parte deles, assume responsabilidade limitada: o fato novo consis-
te, em termos econômico-sociais, na obtenção do benefício da responsabilidade limitada por
parte da classe empresarial” (As Instituições..., cit., p. 78). O professor RODRIGRO FERRAZ
PIMENTA DA CUNHA, por sua vez, informa que “a concepção da responsabilidade limitada
é atualmente considerada evidente, encontrando-se amplamente difundida e pacificamente
aceita...” (Estrutura de Interesses nas Sociedades Anônimas. Hierarquia e Conflitos. São Paulo:
Quartier Latin. 2007. p. 57). Cfr. CORDEIRO, Antônio Menezes. Manual de Direito das Socie-
dades. Das sociedades em geral. 2ª Ed. Palheira. Almedina. 2007. p. 242.
449 Segundo informa MCCAHERY, desde a concepção mesma do princípio de limitação de res-
ponsabilidade, esta prerrogativa foi objeto de duras críticas, atinentes à possibilidade de que
quem gozam desse benefício incorram em condutas abusivas. “Enquanto o princípio de
limitação de responsabilidade foi aclamado por alguns como uma importante inovação da era
industrial, outros o denegriram de forma vigorosa. Os seguidores desta prerrogativa basearam
suas opiniões no papel desempenhado pelas companhias de responsabilidade limitada a
respeito da criação de riqueza nos sistemas econômicos. Os detratores do princípio menciona-
do sustentaram que a limitação de responsabilidade só serviria como um mecanismo de
transferência dos recursos dos credores, para os acionistas das companhias que gozassem
desse benefício [...]. Estes últimos também aludiram à participação desta classe de sociedades
em atividades delitivas, tais como a contaminação ambiental e o roubo” (“Understanding
(Um)incorporated... cit.”, pp. 15-16). Cfr. SALVADOR, Rejane. Responsabilidade ilimitada –
teoria maior e menor – desconsideração da personalidade jurídica. In: Intermas, Vol. 4,
Fevereiro de 2009, pp. 180-189.
450 Segundo Vanessa Ribeiro Correa, “Ocorre que muitas vezes a deturpação do caráter e a cupidez
fazem com que a sociedade seja vista como um instrumento através do qual torna-se possível
a realização de fraudes. Nesses casos, obviamente, impõe-se a atuação do Estado, na medida

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190 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Assim, por exemplo, os casos de danos ecológicos causados pela atividade da


sociedade ou opagamento de certos impostos de sua responsabilidade são tra-
tados nas leis federais como obrigações que os sócios poderiam assumir solida-
riamente451. Assim, as diversas teorias sobre extensão de responsabilidade que
foram desenvolvidas pelas cortes estadunidenses contribuíram a praticar os
abusos relacionados com o manejo interno das sociedades452.
Ainda que exista consenso entre os autores a respeito da necessidade de
defender o princípio de limitação de responsabilidade aos casos de responsabilidade
contratual, a doutrina estadunidense se encontra dividida em torno da
conveniência de estendê-la em relação aos prejuízos resultantes de ações de
responsabilidade civil extracontratual. A discussão se centra em justificar soluções
para enfrentar a relativa carência de proteção em que se encontram os terceiros
ante esta classe de ações quando a sociedade que os causou se tornar insolvente.
Afirma-se que as pessoas afetadas, por não ter contratado com a sociedade, não
tiveram a oportunidade de expressar seu consentimento nem de protegerem-se
dos prejuízos aos que no fim terminaram expostas. Assim, o benefício da limitação
de responsabilidade afeta estes indivíduos em maior grau, já que a única fonte
de pagamento de tais prejuízos dependerá da suficiência de ativos sociais. De
maneira que ao se esgotar os recursos patrimoniais da companhia a posição de
crédito destes terceiros se fará extremamente precária.

2. DOUTRINAS SOBRE A NECESSIDADE DE UMA EXTENSÃO DA


RESPONSABILIDADE NA SOCIEDADE DE CAPITAL
Como se afirmou, a discussão sobre a extensão da responsabilidade nas
sociedades de capital não se estende ao âmbito dos credores contratuais da
companhia. As pessoas que de maneira voluntária celebram negócios jurídicos

em que a finalidade precípua para a qual a sociedade foi criada não foi obedecida, devendo
receber, por conseqüência, a devida reprimenda legal […]” (Desconsideração da personalida-
de jurídica: teoria e legislação no Brasil. In: Revista da Facultade de Direito de Campos, Ano
VII, Vol. 9, Dezembro de 2006, p. 401).
451 Em matéria de dano ambiental, é relevante a lei denominada CERCLA (“Comprehensive
Environmental Response, Compensation and Liability Act”). O estatuto citado é o mais relevante
dentre aqueles que foram promulgados nos Estados Unidos para regular assuntos relativos ao
dano ambiental. Para uma análise mais detalhada deste aspecto pode ver-se o Capítulo II, supra.
452 Cfr. SZTAJN, Rachel. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: Revista Direito do Consu-
midor 2, pp. 67-75; CARPENA, Manoel. Desconsideração da personalidade jurídica. In:
Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, RJ, nº 8, v. 2, 54-68, 1999.

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com uma sociedade, o fazem depois de avaliar os riscos e benefícios resultantes


dessa relação. Não parece razoável, portanto, que possam beneficiar-se ante uma
contingência de risco que puderam conhecer anteriormente, depois de expressar
seu consentimento. Além disso, os tratadistas HENRY HANSMANN e
REINIER KRAAKMAN afirmam que a existência do benefício de limitação
de risco a respeito desta classe de credores, obedece à prerrogativa que assiste aos
particulares de atuar livremente no desenvolvimento de seus negócios. Assim, “a
limitação da responsabilidade relacionada com as dívidas contratuais de uma
sociedade permite que os riscos da sociedade se distribuam entre credores e
sócios, da maneira que ambos considerem mais eficiente”453.
Por outro lado, a tese dos referidos autores também tem implicações sobre
a forma que os terceiros perceberiam a capacidade patrimonial da sociedade. Na
sua opinião, na medida em que os acionistas de uma sociedade estivessem sujei-
tos a um regime de responsabilidade ilimitada, o capital efetivo daquela aumen-
taria de modo significativo, a tal ponto que sua capacidade patrimonial seria
virtualmente infinita.
Agora bem, parte da doutrina, como se explicará mais adiante, precisou
que a eliminação do benefício de limitação da responsabilidade para os acio-
nistas de sociedades abertas teria resultados adversos para o sistema econômi-
co454. Estas conseqüências recairiam, em princípio, sobre o mercado público
de valores mobiliários, com efeitos de notória gravidade, tais como a diminui-
ção da negociabilidade das ações daquelas sociedades que forem despojadas
do referido benefício455. HANSMANN e KRAAKMAN, em contraposi-
ção, estimam que tal mercado não se veria afetado de maneira alguma em
virtude de uma legislação adequada que eliminasse a limitação de responsabi-

453 HANSMANN e KRAAKMAN, op. cit., p. 1919.


454 De acordo com a Márcia Pereira e Eduardo Bastos, “a limitação de responsabilidade possibili-
tou aos indivíduos distribuir, mensurar – sempre ex ante – o risco que o exercício de determi-
nada atividade econômica sob a forma da sociedade acarretaria, sob o ponto de vista patrimonial,
aos interessados. Com isso, o direito facilitou o processo de tomada de decisão de cooperar
entre si por parte de indivíduos detentores de capital, que são naturalmente avessos ao risco
ilimitado de perda. O direito, portanto, percebeu a necessidade e utilidade de tais mecanismos
de previsibilidade e limitação do risco para a coletividade e positivou-os (…). A subtração da
limitação de responsabilidade precisa ser ponderada a partir da ótica econômica, especialmen-
te levando-se em consideração seu impacto no estágio de desenvolvimento econômico e
social do país” (A limitação de responsabilidade como instrumento de desenvolvimento
econômico e social, em Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, Brasília. CONPEDI.
2008. pp. 1062 e 1070).
455 Cfr. infra., pp. 148-149.

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192 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

lidade nas sociedades de capital sob certas hipóteses456. Os citados autores,


ademais, expuseram as principais características que deveria ter uma norma
dessa natureza, entre as quais podem sintetizar-se as seguintes.

A. OPORTUNIDADE PARA ESTENDER A RESPONSABILIDADE AOS ACIONISTAS


O aspecto que apresenta o maior grau de complexidade na expedição de
uma norma das características mencionadas é a determinação do momento para
estender a responsabilidade. As ações deste tipo de companhias são negociadas
livremente no mercado público de valores mobiliários. Por isso, um sócio que
antecipe os riscos de uma decisão judicial adversa que possa conduzir à insolvência
da companhia poderia estar inclinado a alienar ou a doar suas ações a terceiros
insolventes, de modo a evadir sua responsabilidade pessoal pelas obrigações sociais.
Os autores citados assinalam o mecanismo mais propício para atenuar o risco
que assumem os terceiros ao se relacionarem de maneira involuntária com a
sociedade, sem que a participação desta dentro do mercado de valores mobiliários
seja afetada. Este mecanismo consiste em tentar que a extensão se produza a
respeito de quem for titulartitular de ações no mesmo momento que tenha sido
proposta uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra a companhia.
Contudo, formulam várias exceções relacionadas com a informação de que pudessem
dispõem certos acionistas ou administradores antes desse momento. Em seu
conceito, seria necessário suprimir o benefício da separação patrimonial que ampara
os acionistas, imediatamente depois que a administração lhes tiver advertido o
possível início de ações em face da sociedade, ou no momento em que ela tiver
sido dissolvida sem ter previsto um sucessor contratual457. Ao existir uma disposição
desta natureza, os títulos de ações de uma companhia afetada por prejuízos derivados
de responsabilidade civil extracontratual poderiam ser negociados livremente sem
que o compromisso patrimonial que afetaria aos sócios anteriores ao litígio pudesse
prejudicar os adquirentes. Além disso, é claro que os acionistas chamados a responder
o fariam em proporção ao montante de seus respectivos aportes e tão só de modo
subsidiário, após o esgotamento do patrimônio social.

B. RESPONSABILIDADE LIMITADA ANTE OS CREDORES CONTRATUAIS


HANSMANN e KRAAKMAN concordam, da mesma forma, na ne-
cessidade de limitar a responsabilidade dos acionistas em relação às dívidas

456 HANSMANN e KRAAKMAN, op. cit., p. 1895.


457 Ibidem, p. 1897.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 193

contraídas pela sociedade ante credores voluntários. Como se assinalou antes, as


pessoas que escolherem negociar com uma companhia, diferentemente dos
terceiros prejudicados sem seu consentimento, conheciam de antemão os riscos
inerentes a essa relação de negócios. Não poderiam, por tanto, beneficiar-se do
mesmo privilégio outorgado aos sujeitos afetados que não tiverem tido a
oportunidade de conhecer as conseqüências de entrar em contato com a sociedade.
Daí que assinalem, da mesma forma, que uma lei que despoje do referido benefício
os acionistas deveria diferenciar de maneira cortante entre ações derivadas de
responsabilidade civil contratual e extracontratual. Esta distinção é dispendiosa
em alguns ramos do Direito nos quais os limites entre ambas modalidades de
prejuízo foram obscurecidas pelas cortes norte-americanas. Assim, os autores
aludem, por exemplo, ao regime trabalhista e ao de proteção ao consumidor por
produtos defeituosos como casos de difícil discernimento. Nestas áreas, apesar de
mediar um contrato entre a sociedade e o terceiro afetado, os prejuízos poderiam
assimilar-se aos de natureza extracontratual. Os citados autores indicaram que a
solução a este problema está na formulação de uma regra que permita diferenciar
de maneira definitiva entre as duas classes de credores. Para tanto, seria necessário
determinar se a pessoa afetada pôde conhecer de antemão os principais riscos
inerentes a sua relação com a sociedade; se não teve a oportunidade de conhecê-
los, a responsabilidade deverá então ser estendida aos acionistas.

C. MECANISMOS DE APLICAÇÃO DO REGIME DE EXTENSÃO


DE RESPONSABILIDADE

Não existe unanimidade entre os autores que propõem a adoção de um


regime de extensão de risco, a respeito do método mais eficaz para introduzi-
lo na legislação estadunidense. HANSMANN e KRAAKMAN afirmam
que esta norma poderia ser introduzida nas legislações estaduais relativas à
responsabilidade civil extracontratual, sem necessidade de modificar a legisla-
ção societária dos Estados. Não obstante, outros autores consideram que uma
norma que não tenha natureza federal careceria de suficiente eficácia para o
funcionamento adequado de tal regime458.

458 Alguns autores afirmam que uma regulação de caráter federal seria mais efetiva para implantar
um regime de extensão de responsabilidade, devido aos diferentes impedimentos constitucio-
nais existentes nos Estados Unidos. JANET COOPER ALEXANDER expressou sobre o particular
que, “de um ponto de vista processual, não é viável que por meio de leis estatais se introduza
um regime de extensão de responsabilidade aplicável aos acionistas de sociedades de capital
abertas. [...]. Existem barreiras legais, algumas de natureza constitucional, que não podem ser

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194 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Por outro lado, os dois tratadistas aludidos analisaram diferentes


conseqüências da entrada em vigência de um regime de responsabilidade
estendida para os acionistas de uma companhia. Na sua opinião, com estes
perdendo o benefício de limitação de risco, o setor segurador proporcionaria
cobertura especial para amparar os sinistros relacionados com as obrigações dos
sócios por prejuízos ocasionados a terceiros. Mediante estas novas apólices de
seguro os acionistas poderiam estimar, com relativa certeza, o montante ao qual
se veriam expostos. Ainda que isso represente um aumento nos custos de operação
para as sociedades ou seus acionistas, os efeitos adversos derivados do regime de
extensão de responsabilidade poderiam ser controlados de maneira efetiva459.
Convém advertir que a proposta de HANSMAAN e KRAAKMANN
também foi rebatida com fundamentos empíricos que mostram que, na prá-
tica, a percentagem de falências de sociedades abertas cujo início tenha se
originado em condenações derivadas de responsabilidade civil extracontratual
não é significativo. Ante esta crítica, reagiram da seguinte forma: “Poderia-se
pensar que a perda do benefício de limitação do risco por parte dos acionistas
de uma sociedade aberta, em casos de responsabilidade extracontratual, é des-
necessária, porquanto muito poucas destas sociedades foram declaradas fali-
das por causa da referida responsabilidade. No entanto, sobram razões para
eliminar o benefício indicado nas sociedades inscritas em bolsa. Em primeiro
lugar, o número de sociedades que faliram por causa de ações de responsabili-
dade civil extracontratual pode não ser representativo da periodicidade com
que ocorrem situações nas quais os prejuízos excedem o valor total do patri-
mônio da sociedade; a isto se soma o fato de que as vítimas que pretendem
demandar a uma sociedade aberta dotada do benefício de limitação da res-
ponsabilidade estarão inclinadas a transigir por um valor inferior ao de suas
pretensões. Em segundo lugar, existe uma tendência a que no futuro próximo
se incremente o número de ações de responsabilidade civil extracontratual

transpostas sem ignorar pressupostos essenciais do processo...”. (Unlimited Shareholder Liability


Through a Procedural Lens. Harvard Law Review, 1992, nº 387, Boston, MA, p. 50).
459 O professor GEOFFREY P. MILLER, por sua vez, assinalou outro importante efeito que se
poderia produzir ao acolher-se a teoria de HANSMANN e KRAAKMAN. MILLER afirma: “O
argumento de HANSMANN e KRAAKMAN a respeito da responsabilidade ilimitada não
persuadiu a muitos na comunidade acadêmica, e certamente a muito poucos fora da torres de
marfim, devido à percepção de que a responsabilidade ilimitada seria extremamente devasta-
dora para a formação de capital e bastante cara de administrar” (“Dás Kapital: Regulação da
solvência da empresa comercial estadounidense”, na análise econômica do Direito e a Escola
de Chicago, Lima, Universidade Peruana de Ciências Aplicadas, 1994, p. 125).

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contra sociedades abertas nas que as pretensões superem seu patrimônio lí-
quido [...]. Por último, qualquer tentativa de eliminar o referido benefício só
nas sociedades fechadas, teria como conseqüência a sistemática conversão de
todas estas companhias em sociedades abertas, mediante a cessão de uma pe-
quena porção de suas ações no mercado público de valores mobiliários”460.

3. IMPORTÂNCIA DA LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE NAS


SOCIEDADES DE CAPITAL
As considerações expostas são suficientes para se afirmar que a vantagem
principal da sociedade de capital nos Estados Unidos, consiste na limitação da
responsabilidade dos sócios ao montante de seus respectivos aportes461_462. Nos
casos de insolvência ou falência da sociedade, o investidor no máximo perderá o
montante de seu investimento. Pelo contrário, nas sociedades de pessoas
(partnerships), o sócio arriscará, além do contribuído, seu patrimônio pessoal463.
Este último poderia ser perseguido pelos credores sociais em relação às obrigações
derivadas da atividade da sociedade, de acordo com um regime que é semelhante
ao que se aplica aos sócios das sociedades coletivas de origem romano-germânica.
Nas sociedades de caráter híbrido (limited partnerships), os sócios gestores também
devem responder solidariamente por algumas das obrigações da sociedade.
Contudo, a tese da separação patrimonial na sociedade capitalista segue sendo
considerada se como base fundamental do sistema econômico e, em particular,
do mercado público de valores mobiliários464.

460 HANSMANN e KRAAKMAN, op. cit., p. 1895.


461 “O sistema jurídico dos Estados Unidos constitui, sem lugar a dúvidas, o exemplo mais
representativo da denominada teoria da entidade legal (entity approach). Arraigado fortemente
na estrutura conceitual da personalidade jurídica e o desejo explícito de tentar a responsabi-
lidade limitada, cuja inserção data de começos do século XIX, este sistema está dominado pela
perspectiva que concerne a um arquétipo próprio da disciplina jurídica da entidade legal.
Segundo esta, cada sociedade constitui uma pessoa jurídica independente, com seus próprios
direitos e obrigações, ainda que se encontre controlada por outra sociedade. (ENGRACIA-
ANTUNES, José. Liability of Corporate Groups... cit., p. 238).
462 A legislação brasileira prevê a limitação da responsabilidade na sociedade limitada e na
sociedade anônima; assim, no artigo 1052 do Código Civil se estabelece que, “na sociedade
limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos
respondem solidariamente pela integralização do capital social”; no caso das sociedades
anônimas, a Lei sobre sociedades por ações consagra uma disposição similar em seu artigo 1º,
no que também se refere à limitação da responsabilidade.
463 Cfr. Capítulo III, infra.
464 A doutrina latino-americana começou também a reconhecer os benefícios inerentes à limita-
ção de responsabilidade nos diversos esquemas associativos, como ferramenta para dinamizar

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196 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Os tratadistas EASTERBROOK e FISCHEL, usualmente cataloga-


dos no movimento acadêmico “Direito e Economia” (Law and Economics),
analisaram em detalhe o impacto econômico que produziria uma legislação
que impusesse a extensão de responsabilidade aos acionistas de sociedades de
capital abertas465. Segundo estes autores, o risco fundamental de um sistema
legislativo de extensão de responsabilidade nas sociedades de capital estaria
relacionado com o desestímulo de investimento no mercado de valores mobi-
liários. Por isso, assinalaram as principais vantagens que o esquema de limita-
ção de responsabilidade dos sócios oferece ao sistema econômico. Dentro dos
fatores mais relevantes de dita análise convém explicar os seguintes.
Em primeiro lugar, a limitação de responsabilidade ocasiona uma dimi-
nuição dos custos de vigilância sobre a atividade dos administradores. Efetiva-
mente, num regime de extensão de responsabilidade, a negligência na gestão
administrativa da sociedade poderia dar lugar a ações judiciais, cujo resultado
comprometeria a responsabilidade ilimitada de todos os sócios. Por tanto, so-
mente uma adequada e custosa vigilância sobre a atividade dos membros de
Conselho de Administração e gerentes poderia diminuir os riscos aludidos e
evitar as conseqüências da extensão de responsabilidade466.
Em segundo lugar, a limitação de responsabilidade evita custos de con-
trole sobre a atividade dos demais sócios. Certamente, um sistema contrário
geraria um custo adicional de vigilância sobre os negócios dos demais acionis-
tas da companhia. Esta conseqüência estaria dada pela circunstância de que
um empobrecimento dos sócios produziria, correlativamente, um aumento
do risco patrimonial para o acionista solvente. A probabilidade de ter que
responder solidariamente pelas obrigações da sociedade seria mais alta para os

o tráfico comercial contemporâneo, fomentar a criação de empresas e reduzir os riscos ineren-


tes à atividade econômica; neste sentido, PEREIRA, Márcia e BASTOS, Eduardo. A limitação de
responsabilidade como instrumento de…, cit., p. 1071-1072.
465 EASTERBROOK e FISCHEL, Foundations of Corporate Law..., cit., p. 41.
466 Em sentido análogo, o tratadista JOSÉ ENGRACIA ANTUNES se refere ao custo adicional que
representaria para os acionistas um sistema de extensão de responsabilidade, derivado da
maior remuneração que deveria reconhecer-se aos administradores sociais para conseguir a
convergência de seus interesses com os dos sócios. “Em razão da separação existente entre a
titularidade do capital e a administração da sociedade, a imposição de um sistema de extensão
de responsabilidade implicaria para os acionistas o permanente controle sobre a atividade dos
administradores (cujas determinações poderiam pôr em risco, além do montante investido, o
patrimônio pessoal dos acionistas). Assim, seria necessário estabelecer sistemas especiais de
remuneração, de modo a tentar um paralelismo entre as motivações de investidores e adminis-
tradores. Estas duas circunstâncias implicariam maiores custos de gestão” (Liability of Corporate
Groups. Deventer: Kluwer Law International, 1994, p. 128).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 197

sócios de maior capacidade patrimonial do que para os demais. A insolvência


ou pouca capacidade econômica destes últimos faria improvável que fossem
perseguidos pelos credores sociais.
Em terceiro lugar, a livre circulação das ações que origina a limitação de
responsabilidade gera um incentivo para que os administradores atuem eficien-
temente. “A possibilidade de que cada acionista possa vender sua participação
no capital cria novas oportunidades para os grupos de investidores e, portanto,
significa uma pressão sobre a gestão dos administradores sociais. Na medida em
que as ações estão unidas aos votos, as companhias deficientemente administra-
das atraem novos investidores, quem podem adquirir blocos significativos de
ações, a baixo preço, para depois deslocar aos administradores ineficientes e
substituí-los por novas equipes administrativas. Este potencial para o desloca-
mento dos administradores confere aos administradores em exercício um in-
centivo para atuar eficientemente, a fim de manter alto o preço das ações [...]”467.
Em quarto lugar, o sistema de limitação da responsabilidade torna possível
que as condições do mercado, pelas leis de oferta e demanda sobre as ações de
uma sociedade, forneçam uma informação significativa a respeito do valor de
uma companhia. Sob um esquema de extensão de responsabilidade “as ações
não seriam bens de valor homogêneo, de maneira que não poderiam ter ‘um
valor de mercado’. Assim, os investidores teriam que incorrer em maiores gastos
para analisar as projeções da companhia, a fim de conhecer seu valor real”468.
E é que resulta indubitável que um regime de extensão de responsabilidade
dificultaria enormemente a circulação de ações nas bolsas de valores mobiliários,

467 EASTERBROOK e FISCHEL, Foundations of Corporate Law..., cit., p. 41. Esta análise permite
também estudar a relação existente entre o regime de limitação de responsabilidade e a
“concorrência pelo controle societário” (market for corporate controle). ENGRACIA ANTUNES
explica estes conceitos da seguinte forma: “Sob um sistema de extensão de responsabilidade,
as ações não seriam livremente negociáveis, devido a que seu preço não estaria exclusivamente
em função do valor da companhia, mas sim também da riqueza de seus acionistas, de maneira
que diversos títulos deixariam de ser bens fungíveis e sua transferência se voltaria tão compli-
cada como custosa. A falta de uma livre circulação das ações, dificultaria as operações que
permitem estruturar blocos de votação. Isso permitiria, por sua vez, que os administradores
sociais se perpetuassem em seus cargos, sem importar o quão bem ou mal os estivessem
exercendo. Devido ao fato que a responsabilidade limitada torna viável a livre negociação das
ações, facilitam-se as aquisições de controle mediante o domínio de participações significati-
vas de capital. Estas operações têm a virtualidade de permitir, eventualmente, que os adminis-
tradores ineficientes sejam deslocados (‘take-overs’), o qual origina pressões sobre os conse-
lheiros e diretores da companhia para atuar eficientemente” (Liability..., cit., p. 129). Cfr.
CORDERO, Gabrielle Santos. Uma visão jurídico-econômica do artigo 254-A da Lei nº 6.404/
76. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. pp. 33 e ss.
468 EASTERBROOK e FISCHEL, Foundations of Corporate Law..., cit., p. 41.

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198 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ao perder-se a uniformidade do valor dos títulos representativos do capital. Na


realidade, a característica que permite a negociação das ações é seu valor homo-
gêneo. A circunstância de que cada título tenha um valor nominal idêntico e
um preço de mercado homogêneo facilita a denominada fungibilidade dos
acionistas. Estes, efetivamente, podem substituir-se sucessivamente, mediante a
simples negociação de suas ações.
Agora bem, o valor igual das ações deriva da igualdade de riscos a que
estão sujeitos todos os acionistas. Ao se estabelecer extensões de responsabili-
dade solidária aos sócios se afetaria em graus diferentes o risco patrimonial de
cada acionista. Os mais solventes assumiriam um maior grau de compromisso
econômico, pois estariam mais expostos às demandas de terceiros. Nesta me-
dida, seu investimento seria menos rentável em comparação com o de sócios
insolventes ou com escassa capacidade patrimonial469. A relação proporcional
entre o risco e a rentabilidade é a que determina a identidade do valor das
ações. A perda do referido equilíbrio dificultaria a circulação adequada das
ações nas bolsas de valores mobiliários e implicaria catastróficas conseqüências
para o sistema econômico.
Em quinto lugar, dizem os citados EASTERBROOK e FISCHEL,
que, como conseqüência dos pontos anteriores, a diversificação dos investi-
mentos de portfólio seria dificultada com um sistema de extensão de respon-
sabilidade. Na realidade, a limitação do risco que assumem os acionistas permite
a estes investir seus recursos em diferentes sociedades inscritas em bolsa. A
variedade de investimentos gera diversificação do risco. Assim, a falência de
uma ou variadas das companhias não implica necessariamente a ruína do titu-
lar das ações. Quanto mais diversificado for o portfólio, menos risco global
assume o investidores. Ao existir um regime de responsabilidade ilimitada
para os acionistas, seria extremamente arriscada a aquisição de ações em múl-
tiplas sociedades. A crise empresarial de uma só delas comprometeria a totali-
dade dos ativos de todos os acionistas. Em conseqüência, os custos de vigilância

469 Sobre este aspecto é interessante a posição de Gabrielle Santos, quem justamente ocupa-se de
explicar como o benefício de limitação de responsabilidade ao monto do contribua realizado
pelo sócio permite, em essência, manter o equilíbrio ou a relação de proporcionalidade
existente entre o risco e a rentabilidade, refletido no valor da ação, que sofre uma ruptura nas
hipóteses de extensão de responsabilidade (responsabilidade solidaria e ilimitada), pelo fato
de impor a todos os acionistas um nível de risco alto e homogêneo, sem considerações ao
monto de contribuição (Vid. Uma visão jurídico-econômica do artigo 254-A da Lei nº 6.404/76.
Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009. pp. 38 e ss.).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 199

tanto da gestão administrativa como da atividade e solvência dos consócios se


fariam extremamente onerosos. Da mesma forma, não seria aconselhável para
nenhum acionista participar de forma minoritária em qualquer companhia,
pois sua responsabilidade pelas obrigações da sociedade se manteria inalterada
apesar de não ter ingerência ativa na administração da sociedade.
É, pois, suficientemente claro que os seguidores da tese que propugna
pela abolição da limitação da responsabilidade não tiveram ainda maiores tri-
unfos. Está demasiado consolidada a ideia da sociedade comercial como veícu-
lo fundamental do sistema capitalista, cujo principal incentivo consiste na
restrição do risco assumido pelos investidores470. Não obstante, as múltiplas
exceções legislativas e jurisprudenciais a dito atributo essencial determinaram
uma visão diferente da companhia mercantil; apesar de estarmos dentro de um
esquema estritamente capitalista, reconhece-se que existe também na ativida-
de societária algum grau de responsabilidade comunitária.
É por isso pelo que os mesmos EASTERBROOK e FISCHEL propuse-
ram soluções alternativas, que permitiriam conjurar o risco que implica a limi-
tação da responsabilidade na sociedade comercial para a comunidade, sem gerar
um traumatismo no sistema econômico. Assim, propuseram o estabelecimento
pelo direito de requisitos mínimos de capitalização, a criação de normas que
imponham a exigência de seguro mínimo obrigatório e o estabelecimento de
responsabilidades diretas dos diretores e conselheiros471.

470 A visão contemporânea vai além das teses de EASTERBROOK e FISCHEL, pois sustenta que o
benefício de limitação de responsabilidade não é somente proveitoso para a sociedade, os
acionistas e o mercado de valores, senão que também é muito útil para os próprios credores. “A
regra de limitação de responsabilidade fornece vantagens aos credores sociais, isto é que permite
conseguir a ótima distribuição de seus riscos e a redução dos custos relacionados com a
execução das obrigações da sociedade. Argumentou-se que o fato de transferir o risco dos
investidores aos credores, que se deriva da limitação de responsabilidade, é economicamente
eficiente. Isso se deve ao fato que estes últimos são quem estão em melhores condições para
evitar riscos financeiros, sem que para isso devam investir grandes somas (‘cheapest risk-avoiders’).
Isso se deve também ao fato que os credores sociais podem negociar a priori com as sociedades
devedoras uma remuneração adequada pelo risco que se propõem assumir, vale dizer que podem
cobrar à companhia maiores juros. Ademais, os credores contam com um nível superior de
informação. Por outro lado, se existisse um sistema de responsabilidade ilimitada, cada credor se
veria forçado a demandar individualmente a cada um dos acionistas que não tiver cumprido as
suas obrigações. Isso converteria a execução coativa dessas obrigações num procedimento
extremamente custoso, de maneira que o regime de responsabilidade dos acionistas se tornaria
em ilusório, especialmente no caso de sociedades de capital abertas com inúmeros acionistas
dispersos. A responsabilidade limitada facilita enormemente a execução coativa das obrigações
por parte dos credores e constitui um remédio bem mais eficiente para a solução de conflitos de
credito com a sociedade” (ANTUNES, José Engracia, Liability..., cit., p. 129).
471 EASTERBROOK e FISCHEL, Foundations of Corporate Law..., cit., p. 60.

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200 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

4. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA


SOCIEDADE (PIERCING THE CORPORATE VEIL)
Fica claro diante de tudo que foi exposto que, como se disse, segue sendo
válida a opinião segundo a qual a principal vantagem da sociedade de capitais
é a limitação da responsabilidade dos acionistas. Não obstante, as cortes nor-
te-americanas estabeleceram múltiplas circunstâncias nas quais os sócios de-
vem responder por obrigações que originariamente correspondiam à sociedade.
Os interessantes desenvolvimentos jurisprudenciais sobre a desconsideração
da personalidade jurídica da sociedade (piercing the corporate veil) e a poster-
gação de créditos em situações falimentares (equitable subordination ou deep
rock doctrine)472 são algumas das principais defesas com as quais contam os
credores de uma companhia quando seus administradores ou sócios atuaram
com fraude de terceiros473. Alguns autores afirmam, neste sentido, que, “bem
como os tribunais anglo-saxões não tiveram inconveniente em levar a noção
de pessoa jurídica a conseqüências extremas, não duvidaram em prescindir da
ficção da personalidade jurídica quando esta for utilizada com propósitos
desonestos ou ilícitos”474.
Na realidade, ainda que a regra geral seja a limitação da responsabilidade
dos sócios ao montante de suas contribuições, em circunstâncias excepcionais
as cortes podem tentar estabelecer um grau maior de compromisso por parte
dos sócios a respeito das obrigações contraídas pela companhia. A perfuração
do véu societário se refere, pois, à exceção “imposta judicialmente ao princípio
de limitação da responsabilidade, em virtude da qual os juízes desestimam a
separação da personalidade da sociedade e dispõem a responsabilidade de um
sócio por obrigações da sociedade, como se estas fossem próprias daquele”475.

472 Cfr. Capítulo X, infra.


473 Segundo Vanessa Ribeiro Correa, “A técnica da desconsideração da pessoa jurídica ou teoria da
penetração é também conhecida como disregard of legal entity, disregard doctrine, lifting the corporate
veil (Estados Unidos), superamento della personalitá guiridica (Itália) e durchgriff der juristichen person
(Alemanha) (...) Se a ordem jurídica, verificados determinados pressupostos, incentiva a atividade
comercial através da concessão da personalidade, pode também, verificada a finalidade de efetivação
de objetivos espúrios, retirar, ainda que momentaneamente, a mesma personalidade para atingir
aquele – sócio ou acionista – que age ilicitamente …” (Desconsideração da personalidade jurídi-
ca… op. cit., p. 405); Cfr. LINS, Daniela. Aspectos polêmicos atuais da desconsideração da persona-
lidade jurídica no código de defesa do consumidor e na lei antitruste. Rio de Janeiro: Renovar. 2002.
p. 31; REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 76.
474 VARGAS VARGAS, op. cit., p. 66.
475 THOMPSON, Robert B. Piercing the Corporate Veil, An Empirical Study. In: Cornell Law
Review, vol. 76, 1036, p. 1.

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Como questão preliminar para abordar este tema, convém aclarar o equívoco
a que dá lugar a expressão desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.
Na realidade, o único dos atributos que se ignora ao aplicar esta doutrina é o da
separação patrimonial para algum ou alguns dos sócios476. A sociedade, como
ente jurídico diferente dos sócios individualmente considerados, não desaparece,
nem seus atributos se perdem. O único efeito da aplicação desta exceção judicial
consiste na extensão da responsabilidade para aqueles a respeito de quem o juiz
decida. É por isso que alguns autores, como SOLOMON e PALMITER,
preferem falar da desconsideração da limitação de responsabilidade (piercing the
veil of limited liability)477.
Também é interessante observar que em outros países da órbita do Common
Law a teoria serviu não só para defender os credores da sociedade, mas também,
em certas ocasiões, para proteger os mesmos sócios478. O caso inglês DHN v.
Tower Hamlets LBC [1976, 1 WLR 852, CA] demonstra esta curiosa tendência
jurisprudencial. Neste caso, um grupo de três companhias tinha a propriedade de
número igual de partes contíguas de um terreno sujeito a expropriação. Se as
companhias fossem tratadas como pessoas jurídicas diferentes, o valor total da
indenização seria inferior ao qual seria caso a propriedade fosse considerada como
pertencente ao grupo, independentemente das sociedades individualmente
consideradas. A Corte, com conferência do célebre magistrado Lorde DENNING,
decidiu perfurar o véu societário e decretar para o grupo a indenização mais alta479.
Para compreender o alcance desta doutrina no mundo anglo americano é
importante levar em conta que se trata de determinações judiciais adotadas sob o

476 “Ressalte-se que a abstração da personalidade deve ser entendida, conforme amplamente
difundido pela doutrina e jurisprudência, como uma suspensão episódica de seus efeitos,
tendo em vista a solução de determinado caso específico. Fora dessa hipótese, a personalidade
continua para todos os fins lhe são de direito, tornando assim a desconsideração ato totalmen-
te diferente da invalidade ou desconstituição da pessoa jurídica. Dessa forma, a desconsideração,
por seus efeitos, torna-se técnica bastante interessante, na medida em que preserva a empresa,
não afetando seus outros vários negócios e interesses, nem os verdadeiros objetivos da socie-
dade. Devendo-se sempre lembrar que a pessoa jurídica, notadamente a empresa, possui
relevante valor social, de modo que a todo custo deve ser preservada”. RIBEIRO, Vanessa.
Desconsideração da personalidade jurídica… op. cit., p. 405.
477 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 69.
478 Curiosamente, esta particular interpretação não tem cabimento no sistema legal estadunidense.
Nesse país, “as pessoas que optaram por constituir uma empresa sob um determinado tipo
societário, não podem pretender que depois se desconheça o ente jurídico que surge dessa
relação, com o fim de obter alguma classe de benefício pessoal” (HENN, Harry. Laws of
Corporations..., cit., p. 357).
479 BOND, Helen, op. cit., p. 265.

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202 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

sistema de equity, que, como se indicou, permitem ao juiz a adoção de determinações


que vão além das tradicionais indenizações em dinheiro (damages), sob uma
valoração ampla das circunstâncias fáticas que rodeiam o litígio. Como já se aclarou,
os recursos em equity não se consideram um “direito” do peticionário, mas sim
uma espécie de privilégio, cuja concessão implica um ato discricionário do
funcionário judicial480.
É interessante observar que a tese em estudo se manteve nos Estados
Unidos como uma doutrina judicial, alheia à consagração normativa. Segundo
ensina THOMPSON, das legislações dos cinqüenta Estados da União Ame-
ricana, somente a do Texas, em época recente, fez menção expressa sobre algu-
mas hipóteses de perfuração do véu481. A norma não foi bem recebida pela
doutrina norte-americana. O mesmo autor afirma que, apesar da referida lei,
no Texas as cortes seguem sendo as que principalmente definem os casos de
levantamento do véu482.
Como já se expos, a notória influência do Direito Societário norte-ame-
ricano com relação aos ordenamentos legais alheios à órbita do Common Law
deu lugar ao transplante, não sempre acertado, de uma multiplicidade de
figuras próprias daquele sistema jurídico. Por este motivo, não parece estra-
nho que a tese da desconsideração da personalidade jurídica tenha encontrado
acolhida nos sistemas de orientação romano-germânica. A propagação da dou-
trina em países de tradição civilista foi de tal magnitude que na atualidade são
poucos os que se abstiveram de adotar uma legislação positiva em matéria de
levantamento do véu societário. Ainda nos casos excepcionais de sistemas que
se recusam a inscrever-se nesta tendência, a doutrina da desconsideração se
infiltrou por vias jurisprudenciais e doutrinárias, mediante a formulação de
postulados gerais para sua aplicação483. Apesar de que em muitas nações de

480 HOWELL, Rate A. et al., op. cit., p. 25. Cfr. Capítulo I, supra. Cfr. OLIVEIRA, Lamartine Correa
de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. pp. 267 e ss.
481 Trata-se do artigo 2.21A(2) da Lei de Sociedades de Texas, que limita a responsabilidade
contratual por fraude dos sócios aos casos em que o credor prove que o sócio utilizou a
sociedade para uma fraude real, principalmente para seu benefício direto e pessoal.
482 THOMPSON, op. cit., p. 1042.
483 A legislação brasileira também incorporou a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica no artigo 50 do Código Civil, os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional, no
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 18 da Lei Antitruste. Cfr. OLIVEIRA,
Lamartine Correa de. A dupla crise da pessoa jurídica. Op. cit., p. 9. Similar explicação fazem
Rubens Requião (Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos
Tribunais. São Paulo. v. 410, 1969, p. 24) e Fabio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Comercial.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 203

tradição romano-germânica apenas agora se começa a falar destas formas de


proteção aos credores, a tese da desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade não é nada novo no Direito Societário484.
Isto ocorreu na União Européia, onde, conquanto ainda não se tenha
proferido uma diretiva comunitária que se ocupe desta matéria, as legislações
de diversos países adotaram esta figura em maior ou menor grau. Em todo
caso, a crescente ascendência anglo-saxão na ordem jurídica contemporânea
permite supor que a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica
seguirá encontrando eco nos diferentes sistemas legais. Daí a importância que
reveste a análise do tratamento legislativo, judicial e doutrinário que teve a
figura do levantamento do véu na tradição romano-germânica e em alguns
países da órbita do Common Law485.
No Reino Unido, por outro lado, a legislação positiva complementou as
decisões jurisprudenciais, mediante a previsão normativa de várias hipóteses de
levantamento do véu. Assim, a Lei de Companhias de 1985 (Sec. 24) estabe-
lece sua aplicação para o caso de sociedades que se tornaram unipessoais. Nesta
hipótese, se, decorridos seis meses a partir da redução de sócios a um, o sócio
único continua realizando operações, faz-se responsável pelas dívidas contraí-
das posteriomente a esse período486. Da mesma maneira, a Seção 349 da mes-

7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 35). É importante notar que a jurisprudência
brasileira também ajudou a esboçar algumas das características da desconsideração da perso-
nalidade jurídica. A este respeito, Vid. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no
Recurso Especial 798095- SP. 5ª turma. Relator: Felix Fischer. Brasília, 06 de junho de 2006.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 282266-RJ. 3ª turma. Relator: Min. Ari
Pargendler. Brasília, 18 de abril de 2002.
484 Tal é o caso de México, país no que a doutrina concebeu hipótese de aplicação do
desconsideração do véu, apesar de não existir maior tratamento normativo desta figura. GARCÍA
RENDÓN e FRISCH PHILLIP, por exemplo, consideram que, de apresentar-se os seguintes
fatores, o benefício de limitação de responsabilidade deveria ser desestimado:
a) Que exista uma sociedade dominada por um sócio ou um grupo de sócios;
b) Que a sociedade seja orientada à consecução de um objetivo injusto;
c) Que o ilícito não possa ser consertado se não é mediante a aplicação da “desconsideração”; e
d) Que tenha um nexo causal entre a atuação da sociedade e o poder de direção que tenha o
sócio controlador. (Cfr. RENDÓN, Manuel García. Sociedades mercantis. Coleção Textos Jurídi-
cos Universitários. México D.F.: Edit. Harla, 1993; e PHILIPP, Walter Frisch. Sociedade anônima
mexicana, 3ª edit. Coleção Textos Jurídicos Universitários. México D.F.: Edit. Harla, 1994).
485 Entre os principais estudos comparados da doutrina da desconsideração, cabe destacar a obra
de JUAN M. DOBSON, sobre O levantamento do véu societário em vários países: (Lifting the
Veil in Four Countries: The Law of Argentina, England, France and the United States. In:
International and Comparative Law Quarterly, vol. 35, 839).
486 Esta drástica solução tem sido atenuada desde que o Reino Unido adotou uma legislação
positiva tendente a implantar a Décima Segunda Diretiva Comunitária em matéria de socieda-

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204 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ma lei estabelece que se algum administrador ou empregado da companhia


assina um título por conta da sociedade, mas sem mencionar seu nome, assume
pessoalmente a dívida, a não ser que a companhia o cancele487. Também a Lei
britânica de Insolvência de 1986, dispõe em suas seções 213 e 214 que, nos
casos de liquidação de uma companhia, a corte pode decretar responsabilidade
pessoal e ilimitada a quem tenham incorrido em fraude aos credores.
Ora bem, faz quase dois séculos, os juízes dos Estados Unidos vieram
aplicando diversas formas de extensão da responsabilidade dos sócios por obri-
gações da sociedade488. O professor ROBERT B. THOMPSON publicou
um completíssimo estudo empírico sobre a “perfuração do véu societário”489,
no qual se analisam quase 2.000 casos decididos pelos tribunais norte-ameri-
canos. O estudo mostra interessantes conclusões estatísticas relativas ao com-
portamento da jurisprudência sobre o particular. As observações empíricas do
professor THOMPSON permitiram constatar a pouca coerência das teorias
propostas anteriormente pela doutrina norte-americana. De modo reiterado
se afirmava que a perfuração do véu ocorre com maior freqüência nos casos de
responsabilidade extracontratual do que naqueles de não cumprimento de

des de capital individuais. Esta Diretiva, que introduziu as regras gerais para promover o
funcionamento desta forma empresarial na União Européia, motivou a modificação da Seção
24 da Lei de Sociedades do Reino Unido (Companies Act). A sanção prevista na norma se
restringiu tão só àquelas companhias que não tivessem adotado ab initio a forma de sociedade
individual, bem como a qualquer forma societária que tiver o caráter de sociedade fechada
(private companies limited by shares or by guarantee) e tiver se tornar unipessoal. Outras
disposições da citada Lei de Sociedades que consagram hipóteses de desconsideração são as
seções 349, 433, 442, 283, 324, 227, 346 e 203 (Cfr. OLIVER, Ms et al., op. cit., pp. 17-18).
487 Vários países de tradição romano-germânica incluíram em suas leis de sociedades hipóteses de
desconsideração da personalidade jurídica. Assim, por exemplo, os artigos 78 a 84, 491, 501
e 502 do Código de Sociedades de Portugal consagram causais de levantamento do véu para
estabelecer extensão de responsabilidade a gerentes, administradores, diretores, membros de
órgãos de fiscalização, fiscais oficiais de contas, sócios e sociedades matrizes. Contudo, o
professor português PUPO CORREIA afirma que “não existe uma regra geral ou uma norma
central pela que se acolha especificamente este instituto [da desconsideração da personalida-
de jurídica] em nosso ordenamento jurídico (Direito comercial, 3ª ed., rev. e aum. Lisboa:
Universidade Lusíada, 1994, p. 407). A legislação brasileira também acolhe algumas hipóteses
da teoria em menção, mediante a consagração de diversas hipóteses de exercício “abusivo do
poder por parte do acionista controlador” (artigos 116 e 117 da Lei 6.404 do 15 de dezembro
de 1976). A mesma lei em seu artigo 246 estabelece circunstâncias de responsabilidade das
sociedades controladoras. Na Espanha, como afirma CARMEN BOLDÓ, “o problema de pres-
cindir do hermetismo que caracteriza à pessoa jurídica quando se estão realizando atos
abusando desta forma legal, não foi abordado do ponto de vista legislativo” (O levantamento
do véu e a personalidade jurídica das sociedades mercantis. Madri: Edit. Tecnos, 1993, p. 12).
488 Já no ano de 1809, o magistrado Marshall, com o fim de manter a jurisdição das Cortes Federais
sobre as sociedades, determinou atingir aos sócios e fazê-los responsáveis ante dita jurisdição
(HOWELL, John C. op. cit., p. 52).
489 THOMPSON, op. cit., pp. 1036-1074.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 205

contratos490. Estima-se do que isso ocorre em razão da menor proteção que


possuem os credores de obrigações não surgidas de uma relação contratual.
Assim, enquanto uma entidade financeira ou um credor, por exemplo, devem
ser diligentes e amparar-se contra a eventualidade de um não cumprimento
contratual, um credor de obrigações derivadas de responsabilidade extracon-
tratual, como quem é atropelado por um veículo, não tem possibilidade de
prever o surgimento da obrigação de indenizar e, por tanto, merece uma pro-
teção adicional491.
No caso Brunswick Corp. v. Waxman [599 F.2d 34 (2nd Cir. 1979)], “o
juiz se negou a conferir uma indenização de prejuízos a um credor, por parte
de pessoas que tinham constituído uma sociedade de papel, carente de ativos,
com o único propósito de efetuar pagamentos no contrato de fornecimento.
Como o credor sabia que a sociedade tinha um capital exíguo e tinha sido
constituída para assegurar a limitação de responsabilidade de seus sócios, não
se enganou ao assumir o risco. A corte se negou a perfurar o véu”492. Não
obstante, no estudo de THOMPSON se estabeleceu que, estatisticamente,
são mais numerosos os casos de desconsideração quando existe reclamação por
responsabilidade contratual. O seguinte quadro, elaborado também pelo cita-
do autor, ilustra adequadamente sobre o particular.
Perfuração do Véu em Contextos de Responsabilidade Contratual e
Extracontratual493

490 EASTERBROOK e FISCHEL categoricamente afirmam que “As cortes são mais propensas a levantar
o véu societário em casos de responsabilidade extracontratual” (Foundations..., cit., p. 58).
491 Sobre as formas contemporâneas e aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no
Brasil, Vid. ALVES, Alexandre Ferreira. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito
do consumidor: um estudo de direito civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Proble-
mas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 262; é também interessante
a síntese que faz a professora Maristela Sabbag Abla, na qual se expõem várias das modalidades
e casos nos que teve aplicação a figura, advertindo como, em alguns deles, se têm extra limitado
os limites da desconsideração-especialmente nos tribunais de trabalho (ABLA, Maristela Sabbag.
Análise da Aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica à Sociedade
Anônima. In: Sociedade Anônima. São Paulo: IDSA e Quartier Latin. 2007. pp. 406 e ss.).
492 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 71.
493 THOMPSON, op. cit., p. 1058.

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206 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Outra conclusão essencial do citado professor é a de que não existem


antecedentes de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade nos
casos de companhias que negociam suas ações nos mercados públicos de valo-
res mobiliários. Os juízes norte-americanos tiveram especial cautela e evita-
ram criar um desestímulo para quem investem nas bolsas de valores mobiliários.
EASTERBROOK e FISCHEL afirmam a esse respeito que “a distinção
entre companhias fechadas e sociedades inscritas em bolsa obedece à lógica
econômica”494. Isso se deve à participação direta ou indireta dos sócios na
administração das primeiras e a ausência dos acionistas no manejo das segun-
das. As estatísticas demonstram que quanto menor for o número de acionis-
tas, maiores são as possibilidades de que se decida judicialmente uma extensão
de responsabilidade. O seguinte quadro é eloqüente sobre o particular.
Perfuração do Véu segundo Número de Acionistas495

Por outro lado, é claro que, apesar dos múltiplos antecedentes judiciais
sobre o tema, não existe regras uniformes ou causas específicas que possam ser
invocadas de maneira constante, para impor a sanção estudada. A decisão, na

494 EASTERBROOK e FISCHEL, Foundations..., p. 55.


495 Tabela tomada de THOMPSON, Piercing..., cit., p. 1055.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 207

prática, dependerá sempre do critério do funcionário judicial. Talvez por isso o


célebre juiz BENJAMÍN CARDOZO afirmou faz várias décadas que esta
doutrina “está imersa numa atmosfera de metáfora”496. Isso é certo tanto nos
Estados Unidos como no Reino Unido497. A autora inglesa HELEN BOND
afirma que “não existem princípios que fundamentem as ocasiões ou motivos
pelos que as cortes resolvem levantar o véu societário, e as regras de Direito não
são, em absoluto, claras nesta área. Tudo o que pode dizer-se com algum grau
de certeza é que existem vários exemplos nos que as cortes perfuraram o véu no
passado, e eles poderiam ocorrer novamente no futuro”498. Fica, então, pelo
menos difícil tentar codificar as figuras em questão. Elas, por sua própria natu-
reza, dificilmente podem ser reduzidas a rígidas fórmulas preestabelecidas ou
ser submetidas a uma camisa de força que desvirtuaria sua própria natureza499.
A doutrina norte-americana, no entanto, tentou agrupar algumas das
circunstâncias que resultam comuns nos processos de desconsideraão da per-
sonalidade jurídica da sociedade500. O professor THOMPSON ressalta a fal-

496 Citado por THOMPSON, op. cit., p. 1036.


497 A doutrina latino-americana também se ocupou na análise das dificuldades conceituais desta
doutrina. DOBSON formulou interessantes comparações relativas ao levantamento do véu em
Argentina, o Reino Unido, França e os Estados Unidos. Como resultado deste estudo, DOBSON
conclui que existe uma afinidade entre as principais características desta figura em cada um de
tais países. Em sua opinião, as seguintes considerações são aplicáveis ao regime de levanta-
mento do véu nos sistemas objeto do estudo:
“(a) Os princípios jurídicos utilizados pelas cortes para a aplicação da figura não foram
plenamente determinados;
“(b) A legislação positiva atinente a sua aplicação foi muito reduzida;
“(c) Os princípios jurídicos tradicionais não foram suficientes para enfrentar o problema do
abuso da figura societária. As regras referentes à teoria da representação e às atuações fraudu-
lentas, comuns em ambos sistemas, tiveram que ser adaptadas para permitir o levantamento do
véu em hipótese de controle societário; e
“(d) Os juízes se viram obrigados a empregar a teoria da unidade ‘de empresa’, para enfrentar
os problemas criados pelos grupos de sociedades”. (Op. cit., p. 863).
498 BOND, Helen et al., op. cit., p. 264.
499 Não obstante, alguns países de Europa continental optaram por incluir a figura sob hipóteses
precisamente definidas. Assim, como já se indicou, o Código de Sociedades de Portugal
estabeleceu várias formas de levantamento do véu. Na América Latina o Código do Brasil
também reconheceu a desconsideração, bem como as leis argentina e colombiana.
500 No caso brasileiro, mais que um exame específico de casos, esboçaram se duas teorias estrutu-
rais para explicar o fenômeno da desconsideração do velo societário; efetivamente, “em termos
ainda de estudo acerca dos requisitos para a aplicabilidade da desconsideração, deve-se
ressaltar, entre nós, a configuração de uma Teoria maior e uma Teoria menor a respeito do
assunto (...) a teoria menor estaria baseada no fato de que o simples prejuízo do credor já seria
suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica e direta responsabilização do
sócio (...). A teoria maior, por sua vez, é aquela amplamente difundida por nossa doutrina e
jurisprudência, segundo a qual deve-se considerar e proteger a personificação de determina-
dos entes e os seus efeitos, desde que não se vislumbre que a personalidade jurídica esteja

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208 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ta de unanimidade dos tratadistas em torno das hipóteses que originam o


levantamento do véu. Assim, por exemplo, enquanto para KRENDL são 31
pontos, para POWELL são 11 e para o próprio THOMPSON só 10501.
Alguns de tais elementos são, em termos gerais, os seguintes502.

A. OPERAÇÕES COM O SÓCIO CONTROLADOR OU MAJORITÁRIO


(SELF-DEALING TRANSACTIONS)
Este elemento consiste simplesmente na realização constante e reiterada
de operações jurídicas e econômicas entre o sócio controlador e a companhia,
por virtude das quais se determina que esta última não é senão um instru-
mento (instrumentallity doctrine) do qual aquele se serve aquele para cumprir
suas próprias finalidades503. De maneira que quem exerce controle sobre a
sociedade pode não estar interessado em que esta obtenha benefícios econô-
micos, mas somente em valer-se da forma jurídica societária para cumprir
com outros fins, usualmente inconfessáveis. Menciona-se assim mesmo a teo-

sendo utilizada como instrumento para a consecução de objetivos juridicamente condená-


veis” (RIBEIRO, Vanessa. Desconsideração da personalidade jurídica… op. cit., p. 405. Cfr.
GUSMAO, Mônica. Direito empresarial. Rio de Janeiro: Impetus. 2003. p. 43).
501 THOMPSON, op. cit., pp. 1038-1063. DOBSON também formulou uma classificação das hipó-
teses fáticas que podem dar lugar a desconsideração do véu societário. Em seu critério, a
verificação de uma ou variadas das seguintes circunstâncias permitiriam impor a sanção estudada:
“1. Uma companhia é constituída ou utilizada para evadir obrigações a respeito de terceiros.
“2. O capital de uma companhia foi composto mediante um empréstimo de seus acionistas e
não mediante aportes ao fundo social.
“3. A titularidade do capital social se encontra majoritariamente concentrada nas mãos de uma
só pessoa.
“4. Uma companhia sustenta estar vinculada a outra numa tentativa por aparentar, frente a
terceiros, que tem o apoio econômico desta última.
“5. Um administrador utiliza os ativos da companhia em seu próprio benefício.
“6. Um administrador acomete a empresa social, apesar de ser consciente da insolvência da
companhia.
“7. Os ativos de uma sociedade se confundem com os de outra companhia ou indivíduo.
“Estas particulares situações fáticas podem resumir-se, a sua vez, em dois pressupostos gerais:
(i) o exercício de um controle abusivo e (ii) a carência de separação dos ativos de capital da
sociedade” (op. cit., pp. 839-840).
502 Eloísio Magalhães explica que “A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem seu
fundamento no princípio de que uma pessoa jurídica não pode ser criada para atingir fim
contrário ao Direito, possibilitando ao magistrado, em circunstâncias especiais, configuradas por
fraude, abuso de poder, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, afastar a personificação
societária, para alcançar diretamente o patrimônio pessoal dos sócios responsáveis pelo ilícito
perpetrado” (A desconsideração da personalidade jurídica no código de defensa do consumidor.
Brasília. Universidade Candido Mendes. 2007. p. IV). Cfr. GUIMARÃES, Flavia. Desconsideração
da Personalidade Jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Max Limonad. 1998.
503 É freqüente também a expressão alter ego, para ilustrar o aproveitamento indevido da forma
societária pelo sócio controlador.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 209

ria da representação, segundo a qual o sócio controlador assume a atitude de


mandante (principal) frente à sociedade que é simplesmente o mandatário
(agent) que executa as ordens que aquele lhe dá, diretamente ou por intermé-
dio dos diretores da sociedade504. A característica em estudo também se rela-
ciona scom a denominada teoria da identidade, a cuja virtude o sócio
controlador e a sociedade são uma mesma entidade que não deve ser diferen-
ciadas com o único propósito de limitar a responsabilidade dos sócios.

B. VIOLAÇÃO DE FORMALIDADES LEGAIS E ESTATUTÁRIAS (BREAK-


DOWN OF PROCEDURES)

Este elemento alude ao não cumprimento reiterado das normas que re-
gulam o funcionamento interno da sociedade, contidas na Constituição e nas
leis dos Estados, nas atas de constituição e nos estatutos sociais. Trata-se de
uma falta de respeito ou desconhecimento da estrutura societária (disregard of
corporate form), de maneira que não se realizam periodicamente reuniões de
assembléia nem de Conselho de Administração, os administradores não le-
vam livros de contabilidade ou de atas, vícios de ordem na organização e con-
servação da correspondência da companhia, não se observam os procedimentos
de auditoria requeridos estatutariamente etc. Este desconhecimento das for-
malidades que se relacionam com o normal funcionamento da sociedade é,
certamente, um indício de que a companhia não é senão um instrumento do
qual se serve o sócio majoritário ou controlador para cumprir objetivos que só
a ele lhe interessam.
Os professores SOLOMON e PALMITER fazem referência à crítica
que suscita esta hipótese de desconsideração da personalidade jurídica. A cen-
sura se centra essencialmente na idéia de que o desconhecimento das formali-
dades raras vezes tem alguma relação com o não cumprimento das obrigações
sociais. Efetivamente, é difícil pensar que o freqüente manejo informal que
possuem as sociedades possa ser causa suficiente para desconhecer a entidade
jurídica da sociedade. Não obstante, os mesmos autores afirmam que existem
vários argumentos que justificam a presença desta causa. Em primeiro lugar,
sustentam que ninguém tem direito de exigir o privilégio da limitação de

504 De acordo com o famosíssimo magistrado CARDOZO, “para determinar se a responsabilidade


deve estender-se além dos ativos que pertencem à sociedade, devem aplicar-se as regras gerais
do mandato” [Berkey v. Third Ave., (Ry. Co. 244 N.E. 84, 95, 155 N.E. 58, 61, 50 A.L.R. 599)].

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responsabilidade se não se respeitou a forma societária. Igualmente, expres-


sam que o não cumprimento das formalidades legais pode levar com que os
credores sociais se confundam a respeito da pessoa com quem realizaram ne-
gócios. Finalmente, sustentam que a falta de formalidades é indício de que os
acionistas desconheceram sistematicamente as reclamações legítimas dos cre-
dores. Isto é que a ausência de solenidades é prova indireta de abuso por parte
dos acionistas505.

C. CONFUSÃO DE ATIVOS E NEGÓCIOS (COMMINGLING OF


ASSETSAND BUSINESS)

Existe relação estreita entre esta característica e as operações a que se alu-


diu anteriormente. Na realidade, como conseqüência da falta de respeito pela
forma jurídica da sociedade, produz-se uma verdadeira comunicação patrimo-
nial que faz com que não seja possível distinguir entre os bens do sócio contro-
lador e os da companhia. Também não existe uma clara diferenciação entre os
negócios que realizam um e outra, de maneira que se produz uma verdadeira
confusão jurídica e econômica. Dita mistura de interesses e patrimônios extra-
polam as fronteiras que resultam da personalidade jurídica da sociedade.

D. RESTABELECIMENTO DA EQUIDADE (ACHIEVING EQUITY)


Como se afirmou anteriormente, esta ação não pertence ao âmbito do
denominado Common Law, mas é adotada com fundamento nos postulados
da equity506. Isso implica que para tentar o correspondente processo, o de-
mandante deve ter atuado de boa fé507. Pode-se dizer também que estas de-
terminações não estão sujeitas de modo tão estrito ao princípio de stare decisis,
devido ao fato que os juízes exercem certa arbitrariedade respecto dos prece-
dentes relativos a casos semelhantes.

E. FRAUDE AOS SÓCIOS OU MERECEDORES (FRAUD)


A má-fé representada por ações fraudulentas em detrimento dos credores
ou sócios minoritários pode servir de base para iniciar uma ação de desconsideração

505 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 73.


506 Cfr. Capítulo I, supra.
507 Usualmente o elemento good faith ou bona fides é semelhante ao conceito de boa-fé do
Direito Civil. Parte da doutrina norte-americana define este elemento com a singela expressão
pure heart and empty hands.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 211

da personalidade jurídica da companhia. Efetivamente, a sociedade pode ter sido


constituída como um simples empresta nome (dummy ou strawman)508, com o
objeto de evadir o cumprimento de obrigações, dissimular bens, burlar os interesses
do fisco, evitar responsabilidades ou, em general, enganar aos terceiros que
contratam com a companhia. Tal conduta fraudulenta deve desvirtuar o princípio
de limitação de responsabilidade dos sócios, dado o abuso manifesto desta
prerrogativa, em prejuízo de terceiros. Num célebre voto disidente, o juiz
KEATING da Corte de Apelações de Nova York manifestou que “a questão
que deve desentranhar-se nesta ação é se a política deste Estado, que garante a
quem deseja participar numa sociedade comercial o privilégio da limitação de
responsabilidade, é tão forte como para permitir que tal benefício se mantenha
sem importar que tanto se abuse dele, que tão irresponsavelmente seja manejada
a companhia ou que tão alto seja o custo que o público deva assumir” [Walkovsky
v. Carlton, 18 N.E.2d 414, 276 N.E.S.2d 585, 223 N.E.2d 6 (1966)]509.

F. SUB-CAPITALIZAÇAO (UNDERCAPITALIZATION)
Este elemento, em geral, não se considera por si só como fundamento
suficiente para tentar a ação que se estuda. Certamente, as cortes norte-ameri-
canas, de forma reiterada, negaram-se a desconhecer a separação patrimonial
própria da personalidade jurídica da companhia, quando o único fundamento
que se alega é que a sociedade se constituiu sem o capital que se requeria para
defrontar-lhe a suas obrigações, dada a natureza e dimensão da empresa social.
Um dos casos que se mencionam com maior freqüência é, precisamente,
Walkovsky v. Carlton, onde curiosamente a Corte nega a desconsideração da
personalidade jurídica da sociedade. Neste caso, o senhor Walkovsky foi negli-
gentemente atropelado por um táxi na cidade de Nova York. Ao requerer uma
indenização de prejuízos, verificou-e que o senhor Carlton, sócio controlador
da companhia proprietária do veículo que tinha causado o acidente, tinha cons-
tituído dez sociedades diferentes, cujo exíguo capital estava integrado, em cada
caso, por dois táxis. A sociedade demandada, Seon Cab Corporation, além de
carecer de maiores recursos econômicos, tinha aplicado a prática, comum às dez
companhias citadas, de segurar os dois veículos de transporte público com o

508 49 Sobre este particular aspecto pode-se conferir o caso African Metals Corp. v. Bullowa, (288
N.E. 78, 85, 41 N.E.2d. 366, 469).
509 Para uma tradução completa deste caso, se pode ver BOSCO, Lucas Ramírez. Responsabilidade
por infra-capitalizaçao societária. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 2004, pp. 175-182.

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seguro mínimo obrigatório de acidentes requerido pela lei, cuja cobertura estava
limitada a dez mil dólares por sinistro.
Na demanda de Walkovsky se afirmou que, pese que cada sociedade
pareça independente das outras, na realidade todas elas operam como “uma só
entidade, uma única empresa e uma mera unidade”, com respeito a suas fi-
nanças, fornecimentos, reparações, empregados e estacionamentos. Por isso, a
demanda se dirigiu a todas as companhias conjuntamente. Da mesma manei-
ra, o demandante afirmou que lhe assistia a faculdade de ensejar a responsabi-
lidade pessoal dos acionistas, dado o fato que a estrutura societária múltipla
constituía uma tentativa ilegal orientado a fraudar “aos membros do público
em geral”, quem poderiam ser lesados pelos veículos. Não obstante, a Corte de
Apelações de Nova York510, ao confirmar uma falha de um tribunal da mesma
jurisdição, denegou a desconsideração da personalidade jurídica, por conside-
rar, entre outras coisas, que a sub-capitalizaçao da sociedade não era base su-
ficiente para adotar tal determinação. A Corte afirmou, do mesmo modo, que
“os operadores do serviço de táxis têm o direito de formar sociedades e, como
bem o afirmou a Corte de Termo Especial, se a cobertura do seguro exigido
pela lei ‘não é adequada para a proteção do público, o remédio deve procurar-
se ante o órgão legislativo e não ante a corte’”.
A idéia de que a forma societária pode ser utilizada licitamente com o
único propósito de limitar a responsabilidade dos sócios aparece de forma
protuberante no caso Stark v. Flemming [283 F.2d 410 (9th Cir. 1960)], no
qual um senhor constituiu uma sociedade com escassos ativos pessoais e se
elegeu a si mesmo como presidente e tesoureiro com um salário de 400 dóla-
res mensais. A quantia deste salário permitiu ao único sócio obter o montante
máximo de benefícios da segurança social. Apesar de que, tão cedo obteve os
referidos benefícios, renunciou a suas posições na companhia sem deixar su-
cessor algum, a corte se negou a desestimar a personalidade jurídica da socie-
dade e reconheceu as prestações sociais a que tinha direito o senhor.
Ora bem, apesar da negativa das cortes norte-americanas de penalizar a
sub-capitalização da sociedade, existe um precedente judicial no qual se ado-
ta a solução contrária. Trata-se do célebre caso Minton v. Cavaney [56 Cal.2d

510 Curiosamente, no Estado de Nova York a Corte Suprema não é o órgão máximo jurisdicional,
como ocorre na maioria dos Estados da União Americana. A máxima hierarquia judicial
corresponde ali à Corte de Apelações (Court of Appeals of New York).

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576, 15 Cal Rptr. 641, 364 P 2d 473 (1961)], decidido pela Suprema Corte
do Estado de Califórnia, no qual a carência absoluta de capital, sem mais, foi
suficiente para que se estabelecesse uma responsabilidade pessoal dos direto-
res. Ocorreu que, com o propósito de administrar uma piscina a serviço do
público, constituiu-se uma sociedade sem que se efetuassem aportes de capi-
tal. Em pouco tempo ocorreu um acidente no qual uma menina se afogou na
piscina. Ante a demanda apresentada por seus parentes, a Corte considerou
pessoalmente responsável o diretor. O único fundamento da condenação pe-
cuniária consistiu no fato que o capital contribuído para o negócio era irrisó-
rio em comparação com o risco assumido. Esta decisão não goza de maior
prestígio na jurisprudência norte-americana. Tal como afirmam SOLOMON
e PALMITER, “as cortes em outras jurisdições, bem como outros casos resol-
vidos em época mais recente na Califórnia, recusaram este enfoque tão amplo
a respeito da sub-capitalização”511.

511 Op. cit., p. 74.

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Capítulo VI
REGIME DE PROTEÇÃO DE
SÓCIOS E INVESTIDORES

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1. MECANISMOS JUDICIAIS DE PROTEÇÃO DE SÓCIOS


A manifestação mais importante da proteção oferecida aos sócios de uma
companhia está representada no intricado sistema de deveres e responsabili-
dades imputados aos administradores sociais512. Este regime constitui, ao
mesmo tempo, um dos aspectos mais estudados do Direito Societário norte-
americano. Segundo afirma, acertadamente, ROBERTA ROMANO, “o as-
pecto chave da grande sociedade capitalista é exposto na conclusão formulada
por ADOLPH BERLE e GARDINER MEANS, no sentido de que existe
uma separação entre a propriedade do capital e o controle: esta separação cria
problemas de organização porque os incentivos que movem aos gerentes mui-
tas vezes não coincidem com os dos acionistas”513.
Como se disse reiteradamente, as leis estatais garantem aos administra-
dores amplíssimas possibilidades de ação514. Na sociedade capitalista, os sóci-
os estão separados da gestão dos negócios sociais, de maneira que esta é exercida
por administradores temporários e revogáveis515. Assim, poderia-se afirmar
que os acionistas ficam a graça das determinações que adotam os diretores e,
em especial, os executivos das sociedades. As atribuições do Conselho de Ad-
ministração (Board of Directors) são, em geral, originárias, vale dizer, não fo-
ram delegadas pela assembléia516. É por isso “que os acionistas não podem

512 Cfr. ABRÃO, Nelson. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 8ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2000. p. 112 e ss. Dita afirmação deve entender-se sem prejuízo de outra série de
mecanismos de proteção de reconhecida importância, endereçados, todos eles, a tutelar os
diversos interesses que convergem na sociedade e, de maneira particular, os interesses dos sócios
ou acionistas; ao respeito, o professor Modesto Carvalhosa, no seu tratado sobre Sociedades
Anônimas, enuncia múltiplos mecanismos de proteção segundo sua origem; assim, se refere à
proteção contratual, a estatal, a auto-regeladora e a jurisdicional (CARVALHOSA, Modesto.
Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol.1. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 2007. pp. 8-12).
513 ROMANO, Roberta. Foundations of Corporate Law. New York: Oxford University Press, 1993,
p. v. Cfr. Capítulo VII, infra.
514 Segundo Márcia Andrade, “A atuação dos administradores de empresas, das sociedades anô-
nimas fechadas ou abertas, vem ganhando terreno paralela e continuamente ao aumento de
circulação de riquezas, cada vez mais adquirindo dinâmica própria ao cercar-se de novas
técnicas de captação de clientela, circulação de moeda, novos meios de emissão de títulos,
aliada ao desenvolvimento tecnológico e científico [...]”. (A responsabilidade do administra-
dor de Sociedade Anônima. Revista da Facultade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
nº 9. 200. pp. 104-105).
515 Cfr. GRAEFF, Cristiano. Compendio Elementar das Sociedades Comerciais. Porto Alegre: Do
Advogado Editora, 1997. p. 132. Cfr. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na
sociedade anônima. 3ª ed. Forense. Forense. nº 2, p. 16.
516 “Na maior parte das empresas o conselho de administração só tem um papel decorativo, se se
convém que os senhores maiores são decorativos. Quanto mais importantes são as decisões,
maior é sua complexidade e menos estão ao alcance daqueles conselheiros que, não sendo
igualmente membros do management ou da tecnoestructura, aprovam-nas sem compreender

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218 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

conferir nem revogar tais faculdades ou criar um Conselho de Administração


estéril”517.
No sistema dos Estados Unidos, o Conselho de Administração é o orga-
nismo que tem a administração da sociedade. Faculdades tão importantes como
a reforma dos estatutos internos da sociedade (by laws) competem diretamente
a dito órgão. Essa amplíssima autonomia de ação poderia chegar a ser extrema-
mente prejudicial para os acionistas de uma determinada sociedade, se não
fosse pela existência de todo um corpo de normas e princípios jurídicos que
definem as faculdades e prerrogativas dos administradores, estabelecem suas
obrigações ou deveres e determinam as sanções por seu não cumprimento.
Este cuidadoso corpo de normas jurídicas e determinações da jurisprudên-
cia origina um marcado caráter profissional na atividade administrativa e pode
contribuir para criar um clima de confiança entre os investidores518. Cumpre
notarque as responsabilidades dos administradores não são ilimitadas. A lei de-
fine claramente as regras dentro das quais estes podem atuar. Tais limites estão
definidos pelos denominados deveres fiduciários (fiduciary duties), desenvolvidos
pela jurisprudência e a legislação norte-americanas. Tais deveres apontam para a
observância de certas regras definidas de conduta ante os sócios, cuja base fun-
damental está na exigência irrestrita da boa-fé pelos diretores. A relação entre
estes últimos e os sócios se rege, em geral, pelas normas do mandato (agency)519.

A. REGRA DA ARBITRARIEDADE (BUSINESS JUDGMENT RULE)


As cortes norte-americanas tem preferido não analizar as razões econô-
micas das decisões administrativas da sociedade. É por isso que adotaram a

demasiado uns e outros casos. Pretender o contrário equivaleria a dizer que a gestão da grande
empresa moderna é algo singelo que não requer nenhum saber especial. De fato, os conselhei-
ros se vêem rodeados por um tal cerimonial e por uma tal deferência que não chegam a
perceber que a sua função se limita a ratificar decisões já tomadas. A arte de dar aos demais a
ilusão do poder é uma prática antiga na que são mestras as organizações burocráticas privadas
igual que as públicas (GALBRAITH, John Kenneth. Introdução..., cit., p. 92).
No caso brasileiro o Artigo 142 da Lei Nº 6.404 sobre as Sociedades por Ações determina
também que as atribuições do Conselho de Administração são, em geral, originárias.
517 HOWELL, John C. op. cit., p. 48. A lei Nº 6.404 prescreve que “As atribuições e poderes
conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão,
criado por lei ou pelo estatuto” (Art. 139).
518 Cfr., entre outros, ANDRADE, Márcia. A responsabilidade do administrador de Sociedade
Anônima... op. cit., pp. 104-105; ABRÃO, Nelson. Sociedade por quotas de responsabilidade
limitada… op. cit., pp. 112 e ss.
519 Em virtude desta noção, considera-se que os administradores são mandatários dos acionistas e,
em conseqüência, àqueles devem ser aplicadas as regras próprias do mandato.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 219

denominada regra da arbitrariedade (business judgement rule), em virtude da


qual os administradores são autônomos na tomada de suas determinações,
desde que estas obedeçam a um raciocínio adequado às circunstâncias. Neste
sentido, a Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (Revised Model Business
Corporation Act, RMBCA) é explícita ao assinalar que um membro de Con-
selho tem a faculdade de basear-se em informação fornecida por empregados
da companhia, cujo domínio do tema em questão seja suficiente a juízo dos
administradores [Seção 8.30 (b)(1)]. A mesma norma permite ter por funda-
mento para a tomada de decisões, o conceito emitido por um advogado, con-
tador ou outro profissional que, a critério do administrador, seja experiente no
tema a que se refere a determinação [Seção 8.30 (b)(1)]. Finalmente, o men-
cionado estatuto exonera de responsabilidade o membro do Conselho quan-
do a decisão é adotada com base em uma recomendação proferida por um
comitê eleito pelo mesmo Conselho de Administração, que seja confiável no
critério do conselheiro [8.30 (b)(3)].
Os tratadistas EASTERBROOK e FISCHEL, por sua vez, afirmaram
que a existência desta doutrina responde aos princípios econômicos fundamen-
tais que servem de base às sociedades capitalistas. Assim, os citados autores afir-
mam que, “na existência da regra da arbitrariedade está subjacente o reconhecimento
de que os ganhos dos investidores seriam muito menores se as decisões dos admi-
nistradores estivessem sujeitas a um exame judicial”520. Esta afirmação adquire
sentido dentro do avançado meio legal norte-americano, onde as considerações de
caráter pecuniário conduziram à criação de uma legislação societária tolerante
com respeito às atuações dos administradores. É possível, então, aludir à regra da
arbitrariedade como um dos mecanismos concebidos pelos estadunidenses vin-
sando um âmbito de operação empresarial mais permissivo.
A evolução jurisprudencial a respeito do alcance desta doutrina represen-
tou um avanço significativo na concepção jurídica das funções dos administra-
dores sociais. Com o curso do tempo, a jurisprudência estadunidense desenvolveu,
efetivamente, certos critérios para a aplicação prática da regra da arbitrariedade.
Estes foram compilados, posteriormente, no célebre caso Shlensky v. Wrigley521.
Em termos gerais, tais critérios podem ser sintetizados da seguinte maneira:

520 EASTERBROOK e FISCHEL, The Economic Structure..., cit., p. 94.


521 Illinois Appellate Court, 1968, 95Ill. App. 2d 173, 237 N.E.2d 776.

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220 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

• Os juízes não poderão intervir no manejo interno de uma com-


panhia, ainda que as decisões adotadas por seus administradores
não tiverem sido muito acertadas. Este princípio é aplicável ain-
da naqueles casos em que um manejo diferente pudesse ter me-
lhorado a situação financeira da companhia.
• Os juízes não poderão estabelecer ou modificar as políticas in-
ternas de uma sociedade por meio das sentenças que profiram.
Isso obedece à concepção segundo a qual seus administradores
foram eleitos para adotar tais decisões, de maneira que seu crité-
rio deve prevalecer, a não ser que haja uma atuação fraudulenta.
• Os juízes não estão facultados para impor seu critério na contra-
mão do dos administradores sociais que tiverem atuado confor-
me à lei na tomada de suas decisões522.
A partir destes enunciados, BAINBRIDGE forneceu critérios sintéti-
cos para a aplicação da doutrina. Em sua opinião, “estes critérios, considerados
em seu conjunto, ilustram os principais aspectos que, na prática, são inerentes
à regra da arbitrariedade. Com fundamento neles, é possível derivar uma pre-
sunção fundamental que surge da citada doutrina: a falta de prova sobre a
existência de uma conduta fraudulenta, de atuações ilegais ou situações que
impliquem um conflito de interesse, os juízes devem abster-se de examinar a
decisão tomada por um administrador”523.
O famoso caso a que se fez referência antes, iniciou-se mediante uma
demanda instaurada por William Shlensky em face de Philip K. Wrigley, acionista
majoritário e presidente da Conselho de Administração da sociedade proprietária
da equipe de beisebol denominado “Chicago Cubs” e de seu célebre estádio
Wrigley Field. O demandante, quem também era acionista, afirmou que a precária
situação econômica da companhia tinha sido ocasionada pela resistencia de Wrigley

522 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 244. O mesmo autor formula uma interessante
comparação entre o regime de responsabilidade dos administradores sociais e o que é aplicá-
vel aos médicos. No texto, se verifica maior grau de responsabilidade a que estão sujeitos estes
últimos. “A regra da arbitrariedade poderia chegar a ser um tanto injusta. O dever de cuidado
impõe aos administradores a obrigação de atuar com prudência na tomada de decisões.
Ademais, em virtude da mesma regra, as Cortes não podem contrariar as determinações que os
administradores tiverem adotado no exercício de seu próprio critério, a não ser que haja
circunstâncias excepcionais para isso. Muito diferente é o regime de responsabilidade dos
médicos, pois, apesar de estarem sujeitos ao dever de cuidado, não gozam do mesmo benefí-
cio conferido aos administradores a respeito de seu critério profissional” (Ibidem, p. 242).
523 Ibidem, p. 244.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 221

a instalar um sistema de iluminação no estádio que permitisse a realização de


jogos noturnos, de modo que aumentasse a ocupação das partidas. Wrigley alegou,
por sua vez, que por ser o beisebol um esporte diurno não convinha programar
jogos a noite. Ademais, arguia que tal programação poderia dar lugar à deterioração
da comunidade, com efeitos de desvalorização dos terrenos adjacentes ao estádio.
O juiz SULLIVAN, da Corte de Apelações de Illinois, aplicou a regra da
arbitrariedade para desestimar as pretensões do demandante. Seu argumento
principal se baseou na dificuldade de determinar se a decisão de negócios adotada
por Wrigley como administrador da sociedade era economicamente adequada.
Em todo caso, a Corte optou por examinar a determinação mencionada, para
depois concluir que “uma comunidade deteriorada ocasionaria a redução da
ocoupacao do Wrigley Field, bem como a notória desvalorização do preço do
terreno onde tinha sido construído”524. Não obstante, na parte resolutiva da
sentença o juiz não aludiu à análise mencionada. Limitou-se, por tanto, a reiterar
a ampla arbitrariedade de que dispõem os administradores sociais. Daí que a
aplicação da regra da arbitrariedade neste caso, constitua uma demonstração
adicional do caráter capitalista do sistema legal norte-americano525.
Na opinião de BAINBRIDGE, a Corte cometeu um erro ao efetuar
uma análise econômica da decisão de Wrigley. Como se assinalou antes, o
citado autor é partidário de que as cortes não estudem a fundamentação eco-
nômica das decisões dos administradores sociais, a não ser que ocorra algum
dos fatores já estudados. Por isso, afirma que “a Corte que decidiu o caso
Shlensky v. Wrigley podeira tê-lo feito sem sequer examinar a decisão tomada
pelo demandado, nem sua motivação para adotá-la”526.

524 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 326.


525 É interessante estudar algumas apartes da sentença em questão. A corte que decidiu o caso
Shlensky v. Wrigley fez as seguintes afirmações sobre a regra da arbitrariedade:
1 “. Não queremos dizer com o expressado nesta sentença que a decisão dos administradores
foi acertada. Tal afirmação estaria fora do alcance de nossa competência. A sentença se baseia
no fato de que a determinação objeto de censura não esteve orientada ao cometimento de uma
fraude ou de um ato ilegal, nem gerou um conflito de interesse [...].
2 “. Para justificar a intervenção da corte nos assuntos internos de uma sociedade, deve haver
fraude ou atuação que viole algum dos deveres dos administradores a respeito dos acionistas [...].
3 “. Não estamos de acordo com o argumento do demandante no sentido de que a decisão de
Wrigley de apartar-se do exemplo assentado por outros administradores a respeito da programa-
ção de jogos noturnos, tenha sido negligente. [...]. Sob nenhuma circunstância poder-se-ia
exigir dos administradores de uma companhia, ainda que estiver arrojando perdas, seguir o
exemplo de quem administram outras sociedades que desenvolvam o mesmo objeto social”
(citado por Ou’KELLEY e THOMPSON, Corporations..., cit., pp. 333-335).
526 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 244.

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Ora bem, a aplicação da regra da arbitrariedade também apresenta parti-


cularidades derivadas da jurisprudência do Estado em que se pretenda sua
aplicação. Assim, por exemplo, pode-se mencionar o marcante equilíbrio que
se observana jurisprudência societária do Estado de Delaware, cujas sentenças
oscilam entre uma grande flexibilidade, em certos casos, e uma interpretação
restritiva, em outros. Em geral, pode-se afirmar que as cortes desse Estado não
intervirão nos assuntos internos de uma companhia, a não ser que ocorram
circunstâncias excepcionais. Isso se deve ao fato que a adoção de um controle
demasiadamente estrito poderia gerar obstáculos desnecessários no desenvol-
vimento da gestão empresarial das sociedades527. No entanto, as cortes desse
Estado foram também cautelosas, com o fim de evitar ser extremamente per-
missivas ante a atuação dos administradores.
Desta forma, visa-se à proteção dos interesses dos sócios, cujos direitos
poderiam ver-se afetados por causa de condutas abusivas na gestão dos negó-
cios sociais528. Portanto, a postura das cortes de Delaware ao aplicar a regra da
arbitrariedade deu lugar a condições propícias e flexíveis para os administra-
dores, sem que isso implique o correlativo desconhecimento dos direitos que
a lei confere aos sócios. Esta circunstância também contribuiu de modo notó-
rio a manter para hegemonia do Estado dentro do denominado mercado das
leis de sociedades, cujas características já foram estudadas529.

B. DEVER DE CUIDADO (DUTY OF CARE)


O primeiro dos mencionados deveres de confiança é o de cuidado530 (duty of
care), que implica, como sua denominação o sugere, a obrigação de atuar com

527 A Corte Suprema do Estado de Delaware se pronunciou neste sentido ao afirmar em uma de
suas decisões que, “esta doutrina é o resultado do pressuposto fundamental de que todos os
assuntos e negócios de uma sociedade constituída sob a legislação do Estado de Delaware são
da competência do Conselho de Administração [...]. A regra existe para promover o exercício
livre de todas as faculdades administrativas outorgadas aos conselheiros das sociedades ali
constituídas.” [Smith v. Van Gorkom, 488 A.2d 858, 873 (Do. 1985), citado por BAINBRIDGE,
Ibidem, p. 267].
528 Neste sentido, também se tentou limitar a aplicação da regra da arbitrariedade como fator para
a exoneração dos administradores sociais. Assim, “os administradores que não atuem de uma
maneira informada e racional não poderão invocar a regra da arbitrariedade para defender-se
das reclamações relacionadas com os deveres derivados de seu cargo” (Ibidem, p. 246).
529 Cfr. Capítulo II, infra.
530 Ainda que a doutrina tenha optado por diferenciar entre eles, é importante precisar que os
deveres de lealdade e cuidado podem atuar conjuntamente e protegem os mesmos interesses.
Isto ocasionou dificuldades para efetuar a referida distinção. Efetivamente, os tratadistas
EASTERBROOK e FISCHEL afirmam que não é possível fazer uma cortante diferenciação entre

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diligência no manejo dos assuntos societários531. As variadas definições que foram


utilizadas para significar este dever fiduciário se caracterizam por sua notável
similitude. De acordo com a seção 8.30 (a)(2) da Nova Lei Tipo de Sociedades de
Capital (RMBCA), um diretor deve cumprir seus deveres “com o mesmo cuidado
com o que atuaria uma pessoa prudente sob as mesmas circunstâncias”. Assim, a
acepção empregada pelo Instituto Americano de Direito (American Law Institute)
não difere muito da empregada na Lei Tipo. Nos Princípios de Governo Societário
(Principles of Corporate Governance) precisou-se que os administradores deverão
empregar “o cuidado que uma pessoa mediamente prudente aplicaria posta numa
posição semelhante e sob as mesmas circunstâncias”532.
É muito importante ter em conta, por outro lado, que o dever de cuida-
do não implica, de forma alguma, que a decisão administrativa deva ser acer-
tada533. A legislação não exige uma obrigação de resultados, mas sim de meios.
O diretor deve pôr todo seu empenho para conseguir que as decisões adminis-
trativas sejam adotadas com pleno conhecimento e visão sobre os diversos
fatores que se relacionam com aquelas534. As numerosas vantagens que ofere-
ce a aplicação do dever de cuidado foram, em geral, escurecidas pela existência
da regra da arbitrariedade (Business Judgement Rule).

ambos os deveres fiduciários. Na opinião destes autores, “Não existe uma clara linha divisória
entre o dever de cuidado e o dever de lealdade. Qual é a diferença entre trabalhar menos do
que o pactuado, com um nível de rendimentos determinado (violação do dever de cuidado),
e ser remunerado mais do que o pactuado, com um nível de trabalho determinado (violação do
dever de lealdade)? Ambos os casos constituem exemplos de custos de mandato, conflitos de
interesse de natureza econômica, que reduzem os ganhos dos acionistas. A existência deste
conflito de interesse não pode, portanto, marcar a diferença entre ambos os deveres fiduciários”
(EASTERBROOK e FISCHEL. The Economic Structure... cit., p. 103).
531 A expansão do dever de diligencia no direito latino-americano em geral é, ao dizer de autorizada
doutrina, evidente; A legislação brasileira é um bom exemplo, porquanto o artigo 1011 do Código
Civil faz uma extensa consagração de dito dever; o mesmo deve dizer-se respeito da jurisprudência
brasileira, que também desenvolveu, in extenso, o tema do dever de cuidado em cabeça dos
administradores; ao respeito, pode-se consultar o critério exposto pelo Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo (2ª Região) na sentença do 21 de fevereiro de 2008. (Cfr. LACEDA, J.C.
Sampaio. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Saraiva, 1978. nº 2. Sec.4. p. 190).
Também é importante registrar que parte da doutrina brasileira faz uma assídua crítica ao
patrono de cuidado adotado pela legislação de dito país, especialmente pela lei sobre socie-
dades por ações; ao respeito, vid. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades
Anônimas. Vol. 3... pp. 271-272.
532 American Law Institute. Principles of Corporate Governance: Analysis and Recommendations,
1994, citado por BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 286.
533 Cristiano Graeff, no comentário ao regime societário brasileiro acrescenta que “o administrador
zela por patrimônio sujeito às oscilações do mercado, não deve cometer erros crassos, nem
conduzir os negócios sociais de forma temerária, antecipando evoluç?es técnicas ou financei-
ras não-previsíveis. Todavia, não se pode esperar êxito em todas as operações...” (Compendio
Elementar das Sociedades… op. cit., pp. 164)
534 A propósito, Cristiano Graeff afirma que no sistema do Brasil “o administrador deverá dirigir a
empresa alheia, exatamente como se fosse empresário individual, como a diligência que

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224 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Esta doutrina permitiu que se restrinjisse de maneira considerável o âmbi-


to de aplicação do referido dever fiduciário. Ao encontrar-se ambos conceitos
em indiscutível contraposição, as cortes estadunidenses optaram por empregar a
regra em detrimento do dever. Desta forma, a doutrina da arbitrariedade deverá
ser aplicada em todos aqueles casos em que não haja um ato fraudulento, ilegal
ou uma situação que conduza a um conflito de interesses535. Não obstante,
certos autores optaram por harmonizar ambas doutrinas com o fim de utilizá-
las simultaneamente. Efetivamente, BAINBRIDGE afirmou que tal harmo-
nização implicaria simplesmente distinguir entre a natureza e a função de cada
um destes preceitos. O citado autor precisou que “o dever de cuidado tem de ser
considerado como uma pauta de conduta que limita o comportamento dos
administradores sociais. Por outro lado, a regra da arbitrariedade facilita a revi-
são judicial, no momento de determinar a responsabilidade de um administra-
dor pelas gestões que tiver adiantado”536.
Ora bem, é preciso identificar as conseqüências que possam resultar da
inobservância do dever fiduciário de cuidado. PALMITER sustentou que os
efeitos de tal violação podem ensejar a responsabilidade solidária dos administra-
dores e uma possível reversão judicial das decisões adotadas. Este autor afirmou
que “as cortes sustentaram que os administradores que votaram a favor, consenti-
ram ou não objetaram uma decisão que constituiu uma violação ao dever de
cuidado, serão responsáveis de maneira solidária pelos prejuízos causados. No
entanto, nem toda transgressão pode implicar a solidariedade. Em ocasiões se
requer que o demandante demonstre a existência de uma relação de causalidade
entre a ação (ou omissão) do administrador e os prejuízos causados [...]. As cortes
podem, da mesma maneira, invalidar uma decisão tomada pelos administradores,
sempre que a regra da arbitrariedade não seja aplicável ao caso concreto”537.

emprega em seus próprios negócios. Deve dirigí-la, com a honestidade e atividade costumeira,
de acordo com a sua finalidade. Não pode violar os seus estatutos ou a lei” (Compêndio
elementar das… op. cit., p. 235).
535 Cfr. infra, pp. 166-170. É interessante a autorizada opinião do professor Paes de Almeida, para
quem “os administradores, como órgãos da companhia, não (...) respondem, pois, em princípio,
pelos atos praticados nem tampouco a eles se vinculam, excetuado quando procedem irregular-
mente, quando extravasam os atos normais de gestão, violando a lei ou o estatuto, atuando com
culpa ou dolo...”. ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais. São Paulo:
Saraiva, 1998. pp. 262-264.
536 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 297.
537 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 332

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 225

A legislação do Reino Unido, por sua vez, caracteriza-se pela aplicação


de três deveres fiduciários. Conquanto estes se assemelham aos consagrados
na legislação estadunidense, não existe uma correspondência absoluta entre
uns e outros. Assim, o primeiro dever impõe aos administradores a obrigação
de exercer “suas funções em benefício da companhia, dentro de regras de boa
fé, e nunca em benefício próprio”538. O segundo dever fiduciário dispõe que
estes também não podem “lucrar indevidamente com o resultado de uma
determinada operação da sociedade”539. Por fim, o terceiro dever fiduciário
estabelece que os administradores “não podem estar numa situação em que
seus interesses pessoais entrem em conflito com os da companhia”540.

C. DEVER DE LEALDADE (DUTY OF LOYALTY)


O dever de lealdade (duty of loyalty) implica a necessidade de que o
administrador atue de forma que assegure “os melhores interesses da
sociedade”541. O uso desta expressão pode ser observada na maioria das
legislações estaduais cuja promulgação se inspirou nas disposições contidas na
Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA). A Seção 8.30 desta
norma efetivamente dispõe que os administradores sociais devem “atuar segundo
estimem conveniente, de modo a servir os melhores interesses da companhia”.
Isso significa, entre outras coisas, abster-se de participar em atos ou operações
que impliquem um conflito de interesses com a companhia. ROBERT
CHARLES CLARK, ao referir-se ao dever de lealdade, precisou que “este
dever evita que as pessoas obrigadas a acatá-lo se aproveitem da sociedade e de
seus sócios mediante a realização de operações injustas ou fraudulentas. Em
circunstâncias caracterizadas pelo conflito de interesse, as exigências derivadas
do dever de lealdade impedirão a tais pessoas beneficiar-se injustificadamente

538 DORRESTEIJN, et al., op. cit., p. 130.


539 Ibidem, p. 131.
540 Ibidem.
541 É claro que a necessidade de contar com esta especial proteção provem da natureza mesma das
relações entre os administradores e a companhia. Na verdade, “o dever de fidelidade ou de
lealdade do administrador se explica pelo caráter fiduciário da relação que paquera a socieda-
de. Não é momento de deter-se sobre os custos de transação e as imperfeições de informação
que determinam o caráter necessariamente incompleto da contratação. O que agora interessa
sublinhar é a especial dramaticidade que apresenta o problema nas relações de agência, isto é,
nas relações nas quais uma parte delega para outra poderes de decisão” (DÍEZ, Pedro Portellano.
Dever de fidelidade dos administradores de sociedades mercantis e oportunidades de negócio.
Madrid: Edit. Civitas, 1996, p. 22).

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226 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

em prejuízo dos sócios ou acionistas”542. O desenvolvimento judicial deste


dever fiduciário nos Estados Unidos obedece à observação empírica segundo a
qual, sob certos suportes fáticos, os administradores poderiam atuar de forma
indevida diante de manter uma situação que lhes favoreça, apesar da existência
de interesses contrapostos aos da sociedade543. O mesmo autor citado se refere
à dificuldade doutrinária de agrupar as hipóteses factuais que pode se enfrentar
na aplicação deste princípio de conduta. Por isso afirma que “o dever fiduciário
de lealdade é um conceito de natureza residual, que pode incluir situações de
fato que ninguém previu ou classificado ainda. A consagração deste dever
facilitou a permanente evolução do Direito Societário”544.
Ora bem, ainda que não seja viável prever todos os casos em que se possa
infringir o dever fiduciário de lealdade, as condutas que, em geral, têm esse efeito
foram reduzidas a algumas categorias pela doutrina societária estadunidense. É
preciso destacar dentro delas, quando menos, aquelas condutas nas quais haja o
interesse particular do administrador (self dealing transactions), a determinação
de remunerações excessivas para os administradores sociais (executive
compensation), a usurpação das oportunidades da sociedade (usurpation of corporate
opportunity) e o uso indevido de informação privilegiada (insider trading).
I. OPERAÇÕES NAS QUE HÁ CONFLITO DE INTERESSE (SELF
DEALING TRANSACTIONS)

Sempre que na celebração de um negócio jurídico apareçam de modo


simultâneo os interesses particulares dos administradores sociais e os da socie-

542 CLARK, Robert C. op. cit., p. 141. No caso brasileiro, a Lei sobre sociedades por ações inclui
varias normas relativas ao dever de lealdade; A jurisprudência do Brasil, também tem reconhe-
cido dito dever; a este respeito, Vid. Terceira Câmara Cível. Acórdão de 28 de outubro de 2010
(apelação 0210044-63.1998.8.19.0001 (2007.001.61246); Quarta Câmara Cível. Acórdão
de 27 de marco de 2010 (apelação 0123746-24.2005.8.19.0001 (2006.001.68114)); Déci-
ma Quarta Câmara Cível Câmara Cível. Acórdão de 21 de marco de 2010 (apelação 0000222-
23.1998.8.19.0037 (2006.001.63659)).
543 Autores de outras localidades se pronunciaram a respeito da finalidade que se procura mediante
a promulgação de normas atinentes ao dever fiduciário de lealdade. PORTELLANO DÍEZ, por
exemplo, sustenta que “a justificativa da proibição de concorrência do administrador não é
proteger à sociedade de todo tipo de concorrência. A simples entrada do administrador no
mercado no qual opera a sociedade conduziria – por dizê-lo em termos muito gerais – a um
benéfico aumento da pressão competitiva nesse mercado. A conseguinte piora das condições
competitivas de uma concreta sociedade tem de ser visto como economicamente desejável. A
razão de ser da proibição de concorrência é mais pela necessidade de contrariar o especial perigo
que acarreta para a sociedade a concorrência de seu administrador, já que este está em situação
de sabotar e inclusive arruinar economicamente à sociedade” (op. cit., p. 32).
544 CLARK, Robert Charles op. cit., p. 141.

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dade, pode-se prever a violação do dever de lealdade545. No Direito norte-ame-


ricano pode-se verificar que estas modalidades de atos e operações constituem a
causa mais recorrente de inobservância do referido dever fiduciário. Não sem
razão a jurisprudência e a doutrina estadunidenses se deram à tarefa de regular
tais situações com notória rigidez546. CLARK afirma que nesta classe de negó-
cios pode-se incluir condutas tais como as que a seguir se enumeram: “(i) Atos
ou operações realizados entre uma sociedade e seus administradores; (ii) Ope-
rações entre duas companhias, de maneira que um indivíduo desempenhe a
função de administrador de uma, apesar de ter interesses econômicos na outra;
(iii) Operações entre sociedades matrizes e subordinadas nas quais quem de-
sempenhe a função de administrador das primeiras tenha participações de ca-
pital nas segundas, e (iv) Atos ou operações cumpridos entre sociedades que
compartilhem os mesmos administradores”547.
A Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware (Delaware Geral
Corporation Law), caracterizada por regras flexíveis estabelecidas em benefício
dos administradores, tentou facilitar a realização desta classe de operações. À
luz desta legislação de vanguarda, a regra geral consiste em que os negócios
jurídicos celebrados entre os administradores e as sociedades em que desenvolvem
sua gestão não são viciadas per se de nulidade. De maneira excepcional, a referida
sanção poderia ser aplicada nos seguintes supostos: (i) Naqueles eventos em que
os administradores não tiverem revelado toda a informação relacionada com a
operação que se propunham acometer; (ii) Em qualquer caso em que os
administradores tiverem atuado de má-fé durante a fase pré-contratual, e (iii)
Em hipótese em que o ato ou operação tiver sido nocivo para a sociedade ou
puder resultar-lhe prejudicial no futuro548. Mediante a implantação deste sistema

545 É por isso, por exemplo, que o artigo 156 da Lei de sociedades por ações do Brasil prevê que
“É vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse
conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais
administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de
reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse
[...]”. Cfr. Tribunal da Relação de Lisboa. Secção 7ª. Acórdão de abril de 2010 (Apelação).
546 Os sistemas tradicionais para determinar a validade de tais situações não se caracterizaram por
sua flexibilidade em favor dos administradores. Um deles, conhecido como o critério da
equanimidade (fairness test), consiste no exame judicial de uma determinada atuação, com o
fim de estabelecer se ela pode ser considerada justa dentro do âmbito societário (cfr. CARY e
EISENBERG, op. cit., pp. 558 et seq.).
547 CLARK, Robert C. op. cit., p. 159
548 Seção 144 (a) da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware (Delaware General
Corporation Law).

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228 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

permissivo, a legislação de Delaware teve o efeito de reduzir a ingerência das


cortes nas mencionadas operações. Trata-se de um significativo benefício
conferido aos administradores, cuja consagração normativa faz parte também
das numerosas facetas que atenuam o rigor das regulações societárias. Este peculiar
regulamento contribuiu para a manutenção da hegemonia do aludido Estado
dentro do mercado de leis de sociedades549.
II. REMUNERAÇÕES EXCESSIVAS (EXECUTIVE COMPENSATION)

O dever fiduciário de lealdade pode ser transgredido também como con-


seqüência da determinação de honorários em cuja fixação não tiverem sido
seguidos critérios racionais por parte dos mesmos administradores que os re-
ceberão. O conflito de interesse surge, neste caso, da contraposição entre o
ânimo dos administradores de conferir à si próprio uma retribuição adequada
por seus serviços e o detrimento que a sociedade poderia sofrer ao ser fixada
uma remuneração excessiva.
As cortes norte-americanas afirmaram sobre este particular que deve existir
uma correspondência razoável entre o valor dos honorários e a qualidade e
quantidade dos serviços prestados à sociedade550. No entanto, o assinalamento
de critérios que permitam estabelecer se os emolumentos fixados guardam
uma relação proporcionada com a atividade desempenhada pelos administra-
dores representa evidentes dificuldades analíticas. Daí que a solução adotada
pelo sistema legal estadunidense aponta para uma intervenção judicial mode-
rada no processo de fixação destes valores mobiliários551. Desta maneira, as

549 Apesar da inegável influência que tem o Direito Societário norte-americano sobre os sistemas
jurídicos de origem romano-germânica, parece improvável que esta concepção um tanto
extremada possa ser introduzida nas legislações latino-americanas.
550 CLARK, Robert C. op. cit., p. 192.
551 ROBERT C. CLARK afirmou sobre o particular que, “optou-se por acolher um sistema legal que não
seja em excesso restritivo nem também não demasiado permissivo. O estudo deste aspecto mostra
duas arestas que convém analisar: por uma parte, a adoção de medidas tendentes a melhorar as
condições do mercado de diretores; de outra, a existência de um mecanismo alternativo para
solucionar os conflitos que surgem da fixação de remunerações excessivas. As medidas a que se
fez alusão estão orientadas a que se revele a informação pertinente, para facilitar a adoção de
decisões relativas à conduta dos administradores sociais. Assim, ao generalizar a tendência de
revelar oportunamente a informação sobre as verdadeiras condições trabalhistas dos executivos,
será possível contar com um mercado que seja apropriado de maneira eficiente às necessidades
dos sócios. [...]. Por outro lado, o sistema legal estadunidense desenvolveu um mecanismo
alternativo para a solução de conflitos surgidos por motivo do excesso injustificado de remune-
rações. Existe, pois, a possibilidade de que os juízes intervenham no âmbito interno da sociedade,
naqueles casos em que a remuneração pactuada para um administrador não obedeça a critérios
racionais de fixação; isto é, quando os honorários pactuados tenham ultrapassado as condições
normais do mercado e os limites impostos pela lei para o efeito”. (Ibidem pp. 193 e 194).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 229

cortes tentam atingir um equilíbrio entre a autonomia da sociedade para de-


terminar as remunerações que são atribuídas aos administradores e as medidas
de prevenção que tendam a impedir que se viole o dever fiduciário de lealdade.
Por último, é preciso assinalar que a já estudada regra da arbitrariedade
(business judgment rule) pode ser utilizada pelos administradores para se de-
fenderem naqueles casos nos quais ele são acusados de terem atribuído a si
próprios uma remuneração excessiva. Neste sentido, BAINBRIDGE assina-
lou que “se os administradores sociais, antes da revelação da totalidade da
informação pertinente, consentem de boa fé em aceitar uma determinada re-
muneração, esta operação estará protegida pela regra da arbitrariedade”552. A
aplicação sugerida por este autor constitui uma notória exceção ao âmbito de
aplicação geral da mencionada regra. Deve-se recordar que a referida doutrina
tem por pressuposto fundamental para sua aplicação a inexistência de uma
situação de conflito de interesse com o administrador. Neste sentido, ao se
configurar um excesso de remuneração com a utilização de tal regra numa
mesma hipótese, cria-se uma exceção ao princípio segundo o qual a regra da
arbitrariedade só é apicada quando não existe conflito de interesse.
III. USURPAÇÃO DAS OPORTUNIDADES DA SOCIEDADE (USURPATION OF
CORPORATE OPPORTUNITY)

O dever fiduciário de lealdade se faz exigível desde o momento em que


uma pessoa começa a exercer funções como administrador de uma determinada
companhia. É por isso que, desde então, todas as oportunidades de negócios
que este chegue a conhecer pertencem à sociedade de maneira exclusiva553. É

552 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 321.


553 Sobre o particular é interessante conferir o célebre caso Meinhard v. Salmon, um dos preceden-
tes de maior relevância sobre esta classe de violação do dever de lealdade. O caso surge da
controvérsia entre dois “consorciados”, que arrendaram um edifício de escritórios com fins
comerciais. Os arrendatários acordaram que seria WALTER J. SALMON o encarregado de
administrar os locais. Vencido o curto termo do arrendamento, Salmon acordou com o dono
do terreno uma prorrogação do contrato e a exclusão de Meinhard do negócio. Logo após, este
último ingressou com uma demanda contra Salmon por violação do dever fiduciário de
lealdade. O juiz CARDOZO, da Corte de Apelações do Estado de Nova York, considerou
violado o dever de lealdade, não sem antes determinar que a aplicação dos deveres fiduciários
é homogênea tanto nos consórcios como nas sociedades. A solução ordenada pelo juiz
consistiu em distribuir os benefícios econômicos no novo negócio para que se refletisse a
mesma simetria existente no contrato de arrendamento anterior. (Ou’KELLEY e THOMPSON,
Corporations..., cit., pp. 72-81).
No caso do Brasil, o artigo 155 da Lei sobre sociedades por ações proíbe a usurpação das
oportunidades da sociedade, seguindo com isso a tendência internacional. Cfr. CÔRREA,
Osmar Brina. Sociedade anônima. São Paulo: Livraria Del Rey Editora. 2003. p. 183

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230 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

claro, no entanto, que para que se configure a transgressão que se analisa é


indispensável que os negócios tenham relação com o objeto da sociedade na
qual o administrador desepenha suas funções. Ademais, como expressa acerta-
damente o professor CLARK, “o fato de que a oportunidade pertença à socie-
dade e a circunstância de que sua indevida apropriação seja susceptível de ser
impugnada ante as cortes não são os únicos dois requisitos próprios desta con-
duta. O ponto central da discussão é que, ao existir um conflito entre uma
companhia e seus administradores a respeito de uma determinada oportunida-
de de negócios, esta pertencerá, em geral, à sociedade”554.
Por outro lado, definir o que na prática deve ser considerada como uma
oportunidade de negócios pertencente a uma companhia não é tarefa fácil.
Com o ânimo de resolver esta dificuldade, as cortes estadunidenses trataram
de relacionar as circunstâncias concretas que a configuram. SOLOMON e
PALMITER analisaram este aspecto, mediante a determinação dos critérios
judiciais que caracterizam à oportunidade societária. Na sua opinião, “as
cortes têm estruturado e aplicado numerosas acepções para descrever esta
classe de oportunidades. Não obstante, existem duas premissas fundamentais
presentes em cada uma destas definições: (i) Os administradores não devem
competir com a sociedade em negócios que pertençam a esta. Tal
circunstância é derivada da noção que os esforços dos administradores devem
estar dirigidos para melhorar a situação da companhia, e (ii) Não se trata, no
entanto, de impedir aos administradores realizar negócios por fora da
sociedade. Na realidade, não se deve restringir o espírito empresarial sem
que existam razões de fundo para isso”555. A evidente contradição entre
estas duas premissas determina também a existência de um verdadeiro
equilíbrio, que favorece a relação entre os administradores e a sociedade na
qual desempenham suas funções. Daí que, ao aplicar as regras mencionadas,
os juízes adotem soluções que, na maioria dos casos, beneficiam à totalidade
das partes envolvidas.
IV. USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA (INSIDER TRADING)

No exercício de suas funções, os administradores sociais podem chegar a


conhecer informação que não é de domínio do público. Caso se permitisse a

554 CLARK, Robert C. op. cit., p. 224.


555 SOLOMON et al., op. cit., p. 370.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 231

utilização discricionária desta informação, poder-se-iam ver prejudicados os


interesses de uma companhia e de seus sócios556. É por isso que o sistema legal
estadunidense não lhes permite aos administradores sociais utiliza esta infor-
mação para realizar negócios nas quais tenham um interesse pessoal. Tem-se
então que, igual a como ocorre em outros ordenamentos jurídicos, a utilização
indevida de informação privilegiada por parte de um administrador é punida
como uma violação do dever fiduciário de lealdade557.
Por outro lado, a informação pertencente a uma companhia pode ser
qualificada como de natureza privilegiada, naqueles casos em que o acesso a
ela se encontre temporário ou permanentemente restringido. Em tais situa-
ções, é claro que uma sociedade adotou a determinação de evitar que terceiros
conheçam alguns detalhes de seu funcionamento ou desenvolvimento. Não
pareceria razoável, por tanto, que os administradores tivessem a possibilidade
de lucrar injustificadamente mediante o uso dessa informação. Mais ainda,
alguns autores consideram que o emprego indevido da informação deve ser
assimilado ao delito de furto558.

556 EASTERBROOK e FISCHEL expuseram os numerosos motivos que poderia ter uma companhia
para revelar informação que possa ter tido o caráter de privilegiada. Se um administrador tivesse
a faculdade de utilizar esta informação antes de sua efetiva publicação, as razões para mantê-
la reservada seriam completamente desvirtuadas. Segundo os autores citados, tais motivações
poderiam ser sintetizadas da seguinte maneira: “Por um lado, se tentaria reduzir os custos em
que devem incorrer os investidores para obter informação sobre uma determinada companhia.
Da mesma forma, se tentaria melhorar o grau de confiança em relação à sociedade. Ademais,
a revelação de informação poderia permitir que os sócios alienassem suas participações no
capital a um preço mais elevado. Efetivamente, se toda a informação se mantivesse reservada,
os investidores poderiam assumir a existência de circunstâncias desfavoráveis e oferecer menos
dinheiro pelas ações ou participações de capital correspondentes” (The Economic Structure...
cit., p. 256).
557 O alcance que se deu a esta matéria no direito brasileiro é interessante; efetivamente, é
importante destacar que a Lei nº 10.303 de 2001, que alterou a Lei nº 6.385/76, passou a
definir como crime o uso indevido de informação privilegiada, no seu art. 27-D; Segundo
Márcia Andrade, “o cuidado se justifica pelo velho ditado popular de que o “segredo é a
alma do negócio”, e, portanto, existem informações a respeito dos negócios da empresa, tais
como valores, fórmulas, métodos produtivos e intenções de atuação, que se veiculadas
abertamente poderiam comprometer o desempenho econômico da sociedade” (A responsa-
bilidade do administrador... op. cit., p. 5). Cfr. FONTES, Regina Martins. Uso indevido de
informação privilegiada. In: Direito Empresarial – Questões contemporâneas em Coletânea.
Singular. 2007. p. 4).
558 EASTERBROOK e FISCHEL afirmam que “as operações baseadas nesta classe de informação
devem ser assimiladas ao delito de furto [...]. Os que realizam estas condutas, apesar de ter
lembrado tácita ou expressamente que se absteriam de realizá-las, cometem uma fraude
contra a sociedade similar àquele em que incorre quem extrai dinheiro de seus cofres”
(Ibidem, p. 259).

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232 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

2. REGULAÇÃO FEDERAL SOBRE A CONTABILIDADE DAS


SOCIEDADES DE CAPITAL ABERTO (SARBANES-OXLEY ACT)
A Lei Sarbanes-Oxley (SOA) é uma demonstração eloqüente do teorema
proposto por autores contemporâneos como RÓI e MCCAHERY559, no sentido
de que a competição de legislações estaduais está notoriamente restringida pelos
poderes das autoridades federais. Efetivamente, ante as protuberantes deficiências
detectadas nas regras de governança corporativa que são aplicáveis às sociedades de
capital sob as leis estaduais, o Congresso federal reagiu de modo categórico, medi-
ante a fixação de padrões de aplicação obrigatória para as sociedades que negociam
ações no mercado público de valores mobiliários estadunidense560.

559 Cfr. Capítulo II, supra.


560

Fonte: JOSÉ FERREIRA CHAGAS. ‘Governança corporativa. Aplicabilidade do Conceito, dos


Princípios e Indicadores à Gestão de Pequenas e Médias Organizações’, em Instituto Interna-
cional de Custos (IIC) [online] http://www.intercostos.org/documentos/085.pdf; Adaptado de
Deloitte Touche Tohmatsu (2003).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 233

A fraude financeira da companhia multinacional de hidrocarbonetos


Enron, somado às irregularidades encontradas em outras das mais importan-
tes companhias norte-americanas, conduziu a uma severa revisão da legislação
contábel nos Estados Unidos561. A citada Lei Sarbanes-Oxley, por cujo efeito
se introduziram importantes modificações nessa matéria, foi qualificada por
muitos como a resposta do governo federal ante a irresponsável atitude nas
praticas contábeis das sociedades de capital562. Sem prejuízo da inegável im-
portância deste regulamento, alguns autores consideram que a reação das au-
toridades federais foi feita tardiamente. Na verdade, muito antes de se conhecer
a crise da Enron se tinha notícia das irregularidades que a teriam gerado,
propiciadas pela falta de autonomia dos auditores das grandes companhias.
“A Comissão de Valores mobiliários (SEC) já tinha expressado sua inconfor-
midade ante a situação que se apresentava no manejo da contabilidade socie-
tária nos Estados Unidos. Não obstante, as advertências da Comissão não
tiveram eco entre os investidores, devido, em grande parte, ao pronunciado
auge do mercado de valores mobiliários durante a última década do século
XX”563. Apesar da crítica, é evidente que a Lei Sarbanes-Oxley introduziu
uma multiplicidade de preceitos normativos destinados a restaurar a confian-
ça do público no mercado de valores mobiliários estadunidense.
Uma das determinações de maior importância adotadas pelo Congresso
federal em sua tentativa de parar a negligência nas práticas contáveis consistiu
na criação de um órgão federal de supervisão, conhecido como Junta de Audi-

561 “A crise financeira de Enron foi um desastre de magnitude incomensurável para seus administra-
dores, trabalhadores, contadores, banqueiros de investimento e investidores. Tratou-se de uma
catástrofe sem precedentes, que teve efeitos negativos sobre todas as pessoas relacionadas com
essa companhia. Contudo, deve-se reconhecer que a crise do sistema não se originou tão só no
desaprume financeiro de Enron. O escândalo gerado pela verificação de irregularidades em
companhias tais como WorldCom, Owest, Global Crossing, Tyco e, logicamente, Enron, causa-
ram aos investidores perdas aproximadas à quatrocentos sessenta mil milhões de dólares” (LUCCI,
John Paul. Enron – The Bankruptcy Heard Around the World and the International Ricochet of
Sarbanes-Oxley. In: Albany Law Review, vol. 67, 2003, nº 211, New York, pp. 211-212).
562 São muito conhecidas as razões que levaram ao Congresso Federal a promulgar, com rapidez, a lei
Sarbanes-Oxley. Segundo JOHNSON, isso se deveu à conjunção “de diversos fatores, tais como a
crise de algumas sociedades estadunidenses de grande dimensão e o desaprume do mercado de
valores, que tinham minguado a confiança dos investidores no mercado público de valores
mobiliários e nos Conselhos de Administração das grandes companhias [...] A tensa atmosfera que
se originou a partir destas circunstâncias levou ao Congresso dos Estados Unidos a expedir o que
pode ser um dos mais importantes regulamentos desde a promulgação das leis federais sobre
valores mobiliários na década de trinta” (JOHNSON, Lyman P. Q. et al. The Sarbanes-Oxley Act and
Fiduciary Duties. In: William Mitchell Law Review, vol. 30, 2004, nº 1149, Minnesota, p. 1153).
563 BRATTON, William W. Rules, Principles, and the Accounting Crisis in the United States. In:
European Business Organization Law Review, vol. 5, 2004, nº 1. The Hague: TMC Asser Press, p. 8.

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234 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

toria Contável de Sociedades de Capital Abertas (Public Company Accounting


Oversight Board)564. A Seção 101 (a) da Lei Sarbanes-Oxley é eloquente so-
bre a natureza e a finalidade deste órgão. Segundo o texto aprovado pelo
Congresso, a Junta está encarregada de fiscalizar “as atividades de auditoria
feitas nas sociedades que negociem suas ações no mercado público de valores
mobiliários e que se encontrem sujeitas à regulação federal sobre valores mo-
biliários, com o propósito de zelar pelos interesses dos investidores”.
As amplas faculdades que foram atribuídas à Junta demonstram também
a importância desse órgão no cumprimento do mandato legal contido na nor-
ma analisada565. Um dos mais importantes poderes conferido a esta entidade
de supervisão é, sem dúvida alguma, o relacionado com a imposição de sanções
e multas pela inobservancia da Lei Sarbanes-Oxley. Na verdade, a Junta pode
adotar determinações tão radicais como a imposição de cursos obrigatórios em
matéria contábel, e até decretar a proibição vitalícia de exercer essa profissão566.
Além disso, deve-se ressaltar que a devida aplicação desta nova norma depen-
derá, em grande parte, da eficiência de tal órgão federal de supervisão567.
Por outro lado, é de particular importância analisar a incidência do regula-
mento estudado respecto dos deveres fiduciários dos administradores. Alguns
autores consideram que a Lei Sarbanes-Oxley contém disposições encaminha-
das a enfatizar a importância de tais regras de conduta. Certamente, “a Seção
301 da lei pode ser vista como um iniciativa do legislativo tendente a relembrar
os membros do Conselho de Administração a necessidade de observar estrita-
mente seus deveres e responsabilidades, bem como a fomentar o exercício autô-
nomo de seus cargos”568. A seção citada ordena a obrigatória criação de um

564 As principais características deste órgão se encontram no Título Primeiro da Lei Sarbanes-Oxley.
565 Cfr. Seção 101 (c) da Lei Sarbanes-Oxley.
566 Cfr. Seções 105 (c)(4)(F) e 105 (c)(4)(A) da Lei Sarbanes-Oxley.
567 A árdua competição que se apresentou por ocupar o cargo de presidente do Conselho de
Administração poderia ser um exemplo da percepção existente no meio norte-americano sobre
a importância deste órgão. Para uma detalhada análise dos pormenores desta concorrência
política cfr. KIM, Brian. Sarbanes-Oxley Act. In: Harvard Journal on Legislation, vol. 40, 2003,
nº 235, Massachussets, pp. 241-242.
568 JOHNSON et al., op. cit., p. 1156. O mesmo autor expõe as razões que deram lugar à notável
perda de autonomia dos membros dos Conselhos de Administração. “Ao longo da última
década, fomos testemunhas do incremento exponencial do domínio dos presidentes das compa-
nhias [‘Chief Executive Officer’ ou, por suas siglas em inglês, CEO]. Em alguns casos, podia
inclusive sustentar-se que estes se assemelhavam mais a um monarca que a um administrador
social [...]. A paulatina variação no equilíbrio de poder entre os presidentes e os membros de
Conselhos de Administração se converteu num obstáculo para o cumprimento dos deveres

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 235

Comitê de Auditoria nas sociedades anônimas abertas (Public Company Audit


Committee)569. Este órgão colegiado está encarregado de supervisionar o traba-
lho dos sujeitos aos quais foi confiada a contabilidade da companhia. O Comitê
– que deve necessariamente integrar-se por membros do Conselho de Adminis-
tração – é responsável, de forma direta, pelas atuações irregulares dos auditores
da sociedade. A disposição que se comenta visa remediar a suposta indiferença
dos administradores sociais a respeito da atividade contábel das companhias570.
Outra das disposições da Lei Sarbanes-Oxley que afetam de modo dire-
to aos administradores sociais está contida na Seção (302) (a) do estatuto.
Trata-se de uma acertada regra, que lhes impõe a estes funcionários a obriga-
ção de certificar todos os relatórios que devem ser apresentados ante a SEC571 .
A assinatura de tais documentos permite verificar que os administradores re-
visaram as demonstrações financeiras e que, em seu leal saber e entender, estes
se encontram isentos de informação enganosa, de maneira que refletem fiel-
mente a realidade substancial da sociedade572. Os administradores que, cons-
cientemente, certifiquem relatórios que contenham informação inexata, serão
responsáveis penalmente573.

destes últimos” (DONALDSON, William H., discurso emitido durante a Conferência de Polí-
tica Econômica, Washington, março de 2003, citado por JOHNSON et al., op. cit., nota 31).
569 O novo órgão colegiado permite fazer uma analogia com o modelo da co-determinaçao
próprio da legislação alemã de sociedades por ações, na qual, aparte do Conselho de Admi-
nistração, existe um conselho de vigilância. A diferença principal entre as duas estruturas
societárias estaria dada pela participação dos trabalhadores no órgão de supervisão presente
na estrutura germânica.
570 Segundo JOHNSON, “uma das principais preocupações do Congresso Federal e da Comissão
de Valores foi o aparente descuido dos administradores no cumprimento oportuno de seus
deveres” (op. cit., p. 1156).
571 Segundo a Seção 13 (a) da Lei de Negociação de Valores Mobiliários de 1934, as companhias
inscritas em bolsa deverão apresentar relatórios contábeis trimestrais e anuais ante a SEC. A
legislação argentina em matéria do mercado de valores mobiliários também contém obrigações
de revelação de informação similares às mencionadas. Como afirma VÍTOLO, “na realidade da
República Argentina se pode afirmar que para as sociedades abertas, de acordo com o
estabelecido pelas Normas da Comissão Nacional de Valores (Texto 2001), devem- ser
apresentados ante a CNV os seguintes elementos: a) Anualmente: [...] (iii) um resumo informativo,
confeccionada sobre a base das demonstrações financeiras consolidadas para as emissoras
quando isso sea aplicável, que será aprovada pela diretoria da emissora juntamente com o
resto da documentação [...] b) Ademais, trimestralmente e dentro dos quarenta e dois (42) dias
de fechado o trimestre [...]devem ser apresentados demonstrações financeiras por períodos
intermediários” (VÍTOLO, Daniel R. A Lei Sarbanes-Oxley dos Estados Unidos, a realidade da
República Argentina e a prevenção das fraudes societarios. In: Doctrina Societaria e Concursal,
2002, nº 181, pp. 857-858).
572 Seção 304 da Lei Sarbanes-Oxley.
573 Cfr. WARYJAS, Maryann A. et al. Sarbanes-Oxley Act Changes: Best Practices for Public and
Private Companies engaged in Acquisitions, Practicing Law Institute, Corporate Law and Practice
Course, Handbook Series, June-July 2004.

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236 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

A lei também contém algumas previsões atinentes à responsabilidade penal


dos sujeitos que infrinjam as normas contidas no estatuto. Assim, a Seção 802
da Lei Sarbanes-Oxley estabelece penas de até 20 anos de prisão a quem des-
trua, altere ou oculte documentos ou registros contábeis, com a intenção de
impedir ou obstruir investigações relativas à fraude na administração de uma
companhia. Por outro lado, cada sociedade inscrita em bolsa deverá estabelecer
procedimentos administrativos para receber e conservar os comentários escritos
formulados pelos trabalhadores a respeito de irregularidades que possam haver
na contabilidade da sociedade574. Além disso, o estatuto determina a necessi-
dade de que cada sociedade conte com “um código de ética”, mediante o qual
se tente reduzir a possibilidade que se cometam enganos financeiros. Este có-
digo também visa fomentar a observância de condutas éticas e honestas por
parte dos administradores e restantes funcionários da sociedade575.

3. PRINCÍPIOS DE ORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA


(CORPORATE GOVERNANCE)
Os principios de organização societária, conhecidos pela expressão ame-
ricanizada de governança corporativa, agrupam aquelas regras, de origem legal
ou contratual, que regem as relações entre os sócios e os diversos órgãos sociais.
Alguns autores consideraram que os modelos de organização clássicos que
eram aplicáveis às sociedades de capital foram substituídos por uma tendência
a dar maior relevância a estes princípios576. JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES,
por exemplo, qualifica de modelo “posmoderno” aquele que surge da gover-
nança corporativa. “Esta nova vertente de reflexão crítica sobre a legitimação
do poder no seio das sociedades anônimas, conquanto corresponda a uma
linha de evolução que ainda não amadureceu suficientemente, enfatizou a
necessidade de uma reforma do sistema atual de governança das sociedades
anônimas, que – ao superar o domínio tradicional dos interesses de acionistas,

574 Seção 301 (4) da Lei Sarbanes-Oxley.


575 Seção 406 da Lei Sarbanes-Oxley.
576 Maria da Conceição da Costa Marques analisa esta instituição e assinala que “o objeto central
dos sistemas de governança corporativa não é o de intervir na autonomia das organizações
mas, ao contrário, pretende equilibrar a competitividade e produtividade da empresa com uma
gestão responsável e transparente da mesma. (Aplicação dos princípios da governança
corporativa ao sector público. In: Revista de Administração Contemporânea. Vol.11. No.2 Apr/
Jun. 2007).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 237

administradores e credores sociais – possa levar em conta a representação ins-


titucional e legislativa dos interesses de outros atores sociais, econômicos e
políticos sobre os quais também se projeta a sociedade anônima (trabalhado-
res, consumidores, poupadores, investidores, médio ambiente, poderes públi-
cos)”577. Trata-se, por tanto, de normas orientadas a melhorar a gestão das
companhias, mediante a adoção de mecanismos legais imperativos ou a inclu-
são de regras adotadas voluntariamente por aquelas sociedades interessadas
em dispor de um melhor forma para captar capital.
A Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento
(Organization for Economic Cooperation and Development) define governança
corporativa como “o conjunto de relações entre os diretores de uma sociedade,
sua Conselho de Administração, seus acionistas e outras partes inte-
ressadas” 578. Apesar da aparente exatidão desta definição, trata-se, em
realidade, de um conceito vago e carente de contornos específicos.
MCCAHERY define governança corporativa como “a vigilância e controle
que se exerce sobre a maneira como se atribui os recursos e se estruturam e
administram as relações dentro de uma sociedade”579. Neste sentido, vai além
da simples regulação dos vínculos existentes entre a propriedade e o controle,
vale dizer, da relação entre acionistas e administradores. Estes princípios de
organização, “também aludem àquelas regras desenhadas para proteger a
outras partes interessadas, tais como empregados e credores ante os riscos
inerentes a condutas contrárias à ética ou a decisões administrativas adversas”.
Inúmeras relações societárias podem ser incluídas dentro do amplo âmbito
desta disciplina580.
Segundo se afirmou, os princípios de organização societária não somente
surgem das regulações imperativas contidas em normas de Direito Societário,
mas também se encontram em acordos celebrados pelas partes interessadas,
bem como em cláusulas contidas em protocolos adotados pelas sociedades de
capital aberto e fechado.

577 Direito das..., cit., p. 112.


578 OECD, White Paper on Corporate Governance in Latin America, 2003, p. 58.
579 JOSEPH MCCAHERY et al. Corporate Governance and Innovation: Venture Capital, Joint Venture
and Family Businesses. Tilburg University, 2006, p. 1.
580 Ibidem. “Assim, por exemplo, podem ser mencionadas aquelas que surgem das relações de
controle entre os diretores da sociedade, o Conselho de Administração, os acionistas e outros
interessados, tais como os empregados, provedores, instituições de crédito, etc.” (Ibidem).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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238 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Apesar da aparente novidade do tema, o verdadeiro é que existem regras de


organização societária desde épocas remotas. Sempre que exista um vínculo en-
tre o capital e o investimento, terá necessidade de regular as relações entre as
pessoas que contribuem os recursos e quem os administram. A proteção de
investidores externos é, efetivamente, tão antiga como a “commenda” medieval.
A fim de permitir o desenvolvimento de relações de longo prazo durante a
Idade Média, “contemplaram-se certos mecanismos para assegurar tanto o cum-
primento das obrigações como a revelação de informação. Para o efeito, criou-se
um sistema de notários, guildas e tribunais de comércio”581. O desenvolvimento
da sociedade por ações, caracterizada pela administração centralizada, a limita-
ção de responsabilidade, a livre transferência de ações e a continuidade de sua
existência, deu lugar ao surgimento de problemas adicionais na organização
societária. Estas dificuldades se analisam hoje sob as postulações relativas aos
denominados custos de mandato (agency costs)582.
Ora bem, a concepção moderna destes princípios de organização societária
pode ser considerada como uma invenção norte-americana. Efetivamente, esta
matéria foi objeto de análise nos círculos acadêmicos desse país por cerca de três
décadas583. Em 1978 o Instituto Americano de Direito tinha iniciado os estudos
que resutaram no documento intitulado Princípios de Organização e Estrutura
Societária: Compilação e Recomendações (Principles of Corporate Governance
and Structure: Restatement and Recommendations). Conquanto o primeiro
rascunho deste texto parte do princípio de reconhecer, como objetivo fundamental
da sociedade, a obtenção de utilidades para seus acionistas, introduz a idéia de
que as atividades inerentes ao objeto social devem ser realizadas com sujeição a
certas restrições. Assim, o Instituto propõe levarem conta os seguintes deveres
aplicáveis a uma sociedade: “(a) a companhia deveria estar obrigada a operar
dentro dos limites previstos nas leis; (b) a companhia poderia incorporar em
seus afazeres os princípios éticos inerentes à atividade empresarial, e (c) a

581 MCCAHERY analisa esta antiga instituição e assinala que “o problema de mandato inerente às
funções de administração existiu desde que os investidores confiaram a outros a possibilidade
de administrar seus recursos econômicos e de atuar em nome deles, em negócios que implicam
risco” (Corporate Governance and Innovation..., cit., p. 8.).
582 Cfr. Capítulo I, supra.
583 A governança corporativa experimentou um notável processo de evolução e expansão interna-
cional, incluso, o direito brasileiro; ao respeito, é muito acertada a exposição do professor Jose
Ferreria Chagas quem descreve a rápida acolhida deste movimento no território brasileiro e o
proveitoso que tem sido para a economia do país (Governança corporativa… op. cit., pp. 4-6).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 239

companhia poderia empregar parte de seus recursos, conforme critérios razoáveis,


para satisfazer o bem comum ou para colaborar com causas humanitárias,
educativas ou filantrópicas”584. A versão inicial se referia, assim, aos deveres
fiduciários de lealdade e cuidado, bem como à denominada regra da arbitrariedade.
Também se punha alguma ênfase nos assuntos relativos às ações derivadas
(derivative suits) e na delegação de funções de administração nas sociedades de
capital abertas585. As versões mais recentes dos Princípios incluem um tratamento
detalhado dos deveres e responsabilidades de diretores e conselheiros das sociedades
de capital, respecto da sociedade e de seus acionistas. As regras também se referem
aos objetivos e à conduta que deve observar a sociedade, a sua estrutura, ao dever
de atuar com lealdade nos negócios, ao papel de diretores e acionistas em operações
que impliquem aquisições hostis de controle e ofertas públicas de aquisição e às
ações próprias do Direito Societário.
A evolução nesta matéria se reflete na influência que diversas regras de
conduta tiveram na revisão das normas societárias no mundo inteiro. A preocu-
pação principal sobre a matéria alude à necessidade de incentivar a assunção de
risco, especialmente por parte de investidores institucionais, bem como a pro-
mover a constituição de novas companhias nas que prevaleça a inovação586. Se-
gundo a opinião de VÍTOLO, “um bom regime de governança corporativa é
central para a eficiência do manejo dos capitais e do sistema de investimento, e,
do mesmo modo, também assegura que os operadores do mercado levem em
conta uma ampla gama de interesses correspondentes às comunidades jurídicas
e econômicas, nas quais eles se desenvolvem”587.
Na atualidade, muitos países que seguem o modelo norte-americano,
reconhecem a necessidade de incorporar disposições relativas à honestidade dos
administradores (transparency) e a revelação oportuna de informação, ao menos
em sociedades de capital aberto. A necessidade de designar comitês de fiscalização
(audit committees) também se converteu numa regra homogênea para aquelas
sociedades interessadas em participar nos mercados de capitais internacionais.
Inclusive, algumas instituições financeiras desenvolveram métodos para avaliar
se uma companhia cumpre com regras mínimas de organização societária. Da

584 Seção 2.01.


585 Cfr. HAMILTON, Robert. Laws of Corporations, cit., p. 35.
586 Cfr. MCCAHERY, Corporate Governance and Innovation..., cit., p. 1.
587 Corporate Governance na nova dinâmica societária. In: Sociedades Comerciais. Os administra-
dores e os sócios, governo corporativo. Buenos Aires: Edit. Rubinzal-Culzoni, 2003, p. 18.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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240 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

mesma forma, propuseram-se complexas fórmulas para determinar a


probabilidade de que se produza o uso indevido de informação privilegiada
(insider trading). Em síntese, considera-se que existe uma relação diretamente
proporcional entre o desenvolvimento de um determinado mercado de capitais
e a natureza e efetividade das regras legais ali aplicáveis. De maneira mais específica,
pode-se afirmar que os objetivos dos princípios de organização societária se
referem à necessidade de melhorar os sistemas de revelação de informação, facilitar
uma vigilância que garanta a efetividade na atuação dos Conselhos de
Administração, assegurar a independência dos auditores e garantir a autonomia
dos denominados conselheiros independentes, isto é, aqueles membros de
Conselho de Administração que não ocupam cargos executivos na companhia.
Diferentemente de como ocorre nos países latino-americanos e nos da Eu-
ropa Continental, a dispersão da propriedade acionária nos Estados Unidos e a
conseqüente divisão na titularidade do capital e o controle de gestão, justifica
regras de organização societária para minorar os custos de mandato relacionados
com o potencial abuso dos administradores sociais. O primeiro que chama a
atenção nos regulamentos que se adotaram nos últimos anos sobre o particular, é
a ênfase nas relações entre acionistas e administradores. Segundo já se explicou, o
conflito entre os interesses de uns e outros foi identificado há tempo pela doutri-
na estadunidense. A partir de tais análises, foram estabelecidos múltiplos meca-
nismos tendentes a equilibrar a relação entre os proprietários de participações de
capital dispersas no mercado e os gestores da empresa social. Tais mecanismos
consistem, por exemplo, na criação de regras sobre conflitos de interesse, a restri-
ção ao uso de informação privilegiada e a imposição de deveres fiduciários e outras
responsabilidades aplicáveis a conselheiros e diretores. Apesar da transcendência
de tais normas, é evidente que em mercados onde o capital se acha altamente
concentrado, como ocorre nas nações de América Latina, o conflito principal se
dá, mais seriamente, entre quem tem a maioria do capital e os titulares de parti-
cipações minoritárias. A existência de blocos de controle, usualmente vinculados
a indivíduos ou famílias, atenuam, sem dúvida, os problemas relativos à divergên-
cia de interesses entre acionistas e administradores sociais. Efetivamente, na me-
dida que os administradores dependem de forma quase exclusiva do poder de
nomeação detidos pelos acionistas majoritários, os riscos de abuso por parte dos
administradores se atenuam, ao menos a respeito daqueles sócios ou acionistas
que têm a maioria. Ao contrário, o potencial abuso das maiorias agrupadas em
blocos de controle em relação a posição vulnerável dos minoritários, é potencial-
mente maior em economias onde a concentração é a regra e não a exceção.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


240 5/7/2011, 18:04
Capítulo VII
ACORDOS PRIVADOS ENTRE
OS SÓCIOS

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1. DESCRIÇÃO E EFICÁCIA JURÍDICA DOS ACORDOS DE


ACIONISTAS (SHAREHOLDERS AGREEMENTS)
Devido ao fato que a ata de constituição somente alude às bases essenciais
do contrato de sociedade, menções acessórias, tais como o número de membros
do Conselho de Administração, sua integração inicial, o quórum e as maiorias
decisórias, etc., não são mencionadas neste documento. No entanto, tais cláu-
sulas se incluem usualmente nos estatutos sociais (by laws) que, diferentemen-
te da ata mencionada, não requerem publicidade alguma e, por tanto, pertencem
a esfera interna da sociedade.
Ao lado da ata de constituição e os estatutos, os sócios podem celebrar
pactos privados por fora do contrato de sociedade. Isto não é de forma alguma
inovador, pois não é senão o exercício da liberdade contratual a que se aludiu
anteriormente588. Não obstante, diferentemente dos sistemas de origem ro-
mano-germânica, nos quais costuma prevalecer o conteúdo das escrituras ou-
torgadas conforme à lei589, a jurisprudência dos Estados Unidos outorga
validade aos acordos de acionistas590. Um bom exemplo desta faceta caracte-
rística do sistema norte-americano constitui a utilização generalizada dos de-

588 “O conceito de liberdade de contratar abrange os poderes de auto-regência de interesses, de


livre discussão das condições contratuais e, por fim, de escolha do tipo de contrato conveniente
à atuação de vontade. Manifesta-se, por conseguinte, sob tríplice aspecto: a) liberdade de
contratar propriamente dita, b) liberdade de estipular o contrato; c) liberdade de determinar
o conteúdo do contrato”. GOMES, Orlando. Contratos. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001. p. 22.
589 Apesar da rigidez das orientações “contratuais”, os acordos de acionistas foram reconhecidos
também em países europeus e latino-americanos. Existem menções explícitas sobre a presença
destes acordos em algumas legislações societárias contemporâneas. Podem ver-se, por exem-
plo, os artigos L. 233-11 do Código de Comércio francês (ratificado pela Lei 2003-7 do 3 de
janeiro de 2003) e 55 da Lei Geral de Sociedades do Peru (26.887 de 1997). Com acerto
afirma ZAMENFELD que “a realidade atualmente indica que se passou de postular-se a ilegiti-
midade do acordo, à limitação de sua duração e, em ocasiões, à impossibilidade de fazer valer
o mesmo” (ZAMENFELD, Víctor. Oponibilidad e contrato de sindicação de ações. In: Revista
Eletrônica de Direito Comercial, www.derechocomercial.com, p. 1). Esta mudança legislativa
pode ser verificada também na União Européia, onde algumas regras de harmonização normativa
abordaram aspectos relacionados com estes acordos. Assim, por exemplo, um dos pressupos-
tos exigidos para que se possa pregar a obrigação de consolidar demonstrações financeiras
entre várias companhias é a existência de um “acordo privado entre acionistas, que permita a
uma pessoa determinar o sentido majoritário do voto nos órgãos sociais das companhias
subordinadas”. (Artigo 1.1.D.BB, Sétima Diretora Comunitária [EEC 83/349)].
590 Outras legislações, como a brasileira, reconheceram também eficácia aos acordos de acionis-
ta, consagrando regulações mais ou menos completas sobre as modalidades, os efeitos e a
licitude deste tipo de pactos; com isso, evidentemente, se reflete a importância que veio
ganhando este tema nas sociedades comerciais Ao respeito é interessante a opinião do
professor Modesto Carvalhosa (Vid. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 2... op.
cit., pp. 569-572).

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nominados acordos fiduciários de votação e os acordos de votação sem transfe-


rência da propriedade sobre as ações (pooling agreements e voting trusts)591.
Ora bem, estes acordos são simplesmente o intercâmbio de promessas
que fazem os sócios para exercerem seus direitos de voto num sentido especí-
fico ou de maneira coletiva, de acordo com as diretrizes traçadas por um gru-
po determinado. Os efeitos de tais pactos se sujeitam ao cumprimento de
certos requisitos presentes na lei vigente no Estado de constituição da socie-
dade592. Em vista da ampla atividade legislativa que se apresenta nos Estados
Unidos, a doutrina desse país recolheu algumas das formalidades requeridas
para a celebração desta classe de acordos. Segundo CLARK, muitas vezes se
faz questão de que estes “constem por escrito e que uma cópia seja depositada
nas sedes registradas da sociedade, junto com uma relação dos sócios assinan-
tes”593. SOLOMON e PALMITER, por sua vez, aludem a aspectos subs-
tanciais que também devem ser observados se ao assinar um acordo de
acionistas: os acordos devem guardar alguma relação com os assuntos suscep-
tíveis de votação e prever um termo de duração definido; assim mesmo, só
podem ser modificados mediante o consentimento unânime de quem os assi-
nam, não podem ter fins contrários à lei nem criar situações de opressão ou de
fraude em relação aos demais sócios ou dos credores sociais594.
Do ponto de vista empírico, observa-se que os acordos de acionistas ocorrem
com maior freqüência nas sociedades anônimas fechadas (closely held corporation).
Diferentemente de como ocorre nas sociedades inscritas em bolsa, os sócios
nestas companhias costumam ter um interesse na gestão dos negócios sociais.
Daí que se afirme que “a impossibilidade de contar com um efetivo mecanismo
de saída, como o é o mercado de valores mobiliários, força os acionistas a
participarem de modo direto na administração das sociedades fechadas”595. A
possibilidade de assinar acordos de acionistas facilita essa participação na gestão
da companhia596.

591 Cfr. infra, pp. 190-195.


592 Em Delaware, por exemplo, a Seção 218 da Lei Geral de Sociedades (Delaware Geral Corporation
Law) assinala que estes acordos deverão constar por escrito e ser depositados nas sedes
registradas da sociedade nesse Estado.
593 CLARK, Robert C. op. cit., p. 777
594 SOLOMON e Palmiter, op. cit., p. 215
595 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 798.
596 A sociedade anônima aberta (publicly held corporation) não constitui um meio habitual para a
celebração de acordos privados entre os acionistas. O capital destas companhias costuma

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Outro aspecto conexo e não menos importante é o relativo às limitações


na negociação das participações de capital nas sociedades que não negociam
suas ações em bolsa de valores mobiliários. Nelas, os mecanismos que restrin-
gem a livre negociação de ações impedem o contínuo ingresso de novos sócios.
Por tanto, a assinatura de um acordo de acionistas em tais companhias poderia
afetar adversamente àqueles acionistas que não o assinem. Quem se vir excluí-
do de um de tais pactos, possivelmente não teria outro caminho que o de
alienar sua participação em favor dos demais sócios, sob pena de manter-se
numa situação precária devido à falta de liquidez de sua participação no capi-
tal. Esta circunstância pode representar um estímulo para a assinatura desta
classe de acordos. Assim, adverte-se outra faceta característica desta modalida-
de contratual: os acordos de acionistas podem constituir um efetivo mecanis-
mo de pressão para os acionistas nas sociedades anônimas fechadas. Deve ser
advertido, não obstante, que a utilização ilegal destes acordos podem ser grave-
mente prejudicial para acionistas que não os assinem597. Daí que os acordos de
acionistas se achem submetidos a rigoroso exame judicial.
Claro que, como expôs BAINBRIDGE, existem outros motivos
subjacentes à celebração de acordos entre os sócios de companhias fechadas.
Segundo o autor, alguns conflitos intra-societarios poderiam ser solicionados
por meio das previsões contidas em tais acordos: “nestas companhias é tão
reduzido o número de sócios que, se eles estão em desacordo em relação com
certo assunto, pode apresentar-se um bloqueio dos órgãos sociais (‘deadlock’).
Pode ocorrer também que as facções majoritárias utilizem sua capacidade de
votação para oprimir às minorias. Em caso de apresentar-se algum dos problemas
enunciados, seria legalmente viável a utilização das seguintes soluções de índole
contratual: em primeiro lugar, os acordos fiduciários de votação (‘voting trusts’)
e, em segundo lugar, os acordos em que não se produza essa transferência

achar-se disperso numa grande quantidade de pessoas. Isso repercute, logicamente, em sua
estrutura interna, o que por sua vez diminui a presença dos acordos estudados. Isto último se
deve, segundo EASTERBROOK e FISCHEL, ao fato que “tais acordos privados foram concebi-
dos com o fim de evitar a possibilidade de que o controle societário oscile de maneira
indefinida entre várias facções de acionistas. Nas sociedades fechadas, contribuem a precaver
conflitos intra-familiais e a controlar a gestão dos administradores; nas abertas, contrário sensu,
só serviriam para aumentar os custos de representação, ao separar o custo de adquirir uma
posição majoritária, das utilidades que normalmente reportaria uma operação semelhante”
(The Economic Structure... cit., p. 73).
597 Cfr. STAJN, Rachel. Acordo de acionistas. In: SADDI, Jairo, et. al. Fusões e aquisições. Aspectos
jurídicos e econômicos. São Paulo: IOB Thompson e IBEMEC Law. 2002. pp. 275 e ss.; BARBI
FILHO, Celso. Acordo de Acionistas. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 115.

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(‘pooling agreements’)”598. Pode-se verificar com nitidez como as disposições


contidas nestes acordos permitiriam resolver os conflitos aos quis se aludiu. O
agrupamento de acionistas minoritários mediante um de tais acordos poderia
facilitar que quem participe nele adquira a ingerência necessária para fazer
contrapeso aos acionistas majoritários599. Por outro lado, uma situação de
bloqueio dos órgãos sociais600 poderia ser resolvida mediante a adoção de regras
relativas às determinações que devam ser adotadas no órgão social máximo.
A validade dos acordos de acionistas a respeito de determinações adota-
das pelos Conselhos de Administração. Existe controvérsia sobre a possibili-
dade de estender os acordos de acionistas em relação a decisões que devam ser
adotadas pelos Conselhos de Administração. Conquanto é verdadeiro que
diversos pactos podem ter utilidade significativa, porquanto permitem asse-
gurar que as regras lembradas para a gestão social sejam rigorosamente obser-
vadas, não o é menos do que poderiam atentar contra a autonomia de ação dos
administradores sociais e comprometer sua responsabilidade. Costuma-se afir-
mar que uma vez que os diretores de uma sociedade foram eleitos pela assem-
bléia, adquirem independência com relação àqueles que votam em seu favor,
em razão do caráter intuitu personae do cargo e das responsabilidades que
surgem de seu exercício. Portanto, vincular a capacidade decisória dos direto-
res ao convindo previamente pelos acionistas é um assunto que ainda hoje
suscita controvérsia nos diferentes sistemas jurídicos.
Pelas razões expostas, esta classe de acordos de acionistas foram vistos com
receio pelos juízes norte-americanos. No primeiro deles, o caso McQuade v.
Stoneham601. O caso se refere à demanda instaurada por Francis McQuade em
face de Charles Stoneham, acionista majoritário da companhia proprietária da
renomada equipe de beisebol The New York Giants. McQuade tinha investi-

598 Ibidem, p. 799.


599 Um singelo exemplo serve para ilustrar esta circunstância. Na sociedade Alpha Inc. existe um
acionista titular dos 40% das ações e um grupo de 6 acionistas proprietários individualmente
de 10% das ações restantes. Estes últimos se veriam amplamente beneficiados com a celebra-
ção de um acordo no qual se estabelecessem regras homogêneas de votação para as reuniões
da assembléia. O convênio descrito lhes concederia a possibilidade de aglutinar o 60% dos
direitos de voto.
600 A definição contida no Black’s Law Dictionary contribui clareza respeito dos principais
envolvimentos desta anômala circunstância: “O bloqueio dos órgãos sociais se produz quan-
do uma estrutura de controle permite que alguma facção de sócios paralise em qualquer forma
o funcionamento da companhia” (op. cit.).
601 263 N.Y. 323, 189 N.E. 234 (1934).

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do cinqüenta mil dólares para adquirir uma participação minoritária nessa


companhia, tendo sido acordado que poderia ser membro permanente da Con-
selho de Administração para desfrutar de um salário preestabelecido. Por isso,
o demandante assinou um acordo privado com Stoneham, por cuja virtude
este último se comprometia a empregar seus melhores esforços para manter
McQuade na Conselho de Administração mediante votação na assembléia geral
e a utilizar seu poder decisório neste órgão para assegurar o pagamento de seus
honorários. O acordo previa, da mesma forma, que os assinantes se manteriam
em seus cargos perpetuamente. Stoneham, quem tinha a maioria, reservava-se
o direito de eleger todos os demais membros da Conselho de Administração.
Nove anos mais tarde, a Conselho de Administração estava integrada por sete
membros, dos quais quatro eram designados por Stoneham, quem os controla-
va. Ao aproveitar a ausência de Stoneham de uma sessão da Conselho de Ad-
ministração, os quatro membros designados por ele decidiram excluir a
McQuade da junta. Ante esta situação se produziu a demanda inicial que, em
última instância, foi resolvida pela Suprema Corte do Estado de Nova York.
Na sentença judicial se determinou restringir os efeitos do acordo, de maneira
a impedir que se prejudicasse a gestão administrativa da companhia. Ao consi-
derar inaplicável o acordo, a Corte estabeleceu que um acordo de acionistas não
podia restringir o dever fiduciário de lealdade que a Conselho de Administra-
ção tem em relação com a sociedade. Assim, considerou que um contrato é
nulo se expõe aos membros da Conselho de Administração a assumir respon-
sabilidades alheias a seus cargos ou se restringe sua faculdade de designar os
diretores da companhia, fixar-lhes sua remuneração ou determinar as políticas
de gestão que aplicarão na sociedade.
As considerações formuladas pela Corte neste relevante antecedente ju-
dicial se orientaram a salvaguardar a autonomia dos administradores sociais.
Na sentença se deixou fora do arbítrio dos acionistas a possibilidade de res-
tringir as faculdades inerentes à Conselho de Administração, mediante acor-
dos de acionistas. Nessa ocasião a Corte assinalou que “a possibilidade de
vários acionistas manifestarem o sentido de seu voto de maneira unívoca deve
restringir-se à eleição dos administradores, sem que em nenhum caso possa
chegar ao extremo de limitar suas faculdades”602.

602 O’KELLEY e THOMPSON, Corporations..., cit., p. 506.

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A paulatina flexibilização da jurisprudência, posteriomente a McQuade


v. Stoneham, consentiu a celebração de acordos vinculantes relacionados com os
administradores sociais, sempre que eles se cumpram sob circunstâncias deter-
minadas. Esta liberalização se inscreve na tendência progressista do Direito
Societário dos Estados Unidos à que se fez permanente referência ao longo do
texto. A mesma Corte do Estado de Nova York que proferiu o citado antece-
dente modificou a rígida postura original, ao decidir o também célebre caso
CLARK v. Dodge. Neste litígio, o senhor CLARK era proprietário de uma
fórmula medicinal secreta utilizada por uma companhia, na que o capital esta-
va distribuído entre Dodge e CLARK, em percentagens de 75 e 25%, respec-
tivamente. CLARK conveio que a fórmula seria revelada ao filho de Dodge
desde que o acionista majoritário se comprometesse a utilizar sua percentagem
de votação para assegurar a continuidade de CLARK no órgão de administra-
ção. Em síntese, tentou-se um consenso sobre os seguintes três pontos: 1º)
CLARK seria membro da Conselho de Administração e gerente da sociedade;
2º) CLARK receberia ao menos uma quarta parte dos rendimentos líquidos
da companhia, em forma de honorários ou dividendos, e 3º) Para evitar que se
reduzissem as utilidades que correspondiam a CLARK existiria um severo
controle sobre a quantia dos salários dos demais diretores da companhia.
Logo de fortes discusões entre as partes, Dodge desconsiderou os termos
do acordo603. Por isso, na demanda apresentada por CLARK se alegou um
não cumprimento contratual devido ao fato que aquele tinha se negado a
utilizar sua maioria para designá-lo como gerente geral da companhia. Com
fundamento no citado antecedente de McQuade v. Stoneham, a corte de pri-
meira instância não reconheceu a validade do acordo celebrado entre CLARK
e Dodge. Não obstante, a Suprema Corte do Estado de Nova York, ao revogar
a determinação do a quo, decidiu outorgar-lhe plenos efeitos a esse acordo. A
Corte restringiu a regra de Direito sentada em McQuade v. Stoneham, ao
considerar que tudo nem acordo atinente às faculdades dos administradores é,
necessariamente, contrário à lei. Nas palavras da Corte, um de tais acordos será
plenamente válido quando “não prejudique aos sócios nem a terceiros”604. Este

603 Ibidem, p. 506.


604 Clark v. Dodge 269 N.E. 410, 199 N.E. 641, citado por CARY e EISENBERG, op. cit., p. 385.
Outros autores mostraram seu beneplácito ante esta importante decisão. Assim, por exemplo,
Ou’KELLEY sustentou que “a falha de Clark v. Dodge é um importante antecedente em relação

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antecedente judicial tem importância significativa devido ao fato que, a partir


de sua adoção, não existem maiores restrições para a assinatura desta classe de
acordos de acionistas605.
Os legisladores estaduais também não ficaram alheios à tendência judicial
mencionada. Existem numerosas disposições de Direito positivo sobre o
particular. O Estado de Delaware foi um dos primeiros a adotar normas tendentes
a regular esta modalidade de acordos. A Lei Geral de Sociedades desse Estado
(Delaware Geral Corporation Law) contém uma interessante disposição dirigida
a impedir a declaração judicial de ilegalidade de um de tais acordos. Em sua
Seção 350, esta norma dispõe que nas sociedades fechadas terão plena validade
os acordos entre acionistas que, de qualquer forma, afetem as faculdades dos
diretores. Para evitar os problemas relacionados com os deveres fiduciários dos
administradores, o mesmo preceito determina que “a responsabilidade pelas
atuações de uma junta controlada mediante um acordo de acionistas recairá
diretamente sobre os acionistas que assinaram tal acordo”. Também é relevante
observar que a Seção 7.32 (e) da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital
(RMBCA) contém uma solução análoga à prevista pelo Estado de Delaware,
no referente à limitação das faculdades dos administradores mediante os
acionistas. O texto pertinente preceitua que os sócios responderão pelas atuações
dos conselheiros quando, “um acordo privado submeta a capacidade de atuação
da Conselho de Administração ao arbítrio dos acionistas”.
Por outro lado, EASTERBROOK e FISCHEL tratam do interesse da
doutrina em estudar os assuntos mencionados. Os autores se ocuparam em
analisar de modo extenso o tratamento judicial e legislativo que receberam os
aludidos acordos de acionistas. Por um lado, discordam dos argumentos ex-

à liberdade contratual dos acionistas das sociedades norte-americanas” (op. cit., p. 507).
Também na América Latina existem antecedentes doutrinários que parecem acolher uma
orientação similar. RICHARD, por exemplo, advoga pela livre celebração de acordos de
sindicato de ações relacionados com a atividade dos administradores, desde que “se resguar-
dem os interesses de maiorias, minorias ou grupos e se fixem regras de administração que não
contrariem o estatuto ou a lei” (RICHARD, Efraín Hugo et al. Direito Societário. Buenos Aires:
Edit. Astrea, 1997, p. 490).
605 Alguns dos antecedentes mais conhecidos na citada evolução jurisprudencial são Long Park v.
Trenton New Brunswick Theaters Co., proferido em 1948 (N.E. 1948 77 N.E. 2d 633), e, em
1980, Zion v. Kurtz (50 N.E. 2d 92, 405 N.E. 2d 681, 428 N.E.S. 2d 199), ambos decididos
por cortes do Estado de Nova York. Em ambas as sentenças se afirmou a possibilidade de
celebrar acordos de acionistas que versem sobre a administração da sociedade. 16
EASTERBROOK e FISCHEL, The Economic Structure..., cit., p. 235. Ao referir-se a essa decisão
como um anacronismo, os tratadistas também dão conta do desprezo que existe na doutrina
pela proposta da Corte no caso McQuade (Ibidem).

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postos pelos juízes em McQuade v. Stoneham, ainda que por considerações


diferentes às formuladas no antecedente de Clark v. Dodge. Segundo os auto-
res, “em nenhum momento foram levados em consideração os motivos que
conduziram a McQuade a assinar o respectivo acordo de acionistas. Este se
encontrava disposto a investir até cinqüenta mil dólares na companhia, sem-
pre que pudesse evitar o risco de que Stoneham o privasse dos ganhos que
pudesse reportar essa operação. Portanto, se não tivesse sido celebrado o acor-
do, McQuade teria pago um valor menor pelas ações adquiridas ou ao menos
teria exigido garantias suficientes para assegurar-se alguma utilidade. Ao des-
conhecer a validade do pacto celebrado, a Corte deixou sem efeito as prerro-
gativas concedidas a McQuade e permitiu que sua contraparte o privasse de
seus resultados”606.
Existem outros autores que, sem descoradar de forma direta o caso
McQuade, concordam com a postura adotada pelos juízes de última instância
em CLARK v. Dodge. BAINBRIDGE, por exemplo, sustenta que “em
McQuade a Corte só tentou proteger os acionistas minoritários que não faziam
parte do acordo de acionistas. Sem a presença dessa minoria sem poder, teria
sido desnecessária a proteção conferida nesse momento pelos juízes”607.
No relativo ao tratamento legal desta classe de acordos, EASTERBROOK
e FISCHEL estimam que a maleabilidade da legislação estadual permitiu a
adoção de regras permissivas para regrar a matéria. Esta circunstância contri-
buiu, a sua vez, ao uso generalizado dos acordos de acionistas, incluídos aqueles
que se referem aos assuntos aludidos608. Em sua opinião, “a evolução legislativa
implicou a promulgação de normas mais tolerantes a respeito destes acordos.
Isso facilitou sua freqüente celebração pelos particulares. Estas normas supõem
um grau de liberdade contratual comparativamente maior ao que existiu sob as
antigas leis estaduais”609.

606 EASTERBROOK e FISCHEL, The Economic Structure..., cit., p. 235. Ao referir-se a essa decisão
como um anacronismo, os tratadistas também dão conta do desprezo que existe na doutrina
pela proposta da Corte no caso McQuade (Ibidem).
607 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 808.
608 Na opinião de Pedro Santos Cruz, no Brasil também “ganham cada vez maior relevância, na
prática comercial, os acordos realizados entre acionistas...” (Mecanismos de eficácia dos acordos
de acionistas. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2008. p. 9).
609 EASTERBROOK e FISCHEL, op. cit., p. 234; No Brasil desenvolveram-se também disposições
tendentes a permitir a efetiva execução dos acordos o que há permitido ampliar seu campo de ação
(tutela externa corporis, tutela interna corporis); Cfr. ABBUD, André de Albuquerque. Execução
específica dos Acordos de Acionistas. São Paulo: Quartier Latín. 2006. p. 42; GUERREIRO, José

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2. MODALIDADES DE ACORDOS DE ACIONISTAS


A. ACORDOS FIDUCIÁRIOS DE VOTAÇÃO (VOTING TRUSTS)
Como é sabido, a figura fiduciária afunda suas raízes nos desenvolvimentos
do “truste”, próprios do Common Law e a equity, cuja natureza jurídica e sua
localização em sistemas de ascendência romano-germânica suscita dificuldades
de diversa índole610. A diferença do que ocorre nos sistemas jurídicos latino-
americanos, onde se adotou a figura fiduciária, o trust implica uma divisão da
propriedade, cujo desdobramento origina uma titularidade legal (em Common
Law) e outra eqüitativa (em equity). Em palavras de PASCAL, “o ‘trust’ pertence
ao regime jurídico dos Bens. Nele, há uma desmembraçao da propriedade pela
qual o controle e a administração se cindem dos direitos do beneficiário. Somente
aquela pessoa que é titular do direito de domínio pode constituir um ‘trust’.
Tal constituição pode ser efetuada para seu próprio benefício, mediante a
transferência exclusiva do controle e da administração do bem ao fiduciário, de
maneira que o constituinte conserva os direitos beneficiários sobre a propriedade.
Também, o ‘trust’ pode criar-se para o benefício de terceiros, mediante a
transferência de tais direitos beneficiários a outros indivíduos, de modo de
manter o controle e a administração em mãos do fiduciário”611.
A figura do “trust” representa um importante mecanismo para a celebra-
ção de eficazes acordos de acionistas612. Isso se deve ao controle que tem o

Alexandre Tavares. Execução Específica do Acordo de Acionistas. In: Revista de Direito Mercan-
til, Industrial, Econômico e Financeiro. Rio de Janeiro, nº 41, Ano 20, p. 40-68, jan./mar. 1981.
610 Sobre o particular, podem ver-se as críticas formuladas pelo professor PASCAL à introdução da
figura fiduciária dentro da legislação civil do Estado de Luisiana. Como se sabe, tal Estado da
União Americana manteve uma verdadeira afinidade com os sistemas de Direito francês e
espanhol, de onde derivou sua legislação de Direito Privado (cfr. PASCAL, Robert A. Of Trusts,
Human Dignity, Legal Science, and Taxes, Suggested Principles for a Lousiana Trust Estates
Law. In: Louisiana Law Review, Vol XXIII, June 1963, Baton Rouge, pp. 639-661).
611 Ibidem. O Dicionário Black’s Law define o trust como, “qualquer contrato por meio do qual se
transferem bens com a intenção de ser administrados por um fiduciário (trustee) para o bene-
fício de outra pessoa. É uma relação de confiança por virtude da qual uma pessoa tem o título
de propriedade sobre um bem, sujeito a uma obrigação, em equidade, de manter ou usar tal
bem para o benefício de outra pessoa” (op. cit., p. 1508). Também pode definir-se como “uma
entidade legal criada por um constituinte (‘grantor’) a favor de determinados beneficiários sob
as leis do Estado e mediante documento válido. O fiduciário (‘trustee’) tem uma responsabili-
dade fiduciária pelo manejo dos ativos e rendimentos que fazem parte do ‘trust’ para favorecer
os interesses econômicos dos beneficiários. A confiança se deposita numa pessoa que se
denomina ‘trustee’, para o benefício de outra, que se chama ‘cestui que trust’, a respeito dos
bens que são conservados ao ‘trustee’ em benefício daquele” (Ibidem).
612 A utilização do fideicomisso, equivalente funcional do trust nos países de tradição romano-
germânica, também é considerada como uma técnica apropriada para a celebração de acordos

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fiduciário a respeito dos direitos de votação sobre as ações transferidas. A assi-


natura de acordos fiduciários de votação (voting trusts) produz uma verdadeira
divisão em sua titularidade, com o propósito usual de que um grupo de inves-
tidores assegure o controle do órgão de direção da companhia. Sob esta moda-
lidade, “um grupo de sócios pode celebrar um acordo escrito com um fiduciário
(‘trustee’), em virtude do qual se comprometem, com sujeição a uma condição
resolutória ou a um termo definido, a que o direito de voto será exercido pelo
fiduciário e não pelos sócios individualmente”613. Para conseguir este propósito
é indispensável que os sócios transfiram suas ações, de forma irrevogável e por
termo definido, à pessoa que vai atuar como fiduciário. Os acionistas que par-
ticipam no acordo conservam um certificado que os credencia como partícipes
no acordo e que os faculta para alienar as ações, quando bem entederem. No
caso Peyton v. William C. Peyton Corp., o Tribunal de Equidade de Delaware
definiu a figura como “um mecanismo por meio do qual duas ou mais pessoas
titulares de ações com direito a voto determinam separar os direitos de votação
a respeito da propriedade das ações, de forma que retêm esta última para todos

fiduciários de votação. O caso particular de Argentina é particularmente ilustrativo a respeito


da importância do fideicomisso na celebração de acordos entre os sócios. MOLINA dá notícia
a respeito de sua aplicação nos acordos de acionistas, nos seguintes termos: “o fideicomisso
consiste num contrato de contornos flexíveis que permite realizar certos negócios dinâmicos,
mas com os efeitos jurídicos que importa uma verdadeira transferência do domínio fiduciario.
A estrutura é muito simples e se pode utilizar indistintamente para arbitrar grupos de comando,
defensivos e inclusive de bloqueio. Assim, um grupo de acionistas que decide agrupar seus
votos com o propósito de tomar certas decisões, mas que teme que se possa produzir um não
cumprimento por parte de seus sócios – tendendo fundamentalmente em conta os efeitos
relativos do contrato (C.C. art. 1195) –, pode adotar a forma de um fideicomisso acionário”
(MOLINA, Carlos A. Propriedade fiduciária de participações societárias. Aplicações e tendências.
In: Foro de Direito Mercantil, nº 5, outubro-novembro de 2004, p. 46). O autor também alude
à maneira em que deverá estruturar-se o fideicomisso, de modo de assegurar a eficácia de um
acordo fiduciario de votação. “Basicamente, o esquema do negócio seria o seguinte: os sócios
sindicados transferem suas partes societárias a um síndico – fiduciário – quem exerce a
propriedade fiduciária de ditas participações conforme o previsto no contrato de fideicomisso
ou, inclusive, de acordo às instruções que os sócios sindicados lembrarão previamente numa
reunião privada. O síndico – fiduciário – deverá necessariamente atuar de acordo com o
pactuado contratualmente, sob a obrigação de responder civilmente e ser removido” (Ibidem,
pp. 46-47).
Em certos países encontra-se restringida a possibilidade de celebrar este tipo de acordos; assim,
por exemplo, no caso brasileiro, o professor Theofilo de Azeredo Santos, explica que “[...] a
constituição do voting trust, com toda essa instrumentação orgânica prevista no Direito norte-
americano, inclusive com a emissão de títulos próprios, é juridicamente impossível no Brasil.
O que se pode é realizar a transferência fiduciária da propriedade das ações, que não separa o
voto dos demais direitos acionários, e que aparece perante a companhia, salvo o caso de
alienação fiduciária em garantia, como uma transferência pura e simples de prioridades”.
(Acordo de acionistas... op. cit., pp. 186-187).
613 COX, op. cit., p. 117.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 253

os efeitos e transferem aqueles aos fiduciários, a quem são outorgados todos os


direitos de votação dos partícipes no acordo”614.
As características do acordo fiduciário de votação se desprendem do
pronunciamento efetuado por uma corte do Estado de Delaware, no caso
Abercrombie v. Davies615. O conflito que resolveram os juízes surgiu quando
seis acionistas da American Oil Company, domiciliada em Delaware, lembraram
a transferência de seus direitos de voto a oito pessoas que teriam a obrigação
de representá-los no Conselho de Administração dessa sociedade. A vigência
deste pacto, que não foi inscrito nos livros da companhia, foi limitada a um
termo de dez anos. Depois de um tempo, devido a uma controvérsia reforma
estatutária efetuada pelo Conselho de Administração, resultou evidente que
dois dos representantes tinham atuado de forma contrária ao acordo. Os
acionistas prejudicados pelo não cumprimento foram a uma corte do Estado
de Califórnia, onde a companhia desenvolvia parte de sua atividade comercial.
Nessa ocasião, os juízes optaram por decretar a nulidade das reformas aprovadas
pelo Conselho de Administração. O acionista Abercrombie, com o ânimo de
precaver os prejuízos que seguramente implicaria esse pronunciamento judicial,
tentou impugnar o acordo ante as cortes do Estado de Delaware, onde a
sociedade se encontrava domiciliada. Para tanto, alegou que não se tinham
observado os requisitos de publicidade exigidos pela Lei Geral de Sociedades
desse Estado em relação aos acordos fiduciários de votação (voting trusts).
Aqueles que assinaram o pacto manifestaram em seu defesa que o convindo
constituía um simples acordo de votação, sem que tal transferência se tivesse
pactuado (pooling agreement), e que, portanto, gozava de plena validade.
A Suprema Corte de Delaware se manifestou em desacordo com esta
interpretação. Ao fazê-lo, precisou que a figura em questão não era nada dife-
rente de um acordo fiduciário de votação (voting trust). Nele, os direitos de
votação tinham sido separados para ser atribuídos a um fiduciário por um
espaço de tempo definido. Este último, por sua vez, tinha adquirido o controle
sobre as decisões sociais. A Corte se referiu às características desse particular
acordo de votação, cujos elementos essenciais se sintetizaram na sentença cor-
respondente. Segundo a análise da Corte, nesse acordo “os direitos de votação

614 Del. Ch. 194 A. 106, 111 (1937).


615 36 Del. Ch. 371 (1956).

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tinham sido efetivamente separados dos direitos de propriedade retidos pelos


acionistas, para ser transferidos a um fiduciário. Assim, a transferência destes
direitos tinha sido realizada por meio de poderes irrevogáveis, com uma vigên-
cia de dez anos. Além disso, a finalidade do acordo consistia em obter o con-
trole da companhia, mediante o exercício do direito de voto”616. Uma vez definida
a natureza jurídica do convênio, a Corte de Delaware declarou a nulidade do
acordo por não se ter cumprido as condições de publicidade previstas para esta
classe de acordos pela legislação. Isto porque, apesar de ter-se efetuado transfe-
rência dos direitos de votação, não se efetuou a inscrição da transferência nem
mesmo do acordo nos livros da companhia.
Em decorrência de certos antecedentes judiciais, algumas leis estaduais
permitem explicitamente a assinatura dos acordos fiduciários de votação, esta-
belecendo as circunstâncias em que eles podem celebrar-se validamente. Nesse
sentido, a Seção 218 da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware esta-
belece que “qualquer número de acionistas poderá, mediante acordo escrito,
transferir ações a qualquer pessoa ou sociedade autorizada para exercer ativida-
des fiduciárias. O pacto terá por objeto a transferência dos direitos de votação
ao fiduciário por um período determinado de tempo que não poderá exceder
de dez anos”. A mesma norma agrega que o acordo “poderá conter quaisquer
estipulações adicionais, sempre que não sejam violadoras da lei nem contrariem
a finalidade prevista para esta classe de acordos”.

B. ACORDOS DE VOTAÇÃO (POOLING AGREEMENTS)


No acordo de votação (pooling agreement) não existe uma transferência
de títulos a favor de um terceiro, senão simplesmente o compromisso de votar
de uma forma determinada nas reuniões de assembléia. Estes acordos que,
como se disse, não fazem parte do contrato de sociedade, podem ser executa-
dos judicialmente617.

616 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 359.


617 Não obstante, de maneira excepcional, os juízes poderiam atribuir validade a um acordo de
acionistas naqueles casos em que se apresenta ilegalidade ou detrimento dos interesses de
terceiros. Em certos casos, pode advertir-se certa resistência nas cortes de alguns Estados por
esta classe de acordos. Isso se pode dever aos “reparos que gera nessas instâncias a situação
dos acionistas não assinantes” (CLARK, Robert C. op. cit., p. 773). Cfr. BULGARELLI, Waldirio.
58 Questões Atuais de Direito Empresarial. São Paulo: Malheiros Editores, 1995. p. 194;
BULGARELLI, Waldirio. A Regulamentação Jurídica dos Acordos de Acionistas, no Brasil. In:
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, nº 40, Ano 19, p.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 255

Talvez o precedente mais famoso relacionado com esta modalidade de


acordos é o de Ringling Bros-Barnum & Bailey Combined Shows Inc. v. Ringling618.
Neste caso, dois dos três acionistas daquela sociedade acordaram em exercer
conjuntamente seu direito ao voto nas sessões da assembléia, por um termo de
dez anos. Também convieram em submeter qualquer conflito que surgisse a
um sistema de arbitragem. Nos anos que seguiram ao acordo, as partes atuaram
em conformidade com o texto do acordo e conseguiram o controle da sociedade.
No entanto, no ano 1946, as vésperas da convocação para uma reunião do máximo
órgão social, apresentaram-se divergências, pelas quais se fez necessária a abertura
do procedimento arbitral. Uma vez resolvida a controvérsia, uma das partes se
negou a cumprir o decidido pelo árbitro, de maneira que o acionista que tinha
feito conforme o pacto demandou a parte não cumprida. A corte de chan-
celaria619 se pronunciou em primeiro lugar contrariamente ao demandado. A
sentença se fundamentou na verificação a respeito da legalidade do acordo e nas
faculdades tácitas de representação nele contidas, por cujo efeito uma parte
estava facultada para exercer tanto seus votos como os do outro contratante. Por
isso, ordenou a anulação da votação inicial com o fim de realizá-la novamente620.
A companhia apelou da decisão ante a Suprema Corte do Estado de Delaware,
mediante o argumento segundo o qual “numa sociedade domiciliada nesse Estado
não podiam existir acordos privados que restringissem de modo irrevogável o
exercício do voto de um acionista, a não ser que tal acordo fora um acordo
fiduciário de votação (‘voting trust agreement’)”. A Corte se pos contra esta
postura interpretativa. A votação da parte demandada, conforme se dispôs a
última instância, supunha um não cumprimento contratual que violava os direitos
do outro contratante. Por isso se ordenou a anulação dos votos emitidos
contrariamente às regras fixadas no acordo.

97, out./dez. 1980; CORREA, Osmar. Direito de Voto na Sociedade Anônima. In: Revista dos
Tribunais, São Paulo, V. 530, p. 26-37, 1979.
618 Del.Ch. 610, 53 A.2d 441 (1947).
619 Uma corte de chancelaria (Court of Chancery) é um juízo que se rege sob as regras processuais
e os princípios próprios do sistema da “equity” (cfr. Black’s Law Dictionary, op. cit., p. 356).
620 O Vice-chancellor Seitz expôs que “no caso em estudo se apresenta um mandato implícito que
se justifica na necessidade de fazer valer o acordo sem violar seus termos […]. Ademais, no
acordo resulta claro que as faculdades de representação implicam a proteção dos interesses do
representado […]. Obviamente, negar ao demandante a estrita execução da obrigação pactua-
da equivaleria a declarar inválido o acordo assinado inicialmente entre as partes […]. O
procedimento de votação foi nulo, já que impediu que se salvaguardassem os direitos que o
acordo concedia à parte cumprida. Em conseqüência, é preferível convocar à assembléia para
que se realize uma nova votação. Desta maneira as partes poderão exercer conscientemente os
direitos que lhes assistem” (29 Do.Ch. 610).

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A importância do antecedente judicial explicado é evidente, pois, uma


vez mais, a jurisprudência se pronunciou a favor da validade desta classe de
acordos621. No entanto, devido ao fato que o processo tinha sido decidido sob
os princípios de equidade (equity), se esperava que a Corte ordenasse o cum-
primento específico da obrigação contratual a cargo da parte que não cum-
priu622. Não obstante, na decisão se optou por limitar os efeitos do acordo de
acionistas, à espera de uma futura reunião da assembléia de acionistas623.

3. OUTROS PACTOS DE FREQÜENTE UTILIZAÇÃO EM


ACORDOS DE ACIONISTAS
Aparte dos acordos de acionistas, existem outros acordos de usual esti-
pulação na prática societária norte-americana. Estes pactos costumam revestir
diversas modalidades, que dependem das relações que os acionistas se propu-
seram regular624. Deve-se observar que estas disposições, diferentemente das
estudadas anteriormente, não estão dirigidas, de modo necessário, a assegurar
o controle dos órgãos sociais. Pelo contrário, seu conteúdo pode referir-se,
entre outros aspectos, a mecanismos para reter, incrementar ou alienar as par-
ticipações de capital dos acionistas assinantes.
Em geral, se pode afirmar que as estipulações mencionadas não foram
objeto de considerações legais ou judiciais tão detalhadas como as que se refe-
rem aos acordos de acionistas. Isto pode se dever à circunstância de que alguns
daqueles acordos se desenvolveram na prática societária recente. No entanto, a
já assinalada propensão das cortes estadunidenses a outorgar validade aos acor-

621 O juiz Pearson da Corte Suprema de Delaware manifestou que “o acordo que se apresenta não
viola a Lei de Sociedades nem constitui uma evasão deliberada de seus requisitos; também não
é ilegal de jeito nenhum […]. Um grupo de acionistas pode exercer seu direito ao voto para
obter um benefício comum; uns e outros podem, efetivamente, convir validamente a maneira
em que votarão no futuro” (29 Do.Ch. 610, 53 A.2d 441).
622 De acordo com o dicionário Black’s Law, o cumprimento direto da obrigação derivada do
contrato ou “a doutrina do ‘specific performance’ surge naqueles casos em que a indenização
em dinheiro dos prejuízos não constitui uma adequada compensação para o não cumprimen-
to de um acordo. Nestas circunstâncias, o contratante ou vendedor deve ser obrigado a realizar
a prestação à que especificamente se comprometeu” (op. cit.).
623 BARBER, David H. Corporations, Third Edition, Chicago, Legalines, 1989, p. 82.
624 O direito Brasileiro veio abrindo um espaço a cada vez mais amplo à liberdade de estipulación
em matéria de acordos de acionistas, permitindo que se pactuem acordos que dantes não
estavam previstos na legislação e que, sem dúvida, são de vanguarda na matéria; nesse sentido,
a reforma introduzida mediante a Lei 13.303 de 2001, permitiu que se pactuasse o acordo de
acionistas para o exercício do poder de controle, importante inovação no direito de dito país.
Cfr. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas... op. cit., pp. 502 e ss.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 257

dos privados entre acionistas poderia ser suficiente para sustentar a eficácia
destas estipulações contratuais. Além disso, é claro que na atualidade existem
variadas modalidades destes acordos, cuja presença é freqüente em operações
societárias. Dentro das mais comuns se encontram as que se descrevem a seguir.

A. CLÁUSULAS QUE ALTERAM OS DIREITOS DE


ASSINATURA PREFERENCIAL625

Ainda que a regra geral em matéria de sociedades de capital consista na


possibilidade de negociar livremente as ações, são bem conhecidas as restrições a
essa liberdade na transferência de participações de capital626. Estas modalidades
de consagração estatutária costumam ser complementadas ou modificadas por
pactos adicionais, contidos em acordos privados entre acionistas627. Trata-se dos
pactos de exclusão individual do direito de subscrição preferencial (carve-outs)
e dos acordos de contribuição forçada (pay-to-play), cuja vigência pode alterar
os direitos preferenciais dos acionistas assinantes destes pactos.
O primeiro dos mecanismos referidos supõe uma renúncia voluntária ao di-
reito de preferência na emissão de novas ações (preemptive right), sujeito à verifica-
ção de certas condições previstas no acordo. Nos acordos de exclusão do direito de
subscrição preferencial, os sócios assinantes do acordo convêm em absterem-se de
exercer aquela prerrogativa, quando se verifique o cumprimento das condições
acordadas pelas partes. Trata-se, pois, de uma renúncia antecipada e condicional à
possibilidade de subscrever ações de maneira preferencial. Assim, por exemplo, um
pacto desta classe poderia facilitar o rendimento de investidor estratégicos na com-
panhia, em qualquer processo de emissão e colocação de ações. A possibilidade de
prescindir do dispendioso procedimento que costuma exigir-se para renunciar
individualmente ao direito de subscrição preferencial ou, mais ainda, para eliminá-
lo dos estatutos, pode facilitar o caminho para o ingresso do terceiro. Contudo,

625 Cfr. STAJN, Rachel. Acordo de acionistas… op. cit., pp. 280-282; WALD, Arnoldo. Curso de
Direito Civil: Obrigações e Contratos. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 344.
626 Sobre este particular também são relevantes os direitos de transferência e subscrição preferencial
que costumam pactuar-se nos estatutos (by laws) de sociedades, em especial, de caráter fechado.
627 No caso brasileiro, por exemplo, esses negócios são apresentados sob a forma de acordos de
compra e venda de ações: “a doutrina sempre aceitou a existência de acordos de acionistas que
regulassem a compra e venda de ações, considerando-os projeção do poder de disposição dos
bens dos seus titulares. Interessante notar que os acordos sobre a compra e venda de ações e
o direito de preferência em caso de alienação (chamados acordos de bloqueio) tiveram o seu
surgimento ligado à manutenção do quadro de partes signatárias de acordos de voto, sendo
considerados, na sua origem, verdadeiros pactos acessórios…” (CRUZ, Pedro Santos. Mecanis-
mos de eficácia … op. cit., pp. 35-37).

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258 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

deve-se notar que os pactos mencionados não implicam o desaparecimento defini-


tivo do direito de subscrição preferencial. Portanto, os acionistas que participam de
tais acordos conservam, em geral, a possibilidade de subscrever com preferência em
qualquer emissão de ações em que não tiver acontecido a condição prevista.
Outro exemplo de pactos que podem afetar os direitos de subscrição
preferencial é o acordo de contribuição forçada, conhecido na terminologia
norte-americana como cláusula do pay-to-play. Este mecanismo, como sua
própria denominação inglesa sugere, implica para o acionista a necessidade de
subscrever em toda nova emissão de ações que a companhia efetue, sob pena
de ver-se privado daqui por diante do direito de subscrição preferencial. As-
sim, enquanto o assinante do pacto efetue aportes na proporção de sua parti-
cipação no capital em toda nova emissão de ações, conservará o direito de
subscrever cada vez que a sociedade realize um aumento de capital. Se, ao
contrário, o acionista assinante deixa de exercer seu direito em uma oportuni-
dade, ficará daí em diante privado da possibilidade de subscrever nas futuras
emissões que a sociedade pratique.
Um acordo pay-to-play se justifica na medida em que poderia garantir re-
correntes aportes de capital efetuados pelos acionistas. Assim, os acionistas ao se
verem confrontados com a possibilidade de perderem seus direitos de subscrição
preferencial, poderiam inclinar-se a efetuar contribuições continuadas de recursos
de capital. Contudo, poderia ocorrer que os assinantes desta classe de acordos se
vissem expostos a atuações abusivas por parte dos acionistas majoritários. Certa-
mente, a realização de sucessivos e, possivelmente, desnecessários processos de emissão
e colocação de ações poderia ter como conseqüência não só a diluição de sua
percentagem de participação na companhia, senão também a perda de seus direi-
tos de subscrição preferencial.
Sobre esta cláusula se pronunciaram alguns autores para expressar que “a
proteção oferecida a alguns investidores na contramão da diluição de sua percen-
tagem de participação na companhia, muitas vezes se encontra condicionada aos
pactos ‘pay-to-play’”.
“Quem desejem conservar o referido direito se verão forçados a participar
em futuros processos de emissão e colocação de ações, com o fim de assi-
nar um número de ações proporcional a sua participação na companhia”.628

628 DAUCHY, Craig E. et al. Venture Capital Financings, Corporate Law and Practice Course
Handbook Series, B4-7232, 1998, p. 714

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B. PRERROGATIVAS ESPECIAIS DE TRANSFERÊNCIA


Outro aspecto da sociedade que pode ser regulado mediante um acordo
de acionistas é o relativo à transferência das ações em que se divide o capital.
Neste sentido, pode aludir-se às cláusulas adesivas (tag along) ou de arraste
(drag along), que permitem que certos sócios adquiram o direito a unir-se a
uma determinada operação ou a obrigação de alienar suas ações, respectiva-
mente. Também são relevantes os denominados acordos de compra ou venda
forçada (buy sell agreements) e as opções de compra (call options) ou de venda
(put options). Estes pactos implicam para os acionistas assinantes diversas
modalidades relacionadas com a transferência da propriedade sobre um nú-
mero determinado de ações.
I. CLÁUSULAS ADESIVAS (TAG ALONG) E DE ARRASTE (DRAG ALONG)
As cláusulas adesivas ou tag along mechanisms629 conferem aos acionistas
assinantes o direito de participar em um negócio de compra de ações, usual-
mente originado numa oferta de compra dirigida a algum deles. A possibili-
dade de aderir à operação é conferida aos acionistas assinantes, de maneira
automática, no momento em que algum deles receba uma oferta de compra
de suas ações. O destinatário de tal proposta não pode aceitá-la, até que os
sócios que decidam exercer este direito tenham a oportunidade de participar
na operação. Para este propósito, é necessário determinar a percentagem de
ações que corresponde a cada um dos acionistas alienar630. Seguidamente,
notifica-se ao terceiro interessado a respeito da adesão de outros sócios à com-
pra, para depois proceder a celebrar a operação.
Os direitos de adesão que derivam desta classe de pactos conferirem uma
indubitável vantagem aos acionistas assinantes. Ao exercer esta faculdade, tais

629 Estas previsões também foram denominadas piggy-back rides.


630 Existem diversas fórmulas que permitem estabelecer o número exato de ações que podem ser
vendidas por cada sócio. Um destes mecanismos consiste em multiplicar o número de ações
objeto da operação proposta pela percentagem de participação de cada um dos acionistas
assinantes que participem na venda. Um exemplo permite esclarecer a aplicação prática deste
mecanismo: X, acionista de Alpha Inc., recebe de parte de um terceiro uma proposta de compra
a respeito de 100 ações, que equivalem à totalidade de sua participação na companhia (50%
do capital da sociedade). Z e W, quem são titulares de 50 ações cada um (equivalentes, de
maneira individual ao 25% do capital assinado), decidem exercer seu direito de adesão. Para
calcular o número de ações que corresponderá alienar a cada um deles, será preciso aplicar
suas respectivas percentagens de participação à totalidade das ações que o terceiro pretende
adquirir. Portanto, a transferência deverá ser realizada nos seguintes termos: X poderá vender
50 ações (100*50%), enquanto Z e W poderão alienar 25 ações cada um (100*25%).

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260 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

sócios podem beneficiar-se do denominado prêmio de controle (control premium)


que, em geral, é pago nas operações feitas por quem tentam adquirir uma
percentagem significativa de ações. No atinente a esta possibilidade, alguns autores
asseguram que “as pessoas que investem numa companhia tentam sempre que
se estabeleçam cláusulas adesivas a seu favor. Por meio delas se impede que os
acionistas majoritários possam excluí-las daquelas transferências nas quais se
ceda o controle da sociedade. Também mediante estas cláusulas se facilita a
participação nos prêmios acordados para esta classe de operações”631. Igualmente,
deve-se assinalar que este mecanismo pode solucionar o problema da falta de
liquidez usualmente atribuível às participações acionária dos acionistas
minoritários. Na medida em que estes contêm com a possibilidade de aderirem
a qualquer operação realizadas pelos acionistas majoritários assinantes do acordo,
será mais fácil alienarem suas participações no capital da companhia.
Outra modalidade de estipulação se relaciona com a possibilidade de
promover uma transferencia generalizada de ações, por virtude das denomi-
nadas cláusulas de arraste ou drag along mechanisms. Estas disposições permi-
tem que um sócio obrigue os demais acionistas assinantes do acordo a alienarem
sua participação no capital da companhia. O direito de arraste se sujeita à
condição de que um terceiro formule uma oferta de compra de ações a algum
dos acionistas assinantes. No evento desta condição, tal sócio poderá obrigar
aos demais acionistas a alienarem suas respectivas participações no capital so-
cial. Assim, o terceiro adquirente terá a sua disposição as ações de todos os
acionista assinantes do acordo. Ademais, é usual que as cláusulas de arraste
venham acompanhadas de mecanismos que permitam estabelecer um preço
justo pelas ações que se pretenda alienar. Esta medida contribui a evitar que a
cláusula de arraste prejudique a alguns dos acionistas assinantes, nos casos em
que o preço de venda ofertado seja menor do que o valor de cotação das ações
ou do que o seu valor intrínseco.
Estas cláusulas facilitam a transferência de blocos de ações que represen-
tem percentagens significativas do capital social. Portanto, alguns autores afir-
maram que esta modalidade contratual também poderia contribuir para reparar
os problemas de falta de liquidez relacionados com a participação dos acionis-

631 STEVENSON, Shannon Wells. The Venture Capital Solution to the Problem of Close
Corporations. In: Duke Law Journal, Vol. 51, 2001, Durham, North Carolina, p. 1161.

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260 5/7/2011, 18:04
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 261

tas minoritários. Neste sentido, aceita-se, em geral, que poucos investidores


teriam interesse em adquirir uma participação minoritária no capital de uma
sociedade. Esta realidade afeta os pequenos acionistas quem costumam enfren-
tar dificuldades quando decidem separar-se da companhia. A possibilidade de
obrigar os outros sócios a participarem em uma determinada operação de venda
de ações melhora a posição dos vendedores. “Ao exercer as prerrogativas que
confere uma cláusula de arraste, os acionistas minoritários poderiam formular
uma oferta de transferência que inclua um número significativo de ações, com
o fim de satisfazer as exigências de um determinado investidores”632.
II. ACORDOS DE COMPRA E DE VENDA FORÇADA (BUY SELL AGREEMENTS)
Na prática societária estadunidense, não é estranho que um grupo de pessoas
decida se reunir para investir de maneira conjunta numa companhia, de modo
de adquirir uma percentagem importante de participação no capital social. Se as
participações adquiridas por estes sujeitos tomadas de maneira individual, a
capacidade decisória de cada um deles é muito limitada. Pelo contrário, a
configuração de um bloco entre todos os adquirentes pode dar lugar a uma
percentagem majoritária, ou ao menos significativa, no momento de exercer os
direitos de voto nas reuniões da assembléia de acionistas. A configuração do
bloco pode, portanto, converter-se num efetivo mecanismo para a aquisição de
controle sobre os órgãos da sociedade. Claro que se o bloco chegar a se fracionar,
os acionistas que nele participam ficariam privados dos privilégios inerentes
àquela capacidade decisória. Ao desintegrar o grupo de votação, parte do valor
das ações pertencentes ao grupo poderia perder-se, de maneira que alguns dos
acionistas participantes poderiam perder seu interesse em conservar suas
respectivas ações. O maior risco de fracionamento do bloco surge de divergências
entre os acionistas participantes. Efetivamente, enquanto existem consensos entre
os assinantes, todos eles estão dispostos a manter-se vinculados a estes mecanismos
de votação conjunta. Os conflitos intra-societarios podem dar lugar a que os
acionistas dissidentes tentem efetuar coligações com outros sócios por fora do
bloco ou que tentem alienar a favor de terceiros suas participações de capital.
A necessidade de evitar o fracionamento destes blocos de ações, bem
como de impedir a conseqüente perda de valor que se originaria para seus

632 Ibidem.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


261 5/7/2011, 18:05
262 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

titulars, justifica a existência dos denominados acordos de compra e venda


forçada (buy sell agreements). Por virtude destes acordos, se as divergências en-
tre os acionistas assinantes não podem ser resolvidas amigavelmente, a compra
e a venda de participações de capital vinculadas ao bloco são restringidas de
maneira a impedir que elas terminem em mãos de terceiras pessoas não vincu-
ladas ao bloco. A finalidade subjacente aos acordos de compra e venda consis-
te em impedir que a saída de um ou vários acionistas participantes fragmente
a unidade do grupo por meio da transferência de sua participação no capital.
Assim, qualquer sócio que deseje retirar-se do bloco poderá formular aos
demais participantes uma oferta de venda da totalidade de suas ações. Em
caso de estes não aceitarem adquirir as ações oferecidas, o acionista que oferece
estará facultado a obrigar aos demais sócios a alienarem a totalidade ou parte
de suas respectivas participações no capital social. Os acionistas que tenham
interesse em continuar agrupados poderão adquirir as ações dos sócios que
decidam não o fazer. Estes contarão, por sua vez, com a possibilidade de alie-
nar àqueles suas participações na companhia.
Os acordos de compra ou venda foraçada operam mediante a formulação
de uma oferta de venda de ações por parte de algum ou alguns dos acionistas
assinantes. Em caso de não ser aceita a oferta de venda pelos demais acionistas,
entende-se que estes formularam, de maneira automática, uma contrapropos-
ta para alienar suas ações a quem ofereceu inicialmente. Esta contra-oferta se
entende formulada de maneira tácita, nos mesmos termos e condições da oferta
inicial. Assim, os sócios que não consintam em comprar suas ações de quem
ofereceu inicialmente se verão obrigados a vender todas ou parte de suas ações
na companhia.
Uma das maiores dificuldades que apresenta os acordos de compra ou
venda forçada é a fixação do preço pelo qual deverão ser transferidas as ações
objeto do pacto. O acionista que adquire ou aliena pode ver-se prejudicado
se o preço estabelecido para a operação não corresponde ao valor intrínseco
ou ao de cotação das ações, segundo o caso. Para evitar que tal sócio sofra um
prejuízo patrimonial, é recomendável que se pactuem mecanismos tenden-
tes a estabelecer um preço justo para a transferência das ações. Também é
aconselhável que diversos mecanismos sejam consagrados no acordo corres-
pondente, anteriormente à existência de qualquer conflito entre os sócios.
Desta forma, facilita-se a determinação da fórmula para calcular o preço, na

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medida em que “cada parte negocia na qualidade de possível vendedor ou de


possível comprador”633.
Um dos mecanismos mais engenhosos que se desenhou para garantir
que os preços de compra ou venda das ações sejam justos consiste em permi-
tir- sua fixação a quem formula a oferta original. De tal maneira, quem decida
vender deverá definir o preço de transferência, que será o mesmo ao que esta-
ria disposto a comprar um número igual de ações no caso de não ser aceita a
oferta de venda por seus destinatários. Assim, qualquer destes últimos terá
um só preço de referência que terá que utilizar tanto para a compra das ações
oferecidas por aquele como para alienar sua percentagem de participação na
companhia. Os acionistas que formulam a oferta inicial estão constringidos a
estabelecer um preço de venda justo, sob pena de se verem obrigados a adqui-
rir as participações no capital dos demais sócios por esse mesmo valor. Isso se
deve ao fato que os sócios destinatários da oferta inicial podem decidir entre
adquirir as ações oferecidas em venda ou exercer seu direito de vender suas
ações a quem ofereceu inicialmente pelo mesmo preço da oferta de venda. A
sensatez do mecanismo referido está no risco que assume quem propõe o
preço, de ver-se compelido a comprar. Assim, parece lógico que se o preço
oferecido neste esquema for muito baixo, os acionistas destinatários da oferta
estariam, provavelmente, mais propensos a comprar do que a vender, e vice-
versa. Apesar da grande popularidade do referido sistema de fixação de preço,
nada obsta que os assinantes do acordo convenham em utilizar outras fórmu-
las que lhes permitam determinar o preço justo de transferência das ações634.

633 LAVELLE, Kerry M. Drafting Shareholders Agreement’s for the Closely-Held Business. In: DePaul
Business Law Journal, Fall/Winter 1991, p. 120.
634 Pode-se pensar, por exemplo, na determinação do preço por parte de um terceiro. Um mecanismo
que também costuma ser incluído nesta classe de acordos consiste em permitir que, uma vez
ativada a oferta de venda, tanto quem oferece como o destinatário da oferta apresentem em
envelope fechado os preços a que estariam dispostos a vender e a comprar, respectivamente. Se a
diferença é inferior a um certo valor ou percentagem, prevê-se que o preço obrigatório para as partes
será a média entre os dois valores. Ao contrário, se a diferença entre o preço formulado pelo
vendedor e o comprador supera uma certa percentagem ou valor, se contratará o ditame de um
terceiro que fará as funções de perito na fixação do preço. Com o valor que determine o experiente
se fará divisão com o valor que resulte mais próximo entre o proposto pelo vendedor e o compra-
dor. A engenhosa lógica deste mecanismo está em que as partes na compra não terão nenhum
incentivo em fixar valores desproporcionados ou injustos, devido à penalidade que surgirá da
média que terá de fazer-se entre o preço determinado no ditame pericial e o valor que mais se lhe
acerque. Assim, pode-se supor uma situação hipotética em que, por exemplo, um vendedor em sua
oferta inicial tem supervalorizado um pacote acionário em quinhentos pesos. Se o comprador
estimou que o valor do mesmo pacote acionário é de vinte pesos e o perito determinou que seu
valor justo é de cem pesos, o preço final e obrigatório para a operação seria de sessenta pesos.

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264 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

III. OPÇÕES DE COMPRA (CALL OPTIONS) OU DE VENDA (PUT OPTIONS)


Uma última menção deve ser feito sobre as denominadas opções de com-
pra (call options) ou de venda (put options), que, na prática, produzem efeitos
similares aos que se originam dos buy sell agreements. Estas cláusulas conferem
à sociedade ou a um sócio a faculdade de adquirir ou de alienar uma percen-
tagem de ações em qualquer momento, a um preço estabelecido ab initio no
respectivo acordo. Por um lado, a opção de compra faculta à companhia ou a
um ou vários acionistas adquirirem uma percentagem de ações pertencente a
um sócio, dentro de um prazo determinado e segundo as condições previstas
de antemão no acordo. A opção de venda, por sua vez, permite que qualquer
daqueles obrigue a um acionista a comprar um número determinado de ações,
dentro de um prazo preestabelecido no momento em que a sociedade ou os
acionistas em cujo benefício se convém a cláusula o considerem conveniente.
Ao exercer-se a opção de compra (call), a operação resultante (aperfeiço-
amento do contrato de compra) é realizada ainda contrariamente a vontade
dos titulares das ações, cuja transferência forçada deverá produzir-se. Vale
dizer que a aceitação da oferta de compra se cumpre de maneira tácita em
virtude da vontade expressada ex ante no pacto. No caso da opção de venda,
ocorre a situação contrária. Isto é a oferta de venda é aceita tacitamente por
seus destinatários em razão da cláusula convinda de antemão.
As opções de compra ou de venda podem ser utilizadas para satisfazer os
diversos interesses que possam ter os acionistas ou a sociedade. Em primeiro
termo, uma opção de venda (put) a favor da sociedade, pode conduzir ao
incremento de seu patrimônio, na medida em que ela estaria facultada a obri-
gar qualquer acionista assinante do respectivo acordo, dentro de um prazo
determinado, a assinar um número determinado de ações. Para tais efeitos, a
companhia pode emitir ações previamente readquiridas ou realizar um pro-
cesso ordinário de emissão e colocação. Em qualquer destes casos, o exercício
da opção de venda permitiria incrementar o patrimônio da sociedade. Assim,
um acionista que faça uso de uma opção de venda pode alienar suas ações com
facilidade, sempre que a exerça dentro do prazo e nas condições previstas no
acordo. Esta última possibilidade pode contribuir a reparar os problemas de
falta de liquidez relacionados com a participação dos sócios minoritários.
Outro benefício que pode derivar dos acordos estudados se expõe ao se
exercer a opção de compra nas sociedades fechadas. Nos Estados Unidos, não é

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raro que o capital destas companhias se encontre repartido entre acionistas ad-
ministradores e investidores sem participação na gestão dos negócios sociais.
Aqueles são os encarregados de acometer o desenvolvimento da empresa social,
devido a seu conhecimento sobre as atividades que realiza a sociedade. Os inves-
tidores, ao contrário, se limitam a contribuir ao fundo social no momento de
constituição da companhia e a perceber os resultados pertinentes, sem partici-
par no manejo administrativo da sociedade. Assim, enquanto os acionistas ad-
ministradores precisam dos aportes dos investidores para iniciar as atividades da
companhia, estes precisam dos administradores para o cumprimento da gestão
social. No entanto, naquelas sociedades fechadas que gerarem suficientes resul-
tados, aos acionistas administradores costuma parecer supérflua a presença dos
investidores. O exercício da opção de compra permite que os administradores
adquiram as ações de propriedade destes últimos. Tem-se então que a referida
opção é feita em favor de tais acionistas-administradores, “cujo conhecimento,
destreza e diligência permitiram que a sociedade se converta numa empresa
rentável. Por virtude das opções de compra, estes sócios contam com a possibili-
dade de beneficiar-se do capital inicial contribuído pelos investidores, sem ver-
se obrigados a ceder uma percentagem de ações de forma definitiva”635.
Também pode-se verificar que as opções de compra constituem uma
verdadeira limitação à propriedades sobre os títulos de capital social636. Esta
circunstância pode ser verificada por causa da situação do titular das ações
sujeitas a esta estipulação. Ele pode ver-se privado da propriedades das ações
em qualquer momento antes da expiração do acordo. A legislação do Estado
de Delaware dá o caráter de restrição ao direito de propriedade a esta classe de
pactos na seção 202 da Lei Geral de Sociedades. Esta norma alude as limita-
ções à livre transferência de ações. Nesta seção estabelece-se a possibilidade de
acordar opções de compra entre os acionistas, o entre estes e a sociedade. A
norma permite a celebração dessa classe de acordos, sempre que as limitações
criadas pela opção “constem de modo visível no título que acredite a partici-
pação do acionista no capital social”. Se não se cumpre este requisito, o acordo
não terá validade, a menos que se tente fazer valer contra uma pessoa que
conheça da existência da respectiva restrição”.

635 LAVELLE, op. cit., p. 126. Naturalmente, esta visão desconhece o risco de que se abuse de tais
prerrogativas em detrimento dos acionistas que investiram na companhia.
636 Pelo contrário, as opções de venda não constituem uma limitação à livre transferência de
ações, mas sim uma obrigação de adquirir um número determinado de tais títulos.

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Capítulo VIII
CONSIDERAÇÕES SOBRE O
CAPITAL SOCIAL E O
PAGAMENTO DE DIVIDENDOS

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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A relevância de uma estrutura de capital flexível nas sociedades se faz
patente nas regulações contemporâneas sobre a matéria637. Este aspecto nor-
mativo facilita o acesso a recursos novos, indispensáveis para a operação e ex-
pansão das companhias638. É sabido que os países cujos sistemas jurídicos se
mostram rígidos no regulamento relacionado com o financiamento da socieda-
de apresentam maiores dificuldades para o desenvolvimento econômico639. O
sistema norte-americano, por óbvias circunstâncias econômicas, é um dos que
em maior medida avançaram sobre a matéria. Assim, nele se derrogaram múl-
tiplas restrições que careciam de maior utilidade prática, tais como a obrigató-
ria determinação de um valor nominal para as ações emitidas por uma companhia.
O sistema jurídico que governa a estrutura do capital das sociedades nos
Estados Unidos, apresenta dois regimes claramente diferenciados. Por um lado,
encontram-se os Estados que adotaram as inovadoras disposições contidas na
Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA)640. De outro lado, acham-

637 Como bem o indica o professor Modesto Carvalhosa, a tendência internacional é justamente
à flexibilização das regulações locais em matéria de capital social; assim, por exemplo, a Lei
sobre Sociedades por Ações de Brasil estabelece poucas restrições à negociabilidade das
ações, impondo somente uma restrição para as companhias abertas, que se encontra no artigo
29 e que, em rigor, não tem uma magnitude tal como para opacar a tendência à liberdade na
negociação de ações.
638 Devido a importância do capital no desenvolvimento do objeto social e, muito especialmente,
na obtenção de recursos, foi constante a evolução normativa e econômica que este conceito
teve ao longo dos últimos anos; no caso brasileiro, por exemplo, pode-se apreciar uma mudan-
ça revolucionária no conceito de capital, derivada da possibilidade de emitir ações sem valor
nominal e do conseqüente efeito que isso tem em múltiplos aspectos da sociedade anônima.
639 Em palavras de BAINBRIDGE, “é difícil imaginar como poderia funcionar um sistema econômi-
co contemporâneo no qual não existisse uma estrutura moderna de financiamento para as
sociedades de capital. As variadas inovações tecnológicas da Revolução Industrial acontecida
no século XIX e, em especial, o desenvolvimento do método de produção em massa, significa-
ram importantes vantagens para aquelas companhias capazes de atingir economias de escala.
Esta circunstância conduziu por sua vez ao surgimento das grandes sociedades industriais da
época moderna. Elas requerem constantes aportes de capital, cujas quantias seriam economi-
camente inatingíveis para qualquer família ou sujeito individualmente considerados. A única
alternativa para financiar a operação das sociedades modernas consiste em aglutinar pequenos
investimentos de capital efetuados por milhões de investidores particulares” (Corporation
Law..., cit., p. 62).
640 As modernas disposições contidas na Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA),
permitem verificar a evolução das noções e conceitos fundamentais sobre os que se ergue o
sistema de capital das sociedades anônimas estadunidenses. Segundo se afirma nos comentá-
rios oficiais ao regulamento indicado, “este processo de renovação legislativa foi iniciado com
a determinação, adotada em 1980, de introduzir modificações ao texto inicial da Lei Tipo
redigida em 1969. Nessa oportunidade, eliminaram-se as antigas noções de valor ‘nominal’ e
‘capital assinado’. Posteriormente a essa primeira revisão da norma, incluíram-se em seu texto
novas e mais modernas disposições, que conduziram em 1984 à expedição da nova Lei Tipo

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270 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

se aqueles que, ainda hoje, conservam a estrutura normativa que precedeu aos
avanços introduzidos pela Lei Tipo mencionada641 . Apesar das importantes
diferenças de regulação, é notória a similitude verificável em ambas, em razão
da política legislativa que prevaleceu sobre a matéria nos Estados Unidos.
Esta política consiste em oferecer soluções de regulação ao conflito que se
apresenta entre os interesses contrapostos dos acionistas e dos credores sociais.
Segundo MANNING, “enquanto os acionistas defendem o duplo propósito
de contribuir o menos possível ao fundo social e retirar dali todos os recursos
disponíveis, os credores se inclinam pela opção oposta. A ideologia que serve
de fundamento ao sistema de capital social instituído pelo ‘Common Law’ e
pelas regulações positivas se orienta a encontrar um equilíbrio entre os inte-
resses de ambas partes”642.

2. O CAPITAL SOCIAL
Em geral, os recursos necessários para desenvolver a gestão das companhias
de capital provêm da emissão de títulos de participação (equity securities) ou de
dívida (debt securities)643. A subscrição ou aquisição de qualquer destes títulos,

de Sociedades de Capital. A doutrina sustentou tradicionalmente que a existência de figuras tais


como o ‘valor nominal’ e o ‘capital social’ só contribui a aumentar, desnecessariamente, a
complexidade do sistema legal. Da mesma forma, tais noções carecem de utilidade, na medida
em que já não cumprem o propósito para o que foram concebidas, vale dizer, a proteção dos
credores sociais [...]. Portanto, na nova Lei Tipo se substituíram estes conceitos por figuras mais
singelas, que, por sua vez, permitem oferecer uma maior proteção aos credores das sociedades de
capital” [Comentários oficiais à Seção 6.21 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA)].
641 As importantes mudanças contidas na Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) foram
adotadas por diversos Estados da União Americana. A avançada regulação do capital social
introduzida pelos redatores do novo estatuto teve grande acolhimento nas diversas legislaturas
estaduais. Segundo MANNING, no princípio da década de noventa, “os Estados de Arkansas,
Geórgia, Indiana, Iowa, Kentucky, Mississippi, Carolina do Norte, Oregon, Pennsylvania,
Carolina do Sul, Tennessee, Virginia, Washington, Wisconsin e Wyoming já tinham adotado a
nova Lei Tipo. Em outros Estados, como Maryland, por exemplo, se acolheram somente as
novas regras relativas à distribuição de resultados. Além disso, ainda que os demais Estados da
União se abstenham de acolher o regulamento indicado em sua totalidade, parece provável
que muitos deles incluam em suas legislações societárias as disposições da Lei Tipo em matéria
de aportes e repartição de dividendos” (MANNING, Bayless et al. Legal Capital. Third Edition,
New York: Foundation Press, 1990, p. 177).
642 Ibidem, p. 5.
643 A este respeito, é interessante a explicação de Fernando Nascimento e Silvana Neris, em cuja
opinião “Conforme a atividade e o perfil de risco, cada empresa tem um custo particular de
captação de recursos seja de curto, médio ou longo prazo. Para isso busca a estrutura de
capital que leve à maximização dos seus resultados. As empresas podem se financiar de 3
formas: por meio de dívida (capital de terceiros), de títulos de participação – ações – (capital
próprio) e de retenção de lucros obtidos em suas próprias atividades (auto-financiamento).” (A
captação de recursos das empresas de capital aberto no Espírito Santo – Estudo de caso, em O

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segundo seja o caso, confere ao seu titular uma multiplicidade de direitos a


respeito da sociedade emissora. A titularidade de ações dá lugar às prerrogativas
inerentes ao status de acionista. Por sua vez, os títulos de dívida incorporam
uma obrigação a cargo da companhia, a partir da qual se origina uma relação de
crédito entre esta e o dono do título correspondente. Igualmente a como ocorre
nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica, estes instrumentos de
crédito não conferem as mesmas prerrogativas outorgadas aos sócios, porquanto
não representam uma participação proporcional no capital da sociedade. De
acordo com BURNHAM, “os debentures representam o compromisso incon-
dicional da companhia, no sentido de pagar a seu dono uma quantidade mone-
tária específica numa data determinada. Assim mesmo, o garfo de tais títulos
tem direito ao pagamento dos juros que sejam devidos periodicamente”644.

A. TÍTULOS DE PARTICIPAÇÃO
Como já se assinalou, a promulgação da Nova Lei Tipo de Sociedades de
Capital (RMBCA) significou a supressão de restrições que existiam na regu-
lação do capital social nas companhias de capital. Esta mudança normativa
permitiu que a terminologia que se verifica nos textos seja mais exeqüível no
novo regulamento que nas disposições que a precederam645.
A emissão de títulos de participação ou ações (equity securities) por parte
de uma companhia implica, em geral, o aporte de novos ativos ao fundo social646.
Eles representam as contribuições que os acionistas se comprometem a efetuar647.
Os recursos recebidos por esse conceito integrarám também o capital do qual a

Marketing e a Valorização do Profissional Contábil. Espírito Santo. 2003. pp. 3-4). Cfr.
SANVINCENTE, A.Z. A evolução recente do mercado primário de debêntures. In: Finance Lab
Working paper. FLWP- Ibmec. 2001-6. p. 2.
644 BURNHAM, op. cit., p. 563.
645 A Nova Lei Tipo abandona, entre outros conceitos, aqueles que permitiam formular a distinção
entre ações ordinárias (common estoque) e preferenciais (preferred estoque), bem como as
noções contáveis tradicionais relacionadas com o valor nominal.
646 No contexto particular analisado, o vocábulo equity deve ser entendido segundo sua acepção
financeira, vale dizer, “o resultado da somatória dos ativos sociais, menos a totalidade dos
passivos” (HAMILTON, op. cit., p. 454). Daí que um “título de participação” possa definir-se
como “um instrumento que representa um valor patrimonial específico, derivado da operação
matemática mencionada” (Ibidem).
647 Deve assinalar-se que no ata de constituição (articles of incorporation) da sociedade deverá ser
especificado seu capital autorizado (authorized capital). Esta menção permitirá determinar o
número de ações que poderão ser emitidas pelo Conselho de Administração. Esta obrigação está
contida na Seção 6.01 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital. Assim, pode-se mencionar
que enquanto os títulos não sejam emitidos, denominam-se ações em carteira (unissued shares);

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272 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

sociedade disporá para dar cumprimento ao seu objeto social. A legislação


estadunidense se ocupa em regular com certo detalhe o modo com que tais
aportes devem ser realizados e fornece orientações a respeito dos critérios para
determinar o valor que deve ser atribuído aos títulos emitidos648. Neste ponto,
é de grande relevância o debate suscitado em torno da eliminação nos Estados
Unidos da figura do “valor nominal” (par value)649.
No sistema norte-americano se considera que o mecanismo de proteção
instituído pela a criação da figura das ações com valor nominal carece na atualidade
da relevância que teve quando foi inicialmente concebido650. “A história da
criação desta figura é eloqüente a respeito de sua mesma finalidade. Durante o
período de gestação da sociedade anônima moderna, acontecida no século XIX,
se estudou a possibilidade de criar mecanismos para amparar investidores e
credores em relação a certas práticas inescrupulosas. O conceito de valor nominal
teve por finalidade evitar que se favorecesse determinados indivíduos, mediante
a prática de emitir ações por um valor inferior ao que tinham pago outros
investidores. Em teoria, esta salvaguarda deveria assegurar o equilíbrio entre os
diferentes acionistas. Ademais, o valor nominal constituía uma garantia para os
credores sociais, pois evitava que os acionistas realizassem atos de manipulação
sobre o patrimônio social, em prejuízo da garantia comum que aqueles dispunham
para a satisfação de suas dívidas”651.

uma vez se aprove sua emissão e se coloquem entre o público ou os acionistas, denominam-
se ações em circulação (issued shares). (Cfr. HAMILTON, op. cit., p. 459).
648 MANNING informa a respeito das diferentes modalidades de pagamento disponíveis nos
Estados Unidos para cumprir a obrigação de contribuir ao fundo social. Segundo o autor, “é
claro que o dinheiro efetivo não representa maiores inconvenientes. O próprio pode afirmar-se
dos aportes em espécie efetuados pelos acionistas. A contribuição de serviço também é uma
opção viável para satisfazer a obrigação de efetuar contribuições ao fundo social [...] O único
problema poderia apresentar-se naqueles casos em que o aporte consiste numa promessa de
contrato ou numa obrigação sujeita a termo” (op. cit., p. 45). Em sentido análogo, a Seção 6.21
(b) da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) permite que os aportes dos sócios
sejam pagos mediante a transferência de qualquer classe de ativo ou direito de conteúdo
econômico em favor da companhia. O texto da norma citada contém uma enumeração não
taxativa dos bens tangíveis ou intangíveis que poderão ser contribuídos ao capital social: “O
aporte poderá consistir em dinheiro efetivo, letras, serviços prestados à sociedade, contratos
para a prestação de serviços futuros e qualquer título de credito”.
649 É sabido que o “valor nominal” constitui uma exigência de índole legal, que consiste em fixar
no momento de constituir a sociedade um valor homogêneo e determinado para cada uma das
ações em que se divide o capital social.
650 “Ainda que o sistema de valor nominal (par value) tenha cumprido uma importante função nas
práticas societárias de antigamente, na atualidade, tal valor é fixado numa quantia tão baixa, que
perdeu toda importância prática. A nova Lei Tipo de Sociedades de Capitais, eliminou o sistema
de capital social baseado no valor nominal” (MORRIS, Glenn G. op. cit., vol. 7, p. 297).
651 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 105. VARGAS também alude à proteção que pretensamente
oferecia esta figura, nos seguintes termos: “O credor podia supor que a soma dos valores

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O caráter eminentemente formal da exigência normativa estadunidense


se fez latente na freqüente colocação de títulos de participação por valores
mobiliários inferiores ao nominal. Esta prática comum se verificou a partir de
contribuições in natura, feitas mediante a contribuição de ativos supervalori-
zados. Esta prática conduziu ao que na terminologia societária estadunidense
se cunhou com o sugestivo nome de ações aguadas (watered estoque)652. Este
expediente heterodoxo deu origem a uma verdadeira evasão das finalidades
que se pretendia obter mediante a exigência de um valor nominal pago por
cada ação emitida653 . Em vista dos nocivos efeitos derivados da prática men-
cionada, os juízes norte-americanos optaram por estabelecer a responsabiliza-
ção daqueles acionistas cujos aportes tiverem sido supervalorizados654.
A eliminação da exigência legal analisada deu origem às denominadas “ações
sem valor nominal” (no par stock)655. Sob esta nova modalidade de títulos de

nominais das ações emitidas tinha sido recebida pela sociedade e que dita soma constituía, em
primeiro lugar, o meio que permitiria à sociedade cumprir seu objeto e fazer ganhos, e em
segundo lugar, a almofada ou margem de segurança dos credores, em substituição da responsa-
bilidade pessoal dos acionistas” (VARGAS, op. cit., p. 147). Além disso, segundo HAMILTON,
“o valor nominal é uma cifra a todas as luzes arbitrárias; um simples vestígio de práticas societárias
antiquadas e em desuso” (HAMILTON et al., op. cit., p. 144).
652 É interessante verificar a origem do particular nome conferido a esta figura. “O uso dessa
expressão se derivou de uma antiga prática fraudulenta, consistente em aumentar artificialmen-
te o peso [e, em conseqüência, o preço] do gado mediante a ingestão forçada de significativas
quantidades de água” (KLEIN, William A. et al., op. cit., p. 211). Também deve-se ressaltar que
uma sociedade poderia efetuar uma emissão de ações a título gratuito. Trata-se das denomina-
das ações sem contraprestação (bonus stock), que, em geral, são emitidas simultaneamente
com outras classes de ações, tais como as privilegiadas. Segundo o dicionário Black’s Law,
estes títulos são “ações com valor nominal cuja emissão se faz sem que a sociedade receba
importância alguma em contraprestação. Em geral, emitem-se para ser oferecidas gratuitamente
aos assinantes de ações preferenciais ou aos donos de títulos de dívida” (op. cit., p. 182).
Alguns autores relacionam os títulos emitidos gratuitamente com as ações aguadas, na medida
em que sua colocação também tem um efeito prejudicial a respeito do capital da sociedade.
Segundo VARGAS, “a sociedade pode ter seu capital inflado como resultado de três circuns-
tâncias: porque colocou suas ações com desconto, isto é, sob o valor nominal; porque emitiu
algumas de suas ações liberadas de pagamento, isto é, em caráter de bônus ‘shares’; ou porque
emitiu ações em troca de aportes de bens ou serviços valorados em excesso” (op. cit., p. 147).
653 Assim, “esta obrigação legal se enfrentou por um tempo a grave escolhe das ações emitidas por
embaixo desse valor, vale dizer, as ações aguadas” (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 105).
654 Para uma análise detalhada das diferentes posturas judiciais a respeito desta figura, pode-se
revisar a obra de KLEIN (op. cit., pp. 210-215).
655 “Só no ano de 1912 se promulgou o primeiro regulamento que eliminava a figura do valor
nominal das ações. Esta mudança legislativa se deveu, em grande parte, ao amplo debate que
precedeu a expedição da norma” (MANNING et al., cit., p. 29). A supressão das noções de
valor “nominal” (par avalie) e de capital “assinado” (stated capital) sob a Nova Lei Tipo, não
representa um obstáculo ante a possibilidade de que estas figuras possam utilizar-se numa
companhia regulada sob essa norma. Segundo MANNING, “tanto os diretores como os conse-
lheiros, os contadores, as entidades federais de supervisão e, em geral, qualquer que se
encontre legitimado para fazê-lo, poderá solicitar que se atribua um valor nominal às ações

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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274 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

participação, o “Conselho de Administração determina, para cada caso em par-


ticular, o preço pelo qual serão colocadas as ações”656. Assim, as mais modernas
disposições de Direito Societário deixam ao arbítrio desse órgão a tarefa de fixar
o valor de colocação das ações657. As mesmas normas também dispõem que a
decisão do Conselho a respeito do preço dos títulos deva ser definitiva em cada
caso, de maneira que o valor escolhido permita verificar se o acionista assinante
efetuou o aporte correspondente. Assim, por exemplo, nos comentários oficiais
formulados em relação com a Nova Lei Tipo (RMBCA) informa-se que o valor
pelo qual serão emitidas as ações é assunto que concerne de modo exclusivo ao
Conselho de Administração e aos acionistas. São estes últimos quem poderiam
ver diluída suas participações na companhia, no caso de serem emitidas ações

emitidas por uma companhia. Também poderão fazer questão de que se estabeleça uma catego-
ria denominada ‘capital assinado’ nos livros contábeis da sociedade. [...] Não obstante, nenhu-
ma destas circunstâncias terá efeitos a respeito da repartição de dividendos por parte da compa-
nhia” (Ibidem, p. 185). A possibilidade de emitir ações sem valor nominal se expande, cada vez
com maior força, no âmbito do direito societário; assim, por exemplo, a regulação das sociedades
por ações no Brasil contemplam, expressamente, a emissão de ações sem valor nominal. Segundo
o professor Modesto Carvalhosa “varias conseqüências decorrem dessa nova estrutura do capital
social. A primeira conseqüência é que não haverá coincidência entre o número de ações em que
se dividirá o capital e o valor efetivo das entradas de capital quando ocorre a colocação de ações
de valor nominal com ágio ou de ações sem valor nominal (...) Internamente, o capital social não
mais regula os direitos dos acionistas com base na contribuição para ele de cada um, já que nem
todo o valor da subscrição o integra obrigatoriamente, podendo parte desse valor ter destinação
diversa. Externamente, o montante do capital social deixa de constituir plena expressão da
garantia dos credores, pela mesma razão de não representar mais o valor integral das entradas dos
acionistas. O capital social declarado passa ter um valor meramente nominal, na medida em que
pode ser menor do que o capital efetivamente ingressado na companhia. Deixando de corresponder
ao valor total das ações subscritas e, portanto, de obrigatoriamente representar a soma de todas
as contribuições em dinheiro ou em espécie, o capital social não mais expressa toda a massa
patrimonial posta em função do negócio que constitui o objeto social. Passa o capital social a
representar, apenas, a parcela do valor das ações subscritas que os acionistas vinculam, na
constituição e em cada aumento, ao negócio empresarial que constitui o objeto da companhia.
(Comentários à Lei... op. cit., pp. 100-101). Cfr. ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das
sociedades... op. cit., pp. 206 y 208.
656 HAMILTON, op. cit., p. 464. A quantia monetária atribuída ao capital quando se efetuem
colocações de ações sem valor nominal, dependerá exclusivamente do valor que determine o
Conselho de Administração para cada colocação. As somas recebidas por esse conceito
“deverão ser registradas nos livros contábeis sob categoria denominada ‘capital assinado’
[‘stated capital’]” (CLARK, Robert C. op. cit., p. 715).
657 Cfr. seções 6.21 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) e 152 da Lei Geral de
Sociedades do Estado de Delaware (DGCL).
No Brasil existe uma disposição similar: o artigo 14 da Lei de sociedades por ações dispõe que
“O preço de emissão das ações sem valor nominal será fixado, na constituição da companhia,
pelos fundadores, e no aumento de capital, pela assembléia-geral ou pelo conselho de
administração (artigos 166 e 170, § 2º). Parágrafo único. O preço de emissão pode ser fixado
com parte destinada à formação de reserva de capital; na emissão de ações preferenciais com
prioridade no reembolso do capital, somente a parcela que ultrapassar o valor de reembolso
poderá ter essa destinação”.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


274 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 275

por um valor inferior ao real. “A determinação relativa à fixação do preço requer


um processo de deliberação honesto e justo por parte do Conselho de Adminis-
tração. Tal processo não pode ser regulado sob doutrinas arbitrárias, que só
serviriam para entorpecer a dinâmica dos negócios sociais”658.
Uma vez estabelecido o preço pelo Conselho e aperfeiçoado o negócio
jurídico correspondente, os assinantes devem proceder com o pagamento do
valor lembrado, sem importar se este guarda relação ou não com o valor de
mercado das ações. Segundo a Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital, na
hipótese de o novo acionista não cumprir a obrigação de efetuar o aporte
correspondente, este será “responsável frente à companhia e seus credores pe-
los custos não pagos”.
I. DIFERENTES CATEGORIAS DE AÇÕES

De acordo com as legislações dos diversos Estados da União, é permitido


que as sociedades de capital emitam ações de diferente natureza, cujos regimes
jurídicos dá lugar a que se confiram direitos heterogêneos aos assinantes. Claro
que, segundo preceitua algumas normas, pelo menos uma classe de ações deve
conferir aos seus titulartitulares tanto o direito a votar no máximo órgão social
como o de receber resultados659. Ademais, é legalmente viável que se outorgue
a certos acionistas direitos adicionais aos indicados. Esta circunstância pode
dar lugar a uma multiplicidade de alternativas na emissão de títulos, segundo o
decidam os órgãos sociais. Este grande leque de possibilidades levou à doutrina
e a algumas legislaturas estaduais a distinguir entre as denominadas ‘classes de
ações’ (classes of shares) e o que se passou a chamar de séries de ações (séries of
shares)660. Segundo BAINBRIDGE, “as classes de ações constituem uma cate-
goria específica de títulos de participação que compartilham entre si as mes-
mas características principais. De maneira que tanto as ações ordinárias como

658 Comentários à Seção 6.21 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA).
659 Assim o dispõe, por exemplo, a Seção 6.01 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital
(RMBCA).
660 21 A Seção 151 da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware (DGCL), por exemplo,
diferença de maneira categórica entre ambas as categorias.
A divisão das ações em diversas classes ou tipos é também uma prática difundida em diversos
ordenamentos jurídicos; assim, em Brasil, por exemplo, a própria legislação reconhece
tipologias específicas segundo variados critérios que olham os direitos que confere a ação,
sua valoração, entre outras questões mais. Cfr. CORREA, Osmar Brina. Sociedade Anônima…
op. cit., p. 31; CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas… op.
cit., pp. 169 e ss.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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276 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

as privilegiadas podem ser consideradas como classes de ações”661. Por outro


lado, as séries de ações são espécies de títulos particulares, contidos numa de-
terminada classe. Daí que “todas as séries de ações que pertençam a uma classe
terão as mesmas características principais, ainda que em cada série poderá con-
ferir-se aos assinantes prerrogativas adicionais diferentes”662.
Outra distinção que foi formulada no Direito de Sociedades norte-americano
é a relativa às ações “ordinárias” (common shares) e as “preferenciais” (preferred shares).
Esta classificação, presente também nos países de tradição romano-germânica663,
parte da diferença entre as prerrogativas de natureza diversas que são conferidas
aos seus titulartitulares. Enquanto os acionistas ordinários têm tanto direitos
econômicos como de participação nas determinações sociais, os assinantes de ações
preferenciais podem contar com prerrogativas adicionais às mencionadas ou
substituir benefícios de participação por direitos de natureza econômica etc.664. É
claro, pois, que a preferência à que se alude é um termo de comparação entre duas
classes de títulos dotados de direitos de diferente natureza. Uma das mais freqüentes
distinções é formula com respeito ao pagamento escalonado da quota social de
liquidação. O direito relativo, denominado pela doutrina como a preferência na
liquidação (liquidation preference), só pode ser exigido uma vez satisfeito
integralmente o passivo externo. Segundo COX, “o efeito principal da preferência
na liquidação consiste em que se reduz a possibilidade de que o acionista ordinário
não receba sua quota social de liquidação. Na verdade, isso é possível porquanto o
pagamento dessa quota aos acionistas ordinários se encontra subordinado a que os
preferenciais a recebam. Partindo da premissa que estes últimos só terão direito a

661 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 66. Cfr. ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das
Sociedades... op. cit., pp. 203 e ss.
662 Ibidem. O autor também ilustra a respeito de outras diferenças existentes entre as “classes” e as
“séries” de ações. Entre outras distinções é relevante aquela em virtude da qual se requer que
todas as classes de ações estejam determinadas nos estatutos (by laws), enquanto tal requisito
não existe em relação com as séries de ações (Ibidem).
663 A Lei sobre sociedades por ações do Brasil, seguindo o modelo da classificação de ações,
também contém uma regulação ampla sobre as ações ordinárias e preferenciais (Art. 15 e SS.).
664 Cfr. ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades... op. cit., pp. 203-204. Não sobra
rememorar que com a reforma introduzida em 2001 a lei sobre sociedades por ações do
Brasil, modificou-se o artigo 17, relativo às ações preferenciais, consagrando novos direitos
especiais, segundo a tendência ao fortalecimento das prerrogativas outorgadas através deste
particular tipo de ações; ao respeito, afirma Marcelo Fortes Barbosa que “os direitos dos
preferencialistas foram dissecados pela Lei 6.404, expressos de maneira enfática, com o fim
de evitar interpretações diversificadas, num rol fechado, e, no que respeita às companhias
abertas, ampliados pela Lei 13.303, de modo a garantir maior segurança quanto à remune-
ração do capital integralizado na sociedade (Sociedade anônima atual. São Paulo: Atlas,
2004. p. 49).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 277

receber sua quota social de liquidação quando se tiver satisfeito o passivo externo
da sociedade”665.
Por outro lado, também é possível que uma companhia emita as deno-
minadas ações convertíveis (convertível shares). Segundo a definição mais acei-
ta, estes títulos são “ações preferenciais que podem ser trocadas, a opção de seu
subscritor, por ações ordinárias ou por qualquer outra classe de título, segun-
do o que estiver disposto nos documentos de emissão correspondentes”666. A
Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) permite a emissão desta
classe de títulos, desde que esta possibilidade se estabeleça no ata de consti-
tuição da companhia667.
Conquanto o princípio geral consiste em atribuir um voto por cada ação
(one vote per share), é viável criar classes de ações preferenciais que lhe confiram
ao seu titular o direito de emitir mais de um voto por ações detida nas reuni-
ões da assembléia de acionistas668. Esta prerrogativa pode resultar útil para
adquirir e conservar o controle respeito de uma determinada sociedade. Du-
rante a década de oitenta, várias sociedades de capital abertas sujeitas ao con-
trole de grupos familiares se valeram destas classes de ações para evitar potenciais
aquisições hostis por parte de outras companhias. “Tais classes de ações confe-
riam direitos de mais de um voto a certos grupos de acionistas unidos por
vínculos de parentesco (‘super voting rights’). Esta circunstância contribuía
para reduzir o risco de uma aquisição de controle ofertada de maneira hostil
por parte de investidores prontos a lançar ofertas públicas de aquisição. Ade-
mais, estas ações perdiam seu caráter preferencial de modo automático, em
caso de ser alienadas ou transferidas em favor de terceiros alheios à família que
tinha o controle”669.
Igualmente a como ocorre em outros sistemas jurídicos, o Direito
Societário norte-americano permite que se pactue um direito preferencial nas
novas colocações de ações que a sociedade pretenda emitir (preemptive right).
Este direito permite que aqueles que efetuaram os aportes iniciais de capital,

665 COX, op. cit., p. 278.


666 Black’s Law Dictionary, op. cit., p. 333.
667 Cfr. Seção 6.01 (c)(2).
668 Na legislação brasileira contemplou-se também a possibilidade de que as ações preferenciais
conferissem algumas vantagens políticas; ao respeito, Cfr. CARVALHOSA, Modesto. Comentá-
rios à Lei de Sociedades Anônimas... op. cit., Vol. I, pp. 238-242.
669 HAMILTON, op. cit., p. 133. Entre as muitas companhias que adotaram esta classe de medidas
se destacam os editores dos jornais The New York Times e Wall Street Journal (Ibidem).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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278 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

se beneficiem, mediante nova aporte de recurso, de novos incrementos de capital


que a companhia se proponha a efetuar. Desta forma se tenta também evitar a
diluição da participação no capital na sociedade, a qual poderia ocorrer mediante
a subscrição de ações por parte de terceiros ou de outros acionistas. Quando
são estes últimos quem adquirem ações emitidas pela sociedade, a diluição
ocorre se estes subscrevem mais ações do que a quantia proporcional às suas
participações percentuais no capital. É por isso que o direito de preferência na
emissão de novas ações permite que, em condições de subscrição a pró-rata por
parte de todos os acionistas, mantenha-se a simetria percentual aludida.
Da mesma forma, é pertinente assinalar que a possibilidade de exercer
esta prerrogativa deve constar de modo expresso nos estatutos sociais (by laws).
A necessidade desta consagração expressa se põe de manifesto nas disposições
contidas na Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA). A Seção
6.30 (a) desta norma adverte que o direito de preferência será tido como não
estipulado, a não ser que se encontre previsto de maneira explícita no ata de
constituição da companhia. Conquanto este direito de assinatura preferencial
pode ser de grande utilidade para os acionistas de sociedades de capital fecha-
do, a realidade é que tal prerrogativa também pode converter-se num obstá-
culo para a dinâmica dos negócios das sociedades que possuem ações de sua
emissão cotadas nos mercados públicos de valores mobiliários. Estas, efetiva-
mente, podem ver reduzida sua capacidade de captar recursos adicionais, de-
vido às restrições procedimentais e substanciais que impõe o direito de
preferência. HAMILTON afirma que “o direito de preferência é de escassa
utilidade quando as ações se negociam nos mercados públicos, entre outras
razões porque as ações adicionais podem, em todo caso, ser adquiridas no
mercado secundário, se assim se deseja”670. Além disso, ainda naqueles casos
em que não se tiver pactuado o direito de preferência nos estatutos, a existên-
cia dos deveres fiduciários dos administradores permitiria concluir que a emissão
de ações cujo propósito seja o de diluir um ou vários acionistas poderia cons-
tituir uma violação destas regras de conduta671.
Uma última menção deve ser feita a respeito da possibilidade de a
companhia adquirir suas próprias ações, mediante a figura da “recompra”

670 Ibidem, pp. 149-150.


671 Cfr. Comentários à Seção 6.30 (a) da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 279

(repurchase)672. Sob as disposições contidas na Nova Lei Tipo de Sociedades


de Capital (RMBCA), esta operação se assimila a uma repartição de dividendos.
Na verdade, segundo afirma MANNING, “em conformidade com a Seção
1.40 (6) da Nova Lei Tipo, o pagamento efetuado por uma companhia para
a recompra de ações se considera como uma distribuição de resultados”673.
Daí que esta operação deva sujeitar-se às mesmas regras normativas que
permitem determinar a viabilidade da partilha de dividendos por parte da
sociedade674. Os títulos que sejam readquiridos pela companhia entram na
categoria denominada de ações em reserva (unissued shares)675. Além disso,
deve-se assinalar que a recompra de ações foi utilizada como mecanismo para
evitar tomadas hostis de controle nas sociedades de capital abertas. A operação
pode ter por efeito a redução do número de ações de uma companhia, que se
negociam no mercado público de valores mobiliários. Esta circunstância
ocasiona um incremento no valor de cotação das ações da sociedade, o que, por
sua vez, aumenta o preço que deverá ser pago para tomar o controle da
companhia. Na palavras de BAINBRIDGE, “é usual que na prática societária
se utilize a recompra de ações para frustrar tomadas hostis de controle,
porquanto o incremento no valor das ações gerado por esta operação, faz mais
onerosa a aquisição de ações da companhia no mercado de valores”676.

B. FINANCIAMENTO POR MEIO DE TÍTULOS DE DÍVIDA


Outro dos mecanismos disponíveis para o financiamento da companhia de
capital consiste na emissão de títulos de dívida. Sua colocação entre o público
significa que a sociedade adquire a obrigação de pagar uma soma de dinheiro

672 É importante destacar que muitas legislações ocupam-se do tema da recompra de ações; é
normal que existam proibições relativas a estas operações, as quais são autorizadas em casos
concretos; Segundo a opinião do Modesto Carvalhosa, “o preceito proibitivo, com maior ou
menor intensidade, em razão das próprias exceções, é encontrado nas diversas legislações,
sempre com a finalidade precípua de tutela do capital social e de sua integridade, buscando,
como já se viu, não só defender os credores, mas também evitar a prática de desfalque e fraudes
de toda espécie contra o próprio patrimônio social, os acionistas e terceiros em geral”. (Comen-
tários à Lei de Sociedades Anônimas... op. cit. Vol I, pp. 310 e ss.). Cfr. ALMEIDA, Amador Paes
de. Manual das sociedades… op. cit., p. 213.
673 MANNING et al., op. cit. p. 190.
674 Os critérios para determinar a viabilidade de repartir dividendos se encontram contidos na
Seção 6.40 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital.
675 Antes da promulgação da Nova Lei Tipo, as ações readquiridas eram conhecidas como ações
de tesouraria (treasury shares). Esta denominação, devido a sua aparente inutilidade, não foi
acolhida pela Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital
676 BAINBRIDGE, Corporation Law..., cit., p. 692.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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280 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

determinada, junto com os juros pactuados em favor de seu detentor677. O deno-


minado período de maturação dos títulos de dívida, isto é, o termo previsto para
que as obrigações correspondentes se tornem exigíveis, pode ser de longo ou de
curto prazo. No último caso o propósito da emissão costuma ser o de captar
recursos líquidos para operações de dimensões moderadas. O fato de que a ma-
turação destes títulos se produza em prazos menores a um ano cria um evidente
obstáculo para sua negociação no mercado público de valores mobiliários. Pelo
contrário, aqueles títulos em que se instrumentam obrigações de longo prazo
costumam ser facilmente negociáveis. A transferência se facilita também naque-
les casos em que o pagamento do principal se encontra garantido por uma garan-
tia que recaia sobre bens da companhia ou de terceiros, a diferença de quando
não está garantido em absoluto678. Os títulos de dívida geralmente são resgatáveis
antecipadamente (redemption), de forma que a sociedade se reserva o direito de
pagar antecipadamente o custo do principal incorporado no instrumento. O
exercício desta prerrogativa por parte da sociedade emissora pode implicar o pa-
gamento de alguma soma adicional a favor do detentor, a título de compensação.
Conquanto o pagamento do custo do principal incorporado num título
se faz, normalmente, em dinheiro vivo, é viável também que a satisfação do
crédito se faça in natura. A criação de novas modalidades de títulos de dívida
a partir da década de oitenta, permitiu o auge de mecanismos de financiamento
que contemplam a possibilidade de pagamento em espécie do principal ou
dos juros. Assim, quando a sociedade emite os denominados títulos PIK
(payment in kind) fica facultada a efetuar pagamentos parciais ou totais,
mediante a entrega de notas promissórias (promissory notes) ou títulos adicionais.
Este mecanismo pode também implicar a ampliação do prazo da dívida original
ou, em certos casos, seu pagamento definitivo, por meio da entrega de ações.
Por outro lado, os chamados debentures de ajuste (reset bonds) permitem
que se module a taxa de juros pactuada, de acordo com as flutuações que
possam ocorrer no mercado. Assim, se depois de efetuada a emissão dos de-
bentures o preço de mercado do título cai abaixo do seu valor de emissão, os
mecanismos de ajuste que se tiverem pactuado sobre a taxa de juros permitem

677 Cfr. NASCIMENTO, Fernando e NERIS, Silvania. A captação de recursos das empresas de
capital aberto no Espírito Santo… op. cit., pp. 3-4.
678 O artigo 8º do Código de Comércio Uniforme (Uniform Comercial Code) enumera as diferentes
classes de bônus permitidos por esse estatuto.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 281

amenizar as perdas que os detentores teriam sofrido caso não existisse a cláu-
sula em questão.
Como se expressou, a estrutura de financiamento numa sociedade contempla
uma combinação entre recursos de crédito e de capital contribuído pelos sócios.
Ainda que se estime, em geral, que o denominado financiamento interno originado
na emissão de ações representa indubitáveis vantagens para a companhia (não
afeta seu endividamento externo, o passivo interno só é exigível durante a liquidação
da sociedade, os acionistas costumam ter interesse na boa condução dos assuntos
sociais etc.), o verdadeiro é que, sob certas circunstâncias, pode ser muito
conveniente a emissão de títulos de dívida. As vantagens desse mecanismo
costumam se relacionar com o fato de que na mentalidade de muitos investidores
convém mais ter a qualidade de credor externo, devido ao menor risco comparado
ao que se assumiria em caso de liquidação da sociedade. Do ponto de vista da
companhia também existem algumas vantagens relacionadas com a emissão de
títulos de dívida, tais como os debentures. Assim, por exemplo, em matéria
tributária, o pagamento periódico dos juros pactuados para a emissão é tratado
como um custo financeiro da sociedade, com as conseqüências de dedução fiscal
que podem ser realizadas perante a administração de impostos. Ao contrário, é
sabido que o pagamento de dividendos aos acionistas constitui rendimento sujeito
a tributação também pela sociedade, em razão do sistema de dupla tributação
existente nos Estados Unidos. Esta circunstância favoreceu a prática nada ortodoxa
de ocultar o pagamento de dividendos sob o roupagem de gastos derivados de
supostos créditos adquiridos pela sociedade. A jurisprudência reagiu contra estas
práticas com a fixação de critérios definidos para determinar se existe, na realidade,
um pagamento de dívidas por parte da companhia ou, pelo contrário, uma
verdadeira partilha de resultados ou dividendos679.

3. DIVIDENDOS
Os acionistas que efetuam aportes para a formação do capital social es-
peram o aumento de valor do seu investimento e represente para eles o paga-
mento de dividendos (dividends) sobre as resultados da companhia680. No

679 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 113.


680 O vocábulo dividendos (dividends) pode ser definido como “o pagamento feito por parte de
uma companhia a seus acionistas, utilizando-se de resultados presentes ou acumulados de
exercícios anteriores” (HAMILTON, op. cit., p. 453).

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282 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

entanto, devido ao fato que no sistema estadunidense a determinação de de-


clarar dividendos é da competência do Conselho de Administração, pode ocor-
rer que este órgão de administração prefira reter os resultados sociais em lugar
de decretar sua efetiva distribuição681. Contudo, ainda na hipótese de reten-
ção de restulados por parte da companhia, a retribuição dos titulares do capi-
tal social pode ser obtida mediante benefícios diferentes da partilha de
dinheiro682. É claro, por exemplo, que a prática consistente em reinvestir os
resultados costuma aumentar de modo correlato o valor das ações, devido ao
fortalecimento patrimonial da sociedade e a seu maior valor nos livros. Tam-
bém pode ocorrer que se efetuem distribuições em espécie, como quando a
sociedade decide que os dividendos sejam repartidos na forma de ações libera-
das da sociedade, ou em debentures emitidos por terceiros, ou na forma de
outros títulos emitidos pela sociedade683. Igualmente a como ocorre em ou-
tros sistemas jurídicos, uma vez que as utilidades foram distribuídas pelo
órgão social competente, passam a fazer parte do passivo externo da compa-
nhia, de maneira que os acionistas, na qualidade de credores da sociedade,
poderiam cobrar judicialmente o dividendo declarado.
Considera-se que existe uma diferença prática na forma pela qual se
costumam distribuir os dividendos nas sociedades de capital fechado e na-
quelas que negociam suas ações no mercado público de valores mobiliários.
As investigações empíricas mostram que enquanto nestas os dividendos são
pagos de maneira periódica e em quantidades relativamente homogêneas, na-
quelas a prática denota maiores flutuações em periodicidade e quantia. De
acordo com HAMILTON, “a estabilidade dos dividendos [nas sociedades
abertas] costuma ser a regra geral, devido ao fato que as variações constantes
neste aspecto podem ser interpretadas pelos investidores como um indício de

681 Não obstante, os membros do Conselho de Administração têm um dever fiduciário de cuidado
que se traduz na obrigação de tentar o incremento no valor do investimento dos acionistas
(CLARK, Robert Charles, op. cit., p. 594).
682 Assim como a lei, a jurisprudência brasileira reconheceu também esta possibilidade de manei-
ra expressa; ao respeito, Vid. Décima Terceira Câmara Cível. Acórdão do novembro 11 de 2010
(0120019-23.2006.8.19.0001).
683 “Os dividendos pagos em ações liberadas da sociedade não são considerados como verdadei-
ros gastos para a companhia, já que a operação não implica um efetivo desembolso por parte
da sociedade [...] Outra modalidade de pagamento de dividendos que também não implica um
gasto consiste em conceder aos acionistas opções de compra sobre ações adicionais da
companhia (‘Rights’ ou ‘Warrants’). Estas opções de compra podem ser exercidas pelo acionis-
ta ou vendidas a um melhor concorrente; seu valor no mercado flutua de acordo com o preço
das ações que representam” (HAMILTON, op. cit., p. 390).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


282 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 283

dificuldades financeiras. Daí que muitas companhias os mantenham estáveis


ainda naqueles casos em que os resultados são insuficientes para tanto, na
esperança de melhorar o rendimento econômico da companhia no futuro pró-
ximo”684. Por outro lado, nas sociedades fechadas sujeitas, em geral, ao regime
de dupla tributação, os próprios acionistas podem ser mais propensos a ad-
quirir salários ou a obter créditos da sociedade.
Ora bem, a reticência de uma sociedade de capital aberto a repartir
dividendos, devido às políticas traçadas por seu Conselho de Administração,
costuma forçar os acionistas que requerem liquidez a alienar total ou parcialmente
suas participações no capital. A esta alternativa contribui de modo muito
significativo a existência de um mercado ávido de operações de mercado (ready
market). Trata-se de uma alternativa cuja disponibilidade se circunscreve a
sociedades inscritas em bolsa. Na sociedade fechada é evidente que só os demais
acionistas teriam, normalmente, interesse em adquirir as participações. Esta
característica expõe a relativa carência de liquidez das ações de sociedades fechadas
e a necessidade de tentar proteções adicionais para seus acionistas minoritários.
De acordo com CLARK, o aspecto ilustrado é crucial do ponto de vista jurídico,
devido ao fato que “a maioria de litígios relacionados com a responsabilidade de
membros de Conselho de Administração que se negaram injustificadamente ao
pagamento de dividendos (ou, com menor freqüência, relativos ao pagamento
excessivo de dividendos) apresentam-se em sociedades fechadas”685.
Claro que se deve também assinalar que os processos encaminhados a
exigir a declaração e o pagamento de dividendos costumam enfrentar variados
obstáculos relacionados, em especial, com a amplíssima faculdade discricioná-
ria de que goza o Conselho de Administração para adotar determinações so-
bre o particular. Assim, é necessária, em geral, a procura de elementos que
tendam a comprovar a presença de má-fé ou fraude por parte dos conselhei-
ros. O célebre caso Dodge v. Ford Motor Co.686. (1919) é quiçá o mais signifi-
cativo antecedente judicial no qual os acionistas minoritários de uma sociedade
de capital fechado tiveram sucesso em exigir judicialmente o pagamento de
dividendos. A sentença trata de uma situação ocorrida no começo do século
XX na célebre companhia automotora. Seu acionista majoritário, Henry Ford,

684 Ibidem, p. 385.


685 CLARK, Robert Charles, op. cit., p. 601.
686 170 N.W. 668 (Mich. 1919).

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284 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

era proprietário do 58,5% das ações. A companhia, cujo sucesso colossal era
reconhecido, tinha obtido e repartido enormes somas de dinheiro a título de
dividendos durante sucessivos períodos contábeis. Seus índices de solvência e
rentabilidade eram notórios e teriam permitido continuar sucessivamente com
a política de partilha de resultados. Não obstante, depois da negativa da com-
panhia a pagar dividendos aos irmãos Dodge, estes, na qualidade de acionistas
minoritários, interpuseram uma demanda judicial para impugnar a determi-
nação adotada pela sociedade – impulsionada por seu acionista majoritário –
no sentido de reter os resultados sociais. Ford baseou sua defesa no argumento
de que, no lugar de dilapidar a liquidez da companhia, era preferível realizar
um indispensável programa de expansão, que permitiria a construção de uma
segunda planta para a fábrica de automóveis. Assim, segundo Ford, a deter-
minação de repartir dividendos obrigaria à sociedade a aumentar os custos de
produção que se veriam traduzidos num maior preço dos veículos687. Ade-
mais, propunha oferecer certos benefícios trabalhistas aos empregados de sua
planta de produção. A intervenção de Henry Ford ante a corte que adotou a
determinação no caso estudado, é ilustrativa a respeito de seus supostos pro-
pósitos altruístas. Nas palavras do acionista majoritário, “minha intenção não é
outra que a de empregar o maior número de pessoas possível, de maneira a
compartilhar com eles os imensos benefícios que podem resultar de nosso
avançado sistema industrial, com o fim de que os trabalhadores possam pros-
perar e construir seus respectivos lares. A consecução deste fim acarreda a
necessidade de que a maior parte dos resultados sociais sejam conservados nos
confres da companhia”688.
A Suprema Corte do Estado de Michigan deu a razão aos demandantes.
Na sentença não desapercebido o fato de que a determinação do senhor Ford
pudesse ter-se motivado nas razões altruístas assinaladas. A Corte sustentou
que o plano de negócios que Henry Ford tinha formulado se endereçava a que
a gestão social da companhia fosse desempenhada sob uma orientação filantró-
pica (semi-eleemosynary). Segundo a Corte, a aludida orientação era contrária à
natureza capitalista da sociedade comercial. Nas palavras da Corte, “o dever
altruísta que Ford afirma ter contraído frente à comunidade norte-americana

687 É reconhecida a importância da Ford Motor Company na reabilitação econômica e industrial


dos Estados Unidos acontecida no início do século passado. Isso se deveu a sua política de
produção de automóveis a preços acessíveis ao cidadão médio.
688 O’KELLEY e THOMPSON, op. cit., p. 342.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 285

não pode antepor-se a suas obrigações legais ante os acionistas minoritários da


companhia. Na verdade, a existência de uma sociedade de capital se justifica na
medida em que seus acionistas recebam algum proveito econômico, derivado da
gestão social. O exercício das funções dos diretores deve encaminhar para a
consecução deste fim. A arbitrariedade com que contam estes administradores
no desenvolvimento de sua gestão não pode ser utilizada para desvirtuar a natu-
reza da sociedade de capital; também não os faculta que se abstenham de repar-
tir resultados, sob pretexto de aplicá-las a outros fins”689. As considerações expostas
permitem concluir que, devido ao fato que as sociedades comerciais se organi-
zam juridicamente para o benefício de seus acionistas, seus administradores
devem orientar suas atuações para esse propósito principal690.
Por outro lado, a Corte enunciou neste caso os critérios que devem ser
levados em conta para estabelecer quando uma determinação relacionada com a
negativa de repartir dividendos pode ser judicialmente censurada. Segundo
CLARK, “ainda que a distribuição dos resultados sociais é assunto que pertence
em princípio aos órgãos sociais, os juízes estão facultados para intervir neste assunto
naqueles casos em que a atuação dos administradores constitua um abuso de suas
faculdades discricionárias que possa traduzir-se em fraude ou em desconhecimento
da boa fé a que se encontram obrigados frente aos acionistas”691.
Outro aspecto não menos importante da partilha de resultados tem a ver
com a necessária proteção de que gozam os credores sociais a respeito da integridade
do patrimônio social que é, segundo a frase conhecida, garantia comum para a
satisfação do passivo externo. Os credores têm interesse em que tal garantia não
se veja menosprezada mediante o pagamento de dividendos excessivos aos
acionistas. É por isso que na Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA)
prevêem-se os critérios que permitem determinar a viabilidade da partilha de
dividendos por parte da sociedade. Uma primeira regra normativa alude à

689 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 1374


690 É imaginável que dentro das razões que motivaram a Ford a não pagar dividendos se encontrasse
também o propósito inconfessável de impedir que os irmãos Dodge atingissem o capital suficiente
para iniciar sua própria fábrica automotora (como efetivamente sucedeu), pois esta perspectiva
significaria no futuro a ameaça de uma agressiva concorrência para a sociedade. Segundo
CLARK, “é sabido que os irmãos Dodge tinham a intenção de trabalhar separadamente na
indústria automotora. Talvez o objetivo de Ford era o de evitar que se empregassem os resultados
gerados por sua companhia para financiar os gastos de uma sociedade que eventualmente
competiria com Ford Motor Co. Sob esta hipótese, as atuações de Ford se teriam ajustado à
natureza econômica da sociedade de capital” (CLARK, Robert Charles, op. cit., p. 604).
691 Ibidem. Cfr. também OLIVEIRA, Luiz Ernesto Aceturi de. A retenção de dividendos... op. cit.,
pp. 304 e ss.

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286 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

impossibilidade de repartir dividendos naqueles casos em que, depois de efetuada


a distribuição, a companhia careça da solvência e liquidez necessárias para
satisfazer as obrigações em que incorra em razão do giro ordinário de seus
negócios692. Esta regra legal, conhecida como a análise de insolvência (equity
insolvency teste), reflete a principal preocupação dos credores, ou seja, que uma
vez realizado o pagamento de dividendos a sociedade conte com suficientes
recursos para satisfazer seu passivo externo. Também não terá lugar o pagamento
de dividendos se “a soma do valor dos ativos sociais é menor do que a soma de
todas suas dívidas, incluídas as somas requeridas para satisfazer os direitos
preferenciais à quota social de liquidação com que contem certos acionistas”693.
Este critério, conhecido como a análise dos estados financeiros (balance sheet
test), implica uma série de complexos exercícios contábeis que permitem
determinar com relativa precisão se a companhia se encontra em condições
financeiras para efetuar uma distribuição de dividendos entre seus acionistas.
As normas mencionadas podem ser insuficientes para evitar o pagamen-
to de dividendos não justificados, graças a artifícios contábeis que impeçam o
reconhecimento da situação real das companhias. Por isso, não é raro que nas
práticas contemporâneas os grandes credores estabeleçam limites contratuais
(covenants) que restrinjam a capacidade das sociedades para realizar o paga-
mento de dividendos. No caso das sociedades fechadas, esta classe de restri-
ções pode ser estendida inclusive a salários ou bônus, cujo pagamento possa
assimilar-se a uma partilha de dividendos. Além disso, os membros de Conse-
lhos de Administração são responsáveis de maneira direta com a companhia
pelo montante de dividendos pagos em desacordo aos limites legais ou con-
tratuais antes assinalados. Esta responsabilidade se estende aos acionistas que
aceitem dividendos sabendo da ilegalidade dos mesmos. Se tal conduta se
estabelece judicialmente, os responsáveis estarão na obrigação de restituir as
somas recebidas em excesso do que legalmente corresponda694.

4. OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS DA SOCIEDADE


O sistema tributário dos Estados Unidos é regido por diferentes conjuntos
normativos, devido, em boa parte, à organização federativa que impera neste

692 Seção 6.40 (c)(1) da Nova Lei Modelo de Sociedades de Capital (RMBCA).
693 Seção 6.40 (a)(2) Ibidem.
694 Seção 8.33 Ibidem.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 287

país695. A adoção desse sistema de governo resulta no estabelecimento de uma


multiplicidade de encargos, que se impõem em diferentes esferas do território
norte-americano. Em primeiro lugar, no regime federal, cujos efeitos são exten-
sivos a toda a nação, regula-se o imposto sobre a renda (income tax), aplicável
tanto às pessoas jurídicas como às pessoas naturais. Neste mesmo regime jurídi-
co se legisla em matéria de encargos relacionados ao sistema de segurança social
(payroll taxes), os impostos a produtos determinados (excise taxes) e os impostos
às doações gratuitas (estate and gift taxes), bem como outros tributos de menor
importância696. Também podem existir tributos pertencentes a outras circuns-
crições territoriais, tais como os criados segundo os interesses particulares de
cada Estado ou município697.
As normas tributárias aludidas constituem um fator determinante na
hora de eleger entre os diferentes tipos societários disponíveis na prática co-
mercial norte-americana698. O maior ou menor grau de imposição ao qual se
verá sujeita a companhia dependerá, principalmente, do tipo societário esco-
lhido pelos futuros sócios699. Neste sentido, “a principal diferença tributária
entre as sociedades de pessoas (‘partnerships’) e as de capital (‘corporations’) é

695 É fundamental advertir a respeito da complexidade e permanente variação das normas fiscais
estadunidenses. Segundo o tem dito FOLSOM, “tanto a legislação tributária norte-americana,
como a copiosa variedade de impostos susceptíveis de aplicar-se aos particulares, são de uma
grande complexidade técnica, que aumenta exponencialmente todos os anos” (op. cit., p. 247).
Similar situação ocorre no Brasil onde, devido a sua particular organização territorial, existe um
complexo e nutrido grupo de disposições normativas em matéria tributária, tanto nacionais,
como regionais..
696 Cfr. BOBINAM, William, op. cit., p. 608.
697 SLATER, Jeffrey. College Acounting. A Practical Approach. Third Edition, Englewood Cliffs, NJ,
Prentice Hall, 1988, p. 619.
698 Pelo contrário, em alguns países latino-americanos, tais como Colômbia, a tributação de
sociedades se realiza conforme ao princípio de neutralidade tributária. Assim, a partir da
expedição da Lei 75 de 1986, todas as companhias se sujeitam à mesma tarifa impositiva, sem
importar o tipo societário eleito. Nesse mesmo país a tributação é de grau único, isto é que,
uma vez tributados os dividendos na renda da sociedade, os sócios procedem a declarar o
recebido como uma renda isenta. Também na República Argentina a tributação de companhias
se cumpre num único grau, isto é que o imposto sobre a renda se aplica aos resultados gerados
pela pessoa jurídica. Sob este sistema, a companhia deverá pagar uma taxa progressiva de até
o 35% de seus ganhos, ainda que se exima aos sócios ou acionistas do pagamento de tributos
uma vez que os dividendos foram repartidos. (Cfr. International Promotor Association. Trends
in Company/Shareholder Taxation: Single or Double Taxation? 2003 Sidney Congress, Rotterdam,
Kluwer Law International, 2003, p. 100).
É interessante também ressaltar que no Brasil, os valores distribuídos aos acionistas a título de
dividendos também são isentos da tributação pelo imposto de renda da pessoa física segundo
o disposto pelo artigo 39 do Decreto nº 3.000 de 1999.
699 “Dentro da idiossincrasia do homem de negócios norte-americano, os aspectos fiscais relativos
à exigência de um tipo social representam a consideração mais relevante na determinação que
se adote” (Ibidem, p. 248).

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288 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

que, enquanto as primeiras não são gravadas como sujeitos de Direito inde-
pendentes dos acionistas, nas sociedades de capital sim é procedente a impo-
sição de tributos diretos”700. Os custos relacionados com o denominado regime
de dupla tributação (double taxation) podem influir na determinação de um
tipo social. Este regime, aplicável de forma exclusiva às sociedades de capital,
tem por efeito a imposição de impostos simultâneos em dois níveis. Em pri-
meiro lugar, a personalidade jurídica da companhia de capital dá lugar a que
os rendimentos sociais sejam tributados pelo governo federal. Nesta medida, a
companhia se vê submetida a um imposto sobre os resultados de cada exercí-
cio, em conformidade com os estados financeiros correspondentes. Posterior-
mente, no momento em que os sócios recebem o pagamento de seus
dividendos, são devidos impostos por cada um deles701.
O regulamento geral sobre impostos federais se encontra consagrado no
Código Interno de Rendas (Internal Revenue Code), cujo texto sofreu nume-
rosas modificações desde sua promulgação em 1916, até a versão atual pro-
mulgada pelo Congresso em 1986702. A Lei de Reforma ao Código Interno
de Rendas, promulgada em 1986, estabeleceu tarifas progressivas para os anos
fiscais de 1987 e seguintes, cuja quantia varia de acordo com o montante de
rendimentos da sociedade ou do indivíduo. No caso das sociedades de capital,
adquire relevância o conhecimento das tarifas de imposto aplicáveis tanto às
companhias como aos particulares. Isso se deve ao fato que, segundo acaba de
se afirmar, os acionistas se submetem a um regime de dupla tributação. Dife-
rentemente das sociedades de pessoas, os sócios nestas companhias de capital
se vêem afetados tanto pelas tarifas aplicáveis às pessoas naturais como pelas
previstas para as sociedades703. Os seguintes quadros ilustram o tema704 (p. seg.).

700 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 95.


701 Se trata do regime geral de tributação das sociedades capitalistas, conhecido comummente
como C Corporation Taxation, por corresponder ao sub-capítulo “C” do Código Interno de
Rendas (Internal Revenue Code).
702 Este Código, cujo texto é revisado e modificado anualmente, já supera as duas mil páginas de
extensão (Cfr. BURNHAM, op. cit., p. 609).
703 Um exemplo permite apreciar com clareza a incidência da dupla tributação nas companhias de
capital. A sociedade Alpha Inc. gerou durante o ano 2004 rendimentos tributáveis de 200.000
dólares. Ao aplicar a esta soma a tarifa correspondente do imposto de renda federal (34%), tem-
se que a sociedade está obrigada a pagar 68.000 dólares. Uma vez descontada esta soma, os
resultados para partilhar entre os acionistas da companhia terão sido reduzidos a 132.000
dólares. Ora bem, Alpha Inc. conta com um só sócio, cujos rendimentos tributáveis derivados
de outras atividades, sem que tenha lugar a efetuar deduções, são de 180.000 dólares. Uma
vez repartidas os resultados mencionados, as obrigações tributárias do acionista de acordo
com o conceito de renda federal se verão aumentadas em 47.520 dólares ($132.000 x 36%,

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 289

Tarifas de imposto federal pagos pelas sociedades de capital

Tarifas de imposto federal pagos pelas pessoas naturais

Como se pode observar, as tarifas do imposto sobre a renda aplicáveis às


pessoas naturais e às sociedades se fundamentam numa ordem progressiva, de
forma que quanto maiores forem os rendimentos, maior será também a per-
centagem de tributação aplicável705. Sob o antigo Código Interno de Rendas

que é a tarifa percentual aplicável ao acionista, segundo sua categoria de rendimentos). Nesta
medida, dos 200.000 dólares gerados por Alpha Inc., seu único acionista receberá somente
$84.750 ($200.000 – $68.000 – $47.250). Deve ressaltar-se que a tarifa real aplicável às
utilidades geradas pela sociedade foi do 57.6%. Sob esta mesma hipótese, os rendimentos
derivados da atividade de uma sociedade de pessoas teriam sido gravados com uma tarifa de
tão só o 36% (percentagem aplicável aos rendimentos do sócio).
704 59 Tomado do Código Interno de Rendas dos Estados Unidos (26 Ou.S.C.A. Nums. 1, 901 et seq.).
705 Note-se o escasso caráter progressivo do imposto, que se percebe uma vez que se supera a
soma de 75.000 dólares.

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(promulgado em 1954), as alíquotas de cobrança progressivas para as socieda-


des de capital eram mais baixas do que as que eram aplicadas às pessoas natu-
rais. As características das sociedades de capital (responsabilidade limitada,
maiores possibilidades de captar dinheiro do público por intermédio do mer-
cado etc.), somadas a tarifas de imposto de renda reduzidas em comparação
com as aplicáveis às pessoas naturais, convertiam às sociedades de capital num
tipo societário de grande atratividade para pequenos e grandes investidores. A
partir da promulgação do Código de 1986, as tarifas cobradas de pessoas
naturais e jurídicas ficaram mais homogêneas do que no regime precedente.
Daí que, na atualidade, é tributariamente custoso operar sob a espécie societá-
ria de capitais (corporation). É por isso que não é raro que certos investidores
prefiram atuar sob o tipo das sociedades de pessoas, apenas em razão das
vantagens fiscais já assinaladas706. Claro que esta não é a regra geral, nem se
pode por esse único aspecto negar a enorme relevância das companhias de
capital no sistema econômico estadunidense.
Apesar de que a regra geral em matéria de sociedades de capital é a já
explicada dupla tributação, é possível que uma sociedade de capitais de pe-
quenas dimensões se acolha no disposto no sub-capítulo S do Código Interno
de Rendas. As denominadas sociedades S (S corporations) submetem-se ao
regime de tributação próprio das sociedades de pessoas, de forma que apenas
se cobra imposto sobre a renda dos acionistas na medida que os dividendos
fazem parte de seus rendimentos anuais. Os requisitos para que uma compa-
nhia possa submeter-se ao referido regime de tributação são os seguintes:
a) Deve ser uma sociedade de nacionalidade norte-americana;
b) Como regra geral, não pode fazer parte de um grupo de sociedades;
c) Não deve ter mais de 75 acionistas;
d) Cada acionista deve ser uma pessoa natural ou uma sucessão ilí-
quida ou certa modalidade de fidúcia. Nenhum acionista pode
ser cidadão estrangeiro sem residência nos Estados Unidos;
e) Em geral, somente pode ter uma classe de ações em circulação707.

706 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 95.


707 Cfr. a HAMILTON, op. cit., p. 21. Antes de 1996 o número de acionistas não podia exceder 35.
Além disso, proibia-se por completo a participação de uma sociedade S dentro de um grupo de
sociedades. A reforma tributária desse ano flexibilizou o requisito numérico e permitiu que, sob

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Durante muito tempo se considerou que ainda as pessoas jurídicas


constituídas sob espécies societárias diferentes às sociedades de capital (non
corporate business organizations) podiam ser tributadas como se fossem uma
companhia capitalista. No importante caso Morrisey v. Comissioner, decidido
no ano de 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, advertiu-se que era
viável tal assimilação para efeitos fiscais. No antecedente indicado se opinou,
efetivamente, que, “embora estas pessoas jurídicas sejam em essência muito
diferentes às companhias de capital, existem ocasiões nas quais, por virtude
de determinadas modificações estatutárias, terminam assemelhando-se ao tipo
social capitalista. Portanto, estas pessoas jurídicas, apesar de não serem
sociedades de capital, podem ser gravadas como se o fossem, de maneira que
não ficarão isentas do regime da dupla tributação”708. A partir da aludida
decisão, a administração federal de impostos (Internal Revenue Service ou, por
suas siglas em inglês, IRS) identificou quatro características básicas das
sociedades de capital, de modo a distinguir com maior facilidade entre esta e
outras figuras societárias. São elas, segundo se expressou reiteradamente, a
duração indefinida, a administração centralizada, a limitação da respon-
sabilidade e a livre negociação das ações. Se em qualquer companhia ou pessoa
jurídica, independentemente de sua espécie societária, conseguia-se verificar
mais de duas das características assinaladas, tal entidade era considerada pela
administração federal de impostos como uma sociedade de capital. Desta forma
ficava sujeita ao regime da dupla tributação.
Só em 1996 se flexibilizou em alguma medida o sistema acolhido ini-
cialmente pela administração fiscal dos Estados Unidos, ao permitir que as
sociedades diferentes às capitalistas se enquadrarem de maneira voluntária ao
regime tributário próprio destas ou optar pelo sistema de tributação singela
próprio das companhias de pessoas (check-the-box regulations)709. O surgimento
nos últimos anos de novas formas societárias, tais como a sociedade de
responsabilidade limitada (limited liability company), a sociedade de pessoas
de responsabilidade limitada (limited liability partnership) e a sociedade em
comandita com responsabilidade limitada do gestor (limited liability limited

certas circunstâncias, uma sociedade S possa constituir controladas. Igualmente, abriu-se a


possibilidade de constituir sociedades S sem ânimo de lucro. (Cfr. BURNHAM, op. cit., p. 562).
708 CARY e EISENBERG, op. cit., p. 96.
709 Cfr. “Treasure Regulation” 301.7701-01 e ss.

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292 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

partnership), cuja tributação corresponde, em geral, a das sociedades de pessoas,


teve por efeito uma redução na utilização das sociedades S, cuja obsolescência
se demonstra no fato de ter sido deslocadas pelos tipos societários antes
mencionados. Assim, algumas sociedades subtipo C de pequenas dimensões,
em que os acionistas são por sua vez empregados da companhia, podem obter
vantagens tributárias similares às das sociedades subtipo S, sem necessidade
de que se produza a configuração deste último subtipo. Estas companhias
podem distribuir os benefícios econômicos que a sociedade gera por meio do
pagamento de salários razoáveis ou em virtude de empréstimos a seus acionistas.
Desta forma, os sócios, além de titulares do capital social, atuam também
como empregados ou devedores da sociedade, respectivamente. Estes
pagamentos, como é óbvio, não se consideram resultados. Eles, pelo contrário,
representam deduções para a companhia. Se por virtude deste mecanismo se
suprimem os resultados gerados pela companhia, só se tributará as somas
entregadas aos acionistas a título de salários ou de empréstimos. Este
mecanismo, denominado redução de dividendos (zeroing out the earnings),
permite evitar o regime da dupla tributação. Contudo, “em caso que por meio
destas operações se infringissem os limites de racionalidade estabelecidos pelo
Código Interno de Rendas, tanto a sociedade como seus acionistas poderiam
ser sancionados”710.
Por último, é relevante analisar a maneira com que se tributam as socieda-
des que, apesar de estarem domiciliadas nos Estados Unidos, desempenham seu
objeto social no exterior. Pela regra geral, os impostos arrecadados pela adminis-
tração tributária desse país são aplicáveis às pessoas naturais ou jurídicas que
tiverem declarado resultados gerados dentro ou fora do país. No entanto, as
somas originadas no exterior só são tributadas no momento de ser repatriadas
(repatriated) nos Estados Unidos. Esta circunstância pode implicar a existência
de um regime de dupla tributação internacional. Com o fim de evitar os efeitos
adversos desta excessiva imposição, nos Estados Unidos se permite que os resul-
tados originados no exterior se tributem unicamente no país em que se geraram
(tax credits). Esta possibilidade se sujeita à existência de um tratado bilateral, no
qual se consinta a cobrança de impostos por parte de um só país. Não sobra
dizer que a possibilidade de um tratado desta classe depende em parte da credi-

710 BURNHAM, op. cit., p. 562.

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bilidade de que goze o sistema tributário da outra nação, assim, estes acordos
bilaterais ou multilaterais são celebrados com escassa freqüência. Sob certas cir-
cunstâncias, e a falta de tais tratados, a companhia pode ter a opção de declarar
a totalidade das utilidades percebidas no exterior como deduções, uma vez que
tiverem pago os impostos do país de origem711.

711 Para mais informação sobre o particular, pode-se verificar as disposições do Código Interno de
Rendas (26 Ou.S.C.A. Nums. 901 e ss.).

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Capítulo IX
FUSÕES E AQUISIÇÕES

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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A estrutura econômica norte-americana fez dos Estados Unidos territó-
rio propício para as denominadas febres das fusões. Estas se apresentam como
ondas de operações de concentração (merger waves) que ocorrem com certa
periodicidade712. No começo do século XXI, a tendência à concentração con-
tinua, devido ao interesse de numerosas companhias que pretendem unir es-
forços para confrontar com maior vigor seus competidores713. Ainda que, em
geral, as operações de concentração surgem de consensos entre as companhias

712 “A tendência ao gigantismo se explica então pela vontade de poder, o desejo de construir um
império, o complexo de Napoleão aplicado ao mundo dos negócios. (...) mas o exercício do
poder é o fator determinante do crescimento da empresa. Quanto mais importante seja a
empresa, maior será seu poder para fixar seus preços e suas tarifas, mas também seus custos e
mais ampla sua influência sobre o Estado, sobre a coletividade e sobre o consumidor, mais
vasto, em fim, o controle de seus próprios rendimentos. Financiando com os seus próprios
recursos as suas necessidades de investimento, seus rendimentos lhe garantirão uma indepen-
dência que nunca poderia aspirar a pequena empresa. Quanto maior seja a empresa, mais
poderá reduzir seus riscos estabelecendo com toda segurança seus programas de produção e
de investimentos. (GALBRAITH, John Kenneth. Introdução..., cit., pp. 82-83).
713 Apesar de que as fusões e aquisições foram uma constante no âmbito societário norte-america-
no, costumam distinguir-se cinco períodos caracterizados por uma massa de operações de
integração. As mencionadas ondas tiveram lugar entre 1897 e 1904; 1916 e 1929; 1965 e
1969; 1984 e 1989 e finais dos 90 e 2001. (Cfr. GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions
and Corporate Restructurings. John Wiley & Sons, Inc., 1996, pp. 18-54). Cada uma das
mencionadas ondas deu lugar à adoção de importantes medidas legislativas, orientadas a
regulamentar tais operações – em particular as denominadas tomadas hostis de controle – e a
neutralizar os possíveis efeitos adversos que elas possam ter na comunidade e em relação com
o mercado. Efetivamente, a Lei Anti-monopolio, conhecida como Sherman Act, surgiu como
conseqüência das numerosas fusões e aquisições que tiveram lugar no final do século XIX. Um
período similar de atividades prévio à Primeira Guerra Mundial, levou ao Presidente Theodore
Roosevelt a promover em 1914 a promulgação da denominada Lei Clayton (Clayton Act) para
combater os monopólios. (Cfr. HAMILTON et al, op. cit., p. 344). Como conseqüência de uma
acertada regulação, a onda de fusões e aquisições da década de noventa se caracterizou pelo
reduzido número de integrações hostis. (Cfr. BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 2). A tendência
a realizar concentrações consensuais não é um fenômeno privativo do panorama societário
estadunidense. Em Europa continental, as integrações surgem “usualmente como conseqüên-
cia de uma transferência de controle previamente lembrada, de maneira que a tomadas hostis
de controle são excepcionais” (DORRESTEIJN et al., op. cit., p. 178).
O anterior é também reconhecido por autores latino-americanos que, como José Carlos Miranda
e Luciano Martins, explicam que “A década de 90 vem assistindo a um crescimento continu-
ado do movimento de fusões e aquisições de empresas, o que revela tendência crescente para
a concentração e centralização do capital. Embora tais processos de fusões e aquisições sejam
mais acentuados na economia doméstica dos Estados Unidos, são também significativos na
Europa e, não menos importante, se estendem também ao investimento direto no exterior,
criando um novo padrão. Com efeito, nos Estados Unidos e na União Européia (UE), as fusões
e aquisições têm desempenhado papel crucial na orientação dos investimentos diretos no
exterior. (…) Também no Brasil o movimento de fusões e aquisições acentuou-se nos anos 90.
Se tomarmos os dados disponíveis (e que são parciais) do valor das transações entre 1991 e
1999 (cerca de US$ 115 bilhões), os setores de telecomunicações, de energia elétrica e
financeiro aparecem como os mais destacados.” (Fusões e aquisições de empresas no Brasil, em
Economia e Sociedade. Campinas (14): 67-88, jun.2008, pp. 67 e 69).

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298 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

participantes (friendly takeovers), deve ter-se em mente que tais entendimen-


tos não estão presentes nas denominadas tomadas hostis de controle (hostile
takeovers)714. Nelas, o investidor faz uma oferta para obter o controle sobre
uma ou várias companhias, apesar da oposição de seus administradores ou
acionistas titulares de percentagens significativas715. Para conseguir este obje-
tivo, o interessado pode ir ao mercado de valores mobiliários ou ao contato
direto com os acionistas, como se verá mais adiante.
Existem diversas maneiras de realizar uma intrgração entre duas ou mais
companhias. De maneira muito geral, pode-se dizer que a concentração se con-
segue por meio de operações de fusão (merger), transferência da totalidade ou a
maioria dos ativos de uma sociedade para outra (sell of all or substantially all
assets), ou da aquisição de participações significativas no capital (acquisition). No
caso que os administradores de uma das companhias participantes se oponham
a que a integração se realize, poder-se-ia também tentar promover sua remoção
mediante as chamadas competições para obtenção de procurações de voto (proxy
contests). Qualquer desses métodos permitirá que várias sociedades se unam sob
um controle ou direção unitária.
Como resultado de uma fusão, os patrimônios e acionistas das compa-
nhias participantes se unem em uma única, a qual unifica a administração dos
negócios sociais. A transferência global de ativos, por sua vez, significa, a trans-
ferência universal do patrimônio de uma companhia para outra. Diferente-
mente de como ocorre na fusão, a sociedade vendedora mantém sua existência
como ente jurídico mesmo depois de ter alienado seus ativos. Também é pos-
sível concentrar duas ou mais sociedades pela aquisição, seja por intermédio
de uma operação realizada no mercado de valores mobiliários, seja por uma

714 No linguajar norte-americano, a companhia objeto de aquisição é denominada usualmente


companhia-alvo (target company) ou companhia adquirida, enquanto a entidade que tenta
seu controle se conhece em geral como companhia ofertante (bidder company) ou companhia
adquirente. (Cfr. HAMILTON et al., op. cit., p. 344).
715 É interessante ter em conta que em alguns países, como o Brasil, “tendo em vista a alta
concentração acionária que caracteriza o mercado, assim como o fato de que a OPA para
aquisição de controle só faz sentido econômico quando a companhia alvo tiver seu capital
pulverizado e o controle não for majoritário, a realização desse tipo de operação se mostra
deveras incipiente. De fato, encontraram-se referências a duas ofertas públicas de aquisição de
ações para aquisição de controle no Brasil: a que foi iniciada em 1971 pela Macrosul S.A. pelo
controle do Sulbanco e a recente tentativa de tomada do controle da Perdigão S.A. por sua
concorrente Sadia S.A., em julho de 2006 …” (MARTINS NETO, Carlos. Dispersão acionária,
tomada hostil de controle e poison pills: Breves reflexões. Bocater, Camargo, Costa e Silva.
BCCS [online]: <http://www.bocater.com.br/artigos/cmn_poison_pills.pdf)>.

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negociação direta com seus acionistas. Nas chamadas competições para obten-
ção de procurações de voto, o adquirente empreende uma campanha para
persuadir os acionistas a lhe outorgarem poderes de representação, com o pro-
pósito de conseguir uma substituição da administração que seja favorável aos
seus interesses. A doutrina norte-americana agrupa todos os mecanismos men-
cionados sob a denominação de fusões e aquisições (mergers and acquisitions ou,
de forma abreviada, M&A).
A modalidade ótima para estruturar a concentração entre diversas com-
panhias depende do contexto do negócio e das características específicas das
sociedades participantes. “A lei permite numerosas formas de integração, de
forma que é viável desenhá-la de múltiplas maneiras. Cada uma destas formas
tem suas próprias vantagens e desvantagens ou, em termos econômicos, seus
próprios custos de gestão. A tarefa de quem concebe a operação consiste em
identificar no contexto particular do negócio aquela estrutura jurídica que
implique os menores custos para a integração”716.
Os referidos mecanismos de concentração empresarial foram classifica-
dos pela literatura jurídica norte-americana segundo vários critérios717. Além
de ser uma sistematização acadêmica, as classificações têm inegáveis efeitos
práticos. As mais duas conhecidas dividem as técnicas mencionadas em inte-
grações previstas nas legislações estaduais (statutory) e não previstas nelas (non
statutory), bem como em operações voluntárias e hostis. A primeira categoria
faz alusão àqueles mecanismos consagrados expressamente nos códigos socie-
tários, tais como a fusão ou a venda de ativos718. Além de estarem regulados de
maneira explícita pelas leis estaduais, estas técnicas costumam caracteriza-
rem-se por requerer para sua validade a aprovação dos Conselhos de Admi-
nistração das companhias participantes. Daí que a utilização de tais mecanismos
seja difícil naqueles casos em que não se conte com a cooperação do Conse-

716 BAINBRIDGE, Corporation Law…, cit., p. 622. O autor acrescenta que “ao selecionar a estrutura
mais vantajosa para uma operação específica e assegurar-se de que a opção selecionada estará de
acordo com as normas legais e com os precedentes judiciais, o consultor jurídico pode reduzir
custos legais e garantir maiores ganhos às partes” (Ibidem). Disto se infere a relevância do trabalho
realizado pelo assessor jurídico, pois deverá prever todas as conseqüências que se derivem da
técnica eleita e tentar que os custos se reduzam. Deste ponto de vista, “a formação do assessor
jurídico nesta classe de operações deve se orientar a identificar a origem do valor numa operação
específica e determinar como este poderia ser incrementado no negócio projetado” (Ibidem). Cfr.
MIRANDA, José Carlos e MARTINS, Luciano, Fusões e aquisições… pp. 67 e ss.
717 Cfr. BAINBRIDGE, Ibidem, cit., pp. 622-623, e HAMILTON et al., op. cit., pp. 347-350.
718 BAINBRIDGE, Corporation Law…, cit., p. 622.

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lho719. As modalidades de concentração não previstas pelos códigos de socie-


dades dos Estados permitem superar a dificuldade aludida, ao evitar o con-
sentimento do conselho e consentir que o controle se obtenha diretamente
por meio da aquisição de participações significativas no capital. De acordo
com o que se acaba de assinalar, as formas de concentração que são dericadas
das legislações societárias estatais são a fusão propriamente dita e suas varian-
tes, bem como a transferência global de ativos. Por sua vez, não se originam
em normas estaduais as regulações relativas à aquisição de participações signi-
ficativas de capital em sociedades de capital abertas, nem as competições para
obtenção de procurações de voto, em qualquer das modalidades que serão
analisadas mais adiante.
A segunda classificação faz referência à atitude favorável ou desfavorável
dos Conselhos de Administração ou dos acionistas titulares de blocos signifi-
cativas de ações ante a possibilidade de aprovar a concentração. Quando esta
seja o resultado de uma decisão conjunta das companhias, se denominará vo-
luntária. Naqueles casos em que exista resistência a respeito da concentração
por parte dos diretores da companhia objetivo, de maneira que seja desejável
para a companhia ofertante evitar a participação daqueles, a concentração será
considerada como hostil.
Em matéria de motivações para levar adiante um processo de integração,
é sabido que existem numerosos fatores financeiros, jurídicos e administrati-
vos pelos quais uma sociedade tentaria participar de uma operação desta na-
tureza720. Com freqüência se encontram razões relativas à necessidade de

719 Ibidem. As razões pelas quais um Conselho de Administração estaria em desacordo com uma
tomada de controle são de variada índole. BAINBRIDGE sugere algumas das mais comuns: “Em
primeiro lugar, o Conselho poderia por obstáculos a uma venda, independentemente do preço
oferecido, com o único fim de preservar a posição e os rendimentos de seus membros. Em
segundo lugar, é viável que as aspirações do Conselho no referente ao preço sejam maiores em
relação a quanto quem faz a oferta está disposto a pagar. Por último, é possível que os membros
do Conselho aspirem em obter pagamentos pessoais em troca de outorgar consentimento à
operação” (Ibidem, p. 623).
720 “Segundo SCHERER e ROSS (1990), as F&As ocorrem por várias razões e, em qualquer proces-
so, vários motivos diferentes influenciam simultaneamente o comportamento das partes envol-
vidas. Para FIRTH (1980), a maioria desses motivos estão fundamentados nas seguintes teorias
da firma: a) Teoria Neoclássica da Maximização dos Lucros da Firma: as forças do mercado
competitivo motivam os gerentes a tomar decisões que maximizam o valor das firmas e a
riqueza dos acionistas. As firmas se engajarão em takeovers se estes resultarem no aumento da
riqueza dos acionistas adquirentes, advindo de aumentos na rentabilidade, seja pela criação
do poder de monopólio, seja pelas sinergias, ou, ainda, pela substituição de administradores
ineficientes nas firmas adquiridas. b) Teoria Maximização da Utilidade Gerencial: além de um
certo nível satisfatório de lucros, administradores tentarão maximizar sua utilidade (redução do

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expansão geográfica, a diversificação de atividades comerciais, a obtenção de


benefícios tributários, o incremento de participação num determinado mer-
cado, e os benefícios derivados das denominadas “sinergias”721.

2. REGULAÇÃO APLICÁVEL ÀS CONCENTRAÇÕES


O dinamismo próprio das operações de concentração societária exige um
meio normativo flexível, como o que oferecem as legislações estaduais norte-
americanas. É claro que a liberdade de estruturação é mais ampla quando se
trata de sociedades de capital fechado (closely held corporations). Efetivamente,
por não estarem envolvidos recursos provenientes da poupança privada, não se
faz necessária a presença de restritivas disposições federais para a execução de
tais operações. Esta notória liberdade contratual se apresenta, em definitivo,
como uma virtude ante os sistemas que seguem a tradição continental euro-
péia, distintivamente mais rígida nestes assuntos722.
Nesta, como em outras matérias do Direito norte-americano, os juízes
participam de maneira ativa na criação de regras jurídicas das quais costumam

risco de perder seus empregos, aumento no nível dos seus salários e aumento de poder e
satisfação no trabalho), em detrimento da maximização da riqueza dos acionistas. Esses
objetivos podem ser obtidos por meio do aumento do tamanho da firma, sendo os takeovers,
na prática, a forma mais rápida de consegui-los. Ao invés do aumento da rentabilidade ou do
tamanho, o aumento dos benefícios dos administradores são os objetivos mais prováveis.
MANNE (1965), MUELLER (1969), GORT (1969), JENSEN (1986), ROLL (1986), SCHERER e ROSS
(1990) e KLOECKNER (1994) apresentam os seguintes motivos para as F&As: a) discrepâncias nas
expectativas dos fluxos de caixa futuros e do risco associado ao resultado esperado (expectativas
assimétricas): diferentes expectativas levam os investidores a atribuir valores diferentes a uma
mesma firma, ocasionando propostas de compra; b) irracionalidade individual nas decisões de
dirigentes: justificativa hipotética para as fusões, segundo a qual, sob condições de incerteza, os
indivíduos nem sempre tomam decisões racionais. Essa irracionalidade é diluída ou anulada
quando considerada de forma agregada na interação dos vários agentes econômicos (ROLL, 1986);
compensações e incentivos tributários, advindos de créditos tributários relativos a prejuízos acu-
mulados por uma das firmas envolvidas, que podem ser compensados em exercícios futuros pela
outra firma, caso esta apresente lucros; c) fusões como uma alternativa a dividendos e recompra de
ações: situação presente em firmas com fluxos de caixa livres…” (Fusões, aquisições e takeovers: um
levantamento teórico dos Motivos, hipóteses testáveis e evidências empíricas. In: Caderno de
Pesquisas em Administração, São Paulo, v.10, nº 2, abril/junho 2003, pp. 24-25).
721 Este benefício implica que o valor de dois elementos combinados é superior ao valor que teria
a sua somatória como indivíduos. A respeito dos negócios de fusão e aquisição, “a sinergia
pode ser gerada naqueles casos em que dois ou mais atividades realizadas por uma só
assinatura têm um valor maior ao que teriam se fossem adiantadas por companhias separadas”
(GAUGHAN, op. cit., p. 620).
722 RICHARD informa para o caso argentino que a experiência recolhida em matéria de fusões
“pôs de manifesto que alguns dos trâmites exigidos pela lei e que não aparecem como
imprescindíveis à segurança jurídica e aos interesses que podem ser afetados por aquele ato,
são excessivos e aparte de dificultar a aplicação do instituto suscitaram algumas dificuldades
interpretativas” (RICHARD et al., op. cit., p. 838).

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surgir disposições de Direito positivo incorporadas nas legislações societárias


estaduais. Certamente, grande parte dos limites impostos às combinações
empresariais provém dos antecedentes judiciais723. As normas contidas nos
códigos societários, cuja redação costuma ser proposta em termos muito ge-
rais, implicam que muitas das situações próprias da prática societária não en-
contram resposta específica nessas previsões normativas. Esta diferença com as
codificações de origem européia, nas quais costumam existir princípios gerais
de interpretação, faz indispensável a complemento das normas legais norte-
americanas, mediante o exercício criativo da função judicial. Assim, as lacunas
devem ser enchidas por meio de regras de direito sentadas em precedentes
judiciais de obrigatória observância724.
Não obstante a liberdade que em geral têm os sócios para decidir sobre a
adoção de operações de fusão e aquisição, existem certas restrições que surgem
dos referidos precedentes, bem como das disposições federais e estaduais. Es-
tas aludem, em geral, às conseqüências que ditas operações têm na estrutura
das companhias participantes, ao alcance que tais negócios jurídicos têm no
mercado de valores mobiliários e aos efeitos que eles poderiam ocasionar a
respeito da livre concorrência econômica.

A. CÓDIGOS SOCIETÁRIOS ESTADUAIS


Como se viu, a promulgação de normas relativas à constituição e estrutu-
ra das sociedades comerciais é da competência de cada um dos Estados da
União. Assim, os códigos societários estaduais prevêem alguns mecanismos
para a reestruturação das sociedades. Por isso se afirma que, “quando os acio-
nistas ou administradores de uma companhia decidem realizar mudanças ra-
dicais em sua estrutura, dispõem de numerosos procedimentos expressamente
autorizados pelos códigos de sociedades”725. No caso das concentrações, tais
normas prevêem regras específicas para a fusão e a transferência global de
ativos726. As concentrações realizadas mediante qualquer destas técnicas de-
verão, por tanto, respeitar as disposições de seu Estado de constituição.

723 CLARK, David S. et al., op. cit., 1992, p. 315.


724 Ibidem, p. 316.
725 Ibidem, p. 324.
726 BAINBRIDGE, Corporation Law…, cit., p. 622. Em vários Estados foram promulgadas normas
relativas às operações de concentração. Pode-se citar, como exemplo, a Lei Geral de Socieda-
des do Estado de Delaware (Delaware Geral Corporation Law), em cujo Capítulo IX são

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B. LEIS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS


Em razão da incidência de fatores econômicos e de princípios de ordem
pública cuja preservação é indispensável para todos os Estados, aquelas con-
centrações que tenham efeitos sobre o mercado público de valores mobiliários
se sujeitam à regulação prevista nas leis federais. É por isso que as concentra-
ções que são realizadas mediante aquisição de participações significativas no
capital se encontram reguladas por diversas normas expedidas pelo Congresso
dos Estados Unidos. É claro, não obstante, que qualquer fusão ou transferên-
cia de ativos nas quais se transfiram ações ou outros títulos de valores mobiliá-
rios negociáveis em bolsa, submetem-se também à aludida regulação federal.
Desde modo, tais regulações se aplicam de modo especial às sociedades
abertas, vale dizer, aquelas que negociam suas ações no mercado público de
valores mobiliários (publicly held companies). No entanto, tais normas se apli-
cam, sob certas circunstâncias, às companhias fechadas, às sociedades em co-
mandita e inclusive às sociedades de pessoas, naqueles casos em que qualquer
destas emita valores mobiliários negociáveis em bolsa727.
A meticulosa regulação que na atualidade existe em matéria de valores
mobiliários se explica, possivelmente, na própria origem das mencionadas leis728.
Originalmente, elas foram promuladas numa tentativa de neutralizar os efeitos
calamitosos da Grande Depressão, cujo ponto culminante foi a queda da Bolsa
de Valores de Nova York em 1929. Com o propósito de restabelecer o ordem
econômica e de recuperar a confiança no mercado, o governo promoveu a
promulgação da Lei do Mercado de Valores Mobiliários de 1933 (Securities
Act) e a de Negociação de Valores Mobiliários de 1934 (Securities Exchange
Act)729. Decorridas mais de sete décadas desde sua promulgação, ainda hoje se
consideram fundamentais dentro da regulação do mercado de valores mobiliários.

reguladas de maneira extensa as contrações realizadas por meio de operações de fusão. A


consagração legal destas modalidades de concentração não impediu a criação de métodos
alternativos, comummente denominados non-statutory acquisition techniques (Cfr. BAINBRIDGE,
Mergers.., cit., p. 6).
727 CLARK, David S. et al., op. cit., p. 315.
728 É óbvio que estas normas federais não visam a colocar obstáculos nas operações de concentra-
ção. Ainda que costumam ser classificadas como normas muito rígidas, em oposição a outras
regulações sobre a matéria, “seu rigor se acha principalmente em requisitos de divulgação de
informação, o qual compensa indiretamente a flexibilidade dos códigos societários estatais”
(CLARK, David S. et al., op. cit., p. 314).
729 As políticas descritas fizeram parte do denominado “New Deal”, que consistiu num plano
político e econômico desenvolvido pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt na década de

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A primeira delas regula em particular as emissões primárias de papéis


comerciais, mediante a imposição de rigorosas regras de conduta e normas severas
de responsabilidade para quem ofereça tais títulos730. A Lei de Negociação de
Valores de 1934 é um estatuto aplicável às operações realizadas no mercado
secundário. Assim, quem participa nestes negócios no mercado não são, em
geral, os emissores de títulos, mas quem os subscreveu previamente e se propõe
a aliená-los para terceiros. Desse modo, a Lei de Negociação de Valores é aplicável
a certas operações em que os investidores se propõem a adquirir ou alienar
valores mobiliários já existentes731. O citado estatuto, aparte de estabelecer um
sistema de vigilância administrativa, exige o permanente fornecimento de
informação por parte daquelas companhias que se encontram inscritas nas bolsas
de valores nacionais732. “Para realizar este ambicioso programa de fiscalização, a
Lei de Negociação de Valores criou a Comissão de Valores (‘Securites and
Exchange Commission’ SEC)”733.
As leis do mercado expedidas nas primeiras décadas do século passado
foram, logicamente, adaptadas às mutantes necessidades do mercado. Uma das
modificações de maior relevância nesta matéria, foi introduzida por meio da
denominada Lei Williams de 1968 (Williams Act), pela qual foram estabeleci-
das novas regras de atuação para quem realizassem operações com papéis co-
merciais, conforme à Lei de Negociação de Valores de 1934. Na reforma
introduzida neste estatuto foram fixadas, em especial, regras precisas para quem
efetuasse ofertas públicas de aquisição de ações (tender offers). Como se analisará
mais adiante, estas exigências normativas se refletem essencialmente na fixação
de requisitos e formalidades tendentes à ampla publicidade destas operações734.

trinta. O “New Deal” constituiu uma valiosa ferramenta para reduzir os efeitos adversos da
Grande Depressão da economia estadunidense. Acreditava-se que a crise financeira mundial era
devido à instabilidade inerente ao mercado. Por isso, considerava-se que a intervenção estatal
poderia, em alguma medida, corrigir tal instabilidade. (Cfr. BUCHHOLZ, Business Environment...,
cit., p. 101). A Lei de Valores do ano 1933 se orientou a definir as regras e obrigações a que
deveriam se submeter as sociedades que efetuem emissões primárias, com o propósito de
proteger ao público investidor de fraude ou engano nas ofertas que estas companhias formulem.
730 PALMITER, Securities..., cit., p. 167.
731 CLARK, DAVID S. et al., op. cit., p. 313.
732 PALMITER, Securities..., cit., p. 233
733 Ibidem.
734 Estas normas tiveram importância nos movimentos de tomadas de controle por via de aquisição
de participações significativas de capital, em especial nas décadas de cinqüenta e sessenta.
(Cfr. SOLOMON & PALMITER, Corporations..., cit., p. 579). Outras disposições federais de
importância nesta matéria são, entre outras, as seguintes: 1 “. Public Utility Holding Company
Act”, de 1935; 2 “. Trust Indenture Act”, de 1939; 3 “. Investment Company Act”, de 1940; 4
“. Investment Advisers Act”, de 1940; 5 “. Securities Investor Protection Act”, de 1970; 6 “.

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Devido à notoriedade dos escândalos em que se viu envolvida a multina-


cional dos hidrocarbonetos Enron, o Congresso federal norte-americano pro-
feriu a célebre Lei Sarbanes-Oxley de 2002 (Sarbanes-Oxley Act, SOA). Este
inovador estatuto impôs às companhias abertas regras contábeis mais rigidas
das que existiam anteriormente e criou a obrigatoriedade de mecanismos in-
ternos de controle, tais como os denominados comitês de auditoria. Esta nor-
ma, igualmente a suas predecessoras, orienta-se a outorgar maior proteção aos
investidores, mediante uma análise da atividade contábil que devem realizar
os administradores sociais735.
Ainda que a regulação do mercado pertença, primordialmente, ao âmbito
de concorrência federal, existem também certas leis estaduais que podem ser
aplicáveis às operações que se realizam nas bolsas de valores. Como já se
mencionou, estas normas são também conhecidas como leis de céu azul (blue sky
laws). Nelas se exige, em geral, o cumprimento de alguns requisitos por parte de
emissores, compradores e vendedores de valores mobiliários736. A utilidade destas
disposições é, segundo CLARK, que “outorga às autoridades estatais o poder
legal de reprimir fraudes no lugar em que se cumpre o negócio jurídico, cujo
cometimento poderia passar inadvertido pelas autoridades federais”737.

C. LEIS SOBRE CONCORRÊNCIA


A concentração empresarial, independentemente do método legal que se
utilize para realizá-la, pode produzir conseqüências de variada intensidade sobre
a livre concorrência738. Por isso, as leis federais sobre esta matéria estabeleceram

Market Reform Act”, de 1990, e 7 “. Penny Stock Reform Act”, de 1990. (Compilation of Securities
Laws, Superintendency of Documents of the U.S. Government, Washington D.C., 1991).
735 Cfr. Capítulo VI, supra.
736 CLARK, et al., op. cit., p. 315. Ver Capítulo II supra.
737 Ibidem.
738 Segundo POSNER, o efeito nocivo dos monopólios resulto no fato que os ganhos que deles
obtêm os monopolistas repercutem em maiores custos para os consumidores. Não obstante,
existem certas condições de oferta e demanda nas quais apenas uma sociedade pode satisfazer
as quantidades demandadas, a um custo mais baixo do que poderiam assumir duas ou mais;
também pode ocorrer que uma companhia tenha uma administração sobressalente, de forma
que a gestão de ativos de outras companhias possa ser um maior sucesso sob aquela adminis-
tração que sob a destas. Qualquer destas situações poderia dar lugar a que se realizasse uma
fusão conducente a um monopólio. Neste caso, os benefícios obtidos poderiam superar os
custos derivados da fixação unilateral de preços por parte do monopólio” (op. cit., p. 322). Os
casos excepcionais mencionados pelo autor, deram lugar ao que as legislações denominam a
“exceção de eficiência”, na qual se justifica de alguma forma a presença de situações de
concentração no mercado e, inclusive, a existência de verdadeiros monopólios.

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regras de conduta que endereças àquelas operações que possam afetá-la739. A


primeira regulação aplicável em matéria de direito da concorrência é a denominada
Lei Sherman de 1890. Esta norma se tornou aplicável às operações de
concentração devido a sua ampla terminologia. No artigo primeiro se proibiu a
celebração de qualquer “contrato, combinação ou confabulação” que tivesse efeitos
negativos sobre a concorrência740. A mesma disposição introduziu uma proibição
peremptória a respeito de qualquer tentativa para “monopolizar ou tentar
monopolizar um mercado”741. Ainda que a Lei Sherman seja considerada como
um dos estatutos mais inovadores de sua época, a verdade é que sua efetividade
inicial foi objeto de permanentes censuras. GAUGHAN, por exemplo, assinala
que a primeira onda de concentrações, realizada durante a vigência da citada lei
(entre os anos 1897 e 1904), caracterizou-se pelo surgimento de monopólios742.
A Lei Clayton foi expedida numa tentativa de solucionar as deficiências
que a Lei Sherman apresentava. Expedida em 1914 e reformada pelo Congres-
so federal em sucessivas ocasiões, constitui hoje uma das normas angulares do
regime anti-monopolista. O artigo 7º do referido estatuto proíbe expressamente
qualquer aquisição ou fusão que possa ter como efeito prejuízo da concorrência
ou que tenda a criar um monopólio. O alcance da disposição mencionada não se
restringe a efeitos já consumados, pois se estende também àqueles que se apre-
sentem como a conseqüência provável de uma integração743. Neste sentido, é
possível afirmar que as normas sobre concorrência têm um efeito preventivo744.

739 Na opinião de DAVID CLARK, apesar de que as mencionadas leis se relacionam mais com o
comportamento de mercado que com a organização empresarial, têm um efeito importante nas
concentrações societárias. Elas proíbem as concentrações de sociedades que possam dar lugar
à criação de monopólios. Em virtude disse que se estabelece a necessidade de uma notificação
prévia de qualquer fusão ou aquisição que possa ter um impacto econômico significativo. O
sistema está desenhado de modo a permitir ao governo federal um conhecimento antecipado
a respeito de possíveis violações do regime anti-monopolios. (Cfr. op. cit., p. 315).
740 Artigo 1º da Lei Sherman de 1890.
741 Seção 2 Ibidem.
742 GAUGHAN, Patrick A. Op. cit., p. 81.
743 SHENEFIELD et al., The Antitrust Laws. Washington, D.C.: The AEI Press, 1996, p. 55.
744 GAUGHAN, op. cit., p. 80. Devido ao fato que os assuntos relativos à concorrência e os
monopólios concernem mais ao âmbito econômico do que ao estritamente jurídico, sua regulação
está hoje presente na maior parte do mundo ocidental, independentemente da tradição jurídica
prevalecente nas diferentes nações que o conformam. Na França, segundo sustentam MERCADAL
e JANIN, “estas normas representam um obstáculo para aquelas concentrações empresariais nas
quais os prejuízos para a concorrência são maiores que os benefícios que elas poderiam ter nos
âmbitos econômico e social […] Na União Européia, as integrações que excedam de certas somas
deverão ser notificadas à Comissão européia antes de ser realizadas” (MERCADAL, M. Barthélemy
et al. Sociétés Commerciales. Paris: Editions Francis Lefevre, 1995, p. 1106).

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Em 1976, a Lei Hart-Scott-Rodino modificou a Seção 7A de a Lei Clayton.


A norma estabelece a obrigação de notificar qualquer integração societária que se
realize mediante a aquisição de participações significativas no capital ou de ativos.
A mencionada notificação deverá ser apresentada tanto perante a Comissão Federal
de Comércio como perante o Ministério de Justiça. Segundo SHENEFIELD,
“nenhuma fusão ou aquisição poderá ser formalizada sem que se tiverem cumprido
os procedimentos de notificação”745. Junto com a notificação, deve ser apresentada
informação suficiente para que as entidades mencionadas possam avaliar em detalhe
as conseqüências que a operação poderia ter respeito da concorrência746. Em caso
de ser necessário, as autoridades competentes poderão solicitar informação adicional
ou realizar interrogatórios com os participantes747, quem deverão se abster de
concluir a concentração enquanto se conclui o procedimento748.

3. MECANISMOS PREVISTOS NAS LEIS ESTADUAIS (STATUTORY


ACQUISITION TECHNIQUES)
A. FUSÃO (MERGER)
I. MODALIDADES
Uma das figuras mais usadas nas operações de concentração é a fusão,
mediante a qual duas ou mais sociedades agrupam seus patrimônios numa

745 SHENEFIELD et al., op. cit., p. 56.


746 No ano 2003, o Ministério de Justiça e a Comissão Federal de Comércio estudaram 1.014
operações de integração. Tão só 7% delas mereceram uma investigação detalhada por parte do
Ministério. Da porcentagem indicada, unicamente 19% das operações foram recusadas ou
submetidas a reestruturação pelo Ministério. Assim as coisas, das 1.014 operações revisadas,
foram vetadas apenas 28, isto é, ao redor de 2.8% do total das operações notificadas. (Cfr.
ROBINSON, Constance K. et al. Mergers and Acquisitions, Corporate Law and Practice Course.
Handbook Séries, Practicing Law Institute, Maio 2004, p. 303).
747 Ibidem, p. 318.
748 DOLAN, William F. et al. An Overview of U.S. Antitrust Law Governing Acquisitions & Mergers,
Corporate Law and Practice Course. Handbook Séries, Practising Law Institute, Maio 2004, p.
855. As integrações costumam ser classificadas como horizontais, verticais ou de conglomerado,
segundo a posição no mercado que tenham seus participantes. Na primeira classe, a concentra-
ção se realiza entre companhias competidoras, enquanto na segunda a união se produz entre
sociedades que têm uma relação comprador-vendedor, ou fornecedor-consumidor. Na integração
de conglomerado, a integração se efetua entre companhias dedicadas a atividades econômicas
diferentes. Mediante a integração vertical, conseguem-se reduzir os custos de um mesmo proces-
so econômico. Por meio de concentrações horizontais, tenta-se fortalecer a posição de uma das
assinaturas no mercado. Devido ao fato que isso poderia levar a uma posição de monopólio,
estas operações são objeto de um maior grau de exame pelas entidades encarregadas do controle
da concorrência. (Cfr. GAUGHAN, A. op. cit., p. 8). Antes da Lei Celler-Kefauver, não existia
proibição expressa para as integrações verticais ou de conglomeração (Ibidem, p. 83).

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só749. Na fusão simples –conhecida também como plain vanilla merger 750 –
uma das sociedades subsiste depois de receber os ativos e passivos das demais
companhias participantes, cuja extinção se produz de modo simultâneo751.
Os sócios das companhias absorvidas se incorporam à sociedade absorvente
mediante um processo de troca de ações que se cumpre a partir da correspon-
dente relação de troca estabelecida para a fusão. Esta figura é equivalente à
denominada “fusão-absorção” ou “fusão por incorporação”, própria dos países
de tradição romano-germânica752.

749 Literalmente, a palavra inglesa merger se traduz ao espanhol como fusão. Tal é o sentido com
o que aparece tanto nos dicionários bilíngües de uso corrente de tais idiomas (Collins Dicio-
nário Espanhol-Inglês. Bogotá: Edit. Grijalbo, 1988, p. 273), como nos dicionários bilíngües
de termos jurídicos (RICO, José Ramón Cano. Dicionário de Direito. Madri: Edit. Tecnos, 1994).
750 Cfr. HAMILTON et al., op. cit., p. 347.
751 Segundo o texto do dicionário Black’s, a definição que corresponde à palavra merger é do
seguinte conteúdo: “A união de duas companhias conforme uma disposição legal, onde uma
das companhias desaparece e a outra sobrevive. A absorção de uma companhia por outra, de
modo que aquela perde sua identidade jurídica e esta retém seu próprio nome e identidade e
adquire os ativos, passivos, franquias e faculdades daquela. A companhia absorvida deixa de
existir como um ente jurídico (Morris v. Investment Life Ins. Co., 27 Ohio St.2d 26, 272 N.E.2d
105,108, 109, 56 Ou.Ou.2d 14)”.
752 Países como França, Panamá, Argentina, México e Colômbia adotaram a referida terminologia.
(Cfr. respectivamente a MERCADAL et al., op. cit. p. 1103; DURLING, A sociedade anônima
em Panamá, cit., p. 285; NISSEN, Ricardo Augusto. Curso de Direito Societário. Buenos Aires,
1998, p. 263.; PHILLIPP, Frisch, op. cit., p. 594; e PINZÓN, Gabino. Sociedades comerciais,
vol. I. Bogotá: Edit. Temis, 1988, p. 305).
No caso do Brasil, alude-se a esta figura como a incorporação, regulada no artigo 227 da Lei
sobre sociedades por ações; Amador Paes adverte que “a incorporação é, como já observamos,
um fenômeno do capitalismo moderno, consubstanciando essencialmente um processo gradativo
e inexorável de absorção de pequenas e médias empresas por grupos econômicos ou
multinacionais” (Manual das sociedades... op. cit., p. 273). Alberto Xavier agrega que “a incorpo-
ração de uma sociedade em outra traduz-se juridicamente na subscrição, em bens, do capital da
segunda (incorporadora) pelos sócios da primeira (incorporada), os quais, em contrapartida de
versão do patrimônio líquido, receberão ações ou quotas da sociedade incorporadora” (Incorpo-
ração de Controladora: motivação e oportunidades. O Ágio como exemplo. In: Reorganização
Societária... op. cit., pp. 247-248). Cfr. também XAVIER, Alberto. Incorporação de sociedades e
imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária. 1978. pp. 28 e ss.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 309

Gráfico 1: Neste exemplo de fusão Beta Inc. transfere seu patrimônio


para Alfa Corp. e é extinta. Esta, por sua vez, efetua uma emissão de ações em
favor dos antigos acionistas de Beta Inc.
Na chamada consolidação (consolidation), todas as companhias envolvidas
são extintas para transferir seus ativos e passivos a uma nova sociedade, consti-
tuída para tal efeito753. Como o afirma GAUGHAN, “apesar das diferenças
entre elas, as expressões fusão e consolidação se utilizam indistintamente, como
ocorre com freqüência com muitos dos termos referentes à matéria. Em geral,
o negócio da consolidação costuma ser utilizado para se referir a concentrações
entre sociedades de similares dimensões, enquanto a fusão costuma ser reserva-
da para a união entre duas companhias que diferem significativamente em
magnitude. Na prática, no entanto, esta distinção semântica carece de maior
importância, de forma que o termo fusão se usa de forma ampla para referir-se
a integrações entre sociedades de diferentes ou similares volumes”754.

753 Esta operação costuma ser identificada na terminologia dos países de tradição jurídica conti-
nental européia como “fusão-criação” ou “fusão por criação”. Argentina, México e Colômbia,
por exemplo, utilizam esta terminologia. (Cfr. respectivamente NISSEN, op. cit., p. 263; PHILLIPP,
Frisch, op. cit., p. 608, e PINZÓN, op. cit., p. 305).
No referente à legislação brasileira, esta regula a figura no artigo 228 da Lei 6.404, que dispõe
que “A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade
nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações.
1º A assembléia-geral de cada companhia, se aprovar o protocolo de fusão, deverá nomear os
peritos que avaliarão os patrimônios líquidos das demais sociedades.
2º Apresentados os laudos, os administradores convocarão os sócios ou acionistas das socie-
dades para uma assembléia-geral, que deles tomará conhecimento e resolverá sobre a constitui-
ção definitiva da nova sociedade, vedado aos sócios ou acionistas votar o laudo de avaliação
do patrimônio líquido da sociedade de que fazem parte.
3º Constituída a nova companhia, incumbirá aos primeiros administradores promover o arqui-
vamento e a publicação dos atos da fusão”.
754 GAUGHAN, op. cit., p. 7.

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310 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Gráfico 2: Nesta consolidação, por exemplo, Alfa Corp. e Beta Inc. ex-
tinguem-se e reúnem seus patrimônios numa nova sociedade, Gama Inc.,
com seus antigos sócios agora como acionistas.
Para que uma fusão ou consolidação se materialize, requer-se a aprova-
ção das juntas diretivas das companhias participantes755. Em grande parte das
jurisdições estaduais, uma vez aceita por ditos órgãos, a proposta deve ser
avaliada pela maioria dos acionistas756. Autorizada a fusão, a companhia que
sobrevive “se torna titular de todos os ativos e passivos das outras companhias
e as substitui em todos litígios pendentes. Ao comparar a fusão com outras
técnicas de concentração societária, pode-se identificar uma característica que
lhe é única, consistente na absorção absoluta”757. Como prestação correlativa a
esta transferência de direitos e obrigações, “os sócios das companhias que de-
saparecem podem receber ações da sociedade sucessora, dinheiro, títulos ou
qualquer outro ativo que se especifique no compromisso de fusão”758.
A importância que reveste a figura analisada conduziu a sua consagração
expressa nos diversos códigos societários que se promulgaram nos Estados
Unidos. Assim, por exemplo, na Seção 18-209 da Lei de Sociedades de
Responsabilidade Limitada do Estado de Delaware (Delaware Limited Liability
Companies Act) está estabelecido que, “por virtude de um acordo de fusão ou
consolidação, uma ou mais sociedades de responsabilidade limitada domiciliadas
neste Estado poderão se fundir ou ser absorvidas por uma ou mais sociedades
de responsabilidade limitada domiciliadas neste Estado ou por uma ou mais
companhias constituídas em conformidade com as leis do Estado de Delaware
ou de qualquer outro Estado dos Estados Unidos ou de qualquer país
estrangeiro ou legislação do exterior (…), onde qualquer das anteriores
sociedades poderá atuar como companhia absorvente, segundo se disponha
no acordo correspondente”.

755 Segundo Paolo Matar Filho, no ordenamento brasileiro, “a Lei das Sociedades Anônimas –
artigo 224 –, impõe aos órgãos da administração da companhia ou aos sócios das sociedades
interessadas a necessidade, nos casos de incorporação, fusão e cisão com incorporação em
sociedade existente, de aprovação de protocolo, o que permite, juntamente com a justificati-
va, a publicidade das condições e da estrutura da operação, em benefício de acionistas e
também de credores” (O sistema de Proteção aos Credores nas Operações de Incorporação,
Fusão e Cisão. In: Reorganização Societária… op. cit., p. 313).
756 HAMILTON et al., op. cit., p. 347.
757 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 528
758 HAMILTON et al., op. cit., p. 347.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 311

II. A CONTRAPRESTAÇÃO NAS OPERAÇÕES DE FUSÃO

No regime de contratos estadunidense, estima-se que a razão funda-


mental de ordem econômica que impulsiona às partes a celebrarem um negó-
cio jurídico é a denominada contraprestação (consideration). Em todo contrato
oneroso, algo se dá ou se promete como contraprestação pela promessa ou ato
de liberalidade correspondente759. O vocábulo em questão se considera por
alguns como assimilável ao conceito da “causa” prevalecente nos regimes de
contratos que imperam nos sistemas de tradição romano-germânica, ainda
que também poderia assimilar-se sob certos aspectos ao objeto dos contra-
tos760. Para ALAIN LEVASSEUR, “a ‘consideration’ é algo ao mesmo tempo
procurado pelo promitente como contraprestação de sua promessa e lembra-
do pelo destinatário dessa promessa como contraprestação dela. Aquilo que
constitui a ‘consideration’ consiste, ora numa prestação ou numa abstenção ou
bem numa contra-promessa”761.
No caso específico da fusão, a contraprestação não é outra coisa que os
ativos que recebem os acionistas de uma sociedade absorvida, na forma de
intercâmbio, pela transferência patrimonial em bloco que se apresenta neste
negócio jurídico. É importante assinalar que nos Estados da União Americana
foram adotadas regulações societárias flexíveis a respeito da contraprestação
oferecida nas operações de fusão (merger consideration). Assim, diferentemente
de como ocorre em diversos países de tradição romano-germânica, nos Estados
Unidos é viável que os acionistas de uma sociedade absorvida em virtude de
uma fusão, recebam outros ativos diferentes de ações na companhia absorven-
te. Em conseqüência, os sócios da companhia absorvida poderão optar por
receber debentures, ações em outras sociedades ou ainda dinheiro, em troca das
ações naquela companhia extinta por efeito da operação. Segundo se verá mais
adiante, esta circunstância faz possível realizar operações de fusão triangular
(triangular mergers), em virtude da qual, os acionistas da sociedade absorvida
poderiam receber ações da matriz da companhia absorvente ou de qualquer
outra sociedade.
A possibilidade expressada no parágrafo anterior foi reiterada em diversos
pronunciamentos emitidos por autores norte-americanos. Na verdade, a evolu-

759 Cfr. Black’s law dictionary, cit., p. 323.


760 Cfr. HOWELL, Rate A. et al, op. cit., pp. 225-242
761 LEVASSEUR, Alain. Le contrat en droit américain..., cit. p. 42

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312 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

ção do denominado merger consideration nos Estados Unidos foi descrita com
precisão por Morris e Holmes, nos seguintes termos: “Nos textos das primeiras
leis que regularam os processos de fusão, definia-se este negócio jurídico con-
forme à acepção comumente conhecida, no sentido de que, por efeito dessa
operação, duas ou mais companhias se agrupavam numa só, controlada pelos
antigos acionistas das sociedades absorvidas, em proporção a suas respectivas
participações de capital nas companhias fundidas [...]. Até o ano de 1969, a Lei
Tipo de Sociedades Comerciais de Capital [Model Business Corporation Act
ou MBCA] estabelecia que um acordo de fusão devia conter, entre outras men-
ções, ‘a maneira pela qual se determinaria a relação de troca, o modo de conver-
ção das ações das sociedades absorvidas, em ações, obrigações ou outros títulos
emitidos pela sociedade absorvente ou de nova criação”762.
Na opinião dos citados autores, a supressão desta exigência como requisi-
to sine qua non para os processos de fusão, foi promovida pela primeira vez no
Estado de Delaware. Uma vez introduzida esta modificação, os demais Esta-
dos da União se apressaram a flexibilizar suas respectivas legislações societárias,
com o fim de adotar o inovador sistema originado naquele Estado. Assim, nas
palavras dos autores, a própria Lei Tipo de Sociedades Comerciais foi reforma-
da, “de maneira a incluir a possibilidade de transferir a título de contrapresta-
ção num processo de fusão qualquer dos seguintes ativos: ações, obrigações ou
qualquer outro título emitido pela sociedade absorvente, pela sociedade de
recente criação ou por qualquer outra companhia ou, em tudo ou em parte,
dinheiro vivo ou qualquer outra classe de ativos”763.
Em sentido análogo, SOLOMON afirmou que as modificações intro-
duzidas pela primeira vez em Delaware foram incluídas na grande maioria
das legislações societárias nos Estados Unidos. Segundo o autor, “historica-
mente, a absorção patrimonial nos processos de fusão implicava o necessário
intercâmbio de ações da companhia absorvida por ações na sociedade absor-
vente ou de recente criação. Na atualidade, no entanto, este requisito caiu em
desuso, pois se permite que, nos processos aludidos, a contraprestação se con-
ceda em forma de títulos emitidos pela sociedade absorvente ou por qualquer
outra sociedade, bem como em dinheiro, outros ativos ou qualquer combina-

762 MORRIS, Glenn G. et al. op. cit., vol. 8, p. 251


763 Ibidem.

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312 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 313

ção pactuada entre as partes. Esta possibilidade se encontra consagrada nas


seguintes normas: Seção § 11.01 (b) (3) da versão revisada da Lei Tipo de
Sociedades Comerciais, §1101 da Lei de Sociedades do Estado de Califórnia
e §251 (b) da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware”764. Também
é relevante trazer ressaltar as afirmações que foram efetuadas por outros auto-
res norte-americanos sobre a possibilidade de entregar ações de uma socieda-
de diferente da absorvente, como resultado de um processo de fusão. Segundo
Ou’KELLEY, “sob a concepção original da fusão, os acionistas da sociedade
absorvida receberiam ações da sociedade absorvente ou de recente criação, em
troca de suas ações na companhia absorvida. Não obstante, nas modernas le-
gislações societárias se permite que se entregue àqueles sócios, outros ativos de
qualquer natureza, incluída a possibilidade de efetuar combinações de di-
nheiro, ações e outros títulos”765.
III. FUSÃO TRIANGULAR (TRIANGULAR MERGER)
De modo reiterado se observa que, na prática, a união de companhias
não se realiza entre sociedades totalmente independentes, mas sim entre com-
panhias vinculadas por uma relação de subordinação (matriz – filial)766. A
confusão patrimonial e jurídica que se verifica nestas operações surge do con-
trole exercido pela matriz nas assembléias de todas as sociedades participan-
tes. Por isso se afirma que a entidade que controla “domina de maneira unilateral
os termos do negócio jurídico”767. É por isso que as legislações de numerosos
Estados não exigem o requisito de aprovação de todas as assembléias naqueles
casos em que a matriz controla 90% ou mais das ações das companhias subor-

764 SOLOMON, Lewis D. et al. op. cit., p. 528. Ainda no Estatuto Tributário dos Estados Unidos
(Internal Revenue Code) contemplou-se a possibilidade de efetuar uma fusão sob as condições
aludidas. Na Seção 368 (a) (2) (D) do referido código, dispõe-se que certas operações serão
tratadas como “neutrais” do ponto de vista fiscal, desde que cumpram os requisitos que se
transcrevem a seguir: (i) Que os ativos da sociedade absorvida sejam transferidos a favor da
sociedade absorvente; (ii) que não se emitam ou se transfiram ações da sociedade absorvente
por efeito da operação; e (iii) que a operação tenha sido qualificada como uma modalidade de
integração Classe A (v.gr. uma fusão), se a matriz da sociedade absorvente se tiver fundido
diretamente com a sociedade absorvida. Assim, é razoável afirmar que, na prática societária
estadunidense, é possível transferir ativos diferentes de ações da sociedade absorvente, a título
de contraprestação pela transferência patrimonial em bloco que se apresenta em desenvolvi-
mento de um processo de fusão.
765 O’KELLEY, Charles R. et al., op. cit. p. 734
766 Segundo KLEIN, “em anos recentes, a maioria de fusões envolveram a presença de subordina-
das completamente controladas pela sociedade adquirente” (KLEIN et al. Business Organization
and Finance, at., p. 208).
767 CLARK, Robert C. et al., op. cit., p. 472.

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313 5/7/2011, 18:05
314 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

dinadas participantes na operação768. Devido ao evidente conflito de interes-


ses que costuma existir para os administradores sociais nesta modalidade de
concentrações, as cortes se inclinaram a declarar “que a matriz e seus adminis-
tradores têm deveres fiduciários a respeito dos acionistas minoritários das so-
ciedades subordinadas”769, de forma que devem desempenhar suas funções
com a devida lealdade e cuidado.
A fusão triangular constitui outra forma de concentração na qual parti-
cipam companhias unidas por vínculos de subordinação societária770. Numa
primeira modalidade desta operação, a sociedade adquirente constitui uma
filial, com o propósito de que seja esta quem participe de modo direto na
concentração. Embora a filial absorva a sociedade alvo, a adquirente conserva
o controle direto sobre aquela companhia. Ao termino da operação, a matriz é
titular de uma percentagem majoritária da companhia filial, que por sua vez
se fundiu com a sociedade alvo. Este procedimento, denominado forward
triangular merger, facilita a operação, pois permite evitar a participação dos
acionistas da matriz adquirente, quem não terão direito de opor-se à fusão.
BAINBRIDGE descreve, de maneira detalhada, as diferentes etapas que se
apresentam numa operação de fusão triangular direta. Em suas palavras, uma
das sociedades participantes “constitui uma nova companhia, a qual controla.
Esta nova sociedade recebe os ativos que serão transferidos aos acionistas da
sociedade alvo a título de contraprestação no processo de fusão triangular –
tais ativos podem ser ações de sua matriz ou dinheiro vivo. Posteriormente,
esta sociedade filial realiza um processo de fusão com a denominada socieda-
de alvo. Numa fusão triangular direta, a filial é a sociedade absorvente (e a
companhia alvo é a sociedade absorvida)”771. Segundo se entende das defini-
ções citadas, é usual que, por virtude de uma fusão triangular direta, os acio-

768 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 530.


769 CLARK, Robert C. et al., op. cit., pp. 472-473. No caso Sterling v. Mayflower Hotel, resolvido
pela Corte Suprema de Delaware [93 A.2d 107 (Do. 1952)], onde se revisou a fusão entre
Mayflower e sua sociedade controladora, Hilton Hotels, se estabeleceu-se que esta última e
seus administradores tinham deveres fiduciários a respeito das minorias.
770 Esta figura foi definida como “um método de união entre duas companhias, em virtude do qual
o patrimônio da sociedade absorvida é transferido a uma controlada da sociedade absorvente
e os acionistas da sociedade absorvida recebem ações na sociedade absorvente” (Black’s Law
Dictionary, cit., p. 989). Na definição antes transcrita, deve entender-se que o termo “socieda-
de absorvente”, faz referência à sociedade que controla à companhia beneficiária da transfe-
rência em bloco do patrimônio da sociedade absorvida.
771 BAINBRIDGE, Stephen M. “mergers..., and acquisitions”, cit, p. 161.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


314 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 315

nistas da sociedade absorvida recebam ações da matriz da sociedade absorven-


te. Esta possibilidade, conforme explicado antes, era proibida pela maioria
dos Estados da União Americana até há alguns anos. No entanto, deve-se
reiterar que a maioria das legislações estaduais foram modificadas, com o fim
de permitir que a sociedade absorvente transfira ações de qualquer outra com-
panhia a título de contraprestação num processo de fusão772.
Numa variante deste mesmo mecanismo, a sociedade alvo subsiste
posteriormente à fusão, mas ascende ao status de subordinada da companhia
adquirente. Esta modalidade foi denominada pela doutrina como reverse
triangular merger773. Para que esta última classe de fusão triangular possa
cumprir-se, é indispensável que a participação dos acionistas da sociedade
alvo seja reduzida em virtude da operação, de forma que a companhia
adquirente obtenha o controle sobre ela.

Gráfico 3: Nesta fusão triangular, a companhia filial realiza o programa de


fusão concebido pela matriz. Como se pode verificar, depois de cumprir a con-
centração, Alfa Corp. mantém controle sobre a filial que absorveu a Beta Inc.
A fusão triangular foi reconhecida pela doutrina como o mecanismo
idôneo para efetuar as denominadas fusões com exclusão de acionistas (freeze-
out mergers ou cash-out mergers)774. Esta operação consiste em realizar uma
fusão triangular direta (forward triangular merger) entre duas companhias con-
troladas por uma mesma sociedade matriz, com o propósito de obrigar aos
acionistas minoritários de uma de tais companhias a alienar suas participações

772 Ibidem.
773 HAMILTON et al., op. cit., p. 349
774 Cfr. BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 222

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315 5/7/2011, 18:05
316 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

no capital. Para realizar uma fusão com exclusão de acionistas, será imperativo
que a matriz conte com duas sociedades subordinadas. Uma delas deverá ser
uma subsidiária integral (wholly owned subsidiary). Por sua vez, o capital da
segunda companhia deverá ser detido majoritariamente pela sociedade ma-
triz, enquanto o resto das ações estará nas mãos de terceiros. A primeira das
sociedades subordinadas absorverá à segunda, de forma que os acionistas mi-
noritários desta se verão forçados a receber uma soma determinada em contra-
prestação à transferência de suas participações de capital. Esta transferência
de ações pode ser exigida pela sociedade resultante, quem estará legalmente
facultada a readquirir tais ações. Segundo BAINBRIDGE, “estas normas
permitem ao acionista controlador exercer uma modalidade de desapropria-
ção. Ainda naqueles casos nos quais todos os acionistas diferentes do contro-
lador votassem contrariamente à fusão, a percentagem de votação deste deve
ser suficiente para que a operação seja adotada nas assembléias de ambas com-
panhias. Uma vez aprovada a concentração, os acionistas minoritários estarão
obrigados a alienar suas ações ao preço definido no compromisso de fusão”775.
A Suprema Corte do Estado de Delaware se pronunciou em diversas
ocasiões a respeito dos princípios que regem as fusões com exclusão de acio-

775 Ibidem. Ainda que a clássica noção do Direito Romano a respeito do caráter absoluto do
direito de propriedade tenha sido modificada nos sistemas jurídicos que seguem as orienta-
ções provenientes da Europa continental, parece claro que a aplicação da figura analisada
poderia contrariar algumas das garantias consagradas a respeito da propriedade. Isso se deve ao
fato que a fusão com exclusão de acionistas implica uma transmissão forçada do direito
aludido, na medida em que os acionistas são despojados da titularidade sobre suas ações, sem
seu consentimento. Em virtude disso que costuma estar previsto nos sistemas de tradição
romano-germânica que nas fusões se proceda de modo imperativo à troca de ações, quotas ou
títulos de participação entre as sociedades participantes, mediante a determinação da denomi-
nada relação de troca. Ainda que este requisito se viu mitigado em alguns países europeus,
ainda se atribui maior importância à troca de participações no capital que à entrega de somas
de dinheiro. No México, por exemplo, “a sociedade anônima subsistente deve entregar ações
próprias como contraprestação pelo patrimônio da sociedade anônima absorvida, aos acionis-
tas da mesma. Excluem-se, portanto, em princípio, outros tipos de contraprestação, como
dinheiro ou bens, a não ser que se trate de quantidades relativamente pequenas e adicionais
às ações” (PHILIPP, Frisch, op. cit., p. 594). A União Européia também se incluiu nesta
tendência, mediante a promulgação da Terça Diretiva Comunitária, relativa à fusão de socieda-
des anônimas. Esta regra de harmonização normativa dispõe em seu artigo terceiro que, “com
arranjo à presente Diretiva, se considerará como fusão por absorção a operação pela qual uma
ou várias sociedades transferem a outra, como conseqüência de uma dissolução sem liquida-
ção, a totalidade de seu patrimônio ativa e passivamente mediante a atribuição aos acionistas
da ou das sociedades absorvidas de ações da sociedade absorvente e, eventualmente, de uma
compensação em espécie que não supere o 10% do valor nominal das ações atribuídas ou, a
falta de valor nominal, de seu valor contável”. Nos países da União Européia se implantou a
Diretora Comunitária mediante normas internas (p. ej., França: Artigo L. 235-1 do Código de
Comércio, e Espanha: Artigo 233 da Lei de Sociedades Anônimas).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


316 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 317

nistas. Um dos precedentes mais importantes que foram assentados pela Cor-
te neste sentido, pode ser encontrar no caso Weinberger v. UOP Inc776. A deci-
são se refere à demanda instaurada pelo senhor Weinberger, acionista minoritário
de UOP Inc., em face desta mesma companhia. No litígio mencionado, a
sociedade matriz de UOP (denominada The Signal Companies Inc.) tinha efe-
tuado uma fusão com exclusão de acionistas, em virtude da qual Weinberger
tinha sido obrigado a receber uma soma de dinheiro como contraprestação
pela totalidade de suas ações em UOP. O acionista impugnou a operação,
mediante o argumento de que o preço oferecido para a compra das ações dos
minoritários tinha sido arbitrário. Ainda que a Corte tenha admitido sem
maiores reservas as pretensões formuladas por Weinberger, no texto da sen-
tença se assentaram os princípios que dali em adiante seriam aplicáveis às
fusões com exclusão de acionistas777. Para tanto, concebeu-se o denominado
critério de equidade absoluta (entire fairness test), que se baseia no cuidadoso
exame das condições em que a operação foi realizada. Se o juiz considera que
nela se fixou um preço justo pelas ações dos minoritários (fair price) e que,
ademais, procedeu-se com honestidade durante todo o processo (fair dealing),
poderá ratificar a validade da fusão778. Caso contrário, deverá ordenar sua re-
versão ou exigir que se ajuste o preço, de modo a restabelecer o equilíbrio
econômico da operação779. Claro que também se exige que “não se tenha in-
corrido em atuações de natureza fraudulenta ou negligente”780.
Por outro lado, é relevante considerar a importância crescente das deno-
minadas ofertas escalonadas (two-tier offers) como estratégia de aquisição no
mercado de valores mobiliários. Estas constituem um claro exemplo de mo-
dalidades mistas de concentração, pois permitem combinar a fusão com ex-

776 457 A.2d 701 (Del. 1983).


777 Cfr. O’KELLEY e THOMPSON, op. cit., pp. 765-779.
778 PALMITER informa que, segundo a Corte, “a fixação do preço justo não pode ser baseada de
modo exclusivo no denominado método de bloco de Delaware (‘Delaware’s block method’),
consistente na somatória de uma série de fatores relacionados com a atividade da companhia,
cuja combinação permite obter uma idéia aproximada do valor de suas ações. Para este propósi-
to, deverão levar-se em conta todos os fatores existentes e, de modo particular, os fluxos de caixa
projetados da sociedade. Este último método, denominado fluxo de caixa descontado (‘discounted
cash flow method’), supõe trazer para o valor presente as disponibilidades de caixa estimadas da
companhia, para depois aplicar uma taxa de desconto determinada. Assim, o método permite
calcular o valor aproximado da sociedade” (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 401).
779 Assim, por exemplo, a Corte que decidiu o caso Weinberger v. UOP Inc. ordenou que se
reajustassem as condições econômicas da fusão. Cfr. CARY e EISENBERG, op. cit., p. 1184.
780 O’KELLEY e THOMPSON, Corporations..., cit., p. 765.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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318 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

clusão de acionistas e as ofertas públicas de aquisição (tender offers). No meca-


nismo assinalado a estratégia do adquirente se orienta a reduzir os custos da
operação, mediante a difusão no mercado de um anúncio tão contundente
como inquietante. Trata-se de dar publicidade a uma oferta pública de aqui-
sição e informar ao mercado a respeito da intenção do adquirente de realizar
posteriormente uma fusão acompanhada da exclusão de acionistas. Segundo o
já explicado, se esta última operação se realiza, o adquirente terá a faculdade
legal de adquirir as participações dos acionistas minoritários, sem que estes
tenham a possibilidade de negar-se a celebrar o negócio jurídico de compra.
Certamente, o preço que terá que ser pago pelas ações na fusão será, provavel-
mente, menor do que o previsto na oferta pública inicial. É por isso que o
anúncio mencionado teria, normalmente, o efeito de persuadir aos acionistas
no sentido de aceitar qualquer preço que se ofereça na proposta primitiva.
Efetivamente, a ameaça que pesa sobre os minoritários de ser excluídos dentro
do processo de fusão e de se verem compelidos a aceitar um menor valor por
suas ações, os conduzirá normalmente a aceitar o preço e as condições da
oferta pública original.
A partir destas considerações, BAINBRIDGE formulou uma interes-
sante análise, cujo fundamento pode ser encontrado na denominada teoria
dos jogos781. Em sua opinião, “as ofertas escalonadas são efetivas na medida
que os acionistas não fazem em conformidade com o interesse coletivo. Supo-
nhamos, por exemplo, que um sujeito formule uma oferta pública de aquisi-
ção de cinqüenta e um por cento das ações da sociedade alvo, por um valor de
cinqüenta dólares por ação. De modo simultâneo, quem oferece manifesta sua
intenção de realizar uma fusão com exclusão de acionistas, na qual se proporá
adquirir o resto das ações por um valor individual de quarenta dólares. Apesar
de que os acionistas possam reparar rapidamente que o preço estabelecido na
oferta pública não se ajusta ao valor de mercado, tenderão a aceitar a oferta,
pois poderão supor, logicamente, que os demais acionistas também o farão.

781 A teoria dos jogos alude à divergência “entre a racionalidade individual e a racionalidade
coletiva” (RODRÍGUEZ, Cándido Paz-Ares. Dividendos a mudança de votos? Madri: McGraw-
Hill/Interamericana de Espanha S.A., 1996, p. 95). Segundo esta tese, as dificuldades que se
apresentam para atuar de forma coletiva dão lugar à natural inclinação dos indivíduos a agirem
segundo seus interesses particulares. Assim, em vez de atuar em conformidade com o benefício
coletivo – que em geral representa a decisão mais racional –, cada sujeito tentará satisfazer suas
próprias necessidades. O clássico dilema do prisioneiro permite ilustrar a aplicação prática
desta teoria. Para uma descrição detalhada do referido dilema, pode ver-se a mesma obra de
PAZ-ARES RODRÍGUEZ (pp. 95-97).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 319

Na verdade, todos os acionistas se verão inclinados a alienar suas ações sob os


termos da oferta pública, a fim de obter um maior benefício individual”782.
É claro, por outro lado, que se no mesmo exemplo proposto por
BAINBRIDGE se supusesse que os acionistas atuassem de modo coletivo, o
lógico seria que recusassem a oferta pública de aquisição para pressionar ao
adquirente a oferecer um maior preço. A realidade ensina que o exemplo
proposto por BAINBRIDGE é o que ocorre na prática, vale dizer, que cada
um dos acionistas destinatários da oferta pública atuará racionalmente de acordo
com seu próprio interesse. Assim, o resultado coletivo será pior que o que se
teria obtido se os acionistas cooperassem entre si783.
Também ocorre com relativa freqüência que uma companhia constituí-
da num Estado determinado estime conveniente que a legislação aplicável a
suas operações seja a de uma jurisdição diferente. Devido à existência de uma
multiplicidade de legislações societárias, os acionistas e administradores po-
dem determinar qual delas todas elas será mais adequada para realizar as ati-
vidades empresariais da sociedade. Com este propósito é viável para uma
companhia criar outra diferente num Estado cuja legislação seja considerada
mais favorável. Posteriormente, se realizará uma concentração, de tal maneira
que a sociedade subsistente fique regida pelas leis do novo Estado784. Neste
caso, como é evidente, os acionistas, administradores, ativos, passivos e objeto
da sociedade subsistente serão os mesmos da companhia original. Devido ao
fato que as leis estatais costumam mudar constantemente de sentido, a fusão
se converte num mecanismo útil para aquelas companhias interessadas em
beneficiar-se da orientação das leis de outro Estado.

B. TRANSFERÊNCIA GLOBAL DE ATIVOS (SELL OF ALL OR


SUBSTANTIALLY ALL ASSETS)

Outro conhecido mecanismo para unificar o controle de duas companhias


é aquele pelo qual uma sociedade aliena completa ou substancialmente seus
ativos e recebe em troca dinheiro ou ações da companhia que os adquire785.

782 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 314.


783 RODRÍGUEZ, Paz-Ares, op. cit., p. 97
784 O’KELLEY e THOMPSON, op. cit., p. 765.
785 Como acertadamente sustenta SOLOMON, “devido ao fato que o negócio de uma companhia
não é outra coisa que a soma de seus ativos tangíveis e intangíveis, seu controle pode ser
transferido mediante seu transferência global” (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 533). Existe

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320 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Ainda que isso nem sempre ocorra, é viável que a sociedade adquirente prescin-
da de assumir os passivos da companhia cujos ativos se alienam786. Caso se adote
tal determinação, as contingências que resultantes da concentração podem ser
atenuadas de maneira significativa787.
No caso da transferência global de ativos – diferentemente do que sucede na
fusão – o ente societário que aliena uma parte substancial de seus ativos não deixa
de existir imediatamente. Em geral, a companhia que transfere “continua existin-
do pelo menos até depois de ter concluído a transferência”788. Com alguma fre-
qüência, uma vez que a operação foi realizada, a companhia se liquida e os ganhos
derivados da transferência, representados em dinheiro ou em ações da sociedade
adquirente, são distribuídos entre seus acionistas789. Como é natural, a sociedade
que transfere poderia também retomar suas atividades de exploração econômica,
seja mediante a aquisição de novos ativos produtivos, seja por meio do investi-
mento dos recursos adquiridos em outras sociedades ou em papéis comerciais.

alguma dificuldade em diferenciar aqueles casos em que a operação consiste numa venda de
ativos com o efeito de ceder o controle de uma companhia, em relação a outras situações em
que a transferência corresponde ao giro ordinário dos negócios. Sob a Nova Lei Tipo de
Sociedades de Capital (RMBCA), a “transferência substancial de ativos” é equivalente a quase
“todos” ou “a maioria” de ativos de uma companhia De acordo com SOLOMON, esta definição
“impede que, ao reter uma porção insignificante de ativos se prescinda da aprovação dos
acionistas e se negue o direito de retirada”. Sob o regime vigente em certas jurisdições, aplicam-
se critérios quantitativos e qualitativos. De acordo com estes regimes, se a transferência é
quantitativamente essencial para as operações da companhia ou qualitativamente fundamental
para sua existência, se requererá a aprovação da assembléia geral de acionistas (Ibidem p. 535).
786 HAMILTON et al., op. cit., p. 348. Não obstante, ainda que se realize uma seleção cuidadosa dos
ativos e passivos que se pretende adquirir, existe sempre o risco de que os juízes considerem que
se produziu a assunção tácita de certos passivos adicionais por parte da companhia adquirente.
Isso ocorreu, por exemplo, em casos de sociedades que alienam globalmente seus ativos, para
depois dissolver-se e repartir a quota social de liquidação, antes de produzir-se a notificação de
uma demanda relacionada com danos ambientais. Nestas circunstâncias, alguns juízes declara-
ram que a responsabilidade por tais contingências deve ser estendida à companhia subsistente.
Isso se deve à aplicação da teoria da fusão de fato ou “continuação” da personalidade jurídica
da companhia extinta (Ibidem, p. 348).
787 Sobre as aproximações que se fizeram a esta figura no caso brasileiro, consulte-se o interessante
estudo de Alex Prandini Jr (Trespasse e Cisão Parcial – Similitudes. Reorganização Societária...
op. cit., pp. 363 e ss).
788 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 9
789 KLEIN et al., op. cit., p. 209.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 321

Gráfico 4: Neste exemplo, ao concluir uma transferência global de ati-


vos, as duas sociedades participantes se conservam. A sociedade que transfere,
Beta Inc., subsiste com um único ativo, representado em ações de Alfa Inc.,
recebidas como contraprestação pela transferência de seus ativos. No caso de
produzir-se a liquidação de Beta Inc., seus acionistas receberiam as ações de
Alfa Inc., a título de quota social de liquidação. Esta última operação é muito
semelhante à denominada fusão simples, devido ao fato que os efeitos que são
produzidos são virtualmente idênticos: 1. Transferência em bloco de patri-
mônios; 2. Extinção das sociedades adquiridas, e 3. Incorporação dos acionis-
tas das companhias adquiridas na sociedade adquirente.
Nos Estados Unidos, o procedimento requerido para aprovar a transfe-
rência de ativos é similar ao previsto para a fusão de sociedades. Efetivamen-
te, a respectiva proposta deve ser avalizada pelo Conselho de Administração
da companhia que se propõe a realizar transferência. Nas legislações estadu-
ais se costuma exigir, também, uma aprovação posterior por parte das assem-
bléias gerais de acionistas da sociedade que transfere790. Em princípio, não se
exige a aprovação da assembléia geral de acionistas da companhia que adqui-
re os ativos.

4. MECANISMOS DE PROTEÇÃO PARA ACIONISTAS E


CREDORES SOB AS LEIS ESTADUAIS
Tanto a fusão como a transferência global de ativos se caracterizam por
uma concentração de patrimônios. Devido aos efeitos adversos que estas ope-
rações podem ter a respeito de acionistas e de terceiros, as legislações estaduais
e a jurisprudência norte-americana desenvolveram mecanismos de proteção
para garantir os direitos de uns e de outros791.

790 Além disso, deve ter-se em mente que as legislações de todos os Estados exigem a aprovação
dos acionistas no caso de que a transferência de ativos seja realizada entre controladoras e
controladas, a não ser que se trate de subsidiárias “integrais”, vale dizer, cujo capital pertença
em sua totalidade à controladora (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 529).
791 Segundo Paulo Mattar Filho, “os negócios de incorporação, fusão e cisão podem afetar as
relações com credores e resultar, inclusive, na diminuição dos direitos destes, na medida em que
implicam, normalmente, alterações expressivas dos elementos que compõem o patrimônio da
sociedade (...) Desta forma, diante do princípio da segurança jurídica das relações contratuais, é
inegável a necessidade de se construírem mecanismos de proteção aos interesses dos credores
contra as mutações do patrimônio social decorrentes das operações societárias conduzidas pela
vontade exclusiva dos sócios ou acionistas...” (O sistema de proteção aos Credores nas Opera-
ções de Incorporação, Fusão e Cisão. In: Reorganização Societária... op. cit., pp. 310-311).

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322 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

A. DIREITO DE RETIRADA
O Direito Societário outorga aos acionistas majoritários a possibilidade de
impor as deliberações fundamentais da sociedade e as modificações que serão
realizadas em sua estrutura, ainda que contrariamente à vontade das minorias.
Nas palavras de SOLOMON, “a lei das maiorias dá à sociedade a flexibilidade
que ela requer para se adaptar a novas circunstâncias. Também pode constituir-
se num instrumento de opressão para forçar os acionistas minoritários a aceita-
rem um preço injusto por suas ações ou para convertê-los em reféns de uma
companhia reestruturada que não contemplaram ao entrar na sociedade nem
consideram desejável”792. As legislações estaduais costumam proteger às facções
minoritárias, cujos interesses poderiam ver-se afetados como conseqüência de
modificações estruturais da sociedade. Por isso, outorgam-lhes direitos seme-
lhantes aos de recesso ou retirada. Em virtude destes mecanismos, os acionistas
dissidentes a respeito de uma operação de reorganização têm o direito que a
sociedade recompre suas participações no capital por um preço justo793.
O mencionado direito, no entanto, pode ser invocado apenas em casos
específicos segundo a lei de cada Estado. O critério aplicável nestas regulações
tem a ver com o importância de modificação organizacional que os sócios pre-
tendem introduzir. Em certa medida, a presença de uma mudança fundamental
nas circunstâncias de associação (rebus sic stantibus) justifica em maior medida a
presença de direitos subjetivos para os acionistas minoritários. Daí que, enquan-
to que na totalidade das jurisdições estaduais esteja consagrado o direito de
retirada para os casos de fusão ou consolidação, não ocorre o mesmo em se tra-
tando da transferência de ativos, ainda que para ela também costume ser a regra
geral. Ao contrário, quando as modificações estruturais são de menor importân-
cia, tais como simples reformas estatutárias ou operações que impliquem um
aumento de capital, tais prerrogativas individuais costumam ser descartadas794.

792 Ibidem, p. 543


793 CLARK trata sobre a evolução histórica do direito de retirada nos Estados Unidos. Neste
contexto, ele é explicado como uma prerrogativa indispensável para substituir o antigo princí-
pio de unanimidade que regia sob as legislações do século dezenove. Assim, o recesso se
apresenta como um caminho intermediário entre a necessidade pouco prática de contar com
o consenso da totalidade dos acionistas e os possíveis efeitos nocivos a que pode dar lugar a
imposição das determinações majoritárias. (Cfr. CLARK, Robert C. et al., op. cit., p. 444).
A figura do direito de retirada tem se difundido, com amplitude, no direito societário contem-
porâneo; assim, no caso do Brasil, por exemplo, encontra-se também esta figura no artigo 137
da Lei de sociedades por ações.
794 CLARK, David S., p. 325

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 323

Quando um acionista se encontra em uma situação que enseja o exercício


do direito de retiro, este deve cumprir certos procedimentos conducentes ao
reembolso que dele se deriva. É interessante observar que sob as legislações
estaduais a manifestação do direito de retirada costuma ser prévia à deliberação
que o origina. Efetivamente, não basta votar contrariamente à determinação
correspondente, mas também deve-se proceder com a notificação da intenção
de exercê-lo antecipadamente à data em que se aprova a modificação estrutu-
ral. Em alguns Estados entre eles o de Delaware, depois de efetuar a notifica-
ção, o acionista deve instaurar perante a justiça uma ação de retirada (appraisal
action). Curiosamente, o acionista demandante deve assumir, ao menos inicial-
mente, a totalidade dos gastos relacionados com o litígio. Naquelas jurisdições
regidas pela Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA) tenta-se, ao
contrário, que o direito de retirada se constitua uma opção realista. À luz des-
tas normas, uma vez que o acionista dissidente solicitou o pagamento e tendo
transferido suas ações à companhia, esta deve pagar um valor que, a seu critério,
represente o preço justo delas. Conforme estas legislações estaduais, a solução
judicial se apresenta como um recurso extremo, relegado àqueles casos em que,
além de considerar que a avaliação efetuada pela companhia é insuficiente, o
acionista minoritário fracassou em todas as tentativas de negociação795.
É importante assinalar a dificuldade que representa estabelecer o que se
considera como o preço justo pelas ações, cuja recompra compete à compa-
nhia. A avaliação deve levar em conta fatores tais como o preço de mercado, os
ganhos anteriores da companhia e a projeção dos resultados futuros da socie-
dade, entre outros. Não obstante, segundo SOLOMON, “em geral, as cortes
determinam o valor do reembolso a partir do valor comercial que as ações
tinham na data da votação”796. Ao contrário, sob a Nova Lei Tipo de Socieda-
des de Capital, a data de corte para efeitos de determinar o valor que terá que
ser reconhecida aos dissidentes é a data imediatamente anterior àquela da
deliberação que origina o direito de retirada seja adotada. A diferença de en-
foque entre as normas de Delaware e a Lei Tipo é de grande importância.
Efetivamente, é evidente que a própria deliberação pode incrementar ou di-
minuir o preço da ação, segundo a percepção que o público possa ter dos
efeitos da operação. Assim, parece mais razoável o enfoque da Lei Tipo, devi-

795 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 545


796 Ibidem, p. 546

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324 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

do ao fato que se reconhece ao acionista o mesmo valor que teria recuperado se


tivesse efetuado uma transferência de suas ações antes de realizado o evento
que deu lugar ao direito de retirada.
É evidente que a existência de direitos de retirada pode dar lugar a um
aumento considerável dos custos relacionados com uma concentração. É por
isso que a existência destas prerrogativas pode representar uma regra decisiva
para escolher entre um mecanismo que gera custosos direitos de retirada e outra
técnica que conduza ao mesmo resultado de concentração sem que implique
gastos econômicos significativos para a companhia ou os acionistas majoritários.

B. DOUTRINA DA FUSÃO “DE FATO” E DOUTRINA DA


RESPONSABILIDADE “DO CESSIONÁRIO”

A técnica societária pode ser utilizada de forma abusiva para evadir a


aplicação de disposições imperativas ou transgredir direitos que a lei outorga
aos sócios ou a terceiros. Em algumas ocasiões, pode-se- chegar à estruturação
de mecanismos de concentração tendentes a evadir os requisitos legais que
normalmente deveriam ser cumpridos. Seria viável, por exemplo, desenhar
uma aquisição de ativos de tal maneira que se obtivessem os resultados pró-
prios de uma fusão. Nesta hipótese, o objetivo inconfessável poderia consistir
em eivitar o trâmite de aprovação por parte da assembléia de acionistas, de
forma a privar aos sócios de seu direito de retirada. Do mesmo modo, uma
transferência global de ativos poderia ser moldada de forma que nenhum
passivo seja transferido à companhia adquirente797. A jurisprudência norte-
americana desenvolveu mecanismos de proteção que tendem a neutralizar os
possíveis abusos que possam resultar destas estratégias. Para tanto, existem
duas teorias plenamente identificadas pela dogmática estadunidense, sob as
denominações de doutrina da fusão de fato (de facto merger doctrine) e doutri-
na da responsabilidade do cessionário (successor liability doctrine).
A primeira delas se baseia na possibilidade de estabelecer a equivalência
funcional entre a transferência global de ativos e a fusão, naqueles casos nos
quais aquela figura foi selecionada como meio para negar aos acionistas os
direitos que teriam se a operação se estruturasse como uma fusão. Uma vez
estabelecida tal equivalência, o juiz tenderia a outorgar as mesmas proteções

797 HAMILTON et al., op. cit., p. 348.

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324 5/7/2011, 18:05
FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 325

que surgiriam de uma fusão798. Esta doutrina faz inúteis os esforços de criar
complexas manobras para evitar o trânsito pela assembléia de acionistas. É por
isso que esta proteção judicial não se circunscreve de modo exclusivo às trans-
ferências globais de ativos. Existem outras modalidades de concentração, tais
como as fusões triangulares, nas quais a doutrina pode ser aplicada, devido ao
fato que nelas também pode se evitar a aprovação da assembléia. Daí que os
juízes estejam facultados para aplicar a teoria mencionada em relação a outras
operações de concentração nas quais se tente omitir a participação dos acio-
nistas. No caso particular das fusões triangulares, por exemplo, “a corte pode
decidir ignorar a figura utilizada para efetuar a concentração, de modo a assi-
milar a fusão triangular a uma fusão simples. Caso se produza tal determina-
ção judicial, os acionistas da sociedade adquirente poderão exercer todos os
direitos que resultam desta última classe de operações”799.
Apesar de que a teoria mencionada se oriente à proteção dos direitos dos
acionistas, foi objeto de diversas críticas. Alguns autores estimam que a possibi-
lidade de que se realizem estas operações constitui uma contingência consciente-
mente assumida pelos sócios no momento que se vincularam à sociedade. Assim,
não se considera que devam ser objeto de uma especial proteção nesta classe de
situações. Talvez por isso, “em muitos dos Estados em que as cortes aplicaram a
teoria da fusão de fato, a legislação escrita reagiu para abolir essa doutrina”800.
Por outro lado, mediante a doutrina da responsabilidade do cessionário,
tenta-se a proteção dos credores de uma sociedade que efetuou uma transfe-
rência global de seus ativos. Segundo esta teoria, para garantir o pagamento de
certas dívidas “se estende a responsabilidade à companhia adquirente (ou a
qualquer outro cessionário posterior) sempre que o litígio ou contingência

798 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 536. O célebre caso Farris v. Glen Alden Corporation [143
A.2d 25 (Pa. 1958)] é paradigmático na aplicação desta doutrina. Neste litígio, Glen Alden
Corporation adquiriu a totalidade dos ativos de uma companhia de maior dimensão denomi-
nada List Industries Corporation. Como contraprestação, List Industries recebeu ações emitidas
por Glen Alden. Depois de aperfeiçoar-se a operação, adotou o nome de List Industries. Um
acionista de Glen Alden argumentou ante a Corte que a operação realizada correspondia, em
sua essência, a uma fusão, e que, em conseqüência, tinha direito a retirada acompanhado do
reembolso de sua participação. A Corte Suprema de Pensilvânia, ao concordar com a argumen-
tação do demandante, conferiu-lhe o direito a retirar-se da sociedade. (Cfr. CARY e EISENBERG,
op. cit., p. 1129). Em vista desta especial proteção, alguns autores estimam que a doutrina da
fusão de fato “é uma clara manifestação da primazia da realidade sobre as formalidades legais”
(BAINBRIDGE, “Mergers..., cit., p. 206).
799 Ibidem, p. 206.
800 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 536.

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326 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

fosse desconhecido ou incerto no momento da concretização da transferência


dos ativos”801. As cortes costumam aplicar esta teoria naqueles casos em que a
reclamação surge de responsabilidade civil extracontratual, de dano ambiental
ou quando tem relação com os direitos dos consumidores em relação aos pro-
dutos oferecidos pela companhia que alientante802.

5. MECANISMOS DE CONCENTRAÇÃO NÃO PREVISTOS SOB


AS LEGISLAÇÕES ESTADUAIS (NON-STATUTORY
ACQUISITION TECHNIQUES)
Como se explicou, existem outras estruturas tendentes à concentração
de sociedades que podem não estar consagradas explicitamente nos códigos
societários estaduais. Dentro de tais esquemas são dignas de menção as deno-
minadas aquisições de participações significativas de capital e as chamadas
competições para obtenção de procurações de voto. Umas e outras estão regi-
das pela legislação federal sobre o mercado de valores.

A. AQUISIÇÕES DE PARTICIPAÇÕES SIGNIFICATIVAS DE CAPITAL


As aquisições de participações significativas no capital podem permitir que
o adquirente tome o controle de uma companhia, mediante o domínio de uma
percentagem de ações suficiente para eleger à maioria dos membros do Conse-
lho de Administração. Em geral, pode-se dizer que existem duas maneiras pelas
quais estas aquisições podem ser realizadas. A primeira delas se dá mediante
uma operação de mercado na qual o investidor interessado tenta cativar os titu-
lares de ações, mediante o oferecimento público de um preço atraente. Devido
ao fato que esta operação costuma envolver o denominado prêmio de controle
(Control Premium), as regulações do mercado de valores mobiliários buscam que
todos os titulares de ações tenham a oportunidade de beneficiarem-se desse
maior preço, por meio de mecanismos de publicidade. O segundo sistema de
aquisição se dá, naturalmente, por meio da aquisição de ações em sociedades
fechadas. Devido ao fato que nelas costuma existir o direito de preferência na
transferência de ações, a operação requer, em geral, uma renúncia a tal prerroga-
tiva por parte dos demais acionistas, tal como se analisará mais adiante.

801 Ibidem.
802 HAMILTON et al., op. cit., p. 348.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 327

I. AQUISIÇÃO DE AÇÕES NO MERCADO PÚBLICO DE VALORES


Em condições de alta concentração de capital, se exigiria ter mais de cin-
qüenta por cento das ações em que se dividem o capital de uma companhia
para poder consolidar-se no controle do seu Conselho de Administração. No
entanto, em mercados de capitais altamente evoluídos como o norte-america-
no, é possível, na prática, exercer controle sobre uma sociedade mediante a
aquisição de uma percentagem inferior. Isso se deve à notória dispersão do
capital que costuma ocorrer em tais mercados, cuja origem se encontra na pre-
sença de inumeráveis investidores independentes e sem interesse de atuar de
modo coordenado. É por isso que no sistema que se analisa é viável conseguir
uma concentração societária ainda contrariamente à vontade dos administra-
dores e dos acionistas controladores.
Ainda que o meio mais idôneo para conseguir uma concentração plena de
patrimônios entre as companhias participantes constitui, sem dúvida, a fusão, a
possível renúncia da administração da companhia alvo em participar no respec-
tivo processo pode tornar aconselhável uma aquisição de controle. A sociedade
adquirente pode, efetivamente, tomar o controle da gestão daquela mediante a
compra indiscriminada de participações no capital, até atingir uma percenta-
gem maior àquela que tem aqueles que exercem o domínio administrativo.
É evidente que nestas operações, diferentemente de como ocorre nas fu-
sões e nas transferências de ativos, os patrimônios das companhias que se con-
centram permanecem independentes. Por isso se afirma que nesta classe de
operações “a concentração se produz como resultado dos acordos celebrados
entre a sociedade ofertante e os acionistas individuais da companhia adquirida.
De forma que não ocorre uma ingerência formal desta última como ente socie-
tário, isto é, não há atuações do Conelho, nem votação na assembléia geral de
acionistas, nem transferência de ativos, etc.”803.
Segundo se assinalou antes, a necessidade de salvaguardar os direitos dos
acionistas e de preservar as regras de jogo claras para estas operações justifica a
presença de detalhadas regulações normativas. Assim, a aquisição de uma per-
centagem significativa de ações com o propósito de obter o controle de uma
companhia édispendiosa na prática. A necessidade de cumprir com embara-
çosas formalidades legais, somada ao efeito que uma aquisição poderia gerar

803 KLEIN et al., op. cit., p. 209.

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328 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

no preço de mercado das ações da sociedade alvo, faz que os custos operacio-
nais e de informação relacionados com estes mecanismos sejam, muitas vezes,
elevados804. As denominadas ofertas públicas de aquisição (tender offers) per-
mitem com que oo investidor resolva muitos dos inconvenientes relacionados
com a aquisição de participações significativas no capital. Elas supõem que,
“para chegar com presteza aos acionistas dispersos e minimizar os riscos deri-
vados da operação, quem oferece propõe de maneira pública comprar as ações
a um preço superior ao do mercado, com a condição de que um número
suficiente destas sejam alienadas a seu favor, dentro de um prazo previamente
estabelecido”805. A denominação inglesa de tender offer que se dá a estas ope-
rações descreve de modo ilustrativo o que sucede depois da oferta descrita:
aqueles acionistas que decidem aceitar a oferta “estendem” suas ações a quem
fez a oferta, quem, uma vez atingida a proporção necessária, optará por adqui-
ri-las em sua totalidade ou por desistir do negócio se tal proporção não é
obtida806. Certamente, o investidor interessado807 terá mais possibilidades de
conseguir seus propósitos, devido ao fato que o negócio jurídico só se aperfei-
çoará na medida em que se reúna a quantidade desejada de ações. Se a aquisi-
ção se aperfeiçoa, quem fez a ofertaascenderá a uma percentagem de ações
suficiente para eleger um Conselho de Administração que seja condescen-
dente com o que o adquirente deseja para a sociedade. O problema que susci-
ta o comentado mecanismo é que, ao sujeitar a validade da oferta a um breve
prazo, exerce-se grande pressão sobre os acionistas, quem poderiam ver-se

804 Na opinião de BAINBRIDGE, “estas técnicas apresentam notórias desvantagens, devido ao


tempo que deve-se empregar para executá-las” (BAINBRIDGE, Corporation Law…, cit., p. 651).
805 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 556. É particularmente ilustrativa a descrição de tender offers
formulada pela jurisprudência norte-americana, em conformidade com os seguintes oito fatores:
“1) Oferta amplo e ativo efetuado por um acionista de uma sociedade inscrita em bolsa, a
respeito de suas ações;
“2) Oferta de uma percentagem substancial das ações da sociedade emissora;
“3) A oferta é feito com um prêmio sobre o valor de mercado da ação;
“4) A oferta é definitiva, isto é, não sujeita a posterior negociação;
“5) A oferta efetuada depende do oferecimento em venda de um número determinado de ações
e, possivelmente, mediante especificação da percentagem máxima de ações que o adquirente
pretende comprar;
“6) A oferta está aberta somente por um período limitado de tempo;
“7) Os destinatários da oferta se encontram pressionados para vender suas ações; e
“8) Efetua-se um anúncio público, em forma antecedente ou concomitante com a venda, que
permite a rápida acumulação de ações” [Wellman v. Dickinson, 475 F. Supp (SD NY 1979),
tomado de GAUGHAN, op. cit., p. 67].”
806 HOWELL, Rate A. et al., op. cit., p. 731
807 Também conhecido na terminologia norte-americana como raider.

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 329

compelidos a vender suas participações sem contar com suficiente informação


sobre os aspectos relevantes do negócio808.
Antes de 1968 não existia legislação federal relativa a estas operações em
particular. A já citada Lei Williams (Williams Act)809 introduziu nesse ano regras
sistemáticas sobre as aquisições que são realizadas por meio de ofertas públicas de
aquisição. A mencionada lei federal surgiu como conseqüência das numerosas
tomadas de controle efetuadas mediante ofertas públicas durante a década de
sessenta. Estas operações tomaram despercebidos administradores e acionistas
por igual, de modo que uns e outros se viram forçados a adotar determinações
cruciais em períodos muito breves. A necessidade de contar com um período de
tempo suficiente para a adoção de decisões racionais, com fundamento em toda a
informação disponível, “levou o Congresso federal a expedir a citada Lei
Williams”810. Nesta norma se previram medidas para proteger aos acionistas
confrontados com esta classe de situações. Nas palavras de SOLOMON, no
mencionado estatuto “se tenta que os sócios obtenham suficiente informação
sobre a oferta e que seja dado a eles o tempo adequado para avaliá-la”811.
A Regra 13 (d) da regulamentação descrita dispõe que dentro de cinco
dias posteriores à aquisição de cinco por cento ou mais das ações em circulação
de uma sociedade, o adquirente deve informar a aquisição à Comissão de
Valores. Segundo o explica GAUGHAN, a formalidade mencionada atua
como um sistema de alerta tanto para os acionistas como para a administração
da sociedade, ante a ameaça de uma tomada de controle. “Esta norma estabe-
lece a necessidade de revelar as intenções do adquirente de ações, quando estas
atingem uma porcentagem de cinco por cento da totalidade das ações que a
sociedade alvo tem em circulação [...]. A revelação da informação pertinente,
em conformidade com as regras previstas na Seção 13 (d), é necessária inclu-
sive naqueles casos em que não existe uma oferta pública de aquisição”812.

808 Deve-se enfatizar em que a oferta pública de aquisição se apresenta como uma técnica muito
apropriada para atingir o controle sobre uma companhia, em especial, em operações hostis de
concentração. Na década de oitenta a maioria dos investidores escolheram este mecanismo
sobre as competição para obtenção de procurações de voto, possivelmente porque a primeira
“proporcionava um elemento de surpresa e, por tanto, uma maior possibilidade de sucesso do
que a contenda” (SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 555).
809 Esta disposição introduziu reformas nos números 13d e 14d da Lei de Negociação de Valores 1934.
810 CLARK, Robert C. et al., op. cit., p. 547
811 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 581.
812 GAUGHAN, op. cit., p. 56. O autor informa também a respeito da paulatina flexibilização da
norma estudada, no referente à porcentagem requerida para exigir a aplicação do mecanismo

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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330 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

O dia em que se formula a proposta, quem faz a oferta tem a obrigação


de apresentar um documento de revelação (disclosure document) à Comissão de
Valores (SEC)813. Em dita declaração devem ser revelado, entre outros dados,
o propósito da aquisição e as intenções do investidor a respeito da compa-
nhia814. Adicionalmente, a oferta se caracteriza por certos requisitos materiais.
É necessário que permaneça vigente por um prazo mínimo de vinte dias úteis.
Durante este lapso os acionistas poderão apresentar seus títulos de ações ou
retirá-los a qualquer momento. Assim, a oferta deve ser dirigida a todos os
acionistas sem discriminação alguma e pelo mesmo preço
II. AQUISIÇÃO A RESPEITO DE SOCIEDADES DE CAPITAL FECHADO

As operações de aquisições em sociedades que não negociam suas ações


nas bolsas de valores mobiliários, são reguladas conforme às regras estaduais
previstas para a negociação de ações. Nessa medida se exigirá, em geral, o
cumprimento de requisitos estatutários tais como a renúncia a direitos de
preferência, bem como de outras disposições de ordem interna tais como o
esgotamento de opções de compra ou venda, etc. A circunstância de não esta-
rem envolvidos recursos provenientes da poupança privada faz desnecessária a
presença de controles governamentais ou de requisitos de divulgação de infor-
mação. As características próprias das sociedades de capital fechado (closely
held corporations)815 determinam que o regime jurídico da aquisição seja me-
nos exigente que o analisado a respeito das sociedades inscritas em bolsa de
valores. Apesar da relativa carência de controles especiais sobre a transferência
de ações em sociedades fechadas, deve-se ter-se em mente que a jurisprudên-
cia norte-americana se referiu, de maneira especial, aos deveres fiduciários dos
administradores desta classe de companhias, de forma que os acionistas –

ali contemplado. “Quando a lei foi inicialmente promulgada, a porcentagem era de um 10%.
No entanto, tal nível foi considerado demasiado alto, pelo que se fez necessário reduzi-lo a
uma porcentagem mais conservadora, que se fixou em 5%” (Ibidem).
813 Este documento (disclosure document) é conhecido como “Schedule 14d”, porquanto
corresponde no ponto 14d da Lei de Negociação de Valores de 1934.
814 Ademais, a companhia que procura controle mediante uma oferta pública de aquisição deve
indicar sua “identidade e contexto”, a procedência dos fundos com os que se pensa financiar
a aquisição e o número de ações que já são de sua propriedade (SOLOMON e PALMITER, op.
cit., p. 581).
815 As particularidades a que se aludiu podem ser resumidas na presença de um número reduzido
de acionistas, a carência de um mercado aberto em que circulem as ações que elas emitem, a
participação substancial dos acionistas na gestão social e a existência de direitos preferenciais
na negociação de ações.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 331

especialmente os minoritários – gozam de especiais proteções em caso de vio-


lação dos deveres de lealdade e de cuidado. A jurisprudência estendeu tais
deveres também aos sócios controladores com respeito aos acionistas minori-
tários816, de forma tal que não se pode excluí-los da sociedade, negar-lhes a
possibilidade de participar na administração da companhia, nem privá-los da
participação nos resultados sociais ou das vantagens que poderia representar
uma aquisição por parte de um investidor.
Com o propósito de proteger aos titulares da minoria do capital nas
sociedades fechadas, as legislações estaduais consentem na inclusão de várias
estipulações contratuais que atuam como um mecanismo de defesa contra
eventuais atuações opressivas por parte dos sócios controladores. Dentro de tais
cláusulas teriam relevância, no caso de uma possível aquisição, as relativas a quóruns
e maiorias extraordinárias (superquorum and supermajority requirements), os acordos
de votação (pooling agreements), as causas voluntárias de dissolução (voluntary
dissolution) e os direitos de avaliação ou de retirada (appraisal remedy).
A existência de cláusulas desta natureza deve ser analisada com detalhe
antes de efetuar uma oferta de aquisição de ações, porquanto as referidas esti-
pulações poderiam dificultar a necessária participação dos órgãos sociais en-
volvidos. Assim, por exemplo, a existência de acordos de acionistas poderia
constituir um obstáculo para a venda de ações a um terceiro; a existência de
maiorias extraordinárias poderia tornar difícil de tomada de decisões na as-
sembléia geral de acionistas, se este for requerido; o direito de retirada poderia
tornar mais onerosa a operação em que se ceda o controle da companhia etc.
É claro que o mais comum dos obstáculos corresponde as restrições à livre
negociação das ações em sociedades fechadas. Os trâmites respectivos serão obri-
gatórios sempre que as restrições correspondam a uma estipulação válida. Não
obstante, é interessante observar como a jurisprudência norte-americana tem
interpretado algumas de tais cláusulas de maneira restritiva, de forma que a
validade dos direitos preferenciais mencionados depende, em geral, de duas cir-
cunstâncias: 1ª Que a pessoa que compra as ações conheça das restrições a sua
livre negociação; e 2ª Que a restrição não seja total, quer dizer, que não proíba ao
acionista de vender as suas ações a preço razoável ou aproximado ao preço real.

816 No caso Donahue v. Rodd Electrotype Co. [367 Mass. 578, 328 N.E.2d. 505 (1975)], a Corte
de Massachusetts foi enfática em assinalar que os acionistas majoritários estão submetidos a
uma obrigação de lealdade com respeito aos minoritários.

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332 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

B. COMPETIÇÕES PARA OBTENÇÃO DE PROCURAÇÕES DE VOTO


(PROXY CONTESTS)
Segundo se explicou, é viável que tanto os administradores sociais como
aqueles que possuam participações de controle recusarem a cooperação com o
adquirente. Daí que seja comum apelar à negociação direta com acionistas
minoritários, de modo a tentar seu concentimento à tomada de controle. Nas
competições para obtenção de procurações de voto, o investidor lança uma
campanha eleitoral com o propósito de obter a representação de uma percen-
tagem suficiente de ações para substituir à maioria do Conselho de Adminis-
tração da sociedade alvo. Em qualquer competição desta natureza, o interessado
tenta persuadir os acionistas a respeito dos benefícios que para eles represen-
taria uma mudança na administração817. Como é natural, os diretores contrá-
rios a quem realiza a campanha tentarão todos os recursos a seu alcance para
evitar que se produza a tomada de controle.
A legislação federal regula em detalhe tanto a solicitação de procurações
que se dirige aos acionistas (proxy solicitation) como a própria competição para
obtenção de procurações de voto (proxy campaign). Já se viu como as normas
relativas à busca de representação se orientam à proteção dos direitos dos acio-
nistas. Para tanto, tais disposições exigem, entre outros requisitos, o forneci-
mento de informação veraz e completa sobre os propósitos e o alcance do
mandato que se solicita818. A respeito da campanha propriamente dita, exi-
gem-se também diversos requisitos formais e substanciais, cuja determinação
foi formulada pela Comissão de Valores (SEC). Entre outras regras de obser-
vância obrigatória se encontra a obrigação por parte do investidor de revelar
ante a comissão toda a informação que seja pertinente a sua identidade, o
propósito da operação que se propõe realizar, bem como a respeito dos meios
que empregará para financiar a campanha819.
Ainda que sob certas circunstâncias as competição para obtenção de pro-
curações de voto possam representar um instrumento efetivo para adquirir o
controle sobre uma sociedade – em especial, naqueles casos em que o investi-
dor já tem alguma porcentagem das ações da sociedade –, o verdadeiro é que as
estatísticas demonstram que a mesma não é utilizada com muita freqüên-

817 SOLOMON e PALMITER, op. cit., p. 556.


818 Cfr. Capítulo II, supra.
819 Regra 14(a)-11 da Comissão de Valores (SEC).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 333

cia820. Isso se deve, possivelmente, ao fato de que a execução de uma estratégia


desta natureza implica confrontar consideráveis obstáculos legais e econômi-
cos821. Talvez por isso, o professor HENRY MANNE alude a esta classe de
contendas como “as mais custosas, as de maior incerteza e as menos usadas”
entre todas as técnicas de aquisição822. Isso se deve aos elevados custos da
competição823 e a escassa probabilidade de haver sucesso no propósito de obter
o controle da sociedade824. Em geral, quem tenta uma estratégia desta nature-
za deve incorrer em custos de assessoria jurídica, contábil e financeira, além
das despesas relacionadas com as estratégias de comunicação825. Claro que
quando o adquirente é vitorioso é viável que o Conselho de Administração e a
assembléia consintam em assumir os custos derivados da campanha826.
Além dos custos relacionados com as competições, o referido mecanismo
é visto como inconveniente frente a apatia geral que os acionistas mostram a
respeito desta classe de campanhas. É um fato que “os acionistas costumam
ter portfólios diversificados, de forma que são titulares de ações em numerosas
companhias. Provavelmente, a maioria deles não disporá de tempo nem dedi-
cará o atendimento necessário à análise dos argumentos daqueles que estão
interessados na tomada de controle”827. Em conformidade com a denominada

820 Durante o período compreendido entre os anos 1996 e 2002, levaram-se a cabo 215 compe-
tição para obtenção de procurações de voto. Na maioria delas não se tentava substituir o
Conselho de Administração da sociedade. Além disso, as mesmas estatísticas assinalam que as
competições que elas analisam eram realizadas, em geral, em sociedades de dimensões redu-
zidas. Efetivamente, “das sociedades nas quais ocorreram ditas competições, só dez tinham um
capital superior a duzentos milhões de dólares” (BEBCHUK, Lucian Arye. Designing a Shareholder
Access Rule. In: Discussion Paper Séries nº 461, Boston, John M. Olin Center for Law, Economics,
and Business, Harvard Law School, 2004).
821 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 250.
822 Citado por BAINBRIDGE, Ibidem, p. 250. MANNE, Henry G. Mergers and the Market for
Corporate Control. In: J. Pol. Econ. 110, 114, 1965, nº 73.
823 Calcula-se que uma competição para obtenção de procurações de voto pode custar ao inves-
tidor interessado em adquirir o controle de uma sociedade de grandes dimensões entre dois e
dez milhões de dólares. (Cfr. KLEIN et al., op. cit., p. 180). Com razão se afirma que estas
competições “não foram o mecanismo mais utilizado, principalmente porque as possibilida-
des de sucesso são relativamente baixas. Ademais, quem se propõe uma tomada de controle
usualmente conta com suficiente dinheiro para adquirir o controle mediante uma oferta
pública de aquisição”. (HAMILTON et al., op. cit., p. 364).
824 No período compreendido entre 1984 e 1990, por exemplo, calcula-se que só 28% das
competições para obtenção de procurações de voto tiveram resultados favoráveis para o que as
iniciou (KLEIN et al., op. cit., p. 180).
825 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 250.
826 HENN, Laws of Corporations, cit., p. 526. Os administradores, ao contrário, em vantagem
frente aos adquirentes neste aspecto, já que segundo as leis estatais lhes é permitido dispor dos
fundos da companhia para financiar os custos que implique a realização de suas próprias
campanhas. (BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 250).
827 KLEIN et al., op. cit., p. 178.

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334 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

regra de Wall Street, existe uma marcada tendência por parte dos acionistas
no sentido de apoiar o Conselho já instalado ou, no caso de insatisfação com
este, vender suas participações no capital da sociedade. Segundo KLEIN, é
evidente que nenhum dos dois caminhos assinalados os expõe a novos riscos.
O respaldo outorgado à administração atual não implica, efetivamente, con-
tingências adicionais às que já existem. Além disso, a transferência das ações
pode não representar nenhum prejuízo para o acionista, especialmente na-
queles casos em que existem investimentos de categoria equivalente que po-
deriam ser adquiridos para substituir aquele que se aliena828.
Devido às numerosas complicações ilustradas, as competição para obten-
ção de procurações de voto ficam relegadas, em geral, a seu caráter de técnica
auxiliar para aumentar a pressão sobre os administradores sociais e acionistas
controladores. Sua utilidade se verifica, ademais, na utilização do fator tem-
poral, cuja relevância não pode ser desestimada nestas complexas operações829.

6. MECANISMOS DE DEFESA EM TOMADAS HOSTIS DE CONTROLE


Como se indicou, as concentrações não são sempre o resultado de um
acordo amistoso entre as companhias participantes. Quando o investidor ad-
quirente não conta com o consentimento dos administradores da companhia
alvo, deverá recorrer a alguma das técnicas que não demandam a aprovação de
seus órgãos de administração. Como se mencionou, esta classe de operações
costuma receber a denominação de tomada hostil de controle (hostile takeover).
A informação estatística demonstra que as tomadas hostis de controle ocorrem
de modo excepcional, ou seja, na atualidade a maioria de concentrações são o
resultado de um acordo amistoso830.
A década de oitenta se caracterizou com o grande auge das tomadas hostis
de controle. Antes desse período especialmente fértil em aquisições, os adminis-

828 Ibidem.
829 “Recentemente, foram realizadas várias tentativas de utilizar as competições por procurações
de voto como um mecanismo auxiliar para aumentar a pressão de uma oferta visando adquirir
o controle de uma companhia” (HAMILTON et al., op. cit., p. 364).
830 KLEIN et al., op. cit., p. 182. Apesar de que as tomadas hostis de controle foram freqüentes nos
anos oitenta, uma década mais tarde a atividade hostil se reduziu notavelmente. Na opinião de
SOLOMON, isso se deveu ao fato que as tomadas de controle foram significativamente repri-
midas pelas leis estaduais e pela jurisprudência sobre a matéria. Tanto a legislação como os
antecedentes judiciais deram lugar a custos consideráveis e notória insegurança jurídica a
respeito das operações hostis. Da mesma forma, se outorgou aos Conselhos de Administração
das companhias-alvo maiores faculdades para enfrentes seus adversários (Ibidem).

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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 335

tradores de sociedades abertas contavam com escassos meios de defesa ante ope-
rações desta natureza. O paulatino incremento destas contundentes modalida-
des de ação no mercado de valores mobiliários forçou aos assessores legais das
sociedades a desenvolverem mecanismos de defesa, de forma a impedir que as
companhias fossem vítimas desta classe de agressões831. Desta forma, na atuali-
dade existam numerosos métodos para evitar qualquer tentativa de aquisição
que se realize nas costas do Conselho de Adminsitração. A finalidade destes
mecanismos consiste em forçar “os investidores hostis a obterem o consenti-
mento da administração, antes que a operação possa ser realizadas”832. A estra-
tégia subjacente nesta classe de defesas consiste em fazer extremamente difícil
aquela tomada de controle que se tente à margem da autorização do Conselho
de Administração. Assim, os mecanismos de defensa são postos em prática de
modo automático ante qualquer tentativa de aquisição hostil.
Os mecanismos de defesa frente a uma tomada desta natureza, podem ser
antecedentes ou concomitantes à tentativa do investidor agressor. As táticas que
são realizadas antes da operação criam embaraçosos obstáculos para a tomada de
controle, de forma que sua presença se converte em desestímulo para o investi-
dor. Sua inclusão usual no ata de constituição (articles of incorporation) ou nos
estatutos sociais (by laws) garante a efetividade do sistema, já que são de obriga-
tório cumprimento para o adquirente. A sugestiva denominação de cláusulas
anti-tubarões (shark repellants) denota a intenção de neutralizar a provocação
do investidor agressor. Assim, se a tomada de controle resulta no sucesso da
operação, põem-se em prática de maneira automática certos dispositivos que
reduzem o valor da companhia ou tornam difícil seu manejo.
Um exemplo desta classe de dispositivos são os denominados pára-quedas
dourados (golden parachutes). Em virtude destas cláusulas, se outorga a alguns
dos administradores sociais o direito de perceberem grandes somas de dinheiro
em caso de serem despedidos da sociedade como conseqüência de uma mudan-
ça de controle. Trata-se de cláusulas inclusas nos contratos de trabalho de dire-
tores e executivos da sociedade, que lhes concedem benefícios variáveis de grande
significação econômica. Como complemento destas cláusulas também podem
ser pactuados os denominados pára-quedas de lata (tin parachutes), em virtude
do qual se confere a todos os empregados da companhia uma série de benefícios

831 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 312


832 HAMILTON et al., op. cit., p. 346.

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336 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

no caso de ser despedidos depois de produzir-se uma tomada de controle. De-


vido ao fato que a existência destes dispositivos torna mais custosa a operação, “a
companhia que os adota é a sobremesa menos atraente para os investidores”833.
Dentro destes mecanismos se encontra também a eleição escalonada do
Conselho de Administração (staggered board). Em virtude deste sistema de
defesa, na ata de constituição de uma companhia (articles of incorporation)
dispõe-se a classificação do Conselho em várias categorias de diretores. Para
cada uma destas é definido um período dentro do qual se possa proceder com
a sua remoção. Assim, por exemplo, é freqüente que seja viável substituir
somente um dos membros do Conselho de Admnistração por ano. Como
resultado deste mecanismo, os diretores podem permanecer em seus cargos
por períodos prolongados posteriormente à aquisição hostil da companhia.
A doutrina considera que a utilização de Conselhos escalonados apre-
senta maior utilidade no propósito de impedir as denominadas aquisições
avalancadas (leveraged buyouts). Devido ao fato que nelas se utilizam os ativos
da sociedade objetivo como garantia para financiar a operação, o adquirente se
vê na necessidade de liquidar os ativos sociais, com o fim de pagar as obriga-
ções contraídas para a aquisição do controle834. Na medida em que a transfe-
rência dos ativos da companhia adquirida requer a aprovação prévia por parte
do Conselho, é evidente que o adquirente não poderá valer-se do patrimônio
da sociedade para cobrir as dívidas derivadas da aquisição, ao menos enquanto
não consegue obter a maioria de cadeiras nesse órgão social. O prolongamento
no tempo da estrutura original do Conselho de Administração terá a virtude
de desestimular a quem se proponham efetuar ofertas hostis de aquisição835.

833 Ibidem, p. 369.


834 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 312. As denominadas aquisições avalancadas se caracterizam
porque nelas o adquirente toma empréstimos de médio ou longo prazo com o propósito de
financiar a aquisição de ações no mercado público de valores mobiliários. O crédito aludido
costuma ser garantido com os ativos da companhia alvo, de forma que, uma vez efetuada a
aquisição, tais bens poderão ser liquidados para o cumprimento das obrigações contraídas pelo
adquirente. Também é possível que os rendimentos gerados em desenvolvimento da atividade da
sociedade adquirida se destinem a garantir os créditos mencionados. (Cfr. Black’s Law Dictionary,
cit., p. 906). A eleição escalonada do Conselho não tem a mesma utilidade no contexto das
tomadas hostis não avalancadas, devido ao fato que “o adquirente poderia ser propenso a
aguardar o tempo necessário para remover a todos os membros do Conselho de Administração.
Além disso, adverte-se que nestes casos os conselheiros originais poderiam ver-se inclinados a
atuar conforme aos interesses do adquirente” (BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 312).
835 A figura estudada encontra consagração em várias das normas societárias estadunidenses.
Pode ver-se, por exemplo, a Seção 141 (d) da Lei Geral de Sociedades do Estado de Delaware
(Delaware Geral Corporate Law) ou 8.06 da Nova Lei Tipo de Sociedades de Capital (RMBCA).

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 337

Os mecanismos concomitantes, pelo contrário, correspondem a atos que


se formulam uma vez conhecida a deliberação conducente à aquisição hostil.
Por tanto, uma vez que a tomada se iniciou836, a companhia pode recorrer a
numerosos mecanismos para evitar que a proposta formulada tenha sucesso.
Ainda que existam diversas modalidades de defesa, a técnica mais utilizada se
conhece no jargão da bolsa com a expressão pílula de veneno (poison pill)837.
Por meio dela uma companhia se propõe a permanecer atrativa às ações em que
se divide seu capital, de forma a repelir qualquer tentativa de aquisição hostil
de controle838. Estes mecanismos, no entanto, têm uma finalidade preventiva,
de forma que costumam ser utilizados como instrumentos de negociação, em
lugar de ter aplicação real na forma em que são desenhados inicialmente839.

836 Como, por exemplo, naqueles casos em que se fez pública a oferta de aquisição por parte de
quem faz a oferta.
837 É útil conferir a enumeração que realiza ROBERT C. CLARK de alguns dos principais mecanismos
concomitantes de defesa. O autor alude, em primeiro termo, à denominada ofensiva publicitária
do Conselho de Administração (“propaganda”), que consiste em valer-se “dos meios de publici-
dade para convencer os acionistas de que não aceitem uma determinada oferta pública de
aquisição”. CLARK também se refere à ofensiva “legal” (defensive suits), na qual “a sociedade alvo
confunde o adquirente com demandas de diferente natureza”. Dentro da ofensiva costuma
ameaçar-se ao adquirente, seus administradores, executivos ou acionistas com ações judiciais de
grande repercussão publicitária, cuja efetiva colocação em prática pode ser nociva para a imagem
dos demandados. Outro mecanismo concomitante é a denominada aquisição defensiva (defensive
acquisition), em virtude da qual “a companhia alvo adquire uma participação no capital em
outras sociedades, de maneira que, case se realize uma aquisição hostil, o adquirente poderia
incorrer em violação às normas sobre livre concorrência (p. exemplo, comprar ações de um
competidor do adquirente)”. Uma das técnicas mais utilizadas nos Estados Unidos é a conhecida
defesa do cavaleiro branco (white knight), na qual “a administração tenta encontrar um ‘cavaleiro
branco’ vale dizer, um investidor estratégico que formule uma oferta melhor do que a do
adquirente”. Esta defesa costuma ser acompanhada dos denominados acordos de preferência
(lock-ups), “que permitem ao investidor estratégico contar com uma vantagem significativa sobre
o adquirente”. Na prática, tais acordos podem conceder ao cavaleiro branco prerrogativas tais
como uma opção de compra sobre uma porcentagem importante das ações da sociedade alvo, a
um preço inferior ao de mercado. Quando a defesa em questão for efetiva, o controle da
sociedade é transferido de modo amigável a um investidor que, em razão do caráter consensual
de sua vinculação, será mais propenso a garantir os direitos aos administradores e acionistas
controladores originais. Por último, pode-se mencionar as “manipulações do mercado” (share
manipulations), em virtude das quais “a própria companhia adquire ou aliena ações no mercado
público, de modo de impedir que o adquirente obtenha o controle sobre a sociedade”. Uma das
principais estratégias de manipulação consiste em readquirir as ações da própria sociedade alvo
que se encontram em poder do adquirente hostil. Nesta operação, conhecida como greenmail, o
preço de recompra que se paga ao adquirente é superior ao pago pelo adquirente para obter o
controle. Desta forma, cria-se uma utilidade imediata que pode compensar suficientemente ao
adquirente. (Cfr. CLARK, Robert C. op. cit, pp. 571-573).
838 “Uma sociedade pode, por exemplo, emitir uma nova série de ações preferenciais que confiram aos
acionistas o direito de redimir tais ações por um valor superior ao real, em caso de produzir-se uma
tomada de controle. Uma pílula venenosa eleva os custos de uma aquisição, de maneira que quem
a introduzem nos estatutos sociais, tentam afastar aos investidores a respeito de qualquer oferta de
tomada de controle”. Para poder emitir esta classe de ações, os conselheiros devem estar autoriza-
dos pela ata de constituição ou pelos estatutos. (Cfr. HAMILTON et al., op. cit., pp. 366-368).
839 Ibidem, p. 369.

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338 - DIREITO SOCIETÁRIO AMERICANO

Se tem notícia da introdução do mecanismo das pílulas venenosas no


mercado de valores mobiliários dos Estados Unidos desde o ano 1983. Desde
então, o funcionamento destas cláusulas foi objeto de diversas modificações.
À medida que se fizeram evidentes os defeitos da sua concepção inicial, dese-
nharam-se novas modalidades para a aplicação das pílulas. Daí que os instru-
mentos utilizados na atualidade não guardam maior relação com a pílula
original de 1983. Esta primeira versão permitia evitar que um possível adqui-
rente excluísse os acionistas da companhia alvo mediante um processo de fu-
são. Para este propósito, o Conselho de Administração da sociedade alvo poderia
proceder com a emissão de ações preferenciais para serem distribuídas a título
de dividendos entre seus acionistas. Dentro da regulamentação das ações pre-
ferenciais se incluía a condição suspensiva segundo a qual, em caso que a
companhia for submetida a um processo de fusão “com exclusão”, cada uma
das ações preferenciais poderia converter-se em duas ou mais ações ordinárias
da companhia absorvente. A finalidade desta operação era evidente. Ao cum-
prir-se a condição pactuada, os acionistas minoritários da sociedade objetivo
adquiriam o controle da companhia absorvente. Esta posição majoritária lhes
permitia, assim, evitar sua própria exclusão. O caráter dissuasivo do mecanis-
mo se refletia na perda dos benefícios econômicos que acompanham a uma
fusão com exclusão, em virtude da qual o adquirente tem a faculdade de
adquirir as ações dos minoritários a preços muito convenientes. Esta defesa se
conhece na atualidade como a pílula de conversão direta (flip-over pill)840.
As falhas desta modalidade de pílula de veneno foram advertidas em
pouco tempo. CLARK informa que “a pílula não sortia efeito algum se o
adquirente (absorvente) era uma pessoa natural ou uma forma societária dife-
rente de uma sociedade de capital (por exemplo, uma sociedade coletiva ou
uma fundação). O mecanismo também não produzia efeitos práticos favorá-
veis naqueles casos em que o adquirente era uma sociedade de capital aberta,
com ações suficientemente dispersas entre o público”841. Nos dois casos indi-
cados o mecanismo de conversão previsto para as ações preferenciais de pro-
priedade dos acionistas da sociedade objetivo, resultava inócuo. Certamente,
no primeiro deles a conversão é inviável devido ao fato que o capital do veículo
escolhido para a operação não é compatível com a estrutura homogênea das

840 Cfr. BAINBRIDGE, Mergers..., cit., pp. 316-317.


841 CLARK, Robert C., op. cit., p. 547.

Direito Societário Americano - Francisco Reyes.p65


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FRANCISCO REYES VILLAMIZAR - 339

ações de sociedades de capital. No último caso, a inutilidade da conversão se


verifica no fato que, salvo os casos de uma relação de troca exorbitante, os
acionistas da companhia objetivo não poderão tomar o controle da sociedade
absorvente e, conseqüentemente, serão, em todo caso, excluídos.
Outra das deficiências detectadas pela doutrina se manifesta no fato de
que, em alguns casos, os adquirentes não têm interesse em excluir aos acionis-
tas da companhia objetivo. Segundo BAINBRIDGE, “o exemplo clássico
desta circunstância é a aquisição da companhia Crown Zellerbach por parte
de Sir James Goldsmith. Neste caso, uma vez adquirido o controle sobre a
companhia alvo, Goldsmith resolveu não excluir os acionistas minoritários.
Os efeitos desta determinação puseram em evidência as falhas das pílulas de
conversão direta. Efetivamente, a pílula prevista nos estatutos da sociedade
Crown Zellerbach tinah se convertido em uma faca de dois gumes. Além de
não causar nenhum prejuízo ao adquirente, impedia que o Conselho de Ad-
ministração tentasse o ingresso na companhia de um cavaleiro branco por
meio de um processo de fusão”842. A cláusula acabou por representar uma
vantagem para o adquirente, pois lhe permitiu consolidar seu domínio sobre a
companhia, sem ter que se defrontar com futuros investidores hostis.
A resposta a estes contratempos não se fez por esperar. A denominada
pílula de conversão inversa (flip-in pill), uma variante do mecanismo clássico, foi
criada com o propósito de dissuadir terceiras pessoas de qualquer tentativa de
aquisição hostil. Trata-se novamente de dir1eitos contidos em ações preferenciais,
que são subscritas pelos acionistas da sociedade alvo. Diferentemente resulta em
que cada uma destas ações preferenciais pode ser convertida em duas ou mais
ações ordinárias da companhia alvo (não da adquirente). Devido ao impacto
que a cláusula têm sobre a estrutura de capital da sociedade alvo, sua utilidade
é evidente tanto em processos de fusão com exclusão como em concentrações
realizadas por meio de aquisição de porcentagens significativas de ações. Nestes
últimos casos, a multiplicação dos direitos de voto que experimentam os acionistas
originais da sociedade alvo representa uma grande dificuldade para que um
terceiro possa adquirir o controle de gestão sobre a companhia.
Como se pode apreciar, a nova pílula permite que, uma vez concluída a
aquisição hostil, os acionistas recuperem o controle da companhia alvo. O

842 BAINBRIDGE, Mergers..., cit., p. 321.

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mecanismo também permite advertir a finalidade preventiva das pílulas vene-


nosas. Ante a ameaça de ver-se diluído em conseqüência da existência de uma
pílula de conversão inversa, qualquer adquirente se verá inclinado a desistir de
suas tentativas de adquirir o controle da sociedade alvo de forma hostil843.

843 Cfr. BAINBRIDGE. Ibidem, p. 320.

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