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CADERNOS DE

ESTUDOS CULTURAIS

Eixos Periféricos

Cadernos de estudos culturais | Campo Grande, MS | v. 4 | n. 8 | p. 1 - 194 | jul./dez. 2012


UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MATO GROSSO DO SUL

Reitora
Célia Maria Silva Correa Oliveira
Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini

CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS


Programa de Pós-Graduação
Mestrado em Estudos de Linguagens - Literatura Comparada
Câmara Editorial
Alberto Moreiras – Texas A&M University Eneida Maria de Souza – UFMG Maria Zilda Ferreira Cury - UFMG
André Luis Gomes – UnB Fernanda Coutinho - UFC Paulo Sérgio Nolasco dos Santos – UFGD
Biogio D’Angelo – Itália Florencia Garramuño - UBA Rachel Esteves Lima – UFBA
Claire Varin – Universidade de Montreal, CA Gayatri Chakravorty Spivak – Columbia University Renato Cordeiro Gomes – PUC - Rio
Claire Williams – University of Oxford, UK Ivete Walty – UFMG Silviano Santiago – UFF
Denilson Lopes Silva – UFRJ Ilena Rodriguez – Ohio Stete University Tracy Devine Gusmán – University of Miami
Dipesh Chakrabarty – University of Chicago John Beverley – University of Pittsburgh Vânia Maria Lescano Guerra – UFMS
Edgar Cézar Nolasco - UFMS Luiz Carlos Santos Simon – UEL Vera Moraes – UFC
Eneida Leal Cunha – UFBA/PUC - Rio Maria Antonieta Pereira – UFMG Walter D. Mignolo – Duke University

Edgar Cézar Nolasco


Editor e Presidente da Comissão Organizadora

Marcos Antônio Bessa-Oliveira e José Francisco Ferrari


Editores Assistentes

Comissão Organizadora
Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa-Oliveira, Marta Francisco Oliveira, Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior,
Daniel Rossi, Quelciane Ferreira Marucci, Giselda Paula Tedesco, José Francisco Ferrari, Leilane Hardoim Simões, Lui-
za de Oliveira, Marcia Maria de Brito, Willian Rolão Borges da Silva, Francine Rojas, Carla Letícia Stuermer, Eduavison
Pacheco Cardoso, Renata Damus, Alessandro A. Fagundes Matos, Camila Torres, Laura Cristhina Revoredo Costa.

Revisão
Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa-Oliveira

Planejamento Gráfico, Diagramação e capa


Marcos Antônio Bessa-Oliveira

Sobre a imagem da Capa


Fotografia da folha da Mandioca - Manihot esculenta – manipulada digitalmente.

Produção Gráfica e Design


Lennon Godoi e Marcelo Brown

A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do
autor. (Lei 9.610, de 19.2.1998).
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SNEL – Sindicato Nacional de editores de livros

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

Cadernos de estudos culturais. – v. 4, n. 8 (2012) - . Campo Grande,


MS : Ed. UFMS, 2012- .
v. ; 25 cm.

Semestral
ISSN 1984-7785

1. Literatura – Periódicos. 2. Literatura comparada – Periódicos.


I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

CDD (22) 805


CADERNOS DE
ESTUDOS CULTURAIS

Eixos Periféricos
Esta é uma publicação que faz parte de um Projeto maior
intitulado Culturas locais que, por sua vez, está preso ao
NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS.

Apoio: PREAE/UFMS
Editorial

Dando continuidade às temáticas que vêm abordando – 1° volume: Estudos


culturais (abril de 2009); 2º volume: Literatura comparada hoje (setembro de 2009); 3º
volume: Crítica contemporânea (abril de 2010); 4º volume: Crítica biográfica (setembro de
2010); 5º volume: Subalternidade (abril de 2011); 6° volume: Cultura local (dezembro de
2011); 7º volume: Fronteiras culturais – os CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS
trazem agora uma discussão em torno de Eixos periféricos. Fazendo jus ao “Qualis B1”,
este volume reúne ensaios de pesquisadores que se predispuseram a pensar sobre uma
temática que se encontra na agenda da crítica contemporânea, por sua importância para
a compreensão do mundo global em que vivemos. Não há dúvida de que, mais uma
vez, os Cadernos surpreendem por saírem na frente e conseguirem arrolar uma gama
de intelectuais especialistas no assunto e cujos textos vêm suprir uma lacuna existente
em torno de um conceito ainda em aberto como o de Eixos periféricos. Cabe-me a
feliz tarefa de agradecer a todos os autores que aceitaram participar deste volume,
enriquecendo-o com seus belos ensaios. Agradeço, também, aos editores-assistentes
Marcos Antônio Bessa-Oliveira e José Francisco Ferrari, que não medem esforços para
que os Cadernos venham a público, bem como a todos da Comissão organizadora e
membros do NECC. Gratidão traduz o que todos os neccenses sentimos pelos ilustres
pesquisadores deste volume, sem os quais a temática proposta não seria possível para
a realização deste número dos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS que entra
para a história da crítica brasileira quando o assunto for Eixos periféricos no Brasil.

Edgar Cézar Nolasco


SUMÁRIO

FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA


DO SISTEMA-MUNDO: Ritanálise do IV Centenário de São Luís/MA
Alexandre Fernandes Corrêa........................................................................... 9 - 24

O BRASIL E OS EIXOS PERIFÉRICOS: agenda e identidade


nas relações internacionais
Cristina Soreanu Pecequilo.............................................................................25 - 38

PAISAGENS DA CRÍTICA periférica


Edgar Cézar Nolasco......................................................................................39 - 54

A POLÍTICA HIP HOP nas favelas brasileiras


Heloísa Buarque de Holanda..........................................................................55 - 60

AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?


Heloisa Soares de Moura Costa & Daniela Adil Oliveira de Almeida................61 - 78

JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS


NO RIO DE JANEIRO: a construção da identidade racial
no contexto de iniciativas de combate à discriminação
Ilana Strozenberg & Marcia Contins...............................................................79 - 92
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito
Jorge Anthônio e Silva .................................................................................93 - 102

ARTE en la frontera
Leonor Arfuch ............................................................................................103 - 110

CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade


interpretativa da Tropicália
Liv Sovik .....................................................................................................111 - 122

O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial


Marcos Cordeiro Pires ................................................................................123 - 138

PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas


Maria de Fátima Morethy Couto ................................................................139 - 150

A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais


Mauricius Martins Farina ............................................................................151 - 162

A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense


Reginâmio Bonifácio de Lima .....................................................................163 - 178

GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES: uma história de doces e amargas


lembranças – Resenha do livro Retratos antigos
(esboços a serem ampliados) de Elisa Lispector
Luiza de Oliveira & Willian Rolão Borges da Silva ........................................179 - 186

SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO


Editor, Editores Assistentes & Comissão Organizadora .......................................187

NORMAS EDITORIAIS
Papers, Artigos, Ensaios e Resenhas ..................................................................189
FESTAS PÚBLICAS E
COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS
NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO:
Ritanálise do IV Centenário
de São Luís/MA

Cadernos de Estudos Culturais


Alexandre Fernandes Corrêa1

9
O presente texto² tem como foco os ritos comemorativos na sociedade moderna,

Alexandre Fernandes Corrêa


mais especialmente os que ocorrem mais recentemente no contexto periférico do
sistema-mundo3. Trata-se de elementos de uma ritanálise crítica dos aspectos estruturais
próprios a construção social das comemorações históricas, tomando como objeto
empírico privilegiado o IV centenário de São Luís/MA em 20124. Destacamos alguns
dispositivos significativos desses processos rituais, típicos em sociedades situadas na
periferia da economia-mundo, que nos parecem estruturados em modelos sociológicos
concorrentes. Ao analisar esses teatros comemorativos das festas públicas, buscamos

1
Alexandre Fernandes Corrêa é professor da UFMA.
2
Uma versão desse texto foi apresentada na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, Brasil. GT. 39 – Festa, Estrutura, Mudança.
3
Nossa análise dos ritos comemorativos considera a estrutura hierárquica, sugerida por Wallerstein, dividida
entre centro, semiperiferia e periferia do moderno sistema-mundo, conforme explicitado: “We have now
outlined the two main constituent elements of the modern world-system. On the one hand, the capitalist
world-economy was built on a worldwide division of labor in which various zones of this economy (that
which we have termed the core, the semiperiphery, and the periphery) were assigned specific economic
roles, developed different class structures, used consequently different modes of labor control, and profited
unequally from the working of the system. On the other hand, political action occurred primarily within the
framework of states which, as a consequence of their different roles in the world-economy were structured
differently, the core states being the most centralized” (WALLERSTEIN, 1974: p. 162).
4
Texto derivado do Projeto de Pesquisa TEATRO DAS MEMÓRIAS II: Os Ritos Comemorativos na Atualidade:
As dinâmicas socioculturais das liturgias políticas dos 400 anos de fundação histórica da cidade de São Luís, UFMA.

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compreender sua estrutura lógica, em seus traços socioculturais mais particulares. É
a dialética da permanência e da mudança destes fenômenos sociais que nos chama a
atenção, desde o nosso primeiro estudo sobre festa popular nos Montes Guararapes de
Pernambuco, no início dos anos de 19905 (Corrêa, 2008).
Até o momento, nosso interesse no tema já avançou para observação de outras
festividades públicas importantes no vasto calendário contemporâneo de ritos
comemorativos públicos e oficiais. Desde a inauguração das festas republicanas atlânticas
nos países centrais, - como as comemorações dos 200 anos da Independência dos EUA
(1976) e da Revolução Francesa (1989), aos 500 anos da Descoberta da América (1992) -,
até as comemorações ocorridas em países semiperiféricos como o Brasil (2000); pletora
de festividades cívicas completando um rico leque de agendas internacionais. Nesse
amplo cenário, nosso estudo recaiu mais recentemente para as festas republicanas e de
independência na América Latina, - começando pela revolução haitiana, em 1792 -, até
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culminar no futuro processo de construção sociocultural das festividades comemorativas


do II Centenário da Independência do Brasil, em 2022.
Entretanto, na pesquisa empírica que sustenta esse texto recorremos mais
especificamente, como já foi adiantado acima, às festas públicas realizadas em São
Luís do Maranhão, - com foco complementar no estudo retrospectivo dos ritos cívicos
ocorridos nos anos de 1912 e 1962, servindo de base sociológica comparativa. Destarte,
10 pretendemos alcançar as dominantes culturais dessas máquinas comemorativas que agora
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

adquirem força maior e efervescência máxima, quando se aproximam as comemorações


dos 400 anos de fundação do centro urbano antigo da capital maranhense, nesse ano de
2012.
Desde já é preciso adiantar que há um conflito histórico, simultaneamente político
e mitológico, atuando em pano de fundo, manifesto nos embates sobre a ‘fundação’
da cidade: francófilos versus lusófonos6. Todavia, por um momento contornando o
debate historiográfico entre especialistas e escolásticos – em que surgem acusações de
mitomania e falsificação ideológica – elaboramos a hipótese do confronto entre dois
esquemas celebrativos concorrentes, que nos parece importante acrescentar ao debate: a)
ritos comemorativos; b) ritos festivos. Com o enfraquecimento do primeiro, no contexto
periférico local, observa-se o segundo preponderar, perpetuando o dispositivo barroco
consagrado no século XVIII, em Minas Gerais. Como se sabe, este modelo atravessa a
história desde a Colônia, e, a nosso ver, atualiza o pacto festivo do ‘Triunfo Eucarístico’ de
1733, em Vila Rica; porém, incorporando atualmente requintes do espetáculo midiático

5
Dissertação de mestrado apresentada no PPGA da UFPE.
6
Sobre os aspectos mais específicos desse debate mitológico e historiográfico reportamos o leitor para o
artigo, Alcances interpretativos de uma sociologia das comemorações históricas (Corrêa, 2011). Cabe fazer referência as
obras de cronistas e historiadores que publicaram e pesquisaram sobre o tema (Daher, 2007; Lacroix, 2002;
Lisboa, 1992; Mariz, 2007; Pianzola, 1992).

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carnavalizado: teatro barroco mágico para as massas pós-modernas. Essa é nossa hipótese
principal, sustentando a linha de argumentação apresentada. Outra linha de reflexão
desenvolvida nesse breve texto aponta para a possibilidade de interpretarmos, através
de uma ritanálise relativizadora (Maertens, 1987), certos posicionamentos negativos ou
positivos em relação aos ritos comemorativos e festivos em sociedades semiperiféricas e
periféricas; com características específicas de enquadramentos ideológicos, por ora mais
adequados, ou não, aos seus usos e eficácias. Trata-se assim de uma análise quanto a
adesão ou crítica aos modelos em disputa, nem sempre admitidos com clareza.

Sob o Signo da Desconfiança


A filósofa Marilena Chauí no famoso texto Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária,
após análise da realidade nacional, - apontando para índices socioeconômicos alarmantes -,
e considerando a proximidade da data de comemoração dos 500 anos de Descobrimento,

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conclui de modo desolador: “Como se vê, não há o que comemorar” (2000, p. 101). Esse
é um dos primeiros manifestos de desalento e desconfiança de grande repercussão7, que
recolhemos entre nós, em reação à profusão festiva desencadeada pela inauguração do
longo ciclo de ritos comemorativos; desde a abertura das festas republicanas e atlânticas,
inauguradoras de processo ainda não concluído.
As atuais manifestações de suspeita e receio com relação aos rituais comemorativos
públicos oficiais, contudo, não deixam a filósofa paulista em expressão solitária. Mais 11

Alexandre Fernandes Corrêa


recentemente um historiador pernambucano também apresentou suas queixas, e de
modo contundente e direto, suas desconfianças nessas datas comemorativas divulgadas
com pompa e galhardia pela mídia nacional. O historiador Evaldo Cabral de Mello, por
ocasião das comemorações dos 200 anos de translado da Família Real para o Rio de
Janeiro (1808), festejado no ano de 2008, expressou crítica dura e demolidora em relação
a essas práticas, afirmando em entrevista para um jornal de circulação nacional:
Não gosto de celebrações de efemérides em geral. Não acredito em comemorações
históricas que sejam autênticas. Não quis me envolver nas comemorações dos 500 anos
do Descobrimento, por exemplo. Essa coisa de fazer festa em torno de dom João VI é
armação de carioca para promover o Rio de Janeiro.8

Não obstante, a desconfiança, o desprezo e certa indiferença em relação a estes ritos


comemorativos não partem apenas de intelectuais e estudiosos; vemos se manifestar na
própria atitude dos atores sociais para os quais são endereçados estes festejos e ritos. É
o que depreendemos também das análises de George Marcus e Michael Fischer (2000)

7
Para Roberto da Matta tal manifestação que não passou de um testemunho melancólico, sintoma de uma
recorrente confusão entre crítica e flagelação que ocorreria entre nós; como escreveu no dia 16 de abril de
2000, em texto publicado e difundido em diversos periódicos do país.
8
Da série de artigos, reportagens e entrevistas que a Folha de São Paulo fez em 26 de novembro de 2007
sobre os 200 anos da vinda da Família Real de Portugal para o Brasil. Mais detalhes: http://www.diariodorio.
com/especial-sobre-os-200-anos-da-corte-real-portuguesa-no-rio-de-janeiro/

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nas quais destacam o traço de ironia, catarse e debilidade, que sobressai destes rituais
públicos contemporâneos. É assim que considerando a possibilidade de uma aparente
homogeneização das formas rituais hodiernas da vida social, estes antropólogos sugerem
atingir a estrutura de sentimentos que emergem desses fenômenos socioculturais nas
sociedades centrais. Registram um crescente enfraquecimento das tradições representadas
em forma pública, que vêm se manifestar em traços mais comuns, como os enfatizados
a seguir:
a) os rituais públicos são cada vez mais irônicos, parecendo ser uma condição
especialmente moderna;

b) os participantes ou observadores ‘perspicazes’ dos rituais não consideram que estejam


revestidos de uma verdade cósmica ou sagrada;

c) os vêm como uma manifestação coletiva a mais entre outras igualmente válidas, que
pode suscitar uma catarse momentânea, mas que têm sobre seus executantes ou em seu
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público uma influência cognitiva pouco duradoura. (2000, p. 81).

Tais aspectos merecem nossa atenção, alargando nossa percepção sobre fenômenos
tão recorrentes; especialmente ao lembrar que estamos num período em que o país está
em plena profusão de megaeventos internacionais agendados, combinando reuniões,
cúpulas, confederações, copas, olimpíadas: congregando os mais diversos tipos de
empreendimentos comemorativos e rituais, em que modelos concorrentes se defrontam
12 e se confrontam. Nosso interesse é subsidiar análises críticas da atual efervescência desses
fenômenos, tentando compreender de que modo eles adquirem força no jogo dialético
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

de perpetuar-se, modificando-se constantemente nos seus traços9.

Máquinas da Comemoração
Temos observado empiricamente se constituir uma verdadeira e poderosa ‘máquina
de produção comemorativa e festiva’10. Podemos afirmar que em termos sociológicos
o uso da comemoração consiste na faculdade de consagrar o sentido da história e de
permitir uma reprodução simbólica pública, cujo efeito transcendental assinala um tipo
de garantia da continuidade temporal de um grupo ou de uma sociedade. Nessa espécie
de ‘ficção de transcendência’, como coloca Henri-Pierre Jeudy (1995), o acontecimento
se transforma num símbolo eterno, conseguindo ultrapassar o instante presente, se
autonomizando, e exercendo através da sua evocação um poder de sacralização dos
lugares, das pessoas, dos atos... E podemos avançar mais ao enfatizar que rememorar é
um tipo de ‘apelo do inicial’ e que as comemorações são a encenação desse apelo. Como

9
Nesse esforço teórico recorremos aos autores clássicos e aos modernos (Cazeneuve, S/D; DaMatta, 1975,
1979; Eliade, 1998; Gluckman, 1962; Isambert, 1982; Lévi-Strauss, 1975; Moscovici, 1990; Turnner, 1969;
Van Gennep, 1978; Maertens, 1987).
10
Algo que possui paralelo com o processo analisado por Serge Moscovici na obra Máquina de fazer Deuses
(1990).

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constata Jeudy: “Na atualidade vale comemorar tudo”11. E é uma espécie de ‘máquina da
comemoração’ que parece impor uma ‘ordem de sucessão’: a cena da origem repetida
conjura a desaparição dos traços iniciais, mimando o retorno dos ‘fundamentos’ (Jeudy,
1995, p. 56-7). Portanto, o ato comemorativo consagra ao mesmo tempo um começo
e um consenso; algo que se difunde de forma viral na sociedade contemporânea. E a
inicialidade toma forma, como o culminar de uma coesão pública e trans-histórica; no que
o autor citado designa de a capacidade de “se pôr de acordo acerca de”.
Do nosso ponto de vista, essa questão tornou-se essencial para a compreensão das
configurações do laço social na atualidade. Temática de pesquisas e estudos culturais que
implica uma interdisciplinaridade crescente devido a sua complexidade, nos impelindo
para a busca por uma unidade do campo epistêmico; ainda mais quando invocamos a
dimensão subjetiva desses fenômenos socioculturais carregados de simbolismo e rico
imaginário12. No que tange mais particularmente aos mecanismos de produção dos

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consensos, na nossa pesquisa empírica, percebemos a força de tais estratégias de formação
e imposição de estruturas de sentido (Willians, 1971). Em São Luís, por exemplo, passa-
se no momento por um forte debate sobre “quem fundou a cidade?”13. Dessa maneira,
vê-se prevalecer um enunciado e recorrentemente, voltando-se atrás, retornando-se ao
inicial e ao tempo fundador. Em lugar de defender os valores do presente, em crise, - mas,
urgentes e emergentes -, far-se-á apelo às próprias condições de possibilidade consensual,
exercida em torno do culto a certos valores do passado supostamente “glorioso”, 13
“majestoso”, “magnânimo”; carregados de nostalgia e, por vezes, de excessiva melancolia

Alexandre Fernandes Corrêa


e flagelação. Essa ‘anterioridade projetiva’, esse retorno ao inicial projetado no futuro,
são essenciais à comemoração, que cria então a suprema ilusão de consagrar o futuro,
apaziguando paixões e dissensões.
Sobressai desses mecanismos socioculturais o fato do ritmo das comemorações
tentar manter de forma recalcitrante a aparência de um tempo sem rupturas. A celebração

11
Sobre a compulsão contemporânea em ‘comemorar tudo’ cabe uma referência ao curioso acontecimento
‘jornalístico’ ocorrido por ocasião do décimo oitavo aniversário de morte do ídolo nacional e corredor de
Fórmula 1, Airton Senna: “Um dia depois de ‘comemorar’ os 18 anos da morte de Ayrton Senna, o Globo
Esporte fez uma espécie de ‘meia’ culpa da gafe cometida ontem pelo apresentador Ivan Moré, que substituía
Tiago Leifert. ‘Há 18 anos morria o tio do Bruno Senna, o maior ídolo do automobilismo brasileiro. Partiu
o coração de todos os brasileiros...’, começou Moré. Então completou: ‘E para comemorar essa morte (...)
tem uma exposição bem bacana aqui na capital...’, disse o apresentador-substituto”. Fonte: http://f5.folha.
uol.com.br/televisao/1084357-apos-gafe-sobre-senna-tiago-leifert-ataca-paladinos-do-jornalismo.shtml
12
Aspectos explorados no texto de Olivier Douville, Uma Melancolização do Laço Social? Ágora v. VII n. 2 jul/
dez 2004 179-201.
13
O debate em torno desse enunciado revela-se bastante controverso. Todavia, para nós, é evidente que a
manutenção do nome topográfico da cidade de São Luís em homenagem ao Rei menino de França, Luís XIII,
é prova cabal que Jerônimo de Albuquerque e seus companheiros, na luta pela “expulsão” dos franceses, não
deixaram de reconhecer a primazia e anterioridade dos francos no povoamento da localidade. Caso assim não
fosse, não teriam mantido essa “homenagem”. Portanto, a polêmica historiográfica nos parece academista
fugindo ao escopo de nossa ritanálise, já que o que nos interessa é sobretudo o alcance mitológico dos tais
enunciados históricos ou ideológicos em confronto.

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de uma recordação determinante torna-se ela própria um acontecimento esperado,
preparado como um ritual; uma liturgia política investida de requintes memoriais e
espetaculares se instaura de modo demiúrgico, amortecendo os conflitos (Riviére, 1989).
Assim, o ato de comemorar conjura, afasta e evita a eventual fraqueza e debilidade
crescente das memórias, numa sociedade cada vez mais amnésica; conferindo à recordação
o papel de um mito de origem capaz de alimentar a consciência da continuidade temporal
de uma comunidade: a ilusão de uma perenidade preservada. Trata-se de um jogo em que
as personagens combinam posições entre a comemoração, e seus rituais e liturgias, numa
espécie de paródia, desviando por vezes, da imitação de obra séria, para a animação, a
pândega e a farra14; cada vez mais midiatizada e teatralizada, chegando ao extremo do
paroxismo.

Harmonia e Consenso Social


Cadernos de Estudos Culturais

Chama nossa atenção a busca por se constituir a harmonia das memórias coletivas
em torno da preservação consensual, muitas vezes forçada; reflexos disso encontramos
na contaminação geral pela quase unanimidade das ações de patrimonialização e
musealização vigentes na sociedade contemporânea: algo que prolifera em sociedades
centrais, periféricas e semi-periféricas. O ato comemorativo torna-se então a reencenação
obsessiva de uma coletividade e a comemoração é sempre um cerimonial de reinjeção do
14 sentido15. A ficção comemorativa pretende exorcizar o non sense das guerras, das formas de
destruição, violência e conflito; mas, sempre encontram um modo de emergir como um
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

retorno do recalcado ou do encoberto. É a dimensão dionisíaca, negada pela sociedade


prometeica, teimando em reaparecer ciclicamente; como a sorrir e a escarnecer dos que
negam sua força simbólica essencial, A sombra de Dionísio (Maffesoli, 1985).
Porém, essa pretensa harmonia só pode ser produzida pelo artifício do mito (Barthes,
1972; Eliade, 1989). A comemoração não preenche apenas o vazio político: trama
também o destino comunitário através das artimanhas, - mas não pela ilusão, ideologia

14
No contexto local ludovicense, as palavras animação, pândega, algazarra, farra, adquirem significado todo
especial, pois integram com destaque o repertório de traços identitários decantados e exaltados pela chamada
maranhensidade. Curiosamente, aspecto que, diga-se de passagem, não possui singularidade extraordinária, pois
se trata de traço comum a brasilidade em geral e mais difusa.
15
O lema da VIII Semana Nacional dos Museus, em 2010: “Museus para a Harmonia Social”, foi elaborado
de acordo com o Conselho Internacional de Museus (ICOM): El Comité Consultivo del ICOM propone cada
año un tema que los museos pueden utilizar para valorizar su posición en el seno de la sociedad. Este año, el
tema propuesto es «Museos para la armonía social». La armonía es, a la vez, un concepto significativo para la
Humanidad y representante de las culturas orientales. Lo esencial de la armonía social consiste en el diálogo,
la tolerancia, la cohabitación y el desarrollo, basados en el pluralismo, la diferencia, la competencia y la
creatividad, cuya base es «entenderse pero distinguiéndose, buscar lo común pero conservando la diferencia».
Cada museo puede desarrollar, o no, el tema. Lo principal es “poner los museos bajo los focos”, por lo
menos una vez al año gracias a la fecha de aniversario que es el Día Internacional de los Museos. Disponível:
http://icom.museum/doc/IMD/SPA/KIT_launch_spa.pdf

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ou mentira -, do mito16. A comemoração substitui-se ao projeto, reunindo o passado, o
presente e o futuro; mima a projeção no futuro perpetuando o ideal de um consenso
arrancado a todas as divergências mais violentas. Muito embora, algo que ainda não se
tenha consagrado, pois em São Luís, a crise do presente, as divergências, os dissensos,
o conflito na definição e aceitação do ‘pai’ simbólico “verdadeiro”, - legitimado pela
historiografia e cientificamente estabelecido e reconhecido -, não produziu o consenso
hegemônico. O conflito sobre a legitimação das origens produz séries de curtos-circuitos
na produção do consenso que só pode ser imposto, massificado, infligido, dominado.
São Luís não virou Paris17, a cidade é filha do lusitanismo barroco – e está inscrita na
lista da UNESCO como patrimônio cultural da humanidade, testemunho da colonização
portuguesa na América Latina.
Nossa hipótese é que essa crise do sentido, da legitimação, e das possibilidades
de uma harmonização do consenso, tem enfraquecido a dimensão comemorativa

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racionalizada e orgânica (designados Projetos Comemorativos) – típico das sociedades
centrais –, e supervalorizando a dimensão festiva, com caráter de festival, investindo
numa poderosa máquina de excitação ritual. O modelo festivo, tradicional, barroco,
se sobrepõe, numa efervescência difusa, dionisíaca e mestiça. Assim, ao invés da
rememoração/comemoração organizada e estruturada em discursos consensuais, temos
a festa, o festival, promovendo o entretenimento frugal. Como anunciou o presidente
do comitê de gestão das comemorações oficiais, o foco central de sua atuação será a 15
promoção do que chamou de “bigfesta”18.

Alexandre Fernandes Corrêa


A despeito dos esforços no sentido de impor uma espécie de consenso arrancado,
simulado e forçado, o tom galhofeiro, burlesco e paródico se impõe fortemente19.
Em São Luís, ao contrário do que observamos em outros contextos metropolitanos e
centrais, ao invés do enunciado “comemorar por toda parte e a todo momento”, viceja
“festejar por toda parte e a todo momento”. No Maranhão, como de resto em outros
rincões do país, essa é a configuração ritual dominante prestando-se para perpetuar a

16
Com Roland Barthes (1972) nos distanciamos da ‘conceituação’ de mito como ilusão, mentira e ideologia,
encontrada em historiadores locais como na obra A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos (Lacroix,
2002).
17
Misto de ironia, derrisão e deboche, que se encontra nos versos da música dos artistas populares Gerude e
Jorge Tadeu, São Luís Vai Virar Paris. Como se sabe, não há qualquer vestígio moderno da presença francesa
na cidade. No entanto, no Carnaval de 2012 o tema serviu como enredo para a Escola de Samba “Flor do
Samba”, vice-campeã: São Luís ou Saint Louis? Enfim uma só Paris.
18
Em texto publicado em jornal de São Luís, o presidente do grupo gestor das celebrações oficiais, declarou
que no dia 08 de setembro de 2012 ocorrerá uma Bigfesta, também designada de Megafesta, com mais de 70
eventos comemorativos. O texto pode ser acessado no seguinte endereço: http://www.jornalpequeno.com.
br/2011/12/31/sao-luis-como-e-grande-meu-amor-por-voce-182271.htm
19
Como escreveu Jeudy: “O efeito de paródia tem por espelho o bluff de um moralismo consensual que o
condena. O poder caricatura da simulação faz ressurgir o argumento ético como espectro da má consciência;
provoca enfim a obscenidade do telespectador, fintado como um voyeur enganado pela mercadoriaque
observa e de que se apercebe demasiado tarde” (1995, p. 52).

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ordem de uma sucessão simbólica ainda não totalmente petrificada; torna-se, então, o
modelo transhistórico para todas as escolhas políticas: a festa pública (ou, talvez seja mais
adequado, a farra pública).
O modelo comemorativo, próprio de sociedades em plena modernidade tardia,
possuiu características diferentes do modelo festivo, pois se ergue sobre um cenário
que diz respeito a uma sociedade ‘petrificada’, de uma modernidade ‘pétrea’, em que o
trabalho de patrimonialização e musealização atingiu alto grau de sofisticação e técnica,
próprio de seu processo civilizatório; como nas sociedades centrais, norte-americana e
europeia20. Entre nós revela-se outra realidade, carregada de particularidades que merecem
a atenção do intérprete do fenômeno da festa pública; como se constata facilmente, em
nossa sociedade o modelo festivo mantém sua força hegemônica. O poder se coloca em
cenas (Balandier, 1994) através da efervescência das festividades em profusão; revelando
que só podem ser concretizadas sob essa configuração sociocultural. Modelo festivo e
Cadernos de Estudos Culturais

triunfal que, como se sabe, advém do período colonial e que se perpetua praticamente
incólume. Essa é a hipótese que desenvolvemos nesse momento experimental da
pesquisa. Na sociedade pós-moderna, em que a modernidade se petrificou, elevam-se as
culturas líquidas (Bartra, 2008) que se derramam em fragmentações e heterogeneidades
aos quais o modelo comemorativo, quase sempre multiculturalista21, tem se adaptado e
oferecido forma à gestão do teatro das memórias sociais. Em nossa sociedade, - tecida
16 em redes entrelaçadas de eixos periféricos - continuando um longo ciclo de transformações
e metamorfoses na cultura barroca, sua matriz original, o modelo festivo ainda exerce
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

fascínio e possui eficácia simbólica prevalecente. Na nossa pesquisa empírica, encontramos


a festa pública, com toda sua força extraordinária, com toda a sua exuberância de cores
e expressões. Os preparativos para os ritos festivos em alusão a ‘fundação’ do centro
urbano antigo da capital do Estado do Maranhão, estão em pleno vapor22. Sob esse vapor
e fumaça os conflitos entre os poderes estabelecidos – autoridades políticas, religiosas,
intelectuais, escritores e artistas – e as diferentes versões míticas que fazem alusão ao
passado, ofuscam a não consagração de uma versão mitológica unívoca: encobre-se a
disputa acirrada entre as versões francesa e lusitana. Porém, testemunhamos, depois de
uma virada, a valorização da herança marcante do mundo Ibérico como suporte simbólico
patrimonializado e consagrado pela UNESCO; num momento de crise das identificações
elitistas e aristocráticas, mais afrancesadas23.

20
Como exemplo desse tipo de comemoração organizada e racionalizada, temos os rituais realizados para
comemorar o Bicentenário da Revolução Francesa, em 1989.
21
O multiculturalismo como a lógica cultural do capitalismo multinacional (Jameson, 1998).
22
A programação do megaevento ocorrerá no transcorrer de uma semana, com shows e espetáculos que
contam com a presença de artistas de renome nacional e internacional: Roberto Carlos, Ivete Sangalo,
Gilberto Gil, Zezé de Camargo e Luciano, Alcione etc., além da presença de centenas de artistas locais:
“Shows para entrar para a História!”.
23
Mas é legítimo acreditar que se comemorará a manutenção histórica do nome da cidade de São Luís, por
400 anos, em homenagem à Luís XIII da França.

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Numa recente reunião política, ocorrida na Câmara Municipal (03/11/2011),
declarou-se publicamente que a politicagem impossibilitou a implantação dos Projetos
Comemorativos e que, por conseguinte, restou às autoridades realizarem as festividades,
festivais e celebrações marcadas pela efemeridade e eventualidade. O esquema político-
administrativo e organizacional estabelecido pela Prefeitura - diante das circunstâncias,
e da ausência de um consenso -, optou por investir no anúncio apaziguador do festival
público requintado. Opção que se rendeu, mais uma vez, ao modelo histórico-cultural
tradicional; dominante no imaginário ritualístico brasileiro desde o Triunfo Eucarístico, de
Vila Rica, em 1733. É a opção pela escolha mais segura pelo que vem da tradição, ao
invés de arriscar com o incerto ou desafiador. Assim, a cultura barroca de lastro colonial,
estende seu poder simbólico. Parece-nos que dessa maneira se fortalece a dimensão
teatral e mágica do sentimento coletivo fincado nas mais profundas tradições da cultura
barroca latino-americana; com raízes no barroco ibérico e italiano24. É a consagração do
sentido da história reproduzindo-se de modo inconsciente; confirmando mais uma vez

Cadernos de Estudos Culturais


a disponibilidade para a festa, enquanto válvula de evasão do cotidiano hierárquico e
desigual, e dos conflitos acerca da cultura política e da mitologia da ‘fundação’. Processo
que se dá pela via estratégica da enunciação triunfalesca do poder laico e religioso; tudo
isso em busca de afirmação e de hegemonia. Metaforização de um discurso de poder
através da festividade elevada a última potência; como prometem os organizadores
oficias do grande evento, designado de: bigfesta25. No fenômeno social da festa, cuja teoria
sociológica é profícua (Durkheim, 1989; Caillois, s/d; Duvignaud, 1983), como se sabe,
17

Alexandre Fernandes Corrêa


há a motivação buscada do prazer; o ensejo lúdico, proporcionando a fuga do ‘horror
ao vazio’; assim como o horror a ordem burocrática sufocante. É a eficácia do artifício
político de submeter todos à magia admoestadora do brilho e da glória do poder. Como
escreveu de modo feliz o cronista maranhense do século XIX, João Francisco Lisboa,
sobre a Festa de N. S. dos Remédios:
Um dos maiores benefícios que dispensa a Virgem com a sua festa (...) é este prazer
universal, tantas classes confundidas, tantas dores adormecidas, tantos escravos
deslembrados de seus ferros. Inda mal, que é tudo tão fugaz! Não importa, é um
momento de repouso nesta lida que só tem a morte por termo, é um conforto para
recomeçar-se com mais vigor a tarefa do dia seguinte (1992, p. 61).

A partir dessa configuração histórica persistente, quais são, enfim, as características


estruturais das festas públicas nacionais; mantendo-as firmes e cristalizadas no imaginário
social? No caso brasileiro, trata-se de um processo organizacional que vem desde o Século
XVIII; sofisticando uma potente máquina em que sobressai a simbiose precisa entre os
fatores lúdico-evasivo e ideológico-persuasivo. Num longo tempo de maturação colonial,
um modelo civilizacional se cristalizou criando um perfil particular de comemorações

24
Uma análise mais especifica desse aspecto, ver o texto O labirinto dos significantes na cultura barroca (Corrêa,
2009).
25
A campanha publicitária na mídia alardeia: “Festa igual a essa só daqui a 400 anos!”.

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populares, numa combinação bem montada entre o estado potencial e a vontade
substantiva da festa. É o pacto festivo em ação: mensagem de admoestação ou persuasão
sem atrito entre os principais atores do evento, ou seja, o povo e as autoridades promotoras
estabelecidas. Como tem colocado com propriedade Affonso Ávila (1969, 1971, 1993),
abre-se uma ‘brecha de liberdade’, ainda que transitória, no esquema rígido das relações
segmentais do mundo social provinciano: nesse caso, semi-urbano, semi-industrial e
periférico. Muito embora a cultura barroca tenha cunho persuasório e propagandístico
liberando o desejo transgressor e mestiço, combina bem com a necessidade do
festejo enquanto alienação social e afirmação política. A arte barroca em sua liturgia
é simultaneamente trágica e festiva; mas é, também, artifício, engano e desengano. O
modelo barroco das festas públicas cai como uma mão na luva, reproduzindo uma lógica
da história que se perpetua; modificando-se nos detalhes e na mise-en-scène. Como sugere
Michel Maffesoli (1985, 2001), numa combinação e acoplamento do high-tech com o
arcaico, resultando no traço típico da cultura pós-moderna. É o teatro neo-barroco para
Cadernos de Estudos Culturais

as massas no qual vislumbramos as referências alegóricas de fundo mitológico operando


de forma espetacular (Corrêa, 2009). Essa estrutura festiva composta por ‘quadros
dinâmicos’ está sendo reproduzida há alguns anos, nas festividades anuais que antecedem
a efeméride de 201226.
Os pressupostos ideológico-persuasórios e místico-reflexivos enfatizados acima
18 compelem os espectadores a uma leitura da festa como mais um ‘espetáculo que passa’;
mais um evento. Eis as artimanhas e a mecânica sofisticada, de uma verdadeira arquitetura
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

do efêmero; construída e aprimorada em séculos de evolução histórica. Resultando


num elaborado e eficaz modelo festivo próprio do Mundo Ibérico (Holanda, 2006),
possuindo as mesmas características e os mesmos aspectos festivos, reproduzidos em
diversos festivais públicos. De certa forma, podemos colocar o desenvolvimento desse
processo como um dos capítulos da história da institucionalização da festa pública no
país. É a festa pública comemorativa oficial que institucionalizada imprime um perfil
sociocultural determinado e específico. Esse processo também está vinculado a história
da urbanização das cidades brasileiras, em que as festas comemorativas e seus rituais
particulares adquiriram características especiais; culminando no grandioso espetáculo do
desfile de escolas de samba no carnaval carioca: modelo exemplar de êxito e sucesso,
conquistando domínios do espetáculo e do show business nacional e internacional. Modelo
comemorativo que, tudo indica, será repetido na abertura da Copa do Mundo de 2014 e
nas Olimpíadas de 201627.

26
Nossas observações empíricas cobrem as festividades desde 2007. Além das pesquisas de campo, temos
concluída uma orientação de monografia para o curso de Ciências Sociais/UFMA, defendida em 2010. Do
Mito ao Rito: análise de uma narrativa fotográfica da participação popular nas comemorações dos 397 anos de fundação da
cidade de São Luís, do bacharel Milton B. Lima Filho.
27
Confirmado na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, nesse ano de 2012.

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Esses mecanismos festivos possuem um estilo próprio, conformando as
festividades, segundo o paradigma da cultura católica europeia; desenvolvida a partir de
uma gramática colonial bem codificada. São promoções compulsórias, em que programas
pré-determinados obedecem a padrões mais ou menos fixos, envolvendo milhares de
indivíduos e grupos sociais. A estrutura da festa pública, na sua substância e organização,
atende em tudo à instância lúdica subjacente a mentalidade barroca, estimulando a
população a colocar em evidência toda a disponibilidade para o lazer e o entretenimento
efêmero; confirmando o fato de ser um espetáculo essencialmente teatral. Destacam-se
como elementos da festa pública, numa estrutura repetida em diferentes formatos, a
presença de variegada artes cênicas, com recursos plásticos cenográficos de sofisticado
know-howI, pretende-se compor cenas e imagens edênicas - numa visão estilizada do
paraíso original - através do projeto festivo e do efeito mágico28. É a expressão cultural
entrelaçando a elite e o popular, pela lógica do entretenimento, perpetuando-se o
dispositivo festivo da colônia, na sociedade pós-moderna e neo-barroca, na qual há uma

Cadernos de Estudos Culturais


inerência lúdica, destacando-se a disponibilidade festiva, evidenciando a permanência
da ‘alma barroca’, na reprodução de um espaço social no grande teatro persuasório e
catártico. Como já apontamos, esse modelo adquire evolução máxima no rito coletivo
do carnaval. Essa carnavalização, - caracterizada pela ruptura do senso de gravidade do
mundo (DaMatta, 1979; 1984), seja na órbita material, seja nas projeções do espírito -,
atenua o compromisso de trabalho e obrigações em sociedade: horror da grande massa.
Atuando ainda como um indicador de mentalidade, num complexo inter-racial ainda
19

Alexandre Fernandes Corrêa


caminhando em seu ensaio de afirmação para uma ‘regionalidade’ tardia, em seus eixos
periféricos mal traçados, e com arestas mal aparadas. Promovendo como novidade quase
telúrica, - conforme constatado no âmbito de nossa pesquisa empírica -, a chamada
maranhensidade; decantada por intelectuais, escritores e artistas locais29.
Nesse sentido, consideramos lapidares as análises realizadas por Affonso Ávila sobre
o barroco brasileiro, em especial no texto que trata mais especificamente do complexo
cultural da festa barroca:

28
Aspecto que merece reflexão apurada considerando certa tendência de se aderir ao modelo dominante,
exaltando-se de modo telúrico e romântico positividades combinadas de festividade, alegria e mestiçagem;
no que se tem designado de corpo e alma característico do país. Um olhar distanciado mais apurado, que não
quer dizer “negativista”, aponta para aspectos críticos negligenciados por essa apologia quase ufanista. Por
exemplo, consideramos alarmante a manutenção de um modelo que tem preservado, séculos seguidos, uma
ideologia da mestiçagem adequada à manutenção de desigualdades econômicas e sociais aberrantes (Perez,
2011).
29
“Um novo conceito a partir de 2007 foi implantado no Maranhão, através da Secretaria de Cultura do
Governo Jackson Lago, com o intuito de abrir um leque de possibilidades para artistas maranhenses das mais
diversas áreas, assim como de levar a cultura do estado para todos os cantos destacando a particularidade de
cada região, conforme seguiu as diretrizes de municipalização deste governo, o conceito da “maranhensidade”
foi introduzido e que definiu as ações da secretaria. Festas tradicionais como o São João e o Carnaval da
Maranhensidade mostraram a nível nacional o orgulho de ser maranhense, através do nosso modo, dos nossos
costumes e do nosso jeito de ser”. Disponível na homepage: http://ogovernointerrompido.wordpress.
com/2010/04/05/a-cultura-da-maranhensidade/

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A Festa Pública abre na nossa sociedade os interstícios festivos, enquanto veículo
de carnavalização, no esquema das relações de poder, quer político, quer religioso,
deixando com isso de atuar como mero instrumento ideológico para significar uma saída
antropológica no terreno da interação entre diferentes componentes étnicos de cultura
e atitude existencial (Ávila, 1993, p. 87).

Dessa maneira, esse esquema repercute de modo poderoso, no espaço do discurso,


o referido dilema da identidade cultural, contaminando o imaginário social ao ponto de
atingir um tipo de virulência e contágio poderoso e disseminador. Alastra-se no tecido
social emergindo, com os mais diferentes tipos de investimentos, na ideia de identidade
específica, particular, especial, original etc30. Súbita síndrome identitária que merece
atenção de uma socioanálise apurada; além de aproximações com uma psicanálise das
profundezas31. Ao colocar num mesmo palco atores de falas e máscaras diversas, como
o do colono de origem portuguesa, o trabalhador/escravo negro e o remanescente
indígena, ao lado do fortuito elemento estrangeiro, encarnado no francês ‘fundador/
Cadernos de Estudos Culturais

invasor/expulso’; a festa colonial brasileira ultrapassa o espaço sociocultural tradicional


de discurso de poder, procurando concatenar em seu lugar um espaço de discurso
subjetivo, em busca de reconhecimento demandado e queixoso, de uma identidade
cultural na periferia do sistema-mundo. A festa-padrão desse balanceamento cultural
de ancestralidades culturalizadas, combinadas de acordo com interesses em disputa
sempre implícita, serve muito bem a estes objetivos compensatórios mais subjacentes e
20 sempre recalcados. A comunidade adere, de um lado, e, acionada em ritmo de festival,
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

sintetiza de outro, pois todo um projeto social dimensionado em espaço de esperança e


reconhecimento – espaço que inclui, sem nenhuma necessidade de explicação racional ou
consciente32 – oferecendo a premonição étnico-mística de uma regionalidade possível no
imenso mosaico cultural nacional (Ávila, 1993). Algo que no contexto local parece estar
se cristalizando em torno do conceito telúrico de maranhensidade, já apontado mais acima.
Para nós, nos limites desse artigo, a hipótese trabalhada nessa análise, é que esse
modelo de festividade, ou festival, segue a linha temporal da festa maior da história
colonial, qual seja o Triunfo Eucarístico de 1733, ocorrida em Vila Rica: símbolo do triunfo
do espírito festivo. Nela aglutinam-se, numa só imagem coletiva, as desinências culturais
do sagrado e do profano, - escrevendo uma primeira metáfora do êxito sociológico da
miscigenação, “azeitando a máquina” festiva -, e do sincretismo místico que alimenta

30
Diversos sites e homepages podem ser consultados para a constatação de que estamos em pleno
vigor de um surto identitário local: 1. Trincheira da Maranhensidade: http://www.jornalpequeno.com.
br/2007/1/26/Pagina49732.htm; 2. Orkut: Eu sou da Maranhensidade: http://www.orkut.com.br/
Main#Community?cmm=119897470; 3. Maranhensidade Júridica: http://maranhensidadejuridica.blogspot.
com.br/2007/08/marcelo-dolzany-da-costa-os-desafios.html
31
Aspectos a serem desenvolvidos em futuro texto, desenvolvido na linha de pesquisa Cultura e Subjetividades.
32
Daí a resistência recalcitrante pela organização de uma comemoração mais reflexiva, relativizadora dos
enunciados pré-estabelecidos. Fato que se constata pela rarefação na densidade dos debates históricos,
sociológicos ou antropológicos efetivamente programados para a efeméride.

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até hoje, em pujança tropical e dionisíaca, a resistência das classes dominadas contra a
coerção de uma estrutura hierarquizada e desigual, e historicamente perversa, consolidada
na sociedade brasileira e permanecendo inalterada em diversos torrões. E, no nosso caso
de estudo, é no torrão maranhense que esse processo se dá de forma extraordinariamente
semelhante, e persistente33.
Por fim, acreditamos que a consagração festiva do Triunfo Eucarístico premonitório
nos prepara para entender as contradições brasileiras hodiernas e em especial as
aberrações e incongruências regionais e locais. Além de servir para compreender a festa
brasileira, e os fenômenos ligados à antiestrutura e ao excesso como processos vinculados
à gênese e à transformação de nossa cultura e de seus agentes sociais, ajuda também a
apreender a lição moderna de liberdade e interação que ainda nos é presentificada pelo
espetáculo cíclico do Carnaval, alegria eufórica programada, agendada, ritualizada e cada
vez mais frugal, prometendo um estado permanente de festa e efervescência coletiva,

Cadernos de Estudos Culturais


como bálsamo fugaz em meio a tantos infortúnios.

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Alexandre Fernandes Corrêa


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33
Utilizamos o termo torrão no sentido de terra natal (homeland), empregado pelo geógrafo maranhense
Raimundo Lopes em seu livro O Torrão Maranhense. Obra que hoje compõe publicação reeditada conhecida
como Uma Região Tropical (Lopes, 1970). A expressão adquiriu grande repercussão no imaginário regional,
surgindo recorrentemente em toadas de bumba-boi e em diversas canções e poemas populares e eruditos.
Em breve, vamos desenvolver estudos sobre possíveis paralelos literários entre o torrão natal (homeland) dos
poetas brasileiros e a waste land (tierra baldia) do poeta T. S. Eliot (1888-1965). Sobre a obra Waste Land de
Eliot, ver as análises do antropólogo mexicano Roger Bartra, em Culturas Liquidas (2008).

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23

Alexandre Fernandes Corrêa

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O BRASIL E OS EIXOS
PERIFÉRICOS:
agenda e identidade nas
relações internacionais

Cadernos de Estudos Culturais


Cristina Soreanu Pecequilo1

A trajetória da política externa brasileira desde a década de 1960 tem se caracterizado 25

Cristina Soreanu Pecequilo


pela alternância de debates sobre a inserção global do país em torno dos eixos Norte-Sul,
e que resultaram em diferentes agendas internacionais ao longo da história. Tais debates
referem-se não somente à pauta de prioridades da projeção internacional do Brasil,
mas ao próprio sentido de identidade nacional como nação pertencente ao Primeiro
ou Terceiro Mundo. Estas oposições ainda correspondem às divisões núcleo-periferia,
nações em desenvolvimento, de menor desenvolvimento relativo ou desenvolvidas. No
século XXI, agregaram-se a estas classificações os conceitos de novo Segundo Mundo
e emergentes. Diante deste quadro, o objetivo é levantar algumas questões de reflexão
sobre o tema, avaliando o contexto contemporâneo da interação entre os eixos das
relações internacionais do Brasil.

A Construção, o Auge e a Crise (1961/1984)


Pode-se indicar que a origem do debate Norte-Sul nas relações internacionais do
Brasil encontra-se na década de 1960 como produto de um conjunto de transformações
internas e externas. Em termos internos, o país se tornara mais complexo econômica e
socialmente, resultado do processo de industrialização por substituição de importações
iniciado na década de 1930 com o primeiro governo Getúlio Vargas (1930/1945).

1
Cristina Soreanu Pecequilo é professora da UNIFESP.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


Apesar de não ter possuído uma trajetória linear no pós-1945, devido aos recuos da Era
Dutra (1946/1950) e do breve interregno Café Filho (1954/1955, depois do suicídio de
Vargas), este processo fora retomado por Vargas em seu segundo mandato (1951/1954)
e aprofundado por Juscelino Kubistchek (1956/1960).
No caso, os recuos e os avanços eram representados por duas correntes, a do nacional
desenvolvimentismo e a do desenvolvimento associado. Enquanto a primeira defendia a
emancipação do país por meio da industrialização, a segunda previa um papel secundário
no mundo, reforçando a interdependência com os Estados Unidos. A primeira corrente
prevaleceu, sendo impulsionada pelo regime militar (1964/1985) e teve no setor externo,
como será discutido, um componente essencial de reforço. Porém, já nos anos 1960, a
face do país mudara em termos de urbanização, produção e infraestrutura, fornecendo
as bases para a consolidação de uma sociedade capitalista moderna (VIZENTINI, 2008).
No campo externo, a Guerra Fria (1947/1989) se encontrava em uma fase de
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maior complexidade, havendo uma mudança nos padrões da bipolaridade. Tal mudança
corresponde a alterações de poder relativo que se observavam no sistema internacional
e que ocorreram em quatro dimensões: na das duas superpotências, Estados Unidos e
União Soviética, em direção a certo enfraquecimento econômico devido às demandas
da corrida armamentista nuclear e convencional, da projeção de poder em suas zonas de
influência e da disputa por novas áreas geográficas; dos membros dos blocos capitalista
26 e socialista, com a recuperação e crescimento econômico do Japão e das nações da
FESTAS PÚBLICAS E COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS NA PERIFERIA DO SISTEMA-MUNDO

Europa Ocidental (e seu processo de integração regional) e a maior solidez do Leste


Europeu; e a emergência do Terceiro Mundo como ator internacional, a partir do
processo de descolonização afro-asiático das décadas de 1950 a 1970; e o adensamento
das organizações internacionais multilaterais (VISENTINI e PEREIRA, 2008).
Dentre estas, o surgimento do Terceiro Mundo foi representativo da entrada de
diversos novos atores no sistema internacional, de forma autônoma, encerrando a era
do imperialismo europeu na África e na Ásia. A partir deste fenômeno, novas realidades
se colocaram no contexto da Guerra Fria. Em primeiro lugar, estes novos territórios
independentes se tornaram foco de uma disputa geopolítica diferenciada entre as
superpotências, que visavam a ampliação de seus blocos já constituídos a Leste e a Oeste.
A divisão do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial em 1945 havia estabelecido linhas
razoavelmente claras entre estes blocos, respeitadas mutuamente pelas superpotências,
a partir de regras “não escritas”. Tanto os Estados Unidos evitavam interferir no bloco
soviético, como a União Soviética respeitava os limites no continente europeu e americano
(à exceção da situação de Cuba, quando houve o apoio à Revolução Comunista na Ilha e
o suporte ao regime de Fidel Castro2).

2
O período de 1959 a 1962, da Revolução à Crise dos Mísseis, quando a União Soviética anunciou sua
intenção de instalar armas nucleares na ilha, foi um dos mais críticos da bipolaridade (PECEQUILO, 2011).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 9 – 24, jul./dez. 2012.


Mais do que se tornar “zona de disputa” o Terceiro Mundo propôs referencial de
uma agenda diferenciada destas novas nações autônomas, a qual se somaram as nações
em desenvolvimento. O Terceiro Mundo passou a ser identificado como o eixo Sul e/
ou Periférico, das relações internacionais, se contrapondo ao eixo Norte e/ou Núcleo da
política mundial. Os conceitos de “Mundos” foram representados da seguinte maneira:
Primeiro Mundo, capitalista, Segundo Mundo, Socialista e o Terceiro Mundo, como
citado, as nações em desenvolvimento. Além do eixo Norte-Sul, inseriu-se o conceito
de Movimento Não-Alinhado (MNA), baseado na premissa da autonomia destas nações
diante das superpotências. A agenda da Coexistência Pacífica e a premissa dos 3 “Ds”,
conforme posteriormente sistematizado pela política externa brasileira, democracia,
desenvolvimento e desarmamento, são os marcos orientadores desta ascensão.
Estas dinâmicas indicam que o cenário passava a apresentar fortes tendências à
multipolaridade, quebrando a lógica restrita dos blocos, soviético e norte-americano, e

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com ênfase no multilateralismo, pelo surgimento de uma nova gama de atores e pautas
políticas na agenda internacional. Para o Brasil, a somatória destes fatores representava
o repensar de sua identidade, em resposta a este projeto nacional de desenvolvimento,
e de suas opções externas diante de um mundo que emergia com novas alternativas e
padrões de relacionamento. A identificação do Brasil como nação pertencente ao eixo
periférico, i.e Sul das relações internacionais, era associada à uma perspectiva positiva
e não negativa. O país reconhecia sua característica como nação em desenvolvimento 27
como marco de um processo de ascensão como potência média e/ou Grande Estado

Cristina Soreanu Pecequilo


Periférico3. Como indica Guimarães (2006), Grandes Estados Periféricos tem potencial
para serem determinantes no cenário devido a sua tradição e recursos de poder, como
território e matérias primas, que permitem o desenvolvimento autóctone.
A política externa brasileira sofre uma ruptura com o padrão anteriormente
dominante, de relações bilaterais-hemisféricas, que tinha nos Estados Unidos seu
principal parceiro e referencial. Determinante da agenda internacional desde 1902,
quando formulado pelo Barão de Rio Branco (1902/1961), esta política externa tinha
como foco as Américas, tanto ao Sul quanto ao Norte, e apresentou variações entre o
alinhamento automático e o pragmático aos Estados Unidos. Recuperado nos anos 1990,
como será discutido adiante, este paradigma é caracterizado pelo predomínio do eixo
Norte-Sul, estando associado aos conceitos de cooperação vertical e Primeiro Mundo.
Traz embutido, em suas linhas gerais, a percepção de um Brasil de menores recursos de
poder, em uma relação assimétrica e/ou subordinada com potências dominantes. Esta

3
É preciso não confundir “Grande Estado Periférico” com “Realismo Periférico” conceito apresentado
por Carlos Escude nos anos 1990 para se referir à posição de subordinação de nações menores no sistema.
Segundo a visão do “Realismo Periférico”, aos países do Terceiro Mundo não restaria outra opção de inserção
no sistema internacional que não fosse a do alinhamento a potências como os Estados Unidos. O tema ainda
será discutido no corpo do texto quando da análise do recuo da política externa brasileira.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


inserção pode ser definida como mediada e até mesmo negativa à medida que toma como
referencial o outro (no caso os Estados Unidos) para a definição da agenda nacional (ver
PECEQUILO, 2012).
Em ambos os governos Vargas, mas principalmente a partir da segunda gestão,
esta ênfase começou a ser alterada com os ensaios de multilateralização. Tais ensaios
culminaram na elaboração do novo padrão de política externa, o paradigma multilateral-
global, que definia a agenda do Brasil prioritariamente focada no eixo Sul-Sul (e, no
âmbito da Guerra Fria, Sul-Leste). Esta alteração de foco corresponde a uma resposta
ao desenvolvimento nacional, enfatizando o papel da política externa como promotora
da consolidação econômica. Politicamente, o Brasil se define como um país do Terceiro
Mundo, defendendo os princípios citados dos 3 “Ds” mas também temas relativos à
autodeterminação dos povos e a não-ingerência. Apesar de não aderir ao MNA, alguns
temas eram próximos a esta agenda como a abertura de oportunidades e aproximações
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com todas as nações, independente de sua orientação ideológica.


Os temas da modernização e do desenvolvimento não se localizavam somente na
arena econômica, mas também na de tecnologias sensíveis com defesa ao acesso do
conhecimento em áreas como a nuclear. Esta dimensão se consistiu em umas das mais
controversas da agenda, opondo diretamente o país e os Estados Unidos, tendo como
ponto de referência o Tratado de Proliferação Nuclear (TNP, 1967). Na visão brasileira,
28 ao indicar que nações não nuclearizadas abdicariam da tecnologia nuclear, o TNP era
O BRASIL E OS EIXOS PERIFÉRICOS: agenda e identidade nas relações internacionais

restritivo e visava a preservação de estruturas de poder (tese do congelamento do poder


mundial). Para o Brasil, o desenvolvimento nuclear era defendido para fins pacíficos e
como elemento de autonomia e consolidação do poder nacional.
O Brasil detém cada vez mais uma atuação internacional extensa, buscando um
perfil de global trader and global player. A aproximação com os continentes asiático e
africano, a consolidação dos laços econômicos no Leste Europeu e a busca de alternativas
ao norte com as nações da Europa Ocidental (em particular a Alemanha e o Japão)
foram componentes deste processo. Estas linhas foram lançadas pela Política Externa
Independente de San Tiago Dantas e Araújo Castro (PEI, 1961/1964) e tornaram-se
dominantes na agenda internacional até o encerramento da bipolaridade.
No contexto da Guerra Fria, a definição do Brasil como um país de Terceiro
Mundo na administração de Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961/1964), e
a adoção de políticas de abertura externa e teor social de esquerda interno (reforma
agrária, encampação de empresas estrangeiras), trazem um cenário de instabilidade,
contudo. A Revolução de 1964 interrompe inicialmente esta trajetória, em um quadro de
emergência de governos autoritários na América Latina, muitos deles com o apoio norte-
americano. Um dos pontos de controvérsia com os Estados Unidos era, justamente, esta
abertura ao mundo. A primeira quebra neste paradigma, ainda que breve, ocorre entre

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


1964/1967, no governo de Castello Branco, que dá início ao Regime Militar (1964/1985).
Na oportunidade, foram recuperados os princípios do bilateralismo, buscando uma
reaproximação com os Estados Unidos. As administrações seguintes, porém, retomam e
reforçam este paradigma (Costa e Silva-1967/1969- Médici-1969/1974), que atinge sua
forma mais bem acabada com o Pragmatismo Responsável e Econômica no governo de
Ernesto Geisel (1974/19794).
De acordo com Vizentini (1998), o governo Geisel representou o auge deste modelo
externo, consolidando os princípios originais da PEI. Apesar de possuir uma política
interna de caráter conservador, no campo externo, o regime abriu e consolidou uma
série de oportunidades internacionais, construindo o sistema de intercâmbios regionais
e globais que compõem a pauta exterior nacional. O objetivo era a construção de um
sistema abrangente de relações internacionais, tendo como base a identificação do país
como nação de Terceiro Mundo voltada ao desenvolvimento para completar o processo

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de industrialização por substituição de importações. A construção de um Brasil com status
de potência média resultaria desta combinação de fatores. Um dos resultados naturais
deste processo foi o afastamento relativo dos Estados Unidos, em termos políticos, o que
levou a choques de interesse naturais entre a hegemonia e a potência ascendente.
Bem sucedida, esta agenda levou o país ao posto de oitava economia mundial,
sendo uma das poucas economias do Sul a ser dotada de um parque industrial completo
(VIZENTINI, 1998). Deve-se destacar que a gestão Geisel também foi a responsável pelo 29

Cristina Soreanu Pecequilo


início da transição política “lenta e gradual”, preparando a saída dos militares do poder.
A dimensão política-social revelou-se um dos pontos de fragilidade do modelo externo:
afinal, o desenvolvimento não foi acompanhado por uma agenda social (redistribuição
de renda, acesso a saúde e educação, redução da desigualdade e pobreza), ou eliminou
as divergências sobre o papel do Brasil no mundo, ou decorreu de forma independente,
uma vez que o país contraiu considerável dívida externa para sustentar o projeto de
desenvolvimento.
O primeiro governo a sentir diretamente os efeitos da crise foi o do General João
Figueiredo (1979/19855), a quem coube administrar a etapa final do regime. Um cenário
de forte crise econômica interna, associado à retomada da bipolaridade pelo Presidente
Ronald Reagan (1981/1988), conhecido como “Segunda Guerra Fria”. A agenda
de Reagan tinha como prioridade a vitória na bipolaridade e, com isso, as ofensivas
direcionaram-se contra a União Soviética e, de forma geral, contra iniciativas autônomas
no cenário global. No que se refere a estas iniciativas autônomas, a abordagem de Reagan
era abrangente, envolvendo não só o bloco leste, mas todas as nações que possuíssem

4
Para uma análise detalhada da política externa do regime militar brasileiro sugere-se VIZENTINI, 1998.
5
O marco inicial das contradições econômicas e estratégicas do cenário internacional foi a crise do petróleo
de 1973. Outros fatores como a quebra do sistema de Bretton Woods com a saída dos Estados Unidos do
padrão ouro-dólar, a Guerra do Vietnã compõem igualmente este conjunto de fatores.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


posicionamento tático-estratégico em dissonância com o interesse norte-americano:
Terceiro Mundo, Europa Ocidental (à exceção da Grã-Bretanha), Japão, encontravam-se
neste bloco. Em termos militares, houve a retomada da corrida armamentista (nuclear
e convencional) e o apoio a grupos insurgentes de diversos países (na Ásia e América
Central6), contra governos estabelecidos. Política e economicamente, a pressão se deu
pela crise da dívida externa, em negociações multilaterais (com aplicação de sanções
comerciais) e a emergência do neoliberalismo, que pregava a volta do Estado mínimo. O
Brasil foi um dos países mais afetados por esta segunda dimensão, o que trouxe um recuo
na política dos eixos periféricos e a retomada do debate sobre as relações internacionais
do país e suas escolhas entre o Norte e o Sul.

O Recuo (1985/2002)
Apesar de manter o perfil global-multilateral de política externa, a administração
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de José Sarney (1985/1989), primeiro presidente civil depois do regime militar (eleito
indiretamente pelo Colégio Eleitoral na chapa com liderada por Tancredo Neves7), já deu
sinais de recuo na projeção do poder brasileiro. Tais recuos resultaram de uma combinação
de forte crise interna (econômica e associada ao processo de redemocratização),
vulnerabilidade sócio-econômica-estratégica e pressões internacionais que, como visto,
iniciaram-se no governo Figueiredo. Sarney deu continuidade ao eixo multilateral-global,
30 com ênfase no contexto sul-americano e a reaproximação bilateral com a Argentina,
mas atuou com menor intensidade no mundo afro-asiático. No que se refere à América
O BRASIL E OS EIXOS PERIFÉRICOS: agenda e identidade nas relações internacionais

Latina, uma das questões mais relevantes do período foi a definição, na Constituição
brasileira de 1988, de que a integração regional era uma prioridade nacional. Além disso,
foram fechados espaços de intercâmbios ao Norte, devido ao “reenquadramento” da
esfera europeia ocidental e japonesa aos Estados Unidos, o que reduziu mais ainda a
margem de manobra. Com isso, desenhou-se o processo de “limpeza da agenda”, que
resultou na década de 1990 no realinhamento aos Estados Unidos.
O fim da Guerra Fria e a aparente unipolaridade norte-americana acentuaram
esta sensação de perda de lugar no mundo que, somado ao aprofundamento da crise
interna, aumentaram os questionamentos sobre o papel do Brasil como líder e/ou nação
pertencente ao Terceiro Mundo. Isto se refletiu na campanha eleitoral para presidência
da República em 1989, que culminou com a vitória de Fernando Collor de Mello
(1990/1992). O discurso de Collor sustentava-se na premissa da modernização e do
abandono do viés periférico da atuação internacional, considerando-o contraproducente
por ter gerado conflitos com os principais parceiros, em particular os Estados Unidos.
O termo que passou a ser aplicado ao modelo anterior era “autonomia pela exclusão” ao

6
O apoio ao talibã que lutava contra a União Soviética no Afeganistão (1979/1989) é um dos mais
controversos exemplos desta política.
7
A votação no Colégio Eleitoral fora antecedida por forte movimento popular a favor de “Diretas Já!”

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qual se opunha a busca da “autonomia pela integração” e da “normalização” (CERVO e
BUENO, 2008). Parafraseando Collor, era preferível “ser o último do Primeiro Mundo,
ao líder do Terceiro Mundo”. (BATISTA, 1993). A inserção, portanto, era “realista
periférica”: não restava ao país outra opção que não aquela da subordinação devido a
assimetria de poder prevalecente com o núcleo (simbolizado pelos Estados Unidos).
Em meio ao triunfalismo da suposta universalização do regime liberal e democrático
da Queda do Muro, que levaria ao fim da história (PECEQUILO, 2011), a inserção
externa do Brasil demandava a retomada de uma postura que agregasse responsabilidade
e credibilidade. O país iniciou um processo de adesão rápida a diversos regimes
internacionais, com o objetivo de tornar-se um parceiro confiável e, na arena econômica,
adotou os preceitos do Consenso de Washington, sustentados no neoliberalismo. A
retomada de Collor do eixo Norte-Sul, bilateral-hemisférico, detinha componente de
alinhamento automático aos Estados Unidos. Abertura comercial, desregulamentação,

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privatizações e corte de investimentos em áreas sociais compunham a pauta do Estado
Mínimo. Mesmo iniciativas de porte autônomo como a integração regional, agregaram
valores similares, com a criação do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) sendo
representativa da prioridade de abertura aos mercados. O MERCOSUL retomou
seu perfil de integração sul-americana autônoma a partir da gestão de Itamar Franco
(1922/1994), vice de Collor que assumiu após o impeachment.
A retomada de Franco do eixo periférico foi breve, mas seu governo, com Fernando 31

Cristina Soreanu Pecequilo


Henrique Cardoso à frente do Ministério da Fazenda em 1994, levou à implementação
do Plano Real em 1994 (Cardoso exerceu brevemente o cargo de Ministro das Relações
Exteriores no termo de Itamar, sendo substituído pelo Embaixador Celso Amorim em
1993). O Plano Real possibilitou a superação da fase mais crítica da economia brasileira
recente e estabilizou o país. Com base no sucesso do Plano, Cardoso elegeu-se em 1995
e reelegeu-se em 1998, permanecendo no poder até 2002. As conquistas no campo
econômico não significaram a continuidade da autonomia global reiniciada por Franco,
e sim a ênfase no bilateralismo com os Estados Unidos e a integração. Simbólica desta
postura deve-se indicar a assinatura do TNP. O cálculo era que ao agregar credibilidade
à recém-conquistada estabilidade econômica, o país teria reconhecidos seus esforços no
cenário internacional, sendo definido pelos pares, no eixo Norte-Sul, como um país de
Primeiro Mundo. Permanece a visão negativa do país como nação em desenvolvimento,
evitando-se a utilização de termos como periferia no discurso. Diferente de Collor, este
era um alinhamento pragmático, no qual o reconhecimento seria atribuído ao Brasil pelas
nações mais relevantes.
A combinação dos esforços brasileiros de adesão com a ausência deste
reconhecimento, além do nível retórico, levou ao esvaziamento gradual desta posição.
A conquista do assento de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU
(CSONU) e à igualdade e reciprocidade nas negociações comerciais (as negociações da
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Organização Mundial de Comércio e da Área de Livre Comércio das América constituíam
as duas principais esferas) eram alguns dos objetivos que o Brasil acreditava que
conquistaria com seu novo status de país “confiável”. No caso da ALCA, o processo de
integração hemisférica liderada pelos Estados Unidos esgotou-se a partir de 2005, tendo
sido iniciadas em 1994, por sua vez, as da OMC prosseguem, desde 2001 na Rodada do
Desenvolvimento de Doha (2001). Mais especificamente, as rodadas da OMC encontram-
se marcadas pelas clivagens Norte-Sul desde a sua emergência em 1995, em particular no
setor agrícola (no qual as nações do Sul detém mais vantagens comparativas), e que levam
o Brasil a envolver-se em inúmeros contenciosos nesta organização contra os Estados
Unidos e a União Europeia visando combater o protecionismo e subsídios em setores
específicos. (ver PECEQUILO, 2012)
Estes objetivos eram percebidos como síntese da passagem da nação do Terceiro
ao Primeiro Mundo, em resposta a sua nova identidade em política externa, e a conquista
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da estabilidade econômica internamente. Como citado, não houve uma real mudança na
postura das nações do Norte, i.e dos Estados Unidos, diante destas demandas, ainda que
retoricamente o discurso diplomático reconhecesse o Brasil como um país relevante no
mundo. Esta ausência de benefícios, similar a de outras épocas de alinhamento no eixo
bilateral-hemisférico, deu início a uma reavaliação do perfil das relações internacionais.
Um forte componente para esta reavaliação deriva do mesmo campo que havia elevado
32 as perspectivas brasileiras: a economia. A estabilidade conquistada pelo Plano Real
encontrava-se ameaçada por questões cambiais, de produção, derivadas de uma crise
O BRASIL E OS EIXOS PERIFÉRICOS: agenda e identidade nas relações internacionais

geral do neoliberalismo na América Latina e desequilíbrios que também se estendiam à


Ásia e à Rússia. Assim, o governo é forçado a promover ajustes.
A partir de 1999, isto representou a retomada do eixo Sul na agenda internacional
e de um discurso mais crítico. Para isso, o governo FHC fortaleceu três frentes de ação:
a integração da América do Sul, as relações com potências do eixo Sul (China, Índia e
Rússia) e a crítica da globalização assimétrica. O reforço do MERCOSUL e o lançamento
do projeto IIRSA (Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), cujo objetivo
era o aprofundamento da complementaridade entre as nações sul-americanas nos setores
produtivo, energético, transportes e infraestrutura, compõem a agenda sul-americana. No
que se refere à retomada das relações com eixo Sul, as parcerias comerciais e tecnológicas
possuíam maior destaque. Na dimensão política, a globalização assimétrica representava
uma crítica moderada à globalização, indicando a necessidade de uma maior atenção à
distribuição de poder entre os Estados e as dificuldades das nações em desenvolvimento.
Apesar destas mudanças, não houve uma mudança de ênfase nos eixos, com o Norte-Sul
permanecendo sobre o Sul-Sul. Esta mudança somente ocorreu na gestão de Luis Inácio
Lula da Silva (2003/2010), com a quebra do padrão bilateral-hemisférico predominante
nos anos 1990, e a recuperação do perfil autônomo da política externa.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


A Retomada (2003/2012)
A chegada de Lula ao governo representou uma nova inflexão nas relações
internacionais, com a volta e aprofundamento do paradigma global-multilateral, agora
sob uma nova dimensão de combinação dos eixos Sul-Sul e Norte-Sul (com predomínio
do Sul-Sul). Esta política externa dos eixos combinados (PECEQUILO, 2008) parte de
uma posição assertiva e independente no cenário internacional, com a identificação do
país como nação do Terceiro Mundo e periférico. Durante a primeira década do século
XXI, esta própria classificação de Terceiro Mundo, devido ao crescimento econômico
e dinamismo políticos de nações como o Brasil, a Índia, a China, a África do Sul e a
Rússia ganharia novas dimensões. Estas novas dimensões associam-se a conceitos como
“nações emergentes” para se referir a este conjunto de grandes Estados periféricos e/ou
potências médias que consolidaram seu poder e de “novo” Segundo Mundo (KHANNA,
2008). Neste sentido, estas nações, mesmo que ainda pertencentes ao Sul, descolaram-se

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dos países de menor desenvolvimento relativo, que permanecem no Terceiro Mundo,
devido a sua expansão. Porém, a continuidade de seus problemas sócio-econômicos ainda
não as credenciaria para o Primeiro Mundo, chegando-se a este conceito intermediário
(em substituição ao Segundo Mundo socialista). Outro termo que passa a ser dominante
neste contexto é o de BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), derivado de uma análise do
Goldman Sachs realizada por Jim O´Neill sobre as nações que se tornariam os “tijolos”
do século XXI. A partir de 2011, o BRIC se tornou BRICS com a inclusão da África do 33

Cristina Soreanu Pecequilo


Sul no grupo.
A política externa ganha forte componente social, com programas como Fome
Zero, acesso gratuito a medicamentos (HIV/AIDS, uso contínuo), quebrando a regra
neoliberal de corte de programas de bem estar. Estes programas, como aponta Oliveira
(2010), tornam-se elementos de projeção de poder do país no sistema internacional e
de cooperação com as demais nações emergentes e de menor desenvolvimento relativo.
O Brasil reassume, sem preconceitos ideológicos ou percepções negativas sobre a sua
classificação como nação periférica, uma posição de liderança no eixo Sul. Ou seja, não
há uma tentativa de se distanciar do Terceiro Mundo, mas sim a reafirmação da identidade
do país com este grupo, com base em um sentimento de orgulho e não de submissão
ou subordinação. A autonomia é a regra de comportamento, com a defesa da agenda de
modernização, crescimento e preocupações sociais que marcam o movimento Sul-Sul
desde o seu nascimento.
No campo dos princípios, além destas preocupações de caráter social, foi ressaltado
o princípio da não-indiferença. Tal princípio representa uma quebra relativa das visões
sobre não-ingerência dos anos 1960, trazendo a necessidade de repensar o envolvimento
brasileiro em situações de crise humanitária e de uma forma geral no mundo. Prevê-,
portanto, uma postura mais pró-ativa. A tradução prática deste princípio foi da liderança

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da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) de 2004 em
diante. Além disso, o Brasil intensificou sua atuação como líder da América do Sul,
com a continuidade do MERCOSUL e da IIRSA, e o lançamento do projeto CASA em
2004 (Comunidade Sul-Americana de Nações), reafirmando a “prioridade primeira” do
espaço regional. A partir de 2007, este projeto foi renomeado de UNASUL (União Sul-
Americana de Nações) e em 2010 foi lançado o projeto de integração para América Central
e Caribe, a CELAC (Comunidade Sul-Americana de Nações). A plataforma continental
também serve de base para relações extrarregionais, que ganharam novas dinâmicas a
partir das Cúpulas América do Sul-África (ASA) e América do Sul-Países Árabes (ASPA).
Adicionalmente, o Brasil recuperou suas relações bilaterais com o mundo afro-asiático.
Em termos globais, esta ascensão do Brasil e demais emergentes levou à consolidação
de uma agenda comum para este grupo de nações, com caráter social, e demandas de
reforma e atualização dos organismos multilaterais e de consolidação do multipolarismo.
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Paralelamente, esta ascensão foi acompanhada pelo desgaste político-econômico das


nações do Norte (Estados Unidos e Europa Ocidental), o que acelerou e aprofundou o
processo de reordenamento de poder global, com a troca de eixos dinâmicos do centro
à periferia. Dentre estas alianças, o IBAS, Índia, Brasil, África do Sul destaca-se como
exemplo de cooperação Sul-Sul político, econômica, comercial e estratégica, a partir de
sua criação em 2003. No ano de 2003, o Brasil também liderou a formação da coalizão
34 G20 comercial no âmbito das negociações da OMC na Reunião Ministerial de Cancun.
Composta por nações emergentes e de menor desenvolvimento relativo, o G20 comercial
O BRASIL E OS EIXOS PERIFÉRICOS: agenda e identidade nas relações internacionais

revelou uma unidade em torno da defesa da abertura comercial justa entre o Norte e o
Sul.
A partir de 2008 com a disseminação da crise econômica global, observou-se o
adensamento do G20 financeiro, fórum de conversações econômicas criado em 1999,
composto por nações desenvolvidas e em desenvolvimento. Na oportunidade, o objetivo
era criar um organismo intermediário entre o G7 (nações desenvolvidas) e o G77 (nações
em desenvolvimento), e com maior igualdade de representação que o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial em resposta ao novo cenário do pós-Guerra
Fria. Por fim, é preciso mencionar a institucionalização dos BRICS como aliança entre
os emergentes para a discussão de uma agenda global (e do BASIC, Brasil, África do Sul,
Índia e China para as temáticas ambientais). Economicamente, este processo também se
refletiu na própria pauta comercial do Brasil, que reorientou-se do Norte ao Sul: a partir
de 2011 a China tornou-se a maior parceiro econômica individual do Brasil (tendência
que pode se manter em 2012) no lugar dos Estados Unidos e, desde 2010, 55% da
pauta de exportações brasileiras destina-se ao Sul. Este processo teve continuidade na
gestão Dilma Rousseff a partir de 2012, ainda que com menor intensidade em algumas
dimensões, traduzindo-se em processo em andamento.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


Considerações Finais
Como se pode perceber, a trajetória da política externa brasileira desde a década de
1960 apresenta momentos de inflexão no que se refere à relevância dos eixos periféricos
para as relações internacionais do país e que refletem alternâncias no debate sobre a
identidade interna e os modelos de desenvolvimento sociais-econômicos adotados.
Dentro desta polarização, a dinâmica vertical tem sido dominada pelas relações Brasil-
Estados Unidos, que detém forte atração e impacto no imaginário nacional. Por sua
vez, a agenda horizontal, como discutido, demonstra-se mais diversificada e abrangente,
envolvendo as relações com as nações do hoje Segundo Mundo e os países de menor
desenvolvimento. A presença sul-americana do Brasil, e sua projeção do regional ao
global a partir desta base sólida, permitiu uma elevação do papel nacional em particular
na última década. Até mesmo o intercâmbio bilateral com os norte-americanos ganhou
adensamento estratégico (com a instauração do diálogo estratégico de 2005 e a definição

Cadernos de Estudos Culturais


do país, pela estratégia de segurança nacional de 2010, como um dos novos centros de
influência global, ao lado dos demais BRICS).
Apesar deste debate entre os eixos Norte-Sul, Centro-Periferia, permanecer, é fato
que os melhores resultados externos do país têm sido alcançados com a recuperação
do seu perfil de nação de Terceiro Mundo, em consonância com sua interação com as
parcerias na dimensão Norte. Além disso, foram condicionados pela recuperação de um
projeto de desenvolvimento nacional, com maiores fundamentos sociais, empreendido
35

Cristina Soreanu Pecequilo


pela administração de Lula. Por outro lado, a permanência da polarização indica o risco da
descontinuidade, que poderia levar a novos recuos, como o experimentado na década de
1990. Este recuo poderia também estender-se aos desafios sócio-econômicos, visto que,
mesmo com progressos, setores chave nacionais como infraestrutura, segurança e defesa,
saúde e educação, permanecem enfrentando inúmeros pontos de estrangulamento. Trata-
se, portanto, de um projeto interno e externo que precisa caminhar junto, reforçando-
se mutuamente. E, para as relações internacionais, um projeto que se demonstre não
excludente, priorizando os eixos combinados Sul-Sul e Norte-Sul da projeção global e
regional do país.

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Cadernos de Estudos Culturais


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Cristina Soreanu Pecequilo

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 25 – 38, jul./dez. 2012.


PAISAGENS DA CRÍTICA
periférica

Edgar Cézar Nolasco1

Cadernos de Estudos Culturais


Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um
espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas,
de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes
de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.
Borges. O fazedor, p.168. 39

Edgar Cézar Nolasco


Lugares periféricos são sempre lugares específicos, mas nem todos os lugares são
periféricos. Pensar a partir da periferia implica pensar a partir dos projetos globais que
se cristalizam, de forma hegemônica, na cultura; significa, também, transculturar tais
projetos globais em projetos locais periféricos que façam sentido para a cultura periférica;
significa, ainda, e sobretudo, em rearticular os saberes e os discursos todos de uma
perspectiva da crítica subalterna. Uma reflexão crítica periférica, por sua natureza de fora
do lugar e sua estratégia transdisciplinar, só pode se situar e, por conseguinte, ancorar seu
discurso na margem do saber instituído e dos discursos acadêmico e disciplinar, como
forma de barrar um pensamento totalizante vindo de fora.
Walter Mignolo, antes de acreditar que existe ou não “dentro e fora”, reconhece que
o “difícil é esquecer ou eliminar as dicotomias históricas que o discurso e a epistemologia
colonial impuseram ao mundo, inventando diferenças coloniais”2. Na esteira do
intelectual contemporâneo, o que a crítica deveria fazer é eliminar de seu vocabulário
qualquer visada dicotômica, sobretudo porque o discurso colonial, moderno, não fez
outra coisa senão povoar o mundo de dicotomias. A questão, em uma abordagem crítica,
resume-se não em saber se de fato existiu “dentro e fora”, mas, sim, em saber como

1
Edgar Cézar Nolasco é professor da UFMS.
2
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.453.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


resolver esta “ferida aberta” (ANZALDÚA) que marcou para sempre as produções
culturais humanas e o próprio saber no mundo. “Dentro e fora, centro e periferia são
metáforas dúplices que dizem mais sobre os loci da enunciação do que sobre a ontologia
do mundo. Há e não há dentro e fora, centro e periferia”3. O que deve haver é uma crítica
periférica, subalterna por excelência, cujo pensamento liminar reverta a subalternização
dos saberes e a colonialidade do poder, crítica que proponha um novo modo de pensar
no qual as dicotomias sejam extintas em prol de uma outra episteme que se articule para
além da diferença colonial moderna. Tal projeto crítico precisa defender uma forma de
pensar nas e a partir das margens periféricas do mundo, visando transformar as demais
epistemologias que migraram dos grandes centros ou de fora do país e rearticulá-las da
perspectiva periférica.
Sempre na esteira do que propõe Mignolo por todo seu livro, mesmo que às vezes
correndo o risco de contradizê-lo, entendo que o intelectual deste século XXI, quer se
Cadernos de Estudos Culturais

encontre na condição de periférico ou não, deve antes de mais compreender que as


periferias mundiais e globais geram seus loci de enunciação específicos que precisam ser
encampados pelas discussões críticas contemporâneas, sobretudo por elas proporem
uma outra reflexão em torno do “conhecimento e compreensão’ propostos pelo discurso
acadêmico, além de lembrarem ao intelectual dos centros que tanto ele quanto o próprio
conhecimento disciplinar precisam “aprender com” aqueles discursos e intelectuais
40 periféricos “que vivem e refletem a partir dos legados coloniais e pós-coloniais.”4 Caso
não aja assim, o intelectual do Brasil, ou melhor, da periferia-Sul dessa tríplice fronteira
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

do Centro-Oeste brasileiro (Brasil, Paraguai, Bolívia) simplesmente continua a “estimular


a macaqueação, a exportação de teorias, o colonialismo (cultural) interno, em vez de
promover novas formas de crítica cultural de emancipação intelectual e política - de
transformar os estudos coloniais e pós-coloniais em um campo de estudo em vez de um
lócus de enunciação liminar e crítico”5. Aproveito para dizer que meu lócus de enunciação
geoistórico cultural e crítico situa-se na periferia da periferia do Brasil, da fronteira-Sul
(Paraguai e Bolívia) e quiçá da América Latina. Resta-me saber disso, e do fato de que o
estado de Mato Grosso do Sul traz, desde o nome, a insígnia da subalternização em sua
rubrica tal qual um couro de boi marcado a ferro e fogo pelos latifundiários do lugar,
para erigir uma crítica periférica (periférico aqui é análogo a contextualizada) que seja
capaz, entre outras competências críticas, de ou recontextualizar as críticas migrantes que
chegam dos centros (internos ou externos), ou simplesmente rechaçá-las por reconhecer
que elas não servem para pensar o lugar periférico que nem sempre é hospedeiro. (Mais
à frente me deterei na questão da hospitalidade cultural sul-mato-grossense). É a partir
desse lugar fronteiriço, por excelência, que penso e busco uma crítica periférica, cujo

3
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 454.
4
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.26.
5
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.26.

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projeto assenta-se em uma nova epistemologia como forma de barrar as marcas de uma
epistemologia moderna que, ao migrar para as bordas, decalcou um sentido totalizante
sobre as produções locais. Aliás, nessa direção, já está mais do que consolidada a ideia
de que o Terceiro Mundo produz uma epistemologia periférica própria, e de modo
especial por seus intelectuais internos que, por saberem negociar com a crítica migrante
de fora, não medem esforços para entender de modo diferenciado sua história e cultura.
Esse intelectual, diferentemente daquele que se encontra fora do lócus periférico, pensa
sempre a partir de (MIGNOLO), enquanto o intelectual do centro ou de fora do país esta
condenado a pensar sobre. Como poderia pensar aquele crítico que ainda privilegia uma
epistemologia moderna, pensar a partir de não significa fechar-se em seu lócus geoistórico
e nem muito menos priorizar o bios do sujeito subalterno e das produções culturais do
lugar; antes, a proposta política da epistemologia periférica visa compreender e considerar
em sua discussão o valor histórico-cultural da “diferença colonial”. O crítico periférico
tem a possibilidade da escolha de poder pensar da periferia e, por conseguinte, de adotar

Cadernos de Estudos Culturais


uma outra articulação que não passe, necessariamente, por aquelas pensadas nos grandes
centros avançados do país. Ao agir assim, o crítico periférico acaba por exumar e refundar
“histórias esquecidas” que ficaram soterradas nas margens da História. Esse gesto crítico,
assim como as histórias relembradas, traz, segundo Mignolo, “para o primeiro plano, ao
mesmo tempo, uma nova dimensão epistemológica: uma epistemologia da, e a partir da,
margem do sistema mundial colonial/moderno, ou, se quiserem, uma epistemologia da
diferença colonial que é paralela à epistemologia do mesmo”6. Ao por em prática uma
41

Edgar Cézar Nolasco


epistemologia periférica, o crítico subalterno acaba por inscrever sua própria experiência
subalterna em sua articulação crítica, registra e torna público seu bios; enfim, ao crítico das
margens periféricas parece estar facultado teorizar, sempre, a partir da situação na qual se
encontra, incluindo aí o próprio papel do intelectual, das produções culturais e demais
sujeitos atravessados (ANZALDÚA) pela condição subalterna. Não é demais reiterar que
a localização periférica é geográfica, histórica, política e, sobretudo, epistemológica. É
por valorizar esse lócus epistemológico que o crítico periférico contribui, por meio de
sua crítica de natureza subalterna, para refundar na História o que foi reprimido (Mignolo)
pelo discurso da razão moderna. Por toda sua discussão, Mignolo defende a possibilidade
teórica de se poder pensar a partir da fronteira nos tempos atuais. Desse modo, pensar
da fronteira ou, no caso, pensar da periferia, como estou propondo, equivale a poder
pensar para além do conceito moderno de teoria; logo, pensar para além dos conceitos
modernos é poder pensar a partir da própria epistemologia que emerge da periferia,
essa fronteira anônima, silenciosa, sombria e esquecida pelo olhar imperial lançado dos
centros hegemônicos do país e de fora7. Na esteira da discussão de Mignolo acerca da

6
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.83.
7
“O sentido de ‘periférico’ é análogo ao sentido de ‘subalterno’, se concebermos que o termo se refere
a ‘culturas’ e línguas e não apenas a classes sociais e comunidades - isto é, tudo que se situa num espaço
relacional será colocado ‘numa posição inferior’” (MIGNOLO, 2003, p.270).

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pós-colonialidade, podemos dizer que se a epistemologia periférica não conseguir romper
com a epistemologia moderna, ela se torna apenas uma outra versão, isto é, “uma teoria
sobre uma assunto novo, mas não a constituição de um novo sujeito epistemológico que
pensa a partir das e sobre as fronteiras”8. A saída para a epistemologia periférica, para não
narcotizar seu próprio lócus de enunciação desde o começo, está em propor e sustentar
um lócus de enunciação “diferencial” a partir da periferia, como assegura Mignolo.
Todavia deve-se tomar cuidado para não propor tal enunciação diferencial de dentro da
epistemologia moderna, como às vezes tem acontecido com o discurso crítico nesta
virada de século, quando o intelectual (o acadêmico sobretudo) se predispõe a estudar
produções periféricas, marginais ou subalternas, mas amparado numa epistemologia
acadêmica narcotizada e caduca que continua por não encampar um imaginário “diferencial”
(diferencial aqui diferente de diferença). De acordo com Mignolo, “diferencial significa
aqui um deslocamento do conceito e da prática das noções de conhecimento, ciência,
teoria e compreensão articuladas no decorrer do período moderno”9. Levando em conta
Cadernos de Estudos Culturais

o lócus geoistórico periférico de onde proponho minha reflexão crítica, diferencial também
pode significar o modo como desloco (traduzo) as leituras críticas das quais me valho,
como a do próprio Mignolo pensada em inglês e dos Estados Unidos sobre a América
Latina, para pensar de forma diferencial a periferia em questão (neste caso, como já disse,
trata-se da fronteira do estado de Mato Grosso do Sul com os países Paraguai e Bolívia).

42 Na condição dúplice de subalternidade, isto é, de fronteira e de periferia, insisto que


uma periferia é também um lugar específico, cuja história local é particular: Mato Grosso
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

do Sul, Pedro Juan Caballero e Porto Quijaro, por exemplo, não são o México, nem São
Paulo e nem Buenos Aires. O portunhol, o guarani, bem como as condições reais de vida
na qual se encontram os brasiguaios, são únicos e indispensáveis para a compreensão da
colonialidade do poder ali instaurada e da paisagem fronteriza e periférica que se desenha
para o outro. Em se tratando do lócus aqui priorizado, o que se constata, num crescendo, é
que falta ainda uma crítica consolidada que se predisponha a pensar esse lócus geoistórico
a partir dele mesmo, com toda sua diversalidade (Mignolo) e problemas culturais. O que
temos, na verdade, é uma crítica assentada em teorias acadêmicas importadas dos centros
que simplesmente se basta em tomar o lócus periférico e fronteiriço como um “campo
de estudos”, ao invés de tomar tal lócus cultural periférico como um lugar capaz de
produzir discussões históricas, culturais e políticas que acabam por explicá-lo dentro de
um contexto mais geral. Constatando e ao mesmo tempo contradizendo o que disse a
pouco, o intelectual periférico parece ainda não se sentir seguro, intelectualmente falando,
para pensar a partir de seu próprio lócus geoistórico, sem correr o risco de cair em um
“localismo” piegas e chinfrim.
Cada vez mais, convenço-me de que quando se estuda um determinado lócus

8
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.159.
9
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.167.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


periférico, marginal e subalterno, é preciso que se defenda uma forma de se pensar a
partir dessa zona periférica, como também das margens dos projetos globais, inclusive,
e principalmente, das margens dos projetos críticos hegemônicos que migram para a
periferia com sua leitura cristalizada, totalizante e até mesmo humanista demais sobre o
outro periférico que simplesmente entrou na discussão crítica como um vasto campo\
corpo exótico e estranho a ser explorado.
A periferia está para o Terceiro Mundo, assim como o centro está para o Primeiro; a
cabeça está para o Norte, assim como o resto do corpo está para o Sul. Mas tal dualidade
enquanto “entidade” não existe mais e talvez nem tenha de fato existido. Até mesmo
aquele mundo que proporcionou tal configuração e classificação não exista mais neste
século, adverte-nos Mignolo em nota. Todavia enquanto “divisão conceitual do mundo”,
tal diferença continua intervindo e servindo de base no modo de compreender os loci
diferenciais que grassam no mundo. E é como um conceito, ou melhor, como uma

Cadernos de Estudos Culturais


categoria que devemos articular o sentido de periférico, uma vez que essa categoria
geoistórica subalterna tem por função epistemológica “deslocar do Primeiro para o
Terceiro Mundo o lócus da enunciação teórica, reivindicando a legitimidade da ‘localização
filosófica’”10. Reivindicar direitos críticos e filosóficos não é reforçar um pensamento
dual, hierárquico e universal que imperou historicamente no Ocidente; é, antes de
qualquer coisa, desencobrir (tirar a tarja imperial) a imagem\paisagem de atrasada, nativa,
sombria, bárbara e selvagem, sem capacidade de pensar, sem sensibilidade, eternamente 43
dependente, imposta e sustentada pela herança colonial. A fronteira-Sul e os trópicos

Edgar Cézar Nolasco


eram sempre vistos como o resto do mundo, da civilização e do saber. A questão que se
impõe aqui nessa discussão não é a de inverter os papeis e lugares, de modo a cair numa
inversão de valores e de poder acrítica por excelência. Longe de defender o local com
barricadas e fossos, como que condenado a mirar e defender o próprio umbigo, compete
ao crítico periférico reivindicar a legitimidade dos valores (de toda natureza) que emergem
desses lugares periféricos, não com o objetivo de simplesmente contrapor ou comparar
tais valores, mas com certeza como proposta epistemológica (política) de compreender
tais realidades com seus sujeitos e produções culturais humanas de uma forma da qual
o centro jamais poderia compreender, e pelo simples fato de pertença. Tomar o conceito
de periferia como uma categoria geoistórica (MIGNOLO) é assegurar o direito de que ela
produz uma epistemologia, um conhecimento capaz de não apenas libertar os oprimidos
sujeitos periféricos da condição na qual se encontram, como também daqueles sujeitos
que se encontram presos na crença de uma epistemologia moderna colonial11. Assegura
Mignolo que “a emancipação como libertação significa não só o reconhecimento dos
subalternos, mas também a erradicação da estrutura de poder que mantém a hegemonia

10
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 162.
11
Ver RIVERA CUSICANQUI. Oprimidos pero no vencidos.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


e a subalternidade”12.
Na verdade, e sempre na esteira do que postula o autor de Histórias locais\Projetos
globais, quero entender que a periferia, enquanto uma categoria geoistórica, produz uma
outra epistemologia, o que aqui equivale ao “um outro pensamento” (Khatibi) explorado
por Walter Mignolo. Na leitura de Mignolo, “um outro pensamento” é condição para a
consolidação do “pensamento liminar” defendido e sustentado pelo crítico argentino
por todo seu livro. Em nosso caso, ambos os pensamentos contribuem para o que aqui
chamamos de “pensamento periférico”: um pensamento que se localiza na fronteira do
poder dos discursos hegemônicos e modernos, cuja preocupação inicial parte de suas
próprias histórias locais e suas particulares relações de poder. O pensamento periférico visa
superar a epistemologia monotópica do pensamento territorial (MIGNOLO), exatamente
por se inscrever na fronteira da razão ocidental. Entre-lugar, liminar, lindeiro, transfronteiriço
parecem pontuar o lócus de um pensamento periférico, apesar de ele situar-se mesmo
Cadernos de Estudos Culturais

em sua específica zona de fronteira porosa e quase incontornável por ordem de seu
imaginário periférico. Enquanto uma “irredutível diferença epistemológica”, a periferia
(o pensamento periférico) situa-se na condição de travessia dos sujeitos atravesados
(ANZALDÚA), que vivem à margem do sistema moderno, como os brasiguaios, os
indígenas, os paraguaios, os bolivianos, os sul-mato-grossenses e migrantes da tríplice
fronteira-Sul do Centro-Oeste brasileiro; a periferia também é a travessia para o global,
44 já que o global passa pelo periférico, sem a ele se colar. A fronteira-Sul, mais uma vez,
na zona fronteriza aqui em destaque continua sendo o limite. Contraditória, se, por um
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

lado, ela significa a travessia infinita, por outro, ela também barra, como que sinalizando
que só pode ser narrada a partir de um pensamento periférico que emirja de-dentro dela
mesma, isto é, “um tipo de pensamento que se mova ao longo da diversidade do próprio
processo histórico”13. O pensamento crítico periférico deve, mais do que ouvir, escutar
o balbucio (ACHUGAR) da periferia e seus sujeitos Oprimidos pero no vencidos (RIVERA
CUSICANQUI) em toda sua diversidade cultural e lingüística. Se a periferia se move em
silêncio, como se move o dia com o por do sol sobre a fronteira sanguinolenta, o mundo
historicamente vinha se movendo ao redor e em direção à fronteira-sul e daqueles sujeitos
fronteiriços que por escolha, falta de opção ou força do destino resolveram permanecer
no lugar. O pensamento periférico se desenha como o lugar da diferença colonial por
excelência: “uma maneira de pensar que não é inspirada em suas próprias limitações e
não pretende dominar e humilhar; uma maneira de pensar que é universalmente marginal,
fragmentária e aberta; e, como tal, uma maneira de pensar que, por ser universalmente
marginal e fragmentária, não é etnocida”14.
Pontuei, até aqui, como essenciais para se pensar a periferia, e tendo como base de

12
MIGNOLO. Histórias locais/projetos globais, p.178.
13
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.105.
14
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.104.

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minha discussão a fronteira sem lei do estado de Mato Grosso do Sul e seus países lindeiros
Paraguai e Bolívia, expressões como “a partir de”, “diferencial”, “categoria geoistórica”,
“diferença colonial”, “epistemologia periférica”, “perspectiva subalterna”, “histórias
locais” entre outras. Sinto que comecei este ensaio pelo final. Mas tal inversão se deu pela
necessidade de chamar a atenção para a existência ou não do que se entende por “periferia”.
Walter Mignolo chega ao último parágrafo de Histórias locais/ Projetos globais afirmando
que “há e não há dentro e fora, centro e periferia”15. Sem ir à desforra ou cair na esparrela
da discussão que descambaria para uma visada dicotômica, resta à crítica periférica
eliminar as dicotomias de seu vocabulário crítico. Todavia, por mais contraditório que
possa parecer, assumindo e posicionando-me enquanto intelectual periférico, reitero que
não apenas existe periferia como existe periferia da periferia. O lócus da tríplice fronteira
(Mato Grosso do Sul x Paraguai x Bolívia) por mim priorizado nesta discussão é um
exemplo. Como intelectual da periferia (com relação ao meu próprio país e ao mundo),
da fronteira por excelência, pouco me interessa saber que a última descoberta dos centros de

Cadernos de Estudos Culturais


pesquisa metropolitanos é que não existe dentro e fora. Interessa-me muito mais saber que ─
enquanto intelectual da margem (da periferia, fora do eixo), e talvez nem tanto sofisticado
e “desenvolvido” intelectualmente a ponto de afirmar categoricamente que não exista
dentro e fora ─ a condição de colonizado intelectualmente (somos mais colonizados
porque somos periféricos, ou somos mais periféricos porque somos colonizados?) pelos
centros metropolitanos do país e de fora nos leva a repetir “proposições dominantes
originárias de uma intelligentsia acadêmica de vanguarda”(MIGNOLO) para, num gesto de
45

Edgar Cézar Nolasco


razão subalterna, buscar a inversão dessa doxa crítica triunfante, imperializante, dominante
e quase sempre moralizante esteticamente. Na seqüência, deterei-me em conceitos como
paisagens periféricas, transculturação e hospitalidade, entre outros, visando contornar mais de
perto o que passo a denominar de periferia de periferia, tendo como lócus geoistórico a
tríplice fronteira-Sul que impõe sua própria lei a quem nela vive (os atravesados) ou que
por ela passa.

Paisagens periféricas
Sorvi, com os olhos indagadores, essas paisagens campeiras em seus mínimos detalhes e
delas me tornei escravo submisso e voluntário. SEREJO. Balaio de bugre, p.8.

Para contornar as bordas das paisagens periféricas que se desenham na fronteira-Sul


aqui em relevo é necessário, de início, que se leve em conta tanto a localização geoistórica
do lugar quanto as sensibilidades biográficas dos envolvidos, como as produções artístico-
culturais, os sujeitos atravesados e, não menos importante, meu posicionamento enquanto
intelectual diretamente envolvido na reflexão crítica. Walter Mignolo, ao deter-se na
questão da localização, diz que as sensibilidades dos locais geoistóricos relacionam-se com um sentido
de territorialidade e inclui ─ além da língua, do alimento, dos odores, do clima ─ a paisagem (que aqui

15
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.454.

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nos interessa de modo especial), e que são esses signos todos que amarram, por sua vez, o corpo a um ou
diversos lugares16. Interessa-me sobremaneira a discussão do crítico acerca das sensibilidades
dos locais, porque quero entender que a aproximação delas com a paisagem permite-
nos compreender a própria paisagem de um lugar específico por fora de qualquer olhar
universalizante (imperial), contemplando-a em sua especificidade e sem correr o risco de ser
bairrista ou provinciano. Mais específico, que próprio; reconhecendo-se periférico, sem
mais aquela ânsia ou desejo moderno de universal(izar) as histórias locais. Mais adiante
volto à discussão proposta pelo autor de Histórias locais/ Projetos globais.
Na verdade, quem afirma que há “periferias da periferia” é o crítico uruguaio Hugo
Achugar, em seu livro Planetas sem boca. Da leitura de Achugar, interessa-me, sobretudo,
a aproximação e, por conseguinte, o “retrato” que ele faz entre a “nossa” periferia e
a paisagem geoistórica da América Latina. Isso, por sua vez, só é possível porque, na
leitura do crítico, fica-nos claro que só se pensa a América Latina a partir da América
Cadernos de Estudos Culturais

Latina. Assumindo todos os problemas que a discussão implica, Achugar vai mais
longe e defende a idéia de que “pensar a partir da América Latina era pensar a partir
da periferia”.17 Por conseguinte, ao me propor pensar a partir da periferia, descubro,
para minha surpresa, que há periferias dentro da periferia e que pensá-las, por sua vez,
demanda uma perspectiva crítica ainda mais específica, como forma de abarcar suas
especificidades e suas sensibilidades biográficas no mundo heterogêneo que caracteriza
46 o que se denomina por América Latina. Nessa discussão, o Brasil parece sempre levar
desvantagem, uma vez que aparece como uma periferia à parte dentro da periferia. Não
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

por acaso, Mignolo comenta que “o Brasil fica incluído na América Latina não por causa
da língua [...], mas por pertencer ao continente!”18 Na verdade, o que se percebe é que
o lócus periférico chamado Brasil fica de fora das discussões críticas sobre a América
Latina por conta do desconhecimento da língua, reforçando, assim, uma subalternização
crítica da própria América Latina que, no cômputo de seu ajuizado crítico, reforça uma
exclusão periférica interna no mal sentido da palavra. Aliás, nesse tocante, mesmo na
leitura acurada de Mignolo, os problemas (ou não problemas) culturais, sociais e políticos
brasileiros, bem como suas produções artístico-culturais, ficam de fora da discussão
proposta, como que a nos lembrar da exclusão sumária da periferia de língua portuguesa
latina. Todavia, quando trago para o centro da discussão o lócus periférico e fronterizo
do qual faço parte, o problema toma proporções quase insolúveis. Aqui e daqui, temos
que administrar a exclusão que a crítica dos centros desenvolvidos do país opera quando
entende que pode pensar (e falar) o que seria o melhor para as várias e diferentes
periferias do país colossal. Por conseguinte, também temos que resolver um problema
de colonização (crítica) interno às periferias nacionais: a subserviente repetição crítica

16
C.f. MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.264.
17
ACHUGAR. Planetas sem boca, p.90.
18
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.186.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


nesses locais periféricos das lições aprendidas nos centros. A solução não parece estar
em rechaçar as lições migrantes, mas, pelo contrário, em saber pontuar o lócus de onde
se erige a crítica periférica. De base desse conhecimento, que é de ordem geoistórica e
epistemológica, o crítico periférico pode traduzir sem culpa as lições totalizantes que
teimam em se hospedar em casa (localização) alheia. Daí a importância de reiterar que
penso a partir de um lócus periférico e fronterizo ─ a fronteira-sul sem lei de Mato Grosso
do Sul/Paraguai/Bolívia) ─ cujos problemas e especificidades o fazem ser do jeito que
é. Mais adiante, algumas “paisagens”, que traduzem as sensibilidades biográficas e que
captam a alma fantasmática desse lugar periférico, serão apresentadas.
De acordo com Achugar, uma paisagem “supõe um posicionamento e um lugar
específico a partir de onde se fala e a partir de onde se lê”.19 De modo diferente do que
postula o crítico, quero agregar em tal paisagem uma rubrica pós-colonial, por entender
que somente assim ela pode contemplar uma epistemologia diferente daquela que foi

Cadernos de Estudos Culturais


realizada na e sobre a América Latina. Entendo que uma paisagem conceitual pós-colonial
não renega a memória nem desconsidera a tradição que repousam nas produções artístico-
culturais, nem mesmo na história ou na cultura periférica; antes tem a preocupação
estético-epistemológica de assegurar que outras formas de paisagens possam sair de seu
mundo oprimido e sombrio e se apresentarem em alto-relevo na cultura. A esse novo
modo epistemológico que, para Mignolo entre outros, já foi chamado de pós-colonial/
pós-ocidental, aqui estou denominando-o de pensamento periférico. 47

Edgar Cézar Nolasco


Seguindo o autor de Planetas sem boca, o lugar que aqui vislumbro e que se denomina
de fronteira sem lei do Sul de Mato Grosso do Sul nem sempre é concreto e quase
sempre é imaginário. Às vezes um se sobrepõe ao outro, dependendo do meu interesse
crítico, ou de forma inconsciente mesmo. Mas é sem sombra de dúvida um lugar de
fronteira, da margem, do “subúrbio do mundo” (PIGLIA), um lugar perdido na vastidão
do espaço territorial que desenha a região Centro-Oeste do país, onde pântano e cerrado
se revezam sem se hibridizar, um lugar deslocado e afastado dos centros desenvolvidos
do país segundo esses mesmos centros, fora do eixo por excelência. Nasci nesse lugar
territorial onde o sol se põe por sobre a fronteira e as leis próprias do mando e do
desmando são urdidas em silêncio, e hoje me resta escolher uma forma epistemológica
para pensá-lo com mais propriedade/especificidade. É o que busco fazer aqui.
Na esteira da discussão de Achugar, mas pensando no lócus aqui priorizado,
lembro que na periferia, enquanto “lugar de carência”, vivem sujeitos periféricos que
“balbuciam” sua própria voz. Podem não ser escutados pelos centros do saber e do
poder, mas o importante é que “falam”. Não quero entender que é apenas o centro que
fala pela periferia, não que isso não seja quase a regra. O planeta (de Lacan) é babélico,
de modo que sempre há alguém falando por outro. O problema reside quando um quer

19
ACHUGAR. Planetas sem boca, p.60.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


falar, impor sua fala, seu discurso sobre o outro. Nessa direção, no centro ou na periferia,
sempre vamos encontrar um falando pelo outro. Aí parece residir o problema político
mais comum da contemporaneidade. Porque enquanto os doutores da academia das
belas letras, ou dos centros desenvolvidos, ficaram pensando que a periferia não produzia
linguagem, nem saber, nem discurso, e que nem boca tinha, instauraram-se poderes dentro
das periferias que guerreiam entre si. Em nossa discussão, a periferia se desenha como
um “lugar de carência” menos por falta de representação do que pela exclusão sumária
por parte do poder político do estado, do poder econômico e dos discursos acadêmico e
disciplinar. Nessa linha de discussão, podemos inverter a afirmação de Gayatri Spivak de
que o sujeito subalterno é aquela que não fala, pois se fala já não o é 20, e querer compreender
que sua lógica talvez sirva mais para o contexto cultural indiano do que para o contexto
periférico da tríplice fronteira aqui em destaque. Também talvez os sujeitos da fronteira
devam ser tomados menos como subalternos e mais como periféricos mesmos (não
que a aproximação entre periférico e subalterno não seja possível) e, como tais, esses
Cadernos de Estudos Culturais

sujeitos não apenas falam como articulam discórdias e brigas pelo poder (e pela terra)
entre eles. O lugar periférico e fronterizo aqui priorizado apresenta-se como um “lugar de
carência”, mas também como um lugar de imposição de leis próprias, de contrabando
de mercadorias e vidas alheias, lugar onde os corpos simplesmente desaparecem, lugar
por onde os andariegos cruzam dentro do silêncio da noite fronteriza, onde é travada
uma guerra sangrenta pela terra de ninguém (?). Nesse lugar, a periferia, assim como a
48 fronteira, é mais do que uma metáfora. Ela é tão real, quanto mais excludente tornam-
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

se os sujeitos internos a ela mesma na experiência/vivência do dia a dia interminável de


lutas, perdas e ganhos.

Figura 1 - Boneco de fazendeiro brasileiro enforcado


simboliza tensão com sem-terra no Paraguai
Fonte: UOL Notícias, 06/2012

20
Ver SPIVAK. Pode o subalterno falar?

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


A imagem/paisagem (Figura 1) capta o lado sombrio dos filhos sem terra da meia- noite,
onde uma luta armada literalmente é travada em prol da sobrevivência e dos direitos.
Retrata a persona do brasiguaio Tranqüilo Fávero enforcado no meio do acampamento
(Santa Lucia, região de Ñacunday, leste do Paraguai) pelos sem terra. O nome próprio
“Favero” inscrito/assinado no peito do boneco traduz a fronteira belicosa entre o “rei da
soja” e os sem terra, como também não deixa de aludir a uma dura realidade sangrenta
que quase sempre tem ficado de fora das discussões acerca das fronteiras periféricas na
América Latina. Nesse último 15 de junho (2012), seis policiais e 11 sem-terra morreram
em confronto durante uma reintegração de posse em Curuguaty (a 250 quilômetros de
Assunção). Entre brasiguaios21 e sem terra, o fato é que onze campesinos morreram em
uma fazenda próxima à fronteira com o Brasil, denunciando a situação emblemática de
uma fronteira enigmática e sem lei sobre a qual, não por acaso, o poder do estado e a
democracia parecem ter dado as costas. A questão emblemática que se impõe nesse lócus
periférico, em particular, é de ordem política e de poder.22 Aliás, nesse sentido, parece-

Cadernos de Estudos Culturais


nos que toda a problemática que envolve as periferias, sejam elas urbanas ou não, é de
ordem política e de poder; e não se trata de uma questão de “diplomacia”, como pensam
alguns, mas de democracia.23 Por falar em poder (e em democracia), não é apenas o
poder do 44 e do 38 que impõe respeito na zona de fronteira; o poder da língua (s) chega
a ser mais devastador e entristecedor, porque ele vai minando o espaço da outra língua
por dentro, invadindo seu lugar, fazendo do poder alheio seu poder. Além do problema
racial encontrado na zona de fronteira, já que a maioria dos brasiguaios tem pele clara e
49

Edgar Cézar Nolasco


feições europeias, enquanto a maior parte dos paraguaios é de origem hispano-guarani,
e da presença dos estrangeiros (brasiguaios) provocar sentimentos nacionalistas e até
xenófobos entre os sem terra paraguaios, a preocupação maior dos paraguaios reside,
segundo ampla reportagem publicado no The New York Times, no enfraquecimento de
sua identidade, posto que os estrangeiros, que para ali migraram, como os brasiguaios,
mantêm sua própria língua, usam sua própria moeda, hasteiam sua própria bandeira e são donos das

21
“Os brasiguaios ou brasilguaios são brasileiros (e seus descendentes) estabelecidos em território da República
do Paraguai, em áreas fronteiriças com o Brasil, principalmente nas regiões chamadas Canindeyú e Alto
Paraná, no sudeste do Paraguai. Estimados em 350.000, são, em sua maioria, agricultores de origem alemã,
italiana ou eslava e falantes do idioma português. O nome origina-se na junção das palavras “brasileiro” e
paraguaio” (Brasiguaios. Wikipédia).
22
“Onze campesinos sem terra foram assassinados na sexta-feira passada em uma fazenda próxima á
fronteira com o Brasil, onde está aumentando a tensão em paralelo às reivindicações e ações diretas pela
reforma agrária. O enfrentamento entre policiais e lavradores deixou sete agentes mortos, entre eles os
chefes do Grupo de Operações Especiais, uma espécie de BOPE paraguaio, só que sua tarefa não é reprimir
favelados como no Rio de Janeiro, mas os peões rurais que, depois que Lugo chegou ao governo, em 2008,
aumentaram seu nível de organização e decisão de luta, depois de décadas de submissão diante do jugo da
ditadura de Alfredo Stroessner” (Marin Almada. “Latifundiários brasiguaios querem derrubar Lugo”. In:
Carta Maior).
23
“‘Diplomacia você pode usar com pessoas cultas...só que... você sabe o dito popular que diz: a mulher do malandro obedece
só com pau...tamos lidando com pessoas de tamanha ignorância que com diplomacia você não soluciona’” disse o maior
produtor de soja do Paraguai, nascido em Santa Catarina (Apud ALMADA. “Latifundiários brasiguaios
querem derrubar Lugo”. In: Carta Maior).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


terras mais produtivas do lugar. Também se queixam de que seus filhos terão como segunda língua o
português, ao invés do guarani. “Temos que proteger nossa identidade ou estaremos perdidos
como nação nessa onda de globalização e Mercosul”, afirmou o diretor de escola local
Adílio Ramirez López.24 O que me intriga na discussão é perceber que uma língua
subalterna como a portuguesa num contexto global, quando empregada num contexto
mais periférico, torna-se, por sua vez, uma língua de caráter hegemônico. No contexto
aqui em relevo, a língua portuguesa “estrangeira” impõe-se pelo uso, pelo valor de troca e
circulação da moeda, pelo poder patriótico da bandeira nacional, pela terra conquistada,
pela cor da pele do invasor. Corroboram, nessa discussão, as proposições feitas por
Walter Mignolo sobre o “bilinguajamento” em Histórias locais/ Projetos globais. Não por
acaso, o autor entende por bilinguajamento o deslocamento das línguas hegemônicas e imperiais e
sua recolocação dentro da perspectiva das línguas ameríndias. Ressalvadas todas as diferenças que
possa haver, quero entender que, no tocante ao lócus fronterizo aqui em destaque, a língua
portuguesa se impõe como uma língua detentora de um poder mais colonial. Por outro
Cadernos de Estudos Culturais

lado, postulo que o amor pelas e entre as línguas periféricas da fronteira-Sul trabalham no
sentido de manter viva na fronteira uma “língua” que não respeita as diferenças, pois já se
articula numa relação diferencial, como o “portunhol”, linguagem específica da fronteira
e falada por quase todos os sujeitos atravesados (ANZALDÚA), independentemente de
sua língua pátria. Aliás, nesse tocante, e ressalvadas as diferenças nacionalistas, torna-se
inoperante falar em língua pátria. A zona de fronteira, se não rompe, embaralha esses
50 traços nacionalistas e patrióticos, como que a nos lembrar de que uma fronteira, além
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

de não ter lados definidos, borra as próprias diferenças culturais locais. Na esteira de
Anzaldúa, em Borderlands, viver na fronteira é correlato a um viver-entre-línguas. Nessa
direção, o portunhol, enquanto uma língua de fronteira, de fraturas e de fissuras, capta,
supera e traduz não apenas as relações diferenciais, mas o medo, a dor, a vergonha, a
humilhação, a perda, a discórdia, a alegria dos povos imbricados a situação/condição de
transfronteiridade. Enquanto um estilo de vida entre línguas, o espanhol amalgama o que é
da ordem do ético, do estético, do político, do social e do cultural no tocante às condições
de vida nas quais se encontram os sujeitos da periferia que se desenha ao Sul da fronteira
do Centro-Oeste brasileiro. Uma língua liminar, como a do portunhol, tem o poder de, de
forma especular, ressignificar e representar a fronteira enquanto um lugar periférico (ou
não) capaz de reflexão e libertação tanto dos temores nascidos no lugar quanto os vindos
de fora. O portunhol, como língua periférica, se, por um lado, condensa as condições
de vida dos sujeitos oprimidos e excluídos, por outro lado, assinala o receio que o poder
(intelectual) do discurso dos centros hegemônicos tem por não conhecê-la. Ressalvadas
as diferenças contextuais e culturais, vale a pena transcrever uma passagem de Anzaldúa
que traduz uma condição interlingual/intercultural encontrada na fronteira-Sul: “Aí, na
encruzilhada das culturas, as línguas se revitalizam e mutuamente se fecundam. Morrem

24
C.f “Brasiguaios”, In: Wikipédia.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


e nascem. No momento, essa língua infante, essa língua bastarda, o espanhol mexicano,
não é aprovada por sociedade alguma”25.
Em vista do exposto sobre a língua e os sujeitos atravesados da fronteira-Sul, mais
duas observações sobre a “paisagem do enforcado” (imagem) se fazem necessárias. Com
relação à primeira, posso dizer que a paisagem estacada no meio da terra “sem lei” e a
ser conquistada traz inscrita as sensibilidades dos sujeitos locais, com seus bios e seus
desejos de morte, além de sinalizar um “sentido de territorialidade” (MIGNOLO) ímpar
que inclui, entre outros traços localistas, a própria paisagem desolada do lugar e dos
sujeitos envoltos à situação. Compete a uma paisagem biográfica do local (periférico)
amalgamar a política e as sensibilidades do local geoistórico, além de emoldurar em seu
próprio corpo as perdas e desejos dos sujeitos imbricados a condição de fronteiridade. É
exatamente por isso que uma paisagem, qualquer paisagem, apresenta-se sempre como
um local de reflexão teórica por excelência. A paisagem-Sul, que encampa o pôr do sol na

Cadernos de Estudos Culturais


fronteira, além de apresentar-se como cindida desde seu infans, redesenha uma vida em
trânsito para o sujeito-fronteira que nela vive ou atravessa. A outra observação sobre a
“paisagem do enforcado” diz respeito ao fato de que a paisagem traz a inscrição de “um
lugar, ao invés de “um não-lugar”, sinalizando, por sua vez, os traços diferenciais entre
centro e periferia, eixo e fora do eixo etc, apontando, por conseguinte, as especificidades
dos lugares periféricos ou não. A paisagem do enforcado, diferentemente de outras
paisagens, traz inscrita em seu corpo-texto uma história singular, uma memória dos 51
envolvidos e do lugar, uma tradição, bem como a marca das perdas e ganhos, da vida e

Edgar Cézar Nolasco


da morte, a cor matizada do sangue escorrido pela terra ou do crepúsculo oscilante da
fronteira-Sul. Quando se tem a preocupação crítica de contornar a borda imaginária e
real de uma paisagem deve-se considerar, como postula Achugar, “o peso que memórias,
tradições e inércias tem na configuração de uma paisagem que tem a ver, também, com a
identidade”26. Assim, o signo-paisagem do enforcado também contribui para desvelar a
problemática questão identitária do lugar periférico da fronteira-Sul de Mato Grosso do
Sul (Paraguai e Bolívia) e dos sujeitos nele imbricados.
Douglas Diegues, poeta da fronteira-Sul, apesar de ter nascido no Rio de janeiro,
em Uma flor na solapa da miséria (2007) capta e traduz en portuñol uma conceituação para o
“portunhol salvaje” falado na fronteira:
U portunhol salbaje es la língua falada em la frontera du Brasil com u Paraguai por
la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa, amor al imposible,
mandioca, vento y carne de vaca. Es la lengua de las putas que de noite vendem seus
sexos em la linha de la fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es uma lengua
bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente. Pero tiene una graça salvaje que
impacta. Es la lengua de mis abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje

25
Apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.344.
26
ACHUGAR. Planetas sem boca, p. 96.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


comigo. Us poetas de vanguarda primitibos, ancestrales de los poetas contemporâneos
de vanguarda primitiba, non conociam u lenguage poético, justamente porque ellos solo
conociam um lenguaje, el lenguaje poético. Com los habitantes de las fronteras du Brasil
com u Paraguai acontece mais ou menos la misma coisa. Ellos solo conocen u lenguaje
poético, porque ellos no conocen, no conocen, outro lenguaje. El portunhol salbaje es
una música diferente, feita de ruídos, rimas nunca bistas, amor, água, sangre, árboles,
piedras, sol, ventos, fuego, esperma.27

A imagem que se forma na passagem poética de Diegues também corrobora a


construção da paisagem periférica que traduz o lócus geoistórico denominado de fronteira-
Sul do Centro-Oeste brasileiro. Na verdade, quero entender o “portunhol salbaje” como
a inscrição de uma epistemologia periférica, na medida em que a consciência dessa
outra língua está, de alguma forma, arraigada no domínio do conhecimento do povo
da zona de fronteira. A língua da fronteira é fruto de uma consciência salbaje, fronteriza,
que, por sua vez, permite a inscrição de uma epistemologia específica da condição de
Cadernos de Estudos Culturais

transfronteiridade na qual se encontram os sujeitos atravesados. Sua condição natural de


se reproduzir e de sobreviver, meio ao deus-dará como flor que brota de bosta de vaca, e o
fato de ser falada tanto por gente simples como pelas putas andariegas da linha real e
imaginária da fronteira não deixam de sinalizar a estratégia de uma língua subalterna
que, por sua condição de transfronteriza, luta para sobreviver (DERRIDA) em meio a
vida e a morte, ou até mesmo para além da vida ou da morte, aliás, condição de qualquer
52 língua periférica. Como já disse antes, há uma guerra silenciosa muito mais daninha e
perniciosa entre as línguas articuladas na tríplice fronteira, uma vez que é nelas que o
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

poder, ou melhor, os poderes se agregam. A língua selvagem da fronteira tem a sua


específica herança cultural e familiar, sua história subalterna, que, se, por um lado,
permite o diálogo com a tradição moderna, por outro, inaugura uma episteme periférica
cujos postulados críticos ancoram-se a partir das diferenças coloniais. Quando o poeta
constata que os habitantes das fronteiras do Brasil com o Paraguai (e aqui acrescentaria
a fronteira com a Bolívia) só conhecem a linguagem poética como única linguagem, ele
não deixa de pontuar a consciência dilacerada do sujeito da fronteira e sua condição
como sujeito oprimido pero no vencido. O “portunhol salbaje” contribui para a fundação da
paisagem periférica da fronteira-Sul porque, enquanto uma música diferente, feita de ruídos,
rimas nunca vistas, amor, água, sangue, árvores, pedras, sol, ventos, fogo e esperma, (DIEGUES),
ajuda a contornar o corpo identitário da cultura local da zona de fronteira. Assim como
o homem que se propôs a tarefa de desenhar o mundo, como se lê na epígrafe de Borges aposta
neste texto, e que antes de morrer descobre que aquele paciente labirinto de linhas traçava a imagem de
seu rosto, o portunhol salbaje, por ser uma “lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia,
bella, diferente”, espelha a herida abierta (ANZALDÚA) que sangra do corpo do sujeito
subalterno e contorna em alto-relevo a paisagem que dá a todos do lugar “um sentido de
territorialidade” (MIGNOLO).

27
DIEGUES. Uma flor na solapa da miséria (em portuñol), p.3.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


Este texto não termina aqui. Como faz parte de um projeto maior, intitulado
“Paisagens críticas transculturais na fronteira sem lei”, que desenvolvo, em meu
estágio pós-doutoral, como professor-visitante no Programa Avançado de Cultura
Contemporânea (PACC/UFRJ), depois me deterei em questões conceituais aqui apenas
mencionadas como “hospitalidade”, “transculturação” e outras para desenvolvê-las de
forma satisfatória, tendo, é claro, a zona de fronteira do estado de Mato Grosso do Sul e
suas produções paisagístico-culturais como mediadoras da discussão crítica.

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Cadernos de Estudos Culturais


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Edgar Cézar Nolasco


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Cadernos de Estudos Culturais

54
PAISAGENS DA CRÍTICA periférica

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 39 – 54, jul./dez. 2012.


A POLÍTICA HIP HOP
nas favelas brasileiras
Heloísa Buarque de Holanda1

Cadernos de Estudos Culturais


Um dos fenômenos mais alarmantes deste início de século são os números da
progressiva favelização e desemprego, muitas vezes também chamados de “humanidade 55
excedente”, especialmente em países em desenvolvimento. Segundo Mike Davis, no livro

Heloísa Buarque de Holanda


The planet of slums, um estudo bastante impressionante, a população favelada, aferida pelo
UN-Habitat Report, cresce hoje 25 milhões de pessoas por ano. Esse mesmo relatório
avalia que os novos pobres periurbanos e suas comunidades informais ou favelas serão
em 2020 cerca de 45% a 50% do total dos moradores da cidade.
Esse Big Bang da pobreza urbana parece diretamente ligado às políticas financeiras
pós-consenso de Washington, quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem
da dívida para reestruturar a economia do Terceiro Mundo, promovendo o que chamamos
de “a violência do ‘ajuste’ e recuo do Estado”.
No Brasil, os números não são menos dramáticos. A população que vive em favelas
ou “aglomerados subnormais” cresceu 45% nos últimos anos, três vezes mais que a
média do crescimento demográfico do país. Hoje, temos 51,7 milhões de favelados,
resultado de uma trágica equação de mercado, tornando o Brasil o país com a terceira
maior população favelada do mundo, atrás apenas de Índia e China.
Apesar dessas alarmantes estatísticas, é possível identificar algumas respostas muito
interessantes a esse cenário, sem dúvida, sombrio. As respostas são várias, especialmente

1
Heloísa Buarque de Holanda é professora da UFRJ.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 55 – 60, jul./dez. 2012.


em periferias de países em desenvolvimento. Meu foco nestas observações será o caso
brasileiro e os possíveis usos da cultura no quadro dos ajustes econômicos globais.
Uma das mais interessantes reações ao recuo do Estado no que diz respeito às
políticas sociais é o caso dos processos de atuação que se desenvolvem na cultura do hip
hop tal como vêm sendo praticados nas favelas e comunidades de baixa renda no Brasil.
O hip hop, nascido na Jamaica e “criado” nos EUA, adquire algumas características
locais bastante específicas, resultando em novas formas de organização comunitária e
intervenção por meio da procura de novos sentidos e efeitos para a produção e para o
consumo culturais. Podemos pensar no conceito de cultura como recurso, no sentido que
George Yúdice utiliza em seu livro seminal, The expediency of culture: uses of culture in the global
era. Yudice discute as novas formas de gerenciamento da cultura no mercado globalizado
e sua relação direta com o desenvolvimento social e econômico e com a construção da
experiência cidadã. Na mesma pista, Jeremy Rifkin cria a noção de capitalismo cultural
Cadernos de Estudos Culturais

referindo-se a um conceito de cultura já bem distante da noção moderna tradicional de


cultura como uma experiência privilegiada e transcendente.
O nosso hip hop vai nessa direção. Antes de mais nada, é importante esclarecer
que o hip hop, nas periferias urbanas das metrópoles brasileiras, é mais abrangente do
que sua forma original norte-americana, composta tradicionalmente pelo rap, grafite,
MCs e break dance (b-boys). No Brasil, o hip hop, além desses, agrega a literatura (uma
56
tendência muito forte e prestigiada do nosso hip hop), algumas formas de competição
A POLÍTICA HIP HOP nas favelas brasileiras

esportiva como o basquete de rua e, o que me parece mais interessante, o conhecimento.


A partir da necessidade política de valorização da história local e das raízes culturais
do hip hop, podemos observar nas comunidades hip hop brasileiras um investimento
bastante significativo nas formas de aquisição e produção de conhecimento, realizado de
maneiras cada vez mais amplas e diversificadas, incluindo aqui um real aumento na taxa
de entrada desses artistas em instituições de educação formal de ensino médio e superior.
Diferenças à parte, o que une e define o hip hop no Brasil é a criação de um conjunto de
ações mediadas pela cultura, buscando a transformação de suas comunidades. Essa atitude
(como é chamada) é agora experimentada simultaneamente como arte e ativismo. Chama
atenção ainda que a jovem cultura negra do hip hop parece agora mais descompromissada
com uma cultura focada em suas raízes (ainda que estas sejam um elemento central dessa
produção), sendo assim capaz de articular um fórum supranacional de jovens pobres e
pretos que levantam a bandeira da resistência. Essas articulações transnacionais tal como
vêm sendo realizadas pelo hip hop aumentam sensivelmente a força e o poder para suas
demandas específicas, ecoando de alguma forma o tom mais sofisticado dos Fóruns
Sociais Mundiais.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 55 – 60, jul./dez. 2012.


Dois exemplos, de naturezas diferentes, da força dessa nova cultura periférica são:
primeiro, o Grupo Cultural AfroReagge; segundo, o impacto da criação e do consumo
da literatura nessas comunidades (falo especialmente do trabalho dos escritores Ferréz,
Sergio Vaz e Alessandro Buzo, e do surpreendente poder de mobilização da literatura
hip hop). Esses são apenas dois entre os muitos casos que podem ser encontrados no
panorama das favelas brasileiras.
É importante lembrar que, desde a década de 1980, as favelas brasileiras são
dominadas pelo narcotráfico, o que tende a desmobilizar as possíveis articulações de
organizações de base nessas comunidades.

Cultura e narcotráfico
O AfroReggae é uma ONG criada pelo impacto, na imprensa e sociedade civil,
gerado por um confronto sangrento entre os chefes do narcotráfico e a polícia que

Cadernos de Estudos Culturais


terminou com um terrível massacre de 21 inocentes, no dia seguinte ao embate, percebido
por todos como uma vingança da polícia. Os moradores inauguraram, e desenvolvem
desde então, uma estratégia singular cuja meta é retirar os jovens do trabalho com o
narcotráfico por meio do estímulo à produção cultural nessa comunidade.
Esse uso estratégico da cultura, hoje fartamente utilizado nas favelas brasileiras,
inicialmente para enfrentar o império do narcotráfico nessas regiões, desenvolve-se e 57
amplia-se no sentido dos usos da cultura como fator de geração de renda, de alternativa

Heloísa Buarque de Holanda


ao desemprego progressivo, de estímulo à auto-estima, de afirmação da cidadania
e, conseqüentemente, de demanda por direitos políticos, sociais e culturais nessas
comunidades.
O caso AfroReggae é exemplar nesse sentido. Em 15 anos de atividades, conseguiu
beneficiar mais de sete mil jovens por meio de 72 projetos políticosocioculturais no Brasil
e no exterior; 13 subgrupos artísticos, cinco ONGs apoiadas no Brasil e uma no exterior
(Colômbia). Sua ação vem sendo expandida com a coordenação de mais quatro núcleos
de cultura em outras favelas do Rio de Janeiro, disseminando sua metodologia e a missão
de promover a inclusão e a justiça social, utilizando a arte e a educação como ferramentas.
Além disso, o AfroReggae, com o apoio da Unesco, exporta suas tecnologias sociais
e expertise em gestão de conflito, usadas inicialmente no controle dos embates de facções
de traficantes rivais, para casos de conflito na Índia, Londres e Colômbia.
A forma de ação distintiva desses novos projetos sociais é uma atitude proativa,
agindo a partir e para a comunidade. Trata-se de atitude que surge agora, com maior
eficácia, no lugar das velhas políticas de reação, oposição e denúncia de abandono do
Estado. Ela privilegia a ação pedagógica em lugar do confronto agressivo, com excelentes
resultados para as comunidades pobres. De forma mais geral, o que é reivindicado é o

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 55 – 60, jul./dez. 2012.


acesso à cultura, visto como um direito básico de todos os cidadãos e identificado como
uma das grandes carências dessas comunidades e fator estratégico de qualquer projeto de
transformação social.
Algumas prioridades são estabelecidas nessas ações culturais. Uma delas é a conquista
de visibilidade por meio de divulgação intensiva da informação sobre a condição de vida
nas favelas, os desejos e as demandas dos habitantes dessas comunidades. O rap é a
mídia mais agressiva para a conquista da visibilidade, ganhando aqui um status de luta.
Além do rap, toda a cultura produzida na favela parece ter esse compromisso com a
potencialização das ações de disseminação da informação.
Outro objetivo importante do investimento político na cultura por esses atores é
a formação de quadros nas áreas da cultura e do desenvolvimento da capacidade de se
situar no mercado de trabalho, a partir de uma pedagogia de formação do empreendedor
engajado. Engajado porque se cria um compromisso para a redistribuição dos saberes
Cadernos de Estudos Culturais

adquiridos e para a formação de novos quadros nas comunidades de origem.

Empreendedorismo e literatura
O exemplo de Ferréz vai nos interessar aqui porque é o caso de uma ação individual
na favela do Capão Redondo, uma das mais violentas do país. Ferréz, que assume
58 publicamente o compromisso de sua literatura em estilo e em ativismo com o movimento
hip hop, é autor de vários livros (como Capão pecado, Manual prático do ódio, Ninguém é
A POLÍTICA HIP HOP nas favelas brasileiras

inocente em São Paulo, Os inimigos não mandam flores) e exerce uma forte liderança entre seus
“brothers” – como se denominam os habitantes de uma mesma favela. Organizou números
especiais da revista Caros Amigos, chamados Literatura Marginal, que reúnem e publicam
diversos escritores da periferia, abrindo assim espaço para os talentos locais. Graças à
projeção que sua literatura ganhou, Ferréz faz uma campanha pelo direito à cultura nas
comunidades pobres e cria, em parceria com o rapper Mano Brown, o movimento 1
DASUL, uma empresa cultural que, entre várias frentes de ação, tem sua produtora de
CD e uma marca de roupas chamada Irmandade. Hoje, essa confecção ocupa mais de
200 metros quadrados e incorpora mais duas outras confecções, produzindo uma média
de 400 peças por dia. A marca, caracterizada por ilustrações que denunciam a injustiça
social, tem uma loja no centro de São Paulo e distribuição em sete estados brasileiros,
além de deter os direitos de comercialização de outros seis grupos de rap. A grife publica
ainda panfletos antidrogas e planeja a criação de uma clínica para dependentes químicos
na favela do Capão Redondo.
Outros dois casos notáveis do papel instrumental da literatura como fator de
mobilização dos direitos culturais de uma comunidade são o “Cooperifa”, do poeta
Sergio Vaz; e o projeto de literatura de Alessandro Buzo, coordenador do movimento
“Favela Toma Conta”. A Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia, nos arredores

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 55 – 60, jul./dez. 2012.


do Capão Redondo, São Paulo, foi criada há sete anos por Sergio Vaz. Desde então, Vaz
promove os hoje famosos saraus da Cooperifa, nos quais já foram lançados mais de 40
livros de poetas e escritores da periferia, além de dezenas de discos. Os saraus acontecem
todas as quartas-feiras no bar Zé do Batidão e congregam uma média de 500 pessoas por
semana para ouvir e declamar poesia. Os efeitos da Cooperifa são vários, e por meio da
poesia muitos começaram a se interessar pela leitura, pela criação poética e pelo ingresso
na educação formal de jovens e adultos. Vaz é um ativista da poesia e já tem cinco livros
publicados, entre eles Subindo a ladeira mora a noite e Colecionador de pedras. A Cooperifa
tem ainda o projeto de levar a poesia para as escolas da periferia de São Paulo. Por
esse trabalho inovador, Sergio Vaz ganhou o prêmio Educador Inventor, concedido pela
Unesco e pelo Projeto Aprendiz.
Alessandro Buzo é o cronista da periferia mais popular do Itaim Paulista, comunidade
pobre a 38 quilômetros do centro de São Paulo. Escreveu os livros O trem – Baseado em

Cadernos de Estudos Culturais


fatos reais (2000), Suburbano convicto – O cotidiano do Itaim Paulista (2004) e Guerreira (2007).
Além da militância de divulgação da leitura e da luta pelos direitos culturais de acesso ao
livro, Buzo fundou o movimento “Favela Toma Conta”, uma articulação do hip-hop com
a literatura e a preocupação com a realidade das comunidades pobres do país, mantendo
o compromisso político de fortalecimento da auto-estima dos moradores do Itaim e
procurando a mobilização de seus pares por meio das práticas artísticas. Buzo inaugurou
na sua comunidade a loja Suburbano Convicto, onde são vendidos livros, roupas, CDs 59
e DVDs, transformando de certa forma o cenário cultural de sua favela, e promove

Heloísa Buarque de Holanda


eventos regulares como o “Suburbano no Centro” e “Encontro com o Autor”.
Pela primeira vez, como comprovam apenas esses dois exemplos pontuais, apalavra
literária ganha espaço político real e efetivo nas lutas pelos direitos e pela igualdade
socioeconômica.
Examinando o quadro político-cultural das favelas brasileiras fica clara a necessidade
urgente de novos paradigmas para a análise desses fenômenos e a importância da
multifuncionalidade das práticas culturais no mundo de hoje.
Se durante dois séculos assistimos ao triunfo da economia sobre a política, hoje
as questões culturais, aquecidas pelos crescentes conflitos sociais e pelo impacto das
possibilidades de produção e articulação proporcionadas pelas novas tecnologias digitais,
começam a se impor como eixo, político por excelência, das formas emergentes de práticas
políticas. É nesse sentido que os direitos culturais vêm sendo uma demanda nova e
significativa no panorama político e econômico global.
Como sugere Alain Touraine, a potencialidade e a diversidade dos usos da cultura
hoje em dia começam a apresentar, como desdobramento criador do “indivíduo moderno”,
o nascimento de um novo sujeito-cidadão, um sujeito de direitos que vem buscando se
constituir como ator livre por meio da luta por seus direitos políticos, sociais e culturais.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 55 – 60, jul./dez. 2012.


AGRICULTURA URBANA :
possibilidades de uma
praxis espacial?
Heloisa Soares de Moura Costa1

Cadernos de Estudos Culturais


Daniela Adil Oliveira de Almeida2

1. Introdução
Este texto explora possíveis contribuições das práticas agrícolas urbanas como
uma praxis espacial; as perspectivas de transformação da realidade, de enfrentamento 61
da crise urbana e de formulação de políticas públicas que articulem questões urbanas

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


e ambientais no contexto brasileiro. Para esta aproximação, parte-se de um referencial
conceitual lastreado no conceito de produção e apropriação do espaço, de inspiração
lefebvriana (Lefebvre, 1999; 1993), ao qual se articulam concepções de planejamento
e regulação urbano-ambientais que oscilam entre preceitos originários da chamada
economia política da urbanização, em especial associados à noção de reforma urbana, e
aqueles que estimulam formas de apropriação do espaço e de práticas da vida cotidiana
iluminadas por estratégias coletivas e iniciativas participativas.
Neste sentido, identificar, reconhecer, incentivar e aprender com práticas agrícolas
na cidade corresponde a uma das formas de pensar a cidade a partir da cultura e de
saberes em relação à terra que requerem maior visibilidade. Trata-se de resgatar o valor
de uso dos espaços, num contexto de produção do espaço regido pelo valor de troca e
pela generalização das relações mercantis. O ensaio busca contribuir para trazer um certo
encantamento para o debate das políticas e práticas urbanas centradas na ampliação da
noção de função social da propriedade de forma a abranger também as práticas agrícolas,
as áreas verdes e vegetadas, públicas, privadas e de uso comum de forma geral.

1
Heloisa Soares de Moura Costa é professora da UFMG.
2
Daniela Adil Oliveira de Almeida é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto
de Geociências da UFMG.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.


Referenciada na economia política da urbanização, a matriz da reforma urbana
que vem respaldando as políticas urbanas e o planejamento contemporâneos, tem
como pilares os conceito de direito à cidade e de função social da terra, este último
impropriamente formulado como função social da propriedade. Nesta concepção, os
vazios urbanos e áreas não construídas em geral são tidos como improdutivos e devem ser
combatidos, ou seja, as políticas e propostas devem estimular que tais áreas sejam usadas
prioritariamente, como forma de potencializar o aproveitamento dos investimentos já
realizados, inclusive a infra-estrutura já instalada por meio de investimentos públicos,
evitando assim, entre outros aspectos, a extensão progressiva do tecido urbano e, com
ela, os espaços de apropriação da renda fundiária urbana e dos processos especulativos
alimentadores da valorização imobiliária/fundiária, logo de renovadas formas de
desigualdade sócio-espacial. Mais recentemente, a incorporação de um olhar ambiental
às análises e ao planejamentos urbanos vem alterar tal visão, não só atribuindo funções
ambientais aos espaços não-construídos – permeabilidade do solo, áreas de uso comum,
Cadernos de Estudos Culturais

controle de densidades, etc. – como também incorporando ao planejamento e às políticas


públicas valores e parâmetros associados à noção de sustentabilidade das cidades. Na
mesma direção, cabe apontar a emergência de abordagens que buscam compreender a
reprodução social a partir das práticas cotidianas. Assim, a partir de questões como a
produção, acesso ou preparo dos alimentos, é possível recriar as cadeias de relações entre
produção, apropriação e consumo do espaço nas cidades.
62
Ainda que encantadora, tal perspectiva é apenas sugerida neste momento, uma vez
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

que a ênfase recai sobre algumas reflexões sobre um conjunto de experiências de agricultura
urbana e agroecologia identificadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Entre
estas, foram privilegiadas aquelas vinculadas à Articulação Metropolitana de Agricultura
Urbana – AMAU. São destacados aspectos como os agentes e saberes relacionados
à prática agrícola; os espaços utilizados; as múltiplas funções do uso agrícola do solo
metropolitano; as tendências ou possibilidades futuras que estas experiências apontam,
assim como os desafios para sua consolidação e ampliação.
Do ponto de vista do processo de urbanização, privilegia-se um olhar a partir
da periferia, aqui entendida tanto como a manifestação espacial da urbanização numa
inserção periférica ao sistema capitalista, quanto como o processo de produção da periferia
metropolitana contemporânea, pobre e rica, articulando dialeticamente territórios
populares e formas elitizadas de parcelamento do solo na forma do que se convencionou
chamar de condomínios. Em termos territoriais, assiste-se principalmente nas regiões
metropolitanas, a um inegável processo de homogeneização na produção do espaço, com
crescente comprometimento das áreas periféricas com o parcelamento do solo para uso
urbano, elevando substancialmente o preço da terra e ameaçando as possibilidades de
sobrevivência de atividades agrícolas, de pequena produção tradicional, do artesanato,
enfim de práticas e processos associados à economia popular. Simultaneamente há

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
um conjunto significativo de lotes e imóveis vagos neste tecido urbano estendido, que
tanto pode ser visto como um problema, uma distorção do processo de produção do
espaço, como pode ser visto como uma potencialidade para eventuais usos cultural e
ambientalmente mais associados à reprodução da população.
Neste amplo tecido urbano, há pontos também de resistência, de permanências
– sítios, quilombos, espaços de produção agrícola, etc. Há também o (res)surgimento
de práticas tidas como tradicionais, mas que podem se articular com formas mais
contemporâneas de ocupação do espaço. As áreas e práticas de agricultura urbana são
um contundente exemplo destas possibilidades, como se argumenta a seguir, só não são
mais eloquentes pois para sobreviver tem que enfrentar entraves e resistências associados
a uma inserção subalterna, periférica mesmo à economia urbana. Apesar disto o ensaio
busca reforçar que as práticas agrícolas, ao serem visibilizadas e traduzidas, possibilitam
uma forma de apropriação da cidade que reforça e subverte o sentido excessivamente

Cadernos de Estudos Culturais


economicista da função social da propriedade, permitindo ir além... rumo ao direito à
cidade.

2. Agricultura urbana: exercitando a tradução


Boaventura de Sousa Santos argumenta que as ciências sociais estão passando por uma
crise geral, associada às influências da concepção ocidental de racionalidade, denominada
pelo autor de razão indolente (SANTOS, 2007, p.25), que manifesta-se, entre outras formas, 63

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


“no modo como resiste à mudança das rotinas, e como transforma interesses hegemônicos
em conhecimentos verdadeiros” (SANTOS, 2008, p.97), no conceito de totalidade
e na concepção de que a história tem um sentido e uma direção. Uma ideia central no
pensamento de Santos é que a experiência social no mundo é muito mais ampla e variada do
que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante e por isso
há um desperdício da riqueza social que está em curso no mundo de hoje. Nestes marcos,
as ciências sociais devem ser reinventadas e são parte do problema e não da solução, uma
vez que contribuem para esconder ou desacreditar as alternativas. “Há produção de não
existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível
ou descartável de modo irreversível. O que une as diferentes lógicas de produção de não
existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional” (SANTOS,
2008, p. 102).
Santos propõe um outro modelo de racionalidade, designado como razão cosmopolita,
que se fundamenta em três procedimentos meta-sociológicos nos quais a expansão do
presente (sociologia das ausências) e a contração do futuro (sociologia das emergências)
criam o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social
que está em curso no mundo de hoje e evitar o desperdício da experiência. “Cada uma à
sua maneira contribuem para desacelerar o presente, dando-lhe um conteúdo mais denso
e substantivo do que o instante fugaz entre o passado e o futuro” (SANTOS, 2008, p.120).
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
A sociologia das ausências investiga o que é ativamente produzido como não existente
e está disponível aqui e agora, ainda que silenciado, marginalizado ou desqualificado.
Amplia o presente ao expandir as experiências sociais já disponíveis pela via da ecologia
dos saberes, dos tempos, das experiências sociais possíveis. A sociologia das emergências
investiga as alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas. Contrai o
futuro ao torná-lo escasso, objeto de gestão e cuidado dos indivíduos e expande o domínio
das experiências sociais possíveis por via da amplificação simbólica, da “atenção excessiva”
às tendências ou possibilidades futuras de determinados saberes, práticas e agentes. Faz
com que o futuro se transforme num fator de ampliação do presente, já que é no presente
que se cuida do futuro.
Como esta imensa diversidade de experiências não pode ser explicada adequadamente
por uma teoria geral, é proposto o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar
uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua
Cadernos de Estudos Culturais

identidade. Segundo Santos (2008, p.129), “a tradução é, simultaneamente, um trabalho


intelectual e um trabalho político. E é também um trabalho emocional porque pressupõe
o inconformismo perante uma carência decorrente do carácter incompleto ou deficiente
de um dado conhecimento ou de uma dada prática”.
A carência de conhecimentos sobre a relação entre a agricultura e a cidade observada
na literatura que trata das abordagens contemporâneas sobre as transformações sócio-
64 espaciais no contexto brasileiro indica um desconhecimento e um desperdício da riqueza
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

acumulada nos saberes, práticas e agentes da agricultura urbana e contribui para que estas
experiências sejam consideradas muito frágeis, localizadas ou irrelevantes.
As práticas agrícolas urbanas são experiências disponíveis aqui e agora e a amplificação
simbólica das tendências e possibilidades que apontam pode contribuir para ampliar o
campo das alternativas possíveis para a politização da vida cotidiana, para o enfrentamento
da crise urbana e para a formulação de políticas públicas que articulem questões urbanas e
ambientais em regiões metropolitanas.
Este ensaio pretende contribuir para uma maior interlocução entre o trabalho
intelectual e político e para o necessário exercício da tradução entre os saberes e práticas
exercidos por diferentes grupos sociais envolvidos com a agricultura urbana na Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e as formulações teóricas sobre a produção do
espaço e as concepções contemporâneas das políticas urbanas e ambientais.

3. Agentes, saberes e práticas de agricultura urbana


Em que pese a carência de abordagens contemporâneas sobre as práticas agrícolas
urbanas no contexto brasileiro e a necessidade de tradução entre as práticas e elaborações
teóricas nos termos propostos acima, observa-se atualmente um interesse crescente pela
temática da agricultura urbana. Este interesse se expressa na realização de eventos e

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
espaços de debate e formulação de políticas, especificamente voltados para esta temática,
promovidos por organizações sociais, universidades e diferentes setores de governo.
No âmbito internacional, a temática da agricultura urbana ganha maior expressão no
ano de 1996, com a divulgação do relatório “Urban Agriculture, Food, Jobs and Sustainable
Cities” durante a realização da II Conferência Mundial sobre os Assentamentos Humanos
- HABITAT II, em Istambul. Atualmente a agricultura urbana faz parte da agenda de
organizações internacionais como a FAO (Food and Agriculture Organization of the
United Nations) e a RUAF Foudation (Resource Centres on Urban Agriculture and Food
Security) que tem apoiado especialmente a documentação de experiências e a produção de
informações sobre o tema.
Não existe uma referência universalmente acordada sobre o conceito da agricultura
urbana (SANTANDREU; LOVO, 2007). No Brasil, uma formulação conceitual bastante
conhecida se encontra no documento resultante de uma pesquisa realizada em 11 regiões

Cadernos de Estudos Culturais


metropolitanas brasileiras, em 2007, coordenada pela organização REDE – Rede de
Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Belo Horizonte/MG) e pelo Instituto IPES -
Promoção do Desenvolvimento Sustentável (Lima/Peru):
a agricultura urbana é conceito multidimensional que inclui a produção, a
transformação e a prestação de serviços, de forma segura, para gerar produtos
agrícolas (hortaliças, frutas, plantas medicinais, ornamentais, cultivados ou
advindos do agroextrativismo, etc) e pecuários (animais de pequeno, médio e 65
grande porte) voltados para o auto consumo, trocas e doações ou comercialização,

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


(re)aproveitando-se, de forma eficiente e sustentável, os recursos e insumos
locais (solo, água, resíduos, mão-de-obra, saberes, etc.). Essas atividades podem
ser praticadas nos espaços intra-urbanos ou periurbanos, estando vinculadas
às dinâmicas urbanas ou das regiões metropolitanas e articuladas com a gestão
territorial e ambiental das cidades. Essas atividades devem pautar-se pelo respeito
aos saberes e conhecimentos locais, pela promoção da equidade de gênero através
do uso de tecnologias apropriadas e processos participativos promovendo a gestão
urbana social e ambiental das cidades, contribuindo para a melhoria da qualidade de
vida da população urbana e para a sustentabilidade das cidades (SANTANDREU;
LOVO, 2007, p.13, tradução nossa).

A construção do conceito, entretanto, permanece em aberto, refletindo uma disputa


por significado que pode estar relacionada a diferentes utopias de cidade, podendo tanto
corroborar concepções de cidades democráticas e cooperativas, que reconhece interesses
historicamente invisibilizados nas cidades, como representar mais um discurso que oferece
respostas consensuais aos problemas urbanos e favorece a imagem de administrações públicas
orientadas por um modelo empresarial de gestão da cidade (ALMEIDA, 2011; COUTINHO;
COSTA, 2011). Ainda que o conceito ainda se encontre em construção, o termo agricultura
urbana tem sido utilizado de forma generalizada com diferentes enfoques e interesses que
estão relacionados à pluralidade das iniciativas de AU realizadas por diferentes atores.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.


Na RMBH, são diversas as manifestações das práticas agrícolas, desde o âmbito
doméstico e as iniciativas comunitárias em vilas e favelas, até unidades familiares e
empreendimentos comerciais que abastecem mercados com produtos agropecuários. São
experiências que propiciam um outro olhar sobre o uso do solo urbano e metropolitano,
sobre a relação entre espaços construídos e espaços naturais, entre espaços públicos
(ou de uso público) e espaços privados dentro e no entorno das cidades. Estas práticas
cotidianas e experiências cultivadas nos diferentes espaços urbanos na maior parte das vezes
não se encontram organizadas formalmente, mas vale destacar a importância de algumas
iniciativas apoiadas ou promovidas por movimentos sociais, universidades e ONGs, como a
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE)3 e o Grupo Aroeira – Ambiente,
Sociedade e Cultura (UFMG)4 que contribuem para dar visibilidade e potencializar estes
saberes e práticas (ALMEIDA, 2007; COUTINHO, 2010; COUTINHO; COSTA, 2011).
Observa-se que há uma certa trajetória de formulação e implantação de políticas
Cadernos de Estudos Culturais

públicas nas três esferas de governo para incentivar a prática da agricultura urbana, ainda que
até o momento se mostrem insuficientes em termos de criar condições para a manutenção
destas práticas. No plano federal, a formulação de uma Política Nacional de Agricultura
Urbana e Periurbana - PNAUP - é coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome - MDS - desde 2007. Em Minas Gerais, são exemplos a aprovação da Lei
15.973/2006 e regulamentação (Decreto 44.720/2008), que dispõe sobre a Política Estadual
66 de Apoio à Agricultura Urbana – PEAU - e a criação da Coordenadoria de Agricultura
Urbana vinculada à Sub-Secretaria de Agricultura Familiar do Governo do Estado em 2011.
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

No âmbito municipal, destacam-se a implantação dos Centros de Vivência Agroecológica –


CEVAEs - em Belo Horizonte, desde 1995 e o Centro Municipal de Agricultura Urbana e
Familiar – CMAUF - em Contagem, desde 2010. Diretrizes para a elaboração de políticas de
agricultura urbana foram incorporadas na elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento
Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH), finalizado em 2010
(ALMEIDA, 2007; ALMEIDA, 2011; BARBOSA, 2002; UFMG, 2011).

3
A Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE) é uma organização não governamental criada
em 1986, que atualmente promove a agroecologia em comunidades rurais do Leste de Minas, em comunidades
urbanas de Belo Horizonte e de alguns municípios da região metropolitana. Desde 1995 desenvolve ações
relacionadas à agricultura urbana por meio do apoio técnico e sistematização de experiências agroecológicas
e de produção em espaços urbanos; organização de grupos de base; formação de jovens e adultos; realização
de encontros e seminários; além da atuação em redes, fóruns e espaços nacionais e internacionais para a
articulação política de organizações e movimentos sociais e a incidência em políticas públicas em diferentes
âmbitos.
4
O Grupo Aroeira – Ambiente, Sociedade e Cultura (UFMG), criado em 2006, é formado por graduandos,
graduados, mestrandos, mestres e doutorandos de diversos cursos da UFMG, com experiências
interdisciplinares na área socioambiental e envolvidos com outros grupos e movimentos populares. A
temática da agricultura urbana é um eixo norteador das ações de extensão e pesquisas do Grupo, que tem
o objetivo de levantar, discutir e realizar ações na área socioambiental, contribuindo para o diálogo entre a
Universidade e a sociedade. O grupo destaca a importância acadêmica e social da agricultura urbana e a pouca
tradição de estudos do tema na UFMG.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
Neste cenário em que se observa a ocorrência de práticas espontâneas e o
desenvolvimento de ações institucionais, encontra-se também em curso na RMBH a
constituição de um movimento social em torno da temática da agricultura urbana, que tem
como um dos espaços de referência a Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana –
AMAU, criada em 2004. Participam desta articulação organizações da sociedade civil, como
associações comunitárias; ONGs, pastorais sociais, movimento feminista, de luta pela
terra e por moradia; coletivos de permacultura e alimentação saudável; empreendimentos
de economia solidária e grupos comunitários informais, além de estudantes e pessoas
interessadas na temática. A apropriação conceitual da agricultura urbana na AMAU dialoga
com a formulação mencionada acima, mas é ampliada, revista e questionada a partir da
interação permanente entre os diferentes atores envolvidos e da inserção política de cada
organização participante. As bases teóricas e metodológicas da agroecologia (compreendida
como um modelo de produção agrícola que incorpora um viés ambiental e social e também
como um enfoque científico que busca estabelecer novas bases para um novo modelo

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de desenvolvimento rural), além das inúmeras experiências em andamento no Brasil são
contribuições importantes nesta construção.
A dinâmica da AMAU revela dimensões pouco conhecidas das práticas agrícolas
urbanas e possibilidades de convergência e alianças estratégicas entre organizações do
campo e da cidade que buscam a transformação social e o fortalecimento da organização
popular e da ação política a partir da articulação entre ações cotidianas (ALMEIDA; 67
2011). As iniciativas vinculadas à AMAU apontam que as práticas agropecuárias são uma

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


realidade na RMBH. São exemplos da diversidade de atividades de produção (produção e
beneficiamento de hortaliças, verduras e grãos, a criação de animais de pequeno, médio e
grande porte, e a produção, extrativismo e beneficiamento de plantas medicinais, dentre
outras) e comercialização (pontos de venda locais, redes de produção e consumo, mercados
institucionais, dentre outras) e da pluralidade de espaços onde ocorrem estas atividades. A
produção agrícola dentro das cidades acontece em espaços privados familiares, institucionais
e em espaços públicos. Nas zonas rurais dos municípios metropolitanos a produção é
observada em assentamentos da reforma agrária, propriedades de agricultores/as familiares,
comunidades quilombolas, terreiros, dentre outras situações. (SANTANDREU; LOVO,
2007; PBH, 2008).
A variedade de espaços e atividades remete a uma diversidade de identidades e sujeitos
que se dedicam às práticas agrícolas na RMBH, embora, em muitos casos a agricultura não
seja sua principal ocupação ou fonte de renda.
As experiências de agricultura urbana envolvem uma riqueza de saberes que podem
estar relacionados à origem rural destes sujeitos, mas que também são recriados a partir
da participação em cursos e do acesso a informações em revistas, livros, programas de
televisão e rádio e, mais recentemente, na internet. Os saberes ligados à vivência rural
anterior podem estar relacionados a dinâmicas de transmissão de conhecimentos da
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
agricultura familiar ou camponesa onde se aprendia com os pais, mães ou avós o cultivo
de roças e dos quintais, os cuidados na criação de animais, a identificação de plantas
medicinais nativas e o uso de remédios caseiros. Outros relatos revelam a influência do
modelo da revolução verde ou do agronegócio, em que as técnicas de produção e a
relação com os recursos naturais são mediadas pela assistência técnica oficial e pelo uso
de insumos externos.
Além da inegável presença de migrantes rurais e agricultores familiares em Belo
Horizonte, é comum observar que a cada dia mais pessoas de diferentes idades e classes
sociais, mesmo sem uma vivência anterior no campo, começam a se dedicar ao cultivo
de alimentos, plantas medicinais e ornamentais como uma opção de vida mais saudável
na cidade.
Na trajetória da AMAU observa-se a incorporação crescente de sujeitos e
organizações sociais que tem em comum o envolvimento com as práticas agrícolas no
Cadernos de Estudos Culturais

contexto metropolitano e a inserção em dinâmicas comunitárias ou movimentos sociais.


Entre 2010 e 2012 mais de 30 organizações5 participaram dos encontros e atividades
realizadas pela AMAU6, nos quais se observa uma intensa troca de saberes, resultantes da
praxis de cada participante e uma disposição para conviver com a diferença, esclarecer o
que une e o que separa cada organização e definir possíveis alianças.
Os encontros e atividades de formação combinam visitas aos locais das experiências,
68
exposições teóricas, informes sobre ações dos movimentos sociais e sobre políticas
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

públicas, buscando colocar as práticas, saberes e agentes da agricultura urbana no centro


do debate e confrontá-los com o atual modelo de desenvolvimento. As reflexões envolvem
a compreensão do processo de urbanização, da lógica de produção do espaço urbano e
das relações contemporâneas entre campo e cidade. A multifuncionalidade das práticas
da agricultura urbana permite ainda articular temas transversais como a relação estreita
entre os sistemas de agricultura, alimentação e saúde e a imposição de valores e padrões

5
Grupos comunitários (16): Semear e Colher, Grupo Comunitário Agricultura Urbana e Segurança Alimentar
- CAUSA, Millefolium, Nossa Horta, Terra Nossa, Uma esperança que brota, Horta Comunitária Vila Santana
do Cafezal, ITAI, Grupo de Agricultura Urbana do Capitão Eduardo, Jardim produtivo, Semear/Ervanário,
Farmácias Paulo VI, Quilombo Urbano, Quintais Baixo Onça, Beira Linha; Fruto da União. Associações
comunitárias (03): COMUPRA – Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu, ASPHAV - Ass.
Com. Vale do Jatobá, ASOSC – Ass. Com. Cardoso; Pastorais e movimentos sociais (07): Brigadas populares,
Marcha Mundial das Mulheres, MST – Movimento Sem Terra, MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas
e Favelas, Vicariato, CARITAS, Ocupação Dandara; ONGs (06): REDE, Bionúcleo, Kairós, EcoVida São
Miguel, CEPI - Centro de Estudos, Pesquisa e Investigação de Ribeirão das Neves, CEDEFES – Centro
de Documentação Eloy Ferreira da Silva; Redes e coletivos (05): Rede Terra Viva, Grupo Aroeira, Grupo
Alimento Vivo, RECID – Rede de Educação Cidadã, AMA – Articulação Mineira de Agroecologia.
6
Entre fevereiro de 2010 e setembro de 2012 foram realizados 16 encontros da AMAU, com uma média
de 35 participantes em cada. No mesmo período, várias ações foram realizadas, como mutirões, oficinas,
intercâmbios, participação em eventos e cursos de formação que abordaram dimensões políticas,
metodológicas e tecnológicas da agricultura urbana e chegaram a envolver mais de 300 participantes de
aproximadamente 08 municípios da RMBH.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
de consumo que limitam o acesso da população urbana de baixa renda à alimentação e
saúde de qualidade.
Assim, assentados da reforma agrária se surpreendem com a solidariedade das/os
moradores/as e a biodiversidade encontrada em pequenos quintais das vilas e favelas,
que por sua vez, passam a admirar e reconhecer as formas de organização e conquistas
dos movimentos de luta pela terra. Grupos de consumidoras/es de alimentos saudáveis
identificam a potencialidade de ampliação da produção agrícola na região metropolitana,
enquanto agricultores/as familiares percebem que existem alternativas de mercados e
relações diretas com consumidores. Lideranças de movimentos de luta por moradia se
sensibilizam com testemunhos de vida que atestam a relevância da relação cotidiana com
terra para a manutenção da saúde e bem estar na cidade, ao mesmo tempo em que
contribuem para politizar o debate sobre a função social da propriedade. Estudantes
e professoras/es universitários reconhecem novas conexões entre pesquisa e extensão.

Cadernos de Estudos Culturais


As contribuições do chamado “campo agroecológico”, ainda muito restritas a debates
ligados ao desenvolvimento rural e à questão agrária, são resignificadas para os contextos
urbanos, aportando tecnologias apropriadas para o uso “sustentável” do solo urbano
e dos recursos naturais e ampliando a leitura crítica dos padrões atuais de produção e
consumo de alimentos.
A constatação de que a maioria das experiências de agricultura urbana tem em
comum uma presença marcante das mulheres, traz o risco de reforçar os papéis de gênero 69

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


socialmente construídos que atribuem às mulheres o trabalho doméstico relacionado à
alimentação e saúde da família e o trabalho de cuidados (na vida comunitária, na proteção
da natureza...). Este fato também tem sido objeto de reflexão nos debates no âmbito da
AMAU, e gerado propostas que visam a socialização do trabalho doméstico (na família,
na comunidade, por meio da ampliação de equipamentos públicos de educação e saúde);
a visibilidade e qualificação das experiências de agricultura urbana protagonizadas pelas
mulheres (sistematização de experiências, materiais de divulgação, cursos de capacitação,
formação de lideranças, etc) e para uma maior autonomia financeira (cursos de gestão,
inserção em redes de produção e consumo, remuneração de educadoras comunitárias,
etc).
A dinâmica da AMAU permite aumentar o campo das experiências que são
hoje possíveis e disponíveis e pode ser considerada como um possível “exercício de
tradução”, nos termos propostos por Santos (2008) uma vez que tem proporcionado
uma oportunidade de criar um entendimento mútuo entre diferentes experiências,
sem destruir a identidade de cada uma delas. Este processo resultou, no final de 2011,
na elaboração de uma pauta política7 que expressa uma convergência possível entre

7
A pauta política da AMAU apresenta ao mesmo tempo os desafios e propostas para o fortalecimento da
agroecologia na RMBH; orientam a organização interna da AMAU e apontam canais de diálogo com outros

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.


organizações do campo e da cidade e indica novas possibilidades de ampliar um trabalho
intelectual e político por meio da interlocução com outras organizações e movimentos
sociais e pesquisadores comprometidos com as questões urbanas na RMBH.

Foto arquivo Rede de Intercâmbio


Foto arquivo Rede de Intercâmbio
Caminhada de identificação de plantas na Mata Encontro da AMAU na horta comunitária
da Baeia - Belo Horizonte, 2009 Frutos da União - Belo Horizonte, 2012
Cadernos de Estudos Culturais

Foto arquivo Rede de Intercâmbio

Foto arquivo Rede de Intercâmbio


70
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

Quintal na Ocupação Dandara Encontro da AMAU na horta comunitária da


Belo Horizonte, 2011 Vila Cafezal - Belo Horizonte, 2011

Foto arquivo Rede de Intercâmbio


Foto Cassandra Pereira

Jardim Produtivo, Barreiro Feira Terra Viva, UFMG


Belo Horizonte, 2011 Belo Horizonte, 2011

movimentos, fóruns e redes da sociedade civil; setores de governo: 1) acesso à terra; 2) acesso aos recursos
naturais (água e biodiversidade); 3) assessoria técnica com enfoque agroecológico, popular e de gênero; 4)
organização de base e auto-organização das mulheres; 5) formação política e capacitação técnica; 6) fomento
para ampliação da produção agroecológica; 7) apoio ao escoamento e comercialização da produção; 8) apoio
a disseminação e consolidação das experiências, considerando as múltiplas funções da agricultura urbana;
9) apoio a iniciativas de comunicação popular; e 10) realização de pesquisas sobre a agricultura urbana e
agroecologia na região.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
4. Encantando o urbano e transformando o olhar
do planejamento e da análise urbana.
No contexto atual se observa um conflito de paradigmas no qual parecem prevalecer
tendências homogeneizantes de urbanização e faltar alternativas a modos de vida mais
sustentáveis em regiões metropolitanas. A aproximação de campos do conhecimento
que normalmente não dialogam, como o campo agroecológico e o campo das práticas
e estudos urbanos pode contribuir para ampliar a compreensão sobre os limites e
potencialidades das práticas agrícolas urbanas. Da mesma forma pode contribuir para
maior precisão conceitual sobre o que seja o urbano, o periurbano ou o rural, bem como
para uma identificação mais precisa de quem são os agricultoras/es urbanas/os no
contexto brasileiro.
A reflexão crítica sobre as práticas e o uso agrícola do solo urbano passa por
compreender as transformações em curso no espaço urbano e as tendências que alguns

Cadernos de Estudos Culturais


estudos urbanos contemporâneos apontam (MONTE-MÓR, 1994; COSTA; COSTA,
2005). A incorporação de formulações conceituais originárias do campo ambiental nesta
aproximação também se mostra relevante, uma vez que muitas práticas de agricultura
urbana explicitam a associação imbrincada entre questões urbanas e questões ambientais.
Para que sejam avaliadas as potencialidades que as práticas agrícolas urbanas
representam é preciso ultrapassar tanto a cultura anti-urbana ainda prevalente no campo 71
ambiental, como a concepção de que as atividades agrícolas nas cidades são meros

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


resquícios de atividades rurais em vias de serem destruídas pelo avanço do tecido urbano
e considerar que estas práticas são e devem ser parte do espaço urbano. Isto requer
uma mudança cultural e epistemológica mais abrangente, tanto nas formas de análise
dos resultados das pesquisas nestas áreas, quanto no arcabouço teórico-conceitual
disponível para lidar com elas. Pesquisas recentes com assentados da reforma agrária na
RMBH mostraram que as famílias tem múltiplas inserções no universo do trabalho, tanto
aqueles tidos como rurais – agrícolas – como urbanos, fundamentais como estratégias
complementares de sobrevivência na cidade (SILVA, 2005).
O conceito de espaço-tempo diferencial Lefebvreano provoca a interrogação sobre
quais seriam as práticas espaciais que nascem do espaço abstrato ou são atravessadas por
ele e carregam a possibilidade de conduzir à mudança social, frente à incapacidade do
Estado e do capital manterem as contradições do espaço por eles mesmos produzidas.
Seriam estes espaços agrícolas metropolitanos espaços diferenciais que são
atravessados ou nascem a partir das contradições do espaço abstrato? Espaços de
representação que tentam modificar e apropriar o espaço dominado? A agricultura
urbana é uma alternativa de transformação da vida cotidiana e, consequentemente, de
alteração das bases sobre as quais se estrutura o modo de produção capitalista? Em
que medida transformações na produção do espaço podem contribuir na construção de
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
novas relações sociais e mesmo se o uso agrícola do solo metropolitano pode representar
uma forma de produção não capitalista do espaço?
A politização das experiências de agricultura urbana (como prática coletiva, centrada
no valor de uso, num cotidiano não dirigido, que nasce de um espaço vivenciado) pode
representar uma alternativa de transformação da vida cotidiana e de alteração das bases
sobre as quais se estrutura o modo de produção capitalista?
Certamente existem inúmeras questões a serem tratadas na complexa realidade das
regiões metropolitanas, mas deveriam ser melhor avaliadas e estudadas as possibilidades
destas práticas como um aspecto relevante para a questão ambiental contemporânea e
como uma mediação entre o nível micro, ligado a aspectos da vida cotidiana como padrões
de consumo de alimentos, modos de vida saudáveis, e o âmbito das grandes questões
urbanas, como o abastecimento de alimentos, a habitação e o saneamento básico.
Numa abordagem que busca superar visões estereotipadas e dualistas das relações
Cadernos de Estudos Culturais

campo e cidade, espaço natural e construído, Monte-Mór (1994) levanta uma reflexão
sobre a dimensão urbana e metropolitana da questão ambiental, orientada pelo conceito da
urbanização extensiva. Analisando a dinâmica contemporânea da organização do espaço
social e o processo de urbanização nas cidades brasileiras, o conceito de urbanização
extensiva é formulado por Monte-Mór (idem) para ressaltar o avanço do tecido urbano
sobre o espaço rural e regional, para além dos limites das cidades e uma espacialidade
72
resultante da extensão das condições gerais de produção (e de consumo) urbano-
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

industriais para periferias próximas e distantes, mas que também carrega a possibilidade
de organização política própria da cidade e outras formas de cidadania.
Monte-Mór considera o urbano no mundo contemporâneo como uma síntese da
dicotomia cidade-campo. Nesta perspectiva, os limites e as características entre o campo
e a cidade estão cada dia mais difusos e integrados, mas “se o consumo urbano-industrial
atingiu os rincões mais distantes, grandes áreas metropolitanas contém ruralidades,
resquícios de vida campestre, formas outrora arcaicas e hoje revalorizadas e reconhecidas
como alternativas para a vida contemporânea” (MONTE-MÓR, 2005, p.444).
O autor aborda a visão difundida das cidades e das metrópoles como foco dos
problemas ambientais ou como espaços mortos do ponto de vista ecológico, e a
falta de percepção das virtualidades integradoras da natureza e do habitat e diferentes
possibilidades de diversidade cultural e biológica nos contextos metropolitanos. Ele ainda
destaca que apesar do crescente debate sobre a importância da qualidade de vida, pouca
atenção tem sido dada sobre sua relação com o resgate do valor de uso do espaço urbano
e sentido social da propriedade e com possíveis efeitos da manutenção de manchas de
espaço natural e biodiversidade (MONTE-MÓR, 1994).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
Situando a questão ambiental como uma questão central da relação cidade-campo
e das possibilidades de aprimoramento das formas de ocupação e produção do espaço
social, Monte-Mór sugere que “à urbanização extensiva é necessário corresponder uma
naturalização extensiva, tanto para enfrentar problemas urbanos e ambientais ao nível
micro, da vida cotidiana, quanto para enfrentar questões globais da crise ambiental e
societal” (1994, p.178).

5. Considerações finais
A análise teórica das relações contemporâneas entre a agricultura e a produção do
espaço urbano é ainda limitada. Contrapondo a riqueza de experiências vinculadas à AMAU
observa-se uma carência de conhecimentos sobre as relações contemporâneas entre as
práticas agrícolas e a produção do espaço urbano. Ainda que a definição conceitual e dos
limites do que seja campo ou cidade na atualidade seja difusa e difícil, esta dicotomia ainda

Cadernos de Estudos Culturais


se expressa fortemente na academia, nas políticas públicas e nas lutas dos movimentos
sociais e aparece de forma acirrada entre estudiosos da questão agrária, que “parecem não
ter sido capazes de perceber as grandes transformações do campo no Brasil”, e estudiosos
da questão metropolitana e urbana, que “muitas vezes não puderam transcender os limites
dos perímetros urbanos para perceber o processo de urbanização na sua dimensão regional
e mesmo nacional, ficando restritos às problemáticas locais” (MONTE-MÓR, 2006, p.77).
Assim, se de um lado estudos sobre a questão agrária não priorizam a agricultura nas 73
cidades, por outro, a atividade agrícola não é tema de estudos urbanos.

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


A pluralidade das experiências já identificadas no campo da agricultura urbana
indica a existência de uma diversidade de agentes, saberes e espaços relacionados à prática
agrícola na RMBH, que revelam modos de vida contemporâneos que não se enquadram
inteiramente nas abordagens dicotômicas das relações campo cidade e possibilidades de
alianças estratégicas entre organizações do campo e da cidade que buscam fortalecer a
organização popular e a luta por transformações sociais. A manutenção dos saberes
acumulados por estas comunidades ao longo de gerações são propiciadas por suas relações
com os remanescentes de vegetação nativa, com a biodiversidade e os recursos hídricos que
ainda persistem na região, hoje integrados e, portanto parte do espaço urbano.
A trajetória da AMAU resultou na construção de uma agenda política e uma pauta
de reivindicações que orientam o diálogo com outros movimentos, fóruns e redes da
sociedade civil e apresentam propostas concretas para a formulação e implementação
de políticas públicas intersetoriais que se direcionam a diferentes setores das três esferas
federativas e demandam e um canal de participação direto e efetivo com a sociedade civil
para o monitoramento destas políticas. Esta pauta política evidencia a relação das práticas
agrícolas urbanas com outras temáticas como saúde coletiva/plantas medicinais, soberania
e segurança alimentar, feminismo, economia popular e solidária, reforma agrária e reforma
urbana.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
Na perspectiva da urbanização extensiva, a contradição cidade-campo tende a se
dissolver e a se combinar no urbano, “ao campo se impõe outra contradição, desta vez
entre a urbanização, que privilegia as questões ligadas à reprodução da vida e à lógica
imposta pelo espaço social, produzido, gerido e apropriado acima de tudo como valor
de uso coletivo; e a industrialização, que privilegia a questões da produção e a lógica
imposta pelo espaço abstrato ou econômico, sob o domínio da acumulação e do valor
de troca” (MONTE-MÓR, 2006, p.76). Espera-se que este enfoque permita inscrever
as experiências agrícolas urbanas como possibilidades de praxis espacial no “urbano
contemporâneo”, da “sociedade urbana” real e virtual formulada por Lefebvre (1999).
Para tanto, como já mencionado, cabe ultrapassar a concepção de que as atividades
agrícolas em regiões metropolitanas são apenas “resquícios” ou formas arcaicas prestes a
serem corroídas pelo tecido urbano (LEFEBVRE, 1999, p.15).
As reflexões realizadas no âmbito da AMAU apontam que a difusão da agroecologia
Cadernos de Estudos Culturais

nas metrópoles contribui para uma melhor interação entre espaço natural e social e uma
rearticulação do equilíbrio de ecossistemas urbanos, através da conservação dos recursos
naturais (água, solo e biodiversidade), da manutenção de áreas permeáveis, da ampliação
das áreas verdes, da ciclagem de resíduos, além da diminuição dos riscos potencializados
por eventos climáticos extremos. A produção agroecológica nas metrópoles, de modo
descentralizado, pode também alterar a relação da população com o alimento, ampliando
74 a disponibilidade local e o acesso a alimentos saudáveis, favorecendo a relação direta entre
consumidoras/es e produtoras/es e uma maior autonomia financeira das/es agricultoras/
AGRICULTURA URBANA: possibilidades de uma praxis espacial?

es familiares. O manejo comunitário de áreas verdes urbanas e metropolitanas pode


também trazer novas perspectivas de uso para os espaços públicos e para se re(pensar) a
cidade como espaço possível de convivência urbana (ALMEIDA, 2011).
Essas reflexões sugerem novos enfoques contemporâneos para a articulação entre
questões urbanas e questões ambientais, ao permitir a mediação entre o nível micro da
análise, ligada a aspectos da vida cotidiana, como os padrões de consumo de alimentos,
modos de vida saudáveis, a destinação dos resíduos, com as grandes questões ditas urbanas,
como o abastecimento de alimentos, a habitação, o saneamento básico (MONTE-MÓR,
1994, p.176).
A demanda pelo uso agrícola do solo urbano e metropolitano pode contribuir
nas conexões entre os debates sobre a importância da qualidade de vida nas cidades
e sua relação com o valor de uso do espaço urbano e a função social da propriedade.
Seguramente outros aspectos devem ser considerados neste cenário, como os conflitos
de uso agrícola do solo com outras demandas sociais (moradia e equipamentos coletivos,
por exemplo), as diferenças e particularidades das zonas urbanas e zonas rurais dos
municípios e principalmente as demandas capitalistas pelo uso do solo, fundamentais na
definição do preço da terra urbana e na produção capitalista do espaço urbano.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v.4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.
A manutenção e a ampliação das práticas agroecológicas na RMBH enfrentam
fatores desfavoráveis, como o alto valor da terra e dos impostos territoriais; a crescente
transformação das áreas rurais em áreas urbanas através dos planos diretores; a pressão
sobre o solo urbano para a construção de novas unidades habitacionais; a degradação e
contaminação dos recursos naturais (água, terra e ar); a pouca presença de organizações de
base e outras institucionalidades relacionadas à agricultura; além das restrições para acessar
as políticas públicas existentes de apoio à agricultura familiar (ALMEIDA, 2011).
Na raiz do problema encontramos a instituição da propriedade privada e suas
consequências, que determinam quem tem o direito de usar a terra ou os recursos necessários
para pagar por este uso e o predomínio do valor de troca em relação ao valor de uso da
terra, resultantes da geração de mais-valias fundiárias urbanas no contexto de produção
capitalista do espaço urbano. Os movimentos e fóruns de reforma urbana já denunciam
as desigualdades resultantes da mercantilização da terra e apresentam em suas plataformas

Cadernos de Estudos Culturais


propostas para a efetivação do direito à cidade e para o cumprimento da função social da
propriedade. Entretanto estas plataformas não contemplam explicitamente as demandas
e necessidades específicas das práticas agrícolas urbanas e a diversidade de situações onde
estas práticas são observadas.
São também ainda pouco exploradas as possibilidades de utilização de instrumentos
do planejamento urbano, como o plano diretor e a legislação urbanística com o objetivo
de incorporação permanente da atividade agrícola nas cidades. Apesar de ser uma prática 75

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida


muito antiga nas cidades, a relação entre a agricultura urbana e o planejamento urbano
ainda é uma novidade.
A destinação de áreas públicas para o cultivo agrícola intra-urbano (por meio da
legislação de uso e ocupação de solo) e a promoção de políticas públicas poderia compor
um plano de redistribuição dos benefícios da urbanização ampliando o acesso e o uso
do solo urbano por segmentos da população que não detém a posse da terra e nem tem
recursos para pagar pelo seu uso? Quais seriam os efeitos de amplas políticas de incentivo à
produção agrícola em espaços públicos como escolas, creches, centros de saúde, sobras de
parcelamento? Que sentidos a ampliação destas políticas agregariam ao valor de uso do solo
urbano, ao reconhecimento e fortalecimento das práticas de comunidades quilombolas,
terreiros de candomblé, raizeiras e raizeiros, agricultaras/familiares que vivem na RMBH?
Retomando o argumento de Boaventura, “a tradução é o procedimento que permite
criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como
as possíveis” (SANTOS, 2008, p.124) e neste sentido, o conhecimento das necessidades
e aspirações que surgem a partir das práticas de agricultura urbana e a argumentação
sobre sua potencialidade como uma alternativa ao processo hegemônico de urbanização
envolve o conhecimento recíproco entre os movimentos e organizações sociais e diferentes
abordagens teóricas.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.


A diversidade cultural e espacial associada às experiências de agricultura urbana
da RMBH chama a atenção para a importância de visibilizar a existência de formas de
resistência à homogeneidade das tendências da urbanização, às formas e processos que
transformam o espaço natural em espaço construído. Reclamam ainda por esforços
teóricos que possibilitem conhecer melhor estas práticas e avaliar suas potencialidades
como uma praxis espacial, como uma das múltiplas formas possíveis de produção e
extensão do tecido urbano.
Neste sentido, a manutenção e ampliação de espaços de diálogo sobre as práticas
agroecológicas em regiões metropolitanas pode ser mais um caminho para que
organizações sociais e aqueles que se dedicam à produção teórica na RMBH identifiquem
novas ligações e possibilidades de ações coletivas conjuntas, que sejam definidos novos
enfoques de políticas públicas e que sejam identificadas novas possibilidades de pesquisas
comprometidas com a transformação social.
Cadernos de Estudos Culturais

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77

Heloisa Soares de Moura Costa e Daniela Adil Oliveira de Almeida

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 61 – 78, jul./dez. 2012.


JOGO DE IDENTIDADES
ENTRE JOVENS NEGROS
NO RIO DE JANEIRO:
a construção da identidade racial
no contexto de iniciativas de

Cadernos de Estudos Culturais


combate à discriminação
Ilana Strozenberg1
Marcia Contins2

Duas novidades, no campo da educação e da cultura, vieram ampliar o universo de 79

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


alternativas dos jovens negros de camadas economicamente desfavorecidas do Rio de
Janeiro nos últimos anos. Por um lado, medidas associadas a propostas de ação afirmativa,
entre as quais se destacam a criação do Pré - Vestibular para Negros e Carentes (PVNC)
e a implementação da política de cotas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ-, aumentaram as suas chances de ingresso no ensino superior. Por outro lado,
o surgimento de diversos projetos artístico-sociais voltados para populações social e
economicamente marginalizadas – são, na sua grande maioria, sediados em favelas –
passaram a lhes oferecer oportunidades de acesso à produção e ao consumo de cultura.
Ao apresentarem novas possibilidades de inserção social, expandido o contexto de
interações e as redes de comunicação desses jovens, essas iniciativas modificam também,
necessariamente, os elementos do contexto simbólico no qual esses jovens elaboram seus
projetos e constroem suas identidades.
Conforme afirma Gilberto Velho, a “noção de que os indivíduos escolhem ou
podem escolher é a base, o ponto de partida, para se pensar em projeto” (1981: 26).
Esses projetos, no entanto, não brotam ou são definidos a partir de uma consciência
individual desvinculada de um contexto coletivo. Pelo contrário, estão sempre

1
Ilana Strozenberg é professora da UFRJ.
2
Marcia Contins é professora da UERJ.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


necessariamente situados no interior de um “campo de possibilidades, circunscrito
histórica e culturalmente” (idem: 27), cujos códigos e hierarquias os sujeitos apreendem,
num processo de socialização contínuo. Assim, as identidades dos jovens são construídas
a partir de escolhas conscientes realizadas entre alternativas que lhes são apresentadas
através das relações que estabelecem com universos sociais e culturais distintos, cujos
códigos apreendem num processo contínuo de socialização.
Como estão sendo feitas essas escolhas? Como os jovens negros estão elaborando
e re-elaborando sua identidade a partir de suas vivências nos diferentes contextos? São
essas as indagações que pretendemos discutir a seguir, a partir da análise comparativa
das concepções de identidade racial produzidas por jovens negros no Rio de Janeiro
através de suas interações nos dois contextos em questão: o ingresso na universidade; e a
participação em projetos culturais sediados em comunidades de favela.
Nossa interpretação tem, como pressuposto teórico, a perspectiva antropológica
Cadernos de Estudos Culturais

segundo a qual “raça” é uma noção culturalmente construída e situada num processo
dinâmico de interações. Se contrapõe, portanto, às perspectivas essencialistas, que afirmam
a existência de uma natureza de negritude universal e homogênea, seja como resultado de
determinação biológica (em que a raça é vista como característica da espécie) ou de uma
experiência histórica comum (seja esta a escravidão, a colonização, ou a diáspora).
Desse modo, pretendemos propor uma via interpretativa alternativa à que se centra
80
no debate que gira em torno da dicotomia entre dois grandes modelos de interpretação
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

- a perspectiva universalista, que privilegia os determinantes sócio-econômicos da


desigualdade; e a perspectiva particularista, segundo a qual a diferença de cor determina
uma forma específicas de desigualdade, demandando ações voltadas especialmente para
os grupos racialmente discriminados.
Por isso a opção de pesquisa foi abrir mão das explicações a-priori – centradas no
privilégio da variável econômica ou racial da definição de identidade - e ouvir os discursos
dos próprios jovens, centrando a análise no que eles têm a dizer sobre si mesmos e
sobre a maneira como se entendem e entendem o seu lugar no mundo. Especificamente,
nos interessava compreender quando e porque incorporam a diferença racial nas suas
escolhas identitárias, quando a acionam e de que modo a articulam com outros elementos
que integram na sua percepção de si mesmos como sujeitos ao mesmo tempo únicos e
multifacetados.

Os jovens da Cia Étnica de dança


A partir dos anos 90, uma eclosão de projetos culturais voltados para segmentos
da população de baixa renda, especialmente na faixa jovem, vem marcando a cena das
iniciativas de combate à desigualdade nas grandes cidades brasileiras. Apesar de muito
diversos na sua origem, formas de organização e linguagem, o conjunto desses projetos

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


parecem apresentar algumas novidades bastante significativas não apenas no que se refere
à sua produção discursiva e artística, mas também em termos da invenção de novos
paradigmas de representação e interpelação política.
Do ponto de vista das relações de poder, um ponto que vem sendo bastante
enfatizado pelos observadores desse tipo de manifestação, é o fato de que, ao contrário
do que acontecia tradicionalmente na sociedade brasileira, parece estar havendo uma
mudança nas hierarquias de legitimidade. Deste ponto de vista, não apenas grande parte das
lideranças desses projetos são originárias das próprias comunidades ditas marginalizadas
como elas são capazes de produzir e defender seu próprio discurso enquanto sujeitos
dotados de razão e interesses específicos. Pouco, no entanto, tem sido investigado no que
diz respeito ao conteúdo desses discursos e seus paradigmas de representação cultural
e política: em que medida efetivamente apresentam novas concepções da sociedade,
das relações entre os indivíduos que a integram, das diferenças e contradições que a

Cadernos de Estudos Culturais


atravessam? Essa questão parece fundamental para avaliar em alguma medida os efeitos
transformadores do “empoderamento” desses grupos no universo das relações sociais
em seus múltiplos aspectos.
Um breve mapeamento das iniciativas existentes permite observar que há diferenças
importantes no modo como os diferentes projetos culturais abordam a questão da
diferença racial e da luta contra o racismo. Alguns, apesar do reconhecerem a existência
de outras formas de discriminação social além da diferença racial, e importância de 81

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


incorporar outros grupos discriminados à luta pela igualdade e cidadania, afirmam a
existência de uma identidade negra específica. Desse ponto de vista, ser negro aparece
como uma categoria abrangente, que incorpora e confere aspectos particulares a todas
as demais dimensões da identidade, que, quaisquer que sejam, devem ser concebidas,
sempre, na forma “hifenada”, como mulher-negra; homem-negro; classe média-negro..
Em se tratando de projetos culturais, portanto, são voltados para manifestações do que
consideram ser uma cultura negra - seja através da música, do teatro, da dança -, expressas,
preferencialmente, através da performance de indivíduos que pertençam a essa categoria
de cor. Um exemplo emblemático dessa perspectiva é a Companhia dos Comuns, cujo
objetivo é definido pelo seu criador e diretor Hilton Cobra como o de “retratar a riqueza
e singularidade da cultura negra na sociedade contemporânea, através das artes cênicas,
em torno do desejo de se produzir teatro a partir de encenar e dramatizar a experiência
comum e intransferível de ser negro no Brasil, promovendo assim aberturas para
construção de vários discursos sobre a condição do negro”.
Já outros projetos, embora se declarem claramente engajados na luta contra a
discriminação racial, encaminham suas reivindicações na direção da construção de
uma cidadania mais ampla, afirmando a expectativa de um processo de articulação e
comunhão com outras formas de identificação. Essa parece ser, sem dúvida, a tendência
predominante nos projetos na atualidade.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.
Do ponto de vista dessa concepção, a Cia Étnica de Dança, cujos bailarinos foram
entrevistados nessa pesquisa, ocupa um lugar pioneiro. Criada pela atriz e coreógrafa
Carmen Luz, há cerca de 15 anos, na favela do Andaraí, no Rio de Janeiro, a Cia. já se
apresentou em diversos palcos da cidade e alcançou reconhecimento internacional. Ao
definir sua proposta político-cultural, já no início de seu trabalho, Carmen Luz criticava
o foco fechado na questão do negro, preferindo ampliá-lo para abranger tanto negros
quanto aqueles que se sentem discriminados por pertencerem a grupos cuja experiência
social e cultural não se enquadra nos modelos legitimados e valorizados na sociedade. Por
isso, inclusive, decidiu denominar seu projeto de Cia Étnica, evitando o uso da palavra
raça. Diz ela:
Para mim, a questão dos negros tem um grande problema porque tudo passa pelo
caldeirão étnico, e não por uma pureza de uma África, que só está na nossa memória.
A gente deve tomar conhecimento dela, mas eu vivo no mundo aqui e agora e o olhar
deve ser contemporâneo.
Cadernos de Estudos Culturais

De todo modo, não há como participar da Cia Étnica sem se deparar com o tema
da diferença racial. O depoimento de um dos mais antigos integrantes da Cia, que
atualmente, além de dançar, dá aulas de dança e desempenha funções de coordenação é
significativo. Ele conta:
“Quando a Carmem falou da diáspora negra, eu procurei estudar um pouco mais, sentei
82 com uns professores meus para falar - eu já estava entrando na faculdade. E em todos
esses negócios de consciência negra eu estava dentro.
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

Mas como é que começou essa história de consciência negra? Foi aqui na Companhia?

Foi assim: depois que comecei a fazer teatro, as pessoas começaram a olhar a gente de
uma outra maneira. Na maioria, éramos todos negros.

Por exemplo, a Jurema Batista, que é deputada hoje, era uma pessoa ferrenha, na época
do movimento negro. Então, a gente começou a criar uma concepção política em torno
disso.

Você acha que foi através dela que começou essa história de consciência negra?

Também porque ela me ajudou muito. Como eu estava passando essa dificuldade com
minha família, na época... quando o curso não tinha coisa, eu limpava a sede e ela me
dava um dinheiro.

E aí, vocês foram criando uma consciência política aqui dentro?

É, sobre a questão racial, sobre a questão de pobreza, da doença .... Então, a gente estava
lá para falar sobre juventude e começou a ver o baile funk de uma outra maneira...

Chama a atenção o fato de que entrar para a Cia Etnica é que transformou a questão
racial num tema de reflexão e num elemento de identidade. O bailarino a uma família
que freqüentava o candomblé, mas não se pensava como negro e sim como membro
daquela religião, sem fazer uma ligação necessária entre esses dois aspectos. Aliás, o

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


candomblé era a religião de uma parte da sua família, na qual há também evangélicos e
católicos. Sendo que essas identidades religiosas também podem ser transitórias: algumas
de suas tias, que já haviam sido mães de santo, acabaram, por algumas circunstâncias, se
convertendo ao budismo. Uma vez na Cia Etnica, no entanto, ele passa a ser visto como
negro e se solicita que desempenhe esse papel, seja como artista (convidado para dançar
afro) seja como detentor de uma consciência política...
Isto não significa, no entanto, que ele privilegie sempre a cor como elemento central
e todo abrangente de sua identidade. Curiosamente, quando indagado sobre seu visual
– Fabinho varia muito o estilo do cabelo e, recentemente, tem usado dread locks e barba
cortada em estilo afro – não o associa (nem mesmo quando se lhe sugere essa hipótese)
a uma estética negra e sim ao seu gosto por um estilo moderno. Explica que sua mãe
é cabeleireira, gosta de fazer experiências com penteados. E completa sua explicação
dizendo ter sido influenciado por grupos de dança contemporânea – sem nenhuma

Cadernos de Estudos Culturais


característica étnica ou racial - cujos bailarinos adotavam um estilo mais arrojado, diferente
dos padrões. Uma coisa parece evidente: no campo da dança – e talvez essa seja uma
característica do universo das manifestações culturais de um modo geral – possuir ou
adotar um padrão estático diferenciado pode ser um valor altamente positivo. Inclusive
quando está associada a características étnicas e/ou raciais. Assumir uma estética afro –
ou negra -, portanto, pode ser, nesses casos, uma estratégia de valorização da si. Embora
não necessariamente a mais eficaz nem a única possível. 83

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


A fala de outra jovem bailarina entrevistada, também há muitos anos na Cia, narra
que, embora já houvesse sofrido preconceito antes de ingressar no projeto, ainda não
tinha, na época, uma “consciência” do sentido do preconceito nem como enfrentá-lo:
Olha só, deixa eu te falar uma coisa: tenho para mim que quando a pessoa não tem
consciência e vai em certos lugares que a pessoa de repente até te olha, você acha que
já está sendo vista com preconceito e se retrai, acho que é pior. .. Então, antigamente
eu tinha um problema, mas aqui na Companhia a gente não só aprende a dançar, não, a
gente aprende várias questões, por exemplo, que podem até abalar a gente na questão do
preconceito, essas coisas todas… até para a gente ter dignidade, não é? Uma coisa que
de repente não ia ter, porque a televisão ensina o contrário.

O depoimento de ainda outra bailarina confirma o papel da Cia Étnica como


instauradora de um discurso sobre a diferença racial. Só que, dessa vez, a percepção da
diferença não lhe chega nem através da política, nem da religião, e sim da dança afro:
Antes de entrar para a Companhia Étnica, você se preocupava com a discriminação racial?

Não, não. Nem um pouco, nem um pouco. Para mim era tudo despercebido: toda
questão da dança afro, a questão racial, a questão da valorização de eu ser mulher, sendo
negra.

E hoje?

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


Hoje não é, assim, uma preocupação. É que antes passava realmente despercebido.
Agora é mesmo uma questão de se impor.

E a dança afro? Você já se interessava por ela?

Num projeto de que participei antes, na associação de moradores, tinha dança afro.
Mas para conhecer mesmo, a fundo, o que é a dança afro, foi tudo na Companhia, com
os professores de lá. É uma dança negra que a gente tem que valorizar. Mostrar que
ela pode entrar num trabalho de dança contemporânea, ser a base desse trabalho, sem
problema nenhum. Aí vem as questões também da história, do que é a dança afro, de
onde ela veio.

Mas essa percepção positiva e valorizada não exclui o outro lado, o da discriminação.
Que, mesmo não fazendo parte de sua memória pessoal, agora se faz presente na sua
consciência, parte de sua condição de negra:
E você já sofreu algum caso de preconceito?
Cadernos de Estudos Culturais

Não, nunca passei por nenhum caso.

Mas eu tenho uma consciência. Nunca passei pelo que a gente vê hoje em dia, mas essa
é uma coisa muito esclarecida na minha vida. Você tem que ter a consciência de que
não pode se deixar diminuir, de que tem que saber se impor na sociedade. Eu sou uma
mulher, sou negra, e tenho que lutar pelas coisas que eu quero. Mas eu não vou ficar
com isso na minha cabeça “Porque eu sou negra, só vou fazer isso porque eu sou negra”.
Não! Sou uma pessoa extremamente normal, que vou lutar, que não vou me deixar ser
84 diminuída se eu quiser ir a algum lugar. [Mas] eu acho que as pessoas confundem muito
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

ao levar muito para esse lado a questão racial, quando ficam muito radicais. Acho que
não deve ser assim. Acho que tem que se misturar mesmo.

Seu pai e sua mãe são negros?

São. Os dois. E minha família toda

Nas sua interações na Cia Étnica, os jovens aprendem não só a reagir diante do
preconceito como também a identificar os momentos em que se manifesta no outro. Uma
das jovens entrevistadas narra que, embora, antes de ingressar no projeto, já houvesse
sofrido preconceito, na época, não possuía o que chama de “consciência” do preconceito
e de como enfrentá-lo:
Olha só, deixa eu te falar uma coisa: tenho para mim que quando a pessoa não tem
consciência e vai em certos lugares que a pessoa de repente até te olha, você acha que
já está sendo vista com preconceito e se retrai, o choque é pior. .. Então, antigamente
eu tinha um problema, mas aqui na Companhia a gente não só aprende a dançar, não,
a gente aprende várias questões, por exemplo, que podem até abalar a gente na questão
do preconceito, essas coisas todas(...) até para a gente ter dignidade, não é? Uma coisa
que de repente não ia ter, porque a televisão ensina o contrário. É (...) Assim, não é
uma preocupação, mais uma questão de imposição. Porque antes passava realmente
despercebido. Agora é mesmo uma questão de se impor.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


Se a entrada na Cia muda a percepção do presente, muda também a do passado,
os acontecimentos rememorados mudam de sentido, passam a ser relacionados com a
diferença de cor e o preconceito que ela desperta. Aliás, o passado individual, ou familiar
ganha uma nova profundidade, passa a incorporar um outro passado, ancestral, do
“povo negro”. As coreografias de Carmen Luz trazem elementos desse passado, como as
matriarcas, de forma muito presente e enfático.
No entanto, esse aprendizado de uma identidade negra vem acompanhado de uma
discurso que aparentemente o contradiz. A pedagogia de Carmen é contrária a uma
noção de identidade definida por fronteiras estabelecidas. Diz ela:
Sempre falo uma coisa que aprendi, eu acho que com a Lélia Gonzalez , que foi uma
das minhas mestras: a questão de que o problema não era o Movimento Negro, mas
que os negros deveriam estar em movimento. Para mim, a questão dos negros tem um
grande problema porque tudo passa pelo caldeirão étnico, e não por uma pureza de uma

Cadernos de Estudos Culturais


África, que só está na nossa memória. A gente deve tomar conhecimento dela, mas eu
vivo no mundo aqui e agora e o olhar deve ser contemporâneo. Não ter resgate, mas um
conhecimento muito específico desse passado e com muita atenção para que se possa
ter identidade.

Os jovens ingressos na Universidade


As iniciativas não-governamentais que surgem no Brasil na década de 90 reivindicam
o caráter de “ação afirmativa” para seus projetos. É o caso dos cursos de pré-vestibular para
85

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


“negros e carentes” (PVNC, como eles próprios nomearam) ou comunitários espalhados
em diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense. É relevante
assinalar que novos grupos de pré-vestibular surgiram em decorrência do ingresso de ex-
alunos nas universidades, os quais, como na PUC do Rio de Janeiro, continuam a manter
uma dinâmica enquanto grupo. Há ainda o estímulo a um compromisso de retorno aos
cursos, por parte dos que garantem uma vaga no terceiro grau, e que retornam ao pré-
vestibular como professores.
Na pesquisa com jovens universitários (da PUC Rio, da UERJ e da UFRJ), o
objetivo principal foi descrever e analisar, as diversas maneiras com que esses estudantes
interpretam o seu dia a dia de estudantes universitários, as dificuldades que atravessam
para acompanhar os cursos, tanto financeiras quanto a respeito do relacionamento
que mantêm com seus professores e com os outros estudantes. Foram analisadas,
principalmente, as interpretações desses estudantes a respeito dos conflitos raciais e
étnicos que resultam do relacionamento entre os estudantes apoiados por esses programas
e os estudantes de classe média e alta no contexto do dia-a-dia das universidades públicas
e privadas. Fazendo uso do método qualitativo de pesquisa, entrevistamos e observamos
os estudantes universitários através de suas histórias de vida, a passagem pelos pré-
vestibulares comunitários, a inserção em movimentos negros e outros movimentos sociais.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


Focalizamos principalmente o dia-a-dia desses estudantes dentro das universidades e as
relações que mantêm com os professores e demais estudantes.
Algumas questões surgiram a partir dos questionários, das entrevistas e das
observações junto aos estudantes pesquisados. Um ponto fundamental, quando
falamos do lugar desses alunos nas universidades, é a importância do papel exercido
pela universidade na constituição de novas subjetividades3, ou novas formas de auto-
consciência, para esses jovens. Esses estudantes são os primeiros de suas famílias a
freqüentarem um curso superior e a maior parte dos pais dos universitários não tem
sequer o primeiro grau completo. Partindo daí podemos perceber, através das histórias de
vida dos alunos, pontos recorrentes que aparecem em todas as entrevistas.
Uma dessas questões é a da aceitação, que não é apenas uma discussão sobre a
diferença social e cultural entre grupos que se opõem, mas, principalmente, uma discussão
a respeito de identidades que estão sendo criadas nesse novo contexto. O contexto das
Cadernos de Estudos Culturais

universidades, novo para qualquer estudante iniciante, é particularmente contrastivo em


relação ao mundo desses alunos que vieram de pré-vestibulares comunitários. Segundo
uma aluna de pedagogia da PUC e ex aluna do PVNC, hoje coordenadora de um pré
vestibular comunitário na Baixada Fluminense, as diferenças entre esses dois grupos de
alunos é muito grande e o papel do pré-vestibular vai além da educação formal, ele pode
ajudar em muito a esses estudantes. Segundo ela:
86 “Outro dia teve a história de uma menina que comprou um celular de brincadeira para
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

botar no bolso e sair. Porque todo mundo tem. Todo mundo tem (...) mas o dela era de
brinquedo, não era de verdade não. Ela usava como se fosse de verdade, para ser aceita
pelos outros estudantes. Por que o que as pessoas vão dizer? São aceitas pelo que têm,
né? Ela queria ser igual.”

E disse também a respeito do papel formador do pré- vestibular comunitário:

“(...) como uma pessoa carente, eu acho que isso faz com que as próprias pessoas não a
respeitem nesse sentido. E aí eu acho que o papel fundamental do pré, não é só colocar
na universidade, eu acho que você tem que estar formando uma pessoa para ingressar na
faculdade para ela cumprir o papel que ela tem lá dentro”.

Segundo esta entrevistada este caso traduz as aflições e os desentendimentos que


as diferenças sociais e culturais podem trazer às pessoas quando interagindo nesse novo
contexto. Segundo a entrevistada, a outra estudante só queria ser aceita pelos alunos da
PUC e, para tanto, tinha que ser “uma igual”:
“Ela achava que para ser aceita precisava ter um celular. Ela ia pro ponto de carona
que só ia para Ipanema (ela mora na Baixada Fluminense)(...) Não sei o que ela ia fazer
lá, (...) ai a gente sentou e conversou. Até que eu disse para ela se ela quiser continuar
nisso (nessa faculdade), vai ter que fazer isso consciente. Não vá se deixar envolver

3
Estamos usando a noção de subjetividade aqui enquanto processos sociais e culturais de elaboração de uma
autoconsciência individual e coletiva.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


pelo sistema, pelo lugar onde está. Porque quando pinta um lance desses a pessoa não
está se aceitando; tipo tadinha de mim que sou pobre, que moro lá em São João de
Meriti”. E um dos papeis é estar se assumindo como negro, e estar propagando mesmo
eu sou negro, eu tenho (...) esse espaço é meu; eu também sou tão capaz quanto você.
(...) Porque num primeiro momento, quando você não se assume, as pessoas também
não te respeitam. Eu acho que você tem que estar se assumindo. Principalmente na
faculdade que também é um campo político. Eu acho que a faculdade sim exige que as
pessoas se posicionem, se mostrem. Eu acho que tem que chegar lá com essa concepção.
Se não chegar realmente, vai encontrar dificuldade”.

Uma das questões que nos chama a atenção, a partir dessas narrativas, é a estreita
relação entre “identidade e reconhecimento” (Taylor,C.1994). A identidade de uma
pessoa depende das relações dialógicas que esta mantém com as outras pessoas, tanto
no trabalho, quanto nas universidades e assim por diante. Segundo Taylor, o discurso do
reconhecimento aparece em dois níveis. Primeiramente na esfera íntima, individual, que

Cadernos de Estudos Culturais


se entende pela formação da identidade, na qual o self ou o eu da pessoa está sendo criado
num diálogo contínuo com os outros. Em segundo lugar, o discurso do reconhecimento
aparece na esfera pública, onde a política de reconhecimento de igualdades, ou políticas
de ação afirmativa (principalmente nos Estados Unidos ou através dos movimentos
sociais e principalmente dos movimentos negros e movimentos religiosos no Brasil)
tem desempenhado um papel significativo. Assim, o reconhecimento e a minha própria
identidade dependem em última instância das relações que se mantêm com os outros.
87
Dessa forma, a criação dessa nova identidade está sendo proporcionada a partir

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


das relações que esses alunos mantêm com outros estudantes e professores, no contexto
acadêmico. No entanto, podemos sugerir que a essas novas subjetividades já estão sendo
formadas anteriormente à entrada desses estudantes no curso universitário. Já nos
cursos de pré-vestibular para Negros e Carentes. Por exemplo, na cadeira de cidadania e
cultura debate-se tanto a questão das diferenças sociais, econômicas e culturais no Brasil
quanto a importância da criação de uma nova identidade entre esses estudantes “negros
e carentes”. Os alunos dos pré-vestibulares comunitários que vão para uma universidade
pública de prestígio ou para uma universidade particular, de classe média alta da Zona
Sul carioca têm que lidar não apenas com a diferença do nível de escolaridade em relação
aos outros estudantes, mas também com a diferença social e cultural. Quase todos os
estudantes entrevistados vêm de bairros da Baixada Fluminense ou da Zona Oeste da
cidade e entraram em contato com o pré-vestibular comunitário através de amigos ou
colegas do bairro.
Uma de nossas entrevistadas, coordenadora do PVNC do Anil, Zona Oeste do
Rio de Janeiro fala sobre a importância do curso de cultura e cidadania. Segundo esta
entrevistada:
A gente não faz nenhum trabalho com turma, nem outro tipo de trabalho, sem estar
vinculado a formação de cidadania, ao interesse de ampliar esse horizonte, e não só

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


o objetivo e a única meta de aprovar aluno na Universidade. Essa não é a nossa meta
principal, essa é a conseqüência. Então eu trabalho nessa área: cultura e cidadania”. (...) A
gente trabalha com um programa definido,com a equipe de professores que é da cultura
e cidadania (...). Então a gente vai trazendo temas pra debates, trazendo as atualidades, as
ultimas reportagens, pede pra turma também trazer, trabalhar com isso, e uma ou outra
vez a gente convida especialistas nessa ou naquela área pra vir trazer alguma proposta
ou algum conteúdo de debate ou discussão que seja interessante. Inclusive, as vezes, já
trouxemos em outras ocasiões o Teatro do Oprimido pra vir fazer uma apresentação
sobre determinado tema que nos interessa, então isso daí é assim bem flexível. Mas a
gente não trabalha só para organizar palestrantes, embora a gente convide palestrantes,
mas que se inclua no nosso programa. A gente tem professores que trabalham com o
tema, com cultura e cidadania”.

Boa parte desses jovens tem um contato muito próximo com movimentos sociais,
principalmente com os chamados “movimentos religiosos”. Além da Pastoral Negra da
Igreja Católica, outros grupos religiosos católicos ou protestantes (como batistas, metodistas
Cadernos de Estudos Culturais

e pentecostais) participem tanto do movimento do PVNC, enquanto professores e mesmo


coordenadores de curso, quanto de outros pré-vestibulares comunitários. Contamos com
entrevistados que integram ou integraram tanto a Pastoral da Juventude ligada à Igreja
Católica (hoje mais ligada a movimentos carismáticos) quanto de movimentos religiosos
protestantes (como da Igreja Batista, Igreja Metodista e Assémbleia de Deus). Alguns
entrevistados falam da importância da igreja e principalmente das pastorais de juventude,
88 da pastoral do negro e de setores das igrejas protestantes e evangélicas, onde a discussão
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

da cidadania e da identidade é tema recorrente.


Muitas igrejas protestantes ou católicas cedem seu espaço aos sábados como sala de
aula. É o caso da Igreja Metodista de São João de Meriti que visitamos. A relação que eles
mantêm com o curso, segundo o coordenador do curso de pré-vestibular que acontece
nesta igreja, é apenas formal. No entanto, esses coordenadores são evangélicos e um
deles já foi inclusive membro desta igreja. Segundo este coordenador, a escolha desta
igreja para realizar o curso de pré-vestibular foi :
(...) porque eu já fiz parte da convenção da Igreja Metodista Eu era membro daqui.
Moramos, perto daqui.... A Igreja é uma igreja missionária a serviço do povo” (...) “Esse
é o lema da Igreja Metodista.

Segundo o coordenador, esta igreja tem autonomia de ceder espaço e não precisa
de autorização de outros setores da igreja. Num outro depoimento, uma universitária fala
sobre o local onde funciona o pré- vestibular que ela cursou:
(...) funciona numa igreja, num espaço da casa paroquial. É uma varanda da casa do
padre. E muitas pessoas do pré são da igreja. Pessoas até que participam de algum culto
e tudo mais. São poucas as pessoas que freqüentam outras religiões e tem uns que não
freqüentam nenhuma. E o envolvimento da gente de lá (...) praticamente a gente só
ocupa o espaço, mas o padre também se identifica com a causa do pré- vestibular e tudo
mais (...) e sempre que tem alguma atividade procura convidar a gente”.

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A criação de identidades vem relacionada também, no contexto das universidades, à
questão do mérito próprio ou individual. Segundo uma aluna da PUC e coordenadora de
um dos pré-vestibulares na Baixada Fluminense, a questão do mérito é muito importante
quando você está na universidade. Mesmo que você participe como professor ou
coordenador de um pré comunitário, a relação mais importante do momento, para este
estudante, é a relação com a universidade e com o curso que está fazendo. Esta estudante
afirma que muitos ex-alunos dos pré-vestibulares têm que escolher entre ir a um encontro
ou manifestação dos ex-alunos do PVNC ou estudar para uma aula ou para uma prova:
O pessoal tá mais preocupado em estudar. Quero estudar, tenho que correr atrás de
nota”. E tem também a questão da bolsa de estudos, no caso dos alunos da PUC: “Eles
pedem seis, agora é seis, o CR. Agora, é difícil tirar uma nota boa. É preciso estudar.
Agora eu acho que a gente tem que se organizar ao máximo. Não dá pra só ficar correndo
atrás de nota. Existe uma representação minha lá do pré de onde eu vim. Então eu tenho
que estar lá, entendeu?”.

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A questão do mérito é bastante complexa e não se restringe a uma única forma
de avaliação. Ela faz parte do dia-a-dia dos estudantes universitários onde os seus
desempenhos vão ser avaliados segundo as regras acadêmicas. Os estudantes entrevistados
fazem questão de se colocarem ao lado da excelência educacional e, assim sendo, a criação
de uma nova identidade passa necessariamente pela questão do mérito. Uma ex aluna do
PVNC formada em Letras pela PUC diz, por exemplo, que as notas alcançadas por ela
e por outros alunos, principalmente dos alunos de Serviço Social que também foram do 89

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


pré - vestibular comunitário, eram maiores que as notas dos alunos regulares da PUC:
E depois com o tempo eles fizeram até uma pesquisa e constataram que não só no
serviço social, mas, assim... a média no total dos alunos que (...) vieram do pré-vestibular
é superior a dos alunos da PUC.”

A adaptação à universidade é complicada na medida em que esses alunos muitas


vezes sentem-se prejudicados porque não tiveram uma boa educação fundamental nem
colegial. No entanto, já dentro das universidades eles trabalham muito para acompanharem
os cursos e tirarem boas notas. No entanto, muitos largam e desistem dos cursos. Mas
a fase de adaptação também encontra, além de problemas de ensino propriamente dito,
alguns problemas sociais, culturais e econômicos que esses alunos têm que resolver.
Segundo uma entrevistada e ex aluna da PUC:
“Não, não tive dificuldade assim. de me adaptar. As pessoas (...) até porque o número
não era tão evidente de pessoas que vinham do pré-vestibular, eram quatro pessoas, num
curso ou em outro, então não era tão evidente que a gente vinha de um pré-vestibular.
Quer dizer, a princípio as pessoas tratavam a gente como se fosse também rico, como
se a gente tivesse carro, como se a gente fosse do mesmo nível social que eles. Depois
justamente teve uma apresentação, um seminário que a gente apresentou o pré, falou
sobre o pré (...) A partir do ano de 95, que entraram mais pessoas, aí sim, aí começou.
Em Letras foi muito mais difícil acontecer porque eram duas pessoas ainda, mas aí a

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


partir de 95 passaram mais para o curso de serviço social, a turma toda era do pré, aí
eles tinham um certo preconceito sim, tinham um elevador que eles não andavam, só
deixavam para o pessoal do serviço social andar e aí falavam : Ah! você é do serviço
social , né?!!! Olhavam mesmo pela ... pela cor, pela pigmentação”.

A questão do mérito, no que diz respeito ao esforço que este estudante faz para
seguir o curso universitário, conseguir boas notas e não desistir, está ligada ao ponto
que anteriormente coloquei a respeito da criação de diferentes identidades. Se de um
lado esses estudantes têm que lidar com uma realidade social, familiar e cultural que não
facilita essa opção de vida, por outro lado outros esforços se fazem para continuarem
seus estudos. De acordo com uma aluna de Pedagogia da PUC:
“A forma com que você vê o mundo é diferente também... quando eu cheguei lá levei
um choque (...) Uma coisa é você viver no seu mundinho, no seu espaço nas suas
condições. Outra coisa é quando você se depara com uma outra realidade, com uma
outra situação, e você fica se questionando o porque dessa diferença tão acentuada e se
Cadernos de Estudos Culturais

(...) intelectualmente a gente tem as mesmas condições, porque assim como eles fizeram
pré-vestibular, eu concorri com um deles...”

Se, por um lado, o pré-vestibular comunitário enfatiza o entendimento da cidadania,


o reconhecimento dos direitos dos cidadãos de todas as cores e classes, e principalmente
a descoberta de que ser negro e pobre no Brasil não é um impendimento para a educação;
por outro lado, a universidade, ao incorporar o aluno, enfatiza o mérito individual, a
90 qualidade dos desempenhos individuais. No entanto, é nesse campo de tensões que vêm
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

a ser geradas novas subjetividades (novas concepções de self) fundadas nas experiências
sociais e culturais dos alunos. Uma das entrevistadas, aluna de Serviço Social da PUC
afirma:
Mas eu acho que o fundamental da cultura é você saber se colocar dentro da Universidade
com a tua diferença. Porque todo mundo critica um pouco o diferente. O muito magro,
o muito gordo, o muito negro, o muito branco, o ruivo, o muito alto. “Você foi diferente
(...) É, existe um padrão de beleza, né. Você saiu daquilo, pra qualquer lado que você
foi (...) as pessoas riem, encarnam. Então você tem que saber o que você faz com esse
diferente. A gente reflete muito isso. Auto-estima aqui, a gente trabalha muito”.

Se no contexto dos pré-vestibulares comunitários se enfatiza a “comunidade”


(quando dizem, por exemplo, que é lá que você aprende a ser negro ou negra); no contexto
da universidade, ao contrário, ele ou ela é solicitado a reconstruir sua concepção de self a
partir da re-elaboração de sua experiência. Segundo outro entrevistado:
“Fazer pré e estudar na universidade é o coletivo e é também individual porque o sonho
é meu, que não é o sonho do cara porque o cara não sonha coletivo, então o cara não
vem, ele tem que vir por ele, tem que se pensar coisa que façam que ele venha, por ele,
que ele pense que fazendo o coletivo, é melhor, ele pode ter um série de vantagens
fazendo coisas coletivas do que individualmente, é muito mais fácil mesmo dentro da
universidade, é muito mais fácil”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


Partimos assim do pressuposto de que a noção de ação afirmativa é algo
reinterpretado contextualmente e utilizado por diversos agentes sociais. Grupos religiosos
fazem uso dessa categoria para um programa de ação a favor de grupos sociais menos
favorecidos. E é nesse âmbito que aparece a questão da “raça” ou de “relações raciais”. O
Estado também se utiliza desta categoria para apontar os “caminhos da democratização”
da sociedade brasileira. Os movimentos sociais, principalmente os movimentos negros,
também debatem esta questão e decidem de que maneira ela pode ser útil ou não para
enfrentar os problemas dos negros no Brasil.

O jogo das identidades: a raça no contexto


Em Identidades culturais na pós-modernidade, Stuart Hall considera que o sujeito da pós-
modernidade é “aquele que não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente”. Para
esse sujeito, define a identidade como uma “celebração móvel, formada e transformada

Cadernos de Estudos Culturais


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeia.”(HALL, 1997:13)
Esse jogo de articulações estratégicas em função de condições conjunturais,
descrito por Hall parece descrever, de forma bastante pertinente, o modo como os jovens
entrevistados lidam com o tema da diferença racial na construção de suas identidades.
Vivendo num universo urbano marcado pelas diferenças sociais e pela heterogeneidade
cultural, a percepção da diferença racial é um entre vários elementos de que lançam 91

Ilana Strozenberg e Marcia Contins


mão, com maior ou menor ênfase, na elaboração de sua auto-imagem ao interagirem em
diferentes contextos: a família, a vizinhança, a igreja, as relações de amizade, ou ainda,
no caso que nos interessa aqui, a universidade e os projetos culturais. Num estudo mais
aprofundado seria importante, inclusive, considerar também sua relação com o universo
dos meios de comunicação: jornais, programas de televisão, de rádio, cinema, música,
dança, teatro, e, atualmente, de forma cada vez mais importante, as informações que
circulam nas redes eletrônicas.
Nos casos específicos aqui abordados, tanto a entrada na Companhia Étnica de
Dança quanto o ingresso na universidade, ao mesmo em que abrem novas alternativas
de interações para os jovens, os colocam diante de situações bastante contraditórias. Para
muitos deles essa é a primeira vez em que se vêem diante da imposição de incorporarem o
elemento “raça”, de forma mais sistemática e explícita. Ora, essa incorporação apresenta
perdas e ganhos. Ganhos, certamente, porque se encontram em contextos onde a “raça”
é positivamente valorizada. Mas perdas também, sem dúvida, na medida em que esse
contexto não anula – pelo contrário – até, muitas vezes, exacerba, os preconceitos
existentes na sociedade mais abrangente.
Nesse ambiente permeado de contradições, os jovens constroem suas identidades
raciais articulando e rearticulando diferentes elementos, sem ficarem necessariamente

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


presos a uma idéia essencialista. Na medida em que sociedade contemporânea lhes
oferece múltiplas alternativas de identificação além da raça – classe, gênero, religião,
estilos de vida, de comportamento, etc - eles irão acionar uma ou outra, num processo
dinâmico de redefinição de suas concepções a respeito de si mesmos e de suas relações
com o universo social em que transitam.

Referências Bibliográficas
CONTINS, Marcia. Objetivos e estratégias da ação afirmativa: uma bibliografia. BIB. Rio de
Janeiro, v.57. p.91-10, 2004.
_____. Estratégias de combate à discriminação racial no contexto da educação
Cadernos de Estudos Culturais

universitária. In Angela R. Paiva (org) Ação Afirmativa na Universidade: reflexão sobre


experiências concretas Brasil/Estados Unidos. Rio de Janeiro: PUC, Desiderata, 2004.
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_____. & Sant’Ana, L.C. “O movimento negro e a questão da ação afirmativa”. In Revista
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HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
92 _____. Da diáspora: identidades e media. Liv Sovik (org). Belo Horizonte: UFMG, 2003.
JOGO DE IDENTIDADES ENTRE JOVENS NEGROS NO RIO DE JANEIRO

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudo das relações raciais. São Paulo: TA.
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VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura, notas para uma antropologia da sociedade contemporânea.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
_____. Projeto e metamorfose: antropologia as sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar,
1994.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 79 – 92, jul./dez. 2012.


O BARROCO LATINO
e o olhar contrafeito
Jorge Anthônio e Silva1

Cadernos de Estudos Culturais


Assim que Colombo pisou nas praias do Mundo Novo, as imagens estiveram presentes.
Mas não demorou muito para que os espanhóis se interrogassem sobre a natureza das
imagens que os indígenas possuíam. Bem cedo, a imagem forneceu um instrumento
referencial, e, depois, de aculturação e dominação, quando a igreja resolveu cristianizar
os índios, da Flórida à Terra do Fogo.

Damián Bayon 93

Jorge Anthônio e Silva


O Barroco é um dos mais complexos sistemas signicos da arte ocidental. Extravagante,
prolixo e dramático como convém a uma arte de gênese religiosa, chegou ás Américas
como segunda natureza na ordem da conquista. Veio como arma de dominação metafísica,
no projeto sujeição do continente, na sequência do período em que se cristalizava a
divisão planetária entre Espanha e Portugal, configurada em Tordesilhas (1494). Esse
primeiro embate oficializou-se na medida dos interesses alienígenas, constituindo-se no
primeiro trauma civilizatório do continente americano. Criou o estigma de ser a primeira
manifestação artística civilizada, um domínio a ser incorporado pelos nativos que já
haviam desenvolvido complexos sistemas estéticos, manifestos no trato delicado de
narrativas pictóricas e pictográficas, tanto na arte pública quanto no domínio de materiais
variados, nos metais preciosos, onde encastoaram a variedade de gemas locais, na madeira,
no tecido e na pedra. Os donos da terra esculpiam, nas ilhas do Mar Caribe, os terríveis
zemies (1) estátuas de culto em madeira, os peruanos cinzelavam a jade em contornos
antropomorfos, demonstrando, na desinteressada expressão artística, a relação intrínseca
entre natureza e homem, comum a populações vivendo em estado de natureza. Os da
meso América desenvolviam narrativas, observações astronômicas, calendários e formas
expressivas relacionadas às classes sociais. Rostos humanos aterradores, disformes e

1
Jorge Anthônio e Silva é professor da UNILA.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


excepcionais na expressão de horror eram produzidos aos montes, na ilha de Hispaniola,
em clara demonstração de que a imagem era elemento marcante nas culturas nativas, na
praticavam uma arte autóctone, registro material da perpetuação de valores primordiais
na organização das estruturas sociais em sua simplicidade diversa.
Engendrado na Itália, O Barroco ali surgiu quando as conquistas se ampliavam para
o ocidente. Tocou a América, do México às regiões ainda quentes da Argentina, deixando
registros monumentais em Cuba, Equador, Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai.
Criou seus estatutos formais em pinturas, música, monumentos funerários, esculturas e
edificações, até tornar-se uma espécie de passado comum do Continente. Há uma realidade
plástica barroca na América Latina, como que constituindo uma personalidade pretérita
e unilateral gerada e gerida, na origem, sob a batuta da Igreja, com sua gestalt própria,
educadora dos sentidos e balizadora do gosto. Chegou pronto, uma experimentação formal
já posta à prova na realidade europeia pós renascentista, com resultados cotejados com os
Cadernos de Estudos Culturais

mesmos propósitos ideológicos que o fizeram nascer. Um sistema visual de sedução dos
sentidos latinos, já sensivelmente educados para a arte pública das opulentas civilizações
autóctones do Continente, quando e onde ainda não havia a separação entre o belo e útil.
Maias, Toltecas, Mixtecas, Incas, Astecas, Tapajônicos, Guaranis e Marajoaras tinham,
na arte, o elemento estruturante do cotidiano, um balizador da experiência social, em
constatação de que há processos mentais característicos da universalidade sócio cultural
94 da espécie, não importando a época ou o território de suas práticas. Isso facilitou na
recepção da nova forma de receber um único deus na terra, sem a demanda insaciável por
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito

corações pulsantes e sangrando, de crianças e virgens, oferendas únicas que aplacavam


a vontade do grande deus aimara, Inti (2). No exercício criativo, que funda civilizações
e grupos culturais primevos, a arte estatui os elementos estruturantes, viabilizando a
constituição de legados personalíssimos, na forma de registros materiais do psiquismo
social. A promoção da arte do adereço e o amor pelo enfeite contribuíram para dar os
contornos definitivos do “eu coletivo na América Latina e, o domínio local pelo Barroco,
foi mais que um capricho das elites, representada pela Igreja. Nem foi mero artifício
linguístico de impacto plástico para o olhar. Foi um consequente e estranho retrato
do Paraíso terreal, revelado nas imagens detalhadamente cinzeladas em panejamentos
superpostos na madeira nativa e na pintura dos espaços de reza, em cujos tetos planavam
querubins de cabelos de feno, revoada tênue de nuvens gordas, fofas, onde se escondia
um novo Absoluto. Era inquestionável a supremacia discursiva da estética europeia com
sua capacidade lógica de normatização e convencimento, corporificados em um projeto
imagético capaz de escandir a morada de Deus e dos santos que, de tão bons não pediam
sacrifícios, não queriam sangramentos, e se locupletavam com só, rezas e oferta de riquezas.
A nova arte que rebatizou a América Latina conjugava eficazmente o âmbito metafísico
da salvação com espaço profano, na sequência em que a Europa católica romana vivia
a potente alteridade histórica entre clero e realidade sócio científica. A partir do Século

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


XVI, com a Renascença já havia se instituído um estilo com pensamento e revivescência
das humanidades clássicas gregas. A prática artística dava rosto ao Humanismo cujo
saber assentava-se em fundamentos e não mais em superstições, discordando do status
quo. Ampliando-se o espaço geográfico europeu com as descobertas, impunha-se o
questionamento do poder absoluto da Igreja e a recuperação da narrativa natural na
plástica artística vinha escudado na força da nova visão de homem, em preparo seguro
do caminho para a dúvida cartesiana que, pronto chegaria como método inquestionável
de produção do conhecimento. Os jesuítas e franciscanos desembarcavam no continente
desconhecido, diverso e intocado, já destruído materialmente na América hispânica.
Vinham preparados para reeducar hábeis artesãos, oriundos de uma tradição cultural
marcante na arte pública. No Brasil também praticaram a espoliação sem o choque de
violência tão afeito aos espanhóis, cuja inquisição foi a mais cruel. O que é hoje a cidade
do México era a sagrada Tenoxtitlã, capital do Império Asteca durante o período Pós
Clássico da Meso América. Mais abaixo, os Maias adornavam partes do corpo, limavam

Cadernos de Estudos Culturais


os dentes em forma de ponta, perfuravam-nos para fazer incrustações de jade atendendo
aos seus princípios estéticos primitivos. Tatuavam-se e comprimiam as cabeças de
recém nascidos para que se alongassem. Nas escarpas de Machu Pichu medrava uma
arquitetura sóbria, extensiva aos monumentos de Cuzco. No Brasil, a cultura da arte
plumária integrava tribos com o geometrismo da cerâmica amazônica, mais um sem
número de somas plásticos utilizados para o adorno em cerimônias fúnebres, ritos de
passagem, bodas e celebrações. Os religiosos que chegavam davam o escopo para o novo
95

Jorge Anthônio e Silva


conhecimento sagrado, enquanto os conquistadores, apressados urgiam em encontrar
riquezas, implantar sua justiça e zelar pelos interesses das cortes ávidas pela ampliação de
seus domínios além mar. Viram o Continente quieto em sua dinâmica, enquanto a Europa
ainda se debatia com as cisões promovidas pela ciência astronômica, escondia novas
cartas de navegação e se apressava em incorporar a revisão do mundo que se impunha
com novas certezas, capazes de exigir novos paradigmas éticos e de saber. Do ponto de
vista dos jesuítas, extremados estudiosos, o Barroco pretendeu ter o caráter formador de
uma nova visão de mundo, que se contrapunha a assepsia adotada pelo protestantismo
que Lutero predicava. Contraposto ao classicismo renascentista em sua gênese europeia, o
Barroco plástico e arquitetônico constituiu-se na forma de arte ideologicamente educativa,
e de caráter retórico religioso por excelência. Esteticamente estruturou-se na forma de
arte extravagante, dramática, prolixa e apelativa aos sentidos, pondo-se como antítese à
racionalidade, à harmonia e ao equilíbrio austero de feitura greco romana, em marcha
na Renascença. Esse foi o período da instituição das bases racionais da arte, quando o
ato criativo deixou de atender, apenas, às determinações político ideológicas da Igreja,
para fundar-se em paradigmas filosóficos e científicos, especialmente determinados pela
relação espaço-temporal, pela novo entendimento da natureza humana, factível como
ator na arte pictórica de inspiração religiosa. Não mais as superfícies chapadas em ouro
do Gótico medieval, mas o entorno amável, de compreensão humana, onde madonas,

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


santos e anjos se apresentavam plásticos e integrados a bosques fugidios e rochedos
escarpados. Os termos Barroco e Rococó caracterizam a arte dos séculos XVI e depois,
não apropriadamente como evolução estética da Renascença, mas como tentativa bem
sucedida de elisão das fendas produzidas pelo protestantismo, o mesmo que levou para
si boa parte dos circunstantes, antes apostólicos romanos. O estilo gestado em fase de
câmbios estruturais na Europa pensou seu novo espectador, contrário à opacidade antiga
dos templos. Deveria ser o sujeito sensivelmente subjugado às inflexões de uma plástica
ilusionista em naves, tetos e paredes. Uma catarse, uma terapia de imersão extasiada, no
sujeito sensorialmente abalado por ladainhas latinas, mantras de predisposição para o
sobrenatural. Tanto o classicismo quanto o Barroco foram unânimes em apelar ao gosto
pelos mitos da antiguidade clássica, com a glorificação do movimento e, em especial, de
uma gestualidade heroica,sensual e dramática. Formas espiraladas indicando movimentos
ao infinito, na miríade de volutas em vórtice e arroubos sem limites, enlevam o homem
impreciso pela voragem dos sentidos, ao topo do mundo, onde se crê o território sagrado.
Cadernos de Estudos Culturais

A percepção da obra barroca é feita pelo olhar que não se fixou porque vê algo em
passagem para qualquer coisa outra, em explosão sem recortes da realidade. Ilusória
circularidade, droga divina para o instante em que a cupidez humana cessa o andar para
entregar-se à beleza da entrega.
A Itália, centro da produção artística europeia, tornara-se o vigoroso polo irradiador
96 de influências estéticas para todo o continente europeu, como resultado de transformações
sociais vigorosas, quando se iniciava o que se pode chamar de uma fase civilizatória. A
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito

ciência era a gestante da modernização das estruturas políticas, religiosas, científicas e, em


especial, de reposicionamento cósmico da Terra contradizendo a certeza copernicana do
heliocentrismo. Este era previsível em antigos textos árabes, sânscritos, gregos e latinos,
embora essas fontes originárias não houvessem explanado técnica ou cientificamente suas
antecipações. Opunha-se ao credo geocêntrico que vigorava como realidade espacial para
o homem, desde Claudius Ptolomeu (78-161 d.C). Em 1543 Nicolau Copérnico colocou
o sol no centro do universo postulando o novo movimento da terra e das estrelas. A
descoberta impactou a certeza religiosa. O geocentrismo deixava de ser o núcleo gerador
de certezas quando o mundo se expandia para o sol, para a profundeza dos mares e para
a América que confundiu Colombo com as Índias. Reforçando o mistério, a Igreja adotou
o saber ptolomaico entendendo que, se o homem é a criação suprema de Deus, a quem se
assemelha, só poderia estar em um planeta de primeira grandeza e este, a Terra, só poderia
estar no centro de seu sistema interplanetário. Ademais, a narrativa bíblica justifica as
ações criativas divinas, acontecendo na Terra, território de toda a felicidade paradisíaca,
onde habitaria o homem. Isso era incontestável. Contradizendo o mito, as tecnologias
em expansão acompanhavam a ampliação do saber científico com microscópios
e telescópios escandindo micro realidades e perscrutando o céu. Isso desconstruía o
movimento harmônico e multi secular entre ciência e fé. Os tipos móveis (circa 1439)

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


de Johannnes Gensfleisch zum Laden zum Gutemberg (1398/1468) permitiram que a
informação circulasse, iniciando seu período de democratização, do tempo que iniciava
a Revolução da Imprensa, cuja consequência imediata foi o lançamento das bases para
o conhecimento de massa, tendo o livro como seu primeiro produto. Esses eventos,
ainda que pontuais, foram se solidificando no saber comum, em uma sociedade cujo
tempo transcorria em velocidade sem atropelo. Chegavam como certezas inusitadas, ou
como comprovações de antigos saberes, quando as estruturas de poder se condensavam,
ampliadas pelo domínio geográfico e econômico ibérico. Certezas eram contrapostas à
frívola vontade popular que, por hábito temia as forças da natureza, atendia às profecias
da magia, consultava a astrologia mitológica, repreendida e castigada como pecado da
bruxaria. O extraordinário continuava matéria de interesse, enquanto os gabinetes de
curiosidades propalavam descobertas de seres estranhos vindos das terras distantes,
recentemente descobertas.

Cadernos de Estudos Culturais


O agostiniano Martinho Lutero (1483/1546) deu à fé as bases práticas pela
“justificação”, afirmando que ela é o elemento que ancora a doutrina cristã. O homem é
precioso pela sua utilidade e majestade em Cristo, entendia. O mais se dissipa em nada.
Esse é o diagnóstico da sua doutrina da práxis contrária á indústria de indulgências que
vai constituir o espírito progressita alemã, no imperativo da razão, como dirá mais tarde
a filosofia crítica de Emmanuel Kant (1724/1804 ). Lutero ratifica a certeza da salvação,
não pelas boas ações, mas como presente livre de Deus, dado pela graça e fundamentado 97
no princípio da sola fide, calcada em Romanos 1:17, onde está escrito “O justo viverá

Jorge Anthônio e Silva


pela fé”. Suas igrejas eram simples, despojadas e convenientes com a nova visão cristã
de mundo, sem intermediações estéticas, sem o culto a imagens, sem a constelação
de santos albergados no espaço de culto, inquiridores como inquisidores silenciosos.
Negou a cobrança de indulgências e publicou suas 95 teses que, de pronto se expandiram
por uma Europa carente de justeza religiosa. Nesse universo de indagações e certezas
temerárias, o agostiniano provocou um impacto sem precedentes na hegemonia católica
sobre o entendimento do mundo, com ampla repercussão política, rupturas clericais que
reordenariam o escopo da crença e produziria o grande cisma cristão, com a Reforma
Protestante. Isso levou o Papa Paulo III (1468/1549) a convocar o 19° Concílio, na
cidade de Trento (1545/1563), ou Concílio da Contra Reforma. Ali foram decididas
questões da afirmação católica, cujo contexto foi o Barroco, experiência inicial para a
nova experiência no mundo da fé. Propunha um “catecismo de imagens”. A editora belga
Plantin-Moretus disponibilizou vinte prensas, nas quais empregou sessenta e quatro
tipógrafos. Em 1541 acatou o pedido de seis mil diurnos, dois mil breviários, e quatro mil
missais, volumes impensáveis até então. Em Trento foi criada Companhia de Jesus para
formar missionários e educadores, em caráter de milícia. Fundaram cidades e ampliaram
tornaram a Contra Reforma mais poderosa.

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BARROCO na América Latina
As consequências das descobertas não poderiam ser mais contraditórias. Se, por
um lado, um novo mundo redimensionou os paradigmas de crença colocando por terra o
saber ptolomaico, adotado in totum pela Igreja, por outro significou uma fonte de renovos
para uma Europa carente de solidez em suas estruturas simbólicas, inexoravelmente em
processo de desconstrução. De há muito, os paradigmas constituintes das crenças que
alicerçavam um estar no mundo feito de certezas metafísicas, com Deus determinando
horizontes e balizando a vida ética, vinham sendo fustigados. Por certezas inquestionáveis
da astronomia, redirecionando para certezas tangíveis o imaginário comum, cristalizado
em séculos de coerção mítica e religiosa. O domínio espiritual era fortalecido pela crendice
no intangível produzido pela razão dominante, capaz de instaurar a ignorância como
paradigma. A ciência vinha sedimentado certezas no longo período em que a Renascença
foi secularmente se solidificando, trazendo certezas incompatíveis com a realidade
Cadernos de Estudos Culturais

revelada com a precisão da matemática euclidiana, adotada como esqueleto da pintura


renascentista. Cientistas expunham resultados de empirias a olho nu perscrutando o céu
com seus experimentos aplicados. Essa segurança, proibida pelo status quo comprovava
novas teorias sobre a realidade, colocando em risco certezas históricas desinteressantes
para a Igreja, em particular e como generalidade para o poderio real, com ela em históricos
acertos. Pautado em princípios universais, na América Latina aculturou-se, embalado
98 pelas finura local com práticas artísticas, adquirindo feições americanas diferenciadas,
implementando um criolismo estético no manancial múltiplo de personalidades plásticas
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito

da América hispânica e portuguesa. Compondo culturas híbridas e sociedades mestiças, a


superabundância barroca se relativiza em paz com a mais original e única personalidade
latina: suas sociedades opulentas e sua arte pré conquista, tão nobre e organizada como a
egípcia. Não se pode domesticar quem tem na maestria seu eixo vital. Os povos originários
eram puros e o hibridismo vai refundar a América Latina, completando-se sua variedade
visual na pena dos artistas viajantes, na importação dos avatares pós conquista, feitos
de dominação e rejeito. Há de se lembrar, as influências orientais na arte e arquitetura
mexicanas, vindas com os navios filipinos, carregados de mercadorias indianas, de Bengala
e do Sião, em troca do ouro de Potosí e de Guanajuato. Isso deu novos contornos ao
Barroco hispânico, em especial no México, onde se destacou o estilo mudéjar como
exceção. Houve intenso trânsito de artistas, o que contribuiu para a disseminação dessas
influências. Os artistas portugueses Manuel Couto e Manuel Dias transitaram por Buenos
Aires. Em Lima, Quito, Puebla, Tepoztlán e Bogotá foram erguidas construções do
arquiteto Gaspar Becerra Padilla (1520/1568). Os jesuíta Bernardo Bitti (1548/1610) foi
notável pintor e escultor introdutor do maneirismo no Peru. Transitou por Lima, La Paz
e Bogotá. O mesmo ocorreu com o romano Angelino Medoro (1567/1586). Difícil é
analisar a complexidade da arte no Continente.

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MÉXICO
Alonso Vásquez (1565/1508), escultor e pintor, iniciou a arte europeia do Barroco
colonial no México, junto com o flamengo Simon Pereyns (1530/1600). Foram os
iniciadores da pintura europeia no México. A formulação de um imaginário social é o
contributo da razão antropológica na organização de sociedades primeiras. Isso justifica a
riqueza mitológica na cultura nativa do território meso americano, negada com a chegada de
Hernán Cortêz (1485/1547) e Pedro de Alvarado (1485/1541) impostores dos princípios
de crença e da ortodoxia de além-mar, frente a nostalgia de um mundo de inteireza, regido
pela crença na divindade solar, que jamais seria igual a si. A riqueza simbólica no vice-reinado
do México continuou pulsando mesmo quando derruídos os teocalis astecas, os sábios
da arquitetura Maia e, mesmo depois que a rígida engenharia Inca se perdeu na vegetação
equatorial. Os chegados vinham de uma educação e tradição visual do quattroccento, com
os escorços de Andrea Mantegna (1431/1506) e Donato di Niccoló di Betto Bardi, dito,

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Donatello (1386/1466), cujo bronze Davi é o ideal perfeccionista de corpo na escultura.
Paolo Uccello (1397/1475) era outro artista modelar na expressão quatrocentista com
suas destacadas impressões de relevo naturalista, com obsessão pela perspectiva e ponto
de fuga. A partir desses mesmos modelos estéticos, aos quais estava educado o olhar
que chegava, eram esculpidos os santos, os anjos, os baldaquins. Disso promoveram a
extirpação das idolatrias originais e definiram o fim formas pictóricas e escultóricas, em
prática desde a ancestralidade. Os códices astecas são documentos raros preservados 99
pelos próprios autores que os esconderam, tal sua importância na organização simbólica

Jorge Anthônio e Silva


da vida coletiva. Diferentemente dos códices europeus escritos, são pictoriais. Foram
pintados em livros e comprovam o sofisticado domínio técnico dessa arte no período
pré-colombiano. Em variadas cores, o que demonstra o domínio técnico na confecção de
tintas, os códices são numerosos. Destaque-se o Códice Borbônico. Data de longo tempo
anterior à chegada dos espanhóis, os nativos criaram o tonalamatl (em nauatle: páginas dos
dias) um almanaque de previsão do futuro para um ano de duzentos e sessenta dias, o
tonalpohualli. Cada página mostra vinte linhas com treze divindades em cada uma. As ricas
ilustrações com animais, casas, flores e outros signos eram combinadas pelo sacerdote
para a finalidade divinatória. Muitas dessas obras estão, hoje, em museus estrangeiros.
São variados e retratam diferentes aspectos da cultura asteca. São conhecidos o Códice
Boturini (1530/1541), o Mendoza (1541), o Florentino (1540/1585), o Osuna (1565), o Aubin
(1576), o Magliabechiano, (Início do Século XVI) o Cozcatzin, (1572) o Ixtlilxochitl, (Início
do Século XVII) e o Libellus de Midicinalibus Indorum Herbis (1552). Dão conta documental
e artística da capacidade estética asteca em representar, com delicadeza e rigor estilístico,
em narrativa naturalista própria, temas sobre os quais os antropólogos, historiadores e
pesquisadores da estética, continuam debruçados.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


BRASIL
O barroco brasileiro configurou-se dentro das determinações do seu similar
ibérico como se verifica em pesquisas de campo, em coleções e museus, em publicações
acadêmicas e outras que tais, mais os marcos da arquitetura privada e pública do estilo
em questão. Produto educativo dos jesuítas foi poderoso instrumento de catequese
e aculturação indígena e negra em todo o País. Nesse sentido, ideologicamente o
Barroco cumpriu função assemelhada às de sua origem europeia. Fortificou-se nos
pontos administrativos e desenvolvimentistas da Colônia, enfatizando-se, inicialmente,
como estilo em Salvador. Com a descoberta do ouro, a arte barroca transferiu-se para
a, então, Vila Rica, onde medrou a produção artística com materiais inéditos, como a
pedra sabão. São bem preservadas essas obras em reservas técnicas e espaços de culto
e públicos. Em grande extensão, O Barroco localizou-se na costa brasileira, mesma
região do primeiro ciclo desenvolvimentista do Brasil, deixando sítios arquitetônicos
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em quase toda a extensão marítima. Contudo, por questões econômicas, Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso tiveram seus artistas e arquitetos. O Barroco está diretamente
atrelado às novas concepções artísticas no Brasil do Século XVIII, com as mudanças
econômicas processadas na colônia. Resultado da descoberta de ouro nas Minas Gerais,
essa nova fonte de riqueza fez proliferar construções, fontes públicas, mobiliário e a
produção de imagens de inspiração diversa, com ênfase nas religiosas. Influenciado pelo
100 ibérico, o brasileiro foi produzido por artesãos ligados à criação religiosa, tarefa que,
pela sua natureza, instituiu a função do artista no País, tal a capacidade de impressões de
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito

particularidades na iconografia por eles produzida, dentro de uma generalidade estilística


prévia. Manuel de Brito (1749/1799) e Francisco Xavier de Brito (1751/1806) decoraram
o interior da Igreja da Ordem Terceira. João de Deus Sepúlveda (Século XVIII) foi
o pintor do famoso teto da Catedral de São Pedro dos Clérigos, em Recife. Manuel
Inácio da Costa (1763/1857), José Joaquim da Rocha ((1737/1807), Mestre Valentim
(1745/1813), Mestre Ataíde (1762/1830), Frei Jesuíno do Monte Carmelo (1764/1819
), Manuel da Costa Ataíde (1762/1830), o entalhador Antonio Mendes da Silva (1792/
c. 1841), Leandro Joaquim (1738/c. 1798) juntam-se a expressivo número de anônimos
na produção do riquíssimo acervo barroco no Brasil. Destaque-se Antonio Francisco
Lisboa (1730/1814), que assumiu o posto de ícone maior do período, esplendor da arte
barroca, cuja fama só faz crescer, na exata medida em que os arautos do baixo comércio
de arte continuam inflacionando o mercado de antiguidades com jogos do mercado que
administram. Colocam obras do período assemelhadas às do artista e postulam autoria
para seus achados. Filho de escrava amasiada com seu feitor, este a libertou no dia do
nascimento do filho. Estudou desenho, escultura e pintura no ateliê do pintor e desenhista
João Gomes Batista. Provavelmente acometido de zamparina, doença endêmica da época,
Aleijadinho, como um condenado ao trabalho, continuou esculpindo, mesmo ferido nas
mãos, pela enfermidade. Cortou uma delas para aliviar dores. Muito em sua biografia

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é indefinido por falta de documentação. Sabe-se mais sobre o artista pela narrativa da
época. Helena, uma vizinha alegou que a doença de Aleijadinho poderia ser proveniente
de uma panacéia vendida por enganadores da época, sob o nome de cardina. A dúvida só
faz crescer o mito. Se a vida é passagem de interesse para a obra, esta seguramente torna-
se maior na medida do seu tempo, amparada na capacidade criadora invejável do artista,
uma técnica pessoal insuspeita e definidora de seu estilo único no barroco latino. Deixou
obra magistral, leve e em alguns segmentos contrária ao peso ornamental do Barroco.
Seu traçado é anguloso, com cavanhaques feitos os do cristo europeu, usou materiais
culturalmente disponíveis em seu espaço de vivência. A pedra sabão como elemento
nobre na escultórica brasileira é uma invenção do artista.

PERU
O encontro de culturas pode diluir crenças e vitalizar valores externos, dispersando

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marcas determinantes na forma de ser e de condução da vida. É razoável pensar que
onde o conflito foi mais acirrado e sangrento, no México e no Peru, a arte foi a mais
visceral, personalíssima, pungente e única. Cuzco foi o primeiro centro de estudos e
formação em artes do continente. Os locais desenvolveram a tradição de fertilidade na
ourivesaria e no trato com tecidos delicados pela qualidade de suas matérias primas,
mais a lã abundante. O Barroco ali aportado foi impregnado pela força telúrica da mão
inca, afeita no trato com a pedra, com o ouro e suas misturas. O manejo do metal em 101
peitorais, a escultura em madeira e barro, a arte pictórica em geometrias abstratas, com

Jorge Anthônio e Silva


a representação de animais estilizados na construção compositiva, somou-se ao desenho
em tecidos finos pelo primor das mulheres. Data de 1538 a Escola de Cuzco, criada
pelo jesuíta italiano Bernardo Bitti (1548/1610) que logo se expandiu para a Bolívia
e Equador. Feito assemelhado ocorreu sob a ação do frei Jacobo Ricke (1498/1575)
que, em 1553 no Equador, criou a completa Escola de Artes e Ofícios, onde ensinava
artes a caciques, mestiços e criolos. Dali saiu o gênio artístico de Andrés Sánches
Gualque y Caspicara (1723/1796). Para a constituição definitiva do barroco peruano,
posteriormente transformada em arte cusquenha, foi fundamental a contribuição
indígena à técnica e estética espanhola, cujo traço inicial vinha influenciado pela arte
andorrana, flamenca e bizantina. Outros influxos chegaram pela força do tenebrismo
em voga, de Francisco de Zurbarán (1598/1664), enviados a Cusco pelo próprio artista,
intermediado pela Espanha. Os artistas cusquenhos desconheciam a perspectiva, técnica
matematicamente verista que caracterizou a Renascença, criando a força primitiva no
Barroco que ali fundiu elementos plásticos europeus com uma iconografia de base foliar
e da fauna. Essa constatação leva o pesquisador a entender a razão da desproporção
entre as volumetrias centrais e periféricas no espaço pictórico. O prestígio adquirido
pela Escola de Cuzco nos séculos XVII e XVIII justifica-se na encomenda de cerda
500 telas para igrejas locais, outras da Argentina e do Chile. A formação de mestres

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


pintores foi consequência do hibridismo que tanto medrou nos Andes peruanos. O
italiano Angelino Medoro (1567/1633) deixou notável obra pictórica, em especial em
Lima, Bogotá e Quito, influenciando posteriores artistas locais como Luis de Riaño
(1596/s/d) e Antonio Bermejo (1853/1929). Diego Quispe Tito (1611/1681) índio de
reiterado talento para a pintura foi influenciado pelo nascente maneirismo europeu, pela
gravura flamenca contemporânea sua, e por Rembrandt von Rijn (1606/1669). Deixou
sua versão de Atahualpa em majestade que, após vencer seu irmão Háscar, foi nominado
El Inca. Mestre de Callamarca (Primeira metade do XVIII), embora boliviano, foi o
criador da série de anjos arcabuzeiros, que tanto identificam popularmente Escola de
Cusco. Basilio Pacheco de Santa Cruz Pumacallao (1635/1710), pintor quechua, talvez
o mais proeminente da Escola de Cusco em seu período. Marcos Zapata (1770/1773),
também quéchua nascido em Cusco, pintou para a Catedral da cidade uma Última Ceia,
na qual a Cristo é servido um roedor viscacha assado e um copo de chicha. O imaginário
Inca construiu um panteão de deuses cujo correlato real era a natureza inóspita andina,
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de onde irrompia o sobrenatural com suas demandas de ritos para apaziguamento de sua
ira. Isso estabelece a relação entre o homem transitório e os arquétipos da eternidade
permanente. A tradição da prataria e da ourivesaria peruana remonta 3.000 anos. Com
o Barroco, a técnica assumiu as novas formas do estilo, em especial em objetos, tanto
prático quanto religioso. São exuberantes as custódias rococós, nas quais foi preservado
o estilo limenho. Auréolas em prata sobredourada, engastadas com pedras de variados
102 matizes e qualidades para acréscimo em imagens religiosas, mais os candelabros, navetas,
O BARROCO LATINO e o olhar contrafeito

papelinas, atris, jarros, coroas reais, carteiras femininas, ostensórios em estilo Lezana,
atavios de cavalgaduras, auréolas, cálices e incensórios.

CONCLUSÃO
A arte barroca intermediou processos de conquista e submissão, constituindo-se
em unidade estética no continente, aculturando-se na variedade criativa e material da
America Latina.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 93 – 102, jul./dez. 2012.


ARTE en la frontera1
Leonor Arfuch2

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Umbral, frontera, límite. Significantes que acosan nuestra percepción cotidiana, lo permitido y lo
prohibido, lo decoroso y lo censurable. Pero también perturban la incursión del lenguaje en los territorios 103
de la intimidad –ya devenida pública- y el aventurado transitar entre disciplinas que trazan zonas de

Leonor Arfuch
inquietud, donde nada está dicho de modo irrevocable. Las prácticas artísticas, la escritura, y también
el despliegue de la imaginación teórica, alientan la exploración de los límites, a tono con el devenir
contemporáneo y la (supuesta) evanescencia de las fronteras. Sin embargo, estas parecen acentuarse al
tiempo que la conectividad global da la ilusión de ubicuidad absoluta. En ese borde que plantea la
pregunta –dilemática- entre el “adentro” y el “afuera” –un borde que es tanto ético, como estético y
político- plantearé algunas reflexiones sobre prácticas y escrituras que trabajan justamente en la infracción
de los límites, desde una perspectiva semiótico-discursiva de crítica cultural.
Lenguaje, transgresión y fronteras… tres significantes cuya articulación no resulta
inmediatamente evidente pero que sin embargo delinea una espacialidad reconocible,
tanto física como simbólica, tanto territorial como subjetiva. Una articulación, por otra
parte, que toca de modo muy sensible a México y que alguien realizó magistralmente desde
aquí – entendiendo esta tierra, precisamente, más allá de sus fronteras – en la palabra, en
la lengua, en el cuerpo, en el territorio: Gloria Anzaldúa, la poeta y escritora chicana, en
ese texto emblemático que fue Borderlands, La frontera, The New Mestiza, publicado hace ya más
de veinte años [1987] 1997).

1
Este texto fue presentado en un panel en el marco el Seminario Giros Teóricos IV “Lenguaje, transgresión y
fronteras”, México DF, UNAM/IESU. 21-24 de febrero 2012.
2
Leonor Arfuch é professora no Instituto de Investigaciones Gino Germani, Universidad de Buenos Aires.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
Un texto donde la cadencia de la lengua materna, componente esencial de aquello que
llamamos, provisionalmente, identidad, adquiere otras modulaciones, se carga de nuevos
sentidos, configura un espacio siempre en desajuste con el territorio -y un territorio en
desajuste con esos pobladores - y donde traducción y transgresión se avienen y confrontan en
una inevitable relación de amor y odio: ¿Spanglish, Stándar English, North Mexican Spanish,
Tex-Mex? Anzaldúa realiza en ese texto una interrogación antropológica, poética y política,
donde la propia biografía se lee en clave de una épica, de una gesta colectiva periódica y a
menudo trágica, y de un trasfondo histórico que articula remotos pasados, como el territorio
mítico de Aztlan, cuna de los senderos de Mesoamérica -que supuestamente se encuentra bajo
los pies-, con un presente de penosos “retornos”, todo ello desde los acentos de la lengua
cotidiana, de la imaginería doméstica, de la tensión entre el legado de la tradición y su deber-
ser-mujer y la propia orientación –y transgresión- identitaria: chicana, lesbiana, feminista,
activista, escritora, poeta...
Cadernos de Estudos Culturais

Lenguaje, transgresión y fronteras aparecen así en una conjunción casi obligada,


abriendo una cadena de semiosis que bien podríamos definir, con Peirce, como infinita.
Infinitas las tramas de sentido que esta conjunción puede desatar hoy en ese mismo –y no
mismo- territorio, atravesado por la herida infamante del muro y el esfuerzo sin tregua por
sobrepasarlo, a riesgo de vida -una epopeya cotidiana que las cámaras infrarrojas registran
en una ominosa deshumanización de figuras sin rostro, moviéndose en un mapa geológico,
104 como lo mostrara Chantal Akerman en su film De l’autre côté- así como en otros territorios
distantes y otros muros que, lejos de caer, se siguen multiplicando en la segunda década del
ARTE en la frontera

siglo XXI.
He aquí una de las tantas paradojas de la globalización, que por un lado alienta la
ubicuidad, la conexión sin límites en un espacio que se pretende casi interestelar, por el otro
agudiza una partición de territorios que reniega de huellas milenarias e impone barreras
infranqueables a la diferencia y la desigualdad. Barreras que contrarían la valencia polisémica de
frontera: umbral, puerta, contacto, intercambio, y por qué no, bienvenida, hospitalidad... Porque
el espacio no es una mera superficie donde se acumulan los dones o castigos de la naturaleza
y los vestigios de la cultura sino, como afirma Doreen Massey (2005), el producto constante
–y siempre inacabado- de relaciones e interacciones, de las más íntimas a las “globales”, y
por ende, abierto a la multiplicidad, a la diferencia, al devenir del tiempo y de la historia. La
espacialidad –la espacio/temporalidad- es entonces política y generizada, es un área prioritaria
en el ejercicio –y el reparto- del poder, que se enfrenta al desafío de la multiplicidad, a la trama
compleja de interacciones que rebasan las fronteras, al imaginario persistente de las mitologías,
a la identificación de los lugares como propios –hogar, región, terruño, pueblo, aldea-, que
resisten a la estratificación y al orden que divide el mundo en centros y periferias –aún cuando
la periferia esté ya instalada en el “centro” o, hipotéticamente, sean todas “periferias”-; lenguas
jerárquicas y secundarias; fronteras lábiles o férreas –o ambas cosas a la vez, según de qué lado
se intente pasar, como entre Tijuana y San Diego, por ejemplo.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
Esta obsesiva partición –y repartición- de territorios, fronteras interpuestas donde
no las había, invasiones, tráficos, saqueos, expulsiones de poblaciones enteras, migrancias
inducidas por el miedo, el acoso o la miseria; nuevas conquistas de zonas pródigas en
recursos naturales en desmedro de sus pobladores, hacen de la territorialidad un elemento
decisivo en esta etapa del capitalismo, que cada vez parece alejarse más de su carácter
“metafísico”, como lo definiera Scott Lash (2005), aludiendo a ese reparto de poder
que se consuma en las pantallas liquidas de las bolsas del mundo, sin ninguna instancia
material. O en todo caso habría que pensar que lo virtual surge también inevitablemente
sobre esos territorios y que la “guerra perpetua” es su modelo y su precio.
Pero también se agudizan las fronteras internas entre los propios habitantes que
podrían reivindicar la pertenencia a un lugar: fronteras urbanas trazadas por procesos
de gentrificación, con su vaciamiento de zonas degradadas para hacer de ellas nuevos
anclajes para nuevos pobladores o barrios que van quedando marginalizados mientras

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otros se transforman al ritmo del diseño y de la moda. Fronteras lábiles pero que pueden
hacerse férreas según las circunstancias, suponer peligros para transeúntes desapercibidos
o dar lugar a guetos que requieren salvoconducto para poder pasar, aunque sea lingüístico
o visual, como es el caso de las (mal) llamadas “tribus urbanas” cuyo reconocimiento
identitario también suele basarse en lo territorial. Y están también los barrios de
autoencierro, que intentan interponer barreras a un “afuera” impreciso e inquietante. En
cualquier caso, la imposición del límite, la frontera, conlleva la amenaza –y el deseo- de 105
la transgresión.

Leonor Arfuch
Es que la transgresión está contenida en la idea misma de frontera, así como
en el simple ejercicio del lenguaje. Y hasta podría decirse que es la fuerza que anima,
secretamente, todos los tránsitos. Desde el esforzado eterno retorno de quienes una y
otra vez intentan llegar “del otro lado”, donde la dificultad del acceso parece incrementar
la fantasía, hasta los significantes que acosan nuestra percepción cotidiana, marcando lo
permitido y lo prohibido, lo decoroso y lo censurable. Umbral, frontera, límite, señalan
por ejemplo, quizá en un crescendo, los grados de incursión del lenguaje en los territorios
de la intimidad, gradación que asimismo podría expresarse, más allá de la clásica distinción
moderna entre público y privado, en la sutil escalada que supone pasar de lo biográfico
–perfectamente público- a lo privado –que ya no lo es tanto- y a lo íntimo, que constituye
hoy el mayor atractivo de los medios de comunicación, una intimidad devenida pública
en una transgresión generalizada y por lo tanto ya estereotípica.
En efecto, ¿qué podríamos considerar verdaderamente transgresivo en nuestras
sociedades contemporáneas, donde, contrariamente a lo que sucede con los territorios
físicos, hay un creciente desdibujamiento de límites y fronteras que en líneas generales sólo
cabe celebrar? Una mayor apertura conceptual, un aflojamiento de la norma, una “cultura
mundo”, como algunos autores gustan llamar (Lipovetzky y Serroy, 2008), estimulada no
sólo por las tecnologías sino también por viajes y migrancias voluntarias, parecen incidir
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
fuertemente en los procesos de subjetivación y reconfiguración identitaria, tanto a nivel
individual como colectivo, lo que genera una liminalidad -inquietante para algunos- entre
prácticas y espacios antes relativamente autónomos.
Prácticas de la vida cotidiana, desde luego, alimentadas en buena medida por la
conectividad global y su imposición de formas, hábitos y modelos de vida; espacios
académicos e intelectuales, donde una actitud no reverencial hacia los cánones instituidos
ha dado impulso a un pensamiento transdisciplinario; prácticas artísticas, que dejan
de lado la pregunta por la obra para desplegar más bien su comunicabilidad formal y
conceptual en el contexto acuciante del presente; prácticas de escritura, que infringen lisa
y llanamente los cánones al punto de tornarse inclasificables –o “post-autónomas”, como
las define Josefina Ludmer (2011).
Una permeabilidad que se evidencia asimismo en la consideración positiva de los
espacios intersticiales, como lo expresan las figuras teóricas del intervalo o del in between
Cadernos de Estudos Culturais

–“zonas fronterizas” del pensamiento, según el decir anticipatorio de Bajtín, (1982:294),


que se desenvuelven en “los límites, empalmes y cruces” de las disciplinas-, y en la
valoración de la ambigüedad, lo indecidible, lo que puede ser una cosa y su contraria,
tema recurrente en la perspectiva de Derrida.
En estos devenires, la expresión de la subjetividad, la voz y la presencia tienen
lugar de privilegio. Transgrediendo sus espacios canónicos, las narrativas del yo –y sus
106
múltiples máscaras- se difuminan en los más variados géneros y registros de la cultura,
ARTE en la frontera

auto/biográficos, testimoniales, memoriales, autoficcionales, haciendo gala del haber


vivido o haber visto y ofreciendo el don de la “propia” experiencia. Aquí también se han
corrido los límites –éticos, estéticos- y nuevas modulaciones advienen al rumor incesante
del discurso social. En la escritura, en las pantallas –todas ellas-, en los escenarios, en el
museo y sus ámbitos conexos, en el arte público y la performance callejera. Narrativas
cuya diversidad perturba cualquier intento de taxonomía y que quizá por ello resultan el
ámbito propicio para dar cuenta de las transformaciones de la subjetividad, las identidades,
la memoria y la experiencia individual y colectiva de este tiempo, y es su puesta en forma,
que es puesta en sentido, lo que permite articular, en el análisis, su dimensión ética,
estética y también política.
En ese “dar cuenta” del acontecer, en esa “puesta en forma”, la imagen –en la
cultura de la imagen- tiene un indudable protagonismo. La imagen móvil, en sus
innúmeros registros, del documental al video arte, de lo institucional a lo marginal; la
imagen fija, donde la fotografía, pese a la manipulación tecnológica, ha recuperado su
aura de veracidad -quizá por la monstruosa cara del mundo que le toca revelar-, al tiempo
que se impone en las prácticas artísticas con un impacto potente y metafórico.
Fue precisamente a través de la imagen y por esas casualidades que no lo son tanto,
que la frontera, aquélla que Gloria Anzaldúa trazara con la iconicidad de la palabra y la

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
fuerza performativa de la lengua, tensando los límites entre traducción y transgresión,
retornó, como una acuciante interrogación, ante On translation/ Fear/Miedo, obra de
Antoni Muntadas sobre la frontera San Diego/Tijuana, que formó parte de La Memoria
de los Otros (2010), una exposición de video arte curada por Anna María Guasch en el
Museo de Bellas Artes de Santiago de Chile, que tuve la suerte de ver. La obra había
sido creada años antes, para participar del inSite05, una organización con sede en San
Diego que propicia el activismo del arte en el espacio público entre ambas regiones, y el
propósito inicial del autor fue que el video se pasara a los dos lados de esa frontera y por
la televisión, tanto en México DF como en Washington, cosa que efectivamente sucedió
aquí, donde Televisa lo pasó por el Canal 12.
Muntadas elige partir también desde el lenguaje, poniendo en tensión la traducción
con el sentimiento más común del ser humano, Fear/Miedo, experiencia compartida a
ambos lados de la frontera, cada uno con su modulación particular: desde San Diego,

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el miedo a la llegada del narcotráfico, de la mano de obra barata, sin papeles, de una
lengua cuya expansión amenaza el inglés; desde Tijuana, unido a la esperanza, un
miedo más físico, de ser atrapado por la migra, deportado, de perder la vida o de vivir
en la precariedad sin reaseguro de permanencia. El lenguaje del arte se aleja aquí de los
significantes más trillados: la violencia, la victimización –y por ende, la compasión-, para
dar la voz, de ambos lados, en ambas lenguas, a gente de diversas clases, edades, sexos,
en un collage audiovisual entre textos, estadísticas, vistas del paisaje, imágenes de films, 107
publicidad, música…una distancia socio antropológica en una mirada estética, que opera,

Leonor Arfuch
a la manera del dialogismo bajtiniano, poniendo en sintonía –y por ende, en posibilidad de
respuesta- los respectivos prejuicios y el profundo desconocimiento del otro –alimentados
sabiamente desde los Estados, los medios de comunicación y los tráficos, esa “industria
del miedo”, al decir del autor, que prospera en y gracias a la frontera, la trama de negocios
que desafía toda interpretación dicotómica a favor de unos y en desmedro de otros…
La frontera, parece decirnos, se establece, simbólica y simbióticamente, a ambos lados, y
el desafío del miedo –y también sus víctimas- se juega justamente en el medio, in between.
Un lugar “entre”, podríamos aventurar, que nunca abandonarán los que logren cruzar
“del otro lado”: será otro cruce, entre lenguas y culturas On translation, con sus pérdidas
y ganancias, su “ni---ni” indecidible. Un lugar que quizá compartimos sin haber cruzado
en permanencia una frontera física, que hasta podría definirse, metonímicamente, como
un modo de ser contemporáneos.
No sólo Muntadas se ocupó de la frontera en esa exhibición –que incluyó también su
trabajo simétrico, Miedo/Jauf sobre la frontera marina de Tarifa/Tánger, con el terrorismo
como otro componente esencial- sino también el artista polaco Krzysztof Wodiczko,
con The Tijuana Projection, una intervención llevada a cabo en 2002 en la fachada del
CECUT, Centro Cultural de Tijuana, conocido popularmente como “la Bola”. El artista,
que suele trabajar en transgresión de escala, proyectando imagen y voz sobre edificios

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
o lugares emblemáticos para establecer una conexión subversiva y crítica con ellos –
como en su Hiroshima Projection –, lo hizo esta vez haciendo aparecer, sobre los muros,
enormes rostros de personas que narran el drama de su experiencia como inmigrantes
en tiempo real, expresando así la dislocación con ese espacio – el CECUT –, concebido
con un propósito dinamizador e integrador –Tijuana como atracción turístico-cultural y
no solamente como reino del narco, la prostitución y la “vida alegre”. Ante esa “fachada”
– y acentuando quizá su acepción como mera apariencia- rostros, voces, historias
-anclajes biográficos de lo colectivo – desafían la monumentalidad abstracta y silenciosa
mostrando lo no dicho, la afectación que ese cronotopo – el miedo, la frontera- tiene en
la vida cotidiana, las formas de convivencia, el reconocimiento de sí, la vida del espíritu,
en definitiva, transformando así el género espectacular de los medios en lenguaje crítico.
En efecto, ambos artistas trabajan sobre el modo del espectáculo, concitando
audiencias, presencias reales en escenarios verdaderos, y mostrando la potencialidad de
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transgresión de los lenguajes utilizados, su deslinde de la repetición y el estereotipo. Una


vez más el arte compite en eficacia simbólica y política con ciertos discursos desgastados,
tanto a niveles oficiales – lo que Bourdieu llamó langue de bois – como disciplinares, cuando
la problemática contemporánea de la frontera, multifacética y hasta paradojal, se pretende
abordar estrictamente desde una órbita acotada a estudios específicos.
Y para cerrar, aun provisoriamente, el círculo de las coincidencias – o para reafirmar,
108 a la manera de la semiótica peirceana, que no hay dos sin tres – también en 2010 se pudo
ARTE en la frontera

apreciar en la Tate Modern, en Londres, una retrospectiva de Francis Alÿs, el artista


belga que eligió vivir aquí, en DF, y que muchos de ustedes deben conocer. Dos obras en
particular ponían el acento en la desgarradura de la frontera: The Green Line (2005), una
acción que consistió en recorrer a pie, dejando caer pintura verde, la vieja línea divisoria
entre Israel y Jordania (1948) en Jerusalem, traspasada hacia el este por Israel sobre
poblamiento palestino después de la Guerra de los Seis Días (1967) y donde comenzaba
a alzarse, casi a su paso, otro de los infames muros del planeta; y The Loop, una vez más
sobre la frontera Tijuana-San Diego. Invitado también a participar del inSite en 1997,
decidió utilizar sus honorarios para trazar una curva física, territorial, en un viaje de casi
medio mundo, que partió desde Tijuana, recorrió la costa de América hasta Santiago de
Chile, cruzó luego a Nueva Zelanda, Australia, Singapur, Hong Kong, y todo el borde
del este asiático, pasó luego a Alaska, Canadá, para llegar finalmente a San Diego, seis
semanas después, sin haber cruzado la frontera. La performance quedó consumada en
una postal, que se iba distribuyendo en todos esos sitios y el objetivo era doble: por un
lado, poner el acento crítico en la dificultad intrínseca y las vicisitudes del cruce de esa
frontera, por el otro, ironizar sobre los excesos del art world travel de los 90.
Exceso y transgresión a”así ligados, casi naturalmente, a la problemática de la
frontera. En el devenir cotidiano de los que van y vienen – el diario on line de Tijuana
registra, junto con la temperatura, el tiempo estimado de espera hacia San Diego-; en su
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porosidad y sus filtraciones –niños que pasan, en algún lugar, a jugar “del otro lado”–;
en la travesía de los que intentan franquearla sabiéndose indeseados; en la parafernalia
intimidante de faros, rejas, cámaras, patrullas –cuyo ejemplo emblemático es, otra vez,
la militarizada Tijuana/San Diego–, y también en el trabajo de estos artistas, en la
búsqueda de los lenguajes que, lejos del manifiesto o la “victimología”, puedan expresarla
cabalmente, y sobre todo críticamente.
¿Por qué traer a colación, en este evento, estas exploraciones en los límites? Una
primera respuesta sería quizá un tanto personal: una pasión por lo visual que convive
con la pasión por el lenguaje. Pero la segunda, más concreta, es que creo que podemos
aprender –en un encuentro de gente de educación- de estas formas de articular lo teórico,
lo estético, lo ético, lo político, en una “subjetividad crítica” o una “percepción que
solicita la participación” , como propone Muntadas (2007); o bien, como reza el adagio
de Alÿs para The Green Line, “A veces, hacer algo poético puede tornarse político, a veces, hacer algo

Cadernos de Estudos Culturais


político puede llegar a ser poético”(Sometimes doing something poetic can become political and sometimes
doing something political can become poetic). Unas formas que también nos interpelan en cuanto
a la concepción misma de transdisciplina, como intersección imaginativa de diferentes
saberes, cruces, atravesamientos entre campos, múltiples visiones simultáneas de un
objeto de estudio en relación con una actualidad (Arfuch, 2008), desdeñando el patrullaje
de fronteras –disciplinares-, al que tan afectas continúan siendo ciertas posiciones, aún
en el devenir de este nuevo siglo. Esto no supone por cierto ninguna liviandad y tampoco 109
improvisación, más bien apertura, escucha, disposición hacia el otro –el otro saber, la

Leonor Arfuch
otra mirada, el Otro, simplemente. Atreverse a salir del encierro que a veces supone
la especialidad –sin desmerecerla – hacia la espacialidad, podríamos decir, hacia lo que
diversas narrativas –de la filosofía, el cine, las artes, la literatura, la poesía – tienen para
decir de nuestro conflictivo presente.
El umbral, la frontera – así como el lenguaje y la transgresión – delinean asimismo
el espacio del aula, ese lugar simbólico que deja huella perdurable en la construcción de
sí y de los otros, y donde pueden desplegarse el miedo, la discriminación, la violencia y
reforzarse acendrados prejuicios, todo lo cual acrecienta nuestra responsabilidad. Aquí
también se abre el terreno de la exploración sobre los límites – del poder, del saber, de la
autoridad – donde voces, memorias y biografías son esenciales al reconocimiento, tanto
desde lo personal como en las experiencias y vivencias compartidas.
Finalmente, y siguiendo con la tríada, habría todavía – si – me lo permiten –, otra
respuesta posible al porqué de esta exploración, que me ha llevado, por esas casualidades
que no lo son tanto, a encontrar – y elegir – estas obras y estos artistas: el espacio biográfico,
tema al que me he dedicado largamente (Arfuch, 2002) – pero nunca para hablar de mí–,
el hecho fortuito de tener un hijo que vive en San Diego y percibir, en cada visita, desde
una mirada distante y una “subjetividad crítica” – desde el español de Buenos Aires,
desde nuestra frontera mítica del “fin del mundo”– las contradicciones y las tensiones, la
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.
simbiosis peculiar de esa región de “dos lados”, la pugna desigual de lenguas y culturas
y la sordidez amenazante de esa frontera, aunque mi lejano pasaporte me dispense del
miedo.

Bibliografía
Agra, R.; Zappa, G. Contextos dos. Muntadas, una antología crítica, Buenos Aires, Nueva
Librería, 2007.
Anzaldúa, G. Borderlands, La frontera, The New Mestiza, San Francisco, Aunt Lute
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Arfuch, L. Crítica cultural entre política y poética, Buenos Aires, Fondo de Cultura
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Cadernos de Estudos Culturais

_____. El espacio biográfico. Dilemas de la subjetividad contemporánea, Buenos Aires, FCE, 2002.
_____. O Espaço Biográfico - Dilemas da Subjetividade Contemporânea. Trad. Paloma Vidal, Rio
de Janeiro, EdUERJ Editora, 2010, 370 pp.
Bajtin, M. Estética de la creación verbal, México, Siglo XXI, Lash, S. 2005 “Capitalismo
y metafísica” en Arfuch, L (Comp.) Pensar este tiempo. Espacios, afectos, pertenencias, Buenos
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ARTE en la frontera

Ludmer, J. Aquí América Latina. Una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2011.
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Arfuch, L. (Comp.) Pensar este tiempo. Espacios, afectos, pertenencias, Buenos Aires, Paidós,
2005, pp. 101-129.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 103 – 110, jul./dez. 2012.

CULTURA E POLÍTICA,
1967 - 2012: a durabilidade
interpretativa da Tropicália

Cadernos de Estudos Culturais


Liv Sovik1

Espírito é o que enfim resulta


De corpo, alma, feitos: cantar

111
Todo relato histórico é interessado. No texto de 1978 intitulado “Cultura e política,

Liv Sovik
1967-1969” e mais recentemente, de novo, Roberto Schwarz busca explicar o que
aconteceu nos anos 60 e com a esquerda, levando em conta as divisões políticas e a
cultura industrial, sempre alerta para o desenvolvimento econômico capitalista e suas
determinações (SCHWARZ, 1992 e 2012). Antonio Cicero, com outro olhar, quer
entender a proposta artística de Caetano Veloso e sua ligação com a bossa nova, no
contexto dos processos de inovação na arte e na música (CICERO, 2003). Em 1994
defendi uma tese sobre a tropicália, para mostrar que o Brasil produziu uma estética
pós-moderna, embora os teóricos do pós-moderno europeus e norte-americanos não
a tivessem previsto em um país subdesenvolvido; concluí que a estética pós-moderna
é fruto mais da frustração de energias utópicas do que da aceleração e superficialização
da vida social, fruto do desenvolvimento tecnológico (SOVIK, 1994). Hoje, a questão
em pauta não é o subdesenvolvimento. Se o Brasil é periférico, também é uma potência
emergente. O momento atual brasileiro parece ser muito bom, de distribuição de renda,
estabilidade econômica e surgimento de uma nova “classe média”; de entusiasmo com
a perspectiva de estar nos holofotes do mundo durante a Copa do Mundo e os Jogos
Olímpicos; de aparente seriedade em torno da corrupção e das contas públicas. O que
se pretende aqui é revisitar a Tropicália para entender o que ela – ou mais precisamente,

1
Liv Sovik é professora da UFRJ.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
o disco Recanto (2011), de Gal Costa cantando canções de Caetano Veloso, nos diz hoje,
sobre a condição contemporânea do Brasil.
Segundo Silviano Santiago, em um estudo da correspondência entre artífices do
modernismo brasileiro, a interpretação do Brasil era uma tarefa “diária, destemida e
contínua”, que provia os alicerces de sua produção artística e ensaística. Além disso,
diz Silviano, “a tarefa de interpretação da nação era – e deve continuar sendo – uma
tarefa diária” (SANTIAGO, 2007, p.7). A interpretação do Brasil pelos tropicalistas
Tom Zé, Gilberto Gil e, sobretudo, Caetano Veloso, passa pela sua capacidade de encenar
pensamentos e sentimentos; essas encenações dizem respeito à situação do país e à
experiência de uma geração. No entanto, nem sempre o tropicalismo foi central para
a memória cultural. Nos anos 90, sua marca se diluia nas referências a Elis Regina,
Milton Nascimento e Chico Buarque; o tropicalismo era mais um. No final dos anos
90, a tropicália se consagrou como vitoriosa, predominando sobre as outras memórias,
Cadernos de Estudos Culturais

com diversos eventos e produções comemorativos dos 25 e dos 30 anos do movimento.


Nos anos 2000, reconhecida como marco histórico, nem sempre parecia acompanhar os
tempos. Gilberto Gil era Ministro da Cultura e compôs pouco. Caetano fez os discos Cê
(2006) e Zii e Ziê (2009), com um som mais jovem e estridente. “Ele nos abandonou”,
disse uma amiga hoje com 62 anos, sobre Caetano Veloso. Outra pessoa, músico popular
profissional, estranhou que Caetano pudesse achar novidade em uma formação com
112 voz, guitarra, baixa e bateria, como nesses discos. Mas ai veio Recanto. Enigmático na
letra e mântrico no som, parece formular, a partir da experiência de uma geração, algo
CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

sobre os tempos atuais que antes estava obscuro. O interesse desta nova versão sobre o
tropicalismo é, então, identificar os traços do tropicalismo dos anos 60 ainda em debate,
observar sua continuidade através dos tempos e, a partir dai, pensar o que Recanto nos diz
sobre o Brasil de agora e os valores possíveis em um país que “enricou” e envelheceu.

A TROPICÁLIA COMO INTERPRETAÇÃO DO BRASIL nos


anos 60
Nos anos 60, o tropicalismo expressava uma structure of feeling, algo encontrado “na
extrema fronteira de disponibilidade semântica” (WILLIAMS, 1977: 134). Dava certo
sentido ao fim abrupto do regime democrático e do início da cultura de consumo, com o
correspondente boom da indústria cultural. O fim da democracia e início de consumismo,
tinham em comum a violência - o golpe por motivos óbvios e o advento da cultura de
consumo porque, conforme escreveu o psicanalista Jurandir Freire Costa, citando Jean
Baudrillard, ela “cresce no terreno da desigualdade e da escassez relativa de bens materiais
e culturais”, pois os desejos são excitados, mas não satisfeitos (COSTA, 1984, p. 155).
Essas duas violências eram muito identificadas, na época: o golpe e a “americanização”
da cultura pareciam dois braços do imperialismo. Assim, os termos do debate em que
o tropicalismo tomou forma opunham valores político-culturais aos procedimentos

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
de mercado, ou se era de esquerda e contra o mercado, ou de direita e a serviço do
capitalismo.
Mais de vinte anos depois, em um livro de memórias, Sérgio Ricardo, artista
identificado, na época, com a canção romântica e política, reitera a denúncia.
Cassavam o mandato de pensadores, políticos professores, que pretendiam a salvação de
nosso povo. Instituiu-se a censura e a arte ganhou seu pior inimigo. O curioso e irônico
de tudo isso é que a ditadura só veio atrapalhar a vida dos que andavam com o pé no
chão. Os [homens de negócio] que tinham o sapato acima do chão permaneceram na
mesma boa vida.

Continua:
Por outro lado, o poder da comunicação se ampliou assustadoramente com o progresso
alcançado pela televisão, e os senhores do sapato flutuante tornaram-se todo-poderosos,
determinando com moral absoluta a conduta e o destino cultural de nosso povo.

Cadernos de Estudos Culturais


(RICARDO, 1991, p.61)

Isso não é um sentimento caduco: vejam a semelhança com Deleuze, “O serviço de


ventas tornou-se o centro ou a ‘alma’ da empresa. [...] O marketing é agora o instrumento
de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores.” (DELEUZE, 1992,
p.224) Mas também é verdade, sabemos, que a esquerda dos anos 60 reificava o povo.
Sérgio Ricardo fala de um povo uno e passivo e de uma ditadura que é um sujeito
indefinido: “cassavam”, “instituiu-se”. A palavra “salvação” e a luta inglória contra a 113

Liv Sovik
televisão tornam anacrônica a crítica, mas Sérgio Ricardo tem um aliado e sucessor de
peso em Roberto Schwarz, de quem tomei emprestado o título do clássico ataque ao
tropicalismo, “Cultura e política, 1964-69” (SCHWARZ, 1992/1978). Schwarz mira no
tropicalismo como conformidade com o atraso do país e ausência de crítica ao capitalismo
vigente. Nesse primeiro texto de Schwarz, o resultado da estética tropicalista, que junta
os anacronismos ao ultramoderno, é “literalmente um disparate [...] em cujo desacerto
porém está figurado um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do
desenvolvimento capitalista” (p.74)2.
Schwarz voltou ao problema do tropicalismo com uma leitura crítica de Verdade
tropical em 2012. Apresento alguns trechos que dão um esquema do argumento: “O
sentimento muito vivo dos conflitos, que confere ao livro a envergadura excepcional,
coexiste com o desejo acrítico de conciliação, que empurra para o conformismo e para
o kitsch.” (SCHWARZ, 2012, p.57) Mas a crítica básica de Schwarz continua passando
pelos “fracos e atrasados” (p.75), que pagariam o preço da modernização, formando
uma “dívida histórico-social com os de baixo”; e também pela identificação ambígua

2
Vale a pena rememorar a variedade de sons produzidos no disco manifesto Tropicália ou Panis et Circensis,
de 1968, ouvindo os acordes iniciais de suas doze faixas, cujo som varia de pop a melodramático, passando
por lírico e de música de baile. Ouvir em http://www.allmusic.com/album/tropicália-ou-panis-et-circenses-
mw0000667468. Acessado em 21/10/2012.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
que Caetano, preso político, tinha com aqueles que optaram pela oposição política e
pela luta armada e sofreram muito mais (p.81 e 92). Ambígua porque Caetano fazia uma
crítica ao autoritarismo de esquerda (essa crítica se tornou hegemônica mais tarde, a
partir de acusações de “patrulhamento ideológico” de Cacá Diegues, no final dos anos
70) e ao mesmo tempo se orgulha de ter incomodado os militares. Para Schwarz, o erro
de Caetano é aderir ao capitalismo vencedor e, no plano das representações do Brasil,
abrir mão de uma análise mais fria: “A personificação mítica do país [...] toma o lugar da
discriminação sóbria dos fatos, com evidente prejuízo intelectual” (p.105). Mas o livro
vale a pena, conclui, porque faz “uma dramatização histórica: de um lado o interesse e
a verdade, as promessas e as deficiências do impulso derrotado; de outro, o horizonte
rebaixado e inglório do capitalismo vitorioso” (p.110).
O valor de Schwarz talvez não seja o de explicar o que é o tropicalismo, nem de
apresentar um modelo que nos atrai, para a interpretação do Brasil (“a discriminação
Cadernos de Estudos Culturais

sóbria dos fatos” que interessam aos “fracos e atrasados”). O valor de Schwarz é
sobretudo de lembrar que em certo momento, a ascendência tropicalista sobre a música
de protesto e sobre a doçura da bossa nova não parecia inevitável ou natural. Também
- pela sua ausência - o texto de Schwarz faz pensar sobre o que existe além do impulso
derrotado da esquerda e o capitalismo vitorioso. Emerge dessa ausência um entre-lugar de
produção simbólica em que o tropicalismo se estabeleceu. Pois o tropicalismo fez muito,
114 nesse espaço que entrecortava a esquerda e o mercado. Tornou manifesto uma structure of
feeling, representou os desejos de aceitar e, aceitando, avançar no novo ambiente político
CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

e cultural. Foi expressão da experiência de uma geração cujos direitos e debates políticos
foram abruptamente restringidos. Propôs a adesão dos fãs a uma cultura que não era nem
rock americano ou sua versão tupiniquim, iê-ê-iê (ou Jovem Guarda), nem bossa nova;
não era de esquerda, mas sofreu nas mãos da direita; não se interessava pela pureza da
cultura nacional mas era uma solução original e brasileira às pressões externas e internas.
Assim, a Tropicália não é redutível à adoção da ideologia do mercado e do marketing via
a televisão, nem à “americanização da cultura”, mas propõe uma perspectiva diferente a
partir da periferia.
Caetano é o artista que mais nos interessa aqui e eis por que: ele combina e
entremeia produção artística e verbal; embora use a linguagem da música popular,
é legível também como comentarista de uma conjuntura maior. Como diz seu amigo
e colaborador bissexto José Miguel Wisnik, “o gesto nítido de Caetano sempre foi a
recusa independente dos lugares comuns dados como prontos, muitas vezes provocados
por ele com prazer não disfarçado” (WISNIK, 2012). Caetano gosta do fato de que
João Gilberto encontrou, nele, “’um acompanhamento em pensamento’ para a música
brasileira”. O livro Verdade tropical, ele diz, retoma a “atividade propriamente crítico-
teórica que iniciei concomitantemente à composição e à interpretação de canções” (1997,
p.18). No final avalia: “O que vale mesmo ressaltar é que o que me levou ao tropicalismo

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
aqui me traz” (VELOSO, 1997, p.497): o tropicalismo não é o molde original nem obra
definitiva do artista, mas produto de uma atenção às circunstâncias da criação artística em
um momento histórico determinado.
Na época de seu surgimento, a questão chave era o atraso do Brasil, seu
subdesenvolvimento. Nas passagens iniciais do livro Verdade tropical, Caetano Veloso
fala de “esquisitos amortecedores que os impactos culturais de fenômenos de massa do
chamado primeiro mundo encontram em países como o Brasil, sobretudo no próprio
Brasil” (VELOSO, 1997, p.44). Caetano também reconhecia o atraso, mas não falava em
fraqueza. Na famosa entrevista feita meses antes do lançamento de “Alegria, alegria” e
“Domingo no parque”, consideradas as primeiras canções tropicalistas:
Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas.
Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não
tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs, como em todas as cidades

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grandes. (in: ACUIO, 1967)

Em 1976, Caetano dá nova definição positiva ao subdesenvolvimento.


Tinha contato indireto com a música brasileira de baile que é influenciada pelo jazz. No
interior da Bahia, a gente chamava orquestra de baile de jazz, jaze como eles chamavam.
Quer dizer, eu tinha um contato inconsciente com as coisas de Jazz, já transformadas, já
subdesenvolvidas. (MELLO, 1976, p.191)

Subdesenvolver, verbo transitivo, é para Caetano um processo produtivo, que se 115

Liv Sovik
define pela incorporação de elementos da cultura de massa estrangeiros e o impacto
deles com a “ultramelódica tradição musical brasileira de base luso-africana e veleidades
italianas - e a atmosfera católica de nossa imaginação”, como dirá em 1997 (VELOSO,
1997, p.44). Para ele, nem a busca das raízes rurais, nem o foco nos atores político-
culturais - o artista, o povo, a televisão, o imperialismo - presentes no imaginário do
protesto, serviram para definir o avanço na “linha evolutiva” da música popular brasileira,
na sua famosa frase: ele não estava interessado em essências.
Segundo Antonio Cicero, quando falou na “linha evolutiva da música popular”
estava interessado, na modernização da música popular de sua época, equivalente à síntese
operada pela bossa nova entre música moderna e samba. Essa equivalência, ainda segundo
Antonio Cicero, passa não apenas pela utilização da “informação da modernidade musical
que ele [o tropicalismo] trazia para a MPB”, como na bossa nova, “mas a informação
da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética,
cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc.” (CICERO, 2003, p.213)

Adeus não, me diga até breve


Há anos, o tropicalismo vem sendo enterrado. A primeira vez foi em dezembro
de 1968, no programa de televisão Divino Maravilhoso, concebido e apresentado por

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
Gilberto Gil e Caetano Veloso, quando o grupo de rock os Mutantes fizeram seu enterro
simbólico. No mesmo mês, Caetano e Gil foram detidos em São Paulo e ficaram presos
no Rio de Janeiro até fevereiro de 1969, passando depois à condição de vigiados em
Salvador e exilados em Londres. Primeiro foi enterrado, depois o tropicalismo parecia
ter sido morto pela repressão aos seus principais atores. Mas ele continuou vivo e a
marca que deixou na cultura industrializada brasileira não é da mão morta do passado,
assombrando tudo o que vem depois. Embora jornalistas e público se perguntassem, em
décadas posteriores, por que a grandeza dos anos 60 não se repetia, a tropicália não é o
equivalente a Woodstock. Ela não só foi ponto alto na história cultural do Brasil, mas
continuou sendo um marco estético, uma estampa do imaginário, para usar o termo de
Eneida Leal Cunha, citando Freud e Derrida: tem “traços que, reinvestidos, se repetem
sempre diferenciados” (CUNHA, 2006, p.14).
Podemos falar em pelo menos dois fenômenos diferentes dos últimos vinte anos
Cadernos de Estudos Culturais

que repetem e se diferenciam da tropicália e, como os tropicalistas, pretendiam conseguir


a aprovação de indústria e crítica: Marisa Monte, com seu cosmopolitismo e ecletismo, e
o Mangue Bit, que revelou que a cultura popular do sertão pernambucano era produtiva
em sua mistura com o pop. Finalmente, é importante lembrar do rap, que encena a vida
popular sem passar pela ironia ou o pastiche e parecia trazer uma diferença mais radical
com relação à tropicália. Os primeiros dois são do início dos anos 90, quando a globalização
116 da economia brasileira, sob a presidência de Fernando Collor de Mello, marcou o debate
público; o terceiro, iniciado na mesma época mas só recebendo atenção nacional no final
CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

da década, é a expressão negra e popular dessa globalização. Aparentemente, se inicia um


novo período, mas a vigência da estampa tropicalista no âmbito da música popular como
discurso reflexivo sobre o Brasil não é rompida, como veremos.
Marisa Monte explodiu na cena musical popular intelectualizada em 1988, com 21
anos. Estudou canto lírico na Itália e teve como empresário o jornalista e compositor
bossanovista Nelson Motta, que lhe introduziu no nicho mais alto do mercado, cantando
em pequenos clubes no Rio de Janeiro, no auditório do Museu de Arte e no Teatro
de Cultura Artística de São Paulo. Demorou para lançar um disco e quando por fim
gravou, em 1989, foi um disco ao vivo, com o virtuosismo que isso implica, que
incluia uma coleção eclética de canções, que incluia “South American Way”3, sucesso
de Carmen Miranda cantado com um fictício sotaque “latino”. Parecia levar o projeto
tropicalista um passo além: sua cultura era local e global concomitantemente; folclorizava
o subdesenvolvimento de Carmen Miranda desde uma posição de conforto – podia
imitar um sotaque porque não o tinha, os estranhos amortecedores da cultura brasileira
nem precisavam ser lembrados; abria mão não só da busca da autenticidade popular,
mas pessoal, usando uma técnica do canto lírico: cantou uma sequência de canções dos

3
Acessível em 21/10/2012 em: http://letras.mus.br/marisa-monte/88294/http://letras.mus.br/marisa-
monte/88294/

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
mais variados tons emocionais sem qualquer mudança de iluminação ou postura. As
semelhanças com o projeto tropicalista ou talvez a falta de desejo da cantora de falar a
respeito de seu trabalho fizeram com que as afinidades acabaram por falar mais alto do
que as inovações e Marisa Monte subsumiu-se à categoria geral de ótimas cantoras.
O mangue bit quis fazer impacto além da música e lançou um manifesto, que fala
da cidade de Recife, sua pobreza, os impasses gerados por um conceito de progresso
que aterrou rios e mangues, e faz um chamado para engendrar um “‘circuito energético’,
capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação
de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.” (ZERO
QUATRO, 1992). Musicalmente, o trabalho das três principais bandas que o compunham,
Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio, se caracteriza pela
fusion de elementos pop com maracatu, soul, hip hop e outros.4 Vemos a busca de um
Brasil local renovado pela globalização, um arraigamento orientado para o novo, um certo

Cadernos de Estudos Culturais


protesto político. O mangue bit sofreu um abalo com a morte de seu principal músico, Chico Science,
em um acidente de carro em 1997. Embora tenha suscitado interesse pelo seu conceito, tido
fãs no país inteiro e mudado a paisagem urbana de Recife ao ocupar a zona portuária, seu
som ou era regional demais para os grandes mercados ou insuficientemente interessante
musicalmente para se anunciar, nacionalmente, como sucessor da tropicália; é somente
mais um herdeiro.
Um terceiro fenômeno musical popular parecia ter mais chances de vingar como 117

Liv Sovik
caminho não tropicalista para a música popular pensante: o rap. É um verdadeiro
movimento global que fala de política antes de cultura e surgiu entre setores populares.
O rap – associado sempre à sua sombra intelectual e artisticamente mais pobre, o funk –
parecia no final dos anos 1990 e início dos 2000 mexer com a soberania do tropicalismo.
Havia, para início de conversa, uma nova relação com a indústria cultural, transformada
pelas tecnologias digitais. Ao reduzir economias de escala, elas tornaram possível a
produção e venda direta, sem a ajuda e controle da televisão, da grande imprensa ou da
promoção paga, nos rádios. É pelas vendas que o rap chamou a atenção da grande mídia
no final dos anos 90. Em 1998, a banda Racionais MCs ganhou o prêmio de audiência para
um videoclipe de “Diário de um detento”5, um relato da chacina na prisão de Carandiru,
em São Paulo. O CD do qual faz parte, Sobrevivendo no inferno, vendeu 100 mil cópias
em um mês e meio milhão em oito, com divulgação por rádios locais e comunitárias
e vendas em shows em ginásios nos subúrbios, atingindo facilmente um público de 10
mil a cada show. Com esse potente esquema de comercialização - que retoma e atualiza
a popularidade do samba, em seus primórdios no Rio de Janeiro -, os Racionais MCs e

4
“A cidade”, do disco Da lama ao caos (1994), que mostra esse ecletismo, pode ser ouvido aqui: http://letras.
mus.br/chico-science-e-nacao-zumbi/70406/. Acessado em 21/10/2012.
5
Letra e videoclipe disponíveis em: http://www.vagalume.com.br/racionais-mcs/diario-de-um-detento.
html. Acessado em 21/10/2012.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
outras bandas do início do movimento se recusarem a aparecer em programas de TV até
então considerados fundamentais para o sucesso massivo, dizendo que sua mensagem é
outra e que são indiferentes aos gostos do público branco ou “playboy”.
Se o tropicalismo representava a alteridade de uma maneira refratada pela ironia,
a alegoria e o pastiche, os rappers encenam mais diretamente o outro excluído por
motivos raciais e econômicos, posicionando-se contra a violência física e simbólica da
ordem política branca. O gênero musical e linguístico do rap (como o rock, aliás), é
mais democrático, mais aberto a participações “amadores” do que a tradição da MPB.
Foi importado com mínimas alterações dos Estados Unidos, quase nada de estranhos
amortecedores, embora os rappers brasileiros desse momento inaugural, sobretudo,
fossem mais críticos às drogas e valores de consumo do que seus irmãos nos EUA. O
primeiro rap era tão global como Marisa Monte, mas tinha um perfil social e público e
uma ideia do fazer artístico diferentes. Muitos jovens decoraram suas letras kilométricas
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e o rap se tornou objeto de pesquisa para estudiosos de Letras e cientistas sociais, como
porta de entrada à análise da atual cultura popular brasileira e a importância da negritude,
nela, mas não vingou no âmbito maior da cultura, como o tropicalismo. Os motivos
podem ser vários: a resistência da cultura mainstream à própria ideia de negritude; a pecha
da ligação à juventude negra – com um projeto político de interesse aparentemente
“limitado” aos interesses de suas comunidades; o som que mais parece com um mantra
118 do que uma melodia ou uma canção, cuja tradição a classe média preza - tudo isso levou
rappers como MV Bill a ser mais conhecido pelo que ele diz do que canta. Com o tempo,
CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

a resistência dos rappers à grande mídia diminuiu e o escândalo do funk proibidão, sexual
ou policial, acabou tomando conta desse espaço popular no imaginário projetada pela
mídia.

Recanto renova e repensa


Recanto, lançado no final de 2011, é a segunda colaboração de Caetano Veloso com
Gal Costa. O LP Domingo, de 1967, cuja faixa mais conhecida é “Coração Vagabundo”,
também contém faixas pouco românticos, embora sejam sobre sentimentos. No LP, Gal
canta em um tom de quem está simplesmente soltando o ar; de quem embala uma criança
ou sussurra no ouvido de um amante. Em “Nenhuma dor”,6 combina o infantil e o
passional: “Minha namorada, muito amada / Não entende quase nada [...] É preciso, ó
doce namorada / Seguirmos firmes na estrada / Que leva a nenhuma dor.” Se no álbum
como um todo, a canção brota como se fosse tão natural quanto respirar, em Recanto, o
fólego é mais curto, as frases não se prolongam nas finalizações, mas ao mesmo tempo a
voz é calma, a cantora fala baixo.

6
Composição de Torquato Neto e Caetano Veloso, gravação original disponível em: http://www.youtube.
com/watch?v=VHLhuwZP0GY. Acessado 21/10/2012.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
Outro precursor a relembrar é Araçá Azul, o disco experimental que Caetano fez em
1972 no retorno do exílio. Uma das faixas mais difíceis é “De conversa, cravo e canela”7.
Caetano a retomou no disco Tropicália 2 (1992), feito em colaboração com Gilberto Gil,
em uma gravação – impossível chamá-la de canção – intitulada “Rap popconcreto”,
que começa com uma série de gravações famosas da palavra “Quem”. A faixa é tão
sonora, tão pouco espetacular visualmente que não está disponível no YouTube8. Um
dos primeiros artistas de sua geração a reconhecer o rap, Caetano o faz a partir de seu
interesse pelo som produzido por aparelhos eletrônicos, sintetizadores e gravadores, o
som que estrapola o musical e surpreende em sua materialidade. Recanto começa com
“Recanto escuro”9 com uma batida que parece o de coração, com um som eletrônico no
fundo que mais parece um ruído e, como no resto do disco, a incorporação de elementos
eletrônicos familiares aos que ouvem música com DJ. A letra mistura, segundo Caetano,
as histórias de vida dele próprio e de Gal; podemos distinguir a chegada a Salvador, o élan
criativo tropicalista, as pressões para assumir certo discurso político, a prisão de Caetano

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e, para fecha, a percepção que “Coisas sagradas permanecem”, mesmo estando em um
recanto escuro:
Mas é sempre o recanto escuro
Só Deus sabe o duro que eu dei
Mulher, aos prazeres, futuro
Eu me guardei
119

Liv Sovik
Coisas sagradas permanecem
Nem o Demo as pode abalar
Espírito é o que enfim resulta
De corpo, alma, feitos: cantar

Reitera-se a vocação artística em um contexto retrospectivo. (Outra faixa, “Autotune


autoerótica” o fará em chave narcísica, lembrando que Gal é marcada pelo seu cabelo,
“roço a minha voz no meu cabelo”, e que se formou cantando para dentro de uma
panela, “minha voz na panela lá”, para se ouvir melhor.) “Recanto escuro” relata e avalia
um passado vivido em função de seus sentidos políticos e da criação estética, mas cujo
saldo é uma afirmação do ser, de ser, de fazer, depois de tudo.
Se “Recanto escuro” fala do auto-retrato e da autoria, “Neguinho”10 desenha o
panorama social. Os brasileiros atuais são vistos através de um jogo de tipificações, como
na tropicália dos anos 60, mas agora tratando explicitamente dos estratos sociais novos
ricos. As tipificações não chegam a operar com a força total do estereótipo, embora o

7
Disponível aqui: http://www.youtube.com/watch?v=UP3Fg8PDyhw. Acessado em 21/10/2012.
8
Mas na internet se encontra em um blog sobre a música experimental de Caetano e entre as outras faixas de
Tropicália 2, aqui: http://www.allmusic.com/album/tropicália-2-mw0000111979. Acessado em 21/10/2012.
9
Letra e gravação disponíveis em: http://letras.mus.br/gal-costa/1992784/. Acessado em 21/10/2012.
10
Letra e gravação disponíveis em: http://letras.mus.br/gal-costa/1992788/. Acessado em 21/10/2012.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
sejam, pois como na tropicália se constrói um mosaico irônico e auto-irônico de que
ninguém escapa: “Neguinho que falo é nós”. Esse “nós” é um subdesenvolvido já
modernizado sem consequências maiores para sua humanidade, que consome primeiro,
seja bem ou mal, e depois pensa, talvez duvida, que outro mundo é possível. “... vai pra
Europa, States, Disney e volta cheio de si / Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho /
Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo”.
Finalmente, “Tudo dói”, a faixa favorita de Gal e Caetano (VELOSO, 2011), que
atualiza “Oração ao tempo”, de 1987, pois ambas nos posicionam diante do tempo da
vida que passa, que passou. “Tudo dói”11 talvez se refira também a “Nenhuma dor”,
de quarenta e cinco anos antes, com seu pedido de “seguir firmes na estrada que leva a
nenhuma dor”.
Tudo dói
Tudo dói
Cadernos de Estudos Culturais

Tudo dói

Viver é um desastre que sucede a alguns


Nada temos sobre os não nenhuns
Que nunca viriam

As cascas das árvores crescem no escuro


120 As cascatas a 24 fotogramas por segundo
Os vocábulos iridescem
CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

Os hipotálamos minguam
Tudo é singular

Dói
Tudo dói

Por que parece tão adequado ao momento atual? Talvez seja interessante imaginar
uma repetição com diferença, uma renovação da estampa tropicalista. Caetano e - com
sua interpretação singela e precisa - Gal, nos colocam em uma posição que relembra
“Alegria alegria”, pois apesar do título da canção de 1967, o sujeito que caminha contra o
vento, experimentando intensamente seu entorno, comunica uma sensação de abandono.
Ouvimos na faixa e no disco os traços de uma música experimental tecnificada, familiar por
causa dos MCs e DJs, mas é lenta, pesada, às vezes estridente e causa estranheza, mesmo
que não prove a paciência do público tanto quanto fazia Araçá Azul. São continuidades,
mas esse tropicalismo parece também pós-tropicalista. Em Recanto se retoma a questão
da modernização e o subdesenvolvimento do Brasil, tema tropicalista por excelência,
mas sem os contrastes entre o acarajé e o hot dog, o anacrônico e o ultramoderno,

11
Letra e gravação disponíveis em: http://www.radio.uol.com.br/ - /letras-e-musicas/gal-costa/
tudo-doi/2523638. Acessado em 21/10/2012.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 111 – 122, jul./dez. 2012.
sem tanta necessidade de discutir os “estranhos amortecedores da cultura brasileira”,
pois o cosmopolitismo já pode ser presumido, como o fez Marisa Monte nos anos 90.
Estamos em um terreno paradoxal, desolado mas sem desespero, em que Disney e Jardim
Gramacho se juntam em uma fusion cujos elementos não precisam ser distinguidos e
que incluem música experimental, rap, funk e o som da voz de Gal Costa, atravessando
quarenta e cinco anos de carreira. O país e seus artistas já não são muito periféricos,
ou pelo menos não dá para falar em “dificuldades técnicas”, e isso gera uma espécie de
assentamento. No meio à euforia de alguns órgãos da mídia e governistas, acaba sendo
bom saber que “Viver é um desastre que sucede a alguns”; que “tudo é singular”; e que
para esses artistas, o espírito resulta de “corpo, alma, feitos: cantar”. Quem sabe, essas
são frases a seguir. Talvez na academia, enquanto continuemos distinguindo sobriamente
os fatos, alguns deles singulares, e se preocupando com essa figura universitária clássica,
“os de baixo”, podemos também imaginar que o espirito resulta de corpo, alma, feitos:
pensar.

Cadernos de Estudos Culturais


Referências Bibliográficas
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121

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CULTURA E POLÍTICA, 1967-2012: a durabilidade interpretativa da Tropicália

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O LUGAR DA PERIFERIA
na nova economia mundial
Marcos Cordeiro Pires1

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1 – CENTRO E PERIFERIA: breve evolução da Divisão 123

Marcos Cordeiro Pires


Internacional do Trabalho
As relações de domínio e subordinação na economia mundial têm se transformado
ao longo dos séculos. Desde a instituição do moderno sistema colonial, no começo
do século XVI, constata-se a conformação de pelo menos dois blocos de nações, as
Metrópoles e as Colônias, dito de outra maneira, aquelas que figuravam no centro
dinâmico da economia mundial e aquelas regiões que se encontravam na periferia da
mesma. Passados cinco séculos, tal hierarquização persiste, com outras designações e
com novas características.
Voltando ao século XVI, além da falta de autonomia política que as caracterizavam,
as colônias tinham por objetivo estratégico a complementação das economias das
metrópoles europeias com produtos de grande valor agregado, como metais preciosos,
açúcar, especiarias, tabaco e mão-de-obra barata, quando não escravizada. Montava-se
a primeira Divisão Internacional do Trabalho (DIT) moderna, em que as metrópoles
drenavam os excedentes das economias colonizadas por diversos meios, dentre os quais
a superexploração do trabalho, a subestimação do preço dos artigos produzidos em Além
Mar e a majoração dos artigos metropolitanos revendidos na colônia.

1
Marcos Cordeiro Pires é professor da Unesp – Marília.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Ao longo do século XIX, a emergência do capitalismo industrial modificou a
natureza dessa Divisão Internacional do Trabalho. A forte demanda por matérias-primas,
que seriam processadas pelas fábricas da Europa, notadamente as da Inglaterra, os
modernos sistemas de transportes (canais, ferrovias e navios a vapor) e o uso de um
eficiente poderio militar criaram as condições para a ocupação de amplos espaços antes
relegados ao segundo plano, como o interior dos continentes asiático e africano, que
ficaram sujeitos às investidas do neocolonialismo inglês, francês, belga ou alemão, como
também da América Latina, sujeita ao imperialismo inglês e ao nascente imperialismo
norte-americano, além da frustrada tentativa francesa de recolonizar o México, na década
de 1860. A desproporcional diferença demográfica entre poucos soldados europeus e as
enormes populações locais, como na Índia, China, Indochina e África Subsaariana, seria
“compensada” com modernos navios, metralhadoras e canhões de rápido carregamento.
É importante ressaltar que entre 1815, ano que marca a derrota definitiva de
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Napoleão Bonaparte, e 1914, quando começou a I Guerra Mundial, a chamada “Paz dos
Cem Anos”, verificou-se o rápido desenvolvimento do capitalismo europeu, liderado
pela Inglaterra. Posteriormente, com o surgimento de novos competidores no setor
industrial, como a França, a Alemanha e os Estados Unidos, se intensificou a busca
por espaço econômico fora de seus territórios originais. Na fase final daquele período,
entre 1885 e 1914, assistiu-se a uma vigorosa disputa por colônias que pudessem,
124 simultaneamente, rentabilizar o capital excedente dos países industrializados, fornecer
mercados consumidores, fontes baratas de matérias-primas e ainda alocar uma população
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

excedente frente às potencialidades econômicas de cada país. Este período foi caraterizado
por John A. Hobson, no final do século XIX, como “imperialismo”, conceito que mais
tarde seria apropriado pelas correntes marxistas lideradas por Vladimir Lenin.
Além da repartição e ocupação de territórios na África e na Ásia e ainda com a
Guerra Hispano-Americana, de 1898, que marcou o início da influência dos Estados
Unidos na América Latina e na Ásia-Pacífico, o período imperialista foi caracterizado por
uma forte movimentação de capitais, que fluíam das economias industrializadas para a
periferia do sistema. Essa entrada maciça de capitais estrangeiros serviu para dinamizar os
setores mais demandados pela economia dos países industrializados, como a agricultura
tropical (café, cacau, borracha e açúcar), petróleo, cobre, carnes e cereais, e criou um
novo tipo de dependência para os países da periferia: a exportação de produtos primários
e a importação de bens industrializados para satisfazer um padrão de consumo mais
sofisticado, sobretudo das elites locais.
No caso brasileiro, a maior parte desse capital foi aplicada em ferrovias, empresas de
serviços públicos, finanças e comércio exterior. Esses recursos proporcionaram a difusão
de tecnologias modernas e a instituição de um padrão de consumo que tenderia a se
enraizar no país. O local que mais recebeu o aporte de investimentos estrangeiros, por
conta da cultura cafeeira mais bem desenvolvida, acabou por ser aquele onde o processo
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
de industrialização fincou seus alicerces: o estado de São Paulo. Nem mesmo os efeitos
da I Guerra Mundial sobre a vida econômica do país conseguiram refrear o movimento
ascendente de industrialização e de sofisticação da capacidade produtiva. De fato, os
problemas gerados pela guerra dinamizaram esse processo. Algo similar ocorreu na
província de Buenos Aires, centro da produção de gado e cereais e principal receptora
do capital inglês, o que proporcionou à Argentina uma invejável situação econômica até
a década de 1930.
A depressão que se seguiu à crise de 1929 e a eclosão da II Guerra Mundial (1939-
1945) abriram a possibilidade para que alguns países da América Latina pudessem ensaiar
um processo substitutivo de importações. Para tanto, a súbita diminuição das receitas
de exportações decorrente da contração do mercado mundial e, logo em seguida, a
diminuição física do comércio internacional decorrente da guerra naval, forçaram as
economias de países como Brasil, México, Argentina e Chile a produzirem internamente

Cadernos de Estudos Culturais


muitos dos bens de consumo industriais demandados por suas populações.
A teorização deste processo foi feita pelo eminente economista argentino Raúl Prébisch
(1949), que não apenas cunhou o conceito das relações “centro-periferia”, mas também a
teoria da “deterioração dos termos de troca”, demonstrando que a especialização produtiva
defendida pelas nações industrializadas desde a época da David Ricardo, notadamente a
exportação de bens primários e a importações de bens industrializados, era maléfica aos
países latino-americanos, uma vez que ao longo do tempo o preço internacional dos bens 125

Marcos Cordeiro Pires


primários se defasava em relação ao preço dos bens industrializados. Para exemplificar,
enquanto que no ano A se necessitava de 100 sacas de café para adquirir um trator, no
ano A+20 seriam necessárias 300 sacas para comprar o mesmo trator. Ou seja, havia um
empobrecimento relativo das economias periféricas. Por conta disso, Prébisch defendia a
intensificação do processo de industrialização da América Latina como a única forma de
desenvolver a Região e garantir um melhor nível de renda para sua população.
As ideias de Prébisch foram abraçadas pela Comissão Econômica para a América
Latina (CEPAL), criada pela ONU, em 1949. A partir de então, foram difundidas entre os
países da Região e estimularam a adoção de políticas de industrialização por substituição
de importações (PSI), que buscavam criar uma base industrial integrada e garantisse aos
principais países latino-americanos as condições necessárias para fazer frente à concorrência
com os países industrializados. Tais políticas foram implementadas com diferentes graus
de sucesso por Brasil, México, Argentina e Chile. No entanto, um traço marcante desse
processo foi a manutenção da dependência dos padrões tecnológicos e de consumo criados
nos países industrializados e a criação de disparidades regionais dentro dos próprios países,
sendo que as regiões mais industrializadas atraíam mão-de-obra de regiões estagnadas
com baixos níveis de produtividade. Daí a criação de gigantescas concentrações humanas
nos principais países da América Latina e os problemas decorrentes da urbanização sem
planejamento.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Durante o auge desse processo, os países latino-americanos não lograram êxito em
desenvolver inovações tecnológicas, energéticas e produtivas adequadas às especificidades
físicas e humanas locais. Ademais, essa dependência de tecnológica importada impunha
um grande peso sobre o comércio exterior: como uma indústria voltada para o mercado
interno não tinha a competitividade necessária para abrir mercados externos, a obtenção
de divisas dependia exclusivamente da exportação de bens primários. A industrialização
avançava, mas a defasagem tecnológica era ampliada nesse período de forte crescimento
do Produto. A dependência continuava, mas em patamares mais sofisticados. Décadas
depois, o problema seria potencializado.
O desenrolar do processo político criado pelo ciclo de ditaduras militares na Região,
a partir de 1964, acabou por inviabilizar o modelo PSI na Argentina e no Chile. No Brasil,
o processo teve continuidade, mas distorcido em seus propósitos originais: enquanto
que o modelo de 1930-1964 buscava criar as bases para o fortalecimento de um setor
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industrial nacional, o modelo da ditadura militar (1964-1985) tinha por base a atração
e associação com o capital estrangeiro, que controlava as “caixas pretas” tecnológicas
e dominava a ponta do mercado consumidor com suas marcas e produtos. Naquele
contexto, cada empresa multinacional organizava suas atividades quase que totalmente
direcionada para o mercado local, enquanto que suas matrizes avançavam nos ganhos
de produtividade e inovação. Vale destacar que o México, apesar de não ter vivido uma
126 ditadura militar, seguiu em parte o caminho trilhado pelo Brasil, devido ao autoritarismo
característico do Partido da Revolução Institucional (PRI).
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

A década de 1980 marcou o fim de tentativas locais de avançar rumo a uma


industrialização mais sofisticada. A crise econômica internacional, o endividamento
externo, a crise fiscal, o desemprego crônico, a instabilidade política, a reestruturação
produtiva em nível mundial e a emergência da revolução criada pelo setor de Tecnologias
de Informação e Comunicação (TICs) alijaram a América Latina da nova economia que
se criava. Elevava-se o patamar de concorrência internacional e mudava radicalmente a
geografia econômica mundial. A queda do chamado “socialismo real”, no final da década,
completaria o quadro de transformações socioeconômicas que coroariam o processo de
Globalização2. Ademais, a adoção de políticas ditas “neoliberais”, durante as décadas de
1980 e 1990, acabou por levar a uma forte desindustrialização nesta parte do mundo,
enquanto que potencializava as economias do Extremo Oriente e Sudeste da Ásia. A
partir de então, a mera industrialização dos países periféricos deixou de ser um diferencial
que pudesse mudar o seu status, enquanto que os parâmetros entre desenvolvido e
subdesenvolvido e os de centro e periferia tornavam-se mais nítidos e complexos. É o
que discutiremos a seguir.

2
Há setores políticos e acadêmicos que optam pela variante francesa “mundialização”. Como não
identificamos nenhum grande traço de distinção entre os dois conceitos, optamos por utilizar neste artigo
aquele com maior penetração nos mais variados segmentos, qual seja, globalização.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
2 – O mapa econômico mundial é redesenhado em
benefício das corporações multinacionais
O novo posicionamento da América Latina na economia mundial é fruto de uma série
de transformações econômicas que tomaram forma no começo da década de 1980. Antes
de descrever essas transformações, é preciso retornar no tempo para sumariar algumas
características do mundo que ficou para trás. Para tanto, retornamos a uma reflexão que
fizemos em 2008 (Pires, 2008).
Entre o final da Segunda Guerra Mundial e 1973, a economia capitalista assistiu a longo
processo de crescimento econômico, vulgarizado como Era de Ouro3. Ao longo de quase 30
anos, os indicadores sociais dos países industriais melhoraram sensivelmente. Políticas de
assistência social foram adotadas para amparar os trabalhadores no desemprego, na doença
e na velhice. O consumo popular passou a ser o carro-chefe da expansão da economia. A
inovação tecnológica e a obsolescência programada dos produtos faziam girar as grandes

Cadernos de Estudos Culturais


estruturas industriais. Já nos países do chamado Terceiro Mundo não se pode generalizar a
expressão “Era de Ouro”. Algumas regiões expandiram rapidamente, como certos países da
América Latina e do Extremo Oriente. Entretanto, na maior parte dos países africanos, do
Sudeste Asiático e do subcontinente indiano, as lutas de descolonização deixaram profundas
cicatrizes, cujos reflexos ainda persistem.
A crise dos anos (19)70, entretanto, deteriorou aquelas condições. A contração do 127
mercado mundial e a crise energética forçaram as economias a se adaptarem a um ambiente

Marcos Cordeiro Pires


caracterizado por maior concorrência e menores taxas de lucro. Do ponto de vista das
grandes corporações multinacionais, as regras do jogo até então prevalecentes já não serviam
mais. A aliança implícita que existia entre estas e os trabalhadores organizados dos países
centrais, que ajudava a impedir o avanço do comunismo, tornara-se obsoleta na década de
1980, quando o bloco socialista apresentava sinais de exaustão4. Além disso, por conta dos
elevados custos sociais, a lucratividade do sistema como um todo estava comprometida.
À época, o economista Milton Friedman chamava atenção de que o “almoço grátis” dos
trabalhadores estava sendo pago com a redução dos lucros empresariais5. Desse ponto de
vista, os “subornos sociais” que foram necessários para minimizar a luta de classes nos países
centrais já não deveriam ser tão generosos.
Do ponto de vista microeconômico, as empresas multinacionais passaram a adotar
estratégias para um mercado cada vez mais restrito e sujeito a fortes flutuações, decorrentes
de ciclos de crescimento cada vez mais curtos, verificados após a crise iniciada em 1973. Dois

3
Há certa convergência entre os estudiosos do século XX em caracterizar o período de 1945 a 1973 como
“anos dourados” ou a “era de ouro”. Veja-se: Eric Hobsbawm. A era dos extremos: o breve século XX – 1914-
1991. 2ª ed. São Paulo: Cia. da Letras, 2001.
4
São fatos característicos os pedidos de ingresso no FMI de países como a Hungria e a Polônia, já no começo
dos anos de 1980.
5
Milton Friedman. There’s No Such Thing as a Free Lunch. La Salle (USA-IL). Open Court Publishing Co., 1977.

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ou três anos de crescimento e outros dois ou três anos de contração. Por conta disso, na
visão dos economistas liberais, a economia deveria se tornar mais “flexível” para se estabilizar
de maneira mais rápida. As garantias sociais que protegiam o trabalhador, por exemplo,
deveriam ser liquidadas, pois a grande empresa privada necessitava de margem de manobra
para enfrentar uma concorrência mais acirrada. Como em estados democráticos é impossível
reduzir direitos à força, a solução foi exportar os empregos.
Por isso, as grandes plantas industriais de padrão “fordista” foram fragmentadas por
estratégias de “terceirização”6. Também o modelo japonês de gestão, baseado no “estoque
zero”7 e na produção “just-in-time”8 passou a ser adotado nos Estados Unidos e na Europa.
O “mercado de massa” foi substituído pelo mercado de “nichos” e de “segmentos”. Artigos
que demandavam muita matéria-prima foram miniaturizados. O chip de computador passou
a figurar como peça-chave em quase todos os dispositivos industrializados. Reduzindo custos
com a eletrônica, foram disseminados os computadores pessoais, as placas de fax-modem, a
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comunicação por cabos de fibra ótica e o satélite de telecomunicações.


Com isso, criava-se as premissas para o processo de deslocalização9. As grandes empresas
iniciaram um processo de deslocamento de parte de suas atividades industriais para os países
periféricos. A principal explicação para este fenômeno estava na busca por “fatores produtivos”
mais baratos, como matéria-prima e trabalho, ou ainda outras vantagens, como menor carga
tributária, incentivos fiscais, câmbio desvalorizado etc. Comparativamente ao similar norte-
128 americano, um operário médio na China, no Brasil, na Malásia ou no México recebe pequena
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

fração do salário daquele, forçando para baixo os custos trabalhistas. A gestão de unidades
tão distantes das matrizes foi facilitada pelo barateamento nos preços das telecomunicações.
“Softwares” cada vez mais complexos tornaram as tarefas administrativas padronizadas e o cálculo
financeiro adequado para apurar, no tempo real, os ganhos e perdas decorrentes de modificações
abruptas nas taxas de câmbio dos diferentes países em que operam aquelas corporações.

6
“Terceirização”, ou outsourcing, é a estratégia de desmobilizar parte dos trabalhadores de uma grande empresa
quando se determina que sua tarefa não é “central” no processo de produção de uma certa mercadoria.
Geralmente esses trabalhadores são empregados em pequenas empresas e contratados por salários inferiores
e sem as garantias sociais daqueles da “empresa-mãe”. Também se refere ao processo de direcionar parte da
produção de determinado bem para terceiras empresas.
7
Levando-se em consideração as pequenas dimensões físicas de boa parte das empresas japonesas, estas
optaram por não possuir grandes estoques de suprimentos e de produtos acabados, daí a expressão “estoque
zero”.
8
“Just-in-time” significa literalmente produzir só na hora em que o mercado demandar. Para tanto, faz-se
necessário o estabelecimento de grande sincronia entre as empresas terceirizadas e a empresa-mãe, de tal
forma que no mesmo momento em que é feito um pedido para uma montadora, por exemplo, as empresas de
autopeças produzam a quantidade de componentes necessárias para a produção de automóveis. Vale destacar
que este tipo de operação industrial faz parte do chamado “toyotismo”, em contraposição ao “fordismo”. A
este respeito ver: Thomas GOUNET. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo, 1999.
9
O processo conhecido como deslocalização diz respeito à transferência de plantas industriais dos países
com maiores custos produtivos para aqueles onde tais custos sejam menores. Este processo se intensificou
nos anos (19)80 à medida que as políticas de globalização se intensificaram, particularmente sob os auspícios
do ex-GATT e atual OMC.

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Também por conta desta internacionalização da produção, as operações financeiras
aumentaram de forma surpreendente desde 198010. Novos instrumentos financeiros foram
criados, como no caso dos derivativos, ou tiveram o uso intensificado, como as operações de
hedge11. Uma vez que a instabilidade passou a ser a regra da economia mundial, os agentes
econômicos buscaram se defender das mudanças abruptas de cenário, utilizando-se cada
vez mais de mecanismos de proteção.
Não obstante a sua necessidade tangível, as operações financeiras, ao longo das últimas
décadas, têm-se caracterizado mais pelo caráter especulativo. São objetos de especulação,
em nível mundial, as taxas de câmbio, as taxas de juros, a variação nos preços de commodities
etc. Aí também o desenvolvimento das telecomunicações possibilitou o acompanhamento
do mercado financeiro de diferentes países a partir de, por exemplo, um escritório da City
de Londres, em tempo imediato. As “posições” e os ativos financeiros passaram a mudar de
mãos rapidamente, sempre na busca pela máxima rentabilidade. Hoje em dia, os próprios

Cadernos de Estudos Culturais


sistemas de informática administram automaticamente as posições, por intermédio de
“ordens limitadas”, que compram ou vendem ativos de acordo com uma margem de
variação dos preços. Os sistemas também permitem a avaliação simultânea de uma série de
variáveis para obter o “ótimo” de rentabilidade. Outra modalidade de transação financeira é
a “arbitragem”, que consiste em comprar um determinado ativo de um mercado e vendê-lo
em outro, por preço mais elevado.
Um caso à parte da financeirização da economia mundial é o crescimento acentuado 129

Marcos Cordeiro Pires


das dívidas públicas de diversos países. Apesar da prescrição de políticas de “equilíbrio
fiscal”, desde a década de 1980, é fato que as dívidas públicas dos principais países do
mundo aumentaram expressivamente. Atualmente, a dívida dos EUA chega quase a 100%
do PIB, enquanto que as dívidas da Itália, Bélgica, Suécia e Japão superaram em muitos seus
respectivos Produtos anuais. Em parte, o aumento das dívidas se relaciona com a queda
da poupança interna. Por outro lado, se relaciona com a internacionalização da rolagem
feita nos mercados financeiros. O “mercado” passou a ditar o nível das taxas de juros,
tornando os governos seus reféns. A situação atual (2012) da maior parte dos países da
Europa, em que a administração das dívidas exige o corte substancial dos gastos públicos
e a consequente deterioração dos níveis de vida de suas populações são exemplos de como
os governos se subordinam aos interesses da grande finança.

10
De acordo com Robert Salomon: “Quase todas as formas de transações financeiras internacionais aumentaram
enormemente na década de 1980 entre os países industrializados. As transações em títulos e ativos líquidos que atravessaram
fronteiras nos Estados Unidos – isto é, vendas e compras brutas de papéis negociáveis (valores) entre residentes e não-residentes
– elevaram-se de 9 por cento do PIB em 1980 para 89 por cento em 1990. Como o PIB dobrou ao longo da década, conclui-se
que essas transações aumentaram quase vinte vezes. Em 1996, chegaram a 164 por cento do PIB americano. O crescimento
de transações financeiras internacionais semelhantes ocorreu nos outros países industrializados. A única exceção é a queda
após 1989 no coeficiente do Japão”. Robert SALOMON. Dinheiro em movimento. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.
178-179.
11
Trata-se de operações financeiros que visam a proteger o investidor de futuras oscilações dos preços de
commodities, dos juros ou do câmbio.

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Todas as características deste novo quadro do capitalismo, que se vem desenrolando
nos últimos trinta anos, possuem fio condutor único: o acirramento da concorrência entre
as nações centrais do sistema, independentemente e/ou apesar de arranjos regionais. De
fato, empresas norte-americanas, europeias e japonesas procuraram criar no mundo as
condições mais adequadas para suas respectivas estratégias; e seus governos assumiram a
linha de frente na tarefa de forçar a abertura de novos mercados.
Diante disso, os organismos financeiros internacionais, sob controle dos países
centrais, passaram a defender uma nova ordem mundial. Se a tecnologia já permitia o
deslocamento de capitais e de indústrias por todas as partes do mundo, por que restringir
tal movimento devido a interesses locais nacionais? Estava na hora de retomar o antigo
discurso liberal: “laissez-faire, laissez-passer”, o que significou, no final da década de 1980,
aprofundar a globalização econômica e forçar a abertura de mercados em todo planeta,
particularmente nos países em desenvolvimento.
Cadernos de Estudos Culturais

O papel dos Estados em administrar as economias nacionais, principalmente nos


países da periferia, não deveria ser tratado como antes. Tratava-se de criar um “consenso”
acerca dos temas que mais interessavam aos países do centro do sistema: (a) liberdade de
circulação de capitais; (b) supressão de restrições ao investimento produtivo; (c) abertura
comercial; e (d) padronização de políticas macroeconômicas.
Esss diretrizes foram reforçadas nas políticas de instituições como o FMI, Banco
130
Mundial e OMC (ex-GATT), ao longo dos anos 90 do século XX. Em tese, a atuação conjunta
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

destas instituições teria por finalidade criar uma ordem internacional dita “mais solidária”,
ao estimular a integração dos países por via do comércio internacional e por deslocar o
capital excedente de um polo do sistema para outro. Seria obtida assim melhor alocação de
capital, desde que todos os países convergissem em suas políticas macroeconômicas. Por
essas, garantir-se-ia a transparência necessária para a medição da taxa de lucros e dar-se-ia
maior segurança aos investimentos estrangeiros diretos. No final do processo, todos os
países sairiam vitoriosos, pois os padrões de consumo seriam equalizados no longo prazo. Os
mais pobres se aproximariam rapidamente dos mais ricos, sem prejuízo para os segundos...
Entretanto, essa promessa está longe de ser realizada.
Não seção seguinte, analisaremos o desdobramento prático desse processo.

3 – O lugar das periferias na nova Divisão


Internacional do Trabalho
Iniciamos esta seção com uma imagem. Voltemos cem anos na História e
comparemos os rios Tâmisa e Tietê. No primeiro, a contaminação pelos dejetos de 100
anos de industrialização. No segundo, crianças se banhando em águas limpas, competições
de remo e pescadores em suas margens. Voltando para 2012, assistimos justamente o
inverso: os rios Tâmisa, assim como Reno, estão limpos, piscosos e locais de turismo; o

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Rio Tietê é um imenso esgoto a céu aberto onde se concentram de montanhas de lixo em
suas margens. Tal situação vale para os rios das Pérolas, que corta a província de Cantão,
na China, o Mithi, que cruza a região de Mumbai, na Índia, ou o Ciliwung, em Jacarta,
Indonésia. Muita dessa destruição é causada pela grande concentração demográfica
e pela industrialização predatória que começou a tomar corpo na segunda metade do
século XX. Levas de camponeses se deslocaram para essas regiões metropolitanas e se
acomodaram em bairros distantes sem a mínima infraestrutura, em que o planejamento
público ficou ausente. Vale perguntar, por que isso ocorreu? Por que Alemanha e
Inglaterra são exemplos de economias “verdes” e Brasil, China, Índia ou Indonésia são
acusados internacionalmente por não defenderem seus patrimônios naturais?
Esta imagem paradoxal pode ser complementada quando se visita uma loja do
“El Corte Inglés”, em Madri, ou os shoppings centers de São Paulo, onde, em meio
ao conforto, ao aroma de perfumes e ao luxo, encontramos produtos de empresas

Cadernos de Estudos Culturais


de “grife”, desde coisas baratas até produtos com maior grau de sofisticação, só que
produzidos na China, Índia, Malásia ou Indonésia. Um telefone celular sofisticado como
o iPhone é montado por uma gigantesca empresa taiwanesa numa fábrica em Dongguan,
Guangdong, no sul da China, e utiliza componentes da Alemanha, Japão, Coreia do Sul,
Estados Unidos, entre outros fornecedores (tal assunto será retomado mais adiante). De
fato, as pessoas nesses centros de consumo não imaginam em quais condições foram
produzidos os bens “globais” que consumimos. Cabe perguntar por que a produção se 131
desloca para lugares tão distantes? Qual a lógica por detrás desse fenômeno?

Marcos Cordeiro Pires


A resposta está no coração das empresas multinacionais dos países desenvolvidos. A
busca por menores custos produtivos, tal como descrevemos na seção 2, exigiu uma nova
Divisão Internacional do Trabalho. A presença de um parque industrial, per se, já não seria
a garantia de um melhor padrão de desenvolvimento. Em muitos casos, por conta dessa
nova industrialização criada com a globalização, a produção industrial aprofundaria ainda
mais o subdesenvolvimento, legando para as sociedades receptoras desse novo modelo
de produção os baixos salários, concentração de renda e degradação do meio ambiente.
Não há setor da indústria que melhor pode caracterizar a criação de uma nova hierarquia
na economia mundial do que o de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Este
segmento vem liderando as novas ondas de inovação e, ao mesmo tempo, criando novas
condições para a reestruturação da produção, não só tornando equipamentos mais eficientes,
via automação, mas também racionalizando processos produtivos, padronizando rotinas e
ainda desenvolvendo os meios para o controle gerencial, tanto local como remotamente.
Com isso, cadeias produtivas podem ser organizadas em escala mundial, ao garantir a
gestão “on line” de diversas variáveis importantes, como o estoque de componentes, o
custo do dinheiro, as variações cambiais, o volume de vendas, a logística etc. De fato, essas
novas tecnologias permitem aos grandes grupos industriais e financeiros a real mensuração
daquelas vantagens comparativas mencionadas por Ricardo no começo do século XIX.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Uma rica descrição do processo de estruturação da moderna indústria de TICs é
feita por Michael Borrus (1997), onde apresenta os elementos essenciais da reação dos
Estados Unidos frente à expressiva vantagem tecnológica do Japão na indústria eletrônica
nas décadas de 1970 e 1980. Naquele período, empresas norte-americanas de bens de
consumo como a RCA e a GE foram desbancadas pela Sony, Mitsubishi, Panasonic,
Fujitsu, entre outras. O problema da competitividade industrial, então, era apenas um
dos desafios postos à economia norte-americana, pois se colocavam questões como o
descrédito do dólar, a inflação e a sensação de perda de terreno na Guerra Fria.
O contra-ataque foi liderado pela Administração Reagan, não só na frente monetária,
ajustando as cotações das moedas internacionais às necessidades da economia dos
Estados Unidos, mas também no restabelecimento da competitividade de suas indústrias,
valendo-se para isso de uma série de políticas de incentivos, especialmente para o setor
de microeletrônica, essencial para o setor de defesa, mas também para uma nova onda de
Cadernos de Estudos Culturais

bens de consumo, como a popularização dos computadores pessoais, aparelhos de faxes,


Internet, fibras óticas, impressoras, telefonia celular, entre outros. Tal reação possibilitou
às empresas multinacionais norte-americanas não só a reconquista da liderança como
também o estabelecimento de um novo paradigma para o setor, exemplificado pelo
prestígio alcançado por marcas como a Microsoft, Intel, Apple, IBM, HP, Cisco, Dell,
Motorola, entre outras.
132 O novo padrão de produção norte-americano se baseou na reestruturação do
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

conceito de empresa até então existente. Conforme discutimos na seção anterior, a grande
fábrica de estilo “fordista” foi fragmentada, adotando-se modelos de produção que
tinham por base flexibilidade e a terceirização de processos antes internalizados. Apesar
de nos concentrarmos no setor de TICs, tal fenômeno pode ser visto nos setores de
calçados, materiais esportivos, confecção, automotivo, moveleiro, etc. A lógica principal
foi a de trocar o controle total sobre as diversas etapas da produção por uma rede de
fornecedores e subcontratadores que poderiam oferecer uma série de vantagens para a
empresa multinacional, particularmente menores custos produtivos.
No entanto, esta é a etapa final do processo. Nessa “reengenharia”, se organiza uma
hierarquização da economia internacional em que os papeis são bem definidos, deixando
os países hoje desenvolvidos numa posição de comando e os países da periferia em
posição de subalterna. Do ponto de vista da estruturação da cadeia de valor, os primeiros,
com tarefas criativas e bem remuneradas; os segundos, com tarefas repetitivas, poluidoras
e mal remuneradas.
Um país desenvolvido hoje não é caracterizado apenas pela capacidade industrial,
mas principalmente pela capacidade de gerar conhecimento, tecnologias e padrões de
consumo. A produção de bens passou a ser uma atividade secundária, do ponto de vista
da cadeia de valor. O lançamento de um novo produto pressupõe atender aos seguintes

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
aspectos: pesquisa e desenvolvimento (P&D), design, viabilidade financeira, marketing,
produção e comercialização. Desses seis quesitos, o país desenvolvido concentra
necessariamente cinco deles, exceto a produção, que depende de cálculos de viabilidade
para a decisão de se produzir dentro ou fora de suas fronteiras. A obra coordenada por
Suzanne Berger (2005) “How we compete?” oferece ao leitor uma visão detalhada desse
processo.
Na primeira etapa, P&D, as universidades possuem um papel central, mas não
exclusivo, já que também as grandes corporações investem maciçamente em pesquisa
e desenvolvimento. Nas universidades não são criados apenas os conceitos básicos e o
conhecimento de ciência “dura”, que posteriormente serão absorvidos pelas empresas,
mas também o conhecimento da sociedade, da psicologia social, da linguagem, da
estética etc., que serão utilizados em fases posteriores do processo. Particularmente
quanto à indústria de TICs, as inovações surgem tanto nas universidades como nos

Cadernos de Estudos Culturais


“clusters”, do qual o Vale do Silício é o mais expressivo. Os protótipos criados são
posteriormente analisados quanto a sua viabilidade de mercado.
Cada inovação pode ou não utilizar materiais ou equipamentos industriais já
existentes. Em muitos casos, a produção em massa requer o desenvolvimento de
um material novo, por exemplo, determinada liga de aço ou a fundição de novos
circuitos integrados. Para a sua montagem, uma determinada prensa, um novo centro
de usinagem ou nova impressora. Todos esses processos, que demandam recursos 133

Marcos Cordeiro Pires


financeiros, genialidade e mão-de-obra bem qualificada são partes importantes na
criação de valor no país desenvolvido. Esses novos equipamentos e materiais serão
posteriormente exportados para os países da periferia onde ocorrerá a produção.
Não basta criar um produto inovador sem oferecer uma forma “amigável” e
atrativa para o futuro consumidor. Na sociedade de consumo, a forma vale quase tanto
quanto o conteúdo. Escritórios de design, ou mesmo departamentos de design das
próprias empresas, criam as formas que serão desejadas pelo consumidor. Novamente,
tal tarefa demanda profissionais qualificados e, portanto, bem remunerados. De forma
similar aos economistas, contabilistas, estatísticos e marqueteiros que se ocuparão das
fases posteriores.
Especificamente com relação ao Marketing, que não trata apenas de comunicação,
mas de todo o planejamento para a comercialização de um produto, é importante pensar
de seu papel na criação de um “consumidor global”, ou seja, de um determinado perfil
de consumo que pode ser visto em Nova York, Xangai, Estocolmo, Buenos Aires
ou Rio de Janeiro. Cada vez mais, e a publicidade é um exemplo disso, os perfis de
consumo tendem a se homogeneizar por conta dos estímulos realizados pelas grandes
corporações mundiais.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Algumas empresas do setor de TI, como a DELL Computer, conseguem se
estabelecer no mercado mesmo sem fazer muitos dos investimentos antes descritos.
Elas simplesmente dominam a comercialização, tecendo fortes vínculos com o
mercado consumidor e criando o conceito de “monte o seu produto”, com uma série
de componentes que podem ser facilmente acoplados. Daí surge um elemento da
nova industrialização: é cada vez mais comum a modularização de componentes que
podem ser utilizados em diferentes processos: um mesmo tipo de câmera digital pode
ser instalado num telefone celular, num notebook ou num tablet. Algo similar ocorre em
outros setores, como o automobilístico, em que uma mesma peça pode ser utilizada
em diferentes modelos de carros. A vantagem da modularização está em produzir em
larga escala um mesmo componente, rebaixando custos para setores inteiros da indústria.
Podemos pensar na dificuldade de se possuir existir tamanhos de DVDs ou ainda que
cada indústria possuísse “entradas” de periféricos diferentes das USB (Universal Serial
Bus). O custo para as empresas e para os clientes seria exponencializado.
Cadernos de Estudos Culturais

Como afirmamos de passagem, a produção dependerá de cálculos específicos para


se decidir qual local é mais lucrativo para produzir determinados bens. Particularmente
nos Estados Unidos, mas também em outros países desenvolvidos, a principal opção
recai pela terceirização da produção para países de menor renda, mas que já disponham
de uma infraestrutura produtiva prévia, forte institucionalidade e uma mão-de-obra
134 pouco organizada.
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

Depois de viabilizar a criação da maior parte do valor dentro de suas fronteiras,


quais sejam, aquelas etapas que exigem maior conhecimento e criatividade, a produção/
montagem é feita no exterior e depois importada a custos baixíssimos. Com o protótipo
na mão, as empresas vão ao exterior buscar os fornecedores e os subcontratadores que
produzirão o artigo em larga escala e com baixos custos. Assim faz a Apple, assim faz
a Nokia, assim faz a HP, entre inúmeras outras empresas de alta tecnologia.

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Tabela 1. iPhone Apple 3G’s - Principais componentes e custos dos fornecedores

Fabricante Componente Custo


Flash Memory $24

Toshiba (Japão) Display Module $19.25

Touch Screen $16.00


Application Processor $14.46
Samsung (Corea do Sul)
SDRAM-Mobile DDR $8.50
Baseband $13.00
Camera Module $9.55
Infineon (Alemanha) RF Transceiver $2.80
GPS Receiver $2.25

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Power IC RF Function $1.25
Broadcom (EUA) Bluetooth/FM/WLAN $5.95
Numonyx (EUA) Memory MCP $3.65
Murata (Japão) FEM $1.35
Dialog Semiconductor Power IC Application Processor
$1.30
(Alemanha)
Cirrus Logic (EUA)
Function
Audio Codec $1.15
135

Marcos Cordeiro Pires


Resto da conta de Materiais $48.00
Total da conta de Materiais $172.46
Custo de Fabricação $6.50
Total Geral $178.96
Fonte: Rassweiler, A (2009), “iPhone 3G S Carries $178.96 BOM and Manufacturing Cost, iSuppli
Teardown Reveals”. iSuppli, 24 June. Apud: Yuqing (2011).

O estudo realizado por Yuqing (2011), que trata de discutir o lugar da China na
cadeia produtiva do iPhone e desmistificar o papel deste país no déficit comercial dos
Estados Unidos, é esclarecedor sobre o papel marginal dos países em desenvolvimento
nas principais cadeias produtivas mundiais. O aparelho em questão é concebido pela
Apple, em Cupertino, nos EUA. Esta busca e credencia fornecedores de componentes e
também montadores que executem a produção com alta qualidade e baixo custo, neste
caso específico, a taiwanesa Hon Hai, mais conhecida como Foxconn. É interessante notar
que mesmo competidores da Apple acabam por lhe fornecer componentes (Tabela 1), já
que os módulos utilizados no aparelho podem ser acoplados a muitos produtos similares,
como é o caso da Samsung, que produz justamente o principal produto concorrente da
Apple, os celulares e tablets da linha Galaxy.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 123 – 138, jul./dez. 2012.
Também observando a tabela 1 pode ser verificar que o valor agregado na China
é de apenas 3,68% do custo de produção do aparelho. Se considerarmos o preço final
ao consumidor, de aproximadamente US$500,00, o montante adicionado na China
representa apenas 1,3% do valor. Levando-se em conta que no preço final do iPhone
estão incluídos o custo de transporte, o lucro da Apple, o lucro dos revendedores, os
impostos pagos aos diferentes níveis de governo do EUA e o salário dos trabalhadores
envolvidos em cada uma dessa etapas, a economia norte-americana absorve 279% do
valor do aparelho, ou seja, US$321,04.
O que vale para um aparelho de alta tecnologia como o iPhone vale também para
produtos de menor valor agregado, como confecções e calçados. A empresa de material
esportivo Nike não dispõe de fábricas. Terceiriza toda a sua produção, que se espalha
por países da América Latina, Ásia, África e Europa Oriental. Em 2011, a empresa
apresentou um faturamento bruto da ordem de US$ 20 bilhões. No entanto, pouco disso
Cadernos de Estudos Culturais

ficou nos países hospedeiros. Onde ocorre esse tipo de produção industrial (baseada
em baixos salários, ganhos de escala, tecnologia importada, “caixa preta”...) não ocorre
o desenvolvimento econômico, apenas o emprego de trabalhadores pouco qualificados,
matérias-primas baratas e a impossibilidade de se desenvolver tecnologia própria12.
Na América Latina, de forma muito superficial, podemos mencionar duas
experiências pontuais que corroboram nosso argumento: México e Brasil. No primeiro,
136 por conta do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá (TLCAN),
O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

o país se converteu em grande exportador de bens industrializados para esses mercados.


No entanto, quando se abre o valor agregado da produção mexicana verifica-se que a
maior parte dele é de componentes importados que somente são montados na fronteira
Norte do país, nas chamadas empresas “maquiladoras”, sendo os principais diferenciais da
região a utilização de mão-de-obra barata mexicana e o acesso privilegiado aos mercados
dos Estados Unidos e Canadá, por conta do TLCAN.
O Polo Industrial de Manaus (PIM) é outro exemplo de como a essa industrialização,
baseada em incentivos fiscais e na instalação de unidades industriais de montagem não
é suficiente para a mudança de status, que se supõe relacionado ao desenvolvimento
tecnológico, educacional e cultural. Na cidade de Manaus não há nenhum centro que
pesquise e crie tecnologia de ponta para as áreas de eletroeletrônica ou de ciclomotores.
Os gerentes e engenheiros que lá trabalham são “forasteiros”, oriundos dos países-sede
das empresas estrangeiras que lá operam ou vem de outros centros do Brasil, como São
Paulo, Rio de Janeiro ou Minas Gerais. A Zona Franca de Manaus foi criada em 1967 e

12
Precisamos relativizar esta informação para os casos de China e Índia. Estes países tem apresentado bom
desempenho em apropriar tecnologia estrangeira e desenvolver grupos industriais locais com capacidade
de produção de tecnologia e também com grande competitividade no exterior. No entanto, para os demais
países da periferia isso não tem ocorrido a contento. Ver: ENGARDIO, Pete. Chindia: how China and India
are revolutionizing global business. New York: McGraw Hill, 2007.www

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ainda hoje não deu vasão a nenhum grupo industrial de classe nacional, quiçá mundial
e as condições socioeconômicas da cidade não diferem muito daquelas de porte similar
no Brasil e outras partes da América Latina. Infelizmente, o problema não ocorre apenas
nesses dois casos apontados. O problema é estrutural e de difícil solução no curto prazo.

Considerações Finais
Observando o processo sob o ponto de vista das nações, pode-se constatar que
esta nova Divisão Internacional do Trabalho, criada sob os auspícios da globalização,
vem sendo benéfica para algumas (centro) e maléfica para outras (periferia). Os Estados
Unidos conseguiram superar o aparente declínio produtivo da década de 1970 e suas
empresas retomaram a liderança tecnológica antes perdida para o Japão, particularmente
ao criar um padrão de consumo relacionado às TICs. Os países da Europa e o Japão,
mesmo sem a liderança inconteste em algum segmento da nova economia, conseguem

Cadernos de Estudos Culturais


garantir participação em elos lucrativos das cadeias de produção.
No campo da periferia, China e Índia constituem exceções, pois também podem
ser mencionadas como beneficiárias desse processo por conta das elevadas taxas de
crescimento que têm alcançado nos últimos 30 anos e uma maior presença de suas
empresas na economia mundial. Já os países latino-americanos e africanos, considerando
o lugar em que atuam nas cadeias produtivas globais, podem ser considerados perdedores,
pois a economia quando não se estagnou, como na América Latina, entrou em colapso, 137

Marcos Cordeiro Pires


como na maior parte da África. No caso do Brasil, por exemplo, viu-se diminuir a
complexidade da pauta exportada, apresentando uma maior proporção de bens de baixo
valor agregado.
No entanto, quando se desce do nível das nações para o nível das pessoas, verifica-
se que este processo é ainda mais impactante, sendo responsável pela desestruturação
de sociedades tradicionais, pelo aumento das disparidades de renda e pelo aumento da
insegurança social. Ademais, para os países da periferia, a nova organização da produção
em nível mundial tende a ampliar as lacunas tecnológicas e de renda. A inserção no
comércio internacional, mesmo que consiga se encaixar em algumas cadeias, não gera
recursos suficientes para garantir a adoção de estratégias que contemplem os pré-requisitos
básicos para uma economia moderna, particularmente infraestrutura básica, políticas
industriais, universidades bem aparelhadas, garantias sociais mínimas e a formação de
profissionais altamente qualificados, sem os quais não se pode pensar em patamares mais
elevados de desenvolvimento. É uma agenda ainda em contrução.

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Referências Bibliográficas

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Are Doing to Make it in Today’s Global Economy. MIT Industrial Performance Center.
Boston.
BORRUS, Michael (1997). Left for Dead: Asian Production Networks and the Revival
of US Electronics. BRIE Working Paper 100, April 1997. Disponível em: http://brie.
berkeley.edu/publications/WP100.pdf. Acessado em 20/07/2012.
ENGARDIO, Pete (2007). Chindia: how China and India are revolutionizing global
business. New York: McGraw Hill.
FRIEDMAN, Milton (1977) There’s No Such Thing as a Free Lunch. La Salle (USA-IL).
Open Court Publishing Co.
GOUNET, Thomas (1999) Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São
Paulo: Boitempo.
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São Paulo: Cia. da Letras.
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PREBISCH, R (1949). Desarrollo económico de América Latina y sus principales
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O LUGAR DA PERIFERIA na nova economia mundial

SALOMON, Robert (2001) Dinheiro em movimento. Rio de Janeiro: Record.


YUQING, Xing (2011). How the iPhone widens the US trade deficit with China.
Disponível em: http://www.voxeu.org/article/how-iphone-widens-us-trade-deficit-
china. Acessado em 20/09/2011

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PENSAR A ARTE
DE VANGUARDA
em Campinas

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Maria de Fátima Morethy Couto1

Não sejamos tentados pela miragem da síntese; mantenhamos as contradições,


por natureza insolúveis; evitemos reduzir o equívoco próprio ao novo, como valor 139

Maria de Fátima Morethy Couto


fundamental da época moderna. (...) Em vez dessas pseudo-reviravoltas ou dessa galeria
de figuras exemplares, deveríamos fazer uma história paradoxal da tradição moderna,
concebida como uma narrativa esburacada, uma crônica intermitente. (COMPAGNON,
1999, p. 58)

Este texto resulta de uma série de pesquisas que foram por mim supervisionadas
e coordenadas nos últimos 4 anos dentro do projeto A arte de vanguarda em Campinas
(1950-70): textos, obras, exposições. Este projeto, que contou com apoio financeiro do CNPq
e da FAPESP, visou à seleção, organização, digitalização e estudo de documentos de
época (textos críticos, artigos de jornal, catálogos de exposição, cartas e manifestos)
relacionados à produção de vanguarda em Campinas, no campo das artes visuais, durante
as décadas de 1950/1970, assim como ao levantamento, registro fotográfico e análise
de obras produzidas no período. Ele envolveu alunos do curso de graduação em Artes
Visuais da Unicamp (bolsistas de IC) e do Programa de Pós-graduação em Artes da
mesma instituição. Contou ainda com a participação do professor Emerson Dionísio de
Oliveira, da Universidade de Brasília, antigo diretor do Museu de Arte Contemporânea de
Campinas. Um de seus objetivos principais foi a produção de um site (www.iar.unicamp.
br/vanguardasemcampinas) que pudesse reunir e disponibilizar diversos documentos

1
Maria de Fátima Morethy Couto é professora do Instituto de Artes da Unicamp.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
de época - catálogos de exposição, textos críticos, fotos -, bem como os relatórios das
pesquisas empreendidas pelos alunos e artigos e comunicações apresentados em eventos
ou publicados sobre nossos objetos de estudo.
O tema por nós escolhido, muito embora apresente um enfoque local, possibilitou-
-nos discutir a relação entre centro e periferia; local, nacional e internacional no campo
das artes e da história da arte, bem como refletir sobre o estabelecimento e difusão de um
vocabulário de vanguarda fora dos grandes centros de um país periférico. Nesse sentido,
apesar de termos como eixo condutor de análise a situação das artes em Campinas
e a cena cultural da cidade nos limites temporais indicados, abordamos também, em
nossas pesquisas (em nível de IC e de Mestrado), questões relativas ao circuito artístico e
expositivo em outras cidades/capitais do Brasil no mesmo período. Discutimos, ademais,
as contradições de nosso processo de modernização, bem como refletimos sobre as
formas específicas de reação e de integração aos discursos hegemônicos de legitimação
Cadernos de Estudos Culturais

que ocorrem em contextos apartados dos “centros” econômicos e culturais.


Vários autores, como sabemos, colocaram em questão a modernidade e/ou o caráter
vanguardista de nosso movimento modernista, contrapondo suas atividades, obras e
propostas àquelas empreendidas ou elaboradas pelos grupos de vanguarda atuantes na
Europa no mesmo período e assinalando nosso descompasso e defasagem. De fato,
diferentemente dos grandes centros artísticos europeus, nos quais as vanguardas travaram
140 diversas batalhas contra os cânones estabelecidos pelas academias de ensino e por um
PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas

mercado de arte conservador, jamais chegamos a construir um “sistema constituído


para o olhar da arte brasileira, que pudesse ser desmanchado posteriormente”.2 Além
disso, as noções de originalidade e de autenticidade foram aqui rapidamente assimiladas
à necessidade de construção de uma arte com características “especificamente” nacionais
e que pudesse representar dignamente o país no exterior. Neste sentido, é possível
compreender porque as perspectivas e anseios das vanguardas europeias jamais puderam
se dar no Brasil de forma plena, muito embora almejássemos o reconhecimento vindo
do exterior.
Concordo porém com Annateresa Fabris, autora de vários textos sobre o assunto,
quando ela afirma que a modernidade brasileira deve ser compreendida a partir de
uma “acepção peculiar e local, pensada fora do âmbito das propostas vanguardistas
europeias”. Se a arte produzida pelo modernismo [brasileiro] não é moderna no sentido
das vanguardas europeias, ressalta Fabris, “é necessário compreender e não somente
apontar para tal diferença, pois nela reside um modo de recepção que pode ser a chave e
acesso às peculiaridades do fenômeno brasileiro” (FABRIS, 2003, p. 42). A seu ver,

A expressão é de Paulo Sérgio Duarte. In: “Paulo Sérgio Duarte fala ao Fórum Permanente”.
2

< http://www.forumpermanente.org/.painel/entrevistas/entrevistas_alemanha/ps_duarte/>

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
o que o momento inaugural do modernismo busca não é uma modernidade abstrata e
universal mas uma modernidade com sotaque, que tenta adequar, ao próprio meio e às
próprias possibilidades linguísticas, as diferentes propostas da arte moderna. (FABRIS,
1994, p. 83)

Pensar nossa modernidade “com sotaque”, como propõe Fabris, não é o mesmo
que tomá-la como inadequada ou imprópria. Todo processo de modernização é decerto
contraditório e ambíguo, em que pesem as diferenças estruturais dos países ou locais
no qual ele ocorre. Como já apontou Nestor Canclini, ao criticar interpretações que
estabelecem uma relação direta entre modernização socioeconômica e modernização
cultural, deve-se evitar comparar “nossa modernidade [da América Latina] com imagens
otimizadas de como esse processo aconteceu nos países centrais” (CANCLINI, 2006,
p. 71). Do mesmo modo, faz-se necessário rever o que entendemos por “modernismo
brasileiro”, uma vez que muitos dos estudos até aqui empreendidos sobre o assunto
tomam como parâmetro de análise a arte produzida em São Paulo nos anos 1920 e

Cadernos de Estudos Culturais


incorporam a leitura que dele fizeram os envolvidos na Semana de Arte Moderna de
1922. A esse respeito, escreve Moacir dos Anjos em seu livro Local/global: arte em trânsito:
Houve, certamente, uma ideia de Brasil que, formulada a partir que é definido como
região Sudeste -, cuja elite longamente deteve o poder (político, econômico, simbólico)
de nacionalizar uma fala local -, por várias décadas informou o reconhecimento, de
que vem vive no país ou fora dele, daquilo que seria especificamente nacional. (DOS
ANJOS, 2005, p. 52-53). 141

Maria de Fátima Morethy Couto


Se a produção artística proveniente da região Sudeste, como observa o autor, “foi,
por muito, reconhecida – no Brasil e no exterior – como moderna e brasileira, enquanto as
que provinham de outros lugares do país eram rotuladas de regionais ou regionalistas” (2005,
p. 53), tratava-se, em nosso caso, de repensar o conceito de “região Sudeste” ou mesmo
de arte paulista como um bloco único, submetido a uma mesma temporalidade e que
pudesse ser analisado a partir de uma só lente.
Nosso projeto insere-se assim em um conjunto de iniciativas acadêmicas que buscam
reavaliar os paradigmas estabelecidos nos eixos hegemônicos do país sobre a chamada
“arte brasileira” e tentam lançar luz sobre “tempos e espaços de modernidade que se
produzem numa periferia chamada Brasil”. Com perspectiva similar, evoco o projeto
Modernidades tardias, desenvolvido no Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras
da UFMG e que teve como foco de estudo a cidade de Belo Horizonte na década de 1940
e suas variadas manifestações artístico-culturais engendradas pelo projeto modernizador
de Juscelino Kubitschek. Procurava-se então, segundo afirmam seus organizadores,
“pensar que a noção de periferia ligada à de modernidade não se circunscreve aos modelos
tradicionais de cultura, centrados na divisão binária e na exclusão, mas se apresenta como
um conceito a ser produzido” a partir de leituras de momentos simultâneos da história.
Por essa ótica, para se elaborar o conceito de modernidade enquanto categoria operatória

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
deveria-se “observar a superposição de temporalidades distintas, captar as vacilações do
novo, reler a permanência e a mudança da tradição moderna” (SOUZA, 1998, p. 29-30).
Nos dizeres de Wander Melo de Miranda,
A questão cultural se associa à questão teórica para enfrentar a pergunta talvez mais
relevante que se coloca: em cada uma das experiências periféricas e/ou tardias de
modernização a serem levantadas e analisadas, existiriam programas alternativos de
modernidade? (...) A partir desses programas, seria possível refazer conceitualmente a
discussão sobre modernidade, pós-modernidade e tradição? (In: SOUZA, 1998, p. 18).

Para os fins de nossa pesquisa, com foco nos anos 1950/70, fez-se necessário refletir
sobre as ambiguidades e contradições presentes nas ações e práticas dos artistas campineiros
atuantes no período em análise, entendendo que os termos moderno e vanguardista
passaram a ser adotados, por muitos dos envolvidos no debate em curso, tal qual um
talismã, já que as categorias com as quais eles operavam eram francamente ambivalentes.
Cadernos de Estudos Culturais

Nesse sentido, tornou-se essencial compreender as diferenças existentes entre


as noções de vanguarda e modernidade. Pertencente ao vocabulário militar, o termo
vanguarda, denotava, em sua origem, uma “extremidade dianteira de unidade ou subunidade
em campanha”. Significava, portanto, que um destacamento encontrava-se espacialmente à
frente de outro. Ao ser utilizado pelas artes, a partir da segunda metade do século XIX na
França, o termo sofre um deslocamento capital. O avanço é doravante pensado em termos
142 temporais: uma arte de vanguarda é a aquela que se encontra esteticamente à frente de seu
tempo, um artista de vanguarda é aquele que rompe com o próprio presente e que procura,
PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas

em seu trabalho, antecipar o futuro. Vanguarda é agora, de acordo com uma das definições
do Dicionário Houaiss, uma “parcela da intelligensia que exerce ou procura exercer um papel
pioneiro, desenvolvendo técnicas, ideias e conceitos novos, avançados”.
Parte significativa da história da arte do século XX, ou ao menos da primeira metade
do século XX, foi marcada pelo ideário vanguardista, pela busca do grau zero, do valor de
choque e da inovação constante e pelo desejo de “narrar a si mesma com vistas ao desfecho
a que se quer chegar”, servindo-se para tanto de termos muitas vezes antagônicos, como
tradição e de ruptura, evolução e revolução, imitação e inovação, destruição e construção,
negação e afirmação. Como assinala Antoine Compagnon, em seu livro Os cinco paradoxos
da modernidade,
depois do impressionismo, todo o vocabulário da crítica de arte torna-se temporal. A arte
apega-se desesperadamente ao futuro, não tenta mais aderir ao presente, mas a antecipá-lo,
a fim de inscrever-se no futuro. Trata-se não somente de romper com o passado, mas com
próprio presente do qual é preciso fazer tábua rasa se não se quiser ser superado, antes
mesmo de começar a produzir. (COMPAGNON, 1999, p. 42)

Se a vanguarda faz a apologia da ruptura, do começo absoluto, da mudança e da


negação, é importante ressaltar que os primeiros modernos (como Baudelaire, Courbet e
Manet) não acreditavam no dogma do progresso ou na possibilidade de um desenvolvimento

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
linear e evolutivo da arte. Tampouco faziam da hostilidade enfrentada por um artista o sinal
de sua glória futura. Romperam com o passado para afirmar o presente, sem estabelecer
qualquer expectativa em relação ao futuro. Não se consideravam “à frente de seu tempo”
e queriam ter seu talento reconhecido por seus contemporâneos e pelas instituições
oficiais. E, sobretudo, “não possuíam a consciência de um papel histórico a desempenhar”.
Modernidade e vanguarda “são, sem dúvida paradoxais, mas elas não tropeçam nos mesmos
dilemas”, alerta Compagnon:
A vanguarda não é somente uma modernidade mais radical e dogmática. Se a modernidade
se identifica com uma paixão do presente, a vanguarda supõe uma consciência histórica do
futuro e a vontade de se ser avançado a seu tempo. Se o paradoxo da modernidade vem de
sua relação equívoca com a modernização, o da vanguarda depende de sua consciência da
história. (COMPAGNON, 1999, p. 38)

Teria o grupo de Campinas, que se auto-intitulou Grupo Vanguarda, quando da


realização da II Exposição de Arte Contemporânea de Campinas, no andar térreo do Edifício

Cadernos de Estudos Culturais


Catedral, em 1958, consciência de seu papel histórico?3 Possuíam o espírito bélico
característico dos grupos de vanguardas, que se empenhavam em distinguir a arte que
realizavam como sendo a única e verdadeira, ou a mais legítima para o momento? Segundo
Emerson Dionísio, o movimento em questão não visava de fato perturbar a tradição ou
romper radicalmente com os códigos vigentes, mas sim “conquistar espaço, agenda e mercado
para um grupo jovem, que indubitavelmente já havia iniciado o movimento de descolamento
da cena acadêmica” (DIONÍSIO, 2010). Já o pintor Maurício Nogueira Lima, integrante
143

Maria de Fátima Morethy Couto


do movimento concretista de São Paulo, ressaltou a originalidade da produção do grupo de
Campinas em contraposição às obras “acadêmicas” que eram vendidas nas galerias de São
Paulo e do interior na década de 1950, afirmando que o “grupo teve a gloriosa inteligência
de quebrar com isso, mas não fazendo uma arte modernista brasileira, mas já fazendo uma
arte geométrica, na tradição construtivista, na tradição de São Paulo etc”. (CAMPOS, 1996,
Anexos, s/p)
As pesquisas empreendidas em nosso projeto discutiram, a partir de diferentes
perspectivas, a tensa relação entre a metrópole de São Paulo, seus intelectuais, artistas e
marchands, defensores de uma arte de vanguarda, e aqueles atuantes em cidades do interior
do estado, em especial Campinas. Algumas questões se fizeram rapidamente presentes:
Até que ponto e em que medida paradigmas artísticos estabelecidos na capital foram
transplantados para o interior? Quais as consequências desse contato aparentemente tão

3
O Grupo Vanguarda contou de forma definitiva e constante com os seguintes artistas: Thomaz Perina,
Mário Bueno, Geraldo Jurguensen, Enéas Dedeca, Francisco Biojone, Franco Sacchi, Geraldo de Souza,
Maria Helena Motta Paes Raul Porto. O artista de origem espanhola Bernardo Caro integrou-se ao grupo
em 1964. Edoardo Belgrado, Geraldo Dècourt, Ermes de Bernardi, membros fundadores, participaram de
duas ou três exposições. Belgrado afastou-se de Campinas em virtude de trabalho, retornando depois à
Itália. José Armando Pereira da Silva e Alberto Amêndola Heinzl, críticos de arte, contribuíram ativamente
na divulgação das idéias e atividades do grupo, principalmente através da página Minarete, do jornal de
Campinas Correio Popular.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
próximo, confirmado, por exemplo, pelo interesse e apoio dos artistas concretistas de
São Paulo em relação ao grupo Vanguarda, assim como pela frequente participação dos
campineiros em Salões e mostras coletivas organizadas em São Paulo nos anos 1960? Dentro
dessa perspectiva, como analisar e/ou explicar a feição local, o tom provinciano das obras
de vários dos integrantes do grupo Vanguarda, bem como sua relação direta com os temas e
códigos visuais das pinturas de alguns dos membros do chamado grupo Santa Helena, ativo
em São Paulo nos anos 1930/40?
Diferentemente dos concretistas de São Paulo, que possuíam um ideal coletivo,
compartilhavam dos mesmos princípios e visavam objetivos similares, os artistas do grupo
Vanguarda de Campinas desenvolviam trabalhos com características bastante diversas,
sem princípios claros que o norteassem. Thomas Perina, por exemplo, afirma que o grupo
campineiro “não tinha uma tendência para defender”, os artistas se reuniam para debater
e trocar informações referentes à arte, porém cada um possuía uma produção individual
Cadernos de Estudos Culturais

e distinta (CAMPOS, 1996, Anexos, s/p). Francisco Biojone, por outro lado, declara que
não havia, no grupo, a intenção de “romper”. “Rompimento?”, pergunta-se. “Intenção de
romper, com relação ao Vanguarda, só se foi inconsciente. A minha intenção era preparar
caminhos para a minha profissão artística. Eu nunca me preocupei em criar polêmica em
torno da minha pintura” (CAMPOS, 1996, Anexos, s/p). Portanto, é possível afirmar que a
unidade do Grupo Vanguarda era dada sobretudo por um desejo de distanciar-se da arte de
144 cunho acadêmico que predominava na cidade, desejo este que se expressava, muitas vezes,
por meio de uma tendência para a abstração.
PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas

Talvez por isso seja possível apontar diversas semelhanças entre a formação e produção
do Grupo Santa Helena e a do grupo campineiro.4 Ambos os grupos, Santa Helena e
Vanguarda, não possuíam um projeto único de produção artística nem tinham a pretensão
de fazer uma arte de cunho nacional. Os temas que atraíam a atenção da maioria de seus
membros, em especial durante o início dos anos 1950, também se assemelhavam, tratando
do limiar entre o campo e a cidade, de um processo de modernização não inteiramente
consumado. Mário Bueno e Thomas Perina compraziam-se em representar paisagens dos
subúrbios de Campinas, casarios em meio a elementos naturais, trens que percorrem a malha
ferroviária. Exímios pintores, amantes do ofício, exploravam questões formais, plásticas,
sem abdicar por completo das referências figurativas. Por mais que seus trabalhos do final
dos anos 1950 flertem com a abstração, eles jamais se interessaram por uma abstração de
cunho racional, mantendo certa espontaneidade e lirismo em suas composições, servindo-se
recorrentemente de tons rebaixados sutilmente contrastados. O gesto autoral é importante,
o pincel, usado com elegância, expressa a sensibilidade de seu autor. Se pensarmos nas
premissas que regiam o trabalho do grupo concretista de São Paulo, percebemos que Bueno
e Perina jamais as aplicaram em sua obra.

4
Ver, a esse respeito, a pesquisa de Juliana de Sá Almeida Duarte, “Paisagens de Mário Bueno nas décadas
de 60 e 70: uma análise crítica”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
Tais diferenças não impediram, porém, que Waldemar Cordeiro, líder do grupo
concretista, se interessasse fortemente pelo trabalho de Perina. Segundo relata Décio
Pignatari em entrevista concedida a Campos,
o Cordeiro ficou muito impressionado com a qualidade da pintura do Thomaz Perina.
(...) Achava que [sua] pintura tinha uma incrível intuição compositiva, e achava que o
Perina teria sido o grande mestre, o que teria feito o Grupo de Campinas. (...) Pois o
Waldemar Cordeiro chegou a dar o primeiro prêmio, que era o prêmio Governador
do Estado, para o Thomaz Perina, que era o prêmio mais importante de arte naquele
período. (CAMPOS, 1996, Anexos, s/p).

De todo modo, para além das diferenças entre obras e ideias, é possível afirmar
que houve um produtivo entrosamento com os concretistas de São Paulo, os quais
manifestaram recorrente apoio aos artistas de Campinas por meio da promoção e
apresentação do grupo Vanguarda no circuito cultural paulistano, em exposições
coletivas e individuais, como também de textos publicados em exposições realizadas em

Cadernos de Estudos Culturais


Campinas, e de palestras e cursos oferecidos na cidade do interior. Notas publicadas nos
jornais de Campinas, no final da década de 1950, comprovam a presença dos artistas e
poetas concretos de São Paulo na cidade, para exposições, palestras e cursos, tais como
a palestra-debate sobre poesia concreta comandada por Décio Pignatari e a exposição
de Poesia Concreta no Centro de Ciências, Letras e Artes (maio de 1958); o curso de
arte contemporânea, de seis aulas, ministrado por Waldemar Cordeiro, Décio Pignatari,
Damiano Cozzela e Alexandre Wollner, tratando de temas como a “Evolução da Poesia 145

Maria de Fátima Morethy Couto


Contemporânea”, “Arte Concreta”, “Música Contemporânea”, “Arte Industrial” e “Artes
Visuais” (maio de 1959)5.
É importante assinalar que uma série de transformações estruturais foram postas
em execução em Campinas nas décadas de 1950 e 1960, por conta da implantação de
um plano de melhoramento urbano que datava dos anos 1930. Este plano tinha como
principal objetivo a modernização da cidade, por meio do alargamento das ruas, da
criação de corredores rodoviários, da valorização do centro comercial e da transferência
da população mais pobre, que vivia em casas antigas na região central, para vilas operárias
na periferia. A imprensa dava seu apoio assumindo, em seu discurso, um tom progressista,
francamente modernizador. Algumas ações então empreendidas marcaram a história da
cidade, nem sempre de forma positiva, e repercutiram decisivamente no campo das artes.
A demolição do Teatro Municipal de Campinas, palco da Primeira Exposição de Arte
Contemporânea organizada na cidade, em 1957, foi uma delas. O teatro encontrava-se
literalmente no caminho do plano de melhoramento, pois bloqueava a passagem entre
duas importantes vias centrais da cidade. Em 1965, o poder público, com base em um
laudo até hoje contestado, decidiu por sua demolição. Em setembro desse mesmo ano,

5
Ver, a esse respeito, a pesquisa de Lívia Diniz, “A relação entre o grupo concreto paulista e os integrantes
do grupo Vanguarda de Campinas”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
talvez como modo de compensar parcialmente a população de Campinas pela perda desse
importante espaço para manifestações artísticas e culturais, a prefeitura cria o Museu de
Arte Contemporânea de Campinas – José Pancetti (MACC) junto à sede da Secretaria
Municipal de Cultura6.
Na falta de um circuito de arte instituído, a Galeria Aremar, fundada por Raul Porto
na sede de sua agência de viagens, Aremar Viagens e Turismo, localizada na Rua General
Osório, 1223, funcionava como ponto de encontro dos artistas integrantes do grupo
Vanguarda, local de palestras e debates com artistas convidados e centro difusor da arte
abstrata na cidade.7 Como relata José Armando Pereira da Silva:
Em 8 de setembro de 1959 o Grupo Vanguarda se reuniu para a abertura da Galeria
Aremar, em Campinas. A engenhosidade de Raul Porto [...] combinaria o espaço de
atendimento com uma pequena galeria, pela qual iriam passar todos os integrantes do
grupo alternadamente com os artistas de São Paulo. (SILVA, 2005, p. 35)
Cadernos de Estudos Culturais

Em reportagem do jornal Última Hora de 14 de março de 1961, Raul Porto fala sobre
a campanha promovida pela Aremar para divulgar novos talentos da pintura e do desenho.
Segundo ele, uma série de exposições de grande nível seria promovida. Entre os artistas
expositores estariam Arnaldo Pedroso D’Horta, a gravadora Dorothy Bastos, Waldemar
Cordeiro e Tikashi Fukushima. Se muitas das mostras pretendidas não se concretizaram,
o estreitamento das relações entre o grupo de São Paulo e o de Campinas fez com que
146 Porto conseguisse que os concretistas expusessem na Aremar, intercaladamente com o
grupo campineiro. Waldemar Cordeiro, Maurício Nogueira Lima, Lothar Charoux, Luiz
PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas

Sacilotto e Willys de Castro foram alguns dos artistas que por ali passaram. Um momento
importante da história da Aremar foi a mostra do artista Willys de Castro, de 12 a 26 de
novembro de 1960. No catálogo desta exposição, Castro publica o texto O objeto ativo,
de grande importância para o período e para o entendimento das propostas do artista, e
que será republicado, no ano seguinte, na revista Habitat. Nele, Willys de Castro ressalta a
importância da nova arte, da nova obra de arte, defendendo que “tal obra, realizada com
o espaço e seu acontecimento (…) deflagra uma torrente de fenômenos perceptivos e
significantes, cheios de novas revelações, até então inéditas nesse mesmo espaço”.
Ressalte-se também que o trabalho de Raul Porto destacava-se em meio aos dos
colegas por sua clara aderência aos ideais concretistas; várias de suas obras remetem
diretamente às obras de autoria de Geraldo de Barros ou de Luiz Sacilotto, por exemplo.
Seus desenhos e telas são marcadamente geométricos e simplificados, sem espaço para a

6
O MACC é inaugurado com a realização do I Salão de Arte Contemporânea de Campinas, que tinha como
objetivo maior auxiliar na criação de um acervo para o museu. Somente alguns anos mais tarde, em 1976, o
MACC recebeu um prédio que seria sua sede definitiva, onde se encontra atualmente, na Avenida Benjamin
Constant, 1633, no centro da cidade e ao lado da Prefeitura Municipal.
7
Ver, a esse respeito, a pesquisa de Marjoly Morais Lino, “Raul Porto e a galeria Aremar: Uma análise do
cenário artístico campineiro dos anos 1950-70”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
gestualidade, diferindo radicalmente, portanto, das obras de Perina e Bueno. Geralmente
construídos a partir da oposição entre preto e branco, entre figura e fundo, negativo
e positivo, enfatizam a noção de serialidade, de continuidade entre as formas, o que
imprime ritmo e modulação às suas composições. Raul Porto tinha interesse especial pela
área da diagramação, design e ilustração. Seu desejo de atuar nessa área levou-o, em 1960,
a assumir a responsabilidade, juntamente Alberto Amendola Heinzl, Thomaz Perina
e José Armando Pereira da Silva, da página de literatura e arte de vanguarda Minarete-
Experiência, encarte que constou do jornal Correio Popular de Campinas entre 1960 a
1962 e que teve oito edições. Essa página foi um dos principais veículos utilizados pelo
grupo Vanguarda para dar voz às suas ideias e divulgar o trabalho de seus integrantes,
“cumprindo timidamente a função de estampar um pensamento local sobre a vanguarda”.
(SILVA, 2005, p. 42)
Dentro desse contexto de trocas, cabe destacar que vários artistas campineiros

Cadernos de Estudos Culturais


participaram, nesse período, de edições das Bienais de São Paulo e dos Salões Paulistas de
Arte Moderna. A V Bienal de São Paulo, realizada em 1959, contou com obras de Maria
Helena Motta Paes e Geraldo Jurgensen e a VI Bienal com trabalhos de Enéas Dedecca,
Raul Porto e Maria Helena Motta Paes. A VII Bienal foi a que mais aceitou integrantes
do grupo Vanguarda, tais como Raul Porto, Geraldo Jurgensen, Maria Helena Motta
Paes e Geraldo de Souza. O VIII Salão Paulista de Arte Moderna, realizado em 1959,
concedeu uma menção honrosa a Geraldo de Souza. Em sua XII edição, este mesmo 147
Salão premiou Raul Porto e Geraldo de Souza com uma Pequena Medalha de Prata e

Maria de Fátima Morethy Couto


Enéas Dedecca com uma Grande Medalha de Prata. Na edição seguinte, também Maria
Helena Motta Paes recebeu a Pequena Medalha de Prata. Thomaz Perina não participou
de nenhuma Bienal, entretanto, recebeu dois importantes prêmios no IX e no X Salões
Paulistas de Arte Moderna: a Grande Medalha de Prata e o Prêmio Governador do
Estado, respectivamente. Segundo Hermelindo Fiaminghi, a Grande Medalha de Prata
do IX Salão, realizado em 1960, foi concedida a Thomaz Perina por pressão do grupo
da capital.
Outro artista que participou de várias Bienais foi Bernardo Caro, o qual veio a
integrar o grupo Vanguarda apenas em 1964.8 Avesso à arte abstrata e interessado na
relação entre arte e política, Caro mostrou suas obras nas edições de 1972, 1974 e 1976 da
Bienal Nacional de São Paulo e na IX, XII, XIII e XIV Bienal Internacional de São Paulo.
Na IX Bienal Internacional de São Paulo, realizada em 1967, Bernardo Caro apresentou a
série Mulheres X Protesto, da qual foram expostas cinco xilogravuras denominadas: Mulheres
X Destino; Mulheres X Ritual; Mulheres X Sexo; Mulheres X Fim e Mulheres X Saravá. Com esta
última, o artista foi contemplado com o Prêmio Aquisição Itamarati. Na Bienal Nacional
de 1972, Caro atraiu a atenção dos críticos com sua obra Cavalinho-de-Pau, primeiramente

8
Ver, a esse respeito, a pesquisa de Nara Vieira Duarte, “Bernardo Caro nas décadas de 60 e 70 e a Vanguarda
Artística Campineira”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
por suas grandes proporções (2,80m X 3,50) e por seu material: madeira, gesso, papelão
e pele natural de carneiro. Segundo o crítico Olney Kruse, a obra de Bernardo Caro
representava um “animal político” e não remetia a um brinquedo que diverte, mas “um
brinquedo que propõe uma série de perguntas, de resto sem respostas”. Esta mesma obra
serviu de inspiração para Walmir Ayala compor o poema chamado O Cavalo.
Para concluir, ressalto que fomos surpreendidos pelo caráter ousado e inovador dos
Salões de Arte Contemporânea de Campinas (SACCs) realizados entre 1967 e 1977, com
uma retomada nos anos 1980, quando foram organizadas duas mostras. Inicialmente
concebidos nos mesmos moldes de um salão tradicional, os SACCs foram, ao longo
de suas realizações, modificando seu caráter e sua estrutura e chegaram a destacar-se
em âmbito nacional, principalmente nos anos de 1974 e 75.9 Segundo relato do crítico
e historiador da arte José Roberto Teixeira Leite – membro dos júris de 1969 e de 1970
–, os SACCs chegaram a ser considerados “laboratórios” para as Bienais de São Paulo
Cadernos de Estudos Culturais

(ZAGO, 2007, p. 18). Estes Salões promoveram importante intercâmbio de ideias e


propostas e serviram de referência para diversos artistas, observando-se que alguns deles
estavam iniciando suas carreiras nessa época. Dentre os artistas que deles participaram
podemos hoje destacar nomes significativos no contexto nacional como Carmela Gross,
Mira Schendel, José Roberto Aguilar, Antônio Henrique Amaral, Cláudio Tozzi e
Evandro Carlos Jardim, entre outros. Compuseram a comissão julgadora desses certames
148 personalidades que também marcaram nossa história, como Mário Schenberg, Maurício
Nogueira Lima, Walter Zanini, Amaral e Frederico Morais.
PENSAR A ARTE DE VANGUARDA em Campinas

Referências Bibliográficas

BARRETO, Paulo Sérgio. O Caracol e o Caramujo: Artistas e Cia. na Cidade. Dissertação


(Mestrado em Ciências Sociais), IFCH, Unicamp, 1994.
CAMPOS, Crispim Antonio. Um olhar sobre o Grupo Vanguarda: uma trajetória de luta, paixão
e trabalho. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Unicamp,
Campinas, 1996.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. Ensaios latino-americanos. São Paulo: Edusp,
2006.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1999.

9
Ver, a este respeito, as pesquisas de Renata Cristina de Oliveira Maia Zago, “Os salões de arte contemporânea
de Campinas” e de Carolina Tiemi Odashima, “Os Salões de Arte Contemporânea de Campinas na década
de 1980”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
CORDEIRO, Waldemar. Artistas de Campinas. São Paulo: Galeria das Folhas, 1959, sem
paginação. (Catálogo da exposição).
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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 139 – 150, jul./dez. 2012.
A IMAGEM ENCARNADA
Processos poéticos em
Artes Visuais

Cadernos de Estudos Culturais


Mauricius Martins Farina1

Introdução
As imagens encarnadas, mais que uma metáfora retórica, têm múltiplos significados,
151

Mauricius Martins Farina


sua relação pode ser instituída num conjunto que, para além das disparidades de forma
e de tempo, têm na memória e nos relacionamentos interpenetrados uma história que
demonstra as ideias possuídas pela experiência formativa, uma conexão que ajuda a
pensar a presença dessas imagens como uma vida em si mesma, mas com relacionamentos
complexos com a alteridade. Independentemente de selecionar apenas um período
específico no tempo da sua presença, há uma impossibilidade de deter a passagem do
tempo que as atravessa.
As imagens encarnadas não morrem ou perdem função, elas são, em sua corporeidade,
presenças onde manifestam-se sintomas do tempo da realização e das memórias que
agiram para essa manifestação. É possível encontrar narrativas articuladas numa trama,
onde o passado e o presente atuam através e numa relação que ocorre no âmbito manifesto
das imagens; tal como demonstrou Aby Warburg (Abraham Moritz Warburg, 1866-1929)
num ensaio sobre as influências da Antiguidade Clássica no imaginário do Renascimento,
através de milhares de imagens, cuidadosamente selecionadas nas pranchas do seu Atlas
Mnemosyne realizado entre 1924 e 1929 onde desafiou a ideia de uma linearidade do tempo,
propondo uma nova metodologia para os estudos da imagem e o seu papel na cultura.

1
Mauricius Martins Farina é professor do IAR-Unicamp.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
Na atualidade existem diversos trabalhos sobre as teorias da imagem na cultura e sobre
as artes visuais, em particular. Os arquivos e acervos museológicos estão repletos de imagens
instituídas pela experiência da arte, constituindo um campo de conhecimento com suas
especificidades e amplitudes. Note-se que esse campo especializado não é necessariamente
fechado em disciplinas ou ciências, ao contrário, recorre à diversidade disciplinar para
estabelecer seu topus de possibilidades que é aberto, interdisciplinar.
A generalidade do conceito de imagem é uma amplitude que se soma a outras no
campo dos Estudos Visuais2, compondo-se numa temática que inspira uma coleção cujo
número de trabalhos escritos não é possível mensurar, tal é o apreço que esta questão tem
despertado. No entanto, essa generalidade encontra um domínio ao estabelecer-se no lugar
da arte quando é preciso considerar, para dimensionar um problema epistemológico, que o
objeto dessa pesquisa se situa num entrecruzamento de estudos que partem, necessariamente,
das relações entre a experiência dos artistas e a ação do imaginário naquilo que se produz.
Cadernos de Estudos Culturais

Ao trazer para perto o conceito de imagem encarnada, tenho como objetivo apartá-las
de uma generalidade, de uma cultura visual cuja amplitude abraça o mundo contemporâneo
em seus processos de comunicação. Ao contrário, proponho um possível reconhecimento
de processos poéticos através de relacionamentos no campo estendido das formas e dos
contextos da história das imagens, para as considerar como desvio do tempo e das formas,
como uma necessidade criativa ponderada pelo indecidível3. Essa é a natureza de um projeto
152 maior que, no horizonte das artes visuais, a partir de algumas imagens escolhidas, no campo
A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais

da pintura e das reprografias, de textos relacionados, pretende cogitar sobre a experiência da


arte e de suas conjunturas, considerando as narrativas da arte e dos artistas como processos,
cuja natureza, com as marcas do seu tempo e de seus contextos, tem a duração e a fabulação
do mundo como destino nos objetos que imprime.
Articulando textos verbais e não-verbais, provem-se as análises das manifestações das
obras em suas constituições formativas, mas, também é preciso considerar os eixos espaço-
temporais, as redes entre imagem, imaginário e imaginação, processos cuja constituição
constitui uma teia de significações que nos interessam pelo que têm de rastros de
pertencimento, nas marcas de deslocamentos e de memórias fragmentadas.

A memória coletiva
Para Jacques Rancière tratando da questão estética e de como ocorre sua constituição
no sensível4, a “partilha do sensível é o que dá forma à comunidade” sendo, “o modo como

2
Esses estudos têm se desenvolvido fortemente nos Estados Unidos (Cultural Studies) e também na Espanha,
através de Jose Luis Brea, editor e fundador da revista de Estudios Visuales que, em conjunto com outros
importantes pesquisadores como Anna Maria Guasch têm atualizado essa discussão no ambiente europeu.
3
Aquilo que não se deixa compreender na lógica binária não sendo uma terceira coisa. (SANTIAGO, apud
DERRIDA, 1976).
4
Em As políticas da escrita (Ed. 34, 1995).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes
exclusivas”. Uma das formas dessa partilha ocorre nas memórias coletivas, onde um senso
de formação das realidades ajuda a instituir o social manifestando-se a partir de sua cultura
imaterial, no âmbito do imaginário.5
Memórias guardam experiências que também podem ser derivadas de ecos longínquos.
Esta memórias quase perdidas são construídas por eventos cuja distância no tempo, dificulta
reconhecer a origem de sua referência, por isso a potência da arte do passado, em seus
simbolismos, como matéria encarnada no sentido de uma prospecção das mentalidades ali
envolvidas.
Ao verificar como processos da alteridade e da memória se entranham no tecido
sociocultural influenciando os indivíduos em suas demandas, a ideia do artista em sua
intimidade autossuficiente demonstra sua falência, quando esses processos não se dão por
autoctonia, mas, por “partilhas de sensibilidade”. Dessa maneira, fica evidenciado o vazio

Cadernos de Estudos Culturais


que sobressai da noção da expressão artística como ato de uma intimidade subjetiva, como
aquilo que manifesta sua profundidade alijado de influências externas.
Por consequência, a noção de sensibilidade metafísica, como já se pensou em
outros contextos, ou da arte como manifestação do divino ou do gênio, é avessa a ideia
de arte como manifestação cultural do simbólico permutado, um jogo instituído entre a
subjetividade criativa do artista e sua correspondência com o coletivo, do qual se alimenta,
realimentando e renovando a arte. Um jogo complexo que envolve sistemas, dispositivos,
153

Mauricius Martins Farina


circuitos, economias, ideologias, reconhecimentos, atestação, mas que, de um ponto de vista
estritamente conceitual, assim se manifesta: em potência.
No texto clássico sobre a Interpretação dos sonhos, Sigmund Freud (1856-1939) diz que
há um tipo de simbolismo que não é peculiar aos sonhos, “mas característico da representação
inconsciente, em particular no povo”, e que esse simbolismo pode ser “encontrado no folclore
e nos mitos populares, nas lendas, nas expressões idiomáticas, na sabedoria dos provérbios
e nos chistes correntes em grau mais completo do que nos sonhos” (FREUD, 2006). Essa
consideração serve para demonstrar a existência de uma relação complexa, uma permutação
do inconsciente individual com o cultural e vice-versa. Carl Gustav Jung (1875-1961) ao
desenvolver o conceito de inconsciente coletivo6, tratou da ideia de uma hereditariedade coletiva
e de sua carga simbólica presente na cultura exercendo sua influência sobre os indivíduos.

5
“O imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter
Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que
se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável.” (MAFFESOLI, 2001).
6
“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato
de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto
o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto,
desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente
coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua
existência apenas à hereditariedade.” (JUNG, 2000).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
Nesse sentido, ao articular a história da materialidade artística com uma psicologia
da cultura, considera-se também a história das mentalidades7 configurando sentidos que
atuam num tempo-espaço construído pelo social; o que vai além dos museus e de outros
dispositivos físicos, apesar de incluí-los. O inconsciente coletivo da cultura, é o lugar onde
memórias atuam para gerar sentidos – embora não lhe reconheçamos necessariamente
uma origem – e seus arquivos podem ser acessados diretamente do imaginário num
sentido próprio de antologia, um lugar de invenções, de intuições, de fragmentos de
memórias não vivenciadas necessariamente pelo coletivo.
A arte como já se disse, não é apenas a manifestação da expressão da subjetividade
de um indivíduo destacado, mas, a manifestação desse indivíduo numa forma que lhe
permite encarnar uma diversidade de processos, em suas interlocuções com a memória e
com a cultura que o circunscreve nos processos de sobrevivência da arte como duração8.
Desse modo, ao verificar como certas imagens podem expressar uma extensão fora de
Cadernos de Estudos Culturais

si mesmas e não apenas a expressão individualizada de um autor, a obra, desdobrada de


si, surge como uma manifestação da imprevisibilidade e, paradoxalmente, demonstra que
também é determinada por sua inserção na sociedade.

Em busca de uma heurística


Seria uma premissa, uma herança romântica, a de que no processo artístico a
154 experiência da encarnação, da criação materializada, se revela absolutamente distinta em
A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais

cada proposição e a condição do artista é a de se tornar agente de seu próprio destino, o


verdadeiro protagonista da sua história?
Desde a multiplicação de mercados, colecionadores e público para a arte, a
possibilidade de sucesso profissional do artista tem se tornado uma realidade. Essa
situação tem seduzido e provocado uma reconfiguração da figura simbólica do artista,
situado não mais como um ser exótico – o que agora passa a ser desejável – mas como
a possibilidade de uma afirmação de sucesso pessoal. Ser artista é possibilidade de status
e respeitabilidade.
Quero destacar o papel negativo que estas questões têm ao sepultar ou mesmo tentar
banir certas manifestações artísticas partindo de um juízo anacrônico de arte. É possível
fazer arte com lápis, pedra, tinta ou qualquer outro material inclusive a alta tecnologia e
as novas mídias digitais, o que não se pode é desistir da poética, da manifestação de um
indecidível que vai com os processos das imagens encarnadas, aquilo que para Jacques

7
Modalidade da historiografia que privilegia o modo de ser e de pensar dos indivíduos. A partir dos anos 60
está muito relacionada com a Escola dos Annales. Para Fernand Braudel, as mentalidades constituiriam um
padrão de pensamento ou de sensibilidade que mudariam muito lentamente, vindo a formar uma estrutura
de longa duração.
8
Sobre isso ver DIDI-HUBERMAN, G. La imagen superviente. Historia del arte y tempo de los fantasmas
según Aby Warburg. Madrid: Abada, 2009.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
Derrida não “pode ser apreendido pelas oposições binárias remédio/veneno, bem/
mal, dentro/fora, palavra/escritura, constituindo-se na cadeia aberta da différance”9, por
isso, ao propor um relacionamento com processos de encarnação de imagens artísticas
em diferentes espaços e diferentes temporalidades procura-se apenas reconhecer uma
importância concreta que se manifesta na abertura do tempo que se carrega, como na
ideia da exposição curada por Georges Didi-Huberman no Centro Reina Sofia no ano de
2011 em Madri, cujo significante título era: “¿Como llevar el mundo a cuestas?”.

QUESTÕES de método
No contexto dos Estudos Visuais como já apontamos, vislumbramos uma
perspectiva metodológica para o trabalho com imagens que se desviam das normas e
dos estilos, das funções consuetudinárias, considerando uma perspectiva transdisciplinar,
e ampliando os limites epistemológicos. Colaboram para esse campo as teorias do signo,

Cadernos de Estudos Culturais


os estudos culturais, a sociologia, a história, as teorias da percepção, a antropologia,
a filosofia, as poéticas da imagem. Busca-se averiguar a relação das linguagens e dos
sistemas de representação, a partir das noções mais ampliadas do objeto contextualizado,
numa perspectiva imanente em relação aos enunciados poéticos da cultura visual, e da
imagem encarnada em particular.
Por cultura visual entendemos uma mudança fundamental no estudo da história
tradicional da arte em que, tal como aposta Hal Foster, ainda que de uma perspectiva 155
negativa, o conceito de “história” é substituído pelo de “cultura”, e o de “arte”

Mauricius Martins Farina


pelo “visual” jogando por sua vez com a “virtualidade” implícita no visual e com a
“materialidade” própria do termo cultura. (GUASCH, 2003, p.8)

O campo dos Estudos Visuais se constitui como um aparelhamento necessário ao


pesquisador para o enfrentamento dos paradoxos num tempo onde a materialidade e a
virtualidade se confundem. Como um espaço que se movimenta, a noção dos campos
transdisciplinares indica para a superação de marcos estruturais e epistemológicos fechados,
os Estudos Visuais pertencem ao campo ampliado da vida contemporânea, cujo objeto de
estudo é a cultura e a imagem. Uma imagem que não se movimenta apenas no território
das modalidades tradicionais das artes plásticas, mas também considera o cinema, o
vídeo, o estudo das mídias, os meios eletrônicos e digitais: sua influência está evidenciada
nas curadorias e na ação museológica contemporânea.
Uma condição da materialidade artística é a de expressar, para além do artista, uma
experiência material em relação ao processo envolvido numa história das mentalidades e,
portanto, do ambiente cultural. Aquilo que o artista representa – e que é seu problema –
pode ser, por determinadas condições, aquilo que partilhamos desse resultado. Se a partir
disso identificarmos essa obra como uma parte que também é nossa, incorporamos como

9
SANTIAGO, Silviano (Org.) Glossário de Derrida, 1976, p. 65.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
parte de nosso repertório, aquilo que á a obra passa a nos pertencer. As ações artísticas
ocorrem como resultado de ambientes que são transformados pela multiplicidade, pela
simultaneidade de proposições individuais e coletivas que atuam como possibilidade
de fabular a realidade, externa ou internamente às suas próprias condições, redes de
complexidades que não se explicam pelo sentido da presença da arte no mundo ou pelo
simples paradigma da eterna novidade. Partindo da experiência que construiu a obra temos
como resultado um processo dialógico em relação ao próprio artista, sua imaginação e
sua correspondência com o imaginário que nos pertence, em tempo e espaço diverso.
A Escola dos Annales10, ao considerar em específico vários aspectos da vida
privada e da cultura, tratou também de uma história das mentalidades em seus vários
desdobramentos, propondo ainda uma história da cultura e do imaginário já que estava
em questão a reconstrução do tempo histórico. No âmbito da história essa novidade
epistêmica foi transformadora.
Cadernos de Estudos Culturais

Tratando da arte, considerando uma desconfiança em relação aos enunciados


instituídos pela generalidade de uma história das formas e dos estilos, reconhece-se hoje
a fundamental importância de Aby Warburg11 que, anteriormente, constituiu um método
histórico/antropológico, indo de encontro e de acordo com a narração instituída pela
memória cultural em seus complexos processos de permutação.
Warburg substituía o modelo natural dos ciclos “vida e morte” e “grandiosidade e
156 decadência” por um modelo decididamente artificial e simbólico, um modelo cultural da
A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais

história em que os tempos não se baseavam mais sobre estados biomórficos senão que se
expressavam por estratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos
frequentemente inesperados e objetivos sempre interrompidos. (Didi-Huberman,
2009, 24-25)

Já não olhamos o passado com os mesmo olhos que os modernistas ou mesmo que
os pós-modernistas. Estamos mais vazios de revolução, e talvez esse que seja o nosso
maior problema numa relação com a distopia contemporânea, pode ser, entretanto, a
nossa própria condição de estabelecimentos de poéticas e reconhecimento dos arquivos
da memória. Epistemologicamente podemos ousar recompor o passado, e mesmo, através

10
A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico que se constitui em torno do periódico acadêmico
francês Annales d’histoire économique et sociale, tendo se destacado por incorporar métodos das Ciências Sociais
à História e por promover uma renovação teórico-metodológica da história considerando a necessidade de
uma reconstrução do tempo histórico, a base do seu método era a representação do tempo histórico.
11
Aby Warburg (1886-1929) foi o primeiro a fazer da “sobrevivência do antigo” (Nachleben der Antike) o
motivo central de sua aproximação antropológica da arte ocidental: estudada segundo sua lógica, suas fontes
e em suas ressonâncias filosóficas que vão desde a sua historicidade até o conceito freudiano de inconsciente,
passando pelo conceito de sobreviventes de Edward B. Taylor, o eterno retorno de Nietzsche, a memória
biológica de Darwin, a morfologia segundo Goethe, a empatia segundo Vischer, a fenomenologia segundo
Binswanger. Partindo de um relacionamento heurístico e não dogmático, Warburg introduz um conceito
novo de imagem, tratando de sua capacidade de retornar, de sua capacidade de se revelar como uma cena
intensa de tempos heterogêneos que se corporificam conjuntamente. (DIDI-HUBERMAN, 2009).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
das experiências da física, considerar um dia a possibilidade de viajar no tempo sem ter
que pilhar e destruir para acervar museus. Essas influências me parecem fundamentais
para pensar uma relação com o processo meta-histórico do século XXI.
Na arte que é o lugar do exprimível12, historicamente é possível notar que, embora
até o século XIX a representação fique submetida à preponderância do designado,
a distinção entre significante e significado não permite hierarquias, já que o como,
a natureza material que se apresenta, é sempre o que distingui uma obra de arte de
uma peça de comunicação, ainda que seu assunto não tenha uma natureza moralmente
defensável.
Como em A morte de Marat13 de Jacques Louis-David pintada em 1793, uma pintura
famosa por sua apologia ao falso herói. Ela mostra o jornalista Paul Marat, morto por
Charlotte Corday, uma jovem revolucionária girondina. Marat foi representado como
vítima de uma traição o que, no entanto, não corresponde à realidade dos fatos. Marat

Cadernos de Estudos Culturais


não era um herói, mas um sanguinário paranoico que usava sua pena para condenar
à guilhotina aqueles que lhe eram contrários, sem julgamento as mortes eram um rito
sumário. David pagou um alto preço por retratá-lo nessa condição falseada quando os
jacobinos caíram em desgraça.

157

Mauricius Martins Farina

Marat Assassinado, 1793,


Óleo sobre tela, 165 x 128.3 cm;
Museu Real de Belas-Artes da Bélgica.
12
Exprimível: os Estoicos distinguiam três “coisas”: o objeto, o que significa (significante, palavra) e o
significado, sendo as duas primeiras corporais e a última um incorporal. Numa fusão íntima entre o exprimível
e a linguagem aproximamos a ideia do exprimível ao conceito de expressão que por sua vez se diferencia da
comunicação: a linguagem como expressão não é um simples meio de comunicação, mas, um modo de ser
do homem que nesse sentido se aproxima da arte.
13
Marat Assassinado, 1793, Óleo sobre tela, 165 x 128.3 cm; Museu Real de Belas-Artes da Bélgica.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
Apesar desse problema em relação ao contexto de sua enunciação, essa
pintura está entre as mais importantes da história da arte e da cultura francesa por
consequência, e isso se deve a sua fatura, à complexidade de sua expressão como forma
pictórica que se distingue de tudo o que tinha sido feito até então. Apesar de engajada
nos interesses políticos mesquinhos e equivocados que a fizeram útil à propaganda
política no momento de sua ocorrência, ela é absolutamente distinta das imagens que
eram produzidas naquela altura seguindo um estilema Rococó. O que explica uma
fundamental diferença entre a arte e certas imagens engajadas que se apresentam como
arte e outras que mesmo com a confusão e o caráter discutível do artista conseguem se
instituir como uma transformação vincada na imanência poética que apresenta.
Imagens quaisquer e imagens encarnadas são coisas distintas, já que há imagens
que, mesmo utilizando um dispositivo estético, como no caso das pinturas do Realismo
Soviético, têm pouca originalidade na forma e submetem-se a um conteúdo o que lhes
Cadernos de Estudos Culturais

provoca um vazio existencial, uma imagem que ocupa um corpo que não lhe pertence.
A ausência do traço de pertencimento de identidade e alteridade implica em não haver
o necessário desvio criativo – característico da arte – e a ação do tempo em suas
dialéticas nesses casos, surge apenas como uma “pífia ilustração” através de uma forma
pronta de um estilo, e nunca de um estilema: uma marca distintiva. Imagens podem
também ser uma simulação, atuam na sombra de arte e da presença do artista.
158 A materialidade da obra de arte – que aqui convoco como um corpo – a distingue
A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais

das outras produções da cultura visual, entretanto, essa diferença é distinta de uma
evocação de superioridade, trata-se apenas de uma demarcação necessária, ainda que
perfeitamente falível. O corpo da arte é sempre mais importante que o assunto, ou que
um simples argumento, ainda que não se possa separar dele, ou faça dele sua questão.
As tendências de desmaterialização da arte no século XX me servem para dizer que essa
noção de corpo não é apenas física, é também conceitual. A arte se manifesta através
de processos amalgamados entre o que é visível – corporificado – e o que não é – o
exprimível – ainda que seja impossível separar um de outro, essa é uma condição que
faz da arte uma potência de muitas memórias, que atuam como um elo para reconhecer
e para recompor um quadro, cujas mentalidades implicadas nessa razão manifestam sua
presença pelos processos do imaginário, que é o lugar em que se instituem as ideologias
e seus modos de representação.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
O paradoxo dessa experiência das
imagens encarnadas é deixar marcas
numa composição de espaços e no abrigo
do tempo, podendo variar e se renovar
constantemente nessas regiões de terras
e culturas variadas onde a amplitude vai
se apagando do específico e o singular,
que habita uma consciência de corpo,
permanece como um conhecimento a ser
percebido. Diante dessa dificuldade, de
apresentar a si e à natureza dos corpos, a
singularidade refletida de pertencer deve
servir como justificativa para prosseguir,
ainda que os objetivos tenham um dado

Cadernos de Estudos Culturais


reconhecimento, sua verdadeira natureza
é a de se rebelar ao discurso organizado
de um relato científico, cuja verdadeira
segurança é se assenhorar da certeza de
Damien Hirst, crânio, platina, diamante, dentes não mais ter a dúvida.
humanos, 2007.
159

Mauricius Martins Farina

Marcos López, Vaca e caveira. Normandia/França, 2010, Lambda print 105 x 160 cm

O modelo do texto, que é vincado na palavra, ao tentar compreender a natureza das


imagens esbarra em seus limites. Os elementos que compõem a vida das palavras e das

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
imagens em suas próprias distinções, esbarram naquilo que sempre terá uma utilidade
financiável, ao buscar compreender, entretanto, a natureza de uma investigação que toca
o sensível, ao considerar imagens encarnadas, requer uma abertura para o imponderável
da presença, o que nos coloca ao relento de nossas próprias configurações anteriores,
ao desabrigo das palavras, tentando apelar para o que se insinua como manifestação
sensível e relacional. Tratar de pesquisar a arte é também se por em campo numa natureza
complexa, tratando de acalmar uma instabilidade para reconhecer um horizonte, ainda
que possível, quando o estável o será apenas por alguns aspectos.
Existe ainda uma possibilidade de tentar compreender certas relações de expressão,
considerando sua contingência pluralista, tratando da noção de expressão como algo fora
do singular, mas, também, como não considerar a ideia da arte em favor da sensibilidade
singular sem ser romântico querendo a afirmação do sujeito? Considero ir ao encontro
de uma noção de experiência cujos conceitos, ao serem expressos numa corporeidade
Cadernos de Estudos Culturais

formativa, manifestam o acontecimento de uma fenomenologia poética, para poder


corresponder ao princípio de complexidade de galáxias interativas, ainda que contenham
a possibilidade de expressar em si mesmas e ao mesmo tempo fora de si. A autonomia
da dependência entre a imanência e transcendência como um paradigma da não-exclusão.
A consciência de que o que é em si, e é também numa porção, o ser do outro;
entretanto, o que é de si senão uma potência abrigada pelo corpo que lhe dá a forma, mas
160 que não pulsa sem sua substância? Essa é a condição da contiguidade e da duração que a
A IMAGEM ENCARNADA. Processos poéticos em Artes Visuais

encarna. A presença do objeto é sempre a latência de um processo sensível relacionado


entre o coletivo e o singular que deve se manifestar para o outro. Os agentes dessa relação
para além do produtor, implicados no visionamento da obra artística – considerando as
amplas alterações de espaço e tempo – vivenciam em seus corpos percepções de um
espaço-tempo reinaugurado, onde são presentes, subjetividades intermodais que podem
conferir apreciações singulares.

Illya Chichkan, “Blue Noses”, Jogos mentais, 2007

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
A contextualização da experiência artística, no entanto, depende de um processo
metodológico que pode ir além do convencional ao se abrir para as tantas particularidades
de um relacionamento que impõe um diálogo que articula não apenas a sintaxe, mas,
todo o conjunto de relacionamentos que envolvem a fabricação de sentidos. Sem maior
importância, ainda que a definitiva afirmação lhe procure, a fatura do exprimível vai
absorver essa narrativa densa em favor do esquecimento que lhe impinge a doença do
ciclo orgânico, sua tarefa, patafísica14 de quem lida com as imagens da arte.

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SANTIAGO, Silviano (Org.) Glossário de Derrida, 1976.

14
Para Alfred Jarry a Patafísica é a arte como “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as
exceções”.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 151 – 162, jul./dez. 2012.
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA
e a expansão da fronteira
riobranquense

Cadernos de Estudos Culturais


Reginâmio Bonifácio de Lima1

Em nome de uma pretensa integração do Acre ao espaço nacional de desenvolvimento 163

Reginâmio Bonifácio de Lima


capitalista, durante fins da década de 1960 e início da seguinte, as terras públicas foram
vendidas e, por conseguinte, as populações nelas residentes foram obrigadas a sair – o que
resultou num intenso fluxo migratório na direção campo-cidade2. Com a emergência dos
conflitos pela posse da terra, a realidade urbana surgia como desdobramento da expansão
da fronteira agrícola. A trajetória dessa população no contexto regional, tanto quanto os
laços de vínculo com os locais de onde migraram, tornam clara a aglutinação de famílias na
periferia urbana.
O “cinturão de pobreza” formado como expansão da periferia já existente não é um
fenômeno exclusivo da história recente do Acre, em vários locais do Brasil e América Latina
é perceptível a organização – ou falta de – nos bairros periféricos. O ajustamento cultural
dos migrantes vai constituir novos contingentes de trabalhadores, mas também expor o
sentimento de identificação com a terra como meio de produção e constituição de laços
internos de solidariedade e defesa3 – traços característicos do processo de formação, que
em geral esses migrantes levam consigo para as cidades.

1
Reginâmio Bonifácio de Lima atua na Divisão de Ensino da PMAC e no Centro Integrado de Estudos e
Pesquisa em Segurança Pública Dr. Francisco Mangabeira – CIEPS/AC.
2
O Termo aqui é utilizado no sentido de rural-urbano; de colônias, seringais, colocações, chácaras à parte,
composta de cidade e suas ampliações.
3
OLIVEIRA, Marilda Maia. 1983, p. 86.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
Ao falar de ocupação é preciso ter em vista que “a compreensão do movimento
de formação e transformação da cidade, em sincronia com as etapas e contradições
da economia mercantil da borracha, torna-se então uma das chaves para desvendar os
problemas e conflitos surgidos agora com a aceleração do crescimento urbano”4. Nesse
aspecto, identifica-se nesse mesmo território, uma pluralidade de identidades coletivas,
envolvendo diversidades em relação a origens, aspectos culturais, trajetórias de vida, que
aproximam e distinguem grupos de indivíduos entre si.
As gentes que se deslocaram para Rio Branco, provenientes da zona rural, tiveram
na cidade o mesmo descaso com o qual foram tratados anteriormente. Ao ocuparem
terras que não lhes pertenciam, as pessoas corriam o risco de serem expulsas. O que se
pode ver também, diante do contexto histórico, são as condições de vida, o excesso de
mão-de-obra “desprovida de qualificação” para a inserção no mercado de trabalho, e as
incertezas pairantes rodeadas de miséria e desagregação social.
Cadernos de Estudos Culturais

A mobilidade é uma regra na atualidade, o movimento sobrepõe-se ao repouso e


quando o homem muda, junto com ele mudam também as mercadorias, as imagens e
as ideias (Santos, 2002). Ao estudar a ocupação de Rio Branco, envolta na perspectiva
da dinâmica das migrações, ou seja, da vida dos migrantes, chega-se à compreensão de
que sempre as mudanças fazem parte da vida cotidiana, e essas afetam diretamente o
ambiente por transformações sócio-espaciais – enquanto causa ou efeito e, em grande
164 parte, ambas correlatas - e que os fluxos dessas gentes para o local não são fatos isolados,
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

uma vez que se inserem no contexto das migrações internas, decorrentes da política
nacional da Marcha para Oeste, intensificada durante o período da Ditadura Militar.
Nas problemáticas levantadas busca-se investigar a forma como se deram as
relações entre as gentes que ocuparam as terras dando início à expansão da fronteira
riobranquense, almejando explicitar o processo de ocupação, bem como as modificações
antrópicas efetuadas no ambiente receptor da migração. Dessa forma, no presente
trabalho tem-se como objetivo analisar o processo de ocupação das terras amazônicas
em que se localiza a cidade de Rio Branco. Trata-se especificamente, de compreender o
movimento de formação e transformação da cidade, abordar a luta pela sobrevivência
das gentes migrantes expropriadas da periferia riobranquense, enquanto parte de um
processo macroeconômico e social; analisar as modificações antrópicas efetuadas nas
terras do ambiente receptor das migrações rural e urbana.
A pesquisa foi realizada dentro de uma perspectiva historiográfica, tendo como
apoio metodológico as formulações e a discussão social da propagação da experiência
humana, como elemento fundante para construção de um modo de vida comunitário,
embasado no pensamento estrutural de Paul Thompson. A vivência dos ex-seringueiros,

4
OLIVEIRA, Luiz Antônio Pinto de. 1982, p. 32.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
ex-posseiros rurais e o quadro geral de seus movimentos históricos constituem o
foco de interesse do estudo, como matéria de investigação pertinente à compreensão
específica das características assumidas; a acentuação urbana, devido à intensificação do
êxodo rural, a luta pela terra e a ocupação dos espaços tornados urbanos. Assim sendo,
não se propôs a estudar a formação de Rio Branco a partir de um viés economicista,
vinculado unicamente à expansão da frente capitalista na Amazônia, mas a caracterizar
as complexidades que o processo de urbanização da Capital acreana apresenta no curso
da sua história recente.
Em um primeiro momento foram trabalhadas as bibliografias acerca da formação
da cidade, buscando fazer o enquadramento historiográfico do objeto de pesquisa e dos
sujeitos nele atuantes. Segundamente, os referenciais teóricos, conceitos e conjunturas
sociais, foram estudados na pesquisa, com a devida contextualização da urbanização e
do processo expansivo. Para tanto, foram consultados autores como Leandro Tocantins,

Cadernos de Estudos Culturais


Luiz Antônio Pinto de Oliveira e Carlos Alberto Alves de Souza, estudiosos das relações
sociais acreanas.
É certo que Rio Branco não se formou a partir de um planejamento territorial
urbano, antes pelas migrações e andanças populacionais o espaço foi se transformando
em lugar a partir da constituição da base territorial. O espaço desconhecido, natural,
incomensurável, foi e ainda é modificado, transformado e “reordenado” pela diversidade
nas inserções antrópicas que o tornam um território de ordem cultural, conhecido aos 165

Reginâmio Bonifácio de Lima


que lá se assentaram e mensurável às relações socioculturais nele estabelecidas. Assim
sendo, percebe-se que embora, às vezes, indiretamente, que o poder público opera e
coopera no ordenamento territorial, através de ações de políticas públicas, estratégias de
mudança social e organização do território ou falta delas.
Essa transformação é ao mesmo tempo um assunto técnico e político. Não é o
foco neste trabalho, portanto, engajar-se nos fatores de distanciamentos (por rupturas,
fissuras e até mesmo no termo físico), tampouco de acessibilidades (no viés geodésico).
O que se busca é desenvolver a compreensão de como as terras foram modificadas
antropicamente pelas gentes que produziram modificações, organizaram e ocuparam o
território desenvolvendo e estruturando esse habitat (Almeida, 2001) a partir das diferentes
atividades e relações sociais estabelecidas.

As relações de poder e a ocupação recente da


Amazônia
O Brasil em seu subdesenvolvimento não galgou espaços como as nações do Norte,
chamadas de desenvolvidas. A expansão do mercado no país teve nos mercados financeiros
modernos a base garantidora da viabilidade modelada pelos países desenvolvidos para que
se seguisse neste país. A produtividade e assimilação das novas técnicas não conduziram

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
à homogeneização social, antes, a difusão das novas técnicas deu-se em certas áreas,
inicialmente quase que exclusivamente pela aquisição de novos produtos via importação
(Furtado, 1992). Esse chamado processo produtivo causou uma modernização no Brasil,
mas não conduziu à redistribuição dos bens, não houve a elevação do nível de vida da
população.
Nesse contexto de subdesenvolvimento surgiu a industrialização tardia brasileira,
que agiu com grande rapidez para reestruturar o sistema produtivo, ainda embasado no
sistema substitutivo. A Amazônia trocava “pelas” de borracha por dinheiro, o que não
enriqueceu os seringueiros, mas formou grandes fortunas Brasil a fora. A modernização
tardia implementada pela “industrialização substitutiva” levou o Estado a sustentar a sua
modernidade com recursos provenientes dos meios ditos atrasados.
As políticas traçadas de expropriação e formação de mercados de reserva se deram
tardiamente na Amazônia em relação ao restante do país. Contudo, os efeitos foram
Cadernos de Estudos Culturais

vistos alardeadores das disparidades exercidas pela “ditadura do grande capital” e pelas
práticas governamentais voltadas aos interesses de uns poucos. As migrações da zona
rural para a urbana e dos pequenos centros para as cidades fizeram ocorrer uma grande
explosão demográfica nas cidades, aumentando as periferias, levando esses trabalhadores
expropriados a viverem à margem das cidades. Tudo isso, em grande parte, fruto das
políticas públicas e atividades capitalistas implementadas no campo.
166
A política econômica adotada a partir de 1964 favoreceu os Estados da Amazônia
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

com uma participação de forma mais efetiva de formação do capital e consequente


integração à propaganda produzida pelo Governo Federal; a construção de rodovias
como Belém-Brasília, Cuiabá-Santarém, Brasília-Acre; e, pouco depois, no Acre a
especulação fundiária, o crédito fácil e barato, as facilidades para a expansão da pecuária,
acentuaram o desequilíbrio social, afetando diretamente as populações que passaram a
ocupar as periferias das cidades, principalmente da Capital.
A forma de ocupação implementada na região acreana na primeira metade do
século XX era extrativista da borracha. Com a transferência das terras dos seringais
falidos aos compradores do Centro-Sul, viu-se um acelerado crescimento das pequenas
propriedades, embora a posse da terra tenha continuado extremamente concentrada.
Já nos últimos anos da década de 1960 é perceptível uma ruptura no padrão de
ocupação territorial nas capitais amazônicas. As alterações produzidas dão conta de um
redimensionamento do quadro urbano com o amento da migração contínua para as
cidades. O principal fluxo migratório se deu mais intensamente para a banda ocidental,
com predominância de composição rural atingindo principalmente as cidades de Macapá,
Porto Velho e Rio Branco.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
Uma temática a ser abordada concernente a esse período específico da Ditadura
Militar e seus projetos para a Amazônia é o caráter transnacional da compreensão
amazônica enquanto necessária aos interesses dos países de economia desenvolvida.
Isso se dava não apenas com o intuito de uma economia predatória, mas também, pelas
riquezas da biodiversidade, descobertas científicas, a água potável para um mundo que já
sente a escassez deste produto, e, as alterações climáticas que a destruição da Amazônia
poderia causar nesses países. Por isso, o enfoque que deve ser dado, além da visão militar,
precisa incorporar temas emergentes e complexos que superem a crise ecológica e
ampliem o pensar reformulante que está ocorrendo dentro de uma atuação entre Estado,
as forças do mercado e a sociedade civil, numa questão de segurança internacional.
Os movimentos políticos e econômicos que começaram a surgir no final da década
de 1960 davam margem a grupos e ONGs que buscavam “proteger” a natureza para tornar
em “meio ambiente” a localidade implementando o “desenvolvimento sustentável”, a

Cadernos de Estudos Culturais


natureza onde, por séculos os seus habitantes já viviam. Nesse período, qualquer processo
de transformação teria o aparato estatal e o fundo público como pressupostos, além
da criação de empresas e agências estatais de desenvolvimento, visando atrair grandes
grupos de capitais privados. O poder público dotou, ainda que parcialmente, de infra-
estrutura adequada, formulou políticas e incentivos fiscais e de crédito.
Como consequência dessa inicial atividade pública, foram implantados grandes
projetos agropecuários e dispositivos jurídicos excepcionais, como os mecanismos de 167

Reginâmio Bonifácio de Lima


regulamentação adotados pelo Estado. Esse período foi o que mais rápido convergiu
terras públicas em propriedades privadas. A expansão capitalista na Amazônia resultou,
além da desregionalização da propriedade do capital, na predominância dos projetos
agropecuários sobre os industriais, nos ganhos especulativos com a terra, geração de
violentos conflitos sociais decorrentes da luta pela terra e expulsão dos camponeses de
sua terra, acelerando o processo de destruição ambiental (Paula, p. 1991).
Em nome da integração nacional, e mais tarde, de uma integração com o mercado
externo, o ambiente social foi modificado. As normatizações produzidas pelo jogo
monetário regulado pelo sistema financeiro internacional, FMI e Banco Mundial,
transformaram a dinâmica interna das convivências intra-nacionais, regulando-as através
do controle estatal com políticas e ações coordenados por investimentos setoriais e
fomento às “práticas de desenvolvimentos” na região. As regulamentações, tão necessárias
em meados do século XX, tornaram-se carentes de modificações e desregulamentação
na década de 1980. As leis executadas e a generosidade do poder público concederam
ao grande capital “salvo conduto” para agir livremente na Amazônia. Mesmo com a
aprovação da política nacional de meio ambiente, em 1981, o que se viu foram mecanismos
que ajudaram aos interesses estrangeiros em detrimento das populações locais.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
Abertura e definição da fronteira acreana
As terras do Acre por vários séculos foram tidas como desconhecidas ou “terras
não descobertas” e assim permaneceram até meados do século XIX. O Tratado de Madri,
realizado em 13 de janeiro de 1750, regularizou os limites entre as terras portuguesas e
espanholas, mas não delimitou a área especificamente referente ao Acre; outros tratados
foram produzidos e, da mesma forma, não estabeleceram, no terreno, a linha fronteiriça
que abrange do Rio Madeira ao Javari.
A borracha amazônica5 era bem conhecida e utilizada pelos índios, eles faziam
artefatos de borracha e brinquedos para os curumins, além de utilizá-la como
impermeabilizante. Várias espécies de árvores que fornecem o látex eram há muito
utilizadas: como o caucho (castiloa ulei), a balata (chrysophyllum balata), a sorva (couma utilis),
a mangaba (harnicornia speciosa) e a seringa (hevea basiliensis).
Cadernos de Estudos Culturais

É certo que em 1762, com o uso da terebintina, houve um avanço na qualidade da


consistência da borracha e consequente avanço na produção. A Europa estava vivenciando
o início da Revolução Industrial, enviando pesquisadores ao mundo inteiro em busca de
novos produtos. O padre jesuíta João Daniel escreveu que “entre o Rio Madeira e o
Javari, por mais de 200 léguas não há povoação nem de branco, nem de tapuias mansos
ou missões”, isso em 1760, na época em que as missões estavam se estabelecendo na
168 Amazônia (Revista Interior: 1978, p. 06).
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

O mundo em industrialização estava querendo usufruir as riquezas da Amazônia,


várias foram as tentativas de conquista do território nacional brasileiro. Em 06 de julho de
1801, o Tratado de Badajós anulava o de Santo Idelfonso, ficando definidas as fronteiras
da América do Sul. As Frentes de Expansão, muitas delas capitalistas, buscavam demarcar
o território brasileiro.
Após a descoberta do processo de vulcanização da borracha em 1844, por Thomas
Hancock, na Inglaterra, e Charles Goodyear, nos Estados Unidos, foi possível dar outras
utilidades à borracha. Esta se tornou indispensável para a civilização. O uso que antes
era restrito, mas que já tinha mercado garantido em Boston, Nova York, Lisboa, Viena,
Londres e tantos outros lugares, foi expandido. O preço do látex subiu consideravelmente
e iniciou-se a corrida para o Acre.
Serafim da Silva Salgado, Manuel Urbano, João Cunha Correa, Willian Chandless
e, mais tarde, Euclides da Cunha, desbravam o território acreano estabelecendo marcos.

5
Desde o descobrimento da América se conhecia a borracha. O próprio Cristóvão Colombo presenciou,
em sua segunda viagem à América, o “jogo da bola”, no Haiti. Muitos viajantes anunciaram essa “maravilha
da América”, contudo, foi o pesquisador geógrafo e astrônomo francês Charles Marie de La Condamine,
estudando as selvas do Equador, que comunicou à Academia de Ciências de Paris em 1736, notícia sobre a
aplicabilidade da borracha.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
Nessas áreas foram descobertas várias tribos indígenas, grande quantidade de árvores
para a coleta do látex, além de ricas fauna e flora.
Abre-se uma Frente pioneira no Rio Acre e pouco depois no Purus, impulsionadas
pelos interesses internacionais em adquirir a riqueza proveniente da floresta. Antes,
o comércio das drogas do sertão havia impulsionado o adentrar a floresta, agora a
borracha fazia subir às cabeceiras dos rios. A introdução de barcos a vapor em 1853,
bem como a aberturara do Rio Amazonas à navegação internacional, fizeram com que a
comercialização da borracha aumentasse em muito, a ponto de, ainda no século XVIII,
superar a de cacau no porto do Pará.
A relação entre os seringais e a cidade de Manaus era de compra da produção por
parte desta, enquanto subsidiava aqueles. O drama internacional começou a se esboçar por
os brasileiros transporem a fronteira entre seu país e a Bolívia, iniciando um rudimentar
processo de “civilização”. Os limites ainda não haviam sido fixados, nem os marcos

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colocados, daí a dificuldade; nem a Bolívia sabia que as terras lhe pertenciam. A linha
limítrofe leste-oeste só existia nos tratados internacionais. Os brasileiros eram os únicos
a explorar a borracha, atendendo uma demanda existente desde 1839, mas não havia sido
suprida até a grande seca do Nordeste de 1877, em que, sem condições de vida, levas de
imigrantes chegavam às terras da Amazônia em busca de sobrevivência, e foram formar
os seringais do Acre e seus primeiros núcleos populacionais, em busca do “ouro negro”.
A terra desconhecida, a paisagem totalmente isolada do que se chama “civilização”,
169

Reginâmio Bonifácio de Lima


fora aos poucos sendo ocupada. O ciclo se completara, terras novas, produção e
população. Havia um fluxo de relação entre esses; então, Brasil e Bolívia resolveram
demarcar as fronteiras delimitando a linha Cunha Gomes a 10’ 20” de latitude. Portanto,
o Acre pertencia oficialmente à Bolívia; no ano de 1897, um ano depois, foi dada ordem
ao governo amazonense para reconhecer essa linha. Contudo, pelo tratado de Ayacucho,
no artigo segundo reconhecia o “uti possidetis”, para fixar a fronteira entre o Brasil e a
Bolívia.
Durante o período de 1890 a 1905, além do crescimento da demanda de matéria-
prima gumífera, o que se vui foi uma série de atividades acentuando as relações envolventes
da prática vigente na expansão fronteiriça do Oeste. De um lado, o Brasil buscava se
afirmar com a instalação do regime republicano, no intento de atingir o equilíbrio de
sua economia que mesmo com a atuação do café, ainda era instável; de outro, a Bolívia
liderada por seu representante advindo das frentes liberais, Manuel Pando, procurava
afirmar-se como Estado autônomo. Ao desenvolver essa análise, percebe-se que o leite
extraído da hevea brasiliensis aparece como possibilidade concreta de ambos os países
alcançarem seus objetivos. Com a ascensão de Pando ao poder, a instabilidade política,
a deficiência econômica e a falta de unidade territorial na Bolívia eclodiu a “Questão do
Acre”, e, mais tarde, o Bolivian Sindicate.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
Luiz Galvez, Plácido de Castro e tantos outros “heróis” acreanos entre lutas,
batalhas, tratados e diplomacia imputaram ao Acre status de pertencer ao Brasil. A
fronteira foi definida oficialmente no dia 17 de novembro de 1903, com o Tratado de
Petrópolis, anexando as terras do Acre ao Brasil6.
Definida a questão do Acre, é necessário que se dê continuidade ao estudo da
abertura da fronteira: as necessidades de excedente demográfico foram, em grande
medida, supridas pela corrente migratória para a Amazônia ocorrida a partir da grande
seca do Nordeste. De acordo com Lima (1982) a intensificação da migração nordestina
para o Acre inicialmente se deu no período de 1877 a 1900. Nesses treze anos, cerca de
cento e sessenta mil imigrantes se estabeleceram nos seringais situados na bacia dos rios
Madeira, Acre, Purus, Chandless e Juruá, sendo possível traçar a concomitância da seca
com o início do período mencionado, e o auge da produção gumífera com os últimos
anos do século XIX.
Cadernos de Estudos Culturais

Essa expansão, aparentemente intensiva, não manteve seu fluxo proporcional ao


aumento da produção do látex. As novas terras utilizadas mantinham uma estreita relação
entre a atitude pioneira de “assentamento” e produção e o modo de vida existente nas
unidades produtivas. Assim a relação entre a terra da qual se retira a borracha (o seringal),
o responsável pelas terras, mantenedor do “modo de vida” implementado em suas
propriedades (o seringalista) e o indivíduo diretamente responsável pela extração do leite
170 da seringa e sua transformação em pélas (o seringueiro), se dá ora amistosamente e ora
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

em conflito.
É válido ressaltar que embora a relação vigente fosse de exploração e que os
seringueiros tenham sido expropriados, gradativamente se endividando e enriquecendo
os donos dos seringais, era latente que muitos seringueiros viam seus “patrões” como
alguém que cuidava deles, não como pesarosos ludibriantes. A relação tida na expansão
da fronteira, ainda que com momentos de confusão implementou marchas e contra
marchas, por conseguintes êxitos e fracassos, não necessariamente ligados às forças de
relações locais, mas prementes no âmbito do mercado de produção e na valorização – ou
falta dela – no produto gumífero explorado.

6
O Tratado referente às relações de amizade assinado pelos representantes do Brasil, Barão do Rio Branco
e Assis Brasil, e, pela Bolívia, Fernando Guachala e Claudio Pinilla, estabeleceu: a) os limites estabelecidos
entre os dois países; b) a criação de um tribunal arbitral para resolver as reclamações provenientes de atos
administrativos e fatos ocorridos nos territórios permutados; c) uma indenização à Bolívia de dois milhões
de libras esterlinas; d) providências sobre a demarcação descrita anteriormente; e) um prazo de oito meses
para conclusão de um tratado de navegação e comércio; f) obrigação, por parte do Brasil, para construção de
uma estrada de ferro desde o porto de Santo Antônio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no rio Mamoré;
g) ventilação direta pelo Brasil dos limites com o Perú) Solução por um juiz arbitral de todas as dúvidas
que surgissem por ocasião da execução do tratado; j) concessão à Bolívia de 867,5 Km² de terras brasileiras
no Mato Grosso e Guaporé,além da liberdade de trânsito pela estrada Madeira-Mamoré e pelos rios até o
Oceano, com as correspondentes facilidades aduaneiras.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
O seringal sempre foi uma empresa desvinculada da terra, contendo em sua área
as árvores necessárias para a retirada do “leite”, colocações, “estradas de seringa” e
barracão. O seringalista monopolizava o acesso ao seringal, praticando o “aviamento”
dos produtos necessários aos seringueiros. Estes, por sua vez, trabalhavam até catorze
horas por dia, moravam em tapiris, tudo o que consumiam era-lhes imputado como
débito no barracão e comumente morriam de malária, febre amarela, ataques de índios
ou de animais selvagens.
As casas aviadoras situadas em Belém e Manaus abasteciam os seringais, recebendo
também os rolos de borracha produzidos nestes e vendendo-os ao exterior. Elas
financiavam quase cem por cento da produção, vendendo os víveres aos seringais por
preços superfaturados e recebendo as “pélas” que vendiam, ora com lucro, ora com
prejuízo, dependendo das estimativas e preços no mercado.
O sucesso de Henry Wickham ao embarcar setenta mil sementes da hevea brasiliensis,

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em 1876, e consequente início da produção de borracha na colônia inglesa do Ceilão
(no sul da Índia) e Indonésia, fez com que por sua seleção, disposição de plantio, e
facilidade de coleta, a borracha inglesa se tornasse mais barata e de melhor qualidade
que as plantações nativas, com isso quebrou-se o monopólio da região amazônica. Em
1905, a produção brasileira de borracha era de 35 mil toneladas, e a inglesa de apenas
145 toneladas (Souza: 2002). No ano de 1913, a produção amazônica da goma elástica
respondia por apenas quarenta e cinco por cento da produção mundial, menos de duas 171

Reginâmio Bonifácio de Lima


décadas depois, por apenas cinco por cento. Era a decadência da borracha amazônica,
mas não da Amazônia. O capital estrangeiro foi embora, contudo, viu-se um novo limiar
de atividade nas terras acreanas. A interação com a sociedade central foi modificada e
iniciou-se uma urbanização nas terras acreanas, não na escala das migrações de outras
áreas do Brasil para o Acre, e sim, o fluxo interno das populações e a mudança de sua
relação com a terra.
Com o aumento do consumo da borracha e o necessário suprimento do mercado
interno, a Superintendência do Desenvolvimento da Borracha (SUDHEVEA) foi
fortalecida pelas práticas políticas nacionais que, de acordo com o superintendente
José Cesário Mendes Barros, a SUDHEVEA implantou, em 1972, “bases necessárias e
irreversíveis para o total auto-abastecimento do país de borracha natural”. No mesmo
ano deu-se início ao primeiro programa-piloto destinado a implantar, consolidar a lavoura
heveícola e modernizar a exploração da borracha nativa” (Revista Interior: 1978, p. 6).
Para o superintendente, o objetivo foi atingido a ponto de em 1977, o Conselho Nacional
da Borracha, lançar o segundo Programa de incentivos à produção de borracha natural
(PROBOR II), tendo como fim principal a ampliação do primeiro, concessão de crédito
rural, operacionalizado pela superintendência da borracha em ação coordenada com os
agentes financeiros básicos do Sistema Nacional de Crédito Rural (Banco da Amazônia,
no Norte e Centro-Oeste, e Banco do Brasil, no sul da Bahia). Foi aprovado o plantio de
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
seringueiras, num total de 07 mil hectares, e, de acordo com o superintendente, no caso
acreano, a implantação alcançou apenas um terço do planejado.
Em 1972, o Acre produziu cerca de seis mil toneladas de borracha, e, em 1976,
produziu seis mil e oitocentas toneladas. O Acre foi o maior produtor nacional de
borracha no período, seguido do Amazonas e do Pará. A produção brasileira de borracha
natural, em 1978, representava apenas um terço da demanda nacional, sendo que em
1974 a produção foi de dezoito mil e seiscentas toneladas, ficando o país responsável
por apenas 0,6% da produção mundial. No mesmo período, a borracha natural brasileira
representava apenas 10% do consumo nacional (Revista Interior: 1971, p. 4-31).
A produção não estava atendendo à demanda. Assim, o não atendimento da
necessidade de tempo e cuidado necessários para a seringueira começar a produzir, a falta
de incentivos continuados e desacerto na política de implemento dos seringais, foram
alguns dos fatores que contribuíram para que os seringais cultivados não alcançassem o
Cadernos de Estudos Culturais

pleno desenvolvimento.

BREVE HISTÓRICO riobranquense


O local onde mais tarde seria a cidade de Rio Branco, era habitado por tribos Aquiris,
Canamaris e Maneteris, pertencentes à família dos Aruaques, que dominavam a bacia
do Purus. De acordo com Silva, “os solos riobranquinos foram pisados por civilizados,
172 pela primeira vez, em 1861, quando uma expedição de caráter exploratório, chefiada por
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

Manoel Urbano, sob os auspícios da Província do Rio Negro, por ali passara...” (1981,
p. 96). Em 1882, aportou às margens do Rio Acre, nas proximidades da gameleira, o
cearense Newtel Newton Maia, dando início ao estabelecimento do seringal Empresa.
A partir desse seringal surgiu o que, em 1904, seria elevada à categoria de
Vila. Através do Decreto nº. 5.188, de 07 de abril de 1904, o Território acreano foi
dividido em três Departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá, tornando-se Rio
Branco sede do Departamento do Alto Acre. Em 1908, várias mudanças significativas
foram implementadas pelo então prefeito, Gabino Bezouro; como a transferência da
sede do Departamento do Alto Acre para a margem esquerda do Rio Acre (Bezerra,
2002), a instalação de policiamento, da justiça e da fiscalização tributária, estruturação
da Vila Penápolis, realização de construções públicas e criação da Secretaria Geral do
Departamento para fiscalização da limpeza pública (Costa, 2003). Rio Branco teve sua
constituição legal em 13 de junho de 1909, como sede da prefeitura do Departamento
do Alto Acre, na época era chamada de Penápolis. No ano de 1912 recebeu o nome que
possui até os dias atuais, em homenagem ao Barão do Rio Branco.
Em 1909, a cidade de Empresa recebeu o nome de Penápolis, em homenagem
ao presidente do Brasil Afonso Pena (...) em 1912 os lados direito e esquerdo
do antigo seringal Empresa foram chamados de cidade de Rio Branco, em

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
homenagem ao Barão do Rio Branco, tornando-se capital do Acre em 1920
(Souza, 1999, p. 36).

Seguindo a prática de outras cidades amazônicas, Rio Branco desenvolveu-se às


margens do rio, com casas de madeira e ruas de traçado irregulares7. Inicialmente, era a
sede do Departamento do Alto Acre, sua formação se deu para atuar como entreposto
comercial avançado da economia mercantil da borracha. Ainda em 1909 planejou-se
e executou-se a construção de duas vias estruturais importantes: a Avenida Ceará, na
direção oeste-leste, e a Avenida que mais tarde viria a ser chamada Getúlio Vargas, na
direção sudeste-noroeste.
O fato de Rio Branco se encontrar na Bacia Hidrográfica do rio Acre, estando esta
inserida na Bacia Sedimentar do rio Amazonas, em função de sua topografia, percebe-se
a origem do rio Acre decorrente da precipitação pluviométrica e do encontro das águas
fluviais e pluviais com o tenro relevo litológico, resultante da erosão natural que esculpiu

Cadernos de Estudos Culturais


os rios da região e seus afluentes, bem como o chamado “regime das águas”, onde há
enchentes que ocorrem em correlação estreitamente ligada à intensidade das chuvas, e, à
vazante no período de estio.
Durante as cheias, alguns locais são alagados e proporcionam verdadeira calamidade
às populações ribeirinhas que vivem nas margens próximas aos rios da região. Milhares
de famílias são desabrigadas nesse período, principalmente as que vivem nos bairros
Taquari, Seis de Agosto e Airton Sena. Em contrapartida, no período de estio, o lençol 173

Reginâmio Bonifácio de Lima


freático é rebaixado pela ausência de chuva, que ocorre em proporção 80% menor que
no período chuvoso.
O município8 conta atualmente com uma área territorial de aproximadamente
8.835.675 Km², sendo sua população de 336.038 habitantes (Censo 2010 – IBGE). Limita-
se ao sul com os municípios de Capixaba, Xapuri e Brasiléia; a leste com o município
de Senador Guiomard; a oeste com o município de Sena Madureira; e ao norte com os
municípios de Sena Madureira, Bujari e Porto Acre.
Apenas na década de 1920 foram erguidas as primeiras construções em alvenaria
e abertas ruas paralelas às margens do rio Acre. Na margem direita, em Empreza, foi
aberta a rua Primeiro de Maio; na margem esquerda, em Penápolis, foram abertas as

7
Todas as ruas do “centro” do Primeiro Distrito foram planejadas, mas nem por isso têm seu traçado com
paralelas e perpendiculares, antes, muitas delas seguem o delinear do curso do Rio Acre.
8
Rio Branco está localizado no Nordeste do Estado do Acre, possui características geológicas e
geomorfológicas com singularidade predominantemente horizontal no relevo, com grandes áreas de
depósitos aluviais resultantes da erosibilidade das águas sobre as margens dos rios que o banham: Rio Acre,
Rio Iquiri, Rio São Francisco, Rio Antimari, Rio Xipamamu e Riozinho do Rôla, durante as enchentes cíclicas
anuais. A cidade de Rio Branco está localizada às margens do Rio Acre, sendo que o Rio São Francisco
também faz parte do ambiente urbano desta. O clima riobranquense é classificado como equatorial, com
uma estação chuvosa do mês de outubro a março, e uma de estio de abril a setembro. A temperatura média
anual é de 25,5° C e a umidade relativa tem valores médios que ficam em torno de 85% (INMET/UFAC).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
ruas paralelas Epaminondas Jácome e Benjamim Constant; e perpendiculares a aquelas,
Marechal Deodoro e Getúlio Vargas. Craveiro Costa (1998), ao estudar a formação
territorial do Acre, afirma que Rio Branco no início era formada por duas zonas distintas,
separadas pelo rio Acre: Empreza, à margem direita, onde se situavam os principais
hotéis, as diversões e os negócios de beneficiamento e transporte de produtos extrativos;
e Penápolis, à margem esquerda, onde se situavam as repartições públicas.
Com o passar dos anos, Penápolis teve melhor constituição de ruas, praças, infra-
estrutura em geral, não somente pela função de ser sede da administração pública, mas
também pelo fato de as pessoas mais abastadas financeiramente se mudarem para lá,
afastando-se da agitação de Empreza. Em 1920, Rio Branco havia suplantado as outras
cidades. Com a extinção e unificação dos três Departamentos existentes, através do
Decreto nº. 14.383, de 01 de outubro de 1920, Rio Branco foi elevada à categoria de
capital do Território Federal do Acre, nessa época tiveram as primeiras construções em
Cadernos de Estudos Culturais

alvenaria, além de planejamento e abertura das ruas.


Com a crise do sistema da borracha em 1920, ocasionado pela queda do preço
no mercado internacional e diminuição da produção da borracha acreana, várias foram
as mudanças ocasionadas na economia local. Ocorreu um redimensionamento da
composição social urbana (Oliveira, 1983, p. 82), com a queda do preço da borracha parte
do grande contingente populacional ligado a essas atividades abandonou o território
174 acreano. A população que ficou, estabeleceu-se em função da administração pública, do
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

comércio e, parte, em atividades de produção extrativa e de beneficiamento.


As andanças das populações pelo território acreano vão se configurar como fruto
dessa “liberação”. O trabalhador começa a arcar com o próprio provimento de víveres e
custo de produção, através do cultivo em redor de seu tapiri. As forças de trabalho não
mais eram represadas e direcionadas para a produção da borracha. Dentre as alterações
ocorridas nos seringais destacam-se a diversificação da produção, e o ritmo implementado.
O tempo de trabalho e sua liberdade de movimento refletiram diretamente na migração
para fora dos seringais, um sinal de excedente populacional; e mudança das relações de
força de trabalho entre os que ficaram no seringal e os seringalistas.
Não há grandes alterações na economia acreana até a década de 1940, quando as
atividades orientadas pelo capital mercantil, em um novo esforço de produção extrativa,
retomaram a extração da borracha. Nesse período, Rio Branco contava com cerca de
onze mil e noventa e três habitantes, ou seja, metade do contingente populacional que
havia nela na década de 1920.
A estrutura que antes era implementada de forma social rural “coletora”,
representada pelos coletores de látex e castanha, no início do século XX, foi modificada
com o acréscimo da agricultura de subsistência, que não conseguia suprir sequer um terço
das necessidades do mercado interno. A partir de 1940, com a crescente urbanização,

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
várias foram as modificações ocasionadas pelas novas conjunturas político-econômicas
que eclodiram no Acre. Os problemas do êxodo rural, a deficiência na assistência sanitária
e social, a falta de crédito para o desenvolvimento das atividades extrativistas da borracha
e castanha foram fatores importantes que influíram na modificação do ambiente acreano
e seus sistemas de fomento, o que refletiu diretamente na Capital.
A luta pelo progresso levou o Brasil na década de 1960 a, teoricamente, caminhar
para a reforma agrária na Amazônia, onde pudesse haver um desenvolvimento das relações
e resolução das tensões suscitadas pela mudança das estruturas industriais brasileiras e
pelos equilíbrios sociais decorrentes do desenvolvimento – o que não ocorreu.
O crescimento de Rio Branco, capital do Estado do Acre, que já vinha alimentando-
se do deslocamento populacional desde a década de 1960, foi nutrido tanto pelas
populações expropriadas dos seringais como pelas populações que, em face às condições
difíceis vividas nos seringais, precisavam se deslocar de lá para sobreviver. Rio Branco

Cadernos de Estudos Culturais


tornou-se o centro receptor dos contingentes populacionais recentes do Acre, das gentes
retirantes da zona rural que também foram obrigadas a sair por circunstâncias como a
interrupção do aviamento, a desistência dos responsáveis pelos seringais, as pressões dos
credores, a queda do preço da borracha, dentre outros fatores.
A reforma agrária teria um peso decisivo no modo de atuação do governo e das relações
com o mercado, contudo, a política aplicada persistiu numa via de “modernização mais
conservadora”, com a persistência do latifúndio e a configuração de um sistema político
175

Reginâmio Bonifácio de Lima


mais autoritário (Paula: 1991). As políticas propostas para o projeto de desenvolvimento
foram principalmente para exportação. O mercado e o Estado buscaram compensar suas
falhas pela intervenção mútua, sendo que as intervenções públicas do Estado foram no
setor de comunicações e rodovias, aparatos básicos para a atuação do mercado gerador
de lucros e dividendos.
No caso acreano, a reforma agrária, Nascimento (1996) afirma que ela se deu ao
contrário. Na década de 1980 havia maior quantidade de propriedades latifundiárias de
grande porte que nas décadas proximamente anteriores – o que leva a pensar a estruturação
do governo para a expansão do capital. Não foi diferente no restante da Amazônia, o que
houve foi uma subdivisão dos minifúndios em relação às décadas anteriores.
A questão ambiental estava internacionalizada com fomentos para uma postura de
desenvolvimento – ainda não sustentável – onde se buscava construir cenários para a
formação da base necessária para a atuação dos grupos ligados ao “progresso humano”
em detrimento da “barbárie” na região. Contudo, esse desenvolvimento não chegava às
classes trabalhadoras, como forma de melhorias sociais, e ainda, “quando ficou óbvio,
por volta de 1970, que a corrida pelo desenvolvimento realmente intensificava a pobreza,
inventou-se a noção de ‘desenvolvimento eqüitativo’ para reconciliar o irreconciliável: a
criação da pobreza com a abolição da pobreza” (Sachs, 2000, p. 121).

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
As transições ocorridas na Amazônia, principalmente a partir dos anos 1960, foram
“pelo alto”, em que o governo agia procurando mecanismos explícitos de incentivos
empresariais, para atrair capital e empreendedores de diversos setores econômicos,
enquanto as gentes que migraram em direção a esse local, atraídas pela política de
colonização, tiveram poucos recursos e o apoio do Estado foi reduzido. A tentativa
de desenvolvimento econômico deixa claro que há uma continuidade na formulação
da política, sendo priorizada a dinâmica econômica. Altvater apud Heller (1999, p.138)
afirma que “como ocorre com o trabalho na indústria, a natureza também passa a ser
‘realmente subordinada’ ao capital, isto é, subjugada à lógica da acumulação, de uma
forma mais eficiente do que nunca na história da humanidade”. Há uma fluência do
monetarismo que não respeita fronteiras, antes a seu interesse constrói nacionalidades e
as destrói, desconsiderando as territorialidades postas.
Amazônia está inserida na lógica de dominação capitalista. Esta lógica rompe
Cadernos de Estudos Culturais

fronteiras, fomentada pelo crédito de incentivos fiscais, que em meados do século XX


moldou o processo de desenvolvimento regional (Silva: 1989); como conseqüência
houve os conflitos pela posse da terra, contradições urbanas e rurais e continuação
do estabelecimento de desigualdades na apropriação do espaço econômico, político
e sócio-ambiental da região. Assim, pode-se dizer que o desenvolvimento posto na
Amazônia, fruto do predomínio dos países industrializados, não é socialmente justo, nem
176 ecologicamente sustentável.
A OCUPAÇÃO AMAZÔNICA e a expansão da fronteira riobranquense

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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 163 – 178, jul./dez. 2012.
GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES:
uma história de doces e amargas
lembranças – Resenha do livro
Retratos antigos (esboços a serem
ampliados) de Elisa Lispector

Cadernos de Estudos Culturais


Luiza de Oliveira1
Willian Rolão Borges da Silva2

O livro póstumo de Elisa Lispector, organizado por Nádia Battella Gotlib e 179

Luiza de Oliveira e Willian Rolão Borges da Silva


lançado pela Editora da UFMG, aguardou vinte e dois anos após a morte da autora
para ser conhecido pelo público. Escrito, inicialmente, em 28 laudas datilografadas, os
dez capítulos do livro descortinam não só a história da família Lispector como a de
todos aqueles judeus que tiveram que deixar seu lugar de origem e tornaram “exilados”
em outras partes do mundo. Da Ucrânia ao Brasil, a narradora vai apresentando seus
antepassados, a história e os costumes da tradição e da aflição judaica.
No texto de apresentação, “Memória encenada: retratos, recordações,
reconfigurações”, a organizadora do livro comenta que a história que foi intitulada
Retratos antigos poderia também ter outros títulos, tais como “retratos falados”, “história
de família” ou “um homem que se perdeu”, todos retirados de passagens do livro. Como
descreve Gotlib, na capa do texto datilografado por Elisa Lispector, uma frase manuscrita
com “tom de aconselhamento” diz “Atenção, Márcia”, num pedido para que a sobrinha

1
Graduada em Filosofia Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em
Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPG-MEL) Campus Campo Grande.
Defendeu dissertação intitulada Clarice e o silêncio: a linguagem em A paixão segundo G.H., sob a orientação
do Prof. Edgar Cézar Nolasco. Membro do Núcleo de Estudos Culturais Comparados- NECC/UFMS.
2
Acadêmico do 4° ano do curso de Letras da Universidade de Mato Grosso do Sul, bolsista em Iniciação
Científica PIBIC/CNPq e membro do Núcleo de Estudos Culturais e Comparados (NECC – UFMS),
desenvolve o plano de trabalho: “Máscaras nas crônicas femininas de Clarice Lispector” sob a orientação do
Prof. Edgar Cézar Nolasco.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
atenta-se ao que está por vir. Esta frase revela como nasceu a ideia de escrever o texto:
mexer nos “retratos antigos” e manter viva a memória de uma família. Para a organizadora
“trata-se de uma apresentação dos antepassados da família Lispector por uma de suas
descendentes: Elisa”3.
Segundo as informações de Nádia Battella Gotlib, há indícios de que o texto teria
sido escrito a partir da década de 70, pois sua dedicatória é destinada a seus descendentes,
suas sobrinhas, filhos de Clarice Lispector e Tânia Kaufmann, Pedro, Paulo e Márcia.
E aos descendentes de “segunda geração”, Patrícia, Marco e Nicole (filhos de Márcia
e netos de sua irmã Tânia), nascidos durante a década de 60. Ao longo da narrativa é
confirmado o período de confecção do texto, pois, conforme conta Gotlib, a mesma
Nicole que aparece na dedicatória reaparece no livro como a “menininha” curiosa que faz
perguntas à sua tia-avó instigando-a a escrever. E como Nicole nasceu em meados dos
anos de 1960, o texto só pode ter sido escrito a partir do início de 1970.
Cadernos de Estudos Culturais

A história que aí se conta é a história de “ver o álbum de família”. Elisa Lispector


é autora, narradora e é também personagem de Retratos antigos. A história é fruto das
lembranças que a autora tem de seus antepassados e o álbum de retratos de sua família,
nessa perspectiva, funcionou como um “ativador” de lembranças. Como se ao virar cada
página do álbum de fotografias e ao comentá-las para sua sobrinha, a história de sua
família fosse descortinada através da memória. Os sobrinhos de Elisa e seus descendentes
180 possuem agora outro meio de conhecer a história de seus antepassados. Antes possuíam
GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES: uma história de doces e amargas lembranças

apenas as fotografias, após a publicação da narrativa eles podem revisitar sua família e
entrar em contato minimamente que seja com seus costumes e com a personalidade de
seus ancestrais.
A publicação encontra-se dividida em quatro partes. O livro foi impresso nos moldes
de um álbum antigo já para dar uma impressão para o que está por vir: a reprodução
das fotos do álbum de família dos Lispector. As fotos selecionadas para essa primeira
parte da publicação são as mesmas que figuram no antigo álbum de fotografias de Elisa
Lispector. Fotos tiradas na Ucrânia, que ainda pertencia à Rússia, e também no Brasil, nas
primeiras décadas do século XX.
Em seguida, temos o texto de Nádia Battella Gotlib, que prepara o espírito do leitor
para mergulhar nas lembranças da narradora. Na terceira parte da publicação está o texto
de Elisa Lispector. O texto é breve, e, como destaca a organizadora, tem caráter de texto
não acabado, pois a autora já na primeira lauda de seus datiloscritos escreve abaixo do
título a seguinte expressão: “esboços a serem ampliados”. A última parte que compõe
o livro é uma espécie de legenda das fotos reproduzidas em Retratos antigos, nome de
familiares, graus de parentescos, dedicatórias e recados, datas e cidades ajudam o leitor a
se situar nessa história que é de certa forma, coletiva.

3
GOTLIB. Memória encenada: retratos, recordações, reconfigurações, p.57.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
De acordo com Gotlib, o texto teria que esperar muito tempo para ser publicado, pois,
apesar de Elisa ser a primogênita de Pedro e Marieta, morreu 12 anos depois sua irmã caçula
Clarice Lispector, e, por não ter descendentes diretos, seu espólio passou para as mãos da
irmã Tânia Kaufmann. Apenas nos seus últimos anos de vida divulgou entre pesquisadores
alguns dos documentos nele reunidos, sem, contudo, abrir totalmente o “baú”.4 Quando
Tânia faleceu, o espólio de Elisa foi entregue à sua filha Márcia Algranti e à sua neta Nicole.
Hoje parte dele encontra-se depositado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
A dificuldade que se impõe ao resenharmos o livro de Elisa Lispector é como pensar a
relação entre ficção, memória e autobiografia, pois o que lemos em Retratos antigos nada mais
é que a memória ficcionalizada da escritora. A essa altura, é impossível não nos lembrar
dos postulados da crítica biográfica e do conceito de memória do filósofo Jacques Derrida.
Eneida Maria de Souza, em “Notas sobre a crítica biográfica”, afirma que o autor
é aquele que ultrapassa os limites do texto e alcança o território biográfico, histórico e

Cadernos de Estudos Culturais


cultural.5 De acordo com a estudiosa, “os fatos da experiência ao serem interpretados como
metáforas e como componentes importantes para a construção de biografias, se integram
ao texto ficcional sob a forma de uma representação do vivido”.6 Para Souza, os princípios
básicos da crítica biográfica resultam na produção de um saber narrativo, junção da teoria
com a ficção. Esse saber se concentra “na permanente construção do objeto de análise e
nos pequenos relatos que se compõe a narrativa literária e cultural”.7
De acordo com Eneida Maria de Souza, a crítica biográfica entende que a ficção
181

Luiza de Oliveira e Willian Rolão Borges da Silva


está pautada no social, em elementos da vivência do escritor. Por conseguinte, essa crítica
permite expandir as formas de interpretar a literatura porque ao analisar a relação entre a
obra e o autor deixa de concentrar-se apenas na reprodução ficcional. Para Souza:
A teoria desconstrutivista de Jacques Derrida e o conceito de arqueologia de Michael
Foucault constituem a “condição de conhecimento” do texto documental, biográfico e
ficcional, por preconizarem o deslizamento dos discursos entre si e o lugar ocupado pela
crítica biográfica – entre a teoria e a ficção, entre o documento e a literatura.8

Como lembrar-se de pães, doces e festas em meio a tanta crueldade? Como contar
com doçura a saga de uma família judia em migração? É que a memória nem sempre é um
retorno fidedigno ao passado, ela é filtrada por afetos, emoções, e no caso da escritora Elisa
Lispector, a memória é filtrada pela maturidade. Estudiosa derridiana, Maria José Coracini
tem passagem esclarecedora sobre o conceito de memória em Derrida que nos ajuda a
compreender o livro em questão:

4
GOTLIB. Memória encenada: retratos, recordações, reconfigurações, p.59.
5
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p.116.
6
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 119.
7
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 114.
8
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 119.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
É importante entender que para Derrida, nem a memória individual é inocente, neutra,
uma retomada da origem intacta, pura, do acontecimento em sua objetividade, ainda que
esse acontecimento tenha sido vivido, presenciado, testemunhado [...]. A memória será
sempre interpretação, invenção, ficção, que se constitui a posteriori do acontecimento,
em um momento que outros já se entrecruzam e fizeram história. Por essa razão sempre
será incompleta, faltosa, de certa maneira sempre verdadeira e, ao mesmo tempo,
mentirosa.9

O primeiro romance autobiográfico publicado de Elisa Lispector, No exílio, foi


lançado no ano de 1948. Apesar da escritora não manter os nomes próprios de seus
familiares idênticos na ficção, segundo Nádia Battella Gotlib:
O cotejo entre os dados aí narrados e registros documentais de pessoas da família
permite constatar que a história que aí se conta é da família Lispector. [...] No exílio,
conta com detalhes o que Clarice nunca nos contou – a história dos antepassados e a
viagem da família ao Brasil.10
Cadernos de Estudos Culturais

Elisa é mais amena ao comentar os pogrons em Retratos Antigos. Já em seu


romance autobiográfico No exílio, ela deixa transparecer toda a violência causada pelos
perseguidores dos judeus. Destacamos aqui um trecho deste livro em que Sarah conta a
Marim um pogrom que ocorrera na vizinhança:
foi uma porção deles (...) Foram muitos, muitos... E estavam loucos selvagens. Não
houve rogos nem prantos que os abrandasse. (...) Penduraram-na na bandeira da porta,
182 de mãos e pés atados, e obrigaram-na a presenciar tudo, até o fim. Daí para cá está assim.
GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES: uma história de doces e amargas lembranças

Não vê nada, não ouve, não entende coisa alguma. Não fala, nem sequer chora.11

Nesta ocasião, Marim ainda pergunta o que era aquilo, e lhe informam que aquilo
era chamado de pogrom. Marim na verdade é Marieta, mãe de Elisa, que alterou os
nomes dos personagens do livro, para diferenciá-los de seus familiares. Depois de algum
tempo Marieta é quem ficará adoentada, não se sabe exatamente o que aconteceu a ela,
mas sabe-se que adoeceu devido a um trauma que sofreu durante um pogrom.
Outra relação que podemos fazer entre No exílio e Retratos Antigos. Encontra-se
na questão da alimentação. Enquanto no segundo Elisa se lembra dos dias das grandes
festividades e das comidas servidas e de seus rituais de alimentação, no primeiro a autora
descreve de uma forma mais factual, sem muita idealização desse momento de refeição
da família. Para demonstrarmos isso, recorremos a um trecho de uma fala de Pinkhas
“Não pude arranjar nada que servisse de korbanot nem de kharosset. Só consegui raiz
amarga para o maror. Aves, vinho, nozes... penso que ninguém mais se lembra o que isso
vem a ser.”12 A partir disso, observamos as distinções entre as duas produções de Elisa:

9
CORACINI. A memória em Derrida: uma questão de arquivo e de sobre vida, p. 130.
10
GOTLIB. Memória encenada: retratos, recordações, reconfigurações, p.65.
11
LISPECTOR, No exílio, p. 38.
12
LISPECTOR, No exílio, p.69.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
No exílio a autora está focada na história da família e a trajetória dela até o Brasil. Já em
Retratos Antigos, o foco recaia nas lembranças boas e felizes passados à volta da mesa.
Ucraniana naturalizada brasileira, Clarice Lispector pouco ou quase nada falou sobre
o fato de ser judia durante sua vida. Embora muitos estudos tenham sido feitos sobre
a tradição judaica e a escritora. Em entrevista, Clarice Lispector declarou: “Eu, enfim,
sou brasileira, pronto e ponto”. Em algumas crônicas, presentes no livro A descoberta
do mundo, Clarice Lispector, ao contrário da irmã Elisa, não pretendendo publicar uma
autobiografia, fala das recordações de infância.
No começo da crônica que citaremos a seguir, Clarice Lispector escreveu uma nota
que reproduziremos aqui porque traduz “em parte” a dificuldade da escritora de falar de
sua vida pessoal, e, por conseguinte, de sua herança familiar.
Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada:
“Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal.

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O que é que eu faço? “Ele disse: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal. Mas
eu não quero contar minha vida para ninguém: Minha vida é rica em experiências e
emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia. Mas aí vão minhas
recordações de viagens ao mar.13

Curioso é que não só Elisa Lispector recorreu à obra plástica de Lazar Segall em
Retratos antigos, Clarice Lispector na crônica Viajando por mar também o fez. Vejamos a
passagem da crônica: 183

Luiza de Oliveira e Willian Rolão Borges da Silva


A primeira foi com menos de dois meses de idade, da Alemanha (Hamburgo) ao Recife:
não sei que meio de transporte meus pais usaram para chegar à Ucrânia, onde nasci,
para Hamburgo, onde meu pai procurou emprego mas, felizmente para nós todos,
não achou. Nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devíamos todos ter a cara dos
imigrantes de Lazar Segall.14

Em outra crônica, Viagem de trem, Clarice Lispector demonstra pouco saber sobre
sua infância na Ucrânia: “devo ter viajado de trem da Ucrânia para a Romênia e desta para
Hamburgo. Nada sei, recém nascida que eu era”.15
Já Elisa Lispector, em cada um dos pequenos dez capítulos do livro desvela/revela
um familiar, que é também personagem da história. No capítulo de abertura, o velho
álbum de família suscita a questão: “que restou dos personagens desses retratos”? “O que
será deles, quando os da minha própria geração não mais existiram, e não houver mais
ninguém para dar testemunho de suas vidas”.16 É nesse clima que a narradora começa o
seu relato, ora instigada pelas curiosas perguntas de sua sobrinha-neta sobre o tal “vovô
estranho” que aparece em uma das fotografias. E assim nos apresenta a menininha que

13
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 349.
14
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 349.
15
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 350.
16
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p. 83.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
certo dia assustou-se ao saber que aquelas pessoas sobre as quais falavam já pertenciam
ao mundo dos mortos.
Como a criança não parou de perguntar e pedir para ver “os retratos antigos”, a
narradora conta-nos que começou a tomar nota de cada nova lembrança, e, assim, muitas
outras surgiam na memória. Mas como remontar sozinha a história de uma família,
questionou? Ainda mais “para quem pertence a um povo que raramente chega a enterrar
no mesmo solo os seus mortos de duas ou três gerações, em consequência dos surtos de
perseguições e das migrações que fatalmente se impõem”.17 Com essa triste motivação, a
personagem recorre à ajuda da única sobrevivente da geração antecessora, uma tia, irmã
de sua mãe, para saber mais sobre seu passado.
A tia que aparece na trama refere-se, na verdade, a uma tia de Elisa Lispector que
veio da Ucrânia para Maceió, e depois para o Rio de Janeiro. Tia Anita Asrilhant, falecida
em 1979. Conforme o depoimento do neto, Boris Asrilhant Neto, a Nádia Battella Gotlib
Cadernos de Estudos Culturais

em 23-04-2011, sempre que Elisa visitava sua avó, que era geniosa, saíam brigadas. Mas
Elisa sempre voltava e o ciclo se repetia. Em passagem do livro, após um suspiro, a tia
recomenda: “não se fale mais do passado”.
Chagall ou Segall? Eis a questão? Com qual podemos estabelecer um grau de
parentesco com os personagens dos Retratos Antigos? Judeus exilados que cruzaram o mar
em porões de navios, vítimas de pogrom? Vejamos um trecho:
184
Em Chagall, figuras poéticas, contos folclóricos. Tudo se passa numa atmosfera onírica.
GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES: uma história de doces e amargas lembranças

São as suas lembranças de antes de partir pata o mundo e dar razão à sua alma de artista.
Chagall não pintou céus escuros só iluminados pelos clarões dos incêndios, nem casa
de janelas de vidros quebrados olhando para fora como olhos vazados. Não pintou os
horrores dos pogroms. Esta herança coube a Segall, POGROM, ÊXODO, NAVIO
DE EMIGRANTES, assim são, na maioria, as obras de Segall. Pois, ao contemplar as
figuras dos “Retratos antigos” e relembrar os tempos conturbados em que essas pessoas
viveram, as vocações irrealizadas, os destinos descumpridos, é de Segall que mais me
aproximo.18

Nos capítulos que seguem, do segundo ao quinto, a narradora desses retratos


apresenta-nos os avôs paternos e as avós maternas. O avô Shmuel, primeira pessoa de
quem se recorda, nem figura no álbum de família. Tido como santo e sábio nas cidades
da redondeza e amante dos santos mandamentos, ele nunca permitiu ser retratado uma
vez que sua religião proíbe a reprodução da figura humana. Barba comprida, cafetã
longa e livros sagrados, esse é o retrato do avô paterno. A avó Eva, esposa de Shmuel,
também não figura no velho álbum. Mulher dura que era, é lembrada por associação com
o marido. Ao lembrar-se da avó materna, lembra também da condição da mulher judia:
crescer, casar, ter filhos e também nutri-los. Eva, conformadamente, aceitou seu destino.

17
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p. 83.
18
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.85.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
Na sequência conhecemos as avós maternas, são delas os primeiros retratos
contemplados na narrativa. De um lado do álbum Itschac e, na outra página, Tcharma.
Entre as doces lembranças das férias de verão todos os anos passados na casa dos avôs, a
cruel morte do avô. Itschac foi morto em um dos pogroms que se seguiram à Revolução
Vermelha: “mesmo sem ter sido um devoto, pagou o preço amargo e inalienável destino
de ser judeu”.19 Também não foi longe a vida da avó Tcharma. Afável e caridosa, pois
boas ações são deveres da tradição judaica, morreu pela manhã bem cedo “como um
pássaro que levanta voo”.20 Destacamos a diferença na narração dos dois acontecimentos,
a morte do avô é narrada de modo bem direto, já a morte da avó é narrada com extrema
delicadeza, como comprova o trecho transcrito acima.
Nos capítulos finais desses Retratos antigos, a “figura” da mãe Márian e do pai Pinkas
compõe o livro e ilustram a vida e os costumes judaicos. Márian era bela e elegante. No
retrato, “cabelos longos e abundantes”, pois as mulheres de sua geração já não usavam

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mais perucas depois do casamento, como mandava a tradição. Do retrato da mãe surge a
lembrança das lidas diárias: a mesa do chá, bolos de mel, biscoitos de chocolate e também
os preparativos típicos para o sábado – dia santo para os judeus - peixe recheado, caldo de
galinha e pudim. E assim eram todos os sábados, semana após semana. Tornando a olhar
o retrato da mãe, a narradora recorda a tragédia: “foi o trauma de um daqueles fatídicos
pogroms que invalidou minha mãe”.21 Sobre esses ataques sofridos pelos judeus, Elisa
comenta 185

Luiza de Oliveira e Willian Rolão Borges da Silva


Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube
responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogrons, não pudessem dizer.
– Amargas realidades para as quais não havia justificativa.22

Impecavelmente trajado embora com o rosto magro e semblante triste, essa é a


descrição do retrato do pai Pinkas. Comerciante e amante da matemática, contudo deixou
de frequentar a universidade por não fazer parte da porcentagem dos judeus que possuíam
esse direito. “Uma feição de seu caráter era não ser pródigo em elogios”23, sua admiração
a alguém era designada pela palavra mensh (pessoa, gente). Emigrar nunca foi o desejo do
pai, mas esse foi o caminho que a Revolução de 17 apontou: “no retrato da família para
o passaporte [...] paletó e colete escuros e muito surrados e muito grandes para seu corpo
emagrecido”.24 É com a figura do pai que a narradora encerra seu relato que é também
o retrato de tantas outras famílias. O que aqui é contado, como o testemunho da família
Lispector, faz parte de nossa História: da terrível perseguição sofrida pelos judeus. Aquilo
que não é dito por Elisa pode ser lido nos retratos dos seus antepassados.

19
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.99.
20
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.101.
21
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.105.
22
LISPECTOR, Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p. 90.
23
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.113.
24
LISPECTOR. Retratos antigos (esboços a serem ampliados), p.119.

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
Referências Bibliográficas
CORACINI, Maria José R F. Memória em Derrida: uma questão de arquivo e de sobre
vida. In: CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Crítica Biográfica, v. 1, n. 4.
Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2010, p. 125-136.
GOTLIB, Nádia Battella. Memória encenada: retratos, recordações, reconfigurações. In:
LISPECTOR, Elisa. Retratos Antigos (esboços a serem ampliados). Org. Nádia Battella Gotlib.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 57-67.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Elisa. Retratos Antigos (esboços a serem ampliados). Org. Nádia Battella Gotlib.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
________. No Exílio. 3ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: SOUZA, Eneida Maria
de. Crítica Cult. Belo horizonte: Editora UFMG, 2002. p 111- 120.
Cadernos de Estudos Culturais

186
GELÉIAS E PERSEGUIÇÕES: uma história de doces e amargas lembranças

Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 4, n. 8, p. 179 – 186, jul./dez. 2012.
SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO

187
Editor, Editores Assistentes
& Comissão Organizadora

Informamos que o n. 9 dos CADERNOS DE ESTUDOS


CULTURAIS, a sair no primeiro semestre de 2013, e
cuja temática é Pós-colonialidade, já se encontra em fase de
preparação. Para tanto, intelectuais nacionais e internacionais
foram convidados para contribuir. Pós-colonialidade poderão
arrolar uma discussão que se dará em torno de uma gama
variada de outros conceitos, como fronteiras epistemológicas,
centro x periferia, eixo x fora do eixo, Brasil x Estados Unidos,
Brasil x América Latina, periferia x periferia etc. Não por
acaso tem-se percebido que quase todas as discussões críticas
contemporâneas têm passado, direto ou indiretamente, por
tais temáticas. Brasil, Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul,
fronteira e periferia são lugares para os quais tal discussão
deve se voltar cada vez mais.
NORMAS EDITORIAIS

189

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submetidos ao Conselho Editorial e devem, preferencialmente, atender às seguintes normas
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◙ o texto deve estar na fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento:
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◙ citações, com menos de 3 linhas, devem estar na fonte Times New Roman,
tamanho 12, inseridas ao texto;
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alinhamento: justificada, recuo esquerdo:1,5 cm, espaçamento antes e depois 6 pt;

190 ◙ se houver subtítulo, dar 2 (dois) espaços simples entre ele e o texto anterior e
deve estar na fonte Calibri, tamanho 12, alinhamento: justificada, espaçamentos,
antes e depois, de 6 pt;

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corpo do texto) devem ser dispostas da seguinte forma:

◙ Devem ser dados 2 (dois) espaços simples entre ela e o texto anterior e devem
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negrito. Alinhamento: justificado sem recuos e com espaçamento depois de 6 pt.
◙ Todas em fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento: justificada, entre
linhas simples e espaçamento depois de 6 pt;
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(em itálico), local da publicação, editora, data, acrescentando-se os números das
páginas. Ex: LAJOLO, Marisa. Circulação e consumo do livro infantil brasileiro:
um percurso marcado. In: KHÉDE, S.S. (Org). Literatura infanto-juvenil: um gênero
polemico. 2ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986, p. 43-56;
◙ artigos em periódicos: nome do autor, título do artigo (sem destaque), nome
do periódico (em itálico), volume e número do periódico, números de páginas,
data de publicação. Ex: LOBO, Luiza. Tradição e Ruptura na crítica no Brasil:
da sobrevivência da arte e do Literário. Revista Literatura e Cultura. Rio de Janeiro:
UFRJ, ano 2, v.2. p. 1-10, 2002;
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EXEMPLO DE FORMATAÇÃO DE TEXTOS PARA SUBMISSÃO:

TÍTULO (EM CAIXA ALTA): subtítulo (em caixa baixa)


Nome do autor (sempre com título de doutor)1
Nome do 2º autor (se for o caso, apenas com titulação acima de mestrando)2
Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe,
Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe,
Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe,
Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe,
Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe, Epígrafe,
Epígrafe. (se for o caso)
Autor da epígrafe. Título da obra, p. xxx.

1
Fulano de tal é professor da instituição tal.
2
Fulano de tal é professor da instituição tal.
Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto.
Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto:
Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três
linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de
três linhas, Citação com mais de três linhas, Citação com mais de três linhas.3 (a referência pode
ser em pé de página, conforme exemplo, ou dentro do texto (SOBRENOME DO AUTOR, ano
da publicação, p, xx).

Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
192 do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto. “Citação com menos de três linhas, Citação com menos
de três linhas, Citação com menos de três linhas, Citação com menos de três linhas, Citação com
menos de três linhas”.4 (a referência pode ser em pé de página, conforme exemplo, ou dentro do
texto (SOBRENOME DO AUTOR, ano da publicação, p, xx).

Título do Subtítulo: subtítulo


Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
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do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo

3
Apud SOBRENOME DO AUTOR. Nome da obra (se livro completo), p. xx. (Para caso se citação retirada de
um outro autor citado por outro autor)
4
SOBRENOME DO AUTOR. Nome da obra, p. xxx. (Para o caso de citação direta de um autor)
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto.
Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo do texto, Corpo
do texto, Corpo do texto, Corpo do texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – ou – BIBLIOGRAFIA – ou REFERÊNCIAS


SE LIVRO COMPLETO:
SOBRENOME DO AUTOR(ES), Nome do autor(es). Título da obra: subtítulo da obra se for o
caso. Cidade da Editora: Nome da Editora, ano de publicação da obra.
SE ARTIGO DE LIVRO OU PERÍDICO:
SOBRENOME DO AUTOR DO TEXTO, Nome do autor do texto. “Título e subtítulo, se for
o caso, do texto entre aspas”. In: SOBRENOME DO AUTOR DA OBRA COMPLETA, Nome
do autor da obra completa. (org.) (se for o caso) Titulo da obra completa: subtítulo da obra completa
(se for o caso). Cidade da Editora: Nome da Editora, ano de publicação da obra, p. (paginas do
193
texto citado) xx-xx
SE REFERÊNCIA RETIRADA DA INTERNET:
SOBRENOME DO AUTOR DO TEXTO, Nome do autor do texto. “Título e subtítulo, se for o
caso, do texto entre aspas”. In: Nome do site/revista/livro onde se encontra a referência. Disponível
em: (endereço eletrônico da publicação) – acesso em: dia, mês e ano do acesso à publicação.

PS: Outros casos de Referências Bibliográficas aqui omissos poderão ser aceitas as normas
padrões da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) ou sob consulta com os
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