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cotidiana e a arte”, defendeu Jacques Rancière (2005, p. 29).

CAPÍTULO 5 – POLÍTICAS CULTURAIS PARA A SOCIEDADE DO


Por isso mesmo, e contra toda a lógica atual de um saber ESPETÁCULO (UMA RESPOSTA A MÁRIO VARGAS LLOSA)
tecnocrático que desliga o cultural do político e o político do
econômico, essa proposta enfatiza a necessidade – herdada de Por que a cultura empobreceu tanto, foi esvaziada de
Gramsci – de entender a cultura como um novo poder e, conteúdo e se tornou algo tão superficial? O livro do escritor
sobretudo, de começar a tomar o poder a partir da cultura. Em peruano Mario Vargas Llosa A civilização do espetáculo (2012)
última instância, desculturalizar a cultura implica ressoar um coloca esta pergunta na cena contemporânea e tenta propor
revés estratégico: simbolizar o político, democratizar o um bom conjunto de ideia a respeito. Em sua visão, hoje
simbólico. atravessamos uma crise profunda: as artes não têm nada a
dizer, o jornalismo perdeu ideias, os intelectuais foram
cúmplices do totalitarismo e alguns capitalistas desvirtuam a
ideia de mercado. Ao longo das páginas, Vargas Llosa explica
estes problemas com habilidade, torna-os mais visíveis e
mostra a encruzilhada da sociedade atual.
Interessa-me aqui debater algumas de suas ideias,
colocá-las em diálogo com a teoria crítica e, sobretudo, com a
opção por gerar políticas culturais mais envolvidas com a
transformação social. Se o livro de Vargas Llosa pretende ser
uma cartografia do estado da cultura contemporânea, trata-se
de um livro que pretende descrever um conjunto de problemas

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que hoje afeta a vida coletiva, meu objetivo com esse capítulo porém o problema não é que não se pergunta quais são as
aponta a continuar pensando o que fazer com os ditos razões que explicam as mudanças culturais e os fatores que
problemas, como começar a neutralizá-los e de que maneira contribuíram para que a sociedade atual tenha chegado a ser o
podemos afirmar que é possível modificar o atual estado das que é. De fato, contra todo o desenvolvimento da crítica
coisas. contemporânea, Vargas Llosa insiste, quase titubeando, em
O livro, que não deixa de ser uma reunião apressada de que a cultura deve ser estudada como uma esfera autônoma.
diversos artigos, (muitos deles já publicados e que agora Distanciando-se de Debord sustenta o seguinte:
parecem breves ensaios), reescreve o título do livro clássico, A Sua tese é econômica, filosófica e histórica
antes que cultural, aspecto que, fiel
sociedade do espetáculo de Guy Debord (2010 [1967]), cujas também ao marxismo clássico, Debord
ideias sobre a relação entre cultura e capitalismo adiantaram e reduz a superestrutura daquelas relações
de produção que constituem o cimento da
muito o que acontece hoje. É possível notas que Vargas Llosa vida social. A civilização do espetáculo está
limitada a mudança no âmbito da cultura,
respeita Guy Debord, porém se distancia dele. Sua prosa é bem entendia não como epifenômeno da vida
capaz de resumir as ideias de Debord, mas evita mergulhar econômica e social, se não como uma
realidade autônoma, cheia de ideias,
nelas. Este não é um livro acadêmico que se estrutura neste valores estéticos e éticos, obras de arte e
literárias que interagem com o restante da
tipo de argumentação, mas se trata de um ensaio provocador
vida social e são muitas vezes, em lugar de
que, em última instância, pretende convencer seus leitores a reflexos, fonte dos fenômenos sociais,
econômicos, políticos e inclusive religiosos
sua posição pessoal. (VARGAS LLOSA, 2010, p. 25)
Em todo o caso, a primeira constatação que qualquer
leitor pode obter do livro é que Vargas Llosa descreve, com Vargas Llosa tem razão em que a cultura não pode ser

angustia, o que atualmente ocorre no mundo contemporâneo, entendida como um mecânico reflexo da base econômica.
Somente um marxismo vulgar (que Debord não praticava) pode

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assumi-la como instância subsidiária ou como mero fenômeno específicas. Gonzalo Portacarrero, por exemplo, o explicou
da base social. O problema, entretanto, radica em que se a assim:
cultura nunca é um efeito da economia, isso não implica O mundo do simbólico é certamente
complexo. Porém se não o relacionamos
necessariamente que seja uma esfera autônoma e que seu com outras esferas da realidade, voltamos,
estudo deve limitar-se unicamente a suas próprias dinâmicas ou melhor, não saímos nunca, de uma
metafísica simplista e redutora. O desafio é
internas. No parágrafo anterior, Vargas Llosa parece ser racionalizar a complexidade entendida
como uma situação onde há várias classes
consciente do problema, porém não sabe sair do assunto. Se a de fenômenos que são irredutíveis entre si;
cultura é fonte de fenômenos sociais, não é tão autônoma e é dizer, uns não podem ser deduzidos pelos
outros; e, além disso, e isso é talvez o mais
seu argumento rapidamente torna-se contraditório. difícil, entender a complexidade como uma
situação peculiar, na qual os fenômenos
Uma maneira de começar a resolver o problema
não podem ser definidos cada um
consiste em afirmar que hoje em dia a cultura é entendida isoladamente, em síntese, a definição de
cada um tem que ser simultânea aos
como espaço da dominação social, porém também o da outros. (PORTOCARRERO, 2004, p. 297)
resistência. Nesse sentido, a cultura não é algo puramente
autônomo relacionado somente com a estética (que também é O certo, em todo o caso, é que a discussão sobre o lugar

política), ela se relaciona com a vida diária, com o ordinário e e a função da cultura no mundo social sempre gerou um

com as formas como esse ordinário se torna hegemônico ou intenso debate sobre o interior do pensamento marxista. Não

marginal. Reproduzimos ou fabricamos diferentes significados se trata exatamente (como o sustenta Vargas Llosa) de uma

para buscar dar sentido a sua vida e esses significados ou critica externa ao marxismo, se não uma discussão permanente

representações se encontram sempre vinculados a práticas na qual posturas de notáveis marxistas como Antonio Gramsci,
Walter Benjamin, Louis Althusser, E. P. Thompson e Raymond
Williams começaram a esclarecer o panorama. Hoje, os

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trabalhos de Ernesto Laclau, Terry Eagleton, Slavoj Žižek, discursivo-, que a direcionava para ser dessa maneira. Pierre
Frederic Jameson e Jaques Ranciére seguiram aportando a Menard não pode escrever o mesmo Quixote que se escreveu
discussão. Vargas Llosa não parece ter lido esses autores, no século XVII, pelo simples fato que a sociedade se modificou.
porém de fato isso não é importante. Em qualquer caso, todos O próprio Borges (com sua particular lucidez) sustenta que se
enfatizam que a cultura nunca é isolado se não um complexo fosse possível fazê-lo, isto é, se tivesse podido escrevê-lo
conjunto de práticas e interesses diversos. A cultura se palavra por palavra, o seu (o de Menard) teria sido muito
constitui a partir de um conjunto de pressões onde diferentes melhor do que o de Cervantes.
esferas (econômicas, políticas e simbólicas) se sobre A civilização do espetáculo manifesta uma grande a
determinam e Inter determinam umas com outras. relacionar cultura e sociedade e isso gera o argumento de
Nada é, portanto, menos autônomo do que a cultura e Vargas Llosa para explicar o que há por trás desse culto ao
não podemos continuar pensando sobre ela e a avaliando à entretenimento fácil e a superficialidade contemporânea. O
margem das dinâmicas que ocorrem na sociedade. Pensar a que hoje alimenta o hiperconsumo, o hedonismo, o cinismo e a
cultura implica em pensar a sociedade que a produz e que a corrupção em grande escala? Qual tipo de indivíduo, de
pretende ou não intervir. De fato, a cultura é, sociedade, são criados no interior dessa dinâmica? Qual laço
simultaneamente, uma ação para mudar algo e reflexo de outra social vem se construindo sob um sistema que somente
coisa. Se os homens de Altamira se pintavam como búfalos o valoriza a acumulação de capital e o mais feroz individualismo
faziam porque havia algo fora da arte que condicionava essa embalado sob o discurso da liberdade?
artes Se a cultura na Idade Média era religiosa e contemplativa Marx não dedicou toda a sua vida a propor um Estado
(E pintava virgens, cenas bíblicas e santos), foi dessa maneira burocrático nem instituições repressoras, mas estudou as
porque havia algo – uma forma de poder, um substrato contradições econômicas do capitalismo. Em seus vários

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ensaios, produziu uma teoria da sociedade onde as dinâmicas concreto porque é a síntese de múltiplas determinações,
econômicas, políticas e simbólicas deveriam ser pensadas em portanto, unidade do diverso”, sustentou Marx em os
relação,e enfatizou que era tarefa do pensamento desvendar Grundrisse (MARX, 1971 [1857-1858], p. 21).
suas complexas determinações. Hoje, a partir da crítica cultural, Deve então ficar claro que não podemos entender o
esse problema foi explicado assim: estado da cultura fora de sua relação com outras esferas da
Há mudanças na história, nos estilos vida social e com as dinâmicas contemporâneas do capitalismo,
artísticos, nas ciências, porém a menos que
os liguemos uma concepção rigorosa da que vale enfatizar, é a palavra menos usada no ensaio de
estrutura social, o que temos é Vargas Llosa. Ele se dá conta do problema perfeitamente e por
simplesmente uma espécie de história
idealista e sem fundamento material, onde isso reconhece que “o único valor de hoje é o que fixa o
não se sabe porque ocorrem essas
mudanças. Qualquer mudança cultural ou mercado” (2010, p. 32), porém o problema é que essa
intelectual precisa ser ligada de alguma constatação nunca é levada às últimas consequências. Vargas
maneira com o modo de produção
(JAMESON, 1991, p. 3). Llosa sustenta que esta é uma cultura contaminada por
“hedonismo barato” (2010, p. 49), porém a verdadeira
“Ligá-lo” significa estabelecer relações entre distintos pergunta se situa em saber se esse hedonismo é mais o
níveis e fazer o esforço por descobrir conexões ocultas. “Ligá- sintoma de um sistema social que o produz e que talvez o
lo” implica observar causas e efeitos, porém também
alimente incessantemente.
sobredeterminações complexas ou práticas estruturadas. O
Perguntemos então onde o sujeito está inserido hoje e
marxismo acadêmico sustentou sempre que não se pode
que tipo de sociedade o constitui. Os psicanalistas explicaram
pensar na base e na superestrutura como entidades separadas.
bem que a sociedade contemporânea é uma que surge de falta
Não se trata de esferas mecanicamente vinculadas, mas de
de autoridade da lei. O estado-como ente diretor e tutelador da
dimensões relacionadas de forma orgânica. “O concreto é

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sociedade- fracassou, porém o problema é em sua de si mesma, nenhum projeto histórico
mobilizador; estamos regidos pelo vazio
reorganização, surgiu um novo direcionamento oriundo do (LIPOVETSKY, 2002, p. 9-10).
mercado: a ordem de gozar. Se durante vários séculos, existiu
uma lei que obrigava a renúncia ao prazer (em virtude da Nesse sentido, hoje se diz que vivemos um sistema

disciplina e do esforço pessoal) hoje, pelo contrário, ordena-se cínico. Por quê? Porque todos sabemos que a cultura do

a gozar e esse gozo – fundamentalmente autista- produz uma consumo não proporciona a felicidade, porém seguimos

erosão cada vez maior dos vínculos sociais. Em que consiste o atuando como se o fizesse. Todos os dias nos frustramos ante

gozo? Qual é? Não é muito difícil se dar conta de que esse gozo as promessas que nos oferece o mercado, porém o curioso é

não é outra coisa se não o consumismo, o responsável pela que, como consumidores, continuamos colocando-nos,

chamada “cultura do vazio”. histericamente no mesmo lugar. Este é um sistema que seduz

Ninguém acredita ainda no futuro radiante por todos os lados e que, sob o manto do progresso, insiste em
da revolução e do progresso, as pessoas
produzir tanto quanto seja possível. Cada vez os objetos se
querem viver o hoje, aqui e agora,
conservar-se jovem e não forjar o homem impõem cada vez mais sobre o sujeito. Cada vez mais a
novo. Sociedade pós-moderna significa...
esgotamento do impulso moderno pelo tecnologia, mais meios para controlar o mundo, porém o certo
futuro, desencanto e monotonia do novo, é que o tempo livre nunca chega ou somente chega para
cansaço de uma sociedade que conseguiu
neutralizar em apatia aquilo em que se alguns. Marx foi o primeiro em notar que o capitalismo era um
afunda: a mudança. Os grandes eixos
modernos: a revolução, as disciplinas, o sistema frente ao qual os seres humanos haviam começado a
secularismo, a vanguarda, foram perder todo o controle. Vargas Llosa, entretanto, o explica de
abandonados a força pela personificação
hedonista... nenhuma ideologia política é outra maneira:
capaz de entusiasmar as massas; a
O grande fracasso da crise que experimenta
sociedade pós-moderna não tem ídolo, nem
sem trégua o sistema capitalista – a
tabu, nem tão pouco uma imagem gloriosa

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corrupção, o tráfico de influências, as para propor uma lei de equivalências e de
operações mercantilistas para enriquecer trocas, a lei que demonstre de seu poder.
transgredindo a lei, a ganância frenética Ele é quem primeiro julgou a baixa da
que explica as grandes fraudes de entidades dissuasão, da desconexão, da
bancárias e financeiras, étcetera – não desterritorialização, etc. e é ele que vem
devem a falar constitutivas de suas fomentando a realidade, o princípio de
instituições, mas ao colapso desse suporte realidade. Ele também foi o primeiro
moral e espiritual encarnado na vida acabou com todo o poder de uso de toda
religiosa que atua como um freio e equivalência real entre produção e riqueza,
corretivo permanente que mantém o com a sensação que temos da realidade das
capitalismo dentro de certos padrões de possibilidades e a onipotência da
honestidade, respeito ao próximo e às leis manipulação (BAUDRILLARD, 2007, p. 51-
(VARGAS LLOSA, 2010, p. 182-183) 52)

O ponto aqui é que Vargas Llosa diagnostica um Além disso, hoje seria necessário afirmar que o
problema social como um de índole moral e, por isso concentra capitalismo se tornou um sistema propriamente cultural
toda a sua crítica em identificar os culpados individuais: os porque a mercadoria se encontra estetizada e porque o poder
“maus capitalistas”, os “intelectuais totalitários”, os necessita das imagens para se impor no mundo social. Vivemos,
“acadêmicos herméticos”, em suas próprias frases. De fato, de fato, o reino da publicidade, da manipulação, das
novamente, Vargas Llosa evita reconhecer que os grandes “estratégias comunicacionais” que não são outra coisa que a
problemas da cultura contemporânea têm relação com o imposição de um interesse que oculta e engana. De fato, esse
próprio movimento do capital. tipo de agência de publicidade se tornou o motor principal de
Em definitivo, o capital é quem primeiro se um capitalismo que prefere inverter a produção de imagens e
alimentou de sua história de destruição de
todo o referente, de todo fim humano, discursos. Não se pode afirmar que o privilégio das relações
quem primeiro rompeu todas as distinções mercantis sobre todas as outras não teve consequências na
irreais do novo e do falso, o bem e o mal,

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cultura, no tipo de sociedade, nas subjetividades que ali se reciclados ante a contínua variação de
modelos (LIPOVETSKY, 2002, p. 107)
constituem e no vínculo entre elas.
É um início, ao capital foi suficiente produzir
Vargas Llosa também o entende assim, porém o define
mercadorias, pois somente o consumo era
suficiente. Hoje, é preciso produzir também nos seguintes termos:
os consumidores, é preciso produzir
demanda mista e essa produção é Quem quer produzir a civilização do
infinitamente mais custosa do que a de espetáculo? A de um mundo onde o
mercadorias. (BAUDRILLARD, 2007, p 133). primeiro lugar na tábua de valores vigente é
ocupado pelo entretenimento e onde se
divertir, escapar dos aborrecimentos, é a
O certo, em todo o caso, é que da sociedade de paixão universal. Este ideal de vida é
perfeitamente legítimo, sem dúvida.
consumo só pode surgir um indivíduo hedonista no qual o Somente um puritano fanático poderia
narcisismo e a perversão foram adquirindo direitos. (UBILLUZ, censurar os membros de uma sociedade
que quer dar consolo, humor, e diversão a
2012, p. 16). Esta é uma cultura onde foi imposta a indiferença algumas vidas enquadradas pelo cotidiano
em rotinas deprimentes e às vezes
perante o público, uma visão puramente instrumental da vida e embrutecedoras. Porém converter essa
um controle social extremo baseado na manipulação da natural propensão a um valor supremo tem
consequências inesperadas: a banalização
informação. da cultura, a geração da frivolidade, e, no
campo da informação, a preferência pelo
Hoje com o universo de objetos, da
jornalismo irresponsável da fofoca e do
publicidade, dos meios de comunicação de
escândalo (VARGAS LLOSA, 2010, p. 34)
massa, a vida cotidiana e o sujeito já não
possuem um peso próprio, foram
incorporados ao processo de moda e da Como é possível notar, o argumento deixa novamente
obsolescência acelerada: a realização
definitiva do indivíduo coincide com sua os leitores sem resposta. E isso acontece porque Vargas Llosa
desvinculação, com a emergência de
se nega a introduzir uma série de perguntas: por que essa
indivíduos isolados e vacilantes, vazios e
“propensão a ficar bem” se converteu em um valor supremo? O

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que aconteceu para que o gozo se torne um imperativo social que promove que as pessoas consumam passivamente os
com tanto poder? Qual relação tem essa nova maneira de viver direcionamentos do mercado e o faz porque se não fosse assim
– essa cultura- com o sistema econômico e com suas provavelmente o sistema entraria em crise.
vinculações políticas? Vargas Llosa constata o declive do Nesse sentido, uma teoria da ideologia (ou do controle
pensamento, porém chama a atenção que seria incapaz de ligá- hegemônico) se faz urgente no pensamento de Vargas Llosa.
lo com as dinâmicas do sistema atual. Hoje, o capitalismo neutralizou sua forma de pensar e difundiu
Por exemplo, com dor e com melancolia – como ele uma única correta. A Teoria Crítica nos ensinou que a ideologia
mesmo disse- Vargas Llosa observa a redução dos artigos de constitui todos aqueles discursos quem tentam mostrar como
opinião dos jornais e comprova como a crítica foi substituída natural ou inevitável o que é pura construção política e puras
pela publicidade. Não precisa ser muito perspicaz para notar relações de poder. A ideologia se vincula a aqueles discursos
isso, para notar que hoje as ideias críticas não vendem e que os que ocultam suas contradições internas. De fato, atualmente, a
jornais não informam, não investigam, tornaram-se catálogos ideologia se camufla como informação: as agências de
de publicidade. Um jornal peruano como O Comércio (do qual publicidade ou as campanhas de comunicação não servem para
Vargas Llosa fez bem em se demitir de colaborador contribuir para que as pessoas fiquem melhor informadas,
permanente) censurou, por exemplo, uma importante graças ao capital, servem para difundir a visão de uma parte
investigação sobre corrupção no governo e imediatamente se interessada.
colocou a boicotar a gestão da prefeitura de Lima. Se esta é Nesse sentido, Žižek (1992), sustentou que a ideologia
uma sociedade onde não importam as ideias e os debates n’ao pode seguir sendo entendida como uma simples questão
públicos, isso ocorre porque garante o controle social e a de ideias, devemos notar como a própria ordem social já está
reprodução do poder. De outra forma, se esta é uma sociedade organizada pela ideologia. A ideologia não é uma ilusão que

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mascara o estado da realidade, mas uma fantasia que que se afirma que o artista francês Marcel Duchamp é um
estruturou a própria realidade social. Hoje, o capitalismo impõe gênio e hoje não possui o mesmo status o britânico Damien
suas ideias como a única verdade possível e tem conseguido Hirst. O historicamente certo é que quando Duchamp realizou
transformá-las em parte de um sentido comum generalizado. suas célebres readymades, um importante conjunto de críticos
Elas são agente estruturante e funcionam propondo mandatos afirmou (como hoje o faz Vargas Llosa com a arte
sociais entre os quais se destaca aquele que somente obriga a contemporânea) que esses objetos eram inaceitáveis, que
se afastar de tudo que tenha a ver com o comunitário e a Duchamp era um “palhaço” e que estava tentando enganar a
desconfiar de qualquer projeto de organização alternativa. Em história da arte.
suma, se hoje as elites não possuem interesse nos artigos de Não parece haver nas reflexões de Vargas Llosa um
opinião nem na arte crítica, é porque muitos desses discursos espaço para aquilo que desconcerta (obviamente os
podem interromper ou desorganizar o estado de coisas. vanguardismos nunca podem ser completamente entendidos
Em nossos dias, em que o que se espera dos no presente), nem muito menos se abre um espaço para a
artistas não é o talento, nem a destreza,
mas a pose e o escândalo, seus dúvida sobre a diferença cultural, vale dizer, para a existência
atrevimentos não são nada mais do que as de outros padrões estéticos, outros conhecimentos, outras
máscaras de um novo conformismo
(VARGAS LLOSA, 2010, p. 49) formas de se relacionar com os outros e com a natureza. Para a
civilização do espetáculo, o mundo deixou de ser “amplo e
Novamente é preciso insistir com as mesmas perguntas:
estranho”, e tornou-se um lugar único e inquestionável. A visão
a pose o escândalo e o prazer chegaram do nada?
da arte que se propõe termina sendo estática, uniforme e se
Conformismo a respeito do que?Esta posição nos leva a
reduz – tristemente- comente aos cânones ocidentais:
observar as próprias ideias que, sobre a mudança artística,
apresenta Vargas Llosa. Em princípio, não se entende bem por

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Cervantes, Shakespeare, Mozart, Rembrandt, Velázquez, Nesse sentido, poderíamos dizer que em A civilização do
Borges, Faulkner, etc. espetáculo aparece uma nostalgia autoritária por restaurar
Como bem notou o autor mexicano Jorge Volpi (2012) aquilo que os psicanalistas contemporâneos chamaram pelo
uma tentação autoritária se desprende dos pressupostos nome de pai. Suas ideias parecem ansiar por um tempo em que
ideológicos que estruturam o livro de Vargas Llosa. De fato, o as hierarquias estavam bem definidas e ordenavam o mundo
próprio Vargas Llosa entende que o popular nunca é um agente de cima para baixo. Porém o problema é que acontece algo
produtor de cultura, mas deve permanecer posicionado como ainda pior: o mais curioso – e realmente preocupante- é que
um simples receptor. Ninguém duvida de que T. S. Eliot foi um Vargas Llosa parece atribuir toda a banalidade existente à
excelente poeta e um notável ensaísta, porém isso não o exime própria democracia que, nas páginas de A civilização do
de ter estado equivocado. Vargas Llosa retoma suas ideias, espetáculo, termina sendo a responsável pelas coisas não
quase as idealiza, e por isso Volpi enfatiza que: estarem mais em seus lugares. Por isso, afirma quase
Não deixa de ser curioso que alguém que se desesperado: “Hoje vivemos em um mundo no qual,
define com liberal- invocando uma estirpe
que vai de Adam Smith, Stuart Mill e Popper paradoxalmente como já não existe maneira de saber que coisa
a Hayek e Friedman – se mostre como é cultura, tudo é e nada é” (VARGAS LLOSA, 2010, p. 69).
membro de uma elite cultural que, em
termos políticos, resultaria inadmissível: um Dito de outra maneira, longe de entender que a
conjunto de sábios semelhante a República,
resulta mais próximo de um universo democratização social consiste, justamente, em que as coisas
totalitário como o de Platão que da órbita sempre saiam de seus lugares (vale dizer que uns não querem
de um democrata.... Na civilização do
espetáculo, Vargas Llosa acerta em seguir ocupando o lugar que lhes foi designado, que os pobres
diagnosticar o final de uma era: a dos
não querem seguir sendo pobres, que a produção cultural de
intelectuais como ele (VOLPI, 2012)
um setor seja conhecida por outro) Vargas Llosa interpreta

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aquilo como a causa principal do problema contemporâneo. De sempre sujeito a revisão permanente” (CHAKRABARTV, 2009, p.
maneira incrível, termina por sustentar que “a civilização do 43). O universal, em efeito, nunca é um conceito fixo, nem
espetáculo não está relacionada com o mercado, mas com o estático, nem muito menos um conceito configurado a priori.
empenho de democratizar a cultura e poderia colocá-la ao Porém além do desencanto diagnóstico da cultura
alcance de todo o mundo (VARGAS LLOSA, 2010, p. 125). contemporânea, tampouco é certo que todo o mundo se
Planejar as coisas assim é um pouco tosco, para dizer o transformou em um simples espetáculo de pura frivolidade.
mínimo. No entanto, a teoria contemporânea sustenta que Nem tudo nas sociedades em que vivemos são imagens banais
esse debate deveria partir ao menos de três pontos ou estratégias comunicacionais interessadas. Na atualidade,
consensuais. O primeiro ponto afirma que o fato de falar de seguem existindo inumeráveis lutas sociais para democratizar a
culturas superiores só significa maior opressão e violência na sociedade e existe uma arte que não deu o braço a torcer e que
história. O segundo sustenta que não existem culturas puras, segue se posicionando como a má consciência da época.
pois todas elas se constituíram a partir do intercambio de Todavia existem artistas que continuam insistindo em fazer
múltiplos elementos. E o terceiro afirma que a principal função visível o que o poder torna invisível e denunciar aquilo que é
do pensamento e da filosofia consiste em ser muito consciente urgente denunciar.
da determinação do tempo em que a enunciação se encontra Ainda que em muitos aspectos Vargas Llosa é também
inscrita, vale dizer, do limitado ângulo de visão que o um deles, seus argumentos prestam muito pouca atenção aos
pensamento sempre tem. Por isso, antes de hierarquizar as movimentos sociais e termina por defender as regiões como o
culturas em uma linha do tempo como se a crítica cultural fosse lugar de construção de uma nova ética de um mundo esvaziado
uma corrida de cavalos, hoje é melhor se afirmarmos que “o de conteúdo. Sustenta que a “alta cultura” perdeu capacidade
universal deve estar aberto ao particular e que deve estar de impacto e que somente as regiões oferecem um lugar de

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refúgio e de construção de uma nova ética. Observemos este contribuir para formas novos cidadãos e a tentar transformar o
parágrafo: presente.
A única maneira como a maioria dos seres No mundo contemporâneo, as políticas culturais devem
humanos entende e pratica uma ética é
através da religião. Somente pequenas ser entendidas como uma alternativa aos fundamentos
minorias se emancipam da religião religiosos, como uma instância crítica ante a aceitação do
substituindo com a cultura o vazio que ela
deixa em suas vidas: a filosofia, a ciência, a capitalismo como o momento final da história, e como uma
literatura e as artes. Porém a cultura que
pode cumprir essa função é a alta cultura maneira de questionar a redução dos antagonismos sociais
que enfrenta os problemas e não os como uma simples questão de valores. As políticas culturais
esconde, que tenta dar respostas sérias e
não lúdicas aos grandes enigmas, servem, não como dispositivos governamentais e de controle
interrogações e conflitos de que está
social, mas como instrumentos para construir uma cidadania
rodeada a existência humana (VARGAS
LLOSA, 2010, p. 43) mais crítica de si mesma e do mundo.
Devemos voltar às definições básicas. Em primeiro
Além do que esse parágrafo entenda que sair da religião
lugar, a cultura se refere aos vínculos humanos (a diferentes
implica uma superação ou que pergunte o que entende por
formas de vida). As políticas culturais devem propor outras
enfrentar os problemas sem escondê-los, o certo é que há
maneiras de se relacionarem com a realidade; devem produzir
muitos outros caminhos e não somente o das religiões para
uma desconfiguração das lógicas hegemônicas e sustentar que
restaurar conteúdos no mundo. Este ensaio me interessa por
é possível organizar o mundo de outra maneira; devem servir
sustentar que as políticas culturais são um desses caminhos.
então para mudar a ilusão ideológica que sustenta a sociedade,
Vale dizer que uma intensa gestão de cultura (uma
para fazer visível aquilo que o poder torna invisível e para
democratização de sua produção e de seu consumo) poderia
revelar o caráter puramente artificial – repleto de interesses-

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sobre o qual se construiu a sociedade. As políticas culturais Porém, em segundo lugar, a cultura se refere também a
devem conceber seu trabalho como o intuito de modificar a um conjunto de objetos aos quais foram designados muito
“partilha do sensível” (RANCIÉRE, 2009), identificando a forma valor comunitário, pois estão sempre ressignificando a
em que se entrelaçam gozos e símbolos e se sustentam experiência do mundo. Nesse sentido, as políticas culturais
impulsos e habitus ou ideias cotidianas (PORTOCARRERO, 2004, devem lutar para democratizar os bens culturais e garantir sua
p. 301). produção, circulação e consumo em todos os setores sociais. Os
O primeiro que se deve fazer em qualquer artistas criam graças a criatividade, porém sabemos que de
planejamento de políticas culturais é tentar descrever como a escolas de formação, espaços públicos e de diversas leis que os
cultura contemporânea chegou a este ponto e como se pode beneficiem diretamente (GARCÍA CANCLINI, 2022, p. 71). Nesse
intervir nela para neutralizar os poderes que a constituem sentido, é objeto das políticas culturais insistir em que os
como tal. Explico melhor: muitos dos principais debates atuais produtos e os serviços culturais não devem ser tratados da
sustentam que a realidade nunca é algo fixo, é algo que nos mesma maneira que outro tipo de objeto e que é urgente criar
disseram que é a realidade e, portanto, essa definição, essa regras mais criativas para neutralizar a desigualdade de acesso
particular maneira de viver, não é a única (e deve) ser ao mercado.
modificada. As políticas culturais devem se apresentar como Entretanto, e como bem reforçou Nelson Manrique
um lugar para questionar a construção social da realidade e, (2012), Vargas Llosa rejeitou um debate internacional, os
sobretudo, para intervir nos antagonismos que a constituem: a projetos de exceção cultural e se vinculou às posições
desigualdade, a discriminação, a injustiça. Elas se ocupam do fundamentalistas ditadas pelo livre mercado. Não tinha razão,
mais difícil: o laço social, os vínculos entre as pessoas. pois comprar um livro segue sendo muito caro, por exemplo, ir
ao teatro é algo que só pode ser permitido a um setor muito

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reduzido da humanidade. É certo que o resultado histórico da O Estado, então, não é o único causador de todos os
relação entre o Estado e a cultura foi o controle e a males. O certo é que o mercado também tem um impacto feroz
propaganda, porém é igualmente sensato reparar os obscenos na cultura contemporânea e que é responsável por muitos
resultados que existem em deixar os objetos culturais outros problemas que A civilização do espetáculo critica e que
submetidos ao puro movimento do mercado. Em todo o caso, o faz bem em criticar. As políticas culturais devem ser entendidas
trauma do passado stalinista é tão forte que, em alguns liberais como instrumentos que servem (que deveriam servir) para
como Vargas Llosa, gerou a idealização do lado oposto. Apesar neutralizar tal situação e fazer notar como o inconsciente do
do grave diagnóstico que nos apresenta, o autor faz todo o capitalismo é monopólico e como o mercado que os liberais
possível para deixar o mercado com as mãos limpas. impuseram não garante nenhuma pluralidade.
Hoje sabemos, entretanto, que os mercados culturais É preciso então que enfatizar que Vargas Llosa não
são controlados por muito poucas empresas que concentraram parece ser muito consciente de ter construído uma posição
quase todo o poder. A produção editorial e discográfica é sem política sobre uma analogia arriscada e certamente equivocada,
dúvida um notável exemplo disso. Todas as semanas aquela que equipara liberdade com capitalismo. Hoje, pelo
observamos como o cinema de Hollywood se impõe ao mundo, contrário, é necessário afirmar que se tratam de coisas
soterrando sem piedade as produções locais. No Peru, por diferentes. E afirma-se também, com coragem, que nunca
exemplo, o 97% do mercado corresponde a este tipo de somos completamente livres. Uma leitura de Freud e de
películas. O cinema europeu, o asiático e o próprio cinema Foucault e, mais ainda, uma simples olhada a nossa experiência
latino-americano somente estão acessíveis no Peru graças aos cotidiana, demonstra que sempre nos encontramos incertos
circuitos piratas que Vargas Llosa (que tem a sorte de poder em estruturas de poder que nos obrigam a pensar e a atuar de
viajar por todo o mundo) resiste em consumir. uma determinada maneira. Os seres humanos somos sempre

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sujeitos manipuláveis (E certamente manipuladores) que democracia. Ele significa que quando você
critica o capitalismo, não deve permitir ser
aspiramos por modificar a história, porém em condições que objeto de chantagem que afirma que você é
não elegemos. A contracorrente do que pensam alguns liberais, contra a democracia. No mundo atual, o
matrimônio entre democracia e capitalismo
hoje a liberdade individual, sob o capitalismo, encontra-se terminou.
muito mais encurralada do que antes. Žižek o expôs durante a
Hoje, o capitalismo é um sistema autoritário que se
ocupação de Wall Street em 2011:
move a margem de toda a consideração e que manipula as leis
Somos chamados socialistas, porém só há
socialismo para os ricos. Eles dizem que ao seu capricho. É um poder (uma estrutura sem sujeito, diriam
não respeitamos a propriedade privada,
porém no crash financeiro de 2008 a alguns) que se expande sem limites e que não aceita controles
propriedade privada que tanto nos custou nem regras que o limitem. Hoje é preciso notar que o
foi destruída com muito mais ferocidade do
que se todos nos aqui o destruíssemos dia e capitalismo já não tem, nem quer ter, um exterior. Seu
noite durante semanas (...)
Lembre-se: o problema não é a ganância ou
propósito é apropriar-se do todo. Não somente é capaz de
a corrupção. O problema é o sistema. Talvez comprar todas as reservas naturais que encontra, como
tenhamos que voltar a estabelecer nossas
prioridades aqui. Não queremos mais um também comprar, como sua arrogância, os segredos da vida
alto nível de vida. Queremos uma melhor
privada e os vende na televisão e nos jornais. Nada impede
qualidade de vida. O único objetivo em que
estamos como comunistas e o cuidado com hoje um sistema que não tem mais tempo para discutir como
os bens comuns. Os bens comuns da
natureza, hoje privatizados pelos bens organizar a produção material (o que priorizar produzir, o que
comuns da propriedade intelectual. deixar de lado) e como distribuir a riqueza em um mundo cada
Biogenética dos bens comuns. Por isso, e
somente por isso, devemos lutar (...) vez mais desigual e com graves problemas ecológicos.
Na China hoje temos o capitalismo ainda
mais dinâmico do que o capitalismo Muitos de nós sabemos, entretanto, que as políticas
estadunidense, porém que não necessita de culturais possuem ali uma função a cumprir: elas devem ser

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encarregadas de se desconectarem com o presente, de onde podermos encontrar alguma resposta (não a única, sem
promover a descolonização, de recuperar algo do passado e dúvida) reside nas lógicas cada vez mais totalizantes, do
cartografar novos sentidos da vida social. Promovidas pela movimento do capital. A cultura contemporânea corresponde a
sociedade civil ou pelo o Estado, o objetivo das políticas uma formação social específica, a do capitalismo, que se
culturais deve ser a intenção de modificar os hábitos sustenta mediante fantasias e através de uma nova dinâmica
arraigados, os costumes adquiridos, as práticas que não se de acumulação.
questionam sob a premissa de que o símbolo e a arte possuem Ponhamos um último exemplo: A civilização do
a capacidade de contribuir e fundar algo novo. As políticas espetáculo é um livro de Vargas Llosa, porém o certo é que,
culturais são o conjunto articulado de iniciativas que tentam como objeto, trata-se também de um produto. É um produto
construir novos trilhos para os tempos vindouros: devem que se vende em livrarias, que não é acessível para todos, que
constituírem-se como um lugar de dissenso ante o existente e foi publicado por uma empresa que contrata trabalhadores,
por isso de emergência do novo. “A cultura” sustenta Eagleton que estabeleceu certas condições laborais entre seus
“não somente é uma descrição do que somos, se não também trabalhadores e que funcionam impondo seus próprios
do que poderíamos ser”. (2001, p. 53) interesses. Neste caso, trata-se de uma editora que controla
Em suma, e a diferença dos argumentos de Vargas Llosa, boa parte do mercado de livros de língua espanhola no Peru,
devemos concluir que a civilização do espetáculo tem uma base que foi submetida a importantes questionamentos políticos e
material e ela não deve ser entendida como a manifestação de éticos pela forma com que comercializa textos escolares. Pelo
uma aleatória mudança nos valores individuais das pessoas. contrário, todo o desenvolvimento das políticas culturais
Não. Este conjunto de mudanças que Vargas Llosa explica tem contemporâneas aponta hoje a necessidade de fomentar as
uma razão de ser e, como apontou Debord, um dos lugares indústrias criativas mais responsáveis e muito mais

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comprometidas com o bem comum. As políticas culturais “já porém como ideólogo se dedica, com um fanatismo digno de
não tratam então da identidade nacional, se não das qualquer personagem de seus próprios livros, ao qualificar o
identidades, que por sua vez estão vinculadas ao setor mercado livre como algo “insuperável” (VARGAS LLOSA, 2010,
produtivo e à legislação a respeito da democratização de bens e p. 180). Em sua visão chegamos ao final da história, ao final da
serviços em escala nacional e internacional” (YÚDICE, 2009, p. imaginação e da capacidade de propor coisas novas. Ou quem
219). sabe é muito pior ainda: hoje nós estamos enfrentando ante
Se hoje a lógica do consumo colonizou a vida coletiva, se um novo totalitarismo que vem sob o discurso da liberdade e
hoje o Estado não é mais um agente que garante ao público e da sociedade aberta.
nos é colocado que devemos representá-lo somente como um Apressou-se Vargas Llosa a publicar um livro como esse?
“órgão filantrópico”, se hoje a política se converteu em uma Não o sabemos, porém o que podemos reconhecer é que segue
pura gestão técnica ante uma realidade que já não quer ser sendo um dos exemplos mais notáveis do que se chamou de
discutida, se hoje, ao notável olhar do poeta chileno Vicente intelectual comprometido. A diferença de muitos outros,
Huidobro, “as horas perderam seu relógio”, as políticas Vargas Llosa não tem medo de se contradizer, de opinar, de
culturais devem ajudar a recuperar o sentido do político, sujar as mãos e de combinar o seu notável trabalho artístico
devem constituir-se como dispositivos encarregados de voltar a com o de cidadão sempre preocupado com o bem-estar social.
planejar, em grande escala, os temas relevantes da vida O valor da justiça, da solidariedade e aqueles grandes ideais
coletiva: que tipo de sociedade queremos e que futuro nos que com muita paixão ele continua reclamando, não são, sem
espera se continuarmos por esse rumo. dúvida alguma, alimentados pelo sistema econômico e pelo
Como o grande artista que é, Vargas Llosa sempre optou tipo de sociedade que ele mesmo defendeu nas últimas
pela capacidade infinita de pensar e propor coisas novas, décadas. Muitos, em minha geração, temos aprendido coisas

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valiosas do trabalho de Vargas Llosa. Porém, felizmente, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
também temos aprendido outras coisas. Uma delas, por
exemplo, consiste em interrogar criticamente a melancolia. APPADURAI, Arjun. Grassroots globalization and the research
imagination. Public Culture, v. 12, n. 1, p. 1-19, 2000.
Heidegger, por exemplo, nos explicou que o mundo sempre nos
oferece de uma determinada maneira e que somente podemos BADIOU, Alain. Segundo Manifiesto por la filosofía. Buenos
Aires: Manantial, 2010.
fazer algo com ele. Hoje – para o bem e para o mal - o mundo
é o capitalismo. Um novo imperativo se faz então necessário. O BALIBAR, Etienne. Racismo y nacionalismo. In: WALLERSTEIN
Immanuel; BALIBAR Etienne. Raza, nación y clase. Madrid:
que podemos fazer? Ainda que Vargas Llosa esteja em Iepala, 1988.
desacordo, a única resposta possível reside em tentar
BAUDRILLARD, Jean, Cultura y simulacro. Barcelona: Kairós,
transformá-lo. 2007.

BAYARDO, Rubens. Cultura, artes y gestión. Revista Lucera


[Centro Cultural Parque de España, Rosario], v. 3, n. 8, 2005.

BENJAMIN, Walter. Dirección única. Madrid: Alfaguara, 1988.

BEVERLEY, John. Siete aproximaciones al problema indígena. In:


MORAÑA, Mabel (org.). Indigenismo hacia el fin del milenio:
Homenaje a Antonio Cornejo Polar. Pittsburg: Instituto
Internacional de Literatura Iberoamericana, 1998.

BHABHA, Homi. El lugar de la cultura. Buenos Aires: Manantial,


2002.

BOURDIEU, Pierre. La distinción. Criterio y bases sociales del


gusto. Madrid: Taurus, 1988.

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