Você está na página 1de 39

História do Direito

HISTÓRIA DO
DIREITO

PERÍODO DO DOMÍNIO MUÇULMANO E DA RECONQUISTA CRISTÃ


1
História do Direito

◦ A invasão muçulmana e o seu significado


O surgimento do Islão dá-se no século VII, na Arábia, com Maomé. Segue-se a conversão dos
árabes ao Islamismo e mais tarde, após conquistarem o extremo ocidental do Norte de África
convertem os Berberes.
A chegada dos invasores muçulmanos à Península quebrou a unidade estadual aí conseguida
pelos Visigodos. Nos próximos séculos, cristãos e islâmicos coexistem no território peninsular,
assumindo-se como dois blocos diferenciados.
A dualidade política foi acompanhada de uma dualidade jurídica.
Por um lado, os invasores trazem consigo o direito muçulmano, pelo qual se continuam a
reger. Por outro, o caos trazido pelas invasões implicou que o ordenamento jurídico tradicional
ficasse agora entregue a si próprio, dando-se assim a quebra do elemento romanístico comum.
Aquando da Reconquista cristã da Península, esta dividir-se-á em vários Estados aos quais
passou a corresponder o respetivo sistema jurídico, mais ou menos individualizado.

◦ História política dos muçulmanos na Península


Os Árabes e Berberes muçulmanos assomaram à Península Ibérica na qualidade de aliados do
partido rebelde dos filhos de Vitiza. Aproveitando-se da decadência da monarquia visigótica,
os muçulmanos encetaram uma campanha de conquista que, não só derrubou o Estado
Visigótico, como estendeu a dominação dos invasores a quase toda a Península.
Curiosidade: Constituiu-se o país de al-Andalus que é, nos dias de hoje, uma província
muçulmana.
No final do século VIII, há uma grave crise de unidade atravessada pelo Emirado, que, depois
de ultrapassado, passa a assumir uma categoria de Califado (929).
O Califado de Córdova representa o apogeu da presença muçulmana na Península. Mais tarde,
segue-se uma fase de decadência, que se traduziu no fracionamento de Califado de Córdova,
isto é, numerosos pequenos Estados dissidentes.
Em 1090, a Península é invadida pelos Almorávidas que reunificam os domínios muçulmanos.
Contudo, as discrepâncias entre o povo almorávida começam a fazer-se sentir no século XII,
momento em que se regista a invasão dos Almóadas (1147), e a partir daí, os almóadas
conseguem uma efémera reunificação do muno islâmico peninsular.
Posto isto, a história peninsular é comandada pela Reconquista cristã.
 Fontes do Direito muçulmano
O ponto essencial do Direito dos invasores é o seu carácter confessional, ou seja, verifica-se
uma identificação ou não distinção entre a religião e o direito. Por conseguinte, o direito ia
buscar à religião os seus critérios normativos.
Por outro lado, tratava-se de um sistema jurídico personalista, cujo âmbito de aplicação não
era definido pela raça, mas pelo credo religioso, abrangendo assim, toda a comunidade de
crentes do mundo islâmico peninsular.

NOTAS/ADVERTÊNCIAS IMPORTANTES

2
História do Direito

 À data da chegada dos árabes à Península Ibérica, o seu direito encontrava-se aina em
fase de formação;
 A confessionalidade do seu direito não permitia distinguir a revelação divina da criação
do direito.

 Fontes básicas do Direito Muçulmano:


1. Alcorão: conjunto de revelações de Alá, declaradas pelos fiéis e que, segundo Maomé,
lhe foram feitas de modo explícito. O Corão não é apenas um livro religioso, mas
também um código político, moral e jurídico. Nele estão consagradas normas da vida
individual e social dos fiéis, como expressão da vontade de Deus.
2. Sunna: compreende a conduta pessoal de Maomé, explanada em atos, palavras e
silêncios positivos. Por conseguinte, são ensinamentos revelados de forma implícita.
Inicialmente, conhecidos pela tradição oral, tais ensinamentos foram compilados a
partir de meados do século VII.

 Fontes complementares do Direito Muçulmano:


1. Consenso unânime da comunidade: constituía uma manifestação indireta e difusa da
vontade de Deus; reconduzia-se, de acordo com o critério em vigor da Península
Ibérica, à opinião comum dos teólogos e jurista da mesma época.
2. Ciência do Direito: modo decisivo de evolução do direito muçulmano, sem prejuízo do
nexo religioso; desenvolve-se a partir da analogia e do raciocínio lógico, realizados
pelos jurisconsultos, com base nas fontes romanos.
3. As escolas de interpretação jurídica são a Hanifita, a Maliquita, a Chafeíta e a Hanbalta,
das quais prevaleceu, na Península Ibérica, a Maliquita.
4. O costume e os precedentes judiciais foram retirados da categoria de fonte oficial,
embora ambos ainda tenham concorridos para a formação do Direito Muçulmano.
5. As qanum eram as normas jurídicas emanadas da autoridade soberana, cuja
pertinência sempre fora ofuscada pelos preceitos sagrados fundamentais.

O Islão e os cristãos
A relação entre islâmicos e cristão diz respeito, no fundo, à distinção dos fenómenos de
fanatismo, com pretexto religioso, dos valores religiosos característicos do islamismo.
- A doutrina islâmica procedia à seguinte distinção:
1. Por um lado, os idólatras ou pagãos estavam obrigados a converter-se ao islamismo; caso
contrário, eram executados.
2. Por outro lado, as gentes do livro eram aquelas que possuíam livros sagrados, como os
Cristãos e judeus. Estes podiam conservar o seu credo religioso a troco de pagamento de um
imposto e capitação; de qualquer das formas, eram reduzidos à condição de protegidos do
Islão.
A maioria dos hispano-godos assumiu o estatuto de protegidos do Islão, mantendo a fé cristã,
passando a dominar-se de moçárabes. Uma minoria converteu-se ao islamismo, sobretudo, as
pessoas da classe servil que, dessa forma, alcançavam a liberdade.
3
História do Direito

É importante ter em conta que os muçulmanos não se revelaram tolerantes face aos cristãos;
dá-se antes uma coexistência pragmática, que se ia alterando com perseguições. Há episódios
de intolerância quer dos muçulmanos, quer dos cristãos ocupados. Com esta coexistência, os
muçulmanos arrecadavam avultadas receitas fiscais. Mas a situação de moçárabes impunha
uma dependência absoluta que permitiam uma certa autonomia político-administrativa.

 Quanto à aplicação do Direito, impunham-se as seguintes regras:


1. O Direito islâmico aplicava-se apenas às relações mistas e na esfera penal;
2. Os moçárabes continuavam a obedecer ao seu direito próprio em todas as
relações jurídico-privadas e relacionadas com a moral e religião;
Como tal, só se ingressava na sociedade islâmica através da conversão ao islamismo.
A sociedade muçulmana reduzia o papel da mulher a uma condição de grande inferioridade.
Enclausuradas nos haréns e proibidas de exibir o rosto e de contactar com homens, as
mulheres eram excluídas, por completo, da vida social. Contudo, às mulheres era confiado um
lugar de grande relevo na sociedade, nos territórios reconquistados pelos cristãos, na qual se
assumiam as vestes de rainhas reinantes.
Em virtude do contacto permanente com os muçulmanos, os moçárabes foram-se moldando
aos usos e costumes daqueles.
Por outro lado, os judeus possuíam idêntica autonomia jurídica, dado que as comunidades
hebraicas permaneceram adstritas ao seu direito.
Nesta época, os contributos da presença muçulmana na Península Ibérica traduzem-se nos
conhecimentos científicos e técnicos implementados. De todo o modo, a influência
muçulmana revela-se sempre limitada fora do extenso âmbito em que a vida social e o direito
eram condicionados pela religião dos dois grupos em presença.

o A Reconquista e formação dos Estados cristãos

Contextualização:
- Os Árabes chegam à Península Ibérica em 711, tendo dominado quase todo o território
peninsular, excecionando algumas zonas. Noutras zonas, os cristãos conseguiram manter certa
autonomia, por força de pactos firmados com os Muçulmanos.
Foi a partir do Noroeste e do Nordeste peninsulares que os monarcas cristãos concretizaram a
sua aspiração de recuperar território nos Árabes, tarefa dificultada pela resistência
muçulmana.
Paulatinamente, formaram-se e desenvolveram-se os Estados Cristãos da Reconquista: Reinos
das Astúrias, de Leão, Navarra, Castela e Aragão e de Portugal.
Em 1492, dá-se por terminada a reconquista com a incorporação do último reduto islâmico –
Reino de Granada – no reino de Leão e Castela.
Ao longo os oito séculos da Reconquista, ocorreu um fenómeno de mudéjares: era um
fenómeno paralelo ao dos moçárabes, e caracterizavam-se por ser a comunidade de
muçulmanos que permaneceu na Península e que manteve a sua religião, o seu direito e os
seus costumes, em ambiente cristão.

4
História do Direito

 A independência de Portugal
Por desmembramento do Reino e Leão, deu-se a independência o então Condado
Portucalense, no tempo do rei Afonso (1105-1157).
Em finais do século XI, D. Raimundo e D. Henrique, chegaram à Península Ibérica a fim de
desposar D. Urraca e D. Teresa.
Após o casamento de D. Henrique, com D. Teresa, Afonso VI outorgara-lhes a terra
portucalense. Porém, perante o desconhecimento do documento que formalizou a concessão,
as principais teses sobre o assunto apoiam-se em referências acidentais presentes em
diplomas e documentos particulares:
a) Tese segundo a qual a outorga do condado portucalense constituiu o dote de D. Teresa
e assumiu a natureza e senhorio hereditário. Como tal, reconhece-se a existência de
um título jurídico que esteve na génese da fundação de Portugal;
b) Tese de acordo com a qual o governo do Condado Portucalense fora confiado a D.
Henrique com carácter temporário e livremente revogável.
c) Tese que sustenta a presença de uma doação de senhorio hereditário, com vínculo de
vassalagem, com dependência pessoal, subjetiva.
d) Tese que defende a existência de uma concessão hereditária de tipo feudal; não se
vislumbra aqui a transferência do domínio pleno sobre o Condado.
e) Tese que sustenta a persistência de uma tenência hereditária, instituição de origem
extra-peninsular.
! Para a tese a), c) e d) há um título jurídico; para as restantes, esse título não existe.
Entretanto, o enigma persiste: só o conhecimento o ato que terá formalizado a concessão do
Condado Portucalense poderia dissipar as incertezas que dividem a doutrina. Porém, é
indiscutível que D. Teresa e D. Henrique exerceram amplos poderes de soberania, no território
portucalense (cartas de couto, doações, préstamos). ´

A rapidez dos acontecimentos solidifica a hereditariedade da concessão e deixa cair os vínculos


de vassalagem. Em 1140, D. Afonso Henrique começa a usar o título de rex, reconhecido, em
1143, por Afonso VII, na conferência e Zamora. Em 1179, o Papado aceita D. Afonso Henriques
como seu vassalo direto através da Bula Manifestis probatum est. Assim surgiu um país
chamado Portugal, o primeiro Estado Europeu com fronteiras historicamente definidas.

Direito de Reconquista: características e elementos constitutivos.


É possível reconhecer um lastro comum do qual se individualizaram os diferentes sistemas
jurídicos das regiões e Estados Peninsulares.

5
História do Direito

A característica especial deste Direito é a sua origem consuetudinária, sem prejuízo da


importância assumida pelas decisões judiciais. A partir do século XI, assinala-se a presença das
normas gerais emanadas pelos soberanos.
O conhecimento do Direito de Reconquista chegou aos dias de hoje através de amplas
compilações de direito local chamadas foros ou costumes e também através das cartas de
foral.
 Elementos constitutivos do direito consuetudinário:

 O elemento primitivo diz respeito às reminiscências das instituições pré-romanas;


 O elemento romano consiste na influência do direito romano vulgar, sobretudo na
legislação visigótico;
 O elemento germânico divide germanistas e romanistas quanto à relevância de
conceder à experiência jurídica suevo-gótica.
 O elemento cristão e canónico revelou a sua influência indireta através da
legislação romana posterior a Constantino. Sendo o Direito Canónico o Direito de
uma comunidade viva compreende-se também a sua importância direta no
combate aos barbarismos da época. Neste contexto, o Direito Canónico absorveu
certas instituições jurídicas com significado religioso.
 O elemento muçulmano apresenta um reduzido significado.
 O elemento hebraico assume um papel secundário, graças à natureza confessional
e aplicação pessoal do direito hebraico;
 O elemento franco, jamais preponderante, manifestou-se em virtude de
circunstâncias especiais, como a existência de colónias de francos em algumas
localidades da Península Ibérica.
É importante não esquecer a originalidade própria do Direito da Reconquista, frutos das
concretas condições sociais, políticas e económicas da época. As normas jurídicas de então
assumiam um carácter rudimentar e primitivo.

O sistema romano-germânico
A disciplina jurídica apelidada de Direito Comparado não constitui um ramo do direito, ao
contrário do que acontece com o Direito Civil que, por sua vez, se desdobra em vários
ramos como o Direito das Obrigações e os Direitos Reais. Assim sendo, acompanhamos,
neste âmbito, Mário Júlio de Almeida Costa que refere a designação de ciência de
comparação de direitos.
 Afinal, o que é a ciência de comparação de Direitos?
Como o próprio nome indica, a ciência de comparação de direitos, do estudo comparatístico
das várias ordens jurídicas existentes, procurando agrupá-las em famílias ou sistemas. Como
tal, é mais fácil compreender as semelhanças e dissemelhanças que ora aproximam, ora
afastam, os diferentes ordenamentos jurídicos singulares que conhecemos.

6
História do Direito

Por conseguinte, o Direito Comparado consiste num método de estudo jurídico de confronto
de várias ordens jurídicas positivas, pelo que não se resume ao mero estudo do direito
estrangeiro.
Através da comparação dos princípios fundamentais, conceitos e técnicas adotados, a ciência
da comparação de direitos conclui pela existência de um conjunto de elementos estruturais –
substanciais e formais – comuns a diferentes ordens jurídicas. Estes elementos tipificam a
família ou sistema de direitos e ainda permitem distingui-las das demais.

São quatro as grandes famílias ou sistemas de direitos:


1. Família Romano-germânica;
2. Família do Direito Comum ou do direito anglo-americano,
3. Família dos Direitos Socialistas;
4. Família dos direitos religiosos (muçulmano, judaico e hindu) e
tradicionais (direitos orientais e africanos)
O Direito Português não pode ser compreendido à margem do sistema a que pertence, a
família romano-germânica, que partilha com os ordenamentos jurídicos dos restantes países
do Ocidente europeu. Não obstante os particularismos nacionais, os elementos romano,
cristão e germânico constituem o substrato comum aos direitos que integram esta família.
De entre estes elementos, o elemento central é o romano. A essência do Direito Romano é
ainda hoje a traves-mestra da dogmática jurídica europeia contemporânea, estando muito
presente quer na ciência, quer na prática jurídicas dos nossos dias.
O elemento cristão proveu a ciência jurídica europeia de importantes valores fundamentais
como a afirmação da dignidade transcendente da pessoa humana, os valores da razão, da
liberdade, da democracia e do Estado de Direito. O Cristianismo, apesar da afluência das ideias
modernas e contemporâneas, afirmou o seu papel conformador na consciência jurista da
época.
O elemento germânico deu o seu contributo através da fusão das conceções e instituições
romanas com o direito popular germânico, representando assim “o tronco viral bravio em que
se enxertaram os germes do pensamento jurídico antigo e cristão primitivo “ que
proporcionou o “ encontro da vida jovem com espiritualidade amadurecida “.

O único dos três elementos referidos que define os limites geográficos da civilização europeia
é o cristianismo: com efeito, nem o elemento romano nem o elemento germânico chegaram
toda a Europa.

Formação e evolução da História do Direito Português

FASES PERÍODOS TEMPORAIS HISTORIADORES


FASE DA CRIAÇÃO FINAIS SÉCULO XVIII MELLO FREIRE
FASE DA CONSOLIDAÇÃO MEADOS DO SÉCULO XIX ALEXANDRE HERCULANO
FASE DA INDIVIDUALIZAÇÃO SÉCULO XIX PARA SÉCULO XX GAMA BARROS
FASE DA RENOVAÇÃO 1920-1970 PAULO MERÊA

7
História do Direito

 Fase da Criação da História do Direito Português


A segunda metade do século XVIII constituiu o marco histórico do surgimento da ciência da
história do Direito português. O arranque tardo de tão importante disciplina jurídica deve-se a
um conjunto de fatores que justificam a falta de interesse elo legado jurídico anterior.
Por um lado, o ensino universitário e a literatura jurídica foram absorvidos pelo Direito
Romano e pelo Direito Canónico o que tem a ver com as características do sistema jurídico
português até ao século XVIII.
No entanto, arranque tardio não significa total inexistência: deve evitar-se a tendência,
comum nas ciências jurídico-políticas, para ignorar tudo.
Assim, antes da segunda metade do século XVIII registaram-se algumas manifestações:
 André de Resende escreveu sobre a organização de Hispânia nas suas obras intituladas
História da Antiguidade da cidade de Évora (1576) e De Antiquitatibus Lusitaniae (1593).

 João Pinto Ribeiro dedicou-se ao estudo da crise dinástica e da perda da


independência (1580):
 António Caetano de Sousa procedeu à recolha de inúmeras fontes de interesse
histórico-jurídico (Provas de História Genealógica da Casa Real Portuguesa – 1735).
 Diogo Barbosa Machado publica Biblioteca Lusitana (1741), um trabalho bibliográfico
de grande relevo, uma vez que se tratava de uma história de vida dos antigos
jurisconsultos.

A ciência da história do Direito português emergiu na segunda metade do século XVIII. Esta
altura coincidiu com a:
 Concretização filosófico da história;
 Assunção de preocupações metodológicas;
 Superação das simples crónicas de factos e das biografias;
 Interesse crescente ela evolução da cultura e das instituições de povos;

Estes fatores são acompanhados pelo:


 Racionalismo;
 Iluminismo;
Ambos postulam a rejeição dos conhecimentos não julgados criticamente pelo sujeito,
assentando no princípio da razão como única fonte de conhecimento, com exclusão de todas
as outras.
Localizámo-nos na época do Iluminismo.
O Iluminismo português conheceu grande influência italiana, tendo penetrado em território
português através dos estrangeirados (Luís António Verney)
Luís António Verney é um autêntico manifesto da ideologia iluminista através do qual Verney
preconiza a urgência da reforma do ensino jurídico em Portugal e denuncia o desprezo pelos

8
História do Direito

estudos históricos na Universidade; censura as orientações das Faculdades de Leis e de


Cânones que adotavam o método dialético de exposição aconselhando o método expositivo
sintético-compendiário; propõe o estudo do direito nacional e da sua história, bem como do
direito comparado, da economia e da ciência política.
Verney teve uma grande influência na reforma pombalina que alterou os paradigmas ao nível
da legislação, da prática jurídico-científica e do ensino do Direito.

 Em 1770, o Marquês de Pombal nomeia uma Junta de Providência Literária que tinha a
missão de analisar os fatores responsáveis pela decadência e ruína da Universidade, e
ainda de elencar quais as melhores soluções para obviar àquela situação.
Esta missão deu origem ao Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra, a que
se seguiram os Estatutos Novos da Universidade.
Estatutos Novos:
o Reforma estrutural do ensino universitário em Portugal;

Foi criada uma cadeira de “direito natural e direito das gentes“ de cunho racionalista;
o Foi introduzido o ensino do Direito pátrio e da sua história;

o O Direito Romano passou a ser lecionado segundo o “uso moderno”, noca doutrina
jurídica;
o Foi substituído o método analítico pelo método demonstrativo-sintético-
compendiário;
o Fixaram o programa da disciplina de história de direito pátrio com uma ordem
específica;
o Foi imposto ao professor da disciplina que elaborasse um compêndio elementar;

Esta imposição apenas foi seguida por Mello Freire que é reconhecido como o
“fundador da história do Direito Português”.

Segue-se um período fértil para a história do direito português que passa a desenvolver-se em
torno da Academia Real das Ciências e da Universidade de Coimbra.

No âmbito da Academia Real das Ciências, foram publicadas inúmeras obras de interesse:
 Memórias para a História de Legislação, e costumes de Portugal;
 Elucidário das Palavras, Termos e Frases, etc;
 Synopsis Chonologica;
 Memórias sobre as Fontes do Código Philippino e Qual seja a época de Introdução do
Direito das Decretaes em Portugal;
 Memórias para a História e Teoria das Cortes Gerais;
A Universidade de Coimbra também desempenhou um papel assinalável através da publicação
de uma compilação de fontes jurídicas – A Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino
9
História do Direito

de Portugal que reúne uma edição inédita das Ordenações Afonsinas, Manuelinas, Filipinas,
etc.

 Fase da Consolidação da História do Direito Português


A fase de consolidação foi marcada por Alexandre Herculano – historiador, político e
romancista, e a ele deveu-se importantes progressos introduzidos na ciência geral da história a
par do estudo dos temas histórico-jurídicos de grande pertinência.
A primeira época do século XIXI conheceu a transição dos cânones do romantismo para os do
positivismo.
Historiografia romântica Historiografia positiva
Assentava na história narrativa e privilegiava Correspondia a uma visão mais genética da
o vínculo ao presente e à literatura; histórica, limitando a realidade ao
empiricamente verificável o que se
concretizava na elaboração de leis gerais.

Neste contexto, Herculano negava o anacronismo e combina elementos românticos e


positivistas. Assim, o autor revoluciona a história do direito português através da imposição do
seu espírito científico que o levou a perspetivar a história por épocas histórico-culturais
realçando os factos significativos da Nação. Por conseguinte, surge a “História da Nação”.
Alexandre Herculano destacou-se ainda o trabalho desenvolvido durante o período em que
presidiu e chefiou a Comissão da Academia Real das Ciências. Ultrapassou os obstáculos
colocados pela dispersão de fontes e a má conservação de documentos.
Além disso, dedicou-se ainda ao estudo de matérias estritamente jurídicas que vão desde o
Direito Público (Político, Administrativo, Fiscal, Financeiro) ao Direito Privado (Direito
Matrimonial). A esta luz, a obra de Alexandre Herculano assinala a emancipação da história
enquanto disciplina científica com métodos e conceções próprias.

 A individualização da História do Direito Português


A ciência do Direito era ainda parca em conceitos próprios, esquemas e métodos de dar forma
a uma verdadeira teoria da historiografia específica do Direito.
Até aos finais do século XIX, nem sempre os estudiosos da história do Direito possuíam
formação jurídica e daí que os temas predominantes fossem a história das fontes. Deste modo,
a história das instituições e do pensamento jurídico eram temas muito raramente abordados.
Posto isto, Gana Barros revoluciona com a publicação da História da Administração Pública em
Portugal, no qual o autor procede ao estudo cuidado de múltiplas instituições públicas e
privadas, desde o período visigótico. Nesta obra é evidente a formação jurídica do autor pelo
rigor dado ao tratamento dos problemas explorados.

 Renovação moderna da História de Direito Português

10
História do Direito

A fase da renovação moderna da ciência da história do direito português é protagonizada por


vários especialistas ligados ao ensino universitário.
O percursor desta fase foi Paulo Merêa, um ilustre Professor da FDUC.
Merêa deu um novo impulso aos estudos da história jurídica e da história política que pouco
aliciavam os universitários.
Neste contexto, Paulo Merêa centrou o objeto da sua investigação no campo da história das
instituições e das ideias, incidindo em temas históricos do direito público e do direito privado.
Ainda tratou de temas do pensamento político nacional e europeu.
Além disso, colaborou em diversas edições críticas de fontes histórico-jurídicas que investigou
exaustivamente com uma reflexão crítica baseada nos documentos, uma abertura
interdisciplinar, precisão e elegância da linguagem e pureza de estilo. ( Exemplo de Documentos
Medievais Portugueses.) A obra deste autor revela influências do institucionalismo, bem como
uma forte reação contra o positivismo jurídico.

A produção científica do autor desenvolveu-se em duas etapas:


 Dedicou-se à história geral cujas obras não eram muito originais;
 Publicou estudos monográficos originais, sobretudo os que dizem respeito ao Direito
Visigótico.

Paulo Merêa edificou uma verdadeira escola de história do direito português. Porém, o
excesso de escrúpulos do autor fê-lo retardar a publicação dos seus escritos, dificultando,
assim, o seu conhecimento pela restante comunidade científica e universitária.

Luís Cabral de Moncada Guilherme Braga da Cruz


Desenvolveu a investigação sobretudo ao - Abordou variadíssimos temas da história
nível da história das ideias e dos sistemas jurídica, desde o direito antigo e medieval
filosófico-jurídicos. aos precedentes históricos imediatos do
moderno sistema jurídico.
- Publicou várias obras de grande relevância
(Origem e Evolução da Universidade; História do
Direito Português; O Direito Subsidiário da
História do Direito Português)
- É possível destacar o rigor, a certeza e a
humildade científicas nas suas obras.

Mais recentemente, a comunidade científica da Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa tem contribuído para o desenvolvimento da historiografia jurídica nacional. Merece
especial destaque o contributo de Marcello Caetano que possuía raras qualidades de
organização do trabalho e dominava a arte de escrever para ser entendido. Focalizou os seus
estudos históricos no âmbito das instituições de Direito Público.

11
História do Direito

Periodização da História do Direito Português


A compreensão da História do Direito através de uma periodização apresenta-se como uma
necessidade pedagógica. Neste sentido, a divisão do estudo da História de Direito Português
em períodos ou épocas, com os correspondentes subperíodos ou sub épocas, pretende
facilitar a apreensão dos conteúdos através da síntese dos elementos comuns a um
determinado hiato temporal. Este hiato temporal – que congrega um conjunto de
características mais ou menos uniformes – constituiu um período histórico.
Porém, são vários os critérios pelos quais é possível congregar os referidos elementos e daí
também a diversidade de propostas da doutrina, nesta matéria.

Critério do
Critério político Critério jurídico-externo Critério jurídico-interno pensamento jurídico
dominante
Privilegia a história Atende à evolução das Cuida as instituições
política, olhando o fontes de Direito; jurídicas predominantes
Direito como parte em cada período
da evolução social; histórico;

Acresce que os referidos critérios podem ser combinados entre si.


A diversidade de propostas de periodização da História do Direito Português resulta
precisamente da diversidade dos critérios aplicáveis e suas combinações, bem como dos
diferentes métodos de exposição da História. Acresce ainda a preponderância dada ora ao
Direito Público, ora ao Direito Privado.

Nesta sequência é importante ter em conta as principais abordagens da doutrina a propósito


da periodização da História do Direito Português, sendo certo que todas elas partilham
virtudes e fragilidades.

 Marcello Caetano;
 Ruy de Albuquerque e Martim de Albuquerque;
 Nuno J. Espinosa Gomes da Silva
 Mário Júlio de Almeida Costa

1. Marcello Caetano
O autor adota principalmente o critério político, matizado pelo critério do pensamento jurídico
dominante. Marcello Caetano privilegia o Direito Público, na medida em que este corresponde
à evolução da sociedade política, intrinsecamente ligada ao Estado e influenciada pelas ideias e
fontes de Direito.

12
História do Direito

 Período de Formação do Estado


1140 – Início Reinado D. Afonso Henriques – 1248 – Fim do reinado de D. Sancho II;
Predomina um direito consuetudinário e foraleiro, num tempo em que os reis portugueses
estavam absorvidos pelas conquistas territoriais.
 Período de Consolidação do Estado Português
1248 – Início do Reinado de D. Afonso III – 1495 – Final do Reinado de D. João II;
É marcado pela influência do Direito Comum romano-canónico, pelo apelo ao direito escrito e
pela multiplicação das leis gerais. Trata-se de um período de fortalecimento da autoridade do
Rei e da afirmação da autoridade das Cortes.
 Período de Estabilização do Estado
1495 – Início do Reinado de D. Manuel I – 1750 – Final do Reinado de D. João V;
Assiste-se à difusão das leis pela imprensa, à promulgação das Ordenações e à proliferação das
leis extravagantes. Nesta época, os descobrimentos marítimos portugueses proporcionam uma
maior independência financeira do reino que contribuiu para o fortalecimento do poder régio
e para a secundarização das Cortes.
 Período das Reformas de Ilustração do Iluminismo
1750 – Início do Reinado de D. José e período de governação do Marquês de Pombal;
1820 – Início da Revolução Liberal;
O critério adotado por Marcello Caetano para a divisão dos períodos sofre uma inflexão,
deixando de atender aos reinados para tomar como pontos de referência a ideologia ou o
pensamento jurídico dominante.
Este período apresenta um carácter transitório de quebra com os períodos antecedentes e
preparação para o período seguinte. Nele preponderam a renovação do pensamento e a
reforma das leis e das instituições.
 Período da Revolução Liberal
1820 – Início do Período da Revolução Liberal – 1926 – Início da Ditadura Militar;
Caracteriza-se por uma profunda modificação das instituições e das leis.

1. Ruy de Albuquerque e Martim de Albuquerque


Os autores Ruy de Albuquerque e Martim de Albuquerque apostam no critério jurídico-externo
para desenhar a periodização da História do Direito Português, também combinado com o
critério do pensamento jurídico dominante.
Para o efeito, partem da conceção da ordem jurídica como um todo composto pelas normas
trazidas de épocas históricas anteriores e por aquelas que paulatinamente se lhes
acrescentam. As datas de referência tomam por referência o critério político.

13
História do Direito

 Período Pluralista
1140 – Fundação de Portugal – 1415 – Conquista de Ceuta e início da Era dos Descobrimentos;
Coexistem elementos normativos de proveniência romana, germânica, canónica e outra. Por
conseguinte, este período é marcado pela heterogeneidade de fontes, desde o costume e
doutrina até ao direito estatal-legal e direitos locais. Todavia, o Direito emanado do Estado não
é predominante.
 Período Monista
O ponto de viragem para o Período Monista coincide com o início da Era dos Descobrimentos,
que, do ponto de vista interno, impulsionou:
 A emancipação de um aparelho político-administrativo próprio;
 A institucionalização de órgãos legislativos próprios;
 A criação de um aparelho jurídico específico;
 Um largo recurso ao Direito Romano como forma de suprir as lacunas do direito
nacional;
 A centralização e desenvolvimento do Estado Português;
Com efeito, o período Monista caracteriza-se pela afirmação do conceito moderno de Estado
pela redução do Direito aos factos jurídicos por ele emanados e, consequentemente, pela
tendencial identificação entre Direito e Lei-.
- Época pré Revolução Liberal – 1415 – 1820
Assiste-se a uma certa estabilidade do Direito Público, bem como à permanência das linhas
mestras do Direito Privado com a vigência das Ordenações.
- Época pós-Revolução Liberal – a partir de 1820
Dá-se uma autêntica transformação dogmática do Direito Público e a consagração de um novo
Direito Privado, com a promulgação do primeiro Código Civil Português, em 1867.
Neste último subperíodo, a ordem jurídica portuguesa assume-se como um sistema, dotado de
uma Constituição escrita. Em suma, a Revolução liberal marca a transição de uma ordem
legislativa lacunar para uma estrutura legislativa sistemática.

1. Nuno J. Espinosa da Silva


É percetível a utilização de um critério misto: por um lado, o critério jurídico-externo é decisivo
na delimitação do Âmbito dos dois primeiros períodos, mas por outro, as datas de referência
que os circunscrevem tomam por referência o critério político; os dois últimos períodos são
determinados pelo pensamento jurídico então dominante.

 Período do Direito Consuetudinário e Foraleiro


1140 – 1248;
Caracteriza-se pela emancipação do direito consuetudinário local e pela diversidade das suas
influências, com predomínio do elemento germânico.

14
História do Direito

 Período de influência do Direito Comum


1248 – 1446 – Ordenações Afonsinas – 1750;
Constitui a principal experiência da História do Direito Português. Numa primeira fase, este
período caracteriza-se pela receção do Direito Comum, o Direito Romano-Canónico e, numa
segunda fase, pela compilação e sistematização das fontes operadas pelas Ordenações.
 Período de Influência Iluminista
1750 – 1820 – Revolução Liberal;
Impera o racionalismo, de tal forma que a vontade do monarca se impõe no valor a atribuir às
diferentes fontes de Direito.
 Período de Influência Liberal e Individualista
1820 – 1914/18 – Primeira Guerra Mundial;
Focalizou-se nos direitos naturais do indivíduo que se manterão numa dialética constante
perante os poderes reais.

Por fim, Nuno J. Espinosa da Silva detém-se no período temporal eu se inicia com a primeira
guerra mundial e se prolonga até aos dias de hoje. Conclui, a este propósito, que a
proximidade histórica dos acontecimentos em causa ainda não permite uma tomada de
posição quanto à caracterização de um novo período da História do Direito Português.
Distingue, a este propósito, o passado que passou do passado que ainda não passou.

1. Mário Júlio de Almeida Costa


Opta, no seu modelo de periodização, pela combinação dos critérios jurídico-externo e do
pensamento jurídico dominante.
Na delimitação dos diferentes períodos, as datas apresentam um mero valor simbólico ou de
referência, para além de que o conteúdo dos referidos períodos não obedece a um critério
homogéneo, por estares em causa problemas distintos em cada um deles.
 Período de Individualização do Direito Português
1140-1248;
A independência de Portugal não acarretou uma imediata autonomização do direito vigente,
pelo que se assistiu à conservação das fontes do Direito, por exemplo, o Código Visigótico.

Paulatinamente, foi-se desenvolvendo um direito português e carácter consuetudinário e


foraleiro, aliado a um certo empirismo jurídico protagonizado pelos tabeliães ou notários da
época.
 Período do Direito Português de Inspiração Romano-Canónica
- Época de Receção do Direito Romano Renascido e do Direito Canónico Renovado
(1248-1446/47)

15
História do Direito

Distingue-se pela atividade das Escolas jurídicas dos glosadores, comentadores e humoristas,
bem como pela difusão do direito comum por toda a Europa;
- Época das Ordenações
Inicia-se com a promulgação das Ordenações Afonsinas que, por se tratarem da primeira
compilação oficial aplicável em todo o país, representam o iniciar de uma centralização
legislativa e a emancipação do direito pátrio frente ao direito comum.
 Período da Formação do Direito Português Moderno
O seu início é assinalado pela Lei da Boa Razão (1769) e pelos Estatutos da Universidade (1772)
e em cujos lados assenta o atual sistema jurídico português.
Conceitos-chaves:
Racionalismo, Iluminismo, Usus Modernus Pandectarum, Individualismo, Liberalismo Político e
Económico, Positivismo Jurídico e Direito Social.
- Época do Jus naturalismo Racionalista
Desenrola-se desde a segunda metade do século XVIII até à Revolução Liberal Portuguesa de
1820;
- Época do Individualismo, compreendida entre o início do século XIX e a Primeira
Guerra Mundial (1914-1918);
- Época do Direito Social que, partindo daquela momento histórica, se perpetua até ao
presente.
Este último grande período reflete as mudanças ocorridas no pensamento jurídico, num
contexto de democratização económica e de intervencionismo estatal na produção legislativa,
limitando, dessa forma, o reduto intangível da autonomia da vontade e da liberdade
contratual. Concomitantemente, difunde-se a ideia de um direito social e emerge o critério da
justiça material na solução dos casos concretos.
Nesta última época, devem ainda distinguir-se o Direito da 1º República, o Direito do Estado
Novo Corporativo e o Direito posterior a 1974.
A periodização ora exposta será a periodização da História do Direito Português que servirá de
referência ao estudo que nos ocupará até ao final deste manual, por ser, no nosso entender a
mais completa e abrangente de todas as periodizações exibidas. Nessa medida, apresenta-se,
do ponto de vista pedagógico, como a periodização que nos permitirá tocar o maior número
de questões possível, aumentando, assim, o nosso âmbito de exploração histórica.
Todavia, não está a mesma isenta de fragilidades. Desde logo, parece-nos que o segundo
período é demasiado extenso. Talvez fizesse mais sentido unir o primeiro período com a
primeira sub-época do segundo período. Desta forma, o período da História do Direito
Português passaria a contemplar, por um lado, os primórdios do nascimento do direito pátrio,
e por outro, a receção do direito comum.
Consequentemente, o segundo período seria tão-só o Período das Ordenações, por se tratar
de um hiato temporal cujas características permitem autonomiza-lo num período
independente. Além disso, o terceiro período mostra-se demasiado ambicioso.
Comparativamente a Nuno da Silva, o mesmo entende que a investigação histórica carece de
um certo distanciamento face à realidade a estudar, sendo precipitado tomar o presente como
pretérito.

16
História do Direito

Fontes de Direito Português anteriores à segunda metade do século XIII


 Código Visigótico
O Código Visigótico constituía, à época, a legislação de referência para os povos da Península
Ibérica, por se tratar do único corpo normativo sistematizado de então.
Durante todo o século XIII, o Código Visigótico permaneceu como uma das principais fontes de
Direito no reino português, sendo de realçar algumas menções de carácter formal ou genérico,
mas também algumas alusões ao seu conteúdo.
Tais referências ao Código Visigótico levantam a questão de saber se estaria em causa uma
efetiva aplicação do Código ou se, pelo contrário, não passariam de fórmulas de estilo
utilizadas por juízes e tabeliães. Embora o panorama jurídico da época permita a defesa de
ambas as teses, Guilherme Braga da Cruz pende para a última hipótese, ao passo que Nuno da
Silva é partidário de primeira. Aliás, a partir do século XIII, as alusões ao Código Visigótico vão
diminuindo, por diminuir também a sua autoridade enquanto fonte de Direito, frente ao
direito consuetudinário local e à crescente influência do Direito Romano-Canónico.
No Reino de Leão e Castela, a vigência do Código Visigótico prolongou-se um pouco mais,
sendo traduzido para Castelhano, por iniciativa de Fernando III.
 Leis dimanadas de Cúrias ou Concílios reunidos em Leão, Coiança e Oviedo
As leis dimanadas das assembleias realizadas em Leão, Coiança e Oviedo mantiveram a sua
vigência após a independência do Reino de Portugal.
A Cúria assumia um carácter político por se tratar de um órgão auxiliar do monarca. As
reuniões extraordinárias da Cúria deram origem às Cortes. O Concílio apresentava um carácter
religioso, por se tratar de um órgão eclesial.
A distinção entre uma e outro nem sempre se apresenta claramente, atendendo ao facto de os
altos representantes da Igreja participarem em ambas as assembleias, para além de que, quer
a Cúria, quer o Concílio, serem convocados pelo Rei.
Assim, a diferenciação entre Cúria e Concílio passa por avaliar, em cada caso concreto, os
seguintes elementos combinados: entidades convocante, matérias abordadas e sanção
canónica ou régia das decisões.
À luz destes parâmetros, a doutrina refere-se à Cúria de Leão e aos Concílio de Coiança e
Oviedo.
Quanto ao Direito Português, as leis dimanadas das assembleias das assembleias de Leão e de
Coiança foram incluídas em cartulários ou registos portugueses e as leis de Oviedo foram
juradas por D. Teresa e D. Afonso Henriques.
 Forais de Terras portuguesas anteriores à independência
Os forais do século XI e dos inícios do século XII mantiveram a sua vigência nas localidades a
que diziam respeito, mesmo depois da independência do reino português. Os forais de S. João
da Pesqueira, Penela, Paredes, Linhares, Anciães e Santarém são alguns exemplos, a par de
outros forais outorgados por D. Henrique e D. Teresa, por entidades eclesiásticas e por
senhores leigos.

17
História do Direito

 Mas afinal, o que são forais?


Os forais ou cartas de foral são propriamente diplomas concedidos pelo rei, por um senhor
laico, ou por um senhor eclesiástico a determinada localidade, diplomas esses que continham
um corpo de normas que regulavam as relações dos habitantes entre si e destes com a
entidade outorgante.
Desde logo, os forais ou cartas de foral integram a categoria mais ampla das cartas de
privilégio, que consistiam em diplomas outorgados por uma entidade titular de poderes
públicos através dos quais se concedia um regime especial ou de favor a determinada pessoa
ou a um agrupamento de pessoas. Note.se que o termo privilégio, à semelhança do sucedido
no Direito Romano, não toma aqui o sentido pejorativo que lhe foi associado após as
Revoluções Liberais, traduzindo apenas a ideia de um direito especial. Como tal, os forais são
fruto de uma importante evolução ao longo do tempo, que passa por diferentes configurações.
Inicialmente, existiam simples contratos de aforamento que procediam à repartição, entre
duas partes, do aproveitamento de um terreno.
Mais tarde, evolui-se para cartas de povoação, isto é, contratos agrários coletivos, cujos
objetivo se prendia com o povoamento de locai ermos ou com atrair mão de obra para
localidades já habitadas. Através dos referidos contatos, a entidade outorgante concedia terras
para cultivo e outras regalias aos povoadores, ficando estes obrigados ao pagamento um
tributo.
Por fim, os forais ou cartas de foral passaram a designar, no entender de Alexandre Herculano,
os diplomas que reconhecem existência jurídica a um município, outorgados a uma
magistratura própria e privativa, uma vereação. Todavia, Paulo Merêa desvaloriza o critério da
existência de magistraturas municipais, muitas vezes, manifestações tardias da existência de
um concelho.
Com efeito, há que concluir pela grande variedade de forais quanto à sua dimensão e ao seu
conteúdo. Por agora, incidiam nos seguintes aspetos: liberdades e garantias pessoais e dos
bens dos povoadores; impostos e tributos; sanções e multas devidas pela prática de crimes;
imunidades coletivas; serviço militar; encargos e privilégios dos cavaleiros vilãos; ónus e forma
das provas judiciais, citações, arrestos e fianças; aproveitamento de terrenos comuns.
Enquanto fontes de direito local, os forais eram instrumentos de garantia dos direitos
individuais e concretos das pessoas. Trata-se, contudo, de instrumentos particulares,
concedidos em favor de um grupo determinado.
No essencial, os forais continham normas de Direito Público, embora, neste âmbito, fosse o
costume a regular um conjunto importante de matérias juspublicísticas. Por regra, os forais
não continham preceitos de Direito Privado.
Refira-se ainda que as entidades outorgantes de cartas de foral não primavam pela
originalidade das mesmas. Frequentemente, a outorga de um novo foral tomava como modelo
um foral anterior, limitando-se a reproduzi-lo ou, quanto muito, a introduzir alterações
pontuais. Desta forma, surgiram grupos ou famílias de forais.

18
História do Direito

 Costume
Também o costume é uma fonte de direito, cuja vigência é conservada após a sua
nacionalidade, sobretudo no que diz respeito ao Direito Privado, de fonte quase
exclusivamente consuetudinária.
Nesta época, os desígnios próprios da fundação da nacionalidade abreviam quase por
completo e atenção dos primeiros reis e daí que a população, “entregues a si mesma “, se veja
forçada a criar as suas próprias normas. Assiste-se, assim, ao florescimento do direito
consuetudinário, em prejuízo da lei escrita.
A amplitude do conceito de costume na Idade Média não coincide com a De Direito Romano.
Para os Romanos, o costume correspondia a uma fonte manifestandi, traduzida numa prática
geral e constante, acompanhada da convicção da obrigatoriedade da respetiva norma. Já na
Idade Média, o costume assume uma dimensão ampla, compreendendo todas as fontes de
direito tradicionais d cariz não legislativo. Por conseguinte, incluíam-se também no costume as
sentenças da Cúria Régia, de juízes municipais e de juízes arbitrais.

Fontes de direito posteriores à fundação da nacionalidade


 Leis gerais dos primeiros monarcas
A fraca produção legislativa deste período deve-se às preocupações próprias da independência
do reino, que consumiam os primeiros monarcas.
Ainda assim, regista-se à promulgação de uma lei de D. Afonso Henriques, cuja data se
desconhece, e de uma provisão de D. Sancho I, com características de diploma geral. A estas
somam-se várias leis emanadas da Cúria de Coimbra.
Estas leis deixam transparecer alguma influência das compilações justinianeias, graças à
ligação e sistematização que apresentam. Não eram um corpo legislativo unitário; nelas foi
incorporada uma norma que, daria prevalência ao Direito Canónico em caso de conflito entre
este e as leis do reino.
No geral, estas leis referiam-se a assuntos relativos à proteção da fazenda da coroa e ao
combate aos abusos dos funcionários régios, mas também à garantia das liberdades
individuais, à condenação expressa da vingança privada e à defesa das classes populares entre
a prepotência dos poderosos. São exemplos destes preceitos a proibição da aquisição, pelos
grandes, de géneros abaixo do valor justo e a permissão de todo o homem livre servir a quem
deseja e de não se submeter a casamentos forçados.
A par dos forais, as leis gerais desta época são exemplos de preceitos, de aplicação geral,
destinados à garantia de direitos individuais e concretos, que remontam a um período bem
antes das Revoluções Liberais.
Esta legislação ainda não era produto da vontade exclusiva do rei, dado que a promulgação das
leis dependia da consulta prévia da Cúria. Por outro lado, os monarcas são propensos a
sobrepor a lei às normas consuetudinárias inconvenientes.

19
História do Direito

 Forais
Os forais constituem uma fonte de direito local e uma das mais importantes fontes de Direito.
A abundância de forais e cartas de povoação deve-se à necessidade de estabilizar a
independência do reino através da conquista e povoamento de terras.

 Concórdias e Concordatas
Aa concórdias e concordatas designam os acordos, realizados entre os monarcas e as
entidades eclesiásticas, através dos quais se comprometiam mutuamente a reconhecer
direitos e obrigações relativos ao Estado e à Igreja.
Têm a sua origem em resposta aos agravamentos ou queixas proferidas pelos representantes
do Clero, nas Cortes, ou em negociações do rei com as autoridades eclesiásticas nacionais
(concórdias) e com o papado (concordatas).
As primeiras concórdias e concordatas remontam aos reinados de D. Sancho I, D. Afonso II e D.
Sancho II.
A designação “concordatas “continua a utilizar-se, hoje em dia. A Concordata entre a Santa Sé
e a República Portuguesa de 2004 é o exemplo mais recente. Até aos anos 40 do século XX,
todas as concordatas diziam respeito a acordos especiais, circunscritos à resolução de
concretas divergências que opunham as duas entidades. A primeira Concordata geral de 1940
foi substituída pela Concordata citada acima.

o Aspetos do sistema jurídico da época

Até meados do século XIII e à semelhança dos demais sistemas jurídicos peninsulares, o direito
português apresenta um carácter predominantemente consuetudinário, potenciado pelo
esbatimento da aplicação do Código Visigótico.
Para além destes apontamentos, o Direito Português da época caracteriza-se pela
sobreposição e concorrência de elementos de origem muito diversa, referimo-nos a elementos
provenientes dos direitos autóctones, do Direito Romano Vulgar, do Direito Canónico, dos
costumes germânicos e de algumas influências árabes e francas. A este respeito, Mário Costa
utiliza a expressão “amálgama de camadas jurídicas sobrepostas “. Esta amálgama de direitos
corresponde ao grupo dos direitos de cultura, que se contrapõem aos direitos de estirpe, que
designam um sistema jurídico que apresenta uma linha única de evolução.
A concreta configuração do direito português da época em apreço deve-se às peculiares
circunstâncias económicas, políticas e sociais.

o Aspetos do tabelionado medieval português

A necessidade de preserva a ocorrência de atos pretéritos impulsionou grandemente o


surgimento do tabelionado português, a existência de notários em Portugal nos tempos
medievais.

20
História do Direito

O tabelionado público, no País, remonta ao reinado de D. Afonso II, sendo que o controlo régio
desta atividade se intensifica a partir do reinado de D. Dinis.
Na disciplina normativa da atividade dos tabeliões, sujeita a severas sanções, manifesta-se
também a valorização extrema da verdade na sociedade medieval.

 Contratos de exploração agrícola e de crédito


Os contratos agrários, feitos em função da exploração agrícola ou do crédito,
desempenharam um importante papel no panorama económico e social da Idade Média. A
agricultura e as indústrias conexas eram então, com efeito, as atividades predominantes.
Antes de as influências romanísticas se fazerem sentir, com o renascimento do Direito Romano
justinianeu, a individualização e caracterização destes contratos, inominados, ou seja, não
previstos tipicamente em lei anterior, e com contornos pouco definidos, só se pode fazer por
atenção à sua finalidade económica.
De entre os contratos de exploração agrícola destacam-se a enfiteuse – também denominada
de aforamento ou emprazamento, e a complantação, aos quais preside a finalidade comum de
permitir, a quem explorava um terreno alheio, alcançar uma posição mais segura frente ao
proprietário. Juridicamente, dir-se-ia que está aqui em causa o princípio da conquista da
propriedade através do trabalho, tão importante no direito medievo.
A sua função social pode ser descrita através desta descrição “tu tens terras e eu não tenho”.
Estes contratos facilitam o acesso ao domínio sobre a terra, forma de riqueza então
predominante,
Com efeito, a enfiteuse era o contrato através do qual se atribuía ao senhorio o “domínio
direto” sobre o prédio, ao passo que ao foreiro ou enfiteuta cabia o “domínio útil”. Por um
lado, o ”domínio direto” traduz o direito do senhorio a receber uma pensão anual, em
princípio, proporcional ao rendimento do prédio. Por outro, o “domínio útil”, a exploração do
prédio, conferida ao enfiteuta, por exemplo, o direito anexo de alienar a sua posição a
terceiro, com ou sem a estipulação de um direito de preferência a favor do senhorio. A
enfiteuse fazia-se por prazo longo ou perpétuo.
No que refere à compilação, este tipo de contrato de exploração agrícola implicava a cedência
de um prédio, pelo seu proprietário, a um agricultor, investido da obrigação de o fertilizar,
nomeadamente, com a plantação de vinhas. No final do prazo estabelecido, o prédio era
dividido, em partes iguais, entre o proprietário inicial e o agricultor.
Quanto aos contratos de crédito, faremos referência à compra e venda de rendas e ao penhor
imobiliário. Por eles se cumpre a função social descrita na frase “eu tenho terras e tu tens
dinheiro”: facilita-se o acesso ao capital por parte de quem não o tem.
A compra e venda de rendas implicava que o proprietário de um prédio, carecido de capitais,
cedia a uma pessoa com capacidade financeira, em compensação de determinada quantia,
recebida definitivamente, o direito a uma prestação monetária anual imposta como encargo
desse prédio.
A compra e venda de rendas constituía, portanto, uma espécie de empréstimo a juros, então
proibido, dando, mais tarde, origem à renda perpétua e à renda vitalícia, ainda hoje previstas
no Código Civil Português.

21
História do Direito

Finalmente, o penhor imobiliário implicava a transmissão de um prédio pelo proprietário-


devedor ao respetivo credor, como garantia e compensação da cedência de capital ou como
modo de proporcionar o reembolso progressivo da dívida, através do aproveitamento do
prédio. O instituto do penhor imobiliário deu lugar à hipoteca de configuração romanística.

 Período do Direito Português de Inspiração Romano-Canónica


O autor Almeida Costa subdivide este segundo período da História do Direito Português em
duas grandes épocas: a época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico
renovado, e a época das Ordenações.

 O Direito Natural no pensamento jurídico medieval


Um dos temas perenes da história do pensamento jurídico prende-se com a questão do
fundamento do Direito Vigente numa determinada ordem jurídica.
Ora, os pensadores medievais já entendiam que esse fundamento do Direito, sendo natural,
ultrapassava os governantes temporais de cada momento, procurando identificar uma ordem
jurídica extensível a todas.
Nesta busca e teorização, S. Tomás de Aquino logrou destrinçar diferentes noções que
visavam descrever a normatividade própria da vida humana; distinguiu ele a lei eterna, a lei
natural, o Direito Natural e a lei humana.
A lei eterna corresponderia à própria razão de Deus enquanto ela governa e ordena todas as
coisas (ao serem criadas, todas as coisas foram pensadas e queridas por Deus)
A lei natural seria a participação da lei eterna, que é própria da criatura racional, do ser
humano, revelando-se na capacidade de distinguir o bem do mal e na consciência da obrigação
de fazer o bem. Enquanto lei revelada por Deus aos homens, e nesse sentido, positivada, o
Aquinatense falava numa lei divina ou divino-positiva, de que constituem expressão os dez
mandamentos da lei de Deus entregues a Moisés.
Para S. Tomás de Aquino, o Direito Natural seria o conjunto de coisas que devem ser dadas a
quem tem um título sobre elas, segundo aquilo que é determinado pela natureza humana
(assim, do bem “vida” nascia um direito à vida, tal como do bem “integridade física” nascia um
direito à integridade física).
Inferior à lei natural era a lei humana, que o mesmo definia como sendo certa determinação
da razão dirigida ao bem comum, ditada por aquele que tem a seu cargo a comunidade. A lei
humana era derivada da lei natural, fosse por conclusão (caso do legislador que faz aplicar
uma pena de prisão para o homicídio), fosse por determinação (caso da necessária ordenação
da circulação, entre nós, por opção, feita pela direita).
Assim, como se vê, a lei humana, na formulação de S. Tomás de Aquino, que se tornou clássica,
define-se em sentido material, sendo diferente da lei, entre os romanos, definida em sentido
formal, vista como uma declaração solene com valor normativo, feita pelo populus romanus
que, reunido nos comitia, aprovava a proposta que o magistrado apresentava e o Senado
confirmava. O mesmo se diga da noção hoje vigente de lei, também formal, baseada nos
requisitos da generalidade e da abstração.
Por conseguinte, desta mundividência jurídica aquiniana, que era, de resto, comum entre os
juristas medievais, resultava que uma norma humana, positiva, que fosse contrária à lei

22
História do Direito

natural não possuía qualquer valor, independentemente de ser escrita ou costumeira; estava
legitimada a desobediência, dado essa norma não ser lei, mas uma corrupção da lei.

 O Direito Romano justinianeu desde o século VI ao século XI


Voltamos de novo a nossa atenção para o Direito Romano: como se sabe, ele sofreu uma
evolução diferente no Ocidente, e no Oriente, nos séculos que se seguiram à queda de Roma,
em 476.
No entanto, aquando da transição da Alta Idade Média para a Baixa Idade Média surge, no
Ocidente Europeu, um novo interesse teórico e prático pelas coletâneas do Corpus Iuris Civilis
o que levou a um “renascimento” do Direito Romano.
Com efeito, as fontes de Direito e, por consequência, as instituições e o pensamento jurídicas
dominantes na Europa a partir de então caracterizam-se pelo renascimento do interesse
evidenciado pelo Direito Romano justinianeu, a par da renovação do Direito Canónico.
Não se pode, contudo, em bom rigor, falar em “renascimento” do Direito Romano, por dois
motivos: por um lado, o Direito Romano Vulgar estava presente, como já se referiu; por outro,
o próprio Direito Romano justinianeu não deixou de ser conhecido, estudado e aplicado até à
transição da Alta Idade Média para a Baixa Idade Média.
A vigência do Corpus Iuris Civilis no Ocidente foi algo efémera. Na Itália, vigorou, por força do
domínio bizantino e de uma constituição imperial datada de 554, durante cerca de catorze
anos. No entanto, com a conquista parcial do território itálico pelos Lombardos, o Direito
Justinianeu foi circunscrito a cidades como Roma e Ravena. Já na Península Ibérica, a presença
de tropas bizantinas, no Sul, foi insuficiente para produzir influências jurídicas substanciais.
Por essa época, difundem-se no Ocidente as coletâneas justinianeias, mas essa difusão foi
bastante modesta, acabando muitos dos textos por cair no esquecimento. Nada teve a ver esta
difusão indiferenciada do século VI com o fulgurante interesse que o Direito Romano do
Corpus Iuris Civilis despertou no século XII, que esteve na base da evolução conducente à
ciência jurídica moderna. Note-se que a subsistência do Direito Romano Vulgar é que tornou
possível este renascimento, ao permitir o reencontro com as estruturas do Direito Romano
Clássico.
 Pré-Renascimento do Direito Romano

Reza a lenda que o Digesto foi descoberto casualmente, em 1135, durante o saque bárbaro da
cidade italiana de Amalfi, pelos Lombardos, tendo sido levado para Pisa, onde o imperador
Lotário II lhe restituiu força vinculativa.
No entanto, a moderna crítica histórica afasta a lenda, dado que, se por um lado, o Digesto já
era conhecido e citado, antes do século XII, por outro, nunca um único e pontual episódio
poderia determinar todo um renascimento, o qual antes assenta em múltiplas causas
históricas e jurídicas.
Desde logo, refiram-se as tentativas de restauração do Império Romano do Ocidente – cujo
expoente máximo foi o chamado Sacro Império Romano-Germânico – que procuram também
restaurar o seu ordenamento jurídico. Com a morte de Carlos Magna, as relações entre o
Papado e o poder temporal agudizaram-se, originando uma querela que se prolongaria no
tempo, relacionada com a relação e a (in)dependência entre o poder espiritual e o poder

23
História do Direito

político, procurando os defensores do poder Imperial soluções que robustecessem a sua


posição no Direito Romano justinianeu, quer face à Igreja, quer face aos reinos medievais.
Acrescem, ainda, o universalismo da fé cristã, que unificava os homens para além da raça e da
história e exaltava a romanidade, em consequência da interpretação cristã do mundo.
Em terceiro lugar, mencione-se o surgimento das Universidades e o contemporâneo e
relacionado progresso geral da cultura na Baixa Idade Média.
Para além dos fatores, já mencionados, concorreram, também, para o renascimento do Direito
Romano, elementos como o aumento da população, o êxodo rural ou o surgimento de uma
economia citadina, assente na moeda.
Assim, soçobra a lenda de Lotário II, porquanto, como se viu, foi uma panóplia de fatores
políticos, religiosos, culturais e económicos que concorrem entre si para originar o referido
renascimento do Direito Romano. Ponto é que, desde o século XI, este intenso interesse,
redescoberto, pelo estudo do Direito justinianeu se fez sentir. E, mesmo antes de a Escola de
Bolonha despontar e atingir o seu apogeu, já na Itália vários polos existiam onde o Direito
Romano era estudado e conhecido, como Pavia ou Ravena.
Na literatura jurídica do século XI, denotava-se, de igual forma, o reflexo do Corpus Iuris Civilis,
nomeadamente em obras como Exceptiones legum romanorum Petri, ou Brachilogus Iuris
Civilis, bem como em coleções canónicas cujo autor foi Ivo, bispo de Chartres.
Pese embora haja quem sustente que, também na Península Ibérica, é possível encontrar
indícios deste pré-renascimento, não parece que, fora de Itália, esse fenómeno tenha atingido
proporções relevantes cingindo-se a literatura isolada.

RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO PROPRIAMENTE DITO


- Origem da Escola dos Glosadores e seus principais representantes
Apesar das manifestações anteriores e a que supra fez referência, o estudo sistemático e a
divulgação em larga escola do Direito Romano justinianeu só se iniciaram no século XII, por
intermédio da Escola de Bolonha, cuja origem remonta ao final do século XI.

A Escola de Bolonha tem, na sua origem, Irnério, a quem a ciência histórico-jurídica atribui,
essencialmente, dois méritos: por um lado, o de autonomizar o ensino do Direito
relativamente ao conjunto das outras disciplinas que integravam o saber medieval, em
particular da Lógica e da Ética; por outro, o de estudar os textos jurídicos romanos na sua
versão completa e originária, indo para além dos extratos e resumos anteriormente existentes.
A sua notoriedade e as suas preleções valeram-lhe o cognome de “lucerna iuris”, a candeia do
Direito.
A Escola de Bolonha não surge, logo, ab initio, como uma “Universidade”, antes se
caracterizando por ser apenas um pequeno centro de enino, justamente ancorado nas
preleções de Irnério. A evolução da Escola de Bolonha, no sentido de uma verdadeira
Universidade, prende-se com a frequência da Escola por estudantes oriundos um pouco por
toda a Europa, os quais, depois, levavam consigo os mais modernos ensinamentos da ciência
jurídica.

24
História do Direito

Irnério deixou, entre os seus mais diretos discípulos, os chamados “quatro doutores” –
Bulgarus, Martinus, Hugo e Jacobus. Mais tarde, destacaram-se Placentino e Azo, e, já na fase
de decadência da Escola de Bolonha, sobressaiu Acúrsio, a quem se deve uma coletânea e uma
sistematização da obra de todos os anteriores expoentes da Escola.
A Escola de Bolonha ficou também conhecida como Escola dos Glosadores, sendo que este
último qualificativo tem o mérito de permitir abarcar, para além de Bolonha, outros polos
menores e mais orientados para a prática jurídica.

SISTEMATIZAÇÃO DO CORPUS IURIS CIVILIS ADOTADA PELOS GLOSADORES


Os Glosadores da Escola de Bolonha optaram por dividir o Corpus Iuris Civilis de uma forma
diferente da originária.
O Corpus Iuris Civilis veio a lume no século VI com uma estrutura quadripartida, que
principiava pelo manual de noções elementares de Direito Dominado Institutiones; seguia com
o Digesto, uma compilação de fragmentos extraídos das obras dos principais jurisconsultos
clássicos; prosseguia com o Códex, uma compilação de leges desde Adriano até Justiniano; e
encerrava com as Novellae, as constituições imperais promulgadas depois do Codex.
Mas os Glosadores não seguiram esta estrutura no seu estudo. E não o fizeram quer porque os
textos componentes do Corpus Iuris Civilis não foram todos descobertos ao mesmo tempo,
quer porque as quatro partes indicadas tinham naturezas e dimensões muito diferentes, que
comprometiam o didatismo procurado pelos Glosadores.
Foi, pois, necessário fazer uma nova sistematização, a fim de facilitar o estudo da obra, sendo
que a sistematização efetuada pelos Glosadores foi aquela que se instalou e manteve nas
principais escolas de Direito e que, em Portugal, assim permaneceu até à Reforma dos estudos
jurídicos levada a cabo pelo Marquês de Pombal. Esta sistematização fracionou o Corpus Iuris
Civilis em cinco partes:
1. Digesto Velho;
2. Digesto Esforçado;
3. Digesto Novo;
4. Código – Codex;
5. Volume Pequeno;

MÉTODO DE TRABALHO DOS GLOSADORES


O principal e predileto instrumento de trabalho dos membros da Escola de Bolonha era a
glosa.
A glosa é um processo de interpretação do escrito que consiste num pequeno esclarecimento,
uma simples palavra ou expressão com o objetivo de tornar inteligível algum passo do texto
considerado obscuro ou de interpretação duvidosa; nos primórdios da sua utilização pelos
Glosadores, esses esclarecimentos, pela sua pequenez, eram geralmente feitos entre as
próprias linhas do texto interpretado, tendo ficado conhecidos como glosas interlineares.

25
História do Direito

Com o tempo, as glosas ganharam completude e dimensão, deixando de se referir apenas a


um segmento ou a um preceito de texto interpretado para se passarem a referir a todo um
título.
Uma vez que, naturalmente, se deixaram de poder escrever entre as linhas do texto, passaram
a escrever.se à margem do mesmo, recebendo o nome de glosas marginais. Estas glosas
traduziam já uma exposição coerente e sistemática.
Apesar de a glosa ser o principal instrumento de trabalho dos Glosadores, nem por isso deixou
a Escola de Bolonha de lançar mão de outros meios técnicos:
 Regulae iuris: definições que os Glosadores enunciavam, de forma sintética,
procurando nelas condenar princípios ou dogmas jurídicos basilares, e que depois
reuniam em compilações;
 Casus: consistiam inicialmente em exemplificações de hipóteses concretas de
aplicação das normas jurídicas, embora depois tenham evoluído para verdadeiras
exposições interpretativas.
 Dissensiones dominorum: eram sínteses dos entendimentos sufragados pelas mais
ilustres juristas sobre problemas jurídicas proeminentes;
 Quaestiones: sistema argumentativo através do qual se enunciavam, a propósito de
carros jurídicos, as razões a favor e as razões contra as soluções possíveis, concluindo-
se por aquela que fosse adequada;
 Summae: género específico e complexo, utilizado pelos Glosadores mais conceituados,
que passava por abordar certos temas de maneira completa e sistemática,
ultrapassando o seu objeto de estudo inicial;
 Distinctiones: consistiam numa análise das várias perspetivas jurídicas em que uma
determinada temática era decomponível.

OS GLOSADORES PERANTE O TEXTO DO CORPUS IURIS CIVILIS


Os Glosadores revelaram uma postura próxima da reverência perante o Corpus Iuris Civilis, não
ousando ir para além ou contra a doutrina nela constante.
Por conseguinte, a doutrina da Escola de Bolonha nunca se desprendeu verdadeiramente da
letra da vetusta juridicidade romana, pelo que não logrou encontrar soluções inovadoras e
mais adequadas à realidade do seu tempo. E, uma vez que desconheciam a etimologia de
vários termos latinos e as circunstâncias e finalidade em que as normas haviam sido criadas,
acabaram por defender algumas soluções que nunca haviam sido utilizadas pelos romanos ou
que, de todo, já não se justificavam na conjuntura medieval. Esta atitude de um certo
dogmatismo e legalismo, cultivada pelos Glosadores, está associado á preocupação de estudar
os textos justinianeus genuínos e às dificuldades de penetração no sentido desses textos.
A verdade é que se assinala à Escola de Bolonha uma certa evolução na hermenêutica
utilizada, dado que, já sob a influência da escolástica, souberam ultrapassar a pura exegese
para adotar processos lógicos de relação entre a letra e o espírito da lei.
Acima das suas limitações, há que referir um mérito fundamental que se atribui aos
Glosadores: a virtualidade de terem conseguido transformar uma amálgama normativa-
positiva inorgânica e diversificada num todo unitário e sistemático. Neste sentido, pode dizer-
26
História do Direito

se que aos Glosadores se deve a primeira dogmática jurídica autónoma da História Universal. E
o labor dos Glosadores consubstanciou o +precedente necessário da evolução subsequente da
história da ciência jurídica ocidental.

APOGEU E DECLÍNIO DOS GLOSADORES


A Escola de Bolonha viveu o seu período áureo durante o século XII, datando o início do século
XIII o princípio do seu declínio.
Com efeito, nas primeiras décadas do século XIII, os juristas da Escola de Bolonha já não
trabalhavam diretamente sobre o seu objeto de estudo, antes debruçando, imediatamente,
sobre a glosa que um qualquer Glosador, em momento anterior, havia feito sobre o segmento
respetivo do Corpus Iuris Civilis. Esta situação levou ao surgimento de “glosas de glossa”,
geralmente identificadas por siglas, com a inerente cristalização da produção doutrinária.

No segundo quartel do século XIII, Acúrsio procurou ordenar todo o extenso e disperso
trabalho já realizados pelos anteriores Glosadores. Para o efeito, selecionou todas as glosas
referentes a textos do Corpus Iuris Civilis, conciliando ou apresentando criticamente as
diferentes opiniões interpretativas sufragadas pelos mais credenciados membros da Escola. O
trabalho de Acúrsio conheceu grande difusão, quer porque as cópias do Corpus Iuris Civilis,
disponíveis a partir de então, passaram a incluir a Magna Glosa, quer porque a mesma foi
aplicada nos Tribunais dos países do ocidente Europeu ao lado das disposições da compilação
justinianeia. A Magna Glosa (resultante do trabalho de Acúrsio) marca o fim de um ciclo e o
início de um período de transição na metodologia da ciência jurídica. Por esse motivo se
designam os juristas ulteriores de “pós-acursianos”. Surge, então, um novo género na
literatura jurídica – o “tractatus”, uma exposição concentrada sobre um instituto jurídico e
exaustivo, já separada do texto legal. Assinala-se, ainda, alguma evolução em determinados
ramos do Direito em direção à sua autonomia científica, como é o caso do Direito processual e
das normas notariais.

DIFUSÃO DO DIREITO ROMANO E DA OBRA DOS GLOSADORES


Embora o renascimento do Direito Romano tenha tido a sua origem e o seu consequente
epicentro em Itália, a sua difusão estendeu-se a todos os países ocidentais, também em
Portugal.
A principal razão esta difusão do Direito Romano renascido, como já antes se deixou consignar,
relaciona-se com a permanência em Bolonha de estudantes estrangeiros oriundos das mais
variadas provenientes. Aqui, os estudantes estrangeiros agruparam-se em treze nações de
escolares ultramontanos, assim formando a Universidade dos estudantes estrangeiros, que
coexistia com uma Universidade dos estudantes italianos e com uma Universidade para os
estudantes das artes liberais.
Foram estes estudantes estrangeiros que levaram consigo os mais recentes ensinamentos
sobre o Direito Romano justinianeu.
Para além do protagonismo dos estudantes estrangeiros merece especial destaque, para a
difusão romanística, a fundação progressiva de várias Universidades, nos recentes Estados

27
História do Direito

europeus, nos finais do século XII e durante o século XIII, onde se passaram a ensinar os ramos
do saber que então constituíam o ensino superior.

Justamente devido à lecionação, num mesmo local, de diferentes ramos do saber, aberta a
escolares diversas proveniências, certas escolas começaram a ser designadas por “Estudo
Geral“, por contraposição ao “Estudo Particular”. Concluídos, com aprovação, os estudos, os
mestres permitiam aos seus estudantes aprovados ensinar em qualquer parte do mundo
cristão.
Só mais tarde é que o termo Universidade começou a ser utilizado, sendo que não tinha, na
altura a mesma significação que tem nos dias de hoje. Com efeito, na sua alvorada, a
Universidade não era encarada como um conjunto de departamentos ou faculdades, mas
como uma comunidade de mestres e de alunos, congregados para ensinar e aprender,
respetivamente, e um ambiente em que se cultivavam com profundidade todos os ramos de
saber. Durante algum tempo, os termos “Universidade” e “Estudo Geral” foram utilizados
indiferenciadamente, tendo o primeiro, como se sabe, acabado por prevalecer.
O surgimento das Universidade está diretamente associado a vários fatores:
 Espírito Corporativo existente (reunião, num mesmo corpo, de
diferentes profissionais do estudo);
 Progresso generalizado do saber;
 Novas conceções sobre a ciência e sobre os seus diversos
ramos:
 Formação e o crescimento dos centros urbanos;
 Desenvolvimento do Direito Romano e do Direito Canónico;

As Universidades não foram todas criadas da mesma forma. Na verdade, casos houve em que
estes polos de estudo surgiram consuetudinária e espontaneamente como resultado da
evolução e corporativização de pequenas escolas pré-existentes, monásticas, diocesanas ou
municipais, dinamizadas pelo protagonismo dos seus mestres (Universidade de Bolonha). –
Universidades ex consuetudine.
Outra forma de surgimento das Universidades foi o desmembramento ou separação de
núcleos já existentes, o que era facilitado pelo reduzido lastro físico destes centros de estudo.
Com efeito, a pedra de toque das Universidades não estava tanto nos poucos livros ou
recursos de que dispunham quanto na qualidade e singularidade dos mestres que nelas
ensinavam e dos estudantes que nelas aprendiam (Universidade de Oxford levou à criação da
Universidade de Cambridge; universidade de Bolonha deu origem à Universidade de Pádua). –
Universidades ex secessione.
Finalmente, as Universidades podiam ser criadas por iniciativas do próprio poder político. Estes
casos acabaram por se tornar regra. No entanto, as Universidades assim criadas não
provinham de uma instituição com uma tradição científica já firmada, pelo que necessitavam
de confirmação pontifícia para serem elevadas ao nível das suas congéneres e para serem
reconhecidos os graus académicos por aqueles conferidos. Só depois de tal confirmação pelo
Papa podiam conferir permitir aos seus estudantes aprovados ensinar em qualquer parte do
mundo cristão (ius ubique docendi) – Universidade de Nápoles, Toulouse e de Coimbra. –
Universidades ex privilegio.
28
História do Direito

No final do século XIII existiam já 14 Universidade espalhadas por toda a Europa. As


Universidades afirmaram-se como espaços de liberdade e mobilidade, onde mestres e alunos
trabalhavam em conjunto na procura e na transmissão do conhecimento científico.

Como se referiu anteriormente, o “renascimento” do Direito Romano e o epicentro do seu


estudo e divulgação aconteceu em Itália. No entanto, a sua difusão extravasou aqueles limites
geográficos, disseminando-se um pouco por toda a Europa, não sendo a Península Ibérica
exceção.
Apesar de essa difusão se ter começado a sentir nos finais do século XII, em particular nas
regiões do Nordeste peninsular, que mais contacto tinham com o resto da Europa, foi já
durante o século XIII que a mesma se consolidou.
Em Portugal, algumas das pessoas que conheciam os textos dos Glosadores e que estavam
cientes do renovado interesse no cultivo Romano encontravam-se entre os conselheiros dos
primeiros monarcas. De resto, são múltiplos os vestígios de familiaridade com o Direito
Romano renascido que, desde o final do século XII, chegaram até aos nossos dias,
nomeadamente códices e livros de Direito Romano e Direito Canónico.
Porém, não se pode sustentar que data no final do século XII a receção, em Portugal, do
Direito Romano renascido, uma vez que tal pressupõe a sua aplicação quotidiana, o que não
aconteceu desde logo, mas antes progressivamente e ao longo da centúria sucessiva. Com
efeito, só no século XIII é que se pode falar de uma receção em escala relevante do Direito
Romano justinianeu e da obra científica dos Glosadores, aqui sim, sentida nas práticas judicial
e notarial.
Para tal contribuíram decisivamente as Universidades, que lançaram para a vida prática
profissionais muito mais conhecedores do Direito do que os velhos juízes, advogados e
tabeliães, que nem sempre conheciam as normas aplicáveis ou sequer as conseguiam ler. Estes
profissionais formados pelas Universidades constituíram uma nova classe de juristas, que se
instalaram predominantemente perto da Corte e de centros religiosos. A eles se deveu,
verdadeiramente, a receção entre nós e a difusão do Direito Romano.

FATORES DE PENETRAÇÃO DO DIREITO ROMANO RENASCIDO NA PENSÍNSULA IBÉRICA E EM


PORTUGAL
 Mobilidade de estudantes peninsulares e de jurisconsultos estrangeiros;
 Difusão do Corpus Iuris Civilis e da Glosa;
 Ensino do Direito Romano das Universidades;
 Legislação, prática e produção de obras jurídicas de inspiração romanística;

- Mobilidade de estudantes peninsulares e de jurisconsultos estrangeiros


Importante fator de penetração do Direito Romano na Península Ibérica foi o papel
desempenhado pelos estudantes peninsulares, os quais, com predominância de eclesiásticos,
acorreram aos novos centros de cultivo e ensino do Direito existentes em França e Itália,
especialmente a Escola de Bolonha.
29
História do Direito

Os estudantes oriundos de qualquer local da Península Ibérica eram, por norma, chamados,
indistintamente, de “hispanos”, isto é, habitantes da Hispânia. Tal tratamento indistinto
dificulta a determinação da exta naturalidade de alguns estudantes.
Pode, no entanto, adiantar-se com segurança provir de Pedro Hispano de Portugal. Também
era português João de Deus, possivelmente o mais destacado coetâneo jurista pátrio.
Justamente pelo seu crescimento, na Universidade, a nação dos “Hispani” acabou por ser
subdividida nas nações de Portugal, Castela, Aragão, Catalunha e Navarra.
Estes juristas, após concluírem os seus estudos nos estrangeiros, regressavam geralmente a
Portugal, onde ocupavam postos proeminentes na Igreja, na política e/ou no ensino, por eles
passando essencialmente a difusão do Direito Romano e do Direito Canónico.
Paralelamente ao fluxo de estudantes portugueses que se deslocavam a França e a Itália para
se formarem, registou-se também um movimento de jurisconsultos estrangeiros para a
Península Ibérica, onde desempenharam funções como conselheiros dos primeiros monarcas.

- Difusão do Corpus Iuris Civilis e da Glosa


À medida que os juristas do reino regressavam já especializados das Universidades, traziam
consigo vários textos que se revelaram importantes para a difusão do Direito Romano,
passando a ocupar lugar nas bibliotecas e a figurar nos seus inventários e passando a ser
citados frequentemente, entre eles merecendo destaque as múltiplas edições do Corpus Iuris
Civilis, as quais vinham já acompanhadas da glosa acursiana.

- Ensino do Direito Romano nas Universidades


A primeira Universidade a ser fundada na Península Ibérica foi a Universidade de Palência, em
1212. A sua organização e funcionamento inspirou as Universidades sucessivas,
nomeadamente a de Salamanca, que se solidou por volt de 1250.
Em Portugal, no reinado de D. Dinis, foi criada a primeira Universidade. Os historiadores não
estão em sintonia quanto à data exata em que aqueça terá sido fundada, oscilando entre os
anos de 1288 e 1290. O certo é que a 9 de agosto de 1290, o Papa Nicolau IV promulgou a bula
confirmatória “De statu Regni Portugalie”, a qual oficializou o Estudo Geral.
Quem frequentasse e concluísse os seus estudos na Universidade portuguesa poderia obter os
graus de licenciado em Direito Canónico e em Direito Civil, ficando investido no ius ubique
docendi, que lhe permitiria ensinar por toda a Republica Christiana.
A Universidade portuguesa, que começou por ser instalada em Lisboa, transferiu-se, mais
tarde, por várias vezes, de Lisboa para Coimbra e de Coimbra para Lisboa, acabando por se
fixar definitivamente em Coimbra em 1587.
Não obstante a existência de uma Universidade no reino, o fluxo de estudantes que acorria à
frequência e aprendizagem em Universidades estrangeiras famosas não estancou, o que
contribuiu para a difusão do Direito Romano.

- Legislação, prática e produção de obras jurídicas de inspiração romanística

30
História do Direito

A presença do Direito Romano tornou-se detetável um pouco em todos os fenómenos de


juridicidade, quer na nova legislação entretanto elaborada, quer na prática, quer, no fim, na
produção e obras jurídicas.
No que às obras jurídicas diz respeito, elas foram escritas inicialmente em castelhano, com
uma forte influência do Direito romano renascido e do Direito Canónico renovado.
Algumas delas foram traduzidas para português no final do século XIII e chegaram a ter uma
ampla utilização, inclusive como fontes de Direito subsidiárias (Flores de Derecho”; “Nueve
tempos de los pleitos”).
Registe-se, entretanto, a política legislativa que a maioria dos historiados do Direito atribui,
nesta época ao rei Afonso X de Leão e Castela. Com efeito, esta último procurou reivindicar
para si a produção e criação jurídicas, mas também cuidou de uniformizar e renovar o Direito
de Leão e Castela, através de obras legislativas.
No âmbito desta política, destacam-se, por um lado, o Fuero Real, uma compilação das normas
jurídicas municipais, incidentes sobre o Direito Privado e sobre o Direito Penal, destinada às
cidades que não possuíam foro ou que pretendiam substituir o seu foro por outro mais
perfeito e atualizado, na qual se constatam consideráveis reflexos romanísticos e canonísticos
a propósito de soluções jurídicas concretas. E, por outro, as Siete Partidas, uma exposição
jurídica de carácter enciclopédico, dividida em sete partes, que conheceu múltiplas
reelaborações ao longo do tempo, essencialmente inspirada no Direito Romano canónico, mas
da qual consta uma síntese de princípios filosóficos, religiosos e morais, de origens variadas.
O real alcance das Siete Partidas como fonte de Direito é discutível, mas não oferece dúvidas
que a coletânea desempenhou um papel relevante na formação dos juristas e que chegou a
ser considerada, no reino de Castela, e em meados do século XIV, como fonte legal de Direito
subsidiário.
Entre nós, foram também as Siete Partidas o texto mais difundido, embora nunca tenham
chegado a vigorar como fonte subsidiária de Direito.

ESCOLA DOS COMENTADORES


Esgotado o método da glosa com os Glosadores pós-Acursianos, surgiu, no século XIV, um
novo instrumento de trabalho, o comentário: pequeno esclarecimento, de tipo lógico-
sistemático, já não literal-interpretativo, como era a glosa. E, à semelhança do que sucedeu
com esta última, também este método de trabalho cunhou uma das nomenclaturas pela qual a
nova Escola ficou conhecida para a História: Escola dos Comentadores.
O aparecimento da nova Escola – primeiro surgida em França, em Orleães, com Jacques de
Revigny e Pierre de Bellperche, depois desenvolvida em Itália – está intimamente ligado, por
um lado, à Decadência da Escola dos Glosadores, e por outro, à aberta utilização da dialética
aristotélica do estudo do Direito.
Em que consiste o novo método dialético ou escolástico? É um método próprio da escola, sob
orientação do mestre (escolástico). Está baseado na leitura de textos de autores, através da
técnica da quaestio: o debate, em face de determinadas teses, dos argumentos pro, dos
argumentos contra, e apresentação da solutio.
Em bom rigor, não se pode dizer que a Escola dos Glosadores deu lugar à Escola dos
Comentadores. Com efeito, e como é corrente, o método do comentário já havia sido
utilizado. Apenas não consubstanciava o método dominante, que era ocupado pela glosa.

31
História do Direito

Agora há uma nova perspetiva, de natureza predominantemente lógico-sistemática e já não


apenas exegética ou interpretativa. Seja dizer, o comentador, indo para além do Glosador, não
só procedia à exegese do texto para o qual trabalhava, como procurava ainda sistematizar as
normas e os institutos jurídicos, de um modo mais apurado, articulando a história das palavras,
a análise crítica e a síntese.
Denota-se, nos Comentadores, um maior pragmatismo do que aquele que possuíam os seus
antecessores, procurando, sobretudo, resolver problemas concretos.
Os Comentadores adotaram uma atitude diferente perante os textos jurídicos romanos, uma
atitude mais desprendida do rigor positivo do texto, levando em consideração as glosas e
comentários sucessivos do que o texto interpretado já havia sido alvo, recorrendo ainda a
outras fontes de Direito, como o ius proprium (concretas normatividade de cada país –
costumes, tradições) e o Direito Canónico, acabando por criar novos institutos e novos ramos
do Direito.
O auge da Escola dos Comentadores medeia entre o início do século XIV e meados do século
XV, tendo-se destacado, inicialmente, Cino de Pistoia, Bártolo e Baldo, e mais tarde, Paulo de
Castro e Jasão.
Mas foi graças a Bártolo – como se deduz de uma das nomenclaturas pelas quais ficou
conhecida a Escola -, pela sua produtividade e influência, o jurista mais eminente da Escola dos
Comentadores. Dizia-se mesmo que “ninguém é bom jurista se não for Bartolista”.
Os comentários de Bártolo, pelo prestígio generalizado que mereceram, tornaram-se fonte
subsidiária de Direito nos diversos ordenamentos jurídicos europeus. Bártolo ficou assim, para
a História como o jurista mais eminente de todo o século XIV.

Qual o significado da obra dos Comentadores?


O método dos Comentadores caracterizou-se pela utilização dos esquemas mentais dialéticos
ou escolásticos, pelo afastamento crescente da estrita letra dos textos jurídicos justinianeus,
pela utilização de um sistema heterogéneo de fontes de Direito e pelo acentuado pragmatismo
das soluções jurídicas encontradas.
A utilização deste método foi o alicerce do surgimento de novas instituições e disciplinas que
não tinham raiz específica romana, no âmbito do Direito Comercial, Direito Pena, Direito Civil,
etc., os quais conheceram também a produção de literatura jurídica de prestígio.
Acima das diferenças – e para além da relação de proximidade exclusiva entre a glosa e o
comentário – cumpre realçar a comum matriz prudencial de escolas jurídicas medievais: elas
partem não do sistema jurídico no seu todo, mas da situação jurídica concreta; a solução não
se obtinha a partir da subsunção do facto à norma legal, mas sim pela ponderação da justiça
caso concreto, sendo em função desta que era achada a norma aplicável. Portanto, ia-se do
facto ara norma, e não da norma para o facto, como se faz hoje em dia.
Ao longo da segunda metade do século XV, assiste-se ao declínio e ao esgotamento das
potencialidades da Escola dos Comentadores. A explicar a queda da Escola está o emprego
rotineiro e cristalizador do método do comentário, a levar ao excesso do casuísmo, à
estagnação da produção jurídica e à perda da preocupação criativa, por um lado; dos
argumentos já utilizados anteriormente por outros Autores e ao uso abusivo da autoridade de
que estes gozavam, a ponto de, a certa altura, os prolemas concretos que eram colocados aos
Comentadores serem “resolvidos” apenas mediante a confeção de listas de argumentos e de
Autores num sentido e noutro.
32
História do Direito

Relativamente ao princípio da autoridade impõe-se consignar algumas notas. A autoridade – o


saber socialmente reconhecido – era aferida através da communis opinio que fosse partilhada
sobre uma certa questão.
Communis opinio começou por ser o parecer ou o sentimento generalizado que as pessoas
nutriam em face de determinado assunto, mas a partir do século XIII passou a abranger o
parecer ou o entendimento dos doutores, daqueles que gozavam de autoctoritas, e a partir do
século XV passou a referir-se exclusivamente ao parecer ou entendimento destes últimos.
Quando os autores perfilhassem entendimento jurídico idêntico esse entendimento era
considerado exato.
A evidência é própria das ciências teóricas, ao peso que a probabilidade é própria das ciências
práticas: estas estudam o comportamento humano, sujeito, na sua contingência, a
circunstâncias variáveis. A opinião comum ou maioritária ajuda a identificar a probabilidade
especulativa, que é discutida no ensino magistral e a alcançar uma verdade prática, com a qual
os operadores e a comunidade podem contar na aplicação do Direito. Ainda hoje se continua a
utilizar o argumento de autoridade, a par dos argumentos nacionais.
Nas ordenações Manuelinas, a não oposição à communis opinio doctorum chegou a ser
requisito para a relevância subsidiária da Glosa da Acúrsia e do Comentário de Bártolo.

O Direito Canónico e a sua importância


Paralelamente ao renascimento do Direito Romano e intimamente relacionada com esse
renascimento está a renovação do Direito Canónico, aquém e além-fronteiras.
O estudo do Direito Canónico evidencia um interesse histórico geral, dada a importância da
Igreja Católica num país de matriz cristã como o nosso; deve salientar-se o interesse para a
história social e política do conhecimento das suas instituições e organizações.
Deve evidenciar-se também o interesse do Direito Canónico para a história do Direito
Português, dado o significado muito valioso deste ordenamento no quadro histórico das fontes
do sistema jurídico português, que se prolonga até aos tempos modernos, com paralelo nos
restantes países de tradição cristã.
Qual o lugar particular do Direito Canónico na História do Direito Português quanto às fontes
de Direito? Ele ocupou um lugar principal, enquanto o Direito Português foi um sistema
pluralista, e enquanto nele coexistiu uma série de factos normativos de proveniência diversa,
formalmente correspondendo a uma pluralidade de fontes.
A partir daí, o Direito Canónico foi considerado como Direito Subsidiário e afirmou-se pouco a
pouco um domínio do direito emanado do poder centrar, acabando o Estado por proclamar a
redução do direito aos atos jurídicos por ele promulgados.
Mas o conhecimento e o estudo do Direito Canónico têm mais do que um interesse histórico:
têm um interesse jurídico que ainda hoje se faz sentir.
Assim, da compreensão básica do Direito da Igreja pode interferir, por exemplo, que a vigência
duma norma não se liga necessariamente a uma forma pré-determinada, mas pode derivar da
mera convicção social da sua obrigatoriedade.
O Direito Canónico consagra, entretanto, uma solução mais ampla do que o Direito secular
quanto à integração de lacunas normativas, mais aberta à riqueza dos recursos revelados pela
experiência jurídica universal, à doutrina e à jurisprudência.

33
História do Direito

Análogas considerações se podem fazer sobre a estrutura dos atos jurídicos em geral: o seu
estudo em Direito Canónico recorda-nos que os efeitos jurídicos se produzem mais em
atenção à vontade que a eles adere do que às formalidades que os condicionam. O que se
pode notar especialmente no casamento.
Estudar o Direito da Igreja enfim, é conhecer a origem de muitas instituições recebidas no
Direito Secular, como sejam os casos do casamento, da personalidade coletiva, da hierarquia
administrativa.
O Direito Canónico pode assim levar à aquisição de conteúdo muito relevantes para a
formação jurídica geral; além de que é um bom antídoto contra o positivismo, contra o
dogmatismo e contra o estreito nacionalismo, apontando para a universalidade da ciência
jurídica.
Entretanto, o Direito Canónico é o Direito de uma comunidade social viva, diferente da
comunidade política, que é a Igreja Católica.

Conceito de Direito Canónico


O Direito Canónico – enquanto ordem – pode definir-se como a ordenação social imperativa
que estrutura as relações intersubjetivas segundo princípios de justiça inerentes à realidade da
comunidade eclesial.
Assim, o Direito Canónico é uma ordem ou ordenação social e imperativa; é uma ordenação
que estrutura as relações intersubjetivas na comunidade eclesial; é uma ordenação social
justa, que se pauta por princípios de específicos que lhe são inerentes; enfim, é uma
ordenação que se socorre de normas e não um mero conjunto de normas.
O Direito Canónico dá origem a “cânones”, por oposição ao Direito da comunidade política,
que dá origem a normas. Em sentido estrito, porém, os cânones abranger apenas as normas
emanadas dos Concílios, por oposição aos decretos ou cartas decretais, normas provenientes
da direta iniciativa dos Papas.
No que respeita às fontes do Direito Canónico, temos que os seus princípios fundamentais se
baseiam na Revelação de Deus, feita através de Cristo e dos seus seguidores diretos, os
Apóstolos. Estes princípios assim revelados – e que prevalecem sobre as demais fontes de
Direito Canónico – constituem as chamadas fontes de Direito divino por contraponto com as
denominadas fontes de Direito Romano.

São fontes de direito divino a Tradição Viva e a Sagrada Escritura.


A Tradição Viva consubstancia-se na transmissão da mensagem não escrita de Cristo, realizada
desde as origens do cristianismo, mediante a pregação, o testemunho, as instituições e os
escritos inspirados por Deus. Os Apóstolos transmitiram a Tradição aos seus sucessores, os
Bispos, e através deles vem sendo transmitido a todas as gerações de cristãos tudo quanto
receberam de Cristo ou aprenderam por inspiração divina.
A Sagrada Escritura é o conjunto de escritos humanos considerados como diretamente
inspirados por Deus, que ensinam, com certeza, as verdades necessárias à salvação.
Apesar da existência da Sagrada Escritura, a fé cristã não se assume como “uma religião do
livro”, mas sim como uma religião da Palavra de Deus, do próprio Deus que se revela em
Cristo.

34
História do Direito

No que às fontes de Direito divino diz respeito, a Igreja Católica não procura nem realiza
inovações, limitando-se a propor ou a interpretar declarativamente os cânones da Tradição
Viva e da Sagrada Escritura.
Depois, para além das fontes de Direito Divino, o Direito Canónico conta também com fontes
de Direito Humano: costume, decretos dos pontífices romanos, cânones dos concílios
ecuménicos, os atos emanados de outras autoridades eclesiásticas, as concórdias ou
concordaras, a doutrina e a jurisprudência e as normas civis canonizadas.

EVOLUÇÃO DO DIREITO CANÓNICO


O Direito Canónico pode dividir-se em cinco fases evolutivas:
 Período do Direito Antigo: desde o início até ao Decretum de Graciano (1140);
 Período do Direito Renovado: de 1140 até ao Concílio de Trento (1545-1563);
 Período da Reforma Católica: de 1563 ao 1º Código de Direito Canónico (1917);
 Período do Código de 1917: desde 1917 até 1962, abertura do Concílio Vaticano II;
 Período do Concílio Vaticano II e das codificações posteriores: o Código de Direito
Canónico de 1983 e o Código dos Cânones das Igrejas Orientais de 1990.

Depois de uma primeira fase em que praticamente existiram fontes de Direito divino,
começaram a despontar o costume e as outras fontes de Direito Humano, os modos normais
de criação de normas novas, atenta a interpretação meramente declarativa que a Igreja
Católica realiza das fontes de direito divino.
A proliferação de normas canónicas escritas levou, entretanto ao aparecimento de
necessidade de elaborar coletâneas para as reunir e sistematizar. As primeiras coletâneas a
serem elaboradas foram-se no Oriente, muito embora tenham sido difundidas no Ocidente
com a inclusão de disposições pontifícias e disposições conciliares aplicáveis e relativas ao
Ocidente.
Destas coleções, apontam-se os “Capitula Martini”, organizados por S. Martinho de Dume, em
563, e a “Collectio Hispana”, mandada elaborar pelo Concílio particular decorrido, em Toledo,
em 633, aprovada oficialmente pelo Papa Alexandre III, no século XII, e que continha normas
dos Concílios Peninsulares, incluindo os de Braga, que daí passaram para o Decreto de
Graciano. A “Collectio Hispana” assumiu grande projeção e contribuiu de modo relevante para
o progresso jurídico.
Também nas coletâneas de Direito secular se encontravam preceitos sobre matérias
eclesiásticas. Assim sucedeu nas compilações de Justiniano ou nas codificações visigóticas.
Apesar do seu desenvolvimento, da necessidade do seu estudo e da elaboração de algumas
compilações, só nos finais do século XI e nos princípios do século XII se poderá começar a falar,
propriamente, em ciência do Direito Canónico, tendo por objeto um conjunto de cânones
sistematizados e aprofundados, suficientemente demarcado da matéria de estudo e de
trabalho da Teologia e do Direito Romano.

35
História do Direito

- Movimento Renovador do Direito Canónico


É no século XII que se assiste ao movimento renovador do Direito Canónico, fenómenos ao
qual não são alheios os fatores já apontados e que contribuíram para o renascimento – no
sentido mitigado que já supra se referiu – do Direito Romano; avulta assim, neste período de
renovação do Direito da Igreja, a experiência de um Direito Sábio, fruto da aliança entre a
Santa Sé e a Universidade.
Entre o Direito Canónico e o Direito Civil existia uma relação de proximidade, que se
manifestava, por exemplo, na preparação e nos graus académicos obtidos, considerando-se,
na época, que só o jurista que dominasse estes dois âmbitos do Direito teria uma formação
completa.
No entanto, apesar da transformação normativa e dogmática do Direito Canónico que tem
lugar a partir o século XII – com a organização de coletâneas mais perfeitas de cânones, em
substituição das anteriores, e com a reelaboração científica baseada nos novos corpos
normativos – não se pode falar aqui de qualquer “renascimento”, sequer em sentido mitigado;
com efeito, nunca houve uma quebra de continuidade na evolução jurídico-canónica: o
ordenamento canónico manteve-se sempre vigente, acompanhado a presença viva das Igrejas
Católica e sobrevivendo à queda do Império Romano ocidental.

- Coletâneas de Direito Canónico a partir do século XII. O CORPUS IURIS CANONICI.


O surgimento de novas coletâneas está relacionado com o esforço, por parte do Papado, de
unificação normativa da Igreja, combatendo os excessivos particulares nacionais e regionais.
É dentro desta lógica que surge, por volta de 1140, o Decreto de Graciano, ou Concordia
Discordantium Canonum. Procurava Graciano com a sua coletânea coordenar, harmonizar e
esclarecer preceitos canónicos de diversas proveniências, agrupando-os de forma sistemática.
Na sua elaboração foram levados em consideração a teleologia ou significação dos cânones
(ratione significationis), o tempo em que foram elaborados (ratione temporis), o local de onde
provinham (ratione loci) e o carácter geral ou excecional que assumiam (ratione
dispensationis).
O decreto de Graciano era uma coletânea privada, mas pela sua perfeição técnica e amplitude,
difundiu-se como se se tratasse de uma coletânea oficial.
Outra das coletâneas, entretanto surgidas, foi a das “Decretais de Gregório IX”, organizada por
S. Raimundo de Penhaforte e promulgada, em 1234, pelo Papa Gregório IX, que as havia
solicitado àquele monge. Trata-se de uma coletânea que recolhe sobretudo normas pontifícias
posteriores ao “Decreto de Graciano”, dividida em cinco livros que abrangiam âmbitos jurídico-
eclesiásticos diversos.
A relação entre o Decreto de Graciano e as Decretais de Gregório IX era, pois, similar à que
existia entre o Digesto e o Codex no Corpus Iuris Civilis.
Depois do surgimento destas coletâneas continuaram, naturalmente, a publicar-se novas
normas pontifícias. Assim, em 1298, na sequência de uma iniciativa do Papa Bonifácio VIII, foi

36
História do Direito

publicado o Liber Sextus, que aglutinou um conjunto de normas surgidas após as Decretais de
Gregório IX.

Uma quarta coletânea, entretanto, surgida e aprovada oficialmente pelo Papa Clemente V,
ficou conhecida como Clementinas. Com efeito, após o Concílio de Vienne, que decorreu em
França, em 1311-1312, este Papa ordenou que fossem reunidos num corpo os cânones
decorrentes daquele concílio, bem como as decretais que aquele Pontífice havia sido
promulgado. Clemente V viria, porém, a morrer em 1314, só sendo as Clementinas publicadas
em 1317.
Seguiram-se duas coletâneas privadas Extravagantes: as Extravagantes de João XXII e as
Extravagantes Comuns. Com efeito, em 1500, publicou-se, num só texto, não só as quatro
coletâneas a que nos parágrafos anteriores se fez referência, como também outras decretais e
um índice acrescentados por iniciativa do editor. Assim, incluía a compilação das Extravagantes
de João XXII, que continha as decretais do Papa João XXII, e a compilação das Extravagantes
Comuns, que agrupava também as decretais dos Papas subsequentes.
Não obstante três das coletâneas anteriormente aludidas – o Decreto de Graciano e as duas
compilações Extravagantes – terem natureza privada e não oficial, todas elas vieram a figurar
do Corpus Iuris Canonici, nome pelo qual ficou correntemente conhecida. Este Corpus
incorporou assim as fontes básicas do Direito da Igreja que vigorariam durante o período da
Reforma Católica.
Continuando a seguir a perspetiva da história das fontes escritas, aproveita-se para completar
a apresentação sintética do quadro das fases de evolução do Direito Canónico inicialmente
apresentado.
A Reforma Católica dar-se-ia com o Concílio de Trento, em reação ao movimento da reforma
protestante. Proclamaram-se, com clareza, algumas verdades de fé postas em dúvida pelos
protestantes e tomaram-se também decisões disciplinares que robusteceram e renovaram a
organização da Igreja.
O Corpus Iuris Canonici só seria revogado pelo Codex Iuris Canonici, mandado elaborar pelo
Papa S. Pio X e promulgado pelo Papa Bento XV, em 1917. Aqui, estamos já na presença de um
código em sentido técnico, com rigor científico, sintética e sistemático, como infra se verá, e
não de uma mera coletânea. Devem, por fim, assinalar-se – na esteira da renovação do Direito
da Igreja segundo as diretrizes do Concílio Vaticano II – o código de Direito Canónico de 1983 e
o Código dos Cânones das Igrejas Orientais de 1990.

RENOVAÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO CANÓNICO. DECRETISTAS E DECRETALISTAS


Nos séculos XII e XIV, a atividade legislativa, já referida, no seio do Direito Canónico, foi muito
superior à desenvolvida pelos monarcas dos Estados daqueles séculos.
Existiu, à época, um confronto entre os dois ordenamentos jurídicos diferentes do Direito
Comum, básicos e de vocação universal, sendo que um deles assentava nos textos canónicos
assim coligidos e outro nos preceitos romanísticos.
A sempre complexa e melindrosa relação entre o poder político e o poder espiritual deu lugar
ao problema peculiar da época medieval, da discussão da supremacia dos poderes, na qual
canonistas e legistas defenderam, respe4tivamente, a hegemonia do poder pontifício ou do
poder temporal.

37
História do Direito

A par desta queda, já conhecida, os canonistas tiveram necessidade de proceder a uma


atualização normativa e à interpretação e aplicação de novos preceitos, assim contribuindo
para a renovação do Direito Canónico.
Para essa tarefa de atualização, interpretação e inovação os canonistas seguiram uma
metodologia paralela à que já se viu ter sido utilizada para trabalhar o redescoberto do Direito
Romano: primeiro a técnica da glosa e, depois, a técnica do comentário.
Conforme os canonistas trabalhassem sobre o Decreto de Graciano ou sobre as Decretais de
Gregório IX eram conhecidos como decretistas ou decretalistas.

PENETRAÇÃO DO DIREITO CANÓNICO NA PENÍNSULA IBÉRICA E EM PORTUGAL


Os peninsulares que acorreram aos polos de formação e ensino que floresceram em Itália e em
França provinham, na sua maioria, do clero. Por este motivo, estudavam o renascido Direito
Romano, por necessidade da sua dogmática, mas orientavam-se sobretudo para o Direito
Canónico.
São conhecidos alguns decretistas e decretalistas oriundos da Península Ibérica, como o
espanhol S. Raimundo de Penhaforte ou os portugueses João de Deus e Domingos Domingues.
Para além da ação destes peninsulares que se deslocaram para fora da Península Ibérica para
se formaram e depois transmitirem os conhecimentos adquiridos, a penetração e a difusão do
Direito Canónico na Península Ibérica ficou a dever-se ainda a outros fatores, como a
divulgação de textos de Direito Canónica, através de cópias e as traduções diversas.
Por fim, cumpre enfatizar o ensino de Direito Canónico nas próprias Universidades da
Península Ibérica, muito embora a uma escala menor d que a vivida em Bolonha, Universidade
que sempre gozou de maior prestígio.

 Aplicação judicial do Direito Canónico


O conhecimento do Direito Canónico tinha, à época, não só um interesse teórico, mas também
um interesse prático, dado que o mesmo era aplicado quer nos Tribunais eclesiásticos, quer
também – nos termos que infra se verão – nos Tribunais civis.
 Aplicação nos Tribunais Eclesiásticos
O Direito Canónico era, antes de mais, o ordenamento jurídico próprio dos Tribunais
Eclesiásticos.
A competência dos Tribunais eclesiásticos fixava-se em função da matéria que estava a ser
julgada (ratione materiae) e em função das pessoas que estavam em juízo (ratione personae).
No que à ratione materiae diz respeito, deve assinalar-se que determinadas matérias eram
consideradas como sendo próprias da jurisdição canónica, como o matrimónio, os bens da
Igreja, os testamentos com legados e outros benefícios eclesiásticos.
No que concede à ratione personae, é de referir que certas pessoas só podiam ser julgadas nos
Tribunais da Igreja, nomeadamente os clérigos e todos aqueles a quem se concedesse tal
privilégio.

 Aplicação nos Tribunais Civis


38
História do Direito

Para além de se aplicar nos Tribunais eclesiásticos, o Direito Canónico chegou a aplicar-se
também nos Tribunais civis, embora seja discutível com que extensão.
A maioria da doutrina pátria defende que o Direito Canónico consubstanciava uma fonte
imediata de Direito Aplicável e que, inclusivamente, teria valor superior ao do Direito Nacional,
sustentando tal entendimento numa decisão que o rei D. Afonso II tomou na Cúria de Coimbra,
em 1211, onde determinou que as leis não poderiam contrariar os direitos da Santa Igreja de
Roma. Desta posição comungam Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Ruy de Albuquerque e
Martim de Albuquerque e, aparentemente, Mário Júlio Almeida Costa.
Há, também, quem entre nós defenda a tese contrária, de que o Direito Canónico não
prevalecia sobre o Direito nacional, nem era aplicado imediatamente aos concretos casos
jurídicos. Assim entendem Guilherme Braga da Cruz e José Mattoso. Independentemente da
posição que se tome sobre a questão, a verdade é que, mais tarde, o Direito Canónico passaria
a fonte subsidiária de Direito.
Seja como for, pela sua especificidade e pelas diferenças dos seus objetos, o Direito Canónico
era menos suscetível de contradição com o Direito Romano havendo “razão de pecado”, isto é,
se a observação das soluções impostas pelo Direito Romano fosse contrária às exigências da
moral cristã.

39

Você também pode gostar