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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – ESTUDOS LITERÁRIOS

ALCIR DE VASCONCELOS ALVAREZ RODRIGUES

CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA E LINHA DO


PARQUE: UMA LEITURA DOS EXTREMOS NA OBRA DE
DALCÍDIO JURANDIR

BELÉM
2022
2

ALCIR DE VASCONCELOS ALVAREZ RODRIGUES

CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA E LINHA DO PARQUE: UMA LEITURA


DOS EXTREMOS NA OBRA DE DALCÍDIO JURANDIR

Tese apresentada ao curso de Doutorado em Letras – Estudos Literários, do


Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) do Instituto de Letras e
Comunicação (ILC) da Universidade Federal do Pará (UFPA), na linha de
pesquisa Literatura, Memórias e Identidades, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Letras − Estudos Literários.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marlí Tereza Furtado.

BELÉM
2022
3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


de acordo com ISBD Sistema de Bibliotecas da
Universidade Federal do Pará
Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados
fornecidos pelo(a) autor(a)

____________________________________________________________

R696c Rodrigues, Alcir de Vasconcelos Alvarez


Chove nos campos de Cachoeira e Linha do Parque: uma
leitura dos Extremos na obra de Dalcídio Jurandir / Alcir de
Vasconcelos Alvarez Rodrigues. — 2022.
199 f. : il. color.
Orientador(a): Profª. Dra. Marlí Tereza Furtado
Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto
de Letras e Comunicação, Programa de Pós-Graduação em
Letras, Belém, 2022.

1. Chove nos campos de Cachoeira. 2. Linha do


Parque. 3. Ciclo do Extremo-Norte. 4. O romance do
Extremo-Sul. 5. Dictomia na obra dalcidiana. I. Título.

CDD 869.9098115
_____________________________________________________________
4

ALCIR DE VASCONCELOS ALVAREZ RODRIGUES

CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA E LINHA DO PARQUE: UMA LEITURA


DOS EXTREMOS NA OBRA DE DALCÍDIO JURANDIR

Tese apresentada ao curso de Doutorado em Letras – Estudos Literários, do Programa de Pós-


Graduação (PPGL) em Letras do Instituto de Letras e Comunicação (ILC) da Universidade Federal do
Pará (UFPA), na linha de pesquisa Literatura, Memórias e Identidades, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Letras − Estudos Literários.

Tese de Doutorado defendida e aprovada em: 20 de dezembro de 2022.


Banca Examinadora:
Prof.ª Dr.ª Marlí Tereza Furtado – UFPA
(Presidente da Banca Examinadora/Orientadora)

Prof. Dr. Luís Heleno Montoril Del Castilo ‒ UFPA


(1º Membro Interno da Banca Examinadora)

Profª Drª Maria de Fátima do Nascimento ‒ UFPA


(2º Membro Interno da Banca Examinadora)

Prof. Dr. Ozíris Borges Filho ‒ UFTM/UFCAT


(3º Membro Externo da Banca Examinadora)

Prof. Dr. Hélio Rodrigues da Rocha ‒ UNIR


(4º Membro Externo da Banca Examinadora)

Prof. Dr. Carlos Henrique Lopes de Almeida ‒ UFPA


(5º Membro Interno da Banca Examinadora ‒ Suplente)

Profª Drª Natali Fabiana da Costa ‒ UNIFAP


(6º Membro Externo da Banca Examinadora ‒ Suplente)

BELÉM
2022
5

DEDICATÓRIA

Para Helen, com amor.


Para toda a família, dela e minha.
Para todos os/as amigos/as.
6

AGRADECIMENTOS

A meus falecidos pais, Alfredo e Joana.


A minha irmã Nazaré, meus irmãos Rubens e Francisco (in memoriam ambos),
Arquise, Alfredo, André, Antônio, Aldo e Almir e sobrinhos/as Caio, Marco Apolo, Ana Iara,
Gabriel e Ludmilla, e meu cunhado Rodivaldo, o Tinga.
A minha esposa Helen, nossos filhos André e Thiago, nossas netas Ísis e Alice, minha
sogra Benedita e meu falecido sogro João, minhas cunhadas Tânia, Sheyla e Danielle, além
de sobrinhos/as João Victor, Vitória, Karen e Kaio, Pablo, Kauã e Kauê e concunhados e ex-
concunhados André, Carlinhos, Deco e Paulo.
A minha orientadora, professora Marlí Tereza Furtado, do fundo do coração, minha
professora de disciplinas do Mestrado e do Doutorado (Literatura e Sociedade, Teorias
Críticas e Pesquisa Orientada), que foi também minha supervisora de Estágio de Docência e
Orientadora no Mestrado e no Doutorado, que não só me orientou, como também me
incentivou a não desistir da pesquisa e me apoiou nos momentos mais difíceis, em que eu,
minha esposa e neta (Ísis, principalmente ela) adoecemos e cheguei a pensar que não
conseguiria defender minha tese.
Ao Instituto de Letras e Comunicação (ILC) da Universidade Federal do Pará (UFPA,
onde cursei a graduação em Letras), ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL, onde
cursei o Mestrado e o Doutorado em Estudos Literários), à Universidade da Amazônia
(Unama, onde cursei a Especialização em Língua Portuguesa e Análise Literária).
Aos/às docentes do Mestrado e do Doutorado do PPGL da UFPA, com quem muito
aprendi e apreendi: Christophe Golder, Germana Araújo Sales, Joel Cardoso, Luís Heleno
Montoril Del Castilo, Marlí Tereza Furtado e Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões.
À atual gestão do PPGL, na pessoa da coordenadora Ivânia dos Santos Neves e da
vice-coordenadora Ana Paula Barros Brandão; e à gestão anterior, na pessoa da coordenadora
Maria de Fátima do Nascimento e da vice-coordenadora Angela Fabíola Alves Chagas.
Aos/às componentes da Banca Examinadora de Defesa do Doutorado, pelo rigor e
esmero nas observações feitas, que permitiram melhorias na elaboração final do texto desta
tese: Presidente Marlí Tereza Furtado; membros internos: Luís Heleno Montoril Del Castilo
e Maria de Fátima do Nascimento; membros externos: Ozíris Borges Filho e Hélio Rodrigues
da Rocha; membros suplentes: Carlos Henrique Lopes de Almeida (interno) e Natali Fabiana
da Costa (externo).
7

Às instituições em que trabalhei e àquelas em que ainda trabalho, da rede municipal


de ensino de Belém (SEMEC) e da rede estadual de ensino do Pará (SEDUC): Escolas
Municipais Remígio Fernandez (onde também estudei o Ensino Fundamental I), Lauro
Chaves, Maroja Neto e Donatila Santana Lopes, e à Escola Estadual Honorato Filgueiras
(onde também estudei o Ensino Fundamental II e Ensino Médio). Em especial, à Escola
Domingos Barros, primeira escola em que trabalhei, que foi desativada e teve seu prédio
demolido, infelizmente.
A todos/as os/as colegas de trabalho dessas instituições.
Àqueles/as que posso considerar como amigos/as.
A alunos/as e ex-alunos/as, vizinhos/as e conhecidos “de vista”.
Às agremiações ligadas à arte, esporte, cultura e lazer na ilha de Mosqueiro, que é
minha terra natal: Barraca Empata’s Bar, Bloco Carnavalesco Tá Feio!, Universidade de
Samba Piratas da Ilha e O Mastro!
8

“Fiel e teimoso, recolhi em dez volumes um depoimento agreste e íntimo de coisas e


gentes de Marajó e Belém do Pará, a Belém de Eneida e Bruno de Menezes.
A esses romances se une o outro, apanhado no Extremo Sul, tormentos e trabalhos de
um porto e de uma cidade, a que dei todo o meu fervor e a minha esperança” (JURANDIR,
Dalcídio. Passagem do discurso proferido ao receber o Prêmio Machado de Assis, concedido
pela Academia Brasileira de Letras. In: NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S.R., 2006, p.
114).
9

RESUMO

Dalcídio Jurandir (1909-1979) é um escritor que deveria ser mais publicado, mais lido e
estudado, por ser autor de importante e complexo ciclo romanesco, constituído por dez obras,
publicadas de 1941 a 1978, denominadas, no conjunto, de Ciclo do Extremo-Norte. Jurandir
publicou também um romance fora desse ciclo: Linha do Parque (1959), que difere
substancialmente dos outros dez. Essa diferença se faz notória porque Linha do Parque foi
escrito sob encomenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ambientado no Extremo-Sul
do Brasil, principalmente no porto e na periferia da cidade do Rio Grande (RS), romanceando
as lutas proletárias em prol de direitos trabalhistas, com a sequência narrativa iniciando em
1895 e findando em 1952; enquanto o Ciclo do Extremo-Norte é ambientado na Amazônia,
com a sequência narrativa iniciando nos anos finais da década de 1910 e percorrendo toda a
década de 1920, retratando personagens que Jurandir chamou de “aristocracia de pé no chão”,
no geral pobres e decaídos. Tratando essa diferença como dicotomia, percebe-se que, se o
Ciclo do Extremo-Norte ainda não recebeu a atenção merecida por parte dos Estudos
Literários, com Linha do Parque essa atenção tem sido ainda menor. Mas quase nada se
publicou sobre a dicotomia presente na obra de Jurandir. Por isso, propomo-nos discutir os
problemas existentes no que diz respeito a essa dicotomia que, vez por outra, possibilita o
entendimento, por alguns estudiosos (Benedito Nunes, por exemplo), de que na obra
dalcidiana existiriam dois autores e dois ciclos: o autor Dalcídio Jurandir que escreveu os
romances da saga nortista e o ‘outro Dalcídio’, autor do romance proletário − que teria se
tornado outro (por um processo heteronímico), para não perder sua identidade, não trair sua
consciência social e sua consciência da feitura do texto literário. Por ricochete, então, além do
Extremo-Norte, alguns pesquisadores (Olinda Assmar, por exemplo) passaram a considerar
que Linha do Parque seria uma espécie de exemplar solitário de um outro ciclo: o Ciclo do
Extremo-Sul. Com o intuito de analisar tal problemática, selecionamos, para estudo, dois
corpora: além de Linha do Parque, o livro Chove nos campos de Cachoeira (1941), não só
por ser este o romance inicial do ciclo, mas também por ser ele o texto-embrião (denominação
dada pelo próprio Jurandir), por conter de forma latente e manifesta todos os temas que iria
desenvolver nos demais. Contudo, concluímos que não se trata de buscar, na comparação e no
confronto, possibilitados a partir da leitura dos dois corpora, um Dalcídio Jurandir diferente,
um ‘outro Dalcídio’, mas sim ‘um outro narrador dalcidiano’ que, por suas estratégias
narrativas, difere consideravelmente do narrador dos dez romances do Extremo-Norte. Tal
leitura necessitará de um aporte teórico-crítico norteador, que vem de estudos dos seguintes
autores: Genette (2017), Todorov (1970), Lukács (1969), Moisés (2004), Reis; Lopes (1988),
Candido (1990), Borges Filho (2007), Moraes (1994), Nunes, B. (2004), Furtado (2002),
Nogueira /Assmar (1991/2003), Freire (2006), Maia (2017), entre outros.

Palavras-chave: Chove nos campos de Cachoeira. Linha do Parque. Ciclo do Extremo-Norte.


O romance do Extremo-Sul. Dicotomia na obra dalcidiana.
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ABSTRACT

Dalcídio Jurandir (1909-1979) is a writer that should be more published, more read and
researched, because he is author of important e complex novel cycle, composed for ten literary
works, published from 1941 to 1978, with the series receiving the name of Ciclo do Extremo-
Norte [Extreme North Cycle]. Jurandir also published a novel out of this cycle: Linha do
Parque (1959), which differs substantially of the others ten. This difference is notorious
because Linha do Parque was wrote on request of the Brasilian Communist Party and it is set
in the extreme south of Brazil, mainly in port and on periphery of the city of Rio Grande [Big
River], in the Brasilian state of Rio Grande do Sul [South Big River, in free translation]
fictionalizing the worker’s struggles in the defence of labour rights, with narrative sequence
starting in 1895 and ending in 1952; whereas the Ciclo do Extremo-Norte is set in Amazon
region, with narrative sequence starting at the end of the 1910’s and covering all the 1920’s,
portrying caracters that Jurandir called “aristocracia de pé no chão” [barefoot aristocracy], in
general poors and ruined peoples. Treating this difference as dichotomy, it can be notice that,
if the Ciclo do Extremo-Norte still not received the deserved attencion by the Literary Studies,
with Linha do Parque this attention has been even smaller. But almost nothing it was
publishing about the dichotomy presents in Jurandir’s work. That is why, we propose to
discuss the existing problems with respect to this dichotomy that, at times, enable the
understanding by some scholars (Benedito Nunes, for example) that in Dalcidio Jurandir’s
literary work would exist two authors and two cycles: the author Dalcidio Jurandir which
wrote the novels of the northern saga and the ‘other Dalcidio’, author of the proletarian novel
– which would have become other (through a heteronymic process), to not lose his identity,
to not betray his social conscience and his conscience of the making of the literary text. By
ricochet, then, beyond of the Extremo-Norte, some researchers (Olinda Assmar, for example)
started to consider that Linha do Parque would be a species of solitary exemplary of one other
cycle: o Ciclo do Extremo-Sul [Extreme South Cycle, in free translation]. With the purpose
of analysing this problematic, we select, for studies, two corpora: beyond of Linha do Parque,
the book Chove nos campos de Cachoeira (1941), not only by being this the initial novel of
the cycle, but also by being it the “texto- embrião” [embryo text] (denomination given by own
Jurandir), because it contains in latent or manifest form which he would develop in the others.
However, we conclude that it is not about seeking, in the comparison and in the confrontation,
enabled from the reading of the two corpora, a different Dalcidio Jurandir, ‘another Dalcidio’,
but yes ‘another dalcidiano narrator’ [Dalcidio’s narrator] that for their narrative strategies,
differs considerably of the narrator of the ten novels of the Extremo-Norte. That reading will
need a guiding theoretical and critical contribution, which comes from studies of the following
authors: Genette (2017), Todorov (1970), Lukács (1969), Moisés (2004), Reis; Lopes (1988),
Candido (1990), Borges Filho (2007), Moraes (1994), Nunes, B. (2004), Furtado (2002),
Nogueira/Assmar (1991/2003), Freire (2006), Maia (2017), among others.

Keywords: Chove nos campos de Cachoeira. Linha do Parque. Ciclo do Extremo-Norte. The
novel of the Extreme South. Dichotomy in Jurandir’s work.
11

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12

2 A CONCEPÇÃO DALCIDIANA SOBRE A ARTE DE ESCREVER

ROMANCES........................................................................................................................... 19

3 APROXIMANDO-SE DOS EXTREMOS: CHOVE NOS CAMPOS DE

CACHOEIRA E LINHA DO PARQUE: GÊNESE DAS OBRAS, FORTUNA

CRÍTICA E ENQUADRAMENTO ESTÉTICO-LITERÁRIO........................................ 61

4 CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA E LINHA DO PARQUE: UMA

LEITURA DOS EXTREMOS NA OBRA DE DALCÍDIO JURANDIR.......................... 114

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 171

6 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 176

7 ANEXOS............................................................................................................................... 190
12

1 INTRODUÇÃO

Todo o meu romance [...] é feito, na maior parte, da gente mais


comum, tão ninguém, que é a minha criaturada grande de
Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas. (JURANDIR, Dalcídio. In:
MORAES, Eneida de. Eneida entrevista Dalcídio, Asas da
palavra, Belém, n. 4, p. 32, jun. 1996)

Os romances Chove nos campos de Cachoeira (1941) e Linha do Parque (1959) são
romances de um mesmo autor, Dalcídio Jurandir (1909-1979), mas são considerados, pelos
pesquisadores dos Estudos Literários, como muito diferentes entre si, no âmbito do conjunto
da obra literária do autor.
Este estudo demonstrará que a máxima “nem tanto ao céu, nem tanto ao mar” pode ser
aplicável a esta situação, visto que, sendo obras (os dois romances) de um mesmo autor, não
podem em tudo ser dessemelhantes; não podendo, contudo, apresentar tantas similaridades,
em decorrência do contexto que envolve a escrita dos livros em questão. Em todo o caso,
interessa-nos aqui bem menos as similaridades, constituindo um dos pontos altos deste estudo
compreender a dicotomia (FURTADO, 2008), acima referida, existente na obra romanesca
dalcidiana.
Por isso, faz-se necessário uma imersão inicial, mesmo que panorâmica, no conjunto
da obra dalcidiana – composta por 11 romances −, para que se possa, após isso, ter uma visão
mais precisa acerca dos corpora que possibilitarão pôr em prática a proposta de escrita
analítico-interpretativa deste estudo, que leva em consideração a afirmativa de que Dalcídio
Jurandir “[...] fez-se outro autor escrevendo Linha do Parque [...]” (NUNES, B., 2004, p. 18).
No decorrer desta tese, demonstraremos que é mais pertinente se referir, em conformidade
com os conceitos da Teoria da Narrativa, não a um outro autor Dalcídio, mas a um outro
narrador dalcidiano.
Para melhor entendimento dessa afirmação, é imperioso levar em consideração o
seguinte: qualquer leitor que queira se dedicar ao estudo das obras de Jurandir, por motivos
ligados ao trabalho na Academia, nesse caso como professor de Literatura Brasileira em uma
faculdade de Letras, ou como o próprio estudante de Letras, seja na Graduação ou na Pós-
Graduação, irá sempre se deparar com o fato de que Jurandir, em sua produção ficcional,
optou por elaborar um longo e complexo ciclo romanesco, denominado de Ciclo do Extremo-
Norte. No entanto, ocorre que o leitor comum, aquele que se dedica à leitura da obra do autor
marajoara por motivos de fruição estética, ou mesmo apenas por inicial curiosidade, também
13

não escapará de ter de lidar com esse fato da escrita da série romanesca empreendida pelo
escritor marajoara.
Tal série é composta por dez romances, que são: Chove nos campos de Cachoeira
(1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão Pará (1960), Passagem
dos Inocentes (1963), Primeira manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976),
Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978). Em todos, a ambiência é a Amazônia paraense
(Marajó, Belém e Baixo Amazonas), nas décadas iniciais do século XX, em que o autor
abdicou da exploração ostensiva do tema da opulência da natureza, o exotismo ou o pitoresco,
também se afastando o romancista daquela linguagem, muito em voga naquele momento, em
estilo grandiloquente, lugares-comuns ao paradigma vigente1 na produção de narrativas
romanescas do qual fugiu Jurandir, fundando um novo paradigma, centrando sua atenção na
temática humana do social e existencial, em conformidade com um universo de precariedade
e contínua decadência − marcas da época posterior ao Ciclo da Borracha, que teve seu apogeu
de 1879 a 1912 −, tramando seu mundo romanesco em uma linguagem própria e criativa,
aproveitando-se da fala cotidiana e do imaginário social do povo amazônida, mas poetizando-
os à sua maneira.
Trabalhando com a lacuna que ficou após o fim desse ciclo, Jurandir escreveu a sua
extensa obra, inaugurada a partir de Chove nos campos de Cachoeira, livro que ele denominou
de texto-embrião (JURANDIR, 1997, p. 12), por nele estarem contidos de forma manifesta e
latente todos os temas que iria desenvolver nos demais. O livro trata da vida cotidiana do povo
da Vila (depois, Intendência) de Cachoeira, no arquipélago do Marajó, em fins da década de
1910 e anos iniciais da de 1920 (aproximadamente, de 1918 a 1922), com sua precariedade
de infraestrutura, sua pobreza, doenças e mortandade, mas também sua simplicidade e certas
alegrias singelas da vida interiorana. O narrador relata os afazeres dos personagens residentes
fixos e temporários – pescadores, vaqueiros, pequenos proprietários em geral, barqueiros,
pequenos comerciantes, alguns poucos funcionários públicos e intendentes, entre outras
ocupações −, acompanhando mais de perto as vivências dos coprotagonistas Alfredo e
Eutanázio, meios-irmãos, que moravam no chalé do major Alberto e de dona Amélia, os pais
de Alfredo e Mariinha. Já Eutanázio é filho de um casamento anterior de seu Alberto, cuja
primeira esposa faleceu, tendo Eutanázio mais três irmãs, que vivem em Muaná2. Na verdade,

1
Esse paradigma teria nascido a partir da publicação do livro À margem da História, em 1909, de Euclides da
Cunha (1866-1909), obra resultante da viagem que fez pela Amazônia, de dezembro de 1904 a novembro de
1905, como chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, para solver questões
litigiosas de demarcação de fronteiras entre Brasil, Peru e Bolívia.
2
Um dos 16 municípios em que se divide o arquipélago do Marajó.
14

os dramas pessoais de Alfredo e Eutanázio constituem o que de mais relevante há no enredo


de Chove nos campos de Cachoeira, constituindo todo o resto uma espécie de pano de fundo
para o desenrolar de seus percursos narrativos.
O mais novo dos dois, Alfredo, é um garoto sonhador que vive brincando e fantasiando
a partir de um objeto mágico: um caroço de tucumã3. Teria tal objeto uma função assemelhada,
por exemplo, à da lâmpada de Aladim, das Mil e uma noites, à das varinhas de condão dos
contos de fadas e à do pó de pirlimpimpim ou do faz-de-conta da série do Sítio do Pica-pau
Amarelo, de Monteiro Lobato (1882-1948), pois permite a um personagem dar vazão aos
anseios e fantasias. É o que ocorre com Alfredo, ao querer partir para Belém, a capital do Pará,
para continuar seus estudos, e para também escapar da realidade de precariedade de
infraestrutura que, por exemplo, causa grande mortalidade infantil em Cachoeira. Além do
mais, Alfredo tem dificuldades de lidar com sua condição de mestiço, de mulato, pois seu pai
é branco e sua mãe negra, o que lhe causa, a princípio, um sentimento de não aceitação e até
mesmo de negação de sua origem étnica. Contudo, no decorrer das páginas dos romances que
se seguem no Ciclo, o personagem vai aprendendo a lidar com a questão da negritude,
passando a ter orgulho da mãe e de sua cor, conforme as narrativas vão lhe imprimindo mais
maturidade e consciência social.
O outro meio-irmão, Eutanázio, já é um homem maduro. E, assim como o universo
circunscrito impõe a Alfredo certas dificuldades, também o faz em relação a Eutanázio. Este
já é homem em torno de seus 40 anos, mas ainda vivendo na dependência do pai, após retornar
de Belém, desempregado. Considera-se ele mesmo um hipocondríaco. Além do mais, as linhas
desenhadas pelo fracasso, pelo desprezo aos outros e a si mesmo conformam um retrato fiel
desse personagem, que ainda tem de carregar o peso de uma relação conturbada com o pai, o
peso de ser uma espécie de poeta inconstituído − cujo pai vive a criticar seus versos −, além
de nutrir um sentimento não correspondido e obsessivo por Irene, jovem que não titubeia em
lhe demonstrar o asco que por ele sente. Daí seu desejo, também, de autoaniquilamento, que
põe em prática ao se deixar contagiar por uma Doença Sexualmente Transmissível (DST),
contraída da infeliz jovem Felícia, moça pobre e prostituída. A angústia e a melancolia desse
personagem se arrastam quase que silenciosamente pelas páginas de Chove nos campos de
Cachoeira, romance cujo desfecho também leva consigo a vida de Eutanázio, que vai
morrendo tal qual a sugestão suscitada pelo nome com que foi batizado.

3
“Tucumã ‒ s. m. Astrocarym tucuma Mart.; fruto do tucumanzeiro; palmeira da região amazônica, com frutos
oleosos que servem para um tipo de vinho. Das fibras do tucumanzeiro podem-se fazer redes de pesca e, até
mesmo, redes de dormir. Seu nome popular é tucum.” (ASSIS, 1992, p. 192).
15

Além do romance Chove nos campos de Cachoeira, e dos outros nove que compõem
o Ciclo do Extremo-Norte, Jurandir escreveu também um outro romance, intitulado Linha do
Parque (1959), fora desse ciclo. Trata-se de longa narrativa ambientada, principalmente, no
porto e na periferia da cidade do Rio Grande (RS), no Extremo-Sul do Brasil, romanceando a
história de operários (marítimos, portuários, tecelãs, carneadores, proletários em geral –
homens e mulheres) em suas lutas, junto com suas famílias, por [...] melhores condições de
trabalho e de vida [...] (ASSMAR, 2003, p. 63), com destaque para o personagem anarquista
espanhol Luís Iglezias, que chegou à cidade do Rio Grande em 1895, tornando-se aí uma
liderança, ao lado de outros companheiros, sempre atuantes em torno da Sociedade União
Operária4. Entre passeatas, greves, embates em geral entre operários e patrões, destacam-se
duas gerações de personagens defensores da causa revolucionária. A primeira geração, de
orientação predominantemente anarquista, era composta por Iglezias, Luís Pinheiro,
Saldanha, Perez, Pizarro, Marcela, Estela, Madalena, Joana, Julieta, entre outros personagens;
já a segunda, de orientação predominantemente socialista, era composta por Ângelo (filho de
Iglezias e Marcela) e seus irmãos Vicente e José, mais Adamastor, Alda, Euclides, Suzana,
Fagundes, Jesus Barros e Maria, entre outros.
Circundando os dramas pessoais de operários e operárias, em sua dura labuta cotidiana,
caracterizada por extrema exploração (muito trabalho, pouco descanso, remuneração ínfima,
excesso de cobranças e deveres, sem praticamente nenhum direito), surgem em sequência os
episódios conflitivos da Velha República, como alguns ecos da Revolta da Armada, da
Revolta da Vacina, da Chibata, da Coluna Prestes, etc.; enquanto no âmbito internacional, o
painel histórico que é traçado passa, por exemplo, pela Revolução de 1905 (na Rússia),
atravessando a I Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917, a Quebra da Bolsa de Nova
Iorque e a Grande Depressão, a II Guerra Mundial e a Guerra Fria, alcançando o ano de 1952,
dois anos após o “Massacre da Linha do Parque”, em 1º de Maio de 1950, como ficou
conhecido o episódio trágico que deu nome ao romance Linha do Parque, obra escrita sob
encomenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual o escritor era filiado. Esse livro
comporia, solitariamente, para alguns pesquisadores, o Ciclo do Extremo-Sul, elaborado,

4
Segundo Carlos Peres, a “União Operária foi uma associação pluriprofissional que existiu em Rio Grande entre
os anos de1893 e 1964, tendo como objetivo principal congregar o operariado de diversos ramos da indústria e
do comércio para buscar formas de amparo às suas necessidades. Em 1902 foi construída a sua sede social na
rua Yatahí, atual Dr. Nascimento. Já naquela época, contava com biblioteca, grêmio dramático, escola primária
e de alfabetização oferecida aos seus associados, tornando-se um marco na história do movimento operário da
cidade e da região” (PERES, 2006, p. 74).
16

parcialmente, segundo o ideário do Realismo Socialista (vigente entre as décadas de 1930 e


1960), estética partidária idealizada principalmente por Andrei Zhdanov (1896-1948),
apoiado por Joseph Stalin (1878-1953), governante da antiga URSS, de 1922 até 1953.
De toda a obra de Jurandir, talvez seja o livro menos conhecido e estudado. Sobre ele,
o próprio autor afirmou que se trata de uma história ocorrida em um outro extremo e que
estava ligada ao movimento operário do Rio Grande do Sul, tendo suas origens no ano de
1895. Ele acreditava que o quadro levantado, após uma pesquisa longa e detalhada entre os
velhos anarquistas remanescentes, não agradou quando tornado romance porque não passou
por um filtro: “[...] eu não embelezei o quadro” (JURANDIR, apud SANTOS, 2013, p. 41),
disse Jurandir. E quem lê o livro encontra muita miséria, o que deixou os operários zangados,
segundo o autor, que depositava fé no livro como romance político. Na verdade, o teor político
presente nesse romance proletário não é de todo ausente nos romances do Extremo-Norte; na
verdade, é bem presente, mas sem o caráter ostensivo que caracteriza Linha do Parque.
A empreitada dalcidiana de viajar até o Extremo-Sul, pesquisar sobre o Massacre da
Linha do Parque 5, entrevistar pessoas e se imiscuir entre os operários − sempre anotando tudo
que pudesse sobre informações relevantes a respeito do trágico fato e sobre todos os eventos
relevantes que o antecederam −, buscar compreender causas e efeitos, fatos e versões, o início
do movimento operário rio-grandino, a influência de anarquistas e socialistas no movimento
operário, a importância da Sociedade União Operária para as manifestações (protestos, greves,
motins) contra o patronato, tudo isso só acrescenta ao fato de conhecimento público, entre os
estudiosos de sua obra: Jurandir era extremamente metódico em seu trabalho esmerado de
artesão que labutava com as palavras, que burilava o texto, escrevendo-o e reescrevendo-o
tantas vezes quantas fossem necessárias, até que fosse possível atingir a meta ensejada pelo
autor.
Essas informações sobre Jurandir e sua obra, sabemos, ainda estão bastante
incompletas; necessitando, portanto, de outros muitos dados que as complementem. Entre
essas informações, podemos acrescentar, por seleção ‒ levando-se em consideração um
recorte necessário à pesquisa e por causa também da relevância dos dados ‒, o seguinte:
Dalcídio Jurandir, de modo geral, para os leitores das regiões brasileiras mais desenvolvidas
socioeconômica e culturalmente, não é tido como autor de grande relevância, muito pelo
desconhecimento que se tem de sua obra, de grande envergadura, inclusive por parte de um

5
Linha do Parque foi escrito porque Jurandir foi enviado em 1950, para a cidade do Rio Grande, como repórter,
pelo jornal comunista Imprensa Popular (LINHARES, 1987, p 402), para escrever sobre o Massacre da Linha
do Parque, mas também para “[...] preparar um livro sobre os portuários locais [...]” (MORAES, 1994, p. 160).
17

grande número de pesquisadores dos Estudos Literários. Também por desconhecimento da


população brasileira em geral sobre a Amazônia e sobre o Norte do Brasil, consideradas
regiões periféricas, assim como sua literatura e seus autores. Mas se no Sudeste e no Sul do
país, por exemplo, Jurandir é considerado um autor periférico, na sua região natal ele é
considerado um escritor canônico, assim como suas obras do Ciclo do Extremo-Norte.
Pela sua importância, é conhecido como Romancista da Amazônia. Não discordamos
de modo algum desta antonomásia, pois se trata de expressão elogiosa e Dalcídio Jurandir é
merecedor da homenagem. É que implica, por outro lado, uma espécie de afunilamento no
que diz respeito à compreensão do público leitor sobre as atividades exercidas por Jurandir,
já que este, além de ter trabalhado como servidor público em diversas ocupações6, além de ser
romancista, Jurandir foi também de fato um jornalista7 ‒ escrevendo principalmente para as
páginas da imprensa comunista ‒, atividade que lhe pagava parcos rendimentos, mas que foi
a sua principal fonte de sustento (MAIA, 2017), especialmente nos anos de 1940, 1950 e início
dos anos de 1960, quando o golpe de 1964 lhe interrompeu, em definitivo, a carreira de
jornalista. O jornalismo, então, é uma faceta da produção escrita dalcidiana de modo geral
raramente mencionada ou considerada relevante, o que é lamentável, pois uma leitura mais
atenta aos ensaios, crônicas, ou mesmo reportagens de autoria do marajoara, pode levar o
estudioso de sua obra a um conhecimento mais aprofundado das ideias que Jurandir tinha
sobre a atividade de escrever literatura. Temas, problemas recorrentes abordados por seus
textos, métodos que usava para introduzi-los e desenvolvê-los, estratégias de apresentação,
enfim, o conteúdo, a forma e a técnica de estruturação de seus escritos estão ali, apresentados,
debatidos e argumentados pelo próprio Jurandir, seja de forma explícita, seja de forma
implícita, para serem abstraídos pelo pesquisador, com o propósito de obter um olhar mais
detido na obra dalcidiana como um todo, redimensionando-a.
Por causa disso, na seção intitulada “A concepção dalcidiana sobre a arte de escrever
romances”, a segunda desta tese ‒ logo subsequentemente à Introdução ‒, apresentamos o
pensamento de Dalcídio Jurandir a respeito da arte de se escrever romances. Procuramos
abranger desde a fase de pré-textualização da obra literária, com o aproveitamento da memória

6
Foi inspetor escolar, por exemplo, em 1939, em Oeiras e Salvaterra, indo trabalhar, em cargo comissionado,
nesses lugares. Também foi secretário da Delegacia de Recenseamento, em 1940, em Santarém, entre outros
cargos públicos que exerceu.
7
É imprescindível levar em conta que a antonomásia “Romancista da Amazônia” deve ser entendida como uma
expressão com valor de epíteto que agrega valor de forma encomiástica com o fim de louvar, homenagear
Jurandir. De maneira alguma deve ser entendida como outra espécie de afunilamento, em sentido topográfico ou
geográfico: o autor é romancista do Pará, da Amazônia, mas também do Brasil, assim como Graciliano Ramos
o é de Alagoas, do Nordeste, mas também do Brasil.
18

própria e alheia, passando pela escrita laboriosa, pela ideia de artesanato poético e burilamento
da forma, pelo emprego frequente da linguagem característica do povo, este que de fato é o
foco central, a temática da obra romanesca de Jurandir. A intenção é de se poder alcançar um
conhecimento mais preciso, inclusive sobre a técnica narrativa empregada por Jurandir. Para
atingir tal propósito, usamos como fontes documentos diversos, alguns de autoria do próprio
Dalcídio Jurandir, além de outros, entre estes, estudos teórico-críticos sobre a obra dalcidiana,
desvelando estes as linhas e entrelinhas da produção literária do autor.
Já na terceira seção, intitulada “Aproximando-se dos Extremos: Chove nos campos de
Cachoeira e Linha do Parque: gênese das obras, fortuna crítica e enquadramento estético-
literário”, preocupamo-nos com a origem dos dois romances, como vieram a público pela
primeira vez, assim como com as edições e reedições de cada um deles, além de cuidarmos
de situar os dois romances em suas estéticas literárias, com Chove nos campos de Cachoeira
incluso entre aqueles que se convencionou chamar de “romances de 30”, e com Linha do
Parque sendo considerado, ao mesmo tempo, romance social, histórico e proletário, alinhado
parcialmente à estética do Realismo Socialista, estética de orientação do Partido Comunista
da União Soviética, em moldes que reverberavam na orientação do Partido Comunista
Brasileiro. Nesse segmento, pomos em prática um estudo aproximativo da obra de Jurandir,
coletando, selecionando e cotejando trabalhos de crítica e de teoria, advindos de suportes
variados – periódicos como jornais (diários, semanais ou mensais), revistas e livros, além de
trabalhos acadêmicos (principalmente artigos, dissertações e teses), buscando dar relevo,
nesses estudos, à questão da dicotomia na obra dalcidiana.
Na quarta seção, intitulada “Chove nos campos de Cachoeira e Linha do Parque: uma
leitura dos Extremos na obra de Dalcídio Jurandir” ‒ esta que constitui de fato o cerne de
nossa pesquisa ‒, a análise se apresenta sob a forma metodológica de alternância entre
similitudes e contrastes, para, assim, melhor demonstrar a dicotomia presente na obra
romanesca de Jurandir, a partir da análise de componentes estruturantes das duas narrativas,
concentrando nossos esforços analítico-interpretativos primeiramente na visão geral das
obras, a partir da temática, da técnica empregada, da economia da narrativa, por exemplo,
para, enfim, mergulhar nos universos ficcionais do romance-embrião do Extremo-Norte,
Chove nos campos de Cachoeira, e do romance do Extremo-Sul, Linha do Parque,
demonstrando, entre outras coisas, que, embora se constituam como escrituras literárias
diferentes, foram escritas por um mesmo autor, permitindo ao analista vislumbrar elementos
de interseção nas duas obras, enriquecendo e redimensionando a leitura da obra literária
dalcidiana.
19

2 A CONCEPÇÃO DALCIDIANA SOBRE A ARTE DE ESCREVER ROMANCES

Por fim, mas não menos importante, vale destacar uma outra faceta das
muitas do nosso escritor homenageado neste Ciclo de Palestras: a de crítico
literário. Estudioso da Literatura, da concepção de personagens, da chamada
carpintaria literária, Dalcídio Jurandir muitas vezes se expressou em jornais
e revistas, inicialmente em Belém, depois no Rio de Janeiro, escrevendo
sobre livros de poesia, contos, romances. Não ficava no simplório achismo
ou na crítica impressionista que, mesmo tendo seu tempo e ação delimitada,
pouca dimensão estética dava ao leitor sobre a obra enfocada analiticamente
(GARCIA, 2010)8.

Nesta seção, nosso olhar se volta para as atividades jornalísticas de Dalcídio Jurandir,
notadamente para a publicação de textos de crítica literária, além de algumas outras
publicações, em periódicos, de excertos que passariam a compor o texto de futuras obras
literárias do autor. Volta-se também para sua faceta de missivista, pois o autor, em diversas
cartas enviadas a membros da família, amigos (escritores ou não) e pessoas em geral com
quem se comunicava à distância, revelou sua compreensão sobre a atividade de escrever
literatura. Nas entrevistas que deu e em anotações, feitas por ele, por familiares ou amigos,
após pesquisas sobre assuntos que desenvolveria em seus livros, também se pode colher o
pensamento de Jurandir sobre que procedimentos deve seguir o escritor de literatura quando
escreve suas obras, principalmente se as obras forem romances, fato esse que se percebe
abundantemente também no livro Pranto por Dalcídio Jurandir: memórias (1983), de sua
amiga Lindanor Celina (1917-2003)9, embora tenhamos agido com a devida cautela e
relativização em relação a fatos, informações ou mesmo revelações provenientes das páginas
desse livro, por causa da carga de espontaneísmo, subjetividade e afetividade
costumeiramente atribuída a obras de natureza memorialística, que se nutrem primordialmente
de lembranças na construção de sua escrita, mas sem a necessidade premente do uso da análise
de dados com precisão e clareza, sendo tal procedimento atribuição não da memória, mas da

8
Cf. in: GARCIA, Alfredo. O jornalista Dalcídio Jurandir. Disponível em:
<https://alfredogarcia.webnode.com.br/news/o-jornalsta-dalcidio-jurandir/.> Acesso em: 05 fev. 2019.
9
Pseudônimo de Lindanor Coelho de Miranda, escritora brasileira nascida no Pará, em Castanhal, em
21/10/1917. Mais tarde, mudou o nome para Lindanor Celina Coelho Casha (fundindo nome artístico com o de
casada). Morou em Bragança (cidade onde passou infância e adolescência), Belém, São Luís e Paris, para onde
foi em 1974, sendo ali professora de Literatura Brasileira na Universidade de Lille III. Iniciou a carreira de
escritora em 1954, publicando crônicas em sua coluna “Minarete”, no jornal belenense Folha do Norte. Escreveu
romances, crônicas, peças teatrais, memórias e poesia. Foi vencedora de importantes prêmios literários, como o
nacional Walmap, pela obra Estradas do tempo-foi, por exemplo. Suas obras evocam os costumes da cidade de
Bragança, numa quase conversa entre autora e leitores, com pinceladas autobiográficas. Faleceu em Clamart,
nas cercanias de Paris, em 04/03/2003. É autora, dentre outros, dos seguintes livros: Menina que vem de Itaiara
(1963), Estradas do tempo-foi (1971), Breve sempre (1973), Pranto por Dalcídio Jurandir (1983), Afonso
contínuo, santo de altar (1986), A viajante e seus problemas (1988), Diário da ilha (1992), Eram seis assinalados
(1994), Crônicas intemporais (2003, publicação post mortem), Para além dos anjos: aquele moço de Caen (2003,
também publicação post mortem).
20

História, disciplina que tem a preocupação com a aplicação de um instrumental que envolva
coleta, seleção, análise e interpretação de dados (fenômenos, fatos, eventos, ideias, por
exemplo) com base em métodos e teorias das Ciências Humanas.
Aqui o propósito principal é demonstrar em que medida essas atividades contribuíram
efetivamente para a consolidação da escrita literária do autor. Seu pensamento político-
ideológico e seu ativismo partidário direcionaram sua prática de escrita jornalística, esta
majoritariamente ligada a periódicos de viés esquerdista. E a prática no jornalismo militante
concorreu, sem dúvida nenhuma, para consolidar a concepção do autor acerca do ato de
elaboração composicional de sua produção romanesca, esteja ela ligada ao Ciclo do Extremo-
Norte, esteja ela ligada a sua obra fora do ciclo, Linha do Parque, seu romance ambientado
no Extremo-Sul do Brasil.
A produção jornalística dalcidiana ainda é pouco estudada e explorada dentro dos
Estudos Literários10. Mas já se sabe que Jurandir colaborou com diversos jornais e revistas,
principalmente para a imprensa de Belém e para a do Rio de Janeiro, embora essa colaboração
também tenha se estendido para a imprensa de outras capitais; nesse caso, de maneira mais
escassa. Segundo a pesquisadora Tayana Barbosa, em sua dissertação de mestrado Dalcídio
Jurandir: um cronista de O Estado do Pará e de Diretrizes, defendida na UFPA, em 2014:

Além de sua dedicação ao universo fictício, Dalcídio escreveu textos para


diversos jornais e revistas, tanto no Pará, quanto no Rio de Janeiro,
potencializado por sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Entre esses periódicos, podemos destacar: O imparcial, O Estado do Pará e
Crítica; Revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana, O Radical,
Diretrizes, Diário de Notícias, Voz Operária, Correio da Manhã, Tribuna
Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, A Classe Operária, Para
Todos, Problemas e Vamos Ler. (BARBOSA, T. A. S., 2014, p. 10)

Essa veia jornalística pode ser detectada desde cedo na vida do ainda adolescente
Dalcídio Jurandir, pois em 1925, aos 16 anos, tornou-se um dos diretores de uma revista
artesanal escrita toda a bico de pena, que tinha como redator e ilustrador o irmão Flaviano
Ramos Pereira e como secretário Edgar Alves Ribeiro. Era mensal, intitulada Nova Aurora
(NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 29).

10
Sobre Dalcídio Jurandir jornalista, destacamos os seguintes trabalhos de pesquisa: Dalcídio Jurandir: para
além do romancista (FURTADO; BARBOSA, T.A.S., 2010); Dalcídio Jurandir: um cronista de O Estado do
Pará e de Diretrizes (BARBOSA, T. A.S., 2014); Dalcídio Jurandir, o jornalista: uma análise dos textos críticos
(SANTOS, J. G.; FURTADO, 2016). Cf. em nossas referências.
21

Como jornalista, o Jurandir veio a trabalhar em diferentes funções relacionadas ao


ofício de escrever, geralmente para jornais e revistas, ligados, de forma direta ou indireta, ao
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi repórter, cronista, revisor e editor, publicando
reportagens, ensaios, crônicas e poemas, de modo geral na imprensa paraense e na carioca.
Tais ocupações tomavam bastante seu precioso tempo, que se tornava escasso para dar
andamento ao seu projeto literário. Por exemplo, em uma carta, datada de 1941, com
destinatário ainda não identificado, Jurandir desabafa: “Não sabe como necessito ocupar-me
de meus romances. O trabalho do jornal me interrompe o fio da concentração que devo ter
para a elaboração dos capítulos. Preciso escrever, escrever, é parte de minha carne, de minhas
vísceras e nervos” (NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 178).
Dessa produção jornalística há pouco mencionada, nossa atenção se voltou logo para
os ensaios. Destaque se dê, entre esses ensaios, à escrita de críticas voltadas à arte em geral e
à literatura, particularmente. Também não se pode deixar de mencionar seus artigos voltados
à temática política: “A atividade política também lhe consumia tempo demasiadamente”
(OLIVEIRA, 2015, p. 17). E sabemos que não há como desvincular o ativismo político da
escrita de suas obras literárias, mesmo porque o próprio autor – em entrevista concedida a
Eneida de Moraes (1904-1971)11 − afirmava:

Meus romances, sim, tomam partido. Sou um pequeno escritor de atritos,


indeclináveis compromissos. Estes me dão a liberdade, que necessito, pois
ser um pouco livre é muito difícil. Minha visão do mundo não se inspira em
Deus nem no demônio nem no Bem nem no Mal mas nesta vida em
movimento, em que há classes sociais em luta, etc. precária e miúda, seja,
mas me ajuda a ver homens, coisas, paixões, a História, o quotidiano
anônimo, o efêmero, a eternidade... Eu me prezo, honradamente de ser bem
parcial. Objetividade, imparcialidade olímpica, não há, o Olimpo se mete em
tudo, é só ver na Ilíada, ou na Bíblia, os deuses são da política mais rasgada,
do puro campanário. Todo romancista não é político? O exemplo vem dos
grandes, sempre interessados pelo homem, pelo destino da sociedade, por
mil e uma formas ou aspectos da conduta do indivíduo e do homem. Três
grandes políticos no romance moderno sob a absoluta aparência de artistas
puros ou puros visionários: Kafka, Joyce, Faulkner. Já é uma banalidade
dizer que é impossível a um romancista, o menos intemporal dos artistas,
fugir do seu tempo. E intemporal, uma palavra, ela existe? Atrás dela pode
estar o paraíso, ou a evasão mais sem vergonha. O que existe é o homem,
terrestre, temporal como [o] diabo, e está aí a sua grandeza. (JURANDIR,
Dalcídio, 1996, p. 33)

11
Eneida de Villas Boas Costa de Moraes (1904-1971): nascida no Pará, formou-se em Odontologia, ocupação
que não pôde concorrer com a literatura. Foi escritora, principalmente de crônicas, jornalista, pesquisadora do
carnaval carioca, além de ferrenha militante política do PCB. Entre suas obras, destacam-se: Aruanda (1957),
História do carnaval carioca (1958), Caminhos da terra (1959), Romancistas também personagens (1962) e
Banho de cheiro (1962).
22

E sempre que se associam as obras literárias à militância política do escritor, vem à


baila, de imediato, o título de seu romance Linha do Parque. Mas não é bem isso que Dalcídio
disse acima, em entrevista dada por ele à sua conterrânea Eneida de Moraes. As camadas do
político-ideológico estão presentes em todos os romances do Extremo-Norte, não apenas em
seu romance proletário, este em cujo enredo, logicamente, o viés político é mais ostensivo e
direto, como nas próprias palavras de Jurandir:

Linha do Parque se passa no outro extremo. É a história do movimento


operário no Rio Grande do Sul, desde 1895. Eu fiz uma pesquisa longa no
meio dos velhos operários anarquistas. Levantei um quadro do Rio Grande.
O livro não agradou. Os operários ficaram zangados porque eu não
embelezei o quadro. Apareceu muita miséria. E eles ficaram zangados
comigo. Mas é um livro em que eu tenho muita fé, como romance político
(JURANDIR, apud SANTOS, 2013, p. 41. Destaque nosso.).

Já afirmamos anteriormente, de maneira mais sucinta, que Dalcídio Jurandir foi


enviado para o Rio Grande do Sul, a serviço do jornal de orientação comunista Imprensa
Popular, para investigar e reportar um evento ocorrido na cidade do Rio Grande, em 1º de
Maio de 1950, que ficou conhecido como Massacre da Linha do Parque. Deveria também
escrever, encarregado pelo PCB, a partir de sua meticulosa pesquisa sobre as origens históricas
e sociais do fato verídico e trágico, um romance sob as rígidas regras do Realismo Socialista,
estética literária do “Partidão”, vigente na URSS nas décadas que vão de 1930 a 1960 (com
ecos de manifestação em algumas artes até o início dos anos de 1980). Essa estética foi
idealizada principalmente por Andrei Zhdanov (1896-1946), apoiado por Joseph Stalin (1878-
1953), governante da URSS, de 1922 a 1953. Esse romance Jurandir chamou, primeiramente,
de Companheiros e deveria retratar o cotidiano do trabalho desumano dos portuários da cidade
do Rio Grande. Para isso, precisou de “[...] várias temporadas feitas em 1950, 1951 e 1953
[...]” (LINHARES, 1987, p. 439) nesse município. Também sabemos que viajou para Porto
Alegre em 1959, após o lançamento de Linha do Parque, porque

[...] um grupo de intelectuais gaúchos convidou o colega paraense para vir


até Porto Alegre receber as homenagens de que se fez credor e debater,
também, problemas de ordem literária. Dalcídio Jurandir esteve, ontem à
tarde, em visita ao Correio do Povo acompanhado da poetisa Lila Ripoll [...]
(Correio do Povo apud NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006,
p. 170).
23

Não esquecendo que, no caso específico desta tese, quer se discutir o fato de estudiosos
em geral enfatizarem o deslocamento, no âmbito da obra dalcidiana, do romance Linha do
Parque, pois, além de ser uma obra alheia ao Ciclo do Extremo-Norte, o autor também teria
se alheado, tornando-se outro12, como se fosse uma espécie de heterônimo, de acordo com as
palavras de Benedito Nunes (2004, p. 18), com o propósito de evitar a perda da identidade de
nortista ou amazônida, ou para não trair sua consciência do modo de escrita do texto literário,
sua singularidade temática e de uso da linguagem em sua saga de personagens amazônidas,
quase todos eles pobres e decaídos.
A relevância que os estudos dalcidianos devem dar à atividade jornalística de Dalcídio
Jurandir está bem enfatizada no artigo Dalcídio Jurandir: para além do romancista (2010), de
Marlí Furtado e Tayana Barbosa13. Nesse estudo, o foco recaiu sobre a atividade de produção
escrita do autor para a imprensa, em especial, para o jornal semanário Diretrizes (publicado
de 1938 a 1949), do Rio de Janeiro, em que assina a coluna “Front Literário”, escrevendo
artigos de crítica de arte. Analisando os textos que Jurandir escreveu para esse periódico, com
o propósito de abstrair destes a postura do autor marajoara sobre o que é o texto literário e
como este deve ser escrito, as estudiosas destacaram três aspectos em que se concentrar nos
artigos de crítica publicados por Jurandir para, após isso, verificar em seus romances Chove
nos campos de Cachoeira, Marajó e Linha do Parque o emprego da técnica narrativa
postulada por ele na sua escrita de crítica literária. Os aspectos em questão são os seguintes:
“[...] consciência narratológica, consciência social e consciência político-partidária”
(FURTADO; BARBOSA, T. A. S., 2010, p. 57).
Em relação ao primeiro aspecto, no texto “O aniversário de Urupês”, Jurandir critica
Lobato por causa da técnica narrativa usada por este. Segundo o marajoara, o narrador deve
deixar o personagem falar e agir por si mesmo, permitindo ao leitor uma participação mais
ativa na apreensão do pensamento e da ação desse ser de papel, com utilização frequente de
descrições psicológicas e momentos de introspecção. É o que o autor pratica, quando traça o
percurso narrativo de seus coprotagonistas Eutanázio e Alfredo, em Chove nos campos de
Cachoeira. Em consequência dessa estratégia, enriquecem a narrativa de Jurandir as diversas
analepses e prolepses e flutuações de foco narrativo presentes em seu romance de estreia.
Além disso, Jurandir revela em seu texto de crítica o que acabou por praticar na escrita de seus

12
Em uma passagem de seu artigo As oscilações de um ciclo romanesco, Benedito Nunes afirmou que Jurandir
“[...] fez-se outro autor escrevendo Linha do Parque. Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria Fernando Pessoa,
na criação de uma escrita romanesca diferente: escreveu um livro de aventuras [...]” (NUNES, B., 2004, p. 18).
13
Artigo publicado na Revista DLCV – Língua, Linguística & Literatura, revista do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
24

romances: não dizer tudo, deixando para a imaginação do leitor o preenchimento de lacunas
deixadas propositadamente, com a intenção de instigá-lo a complementar, com conteúdos de
sua experiência de vida e de suas leituras prévias, o que não foi dito integralmente, permitindo-
lhe sentir-se, verdadeiramente, um copartícipe desse processo de troca comunicativa.
A consciência social diz respeito “[...] aos aspectos sociais que a obra apresenta”
(FURTADO; BARBOSA, T. A. S., 2010, p. 58). No texto de Jurandir “Diálogo entre um
Quisling e um coronel alemão”, ao se referir ao romance Vinhas da ira (1939), de John
Steinbeck (1902-1968), Jurandir argumenta que a obra de ficção literária pode e deve servir
como instrumento para denunciar as mazelas da sociedade, com o alcance da denúncia
podendo se voltar à realidade da sociedade brasileira daquela época, em muitos aspectos
análoga ao retrato exposto no romance de Steinbeck, que tem como pano de fundo o contexto
recessivo dos anos de 1930, pós quebra da Bolsa de Nova Iorque (1929), transcorrendo a ação
na região que vai de Oklahoma até a Califórnia, figurando, na errância da família Joad, a
crueza da vida dos trabalhadores rurais, caracterizada por nomadismo forçado em busca do
incerto trabalho sazonal, extenuante, insalubre e mal pago. Lá (EUA) como aqui (Brasil), os
problemas sociais avultavam e eram graves: falta de reforma agrária, condições mínimas de
vida e de trabalho dos camponeses, com êxodos forçados e constantes em busca de nova
ocupação, entre outras adversidades afins. Assim como o romancista estadunidense, Jurandir
fez, em sua obra, opção pelos pobres e oprimidos em geral, principalmente da região
interiorana, como ocorre em seu romance Marajó, em que revela ser o poder do latifundiário
quase sem limites, impondo servidão e trabalho duro aos caboclos marajoaras.
A consciência político-partidária revela o que pensa Jurandir sobre a relação entre arte
e política, o que pode ser observado no texto “Emigrante”, a respeito do artista plástico de
origem lituana Lasar Segall (1891-1957). Para o crítico Dalcídio Jurandir, é de grande
relevância na arte a presença do caráter combativo. No texto, também se dá destaque à
solidariedade humana e ao protesto contra o Fascismo, além da necessidade expressa de se
lutar para se alcançar a liberdade e a paz. Toda essa maneira de pensar a relação entre arte e
política desemboca na consecução de seu romance Linha do Parque, que retrata as lutas
operárias por direitos trabalhistas, na cidade do Rio Grande.
A técnica narrativa de Dalcídio Jurandir, percebe-se então, não veio a existir por mera
vontade, mas como produto de conhecimento sobre o assunto. Sua concepção sobre a obra
literária vem de um propósito que procurava alcançar: retratar com consciência uma realidade
opressora do povo, ao qual queria, por meio de sua obra, ajudar na luta pela melhoria de vida
dos menos favorecidos.
25

Além desses artigos publicados em Diretrizes − não esquecendo que são “Aniversário
de Urupês”, “Diálogo entre um Quisling e um coronel alemão” e “Emigrante” −, Jurandir
publicou muitos mais. Na verdade, há uma produção jornalística variada e até mesmo prolífera
de Dalcídio Jurandir impressa em jornais e periódicos em geral, como já dissemos,
principalmente para a imprensa paraense e fluminense, além de colaborações geralmente para
jornais e periódicos de capitais de outros estados, como por exemplo, o Jornal do Commercio,
de Recife, e a revista cultural Horizonte, de Porto Alegre. Colaborou, por exemplo, para O
imparcial, O Estado do Pará e Crítica; Revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana,
de Belém do Pará. Também escreveu para O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz
Operária, Correio da Manhã, Tribuna Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, A
Classe Operária, Para Todos, Problemas e Vamos Ler, do Rio de janeiro (BARBOSA, T. A.
S., 2014, p. 10).
Em recente artigo14, Furtado (2018) esclareceu que em pesquisas15 coordenadas por
ela no PPGL/UFPA, entre 2008 e 2011, foram encontradas 39 publicações de Jurandir para a
imprensa de Belém do Pará e aproximadamente 200 outras publicações para a imprensa do
Rio de Janeiro, entre ensaios, críticas literárias, poemas, reportagens, crônicas e contos. Ao
todo, são 42 críticas literárias, das quais 11 para a imprensa de Belém e 31 para a do Rio de
Janeiro. Entretanto, desse total, de momento, nosso interesse se volta para quatro artigos de
crítica literária publicados no jornal Imprensa Popular. São estes “Romances” (15 ago. 1954),
“Romance, realidade e História” (22 ago. 1954), “A realidade histórica no romance” (29 ago.
1954) e “Conflitos e personagens no romance” (01 set. 1954).
Nesse conjunto de textos, Jurandir explicitou o que pensava a respeito do ato de
escrever ficção literária, mais especificamente o ato de escrever romances, fato revelado em
todos os títulos dos artigos em questão, nos quais se nota a presença da palavra ‘romance’.
Acrescente-se a isso o fato de que essas críticas assinadas por Jurandir, sem dúvida nenhuma,
têm um viés norteado pela crítica alinhada ao estilo artístico soviético do chamado Realismo
Socialista.
O primeiro deles, “Romances”, inicia assim:

14
FURTADO, Marlí Tereza. Chove nos campos de Cachoeira: “a força bárbara e caótica” de Dalcídio Jurandir
na figuração da Amazônia. In: ALBUQUERQUE, Gabriel; NASCIMENTO, Maria de Fátima do (orgs.). Poesia
e ficção na Amazônia brasileira. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017, p. 99-119.
15
As pesquisas foram duas: Dalcídio Jurandir e o realismo socialista e Dalcídio Jurandir: o romancista e o
jornalista, constantes em nossas referências. Mais adiante, o leitor encontrará maiores detalhes sobre estes
trabalhos.
26

Agora que saíram cinco romances da “Coleção Romances Do Povo” (Ed.


Vitória16), é oportuno animar o debate que estão provocando. Dois romances
soviéticos, “Assim foi temperado o Aço” e “Um homem de verdade”
exprimem duas épocas da revolução socialista. A ação, os caracteres, os
sentimentos são inteiramente novos, pela primeira vez se transformam em
imagens no romance. Estamos diante de não apenas de uma crônica de
acontecimentos, de um relatório, de uma reportagem. Os romancistas
procuram em seus livros ver o essencial da realidade soviética numa
determinada situação como o fez Polevoi ao apresentar tão necessário ao
nosso público, pois reflete uma época da Rússia semelhante à que se
aproxima em nosso país, as qualidades do homem soviético no seu herói. No
“Assim foi temperado o aço”, desenrola-se uma ação revolucionária de mais
alto interesse dramático. Dentro da ação forjam-se tipos, estas e aquelas
criaturas desintegram-se, outras surgem, crescem e ocupam um lugar de
maior importância na luta pela transformação revolucionária. O romancista
não simplifica essa luta, exibe os conflitos, mostra que a revolução não é
uma simples e breve mudança mas um processo longo e doloroso, se bem
que inevitável, na realidade e na consciência dos homens (JURANDIR,
1954, p. 1).

Os cinco romances a que se refere Jurandir são: Um homem de verdade (1953), de


Boris Polevoi (1908-1991); Assim foi temperado o aço (1954), de Nikolai Ostrovski (1904-
1936); A lã e a neve (1954), de Ferreira de Castro (1898-1974); O grande norte (1954), de
Tikhon Siomúchkin (1954); e Os donos do orvalho (1954), de Jacques Roumain (1897-1844).
Dessas obras, fez reflexões sobre as duas primeiras, tecendo considerações que serviram como
pretexto para que pudesse, além de focar-se nas estratégias da construção romanesca dos dois
livros, demonstrar a ligação direta entre o conteúdo destes e o ideário do Partidão, que
prescrevia uma fórmula traçada pelo Realismo Socialista, sob a batuta de Górki17 e Zhdanov.
O artigo se apresenta como uma espécie de introdução, dentro do conjunto dos quatro
aqui citados, para exposição do que entendia Jurandir sobre como se devia escrever um
romance de temática revolucionária. Para ele, era necessário que os autores evitassem as
algemas “[...] de uma crônica de acontecimentos, de um relatório, de uma reportagem”, já que
a forma literária romance é uma obra de arte. Na passagem citada, o marajoara ainda se atém
a outros aspectos estruturantes do romance. Refere-se, por exemplo, a “[...] ação, os caracteres,

16
Editorial Vitória: editora vinculada ao Partido Comunista Brasileiro, fundada em 1944 e fechada pela Ditadura
Militar pós golpe de 1964, especializada em publicações de viés marxista.
17
Pseudônimo de Alexiéi Maxímovitch Péshkov (1868-1936), escritor e ativista político, que publicou, entre
outras obras: Fomá Gordéev (1889), Pequenos burgueses (1902), A mãe (1906), Os inimigos (1906), A infância
(1913-1914) e Minhas universidades (1923). Górki, traduzido do russo para o português, significa ‘o amargo’,
epíteto que se justificaria pelas dificuldades e perseguições enfrentadas pelo autor em sua vida, em decorrência
de seu pensamento político-ideológico, além das escolhas temáticas de sua obra, toda ela voltada à defesa da
causa revolucionária e dos oprimidos e deserdados da sociedade.
27

os sentimentos [...]” que “[...] se transformam em imagens no romance”. Segue no texto


criticando a postura de uma parcela grande de leitores que

ainda veem no romance um boletim, um livro de doutrina, um documento


político que conta fatos, apresenta soluções, indica perspectivas. E sempre
esquematicamente dá “a saída...” Tudo isso pode e deve estar contido no
romance. Mas não esqueçamos que este tem um caráter específico, artístico,
diferente do artigo político, do informe, da reportagem, da história. O
romance traz as características correspondentes ao seu gênero literário [...]
(JURANDIR, 1954, p. 1).

Ainda que Jurandir considere que é importante o debate suscitado sobre os romances
da Coleção Romances do Povo, para que possa ser “[...] melhor compreendido o papel do
romance na luta revolucionária” (JURANDIR, 1954, p. 1), postula também que nada ajuda a
confusão que faz o leitor quando este não percebe o romance como uma construção de teor
literário, quando o confunde, por exemplo, com a História. Tal fato acaba por fazer crer que
no romance “[...] tudo deve ser verdadeiro no sentido documental, no sentido ‘histórico’, como
se o romancista fosse um historiador, um repórter, um cientista.” (JURANDIR, 1954, p. 4).
Contrário a isso, o autor afirmava que

A verdade da vida numa obra de arte manifesta-se através da imagem,


através do estilo, graças ao engenho do artista em apresentar os fatos e os
personagens segundo uma ação adequada, inventada, artisticamente
construída. Não basta num romance dizer simplesmente que “o comunismo
é uma verdade, os comunistas são homens maravilhosos”. [...] No romance,
o romancista necessita provar o fato através de imagens vivas, através do
movimento de seus personagens, do estilo de montar a [sic!] resolver
situações, no modo de narrar e descrever. Do contrário, pode ser tudo, menos
o gênero literário chamado romance. [...] O que precisamente dá caráter ao
romance é uma combinação de forma e conteúdo (JURANDIR, 1954, p. 4).

Aquilo que já foi mencionado como consciência do fazer poético, pelo domínio de
uma técnica narratológica, até mesmo pelo uso de um léxico específico da crítica literária
(claramente que típico da década de 1950), demonstra o domínio da matéria discutida por
Dalcídio Jurandir, resumido pela dicotomia “forma e conteúdo”, que encerra a última
passagem destacada. Dentro do âmbito dessas duas categorias, estão “os comunistas são
homens maravilhosos” (que diz respeito ao conteúdo), por exemplo, e “imagens vivas”,
“montar”, “resolver situações”, “modo de narrar e descrever” (que dizem respeito à forma).
Mas, para que essa “combinação de forma e conteúdo” se configure como a escrita de uma
28

obra de arte literária, que exprime uma verdade interna ao mundo ficcional, é preciso um
esforço de “engenho e arte” (como diria Camões) da parte do romancista.
Pelo último terço do artigo “Romances” − depois de refinar o raciocínio desenvolvido
sobre a necessária adequação das ideias do autor “às regras básicas” do gênero romance −,
Jurandir ata um fio entre os romances publicados naquele momento pela Editorial Vitória, da
Coleção Romances do Povo18, e a trilogia escrita por Jorge Amado (1912-2001), Os
subterrâneos da liberdade (1954), publicada pela Livraria Martins Editora em três tomos: Os
ásperos tempos (I), A agonia da noite (II) e A luz no túnel (III). No artigo, Jurandir se refere
a uma excelente oportunidade de se realizar um debate sério sobre o romance e sua relação
com a História, a partir dessas publicações da Editorial Vitória e da trilogia amadiana. Então,
o Dalcídio Jurandir, amigo e companheiro de trabalho em jornais e revistas e camarada de
Amado no PCB, contrai-se e surge nas linhas o crítico literário Jurandir, de certa forma
rigoroso e, às vezes, até severo, o que será percebido com maiores detalhes nos outros artigos,
estudados daqui em diante, em que o crítico verifica o quanto e de que forma Amado se utiliza
(ou deixa de se utilizar) dos esquematismos do Realismo Socialista na consecução de sua
trilogia, sempre fazendo comparações com e tecendo considerações sobre obras soviéticas
também tributárias da estética em questão (SANTOS, 2013).
No artigo “Romance, realidade e História”, já no parágrafo inicial, Dalcídio Jurandir
faz distinção entre ficção romanesca, História e memória. Esta última, nas palavras do
jornalista, é “[...] uma experiência pessoal, um feixe de impressões onde predomina a visão
particular, ‘íntima’ do memorialista” (JURANDIR, 1954, p. 1). Já a História se caracteriza,
segundo Jurandir, por um caráter mais impessoal; por isso, mais objetivo também e mais
científico, o que afasta os dois discursos de forma incisiva da ficção romanesca, que para
Jurandir é uma “[...] deformação consciente em que os fatos e as pessoas deixam de ser as
mesmas da vida para serem imagens desta [...]” (JURANDIR, 1954, p. 1). Porém, para chegar
ao cerne da argumentação de seu texto de crítica literária, que é voltado para a trilogia Os

18
Coleção publicada de 1953 a 1956, perfazendo um total de vinte obras, que são: 1 Um homem de verdade, de
Bóris Polevói (1953); 2 Assim foi temperado o aço, de Nikolai Ostrowski (1954); 3 A lã e a neve, de Ferreira de
Castro (1954); 4 O grande norte, de Tikhon Siomúchkin (1954); 5 Os donos do orvalho, de Jacques Roumain
(1954); 6 Tchapáiev, de Dmitri Furmanov (1954); 7 A colheita, de Galina Nikolaieva (1954); 8 A tempestade
(vol. 1), de Ilya Ehrenburg (1954); 9 A tempestade (vol. 2), de Ilya Ehrenburg (1954); 10 Espártaco, de Howard
Fast (1955); 11 A hora próxima, de Alina Paim (1955); 12 A felicidade, de Piotr Pavlenko (1955); 13 A estrada
de Volokolansk, de Alexandr Bek (1955); 14 A tragédia de Sacco e Vanzetti, de Howard Fast (1955) 15 Primeiras
alegrias, de Konstantin Fédin (1955); 16 A torrente de ferro, de Alexandre Serafimovitch (1956);17 Sol sobre o
rio Sangkan, de Ting Ling (1956); 18 Coolie Mulk, de Raj Anand (1956); 19 Os mortos permanecem jovens, de
Anna Seghers (1956); e 20 Terra e sangue, de Mikhail Cholokov (1956).
29

subterrâneos da liberdade, primeiramente o autor fez comparações com dois livros de


Graciliano Ramos (1892-1953): Memórias do cárcere (1953) e Infância (1945), os quais
elogia no que diz respeito a uma forma artística superior, que deve estar presente nas
memórias, mas definitivamente ausente de propósito na História, quando se refere
positivamente aos Capítulos de História Colonial (1907), de Capistrano de Abreu (1853-
1927), mas situando este autor em um patamar que não poderia se aproximar nem de longe da
prosa de alta qualidade de Graciliano Ramos, embora também tenha tracejado, no artigo em
questão, breves críticas sobre a obra deste último autor.
Retomando suas colocações sobre a arte de escrever romances, o crítico Dalcídio
Jurandir voltou a se referir a regras para a construção dessa forma de narrativa, regras
elementares que não exigiriam sempre do romancista um domínio extremo de um estilo.
Referiu-se, então, a alguns críticos que comentaram a obra de Stendhal (1873-1842)19, os
quais o consideravam como um romancista de estilo praticamente desnudo, em decorrência
de um costumeiro descuido, o que faz dele um oposto de Henry James (1843-1916)20, autor
muito preocupado com a forma e a técnica, a tal ponto, que chegava a dar pouca atenção à
“[...] vida que deveria representar com clareza e profunda simplicidade” (JURANDIR, 1954,
p. 1), crítica, neste caso, voltada ao excessivo zelo de James para com o discurso, em
detrimento da história narrada, segundo Jurandir.
Focando seu olhar para a obra de Amado, o crítico Jurandir afirma que o leitor que
buscasse comparar a obra deste com uma certa “família” de autores, como os portugueses
Camilo Castelo Branco (1825-1890), Eça de Queirós (1845-1900) e Ramalho Ortigão (1836-
1915), e os brasileiros Machado de Assis (1839-1908), Joaquim Nabuco (1849-1910) e
Graciliano Ramos (1892-1953), utilizaria bases falsas para entendimento e apreciação da obra
de Amado, que Jurandir acabou por elogiar, antes de começar a criticá-lo, por conta da falta
de um estilo literário, o que colocaria Amado em um patamar abaixo da estatura literária de
Flaubert (1821-1880), de Tolstói (1828-1910), ou mesmo de Eça de Queiroz e de Graciliano
Ramos, principalmente em relação à técnica romanesca empregada por estes.

19
Stendhal é o pseudônimo de Marie-Henri Beyle, diplomata francês, mas que se notabilizou como escritor: foi
um dos mais importantes representantes do realismo na França, autor de, entre outros romances, Armance (1827),
O vermelho e o negro (1830), A cartuxa de Parma (1839) e Lucien Leuwen (1894, publicação póstuma e
inacabada).
20
Henry James Jr.: escritor realista norte-americano naturalizado inglês que, entre outras obras, publicou Retrato
de uma senhora (1881), Pelos olhos de Maisie (1897), A volta do parafuso (1898), As asas da pomba (1902) e
A taça de ouro (1904), entre outras obras literárias, mas também publicou A arte da ficção (1884), traduzido vez
por outra também como A arte do romance, um ensaio pioneiro no campo dos Estudos Literários.
30

O elogio é o de que Jorge Amado seria “[...] o mais bem dotado dos romancistas
brasileiros nestes últimos tempos” (JURANDIR, 1954, p. 1). Isso porque, segundo o
marajoara, Jorge Amado foi um excepcional narrador, com grande poder de invenção e
emprego espontâneo de

[...] atmosferas, cenas, capítulos líricos, como se fosse um daqueles mestres


de abc do sertão, como se fosse o trovador que não se detém numa rima
pobre ou num ritmo inseguro para poder continuar a cantar e a narrar aos
galopes, não querendo respirar, porque teme perder o fio da narrativa e o
gosto do canto. O aspecto legitimamente popular de seus romances está nisso
(JURANDIR, 1954, p. 1).

Nota-se que Jurandir fez crítica utilizando-se de um léxico específico relacionado às


categorias da narrativa, mas fazendo comparações com artistas populares, os já conhecidos
rimadores, repentistas e emboladores de cidades do interior do sertão nordestino, a quem então
se referiu como “mestres de abc”. Nota-se também que aqui Jurandir fez uso de léxico
relacionado à poesia e à música, numa fusão das duas artes. E, embora as palavras do crítico
façam referência a certa região do Brasil da década de 1950 – não esquecendo que Amado era
baiano −, também fazem relembrar o tempo da transmissão oral das lendas e tradições, feita
pelos gregos antigos chamados de aedos, os poetas-narradores-cantadores da Grécia antiga,
que enalteciam os feitos grandiosos de deuses e heróis, com versos memorizados que eram
recitados em banquetes (acompanhados por liras ou cítaras, por exemplo), em uma época em
que poesia e música eram artes indissociáveis, como também o foram na Europa medieval,
contexto da produção das cantigas líricas, por exemplo, que eram de autoria de trovadores.
Porém, essa virtude a que se refere Jurandir, em relação à enorme capacidade de narrar
por parte de Amado, pode também ser um dos grandes defeitos na obra analisada deste autor,
por quase beirar um folhetim (que o crítico também chama de best seller), em virtude de o
romancista baiano ter facilidade para narrar a história contida em sua trilogia. Essa facilidade
poderia ser prejudicial porque induziria o escritor a um certo descuido com a forma, com o
burilamento propriamente dito do texto romanesco, sugerido pelo excerto “não se detém numa
rima pobre ou num ritmo inseguro”, permitindo também a inferência de uma certa pressa na
consecução, por parte do romancista, de seu texto final dos Subterrâneos da liberdade. Entre
outros “defeitos e deficiências evidentes” (JURANDIR, 1954, p. 1), pode-se apontar o
“excessivo romantismo do seu texto” (SANTOS, 2013, p. 34), sobre o qual Jurandir fez a
seguinte afirmativa: “Nem sempre Jorge Amado distingue a simples fantasia romântica da
fantasia criadora que se inspira na realidade e que só pode se alimentar da realidade”
31

(JURANDIR, 1954, p. 1). E com apoio em Fadeev21, Jurandir criticou a separação, nas obras
de arte, da abordagem somente romântica e da somente realista, referindo-se a Flaubert como
realista isolado e Victor Hugo como romântico isolado, fato prejudicial aos dois autores, que
por causa disso teriam dificuldade de mostrar em suas obras uma imagem mais profunda da
realidade.
Para o crítico, não seria possível enquadrar a obra de Amado entre aquelas que
atingiram um ponto mais alto em termos de “técnica superior”, esta advinda do século XIX,
do Realismo, cujo autor que citou, como herdeiro direto e exemplar desse estilo, é Górki. No
entanto, ponderou sobre as condições históricas de evolução do romance brasileiro,
considerando Amado como um romântico e um visionário, comparando-o de certa forma a
José de Alencar (1829-1877). Mas faltaria à obra do autor baiano a combinação necessária
de aspectos românticos e realistas em seu processo de criação literária, para que, “à luz do
realismo socialista” (JURANDIR, 1954, p. 1), sua obra ganhasse em complexidade e
profundidade, para que estivesse de acordo não com a realidade, por exemplo, da época do
autor indianista, mas com a realidade contemporânea, que para Jurandir é revolucionária.
Ainda que sejam apontados todos esses senões na obra amadiana criticada, que o
marajoara revelou nas linhas de seu artigo, Jurandir fez considerações muito positivas sobre a
relevância do autor e obra que foram enfocados por seu texto de crítica literária:

Jorge Amado que, com seus romances da Bahia, já ocupa um lugar


permanente na literatura brasileira e obteve tão viva consagração no mundo,
é, de fato, o introdutor do realismo socialista no romance brasileiro, é um
inovador, abre o melhor caminho para os ficcionistas nacionais. Seu último
romance deve ser saudado como uma nova fase da dicção brasileira, menos
pelo seu aspecto formal que pelo conteúdo que nos indica. E por ser um
inovador, por ter de abrir um caminho tão cheio de responsabilidade pela
altura a que chegou o romancista, é que a sua obra necessita cada vez mais
de uma crítica exigente e de uma compreensão ao mesmo tempo ampla
(JURANDIR, 1954, p. 1).

Percebe-se, então, nessas colocações, uma justificativa a certo rigor a que sua crítica
chegou em relação à obra de Amado, principalmente aquela voltada para a trilogia
Subterrâneos da liberdade: é imprescindível que a primeira seja tão exigente quanto se torne
cada vez maior a consagração da segunda.

21
Alexander Alexandrovich Fadeyev (1901-1956): escritor russo, sendo também crítico literário e autor de
romances e novelas. Entre outros livros, publicou A derrota (1925), O último dos udegues (vol. 1, 1929, e vol.
2, 1941; incompleto) e A jovem guarda (1946). Foi um dos fundadores da União dos Escritores Soviéticos e foi
presidente desta instituição, de 1946 a 1954.
32

Assim, podemos inferir que no artigo “A realidade histórica no romance”, publicado


pouco depois de “Romance, realidade e História”, a austeridade das ponderações de Jurandir
aumentariam. E é o que ocorre. O crítico foca logo de início na ação, que é ambientada,
segundo ele explica – aproveitando-se das próprias palavras do autor da trilogia −, do Golpe
do Estado Novo, ocorrido em 1937, até 1945. Concluiu tratar-se de um romance que seguia
no geral uma linha histórica e até mesmo cronológica. A partir dessa ideia, teceu
considerações a respeito do que ele chamou de “problema história-ficção” que, para melhor
discutir, lançou mão do que ele chamou de exemplos clássicos, como o de Nikolai Nikitini
(1895-1963), escritor russo que publicou o romance Aurora do Norte (1950), livro com base
histórica em experiências de vida do próprio Nikitin e também em seu esforço de pesquisa −
incluindo aí o estudo de obras de autoria de Lênin e Stalin −, para ambientar a trama do
romance no período da Guerra Civil Russa (1917-1922), na parte norte do território desse país,
conservando nomes e eventos, por exemplo, com veracidade histórica. Embora esse autor
tenha afirmado que escreveu um romance (uma obra literária, portanto), o que lhe afastou da
escritura de uma crônica ou de um registro oficial de fatos, o que o colocaria na História de
sua nação não como um autor de literatura, mas como um historiador, coisa que Nikitin tratou
de evitar.
Como já foi afirmado, para o crítico Dalcídio Jurandir, deveria haver uma espécie de
combinação na justa medida entre a História e a ficção, em que a imaginação do autor
conduzisse a ação, mas não se afastando esta “[...] do leito histórico verídico” (JURANDIR,
1954, p. 3), o que, segundo Jurandir, ocorreu de modo similar com obras como A cartuxa de
Parma (1839), Guerra e paz (1869), Os noivos (1827) e Les Thibault (1922 a 1940, em seus
oito volumes), obras respectivamente de Stendhal (1783-1842), de Liev Tolstói (1828-1910),
de Alessandro Manzoni (1785-1873) e de Roger Martin du Gard (1881-1958), conjunto de
textos cuja escrita demandou dos autores um esmerado trabalho de pesquisa, para que a ação,
as personagens, os traços gerais, datas e locais estivessem condizentes com os eventos
históricos nos quais estão ancorados.
Os autores românticos, que não seguiam essa premissa, foram criticados por Jurandir,
assim como alguns historiadores também, por causa de certas liberdades tomadas em relação
a fatos históricos:

O arbítrio de deslocar acontecimentos da história, recuar e antecipar fatos


históricos que ocorrem ou que se presume acontecer foi um gosto muito
peculiar aos românticos. Um estudo do romantismo poderá explicar essa
atitude dos romancistas, até mesmo de historiadores que se julgam com o
33

direito de usar a história segundo a sua fantasia e às necessidades e recursos


da ação concebida no romance. Creio que Hugo e Walter Scott são bons
exemplos disso. Gogol em “Taras Boulba”, Dumas, Fenimore Cooper, o
nosso Alencar usaram e abusaram largamente, podemos dizer
romanticamente dessa “licença poética” (JURANDIR, 1954, p. 3. Destaques
em aspas do autor).

A partir desse ponto, em que deixou bem claro não concordar com os usos e abusos do
que ele nomeou de “licença poética” por parte de alguns autores com respeito aos fatos
verídicos, voltou-se novamente para a trilogia amadiana, revelando que esta não apresentava
uma relação de veracidade com os fatos históricos ocorridos no período de tempo que o enredo
de sua obra abrange. Punha em dúvida, de imediato, se Amado, em relação ao problema
história-ficção, estaria de acordo com românticos ou com realistas, já que estes privilegiavam
o que Dalcídio Jurandir, em várias referências feitas, denominou de realidade concreta, o que
não ocorria com os românticos, estes que costumeiramente fantasiavam a História, utilizando-
se com frequência do expediente de recuar e/ou antecipar fatos, para que estes estivessem de
acordo com a engrenagem da inventividade da obra literária. Nesse sentido, para o crítico,
Amado deveria estar de acordo com o pensamento dos realistas. Considerava que tal problema
– o da associação entre a História e a ficção −, encarado em uma perspectiva como essa, gerou
um dilema: foi da combinação do Romantismo com o Realismo que nasceu o Realismo
Socialista.
Mas se, de acordo com as características da estética literária soviética, seria necessário
ser fiel à veracidade dos fatos, na medida em que estes se situassem no espaço e no tempo
com exatidão, em que ponto Jorge Amado extrapolou o teor factual em privilégio do ficcional?
Afinal de contas, sem essa extrapolação, o texto poderia deixar de ser arte literária para ser
uma crônica ou um texto de viés histórico. Dalcídio afirmou ser um direito do romancista essa
espécie de deformação da realidade, mas ao mesmo tempo teceu críticas a Amado: “Creio que
Jorge Amado teria de conduzir a ação de seu romance seguindo a lição do romancista soviético
[Nikolai Nikitini], já que a coloca em termos gerais históricos” (JURANDIR, 1954, p. 3). Para
corroborar suas palavras, citou uma definição de Realismo Socialista, a partir de documento
da União dos Escritores Soviéticos:

“O realismo socialista, sendo o método de base da literatura e da crítica


soviética, exige do artista uma representação verídica, historicamente
concreta da realidade [,] no seu desenvolvimento revolucionário. O caráter
verídico e historicamente concreto dessa representação artística da realidade
deve combinar-se com o dever de transformação ideológica e da educação
34

das massas no espírito do socialismo” (JURANDIR, 1954, p. 3. Aspas do


autor).

O artista deveria então representar artisticamente a realidade respeitando os dados


verídicos no que diz respeito à História narrada, além de que deveria combinar tal atitude com
a finalidade de transformar pela literatura o pensamento ideológico das massas, por intermédio
mesmo de um processo educativo de linha socialista. A “[...] reconstrução fiel dos
acontecimentos históricos” (SANTOS, 2013, p. 35) era também uma cobrança dalcidiana, por
causa de o autor da trilogia, em algum momento, ter assumido esse compromisso de fidelidade
com os fatos, inclusive de forma cronológica, como explicou Jurandir no início de seu artigo:
“A ação do romance é colhida, inteiramente, ‘da luta do povo brasileiro, dirigido pela classe
operária, nos anos que vêm do golpe de estado de 1937 até os dias atuais’, como explica o
autor [Amado]” (JURANDIR, 1954, p. 3).
Os deslocamentos dos fatos no tempo, maculando assim a cronologia dos eventos,
receberam uma crítica veemente de Jurandir, pois, segundo este, não retrataram como
deveriam a luta revolucionária já iniciada pelos diversos movimentos de massa dentro da
sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX e, no âmbito desses movimentos, o
próprio percurso de crescimento e amadurecimento do PCB e as ações revolucionárias nas
quais o Partido esteve envolvido. Amado teria se equivocado, então, no que diz respeito ao
trato com dois culminantes episódios de sua obra: “a greve de Santos e a luta camponesa no
Vale do Rio Salgado” (JURANDIR, 1954, p. 3). A greve de Santos de fato aconteceu, não em
1938, como consta no romance, mas em 1916. Mas o conflito no vale do Rio Salgado jamais
aconteceu. Seria uma licença poética da parte de Amado.
Esse descaso com a realidade histórica, observou o crítico, é uma forma de diminuição
da qualidade da obra em termos de verossimilhança interna, muito por causa de uma
contradição que marca a obra amadiana em questão: os dois episódios são retratados com um
esmero detalhístico de quem escreveu um texto jornalístico, uma notícia por exemplo.
Também é válida a analogia com a escrita da História, pela preocupação insistente com o
factual, esquecendo, pois, de romancear os acontecimentos, que, embora todo um metódico
tratamento dado pelo autor no sentido de apresentá-los ao leitor como verídicos, não poderiam
jamais ser chamados, a rigor, de históricos. Para dar relevo ao seu pensamento, o crítico citou
os exemplos de Tolstói, em seu Guerra e paz, e Fadeev, em seu Jovem guarda. O primeiro,
por uma qualidade: usar um fato histórico como ancoragem para revelar melhor a essência de
seus personagens, de seus heróis em sua complexidade psicológica. Esse fato importante é a
35

Batalha de Borodin22, que Tolstói descreveu com grandeza, mas que se tornou também pano
de fundo para a ação e configuração psicológica de personagens que estavam envolvidos com
o evento, como, por exemplo, o príncipe André,
O segundo exemplo, Faddeev, já foi citado por causa de uma falha. Segundo opinião
da crítica − apontou Jurandir −, esse autor mostrou a luta dos heróis com intensidade e
imaginação, porém esqueceu de fazer a inserção do Partido Comunista como dirigente de tal
luta. Errou o escritor na representação da realidade, considerando que essa realidade deveria
ser expressa não do modo como o seria pela História, factualmente, mas por meios literários,
pelas imagens, como insistiu o crítico Jurandir. E foi o que Fadeev fez, só que não poderia ter
deixado de mostrar, em imagens vivas, os comunistas ali no comando, no front da luta.
Relacionando essas considerações feitas sobre os dois autores russos, e suas
respectivas obras, com os episódios da greve de Santos e do conflito do Vale do Rio Salgado,
o crítico reiterou suas observações acerca de Os subterrâneos da liberdade. Afirmou que,
embora esses episódios, ligados à História um tanto recente do Brasil – recente naquele
momento −, não fossem totalmente condizentes com a realidade nem mostrassem com mais
ênfase as lutas revolucionárias em que o Partido se envolveu – além de não mostrar suas
constantes contradições internas –, no embate contra as classes no poder na Primeira
República, tais fatos

[...] não desfaze[m] o ardente interesse dramático, empolgante


espontaneidade lírica dos episódios do romance. O que se deve acrescentar
nessa representação da realidade no romance, é a maneira romântica de Jorge
Amado, e há nessa maneira um traço brasileiro vivamente popular, sem
nenhuma dúvida (JURANDIR, 1954, p. 5).

Além desses destaques favoráveis à obra de Amado, o Jurandir também se referiu a


uma grande qualidade no tema escolhida por Amado, que não teria exemplos anteriores na
literatura brasileira. Por causa disso, reiterou esse fato como uma grandeza, adjetivando-o de
épico, de monumental, em vista da escolha feita pelo autor e da audácia de tê-lo desenvolvido,
o que seria um dos maiores méritos desse que Jurandir chama de “poderoso romancista”,
principalmente por causa de seu poder de observação e imaginação, aquela combinação a qual
o romancista, alinhado ao estilo literário do Realismo Socialista, não deveria negligenciar em
sua escrita romanesca. No entanto, ficou como contraponto crítico negativo o fato de o autor

22
Batalha ocorrida em Borodin, na Rússia, em 07/10/1812, entre as forças francesas e russas. Considerada a mais
sangrenta de todas as Guerras Napoleônicas, foi vencida pela França, pois as tropas russas se retiraram do campo
de batalha, para mais tarde darem início a uma contraofensiva que acabou por derrotar Napoleão Bonaparte.
36

ter errado a mão naquilo que Jurandir chamou de “a maneira romântica de Jorge Amado”, que
lhe foi imputado como um defeito em sua obra.
Com respeito a essa falha, a crítica mais contundente que lhe foi feita nesse artigo é,
sem dúvida nenhuma, não ter dado mais relevância à veracidade da realidade externa e interna
ao Partido e, por isso, o crítico alertou que o autor baiano deveria também ter dado mais
atenção à própria capacidade de observação, pois, se assim o fizesse, sua imaginação fluiria
melhor (JURANDIR, 1954, p. 5). Alertou ainda que as questões debatidas em seu artigo − e nos
outros dois anteriores desta série do Imprensa Popular −, configuradas em pares dicotômicos,
não devem ser esquecidas pelos “romancistas de vanguarda”. Esses pares são: fantasia e
realidade, História e ficção, conceito e imagem, todos norteados pela orientação marxista
daquilo que Jurandir denominou de “unidade da lógica e da história”, conceito colhido pelo
marajoara no Dicionário de filosofia (1939), de Mark Moisevich Rosental (1906-1975) e
Pavel Fedorovich Iudin (1899-1968): coordenadores da publicação.
Essa dupla de estudiosos fez citação de um excerto de Engels, que Jurandir aproveitou
no artigo, fundamentando sua reflexão: “Onde começa a história, [...] deve começar também
o curso do pensamento [...]” (apud JURANDIR, 1954, p. 5), configurando-se no que foi
chamado de “processo histórico”, que na literatura toma a forma de uma representação desse
processo. Mas, nesse caso, essa representação (ou imagem) é tratada por Jurandir como
reflexo da realidade. E, ainda se reportando a Rosenthal e Iudin, Jurandir fez uma afirmação
no mínimo inusitada: um livro como O capital (1867), de Karl Marx (1818-1883)23, obra de
teor transdisciplinar, cruzando transversalmente os campos da Economia, da História,
Filosofia e Sociologia − enfim, de certa forma quase tencionando abranger o universo cultural
como um todo −, mas, de qualquer modo, sendo uma obra de natureza científica, teria seu
equivalente, no campo da literatura, na forma narrativa do romance.
Entendemos esse raciocínio do seguinte modo: O capital poderia ser considerado um
livro que, em vários sentidos, é monumental, e de grande abrangência, com seu conteúdo
abarcando – embora seu foco central sejam as relações econômicas − aspectos vários da

23
Karl Heinrich Marx (1818-1883), pensador alemão, criador junto com Friedrich Engels (1820-1895) do
chamado Socialismo Científico ou Marxismo. Na verdade, a palavra pensador é um hiperônimo, resumindo todo
um leque de atividades exercidas por Marx, abrangendo Filosofia, História, Economia, Política, Sociologia,
Jornalismo, por exemplo. Foi, sem dúvida nenhuma, um teórico e ativista do pensamento revolucionário. Entre
outras obras, publicou Teses sobre Feuerbach (1845), A ideologia alemã (1845-1846), Miséria da Filosofia
(1847), Manifesto comunista (1848, coautoria de Engels), Trabalho assalariado e capital (1849), O 18 Brumário
de Luís Bonaparte (1865), Para a crítica da economia política (1859), Salário, preço e lucro (1865), O capital,
livro I (1867), O capital, livro II (1885, edição póstuma de Engels), O capital, livro III (1894, edição póstuma
de Engels) e Teorias sobre a mais-valia (1905, edição póstuma de Karl Kautsky).
37

sociedade europeia naquele contexto (segunda metade do século XIX)24, nesse quesito se
assemelhando a um romance, obra literária de ampla abrangência que, de modo geral, pode
contemplar aspectos socioeconômicos, históricos e culturais de uma cidade, região ou nação,
transplantados para dentro das páginas do livro, por um processo de filtragem e de criação
autoral, a poiesis, mas que, embora seja um recorte da realidade, permite também uma visão
totalizadora da vida. Percebe-se, a partir dessa reflexão de Jurandir, a imensa relevância que
este dava à forma narrativa romanesca.
Dalcídio Jurandir fechou seu artigo se referindo à importância da história do Partido
Comunista no universo diegético do romance; história esta que, na opinião do crítico, deveria
ter sido mais explorada no caso de Subterrâneos da liberdade, trilogia que deve, segundo o
crítico, ocupar o interesse dos “escritores de vanguarda” (JURANDIR, 1954, p. 5), embora
confessasse Jurandir se considerar incluso em um grupo de críticos literários que ainda não
haviam refletido de modo mais aprofundado sobre tal questão, considerando que os estudos
acerca dessa matéria só estavam ainda no começo. Daí a dificuldade de ser analisada: o pouco
acesso às obras, porque recentemente publicadas, porque os estudiosos não as puderam
comprar, por estarem esgotadas, ou por desconhecimento de sua publicação.
No próximo artigo desta sequência que estamos a analisar, denominado de “Conflitos
e personagens no romance”, o crítico Jurandir aprofundou e finalizou sua análise sobre a obra
amadiana em questão. Iniciou o texto tratando das ideias de Górki sobre os “tipos literários”
dentro de um panorama enfocado pelo Realismo Socialista. A partir daí, passou a dedicar
grande espaço a uma argumentação em que não só apresentou uma defesa, mas também uma
exaltação do “[...] marxismo-leninismo, bem como do Realismo Socialista [...]” (SANTOS,
2013, p. 36). Acusou os que ele denominou de “caluniadores do marxismo”, devolvendo a
estes as mesmas críticas feitas, de que “[...] as ideias revolucionárias na arte e na literatura
levam a um simplismo nivelador, a uma grotesca e pueril esquematização” (JURANDIR,
1954, p. 3). Citou o exemplo de um jovem crítico brasileiro – sem revelar a identidade deste
− que se referiu ao tratamento maniqueísta dado por Amado aos personagens que, se fossem
operários, seriam bons; porém, se fossem ricos, seriam maus. Tratava-se de um comentário
“infantil”, segundo Jurandir.
Para Jurandir, mentir era o único recurso dos adversários do Marxismo. Um recurso
simplista de quem mentia ou caluniava por desconhecimento da teoria combatida por eles,

24
Obra em três volumes, datados de 1867 (livro I, que trata do processo de produção do capital), 1885 (livro II,
que trata do processo de circulação do capital) e de 1894 (livro III, que trata do processo global da produção
capitalista).
38

como seria o caso em que cita Benedetto Croce (1866-1952)25, que foi desmascarado por
Gramsci (1891-1937)26. Este provou, segundo o crítico, que aquele desconhecia o que refutava
sobre a obra de Marx, por não ter lido justamente a parte que dizia respeito ao assunto criticado
na obra deste último. Em vez de simplismo, “[...] o que caracteriza o marxismo-leninismo é a
sua complexidade” (JURANDIR, 1954, p. 3), que advém de seu rico leque na abordagem
científica da realidade natural e social: a indagação sobre os problemas, seu levantamento, a
observação e análise, os conceitos que daí surgissem, enfim, a leitura de mundo − levando em
consideração as contradições existentes nele −, tornavam esse sistema de pensamento “claro
e verídico” (JURANDIR, 1954, p. 3), ao contrário do que pensavam seus detratores, segundo
Jurandir.
Sendo, então, o Realismo Socialista um método de origem marxista, nada tinha de
simplista ou superficial, pelo contrário. Mas nada impediria uma má aplicação de qualquer
que fosse o método, inclusive o do Realismo Socialista, denotando não estar o erro no método,
apontava o crítico. Em seguida, retomou as “observações de Górki” (JURANDIR, 1954, p. 3)
sobre os tipos literários: aqueles personagens que por características as mais diversas (de
natureza social, psicológica, profissional, etc.) representavam um grupo e se comportavam de
maneira a não surpreender o leitor, sendo considerados planos, nesse sentido, por
apresentarem pouca ou nenhuma complexidade psicológica.
Ainda citando Górki, Jurandir referiu-se à arte que é exigida do escritor. Este deveria
ter uma grande capacidade imaginativa, para extrair de todo um grupo (vinte, cinquenta, cem
personagens) certos traços característicos. Estes traços deveriam ser refundidos em apenas um
ser (um lojista, um operário, por exemplo), para com isso dar origem a um personagem tipo
e, assim, poder alcançar abrangência e aprofundamento de conhecimento sobre o ser humano,
levando em consideração a experiência de vida de cada um. Então, a criação de tipos buscaria
menos o individual, focando-se mais no grupo; portanto, pondo em evidência toda uma classe
social, com o propósito de exaltá-la ou criticá-la. Como exemplo de artista que teve grande
êxito nesse procedimento, citou Balzac:

25
Benedetto Croce (1866-1952): pensador italiano, com um leque de interesse universal, abrangendo campos
como da Estética, Artes e Literatura, Economia, Política, História e Filosofia. Dentre suas obras, estão:
Materialismo histórico e economia marxista (1900), Estética como Ciência da expressão e Linguística geral
(1902), Breviário de Estética (1912), A perfeição e a imperfeição: notas de Estética (1918).
26
Antônio Gramsci (1891-1937): pensador italiano de linha marxista, considerado por muitos como o mais
importante desenvolvedor e atualizador do pensamento de esquerda no mundo no século XX. Preocupou-se
muito com a educação e cultura das massas, assim como com o papel dos intelectuais nesse processo de
transformação social. Condenado pelo regime fascista de Benito Mussolini, no cárcere, de 1029 a 1935, escreve
a obra Cadernos do cárcere (1947), em seis volumes.
39

Subjetivamente, Balzac era partidário da ordem burguesa, mas em seus


romances descreve a vulgaridade e a abjeção da burguesia com uma nitidez
espantosa e impiedosa. Há muitos exemplos em que o artista se torna o
historiador de sua classe, de sua época (JURANDIR, 1954, p. 3).

Percebe-se que o crítico alinhava suas ideias às de Górki a partir do ponto de vista em
que as observações do russo eram consideradas “regras da arte do romance” (JURANDIR,
1954, p. 3), mas tão-somente se o autor que porventura as adotasse buscasse a superação do
ponto de vista individual e da subjetividade em favor de um sentido social e educador na
criação dos tipos.
O crítico citou novamente o autor russo que tanto admirava, ao tratar do problema que
envolve conhecimento e imaginação, apontando a diferença entre estes. Das palavras
empregadas por ele, atribuídas a Górki, abstraímos que o ‘conhecimento’ diz respeito ao saber
conceptual, enquanto a ‘imaginação’ é uma outra forma de conhecimento: o artístico, “obtido
principalmente por imagens” (JURANDIR, 1954, p. 3). Entendemos que a referência a esse
par dicotômico (conhecimento/imaginação) está ligada aos pressupostos do Realismo
Socialista, mas não deixa de ser, também, um artifício retórico para o crítico retomar suas
reflexões sobre Os subterrâneos da liberdade, centradas em alguns eixos temáticos, ligados à
imaginação, ao que é considerado típico e ao conflito e às personagens.
Essa retomada se dá por meio de uma recapitulação, que é a seguinte:

Terá o romancista vencido todas as dificuldades que o seu tema, tão arrojado,
provocou? De início, vimos que a desatenção a certos aspectos gerais da
verdade histórica, segundo minha opinião, levou a uma imagem menos típica
da realidade, a uma pintura menos nítida dos caracteres revolucionários.
Atente-se, a maneira romântica do escritor ao pintar os caracteres e sem
evitar o esquematismo que pesa muitas vezes na apresentação e
movimentação das personagens. Penso ainda que o quadro, erguido pelo
romancista, num afresco grandioso, está, algumas vezes, desenhado em
linhas demasiadamente gerais, de pura narrativa corrida. Distende-se, torna
rasos alguns caracteres, por força de que o quadro espicha muito, mostrando
a superfície e não a profundidade. As personagens não se apresentam,
ordinariamente, − exceto as das classes dominantes − no primeiro plano,
para serem vistas, como em close-up dos filmes, de alma inteira, em que o
leitor pudesse ficar em plena intimidade com elas, fixando-as para sempre.
As personagens esbatem-se, tornam-se simbólicas, cobrem-se um pouco de
certo convencionalismo, movimentam-se como seres de legenda, como
personagens de histórias de aventuras (JURANDIR, 1954, p. 3).

Nota-se que o crítico fez um apanhado de tudo que levantou, nos três artigos que
antecederam este, de pontos fracos na trilogia amadiana, mas não sem antes dizer que se trata
da opinião dele, crítico, e não sem depois afirmar que possivelmente “[...] seja menos uma
40

apreciação crítica do meu gosto pessoal o que agora penso sobre o problema [...]”
(JURANDIR, 1954, p. 4). Na verdade, Jurandir tirou proveito dessa observação para amenizar
as críticas, ao mencionar o personagem Gonçalo, que teria “uma força de personagem de
legenda” (JURANDIR, 1954, p. 4), fato que acaba servindo para confirmar o que Jurandir
chama de “maneira romântica do escritor” (JURANDIR, 1954, p. 4).
Além disso, Jurandir fez algo curioso e que ainda não havia feito nos artigos anteriores:
ele deu sua opinião a respeito de como se deveria escrever uma crítica literária. Na verdade,
Jurandir primeiro revelou o que não deveria fazer o crítico:

O crítico não pode cair no erro de dizer: “em vez disso, deve fazer aquilo,
em vez de Gonçalo assim, faria assim”. Não está certo. O crítico tem ainda
por obrigação descobrir intenções, maneiras, o pensamento do romancista,
explicá-lo muitas vezes, orientar mesmo os leitores para o melhor contato
com uma obra (JURANDIR, 1954, p. 3).

Jurandir distanciava-se, portanto, daquela crítica ligeira e normativa, corriqueira nos


periódicos de então, que costumavam prescrever como o autor deveria escrever seu livro, com
base em fórmulas prontas, e da crítica valorativa, que costumava dizer se valia a pena ou não
o leitor dedicar seu tempo a determinada obra literária. Diferentemente disso, construía uma
crítica analítico-interpretativa que se utilizava, como já dissemos, de um léxico
intrinsecamente ligado ao campo dos Estudos Literários, que levava em considerações
categorias pertinentes a uma reflexão que buscava chaves de leitura na própria construção
textual, em seus elementos de estruturação, em viés de concepção estética, mas claro que, no
caso destes artigos publicados no Imprensa Popular, era sempre uma crítica alinhada à
estética do Realismo Socialista.
Jurandir, procurando ser coerente com o que considerava apropriado a uma crítica
literária de qualidade, seguiu com suas reflexões sobre a obra amadiana. Nesse sentido, sobre
a elaboração da imagem das personagens, para o crítico Jurandir, Amado deu relevo
considerável aos comunistas, mostrando-os como pessoas boas e excepcionais, postura bem
típica dos autores do Romantismo, por causa do grande destaque comumente dado por estes
aos heróis, prática que o crítico não considera satisfatória no que diz respeito à construção de
personagens que sejam militantes comunistas. De fato, essa postura é estereotipadora e,
portanto, causa de certo simplismo que acaba por empobrecer a obra literária.
A ação é costumeiramente escolhida pelos romancistas para, por intermédio dessa
categoria da narrativa, serem reveladas aos leitores qualidades e defeitos das personagens.
Contudo, devido a “interferências do autor” (JURANDIR, 1954, p. 4), diversas vezes as ideias
41

das personagens são apresentadas por palavras do narrador, em vez de serem apresentadas por
falas das próprias personagens, o que não seria, segundo o crítico, recomendável. Para
corroborar seu pensamento, buscou apoio em Engels: “[...] creio que a tendência deve surgir
da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é
obrigado a dar pronta aos leitores a futura solução histórica dos conflitos que descreve"
(ENGELS apud JURANDIR, 1954, p. 4). Nesse sentido, Amado construiu em sua trilogia
uma narrativa explicitamente, em linhas gerais, alinhada ao Realismo Socialista, conforme o
crítico.
Mas este acaba por julgar estranho certo esmaecimento das ações das personagens
comunistas. Esse fato se explica por causa da distância adotada para mostrar tais personagens,
como se de fora dos movimentos, já que o autor deu preferência por destacar, pelo grotesco,
pela baixeza e pelo quase caricato de sua caracterização, as personagens das camadas
socioeconômicas de condição privilegiadas, representantes da burguesia, por conseguinte. Se
o romancista carregou estas personagens com fortes pinceladas de sordidez, desenhou os
comunistas com traços idealizados ao estilo do Romantismo, pecando em relação a caracteres
psicológicos, que deveriam emergir de uma construção mais realista do caráter e
personalidade dos militantes. Daí que Dalcídio Jurandir as considerasse unilaterais, com
pouca espontaneidade.
No que diz respeito a analisá-las como tipos, estas deveriam figurar como seres com
mais “densidade humana”, “[...] cheias de ideias [...], refletindo inquietudes, aspirações,
contrastes, sentimentos não apenas seus mas de uma multidão, de milhares, de milhões [...]”
(JURANDIR, 1954, p. 4), segundo o crítico, ainda mais se fizessem parte do grupo dos
dirigentes. Aprofundando suas ideias sobre os personagens tipos, Jurandir fez referência a
Marx, a respeito do que este pensava sobre algumas personagens folhetinescas de Eugene Sue,
idealizadas “do ponto de vista moral”, como a personagem Rigolette, que não foi desenhada
com traços verdadeiramente concretos. Isso ocorreu até mesmo de modo exagerado na obra
de Amado, o que concorreu para a pouca verossimilhança que apresentavam, consideradas
por alguns leitores da obra de Amado como estereótipos da pureza e da perfeição. É preciso
dizer que Jurandir revelou opinião contrária a essa, que ele considerava ceticismo pequeno-
burguês.
O crítico afirmou que não discutia a existência de personagens com relativa perfeição,
por não considerar tal fato um problema, já que é possível encontrar na vida real pessoas tidas
como seres humanos “incríveis”. Para o crítico, dever-se-ia discutir a transfiguração dessas
pessoas em personagens de ficção apresentadas no romance como tipos:
42

O que é discutível é sua apresentação como “tipo” no romance, o modo de


concebê-los como personagem. Uma coisa é a existência deles na nossa
realidade, outra coisa é sua presença como imagem, como tipo, no romance.
Muitas vezes, sobre um fato da vida, exclamamos: “parece incrível!” Sim,
incrível, mas foi real, aconteceu de verdade. No romance, quando
começamos a dizer “isto parece incrível”, estamos duvidando não do fato,
que pode acontecer ou aconteceu na vida, mas da capacidade do autor de
torná-lo verossímil (JURANDIR, 1954, p. 4).

A personagem tipo deve ser configurada como verossímil de acordo com a realidade
interna da obra, não exatamente de acordo com o mundo fora das páginas do romance. Aqui
novamente, temos o crítico Jurandir buscando apoio em conceitos consagrados no âmbito da
teoria e da crítica literárias, como esse da verossimilhança, referido desde Aristóteles e ainda
debatido nos dias atuais.
De Marx, Jurandir passou a mencionar ideias de Zhdanov, no que tange ao tratamento
das personagens revolucionárias focadas unilateralmente. Esse autor desaprovava o hábito de
alguns escritores enfocarem suas personagens por um único aspecto de suas atividades, dando
relevo ao caráter de incompletude dessa representação da realidade. Zhdanov criticava os que
ele chamou de pseudomoralistas, por só enxergarem nos militantes comunistas os defeitos
destes, sem atentar para os méritos, daí a visão esquemática que mantinham sobre os
comunistas, seres que em seu caminho de vida ficcional permaneciam com um
comportamento inalterável.
Zhdanov também condenou o “conceito idealista e esquemático” (JURANDIR, 1954,
p. 4) de quem não percebia que os membros do partido também tinham necessidade de passar
por um processo de transformação de suas consciências, que tais membros também podiam
ter pensamentos preconceituosos, necessitando, como qualquer outra pessoa, daquilo que se
teorizava como processo de reeducação. Tal visão acrescentava aos personagens e seres
humanos da vida real uma pesada carga de passividade e pessimismo a eles atribuída, atitude
que o russo dizia estar voltada para o passado, que nada tinha em comum com o
“bolchevismo”. O criador de obras literárias, assim como o crítico, segundo Jurandir,
deveriam então se afastar do perigo dos julgamentos atrelados a modelos idealizados e
preconcebidos dos quais Amado, com sua experiência de romancista já consagrado, deveria
se afastar, conforme fosse continuando a escrever seus romances.
Em seguida, voltando-se para a trilogia analisada no artigo, Jurandir voltou a condenar
certo tratamento de Amado a certas personagens, comparando os amores das personagens
Mariana, Manuela e Marieta, exaltando os sentimentos da primeira de forma romantizada e
43

apologética, considerando tal fato um exagero, que seria evitado se o escritor tivesse dado
mais autonomia à personagem comentada, dado a ela mais espontaneidade. Passando a se
referir à técnica literária empregada em Subterrâneos da liberdade, traçou paralelos entre o
autor brasileiro e o inglês Charles Dickens (1812-1870)27, considerando entre os dois
escritores o que denominou de “[...] pobreza técnica e literária, mas cheia de tão densa
humanidade [...]” de Charles Dickens e as deficiências “[...] sabidamente voluntárias de Jorge
Amado” (JURANDIR, 1954, p. 4).
Mas se as críticas contundentes contra o autor inglês nunca foram empecilho para
confirmação de seu valor literário, até os dias atuais, Jurandir afirmou que a aproximação feita
entre os dois autores não seria motivo bastante para que não se exigisse de Amado mais
dedicação a seu trabalho de escrita literária, pois este autor teria se deixado levar por uma
autoconfiança em excesso, em relação a seu talento, capacidade imaginativa e facilidade para
escrever seus romances. Sua maior virtude, portanto, poderia – paradoxalmente −, ser seu
maior defeito. Segundo o crítico marajoara, o autor baiano nada teria a perder se acrescentasse
à qualidade indubitável que tinha, que era a espontaneidade, outra qualidade essencial ao
grande romancista: a disciplina. O conhecimento da realidade inglesa por Dickens subsidiou-
o muito bem na construção de sua obra literária. Jurandir postulava que o conhecimento de
forma mais profunda da realidade brasileira, associado a uma consciência política robustecida,
faria o mesmo por escritores como Amado e outros autores camaradas do baiano, incluindo-
se a si mesmo também nesse universo: “é um ensinamento para todos nós, escritores”
(JURANDIR, 1954, p. 4), afirmou Jurandir.
Aproximando-se do fecho do artigo, as críticas continuaram, nesse ponto voltando-se
para a linguagem, no que diz respeito ao emprego, por parte dos personagens, do português
falado no Brasil, ao qual Amado deu pouca atenção, conforme observação de Jurandir.
Acrescentou ainda uma crítica sobre a “linguagem certa” empregada pelo autor, condizente
de fato com um tempo mais recuado em que os autores se preocupavam com um uso mais
castiço do português em seus romances. A forma da língua empregada seria, portanto,
extemporânea. Nos diálogos, o crítico chama a atenção para o raro aparecimento do linguajar
típico do povo; além de costumes, atmosfera e paisagem com certo distanciamento da
realidade brasileira, fato que levou o crítico a cogitar a possibilidade de que Amado estaria

27
Charles John Huffan Dickens: autor realista de obras com forte presença de denúncia das desigualdades na
sociedade britânica da Era Vitoriana. Entre outras obras literárias, publicou As aventuras do Sr. Pickwick (1836-
1837), Oliver Twist (1837-1839), Conto de Natal (1843), David Copperfield (1849-1850) e Grandes esperanças
(1860-1861).
44

mais preocupado em elaborar uma ficção − cujos personagens estariam alçados à categoria de
lendários − voltada para o exterior, para ser o texto vertido para outros idiomas, notadamente
o russo, língua oficial da União Soviética, origem primeira do PCB.
Embora tenha tecido todas essas críticas a Amado, Jurandir acabou por se confessar
indiretamente entusiasta de sua obra, embora lhe fosse exigida como crítico uma austeridade
a toda prova. O autor, em seus quatro artigos, além de discutir a qualidade literária da trilogia
de Amado, cobrou dele, também, um alinhamento mais ostensivo à estética de orientação do
Realismo Socialista. Elogiou em Amado o forte senso de responsabilidade pelas obras
publicadas, considerando-o um autor combativo e de vanguarda − nesse caso, pela orientação
ideológica da estética partidária −, por cuja obra Jurandir afirmou nutrir respeito, admiração
e amor, aconselhando-o a não se contentar com o já feito, mas sim com o que poderia fazer; a
manter a tranquilidade e perder a inquietude, a insatisfação e a dúvida que normalmente
tomam conta da consciência do artista.
Para Jurandir, Os subterrâneos da liberdade era uma boa novidade que trazia ares
novos ao horizonte literário brasileiro que, segundo o crítico, estaria carregado de romances
que apenas retratavam o lado degradante da vida. Aliado a isso, destacou a importância da
trilogia para a luta revolucionária e para a própria obra amadiana, embora questionasse as
qualidades formais do texto, que concorreram para uma abordagem menos profunda da
realidade brasileira, já que os recursos de Amado como artista eram inquestionáveis; garantia,
portanto, de que futuramente as falhas seriam supridas, tão logo o autor aprimorasse seus
conhecimentos do marxismo-leninismo. E concluiu, de modo incisivo, com palavras da
escritora russa Galina Nikolaieva (1911-1963): “O escritor que não utiliza em sua obra a arma
do marxismo e que parte somente de sua ‘intuição’, de suas representações subjetivas, etc., é
como combatente que em plena batalha abandona sua ‘bazuka’ e tenta vencer o inimigo a
pedradas” (JURANDIR, 1954, p. 4).
Jurandir, encerrando essa série de artigos para o Imprensa popular, publicados de
15/08 de 1954 a 01/09 de 1954, deu-nos uma valiosa mostra de seu pensamento sobre a escrita
literária de romances, mais especificamente de romances proletários elaborados sob a estética
do Realismo Socialista. Tais obras literárias, para o crítico, de antemão, já apresentavam uma
temática inovadora, que ele inclusive também qualificava de vanguardista, por se afastarem
de temas desgastados e carregados de negatividades “[...] tão em voga, exaustivamente
repetidos na ficção contemporânea ocidental [...]” (JURANDIR, 1954, p. 4), como disse no
artigo de crítica Sobre A hora próxima, também publicado no Imprensa popular, em 31 de
45

dezembro de 1954, em cujo texto analisou o romance de Alina Paim (1919-2011)28 intitulado
A hora próxima (1955)29, cuja publicação se deveu a uma encomenda do PCB. Paim, assim
como Jurandir, fez pesquisa in loco, com o propósito de coletar dados para poder escrever o
livro, que aborda um movimento grevista de ferroviários em Minas Gerais.
Nesse artigo, Jurandir montou seu raciocínio analogamente à estratégia usada para
criticar Amado; ou seja, apontando as falhas tanto na temática quanto na forma apresentada
na escrita dos romances criticados por ele. Mas, em seguida − abrandando o olhar do rigoroso
exegeta crítico que levantava decaimentos nos romances −, emergia o crítico alinhado à
estética advinda da União Soviética, sobrepondo aos pontos fracos de cada livro analisado, a
escolha da temática libertária, contemporânea e vanguardista presentes nestes, na opinião de
Jurandir, além de outros aspectos ligados à estruturação das obras, como a construção de
personagens tipos, no que diz respeito à caracterização física e psicológica destes, além da
abordagem de seus problemas do ponto de vista existencial e/ou social.
Jurandir afirmou que dos quatro romances que Paim já havia publicado, A hora
próxima seria o melhor, já que os três anteriores − A estrada da liberdade (1944), Simão Dias
(1949), À sombra do patriarca (1950) −, para ele, faziam parte ainda de uma fase de
aprendizagem de Paim, naquele período em que, segundo o crítico, ocupava-se esta de
apresentar em suas obras um desabafo despretensioso, por causa de uma espécie de
aprisionamento de suas personagens em um mundo sem horizontes, embora para Jurandir a
escritora houvesse alcançado sucesso quanto à veracidade das cenas e dos tipos que criou em
seus romances iniciais, citando nesse caso o exemplo de Simão Dias. Para Jurandir, conforme
a romancista aprimorava sua escrita literária em termos de expressão, perdia em
espontaneidade, assim como apontava um decréscimo na seleção da temática e na “[...]
maneira de estudar e interpretar a realidade” (JURANDIR, 1954, p. 4). Porém, considerou
esse ponto fraco quase corrigido em A hora próxima, já que o crítico elogiou o tema escolhido,

28
Alina Paim nasceu em Estância, próximo de Aracaju, capital de Sergipe, em 1919. A família mudou-se para
Salvador quando Paim tinha apenas três meses de vida. Foi professora, militante do PCB, além de ativista pelos
direitos das mulheres e, principalmente, escritora. Escreveu obras infantis, como O lenço encantado (1962), A
casa da coruja verde (1962), Luzbela vestida de cigana (1963) e Flocos de algodão (1966). Entre seus romances,
destacamos A estrada da liberdade (1944), Simão Dias (1949), À sombra do patriarca (1950), e A hora próxima
(1955). A escritora faleceu em 2011, em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. O nome de Alina Paim
é mais um entre muitos esquecidos pela crítica e história literárias, talvez por causa da postura ideológica e da
temática de suas obras, em que a denúncia social está sempre presente, intensificada ainda mais em A hora
próxima, em vista da defesa da causa socialista, escancarada nas páginas deste romance, que também dá destaque
à ação de personagens femininas, em um Brasil cujo pensamento capitalista e patriarcal detinha uma força
praticamente inquestionável.
29
Podemos presumir que Jurandir teve acesso ao livro antes de este entrar em circulação (1955) no mercado
livreiro, por ter sido publicado pela Editorial Vitória, como sabemos, braço editorial do PCB.
46

criticando, contudo, a realização literária com relação à técnica escolhida para caracterização,
no que diz respeito a situações e personagens, além de reclamar do estilo empregado pela
autora. No geral, Jurandir considerava que Paim era capaz de fazer melhor do que fez.
Como qualidade indubitável do romance, o crítico apontou o fato de a romancista ter
posto em foco um setor do proletário que esteve esquecido por muito tempo: os ferroviários,
suas vidas e seus problemas desnudados pela vez primeira no romance brasileiro, o que punha
o livro de Alina Paim em um lugar histórico de incontestável relevo. Tal fato não só seria
inovador na história do romance brasileiro, mas também na própria história literária brasileira
e, lógico, na vida social brasileira abordada pela literatura, segundo o crítico.
O romance de Paim suscitava também o debate sobre os problemas da introdução da
estética literária de origem soviética em nossa literatura, compreendida por Jurandir não como
escola literária, mas como método de interpretação da realidade a auxiliar a criação literária.
Esse debate possibilitaria a alguns escritores encontrar o caminho de camadas sociais em cujo
âmago seria possível não apenas apreender, mas também ampliar a visão da realidade sobre a
nação brasileira, assim como perceber nesta as transformações sociais. Foi o que aconteceu
com a autora de A hora próxima, pois esta, na elaboração de seu romance, buscou outras
experiências, distanciando-se das exclusivamente suas e de sua formação social, já que
efetuou pesquisa a respeito de um setor do proletariado que naquele momento estava em greve.
Então, tudo o que lhe contagiou as emoções de artista da palavra escrita e se transformou em
matéria romanesca como fatos, cenas e as figuras humanas presentes, tudo foi apreendido da
vivência que teve com os ferroviários, seu movimento grevista e suas famílias.
Paim, segundo Jurandir, teve a felicidade de na obra em questão evitar o pitoresco e
documental, considerado útil, em numerosos casos, para apontar uma espécie de tese
configurada em romance, o que nem de longe teria a ver com o livro da sergipana. Além
disso, a escritora alcançou, com a escrita de seu romance, uma almejada aproximação entre o
autor literário e parte considerável da massa proletária, já que os ferroviários da Rede Viação
Mineira sentiram-se de fato personagens do romance, o que deu maior motivação à escritora
de pôr no papel os dramas pessoais e coletivos nascidos do trabalho duro e ingrato na estrada
de ferro. Outro ponto muito positivo destacado pelo crítico marajoara sobre o livro de Paim é
o fato de ter atraído um novo público leitor, advindo das camadas populares em geral:

Os ferroviários procuram ler um romance, que mal ou bem, não importa,


reflete, pela primeira vez, os seus sentimentos, suas vidas, levando-os à
descoberta da literatura, ajudando-os a conquistar a consciência política
necessária às suas lutas. O romance de Alina Paim, por isso mesmo, não
47

deve ser visto como um fenômeno isolado ou pelo que tem ele ainda de
insuficiente, mas como preciosa inspiração de um movimento literário que
se esboça e vai crescer vigorosamente em nosso país, com ampla penetração
nas massas trabalhadoras no proletariado consciente. (JURANDIR, 1954, p.
4).

Nessa passagem, constata-se que o crítico Jurandir, além da relevante questão da


leitura do romance levada a cabo por parte dos ferroviários, por causa da empatia ‒ ainda
segundo Jurandir ‒ alcançada pela autora em relação aos operários, por retratar nas páginas
de seu livro o modo de vida destes, alavancou também o tópico relacionado ao despertar da
consciência política nesses novos leitores de literatura, fator importante para o crítico, já que
se tratava de um livro de encomenda do PCB, ainda mais porque Jurandir afirmou não ser
manifestação isolada de Paim adotar a estética de origem soviética, pois o seu olhar de crítico
literário vislumbrava um crescimento na produção de livros alinhados ao Realismo Socialista,
muito possivelmente por causa do incentivo – via tarefa dada aos escritores militantes – do
Partidão.
Retomando brevemente a ideia de um novo público leitor advindo das camadas
populares e operárias, é necessário acrescentar que Jurandir já havia publicado no jornal O
Estado do Pará (em 25/06/1941) a crônica-crítica literária “Cangerão na Pensão Quitéria em
Santarém”. Nesse texto, o romance Cangerão (1939), de Emil Farhat (1914-2000), torna-se
pretexto para que Jurandir exponha sua opinião sobre a correlação escritor-obra-leitor:
considera que o autor se vê de fato satisfeito quando sabe que pessoas do povo ‒ nem de longe
assemelhadas a críticos literários ‒, leitores anônimos e por intuição, às vezes até por acaso,
estão lendo seu livro, consagrando-o. Nesse processo, sentem-se como os heróis ali daquelas
páginas, pela aproximação que o autor possibilita entre as mazelas retratadas na obra e as que
eles, trabalhadores braçais ‒ nesse caso, três rapazes lendo o livro na pensão ‒ vivenciam. A
leitura deles é complementada pela leitura do ouvinte no quarto ao lado: Jurandir, que
redimensiona sua leitura, ouvindo-os, a realizarem ali, em meio à atenção prestada e ao
silêncio de quem ouve (entremeados por um dito ou comentário, uma exclamação ou um riso),
uma reconstrução do sentido do texto, fato que patenteia o caráter social da obra literária, pela
interação das partes envolvidas no processo.
Retomando a passagem destacada: esta permite também uma reflexão sobre a postura
ética e estética de Dalcídio Jurandir ao escrever crítica sobre obras de correligionários seus:
teria sido ele um crítico benevolente com autores de inclinação esquerdista? Não, pois, como
já vimos em suas críticas à trilogia amadiana, Jurandir foi, efetivamente, tão rígido com
autores sobre os quais escreveu crítica como o era consigo mesmo em seu esmero no processo
48

criativo. No excerto supracitado, por exemplo, Jurandir afirmou que “mal ou bem” o romance
de Paim refletia pela primeira vez os sentimentos e as vidas dos ferroviários, agindo como
uma espécie de Pilatos da literatura, dando mais importância à introdução desse grupo de
personagens na realidade literária da nação do que a qualquer defeito que viesse a surgir em
consequência disso. Também recomendava que não se visse A hora próxima pelo que ainda
tinha de “insuficiente”, mas como inspiração de um movimento que ainda estava em esboço
e que iria crescer, segundo Jurandir. Desse rigor crítico, seja a respeito de obras de amigos, de
correligionários, ou não, quem deu uma mostra significativa foi Lindanor Celina, no já citado
livro de memórias (Pranto por Dalcídio Jurandir) com o qual homenageou seu conterrâneo:

Com Alina Paim o era [‘severo-quase-ríspido’], por vezes. Lembro-me de


uma frase sua, e que usava sem nenhuma piedade quando Alina submetia ao
seu juízo pedaços de seus romances, à medida que escrevia, ele lia, lia,
calado, e depois só dizia: ‘Tira este palmo’ – aos metros, mandava cortar
(CELINA, 1983, p. 36).

É ainda de Lindanor Celina (1983, p. 158-159) a revelação de que Jurandir

[...] censurava veladamente os autores que “não corrigem”, que “não


trabalham”. Jorge Amado, que ele prezava como um irmão, sim, queria um
bem a Jorge, sempre o considerou uma inteligência. “Mas ele não trabalha”.
– “Como não trabalha, Dal?” – “É muito talentoso, confia no talento, pronto.
Isola-se três meses para produzir um romance, acabou, acabou. [...] Você
quer ver? – abria ao acaso um livro de Jorge e logo mostrava: veja!, ele
escreve bem, muito bem mesmo, tem uma força, mas não trabalha o que faz,
nem se importa com isso”. Concluía: “É um grande companheiro”
(CELINA, 1983, p 158-159).

Mesmo agindo com certa indulgência, referindo-se a Amado como companheiro,


Jurandir criticava a pressa com que seu amigo publicava suas obras, errando este em não
maturá-las um pouco mais, em não burilar mais a linguagem, em não rever certas passagens
de gosto duvidoso ou com incongruências surgidas no processo veloz de compor a trama
narrativa, sem estudar com mais profundidade a realidade histórica, social e cultural abrangida
por sua narrativa romanesca, demonstrando um excesso de confiança no seu talento e
capacidade de manipular o enredo, sem dúvida traços encontráveis comumente na obra de
Amado.
Voltando ao A hora próxima, segundo Jurandir, é um romance que foge dos temas
surrados e repletos de negatividade. E se sua falha seria certa imprecisão e esquematismo,
haveria algo que o elevaria como obra literária: trazia o novo a partir de emoções e lutas que
49

inspiravam confiança no brasileiro, representante este de heróis verdadeiramente humanos,


em vez de seres desfibrados, como fracassados e parasitas, por exemplo. Além disso, o
marajoara listou outros pontos positivos de destaque no romance de Paim, como a
contribuição para a expansão do livro, até mesmo por começar a proporcionar o surgimento
de novas discussões no que diz respeito à crítica e ao gosto literário, despertando a atenção de
romancistas e críticos para a importância de certos valores humanos, das ideias
revolucionárias, da influência popular. O caráter nacional de nossa literatura adviria daí, assim
como o caráter universal, de modo aparentemente paradoxal, por causa da similaridade do que
ocorria no Brasil com o que ocorria pelo mundo afora.
Jurandir referiu-se a dificuldades que Paim teria enfrentado, primeiramente por conta
da novidade do tema escolhido pela autora, que em si refletiria uma reviravolta no romance
brasileiro, ainda em etapa inicial, mas já expresso em obras precursoras, como no já muito
aqui citado Subterrâneos da liberdade (1954), como em Estrada nova (1954), de Ciro Martins
(1908-1995) e Portão fechado (1953), de Maslowa Gomes Venturi (1915-). Essa reviravolta,
segundo o crítico, deveria ser louvada com carinho e entusiasmo, por não ser arbitrária, mas
nascida das condições novas surgidas na sociedade brasileira. Ainda se referindo a
dificuldades, afirmou que Paim errou na caracterização de personagens femininas e na
narração de fatos ocorridos nas plataformas das vias férreas, que figuram como repetitivas.
Ao tentar não faltar com a verdade, ao retratar as mulheres e ao fixar os eventos das
simultâneas declarações de greve nas estações, acabou, segundo Jurandir, faltando com a
verdade estética, ou seja, com a verossimilhança.
Isso ocorreu porque teria a romancista falhado em aplicar o método da estética
soviética, talvez pelo fato de ter Paim dado mais vazão a elementos derivados de uma
concepção estética pessoal que primou bem mais pelos aspectos de teor sentimental que os de
teor objetivo. Para Jurandir, qualquer romancista deve elaborar sua obra não com o que extraiu
da realidade, como fatos ou personagens individualmente, mas sim com a essência destes.
Nessa linha de argumentação, o crítico deu o seguinte exemplo: de um grupo de ferroviários,
de um grupo de mulheres, todos com quem Paim teve contato, dever-se-ia selecionar certa
caracterização, no intuito de construir alguns personagens típicos, tanto masculinos como
femininos. Estes seriam representativos ou emblemáticos de uma classe social, constituindo
uma espécie de generalização, advinda de uma realidade apreendida graças ao subsídio dado
pelo Realismo Socialista, cujas premissas tornavam, segundo Jurandir, mais clara a ideia de
que ao artista cabe evitar a sobreposição artificial do aspecto coletivo ou social sobre o
50

individual; antes, deveria este saber que ambos devem compor uma unidade indissolúvel
naquilo que ele denominou de “imagem artística” (JURANDIR, 1954, p. 4).
Nesse ponto do artigo, já se encaminhando para finalizá-lo, Dalcídio Jurandir, citando
personagens clássicos das artes em geral e também da literatura (como a Gioconda, Ema
Bovary, Hamlet, ou a “mãe”, de Górki, por exemplo), insistiu que estes seres fictícios não
poderiam ser mera cópia de “um” indivíduo do mundo real. Eles são, de fato, uma
representação típica “[...] de sentimentos e ações comuns a muitos indivíduos, muitas vezes a
uma classe social inteira” (JURANDIR, 1954, p. 4), de que cita como exemplo, na literatura
brasileira, o personagem Cotrim, de Memórias póstumas de Brás Cubas. A personalidade de
Cotrim tem uma conformação em que os aspectos individuais e sociais compõem, ambos, uma
unidade em que sua índole original advém das relações sociais que mantém, sendo Cotrim
também uma representação típica de um conjunto de indivíduos, ideia reiterada diversas vezes
nesse conjunto de artigos de crítica de Dalcídio Jurandir, que finalizou o texto afirmando que
Paim, embora desejasse bastante, nem sempre em seu romance soube tirar proveito das lições
do realismo machadiano, apesar dos méritos de A hora próxima como uma obra literária de
qualidade e uma das melhores publicadas no Brasil naquele ano.
É ainda pelo memorialismo de Lindanor Celina que se pode ter contato com o método
de trabalho de Jurandir, pois no livro já aqui mencionado Pranto por Dalcídio Jurandir, em
diversas passagens, Celina dá mostras de um Jurandir imensamente preocupado em observar
acuradamente a realidade ao redor, seja esta realidade uma manifestação tanto do meio físico
quanto do meio social. Mas não diz respeito a uma observação pontual, pelo contrário. Trata-
se de ato sem tempo ou lugar previsíveis, segundo palavras de Celina:

“− [...] Faz parte do meu exercício cotidiano.” “− Exercício?” “− Pois claro.”


E com toda paciência deu-me mais esta aula, preciosa. “A nossa profissão é
feita destas coisas. Principalmente desse captar tudo, a cada hora, cada
momento. Não é só saber escutar o que as pessoas falam ou o que a leitura
nos traz. Ouvir, ver, gravar o máximo.” “− Mas isso é impossível, Dalcídio.
A gente devia então andar de caderno na mão, vida toda.” Ele: “Tem quem
o faça. Eu, às vezes, quando posso, quando dá, depende. Mas é importante
demais essa ginástica” (CELINA, 1983, p. 73. Itálico presente no texto da
autora).

E a própria Celina complementou, em outra passagem de sua obra: “Eu ia entendendo:


ser escritor é nunca ou quase nunca dormir” (CELINA, 1983, p. 74). Significa que o escritor,
para Jurandir, deveria estar atento a tudo que lhe fornecesse dados para a recriação literária.
Para tal, seria necessário dedicar muito tempo ao trabalho de coleta de dados, como se fosse
51

o romancista uma espécie de etnólogo, o que se pode confirmar pelas próprias palavras do
escritor em carta enviada à amiga Maria de Belém Menezes: “Uma das coisas que considero
válidas na minha obra é a caracterização cultural da região. Acumulei experiência, pesquisei
a linguagem, o falar paraense, memória, imaginação, indagações” (NUNES, B.; PEREIRA,
R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 180)30.
E se aconselhava sua amiga Lindanor Celina a primar pela disciplina, é porque
considerava essa atitude como prática norteadora de uma escrita séria e de qualidade. Pelas
palavras de Celina, sabe-se que a prática de escrever e reescrever eram cotidianas e
incansáveis para Jurandir: “Sei que trabalhava aferrado, sem domingos nem dia-santo”
(CELINA, 1983, p. 91). Outra orientação que Jurandir lhe dava: “[...] você, nem que não
queira, estará captando tudo, por hábito, pela técnica adquirida, técnica da atenção, mais que
treinamento da vontade. É mais um exercício de memória” (CELINA, 1983, p. 171). Sobre o
uso da memória na escrita romanesca, a escritora afirmou: “[Dalcídio Jurandir] Repetia: O
romancista, mais que qualquer outro artista, vive da memória” (CELINA, 1983, p. 170). Ainda
sobre a disciplina, a autora afirmou: “Naquela mesa, caladinho, horas e horas, manhã inteira,
corrigindo, pulindo31. Com muita calma. Perdera ─ se é que a tivera nunca ─ a pressa de
publicar” (CELINA, 1983, p. 165). Celina disse ainda: “Dalcídio, se escrevia sem parar, se
nunca tomou férias em seu métier de escritor, não era um aloprado, antes como uma formiga,
diligente, mas sem pressa” CELINA, 1983, p. 79).
Se para Jurandir a utilização de matéria proveniente da memória era fundamental para
sua escritura romanesca, tanto quanto o trabalho árduo com a elaboração do texto, em um
constante exercício de revisão (inclusão, exclusão, reescrita, por exemplo), também
empregava como prática constante, desde jovem, a pesquisa bibliográfica, o aproveitamento
do testemunho e das anotações sobre assuntos diversos, feitas por ele mesmo ou por terceiros
– familiares ou amigos – que utilizava como matéria de composição de seus romances, o que
exigiu do autor o desenvolvimento de uma técnica pessoal (MAIA, 2017, p. 20). Discorrendo
sobre tal técnica, para Agildo Monte, em entrevista, o marajoara expressou seu pensamento
com uma interessante analogia: “O romancista tem seu ofício. O mesmo de um carpinteiro,
um sapateiro ou um canoeiro. Não é possível fazer o romance sem técnica: são os ossos do
ofício” (MONTE, apud NUNES, B; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 159). Assim

30
Essa passagem é referenciada assim no livro Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia: “Anotações em
caderno, espécie de diário de Dalcídio (aos 23 anos), datado de setembro de 1932” (NUNES, B.; PEREIRA,
R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 180).
31
Preservou-se a grafia (do verbo ‘polir’) usada por Lindanor Celina.
52

como outros artistas, Jurandir, considerava a inspiração menos relevante que a transpiração,
no tocante à elaboração do texto literário.
Sobre o método de trabalho de Jurandir, Lindanor Celina afirmou: “Cada página, uma
vez concebida era imediatamente laborada. Quando me apercebi disso, pasmei: ‘mas como
pode, Dalcídio? Você não perde o fio? Não se distancia de mais [sic], não derrapa, não
envereda por outro rumo, nem perde o elã?’” (CELINA, 1983, p. 134). Sobre essa prática de
labor artesanal com a linguagem e com a construção da trama narrativa, em carta datada de
24/05/1954, destinada a Maria Werneck, em tom confessional e de autocrítica, Jurandir
revelou suas perspectivas e preocupações com o romance que estava escrevendo, fazendo
referência à técnica que ele denominou de ‘refundição’:

Aqui derramo as minhas contrariedades quanto ao andamento do romance.


Ao reler a 2ª pasta, no início, achei bom e longo [,] insosso e murcho, sem
mais o ardor com que escrevi. E isto é irremediável. Estou cansado. Tenho
vinte dias justos e enfiados de trabalheira, em escolha de material, refundição
de situações, detalhes. [...] Enfim, só falta refundir severamente três
capítulos, os finais da comédia, tragédia e saga que constituem esse romance.
Posso apenas afirmar que com o seu descozido [sic] o livro32 poderá dar o
que falar, mesmo negativamente. Não pela arte e engenho e sim pelo
conteúdo (JURANDIR, 1954, apud NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA,
S. R., 2006, p. 171).

Algumas dessas refundições eram feitas a partir de publicações de Jurandir em


periódicos, como é o caso dos textos “Missunga toma o rumo da terra geral”33 e “Um trecho
do Missunga”34, ambos publicados na revista Terra imatura, o primeiro em 1938 e o segundo
em 1939. Seriam mais tarde refundidos (como diria Jurandir) dentro das páginas de seu
segundo romance publicado, Marajó.
A seguir, em outra carta (com data estimada de março ou abril de 1954), dessa vez
tendo como destinatária uma pessoa chamada Divina, Jurandir revelou preocupações e
dificuldades similares às da carta destinada a Maria Werneck, com acréscimo de outras
preocupações, inclusive fazendo referência à quantidade de páginas a serem reescritas e outras
a serem acrescentadas ao livro; também a uma parte do enredo a ser alterada, além de fazer
menção a um personagem específico, um magarefe, por exemplo. Acrescente-se a tudo isso o

32
Dalcídio Jurandir escreveu a carta em Teresópolis, em 24/05/1954; por isso, supomos que o romance referido
é Linha do Parque, já que Jurandir afirmou, em entrevista à Eneida de Moraes, que escreveu a obra “entre 1951
e 55” (MORAES, 1962, p. 27).
33
JURANDIR, Dalcídio. Missunga toma o rumo da terra geral. Terra imatura. Belém, n. 6, nov./dez., 1938.
34
JURANDIR, Dalcídio. Um trecho do Missunga. Terra imatura. Belém, n.96, abr./mai., 1939.
53

fato de confessar não saber como solver certos problemas na construção de seu romance Linha
do Parque:

[...] E sei que é um trabalho duro. Tenho que reescrever cem páginas,
acrescentar cinquenta, há problemas de enredo e de situações no romance
que não sei ainda resolver. Tenho que dar máxima simplicidade e tornar mais
intenso e maior o efeito da parte final. Não posso diminuir de intensidade e
de composição. E isto me parece não será em poucos dias. Vamos ver. Deve-
se trabalhar devagar, embora com todo sacrifício [...] Hoje, primeiro de abril,
vou reescrever algumas páginas sobre um magarefe, um matador de bois do
Rio Grande. Ele tem um ombro alto e possante... É uma personagem querida.
As páginas estavam sem vivacidade, esquemáticas, não davam bem a ideia
do que eu queria. À noite cobri as folhas de emendas, felizmente achei
defeitos. Ai de quem não encontra defeitos em sua obra! [...]
Agora à tarde, ocupo-me em ordenar notas para o começo de novos
capítulos. Mas me falta algum material, não muito necessário, mas que
serviria para consulta. [...] (JURANDIR, 1954, apud NUNES, B.;
PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 175).

A autocrítica é notória e robusta na frase “Ai de quem não encontra defeitos em sua
obra”. Daí que o escritor marajoara exigisse tanto de si mesmo e passasse anos sem publicar,
maturando suas ideias e o próprio texto de cada romance. É o caso, por exemplo, de Três casas
e um rio, publicado em 195835, 11 anos depois de Marajó, que veio a público em 1947. E mais
emblemático que esse exemplo é o de Chove nos campos de Cachoeira. Publicado em 1941,
o romance, no entanto, foi iniciado em 1929 e totalmente reescrito em 1939 (como também
aconteceu com Marajó):

Do ‘Chove’ tinha uma papelada velha que se pode convencionar como


material, todo desarrumado e roído de traças, vindo das alturas de 1929 [...]
Andei escrevendo em Gurupá, depois em um barracão no rio Baquiá Preto
nas ilhas de Gurupá [...]. Passou o tempo e larguei o troço sob o peso do
castigo de tanta presunção literária. Em Salvaterra pensei então retirar do
entulho os personagens mal esboçados, o fio de algumas impressões
vagamente fixadas e fiz o romance. Nada ficou da tentativa de 1929
(JURANDIR, 1941, p. VII)36.

35
Em artigo que precede o texto da mais nova edição (a 4ª, de 2018) de Três casas e um rio, Furtado esclarece
que, entre outros motivos para “[...] demora de publicação [...]” das obras de Jurandir, está o fato de haver “[...]
entraves com as editoras e com o aspecto não comercial de suas obras, o que resvala para as exigências intrínsecas
do autor [...]” (FURTADO, 2018, p. 13). Por outro lado, por intermédio de uma carta de Dalcídio Jurandir para
seu irmão Ritacínio, é possível inferir que Três casas e um rio já estivesse concluído em 1948. Cf. in NUNES,
B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 52.
36
Trata-se de passagem do “Prefácio” da 1ª edição do romance Chove nos campos de Cachoeira, que vai da
página I à XIV.
54

Sabe-se que a imaginação dalcidiana frequentemente foi alimentada por dados da


realidade advindos de sua experiência pessoal, desde sua tenra infância, vivida a maior parte
em Cachoeira do Arari, onde mais tarde passava as temporadas de férias da escola, isso quando
já era adolescente e morava em Belém. Então, Jurandir aproveitou – filtrando tudo por
intermédio do processo de ficcionalização – vivências suas, de pessoas próximas, como as da
família e vizinhos e de moradores distantes da Vila de Cachoeira, como alguns ribeirinhos e
pequenos ou grandes fazendeiros, por exemplo. Essas colocações são confirmadas pelas
palavras de Regina Barbosa da Costa, quando esta pesquisadora afirma que os escritos de
Jurandir são o resultado de “[...] um longo processo de leituras, de vivências e observações da
realidade amazônica efetivadas por ele [...]” (COSTA, 2019, p. 34)37.
Jurandir, então, fez uso não só do que testemunhou, mas também do que tomou
conhecimento por ouvir lhe contarem histórias, envolvendo fatos ou fenômenos próximos ou
distantes no tempo ou no espaço, como se vê no excerto supracitado: “vindo das alturas de
1929”, “no rio Baquiá Preto nas ilhas de Gurupá”, por exemplo. No entanto, sabe-se que
Jurandir, além de fazer uso frequente e proveitoso do memorialismo, também foi, como disse
a pesquisadora antes mencionada, incansável pesquisador bibliográfico de tudo que envolvia
o assunto de sua escrita literária do Extremo-Norte: a gente miúda de sua terra natal, o Marajó,
e suas grandes cercanias, que são o Norte brasileiro e a Amazônia, nem toda ela brasileira. O
ser humano e a terra – todo o resto decorrendo desse binômio, nem sempre com seus
elementos em harmonia um com o outro ‒ constituem o foco central de interesse da obra de
Jurandir.
Em relação a esse hábito de frequente pesquisador mantido por Jurandir, em sua vasta
correspondência, o autor esteve constantemente referindo-se a livros, fossem estes
relacionados às áreas do conhecimento, como literatura, geografia, filosofia, antropologia,
religião, entre outras áreas, fossem relacionados à nacionalidade dos autores, assim como aos
gêneros literários a que as obras pertencem, ou à forma (verso ou prosa) ou à época em que
foram escritos. Essa diversidade recebe ênfase na pesquisa citada de Regina da Costa, que,
em levantamento feito, lista uma grande quantidade de livros, jornais e periódicos em geral,
sejam aqueles efetivamente lidos por Jurandir, sejam os referidos pelo narrador e por
personagens em seus romances. Entre estes, seu levantamento engloba, por exemplo, os livros

37
Vide em nossas referências a tese de doutorado Dalcídio Jurandir: leitor e criador de personagens-leitores no
Ciclo do Extremo Norte.
55

As mil e uma noites ( 1704), de Antoine Galland (1646-1715)38; A divina comédia (1321), de
Dante Alighieri (1265-1321); Hamlet (1601), de William Shakespeare (1564-1616); Dom
Quixote (1605 e 1615), de Miguel de Cervantes (1547-1616); As dores do mundo (1850), de
Arthur Schopenhauer (1788-1860); O comedor de ópio (1860), de Baudelaire (1821-1867);
Crime e castigo (1866) e Os irmãos Karamazov (1880), de Dostoiévski (1821-1881); Guerra
e paz (1869) e Ana Karenina (1877), de Tolstói (1828-1910); O primo Basílio (1878), de Eça
de Queiroz (1845-1900); A carne (1888), de Júlio Ribeiro (1845-1890); Dicionário prático
ilustrado (1910), de Jaime Séguier (1860-1932); além de jornais, revistas e almanaques, como
por exemplo: A Província do Pará (1876-2001), La hacienda (1907-1944, revista norte-
americana escrita em português e espanhol), Revista Brasil agrícola (1869-1891) e
Almanaque agrícola brasileiro39. Então, aqui se tem uma pequena mostra da variação leitora
de Jurandir que, no entrecruzamento dos dados, se espraia por nações ou continentes, épocas
e seus estilos, além de autores, os gêneros e as formas em que estes escreveram suas obras e,
ainda, os suportes sobre os quais registraram seus escritos, no âmbito de distintas áreas do
saber e múltiplas temáticas.
Tais leituras empreendidas pelo marajoara (tanto quanto aquelas às quais apenas fez
referência), sem sombra de dúvida, seriam também aproveitadas pelo autor como matéria
constitutiva de seu universo ficcional, inclusive na constituição de hábitos cotidianos de
grande número de personagens. Tudo despertava o interesse de Jurandir − um leitor atento e
meticuloso −, principalmente o que fosse voltado à temática da defesa dos oprimidos, em
especial aos mais próximos dele, aos amazônidas pobres (não importando a cor da pele ou o
credo), que ele denominou de “[...] aristocracia de pé no chão [...]” (MORAES, Eneida de,
1962, p. 30), “[...] farinha d’água dos meus beijus[...]” e “[...] criaturada grande de Marajó,
ilhas e Baixo Amazonas [...]” (MORAES, Eneida de, 1962, p. 29). Daí seu enorme interesse
voltado à leitura de livros relacionados à cultura brasileira; dentre estes, os que abordam a
temática da afrodescendência, como podemos perceber na correspondência enviada à esposa
Guiomarina, em 1937, quando se encontrava no presídio São José, em Belém, preso em
decorrência de ter participado da campanha contra o Fascismo/Integralismo: “[...] Manda
dizer ao Flaviano procurar com Gentil Puget os livros Negros brasileiros40 e Religiões

38
Trata-se da primeira versão ocidental, vertida do árabe para o francês por Galland. Em geral, considera-se a
versão de Richard Burton (1821-1890), em inglês, como a mais respeitada, lançada em diversos volumes, de
1885 a 1888.
39
COSTA, Regina (2019, p. 51) informa que a entrada desta revista no mercado editorial brasileiro ocorreu anos
finais do século XIX e anos iniciais do século XX.
40
Trata-se do livro O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise (1934), do alagoano Arthur Ramos
(1903-1949), que exerceu a medicina psiquiátrica e foi destacado intelectual da área de estudos da sociedade
56

negras41 que preciso estudar aqui. Não sei onde está Os Corumbas42. Parece que eu tenho aí.
Estou bem. Sinto-me forte. O reumatismo dos dedos não há mais [...]” (JURANDIR, 1954, apud
NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 33).
Esse espírito pesquisador dalcidiano movia o autor a fazer inúmeras anotações de tudo
que lhe fosse possível acerca da temática de seus romances. Por onde quer que tenha andado,
sempre estava atento e providenciando anotações de dados que julgava relevantes para compor
seus 10 romances do Extremo-Norte, assim como seu romance do Extremo-Sul − Linha do
Parque −, fato que não lhe poupava trabalho, pelo contrário. Na mesma carta referida
anteriormente destinada à amiga Divina (a mesma com data estimada de março ou abril de
1954), reclamava:

Agora à tarde, ocupo-me em ordenar notas para o começo de novos


capítulos. Mas me falta algum material, não muito necessário, mas que
serviria para consulta. [...]
É uma luta estar rebuscando as notas, combinar meios e modos para iniciar
a elaboração de um capítulo (JURANDIR, 1954, apud NUNES, B.;
PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 175).

O excerto acima diz respeito a notas escritas a partir de pesquisas realizadas pelo
próprio Dalcídio Jurandir in loco, colhidas em conversas e entrevistas com operários do
município de Rio Grande, relacionadas ao romance Linha do Parque. O autor dá ênfase às
dificuldades de pôr em ordem os papéis com anotações de consulta que usaria para elaborar o
início de novos capítulos para seu volumoso romance. Nesse caso, o romancista cumpria uma
tarefa do Partidão, conforme revela Moacir Costa Lopes:

Em 1950, Dalcídio era repórter do jornal do Partido, a Imprensa Popular, e


foi incumbido de passar uns tempos no Rio Grande do Sul em pesquisas
acerca do operariado e dos marítimos no porto [da cidade] do Rio Grande,

brasileira, abrangendo temas voltados para o folclore, a antropologia, a etnologia e a psicologia social, ainda
contribuindo de maneira especial para os estudos sobre a identidade cultural brasileira, destacando-se nessa área
nos estudos sobre a comunidade negra. Escreveu, também, entre outras obras: Primitivo e loucura (1926), As
culturas negras no Novo Mundo (1937) e Cultura e ethos (1945).
41
Trata-se do livro Religiões negras: notas de etnografia religiosa (1936), do baiano Edison Carneiro (1912-
1972), militante do PCB e amigo de Jorge Amado. Estudioso de Direito e Sociologia, foi também poeta, jornalista
e folclorista, destacando-se em estudos de temática afro-brasileira. Escreveu, também, entre outras obras: Negros
bantos (1937), Antologia do negro brasileiro (1950) e A conquista da Amazônia (1957).
42
Trata-se do romance Os Corumbas (1933), considerado pela crítica literária, de modo geral, como obra
integrante da 2ª fase do Modernismo brasileiro, também denominada, por parte dos estudiosos, de Neorrealismo.
Mais recentemente pode ser chamada de Romance de 30. Foi escrito pelo sergipano de origem paulista Amando
Fontes (1899-1967). Trata-se do romance de estreia e obra-prima do autor que, com este livro, venceu o Prêmio
Felipe de Oliveira. Publicou também outro romance: Rua do Siriri (1937). Fontes foi funcionário público como
agente fiscal do imposto de consumo, na cidade de Salvador, além de advogado e político, exercendo o cargo de
deputado federal por Sergipe, em três mandatos.
57

tendo que infiltrar-se entre os marítimos e portuários e demais classes


operárias. Como escritor, maior que jornalista, colheu material abundante
para escrever seu livro. De sua experiência e contatos no seio da militância
política local, surgiu o livro Linha do Parque [...] (LOPES, apud NUNES,
B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 210).

Com relação à pesquisa para a escrita dos romances do Extremo-Norte, quando


Jurandir já se encontrava morando no Rio de Janeiro, era comum que recorresse aos irmãos e
amigos, para que estes lhe colhessem notas sobre assuntos diversos, já que tinha imensas
dificuldades para viajar, relacionadas à falta de tempo, por causa de seu trabalho como
jornalista, mas principalmente por dificuldades financeiras. Eis um exemplo desse fato em
carta a amigo:

Nunes
Peço-te as seguintes notas:
Peregrino Júnior escreveu que a cobra grande do Castelo, a Norato, é que faz
chover todas as vezes que há procissão de N.S. de Belém. É a tal da cabeça
embaixo do altar, de que Bopp tirou o poema.
Gostaria da confirmação disso, ouvindo os moradores da Sé e do Castelo.
Flaviano poderia tirar notas. Faz um jeito de ver se ele faz, o malandro. No
Porto do Sal, poderá haver vestígios (JURANDIR, 1954, apud NUNES, B.;
PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 163).

A passagem dá mostras de que Dalcídio Jurandir considerava a verossimilhança fator


de suma importância para a construção de seu universo ficcional, como salientou em um de
seus artigos de crítica aqui estudados, “A realidade histórica no romance”, em que considerava
que o aproveitamento dos dados colhidos em notas torna a realidade mais concreta ao leitor e
enriquece a capacidade imaginativa do autor. Por isso, as notas tomadas são de preciosa
utilidade para a construção dos romances aqui estudados. Mas, enquanto a memória própria
de Jurandir dá um sustentáculo maior ao romance Chove nos campos de Cachoeira, no qual
o caráter autobiográfico emerge com grande força, a memória alheia – também presente em
Chove nos campos de Cachoeira − é que fala mais alto em Linha do Parque, tornando-se de
grande relevância para a montagem de seu romance do Extremo-Sul, o qual Jurandir concebeu
a partir de contato direto com a realidade da cidade portuária e industrial do Rio Grande,
retratando as pessoas com quem teve convivência, na sua dura luta no trabalho e nas
manifestações trabalhistas, suas famílias e seus afazeres em casa, por exemplo. Nesse caso, a
verossimilhança buscava uma realidade de caráter revolucionário, de luta de classes, focada
centralmente no operariado.
58

Com essas últimas considerações, aproveitamos para dar um rumo final à nossa linha
de raciocínio sobre a compreensão dalcidiana a respeito do ofício de escrever romances,
apresentando uma síntese desta seção. Assim, observamos que Jurandir, na escolha das
temáticas de sua obra, optou sempre por dar protagonismo aos pobres e excluídos, sejam estes
caboclos amazônidas do Marajó, como pescadores, ribeirinhos ou vaqueiros, em seu romance-
embrião do Extremo-Norte; sejam estes proletários, como portuários, marítimos e operários
de fábricas, por exemplo, em seu romance do Extremo-Sul. Então, Jurandir retratou uma
realidade social injusta a ser denunciada, fato que se dá tanto em seu romance Chove nos
campos de Cachoeira, livro este escrito, no geral, de acordo com a estética dos romances de
30 no Brasil, quanto em Linha do Parque; neste caso de acordo, no geral, com ideário da
estética soviética do Realismo Socialista. Ressalte-se que não escreveu o conjunto de sua obra
ao acaso ou ‘ao correr da pena’, pelo contrário: traçou um projeto literário, seguiu um
planejamento, de cujos parâmetros procurou não se afastar, sempre demonstrando ter
profundo domínio da técnica narrativa romanesca, sem também nunca se esquecer de suas
preocupações sociais, que não surgem em vão, já que desde cedo em sua vida estiveram
atreladas ao seu pensamento político-ideológico esquerdista.
Então, para Jurandir, a escrita de um romance deve estar ligada ao tema da defesa da
classe social pobre, à defesa dos excluídos, das minorias, dos injustiçados em geral, mas pari
passu a esse caráter de escritura engajada e solidária, de luta contra as desigualdades, o
marajoara concebia o romance como uma obra de arte de elevado valor estético. Em relação
ao caráter combativo (FURTADO; BARBOSA, T. A. S., 2010), sempre presente em seus
romances, este toma a forma de duas vertentes nos artigos de crítica literária de Jurandir.
Quanto aos publicados em periódicos do Pará, denunciam a existência de uma imensa massa
de desvalidos − estes bem retratados no povo pobre do Marajó, em Chove nos campos de
Cachoeira. Na denúncia, o autor almejaria a implantação de políticas públicas
governamentais que melhorassem as condições de vida desses desabençoados; já a outra
vertente está ligada à defesa da causa operária, contra a exploração dos trabalhadores pelos
patrões, e é marcado pela “[...] fundamentação ideológico-partidária [...]” do PCB (SANTOS;
FURTADO, 2016, p. 5), em que o autor almejaria por uma revolução em que o povo tomasse
o poder político, visando ao fim das lutas de classe. Esse segundo enfoque é fartamente
encontradiço em periódicos de esquerda publicados por Jurandir no Rio de Janeiro, além de
dar conformação à escrita de Linha do Parque.
Além de evitar temas surrados e enredos fáceis, que pequem por causa de imprecisões
e esquematismos, para Jurandir, para alguém se tornar um romancista, este deveria ir além das
59

ideias de ter talento e vontade de escrever. Implica sempre ter um projeto de escrita da obra
literária, em que os elementos estruturantes do universo ficcional estivessem na justa medida,
contribuindo para a coerência interna da obra. Por causa disso, a ação deveria progredir a
partir da imaginação do autor, sem no entanto estar desligada da realidade (dos dados
históricos, por exemplo), que a alimenta e dá sustentáculo verossímil à ficção. Daí a
importância de um espaço-tempo dando coerência a essa realidade, povoada esta por
personagens que pensem, falem e ajam por si mesmos, com o menos possível de intromissão
do narrador, que com a exploração adequada das descrições psicológicas e momentos de
introspecção, retrata-as com a densidade humana necessária, inclusive os personagens tipos,
corporificadores da imagem do povo. Ao mesmo tempo, deveria ser evitada nas personagens
a conformação simplista, estereotipada e mesmo maniqueísta, o que requeria do romancista
fugir à mesmice, buscando por personagens de camadas sociais inexploradas, como no caso
dos ferroviários de Alina Paim.
Assim como Jurandir preconizava evitar pressa na composição da trama narrativa,
também considerava de imensa relevância que o autor não estivesse ansioso por publicar. Em
vez disso, deveria maturar ideias, reescrever passagens de gosto duvidoso, burilar a
linguagem, trabalhando-a para atingir um alto grau de metaforização. Sobre tal aspecto, o
estudioso da obra de Jurandir, Paulo Nunes, fez a seguinte afirmação:

A linguagem dos livros do escritor de Ponta de Pedras é inquieta, criativa e


inovadora tanto no plano semântico, quando as palavras adquirem
significações novas, quanto no plano sintático, quando da frase e do período
florescem vocábulos entremeados em construções totalmente novas
(NUNES, P. J. M., 1989, p. 6).

A linguagem de Jurandir inquieta seus leitores pelo poder que tem de desvelar as
injustiças e desigualdades enraizadas historicamente em nossa sociedade. Por outro lado, a
criatividade e a inovação no uso da linguagem, segundo Jurandir, não deveriam estar
dissociadas da realidade brasileira (e amazônida), no que tem esta de riqueza e tipicidade,
sempre com o cuidado para não descambar para os excessos do apenas pitoresco. Por isso
Dalcídio Jurandir valorizava bastante a fase de pós-textualização de seus romances, investindo
razoável tempo em processos de revisão, refacção, inclusão e exclusão de episódios ou
passagens de seus romances. E não menos valor Jurandir dava à fase de pré-textualização de
suas obras. Na verdade, é espantoso o investimento de tempo e esforço físico e mental de
Jurandir, no que diz respeito ao aproveitamento da observação e da memória ‒ esta sempre
reelaborada pelos filtros da imaginação e criatividade, além do labor do hábito da reescritura ‒ própria
60

e alheia (muitas vezes, a partir de anotações) e pesquisa bibliográfica, para solidificar a


realidade a partir de dados que enriquecessem – pela caracterização, por exemplo − e
consolidassem o mundo fictício de Jurandir nas páginas de seus livros. Não devemos esquecer,
no entanto, que o autor faz uso dos dados da observação e da memória apenas após reelaborá-
las por intermédio dos filtros da imaginação e criatividade, além do labor do hábito da
constante reescrita do texto literário.
Não poderíamos encerrar esta seção sem antes ressaltar que em grande medida esta
sinopse sobre o pensamento de Jurandir a respeito da escrita de romances é válida para os
procedimentos do escritor marajoara em relação à feitura de Chove nos campos de Cachoeira
(e de todo o Ciclo do Extremo-Norte), assim como em relação à feitura de Linha do Parque,
acrescentando-se que, no caso deste, a realidade brasileira retratada na obra é a de uma cidade
do Sul do país, não a de uma “vila de cartão postal” (JURANDIR, 1997, p. 205) na Amazônia,
dicotomia facilmente perceptível pelo leitor. Rio Grande é uma cidade industrializada, em que
o foco central da ação destaca as lutas do proletariado, com apoio de entidades ligadas ao
trabalhismo, como a Sociedade União Operária, no contexto da História contemporânea –
daquela época, claro − e da história interna do PCB que, em muitos casos, direcionou tais
lutas.
61

3 APROXIMANDO-SE DOS EXTREMOS: CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA


E LINHA DO PARQUE: GÊNESE DAS OBRAS, FORTUNA CRÍTICA, E
ENQUADRAMENTO ESTÉTICO-LITERÁRIO

Como prosador, tomando parte em um concurso de romances, organizado pelo


jornal ilustrado “Dom Casmurro”, e “Vecchi Editor”, do Rio de Janeiro, Dalcídio
obteve o 1º. lugar com seu romance “Chove nos campos de Cachoeira”, vazado em
moldes modernos, tão ao sabor do espírito dos escritores da época atual
(AZEVEDO, 1990, p. 168).

Conhecer a gênese dos dois romances nos permite, então, situar o autor e as obras no
contexto social, histórico, político e estético de sua produção e publicação, o que nos serve
como um ponto de partida e uma salvaguarda. Já a fortuna crítica das obras aqui analisadas
nos permite iluminar inicialmente nosso caminho com o lume de outros estudiosos, servindo
também como uma espécie de Fio de Ariadne, para um retorno seguro às próprias obras
estudadas, que constituem nosso corpus de análise, além de oferecer parâmetros de
comparação, os quais podem ser complementados, aprofundados ou até mesmo serem
utilizados como contrapontos, permitindo tomadas de decisão sobre rumos a serem seguidos,
critérios e seleção de categorias de análise e interpretação do corpus, assim como discernir
melhor os pontos s serem aprofundados e pormenorizados, por causa de sua essencialidade à
pesquisa, assim como os pontos a serem enfocados mais lateralmente, por causa de sua
natureza de complementaridade.
As estéticas literárias às quais estão ligados os dois romances não são tomadas como
circunscrições fechadas, mas sim como propostas para melhor situar os romances em seus
sistemas socioculturais, além de possibilidades de enquadramento destes em subgêneros que,
em vez de excludentes, por vezes apresentam caráter de imbricamento em suas classificações,
como no caso do romance do Extremo-Sul.
De início, consideramos que Chove nos campos de Cachoeira teve sua gênese em uma
remota versão, iniciada e acabada em 1929, quando Jurandir era bem jovem, tendo apenas 20
anos de idade. Por causa disso, ele próprio afirmou que deu forma e ideias pouco maturadas a
um texto nem um pouco burilado, contendo este uma pesada carga e pretensão de estilo
(JURANDIR, 1941). Nesse período, primeiramente esteve trabalhando como secretário
tesoureiro da intendência de Gurupá, no Baixo Amazonas. Depois, como balconista em um
barracão à beira do rio Baquiá Preto, onde também foi professor de dois meninos, filhos do
seu patrão. Uma década depois, quando trabalhava para a Diretoria de Educação e Ensino do
Estado do Pará, em 1939, e estava em Salvaterra, no Marajó, exercendo a função de inspetor
62

escolar, o autor retomou seus escritos, reescrevendo seu romance, para enviá-lo ao concurso
literário nacional Vecchi-Dom Casmurro, do qual saiu vencedor do 1º prêmio. Na verdade,
foram inscritos dois romances seus, pois os amigos de Jurandir, Maciel Filho e Abguar Bastos,
enviaram de São Paulo para o concurso no Rio de Janeiro um outro romance também recém-
concluído por Jurandir, naquela ocasião ainda denominado de Marinatambalo43, que anos
depois, em 1947, seria publicado com o título de Marajó.
O narrador em Chove nos campos de Cachoeira tem como estratégia narrativa, para
melhor instaurar na mente do leitor o universo romanesco, a perspectiva narrativa dos dois
personagens centrais, os coprotagonistas Alfredo e Eutanázio, para, assim, acompanhando-os
em seus vagares pelos espaços-tempos cachoeirenses, deslindar todo um microcosmo rico de
dramas pessoais que envolvem, além desses dois personagens, todos os outros (dona Amélia,
major Alberto, Mariinha, Andreza, Lucíola, Dadá, Irene, Felícia, doutor Lustosa, doutor
Campos, Dionísio, Salu, etc.), que povoam as páginas de Chove nos campos de Cachoeira.
Os dois, Eutanázio e Alfredo, moram no chalé de madeira de seu Alberto Coimbra, secretário
da vila (depois, intendência) de Cachoeira, e de dona Amélia, dona de casa. Os dois não são
oficialmente casados, sendo Alfredo e Mariinha − criança cuja morte no enredo de Três casas
e um rio deixa dona Amélia e Alfredo desolados −, filhos do casal, enquanto Eutanázio é filho
de seu Alberto com esposa já falecida, cujas irmãs (de Eutanázio), em número de três, entre
elas, uma cega, vivem em outro lugar: Muaná, ali mesmo no Marajó.
Nas palavras de Dalcídio Jurandir, Chove nos campos de Cachoeira é “[...] o texto-
embrião do qual sai o quadro romanesco em dez volumes sobre a vida paraense em termos de
ficção” (JURANDIR, 1997, p. 12). É embrião não só por ser o primeiro livro publicado pelo
marajoara, mas também por já estarem nele contidos todos os temas, manifestos e latentes, a
serem desenvolvidos a posteriori nos outros romances do ciclo, além dos problemas sociais a
serem denunciados, também, como ecos de vozes dos injustiçados, que Jurandir não quer que
permaneçam condenados ao esquecimento, vítimas da pobreza e do desamparo reinantes, em
um rincão do país onde as benesses sociais estavam (e, de certa forma, ainda estão) bem longe
de chegar. Além disso, somados a Alfredo, muitos personagens desse romance continuarão
povoando as páginas dos outros livros do Ciclo, seja por vivenciarem os episódios, de fato,
como é o caso de dona Amélia e major Alberto, seja por estarem presentes na memória de
Alfredo, como é o caso de Mariinha, Eutanázio e Felícia.

43
Seria o primeiro nome do arquipélago de Marajó, dado pelos indígenas que habitavam a região. Antes do título
Marinatambalo, houve outro título: Missunga, apelido do personagem central de Marajó ‒ título definitivo da
primeira e das outras edições deste livro.
63

No entanto, não podemos esquecer que Jurandir, a princípio, considerou que o


romance inaugural de seu ciclo romanesco seria Três casas e um rio, como se observa em
passagem de carta do escritor ao irmão:

Rio, 8 de junho 948.


Ritacínio
[...]
Estou terminando a cópia final do primeiro volume da série “Extremo
Norte”: Três casas e um rio. São quase trezentas páginas datilografadas
(JURANDIR, 1948, apud NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R.,
2006, p. 52. As aspas são do autor).

Mais tarde, na já mencionada entrevista concedida à Eneida de Moraes, em 1960, para


o jornal paraense Folha do Norte, o autor mudou de opinião, afirmando que “Toda a série de
romances que estou escrevendo não é nada mais que o desenvolvimento dos temas
apresentados em Chove nos campos de Cachoeira, aparecido em 1941” (JURANDIR apud
MORAES, Eneida de, 1960, p. 32)44. Daí que Jurandir mais tarde, em uma espécie de
apresentação da 2ª edição de Chove nos campos de Cachoeira – que é ao mesmo tempo um
resumo e uma adaptação do “Prefácio” da edição de 1941 −, afirmou: “É o texto-embrião do
qual sai o quadro romanesco em dez volumes, sendo sete publicados e três inéditos”
(JURANDIR, 1976, p. 13).
Já Linha do Parque teve sua gênese de modo bem diferente da de Chove nos campos
de Cachoeira, surgindo a partir de viagens feitas por Jurandir ao Rio Grande do Sul, mais
precisamente a Porto Alegre e Rio Grande, como repórter do jornal Imprensa Popular, para
escrever sobre a tragédia conhecida como O Massacre da Linha do Parque, ocorrida em 1º de
Maio de 1950, na cidade do Rio Grande. Nessa época, Jurandir já tinha 41 anos de idade, um
pouco mais que o dobro de quando começou a escrever a versão inicial de Chove nos campos
de Cachoeira e em torno de 10 a mais do que quando publicou esse romance. Estava mais
experiente, portanto45. Já havia publicado Marajó e já havia concluído Três casas e um rio.

44
Cf.: MORAES, Eneida de. Eneida entrevista Dalcídio. Asas da palavra. Belém: UNAMA, v. 3, n. 4, 1996, p.
32-33. Texto adaptado para o livro Romancistas também personagens, de Eneida de Moraes, publicado em 1962.
Cf. em nossas referências.
45
Além dos romances publicados e o que já estava pronto para publicação, Jurandir realizou muitas pesquisas,
em decorrências de várias reportagens publicadas em jornais cariocas de esquerda, em que desempenhou diversas
funções, além de sua a atuação no antigo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), escrevendo textos de
propaganda sobre educação sanitária (FARIAS, 2019, p. 8), e das duas viagens ao exterior (Rússia, em 1952, e
Chile, em 1953). Participou também, em 1945, do Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, entre outros
eventos. Também residir no Rio de Janeiro e trabalhar em jornais foi crucial para que Jurandir tivesse contato
com intelectuais (engajados ou não na luta pela causa socialista), fato que só lhe acrescentou enriquecimento
cultural e experiência na área da escrita (literária ou não).
64

Além de ter trabalhado em várias funções como jornalista na imprensa esquerdista, por essa
época fez duas viagens internacionais: a primeira, em 1952, para a União Soviética (URSS),
junto com uma delegação brasileira composta por escritores e outros militantes do PCB, entre
eles, Graciliano Ramos. O propósito era conhecer melhor o mundo socialista, para, mais tarde,
poder divulgá-lo com uma boa dose de proselitismo46 – como orientava o Partido – em textos
jornalísticos e literários. A segunda viagem foi para o Chile, em 1953, onde participou então
do Congresso Continental de Cultura, ocorrido em Santiago. Aliada à experiência, veio a
maturidade, forjada pelo tempo, pelo trabalho duro mal remunerado e pelo sofrimento, fatores
que ajudaram a presidir as escolhas de escrita do autor marajoara.
Nessa época, o autor já morava no Rio de Janeiro. Sabe-se que empreendeu três
viagens para o Rio Grande do Sul (LINHARES, 1987), com o intuito de pesquisar a realidade
social, histórica e cultural do movimento operário no contexto desse estado, em especial da
cidade do Rio Grande, para ficcionalizar sob o formato romanesco o movimento de lutas
operárias por melhor qualidade de trabalho e de vida, em virtude de encomenda feita pelo
PCB. Por causa disso, o romance deveria ser elaborado seguindo um ideário próprio do
partido: o Realismo Socialista, que teve suas linhas-diretrizes estabelecidas pelo partido
comunista da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), implantado por lá a
partir de 1934, quando da realização do I Congresso da União dos Escritores Soviéticos, tendo
como liderança estética o escritor Máximo Górki e como liderança política Andrei Zhdanov.
Tal estilo chegou ao Brasil para aqui tornar-se uma fórmula a ser seguida como padrão
estético, em 1948, imposto pelo Comitê Central do PCB aos escritores filiados ao Partido
(SANTOS, Alinnie, 2013, p. 28).
Continuando nessa perspectiva de comparações entre consonâncias e dissonâncias
entre os dois romances, a fim de visualizar melhor a dicotomia na obra dalcidiana, podemos
afirmar que tanto o romance inicial do Ciclo do Extremo-Norte quanto Linha do Parque,
quando de suas publicações, tiveram imediata recepção, registrada em periódicos,
principalmente do Rio de Janeiro. De modo geral, comentários de críticos47 sobre a qualidade
e a importância das obras no quadro geral da literatura brasileira publicada então. No caso do
romance Chove nos campos de Cachoeira, o jornal D. Casmurro pretendeu realizar um
concurso de críticas literárias, que deveriam ter como tema os romances premiados: Ciranda
(2º lugar) e Chove nos campos de Cachoeira (1º lugar).

46
Conferir em TORRES, 1967.
47
Como, por exemplo, Paulo Fleming, Josué Montello, Omer Mont’ Alegre, Newton Braga,Guilherme de
Figueiredo e Álvaro Lins. Vide mais em nossas referências.
65

Com base em informações do pesquisador Alex Moreira, autor da dissertação A crítica


literária aos romances Chove nos campos de Cachoeira, Marajó e Três casas e um rio na
imprensa do Rio de Janeiro, em 2015, percebemos que

Quando foi publicado em 1941, Chove nos campos de Cachoeira, foi em


larga escala divulgado em jornais e revistas da cidade do Rio de Janeiro. O
jornal Dom Casmurro contribuiu significativamente dedicando em diversas
edições várias páginas de publicidade ao livro e ao romancista (MOREIRA,
2015, p. 67).

Houve textos que se limitaram a um tipo de “sinopse ligeira” sobre o romance, mas
houve outros que buscaram um teor analítico-interpretativo mais aprofundado, uns tendendo
ao elogio um tanto escancarado, devido aos autores desses textos estarem vinculados ao Dom
Casmurro; outros, procurando apontar defeitos nos romances, além de salpicarem algumas
expressões elogiosas aos romancistas. Em relação a esses últimos, destaca-se a crítica48 que
Álvaro Lins fez ao romance dalcidiano, intitulada Romances de concurso, texto que oscilou
entre elogiar o que seriam as qualidades e apontar o que seriam os defeitos da obra inicial de
Jurandir, que seria “literatura efêmera, transitória, acidental” (LINS apud FURTADO, 2017,
p. 102), entre outras falhas, como o caráter caótico e bárbaro, apontado por Lins, da escrita
dalcidiana. Mas este crítico também acabou por citar qualidades no romance de Jurandir:
“Talvez que os seus recursos mais positivos estejam no monólogo, na introspecção, na análise
psicológica” (LINS apud FURTADO, 2017, p.105). De modo geral, Lins imprimiu à crítica
que escreveu um tom ambíguo, em que apontou falhas na escrita de Jurandir, mas,
concomitantemente, defendeu-o como um romancista em pleno desenvolvimento de suas
qualidades como escritor original e criativo.
Um outro artigo que merece referência é o de Omer Mont’Alegre: Dalcídio Jurandir:
um romancista da província, publicado por Dom Casmurro, em 194049. Nele, o crítico deu
ênfase ao percurso trágico de Eutanázio em seu amor unilateral e obsessivo por Irene, que o
tratava com desprezo e escárnio. O drama de Eutanázio representa bem o conjunto dos
personagens, em “[...] um livro forte, dominador, [em que] corre o drama de uma decadência”
(MONT’ALEGRE, 1940, p. 8). Mont’Alegre refere-se ainda à vida caracterizada pela falta de
realizações de Felícia e de major Alberto, lamentavelmente sem se referir, por exemplo, às de

48
Publicada no jornal Correio da manhã, em 06/12/1941.
49
MONT’ALEGRE, Omer. Dalcídio Jurandir: um romancista da província. In: Dom Casmurro. Rio de janeiro,
07 set. 1940, p. 08.
66

Alfredo, de Lucíola e de dona Amélia, também tão relevantes ao enredo de Chove nos campos
de Cachoeira.
No caso do romance Linha do Parque, chegou a nos surpreender, de início, o fato de
que, antes do lançamento do livro, diversos anúncios de sua futura publicação saíram em
periódicos, notadamente de viés da esquerda brasileira. Por exemplo, no periódico carioca
Leitura, de dezembro de 1958, saiu este anúncio: “Será lançado nos primeiros dias de janeiro
[de 1959], pela Editora Vitória, o novo romance de Dalcídio Jurandir ‘Linha do Parque’. Do
mesmo autor a Martins lançará em junho o romance ‘Belém do Gran Pará’” 50. No periódico
O jornal, de 04/01/1959, na coluna “O jornal literário”, Valdemar Cavalcanti, sob o título de
“Nomes, fatos, notícias”, publicou o seguinte: “No prelo novo romance de Dalcídio Jurandir:
‘Linha do Parque’, que sairá em dois volumes, com capa de Carlos Scliar.”51 Tempos depois,
quando o livro é impresso, acabou sendo enfeixado em apenas um volume. Já em 14/03/1959,
saiu a notícia do lançamento do extenso romance de Jurandir, notícia da qual reproduzimos as
primeiras linhas: “Interrompendo sua série de romances do Pará, iniciada há anos com ‘Chove
nos campos de Cachoeira’, acaba o sr. Dalcídio Jurandir de publicar ‘Linha do Parque’,
romance em que fixa em traços indeléveis o movimento esquerdista no Extremo Sul do
País52”.
Ainda no mesmo periódico, O jornal, novamente na coluna “O jornal literário”, de
17/04/1959, o colunista Valdemar Cavalcanti, sob o título novamente de “Nomes, fatos,
notícias”, divulgou que “Dalcídio Jurandir foi assistir, em Porto Alegre, ao lançamento de seu
romance ‘Linha do Parque’, cuja ação se desenrola no Rio Grande do Sul. O escritor paraense
deverá fazer uma conferência naquela capital sobre a literatura brasileira53”. Seguem
comentários e alguma crítica ligeira, da qual destacamos aquela escrita por J. Guimarães
Menegale, por causa principalmente de seu título – Romance de inquietação social –
publicada no periódico Leitura54. Trata-se de crítica de tom encomiástico sobre o romance
fora do ciclo. Não considera o romance sectário, elogiando seus valores humanos, em que as
injustiças começavam a ser combatidas pelas consciências dos que almejavam por melhorias
de trabalho e de vida, apoiados principalmente por ideais anarquistas, de início.

50
Não foi possível encontrar nesse periódico nem autoria nem data exata, só a página: 63. Reproduzimos a escrita
‘Gran’ conforme consta no texto do jornal.
51
CAVALCANTI, Valdemar. Nomes, fatos, notícias. Segunda Seção: O Jornal Literário. Rio de Janeiro, 04 jan.
1959, p. 4.
52
O JORNAL. Linha do Parque. Rio de Janeiro, 14 mar. 1959. Segunda Seção, p. 3.
53
CAVALCANTI, Valdemar. Nomes, fatos, notícias. Segunda Seção: O Jornal Literário. Rio de Janeiro, 17 abr.
1959, p. 4.
54
MENEGALE, J. Guimarães. Leitura. Rio de Janeiro, 1959, p. 22-23.
67

O crítico faz referência à inquietação social, presente no enredo do romance, revelada


na “[...] existência regalada dos patrões, das classes favorecidas pelo dinheiro e pela política”,
em contraste com “[...] a vida subalterna, aflitiva dos operários [...]” (MENEGALE, 1959, p.
22). Assim como Cavalcanti, Menegale considerava Linha do Parque um êxito em se tratando
de publicação de romance brasileiro contemporâneo, como se pode confirmar pelas palavras
de Cavalcanti: “Apesar do êxito já assegurado de ‘Linha do Parque’, romance do Sul, vai
Dalcídio Jurandir retomar dentro em breve sua linha novelística do Norte, voltando à série
paraense com ‘Belém do Grão Pará’” (CAVALCANTI, 1959, p.3).
Assim, verificamos que a maneira de vir a público sob forma de impresso em livro
ocorreu de forma bem diferente entre um romance e o outro. Em se tratando de Linha do
Parque, como já foi mencionado, o livro resultou de encomenda do PCB, e, por causa disso,
o autor deveria escrevê-lo de acordo com uma fórmula que agradasse à cúpula dirigente do
partido. Por exemplo, a temática deveria ser proletária e revolucionária, retratando os embates
causados pelas lutas de classes, da qual deviam emergir heróis do seio do povo, heróis
positivos lutando não exatamente pelo amor de uma mulher ou pela segurança social da
família, mas em prol da causa, do povo, do partido. Como positivos, os heróis não deveriam
titubear, sequer pensar em desistir da luta pela causa. Por outro lado, a importância dada à
forma não foi quase discutida no âmbito da estética literária do Realismo Socialista, tópico a
ser aprofundado mais tarde nesta pesquisa.
Como Jurandir não seguiu ao pé da letra a cartilha de exigências, seu romance foi
boicotado, ficando anos mofando em gavetas dos dirigentes de alto escalão do PCB.
Entendamos melhor essa situação: Jurandir afirmou ter escrito o livro entre 1951 e 1955. É o
que registrou sua conterrânea e amiga Eneida de Moraes. (MORAES, Eneida, 1962, p. 27).
Também José Condé noticiou no jornal Correio da manhã, de 17/02/1959, na coluna
“Escritores e livros”, sob o título de “Em poucas linhas” o seguinte: “Já nas livrarias o novo
romance (o primeiro de 1959) de Dalcídio Jurandir: ‘A linha do Parque’ (Edição Vitória)”. O
fato é que o romance ficou engavetado no mínimo cinco anos, ainda com seu título provisório
de Companheiros. Entre algumas justificativas para a recusa da publicação, há uma que beira
o disparate: “Dalcídio abusa muito do emprego do e...” (PERALVA apud SANTOS, 2013, p.
41). Porém, o único trecho da obra de Jurandir que pudesse justificar essa afirmação, do abuso
do polissíndeto, é uma passagem de uma carta, enviada pelo jornalista Roberto Nunes para
Lourdes, neta de Luís Pinheiro: “Pois não houve o baile e o lago, e a libélula, e a casuarina, e
o bosque e o banco [...]” (JURANDIR, 2020, p. 430. Destaques nossos). No entanto, ficou
bem claro no romance que este trecho é passagem escrita por um jovem personagem, em seus
68

arroubos juvenis, o que justifica as extravagâncias de estilo, bem configuradas no exagero do


uso do polissíndeto.
É preciso esclarecer que em diversos estudos arrolados aqui, há uma constante
referência a esse boicote à publicação do romance de Jurandir. Na verdade, as regras
zhdanovistas não poderiam ser obedecidas ipsis litteris: uma vez que formuladas para serem
linearmente seguidas, só o poderiam caso fossem implantadas nas linhas e entrelinhas de
narrativas (contos, novelas, romances, por exemplo) que retratassem países de economia
planificadamente socialista, o que não era nem é o caso das terras brasileiras. Caso os enredos
retratassem uma situação dessa natureza, estariam fadados ao equívoco de não estarem
ancorados em uma realidade ficcional verossimilhante. Não que defendamos postulados de
uma desacreditada “teoria do reflexo” (EAGLETON, 2011, p. 91-93), já de muito considerada
falha e obsoleta como aporte teórico. Por outro lado, em face do que o crítico literário Jurandir
escreveu sobre, seria incongruente ao romancista que sua autoria se rendesse à pequenez de
fórmulas, esquematismos e estereotipagem, itens quase obrigatórios a um escritor-militante
(que teria de ser também medíocre), muito mais militante que escritor, o que não era o caso
de Dalcídio Jurandir.
No que diz respeito ao modo como veio a público, Chove nos campos de Cachoeira
foi impresso graças à premiação já mencionada, do muito divulgado concurso de romances
Vecchi-Dom Casmurro. No caso específico de Dalcídio Jurandir, o prêmio consistia na
publicação de seu livro e no recebimento de certa quantia em dinheiro. Segundo as bases do
concurso de romances promovido pelo Jornal Dom Casmurro e pela Vecchi Editora,

3º) − O “Premio DOM CASMURRO” constará de cinco contos de réis55,


oferecidos ao livro vitorioso pelo “DOM CASMURRO” e pela Vecchi
Editora que ficará no entanto, com direitos sobre uma edição de 5.200
exemplares (200 exemplares para publicidade, dos quais 50 serão entregues
ao autor do livro) (Dom Casmurro, p. 7, 12 abr. 1939).

Essa premiação foi responsável por dar notoriedade (pelo menos, temporária) para
Dalcídio Jurandir, mas “[...] não mudou a vida financeira do autor [...]” (LEAL, 2014, p. 86).
Possibilitou, no entanto, sua ida em definitivo para residir no Rio de Janeiro, naquela época
capital do Brasil e uma cidade mais propícia à vida de quem queria se dedicar à prática

55
São elucidativas as palavras de Pantoja sobre o valor do prêmio à época: “A propósito, um conto, do latim
‘computus’ (dez vezes cem mil), equivalia a um milhão de réis. Tem-se uma ideia aproximada do valor à época
comparando-se o preço de capa do próprio jornal ‘Dom Casmurro’, cujo exemplar com doze páginas custava mil
réis, como se vê à primeira página da edição de 159, de 27 de julho de 1940 [...]” (PANTOJA, 2019, p. 9).
69

jornalística e à escrita de obras literárias. Um ano depois, em 1942, o restante do núcleo


familiar, Guiomarina e os dois filhos, passaram a residir, definitivamente, no Rio.
Enfatizando aqui certas diferenças entre Chove nos campos de Cachoeira e Linha do
Parque, é necessário, então levar em consideração os seguintes dados: o primeiro não teve
denominação provisória56, como teve o segundo, cujo título primeiro seria Companheiros
(fato já mencionado por nós), que consideramos bem a propósito para uma obra sob os
auspícios do PCB. Aliás, trata-se de fato marcante na obra dalcidiana a escolha dos títulos de
suas obras. Ficaremos aqui com três exemplos: antes de ser impresso como Marajó ̶
reiteramos esse fato já mencionado ̶ , o romance primeiramente foi denominado Missunga;
depois, Marinatambalo; já Primeira manhã, antes de chegar a esse título, foi chamado
também de Primeira manhã no liceu; antes de ser Ponte do Galo, o romance foi intitulado de
O ginasiano.
Mas os títulos que foram adotados como definitivos na obra de Jurandir nos parecem
uma mais que feliz escolha do romancista. E tal procedimento, mais uma vez, revigora a
imagem que temos sobre a prática de escrita literária de um autor como Dalcídio Jurandir, que
pensava com calma as ideias, maturava-as com uma reflexão meticulosa, antes de tomar a
decisão final pelo título, que não seria simplesmente o mais belo e adequado, mas aquele com
uma valor semântico em que a carga de conotação permitisse ao leitor um leque de
possibilidades interpretativas ricas e inspiradoras tais que só os escritores de grande
envergadura são capazes de criar. É o que podemos perceber no capítulo XIX do romance-
embrião, denominado de “Chove nos campos de Cachoeira”, que é homônimo ao título do
livro, este que narra fatos iniciados em pleno verão, de campos secos e queimados, mas que
finda com a chegada das intermináveis chuvas, que renovam tudo no inverno amazônico,
alagando os campos e cercando o chalé, ilhando-o e a seus moradores: seu Alberto, dona
Amélia, Mariinha, Alfredo e Eutanázio, este último mais ilhado ainda em sua rede, que
também seria futuramente seu leito de morte.
Já o livro Linha do Parque recebeu este título em decorrência do episódio trágico que
motivou sua escrita, conhecido como “Massacre na Linha do Parque”, ocorrido em 1º de Maio
de 1950, na cidade do Rio Grande, quando operários, após festejarem a data com um churrasco

56
Não teve título provisório, mas teve autor provisório: Jagarajó, que foi o pseudônimo usado por
Dalcídio Jurandir, quando de sua inscrição no concurso Vecchi-Dom Casmurro. Mais curioso ainda é
que o nome de batismo e registro de nascimento do autor é Dalcídio Ramos Pereira, mas, a partir da
“[...] publicação de seu primeiro romance, o escritor assume definitivamente o nome artístico Dalcídio
Jurandir, assinando-se assim” (NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S.R., 2006, p. 49).
70

− “[...] em frente ao entroncamento de bondes, ao final da Linha do Parque, que era uma rota
de bondes bastante caracterizada pelo intenso tráfego de operários indo ao trabalho nos dias
úteis, hoje localizada próximo à entrada da zona urbana da cidade” (SAN SEGUNDO, 2012,
p. 1) −, saem em passeata pelas ruas do município, pedindo a reabertura da Sociedade União
Operária (onde a passeata teria seu fim), fechada pelo Ministério da Justiça. No confronto com
a polícia, 8 pessoas morreram: 6 manifestantes e 2 militares.
Retomando as citadas diferenças, consideramos que Chove nos campos de Cachoeira
veio a existir por causa de uma espécie de sonho de juventude (NUNES, B., 2004, p. 18),
esboçado num tempo de empolgação juvenil, para ser reescrito dez anos depois, com a
qualidade necessária que lhe rendeu o prêmio, possibilitando sua publicação pela Vecchi, que,
antes de ser motivo de satisfação ao autor, primeiro lhe causou certos dissabores, já que
demorou a ser impresso (período de pouco mais de um ano) e deixou Jurandir chateado, a
ponto de ter mencionado em carta a Nunes Pereira a resolução de tomar providências legais
contra a editora, por causa da demora no lançamento do livro, como se constata nesta
passagem: “Posso em combinação com o Clovis Ramalhete fazer a ação contra a Vecchi. Que
achas?” (JURANDIR, Cartas para Nunes Pereira, carta IV, 1941.)57 Porém, o livro foi
publicado, abrandando os sentimentos de revolta e frustração por parte do autor que, não
esqueçamos, teria um problema maior para enfrentar em relação à publicação de seu Linha do
Parque, 18 anos mais tarde.
Os problemas que motivaram o atraso na publicação de Chove nos campos de
Cachoeira não foram esclarecidos a contento, mas certamente não foram os mesmos ligados
à publicação de Linha do Parque − nem o atraso foi o mesmo, sendo considerado de pouca
monta no caso do primeiro −, relacionados certamente à logística de funcionamento de uma
editora comercial (a Vecchi, como sabemos), já assentada na praça há quase duas décadas,
com a preocupação necessária de se manter no mercado concorrido naquela época, com boas
publicações, diferentemente da Editorial Vitória, que apresentava preocupações bem
diferentes, já que era atrelada ao PCB, de onde viria seu sustentáculo econômico, não
dependendo exclusivamente do sucesso comercial em relação à venda de exemplares, pois
que estes já tinham endereço certo, por serem voltados para o público consumidor de
militantes ou simpatizantes do Socialismo.

57
NUNES, Paulo. Cartas amazônicas, a correspondência de Dalcídio Jurandir a Nunes Pereira [1940-1950?].
Trata-se de obra organizada, mas ainda não publicada. Jurandir citou Ramalhete porque este autor também foi
premiado no Vecchi-Dom Casmurro, mas em segundo lugar, com o romance Ciranda.
71

Quanto à Editora Vecchi, sabemos que foi fundada por um descendente de italianos,
Arthur Vecchi, em 1913. Foi pioneira na edição em terras brasileiras de autores estrangeiros
(romancistas ou não) como André Maurois, como Ibsen, André Gide, Schopenhauer,
Nietzsche, por exemplo. Tempos depois, a editora acabou por concentrar sua linha editorial
na publicação de obras infantojuvenis, como por exemplo os livros A gata borralheira, O gato
de botas, Aladim e a lâmpada maravilhosa, entre outros, além de famosas revistas em
quadrinhos, como Zagor, Gasparzinho e Tex, além da revista de humor Mad. Por causa de
dificuldades financeiras, a editora encerrou suas publicações em 1983. Em 2014, um
descendente da família, Artur Vecchi (homônimo do fundador, portanto), fundou uma nova
editora, a AVEC Editora, que, no momento, concentra suas publicações no nicho de mercado
da literatura fantástica.
Já sobre a Editorial Vitória, sabemos que foi fundada em 1944, tornando-se a substituta
das Edições Horizontes, então braço editorial do PCB, fundada no início de 1943. A Vitória
iniciou suas publicações com autores nacionais e estrangeiros, mas acabou se restringindo a
publicações ligadas, pela temática, ao Marxismo, publicando de 1953 a 1956, por exemplo, a
coleção de romances proletários chamada Romances do Povo (supervisionada por Jorge
Amado) e outros livros de orientação esquerdista, entre eles, A hora próxima (1955), de Alina
Paim; Linha do Parque (1959), de Dalcídio Jurandir; Minha experiência em Brasília (1961),
de Oscar Niemayer; Formação do PCB (1962), de Astrojildo Pereira, para ficar apenas nestes
exemplos. Mas a editora teve que fechar as portas quando adveio o Golpe Civil-Militar de
196458.
Então, pela Vecchi, Chove nos campos de Cachoeira foi publicado em 1941, enquanto
pela Editorial Vitória saiu o Linha do Parque, em 1959, como já informamos antes. Um
simples cotejo entre a história editorial de um e de outro romances põe em evidência notórias
e sutis diferenças, mas também acaba mostrando similitudes e curiosidades que se revelam
instigantes no estudo que aqui nos propusemos realizar. Há alguns anos, por exemplo, viveu-
se uma polêmica quanto às publicações de Chove nos campos de Cachoeira, que já chegou à
8ª edição, o que mais adiante será melhor esclarecido. Além da 1ª edição de 1941, publicada
pela Editora Vecchi (Rio de Janeiro), em virtude de Dalcídio ter vencido o concurso literário
Vecchi-Dom Casmurro, realizado em 1940 − como já mencionamos −, seguiram-se mais sete
edições, tornando-se este o romance mais republicado do Extremo-Norte. Vejamos as outras:
a 2ª edição saiu pela Editora Cátedra, do Rio de Janeiro, em 1976; a 3ª e 4ª edições saíram

58
A maior parte dessas informações foi colhida na obra O livro no Brasil, constante em nossas referências.
72

pela Editora Cejup, de Belém, respectivamente, em 1991 e 1995; a 5ª edição, pela


Cejup/Secult/A Província do Pará, de Belém, em 1997; a 6ª edição, pela Editora da
Universidade da Amazônia (UNAMA), de Belém, em 1998, sendo esta uma edição crítica,
organizada pela pesquisadora Rosa Assis. Assim, esta última seria uma publicação norteadora
de todas as demais que poderiam vir a ser impressas. No entanto, a mesma pesquisadora, Rosa
Assis, organizou uma outra edição – considerada polêmica, como já frisamos − de Chove nos
campos de Cachoeira, a 7ª edição, publicada pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro, em 2011,
com muitas modificações, conforme o texto de divulgação da própria editora:

[...] Chove nos campos de Cachoeira chega agora às mãos dos leitores do
século XXI numa versão inédita, preparada a partir de anotações, correções
e emendas feitas pelo próprio escritor num exemplar da primeira edição –
localizado no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro –
após minucioso cotejo e preparação do texto pela professora e pesquisadora
Rosa Assis (Disponível em: https://7letras.com.br/chove-nos-campos-
de-cachoeira.html. Acesso em: 03 ago. 2017).

A polêmica, em princípio, nasceu do fato de que o autor já havia falecido há bastante


tempo, sem ter publicado uma edição revisada radicalmente, como no comentário feito no
trecho supracitado. E para evidenciar mais ainda a controvérsia, o livro traz uma apresentação
feita pela organizadora, da qual compilamos o parágrafo inicial, cujo título é este: Dalcídio
reescreve o Chove:

Esta não é uma simples reedição do primeiro romance da série Extremo


Norte, de Dalcídio Jurandir, entre as seis ou sete já publicadas anteriormente,
inclusive uma edição especial (1997) e uma edição crítica (1998), todas hoje
virtualmente esgotadas. Trata-se agora, na verdade, de uma nova e definitiva
edição, ou quase uma nova versão do romance, cujo texto foi inteiramente
revisado, corrigido e bastante modificado na linguagem e até mesmo na
estrutura, pelo próprio autor, após a publicação da 2ª edição (1976). Revisão
ampla, geral e profunda do texto original, que o autor concluíra antes de
morrer (1979) mas que não chegou a dar a público uma nova edição como
certamente pretendia, e que restou por muito tempo desconhecida nas
gavetas do esquecimento. Esta é, portanto, passados mais de trinta anos
desde a morte de Dalcídio, a primeira publicação que se faz do texto
definitivo do seu primeiro, primordial e premiado romance, tal como o
escritor meticulosamente o modificou e desejava republicar em vida.
(ASSIS, 2011, p. 7).

É impossível discordar de que não se trata de “uma simples reedição”, em virtude das
ostensivas e radicais mudanças impressas nessa nova edição; aliás, consideramos uma nova
73

versão do romance, fato esse praticamente já admitido por Rosa Assis, que afirma ser o livro
“quase uma nova versão do romance”. É um fato incontestável. Concordamos plenamente
com essa afirmativa, pois, para citar como exemplo, o capítulo XIX, presente na 1ª edição do
romance59 e em todas outras subsequentes a esta em questão, não consta nesta “versão” (o que
parece, no mínimo, incoerente, visto ser homônimo ao título do livro): “Chove nos campos de
Cachoeira”. Cremos ser uma supressão que beira o incabível.
Pensamos também ser difícil levar em consideração tratar-se de uma “definitiva
edição” e, mais difícil ainda, que as modificações manuscritas registradas no exemplar do
livro tenham sido feitas “após a publicação da 2ª edição (1976)”, já que a letra de Dalcídio,
três anos antes de falecer, já deformada consideravelmente pelo avanço do mal de Parkinson,
não seria tão legível como a que aparece no exemplar com as anotações, estas bem legíveis
nas imagens ilustrativas do ensaio Dalcídio reescreve o Chove (ASSIS, 2012, p. 188-198).
Também cremos que, se tivesse que haver edição definitiva, de fato, esta seria a edição
crítica, organizada pela própria Rosa Assis, datada de 1998. Além do mais, nossa opinião
sobre tudo isso não é fato isolado. Diversos outros pesquisadores já se manifestaram
corroborando o pensamento que expusemos nestas últimas linhas; dentre esses, Edilson
Pantoja e Ernani Chaves, que publicaram, em 17/03/2014, na revista eletrônica Polichinelo o
ensaio Edição importante e necessária, mas não definitiva60, desenvolvendo uma
argumentação semelhante à que vimos concatenando sobre o assunto.
Publicando mais recentemente (em maio de 2019) uma 8ª edição de Chove nos campos
de Cachoeira, a Pará.grafo Editora, de Bragança (Pará), não seguiu a recomendação de Rosa
Assis, imprimindo o texto com base nas edições de 1941 e 1976 – ano este em que Jurandir
ainda estava vivo e, embora acometido pelo Parkinson, ainda se encontrava lúcido o bastante
para fazer as modificações que lhe aprouvessem, coisa que não o fez, pelo menos não de forma

59
No todo, o romance, na sua 1ª edição, apresenta 20 capítulo titulados, além de um “Prefácio” dividido em duas
partes. A primeira, de autoria de Brício de Abreu, diretor do jornal literário e semanário Dom Casmurro,
subdivide-se: em um primeiro momento, Brício justifica o porquê de escrever o prefácio; depois, apresenta a ata
do julgamento do concurso, de que constam os nomes dos componentes do júri, os procedimentos de votação, a
listagem dos quatro romances finalistas (com as respectivas pontuações obtidas), a maneira como se deu o
desempate entre Chove nos campos de Cachoeira e Ciranda, de Clóvis Ramalhete e abertura dos envelopes
anexos aos originais dos livros. É aí que se sabe que o pseudônimo Jagarajó se referia a Dalcídio Jurandir. A
segunda parte é de autoria do próprio Dalcídio Jurandir, intitulada “Tragédia e comédia de um escritor novo do
Norte...”, em que o marajoara esclarece toda uma história de escrita e reescrita de seu romance premiado, os
percalços do envio do original para o concurso, o envio de outro livro dele, Marinatambalo, por amigos, as
dificuldades financeiras pela quais passou e passava, que não eram diferentes das dos outros escritores novos,
seja no Norte como em qualquer região do Brasil.
60
Disponível em: https://revistapolichinelo.blogspot.com.br/2014/03/sobre-nova-edicao-de-chove-nos-
campos.html. Acesso em: 02 set. 2017. Os autores informam também que o mesmo texto foi publicado pelo
jornal Diário do Pará, no Caderno “Você”, em 16 mar. 2014.
74

radical. Esta última edição de 2019 só pôde ser viabilizada por causa do uso da plataforma de
financiamento coletivo Catarse, que desenvolveu na Internet uma campanha flexível, cujos
colaboradores pagaram antecipadamente pelos livros, além de outros produtos agregados à
edição.
Já com respeito ao romance do Extremo Sul, Linha do Parque, sua 1ª edição saiu pela
Editorial Vitória, do Rio de Janeiro, em 195961; e, como já mencionado, a 2ª edição (em russo),
com apresentação de Jorge Amado, foi de responsabilidade do Partido Comunista, em
Moscou, em 1962. Podemos interpretá-la, também, como a 1ª edição de uma obra de Jurandir
em um país e em uma língua estrangeiros. Por causa disso, a publicação da Editora Falangola,
de Belém, em 1987, é tratada como a 2ª edição de Linha do Parque. Segundo o pesquisador
Paulo Nunes, esta edição é bastante desconhecida e mal distribuída, em decorrência de
dificuldades financeiras enfrentadas pela editora Falangola naquele momento (NUNES, P. J.
M., 2007, p. 130). A edição que usamos, a princípio, para ler e elaborar esta tese, seria uma 3ª
edição (constando na ficha catalográfica do livro a informação de que se trata de uma edição
especial), publicada pelo Clube de Autores, Santarém, 201362, pelo fato de não ter disponível
nenhuma outra. No entanto, pensando em evitar a possibilidade de receber críticas vinculadas
a uma espécie de apologia da ilegalidade editorial, adaptamos as referências à verdadeira 3ª

61
Mário Magalhães afirma que o romance foi publicado pela editora do partido por intervenção de Carlos
Marighella (1911-1969). Segundo Magalhães: “O romance Linha do parque não entrou para nenhuma antologia
literária, mas também trombou com o pcb [sic!]. Infiltrado entre os trabalhadores de Rio Grande, Dalcídio
Jurandir produziu um livro ambientado na cidade portuária gaúcha. Sujeitou-se ao escrutínio da cúpula pecebista,
que se incomodou com alegadas concessões burguesas dos personagens e não concedeu o imprimátur. Mais uma
vez, Marighella interveio, e o volume chegou às livrarias pela Editorial Vitória, em 1959” (Disponível em:
https://osirredentosblog.files.wordpress.com/2015/12/marighella-mario-magalhaes.pdf. Acesso em:18 mai.
2021).
62
Trata-se de uma edição ilegal, a chamada contrafação, uma publicação sem autorização dos herdeiros de
Dalcídio Jurandir. Trata-se também de uma edição de má qualidade, com muitos erros de digitação e,
consequentemente, de grafia. Por ser uma brochura, sua encadernação é feita com páginas de cor branca coladas,
não costuradas, o que resulta em páginas que se soltam, prejudicando o processo de leitura. Apresenta um total
de 653 páginas, fonte 12, com capa de cartolina, com ilustração de capa mostrando em primeiro plano um porto,
com embarcações de dimensões variadas em segundo plano, com o terceiro plano sendo um céu noturno, com
luar refletindo na água, contendo as seguintes informações (de cima para baixo): o título Linha do parque e a
especificação “Romance”, acima da ilustração descrita, com o nome do autor, Dalcídio Jurandir, abaixo da
ilustração. A orelha da capa traz excertos de comentários críticos, de três autores: J. Guimarães Menegale,
Antonio Olinto e Homero Homem. Já a orelha da contracapa traz a listagem completa dos 11 (onze) romances
de Dalcídio Jurandir, em ordem cronológica de publicação, com suas respectivas datas (Primeira manhã aparece
com a data de publicação de 1968, quando a correta é 1967). A contracapa contém uma minibiografia de Jurandir.
Logo abaixo do texto vem a logomarca do Clube de Autores, a da certificação SFC e o QR Code do livro. Na
ficha catalográfica não consta o ISBN do livro. Abaixo da ficha está a seguinte informação: “Digitado, revisado,
corrigido e escoimado por Valdecir Araújo Pessôa”, autor ou organizador de livros anunciados no Clube de
Autores, que é uma plataforma online de autopublicação, em que os livros ficam expostos. Conforme alguém
solicita e paga o valor da obra, mais seu frete, um único livro é impresso e enviado pelos Correios para o endereço
do comprador. Antes das epígrafes escolhidas pelo autor, há uma “Biografia” a respeito de Jurandir, com pelo
menos uma informação falsa sobre ele: a de que em 1976 “Fez diversas viagens a nações da América do Sul e a
países socialistas e europeus” (JURANDIR, 2013, p. 5). Linha do Parque esteve exposto na plataforma Clube
de Autores, em 2013, quando adquirimos um livro, mas agora não está mais.
75

edição de Linha do Parque, do Instituto Caio Prado Jr., de São Paulo, edição esta que veio a
existir também graças à utilização da plataforma Catarse – tal como ocorreu com a 8ª edição
de Chove nos campos de Cachoeira –, para captação de recursos para o lançamento dessa
outra edição, que saiu em julho de 2020.
O período em que saiu a 1ª edição de seu romance proletário foi marcante na carreira
de escritor de Jurandir. Vejamos por quê. No ano de 1959, publicou Linha do Parque, depois
de os originais do romance serem desengavetados, desde 1955. Mas, um ano antes, o autor
publicara Três casas e um rio (1958), onze anos após ter publicado Marajó (1947). É um
período profícuo de publicações, já que em 1960 publicaria Belém do Grão-Pará. Três anos,
três romances. Imaginamos o quanto de satisfação tomou conta do autor, pois levou em torno
de uma década para publicar Três casas e um rio, o que nos leva a pensar nos longos anos de
espera e paciência para que conseguisse publicar Marajó, livro já concluído em 1939.
Depois do espaço vazio do ano de 1961, Dalcídio então teve seu livro proletário
publicado em Moscou, na Rússia, em 1962, com apresentação do amigo Jorge Amado ‒ fatos
já mencionados antes. Um ano depois, em 1963, publicou Passagem dos Inocentes. Daí se
seguiram, de novo, os espaços vazios sem publicação. Então, em um período de seis anos
conseguiu o autor marajoara emplacar cinco publicações, sendo que Linha do Parque foi
publicado duas vezes, uma delas em russo, por intermédio do PCB aqui no Brasil e o PCR na
Rússia, não deixando de ser, por isso mesmo, uma espécie de 1ª edição, por ser em uma língua
estrangeira.
Então, já vencida essa etapa de apresentar a história editorial dos dois romances,
passaremos a fazer um levantamento, bastante recortado, no que diz respeito à fortuna crítica
das obras de Jurandir, fundamentalmente livros, pesquisas acadêmicas, periódicos e textos
sobre os estudos que se ocuparam de modo fulcral dos dois romances analisados nesta
pesquisa. Trata-se, portanto, de um recorte motivado principalmente pela temática. Dito isso,
passemos aos estudiosos que se ocuparam de analisar nosso corpus.
No livro Romancistas também personagens (1962), Eneida de Moraes selecionou
vários romancistas, entre autores homens e mulheres, cujas vidas – dignas, segundo a escritora
e jornalista conterrânea de Dalcídio Jurandir, de serem romanceadas em páginas de livros –
apresenta ao leitor: o passado desses autores, as lembranças de infância destes, os amores
vividos, a atuação em jornaizinhos de colégios e, inclusive, a prática confessa de maus versos
desenham os perfis de 16 artistas selecionados por Moraes, entre estes Dalcídio Jurandir. A
conterrânea de Jurandir resenhou brevemente Três casas e um rio e Belém do Grão-Pará.
Descreveu um pouco a própria entrevista que Jurandir lhe concedeu e que foi adaptada para
76

seu livro (dela), ressaltando a autora inclusive a dificuldade de fazer Dalcídio Jurandir falar
de si mesmo.
Além disso, reproduziu em discurso direto – com direito a travessão, inclusive – a fala
parcimoniosa de Jurandir sobre as obras do Ciclo do Extremo-Norte, com destaque para a
temática e os personagens, os quais Jurandir chama de “farinha d’água dos meus beijus”
(MORAES, Eneida, 1962, p.29). Já sobre seu romance apartado do Ciclo, Linha do Parque,
o autor, entre outras palavras, refere-se a ele como “[...] livro de muito amor e de uma
definição, em termos de romance, que marca, sem rodeios e creio que por todo o resto de
minha vida, o meu pensamento como escritor e como romancista” (MORAES, Eneida, 1962,
p.29). E, na mesma página, Eneida de Moraes esclarece que o romance é o único de Jurandir
que se afasta da temática amazônica. Além do pioneirismo de entrevistar Jurandir e registrar
um pouco da visão de mundo do marajoara, acompanhando de perto suas publicações, Moraes
já esboçava a diferença nascida a partir da publicação de Linha do Parque, que passaria a
inaugurar uma dicotomia dentro da produção literária dalcidiana.
Procedendo um pouco paralelamente ao que fez Eneida de Moraes, Renard Perez,
(1928-2015) − escritor e jornalista, mais afeiçoado ao jornalismo cultural −, publicou o livro
Escritores brasileiros contemporâneos: 2ª série, impresso pela primeira vez em 1964; na
verdade, um texto que se configura como um misto de minibiografia, reportagem e compilação
de passagem de obras de 22 autores. Trata-se também de adaptação de entrevistas concedidas
a Perez por diversos autores e autoras e publicadas no periódico Correio da Manhã, do Rio
de Janeiro, no final dos anos de 1970. O objetivo do jornalista era menos registrar dados
biobibliográficos dos autores que enfocar o caráter humano de seus escritos e entender o
pensamento de cada autor sobre a vida em geral e sobre os afazeres como produtor de arte
literária.
Perez, para atingir seus objetivos, ouviu todos, com sensível atenção aos mais
recônditos nichos de memória deles, e embebeu-se das reminiscências de seus entrevistados,
apreendendo delas o que se conformou como momentos essenciais da vivência – ou, por
vezes, errância – desses artistas: a infância, a lembrança dos entes queridos, os anseios futuros,
os lugares de sua geografia afetiva, as expectativas com relação à vida pessoal, ao torrão natal,
ao próprio Brasil. Dalcídio Jurandir é um dos 22 escritores que têm capítulos dentro do livro,
cuja biografia em minimalismos Perez traça, desde Cachoeira, mostrando a vida simples e
precária por lá, onde Jurandir menino aprendeu as primeiras letras e onde começou sua vida
de leitor voraz e incansável; sua ida para Belém, estudando e abandonando os estudos, além
77

de sua viagem de insucessos para o Rio de Janeiro, logo retornando para Belém. Daí, o texto
segue enumerando lugares e funções exercidas por Dalcídio Jurandir,
Renard Perez encerrou o capítulo referente a Jurandir reproduzindo uma passagem do
romance Três casas e um rio, de sua primeira edição (1958), impresso pela editora Martins,
que vai da página 394 até a 405. Trata-se do desfecho do romance, quando dona Amélia e
Alfredo, dentro da embarcação denominada São Pedro, partiram de Cachoeira, no Marajó,
rumo a Belém, para realizar o sonho de Alfredo de completar seus estudos, o que não era
possível em Cachoeira, pois lá os estudos não iam além do ensino fundamental menor.
Antônio Olinto (1919-2009) foi outro crítico que escreveu sobre a obra de Dalcídio
Jurandir, publicando o artigo “Linha do Parque”, em seu livro A verdade da ficção: crítica de
romances (1966). Nesse texto, o crítico afirmou que o romance de Jurandir podia ser entendido
como romance panorâmico, por causa uma espécie de “[...] âmbito mais largo de campo
narrativo” (OLINTO apud NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 142). Fez
referência ao romance como um tipo de “literatura do mujique”, comparando essa produção
com a dos “romancistas do povo”, aceitando que se rotulasse o romance dalcidiano de fora do
Ciclo do Extremo-Norte como “romance do proletariado” − à maneira do que escreveu Górki
−, cuja temática mergulhava nas lutas operárias, iniciadas no fim do século XIX, sob
orientação anarquista, findando no início dos anos de 1950, já sob direcionamento de uma
cúpula comunista.
Segundo o crítico, apenas um escritor de alto quilate poderia narrar com qualidade as
lutas sociais retratadas em Linha do Parque, longe de seu contexto de experiência pessoal.
Além disso, apresentou críticas sobre Jurandir ficar refém de certas contradições de concepção
do romance, entre a redenção econômica e a espiritual. Ou seja, o propósito mais alto da vida,
segundo Olinto, deveria ser dar valor à pessoa humana, como ser que deveria se pautar por
qualidades morais condizentes ao respeito à vida, ligadas ao que ele denominou de redenção
espiritual. Já a redenção econômica diz respeito ao ideal coletivista, tornado uma espécie de
tese a ser defendida à exaustão dentro da narrativa. A opção de Jurandir, segundo Olinto, foi
pela redenção econômica, o que fez o livro perder em grandeza, conforme opinião deste no
artigo.
Mas acabou sendo um crítico, no geral, elogioso em relação à escrita de Linha do
Parque, afirmando que a primeira parte da narrativa, em que emerge o herói Iglezias e seus
companheiros anarquistas, confere ao livro um caráter mais intrínseco de romance, o que vai
se perdendo nas partes restantes, quando Dalcídio buscou dar mais ênfase à “[...] ação política
mais partidária” (OLINTO apud NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 143).
78

Nos anos de 1970, dois autores ganham relevo em relação aos estudos que escreveram
sobre Dalcídio Jurandir: são eles o português Ferreira de Castro (1898-1974) e o paraense
Vicente Salles (1931-2013). O primeiro escreveu em 1974, pouco antes de falecer, um
“Preâmbulo” para a obra Belém do Grão-Pará, para as edições portuguesas que foram
impressas em 1979 e 1982 (NUNES, P. J. M., 2007, p. 125). Já o segundo, sua importância é
inegável por ter escrito o primeiro estudo de natureza acadêmica sobre a obra dalcidiana,
intitulado “Chão de Dalcídio”. Trata-se de um posfácio à 2ª edição do romance Marajó,
publicado em 1978, seguindo uma linha de leitura pautada pelos estudos de etnologia, de
literatura oral e popular, e de folclore, ensaio pioneiro que, entre outras revelações,
demonstrou ter Dalcídio explorado a tradição ibérica na estrutura de seu romance, buscando
no rimance de Dona Silvana inspiração para enriquecimento do tecido narrativo de seu
segundo romance (Marajó), tanto na temática quanto na estruturação do discurso literário. E
é aí que a inventividade de Jurandir funde a fantasia com a realidade do arquipélago marajoara,
em que Missunga, o protagonista de Marajó, figura como uma espécie de príncipe desregrado,
que manda e desmanda em caboclos e negros tais como os nobres oprimiam os servos da gleba
de uma Europa medieval.
O estudo de Ferreira de Castro carrega em si o peso de apresentar o autor marajoara
para o público português, permitindo a Jurandir extrapolar as fronteiras do Brasil e ser lido
por um público estrangeiro, fato esse que na obra de Jurandir só teve paralelo com Linha do
Parque, pois, como já foi mencionado, esse romance foi publicado na Rússia em 1962, vertido
para o idioma desse país; portanto, também com o alcance de um público estrangeiro. Ferreira
de Castro, autor já consagrado na época, principalmente entre os brasileiros, por causa de seu
romance A selva (1930), ambientado na Amazônia brasileira da época do Ciclo da Borracha,
considerava Jurandir naquele momento um dos maiores romancistas contemporâneos do
Brasil, destacando-o como “[...] descobridor e intérprete do Marajó [...]” (CASTRO apud
ASSIS, 2007, p. 5), tornando-se também para o Pará o que alguns autores foram para o
Nordeste, citando então Jorge Amado, Raquel de Queirós e José Lins do Rego.
Já nos anos de 1980, mais precisamente em 1983, Lindanor Celina (1917-2003), que
teve em certo período um contato direto, próximo e mesmo pessoal com Dalcídio Jurandir, a
partir de suas memórias, traçou as linhas de um desenho relativamente nítido da fisionomia
dalcidiana em vários aspectos, em seu Pranto por Dalcídio Jurandir (1983). O leitor fecha as
páginas desse livro com a impressão de ter mais do que uma noção de um personagem revivido
em rememoração. Tem, em vez disso, uma imagem quase viva de quem foi Jurandir, como
era ele como ser humano: sua postura em relação à família, em relação ao outro, à política, ao
79

trabalho, à amizade, à literatura, por exemplo (sendo este último aspecto de grande relevância
para este nosso estudo)63; por causa disso, vislumbram-se com clareza, por exemplo, a
personalidade, o caráter, a postura ética e sensível do autor em relação aos mais pobres, aos
que não têm vez nem voz na sociedade, além de suas ideias de como deve se dar o processo
de escrita literária.
Coube a Enilda Tereza Newman Alves ser a primeira a defender em uma instituição
superior um trabalho acadêmico sobre a obra dalcidiana. Trata-se da Dissertação de Mestrado
Marinatambalo: construindo o mundo amazônico com apenas três casas e um rio (uma análise
de um romance de Dalcídio Jurandir), de 1984, defendido na Pontifícia Universidade Católica
(PUC), do Rio de Janeiro, em cujo estudo analítico-interpretativo ‒ centrado no terceiro livro
do Ciclo, Três casas e um rio ‒ de viés principalmente psicanalítico, demonstra que o
personagem Alfredo, em dado momento, de um dos episódios da narrativa do romance Três
casas e um rio, desejou inconscientemente que sua mãe, dona Amélia, estivesse morta, após
deparar-se com ela desnorteada por efeito de ingestão excessiva de aguardente de cana. Dona
Amélia vivia um drama de culpa por causa de seu primeiro filho, que morrera afogado ainda
criança, após cair em um poço, além de ter perdido sua filha Mariinha, cuja causa da morte
nunca foi muito bem explicada, tampouco digerida pela mãe.
Dona Amélia “[...] ficou dizendo palavras desconexas. Depois caiu de costas no chão,
como um cadáver” (JURANDIR, 1979, p. 211), o que fez Alfredo fugir em direção à fazenda
Marinatambalo, pensando que a mãe estivesse morta. Simbolicamente, o menino a matou,
dentro de si. Acorrendo até Alfredo, foi Lucíola – uma vizinha que nutria um amor maternal
doentio por ele −, quem o consolou nas ermas paragens daquele fantasmagórico local, já quase
em ruínas. No retorno dessa fuga e jornada ritualística de passagem, Alfredo torna-se outro
menino, mais maduro, com maior aceitação pela mãe e pela cor da pele, dele e dela.
O escritor Benedicto Monteiro publicou em 1985 o livro O cancioneiro do Dalcídio.
Este livro nasceu por conta de uma dívida que o escritor conterrâneo disse ter com Jurandir.
Primeiramente por ter lido, em 1941, o primeiro romance de Jurandir, sentindo aquilo que lhe
provocou um misto de perplexidade e deslumbramento. Outra parte da dívida diz respeito a
um prefácio escrito por Jurandir em 1945, para o livro de poesia de Monteiro, intitulado
Bandeira branca. Para pagar a dívida, a solução veio da releitura que Monteiro fez dos
romances de Jurandir, publicando um livro em que honraria seu compromisso, além de prestar
uma homenagem a Jurandir, lamentando o fato de ser uma homenagem póstuma.

63
Vide outros esclarecimentos em relação à autora e ao livro nas páginas 19 e 20 desta tese.
80

Chama a atenção a seguinte afirmação do autor do Cancioneiro: “A comparação entre


a prosa poética de Dalcídio e os poemas que compõem este cancioneiro, servirá, com certeza,
para realçar a imensa poesia de seus romances” (MONTEIRO, 1985, p. 10. Negritos do
autor.). Monteiro então organizou seu volume compilando passagens de quatro romances de
Jurandir, em cujas linhas detectou a elaboração de uma escrita de prosa poética na qual se
inspirou para realizar “[...] uma recriação [poética] inédita [...]” (MONTEIRO, 1985, p. 10).
Os excertos foram pinçados dos seguintes romances, na ordem em que se apresentam no livro:
Primeira manhã (22 trechos), Três casas e um rio (19), Ribanceira (11) e Ponte do Galo (4).
A poetização desses excertos resultou em um belo conjunto de poemas, além de uma valiosa
homenagem. Dívida bem paga, portanto.
Temístocles Linhares publicou o livro História crítica do romance brasileiro, em cujo
volume 2, de 1987, pode-se encontrar o subcapítulo “Do extremo Norte ao extremo Sul”, que
levanta, resume, analisa, comenta e busca dar algum tipo de interpretação (da página 401 à
441) a toda a obra romanesca de Jurandir, reservando espaço para resenhar todos os dez
romances do Ciclo do Extremo-Norte, um por um, deixando para analisar por último o
romance fora do ciclo, Linha do Parque, sobre o qual faz também pequena resenha, tornando-
se contribuição teórico-crítica significativa para os estudos dalcidianos voltados para essa
dicotomia do romancista do Extremo-Norte em confronto com o do Extremo-Sul.
Em relação a Chove nos campos de Cachoeira, Linhares faz referência ao prêmio
recebido pelo autor do romance, ao desconhecimento do autor pelo público leitor e ao famoso
“Prefácio”, em cujo texto Jurandir denuncia a esperteza de artistas não locais, que extorquiam
os tesouros dos municípios e do Estado, enquanto os artistas locais viviam uma realidade
muito precária, à margem do reconhecimento do público leitor em geral e das esferas de
governo (JURANDIR apud LINHARES, p. 402).
Linhares relaciona a epígrafe do livro – excerto do romance Morro dos Ventos
Uivantes (1847), de Emily Brontë (1818-1848) ‒, com o conteúdo do Chove nos campos de
Cachoeira, considerando-a usada bem a propósito, por causa da frivolidade atribuída à vida
citadina em comparação à vida na região interiorana, mensagem comum tanto na obra da
autora inglesa do século XIX quanto na do brasileiro Jurandir. Em seguida, resenha o romance
partindo das linhas iniciais, a partir do pensamento de um dos personagens protagonistas,
Alfredo, que retornava para sua casa, ao anoitecer, dos campos queimados, nos limites de
Cachoeira. A partir das elucubrações do personagem Alfredo, Linhares vai enumerando os
demais, como o outro protagonista, Eutanázio, com sua hipocondria, menosprezo e desprezo
81

por si e por todos, menos pela amada, Irene, que lhe devolvia o amor com profundo asco e
sarcasmo.
No resumo do romance, o estudioso usa a estratégia de apresentar os personagens por
suas características a partir de dados comportamentais em paralelo com algumas
características físicas, quando estas são essenciais para sedimentar a personalidade de cada
um, centrando suas reflexões em Alfredo, Eutanázio e Irene. Depois, discorre sobre outros.
Assim, Alfredo era o menino feridento, que achava ser esquisito o pai ser branco e a mãe,
negra; Eutanázio, sozinho com seu mau-humor; major Alberto sempre folheando catálogos;
entre outros inúmeros personagens.
Já sobre Linha do Parque, encerrando o subcapítulo, o estudioso afirma ser um
romance “[...] que destoa inteiramente destes dez escritos sobre a Amazônia” (LINHARES,
1987, p. 439). Então, o romance seria à primeira vista considerado tendencioso, por causa da
relevância dada à classe dos operários, em detrimento do ser humano individualmente falando.
É em Linha do Parque que Jurandir mais demonstra que sua visão de mundo é fundamentada
pelo materialismo histórico e dialético, em busca da redenção econômica, ponto em que fica
patente que Linhares com certeza leu o texto de Olinto, ao qual já fizemos referência.
Linhares considera pontos altos do romance a maneira como as lutas trabalhistas no
extremo sul do Brasil foram narradas por Jurandir. Destaca também como a ficção dalcidiana
pôs à mostra a organização dos proletários no Extremo-Sul do Brasil, tendo como cenário o
porto da cidade de Rio Grande, onde se iniciaram as lutas e modestas conquistas de direitos,
desde a liderança anarquista de fins de século XIX, até a liderança comunista, já no período
após a II Guerra.
À medida que o anarquista espanhol Iglezias vai se familiarizando com o contexto,
certos episódios dos primórdios da República são revividos, como por exemplo, a Revolta da
Esquadra. Linhares enfatiza a relevância do espanhol pela sua participação nos eventos
envolvendo os operários em Rio Grande, como passeatas e motins, além da fundação da União
Operária. Mas também mostra suas dúvidas, não pela causa revolucionária, mas pelos
métodos empregados e pela desigualdade da luta, dos sacrifícios por que passavam os
operários e as seguidas derrotas.
Segundo o crítico, a persistência por fazer história e a busca por evidenciar valores de
caráter coletivo, prejudicaram a concepção do romance, por causa de o romance assumir um
certo tom de tese, de caráter político mais partidário, até mesmo doutrinário. Ainda assim,
Linhares finaliza dizendo que “[...] Linha do Parque era a mais séria tentativa feita no Brasil
no sentido de situar em romance um movimento exclusivamente revolucionário. O
82

romancista, porém, estava presente, resistindo aos seus próprios defeitos” (LINHARES, 1987,
p. 441).
Avançando para os anos de 1990, percebemos o sensível incremento das pesquisas
sobre a obra dalcidiana. Já em 1991, Olinda Batista Nogueira defendeu a tese Dalcídio
Jurandir: da re-velação da Amazônia ao Sul, na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Esse estudo seria adaptado para o formato livro com o título Dalcídio Jurandir: um
olhar sobre a Amazônia, publicado pela editora Galo Branco, em 2003, com a autora
apresentando uma alteração no sobrenome, passando a pesquisadora a assinar seu nome como
Olinda Batista Assmar. Trata-se de tese bastante abrangente, buscando abarcar em sua análise
toda a obra romanesca dalcidiana, o que significa dizer que dedicou espaço para as obras do
Ciclo do Extremo-Norte, mas também analisou o romance Linha do Parque. A obra de
Jurandir recebe, nessa pesquisa, um olhar que procura analisar certas características de sua
escrita, como seu aspecto de romance regionalista, com qualidades comparadas a autores
contemporâneos, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, ainda
argumentando sobre a importância do caráter documental não desmerecer, mas complementar,
na verdade, os traços da literariedade nos romances do marajoara.
A pesquisa de Nogueira reserva um espaço considerável para refletir sobre o romance
Linha do Parque. Mas em nenhuma passagem da pesquisa faz menção ao livro de Jurandir
como produto ligado à estética do Realismo Socialista, embora o compare aos dois primeiros
romances do autor marajoara. Segundo Nogueira, Jurandir estava “[...] buscando um espaço
mais propício ao desenvolvimento de seu projeto, já lançado em Chove nos campos de
Cachoeira e iniciado em Marajó” (NOGUEIRA, 1991, p. 60). A autora se refere ao fato de
que o personagem doutor Lustosa, cercando os campos com arame farpado, criou a fazenda
Bem Comum, no primeiro dos dois romances citados, relacionando tal fato ao intempestivo e
impensado desejo de Missunga de criar a fazenda Felicidade, no segundo romance. Os
projetos dos dois personagens mencionados, doutor Lustosa em Chove nos campos de
Cachoeira e Missunga em Marajó, na verdade têm a ver, segundo a pesquisadora, com “[...]
o desejo de mando e ampliação do poder de cada um [...]” (NOGUEIRA, 1991, p. 60), não
estando relacionado à implantação de um projeto utópico como o de Iglezias e outros
personagens de Linha do Parque, ligado à melhoria de qualidade de vida dos trabalhadores e
suas famílias, após embates contra o patronato e o regime de governo, com base em
pensamento político-ideológico de formação esquerdista, especificamente do PCB.
Um ano depois, em 1992, Pedro Maligo publicou na Revista USP de número 13 o
ensaio Ruínas idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir. O pesquisador, em um
83

texto de grande densidade, característica já notada por Furtado (2010, p. 14), e abrangendo
todo o Ciclo do Extremo-Norte, considerou-o “[...] um panorama amazônico sem paralelo na
literatura brasileira” (MALIGO, 1992, p. 48). Ressaltou que na época havia um grande
desconhecimento da obra do autor pela crítica literária (assim como a literatura inspirada pela
Amazônia era em grande parte ignorada por estudiosos e editores), mesmo sendo a obra de
Jurandir de grande qualidade literária, o que insere o autor marajoara entre os melhores do
que Maligo chamou de após-Modernismo.
Para o pesquisador, os autores de então, que ele situou de 30 a 50, objetivaram abarcar
o todo da vida brasileira a partir do retrato das realidades de cada centro cultural periférico,
em cujos contextos as relações sociais vêm à tona, por uma tônica que dá ênfase às causas
econômicas e históricas, sem esquecimento da dimensão psicológica dos personagens, que em
geral escapolem dos apelos deterministas de um Naturalismo tardio. Quanto à linguagem em
que as obras são incritas, esta se configura pelo uso de base gramatical e léxico brasileiros. É
nessa tradição que Maligo insere os romances de Jurandir, citando Bosi, considerando que, ao
se tomarem as partes pelo todo da grande nação brasileira, estas partes compõem um quadro
geral que se completa a partir da somatória de cada região abrangida pela pena dos escritores,
que documentavam e analisavam cada contexto – com uma “[...] visão crítica das relações
sociais [...]” (BOSI apud MALIGO, 1992, p. 49), recriando um território brasileiro, a partir
de então mapeado pela literatura.
Restringindo a análise para a obra dalcidiana, Maligo chama a atenção para o fato de
que a modernidade da obra de Jurandir está diretamente ligada à técnica narrativa empregada,
com o uso da variação de vozes narrativas em 3ª pessoa, a presença em grande quantidade de
diálogos e monólogos interiores que subsidiam a construção, como elementos estruturantes,
de um universo diegético em que avultam como personagens as “[...] pessoas de situação
econômica menos favorecida [...]” (MALIGO, 1992, p. 49), entre estas, “[...] pescadores,
costureiras, cozinheiros, vendedores ambulantes, funcionários públicos de baixo escalão,
desempregados, vagabundos – ou ‘a gente mais comum, tão ninguém’” [...] (MALIGO, 1992,
p. 50), pessoas estas habitantes do interior, residindo em alguns municípios no Marajó, ou na
periferia de Belém.
Em 1992 saiu, pela Editora da UFPA, O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir,
da pesquisadora Rosa Assis. Trata-se mais propriamente de um livro da área dos Estudos
Linguísticos, mas que desperta nosso interesse por seu caráter de contraponto ao que disse
Álvaro Lins sobre Jurandir, em relação ao romance-embrião do Extremo-Norte: “[...] o sr.
Dalcídio Jurandir insiste num recurso que nunca domina inteiramente: a utilização da
84

linguagem popular” (LINS, apud FURTADO, 2017, p. 104). Mas Assis afirma que Jurandir
incorporou em sua obra a linguagem do amazônida, mais especificamente do paraense do
interior, do Marajó, e dos subúrbios de Belém, retratando para seu fiel leitor, de forma vívida,
a vida singela de quem habita a região, com seus hábitos comuns, os acontecimentos
cotidianos, os ‘causos’, enfim, a forma de pensamento do caboclo, traduzindo tudo isso a partir
de uma escolha adequada de palavras e expressões advindas da cultura local. Entre outras
qualidades como escritor, a pesquisadora afirma com ênfase que Jurandir é “[...] narrador
fluente e polifônico, tem o dom de equilibrar com segurança e naturalidade as linguagens
literária e popular” (ASSIS, 1992, extraído da orelha do livro), o que é corroborado por outros
diversos estudiosos especializados na obra dalcidiana, como Maligo (1991), Nogueira (1991),
Furtado (2002), Freire (2006), Nunes, P. J. M. (2007), entre outros.
Em junho de 1996, a Universidade da Amazônia (UNAMA) publicou em sua Asas da
palavra (Revista do Curso de Letras, volume 3, nº 4), um impresso todo dedicado a Dalcídio
Jurandir. Trata-se de publicação pioneira, apresentando uma coletânea em que se sobressai o
caráter diversificado, seja pelos gêneros em que os estudos foram elaborados, seja pela
abordagem multilateral destes, pela apresentação de textos da esfera da criação própria de
Jurandir, como poemas, por exemplo, ou da criação de outros autores, inspirados na obra
dalcidiana, como os poemas de Benedicto Monteiro, de seu livro, o já mencionado O cancioneiro do
Dalcídio (1985), ou as crônicas “Choram os campos de Cachoeira”, de Salomão Larêdo; “Dalcídio,
esse desconhecido...”, de Ana Maria del Aguia; e “A habilidade de moldar em prosa a chuva
de versos”, de Édson Coelho. Para enriquecimento da publicação, o impresso conta com a
apresentação de elementos de apoio, como imagens: fotos (do escritor, de lugares onde viveu
e de lugares que ficcionalizou, de momentos cruciais de sua carreira, de textos publicados em
periódicos, capas de livros), além de desenhos e caricaturas retratando Jurandir.
Destaque seja dado às entrevistas, de cujo cerne o pesquisador pode abstrair
informações sobre detalhes do fazer poético dalcidiano, a partir das próprias revelações do
escritor, em que se incluem, por imersão em seu pensamento de modo mais agudo, suas
concepções sobre como se deve arquitetar a forma e o conteúdo da obra literária, ideias das
quais o esquadrinhar do pesquisador de Estudos Literários, imerso na obra de Jurandir, não
pode esquecer, nem desvincular do pensamento político-ideológico do marajoara, cuja opção
temática adota a defesa dos oprimidos e a denúncia da grave violência dos opressores, cuja
esfera espacial de ocorrência se concentra na Amazônia, mas com abrangência simbólica que
extrapola para uma localização continental e, mesmo, intercontinental. Essas entrevistas são:
“Um escritor no Purgatório” (Revista mensal de literatura, 1976), concedida a Antônio
85

Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão; “Dalcídio fala dos outros e de si” (Folha do Norte,
1960), concedida a A. Bastos Morbach; e “Eneida entrevista Dalcídio” (Folha do Norte,
1960), concedida a Eneida de Moraes, escritora, amiga e conterrânea de Jurandir.
Paulo Jorge Martins Nunes defendeu, em 1998, na Universidade Federal do Pará
(UFPA), a Dissertação de Mestrado Aquonarrativa dalcidiana: uma leitura do tecido narrativo
de Chove nos campos de Cachoeira. Nessa pesquisa, Nunes trabalhou com o comparativismo
entre a obra dalcidiana do romance-embrião Chove nos campos de Cachoeira e a obra de
Graciliano Ramos, Vidas secas (1938), nesta destacando o que denominou de sedenarrativa,
um estilo seco de escrita literária, com emprego de períodos breves e com repertório lexical
que remete à aridez do solo do sertão nordestino, opondo-se, neste caso, ao que denominou,
em sua análise de Chove nos campos de Cachoeira, de aquonarrativa; neste caso, como se
fosse um estilo encharcado, molhado pelas águas tanto das quase incessantes chuvas, que
descem, quanto das águas do rio, que sobem pelos campos, dominando-os e tornando ilhado
o chalé da família de seu Alberto e dona Amélia. Quanto ao repertório lexical empregado, por
exemplo, no romance de Ramos, vislumbramos a caatinga deserta e a lagoa seca, o toco,
enquanto no romance de Jurandir deparamo-nos frequentemente com as chuvas, com
Cachoeira encharcada e os campos alagados. Neste caso, o universo líquido prepondera sobre
o que é sólido, inundando os olhos do leitor. Trata-se, segundo Nunes, de um aspecto que
confere enorme originalidade à obra dalcidiana.
Percebemos o avanço e a intensidade maior das pesquisas sobre a obra dalcidiana
quando entramos nos anos 2000. Logo em 2001, deparamo-nos com o primeiro estudo
acadêmico que se conhece, que tem como tema exclusivamente o romance Linha do Parque:
trata-se do artigo O conflito da Linha do Parque: entre a História e a Literatura, do pesquisador
Leandro Xavier Barbat, enfeixado como um dos artigos do livro História & Literatura no Rio
Grande do Sul, dos organizadores Francisco das Neves Alves e Carlos Alexandre
Baumgarten, publicado pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Diferentemente dos outros estudos acadêmicos, que mencionaram ou trataram en passant do
romance Linha do Parque, este é o primeiro estudo que enfocou especificamente o
mencionado romance dalcidiano.
Em seu artigo, Barbat, estudando a proximidade entre o discurso histórico e o discurso
literário, analisa, por intermédio do romance Linha do Parque, o “[...] movimento do dia 1º
de Maio de 1950 [...]”, fazendo comparação com o discurso do jornal Rio Grande (de
02/05/1950). Barbat afirma: “Analiso também os principais aspectos trabalhados pelo autor
[Dalcídio Jurandir], como o cotidiano dos trabalhadores nas fábricas de Rio Grande, as
86

principais ideias do personagem de nome Iglezias [...], da União Operária [...], as greves na
cidade”, procurando “[...] entender também como as narrativas utilizaram a cronologia,
espaço, personagens e enredo” e “[...] qual o tratamento dispensado por Dalcídio Jurandir no
que se refere ao acontecimento histórico” (BARBAT, 2001, p. 52).
Nesse mesmo ano de 2001, tendo Vicente Salles como organizador, é publicado o
libreto VII jornada do conto popular paraense ‒ narrador: Dalcídio Jurandir. Nessa
publicação, que Salles chama de MicroEdição do Autor, o estudioso procede ao que ele
denominou de ‘descolagem’, processo em que selecionou alguns contos populares presentes
na obra de Jurandir, ‘colados’ e muito bem ajustados pelo marajoara aos enredos do conjunto
do Extremo-Norte, considerando-os, na verdade, recontos, que estão ligados não somente aos
valores folclóricos, mas também às “[...] lutas e vicissitudes de um povo [...]” (SALLES, 2001,
p. 8). Segundo Salles, Jurandir imprimiu aos contos um sabor de relatos tipicamente
populares, a partir das vozes de personagens tanto masculinos quanto femininos. Dos oito
contos que Salles selecionou de toda a série dos 10 romances, um foi descolado de Chove nos
campos de Cachoeira, que é a “História do sapateiro”, narrada por Eutanázio, que, como os
outros sete, o pesquisador comentou.
Entre as reflexões sobre esse conto, Salles afirma que quando se estudam os contos
populares brasileiros, logo se percebe que grande parte deles deriva de nossas matrizes
europeias, mas certamente, ao longo do tempo, adaptados à realidade sociocultural e
ambiental do Brasil e, no caso da obra de Jurandir, da Amazônia. Mas o romancista acabou
enriquecendo mais o repertório desses contos. Assim, nas palavras do próprio Salles:

Os textos descolados da obra de Dalcídio Jurandir mostram, contudo, a


variedade e diversidade das vertentes, encontrando-se neles fontes
europeias, africanas e ameríndias. O primeiro texto selecionado [“Estória do
sapateiro”] é bom exemplo do encontro de etnias e culturas. A explicação
ameríndia do boitatá é insuficiente, pois emergem elementos da tradição
europeia do fogo-fátuo e a evocação do Bingo, herói do povo fanti-ashanti,
área sudanesa, em África ocidental, donde provieram escravos para o Grão-
Pará (SALLES, 2001, p. 11).

Do imaginário social popular explorado na obra dalcidiana analisada, avulta a metáfora


da criação da noite, originada na mitologia herdada de algumas etnias indígenas da Amazônia,
segundo a qual, em tempos imemoriais, não havia noite, apenas o período do dia. Por
desobediência a um interdito, permitiram que a noite escapasse de dentro do caroço de tucumã.
Essa narrativa é transfigurada por Jurandir: o poder conferido por Alfredo a seu
brinquedo/amuleto, o caroço de tucumã, é responsável por todo um jogo de realização de
87

sonhos futuros do menino, peça-chave para se interpretar o texto-embrião: “Do grelo do


caroço do tucumã brotou Chove nos campos de Cachoeira [...]” (JURANDIR apud SALLES,
2001, p. 9). Foi o caroço nas mãos do menino imaginativo que possibilitou a criação de seu
primeiro romance, do qual eclodiria sua série romanesca, da qual a exceção, repetimos, é
Marajó, cujo protagonista, como sabemos, não é Alfredo.
Em 2002, a pesquisadora Marlí Tereza Furtado defendeu, na Universidade de
Campinas (Unicamp), a segunda tese sobre a obra de Dalcídio Jurandir, com o título de
Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir, que também seria adaptada para
livro, em 2010, publicado pela editora Mercado das Letras, preservando o mesmo título da
tese. Trata-se de um estudo que possibilita uma imersão no universo em ruínas no âmbito das
obras do Ciclo do Extremo-Norte – seja no que diz respeito aos espaços e aos ambientes, seja
no que diz respeito aos personagens e à urdidura do texto. Nessa perspectiva, focando mais
de perto os personagens em seus espaços de circulação, a estudiosa dá ênfase ao olhar social
de Jurandir, que se volta principalmente para os mais necessitados, que se encontram à
margem das benesses sociais. A estudiosa também analisa os aspectos estéticos da obra do
marajoara, considerando o romancista como criador de uma complexa obra, que se caracteriza
pelo alto nível de literariedade e que precisa ser estudada efetivamente pela História da
Literatura Brasileira (FURTADO, 2010).
A tese de Furtado demonstra que Jurandir reconstruiu um universo amazônico, em sua
obra ficcional, ancorado no período subsequente ao Ciclo da Borracha, apresentando um
quadro em que a decadência se sobressai de modo marcante, sendo emblematicamente
representada principalmente pelas casas, que ora se transformam em locus representativo do
que é opressor, ora se transformam no que ao pé da letra é o espaço arruinado ou desmanchado,
às vezes vendido à revelia do proprietário, como é no exemplo emblemático da casa de dona
Cecé (no romance Passagem dos Inocentes). Nesse universo, ganha destaque o personagem
Alfredo, presente em nove dos dez romances do Extremo-Norte, cuja trajetória de vida
permitiu à pesquisadora elaborar três marcos divisórios para o conjunto de romances: o núcleo
marajoara, composto pelos três romances iniciais, ambientados no Marajó: Chove nos campos
de Cachoeira, Marajó e Três casas e um rio, caracterizado esse núcleo pelo anseio de Alfredo
por estudar em Belém (ressalvando-se a ausência desse personagem no enredo de Marajó); o
núcleo belenense, composto por Belém do Grão-Pará, Passagem dos Inocentes, Primeira
manhã, Ponte do Galo, Os habitantes e Chão dos Lobos, ambientados principalmente na
periferia de Belém, caracterizados pela busca de Alfredo por conhecer a si mesmo, durante
seu adolescer, e a busca por conhecer Belém, no que acaba por se perder, desistindo mais tarde
88

dos estudos e desiludindo-se com sua vida na periferia da cidade, que o levou do sentimento
do encanto ao do desencanto por ela; e o núcleo do Baixo Amazonas, constituído unicamente
por Ribanceira (o último do Ciclo), ambientado na região do Baixo Amazonas, onde
encontramos um Alfredo adulto trabalhando como secretário tesoureiro de uma intendência
falida, que depois trabalha também em “[...] outro lugarejo, como professor e auxiliar de
comércio [...]” (FURTADO, 2010, p. 23), mas permanece pouco tempo, retornando a Belém,
encerrando a série de romances com um desfecho em aberto.
Esta tese sobre a obra de Jurandir também faz referência, não muito delongada (como
era de se esperar, por causa do recorte e foco de sua pesquisa), ao romance do Extremo-Sul.
Nessa pesquisa, a autora considera as variadas possibilidades de leitura da obra dalcidiana,
entre elas, a “[...] sedimentada pelo realismo socialista, sendo esta sobretudo necessária à
análise de Linha do Parque, escrito sob encomenda do Partido [PCB] e por ele mesmo
censurado” (FURTADO, 2010, p. 15). E continua em outro parágrafo, afirmando que para se
saber se “[...] Dalcídio Jurandir se submeteu às regras zhdanovistas ao escrever Linha do
Parque [...]”, seria necessária uma análise aprofundada da obra para se revelar a pertinência
de tal afirmativa. Essa análise a pesquisadora concretiza mais tarde em um projeto de pesquisa
voltado ao romance Linha do Parque, que retomaremos mais adiante neste trabalho.
José Arthur Bogéa, em 2003, tendo como colaboradores em pesquisa Luiz Carlos de
Lima Júnior e Paulo Maués Corrêa, publicou o livro Bandolim do diabo64 (Dalcídio Jurandir:
fragmentos). A construção do livro se dá a partir de um abecedário, tal qual ocorreu com a
Coleção Xumucuí, Série Literatura, também de autoria de Bogéa, dos quais tomamos
conhecimento de 4 (quatro) volumes: ABC de Maria Lúcia Medeiros, ABC de Max Martins,
ABC de Bernadette Lyra e ABC de Bruno de Menezes (o operário do verso), editados pela
Editora da UFPA (atual ed. ufpa). O próprio autor definiu seu Bandolim do diabo como “[...]
um conjunto de fragmentos” (CHAVES, 2003, p. 13), com o texto elaborado sob forma de
um mosaico desses fragmentos, iniciados na letra A, indo até a Z, como verbetes, distribuídos
de uma maneira simples, como a apresentação dos títulos de cada livro, como por exemplo:
Belém do Grão-Pará, Chão dos Lobos, Chove nos campos de Cachoeira e Linha do Parque
(BOGÉA, 2003, p. 25, p. 31, p. 32 e p. 69, respectivamente), ou personagens que povoam
esses romances, como, por exemplo, “Dolorosa” e “Orminda” (p. 36 e p. 81-82,

64
O título faz referência à passagem “Um bandolim do diabo para a d. Graziela tocar na fazenda as suas invejas
contra a irmã?”, do romance Primeira manhã (JURANDIR, 1967, p. 245), o sexto da série, em que a personagem
Graziela, mesmo ganhando um bandolim ‒ depois, uma flauta e um violino ‒, não aprendeu a tocá-lo, sendo
invejosa dos talentos da irmã caçula Luciana, que sempre aprendia tudo com facilidade. Pena Bogéa não ter
transformado em verbete essa passagem, o que nos parece ser um esquecimento difícil de entender.
89

respectivamente); mas também podem se apresentar de modo mais complexo, como verbetes
associados, por exemplo, à temática dos romances do Extremo-Norte, como o verbete
“Amazônia” (p. 21); a manifestações culturais, como “Boi-Bumbá” (p. 26) e “Noite da
Trasladação” (p. 78) ou a ferramentas interpretativas, como em “Argos” (p. 22), uma ideia
de Josse Fares, estudiosa da obra de Jurandir, afirmando que para se ler melhor a obra do
marajoara seria necessário ter os cem olhos de Argos. Todos os verbetes contêm excertos de
um ou mais romances de Jurandir ou comentários de Bogéa, a ilustrar e iluminar cada
passagem, enriquecendo-as.
Em 2004, como já havia feito em 1996, a UNAMA lançou mais uma revista Asas da
palavra (volume 8, nº 17) dedicada unicamente a Dalcídio Jurandir, reunindo trabalhos de
pesquisadores vinculados a importantes Instituições de Ensino Superior (IES), seja da
Amazônia (UFPA, UEPA, UNAMA, por exemplo) seja de outras regiões (PUC- Minas
Gerais, por exemplo). A riqueza de vieses de leitura, de linhas de pesquisa e de aportes teórico-
críticos tornaram essa revista uma fonte obrigatória de dados informativos sobre Jurandir e
sua obra, como subsídios para referencial teórico e mesmo referências bibliográficas de
utilidade inquestionável para pesquisadores de Estudos Literários voltados à literatura de
expressão amazônica e especificamente à literatura dalcidiana.
Assim, o sumário lista 13 (treze) trabalhos, com aparato científico-filosófico a partir
da Teoria da Narrativa, da Psicanálise, Hermenêutica, Antropologia e Estética, por exemplo,
dos quais nos interessam mais de perto os seguintes: “Dalcídio Jurandir: as oscilações de um
ciclo romanesco”, de Benedito Nunes (1929-2011); “Dalcídio Jurandir, uma leitura do caroço
de tucumã: vias de sonhos e fantasias”, de Rosa Assis; “Palcos da linguagem: uma leitura
psicanalítica de Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir”, de Josse Fares e
Paulo Nunes; e “Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir”, de Marlí Tereza
Furtado.
No ensaio “Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco”, Benedito Nunes
considera que o ciclo romanesco de Jurandir se conforma de fato como um só grande romance,
que foi crescendo por acréscimo, conforme ia sendo escrito – e publicado – obra por obra e
desaguando cada uma delas em seu roman-fleuve65, grande obra sonhada pelo marajoara em
sua juventude. As oscilações mencionadas no título são três: uma que segue o percurso de

65
Traduzido como romance-rio (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2471). “Designa as obras ficcionais que se
organizam em ciclos contínuos, à semelhança de um estuário fluvial, caracterizadas pelo grande número de
personagens e de ações que se sucedem ou se imbricam” (MOISÉS, 2004, p. 461).
90

partida do contexto do interior, de Cachoeira, para a zona urbana de Belém, narrativa mais
ambientada na periferia que no centro da capital, com retorno ao interior, para Gurupá e região
das ilhas, ainda no Marajó, já pelo fim do ciclo romanesco.
Em meio à reflexão acerca desta primeira oscilação, o filósofo e crítico literário explica
os dois sentidos em que a expressão ‘ciclo romanesco’ pode ser entendida: o primeiro, em que
a vivência dos personagens se dá em ambientes sociais diversos, entrecruzando-se nos enredos
de diferentes romances, o que ocorre na Comédia humana, de Balzac, ou na escrita de um
painel comprovando uma tese, pelo determinismo e pela hereditariedade, como ocorre no
caso dos romances de Émile Zola, na série que narra as desventuras dos Rougon-Macquart,
em meio à pobreza e ao alcoolismo que os abate. Entretanto, o segundo sentido é que vale
para o caso do ciclo dalcidiano: a interligação de cada romance com os demais que compõem
a série (NUNES, B., 2004, p. 16).
A segunda oscilação do ciclo é a que parte do procedimento descritivo das realidades
do interior, no Marajó, e da urbe, em Belém, para o procedimento de recriação, pela linguagem
literária, de uma outra realidade, a ficcional. Então, pelos sentidos do menino marajoara
(Alfredo), os espaços do interior e da cidade ganham encanto, como o Theatro da Paz, o Ver-
o-Peso e o Largo da Pólvora, além das ruas ladeadas de mangueiras, com suas sombras
amenizando o calor equatorial. Já a fabulação e a rememoração tornam-se polos da terceira
oscilação do Ciclo do Extremo-Norte. A fabulação é a existência de uma história, nascida,
neste caso, pelo discurso memorialístico carregado pelas imagens melancólicas da morte da
irmã, Mariinha, e da embriaguez de sua mãe, dona Amélia, por exemplo.
Em seu ensaio, Benedito Nunes afirma que na escrita de Linha do Parque Jurandir
precisou solucionar um conflito: como escrever, sob uma fórmula imposta, um romance? Tal
fato não se contraporia ao seu sonho de juventude? Para que isso não ocorresse, Nunes
considera que o autor se tornou – à maneira de Fernando Pessoa − uma espécie de heterônimo,
um outro autor, com outra escrita também, em cujo enredo avultam personagens
verdadeiramente heroicizados, vivendo aventuras em suas lutas pela causa partidária66.
Em 2006, José Alonso Torres Freire defendeu na Universidade de São Paulo (USP) a
tese de doutorado Entre construções e ruínas: o espaço amazônico em romances de Dalcídio
Jurandir e Milton Hatoum, pesquisa esta que foca o estudo analítico-interpretativo em três

66
O texto de Benedito Nunes inclui esta passagem: “Dalcídio não podia afinar com o realismo socialista,
prescrito pelo Partido, sem trair o seu sonho de juventude. E para não traí-lo ou trair-se fez-se outro autor
escrevendo Linha do Parque. Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria Fernando Pessoa [...]” (NUNES, B., 2004,
p. 18).
91

romances de Jurandir (1909-1979) − que são Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará
(1960) e Ribanceira (1978) −, e em três de Hatoum (1952-) − que são Relato de um certo
oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Neste caso, a pesquisa se volta
parcialmente para a obra de Jurandir (três livros analisados) − já que divide espaço com a obra
do Hatoum −, dando ênfase ao aspecto arruinado da região e seus efeitos sobre a vivência dos
personagens. No caso de Alfredo, analogamente a milhares de outros jovens do interior, este
sente uma poderosa atração pela capital, sentimento que lhe suscitou as travessias e viagens
que marcaram sua empolgada partida do espaço do interior para o urbano e o drama em que
resultou essa trajetória, cujo retorno ao locus do interior levou com ele uma boa porção de
desencanto com a vida na cidade.
Freire, em sua tese, faz algumas referências a Linha do Parque. Entre estas, o
pesquisador afirma que a obra é:

[...] um romance cujo foco é o cotidiano das lutas operárias e das greves por
melhores condições de trabalho no porto do Rio Grande/RS no fim do século
XIX. Centrado inicialmente na figura do espanhol Iglezias, foragido por ter
participado de atentados a bomba em seu país, e depois em seus seguidores,
este é o romance em que Dalcídio Jurandir deixa transparecer com maior
vigor sua concepção materialista da história, segundo Temístocles Linhares
(Linhares, 1987: 439) e aquele em que a ficção mais se apropria da história,
aproximando-se, pelo centramento na luta coletiva, da obra engajada
(FREIRE, 2006, p. 114).

Nota-se que o pesquisador dá relevo primeiramente às lutas e greves do operariado na


cidade do Rio Grande, situando-as apenas no fim do século XIX, o que não abrange a
totalidade da história narrada, que se prolonga até os anos iniciais da década de 1950. Freire
aponta como protagonista o espanhol Iglezias, autoexilado de sua pátria por causa de atentados
a bomba dos quais participou por lá, sendo substituído mais tarde por seus seguidores. O
estudioso concorda com Temístocles Linhares, afirmando que é nesse romance que o
romancista marajoara mais deixa à mostra sua visão materialista da história, considerando
Linha do Parque um livro que se aproxima da obra do tipo engajada.
O pesquisador Carlos Roberto Cardoso Peres defendeu em 2006, na Fundação
Universidade Federal do Rio Grande (FURG), a dissertação de mestrado intitulada Linha do
Parque, de Dalcídio Jurandir: romance histórico, social e proletário (a gênese do movimento
operário no Extremo Sul do Brasil). O objetivo desse estudo foi verificar de que maneira o
pensamento estético literário dos autores do chamado Romance de 30 influenciaram a escrita
do romance operário do marajoara, evidenciando que o autor Dalcídio Jurandir enfrentou uma
92

dura batalha para escrever com convicção, consciência e arte um romance que fosse de fato
representativo das lutas da classe dos operários do porto da cidade do Rio Grande −
abrangendo uma larga faixa temporal, que se estende de 1895 até os anos iniciais da década
de 1950 −, entre outros operários de outras profissões dentro desse mesmo município (como
tecelãs e carneadores, por exemplo), homens e mulheres imbuídos de espírito de luta
revolucionária, que enfrentaram as forças coercitivas, prisões e torturas, com alguma analogia
com a própria vida de Jurandir (PERES, 2006, p. 13-14).
Ainda em 2006, saiu, pela Secretaria de Estado de Cultura do estado do Pará
(SECULT) e Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)/Instituto Dalcídio Jurandir, a bela edição
do livro Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia (literatura & memória), organizado por
Benedito Nunes, Ruy Pereira e Soraia Reolon Pereira. Com base em grande parte nos
documentos do acervo de Jurandir, naquela época arquivados na FCRB, o livro contém uma
fotobiografia do escritor, com a cronologia da vida e da publicação de suas obras, sempre
entremeada de fotografias retratando Jurandir, sua família e amigos, reproduções de capas de
seus livros, os lugares onde viveu e por onde viajou, apresentando uma coletânea de textos
vários, alguns fac-similados, como por exemplo publicações em jornais de crônicas, artigos e
passagens de romances de Jurandir, poemas de sua autoria, letras de música, cartas trocadas
entre familiares e amigos, bilhetes, dedicatórias, anotações de pesquisa, trecho de diário,
críticas publicadas sobre seus romances, enfim, “[...] testemunhos da vida e da obra desse
grande escritor “ (NUNES, B.; PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 11).
A organização do livro permite que se possa vislumbrar um Jurandir como ser humano
multifacetado: além de ser retratado como romancista e poeta, é também referido como
escritor-jornalista (repórter, redator, editor, crítico literário e de artes em geral), sem que
nenhuma dessas facetas seja desvinculada daquela que diz respeito ao intelectual autodidata
politizado, militante e ativista do PCB. Nesse livro, a seção “A crítica em jornais e revistas”
(p. 116-146), inserida no capítulo “Dalcídio romancista” (p. 113-183), contém textos de crítica
jornalística, de diversos autores, sobre todos os seus romances. Os que se referem ao Chove
nos campos de Cachoeira são três: o primeiro é intitulado “Chove nos campos de Cachoeira”
(p. 116), de Maria R. Campos; o segundo é “De Combray à ilha de Marajó” (p. 117), de Ledo
Ivo; o último é “Faltava nos campos encharcados a sombra de Eutanázio andando” (p. 117-
118), de Cléo Bernardo. Todos foram veiculados em jornais à época da publicação do
romance.
O primeiro desses textos (na verdade, uma passagem, bem curta) ressalta as qualidades
pictóricas do romance, comparando sua escrita a recursos relacionados à pintura, à fotografia
93

e ao cinema, exaltando a técnica moderna presente nas páginas redigidas por um escritor que,
para Maria R. Campos, parecia perfeitamente consumado, autor de um livro brasileiro, forte,
uma verdadeira revelação. Já o segundo texto, um pouco maior, é também uma passagem, de
autoria de Ledo Ivo, na qual este chama a atenção para uma característica que salta aos olhos
em Chove nos campos de Cachoeira, que Ivo denominou de regionalismo universal ‒ que
acaba por se sobressair na obra, embora se possa verificar a presença forte e constante de
elementos nativos ‒, fato que torna Jurandir comparável a alguns autores europeus de renome;
entre outros ‒ Balzac, Stendhal, Dickens, Dostoiévski e, principalmente, Proust, sugerindo
uma analogia entre o personagem menino de Combray e Alfredo. O “regional universal” é
representado pelo drama humano evidenciado nas linhas do romance de estreia de Jurandir. O
terceiro texto, também curto e constituído por um excerto, tem os contornos de uma crônica,
em que Cléo Bernardo escreve não como crítico, mas como amigo sincero, destacando do
livro três caracteres: estranho, obsessivo e impessoal, somando-se à mensagem “[...] dolorosa,
acendida de desespero e vida, marcada de verdade” (BERNARDO apud NUNES, B.;
PEREIRA, R.; PEREIRA, S. R., 2006, p. 117), romance eivado de marcas de uma paixão
ligada à terra e aos costumes de uma certa Amazônia.
Fechando a mesma seção “A crítica em jornais e revistas”, dentro ainda do mesmo
capítulo “Dalcídio romancista” está o texto crítico “Linha do Parque”, de Antonio Olinto,
bem mais extenso e sendo apresentado de maneira completa, já foi tratado em páginas
anteriores desta tese; tendo em vista esse fato, seguiremos adiante, sem nos atermos ao
conteúdo do artigo referido. Então, retomemos nossas reflexões.
Já trabalhamos com dados das seções subsequentes do livro ‒ dentro do mesmo
capítulo desta tese ‒, que são, entre outras, “Crítica informal: Dalcídio visto pelos amigos”,
“O processo de criação” e “A produção dos romances: as viagens, a pesquisa e a técnica
composicional”. Reiteramos que se trata de fontes reveladoras do processo criativo de um
escritor meticuloso e metódico, que se preocupava tanto com a fase de pré-textualização, com
coleta e seleção de dados, que anotava em diversos cadernos, quanto com a de pós-
textualização, que implicava em longos períodos de releitura e revisão de seus originais, em
cujas páginas ia excluindo partes, reescrevendo outras e refundindo-as com o conteúdo de
suas anotações (sobre crenças populares, lendas, receitas de remédios caseiros, ditos
populares, “causos”, curiosidades da linguagem do povo e mesmo citações de autores
clássicos, por exemplo (NUNES, B; PEREIRA, R.; PEREIRA,S. R., 2006, p. 163-165).
Paulo Nunes − pesquisador já mencionado aqui, principalmente por causa de sua
dissertação sobre Chove nos campos de Cachoeira −, defendeu em 2007, na Pontifícia
94

Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, a tese de doutorado Útero de areia, um estudo
do romance ‘Belém do Grão-Pará’, de Dalcídio Jurandir. Nunes concentrou seu estudo em
um único romance da série Extremo-Norte − fato explícito no título da tese −, em cujas páginas
o menino Alfredo é posto a circular pelos espaços da cidade de Belém, para onde desde muito
tempo queria ir para dar continuidade aos estudos. Mas Alfredo passou a morar de favor na
casa dos Alcântaras, cuja anatomia familiar Jurandir enfoca e Nunes a interpreta em sua
pesquisa, evidenciando o forte teor político que emerge do contexto diegético de Belém do
Grão-Pará. Belém é representada emblematicamente pela história da decadência de uma
família − constituída pelo casal Virgílio e Inácia e pela filha dos dois, Emilinha − que perdeu
os privilégios de ter sido ‘protegida’ na áurea época do intendente Antônio Lemos67, cuja
gestão durou de 1897 a 1911.
Entre as artimanhas da narração, evidenciadas por Paulo Nunes em sua tese, está o uso
da metáfora “útero de areia”, empregada por Inácia para se referir à própria filha Emilinha;
porém, por efeito metonímico, considera-a extensiva à cidade de Belém, imersa em
irremediável crise socioeconômica, deflagrada pelo fim do boom gomífero, cidade em
declínio por esterilidade, por não se renovar ou se redescobrir como produtora de riquezas,
que já o foi, mas que no tempo da narrativa do romance, no início dos anos de 1920, pouco
exibia do fausto do outrora, restando-lhe não muito mais que as ruínas de um tempo
frequentemente tido como uma espécie de idade do ouro; nesse caso, ouro branco, por causa
da cor do látex.
Paulo Nunes, em sua tese, também tece considerações sobre Linha do Parque. Entre
estas, Nunes afirma que se trata de: “[...] romance proletário, publicado na então URSS [em
1962], devido a interesses do Partido Comunista, que precisava difundir, pelos quatro cantos
do planeta, a literatura engajada de linha socialista” (NUNES, P. J. M., 2007, p. 59).
Marlí Tereza Furtado, em 2008, refinando a pesquisa sobre a obra dalcidiana, voltou
seu olhar sobre Linha do Parque, a partir do projeto de pesquisa − do qual foi coordenadora
−, Dalcídio Jurandir e o realismo socialista 68 que, entre outras produções, resultou no artigo
de sua autoria Dalcídio Jurandir e o realismo socialista: primeiras investigações, publicado

67
Antônio José de Lemos (1843-1913), que foi intendente municipal (o prefeito daquela época) de Belém, de
1897 a 1911, modernizou esta cidade, embelezando-a aos moldes franceses, durante o período áureo do Ciclo da
Borracha, que foi denominado por alguns estudiosos como a Belle Époque paraense.
68
Projeto financiado pela Fundação Amazônia Paraense de Amparo à Pesquisa (FAPESPA), desenvolvido de
2007 a 2009, com sua 2ª edição desenvolvida de 2009 a 2011, tendo como propósito investigar “[...] a relação
do escritor Dalcídio Jurandir com o realismo socialista, bem como a relação entre Dalcídio Jurandir autor de
artigos para a imprensa, especialmente a comunista, e o criador de ficção” (informação extraída do Currículo
Lattes da pesquisadora Marlí Tereza Furtado. Disponível em:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4727494P6. Acesso em: 03 ago. 2017).
95

nos anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC 69: Tessituras, interações,


convergências, ocorrido na cidade de São Paulo, em 2008, cuja passagem a seguir mostra-se
esclarecedora:

Nos últimos anos, a obra do autor tem sido alvo de estudos cujo resultado
tem sido as muitas dissertações de mestrado e algumas teses de doutorado
produzidas nas academias, principalmente no Curso de Mestrado em Letras
da UFPA, onde foram defendidas, de 2000 para cá, cerca de quinze
dissertações. Desses estudos, nenhum recai sobre Linha do Parque, um dos
livros menos citados e estudados desse escritor. Ressalve-se a dissertação de
mestrado de PERES (2006), defendida na Fundação Universidade Federal
do Rio Grande (FURG), RS, com o título Linha do Parque, de Dalcídio
Jurandir (a gênese do movimento operário no Extremo Sul do Brasil)70.
§É instigante em Dalcídio Jurandir essa aparente dicotomia entre o ciclo
Extremo Norte, criado dentro do que se poderia chamar de realismo crítico,
e o livro de fora desse ciclo, criado sob a possível concepção do realismo
socialista. O instigante na realidade se torna intrigante ao estudioso, uma vez
que a passagem de uma leitura para outra nos leva aparentemente a autores
diferentes. Essa discussão, entretanto, será esmiuçada em trabalhos
posteriores a esse (FURTADO, 2008. Disponível em:
https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/040/
MARLI_FURTADO.pdf. Acesso em: 03 ago. 2017).

Essa “dicotomia” mencionada é que inspirou a escrita desta tese e impulsiona neste
momento a investigação sobre esse dado “instigante” que se tornou, de fato, “intrigante”,
como nas palavras da metódica investigadora da obra de Dalcídio Jurandir.
A revista Pará Zero Zero (PZZ): arte, política e cultura, publicada em 2009, é uma
reedição especial da PZZ nº 6, de 2008, a qual não tivemos acesso. Fiquemos com a edição de
2009, que se trata de uma reimpressão. É uma revista inteiramente dedicada a Jurandir. Em
seu editorial, mais uma vez é ressaltado o fato de que havia ainda, naquele momento, uma
“[...] falta de publicações, debates e referências sobre Dalcídio Jurandir [...]” (PARÁ, 2009,
p. 3). Daí a justificativa da publicação da revista, que era difundir informações sobre a obra
de Jurandir, mas dessa vez enfatizando as atividades jornalísticas e o ativismo político do
autor; atividades, afinal de contas, indissociáveis, no caso de Jurandir. A publicação se divide,
basicamente, em duas partes. O primeiro segmento, denominado de Documentário, é, na
verdade, uma coletânea, da qual se destaca, até mesmo pela grande extensão, o texto “O chão
vermelho de Dalcídio”, de Carlos Pará, jornalista e editor do periódico. Nele, o jornalista
busca esclarecer as origens da Aliança Nacional Libertadora (ANL), seu programa de

69
Associação Brasileira de Literatura Comparada.
70
FURTADO orientaria, anos depois, a dissertação de mestrado A personagem feminina em Linha do Parque,
de Dalcídio Jurandir, na UFPA, em 2013.
96

realizações, e os nomes dos eleitos para o Diretório Regional Provisório, em 29/05/1935,


listando os componentes da Secretaria Geral, a de Finanças, a de Organização e a de
Propaganda.
Pará enfatiza o sucesso da reunião desse diretório em Belém, em 30/05/1935, e do “[...]
1º Comício da ANL ao ar livre para o domingo, dia 02 de junho de 35, na Praça da República
[...]” (PARÁ, 2008, p.10), em que houve pronunciamentos de vários oradores, dentre eles
Dalcídio Jurandir. Houve um número bem grande de pessoas, de classes sociais e orientação
político-ideológica diversas, participando do evento, ouvindo os discursos dos oradores sobre
os pressupostos da ANL, que era liderada nacionalmente por Luís Carlos Prestes. O evento
foi acompanhado de perto por autoridades policiais, não havendo tumultos. A ANL divulgava
sua resistência, por meio de uma Frente Única Nacional Libertadora, mobilizando as massas
populares contra o reacionarismo do governo de Getúlio Vargas, contra o Nazismo e o
Fascismo.
Além desse texto, outros 14 compõem esse segmento, quase todos de autoria de
Jurandir, escritos e publicados em épocas diferentes (décadas de 1930, 1940 e 1950), de
gêneros textuais diversos, como artigos de jornal, cartas, um poema e páginas de um diário.
Dentre os artigos, por exemplo, no texto “Os escritores e a resistência”, publicado no Rio de
Janeiro pela revista Literatura, em 1947, Jurandir revela sem meias palavras toda sua
indignação contra as ações arbitrárias e truculentas das forças antidemocráticas do governo
do general Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), denunciando, entre outros, estes crimes: invasão
e confisco de material em jornais e distribuidoras de livros, assim como prisão de jornalistas
e cassação de mandatos de representantes legítimos do povo. Jurandir faz um apelo para que
escritores e jornalistas não silenciem diante de tanta desumanidade e, além disso, exorta-os a
se aliarem às massas, esclarecendo-as e esclarecendo-se com estas, cujas vidas miseráveis
impelem para a luta do dia a dia, tornando-as inspiração para a criação literária.
Já no artigo “A um místico integralista”, publicado pelo jornal O Estado do Pará, em
04/06/1935, Jurandir direciona sua crítica ao Secretário Geral da Ação Integralista Brasileira
(AIB) no Pará, o cirurgião dentista Francisco Sampaio, que atacou a Aliança Nacional
Libertadora (ANL), acusando-a de extremista. Mas o marajoara refuta a afirmação, dizendo
que a ANL nasceu da necessidade do povo, “[...] ‘necessidade histórica’ imposta pela própria
evolução política do Brasil” (JURANDIR, 1935, p. 11), não sendo nem extremista nem
comunista, embora no texto considere o Comunismo “[...] uma síntese histórica de
transformações sociais” (JURANDIR, 1935, p. 11).
97

Esses textos carregam a virtude de esclarecer um pouco mais o que significam as


expressões, referentes a Jurandir, que afirmam ter ele participado, em 1935, “ativamente do
movimento da Aliança Nacional Libertadora” e, em 1937, da “campanha contra o Fascismo”
(JURANDIR, 1997, p. 291, em ambas as citações), circunstâncias que o levaram à prisão, no
primeiro caso por 2 meses e, no segundo, por 4: ele militava abertamente, nos eventos de rua,
como comícios, ou publicando seus textos nos periódicos, denunciando desmandos e crimes,
acusando nominalmente os autores-mandantes das crueldades e perseguições, sendo estes
políticos de alto, médio ou baixo escalão nas esferas nacional ou regional, assinando seus
textos, inclusive, fato que lhe custou caro, como os dois períodos de prisão que cumpriu.
O outro segmento é o denominado de Crítica literária, que contém o artigo “Linha do
Parque, de Dalcídio Jurandir: romance histórico, social e proletário”, de autoria de Carlos
Roberto Peres, que faz um resumo de sua Dissertação de Mestrado, pesquisa já referida e
comentada nesta tese. Outros três textos estão inseridos nesta parte: “O crime em Rio Grande”,
“A chacina de Rio Grande” e “Subsídio para a História do movimento operário do Rio Grande
do Sul”, todos de autoria de Dalcídio Jurandir, este último inserido em Dalcídio Jurandir:
romancista da Amazônia, já comentado nesta tese. Quanto ao “O crime em Rio Grande”,
artigo publicado na Tribuna popular, em 20/05/1950, nele Jurandir descreve e narra ‒ e sobre
ele também reflete ‒ o 1º de Maio de 1950 no município de Rio Grande. Exalta o heroísmo de
operários, principalmente das mulheres, em que destaca a heroína assassinada no confronto
com a polícia, Angelina Gonçalves, e faz uma severa crítica-denúncia às ações criminosas,
ocorrendo no país inteiro, do presidente de então, general Eurico Gaspar Dutra e do general e
senador por Alagoas, Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), acusando-os de
assassinos, reservando aos americanos o epíteto de ladrões e, aos policiais do 1º de Maio, o
de bandidos, de covardes bestiais, enquanto Angelina é chamada por ele de simples, brava,
sem temor.
O outro texto, “A chacina do Rio Grande”, é ainda um texto-borrão, uma pré-
textualização do episódio do Massacre da Linha do Parque, que depois seria, como costumava
dizer o próprio Jurandir, ‘refundido’ no livro Linha do Parque, para compor exatamente o
cerne do clímax do romance: o conflito entre os manifestantes e a brigada policial, resultando
nas mortes de 6 manifestantes e 2 policiais. Nesse texto, Jurandir ainda não converteu ‒ por
processo de ficcionalização ‒ o vereador Antonio Recchia e a tecelã Angelina Gonçalves nos
personagens Euclides Fragata e Maria, a ruiva. Poucas frases ou expressões desse texto
permaneceram nas linhas de seu romance, mas alguns aspectos gerais foram preservados e
ficaram como vestígios desse esboço, como a carga de dramaticidade, dinamismo, densidade
98

e velocidade que caracterizam a cena, mais ainda seu caráter de plasticidade, como se Jurandir
quisesse o leitor ali no meio daquele caos, sentindo o que os operários sentiram,
principalmente testemunhando ocularmente aquela violência.
Em 2012, tendo como organizador Wenceslau Otero Alonso Júnior, contando com o
apoio da Universidade Estadual do Pará (UEPA), é publicado o livro A obra de Dalcídio
Jurandir e o romance moderno, contendo estudos sobre literatura em geral, com o capítulo
denominado "O romance”, e sobre a literatura dalcidiana, com os capítulos “A poesia em
Ponte do Galo”, “Aspectos modernos em Chove nos campos de Cachoeira”, “O narrador em
Chove nos campos de Cachoeira” e “Linguagem e personagens em Primeira manhã”, dos
quais nos interessa mais de perto o 1º e o 3º desses capítulos. No 1º, artigo intitulado “O
romance”, Alonso Júnior traça um esboço histórico do sentido da palavra ‘romance’ como
uma forma literária ficcional em prosa construída em seu cerne pelo que o autor denomina de
narração expandida, que o pesquisador destrincha a partir de um estudo formal, considerando-
o como

[..] um tipo de texto escrito, organizado basicamente a partir da combinação


da narração, descrição, dissertação, diálogo, monólogo (solilóquio) e
discurso indireto livre, que chamaremos, por uma razão prática, mais
especificamente de funções organizadoras formais do texto narrativo, em
que a narração, usada de modo expansivo, é a função fundante, instauradora
(ALONSO JR., 2012, p. 16. Itálicos do autor).

Mas o pesquisador busca ainda acrescentar um conteúdo a essa forma,


complementando com o pensamento (com o qual Alonso Jr. só concorda em parte) de Lukács,
que nos interessa aqui por causa de referência ao Realismo Socialista: “[...] segundo Lukács
[romance] é uma narrativa, cujo pano de fundo é o universo socioeconômico produzido pela
ascensão do capitalismo industrial que engendra um herói insatisfeito com suas consequências
desumanizantes, sem perspectivas de superá-las” (ALONSO JR., 2012, p. 24. Itálico do autor).
Para Lukács, uma superação do problema é o nascimento do herói que luta contra o mundo em
degradação, personagem presente no que o teórico húngaro chamou de romances do realismo
socialista.
No outro artigo, denominado de “Aspectos modernos em Chove nos campos de
Cachoeira”, Vinícius Santos de Souza analisa que aspectos estilísticos de Chove nos campos
de Cachoeira estão relacionados à construção moderna da prosa de ficção, com aporte advindo
de autores como Haroldo de Campos, David Lodge, Roman Jakobson e Julio Cortázar, que
subsidiam as reflexões do pesquisador, que desembocam nesta afirmativa:
99

[...] nota-se que a face evidentemente artística e moderna do Chove nos


campos de Cachoeira está ligada sobretudo à manipulação dos mecanismos
literários que ordenam a linguagem da ficção do que à utilização da literatura
enquanto forma de engajamento social, que remete, sobretudo, para o
romance da segunda metade do século XIX (SOUZA, 2012, p. 55)

Cabe dizer que concordamos apenas em parte com a afirmativa de Souza, já que
cremos em um equilíbrio entre a temática focada na precariedade da vida levada pelos
personagens no romance e a elaboração desse universo em termos de linguagem de alto teor
estético. A arquitetura da denúncia social não resvala para uma abordagem da rígida
formulação sociológica do problema, embora se alimente dele, mas de forma que o ético seja
construído pelo estético.
A pesquisadora Alinnie Oliveira Andrade Santos defendeu em 2013 – como já
mencionamos anteriormente −, na Universidade Federal do Pará (UFPA), a dissertação de
mestrado A personagem feminina em Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir71. A proposta
dessa pesquisadora, nesse trabalho, foi

“[...] analisar as personagens femininas presentes no romance Linha do


Parque, bem como sua importância no desenvolvimento da narrativa,
verificando qual o papel das mulheres no movimento operário retratado no
romance, como também refletir sobre as manifestações ideológicas
presentes nessa obra, além de investigar a postura ideológica de Dalcídio
Jurandir em textos jornalísticos” (SANTOS, 2013, p. 12).

Santos destacou o papel das personagens femininas, demonstrando a relevância destas


para a construção da trama romanesca, não só como esposas de operários, mas também como
trabalhadoras de fábricas, como é o caso das tecelãs, que protagonizaram o primeiro motim
contra uma atitude de um gerente, que puniu injustamente uma trabalhadora. As colegas então
reagem e conseguem que o ‘patrão’ volte atrás na decisão que havia tomado.
Alinnie Santos e Carlos Peres ̶ pesquisador já mencionado ̶ , foram os primeiros
estudiosos a pôr em foco o romance Linha do Parque no âmbito de pesquisas em nível de pós-
graduação; isto é, engendrando uma discussão de maior fôlego em suas dissertações,
aprofundando e esmiuçando estudos sobre uma produção dalcidiana tão pouco conhecida e
menos explorada academicamente. Em vista disso, consideramos tais dissertações, até o

71
Dissertação orientada por Marlí Tereza Furtado, também orientadora desta tese.
100

presente momento, as duas mais relevantes contribuições à fortuna teórico-crítica relacionada


ao romance proletário de Jurandir.
A pesquisadora Regina Barbosa da Costa defendeu, na UFPA, em 2014, a Dissertação
Imagens de leituras em Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Sua pesquisa
faz emergir da diegese do romance todo um mundo de autores, livros e revistas que ajudaram
na criação de um universo de leitores-personagens paridos por um autor-leitor (Jurandir),
verdadeiramente um intelectual que transitava em campos variados da cultura – o que é
notório na diversidade temática, geográfica, periodológica e de área de abrangência de
estudos, centrando sua temática na vida dos amazônidas, a maioria destes pessoas
desassistidas, que sobrevivem com apenas o essencial em Cachoeira, vila pacata no interior
da grande ilha, que compõe com outras menores o arquipélago marajoara.
Além disso, Regina Barbosa da Costa arrolou o número de 25 Dissertações de
Mestrado defendidas no PPGL/UFPA, até 2014, das quais uma parte razoável delas aborda o
romance de estreia de Dalcídio Jurandir; entre estas, podemos destacar: Aquonarrativa: uma
leitura de Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, de autoria de Paulo Nunes
(1998); Morte, desamparo, niilismo e liberdade. Abalo e entusiasmo ante Chove nos campos
de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, de Edilson Pantoja (2006); O pessimismo
schopenhaueriano na obra Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, de Patrícia
Sheyla Bagot de Almeida (2007); O grotesco em Dalcídio Jurandir: Chove nos campos de
Cachoeira e Três casas e um rio, de Viviane Dantas Moraes (2011); e incluímos Imagens de
leituras em Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, da citada pesquisadora
Regina Barbosa da Costa (2014), onde consta a relação de dissertações a que faz referência
(COSTA, 2014, p. 103).
André Luis Valadares de Aquino defendeu a dissertação “Um passeio nos campos
seria uma viagem pelo mundo”: linguagem e experiência em Dalcídio Jurandir, em 201372,
pelo PPGL do campus de Bragança. Nessa pesquisa, Aquino propõe uma leitura plural da obra
de Dalcídio Jurandir, não só no sentido do aporte teórico selecionado ou da metodologia
proposta para isso, mas também da riqueza semântica transbordante de sentidos em seu Chove
nos campos de Cachoeira. Então, com subsídio multifacetado de alguns autores (entre eles,
principalmente Barthes, mas também os irmãos Campos e Jackobson), sugere uma leitura do
poético em Dalcídio Jurandir, uma leitura do texto de Jurandir com base nos próprios textos

72
Muito provavelmente, a dissertação de Aquino não foi citada por Regina Costa por não constar naquele
momento no Repositório Institucional da UFPA e, talvez, também por ser de outro campus, não o da capital,
mas, sim, de Bragança.
101

de seus romances, o que supõe uma abertura de sentidos na obra dalcidiana, esta já estudada
sob enfoques bem diversificados, como: a etnologia, a narratologia, a lexicologia, o
imaginário, o marxismo, etc.
Em 2015 foi lançado o e-book Dalcídio Jurandir: bibliografia geral e estudos críticos,
organizado por Gunter Karl Pressler, Mário Santos Neto e Flávia Menezes. Trata-se de um
apanhado de grande utilidade para o pesquisador, constituindo-se como relevante fonte de
dados sobre a vida e a obra de Jurandir, já que se encontra em suas páginas uma vasta
enumeração de referências ̶ que vai desde artigos jornalísticos a dissertações e teses, até
críticas contemporâneas de cada publicação da obra dalcidiana ̶ que datam do início da
publicação dos primeiros romances do autor, chegando ao limite do ano de lançamento do
livro em questão. Entre os tópicos constantes no sumário deste e-book, estão uma
“Bibliografia geral” e “Estudos críticos”, neste último caso com o esclarecimento de que
constitui um segmento que “em breve será disponibilizado nas próximas atualizações” (p. 9),
mas que, passados mais de cinco anos de publicação, o e-book ainda não foi atualizado. Nada
que subtraia o mérito deste estudo, pois, principalmente para o pesquisador iniciante da obra
de Jurandir, é um poderoso e minucioso subsídio para apropriação inicial e imediata de
conteúdos relevantes sobre a obra dalcidiana e sua recepção crítica.
Verificamos, neste recorte sobre estudos que têm como tema a obra de Jurandir, que o
autor marajoara finalmente passou a receber um foco de atenção mais veemente, dentro e fora
da academia73, como bem enfatizou Marlí Furtado (FURTADO, 2010, p. 14), esta
pesquisadora que é certamente quem mais orientou dissertações e teses sobre a obra
dalcidiana. Por exemplo, nos últimos anos (neste caso, de 2014 a 2021), foram defendidas na
UFPA as seguintes dissertações: Dalcídio Jurandir: um cronista de O estado do Pará e
Diretrizes (2014), de Tayana Andreza de Sousa Barbosa; A crítica literária aos romances
“Chove nos Campos de cachoeira”, “Marajó” e “Três casas e um rio” na imprensa do Rio
de Janeiro (2015), de Alex Santos Moreira; Figurações do pobre em Dalcídio Jurandir: do
chalé à Rua das Palhas em “Chove nos Campos de Cachoeira” (2015), de José Elias Pereira
Hage; Literatura e jornalismo: aspectos religiosos nos romances Chove nos campos de
Cachoeira e Marajó, de Dalcídio Jurandir (2017), de Juliana Gomes dos Santos; A cidade-
personagem em Belém do Grão-Pará (2018), de Clara Alice da Silva Guimarães Brasil; e
Atonia e degradação em personagens de Dalcídio Jurandir (2019), de Jonathan Pires
Fernandes; e também foram defendidas, na mesma instituição, as seguintes teses: A figuração

73
O mercado livreiro, adormecido para as obras de Jurandir ‒ que durante muito tempo circularam como obras
raras e com apenas uma primeira edição ‒, finalmente fez justiça ao autor marajoara:
102

da mulher em Dalcídio Jurandir: entre o desamparo, a opressão e a transgressão (2018), de


Alinnie Oliveira Andrade Santos; Um bulício de crianças, picado de risos e gritos: a infância
desvalida em Dalcídio Jurandir (2019), de Ivone dos Santos Veloso; Dalcídio Jurandir: leitor
e criador de personagens-leitores no Ciclo do Extremo Norte (2019), de Regina Barbosa da
Costa; Bruno de Menezes, Dalcídio Jurandir e De Campos Ribeiro e as territorializações
afro-amazônicas urbanas (da Belle Époque à década de trinta) (2019), de Josiclei de Souza
Santos; A Amazônia em narrativas: a reconstrução de uma tradição dos romances da
Amazônia brasileira, com Dalcídio Jurandir, Márcio Souza e Milton Hatoum (2020), de
Tayana Andreza de Sousa Barbosa; e Narradores do Extremo Norte: narrador e foco narrativo
em romances do ciclo do Extremo Norte de Dalcídio Jurandir (2021), de Alex Santos Moreira.
Ressaltamos que todos esses onze trabalhos acadêmicos, entre teses e dissertações, foram
orientados por Marlí Furtado74.

O mercado livreiro também deu sua parcela de contribuição ao avivamento da obra de


Jurandir, editando e reeditando alguns de seus livros: a editora 7Letras, do Rio de Janeiro,
publicou em 2011 Chove nos campos de Cachoeira – aquela edição polêmica já mencionada
nesta tese. Nesse mesmo ano, saiu pela editora Paka-Tatu, de Belém, o livro Poemas
impetuosos ou o tempo é o do sempre escoa, organizado pelo professor Paulo Nunes, até agora
a única publicação de obra não romanesca de Jurandir. Já a Marques Editora, de Belém,
imprimiu de uma só vez e pôs no mercado, em 2016, três romances do marajoara: Marajó,
Belém do Grão Pará e Primeira manhã.
Não de uma só vez, mas sucessivamente, a Pará.grafo Editora, de Bragança (Pará),
publicou seis romances de Jurandir, dentre os quais os quatro últimos, que haviam estacionado
na 1ª edição. A editora se utilizou, para captação de recursos, da plataforma digital Catarse,
por meio de campanhas, ano a ano, de financiamento coletivo na Internet, fato já ressaltado
aqui. Assim, a editora bragantina pôde publicar os romances, nesta ordem: Ponte do Galo, em
2017; Três casas e um rio e Os habitantes, ambos em 2018; Chove nos campos de Cachoeira
e Chão dos Lobos, ambos em 2019; e, por último, Ribanceira, em 2020.
Nesse mesmo ano de 2020, utilizando-se também de campanha de financiamento
coletivo da Catarse, o Instituto Caio Prado Jr. publicou uma nova edição de Linha do Parque,
no qual consta um esclarecedor prefácio de autoria de Marlí Furtado, que o denominou de O

74
Outros estudos acadêmicos de grande importância, ainda que fora do âmbito dos Estudos Literários, são:
Dalcídio Jurandir e a Educação: de letrado provinciano à intelectual nacional (USP, 2017), de Fernando Jorge
dos Santos Farias; e Para além da decadência – a “aristocracia do pé no chão” na Belém de Dalcídio Jurandir
(UFPA, 2017), de Maíra Oliveira Maia. Cf. estas duas teses em nossas referências.
103

tributo de Dalcídio Jurandir ao “pessegueiro em flor”, no qual, neste caso, o pessegueiro se


refere ao Partido Comunista do Brasil. O tributo referido no título diz respeito ao Partido
Comunista do Brasil (portanto, também a todos os companheiros de Jurandir, de luta e de
partido), a Cândido Portinari, a Cervantes, a Machado de Assis e às artes plásticas, assim
como ao teatro, música e literatura, homenageados por Jurandir nas páginas de seu longo
romance, que a pesquisadora chamou de “[...] livro de tributos” (FURTADO, 2020, p. 8).
O prefácio de Furtado, além de dar o devido destaque, sem dúvida nenhuma, ao
episódio trágico do confronto entre operários e polícia, no 1º de Maio de 1950, também
esclarece que Jurandir, por causa de sua experiência como jornalista, empreendeu pesquisa
minuciosa sobre o movimento operário no Rio Grande, desde sua origem remota em fins do
século XIX até o ano de 1952, enfatizando na narrativa de Linha do Parque o uso de uma
linguagem mais próxima do Realismo, com maior presença do elemento extradiegético e da
causalidade, que dá ao enredo do romance maior linearidade, embora faça uso de analepses
aqui e ali, com o objetivo de introduzir no enredo cada novo personagem. O emprego
frequente dessas analepses aproxima Linha do Parque, pelo uso dessa técnica, a Chove nos
campos de Cachoeira e, também, a todos os outros romances que compõem o Ciclo do
Extremo-Norte.
Ainda abordando técnicas narrativas, Furtado demonstra que, diferentemente de outros
autores que vestiram a camisa-de-força do Realismo Socialista, pouco afeitos aos cuidados
com a forma de sua escrita literária, Jurandir explorou elementos épicos, dramáticos e
bucólicos, reservando-os para momentos específicos das sequências narrativas. O épico-
dramático surge, por exemplo, no retrato dinâmico do conflito da Linha do Parque, ou nas
greves e motins, ou até em espaços onde avultam a sujeira e a peste, para que o leitor entenda
as condições laborais insalubres nas fábricas. O tom bucólico aflora em algumas descrições
da natureza e abranda esse estado de coisas; para isso, elabora imagens a partir do luar, das
flores nas casas dos operários ou do amanhecer na Campanha (nos Pampas), por exemplo;
brotando daí um lirismo que embeleza a situação retratada.
Sem perder o fôlego, Jurandir retrata a inauguração da Sociedade União Operária
(SUO), nos anos finais do século XIX, acompanhando de perto as ações de três gerações de
lideranças operárias, sobre as quais recai o foco de atenção, em busca da historicidade
necessária à trama. A 1ª geração é de orientação anarquista, com a segunda e a terceira (esta
última que se insinua no fecho do romance, em 1952), sendo de orientação socialista. Um dos
líderes da 1ª geração é também o personagem central de Linha do Parque: Luís Iglezias,
anarquista convicto, que mantinha interesse por Dulce, mas se casou com Marcela, para
104

protegê-la, por estar grávida do namorado. Jurandir não superpovoou seu romance com heróis
positivos, estereotipados (capazes de paixão apenas pela causa partidária, por exemplo), mas
com seres humanizados, até mesmo pelos desencontros amorosos sofridos, falhas de caráter
ou erros de estratégia na liderança da greve geral.
Jurandir, por isso, inscreve a narrativa das lutas do operariado com verossimilhança,
retratando o avanço na defesa dos ideais e seus recuos advindos de contradições e vacilações
dos personagens, na dúvida entre defender anseios coletivos ou individuais, com alguns destes
hesitando ou mesmo abandonando a causa partidária. As dificuldades, então, são muitas e de
vária ordem, desde um baixíssimo grau de escolaridade dos operários ao machismo reinante,
que sufocava a consolidação de lideranças femininas.
Na verdade, o prefácio de Furtado é de uma tal densidade quase impossível de se
resumir. Findamos aqui nossos comentários com aquilo que a autora denominou de pontos
favorecedores do autor na sua autoconstrução como romancista, com que ele soube lidar de
modo sensível, seja em todo seu Ciclo, seja em seu romance do Extremo-Sul: a relevância de
se valorizar a criança, a mulher e a apreensão da literatura e das artes em geral no enredo de
seus livros. Em Linha do Parque há um personagem que incorpora todo o valor que se deve
dar à leitura: Saldanha, que, com sua fome de leitura, inspira a todos e é o único da 1ª geração
ainda vivo no fecho do romance, em 1952.
Também em 2020, pela Paka-Tatu, foi publicado Epístolas poéticas: Maria de Belém
Menezes e Dalcídio Jurandir, organizado por Josebel Akel Fares e Paulo Nunes, que reúne
correspondências trocadas entre Jurandir e a filha de seu amigo e escritor Bruno de Menezes75.
Cartas com assuntos diversos trocados entre os missivistas: do banal do dia a dia ao poético,
espraiando-se, surgindo das memórias dos dois, de cada um, da família, do local, do nacional;
dialogando em torno dos ideais de uma geração: mais igualdade entre as pessoas, valorização
dos traços culturais híbridos e ricos de uma certa amazonidade (valorização dos traços
ameríndios, da caboclice, da negritude, por exemplo).
Também foram publicados alguns livros que na íntegra se referem à obra de Jurandir
e outros que nela se detêm em parte da obra. Como exemplo deste último caso, temos o livro
Poesia e ficção na Amazônia brasileira, publicado em 2017, tendo como organizadores

75
Bento Bruno de Menezes Costa (1893-1963) foi um escritor e jornalista nascido no Pará, também autodidata,
como seu amigo Dalcídio Jurandir. Escreveu obras de poesia, como, entre outras, Bailado lunar (1924), com a
qual introduziu o Modernismo no Pará; Batuque (1931), sua mais conhecida e estudada obra. Escreveu uma
novela e um romance, respectivamente Maria Dagmar (1950) e Candunga (1954). Escreveu estudos sobre
folclore e literatura. Foi laureado com prêmios, como o José Veríssimo, com Candunga (1954) e o Cidade de
São Jorge dos Ilhéus, com o livro de poesia Onze sonetos (1960). Foi membro da Academia Paraense de Letras
e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.
105

Gabriel Albuquerque e Maria de Fátima do Nascimento, do qual faz parte mais um estudo
dalcidiano de Marlí Furtado: “Chove nos campos de Cachoeira: ‘a força bárbara e caótica’ de
Dalcídio Jurandir na figuração da Amazônia”, em que discute dois textos de crítica literária
de Álvaro Lins ao romance Chove nos campos de Cachoeira, contrapondo-se a estes no que
eles apresentam de incoerência e imprecisão ao tratar do romance de Jurandir, como, por
exemplo, na passagem “O sr. Dalcídio Jurandir revelando uma autêntica força de romancista,
embora ainda informe e bárbaro” (LINS apud FURTADO, 2017, p. 102); todavia, a
pesquisadora demonstra que Lins acertou ao comentar que Jurandir foi feliz ao usar alguns
recursos narrativos, como o monólogo interior, o discurso introspectivo e a análise psicológica
das personagens. As reflexões da pesquisadora trazem à tona os temas, subtemas e temas
embutidos no romance de estreia de Jurandir, assim como despertam para a consciência crítica
de Jurandir, cuja técnica narrativa dominava de modo não intuitivo, a partir de um narrador
que pode sugerir mais do que dizer, mais ainda em se tratando de um uso específico da
linguagem caprichada no que a pesquisadora denominou de “notações líricas”, com sua prosa
se poetizando pelos sentidos despertos no leitor por uma espacialização76 reflexa (BORGES
FILHO, 2007) “[...] com imagens carregadas de luz, cor e movimento” (FURTADO, 2017, p.
115).
Ainda como exemplo do último caso, foi publicado em 2018 o livro Literatura e
ensino: análises e reflexões acadêmicas em: Guimarães Rosa, Machado de Assis e Dalcídio
Jurandir, tendo como organizadores Cristiane do Socorro da Silva, Orivalda Cerdeira Feitosa
e Idimar Chaves Cardoso. Nesse livro há os estudos “O ensino de literatura e a obra de
Dalcídio Jurandir”, que compõe o terceiro capítulo, escrito por Ailton Pinheiro da Silva e
Idimar Chaves Cardoso; e “Dalcídio Jurandir: leitura e recepção em sala de aula”, que compõe
o quarto capítulo, escrito por Cristiane do Socorro Gonçalves Farias. Todos os artigos do livro
em questão analisam obras literárias dos três escritores citados, procurando relacioná-las ao
ensino na Educação Básica. No caso dos dois últimos artigos, cujos títulos estão
supramencionados, estes valorizam a produção literária de expressão amazônica, tomando
como exemplo Dalcídio Jurandir, autor que permite ao coletivo de sua recepção uma reflexão
mais profunda da realidade da Região Norte, que se insere no grande painel que é a Amazônia

76
“Por espacialização entendemos a maneira pela qual o espaço é instalado dentro da narrativa” (BORGES
FILHO, 2007, p. 61). É um conceito que Ozíris Borges Filho criou para substituir ‘ambientação’ (LINS, 1978),
considerado terminologia não operacional por Borges Filho. Espacialização reflexa é aquela em que “[...] os
espaços são percebidos através da personagem sem intrusão direta do narrador, exceto se o narrador for também
personagem” (BORGES FILHO, 2007, p. 64). As outras modalidades de espacialização aparecerão em outras
notas de rodapé, conforme forem mencionadas nesta tese.
106

brasileira, pano de fundo da vida de milhões de brasileiros, de modo geral desprovidos das
benesses sociais que, se já são de difícil acesso em outras regiões do Brasil, aqui se tornam
praticamente inalcançáveis para uma parcela considerável da população.
Como exemplo do primeiro caso, um livro que aborda na íntegra a obra de Jurandir é
Boca do Amazonas (2019), de Willi Bolle, em que as obras do Extremo-Norte constituem
corpus de estudo da Amazônia em sua Cultura, História e Literatura. A partir da literatura
dalcidiana, o leitor do livro de Bolle tem uma visão amplificada da Amazônia e seus habitantes
pela mostra que nos dá Jurandir de uma parte da região e de um tempo específico (as primeiras
décadas do século XX). Aquela forma de metonímia que representa o todo pela parte, a
sinédoque, aqui se faz perceber notoriamente. Bolle considera que Jurandir elaborou seu
roman-fleuve preocupado em registrar, em sua extensa obra literária, uma espécie de
enciclopédia cultural sobre a Amazônia, um dictio-narium amazônico, principalmente no
romance-epílogo do Ciclo do Extremo-Norte, que é Ribanceira, décimo romance do ciclo,
cujas falas dos personagens são ainda mais significativas no que tange a esse aspecto, que
poderíamos nomear de registro etnológico.
Antes de direcionarmos esta seção para o fim, sentimos a necessidade de uma
contextualização que situe os dois romances, estudados aqui, em uma estética literária. Então,
comecemos por Chove nos campos de Cachoeira. O romance foi finalizado em 1939, mas
publicado em 1941. Daí que Luís Bueno, em seu quase monumental livro Uma história do
romance de 30 (2006), não inseriu a obra de Dalcídio Jurandir no rol dos romances
selecionados, lidos e analisados como publicações relevantes dos anos de 1930. Bueno
esclareceu que “[...] qualquer romance publicado entre 1930 e 1939 interessou ao trabalho e,
desde que se localizasse um exemplar, foi lido [...]” (BUENO, 2015, p. 15).
Mas o artigo Dalcídio Jurandir e o romance de trinta ou um autor de 30 publicado em
40, de Marlí Furtado77, põe em discussão mais que a questão cronológica, pois considera, para
o alinhamento de Jurandir aos autores consagrados desse período, os traços intimistas
presentes no romance Chove nos campos de Cachoeira, somando-se aos seus caracteres
sociais ou regionalistas, já que parte considerável de estudiosos rotularam Jurandir como
fazendo parte do “grupo do norte”, “amazônico”, “paraense”, ou autor de um “regionalismo
menor”, um afunilamento um tanto limitador e estereotipado, presente em algumas histórias
literárias.

77
Artigo publicado em Revista Teresa. Cf. em nossas referências.
107

Época marcada por discussões radicais e embates acirrados, os anos de 1930 foram de
polarizações entre partidos e regimes, à extrema direita ou à extrema esquerda. No Brasil, o
Anarquismo (já em arrefecimento) e o Socialismo se opunham ao Integralismo do governo
pós-revolução de 1930 e Estado Novo, de Getúlio Vargas. Na Europa, o Socialismo enfrentava
o Fascismo e o Nazismo, na verdade com consequências nefastas em todos os continentes,
com inúmeras nações ainda lutando para se recuperar dos severos efeitos socioeconômicos da
quebra da Bolsa de Nova Iorque. A herança que adviria desse contexto a grande maioria sabe:
os horrores da II Guerra Mundial.
No artigo citado, Furtado situou Dalcídio Jurandir no âmbito desse convulsionado
contexto, em que os romances de 30, dando continuidade à tradição literária do século XIX,
ou estando ligada ao movimento de 22 − polêmica ainda acesa entre os estudiosos da área –
seguiram duas direções, em oposição, pelo menos aparente: a “social” e a “intimista”. De
dominante do início da década até mais ou menos o ano de 1937, a vertente social acaba por
se desgastar e dar oportunidade à dominância da outra, a intimista, fato atribuído por Bueno a
uma espécie de frustração, ligada ao período em que Getúlio Vargas (1882-1954) instaurou
seu regime ditatorial que ficou conhecido como Estado Novo, que duraria até 1946, fortemente
caracterizado pela centralização do poder e autoritarismo, cujas consequências também se
voltaram à literatura, sob forma, por exemplo, da censura. Um exemplo emblemático disso é
a apreensão e queima, “[...] pelas autoridades do Estado Novo”78, de centenas de exemplares
de Capitães de areia (1937), romance de Jorge Amado.
Conceitos trabalhados no espesso volume de Luís Bueno (Uma história do romance
de 30), “romance de 30” e “proletário” podem ter entendimento não muito claro entre alguns
leitores. Deve-se entender proletário como o pobre em geral, aquele em que se percebe uma
espécie de “ar de revolta” contra o sistema, estando também à margem da sociedade. Para os
romancistas, seriam proletários os trabalhadores rurais, vaqueiros, estivadores, militantes,
miseráveis, prostitutas, homossexuais, retirantes, mendigos, desempregados, viúvas
desamparadas, jovens intelectuais, etc. Segundo o ideário de esquerda, esses e outros mais,
não mencionados por uma questão de parcimônia, são considerados os operários modernos.
Não isenta de dissensões, a denominação romance de 30 − tendendo esta orientação
política de “direita” tanto quanto de “esquerda” −, também aceita outras nomeações, como
por exemplo: “romance social”, “regionalista”, “de esquerda”, “engajado”, “revolucionário”,
“intimista”, “psicológico”, etc. A locução “romance de 30”, com maior aparência de

78
Informações e mais detalhes, consultar o Portal da Literatura: o portal da literatura em português. Disponível
em: https://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=4019. Acesso em 20/03/2023.
108

neutralidade, apenas delimitando no tempo, é uma solução menos engessante, por ser menos
rígida. Inserido nesse rótulo, para ser enquadrado em um nicho dito de esquerda, o livro
deveria ter “espírito documental”, principalmente no fazer registro da vida das camadas mais
pobres, dando relevo aos “movimentos de massa e sentimento de luta e de revolta”. Tão vaga
quanto a anterior, a denominação de literatura de direita também era chamada de acordo com
certa tendência do escritor: “católico” era aquele mesmo “conservador” (anticomunista), e
ainda em virtude das polarizações comuns à década, para se opor a romance social ou regional,
ou mesmo engajado, autores publicam romances que viriam a ser chamados de intimistas ou
psicológicos.
Embora o caráter de regionalistas avulte nos dois primeiros romances de Jurandir (que
são Chove nos campos de Cachoeira e Marajó, ambos concluídos em 1939 – portanto,
romances de 30 –, mas só publicados nos anos 40), são os traços intimistas o que há de mais
genuíno neles (FURTADO, 2015). Não esqueçamos que, para Bueno, no livro mencionado, o
desdém em relação às obras consideradas intimistas tinha mais a ver com uma crítica
empenhada do que com uma literatura de fato empenhada. Nessa perspectiva, aflorou, durante
a maior parte da década de 30, uma literatura dita regionalista, em cujo bojo há “[...] a
‘descoberta’ da realidade regional não apenas como motivo estético a explorar mas também
como realidade social a denunciar” (LYRA, Pedro. In: ASSMAR, 2003, p. 12). Essa
valorização do regionalismo naqueles anos pode ter salvaguardado alguns autores e obras: já
que eram regionalistas, e não intimistas, tal fato livrou alguns de serem tachados de alienados
ou conservadores.
É o que pode ter ocorrido anos depois com Jurandir: o fato de ser considerado
regionalista impediu seu esquecimento. Embora saibamos que os traços intimistas de sua obra
inicial contribuam para a história narrada não apresentar “[...] um enredo facilitado pela lei da
causalidade e da temporalidade cronológica” (FURTADO, 2015, p. 195), que é apreendido
por intermédio de uma narração em terceira pessoa, em que avultam os discursos indiretos
livres e a grande presença de monólogos interiores.
Para nos atermos neste momento ao romance do Extremo-Sul, retornemos ao
pesquisador Carlos Peres, que intitulou sua dissertação sobre o romance do Extremo-Sul como
Linha do parque, de Dalcídio Jurandir: romance histórico, social e proletário (a gênese do
movimento operário no Extremo Sul do Brasil). Nota-se que, em vez de buscar uma trilha de
estreitamento, o pesquisador teve a preocupação de abrir um leque, em que situa o romance
de Jurandir como, simultaneamente, histórico-social-proletário, já que, em sua argumentação,
afirma que Linha do Parque
109

apresenta ao mesmo tempo em sua temática os traços fundamentais que


caracterizam esses três gêneros literários: [1] a descrição histórica de uma
incipiente sociedade capitalista, [2] a apresentação e crítica das contradições
dessa sociedade e [3] a projeção de uma sociedade utópica baseada nos
preceitos do ideário socialista para a classe operária (PERES, 2006, p. 51).

Além desse triplo alinhamento estético-literário, Peres considera que o que há de novo
e original “[...] em Linha do Parque é o enquadramento do tema em um projeto literário que
o aproxima do ‘realismo socialista’ de matriz soviética” (PERES, 2006, p. 51)79. O pensamento
de Peres é corroborado por pesquisadores dos Estudos Literários, que, no geral, preferiram
não elaborar classificações que fossem norteadas por divisões estanques; antes, optaram por
se orientar por critérios que lhe possibilitassem uma visão analítica multilateral do romance.
Por exemplo, Massaud Moisés (1928-2018), considera que “[...] todas as classificações [de
romances] serão passíveis de discussão [...]”, tendo em vista a característica de apresentarem
“[...] uma dose de relativismo superior à das tipologias científicas” (MOISÉS, 2006, p. 297,
para as duas citações). Moisés adota a tipologia romanesca de Edwin Muir (1887-1959) que
classificou o romance como romance de ação, de personagem e de drama, mencionando à
parte, como se fossem subclasses, o romance histórico e a crônica.
Já o pesquisador português Aguiar e Silva (1939-) se apropria da tipologia formulada
por Kayser80, listando basicamente três tipos de romance, levando em consideração, para isso,
alguns critérios, que são “[...] o evento, a personagem e o espaço [...]” (SILVA, 1997, p. 684):
romance de ação ou acontecimento, de personagem e de espaço. Segundo o pesquisador
português, a validade dessa tipologia se dá se não for considerada em termos absolutos ou
como coisa de extrema rigidez. Stalloni (2001, p. 104) e Moisés (2006, p. 296) apresentam
propostas similares de agrupar os tipos de romance em torno de critérios selecionados, o que
não evita a possibilidade de enquadramento de um romance em diversas categorias, já que há
romances que, caracterizados por certa riqueza e complexidade, não cabem somente em uma
fôrma tipológica (SILVA, 1997, p. 686). Por causa disso, Moisés apresenta, como exemplos,
uma listagem de tipos, como estes: romance linear, progressivo, vertical, analítico,

79
Segundo Flávio R. Kothe, “O romance do realismo socialista soviético é o romance do operário vencedor, da
revolução vitoriosa, mas ainda com enormes tarefas e dificuldades para conseguir que o novo modo de produção
realmente venha a funcionar” (KOTHE, 2000, p. 67).
80
Wolfgang Kayser (1906-1960): estudioso da cultura e da literatura alemã, foi professor na Universidade de
Göttingen. Sua obra mais conhecida em português é Análise e interpretação da obra literária (introdução à
ciência da literatura), de 1948.
110

psicológico, introspectivo, de costumes, de ação, de personagem, de drama, de espaço, etc.


(2006, p. 297).
Aprendemos com esses três autores que não se deve tratar a divisão ou classificação
tipológica dos romances a partir de compartimentação estanque. Nenhum romance pode ser
apenas de ação, ou histórico, ou epistolar: a classificação depende do critério levado em conta.
Além da predominância de um elemento estruturador da narrativa (ação, personagem, enredo,
etc.). Pode-se levar em conta a temática abordada ou o estilo de época também. Assim, Silva
considera, por exemplo, a possibilidade de A cartuxa de Parma (1839), de Stendhal (1783-
1842), por suas características, poder ser, simultaneamente, romance de personagem, de ação,
além de romance de espaço.
Então, por apresentar certas características ligadas à temática e a outros elementos
estruturadores da narrativa romanesca, como personagem, por exemplo, o romance-embrião
se liga a outros romances, por terem um parentesco ético e estético. Neste caso, Jurandir e seu
Chove nos campos de Cachoeira compõem uma família com autores e obras como Rachel de
Queiroz, (1910-2003), autora de O quinze (1930); José Lins do Rego (1901-1957), autor de
Menino do engenho (1932); e Graciliano Ramos (1892-1953), autor de Vidas secas (1938),
sendo Jurandir então um legítimo representante do Romance de 30. Já no outro caso, de
Jurandir e seu Linha do Parque, participam de um grupo familiar de autores e respectivos
romances, tais como: Pagu, pseudônimo de Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), autora de
Parque industrial (1933), considerado o primeiro romance proletário de nossa literatura; Jorge
Amado (1912-2001), autor de Subterrâneos da liberdade (1954), livro em três tomos, já um
pouco mais pormenorizado em seção anterior a esta nesta pesquisa; e Alina Paim (1919-2011),
autora de A hora próxima (1955), livro já mencionado e comentado aqui. Consideramos a
tripla classificação de Linha do Parque, como romance histórico, social e proletário, mas com
a temática influenciada pelo Realismo Socialista, sem Jurandir estar rigorosamente cumprindo
as orientações preconizadas de forma modelar pelos ideólogos principais dessa estética
proselitista, que são Górki, Zhdanov e, também, Stalin. Tal fato já foi aludido por nós ‒ certo
que de maneira superficial, na página 66 desta pesquisa ‒, mas que se poderá demonstrar com
maior clareza e rigor na próxima seção, de natureza analítico-interpretativa.
Mas, antes disso, não se pode esquecer do que Bueno denominou de figura-síntese do
Romance de 30: o fracassado. O estudioso aponta quem primeiro notou a recorrência desse
tipo de personagem: Mário de Andrade, que não via com bons olhos a fixação dos romancistas
daquela década em criar protagonistas que, entre outras características, mostravam-se
incapacitados para viver, sem fibra e incompetentes para encarar as mazelas da vida difícil
111

que viviam, cujo exemplo típico seria o personagem Carlos de Melo, criado por José Lins do
Rego, para ser um dos heróis (mas um herói fracassado) de seu Ciclo da cana-de-açúcar, além
do “moleque Ricardo” e “tio Juca”, mais dois fracassados desse mesmo ciclo. Outro
fracassado, indicado por Mário de Andrade, é Luís da Silva, de Angústia, romance de
Graciliano Ramos. E quem seria o fracassado no romance-embrião de Dalcídio Jurandir senão
Eutanázio Coimbra? Sim, ele mesmo, que faz jus integralmente aos termos postos logo acima.
Furtado (2010, p. 26), que fez uma análise mais detida nesse personagem, mostrou-nos um
retrato de Eutanázio durante aquele seu último inverno em Cachoeira:

[...] perto dos quarenta anos, muito magro, na boca apenas cacos de dentes,
doente, encostado na casa do pai, sem dinheiro e emprego, sem saber o que
fazer porque não organizou um plano de vida, ele é a decrepitude em pessoa.
Todavia profundamente apaixonado por Irene, não se abstém do papel de
provedor que lhe conferem as mulheres da casa de seu Cristóvão. Cumpre
ele um ritual diário de humilhação, num vaivém constante entre o chalé do
pai e o chalé em que habita Irene. Como um zumbi, percorre as ruas de uma
Cachoeira tão pobre e tão decaída quanto ele (FURTADO, 20010, p. 26).

Se o herói fracassado é uma espécie de lugar-comum do Romance de 30, cuja


existência na narrativa é uma das características desse período estético, já a detecção do herói
positivo nos põe diante de uma obra do Realismo Socialista, constituindo-se também como
uma espécie de lugar-comum dessa estética literária. Herói positivo é uma espécie de “herói
exemplar” (SISMONDI, 2000), “um modelo imitável” (JOLLES apud SILVA, 2020, p. 301),
“[...] dotado de uma sólida consciência política e de um enorme espírito de sacrifício torna-se
exemplo para os camaradas não tão dotados assim de como se deve proceder na incansável
luta para a construção do socialismo” (ANDRADE, 2010, p. 162-163).
O mais próximo desse tipo de herói em Linha do Parque é Iglezias, o espanhol que,
em grande parte de seu tempo, esteve pensando ou agindo em prol da coletividade, como
introduzir o teatro como ação educativa na Sociedade União Operária (SUO), sob orientação
do Anarquismo/Socialismo. Em meio a discussões sobre os movimentos sociais no Brasil e
no mundo, Iglezias, juntamente com outros personagens (entre estes, Estela, Julieta, Saldanha,
Luiz Pinheiro), participaram de greves e motins. Mas, no início de Linha do Parque, entre as
atividades político-culturais na Sociedade União Operária, como as sessões de peças teatrais,
discussões, planejamento de greves e motins, os pensamentos de Iglezias, vez por outra, em
momentos de solidão, voltavam-se para Dulce, por quem nutria sentimentos de afeto. Então,
quase se esquecia, temporariamente, da causa revolucionária, do partido, do povo. Alguns
outros personagens apresentavam hesitações em continuar defendendo a causa, ou desta se
112

afastando de vez, por causa de relacionamentos conjugais, por exemplo, fatos que, para o
comitê central do PCB, não eram condizentes com o ideário realista socialista. Então, os heróis
em Linha do Parque ‒ Iglezias e seus companheiros ‒ não são, a rigor, heróis positivos.
Talvez, heróis proletários.
Em síntese, nesta seção, apresentamos as circunstâncias de origem dos dois romances
estudados, fazendo diferenciações de como vieram a ser escritos e publicados, listando e
comentando também suas edições, a história das dificuldades surgidas quando da impressão
de suas edições princeps, abordando alguns fatos curiosos também, no que tange a
convergências e divergências entre as obras. Por exemplo, os romances demoraram a ser
impressos (Linha do Parque bem mais tempo que Chove nos campos de Cachoeira). Outro
exemplo é a riqueza de anúncios e comentários críticos em periódicos sobre as duas obras nos
momentos de suas publicações, o que nos surpreendeu. Também chama a atenção a
disparidade entre a quantidade de edições dos dois romances, com uma enorme vantagem para
Chove nos campos de Cachoeira, o romance mais editado da obra dalcidiana, com 8 (oito)
edições, só para relembrar, enquanto Linha do Parque tem apenas 3 (três)81.
O conjunto da fortuna crítica que apresentamos sobre as obras estudadas teve como
propósito uma ampliação de horizontes para nosso estudo, um aprofundamento de conteúdo,
mas também simultaneamente uma delimitação de rumos. Por outro lado, nosso intuito não
foi o de exaurir a matéria tratada, mesmo porque seria tarefa muito improvável de ser
alcançada. Daí que ausências serão, certamente, notadas82. Uma justificativa desse fato é que
o recorte levou em consideração a abordagem temática, linha de pesquisa e vieses exigidos
pelo aporte teórico empregado. O fator tempo também pesou, em relação, por exemplo, ao
contato com a publicações de novos trabalhos acadêmicos (dissertações e teses) depositados
nos repositórios institucionais de Universidades (principalmente no da UFPA): a
indisponibilidade de tempo hábil para apropriação de seus conteúdos acabou fazendo com que
quase não os utilizasse nesta pesquisa, ou os utilizasse apenas en passant. Por outro lado,
também como exemplo, alguns desses trabalhos, já defendidos, ainda não constavam nos
repositórios (no caso, na Biblioteca Central da UFPA).
Com base em reflexões de alguns estudiosos, demonstramos as possibilidades de
enquadramento estético dos dois romances, com Chove nos campos de Cachoeira sendo

81
Excluindo da contagem a edição ilegal, a contrafação.
82
Por exemplo: ASSIS, Rosa (org.). Estudos comemorativos: Marajó ‒ Dalcídio Jurandir ‒ 60 anos. Belém:
Unama, 2007; Revista Pará.grafo 2019: Especial Dalcídio Jurandir. Bragança: Pará.grafo Editora, 2019; e
CASTILO, Luís Heleno Montoril Del; SANTOS, Ilton Ribeiro dos; CORRÊA, Paulo Maués; AUTIELLO,
Sheila Maués (orgs.). Amazônia entre ensaios 2: Dalcídio Jurandir. Belém: Paka-Tatu, 2020.
113

considerado um Romance de 30, contando com a presença de pelo menos um herói fracassado
(Eutanázio), lugar-comum em obras desse estilo literário. Já em Linha do Parque,
consideramos seu triplo enquadramento como romance histórico, social e proletário, sem
deixar de perceber também sua inspiração no Realismo Socialista, em que o protagonista
(Iglezias) apresenta características que o aproximam do herói positivo, já este sendo lugar-
comum ao estilo literário recém-mencionado.
Então, resta dizer que procuramos alcançar, nesta seção, um horizonte que
possibilitasse nossa aproximação de um e de outro dos extremos na obra de Dalcídio Jurandir
‒ assim como a aproximação desses extremos entre si ‒ para, em seguida, podermos ser
capazes de vislumbrar, com maior nitidez, a dicotomia que se manifesta na relação entre
Chove nos campos de Cachoeira (não só como romance autônomo, mas também como
gérmen de toda a série, composta pelos 10 (dez) volumes do Ciclo do Extremo-Norte) e o
romance do Extremo-Sul. Não uma dicotomia que se perceba por separações estanques, mas
por fronteiras que, vez por outra, se interpenetram e esmaecem suas extremidades, algumas
vezes diluindo-se ao serem submetidas a cotejo, como no caso da opção dalcidiana por mostrar
protagonismo de personagens femininos. Vejamos: se de um lado as mulheres operárias
(tecelãs), a princípio, não tinham voz nas reuniões da Sociedade União Operária, na narrativa
de Linha do Parque, também em Chove nos campos de Cachoeira seu campo de atuação
estava circunscrito ao espaço familiar e do lar. Contudo, assim como as operárias
protagonizaram o primeiro motim de sucesso em uma fábrica, a União Fabril, no romance do
Extremo-Sul, as mulheres donas de casa, em Chove nos campos de Cachoeira, como dona
Amélia, dona Gemi (de Geminiana) e dona Maria dos Navegantes, por exemplo, tornaram-se
protagonistas de ações essenciais à saúde do povo de Cachoeira. Dona Amélia curava
gargantas de crianças, dava purgantes a elas, ajudava dona Maria dos Navegantes em partos
complicados, enfim, cuidava de homens, mulheres e crianças adoentadas. As ações dessas
mulheres impediam que quem adoecesse ali em Cachoeira ficasse entregue à própria sorte.
114

4 CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA E LINHA DO PARQUE: UMA LEITURA


DOS EXTREMOS NA OBRA DE DALCÍDIO JURANDIR

Fiz ainda, entre 1951 e 1955, o Linha do Parque, sobre


trabalhadores da cidade do Rio Grande, onde passei umas
temporadas, livro de muito amor e de uma definição, em
termos de romance, que marca, sem rodeios e creio que por
todo o resto de minha vida, o meu pensamento como escritor
e como romancista. (JURANDIR, Dalcídio. Asas da palavra,
Belém, n. 4, p. 32, jun. 1996) 83

Os títulos dos romances muito têm a nos dizer, como no caso dos dois aqui estudados.
O título Chove nos campos de Cachoeira é uma oração sem sujeito, em que a ação recai sobre
o próprio fenômeno ao qual se refere o verbo: chover. É a chuva que chove, embora em sã
consciência nenhum falante nativo de português diga isso em nosso idioma, por se tratar de
um verbo impessoal, em que a ênfase da mensagem está na própria ação natural de chover,
fato que independe de qualquer vontade ou intervenção humana. Então, o título pode sugerir
que cabe ao ser humano, imprescindivelmente, entender a dinâmica do período e adaptar-se
às intempéries da estação chuvosa, o que não é fácil para quem não conhece a região, mas é
fato pouco preocupante para os caboclos que nasceram e cresceram por ali, tão familiarizados
com as águas da chuva, da Baía de Marajó, do lago Arari e do rio de mesmo nome.
A estação da chuva alimenta a vazão da maior bacia hidrográfica do mundo, cujo rio
principal é também o maior do planeta em extensão e volume de água: o Amazonas. Inserida
nesse vasto território ‒ a Amazônia ‒ onde serpenteiam esse imenso rio e seus afluentes, a
região do Marajó, com seus campos e suas florestas entrecortadas por inúmeros rios e
igarapés, além de abrigar uma flora e uma fauna que são um filão de biodiversidade, também
são o locus de existência de 17 municípios84; dentre eles, o de Cachoeira do Arari85,
ficcionalizado por Jurandir, que o chamou no romance apenas de ‘Cachoeira’. Trata-se,
portanto, de um topônimo: a denominação de um pequeno núcleo de povoamento interiorano

83
Conferir nas referências a entrevista concedida pelo escritor a Eneida de Moraes no livro Romancistas também
personagens (1962).
84
São estes os municípios, em ordem alfabética: Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves,
Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Oeiras do Pará, Ponta de Pedras, Portel, Salvaterra, Santa Cruz do Arari,
São Sebastião da Boa Vista e Soure.
85
“Cachoeira ‒ Cachoeira do Arari, Município da Ilha do Marajó na margem esquerda do Rio Arari. Em 1744,
houve a fundação da antiga freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Rio Arari. Também já
foi chamado de Arariúna (JURANDIR, 2020, p. 362. Informações compiladas da “Lista de Topônimos”, um dos
anexos da 8ª edição de Chove nos campos de Cachoeira).
115

que se tornou uma vila. No romance, a vila é elevada à categoria de intendência, por interesses
escusos.
O pesquisador Luis Valadares de Aquino, em sua Dissertação de Mestrado Um passeio
nos campos seria uma viagem pelo mundo: linguagem e experiência em Dalcídio Jurandir
(UFPA, 2013), salienta alguns aspectos do título no que toca à sonoridade, pela exploração de
fonemas, de que destacamos a aliteração com as fricativas (na escrita, a repetição do ‘ch’),
como sugestões onomatopaicas de água caindo (chuva) e correndo (cachoeira). Em relação ao
sentido do verbo, no presente do indicativo (chove), indica que o fenômeno é constante, que
é ininterrupto e que está ocorrendo no momento em que é enunciado. A colocação dos termos
no título, ainda aproveitando ideias de Aquino ‒ e acrescentando outras ‒, leva à percepção
de que os campos estão ilhados pelas águas que os cercaram, aos poucos, conforme a estação
das grandes águas foi se instaurando. A passagem a seguir, de Chove nos campos de
Cachoeira, figura de modo perfeito (e de maneira poética) essa imagem: “Os campos de
Cachoeira vinham de longe olhar as casas da vila à beira do rio, com desejo de partir com
aquelas águas. Quando chovia, mesmo verão, as chuvas eram grandes e os campos ficavam
alagados” (JURANDIR, 1997, p. 23). Vive-se, então, nesse lugar, sob uma espécie de
dependência do regime das águas, fato este representado no título do conhecido livro do Padre
Giovanni Gallo (1927-2003)86: Marajó, a ditadura da água (1979), do qual extraímos esta
passagem exemplar:

Quem manda aqui não é presidente da república, não é governador, não é


prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada
na Constituição ou nas Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é
a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao
desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a
voz, sem violência, mas implacável e total. […] As estações do ano, aqui
têm um nome exclusivo: água, lama e seca (GALLO, 1980, p. 61).

Já o título Linha do Parque, elaborado apenas como uma locução, tem como termo
principal o vocábulo ‘linha’, cujo adjunto ‘do Parque’ ‒ a lhe caracterizar ‒ acrescenta-lhe
uma informação espacial, como ocorre com o título do outro romance, em que ‘de Cachoeira’
caracteriza o termo ‘nos (contração de ‘em + os’) campos’, situando-o espacialmente. Linha
do Parque também diz respeito a um topônimo; nesse caso, a ficcionalização de um local

86
Giovanni Gallo nasceu na Itália, em Turim, em 1927 e faleceu em Belém (Brasil), em 2003. Naturalizado
brasileiro, era padre da Companhia de Jesus. É autor dos seguintes livros: Motivos ornamentais da cerâmica
marajoara (1996), O homem que implodiu (1996) e Marajó, a ditadura da água (1997). Além de padre e escritor,
foi também arqueólogo, etnólogo, museólogo e fotógrafo, sendo seu mais relevante feito a fundação do Museu
do Marajó, em 1972.
116

específico dentro do mapa do núcleo urbano do Rio Grande87, com suas fábricas e sistema de
transporte urbano por meio de bondes, tudo bem diferente da “vila de cartão postal”
(JURANDIR, 1997, p. 205) e dos campos, aos quais já nos referimos, espalhados estes pelos
arredores da cidadezinha marajoara. Como se vê, é impossível deixar de notar as diferenças
claras já mencionadas pelos vários estudiosos que primeiro se referiram a Linha do Parque
como obra fora do ciclo romanesco dalcidiano, naquela época composto por Chove nos
campos de Cachoeira, Marajó e Três casas e um rio. Dessas diferenças é possível abstrair a
dicotomia na obra de Jurandir. Mas, um ano depois de publicar Linha do Parque, em 1960,
Jurandir retoma seu ciclo com a publicação de Belém do Grão-Pará, primeiro romance urbano
de sua série romanesca.
Como já sabemos, o romance do Extremo-Sul recebeu seu título depois de
provisoriamente ter sido denominado de Companheiros. Parece-nos uma denominação bem a
propósito, por estar o vocábulo situado no mesmo campo semântico do vocábulo ‘camaradas’,
bastante empregado “[...] entre membros dos partidos de esquerda e dos sindicatos”
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)88; no entanto, sem os efeitos de sentido de seu
título definitivo, relacionado ao conhecido “Massacre da Linha do Parque”, tragédia assim
nomeada por ter ocorrido na Av. Presidente Vargas, onde no canteiro central se deslocava a
linha de bondes chamada de Linha do Parque, muito utilizada por operários em seu cotidiano
de deslocamentos entre suas moradias e locais de trabalho.
Se a palavra ‘parque’, entre outros sentidos, pode transmitir a ideia de lugar para lazer
e descanso, o Parque Rio-grandense ‒ origem da denominação da linha de bondes ‒, onde o
festejo de 1º de Maio (de 1950) ocorreu na história relatada, também essa palavra pode ter o
sentido de conjunto de fábricas, a lembrar o vínculo empregatício dos operários da indústria
local ali do Rio Grande, que deveriam, para o bem do lucro do patronato, ‘não sair da linha’
em seu ambiente de trabalho mal remunerado, duro e insalubre; não deveriam faltar ao
trabalho, para não prejudicar a ‘linha de produção’. Então, não será um disparate afirmar que
Dalcídio Jurandir mudou o título de seu romance por causa da ‘linha dura’ assumida pelo

87
“A cidade do Rio Grande, situada entre a Lagoa dos Patos, ao norte, e à leste pelo Oceano Atlântico, possui o
único porto marítimo do Rio Grande do Sul. No início do século XIX, a cidade recebia embarcações de diversas
nacionalidades: norte-americanas, holandesas, inglesas, francesas, entre outras” (PERES, 2006, p. 153). Sua
origem está ligada a estas datas: em 1736, é criada a Freguesia de São Pedro. O brigadeiro José da Silva Paes
inaugura o Forte Jesus, Maria e José, assentando de vez a posse das terras do Sul. Em 1751, torna-se a Vila do
Rio Grande de São Pedro. Finalmente, em 1835, passou a ser chamada de Cidade do Rio Grande. Estas últimas
informações foram obtidas no sítio institucional da Prefeitura Municipal do rio Grande. Disponível em:
https://www.riogrande.rs.gov.br/pagina/rio-grande-2/. Acesso em: 14 out. 2022.
88
"camarada", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2020, https://dicionario.priberam.org/camarada [consultado em 05-08-2020].
117

comitê central do PCB, que nutriria uma simpatia maior por um Jurandir obediente à ‘linha
editorial’ da editora do Partido (Editorial Vitória); ou seja, que tivesse o autor marajoara
escrito seu romance devidamente alinhado ao estilo oficial dos PCs da URSS e do Brasil,
estilo chamado, como já sabemos, de Realismo Socialista.
Mas o período stalinista (que durou de 1927 a 1953) chegou ao fim, com a morte do
presidente russo, em 05/03/1953, assim como os principais ideólogos da estética socialista já
haviam também falecido: Górki em 1938, e Zhdanov, em 1948. O novo presidente da Rússia,
Nikita Kruschev (1894-1971), além de denunciar os abusos dos “expurgos”89 de seu
antecessor, afrouxou as rédeas da censura partidária em relação às artes em geral, inclusive
em relação à literatura, fato reverberado para os PCs de outros países, entre estes o Brasil.
Então, com o amolecimento das regras impostas pelo comitê central do PCB, Jurandir teve
seu livro impresso finalmente, no início do ano de 1959. Depois, como já mencionamos, é
impresso em russo, em 1962, com apresentação do romance escrita por Jorge Amado.
Partindo dos títulos90, para ir virando as páginas dos dois romances, e verificar que o
início de cada um deles revela ao leitor aspectos, no mínimo, curiosos, que merecem uma
atenção mais cuidadosa, já que de alguma forma podem influenciar nos rumos que tomará a
sequência narrativa (REUTER, 2004; SILVA, 1997). No caso deste estudo, por exemplo, a
surpresa toma conta do leitor, quando este inicia sua viagem pelas páginas de Chove nos
campos de Cachoeira. Pelo próprio título, podia-se esperar uma espacialização (BORGES
FILHO, 2007) que mergulhasse tal leitor em um universo onde a predominância da água
emergiria de imediato à abertura do livro e do folhear das páginas (FURTADO, 2017), mas
ocorre aí uma quebra de expectativa, já que as primeiras linhas do romance constroem um
ambiente bem diverso daquele que, no geral, sugere uma narrativa encharcada, ou uma
aquonarrativa (NUNES, P. J. M., 1998):

I
A NOITE VEM DOS CAMPOS QUEIMADOS

Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O caroço de tucumã


o levara também, aquele caroço que soubera escolher entre muitos no tanque
embaixo do chalé. Quando voltou já era bem tarde. A tarde sem chuva em

89
Nome dado às perseguições, prisões (nos gulags) e assassinatos empreendidos por Stalin a quem discordasse
de suas decisões. “Gulag [por extenso: Administração Central de Campos (do russo Glavnoe Upravlenie
Lagerei)]era um sistema de campos de concentração da União Soviética onde os presos políticos sofriam
violência, tortura e abusos de todos os tipos, além de serem obrigados a trabalhar em regime sub-humano. Esse
sistema teve seu auge durante o governo do ditador de Joseph Stalin”. (AZEVEDO, Amanda Maria. Redes de
campos de concentração da URSS. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/gulag.
Acesso em: 22 set. 2022).
90
Cf. em NIETO, 1996, p. 94-96, o interessante capítulo “Achar um título”.
118

Cachoeira lhe dá um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como


quem está feliz por esperar a morte. Os campos não voltaram com ele, nem
as nuvens nem os passarinhos e os desejos de Alfredo caíram pelo campo
como borboletas mortas. Mais para longe já eram os campos queimados, a
terra preta do fogo e os gaviões caçavam no ar os passarinhos tontos. E a
tarde parecia inocente, diluída num sossego humilde e descia sobre os
campos como se os consolasse. Voltava donde começavam os campos
escuros. Indagava por que os campos de Cachoeira não eram campos cheios
de flores, como aqueles campos de uma fotografia de revista que seu pai
guardava. Ouvira Major Alberto dizer à D. Amélia: campos de Holanda.
Chama-se a isso prados (JURANDIR, 1997, p. 15).

A passagem faz parcialmente as vezes de situação inicial, com o narrador


heterodiegético e onisciente apresentando três de alguns dos principais personagens do
romance, dos quais no quadro se sobressai Alfredo, de imediato surgindo como um elo com
os demais personagens. Ele está cansado por ter ido longe, para o início dos campos
queimados, a bem dizer as cercanias de Cachoeira. Esta vila é o espaço onde são ancoradas,
no geral, as ações no romance. Era um fim de tarde de verão. Aos elementos da natureza, os
campos e o caroço de tucumã, a narrativa confere o poder de conduzir o personagem menino
para longe. Outros elementos o trazem de volta a sua casa, com ações desenvolvidas em belas
comparações, prosopopeias e metáforas. O conjunto perfaz a espacialização dissimulada91,
que cria um ambiente ligado a sentimentos de entorpecimento, relacionados à morte, palavra
inclusive mencionada na passagem “[...] feliz por esperar a morte”, paradoxo que evoca, como
antecipando um futuro lúgubre, o nome de um personagem ainda não citado, Eutanázio, já
que menciona major Alberto e dona Amélia: estes, os pais; enquanto aquele, o irmão.
Logo em seguida à passagem transcrita, o segundo parágrafo dá ênfase a um cansaço
de Alfredo, talvez porque tivesse perdido o caroço de tucumã, que parecia ter vontade própria:
“O caroço saltara da mão e se escondeu num buraco de terra” (JURANDIR, 1997, p. 15).
Também porque tinha a impressão de que levava junto consigo a noite para o chalé onde
morava, deparando-se no caminho com a janela iluminada de Lucíola, vizinha que tinha por
fixação tomar Alfredo de dona Amélia, para criá-lo, como se fosse seu filho (de Lucíola, no
caso). Aí, é como se, ao voltar para casa, tivesse que observar ‒ sem entender ‒ o vulto de
Eutanázio doente e de “cara amarrada”, sem conseguir que dona Amélia explicasse qual
doença era aquela de seu irmão, ou porque major Alberto vivia em um mundo próprio, alheio
a tudo, só concentrado em seus catálogos, enquanto ele, Alfredo, tinha vergonha das marcas
de feridas em seu corpo.

91
Espacialização dissimulada é aquela em que “[...] os atos das personagens fazem surgir o espaço” (BORGES
FILHO, 2007, p. 65).
119

Há uma explicação para que aqueles campos estivessem naquele estado. A temperatura
quente e um clima seco colaboravam para a manutenção de um hábito arraigado à população,
que é o de fazer queimadas, acreditando que o procedimento serviria para renovar os pastos,
ideia com a qual não concordava major Alberto, pai de Alfredo: “‒ Uma gente que não se
corrige. Não se convencem que não devem queimar os campos. Porque... Ouviste? Psiu. ‒
Major puxa pela manga da blusa de dona Amélia. ‒ Porque... Esteriliza... Ouviste? ‒ Major
explica [...]” (JURANDIR, 1997, p. 15). O major Alberto Coimbra, secretário tesoureiro de
Cachoeira e também auxiliar do promotor público, leitor assíduo de catálogos de criação de
animais, entre outros livros e revistas de temática variada, tecia constantes críticas aos hábitos
dos moradores de Cachoeira.
O excerto analisado traz, como um presságio, as palavras ‘morte’ e ‘mortas’. Mas a
narrativa também traz consigo ares esperançosos (PANTOJA, 2019), que esmaecem o tom
pessimista que no geral contamina estas passagens iniciais, que trazem para Cachoeira a noite,
aquela mesma noite que no conto folclórico de origem indígena escapa de dentro do caroço
de tucumã (SALLES, 2001)92, assim como Alfredo escapou de dentro do poço no terreno do
chalé, sendo salvo de lá por dona Amélia, que já havia perdido um outro filho, que não
conseguiu salvar. O romance, mesmo contendo um tom carregado de pessimismo
schopenhaueriano, também não deixa de apresentar indícios de sentimentos de esperança,
advindos, neste caso, do próprio salvamento de Alfredo por sua mãe, por exemplo. Trata-se
de um episódio que, para o menino, tornou-se uma experiência de quase morte. E a morte está
frequentemente visitando as páginas de Chove nos campos de Cachoeira. Todavia, pode-se
perceber que esses episódios fatídicos também estão frequentemente à espreita dos
personagens do outro romance aqui estudado, Linha do Parque, interligando as duas obras em
uma espécie de interseção temática e episódica, de que trataremos com maior profundidade
páginas à frente.
Agora, passemos à leitura de um trecho do romance Linha do Parque:

PRIMEIRA PARTE
I

92
Vicente Salles reconta a narrativa folclórica do surgimento da noite: “A filha da Cobra Grande casou com o
filho do tuxaua, mas não queria dormir, porque sentia falta da noite. Naquele tempo, só havia dia. Só homens e
coisas. Nada de bichos. Quem tinha o segredo da noite era a Cobra Grande, que morava na cabeceira do rio:
então, resolveram mandar uns índios para pedir-lhe a noite de presente, pelo amor da filha. Eles foram lá e
voltaram com a noite presa dentro de um caroço de tucumã. Durante a viagem, curiosos, ouvindo um certo
barulho, quebraram o caroço: a noite estourou e eles viraram macacos.” (SALLES, 2001, p. 9).
120

A escuna “Elisa” chegou ao Rio Grande, numa noite de maio de 1895,


debaixo de temporal. Carregada de carvão, trazia um mastro partido e como
único passageiro aquele Iglezias que fugia da Europa.
Vestindo o casaco feito pela velha mãe em Lorenzo, vizinho de Galiza,
fronteira de Portugal, o passageiro suspirou de alívio, a ouvir, naquela
escuridão de mar e vento, descerem os velhos panos castigados. Quis cantar,
beber um pouco, pois, caramba, mais longo que a longa viagem foi entrar
naquela barra. Além disso, a escuna chegara à idade de recolher as velas para
sempre. E era já destino ao espanhol viajar em velhas barcas condenadas.
Ouvira frequentemente falar dos riscos que corriam os barcos para transpor
a barra do Rio Grande. Quantos navios, no mau tempo, iam e vinham sem
farol e sem canal, perdidos, sem promessas de porto. O naufrágio do “Apa”,
há vinte e cinco anos, tornara-se lenda de mar terrível. E na popa da escuna,
sob o ronco ainda do temporal lá fora, Iglezias escutava falar também das
lagoas que se estendiam, costa adentro, largas e fundas, naquela região de
aventuras e exílio (JURANDIR, 2020, p. 23).

O primeiro parágrafo do excerto corresponde também ao primeiro parágrafo do início


de Linha do Parque: “A escuna ‘Elisa’ chegou ao Rio Grande, numa noite de maio de 1895,
debaixo de temporal. Carregada de carvão, trazia um mastro partido e como único passageiro
aquele Iglezias que fugia da Europa” (JURANDIR, 2020, p. 23). Como uma espécie de
situação inicial, assim como no caso de Chove nos Campos de Cachoeira, aqui o narrador
heterodiegético e onisciente apresenta, logo nas primeiras linhas do livro, o personagem
central (pelo menos da primeira parte da narrativa) ao leitor: revela seu nome, de onde proveio,
aonde, quando, como chegou e por quê. A circunstância de sua chegada, sob temporal, marca
uma diferença de ambiente, que se opõe ao que se encontra no início de Chove nos campos de
Cachoeira: não é dia, mas noite; em vez de tempo seco, um temporal; em vez de terreno seco
e queimado, uma imensa laguna, onde a embarcação Elisa navega, de forma precária, pois se
encontrava danificada, mas resistia às adversidades, “[...] naquela escuridão de mar e vento
[...]”, naquela perigosa travessia da barra do Rio Grande, onde estava chegando Iglezias, mas
um tanto sem rumo, como se depreende do excerto estudado. No outro trecho, Alfredo está
caminhando em retorno para o lar, enquanto neste, Iglezias chega às terras do sul brasileiro,
mas sem possibilidades de retorno ao seu lar, à Espanha, por causa dos riscos que correria.
O leitor perceberá depois, no processo de progressão da leitura do romance, que, sendo
Luís Iglezias um anarquista militante, sua vida na Espanha corria risco; portanto, partira de lá
para o Brasil, mais especificamente para a cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, o
Extremo-Sul do país. Ocorre aí uma típica ancoragem diegética, pelas informações
apresentadas. Mas, deixando de parte momentaneamente esses dados, queremos focar no
121

contexto do espaço-tempo: o ano era 1895, e Iglezias, que tinha 28 anos, deixou a Espanha,
chegando ao Brasil, na cidade do Rio Grande, no Extremo-Sul do território nacional.
As duas embarcações mencionadas no texto (Elisa e Apa) realmente existiram, o que
confirma Jurandir como pesquisador esmerado, aspecto principalmente advindo de seu
treinamento autodidata de jornalista experiente, mas que escreve ficção; por isso, capaz de
recriar os fatos, aí se utilizando de licenças poéticas, algo que Umberto Eco nomeia de “acordo
ficcional” (ECO, 1994). Por exemplo, o navio paquete a vapor Rio Apa naufragou sem deixar
sobreviventes, mas isso se deu em 1887, dezessete anos depois da data mencionada no
romance. Já a escuna Bela Elisa esteve em atividade durante o episódio da Adesão do Pará à
Independência do Brasil, em 182393, mas não se encontram nos documentos pesquisados
nenhuma informação sobre a baixa da embarcação.
Nessas passagens estudadas, é notório que a linguagem metafórica seja intensamente
usada no trecho extraído de Chove nos campos de Cachoeira, mas parcimoniosamente
empregada no excerto pertencente a Linha do Parque. Essa riqueza figurativa pode ser
estendida à totalidade de suas obras do Extremo-Norte. No caso do romance do Extremo-Sul,
não se deve esquecer que Jurandir se deslocou até Rio Grande também para, como repórter
do Imprensa Popular, investigar o evento trágico: o conflito da Linha do Parque. Portanto,
não é de se admirar que a linguagem da narrativa empregada pelo autor esteja mais próxima
da utilizada pelo jornalismo, tendendo um pouco mais para a objetividade e clareza, sem, no
entanto, obliterar seus caracteres de poiesis, encontrados, por exemplo, nestas duas passagens
extraídas do excerto destacado “[...] naquela escuridão de mar e vento, descerem os velhos
panos castigados” e “E era já destino ao espanhol viajar em velhas barcas condenadas”.
Conforme prosseguem as duas narrativas, o narrador faz circularem pelos espaços os
protagonistas dos dois romances. Em um deles, são Alfredo e Eutanázio em seus itinerários
cachoeirenses, espaço mais restrito e circunscrito aos dois: conforme se deslocam, dão-se a
conhecer ao leitor outros personagens da narrativa marajoara, um tanto limitados, em termos
de deslocamento, a um pequeno espaço, principalmente no inverno, com boa parte dos lugares
ocupados por água, diferentemente de Iglezias, cuja narrativa vai desenhando uma espécie de
peregrinação bem mais extensa: de Vigo, na Espanha, desembarcou em Santos, mas também
esteve no Rio, em Cuba, por exemplo, em viagens anteriores. Mas nesta definitiva jornada
acabou mesmo por se fixar no Rio Grande.

93
Cf. nos documentos O naufrágio do vapor Rio Apa (1897) sob a ótica da arqueologia marítima: contextos,
relações e ressignificações, de Ramsés Mikalauscas Farherr, e em Bela Elisa, da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha, ambos constantes nas referências desta tese.
122

Os espaços pelos quais Iglezias circula põem o leitor diante de novas situações no
enredo das histórias, e em contato com outros personagens, como é o caso de Januário Caldas,
velho marceneiro de Santos, mas originário da Bahia, primeiro brasileiro que o espanhol
conheceu de fato nesta sua atual e última longa jornada, já em território nacional, com o qual
vivenciou um episódio bem-humorado, apesar da bizarrice do fato. Em comparação, o bizarro
se torna até mesmo grotesco, em Chove nos campos de Cachoeira, quando Eutanázio
testemunhou e experimentou algo que pode ser considerado uma sombria anedota
escatológica, assim como a que ocorreu com Iglezias e Januário Caldas, que acabamos de
mencionar. Os dois episódios ‒ um em cada romance ‒ carregam um contexto cômico que
acaba por esmaecer a força da sugestão trágica desses dois episódios.
Então, passaremos a estudar os dramas pessoais de, entre outros personagens do
romance de estreia, Eutanázio e Alfredo. Claro que, se seguíssemos a ordem do folheio das
páginas, deveríamos iniciar por Alfredo, pois sua queda no poço ocorreu logo na segunda
página do livro, mas o fato não apresenta o elemento cômico, ao qual devemos dar certo
relevo. Começaremos, então, pelo primeiro, partindo de um episódio que se caracteriza pelo
uso do humor negro e do grotesco em Chove nos campos de Cachoeira. A sequência narrativa
inicia na parte que corresponde ao 3º quarto da narrativa, quando Eutanázio vai à casa de dona
Duduca, após ter saído da casa de seu Cristóvão. Antes de deixar a casa da costureira, fica
sabendo do quarto (velório) da mulher de Domingão, dona Emiliana. Desse episódio (iniciado
na página 178 e findo na 184), destacamos este excerto para análise:

Depois de provar o café, Eutanázio mirou bem o fundo da xícara, olhou, e


com o dedo minguinho mexeu o café. Bebeu mais um gole e qualquer coisa
lhe ficou no beiço. E olhou para as pessoas que já tinham tomado ou ainda
bebiam o café que D. Mercedes sabia fazer.
‒ D. Mercedes, o pessoal da sala já tomou?
‒ Já, foi até o primeiro que tomou.
‒ Pois, D. Mercedes, houve um pequeno engano na água desse café. ‒ E
Eutanázio, indicando as duas latas d’água perto do fogão, perguntou,
sorrindo, pacificamente:
‒ De que é a água daquelas latas?
‒ Uma foi Valdemar que encheu para o café e a outra foi ainda a água em
que se lavou o corpo; mas por que, seu Eutanázio?
Eutanázio, devagar, levantou-se e foi acompanhado por D. Mercedes
verificar as duas latas.
‒ A senhora está vendo? A do café cheia e a do corpo...
‒ Meu Deus, será possível?...
‒ Está aqui na minha xícara esta coisa de cadáver, isso, olhe... E Eutanázio
sorria. D. Mercedes na tentativa dum gesto quis ocultar, pedir para seu
Eutanázio... Mas alguém escutara e logo se espalhou violentamente em todo
123

o chalé, no sereno, acordou os vizinhos, encheu Cachoeira, que o pessoal do


quarto tinha tomado café feito com a água que lavara a defunta!
Eutanázio saiu sorrindo. Todo aquele povo parecia fazer sobre ele uma
obscura acusação. D. Mercedes mesmo não devia perdoá-lo nunca.
Eutanázio estava com gosto de cadáver na boca, no seu tédio, na sua náusea.
De qualquer forma a mulher do Domingão ia ficar na sua vida, ia ser motivo
para Irene inventar novas comédias na varanda. Ficava nele, naquela água
com que as velhas lavaram a defunta.
Ele vai ver se ainda apanha o Salu aberto. Dr. Campos estaria ainda
conversando? (JURANDIR, 1997, p. 183-184)

Jurandir explora equilibradamente o sumário e a cena nessa passagem, imprimindo um


dinamismo e uma velocidade maior ao fato com o uso do diálogo, por intermédio do discurso
direto, entre dona Mercedes e Eutanázio, no início da passagem, buscando maior
dramaticidade. Do meio da passagem para o fim, o uso do sumário vai desacelerando a
narrativa para ir aprofundando a análise dos fatos e onisciência do narrador, revelando
preocupações futuras de Eutanázio, que seriam consequências do que bebeu, daí que prefira
sair dali, indo até a venda do Salu. O discurso indireto-livre, no fim da passagem, denuncia
que ele preferia mudar o tema da conversa, nem que fosse conversando com o doutor Campos,
o juiz substituto de Cachoeira, que bebia bastante e, aliás, parecia estar frequentemente em
estado de embriaguez.
Nota-se que, como era de se esperar, naturalmente, Eutanázio não poderia ter se
comportado de modo indiferente ao fato de ter tomado aquele café preparado com a água que
banhou o cadáver de dona Emiliana. Assim, sorriu sarcasticamente, ao sair de modo sorrateiro
da casa de Domingão. Sobre isso, as palavras da pesquisadora Marlí Furtado são
esclarecedoras: “Quem alertou a todos, regozijante, foi Eutanázio” (FURTADO, 2010, p. 30).
Certamente, para ele, não importava que tivesse bebido café preparado com água usada para
banhar o cadáver e, sim, que todos ali, além dele, também o tivessem bebido. Isso, sim, era o
que importava. Tamanho era o menosprezo nutrido por si mesmo e o desprezo pelas outras
pessoas. Tal episódio se passa dentro do capítulo “XII: Noite de silêncio no chalé”, de um
total de 20 capítulos que compõem a narrativa romanesca.
Então, sobre o personagem Eutanázio, uma reflexão torna-se imperativa: depois do
episódio do café preparado com a água que banhou o cadáver, pioraria a obsessão dele pelo
autoaniquilamento? Pela frequência rememorativa do evento com aquele café, já estaria o
narrador a ponto de passar um zíper na vivência infeliz de Eutanázio? Sentir o gosto do
cadáver anteciparia o destino inexorável dele, entranhado que está do destino último de cada
124

ser humano94. E traz à lembrança que a morte está à espreita, que o epílogo da vida é
inevitável, embora possa ser adiado, sendo o cemitério o locus de chegada dessa corrida
olímpica que é o drama vivido por qualquer um. E Eutanázio vive o drama de se considerar
hipocondríaco, de sentir-se um decrépito. “Angústia, solidão e náusea são os signos ligados a
Eutanázio e lhe timbram cores de herói problemático” (FURTADO, 2002, p. 20).
A bem dizer, Eutanázio voltava seu pensamento enfaticamente para a reação de sua
musa Irene. Tinha a absoluta certeza de qual seria o comportamento da jovem diante da notícia
de que ele bebeu daquele café: ela iria sentir ainda mais aquele nojo que sempre nutria por
ele, deixando isso bem claro em sua maldosa e escarnecedora risada: “Irene deve estar rindo
do café feito com a água que lavou o corpo de siá Emiliana” (JURANDIR, 1997, p. 206).
É um episódio fulcral para melhor se entender o drama vivenciado pelo personagem,
porque o fato vai ser reiterado em outros pontos da narrativa, como um latejar, como um sino
lúgubre a dobrar incansável e repetidamente, como na passagem a seguir:

Mariinha batia palmas. Minu tinha os olhos cobiçosos. De repente, o dobre


do sino. Major saiu da janela, irritado:
− Ainda mais isso. Eu acabava com sino anunciando morte. Isso é aldeia.
Agora é o dia todo! Quem morreu?
− A mulher do Domingão – disse D. Amélia trazendo o bule de café.
O sino dobrado e Eutanázio saiu sem tomar café. Aquele dobre de sino
entrou nele como um escárnio. A vila quietinha dentro da manhã, tinha um
ar de felicidade que sorria de Eutanázio, do dobre de finados, da explosão de
Major Alberto. (JURANDIR, 1997, p. 205)

Naquele momento no velório, “Eutanázio saiu sorrindo”. Mas, horas depois, sua
percepção sobre o fato mudou. Tornou-se uma lembrança ruim martelando em sua cabeça,
como se os sons dos dobres do sino escarnecessem dele, ainda mais porque a espacialização,
no final do excerto, apresenta-se sob forma de contraste em relação ao sentimento de
Eutanázio, constituindo-se como uma heterologia (DIMAS, 1994), conforme terminologia de
Tomachevski95, que se caracteriza também por uma linguagem caprichada nas notações líricas
(FURTADO, 2017).

94
Etimologicamente, Eutanázio, do grego euthanasía, significa ‘morte sem sofrimento’.
95
Boris Viktorovich Tomachevski (1890-1957): nascido na Rússia, em São Petersburgo, foi um teórico da
literatura da corrente de pensamento do Formalismo, membro do Círculo Linguístico de Moscou, da Associação
para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ) e da União dos Escritores Soviéticos. Foi também crítico
literário, além de tradutor. Entre suas obras, destacam-se Teoria da Literatura (Poética), de 1925; “O escritor e
o livro: um esboço de textologia, de 1928; “A vida dos procedimentos da trama”, publicado em Teoria da
Literatura: formalistas russos, de 1973; e “Sobre o verso” e “Temática”, ambos publicados em Teoria da
Literatura: formalistas russos, de 1976. Cf. em nossas referências.
125

A reflexão do pesquisador Edilson Pantoja, a respeito desse episódio reforça sua


relevância para a trama narrativa. É o que se afirma na passagem a seguir:

A propósito, a cena do café é tão importante à trajetória de Eutanázio, que


Jurandir a comenta, algum tempo depois de lançado o romance, numa
entrevista a Clóvis Gusmão: “Aquilo fazia parte do destino de Eutanázio e
sem ele seria quebrar a sequência psicológica daqueles dias tremendos do
meu personagem” (Dom Casmurro, ed. 230, de 13 de dezembro de 1941, p.
01) (PANTOJA, 2019, p. 17).

Trata-se de uma espécie de presságio ruim, pelo menos para Eutanázio, pois, ao beber
do “café”, passou a conter dentro seu organismo o gérmen que determinaria precocemente seu
fim, como em um ato involuntário de antropofagia, assimilando para si o estado cadavérico
de dona Emiliana: “Eutanázio estava com gosto de cadáver na boca [...]” e “[...] a mulher do
Domingão ia ficar na sua vida [...].” Por causa disso, se tivéssemos que dar um título para esta
sequência narrativa, seria “Eutanázio e o café com gosto de cadáver.”
Assim como no texto-embrião, também há em Linha do Parque um episódio que
explora o humor negro, cuja comparação, sem dúvida, enriquece este trabalho. Também aqui,
se tivéssemos que dar um título à sequência narrativa, seria “Cadáveres beberrões”. Tal
sequência ocorre quando o narrador, ainda na parte inicial da narrativa, após esmiuçar detalhes
da viagem e da chegada de Iglezias no porto do Rio Grande, em 1895, na velha escuna Elisa,
esclareceu que ele escapara de ser levado para a prisão, tortura e morte na Espanha, onde era
militante ativo do Anarquismo, e teria vindo espalhar as ideias anarquistas no continente
americano, mais especificamente no Brasil. Por meio de uma analepse, revelou que o espanhol
já estivera anos antes no Brasil, na cidade de Santos, e introduziu o episódio (iniciado na
página 26 e terminado na 27), do qual se extraíram estas passagens:

Ao dobrar a esquina, naquela pressa sem rumo, quase choca-se com os


cavalos que, com dificuldade e lentidão, vinham arrastando uma velha
carroça cheia de cadáveres.
A febre amarela! Recuou de braços no ar, diante do carroceiro que, lhe
atirando pragas, fustigava os animais. Saltou valas, a praguejar com um
começo de desespero.
Dizendo que era um sábado, o dia propiciatório, o marceneiro levou Iglezias
a uma bodega e beberam [...] (JURANDIR, 2020, p. 26).
[...] Já madrugada, cheia de cerração, o carro de serviços contra a peste deu
com aqueles dois corpos e logo os recolheu em direção ao cemitério. Foram
atirados provisoriamente sobre velhas sepulturas, ao pé de cadáveres à
espera dos coveiros. E ficaram ali, à luz de um pouco de lua amarela que,
em meio de nuvens sujas, era para tanto defunto a única cera que restava.
(JURANDIR, 2020, p. 27)
126

Saíam os dois quando os coveiros vinham entrando. Estes entreolharam-se,


subitamente Iglezias saltou, a correr, seguido do velho que o chamava,
enquanto os coveiros gritavam, nos seus assombros.
Arquejantes, chegaram à bodega, o velho explicou gravemente de onde
procediam, pediu bebida.
O taberneiro, por via das dúvidas, recusou pagamento.
‒ Nesta casa, morto não paga, disse num tom de gracejo amarelo e de
convicção ao mesmo tempo.
Chegando em casa, ao pé de um morro, o baiano deu ao espanhol pousada,
mesa e luz (JURANDIR, 2020, p. 27).

Reitera-se que esta sequência narrativa está ancorada em um espaço-tempo anterior à


chegada de Iglezias ao Rio Grande: havia acabado de chegar a Santos. Estava sem dinheiro e
sem perspectiva, mas será ajudado por uma pessoa, com quem logo faz amizade, o que o
diferencia em muito em relação a Eutanázio, este mais fechado e mais casmurro.
Esse episódio de Linha do Parque nos apresenta o fato de Iglezias e seu novo
camarada, por estarem dormindo um sono pesado na areia em espaço público, em decorrência
de uma bebedeira, serem levados por uma carroça “[...] de serviços contra a peste [...]” e
depositados no cemitério, confundidos com cadáveres. Tal episódio, narrado no capítulo 1º
(grafado em numeral romano: I) da “Primeira parte”, não é jamais retomado na narrativa, seja
diretamente pela instância narrativa, seja indiretamente pelas falas de personagens, em todas
as 500 páginas do romance proletário de Jurandir, na sua 3ª edição.
Iglezias, quando de sua inicial ambientação à nova realidade, embriagou-se na
companhia do recém-conhecido “[...] Januário Caldas, o marceneiro de Santos, brasileiro da
Bahia” (JURANDIR, 2020, p. 28), como este gostava de se apresentar. Este episódio, em que
os dois são confundidos com cadáveres, acende um pavio na curiosidade leitora: como será o
desenrolar dos fatos para o espanhol? Tornar-se-ia um alcóolatra nessa terra estrangeira?
Então, o episódio em questão acaba por tensionar a leitura até mesmo como efeito da surpresa
e do suspense, direcionando a apreensão do lido para emoções ligadas à indignação, por
exemplo, com a maneira como o governo da época lidava com os setores da saúde e do
saneamento; ou ao asco, assim como ao espanto, ao medo, ou, até mesmo, à satisfação e ao
riso, como se depreende das passagens “[...] os coveiros gritavam, nos seus assombros” e “‒
Nesta casa, morto não paga [...]”.
Por outro lado, esse tipo de humor é explorado como fator de crítica de costumes e
denúncia social (expresso resumidamente na famosa máxima latina ridendo castigat mores96),

96
Segundo a Infopédia: Dicionários Porto Editora, significa em português: “Corrige os costumes, rindo”, ou
“Corrige os vícios, ridicularizando-os”. Porto Editora – castigat ridendo mores no Dicionário infopédia de
127

assim como registro do cotidiano, um cotidiano que gritava por melhor qualidade de vida nas
grandes cidades. Assim como Santos, o Rio de Janeiro ‒ a capital do Brasil naquela época ‒,
teve de passar por um longo processo de mudanças, a maior parte delas bastante impopular,
para deixar de ser uma cidade onde grassava uma grande variedade de pestilências, no final
do século XIX e início do XX, entre outros problemas que assolavam a população, não tão
diferentes assim na cidade do Rio Grande.
O medo tomava conta de todos em algumas cidades, por causa da pestilência e seu alto
índice de letalidade. O autor buscou no uso de certos vocábulos um tom que espelhe o
sentimento geral de disforia. Então, a presença, no excerto, dos vocábulos amarelo/a, em “A
febre amarela!”, “um pouco de luz amarela” e “um tom de gracejo amarelo” traduzem a
atmosfera de negatividade dos sentimentos taciturnos que tomavam conta das pessoas, ligados
à ira, tristeza ou desânimo, como nas palavras e expressões seguintes: “lhe atirando pragas”,
“desespero”, “cemitério”, “cadáveres”, “velhas sepulturas”, que não deixam de se traduzir em
“[...] linguagem carregada de significado [...]” (POUND, 1977, p. 40), também carregada
com um tipo de beleza funesta, como na passagem “E ficaram ali, à luz de um pouco de lua
amarela que, em meio de nuvens sujas, era para tanto defunto a única cera que restava.”
Mas, retomando a reflexão ligada ao episódio macabro do excerto de Linha do Parque,
atentemos para o fato de que a experiência ligada à morte também marca a vida do outro
coprotagonista de Chove nos campos de Cachoeira: Alfredo, que caiu em um poço, sendo
salvo por dona Amélia. Contudo, a passagem não traz nenhum traço de humor, mas, sim, de
silencioso desespero materno:

D. Amélia lavava umas camisas, e Alfredo, que brincava tentando fazer


figurinhas de barro, junto à tina de roupa, escorregou para dentro do poço.
Aconteceu isso em Araquiçaua97. D. Amélia não deu um grito. Saltou e foi
buscar Alfredo no fundo do poço que era raso. Salvara o filho, e daí em
diante parecia mais dela, saindo não somente da sua carne como do seu
ressentimento, que ela sempre guardava consigo mesma a respeito do outro
filho que morrera afogado (JURANDIR, 1997, p. 16).

Como já mencionamos esse fato algures nesta tese, seremos mais parcimoniosos em
nossos comentários, que são os seguintes: O trecho recortado revela que dona Amélia guarda

Locuções Latinas e Expressões Estrangeiras [em linha]. Porto: Porto Editora. Disponível em:
https://www.infopedia.pt/dicionarios/locucoes-expressoes/castigat+ridendo+mores. Acesso em: 30 nov. 2022.
97
“Araquiçaua ‒ Localidade à margem direita do [rio] Baixo Arari, próximo da foz, no município de Ponta de
Pedras, Ilha do Marajó. Araquiçaua significa ‘o lugar onde o sol ata a rede’” (JURANDIR, 2019, p. 361.
Informações compiladas da “Lista de Topônimos”, um dos anexos da 8ª edição de Chove nos campos de
Cachoeira).
128

consigo um terrível trauma: não pôde salvar um outro filho, “[...] levado pelo sucuriju98 nas
Ilhas” (JURANDIR, 1997, p. 78). Daí que o narrador use a palavra ressentimento. A alegria
se funde com a dor no coração da mãe de Alfredo, que não poderia se sentir totalmente feliz
naquele momento. Porque não poderia deixar de associar um fato ao outro: salvou este filho
agora, mas não o outro, tempos atrás. Um filho nascido nunca substitui um filho perdido: neste
caso, vale rimar amor com dor. O filho salvo desperta o amor; já o não salvo desperta o amor
com dor, que não era a única dor sentida por dona Amélia.
Mas estamos aqui fazendo considerações a respeito de alguns nomes estampados em
páginas de livros, de romances, que parecem representar seres vivos, e, mais que isso,
humanos. Melhor dizer que são seres humanos fictícios. Neste caso, personagens, que são
seres vivos, mas de papel (SANTOS; OLIVEIRA, 2001). Pondo o substantivo no singular,
personagem, dizemos que se trata de uma categoria da narrativa (ROSSUM-GUYON et al.,
19760), tão relevante para análise quanto outras categorias (como enredo, narrador, espaço,
tempo, etc.).
Sobre alguns aspectos dessa categoria da narrativa ‒ tão relevante ‒, Antonio Candido
assim se pronunciou:

Estabelecidas as características da personagem fictícia, surge um problema


que Forster reconhece e aborda de maneira difusa, sem formulação clara, e
é o seguinte: a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como
um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas
relações com a realidade do mundo, participando de um universo de ação e
de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na vida. Poderia
então a personagem ser transplantada da realidade, para que o autor atingisse
este alvo? Por outras palavras, pode-se copiar no romance um ser vivo e,
assim, aproveitar integralmente a sua realidade? Não, em sentido absoluto.
Primeiro, porque é impossível, como vimos, captar a totalidade do modo de
ser duma pessoa, ou sequer conhecê-la; segundo, porque neste caso se
dispensaria a criação artística; terceiro, porque, mesmo se fosse possível,
uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento específico, diferente
e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção
(CANDIDO, 2007, p. 64-65).

Não há como duvidar de que qualquer um dos dois filhos do major Alberto Coimbra,
seja Eutanázio, seja Alfredo (que ainda é um menino em Chove nos campos de Cachoeira),
cause nos leitores “[...] a impressão de que vive, de que é como um ser vivo”, tamanha a

98
“Sucuriju ‒ Sucuri. Serpente [que atinge tamanho considerável na idade adulta] comum nas regiões dos
grandes rios e pântanos. Sicuriju” (JURANDIR, 2019, p. 357. Informações compiladas do “Glossário”, um dos
anexos da 8ª edição de Chove nos campos de Cachoeira).
129

verossimilhança alcançada pelo autor no traçado dos dois personagens. E o mesmo se pode
afirmar de outros personagens do romance, como seu Alberto, dona Amélia, Mariinha,
Lucíola, Felícia, Dadá, Dionísio, doutor Campos, etc. Também não há como duvidar do
mesmo tipo de verossimilhança apresentada em Linha do Parque por personagens como
Iglezias, Marcela, Saldanha, Luís Pinheiro, Perez, Pizarro, Estela, Madalena, Joana, Julieta,
Maria, a Ruiva, Ângelo, etc.
São praticamente seres de “carne e osso” (NIETO, 2001), pois figuram nas páginas
como se fossem pessoas ‒ não apenas como ‘personas’ ou máscaras ‒, de origens diversas,
profissões variadas, vivendo em família, sentindo as alegrias e as dores do mundo,
compartilhando ou escondendo seus pensamentos, modos de viver ou crenças; enfim, agindo,
pensando e sentindo como verdadeiras pessoas, apenas disfarçadas de personagens. E tais
personagens, ou conduzindo os acontecimentos, ou se deixando conduzir por estes, vivenciam
muitas formas de conflito, dos quais um dos mais relevantes é o conflito dentro do núcleo
familiar, que passamos a analisar nos parágrafos a seguir.
No início do capítulo XIII de Chove nos campos de Cachoeira, intitulado de
“Eutanázio anda”, o desentendimento entre pai e filho cresceu em intensidade e tornou-se
agressão física, como demonstra este excerto:

Major Alberto só faltou amarrotar-lhe a conta na cara. Eutanázio respondeu


com desaforo. Não se rebaixou.
‒ Seu patife! ‒ E o velho avançou. Sopapou-lhe a cara diante do espanto de
Alfredo e Mariinha. Eutanázio querendo se desviar, com os cabelos
escorrendo pela cara e já por fim se deixando esbofetear pelo pai.
‒ Dá porque é pai! ‒ Era o grunhido de Eutanázio apanhando.
‒ Sem-vergonha, malcriado, seu patife. Quem é você?
‒ Homem, não está vendo? Foi o senhor mesmo que me fez ... Major tornou
a avançar [,] mas D. Amélia tinha vindo da cozinha:
‒ Que é isso, seu Alberto? Então filho e pai...
‒ Madraço. Malandro. Ainda a doença e conta para minha cabeça! Onde vou
arrumar dinheiro pra pagar uma conta dessa? Para meter no bandulho
daquele pessoal. Vá-se embora para onde estão suas irmãs! Vá para Muaná!
Patife! Arranja as suas contas e joga para cima de mim. Não basta a sua
doença, não bastam as contas que tenho pago, ainda a vergonha, o ridículo
que sofre por si, metido naquele coito!
D. Amélia chamava Alfredo para arrumar a mesa do café. Mariinha brincava
com a cachorrinha Minu. Major Alberto, com as mãos nas costas, passeava
na varanda, ora mexendo numa caixa de tipo, ora resmungando com o
desleixo de Rodolfo [,] pois deixara as chapas sem limpar, o papel cortado
em cima das caixas. Eutanázio tinha sido sempre uma consumição. Não tinha
mais remédio. Dali para pior.
‒ Psiu, psiu, acaba limpando as necessidades de D. Dejanira. Acaba assim.
Pois posso pagar uma conta dessa? Não pago. Não assumo responsabilidade.
130

Mal ganho pra comer e ainda sustentar safadezas! (JURANDIR, 1997, p.


204-205)

Esta passagem, embora um tanto extensa, justifica-se como citação porque nutre a
curiosidade leitora, apresentando personagens copartícipes da ação conflituosa, que são o
major Alberto Coimbra e seu filho Eutanázio, uma mediadora do conflito, que é dona Amélia,
mais duas testemunhas oculares, que são Alfredo e Mariinha, além de personagens evocados,
referidos no trecho como “suas irmãs”, “daquele pessoal” e “D. Dejanira”. Melhor esclarecer:
o major Alberto, ou seu Alberto, nasceu em Belém, onde trabalhou na Junta da Saúde e foi
revisor do jornal A Província, mas fez seu nome mesmo em Muaná, terra de sua esposa, para
onde foi, depois de ficar desempregado, em Belém. Ali (em Muaná) teve com a esposa quatro
filhos: Eutanázio, Natárcia, Letícia e Marialva, a mais nova, que ficou cega aos 12 anos. As
irmãs de Eutanázio, que são solteiras, ainda moram em Muaná e são dependentes
financeiramente do pai; é por isso que o major Alberto, encolerizado, profere: “Vá-se embora
para onde estão suas irmãs! Vá para Muaná!” Ali o major ficou conhecido por seus múltiplos
saberes e afazeres: além de ser major da Guarda Nacional, era festeiro de S. Sebastião, festa
para a qual escrevia os programas, recebia os padres e orientava os mordomos; sabia fabricar
os fogos de artifício, atividade que lhe marcou tanto que ele próprio compôs, imprimiu e
publicou um Opúsculo sobre a rara e arriscada profissão; era exímio narrador da Guerra do
Paraguai e da Cabanagem99; falava sobre o Imperador, a Princesa Isabel, o Conde D’Eu, o
Visconde de Ouro Preto, também sobre o seu avô, morto durante a Cabanagem; também sobre
aquela Belém dos tempos de outrora.
Seu Alberto gostava de recitar versos de escritores famosos e era orador oficial em
eventos públicos, além de ter sido professor, conhecido como mestre Alberto. Era tipógrafo
dos bons e leitor de revistas, catálogos e almanaques diversos. Então, tudo o que acabamos de
enumerar não passa de uma pequena mostra dos saberes e afazeres de seu Alberto, que, no
entanto, pouco contribuíam para que este demonstrasse afeto paterno. Por exemplo, os versos
de Eutanázio, mostrados pelas irmãs, qualificou-os de “‒ Uma porcaria. Que ele cuide doutra
vida. Uma porcaria. Está vagabundando. Nem métrica sabe, nem parece que na estante tem
um livro de versificação. Uma porcaria. Mania. Mania” (JURANDIR, 1997, p. 39). Daí que

99
Segundo o dicionário Houaiss, “[...] 4 HIST movimento insurrecional de caráter político e popular, que se
deu na província do Grão-Pará [hoje apenas Pará] em 1835-1836 | Com agitações e revoltas populares locais
até 1840 | ʘ ETM ‘cabano + agem’” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 540).
131

em sua pesquisa Furtado considere Eutanázio um poeta inconstituído (2010, p. 28), em grande
parte pelas críticas severas do pai em relação aos escritos do filho.
Após enviuvar, o Major resolveu aceitar o convite do Coronel Bernardo, para trabalhar
em Cachoeira. Lá passou a exercer os cargos de secretário da intendência e adjunto do
promotor público. Estava sempre às voltas com algum projeto que não chegava a levar a cabo.
E quase sempre demonstrava um temperamento ponderado, um pouco beirando a inércia ou
apatia, porém. Só perdia a cabeça, de fato, com Eutanázio, que na passagem citada recebe dele
os epítetos depreciativos de “‒ Sem-vergonha, malcriado, [...] patife”, entre outros, nesse caso
específico, por causa de uma conta aberta por Eutanázio na venda do Ezequias, sem o
consentimento do pai, o que resultou também nos sopapos que recebeu na face. Nessa
passagem, o narrador revela mais sobre o comportamento difícil do filho: “Eutanázio tinha
sido sempre uma consumição. Não tinha mais remédio. Dali para pior”.
Então, desde tenra idade, nosso herói problemático (FURTADO, 2010) e fracassado
(BUENO, 2015), já dava mostras bem claras de seu gênio irritadiço e rebelde. Em casa,
quando se enfezava com alguém ou alguma coisa, maltratava os animais, apedrejando os cães,
por exemplo. Na escola, aprendeu o apenas necessário “[...] para não apanhar de palmatória.
Se apanhasse, seria capaz de matar o mestre com uma pedrada” (JURANDIR, 1997, p. 37).
Com o tempo, Eutanázio resolveu que seria encadernador, recebendo críticas severas
do pai: “‒ Mas não dá pra nada. Não dá... Queres é morrer de fome?” (JURANDIR, 1997, p.
38). Passou dois anos como encadernador, mas se demitiu porque o patrão não lhe aumentou
o salário. Isso enfureceu seu Alberto, que chamou de vagabundagem a vida de Eutanázio, que
andou por Ponta de Pedras, por Muaná, por Belém, até ficar em Cachoeira, onde o pai abriu,
junto com um sócio chamado Mariano, um negócio, uma taverninha, empregando Eutanázio
como caixeiro. O negócio faliu por excesso de compras a crédito, o chamado fiado.
Eutanázio ficou por ali por Cachoeira, sempre comprando escondido na conta do pai.
Dona Amélia pediu para um comerciante, Jorge Abifadil, que separasse em outra conta o que
Eutanázio fosse tirando. Esse fato explica a atitude de exaltação e violência do major Alberto
na passagem recortada. A conta do Abifadil era porque Eutanázio, que estava enamorado de
uma certa Mundiquinha, tentava impressionar a mãe desta com algumas compras. Mas
Eutanázio precisava de algo mais que a anuência da mãe, o que se percebe numa mistura de
vozes do narrador e da Mundiquinha: “Mas o desejo e o enjoo se misturavam nela. Ele era
bom, mas por que não tomava banho?” (JURANDIR, 1997, p. 85)
Na passagem analisada, a nova conta aberta por Eutanázio, na venda do Ezequias, era
em favor da família de Irene, que residia no chalé de seu Cristóvão e dona Dejanira, casados
132

de segundas núpcias. Moravam ali também Raquel e Mariana (filhas de seu Cristóvão),
Tomázia (filha de dona Dejanira), mãe de Henriqueta, Irene ‒ já mencionada há pouco ‒ e
Rosália; tendo Bita e Cristino como filhos em comum do casal. Todos estes citados perfaziam
o que o major Alberto chamou de “daquele pessoal”.
Devido a certos hábitos dessa família, doutor Campos, o juiz substituto, deu o nome
de pandemônio para o chalé onde moravam, repleto de pessoas e de confusão. Era para lá que
Eutanázio ia toda noite, cumprindo uma espécie de sina, que era ver Irene, num ritual de
humilhação e masoquismo, de desprezo por si e pelos outros, menos, claro, por Irene, que se
tornou, para ele, uma espécie de musa perversa (FURTADO, 2010): ela o desprezava,
desrespeitava e maltratava com seu sadismo, rindo dele, certamente para afastá-lo; porém, o
masoquista frequentemente não se rende ao sádico e busca por mais sofrimento ainda, como
na figuração do inseto que, ao se aproximar demais da lâmpada, acaba morrendo pela batida
contra e pelo calor desta. Mas não desiste da lâmpada a não ser quando morre.
Como signo mais forte do desprezo por Eutanázio, Irene lhe reservava um riso
sarcástico. Para cada ação de Eutanázio, Irene ri. Vejamos a força desta expressão
palíndroma. Seja lendo da esquerda para a direita, seja o inverso disso, temos a mesma
pronúncia e, portanto, o mesmo sentido. A mesma ação de Irene para enxotar Eutanázio, fazia
com que este, na noite seguinte, estivesse de volta, abanando o rabo. Mas a repulsa nutrida
pode antecipar o fim de um martírio: buscando a autodestruição, Eutanázio buscaria também
afetar aquele universo que o rodeava e injustamente o oprimia (FURTADO, 2010), como um
manancial de adversidades ao seu redor. Daí seu ímpeto de se entregar à doença (uma DST),
depois de buscar contraí-la, deitando-se com a pobre Felícia, moça prostituída, cujo nome de
batismo poderia muito bem ser ‘Infelícia’, antropônimo usado bem a propósito, um
neologismo sugerido pelo murmúrio de compaixão e empatia pronunciado por dona Amélia
‒ “infeliz” ‒, ao socorrer a moça, após Didico ter-lhe incendiado o barraco (JURANDIR,
1958, p. 70). Dona Amélia, não esqueçamos, é madrasta de Eutanázio, ‘esposarana’100
(JURANDIR, 1958, 96) de seu Alberto e mãe de Alfredo e Mariinha. Não fosse a força de sua
presença, a cena poderia ser mais truculenta. Relembremos:

‒ Sem-vergonha, malcriado, seu patife. Quem é você?


‒ Homem, não está vendo? Foi o senhor mesmo que me fez ... Major tornou
a avançar [,] mas D. Amélia tinha vindo da cozinha:
‒ Que é isso, seu Alberto? Então filho e pai...

100
Vocábulo híbrido de português (esposa) com tupi (-rana): ‘que se parece com’, ‘que se assemelha a’. Outros
exemplos: “cajarana, canjerana, muçurana, suçuarana”. Disponível em: https://aulete.com.br/-rana. Acesso em:
24 out. 2022.
133

Dona Amélia assumia de maneira exemplar o papel de cuidadora de seu lar e


mediadora de conflitos, bem em conformidade com a ideia de família vigente naqueles idos
anos das primeiras décadas do século XX, com seu Alberto sendo o provedor da família, o
responsável pelo sustento financeiro, mas que dificilmente era o responsável pela última
palavra em certas decisões (PANTOJA, 2019, p. 12). Além do mais, dona Amélia observava
que, embora a aspereza toda de Eutanázio, ele se mostrava atencioso com Mariinha. Também
gostava de narrar histórias para Alfredo. Por isso, apaziguava os conflitos entre pai e filho. E
porque era uma pessoa bondosa, o que é facilmente perceptível pela considerável quantidade
de crianças que iam ao chalé pedir alguma coisa e pelo fato de, vez por outra, dona Amélia
tratar “[...] de alguma criança de barriga dura e com febre [...]” (JURANDIR, 1997, p. 203).
Antes de prosseguir com outros dados de dona Amélia, vejamos sua fala: “‒ Que é
isso, seu Alberto? Então filho e pai...” Temos aqui um exemplo de linguagem lacunar: a frase
é interrompida e a voz de dona Amélia fica suspensa, dando lugar às reticências; em outras
palavras, o discurso direto da personagem fica incompleto para que o leitor sinta o prazer de,
mentalmente, completá-lo, ação esta dependente da imaginação leitora, nascida esta da visão
de mundo, leitura prévia e reflexão de quem se apropria dos conteúdos estéticos, éticos e
culturais101 explícitos ou implícitos no texto. Então, percebemos aqui, como em diversos
outros episódios em Chove nos campos de Cachoeira, que Álvaro Lins estava equivocado ao
afirmar que Jurandir tinha dificuldades para imprimir mais sugestão e menos definição em sua
escritura literária (LINS apud FURTADO, 2017, p. 106).
Dona Amélia era de Muaná. De origem pobre, negra, neta de escravizados. Era
trabalhadora braçal. Acostumou-se ao trabalho pesado: “[...] cortando seringa, andando pelo
Bagre102, perna tuíra, apanhando açaí, gapuiando, atirada ao trabalho como um homem”
(JURANDIR, 1997, p. 78). Lá recebeu o convite do major Alberto para ir para Cachoeira.
Aceitou, embora as filhas dele tenham se desagradado dessa escolha, com a seguinte
justificativa preconceituosa: “Era uma pretinha. Se ainda fosse uma pessoa de qualidade...
Mas uma pretinha de pé no chão!” (JURANDIR, 1997, p. 78). Também não era muito bem
aceita pela sociedade cachoeirense, pelos mesmos motivos. Então, sofreu com o preconceito:

101
Entendemos os dados culturais como abrangentes dos dados sociais, econômicos, históricos, antropológicos,
linguísticos, etc.
102
“Bagre ‒ Município da mesorregião do Marajó” (JURANDIR, 2019, p. 361. Informações compiladas da
“Lista de Topônimos”, um dos anexos da 8ª edição de Chove nos campos de Cachoeira).
134

ser pobre, negra e semiletrada, e ainda estar coabitando a mesma casa com o major Alberto,
um branco, viúvo e letrado, isso parecia ser uma afronta à comunidade.
Dona Amélia, além de vítima de preconceitos, também era assunto de falatório. Por
exemplo, espalhara-se em Cachoeira o boato que ela maltratava Eutanázio. Por não ser filho
dela, negava-lhe comida, deixando os mantimentos em geral trancados a chave, mas “[...] D.
Tomázia viu de perto o gênio de Eutanázio, recusando os alimentos, casmurro e incapaz dum
sorriso [...] (JURANDIR, 1997, p. 65). Além de tudo isso, pesava sobre dona Amélia a perda
de seu filho, fato já mencionado. Poder-se-ia afirmar que ela deglutia muito bem tudo isso.
Mas, uma pessoa, embora dotada de uma grande capacidade de resiliência, como dona Amélia,
conseguiria seguir sua vida, sem se abalar, sofrendo por causa de preconceitos, acusações e
falatórios, por ser negra, pobre, trabalhadora braçal, semiletrada e amásia de um branco, além
de viver com o trauma e o complexo de culpa pela morte de seu primeiro filho? Daí que
comece, aos poucos, a buscar por uma válvula de escape no vinho português Quinado
Constantino, que bebia como tônico.
Dona Amélia sofria muito por causa de Mariinha, criança ainda, que apresentava uma
saúde fragilizada, comumente com febres, quase sempre causando preocupação em todos os
habitantes do chalé. Por ser também a caçula, recebia de todos atenção redobrada, inclusive,
de Eutanázio, que ela chamava de Tanázio, a quem só ela poderia entregar comida, sem que
recebesse tratamento áspero (quando a doença dele se tornou mais grave). Inclusive,
Eutanázio prometeu fazer para ela um navio de brinquedo. A cachorra Minu era uma boa
parceira de brincadeira de Mariinha, que vivia brincando e fantasiando diversas situações no
espaço do interior do chalé. A cena a seguir, dividida entre ela e Eutanázio, é de uma doçura
sem igual:

‒ Aquilo... ‒ O bracinho de Mariinha apontava para o céu.


‒ As estrelas?
‒ Sim...
‒ Foram feitas para a menina... Elas vêm te guardar quando dormires...
‒ E a gente vê? Elas embalam a gente? Ouve a voz delas?
‒ Não se ouve... Elas descem... Pergunte à sua mãe...
Mariinha esperou até muito tarde que as estrelas descessem. Eutanázio
pensou que foi talvez a única tentativa melhor de poesia que pudera fazer.
Por isso Mariinha era a única criatura que ele acariciava. Ela lhe trazia o
café, lhe dava doces, lhe pedia caixinhas, cantava modinha, vinha acordá-lo
algumas vezes (JURANDIR, 1997, p. 224).

De outro lado, Alfredo também demonstrava carinho e preocupação em relação à


irmãzinha, como se pode notar na passagem a seguir: “Alfredo saía da rede, pé-ante-pé, para
135

espiar, pelas frestas da porta do quarto, se Mariinha estava mal, se o rosto de sua mãe denotava
desespero, se, afinal, a doença de Mariinha só era mesmo uma simples febre.” (JURANDIR,
1997, p. 225). Fica evidente nestas duas passagens como o toque do lirismo é perceptível no
uso da linguagem, relacionado à temática da afetividade que uma conversa de adulto com
criança deve ter, à construção frasal advinda das escolhas lexicais que melhor se adequem ao
universo imaginativo infantil, além da busca por uma singela melodia, aliando tudo isso à
ideia de cuidado que se deve ter com frequência com as crianças, que sempre precisarão da
preocupação e proteção dos adultos.
Alfredo é um menino que está perto de seus onze anos de idade. Como já vimos, é
muito imaginativo: vive sempre com seu caroço de tucumã na mão ou no bolso, objeto mágico
que impulsiona as viagens, as fantasias do menino. Sendo mestiço, por ser filho de mãe negra
e pai branco, sua pele não é negra; todavia, também não é branca. Tem uma tez que o leva a
ser chamado de moreno, mas moreno escuro. Embora naquele momento não se identificasse
muito bem com a afrodescendência, Alfredo não gosta de ser chamado de branco. Alfredo,
“[...] eixo e fio condutor de todos os romances [do Ciclo do Extremo-Norte], com exceção de
Marajó [...]” (FREIRE, 2006, p. 5), queria sair de Cachoeira e ir para Belém, para dar
continuidade aos estudos e fugir da precariedade de tudo ali, como as doenças endêmicas e a
mortalidade infantil. major Alberto era indiferente a esse desejo do filho, mas dona Amélia,
não: “‒ Mas eu boto meu filho em Belém. Seu Alberto não se mexe, mas vai ver se não arrumo
uma casa para Alfredo ficar... Só eu me resolvendo. Senão...” (JURANDIR, 1997, p. 90).
Alfredo sentia vergonha de suas feridas, de comprar todo dia o mesmo “quilinho de
carne”, também não entendia por que sua mãe não era branca como seu pai: “Acha esquisito
que o pai seja branco e a mãe, negra. Por outro lado, envergonha-se por achar isso esquisito.
Não quer ser moreno, mas se ofende quando o chamam de branco” (FURTADO, 2010, p. 40).
Por causa das marcas de feridas nas pernas e na nuca, Alfredo se sente inferior aos garotos
que não têm marcas de ferida, mas superior àqueles mais miseráveis.
Por causa do contato com a biblioteca de seu Alberto, Alfredo, que frequentava a
escola do Seu Proença, apropriou-se cedo dos conteúdos de um acervo de leituras que lhe
permitiu uma noção mais profunda e crítica da realidade circunscrita a ele, que se tornou
entediante (FURTADO, 2010) e sufocante. A sede de conhecer o mundo fez com que Alfredo
fantasiasse certos estabelecimentos escolares e fantasiasse a cidade de Belém: não queria uma
cidade de lama, triste, e meninos sujos, por exemplo; queria estudar no Colégio Anglo
Brasileiro, do Rio de Janeiro. Esses doces anseios não seriam realizados. Então, Alfredo, nos
volumes subsequentes de Chove nos campos de Cachoeira, acabaria por ter de morar em
136

lugares insalubres e estudar em escolas locais, pois não teria como morar no Rio de Janeiro.
No texto, a escola mencionada foi o Instituto Lauro Sodré.
Nas linhas da passagem transcrita páginas atrás, seu Alberto se deparou com o desleixo
de Rodolfo, que lhe ajudava com o uso da tipografia. Esse personagem era irmão de Lucíola,
moça solteira que tinha por obsessão ficar com Alfredo, criá-lo como se fosse filho seu, ali na
casa da falecida Siá Rosália (que tinha como sustento o montepio103 mensal), mãe desses dois
personagens e mais três: Dadá, Didico e Ezequias, personagem que se suicidou, “[...]
assombrado [que era] com a sífilis e a guerra [...]” (PANTOJA, 2019, p. 13). Lucíola também
se suicidará, fato que irá ocorrer no romance subsequente Três casas e um rio.
A passagem estudada, recortada de Chove nos campos de Cachoeira, subsidiou nossa
leitura em uma direção mais detida na família do major Alberto, este polivalente homem com
uma vasta sabedoria e uma parca vontade de pôr em prática seus numerosos projetos, sempre
às voltas com seus afazeres da administração de Cachoeira, suas preocupações com as três
filhas em Muaná, ainda dependentes dele financeiramente, assim como com Eutanázio, que
constantemente lhe causava contratempos, por causa de contas no comércio local, por sua
doença e por sua rebeldia que, se não fosse pelas intervenções de dona Amélia, poderiam
resultar em consequências muito graves nos confrontos com o pai, que tinha muitas ideias,
mas sua apatia lhe impedia de transformar os anseios em realidade.
Por outro lado, dona Amélia tinha de lidar com os preconceitos contra ela e com o
trauma de ter perdido um filho. A obsessão de Alfredo era mudar-se para Belém, continuar os
estudos lá, escapando da precariedade de infraestrutura e das doenças endêmicas e
mortalidade infantil; já a obsessão de Eutanázio era por Irene, que o menosprezava. Mariinha,
criança ainda, despertava em todos a preocupação com sua saúde, principalmente em dona
Amélia. Então, a partir de um excerto do texto-embrião do Ciclo do Extremo-Norte, pudemos
tecer uma gama de reflexões pertinentes e reveladoras desse universo diegético criado por
Dalcídio Jurandir que, como já mencionamos, recebeu da Academia Brasileira de Letras, em
1972, o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra104.
Por intermédio de método análogo a esse ‒ de enfocar a família do major Alberto e
dona Amélia ‒, mergulharemos no âmago da família de Iglezias e Marcela, este casal tão
relevante na trama narrativa do romance do Extremo-Sul, para que, assim como na passagem

103
“Pensão paga [...]” pelo “instituto de previdência estatal destinado a amparar a família do servidor público
que tenha falecido [...] (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1957).
104
Nessa ocasião, Jurandir ainda não havia publicado os três últimos romances do Ciclo do Extremo-Norte: Os
habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978).
137

analisada anteriormente, possamos refletir sobre este outro universo diegético nascido da pena
de Dalcídio Jurandir. Iniciemos, então, uma breve imersão em Linha do Parque.
No fim da primeira parte de Linha do Parque (livro constituído por sete partes não
tituladas), no capítulo numerado em algarismo romano como XIV, Iglezias encontrou
Marcela, num sábado de uma noite fria. Ela queria dizer-lhe algo (que estava grávida), mas
“[...] vergonha e medo lhe travavam a língua.” (JURANDIR, 2020, p. 95). O episódio finda
desta forma:

[Marcela] Voltou a chorar devagarinho, apoiada no braço dele, defronte da


igreja protestante. Iglezias, em silêncio, não queria aceitar que, de certo
modo, havia contribuído para aquela situação, como logo pensou.
Compreendia ter perdido tanto tempo, sofrido tanta solidão, andado tão
cego, quando ao seu lado crescia uma menina, agora tão mulher, que o
amava. E repelida, humilhada, por despeito, próprio da insensatez de quem
se sentia sem esperança para sempre, dera aquele mau passo...
− E teu pai, Marcela? E tua pobre mãe, criatura? Ninguém sabe? Nem ele?
De cabeça baixa, soluçando, como se aquele segredo tivesse nascido e
houvesse de morrer para sempre entre ela e Iglezias unicamente, Marcela fez
que “não” repetidas vezes. O laço da fita desatou-se. E Iglezias sem saber o
que faria com a moça que chorava ao seu peito, em plena rua, já protegida
no seu capote, abandonada à sua confiança e à sua piedade.
− Se o pai souber...
Passou a chorar alto, a dizer que desapareceria, morreria...
− Claro que não! Exclamou Iglezias, num impulso, abraçando-a, atando-lhe
a fita.
E nunca se arrependeu daquele casamento (JURANDIR, 2020, p. 96-97).

A última linha da passagem é um sumário que dá um desfecho até mesmo


surpreendente à situação dramática. Iglezias, por nobreza de caráter e por ter bom coração,
acabou casando com Marcela, que estava grávida de um outro homem, namorado desta, mas
que ainda não tinha conhecimento do fato, nem teria, já que Marcela não lhe contaria nada a
respeito disso, muito menos aos pais, já que naquele tempo (última década do século XIX) era
costumeiro o pai expulsar a filha de casa, ao tomar conhecimento da gravidez fora do
matrimônio, fato expresso pelo eufemismo “dera aquele mau passo...” A frase incompleta
proferida por Iglezias dá ideia da proporção do problema que Marcela teria de encarar: “− Se
o pai souber...”
Chama a atenção a ancoragem espacial do episódio. Eles estavam “defronte da igreja
protestante”, o que nos remete à ideia da meticulosa pesquisa realizada por Jurandir para
escrever seu romance: na Região Sul, principalmente no Rio Grande do Sul, foram
implantadas algumas das primeiras comunidades de fé evangélica no Brasil, mais
138

precisamente a anglicana, com o Rio Grande sendo um dos poucos lugares onde se
estabeleceram missões daquela que seria depois a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
Mas os dois estão ali “em plena rua”, no espaço do profanus, ou seja, daquilo que,
etimologicamente, “[...] está em frente ao templo, que não entra nele [...]” (HOUAISS;
VILLAR, 2001, p. 2305), mas o futuro enlace matrimonial está figurado tanto na citação da
palavra igreja quanto no ato de Iglezias abraçar Marcela, atando-lhe o laço de fita, que havia
se desatado. Indo mais a fundo, a antroponímia revela que a palavra espanhola ‘Iglezias’ é
traduzida para o português como ‘igreja’, vocábulo que desde o início do excerto já seria um
indício prefigurativo do que ocorreria com o casal.
Na verdade, Marcela, desde que conheceu Iglezias, passou a gostar dele, que se sentia
atraído por Dulce, que era noiva. Marcela sentia-se “[...] repelida, humilhada, [e] por despeito,
próprio da insensatez de quem se sentia sem esperança para sempre, dera aquele mau passo...”
Não foi apenas Iglezias que nunca se arrependeu “daquele casamento”, pois Marcela
continuou a amá-lo e a admirá-lo, tendo com ele mais dois filhos depois que casaram, além
daquele que já estava em gestação. Porém, é por causa principalmente do primeiro, que nunca
soube que não era filho de Iglezias – segredo este mantido somente entre o casal −, que os
dissabores surgiriam, pois, com a chegada da adolescência, passou a não concordar com as
ideias revolucionárias do “pai”, o que fazia Marcela sofrer muito:

[Iglezias] Via Marcela adoecer cada vez mais por causa de Vicente, hoje
cada vez mais inimigo, em Porto alegre, cheia de decepções por José, que
não se opunha, mas era inteiramente alheio à luta. E ela não pudera ver que
suas últimas esperanças se realizavam no caçula [Ângelo], primeiro bom
estudante e agora operário da Swift (JURANDIR, 2020, p. 184).

Marcela sofria porque o filho mais velho, Vicente, era uma espécie de inimigo da
causa, enquanto o do meio era alheio às lutas dos trabalhadores. Só o caçula, Ângelo, era um
legítimo herdeiro das ideias de Iglezias, participando dos movimentos, primeiro dentro do
grupo anarquista, depois dentro do grupo mais novo, dos comunistas, o que Marcela não
pudera testemunhar (“E ela não pudera ver que suas esperanças se realizavam no caçula”),
pois acabou por falecer antes disso. O sofrimento de Marcela veio a se configurar em dois
níveis: ela adoecia porque a postura de Vicente em relação à causa era de total oposição, mas
também sofria porque José, se não se opunha à causa, era “inteiramente alheio à luta”. A
esperança se realizaria no caçula (Ângelo), mas não pôde ser testemunhada pela mãe, que
certamente ficaria em júbilo, por causa da postura ideológica em consonância com a postura
do casal.
139

Pensemos em como Jurandir ordenou o desenho familiar a partir dos valores


axiológicos dos filhos em relação aos dos pais ‒ no que diz respeito à postura ideológica:
temos a sequência oposição (-) > indiferença (0) > aceitação (+), em que observamos uma
ruptura do esquema dialético de um silogismo, que deveria ser ordenado, neste caso, assim:
oposição (-) > aceitação (+) > oposição/aceitação (-/+), ou seja: tese + antítese + síntese.
Então, um filho se oporia às ideias dos pais (premissa maior), o outro aceitaria as ideias dos
pais (premissa menor), enquanto o último fundiria a visão de mundo dos pais com a visão do
patronato, opondo-se em parte e também aceitando em parte as duas visões antagônicas
(síntese). Jurandir desconstrói esse esquema, reordenando-o e expondo ainda mais as
contradições da vida, mesmo que seja apenas em uma amostragem, a partir da família do
protagonista de Linha do Parque.
Já em relação à causa da morte da personagem Marcela, observamos que nada é
revelado de forma direta. Esse fato comovente ocorreu no capítulo I da terceira parte do
romance, logo no início, quando um dos convidados para uma reunião, na casa de Iglezias,
quis saber quem era uma moça em uma foto, no que “Ângelo, um rapaz alto e forte [...] falou:
− Era minha mãe”. (JURANDIR, 2020, p. 181. Destaque nosso.) Todavia, muitos indícios
emergem de forma gradativa, alguns verdadeiramente como revelações, nas páginas de certos
capítulos anteriores. Por exemplo, na segunda parte, no final do capítulo IV, o narrador
sumariza o seguinte pensamento de Iglezias: “Talvez fosse bom, falar-lhe. Marcela, porém,
não chegaria a compreender e passaria a admirá-lo menos. Sua afeição pela esposa aumentava
dia a dia, misturada a uma certa piedade porque Vicente, no pressentimento dela, ia dando
mostras de filho péssimo” (JURANDIR, 2020, p. 129). Se nesse caso, apenas ia dando
mostras, em outra passagem, já se percebe uma constatação de um fato negativo sobre o filho:
ser ele brigão, fato este em processo de continuidade; ou seja, ela não passou a ser brigão, mas
continuava a sê-lo: “Marcela olhou para a rua onde os filhos brincavam. Vicente continuava
brigão” (JURANDIR, 2020, p. 135). Isso ocorreu antes de uma cena em que Iglezias e Marcela
discutem sobre a possibilidade da futura revolução sonhada por Iglezias, uma guerra que daria
origem a uma sociedade melhor, sobre também a felicidade no casamento dos dois; enfim,
pequenos conflitos cotidianos na vida de um casal. Essa última passagem ocorreu ainda na
segunda parte, mas já no início do capítulo VI.
É pertinente lembrar da ideia de Antônio Olinto, expressa em artigo comentado em
seção anterior, referente à redenção econômica e à espiritual, esta última figurada na felicidade
conjugal e familiar de Iglezias e de Marcela, por exemplo, enquanto a outra, a econômica,
alcançada pela revolução, que seria a origem daquela tão sonhada vida melhor (para todos),
140

na qual não haveria mais opressores e oprimidos; portanto, também uma sociedade sem lugar
para as lutas de classe. Segundo Olinto, Jurandir se equivocou na construção de seu romance,
optando por dar ênfase à redenção econômica em detrimento da espiritual, no que
discordamos, pois o que percebemos em nossa leitura é que o autor optou por retratar as lutas
operárias sem forçar um final feliz, mas, sim, desenhando um desfecho esperançoso para os
operários, bem figurado na frase chavão “A luta continua, companheiros!”
Ainda na mesma parte, mas já no capítulo VIII, Saldanha e Estela estavam
conversando sobre assuntos ligados às condições de trabalho na fábrica em que Estela era
empregada, quando esta lhe diz: “− Aquelas condições de trabalho lá na fábrica são
insuportáveis sim. Tens ido à casa do Iglezias? Eu vou para lá. É bom, é bom ir. Marcela anda
inconsolável com o filho. Mas Madalena tem cada uma! Então é Joana que tem ciúme, não!”
(JURANDIR, 2020, p. 145) Vê-se que o estado de espírito de Marcela, na opinião de Estela,
já se agravou, pois a palavra usada para caracterizá-la é inconsolável.
A situação ganha clima de tensão. Marcela, em conversa com Saldanha, desabafa:

− [...] Agora Iglezias anda meio casmurro, não sei. As coisas parecem ter
mudado tanto que ele não sabe como caminhar. Ontem me disse; “Coisas
vão acontecer, mas não sei como”. Depois, é o Vicente, Saldanha.
Marcela calou-se. Quis conter-se por julgar uma vergonha aquele problema
de família, humilhada, como se tivesse de abrir um mau passado tão secreto,
ao mesmo tempo revoltada pela injustiça de que era vítima.
− Ando com os pés em brasa por causa de Vicente. Agora mesmo deu-se
uma cena comigo, que se o pai ouvisse, não sei. Vicente no ginásio pegou
essa camaradagem daí com esses rapazes. Só quer saber da sociedade, de ir
para o alto comércio em Porto Alegre. Está me chegando tarde. Agora deu
de dizer que é ridículo o pai ter essas ideias na cabeça, isso o envergonha nas
rodas. Que não quer o pai na cadeia, nem na zombaria dos outros. Pois não
vê. Já nessa idade, imagine crescendo um pouco mais. Eu disse umas coisas
a ele. Queria que tu visses como me olhou, as respostas... Outra vez que
acontecer, uso de meus direitos, passo-lhe a guasca105 nas costas. Guri106
mais malcriado! (JURANDIR, 2020, p. 146)

Marcela faz bem o papel de mãe e esposa conciliadora, ao mesmo tempo que se
autoimputa uma pesada carga de culpa por tudo que acontece de relações conflituosas na
família, o que lhe acarreta viver momentos de forte tensão, com medo da reação de Iglezias
às duras e impensadas palavras de Vicente, principalmente se queixando de o filho não
compreender as ideias defendidas por Iglezias, atribuindo tal reação à “camaradagem” que o

105
Vocábulo regional comum no Rio Grande do Sul, que dá nome a uma tira ou a uma correia fabricada a partir
do couro cru.
106
Outro vocábulo regional comum ao Rio Grande do Sul, que se refere a menino, garoto.
141

filho conheceu no ginásio, que o faz querer apenas “saber da sociedade”, das “rodas” que lhe
influenciam a ponto de Vicente se envergonhar do pai. Talvez “aquele problema de família”,
pudesse ser compreendido como apenas mais um caso de conflito de gerações, se Marcela não
se sentisse tão “humilhada, como se tivesse de abrir um mau passado tão secreto” (destaque
nosso).
Marcela exerce uma espécie de função cuidadora dos filhos e do lar, pois a de provedor
é exercida por Iglezias, como ocorre em uma típica família patriarcal (BOTTON; CÚNICO;
BARCINSKI; STREY, 2015), pois não podemos esquecer de que, naquele momento, mesmo
sendo o casal considerado esclarecido, era assim que se caracterizava a família brasileira de
então, de modo geral: o marido era responsável pelo ganha-pão; saía para trabalhar
diariamente, enquanto a esposa ficava responsável pelas tarefas de casa, limpando, lavando,
cozinhando, como verdadeira zeladora, como acima já afirmamos, da unidade doméstica
familiar, cuidando dos filhos e, de fato, educando-os. Ao pai, cabia também a tarefa de servir
de último bastião na batalha do controle familiar, quando a mãe, sentindo-se impotente,
costumeiramente dizia: “Deixa o teu pai chegar, que eu vou contar pra ele o que tu fizeste!”
Eram os costumes daquele tempo.
Ainda enfatizando o drama familiar, que nos permitiu fazer essas reflexões, apenas
uma virada de página no romance e encontramos a seguinte situação:

Saldanha olhou a amiga que estampava no rosto a sua vergonha, o seu


desapontamento.
− Isso passa, Marcela, com a idade verá que o pai tem razão.
− Já agora não posso ver os dois juntos, sozinhos. Parece que já vejo eles
inimigos.
‒ Que é isso, Marcela, que pensamento estranho?! Iglezias saberá melhor do
que tu corrigi-lo, ora essa! Vicente endireita. Há de puxar ao pai.
A essa última frase, Marcela teve uma espécie de sobressalto, chamou os
meninos, levando Saldanha para a sala de jantar. Vicente resmungava no
quarto. Marcela, à porta lhe disse baixo:
− Teu pai está chegando. Essas coisas que tu falas, te previno que digas só a
mim.
Iglezias entrou com um pacote de mercadoria, suado e aborrecido. Saldanha
falou-lhe das listas.
Marcela preparava o jantar, tensa, temendo o filho.
Saldanha não esperou pelo jantar. Queria falar com Julieta e a Ruiva. Soube
que a Julieta havia sido despedida da fábrica de alpargatas, quase espancada
pelo patrão (JURANDIR, 2020, p. 146-147).

Aqui a ideia de mãe como conciliadora e mantenedora da unidade doméstica e pai


provedor e proferidor da última palavra ou salvaguarda da mãe ‒ naqueles casos em que ela
não conseguiu obter cem por cento de sucesso em sua chamada de atenção ao mau
142

comportamento ‒, reforçam as ideias que já expomos parágrafos atrás. A ameaça de contar ao


pai esteve frequentemente menos ligada ao respeito que ao temor. A gradação continua como
um elemento de força dramática marcante, tensionando a narrativa, intensificando o conflito
e preparando o leitor para a morte de Marcela. Além disso, ainda não “ouvimos” Vicente. É o
que acontecerá na passagem a seguir:

Jantaram em silêncio. Até Marcela silenciosa, observou Iglezias


mentalmente. Que tinha também acontecido com ela? Andavam todos cheios
de aborrecimentos?
Marcela calada, sem apetite. Olhava para o filho emburrado sobre o prato, o
filho que, ainda com quinze anos, se atrevera a dizer-lhe aquilo e nunca ia
ver como se trabalhava na oficina e nem ao menos como se discutia na
União. Os dois menores haviam jantado, corriam na rua.
Marcela quis conversar:
− E as discussões lá, Iglezias?
Mas emendou-se logo, desconcertada, a falta de tato! Seria provocar o filho
que logo aproveitaria para repetir a cena de há pouco. Calou-se, engasgada,
uma raiva, uma aflição. Retirou-se da mesa.
− Mas que foi? Que tens? Vicente te fez alguma coisa?
Aí o filho ergueu-se:
− Então logo me culpando, me culpando? (JURANDIR, 2020, p. 147)

Não seria unicamente pelo fato de que Vicente não é filho de Iglezias – fato
desconhecido para o rapaz, como sabemos – que essa situação tensa ocorreu. Já se tornou
chavão dizer que toda família é uma espécie de vulcão prestes a entrar em erupção. Vicente é
um adolescente de 15 anos, já começou a formar opinião sobre certos assuntos. Seria normal
que discordasse dos pais algumas vezes. O fato é que sua mãe era uma espécie de repositório
do que ocorresse de situações difíceis em relação à família, já que o pai, quando não estava
na oficina trabalhando, estava em reuniões ou debates na União Operária, ou em
manifestações com os trabalhadores, como passeatas ou greves. Havia pouco tempo para estar
em casa, com a família, exceto aos domingos.
O trecho seguinte deste episódio mostra Iglezias surpreso, mas de certo modo com
sentimento favorável àquela agressividade juvenil por parte do rapaz, com ares de
independência, transmitindo ideias de liberdade e justiça. Mas estava preocupado, pensando
no que poderia ter ocorrido entre filho e mãe. Esta defendeu o filho, afirmando que as dores
que sentia voltaram, que nada lhe fez o filho. Iglezias diz que ela tem que ir ao médico no dia
posterior e parar de teimar, mas, logo em seguida, fala das discussões ocorridas na União
Operária, que são sobre a guerra. Tais discussões aumentaram de intensidade naqueles últimos
dias. Então
143

Marcela avançou para a mesa perturbada e vigilante com as palavras do


marido e olhando para o filho. Senta-se de novo ao mesmo tempo desejosa
de animar o companheiro, excitá-lo para os temas preferidos de sua
conversação. E estava aquele filho entre os dois, a ameaçar aquela identidade
tão tranquila, aquela paz tão constante. Vicente havia ameaçado de dizer ao
pai e, certo, lhe diria, com brutalidade, sobre o que ouvira no ginásio, sobre
as “humilhações” que sofreu ao escutar da boca de colegas que era “filho de
um dinamiteiro”. Teria que retirar Vicente do ginásio?
Marcela falou, então, que estava com vontade de fazer uma horta no fundo
do quintal.
− Por que Vicente não te ajuda? Sugeriu Iglezias, sorrindo para o filho, que
não o encarou. Vem do estudo e põe a mão na enxada. O trabalho manual
forma o caráter. Se enrijece ao pegar no ancinho, num ferro de cova, numa
enxada. Quer uma horta? Pois aos domingos posso ajudar também. A guerra
está aí, vai faltar comida, vai faltar trigo. Tu estás no ginásio, podes ser um
doutor, mas lembra-te de que tua mãe é filha de um padeiro e que teu pai
tem aqui estas mãos...
Interrompeu-se, a abaixar-se, estendeu os braços para apanhar o guardanapo
no chão. Marcela acudiu e, ajoelhada, apanhou o guardanapo debaixo da
mesa, beijando ao mesmo tempo a mão do companheiro. O filho tinha o
rosto no prato. E ela, erguendo-se, corada, veio pousar o braço no ombro do
filho, consumida, vendo que todos os assuntos poderiam produzir a
exposição.
Salvou-a a chegada de um homem da campanha que trazia a encomenda de
Vicente: dois passarinhos numa gaiola. Vicente saiu da mesa, afoito, já
sorrindo, com a gaiola nas mãos. Iglezias achava os passarinhos bonitos.
(JURANDIR, 2020, p. 147-148)

Constantemente fazendo as vezes de mediadora entre o marido e o filho, Marcela se


consome para evitar que os dois se digladiem e que Vicente revele as “humilhações” pelas
quais passa no seu meio estudantil de ginasiano107, por causa do ativismo de Iglezias como
militante anarquista. Assim, é revelado o porquê da revolta de Vicente e o receio implícito de
Marcela, preocupada com o fato de que, numa discussão, Iglezias revele a Vicente que este
não é seu filho, que se depreende da expressão “[...] todos os assuntos poderiam produzir a
exposição”.
Na passagem “Tu estás no ginásio, podes ser um doutor, mas lembra-te de que tua mãe
é filha de um padeiro e que teu pai tem aqui estas mãos...”, Iglezias, em discurso direto,
pretende despertar Vicente para a consciência de classe, para que ele passe a ter orgulho e se
identifique com a classe operária, assim se aproximando mais dos pais. A profissão do pai de
Marcela foi citada: “um padeiro”; já a de Iglezias, ficou implícita, apenas sugerida pela palavra

107
Na atualidade, corresponde ao ensino fundamental II (ou maior), até pouco tempo escolaridade que ia da 5ª
até a 8ª série; agora do 6º ao 9º anos, ou ciclos básicos III e IV, dependendo da modalidade adotada pelas redes
mantenedoras do ensino.
144

“mãos” e pela presença de dêiticos (indicando o ato de mostrar), no trecho “[...] teu pai tem
aqui estas mãos...” Afinal, que profissão era exercida pelo espanhol? Teve trabalhos
temporários, como cortador de capim em uma fábrica de açúcar, em Cuba. Foi calafate em
estaleiros na Ilha das Cobras108. Mas trabalhou por mais tempo como ferrador de cavalos e
encanador.
Ainda na mesma passagem, pode-se observar o lirismo da cena do beijo na mão do
marido, o braço materno no ombro do filho, a atenção do marido em relação ao desejo da
esposa de fazer uma horta, mesmo que esse desejo também tenha nascido como uma evasiva
do assunto em questão para, assim, evitar um mal maior. A atmosfera ganha ares pesados com
a frase “O filho tinha o rosto no prato”, maneira poética de o autor mostrar que o Vicente,
embora quisesse, não iria confrontar Iglezias naquele momento. A chegada dos passarinhos,
trazidos por alguém que veio da Campanha109, salvou a situação.
Nessa passagem estudada, a ancoragem espacial está bem clara: trata-se da cozinha ou
de uma pequena sala de almoço e de jantar da casa do casal, em cuja frente há um jardim e,
na parte de trás, um quintal. Já a ancoragem temporal está expressa na frase “A guerra está aí
[...]”, destacada do excerto analisado. Trata-se do tempo da I Guerra Mundial, cujos horrores
iniciaram em 1914 e terminaram em 1918. Mas só mais adiante é que trataremos com mais
acuidade deste período, que marca a diegese dos dois romances de Jurandir.
Cotejando as duas situações conflituosas analisadas, uma em cada romance,
percebemos alguns pontos de contato, quais sejam: dois casais, cada um com três filhos dentro
de casa, dos quais apenas um em cada família pode ser considerado o pivô do
desentendimento, sendo a mulher, no âmbito de cada casal, a responsável pelo apaziguamento
entre pai e filho, sendo o filho mais velho o motor de cada problema familiar travado entre pai
e filho nas duas famílias. Na de Iglezias e Marcela, o problema é a postura político-ideológica
divergente entre Vicente e Iglezias, mas, na verdade, com Iglezias desconhecendo o
pensamento do filho; enquanto na família de Seu Alberto e dona Amélia, o embate entre pai
e filho não é bem de natureza ideológica, mas de natureza ética, relacionado a discordâncias
em geral quanto à autoridade paterna, à quase ausência de afetividade entre pai e filho, aos
desvios de conduta com relação às contas que Eutanázio abria, no comércio local, sem
consentimento do pai, por exemplo. Fica para a imaginação de cada leitor qual seria a reação

108
Ilha localizada na Baía da Guanabara, no estado do Rio de Janeiro.
109
Trata-se da Campanha Gaúcha, sinônimo para Campos, Campos Sulinos, ou Pampa, uma região do Rio
Grande do Sul, que faz fronteira com o Uruguai e Argentina.
145

de seu Alberto, caso este descobrisse sobre a apropriação do dinheiro (30$000), que era de
Felícia, mas que Eutanázio entregou para seu Cristóvão.
Mas os desentendimentos não ficam restritos ao âmbito familiar, já que tais situações
são comuns também na coletividade maior, em partidos políticos, por exemplo, ou em
instituições da sociedade civil, organizada ou não organizada. Assim, fazendo paralelo entre
a vida real e a ficcional, lembremos que eclodiram acirradas disputas teóricas entre
representantes do Anarquismo e do Socialismo na Europa na segunda metade do século XIX,
fato este quase que corriqueiro entre militantes nas páginas de Linha do Parque:

“[...] [Pizarro], quando chegou à sede, estavam sentados Iglezias, Rivera e


Estela. Pizarro, que havia aberto uma estante, avançava, trovejante:
‒ É um novo Estado absoluto. Um novo Estado. Esse tal Lênin é um ditador
como o outro. A revolução rebentou, sim, fez-se a república, mas o poder
caiu nas mãos desses maximalistas [sic]. Quem são, que ideias possuem, que
tradição de combate apresentam? Alguém aí falou em Marx. Mas quem fala
ainda em Marx? (JURANDIR, 2020, p. 162)

E enquanto os personagens debatiam sobre o ideário do Anarquismo, em oposição ao


do Socialismo, as discussões, vez por outra, ultrapassavam as fronteiras da retórica e da
dialética, naquele sentido mais relacionado ao dialógico, e passando a se agredir com insultos;
todavia, ainda não é o caso da passagem a seguir, em que as críticas não ultrapassam o limite
do uso de palavras mais duras:

E a lembrança de distante conversa com um velho socialista do Havre 110, à


beira do cais, foi novo acréscimo à inquietação de Iglezias:
− Companheiros, a dinamite não resolve. Cheguei a respirar os fumos da
Comuna 111. A luta é longa. Fomos derrotados. Os dinamiteiros criaram mais
dificuldades que vantagens. Não é meia dúzia que fará a humanidade criar
juízo, como vocês dizem. Os mestres de vocês não têm razão.
Lembrou a luta entre o velho Marx e Bakunin, que Iglezias ignorava. Até
hoje, acentuava, os bakunistas espanhóis não puderam ainda responder aos
artigos de Engels sobre o papel dos anarquistas nos movimentos
revolucionários da Espanha
− Fique[m] certos, companheiros. Os chefes atuais estão fracassados. Vocês,
anarquistas desaparecerão. Podem ser valentes. Mas só bomba e valentia
resolvem? (JURANDIR, 2020, p. 42)

110
Havre: cidade francesa da região da Normandia.
111
Comuna de Paris: movimento popular revoltoso que teve como causa direta o armistício entre França e
Prússia, em 1871, em que a primeira se rendia de forma humilhante após a derrota para a segunda. Essa
experiência de governo revolucionário durou oficialmente de 18 de março a 28 de maio de 1871; durando,
portanto, 72 dias.
146

Aqui se percebe a ação ainda apenas no nível retórico do embate entre socialistas e
anarquistas. O socialista do Havre condenava ações extremadas dos anarquistas ‒ que chamou
de dinamiteiros ‒, dando razão aos socialistas, enervando Iglezias, que “[...] avançou para o
velho operário, com os olhos irados, punho erguido: ‒ Tu não sabes mais o que dizes, estás
dominado pelo terror. A fortaleza ruirá a peso de nossas bombas, sim! Estás cego e caduco,
não podes pensar senão no passado” (JURANDIR, 2020, p. 42).
Mas o tempo foi passando. Reuniões, motins, greves e muitas manifestações depois,
Iglezias, mais amadurecido e já um tanto menos impulsivo que em tempos atrás ‒ quando
militava pelo anarcossindicalismo, ‒ estava discordando de certas ações de Pizarro, quando
este iniciou uma pergunta provocadora:

− Eu te pergunto simplesmente se vais ou não vais à Federação [Anarquista]?


− Não vou.
− Quer dizer que não estás de acordo?
− Não. Façam vocês. Não dou um passo. Não estou de acordo.
− Isto é irresponsabilidade, é traição, é covardia!
Iglezias avançou sobre Pizarro, esbofeteou-o. Este recuou tropeçando e
sacou de um punhal que Luís Pinheiro lhe arrebatou das mãos, subjugando
o espanhol enfurecido. Saldanha estonteado, olhando para um e para o outro,
as mãos na cabeça, gritava:
− Mas que belo papel! Isso é trabalhar pelo povo? Isso é a guerra social que
vocês fazem, devorando-se uns aos outros? E que dirá o nosso amigo das
minas?
O mineiro tossia junto de Iglezias. Este, seguro pelo braço, foi levado à
biblioteca. Pizarro, bracejando nos punhos de Luís Pinheiro, trovejava
palavrões, reclamando o punhal, saiu, ameaçador e com o rosto ardendo,
para a Federação.
Ao chegar na casa, que era numa esquina, perto do canalete, os seus
parceiros esperavam.
− Iglezias?
− Um canalha, resmungou, com o lenço no rosto; não o apunhalei porque
acudiram. Tirava-lhe as tripas...
− Quase voltas, então, assassino? perguntou Marcos.
− Assassino, não, herói, porque teria livrado a causa daquele canalha.
− E Rivera, Saldanha?
− Não me merece confiança.
− Mas a nós merece, Pizarro; tu queres ser o dono de tudo, o mandador?
− Acham que traidores merecem confiança? Procuram aderir àquela coisa lá
da Rússia. Pensam que a Revolução Russa é uma revolução libertária
(JURANDIR, 2020, p. 166).

A técnica de alternar a narração entre o uso de cenas e de sumários funciona muito


bem nesta passagem para o dinamismo que o episódio estava requerendo, com ações ágeis e
reações mais ágeis ainda, acrescentando que os discursos diretos breves iniciam e finalizam o
quadro, com o narrador pouco intervindo, o que resulta em um uma história ficcional mais
147

plena, já que o narrador permite que os personagens exteriorizem suas ideias sem
intermediários, respaldando ainda mais a verossimilhança, por causa de entendimentos e
desentendimentos ali, face a face, entre Iglezias e Pizarro.
Triplamente acusado, pelo segundo, de irresponsável, traidor e covarde, Iglezias
passou do discurso argumentativo e agressivo para a ação agressiva, já que esbofeteou Pizarro,
que reagiu sacando um punhal. Se não fossem contidos pelos companheiros, uma tragédia
teria sido encenada ali naquele teatro da vida na sede da Sociedade União Operária, tudo
porque alguns anarquistas consideram que a “[...] Revolução Russa é uma revolução
libertária”, nas palavras de Pizarro, este anarquista disposto a soltar bombas e agir de outras
formas radicais para atingir os objetivos que defende sectariamente.
Diretamente ligado a esses fatos, as palavras de Eric Hobsbawm (1917-2012) mostram
que na relação entre comunistas e anarquistas havia realmente uma assimetria singular:

[...] se investigarmos a história do movimento comunista internacional no


período da Revolução Russa e da Internacional Comunista, encontramos
uma assimetria singular. Enquanto os principais porta-vozes do anarquismo
mantiveram viva sua hostilidade ao bolchevismo com, na melhor das
hipóteses, vacilações momentâneas durante o próprio movimento
revolucionário ou no moment em que lhes chegaram as notícias de Outubro,
a atitude dos bolchevistas dentro e fora da Rússia foi, por algum tempo,
consideravelmente mais benevolente com respeito aos anarquistas
(HOBSBAWM, 1985, p. 67).

Mas há uma razão para que anarquistas e socialistas se desentendessem, com um forte
ranço dos primeiros em relação aos segundos. Embora ambos buscassem transformar a
sociedade, visando à utopia da igualdade na distribuição de riquezas e igualdade no acesso
aos direitos em geral, como boas condições de trabalho, saúde, educação, casa própria, etc., a
dissensão principal está ligada ao fato de que, para a sociedade chegar efetivamente ao
comunismo, seria preciso primeiro passar pelo socialismo de Estado, em que a revolução teria
de eliminar o poder da burguesia, substituindo-o pelo poder da “ditadura do proletariado”:
assim pensavam os socialistas. Mas os anarquistas observaram que o estado opressor da
burguesia seria apenas substituído por um novo estado opressor, pois ‒ não importando quem
exerça o poder ‒ opressão é sempre opressão. Então, além de eliminar também a propriedade
privada, o anarquismo buscava o fim do Estado, ou seja, o fim das autoridades
governamentais.
148

No livro Anarquismo e comunismo, o autor, Evgueni Preobrazhenski (1886-1937), dá


um destaque bem grande à rebelião de Kronstadt,112 em 1921, fato já próximo do fim da
Guerra Civil113. Essa rebelião reivindicava certos direitos, como novas eleições para os
soviets114, liberdade de expressão, de ação e de comércio. Como esse levante ocorreu no
mesmo período do X Congresso do Partido Comunista, nesse evento se decidiu por uma
solução drástica para aquilo que se configurava, segundo os participantes do evento, “[...]
como uma ponte entre a ditadura proletária e a restauração capitalista” (PREOBRAZHENSKI,
2016, p. 10). Os anarquistas que participaram da insurreição foram, como todos os outros
revoltosos ali, praticamente dizimados. Organizações anarquistas, suas lideranças e militantes
foram duramente perseguidos e rechaçados, acusados de serem contrarrevolucionários, em
qualquer parte do vasto território que então formaria a União Soviética. Isso explica muito do
que ficou de ressentimentos de anarquistas em relação a socialistas, como vimos nas palavras
de Hobsbawm, na citação de páginas atrás, e nas passagens destacadas de Linha do Parque,
em que percebemos a gradação, que parte do uso da retórica para as agressões verbais e, até
mesmo, físicas, entre personagens do romance.
Retomamos a partir daqui o que mencionamos páginas atrás, em relação ao tempo
referido na narrativa, só que dando um sobrevoo por um período um pouco anterior, para
alcançar uma visão mais contextualizada da época. É o que passamos a fazer agora:
lembremos que o tempo inicial de Linha do Parque é o ano de 1895. Por que esse ano? Sendo
coincidência, ou não, nesse ano faleceu Friedrich Engels (1820-1895)115. Outros importantes
pensadores revolucionários já haviam falecido. Entre eles, Karl Marx (1818-1883), mais
próximo de Engels; e Mikhail Bakunin (1814-1876)116, quase uma década antes. Essa tríade
é sempre muito citada em estudos de diversas áreas do conhecimento, embora não sejam esses

112
“[...] a rebelião de Kronstadt foi um levante armado dos marinheiros da fortaleza homônima, localizada numa
pequena ilha do Golfo da Finlândia [...]” (PREOBRAZHENSKI, 2016, p. 9).
113
É preciso tomar cuidado com datas. Vejamos: de 1914 a 1918 ocorreu a I Guerra Mundial. Em fevereiro de
1917 ocorreu a abdicação de Nicolau II e formação do Governo Provisório, que chegou ao fim em outubro de
1917, com a Revolução de Outubro, com a tomada do poder pelos bolcheviques. De 1917 a 1922 ocorreu A
Guerra Civil Russa.
114
“Na Rússia, a partir de 1905, cada um dos conselhos constituídos pelos delegados dos trabalhadores, dos
camponeses e dos soldados e que, após a Revolução de Outubro de 1917, na Rússia e, posteriormente, na ex-
União Soviética, passaram a ter função de órgãos deliberativos” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2615).
115
Friedrich Engels (1820-1895), pensador alemão, criador junto com Karl Marx (1818-1883) do chamado
Socialismo Científico ou Marxismo. Nessa linha, é autor de obras importantes, tais como: A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra (1845), O manifesto comunista (1848), Crítica da economia política (1859) e O
Capital (1867), as três últimos em coautoria com Marx.
116
Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), pensador e ativista anarquista russo dos mais relevantes do
século XIX, sendo talvez o mais influente e combativo. Entre outras obras, escreveu A reação na Alemanha
(1842), A Comuna de Paris e a noção do Estado (1871), Estatismo e anarquia (1873) e Textos anarquistas
(1874).
149

pensadores os únicos a terem construído um ideário sobre os movimentos revolucionários dos


quais foram, sem dúvida, os maiores representantes.
Então, além dos acontecimentos ocorridos na Europa ‒ e mais precisamente, em
Portugal e Espanha (nação esta que é o torrão natal de Iglezias) ‒, o que estava ocorrendo no
Brasil? Por aqui, uma verdadeira eclosão de revoltas no país, convulsionado, entre outros
inúmeros fatos, pelos efeitos do que ocorreu em 13 de maio de 1888 e 15 de novembro de
117
1899 . Vivia-se no período da Primeira República (dos ainda Estados Unidos do Brasil,
mais tarde República Federativa do Brasil) ou República Velha, assim chamada após a
Revolução de 1930. Havia, na ocasião da chegada do personagem espanhol Iglezias,
ressonâncias da chamada Segunda Revolta da Esquadra, embora se saiba que no tempo
histórico este episódio findou em 1894; um ano antes, portanto. Mas não importa tanto essa
espécie de desvio histórico, mesmo porque ao romancista não se deve exigir tamanha
responsabilidade com o verismo a toda prova. O compromisso do autor literário é com as
possibilidades; ou seja, com a verossimilhança, que proporciona o entendimento da
possibilidade, coerente e crível, da ocorrência do fato na realidade ficcional, já que a realidade
factual fica a cargo das ciências em geral: História, Geografia, Sociologia, Matemática, etc.
Lembremos do pacto ou acordo ficcional (ECO, 1994) que faz o leitor aceitar como verdadeiro
um fato imaginário, quando da leitura de uma obra literária.
Mas voltemos à análise dos acontecimentos no romance em questão, a partir de mais
um excerto. Nota-se, a partir de sua leitura, que se vivia em plena I Guerra Mundial (1914-
1918), como se percebe no primeiro e no segundo parágrafos do capítulo VIII, da segunda
parte de Linha do Parque:

Com os telegramas da guerra, Saldanha, Iglezias, Luís e seus companheiros


farejavam pelo porto algo que podia estar acontecendo de novo na
Alemanha, em Paris, na Itália e em Liverpool, ou, quem sabia? Em Odessa
e Sebastopol.
§ Voltaram para a União ou para o chá, desolados, casmurros, cheios de
conjecturas. Para Iglezias, o assassinato de Pinheiro Machado [1851-1915]
no Rio, já não tinha a significação a que daria se fosse anos atrás.
(JURANDIR, 2020, p. 141)

Os três amigos (Saldanha, Iglezias e Luís Pinheiro, além outros camaradas, cujos
nomes o narrador não revelou) circulavam ansiosos ‒ por isso, “farejavam” ‒ pelo porto, em
busca de notícias mais específicas da guerra, cuja linguagem breve dos telegramas não podia

117
Abolição da Escravatura e Proclamação da República, respectivamente.
150

detalhar. No excerto está bem claro o contexto histórico: a I Guerra ocorria na Europa, mas
ganhou proporções de alcance mundial, com seus efeitos nocivos se espalhando por todos os
continentes, e duraria de 1914 até 1918, atingindo, logicamente, também o Brasil, que vivia
os meados de sua terceira década como república: a Primeira República, como hoje a
denominamos, entre outros nomes. José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), mencionado
no excerto, era um político de grande influência naquela época, como vice-presidente do
Senado e presidente do Partido Republicano Conservador, nascido em Cruz Alta, no Rio
Grande do Sul. Era também advogado e filho de fazendeiro. Seu assassino chamava-se
Francisco Manço de Paiva Coimbra e, pelo que tudo indica, cumpria ordens de inimigos
políticos de Pinheiro Machado, nome hoje de um município que, por coincidência, teve
origem em desmembramento, há muito tempo, da cidade do Rio Grande.
A data exata desse crime é 08/09/1915. Presidia o Brasil naquele ano Venceslau Brás
Pereira Gomes (1868-1966), com mandato de 1914 a 1918, e governava o Rio Grande do Sul
Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), que esteve à frente desse estado de 1913
a 1928. Era uma época de tumultos político-sociais, que sacudiram os governos regionais e o
governo central de uma república eivada de heranças da época imperial, principalmente por
causa da existência de uma elite oligárquica, que continuava a dirigir o país, ligada ao grande
latifúndio, seja pela prática da pecuária, seja pela da cafeicultura. Daí vem o nome dado ao
acordo feito entre governadores na Primeira República, chamado de Política do Café-com-
Leite, que fazia alternarem na presidência do Brasil os candidatos ora de São Paulo, ligados
(de modo geral) à cafeicultura, ora de Minas Gerais, ligados (também de modo geral) à
produção de leite. Venceslau Brás deu início à produção industrial nacional de manufaturas
que antes eram importadas da Europa, suprindo o fornecimento com estoque local, já que a
Guerra interrompia a importação delas; por tabela, tentando lidar com aquilo que não
conseguia vender lá fora, por causa da guerra, vendendo-o aqui, no Brasil.
Conforme mencionamos na introdução desta tese, de forma resumida, Linha do
Parque cobre um longo período, estendendo-se do fim do século XIX até o ano de 1952. Nem
sempre o narrador e/ou os personagens fazem menção explícita aos fatos, mas é possível fazer
inferências dos acontecimentos a partir do contexto, geralmente dos diálogos e debates entre
personagens. Então, a Velha República surge nas Revoltas da Armada, da Vacina, da Chibata,
de Juazeiro, surge na Greve Geral de 1917, na Gripe Espanhola, Fundação do PCB,
Tenentismo, Coluna Prestes, Revolução de 1930 (fim da Velha República), Intentona
Comunista, Estado Novo (início e fim), Governo Dutra, Fechamento do PCB, rompimento
das relações Brasil-União Soviética e segundo mandato de Getúlio. Consideramos essa
151

sequência de fatos uma síntese imperfeita e lacunar do período coberto pela narrativa do
romance de Jurandir, em relação ao contexto histórico brasileiro.
Já em termos mundiais, o painel histórico traçado cobre a Revolução de 1905, na
Rússia, a Revolução Mexicana, o início da I Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917
(seguida da Guerra Civil Russa), o fim da I Guerra, a pandemia da Gripe Espanhola, a
assinatura do Tratado de Versalhes, a ascensão do Fascismo na Itália, a crise de 1929 (quebra
da Bolsa de Nova Iorque), a ascensão do Nazismo na Alemanha e o Salazarismo em Portugal,
a Guerra Civil Espanhola, o início da II Guerra Mundial, o Franquismo na Espanha, a vitória
dos russos contra os alemães na Batalha de Stalingrado, fim da II Guerra Mundial, Criação da
ONU, implantação do Plano Marshall, início da Guerra Fria, criação do Estado de Israel e
divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Revolução Chinesa e Guerra da
Coreia. Trata-se também de uma enumeração resumida e lacunar de acontecimentos em um
plano mais abrangente.
Assim, verificamos que o tempo da narrativa de Chove nos campos de Cachoeira está
contido no tempo da narrativa de Linha do Parque, se pensarmos na teoria dos conjuntos, da
Matemática: o tempo mais distendido do romance do Extremo-Sul abrange o tempo mais
contraído do romance-embrião, em cuja diegese há sequências narrativas em que é possível
perceber uma temporalidade situada no final dos anos de 1910, possivelmente, 1919, o que se
pode depreender de algumas passagens do romance, como esta abaixo:

Ezequias levantou-se sem despregar os olhos do jornal. Diabo, não tinha uma
nova guerra no mundo! Com uma nova guerra o Brasil venderia gêneros à
beça, ganharia dinheiro. Enfim os aliados não acabam com aquele
comunismo da Rússia? Teriam morto mesmo Nicolau Segundo? Pobre
família imperial! (JURANDIR, 1997, p. 46)

A Revolução Russa foi deflagrada no fim de 1917. A I Guerra Mundial findou em


1918. Se de um lado, com sua mentalidade de comerciante, Ezequias acreditava que uma nova
guerra seria lucrativa para a exportação de produtos brasileiros, de outro, com o seu
pensamento alimentado pela opinião do juiz substituto de Cachoeira, sentia ‒ sem sequer saber
o que era ‒ repulsa pelo Comunismo (na verdade, o Socialismo), recém implantado como
sistema de governo naquela distante nação. Ezequias se sentia apiedado em relação ao destino
do Czar Nicolau II e sua família118, mortos em 1918, pelos soldados bolcheviques, durante a
Guerra Civil Russa (1917-1922). Os “aliados”, que seriam, entre outras nações, a Grã-

118
Nikolái Alieksándrovich Románov (1868-1918), o imperador, e Alexandra Feodorovna Románov (1872-
1918), a imperatriz, e os filhos: Olga, Tatiana, Maria, Anastásia e Alexei.
152

Bretanha, França e Rússia (esta última deixou a Guerra após os revolucionários tomarem o
poder).
Em uma outra passagem de Chove nos campos de Cachoeira, o leitor se depara com o
doutor Campos, o juiz, conversando com Salu, dentro da venda deste, expressando sua
opinião, com muita negatividade, acerca da Revolução Russa de 1917:

Major não ouve Dr. Campos na taverninha do Salu conversando e bebendo.


Dr. Campos, à tarde, terminou o seu artigo sobre a Sagrada Eucaristia que
tem de mandar pra a Verdade, órgão dos interesses da sociedade e da família
em Belém. Gosta de escrever os seus artigos sempre no interesse de Deus.
Deus anda ameaçado pelos demônios. Aconteceu na Rússia uma
calamidade. Dissolveu-se a família, extinguiu-se a propriedade, destruíram-
se os templos, assassinaram os sacerdotes, negaram Deus. Padre Bento que
veio da Europa me contou bem a terrível história. Pensam que essa onda
maldita não pode invadir o mundo como uma onda de terror e de peste? Dr.
Campos escreveu cinco artigos contra o bolchevismo e cinco artigos
provando a existência de Deus.
− Salu, meus artigos são lidos em Belém com respeito e atenção. Sou um
exegeta cristão. Sou!
− Dr. que quer dizer exegeta? Como se pronuncia?
− A exegese, meu amigo, no cristianismo adquiriu relevo sublime. Você não
está na altura de compreender os grandes livros da fé. Eu tenho me batido
por uma maior educação religiosa, Salu! Você não sabe o que está
acontecendo na Rússia. Nicolau? Um santo. O martírio de Nicolau? Se
assemelha aos dos mártires cristãos na Roma antiga! Você conhece a história
da Roma Antiga? Nunca leu o Gênio do Cristianismo traduzido pelo grande
Camilo Castelo Branco, o genial autor do Amor de Perdição?
Não sabe o que são as belezas do cristianismo. Eu posso ler e dar uma
interpretação do Apocalipse. Sei. Você, Salu, na sua simplicidade você não
sabe quem é Santo Agostinho. Grande santo. Grande santo. O Apocalipse
profetizou o bolchevismo da Rússia. Os bolchevistas estupram crianças.
Degolam velhos. Dinamitam igrejas. Tomam mulheres. Saqueiam,
arrombam tumbas e castelos, vão talando tudo. São como os Bárbaros. São
os... os... hunos. Sim, os hunos! Mais cerveja, Salu!
Salu abre a boca com sono. Tem uma visão da Rússia devastada pela invasão
de enormes homens barbudos e ferozes forçando mulheres, baionetando
velhas, fazendo orgias medonhas nos palácios saqueados.
− Meus artigos lançam uma advertência. A Igreja tem que ser antes de tudo
um baluarte da sociedade. Tem que ser o farol da humanidade. Sou pela
disciplina religiosa, pela oficialização da Igreja. Sou pelo Estado Teocrático,
Salu! (JURANDIR, 1997, p. 73-74).

A longa citação se faz necessária porque subsidia na demonstração de como a


estratégia narrativa pode situar o tempo da diegese no tempo histórico. Nesse caso, pela voz
de um personagem, a quem o narrador deixa falar por discurso direto, citando um evento
histórico de conhecimento da grande maioria da população adulta letrada com certo grau de
escolarização, que é a Revolução Russa de 1917, já tão mencionada nesta tese. Só que esse
153

discurso direto não vem enfaticamente marcado pelo uso do travessão, omissão bem comum
e proposital em romances que adotam técnicas narrativas modernistas, mas que pode
confundir o leitor desatento, por este não perceber a mudança de discurso e de foco narrativo,
que ocorre a partir da expressão “Aconteceu na Rússia” que, mesmo sem travessão, inicia a
fala de Campos, já emitindo suas idiossincrasias negativas e condenatórias sobre aquilo que
é, no contexto do romance, um fato histórico recente. As narrativas a partir de certo ponto, no
século XX, adotam esse procedimento inovador de mistura de vozes, o que exige um leitor
mais alerta, mais arguto para esses pormenores, que perceberá, um pouco mais adiante, o uso
da primeira pessoa no pronome ‘me’: “Padre Bento que veio da Europa me contou bem a
terrível história?” E aqui Campos se dirige aos que estão ao seu redor, fazendo uso da função
fática da linguagem: “Pensam [vocês] que essa onda maldita [a Revolução Russa] não pode
invadir o mundo como uma onda de terror e de peste?”
E, em meio a toda uma argumentação, pondo em paralelo uma receita que funde o
conservadorismo social e político com a hipocrisia religiosa tão extremada, doutor Campos
chegou a fazer a seguinte afirmativa: “Sou pelo Estado Teocrático, Salu!” E não para por aí,
já que considera Nicolau II um santo, denominando sua execução sumária de martírio,
comparando com os martírios de cristãos na Roma antiga. Na mesma passagem, acusa os
bolcheviques usando contra estes todos os clichês que se tornaram massivos ‒ não sem alguma
razão, infelizmente! ‒ em praticamente todos os países capitalistas, economicamente
desenvolvidos, ou não: “Os bolchevistas estupram crianças. Degolam velhos. Dinamitam
igrejas. Tomam mulheres. Saqueiam, arrombam tumbas e castelos, vão talando tudo. São
como os Bárbaros. São os... os... hunos. Sim, os hunos! Mais cerveja, Salu!”
E toda uma visão político-ideológica contrária às ideias de Jurandir são manifestadas
por esse personagem advogado que tira proveito do status quo; que age como mau-caráter,
aproveitando-se da desigualdade social reinante. Sua principal vítima é Felícia, muitas vezes
humilhada por ele, homem casado que paga ‒ não sem reclamar ‒ por favores sexuais de
prostitutas e escreve artigos de teor religioso para jornais de Belém, o que reforça seu caráter
hipócrita. De fato, sua hipocrisia é tanta que chega a afirmar que “É preciso escrever as coisas
pias em presença da cerveja, da [a prostituta] Felícia. Só em presença do Vício é que se pode
escrever sobre a Virtude!” (JURANDIR, 1997, p. 120)
Um dos maiores horrores da humanidade chegou ao seu termo com o fim da I Guerra,
mas, mesmo antes de o conflito chegar ao fim, outro horror, de dimensões paralelas em relação
às perdas de vidas, começou a se disseminar por todo o planeta. Era a Gripe Espanhola,
caracterizando-se como uma pandemia do vírus Influenza. A passagem abaixo é exemplar:
154

D. Rosália Saraiva morreu já no fim da gripe. Alfredo se lembrava da vila


sob o peso dos sinos toda hora dobrando a finados. Era a Espanhola, os
enterros atravessando o campo para o cemitério, era a morte em Cachoeira.
Seu Leio, o sineiro, tinha a cara dos dobres a finados. Era surdo e batia os
sinos espalhando em Cachoeira o terror e o pesadelo. Alfredo acordava à
noite com aqueles sinos dobrando. Era impressão. Os sinos alucinavam
(JURANDIR, 1997, p. 101).

A mortandade foi grande ali em Cachoeira, por causa da doença. As pessoas perdiam
a lucidez, como ocorreu com Alfredo, que tinha a impressão de que os sinos dobravam até
mesmo de noite. “A guerra mandara a Espanhola para Cachoeira. E Doutor Campos, vermelho
de cachaça com limão, bradava: ‒ É a influenza em Cachoeira e o bolchevismo nas estepes!”
(JURANDIR, 1997, p. 101). Eram tantas as mortes, que o agente funerário da vila, conhecido
como Velho Abade, desabafava reclamando que não dava mais conta de fazer caixão para
tanto defunto. Inclusive afirmava que já havia acabado com toda a madeira da vila. Mas os
pobres eram enterrados envoltos em redes e esteiras, em covas que não chegavam a sete
palmos, às vezes com três corpos sepultados na mesma cova.
No outro extremo do Brasil, a situação não era tão diferente, como se pode notar na
passagem abaixo, de Linha do Parque:

A influenza alcançara também as minas. Receosa de uma devastação total


entre os mineiros, e com isso a paralisação dos trabalhos, a empresa ordenou
a abertura de uma verba para fornecer leite e medicamentos aos operários e
pagar-lhes os dias em que estivessem enfermos. Assim, não haveria o êxodo
das minas. Mas o engenheiro José Nogueira de Sá não concordou com a
filantropia utilitária da empresa. Abafou a verba, alegando que a miséria era
geral no Estado e não haveria êxodo. Gentil, Raul e José Machado, três
maquinistas, foram reclamar ao engenheiro os seus direitos, assim como os
direitos de todos os mineiros... (JURANDIR, 2020, p. 164).

Influenza é o nome do vírus causador do que ficou conhecido como Espanhola ou


Gripe Espanhola, que foi mais que uma epidemia. Foi uma pandemia, por ter-se disseminado
por todos os países no último ano do conflito de alcance mundial. Recebeu o nome não por
ter origem na Espanha, mas porque os jornais espanhóis, sem terem sido censurados,
divulgaram massivamente sua disseminação, que teria sua origem na Grã-Bretanha ou nos
EUA. No excerto supracitado, a empresa responsável pelas minas praticaria uma espécie de
filantropia utilitarista, porque a preocupação dos empresários de fato não era com a saúde dos
operários, mas, sim, com a produtividade, que não queriam que baixasse. A verba foi, no
entanto, “abafada”, pois não haveria êxodo, já que a miséria estava tão bem distribuída por
155

todo o estado do Rio Grande do Sul, segundo o engenheiro José Nogueira de Sá, um
personagem de Linha do Parque em que percebemos um mau-caratismo tão elevado quanto
o do doutor Campos, ou o do doutor Lustosa, ambos personagens de Chove nos campos de
Cachoeira.
Aliás, é bom frisar, o mau-caratismo do primeiro personagem supracitado pode
representar o coletivo do patronato ou empresariado da época, que, na grande maioria dos
casos, explorava (e ainda explora) a força de trabalho dos proletários, forçando-os a cargas
laborais excessivas, exaustivas e pessimamente remuneradas; já o mau-caratismo de Lustosa,
um dos dois personagens citados em segundo lugar, pode representar o conjunto dos
latifundiários, cuja exploração da força de trabalho dos vaqueiros, por exemplo, no
arquipélago marajoara, se dá de forma similar a dos industriais, mas por outras maneiras, das
quais se destacam o aviltamento salarial, as péssimas condições de atendimento a problemas
de saúde, a precariedade de habitação e ausência de escolas para os filhos.
Nesse romance Chove nos campos de Cachoeira, no capítulo XVIII, “Bem Comum
cercou os campos”, doutor Casemiro Lustosa fez visita a Eutanázio, cuja doença ‒ uma DST,
não esqueçamos ‒ já se encontrava em estado avançado. Pela onisciência (neste caso, relativa)
do narrador, passa-se a saber do desconforto de Eutanázio em relação àquela visita: “Por que
se encheu de prevenção, de particular mal-estar contra esse homem?” (JURANDIR, 1997, p.
276). Doutor Lustosa nunca o prejudicou, pelo contrário, foi sempre gentil com ele, até lhe
ofereceu empréstimo, agindo como um cavalheiro, sem nunca divergir de ninguém, sempre
com bons modos. Mas Eutanázio conhecia alguns detalhes da vida do doutor Lustosa antes de
ele chegar a Cachoeira e adquirir todos os campos nas adjacências da vila. Esses

Eram os campos onde o povo podia tirar a sua lenha, o seu muruci, um ou
outro ovo de camaleão, fazer seu passeio. Tudo agora tem um dono só. A
vila não pode se estender mais para os campos porque na cerca tem uma
tabuleta com letras pintadas pelo Raul com uma negra mão indicando:
BEM COMUM
Propriedade do Dr. Casemiro Lustosa
(JURANDIR, 1997, p. 276).

Cachoeira passou a ser cercada por essa imensa fazenda demarcada por uma extensa
cerca de arame farpado, depois de os pequenos proprietários serem convencidos por Lustosa
“[...] a cederem as suas fazendas para aquela obra de patriotismo e desprendimento”
(JURANDIR, 1997, p. 277). Seu objetivo era criar uma fazenda modelo diferente daquelas do
grande latifúndio, palavra esta usada por Lustosa que fez pessoas ali da vila consultarem o
156

dicionário, para saberem seu significado. O advogado dizia que era um utopista e queria servir
Cachoeira. Queria proteger aquela terra e aquele povo.
Mas Eutanázio sabia das negociatas imobiliárias muito lucrativas do doutor Lustosa
com o município de Belém, das terras compradas na Estrada na Estrada de Ferro de Bragança,
conseguindo benefícios do Governo Federal e depois vendendo as terras de volta ao governo,
para este instalar ali um projeto de agricultura. Além da cátedra na Faculdade de Direito, ficou
rico, ganhou honrarias, comendas, prestígio político. Mesmo levando à falência certa grande
empresa de Belém, continuou advogando para a Port Of, para a Ford, por exemplo. Mas
“Doutor Lustosa era a simplicidade em pessoa” (JURANDIR, 1997, p. 277). E por ser
idealista, desinteressado e amigo do povo, “[...] conseguiu com o governo do Estado um
benefício de efeito incalculável para o povo de Cachoeira: saiu um decreto elevando à
categoria de cidade a Vila de Cachoeira!” (JURANDIR, 1997, p. 279. Itálico do autor). Era
humilhante chamar o lugar de vila. Como cidade, dava orgulho aos habitantes escrever cartas
com endereçamento de remetente como a cidade de Cachoeira. Bem Comum deveria crescer
e progredir ali, com as benzedeiras fazendo promessas. Sobre o doutor Lustosa, pensava o
povo: “Não havia dúvida, o sonho desse homem era de proteger os pobres, dar nome a
Cachoeira” (JURANDIR, 1997, p. 280-281).
A partir da fusão da voz do narrador com os pensamentos de Eutanázio, o leitor pode
perceber ‒ e sorver deliciosamente ‒ as ironias referentes ao personagem Lustosa, distribuídas
amiúde por todo o capítulo. Então, a sequência da visita do personagem a Eutanázio permite
ao autor manifestar o que pensa desse tipo de gente aproveitadora, que aparecia e aparece
ainda hoje nos interiores da região marajoara, aproveitando-se da gente simples que habita
essas paragens que estampam cartões postais, agindo inclusive de maneira cínica, muito bem
figurada essa maneira no topônimo Bem Comum. “Aquilo é para vocês. Não é meu”
(JURANDIR, 1997, p. 281), dizia Lustosa.
Por tudo isso, “Eutanázio não podia tragar esse homem” (JURANDIR, 1997, p. 280).
E outra revelação surge no parágrafo final do capítulo, quando ele lamenta que as cercas do
Bem Comum tivessem chegado tarde, pois um certo personagem levou Irene, sua musa
perversa, para passear nos campos, o que resultou na gravidez da jovem e, com certeza, no
agravamento do estado de adoecimento de Eutanázio. Levado por pensamentos vingativos,
pensava em poder mover uma campanha contra o político mau-caráter, desmascará-lo, por
suas cercas chegarem tarde. Vejamos o excerto: “Eutanázio ficou pensando nos campos
perdidos de Cachoeira. Que diabo! Por que não sentou a cerca antes de Resendinho levar Irene
para o campo?” (JURANDIR, 1997, p. 281). Sentia-se logrado, por causa disso.
157

A doença estava consumindo Eutanázio, como era de se esperar, já que bebeu


“daquele” café preparado acidentalmente com a água usada antes para banhar o cadáver da
esposa de Domingão. Precisamos recordar também a simbologia do próprio nome do
personagem, que remete etimologicamente para o vocábulo ‘eutanásia’, o abrandamento da
morte, a morte sem dor. Aliás, a morte era fato costumeiro ali em Cachoeira. Por exemplo,
morreram a mulher de Domingão (dona Emiliana), Clara, Cristino e Ezequias (os dois últimos
se suicidaram). Além dos que morreram antes do período abarcado em que transcorre história
de Chove nos campos de Cachoeira, como o filho e a mãe de dona Amélia, entre outros
muitos, vítimas da pandemia do Influenza. Em Linha do Parque, a morte também fazia seus
estragos, como os fez principalmente no dia 1º de Maio de 1950, no terrível conflito ou
massacre da Linha do Parque ‒ como se fez conhecer o episódio ‒, que não vitimou pessoas
acidentalmente ou por doença. Nesse caso, as vítimas foram assassinadas. Vejamos mais
detalhadamente nas passagens a seguir:

E assim abril passou. Foguetes no Cedro e no Prado anunciaram o primeiro


dia de maio, boa madrugada, Jerônimo teve apenas aquele instante de
“amargo”119 e saiu de bicicleta.
IX
Foi Vitório, o estivador, que o fez subir ao bonde Linha do Parque, em
direção ao churrasco (JURANDIR, 2020, p. 466).
[...]
Jerônimo soltava razões, Euclides com os punhos aprovava, e ao pé as vozes
as vozes dizendo: vamos! É hora de caminhar.
[...]
‒ É hora de caminhar!
O parque inteiro se movimentou para sair.
‒ Cumprimentar a União! Ela faz anos hoje, irmãos. Cumprimentar? Ao
menos! Abrir? Quem sabe? A força da passeata decidirá. É hora de
caminhar, caminhar (JURANDIR, 2020, p. 478).

Operários e operárias da cidade inteira, em particular dos bairros proletários do Cedro


e do Prado, mais seus familiares, incluindo crianças, foram festejar, como de costume, o Dia
do Trabalhador, o 1º de Maio, data de alcance nacional e mundial. O lugar do festejo, que teve
como prato típico da região o churrasco em abundância, foi no Parque Rio-Grandense, parque
público, onde uma grande multidão se concentrou. O quadro pintado por Jurandir descreveu
perfeitamente o local, retratando-o entre o festivo e o idílico de um belo cenário de comunhão
de sentimentos aprazíveis e amenos, como se pode perceber na passagem abaixo:

119
O chimarrão é conhecido pelo gaúcho como ‘mate amargo’ ou só o ‘amargo’.
158

Era o velho parque à beira mar, olhando os botes na praia, as ilhas ao longe,
a névoa adiante que cobria o Saco da Mangueira.
Sob as velhas árvores, que balançavam e farfalhavam, de troncos caiados,
espalhavam-se mesas, pancas, alto-falantes, tendas, o pequeno estrado para
as representações, para os oradores, a música. E por tudo, numa floração,
entre as árvores, sobre os galhos, diante do mar e da linha do bonde,
falando do dia de trabalho, da unidade operária e da paz, as faixas e os
cartazes do Adamastor. Rente das cercas em flor, caminhavam operários
para o churrasco (JURANDIR, 2020, p. 468-469).

Traços de bucolismo (FURTADO, 2020) são fixados pela espacialização entre a


modalidade franca120 e a reflexa, descrevendo o lugar do encontro dos operários enriquecido
pelas notações líricas (FURTADO, 2017). Nada poderia ou deveria conspurcar aquela paz,
aquela beleza de manifestação de fraternidade. Tudo transcorrendo na mais absoluta paz. Mas
alguns companheiros lembraram que a União Operária fazia anos de fundação: 56 anos. Era
preciso caminhar até a sede, fechada pelo autoritarismo do governo, com o intuito de combater
a organização dos trabalhadores, acusando a União de ser uma instituição comunista. O início
da caminhada é marcado pela frase com carga metonímica que conota grande dimensão: “O
parque inteiro se movimentou para sair.”
A passeata seguia sem problemas em direção à União Operária, mas, como era de se
esperar, naquele contexto da Guerra Fria, sob o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra
(1883-1974), um general, que havia feito o Brasil romper relações diplomáticas com a URSS,
além de ter posto o PCB na ilegalidade, alguma atitude das forças coercivas do Estado seria
tomada. Além do mais, era governador do Rio Grande do Sul o coronel Ernesto Dornelles
(1897-1964), que já havia sido interventor lá durante o Estado Novo, de 1943 a 1945. E a
atitude foi tomada: a polícia, sob as ordens daquele que os operários chamavam de Klim,
resolveu dispersar a multidão, que reagiu:

E circulava o olhar pela passeata, à sua frente Euclides, a seu lado a


irmandade operária, e as filhas de Alda lá estavam. Aqui a Lourdes, com a
bandeira do Brasil, e de novo com o Batista? Menina impaciente! E o outro?
E um pouco mais atrás as crianças de Manuela. Houve um começo de recuo,
muitas pessoas se retiravam, mães tratando de recolher as crianças. E um
movimento surdo, indefinível, correu geral quando, ao berro de “dispersar!”
se viu e ouviu o corpo a corpo, os beleguins rompendo a linha das mulheres,
Vitório saltando com um soco na boca do paisana policial que se lançava
contra Lourdes, de cujas mãos Maria apanha a bandeira, avança, recua,
desvia-se, Batista levado de roldão, Lourdes desfeita no alarido, e os

120
Espacialização franca “[...] é aquela composta por um narrador independente, pauta-se pelo descritivismo e
sua característica diferencial é o efeito de objetividade impressa na descrição. Depende do narrador e ocorre
apenas dentro da narrativa em terceira pessoa.” ((BORGES FILHO, 2007, p. 62).
159

brigadianos irrompendo da retaguarda, tiros no ar, tiros cruzados, uivos de


socorro e ira, palavrões, e brados de calma! Calma! Para as mulheres que se
bandeavam para o lado da fábrica, completando, sem querer, o cerco da
polícia naquela posição de emboscada entre o cemitério e a Fabril
(JURANDIR, 2020, p. 481).

À frente da passeata, personagens conhecidos, como Euclides, outros operários e


operárias, as crianças de Alda e de Marcela, mais Lourdes, Batista e Maria, em cujas mãos
estava a bandeira brasileira, alternadamente. Alguns deram um início de recuo, mas Vitório,
após ouvir um grito de “Dispersar!” deu um soco num policial a paisana. Foi o estopim: o
caos tomou conta da situação. Tiros, gritos de socorro e raiva, palavrões. Alguns pediam
calma. Pela frente e por trás, o operariado, que até então se manifestava pacificamente, ficou
em situação de emboscada.
A situação se tornou incontornável, devido à ação opressiva e truculenta dos policiais,
que estavam dispostos a tudo, mesmo que suas ações resultassem em lesões graves ou mortes,
o que pode ser conferido a seguir:

Na correria e confusão, os ais, “cadê as armas? As armas?”, as mulheres no


chão, Maria gritava: “Paz! paz!” com a bandeira em punho, os brigadianos
a empurrar os trabalhadores de costas para o muro do campo de futebol e do
cemitério. Maria: “Paz!” gritava. E entre seus gritos o “Jerônimo!” e este dos
olhos dela sumia-se, recuando no corpo a corpo, bala cruzando. Envolta na
bandeira que empunhava, Maria caiu de costas, o sangue alto. Um oficial
brigadiano tentou arrancar-lhe o pano ensanguentado mas uns “braçais”
acudiram, o oficial deu um salto e tombou de peito aberto a punhal. Naquele
berreiro de fuga e pânico, socorro e cólera, o combate se apertava ao pé dos
muros e mal se ouvia um “Viva a classe...” sufocado no tiroteio, no mesmo
clamor em que, para trás, espalharam-se, no terror, na revolta, na piedade
dos portões e das janelas, mães, crianças, velhos, o velho palhaço, Turuna
caído, a carreira do bruxo que relinchava, um acordeão que rolava, chapéus,
bolsas, uma faixa, a flor de algum cabelo, já pisada, na sarjeta ao pé de um
menino que chorava, chamando pela mãe. O menino apanhou a flor, calou-
se, como se já não se sentisse tão só.
Em meio das sombras e das últimas correrias e tiros ao acaso, Alice e Ângelo
acudiram a Maria, enquanto Euclides, pela mão de algumas mulheres e
homens era arrastado, ferido, para um portão. Ângela curvou-se sobre Maria,
recompôs-lhe o vestido no leito da bandeira ensopada e sentou no chão e
tentou trazê-la ao colo no inútil esforço de impedir que perdesse tanto
sangue. Maria arquejava e sua cabeça, com os seus ruivos cabelos em
desalinho, deslisou no braço da companheira. E nesse tempo tão breve e com
uma noite tão de repente caindo, Ângela deixou-a no chão coberta pela
bandeira e correu já ensanguentada, a fim de acudir os vivos, cuidar dos
filhos, das moças, das crianças, ver os feridos que podiam ter ainda salvação
(JURANDIR, 2020, p. 481-482).
160

A narrativa de Linha do Parque tem seu clímax bem marcado nessa sequência de fatos
que compõem o relato do conflito de 1º de maio de 1950. Trata-se de um confronto, de fato,
desigual, principalmente por causa do uso das armas de fogo pela polícia. Também se trata de
um episódio que de épico se transfigura em dramático e, indubitavelmente, trágico também,
pela mortandade: morreram oito pessoas, no total, cinco operários e uma operária, mais dois
policiais. Além disso, o conflito acarretou um sem-número de pessoas feridas, entre estas o
vereador Euclides Fragata, que ficou paralítico, por causa de um tiro que levou durante o
conflito. E quem morreu assassinado ali, em plena rua, no episódio trágico-truculento?
Morreram, entre os operários, Abdias, Funchal, Honorino, Jerônimo, Maria (a Ruiva, como
muitos a conheciam)121 e Vitório. Os nomes dos policiais não foram revelados. Todos esses
personagens fazem parte da 2ª geração de operários ‒ de orientação socialista ‒ ligados à
Sociedade União Operária.
A tragicidade em Linha do Parque, principalmente neste episódio, aproxima
tematicamente este romance a Chove nos campos de Cachoeira, mas o modo como se dá cada
fato trágico nas duas obras romanescas é diferente, distanciando-as, ao mesmo tempo. E aqui
está, a título de exemplo, uma dicotomia na obra dalcidiana, nessa diferença da manifestação
do trágico, o que nos traz à lembrança o mau-caratismo, já mencionado, que existe nas ações
dos patrões nas duas obras, mas perpetradas por atores diferentes: a exploração é a mesma,
mas os exploradores ‒ industriais de um lado e latifundiários de outro ‒ são diferentes, assim
como os explorados ‒ proletários de um lado e trabalhadores do campo (vaqueiros, por
exemplo) de outro lado. Nessa diferença, percebemos também a dicotomia a que nos referimos
anteriormente.
Retornando ao excerto que estávamos analisando: a perspectiva narrativa está centrada
predominantemente nas ações que se sucederam com os manifestantes. A aflição já tomou
conta de quase todos, devido à atmosfera de inquietação, pânico e medo, de hostilidade e
crueldade, que o caos implantado ajudou a disseminar entre os manifestantes. O uso de frases
curtas e de grande ligeireza, interrogativas, exclamativas e incompletas, sem a pontuação
indicativa de discurso direto; mais as frases verbais indicando diversas sequências de ação;
também a sequência enumerativa em relação aos manifestantes e alguns utensílios, acessórios
de vestimenta e outros objetos, tudo isso dá àquela situação-limite o dinamismo e a rapidez
que a temática do caos requer, inclusive o choro do menino, que chamava pela mãe, mas que

121
Não foi a à toa que o jornal Rio Grande (02/05/1950, p. 2) deu a esse acontecimento funesto o nome de
Primeiro de Maio Sangrento, informação esta encontrada em Torres (2009, p. 262-263).
161

cessou por causa da flor que ele apanhou, arrematando essa sucessão com um abrandamento
da forte tensão imprimida.
Manifestantes acudiram companheiros e companheiras feridos, assim como portões e
janelas se abriram em socorro dos que precisavam. A palavra “Paz!”, usada três vezes por
Maria na passagem estudada, não impediu que a tecelã fosse alvejada e morta por uma bala.
O tratamento dado à cena é poético, o que causa em quem lê o trecho um sentimento de
empatia em relação, por exemplo, à dor da companheira da Ruiva, Ângela, que tentou em vão
ajudar a amiga, que pouco antes carregava a bandeira do Brasil com orgulho e, naquele
momento, usava-a feito uma mortalha ensanguentada. Uma heroína, sem dúvida.
Observando mais de perto a técnica narrativa empregada pelo autor, percebe-se sua
arte de ficcionalizar esse dado histórico do Conflito da Linha do Parque, a partir do cotejo
com seu artigo jornalístico “O crime em Rio Grande” (resenhado na terceira seção desta tese),
publicado na Tribuna popular em 25/05/1950. Jurandir reescreveu-o praticamente na
totalidade, para refundi-lo na sétima parte de seu romance, em linguagem caprichada na
metaforização, com dinâmica próxima a outro episódio de movimento de massa, que foi uma
greve geral, ocorrida tempos antes na cidade do Rio Grande, como reflexo das greves no Rio,
em São Paulo e em Porto Alegre.
No prefácio da 3ª edição de Linha do Parque, como já mencionado, Marlí Furtado
refere-se a certos tributos prestados por Jurandir em seu espesso livro, como um tributo às
artes plásticas, por exemplo: Maria, com sua bandeira na passeata, traz à memória a tela A
liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Delacroix (1789-1863), pintor francês que
homenageou nessa pintura a Revolução de 1830, na França. A personagem do quadro é uma
personagem feminina, como diversas outras presentes em Linha do Parque, em Chove nos
campos de Cachoeira e em todo o Ciclo do Extremo-Norte. A relevância dos papéis femininos
é, sem dúvida, uma temática que muito ainda se tem a explorar na obra dalcidiana. Em sua
tese Espaço derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir (UNICAMP, 2002), há todo
um capítulo dedicado às personagens mulheres, intitulado: “Marajó: Alaíde, Guita, Orminda.
Três mulheres e a lua presa dentro de uma caixinha de fósforos”. Já Carlos Peres, em sua
dissertação Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir: romance social, histórico e proletário (a
gênese do movimento operário no Extremo sul do Brasil) (FURG, 2006) escreveu a seção “A
mulher operária em Linha do Parque: o impulso de viver”. E Alinnie Santos defendeu a
dissertação A personagem feminina em Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir (UFPA, 2013)
e a tese A figuração da mulher em Dalcídio Jurandir: entre o desamparo, a opressão e a
transgressão (UFPA, 2018).
162

Então, não há dúvida sobre a relevância que tem a mulher na obra dalcidiana, seja no
romance do Extremo-Sul, seja nos romances do Ciclo do Extremo-Norte. Em Linha do
Parque, por exemplo, o primeiro motim em uma fábrica não foi desencadeado por homens,
mas por mulheres: Estela, tecelã da fábrica União Fabril122, é suspensa por um fiscal. Julieta
e Madalena, amigas de Estela, protestam diante do gerente, que fica nervoso, gaguejando
bastante, chamando o ato delas de motim, porque acarretou uma paralisação na seção em que
elas trabalhavam e em várias outras seções. Graças àquele motim, Estela pôde voltar ao
trabalho, sem grandes represálias da parte dos patrões.
Em Chove nos campos de Cachoeira, acaba sendo a mãe de Alfredo, dona Amélia,
uma das responsáveis por uma espécie de rede de apoio (MALIGO, 1991). Ela ajudava todos
como podia, quando batiam cotidianamente à porta do chalé pedindo açúcar, farinha, leite,
entre outros alimentos. Geralmente, eram crianças que batiam. Fazia tudo o que podia para
cuidar das crianças pobres e doentes: curava garganta, inchação, dor; aplicava purgantes,
lavagens, doava sobras de tecido, até conselhos dava, também carões, e ajudava dona Maria
dos Navegantes a fazer partos, por exemplo. Foi dona Amélia quem descobriu a doença de
Eutanázio e chamou uma conhecida, a dona Gemi, para tentar tratar do enteado teimoso,
respondão e desobediente, que recusava remédios e alimentos.
Das crianças123, em Chove nos campos de Cachoeira chama a atenção Marialba, que
vinha pedir farinha, trazendo um saco de pano, bastante sujo, dentro do qual se punha a
farinha. Ela sempre estava com olhos remelentos e gaguejava quando pedia a farinha, com
Alfredo sempre a imitá-la, com certa crueldade, embora ela sempre trouxesse algo para lhe
agradar, como por exemplo, murucis e tucumãs, frutas típicas da região. Essa pobreza
extremada124 é encontrada também amiúde nas páginas de Linha do Parque. Uma situação
exemplar é a dos dois meninos pobres Euclides e Grumete que, sem opção, resolveram vender
caranchada, que é a carne raspada dos ossos bovinos no matadouro, um lugar de odores ruins,
em que os dois tinham que passar muitas horas raspando ossos sangrentos, para obter um quilo
de carne em pedacinhos, para vender ou levar para suas casas, onde os adultos estavam

122
Entre outras instituições privadas ligadas à indústria e comércio naquela região dali do Rio Grande, Jurandir
cita, entre outras, a já mencionada União Fabril, Ipiranga, Swift, Reingantz, Standard e Shell, assim como o
próprio Porto do Rio Grande.
123
Para ter um conhecimento maior sobre a temática da criança na obra de Jurandir, conferir em: VELOSO,
Ivone dos Santos. A infância desvalida em Dalcídio Jurandir: um bulício de crianças, picado de risos e gritos.
2019. 153 f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Literários) ‒ Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto
de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém. Cf. Em nossas referências.
124
Para ter um conhecimento maior sobre a temática da pobreza na obra de Jurandir, conferir em: HAGE, José
Elias Pereira. Figurações do pobre em Dalcídio Jurandir: do chalé à rua das palhas em “Chove nos Campos de
Cachoeira”. 2015. 131 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e
Comunicação, Belém, 2015. Programa de Pós-Graduação em Letras. Cf. Em nossas referências.
163

vivenciando imensas dificuldades, causadas pelo desemprego em massa no porto, por causa
da guerra. Os meninos, então, tornaram-se provedores do lar, tornando-se adultos precoces,
trabalhando numa atividade bastante insalubre.
Como vemos, assim como as mulheres, as crianças recebem de Jurandir, em sua obra,
um olhar cuidadoso (FURTADO, 2020). Assim, a relevância da presença da criança na obra
do marajoara torna-se óbvia, até mesmo por causa do protagonista, Alfredo, que é um menino
ainda, em Chove nos campos de Cachoeira, e segue sua formação, passando por suas fases de
desenvolvimento, da pré-adolescência à adolescência e à juventude nos outros títulos do Ciclo
do Extremo-Norte125. Outras crianças emergem no caudal do Extremo-Norte, como Mariinha,
Clara, Adma, Marcelo, Tales de Mileto ou Henrique, por exemplo. Esse último, numa certa
conversa com Alfredo, disse: “‒ Que [tu] tem com isso? Sei balá um passarinho. Tu não bala.
Vamo um dia no campo [...]” (JURANDIR, 1997, p. 9). Vemos aqui um exemplo da língua
oral, que o menino Henrique emprega com queda de desinências verbais, fato corriqueiro na
variante popular usada naquele tempo e ainda na atualidade. Jurandir usou esse recurso de
forma perfeitamente condizente com a fala cotidiana das comunidades amazônicas. Com isso,
alcança maior verossimilhança e ancora espacial e culturalmente sua ficção. O léxico regional
aflora especialmente nos diálogos, como neste trecho em que Alfredo conversa com Marialba:
“‒ Que pitiú que tu tens, Marialba, te lava!”, em Chove nos campos de Cachoeira
(JURANDIR, 1997, p. 96). E em parágrafo anterior, o narrador caracterizou a menina como
tendo “eternas corubas” em seus braços. No romance referido, há um abundante uso desses
termos regionais126, como: chibé, cuche!, eras!, jacuba, jijus, muxinga, pororoca, tucumã127 e
tantos outros, que enriquecem a linguagem da obra e acrescentam-lhe um dado a mais
relacionado ao pertencimento e à identidade de um lugar dentro do vasto universo da
Amazônia marajoara.
Há também um sem número de personagens crianças em Linha do Parque, muitas
delas tratadas como filhos ou filhas, com pouca revelação de nomes. Como por exemplo, as

125
Para entender melhor, vide: CASTELO BRANCO, Rosanne Cordeiro de. O Bildungsroman na Amazônia: a
caracterização do romance de Formação na obra literária de Dalcídio Jurandir. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal do Pará. Centro de letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Letras, 2004. Cf. Em
nossas referências.
126
Para aprofundamento deste tema, consultar ASSIS, Rosa. O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir. Belém:
UFPA, 1992. E também ASSIS, Rosa; CERQUEIRA, Ana. Evém chuva... um glossário de Dalcídio Jurandir. 2.
ed. Rev. e corrigida. Belém: Editora Amazônia, 2009. Cf. Em nossas referências.
127
Pitiú: odor forte de peixe; corubas: feridas; chibé: alimento feito da mistura de farinha de mandioca e água;
cuchê!: interjeição que traduz ideia de nojo, desprezo, usada também para espantar suínos; eras!: interjeição que
exprime contrariedade, desdém, evasiva ou espanto; jacuba: o mesmo que chibé; jijus: peixes da região
amazônica (jejus ou jujus); muxinga: chicote; pororoca: onda imensa que percorre certos rios da Amazônia na
enchente; e tucumã: fruto doce comestível de uma palmeira da região amazônica.
164

filhas de Alda e Adamastor (que são muitas), as crianças de Manuela; mas o leitor também
pode se deparar com aquelas identificadas pelo nome, como é o caso da Lourdes, filha de Luís
Pinheiro; do Francisco, filho de Estela; do Mário, filho de Maria; e dos já mencionados
Euclides e Grumete, com suas histórias tocantes de ajuda à família, naquele trabalho duro e
insalubre de extrair dos ossos de boi a caranchada, por exemplo. Como fez em Chove nos
campos de Cachoeira, no trato com a língua oral e popular, Jurandir também fez com que o
universo sulino estivesse na fala dos personagens de Linha do Parque, pelo emprego de léxico
típico da região, dando mais coerência interna à narrativa, ativando o pertencimento e a
identidade do povo com a terra e a cultura do Rio Grande do Sul. Vejamos alguns exemplos
desse léxico: amargo, caranchada (vocábulo já mencionado), bah!, barbaridade!, china, guria,
Pampa (Campanha), tchê!, 128 e tantos outros.
Além das mulheres e crianças, que recebem um tratamento com grande sensibilidade
da parte de Jurandir, um outro ponto favorável ao autor levantado pela pesquisadora Marlí
Furtado, em seu prefácio à 3ª edição de Linha do Parque, é a incorporação de leituras129, artes
plásticas, música e outras artes no enredo desse romance. Logicamente, se o prefácio fosse
sobre toda a obra dalcidiana, pouca alteração se faria necessária sobre essa incorporação de
leituras e das artes em geral: nomes de autores, títulos de livros, seja de prosa, poesia ou teatro,
literários ou não, referências a peças teatrais, pinturas e filmes são muito frequentes em seus
11 romances. Em relação ao ato de ler, declamar poesia ou narrar histórias, por exemplo, seu
Alberto vivia a declamar este verso: “Ó que aspérrimo Dezembro...” Trata-se do primeiro
verso do poema “O Natal do pobrezinho”, do português Antônio Feliciano de Castilho (1800-
1875). Mas seu Alberto lia de tudo um pouco: do Dicionário de medicina popular e guia
médico das ciências acessórias (1842), do polonês Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1812-
1881), a catálogos (muitos catálogos) e manuais de criação de animais, entre outras muitas

128
Amargo: chá de erva-mate ou chimarrão; caranchada: carne raspada dos ossos de bovinos, no matadouro;
bah!: Interjeição que exprime surpresa, admiração ou espanto; barbaridade!: também interjeição que exprime
surpresa, admiração ou espanto; china: entre outros sentidos, significa moça indígena ou descendente de; mulher
de pele morena; moça do campo; concubina ou meretriz; guria: criança do sexo feminino; menina; namorada;
Pampa (Campanha): tipo de formação campestre comum na fronteira Brasil-Argentina-Uruguai; e tchê!: pode
funcionar como interjeição de admiração ou espanto, no final de frases, mas também pode funcionar como
vocativo, com o sentido de amigo, por exemplo.
129
Para maior aprofundamento do tema, consultar: COSTA, Regina Barbosa da. Imagens de leituras em Chove
nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. 2014. 107 f. Dissertação (Mestrado em Letras: Estudos
Literários) − Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal
do Pará, Belém. E também: COSTA, Regina Barbosa da. Dalcídio Jurandir: leitor e criador de personagens-
leitores no Ciclo do Extremo Norte. 2019. 212 f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Literários) ‒ Programa de
Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém.
165

leituras. Já Eutanázio ficou impressionado com o título de um livro que viu em algumas
livrarias de Belém: As dores do mundo (1850), ensaio filosófico do germânico Arthur
Schopenhauer (1788-1860). Como gostava de escrever versos, esse poeta inconstituído sabia
de cor alguns poemas, como “Se se morre de amor” (1852)130, de Gonçalves Dias (1823-
1864); “Soneto XIII”131 (apelidado de “Ouvir estrelas”), de Olavo Bilac (1865-1918); e “As
pombas”132, de Raimundo Correia (1859-1911). Outro leitor interessante é o Salu, da venda,
que gostava muito de ler folhetins, como o Rainha e mendiga (1907), de Antônio Contreras
(1587-1654), para depois narrar seus episódios para outras pessoas; entre estas, crianças, como
o menino Alfredo.
Iglezias foi um benfeitor para a Sociedade União Operária, doando livros, e
incentivando a alfabetização dos operários, além de ajudar na formação de um grupo de teatro
que passou a se chamar Germinal, em homenagem ao romance homônimo de Émile Zola
(1840-1902). Saldanha, um pintor amigo de Iglezias e, como este, um dos que faziam parte
da 1ª geração de personagens envolvidas nas lutas operárias, tornou-se um leitor voraz de
livros como Os miseráveis (1862), de Victor Hugo (1802-1885); ou Mistérios do povo (1849),
de Eugène Sue (1804-1857). Diversos outros títulos são mencionados por personagens de
Linha do Parque, muitas vezes sem citação dos autores; também ocorre de os autores serem
mencionados sem a revelação dos títulos das obras. Assim, Máximo Górki (1868-1936) é
citado e, pelo contexto de início do século, deduzimos que se trata do romance A mãe (1906).
Por outro lado, aparece a citação do título O capital (livro I: 1867; II: 1885; III: 1894), mas
sem a citação de seus autores: Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895). Surgem também
outros autores, como Francisco Ferrer (1859-1909) e Jules Guesde (1845-1922). Dos autores
nacionais, encontramos Jorge Amado (1912-2001), com seu livro biográfico sobre Carlos
Prestes (1898-1990), intitulado O cavaleiro da esperança (1942). Entre periódicos,
destacamos a leitura pelos trabalhadores de A classe operária133. Aqui tivemos a necessidade

130
Poema publicado avulso. Cf. in: DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1959. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000114.pdf. Acesso em:
31 jan. 2023.
131
Poema publicado em Via-láctea, 1888. Cf. in: BILAC, Olavo. Soneto XIII, de Via-láctea. In:____. Poesias.
São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 43.
132
Poema publicado em Sinfonias, 1883. Cf. in: CORREIA, Raimundo. As pombas. In: ABDALA JÚNIOR,
Benjamin (org.). Poesia brasileira: Realismo e Parnasianismo. 4 ed. São Paulo: Editora Ática, 2002, p. 35.
133
“Jornal carioca, inicialmente semanal, fundado em 1925 pelo então chamado Partido Comunista do Brasil
(PCB), depois Partido Comunista Brasileiro. Circulou com interrupções como seu órgão oficial até 1952, quando
foi fechado pelo próprio PCB. A partir de 1962, quando da fundação do novo Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), voltou a circular de forma clandestina como órgão oficial do novo partido” (FERREIRA, Marieta de
Morais. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/CLASSE%20OPER%C3%81RIA,%20A.pdf. Acesso em: 24 jan. 2023).
166

de proceder a um recorte, ficando apenas com as leituras de texto escrito, não explorando as
das artes em geral. Entre os dois romances, se percebe no Linha do Parque um rol de leituras
de viés ideológico mais à esquerda do que o rol de leituras presente em Chove nos campos de
Cachoeira.
Consideramos que, geralmente, quem lê, também é bom narrador de histórias.
Saldanha, o pintor (personagem de Linha do Parque), contou para a namorada Joana como a
Ilha dos Marinheiros, um dos atuais distritos do Rio Grande, recebeu esse nome: em síntese,
uma embarcação portuguesa naufragou por perto da ilha, onde os sobreviventes, os
marinheiros, com o tempo, plantaram e colheram frutas, hortaliças, por exemplo. Produziram
até mesmo um tipo de vinho. Essa narrativa faz parte do imaginário socioambiental do Rio
Grande. Já Eutanázio narra para Alfredo a História do sapateiro (SALLES, 2001, p. 10-11)
conforme passagem abaixo:

Era o aprendiz de sapateiro que matara o mestre. Ao transpor a porta da


oficina com o dinheiro no bolso, que furtara, já lhe aparece o fantasma do
morto, nítido, com os olhos em chama. O rapaz duvida, recua, mas o medo
o leva para adiante e enquanto tenta avançar, o fantasma do morto danava-
se em aparecer de todas as formas, ora dançando, ora rindo, ora de cabeça
para baixo, ora de quatro pés com os olhos em fogo. O aprendiz corre,
apavorado, grita, bate os queixos, esbugalha os olhos, numa opressão. O
cabelo se empina, a cara se muda em mil máscaras de medo, quanto mais
corria mais se multiplicavam os fantasmas do morto surgindo de todos os
lados. E o assassino não sabia mais onde meter-se, onde refugiar-se, onde
morrer. Abeirou-se dum rio e vê as águas fosforescentes e ponteadas de mil
olhos do morto sobre ele. Mas o rapaz se atira naquele turbilhão de fantasmas
que o devora, no meio das águas revoltas (JURANDIR, 1997, p. 186).

Consideramos tão importante quanto a narrativa o modo como se deu a performance


de Eutanázio, agindo em oposição àquele tipo de narrador que surge nas reflexões de Walter
Benjamin, incapaz de contar uma história bem narrada, fruto de um estado de pessimismo e
inação ligado às consequências da I Guerra Mundial, teorizado no ensaio “Narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, 1994). Segundo o pensador
alemão, “[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente” (BENJAMIN, 1994, p. 1).
Mas “Eutanázio contava fazendo careta, gestos, erguia-se, com os cabelos
despenteados caindo pelos olhos. Havia qualquer coisa de trágico e cômico na história.
Alfredo não podia deixar de esfriar com aquele pobre rapaz correndo com medo do mestre”
(JURANDIR, 1997, p. 186-187). Então, Eutanázio era um excelente narrador. Major Alberto
167

era outro narrador de destaque na comunidade ‒ além do Salu, que já mencionamos ‒, mas de
fatos ligados à História de viés oficial: “Contava façanhas da Cabanagem. Seu avô fora morto
pelos cabanos no engenho do Curral Panema” (JURANDIR, 1997, p. 66). Aqui, podemos
fazer uma reflexão, comparando o que pensava o major Alberto sobre a Cabanagem e o que
pensava Jerônimo, um operário da 2ª geração, com orientação comunista, quando se referia a
uma greve em que os manifestantes tomaram a prefeitura: “Pelo menos três dias, donos do
porto, da praça, da cidade. [...] Não foi assim lá no norte, há mais de cem anos a Cabanagem?”
(JURANDIR, 2020, p. 443). Para major Alberto, os cabanos não eram os heróis que se
mostravam a Jerônimo. Constitui um ponto de interseção entre as duas obras, com o mesmo
fato tendo duas interpretações de pontos de vista opostos nas duas narrativas.
Dona Amélia era uma exímia narradora de histórias populares. Ela narrou uma história
oral chamada de “O velho e o lilás”, para três crianças atentas: Alfredo, Mariinha e Andreza.
Porém, essa história inicia no 3º romance da série, Três casas e um rio, mas dona Amélia
perdeu o fio da meada e só concluiu a narrativa tempos depois, só para Alfredo, já no 7º
romance da série, Ponte do Galo. E como estamos refletindo sobre narradores e narração, cabe
salientar que o universo fictício dos romances do Ciclo do Extremo-Norte é construído com
base modernista, em que o narrador heterodiegético e onisciente sofre frequentes rupturas,
passando a ter onisciência apenas relativa, variando também de pessoa, de terceira para
primeira (tornando-se homodiegético, portanto), com diálogos ora construídos com discurso
direto, ora indireto, ora indireto livre, passando por vezes ao monólogo interior. Um leitor
incauto poderia imaginar erroneamente que essas reflexões seriam válidas apenas para o
Extremo-Norte, mas valem também para o romance do Extremo-Sul, assim como as variações
de tempo, com o uso de analepses, também detectáveis em Linha do Parque. Por isso, é
necessário cautela e análise mais acurada: em muitos casos, aquilo que se pensava totalmente
diferente entre o romance-embrião e o do Extremo-Sul, na verdade, apresenta diferenças de
grau. Veremos algumas curiosidades em relação a esses aspectos estudados, mas agora
apontando para o romance do Extremo-Sul.
A pesquisadora Alinnie Santos faz ‒ entre diversas outras ‒ uma consideração
relevante sobre a narrativa e o narrador no romance Linha do Parque: “Entre o final da quinta
parte e durante toda a sexta, a narrativa torna-se mais rápida. O narrador começa a dialogar
com o leitor e se torna mais intruso” (SANTOS, A.O.A. 2013, p. 69). Partindo dessa
observação arguta, levamos em consideração o seguinte pensamento: a intrusão do narrador
poderia, aparentemente, ser uma manifestação clara da opinião do autor? Ou talvez seja,
simplesmente, um procedimento de inovação dentro de sua estratégia narrativa? Então,
168

Dalcídio, na escrita desse romance, estaria mais propenso em revelar aqui seu pensamento
político-ideológico, usando e ousando inclusive um narrador em 1ª pessoa, mas não como
“eu” e, sim, como “nós”, manifesto inclusive no uso desse último pronome, como na passagem
abaixo:

Eduardo acendeu o fósforo que apagou, o vento atirava-lhe areia no rosto.


Ao outro fósforo, protegido a quatro mãos, Conceição pôde ver-lhe a cara
de lástima meio zombeteira. Conceição moeu-se, desejou ao companheiro
uma boa paulada na reunião. Uma exposição correta e clara do assunto
encerraria infalivelmente a luta. Aquela companheira, a seu lado? Que
entenderia?
Conceição quis fumar, o vento maltratava-a. O companheiro estava muito
seguro de si? Zombava? Iríamos ver (JURANDIR, 2013, p. 484. Destaque
nosso).

Coincidência ou homologia entre temática e pensamento político-ideológico do autor,


ou estratégia narrativa inovadora, o que importa é que tal proceder gera certamente uma
aproximação mais intrínseca com os leitores, pela função inclusiva do pronome “nós”,
associado que está com a ideia de coletividade, de comunismo, em um sentido mais
etimológico do vocábulo (sem renúncia, no entanto, de seu sentido político-ideológico): não
importa o “eu”, ou o “ele”, ou “ela”, não tanto como o “nós”, o “nós como narrador”,
representativo de uma coletividade.
Uma outra passagem em que o narrador se torna intruso, no final de um parágrafo, no
qual também finaliza um raciocínio, é a seguinte:

A passo lento, aproximando-se da festa, Saldanha, Jesus Barros e o velho


Luís conversavam sobre o passado. Saldanha acabava de falar sobre o
suicídio, há tantos anos, de um jovem poeta, ainda no ginásio, que já escrevia
no “O Plectro” e frequentava o grupo literário “Romeiros do Ideal”. Agora
recordava uma conversa entretida com o desaparecido Rivera sobre os meios
de realizar o socialismo. O pintor chegava a acreditar na instalação pacífica
do socialismo. Rivera repelia-o: “Instalas esse socialismo na tua casa, nas
tuas gaiolas, na tua cabeça, Saldanha. Mas aí na rua, nos frigoríficos, nas
usinas, nas fazendas, na Prefeitura, no Estado, esperas que se instale o
socialismo com os esbirros da burguesia fazendo continência ao proletariado
quando este quiser assumir o poder? Ó Saldanha, isso só a ferro e fogo”. E
dizia isto, meus amigos, num só fôlego. Que terá sido de Rivera?
(JURANDIR, 2013, p. 484, destaque nosso. Destaques nossos)

Aqui não é só o fato de a intrusão do narrador causar surpresa, mas a mudança de


perspectiva de focalização também. O leitor tem mais liberdade de interpretação, pois a
onisciência, na passagem, torna-se relativa, já que a instância narrativa desconhece o destino
169

do personagem Rivera: “Que terá sido de Rivera?” Ou seja, o que estará fazendo? Ou: por
onde estará agora? Este último questionamento nos permite pensar no espaço de circulação e
vivência dos personagens nas duas obras estudadas.
Em nossas comparações, que aproximam ou distanciam as duas realidades espaciais
de Chove nos campos de Cachoeira e Linha do Parque, o que logo se destacam como
obviedade de traços geográficos são a região, o clima, além da hidrografia, relevo, fauna e
flora. Já nos referimos ao espaço circunscrito limitar não só o deslocamento como também as
realizações pessoais relacionadas à profissão dos personagens, por exemplo. Já sabemos que
Cachoeira é localidade do interior ‒ onde os cenários rurais avultam ‒, na Amazônia paraense,
mais precisamente no arquipélago de Marajó, enquanto Rio Grande, que se localiza na Região
Sul, mais especificamente no Rio Grande do Sul, já é espaço urbanizado e industrializado.
Não que não haja presença da natureza nesses espaços sulinos retratados por Jurandir, como
a Campanha, bastante presente em Linha do Parque. Aqui Norte e Sul trazem ideia de
oposição não só por causa de se constituírem pontos cardeais em contraposição, mas também
pela imensa distância que separa esses domínios territoriais dentro desse país-continente que
é o Brasil, configurando perfeitamente a dicotomia que salientamos na obra de Jurandir, já
mencionada pelos textos em periódicos, de autoria de Valdemar Cavalcanti e J. Guimarães
Menegale, na segunda seção desta tese, quando expusemos a gênese dos dois romances.
Então, os espaços de permanência e circulação dos personagens nos dois romances dão
ensejo a que salientemos em nossa análise e interpretação a presença de elementos
dicotômicos. Por exemplo: em sua tese Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço
amazônico em romances de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum (2006), José Alonso Torres
Freire apresentou em sua tese dois conceitos úteis para nosso estudo analítico-interpretativo,
que são o “espaço-refúgio” e o “espaço-vertigem”. Não exprimem ideia de fixidade, mas de
variação, dependendo de oscilações ligadas a aspectos emocionais de personagens, por
exemplo. O primeiro está ligado a sentimentos de topofilia, que se trata de “[...] uma relação
positiva com o espaço, efetivamente favorável [...]” (BORGES FILHO; LIMA, 2006, p. 220)
ao personagem, enquanto o segundo está ligado a sentimentos de topofobia, que diz respeito
a “sufocação”, “aborrecimento”, “instabilidade”. “A relação topofóbica se dá pela relação
negativa [...]” que o personagem “[...] possui com o espaço [...]” (BORGES FILHO; LIMA,
2006, p. 220). Assim, o sentimento de topofilia, Alfredo nutria-o pelos campos onde podia
brincar, ou pela lagoinha, ou pelo chalé, principalmente por este, seu espaço-refúgio, assim
como esse mesmo chalé era para major Alberto um espaço-vertigem, mas só nas ocasiões em
que discutia com Eutanázio, cujo espaço-refúgio era a casa de dona Dejanira, por causa de
170

Irene. A saleta com os catálogos, sem brigas, era espaço-refúgio para seu Alberto, assim como
para Alfredo e Eutanázio, pois despertava neles sentimentos agradáveis. Contudo, para
Alfredo, que queria ir para Belém, estudar e escapar de certas situações cotidianas (como
comprar o quilinho de carne), Cachoeira, aos poucos, lhe despertava sentimentos topofóbicos.
Refletindo dessa mesma maneira, os locais de trabalho, para os operários de Rio
Grande, de modo geral, acarretavam sentimentos de topofobia. Eram espaços-vertigem,
enquanto o Parque Rio-Grandense, antes do conflito, era um espaço-refúgio, mas, depois
daquele 1ª de Maio, não: transformou-se em espaço-vertigem. Consideramos que o prédio da
Sociedade União Operária, que despertava sentimentos agradáveis, a topofilia, era o mais
pleno dos espaços-refúgio para os operários, lugar de se reunirem, confraternizarem e
tomarem decisões sobre greves e manifestações. Segundo Olinda Batista Assmar, autora da
primeira tese sobre Jurandir,

De certa maneira, a União Operária é a grande personagem que se fortalece


com a adesão de novos trabalhadores, quer anarquistas, como Pizarro,
Rivera e Marcos, mais violentos e obstinados pelo terrorismo que Iglezias,
quer socialistas do Estado, como Saldanha e Luís Pinheiro (ASSMAR,2003,
p. 69).

A casa de Iglezias e Marcela era um perfeito espaço a despertar nas pessoas o


sentimento de topofilia, como, por exemplo, quando alguns operários e amigos ali se reuniam,
mas nem sempre pôde manter esse feitio, transformando-se em espaço de topofobia, quando
daqueles conflitos que Marcela intermediava.
Linha do Parque chega ao fim em uma praça, com Euclides, o vereador que ficou
paraplégico no Massacre da Linha do Parque, subindo o coreto de cadeira de rodas, ajudado
por Miguel Tarta e Laurindo. Euclides fez discurso. Saldanha estava melancólico, lembrando
de Iglezias, Luís Pinheiro, a ruiva e outros amigos (JURANDIR, 2020, p. 498-500). Em
Cachoeira, na saleta do chalé, na última página de Chove nos campos de Cachoeira, vários
vizinhos estavam em vigília, como se estivessem em um velório. “Alfredo sacode o lençol, o
carocinho salta no soalho correndo para debaixo da rede do Major, como se fugisse. E o
menino, como que desamparado, perguntava a si mesmo: ‒ E agora? ‒ Major, na rede, parecia
proteger aquela fuga.” (JURANDIR, 1997, p. 286).
171

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que a temática proletária nas letras brasileiras é,


de fato, pouco explorada, esquecida à margem pelo cânone, a
proposta de tentar contar a sua (possível) história nos parece
justificada (VIEIRA, 2004, p. 11).

Sem dúvida nenhuma, a força do elemento trágico está presente nos dois romances
estudados. A morte, no virar das páginas de Chove nos campos de Cachoeira, levava embora
os personagens por causa da fome, da miséria, do descaso dos governos com relação à saúde
do povo. Também por causa da criminalidade nessa zona de interior, com a proliferação de
mortes sob encomenda, ligadas quase sempre ao poder do latifúndio, já que a lei funcionava
(e ainda funciona) a favor dos que mais têm. Mas no romance Linha do Parque a morte vem
estampada substancialmente como um conflito, causado sobretudo pela truculência da polícia,
que trabalhava como força coerciva para impedir a manifestação popular, que levou às mortes
ocorridas no dia 1º de Maio de 1950, também conhecido como Conflito da Linha do Parque,
ou Massacre da Linha do Parque.
Sabemos que foi uma luta desigual, por causa da posse das armas de fogo pelos
brigadianos. Havia muitas crianças no meio dos adultos, pois os manifestantes, após a
comemoração do Dia do Trabalhador, que foi bastante festiva, com muita gente no Parque
Rio-Grandense, com bastante churrasco e música, tiveram a ideia de caminhar até a sede da
Sociedade União Operária, pois a instituição estava fazendo aniversário naquela data, já que
foi fundada em 1º de Maio de 1894, tendo então 56 anos de fundação, mas estava fechada pelo
governo, por suspeita de atividades comunistas. É aí que a polícia intercepta a caminhada
coletiva e arma emboscada para trucidar os operários e operárias, contabilizando seis
assassinatos. Mais tarde, a polícia investigou os manifestantes, mas não quem disparou os
tiros, os policiais sob as ordens superiores. Então, os culpados foram os que levaram os tiros,
ainda mais porque os jornais, controlados pelo poder estatal do executivo ‒ com o general
Eurico Gaspar Dutra no governo federal e o coronel Ernesto Dornelles no governo estadual
do Rio Grande do Sul ‒, trataram os manifestantes como criminosos, sendo perseguidos,
alguns presos e torturados.
Nos romances de 30, a denúncia social é uma constante, e não o é menos em Chove
nos campos de Cachoeira, legítimo representante dessa estética literária, já que teve sua
escrita concluída em 1939, mas só foi publicado em 1941. Assim, pode-se perceber na obra a
172

opção dalcidiana por tematizar, enfatizando, a pobreza e a miséria como condição dominante
entre os personagens. Por causa disso, a desocupação e o subemprego são altos, há a fome,
falta de moradia, disseminação de doenças, muitas delas endêmicas, que ano após ano ativam
uma alta taxa de mortalidade entre as crianças. E se a saúde é precariamente atendida, a justiça
não deixa de sê-lo, também. Grassam, de modo geral, nos enredos dos romances que se passam
nos interiores, na zona rural, os crimes e as impunidades.
Então, como já afirmamos, o elemento trágico está presente no texto-embrião,
pairando sobre aquela frágil humanidade e humildade ‒ a rima não é à toa. Está presente até
mesmo no número de suicídios, como o de Cristino e o de Ezequias, que eram irmãos. A
melhor figuração desse fato subjaz latente e acaba se manifestando no nome de um dos
protagonistas de Chove nos campos de Cachoeira: Eutanázio, que, como já vimos, vem do
grego euthanasía, a morte sem sofrimento, como se o destino do personagem estivesse traçado
desde seu batismo, mas que se confirmou no episódio grotesco do café (que Eutanázio tomou)
preparado com água que banhou o cadáver de dona Emiliana. Sabemos, ainda, que Eutanázio
buscou o autoaniquilamento, ao deitar-se com a pobre prostituta Felícia, sem procurar ajuda
para se curar, como se quisesse castigar o mundo com sua morte.
Mas o trágico das mortes é amenizado com a esperança de que a vida sempre renasça.
Simbolicamente é isso que acontece quando a mãe de Alfredo o tira de um buraco, que era
um poço, salvando-o do afogamento, com o elemento água, que pode trazer a ideia de
destruição, trazendo à tona a esperança de uma espécie de renascimento vivido pelo
personagem Alfredo. Além disso, a musa perversa de Eutanázio, Irene, engravidou (não de
Eutanázio, mas de Resendinho). Seja como for, é uma criança nova a ser posta no mundo. É,
com certeza, uma espécie de renovação.
É preciso mesmo ter sempre esperança, senão, o que sobrará para as pessoas de classes
sociais desprivilegiadas? Seja em uma vila de interior no arquipélago do Marajó, no Extremo-
Norte do Brasil, seja em uma cidade industrializada no Extremo-Sul do país, se a pessoa for
pobre, padecerá na vida, seja explorada pelo latifundiário, seja explorada pelo industrial.
Jurandir retrata em seus romances essas situações porque gostaria muito que se alterassem e
a justiça social prevalecesse.
Um aspecto ao qual gostaríamos de nos ater, neste ponto, é a suposta censura do comitê
central do PCB ao romance Linha do Parque. Sabemos que um forte motivo para esse comitê
não ter visto com bons olhos o romance Linha do Parque é a presença constante de líderes
anarquistas na 1ª geração de defensores da causa revolucionária. Seria, para os dirigentes do
Partido o mais extremo dos absurdos: já não bastava a Jurandir ter dado forte protagonismo a
173

esses personagens anarquistas, na criação da Sociedade União Operária, na participação destes


em greves, motins e outras ações; já não bastava ter feito o personagem central, no início da
história, ter se afeiçoado a Dulce, moça advinda de família rica, embora tenha a família desta
entrado em declínio econômico; não bastava ter mostrado um forte protagonismo feminino
nas lutas operárias (em detrimento do protagonismo dos homens); não bastava ter retratado
personagens hesitantes, em relação à causa e ao Partido, chegando uns a abandonarem suas
convicções político-ideológicas e irem embora, algumas vezes por causa de casamentos , ou
de separações; não bastava tudo isso, ainda criou um personagem que era filho da maior
liderança, mas que era também totalmente avesso às ideias do pai e de seus camaradas
operários.
Sim, foi difícil de deglutir, já que Dalcídio Jurandir não foi simpático ao proselitismo
de mostrar heróis revolucionários autoconfiantes e indefectíveis (o herói positivo). Em vez
disso, criou seres humanos, não estereótipos ou autômatos. É comum aos seres humanos,
mesmo defendendo os mesmos ideais de distribuição igualitária de riquezas, de justiça social,
de liberdade, por exemplo, é comum entrarem em conflito por causa dos métodos a serem
empregados, ou por diferenças de opinião sobre as coisas mais simples do dia a dia.
Iglezias é o protagonista de fato da 1ª geração na liderança da União Operária. Ele
consegue atuar em grupo, mas com forte liderança, com personalidade. Talvez por isso, na
ocasião em que o aparente herói da 2ª geração, Ângelo, o filho mais novo de Iglezias, ‘deveria’
ocupar sua posição entre seus pares com a mesma relevância do pai, o narrador espraia a ação
por diversos outros atores, esvaziando a relevância de um herói individual, em meio ao
coletivo da geração comunista, que havia assumido a direção da Sociedade União Operária.
Em primeira análise, parece uma solução a contento, mesmo porque típica de partidos à
esquerda, voltada para dar ênfase a organizações que primam pela melhor ação grupal.
Muito do que antes considerávamos totalmente diferente em Linha do Parque,
comparando-o a Chove nos campos de Cachoeira (e aos outros componentes do Ciclo do
Extremo-Norte), neste momento acreditamos que a distância ou proximidade entre categorias
e aspectos analisados passa mais por uma questão de grau, de maior ou de menor semelhança,
ou de maior ou menor diferença. Assim, a dicotomia na obra dalcidiana, por vezes, assume
uma caracterização desenhada em linhas de meio-tom, porque o que se pensava ser
absolutamente contrastivo e nítido entre as duas obras, passou a ser percebido a partir do
prisma da relativização. Em diversos excertos estudados, adotamos a atitude de apresentar as
análises de certas categorias demonstrando as diferenças existentes entre estas nas páginas dos
dois romances, mas nem sempre nomeando-as como dicotomias, evitando assim o
174

descomedimento no uso do vocábulo, mas mantendo a congruência necessária ao


entendimento cabal por parte do leitor.
No desfecho dos dois romances, há um esmaecimento de intensidade, que acaba por
abrandar a dramaticidade e a tragicidade, trazendo os fatos do cotidiano para mostrar que a
vida deve seguir. Por isso, mostra Alfredo na rede brincando com seu caroço de tucumã. Ali
próximo está Eutanázio, que “[...] podia morrer de madrugada” (JURANDIR, 1997, p. 287),
mas que ainda viverá nas memórias de Alfredo por todo o Ciclo do Extremo-Norte. Já nos
últimos parágrafos de Linha do Parque, Saldanha, pleno de melancolia, sendo o último de
todos da 1ª geração ainda vivo, revive ‒ em suas memórias ‒ seus amigos e esposa, com uma
beleza tocante de imagens, compondo um quadro, que, comparado ao de Alfredo, constitui
uma gradação de anticlímax também, uma mitigação do elemento emotivo, pois a vida e a luta
continuam.
Quanto ao corpus estudado, com base na análise feita, chegamos a algumas
conclusões, entre elas a de que Linha do Parque não deve ser um livro estudado como obra
menor ou desimportante, mas sim como obra sui generis na produção dalcidiana. No que tange
ao teor político-ideológico, se já é notório em todo o Ciclo do Extremo-Norte, torna-se mais
explícito e ostensivo em Linha do Parque, em vista de seu viés partidário. Mas pensamos que
não se pode afirmar que a camisa-de-força do Realismo Socialista aprisionou a alma do
romancista Dalcídio Jurandir, em favor do militante do PCB, embora se possa dizer que a
objetividade, o teor investigativo, factual e documental da narrativa, derivados também da
atividade jornalística do autor, estejam bem mais presentes nesse romance do que em Chove
nos campos de Cachoeira e em qualquer um outro da série Extremo-Norte.
Vale dizer, ainda, que os ideais de mudança social emergem em todos os seus onze
romances, já que o foco de atenção do autor são os excluídos e injustiçados. E o mais
espantoso: Dalcídio Jurandir não escapou do desconhecimento e do silêncio da crítica
(NOGUEIRA, 1991, p. 242). Esse silêncio eloquente da Crítica e da História da Literatura
sobre o Ciclo do Extremo-Norte e, principalmente, sobre Linha do Parque (e outros romances
proletários de outros autores) não é de hoje que é mencionado por um razoável número de
críticos e estudiosos de literatura brasileira (acadêmicos, ou não) que tiveram contato com a
obra dalcidiana. Afinal, não foram assim tão poucos os escritores que publicaram livros
alinhados aos ideais do PCB.
A quem se pergunta pelos ganhos que terá em ler o romance Linha do Parque,
podemos, de imediato, pensar na seguinte resposta socrática: e que ganhos terá quem não o
ler? Para quem já leu na íntegra o Ciclo do Extremo-Norte, redimensionou a leitura individual
175

de cada um dos 10 (dez) romances ‒ conectando-os entre si, e entendendo as linhas e


entrelinhas de cada um livro ‒, então passará a ter uma compreensão mais completa (e
complexa) da obra dalcidiana, ao ler também Linha do Parque.
176

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do Rio Grande do Norte, Natal.
190

ANEXOS

A – Capas da 1.ª até a 8ª edição do romance Chove nos campos de Cachoeira (1941):

1ª edição (1941) 2ª edição (1976)

3ª edição (1991) 4ª edição (1995)


191

5ª edição (1997) 6ª edição – edição crítica (1998)

7ª edição (2011) 8ª edição − última edição (2019)


192

B – Capas da 1.ª até a 3ª edição do romance Linha do Parque (1959):

1ª edição brasileira (1959) 1ª (e única) edição russa (1962)

2ª edição brasileira (1987) Contrafação [3ª edição brasileira (2013)]


193

3ª edição brasileira (2020)


194

C – Imagem de Dalcídio Jurandir (1909-1979), conforme capa do livro Dalcídio Jurandir:


Romancista da Amazônia (Literatura & memória).
195

D – Página do jornal Dom Casmurro anunciando o concurso nacional de romances de 1940,


contendo valor da premiação para os vencedores, “as bases”, “o júri” e “outras informações”.
196

E – Página do Diário Oficial do Município de Belém em que o prefeito sancionou a lei


municipal que cria o “Dia de Alfredo”.

LEI nº 9.164 DE 18 DE DEZEMBRO DE 2015.


Institui o Dia de Alfredo (data de falecimento do escritor Dalcídio Jurandir) no
Calendário Municipal, e dá outras providências.

O PREFEITO MUNICIPAL DE BELÉM,


Faço saber que a CÂMARA MUNICIPAL DE BELÉM, estatui e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1º Fica instituído o dia 16 de junho como o “Dia de Alfredo”, data de falecimento
do escritor e romancista Dalcídio Jurandir.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

PALÁCIO ANTONIO LEMOS, 18 DE DEZEMBRO DE 2015.


Zenaldo Rodrigues Coutinho Júnior
Prefeito Municipal de Belém (Diário Oficial do Município de Belém, ano LIV, nº.
12.950, 18 dez. 2016, p. 2)
197

F – Poema “Passeata”, do livro Primeiro de Maio (1954), de Lila Ripoll (1905-1967), poeta
do Rio Grande do Sul. Esse poema tem por temática o “Massacre na Linha do Parque”:

Passeata

Sem demora, a passeata organizou-se.


Rompeu-se a indecisão.
Um sopro audaz passava em cada rosto,
onde os olhos falavam com estrelas,
na densa escuridão.
Espontâneas as filas se formaram
e ergueram-se a cantar.
Nas mãos erguidas, lenços tremularam,
impacientes também para avançar.
− Quem vai na frente? Quem? disseram vozes.
E três vultos surgiram, decididos.
Eram pedreiros uns. Outros portuários.
− Recchia, Osvaldino, Honório, Euclides Pinto −
e também Angelina, a tecelã.
E a passeata iniciou-se: “Adiante, amigos
Avancemos sem medo. A rua é nossa.”
Ouviu-se a voz sonoramente clara,
indicando o caminho a percorrer.
Decididos, os passos ritmados
marcaram os primeiros movimentos.
Punhos fechados,
lenços agitados,
e o vento acompanha o movimento
da marcha triunfante.
“A Bandeira na frente, companheiros”,
e Angelina surgia, erguida fina,
tocada pela luz da tarde mansa,
como um vivo estandarte a caminhar.
Os passos ritmados,
198

batiam sem cessar.


“Viva a classe operária. Salve. Viva!”
Era o coro das vozes a clamar.
Como um pássaro verde, muito verde,
a Bandeira voava, revoava,
por sobre o mar humano a se espraiar.
Flutuavam lenços, mãos gesticulavam.
Vozes subiam animando a marcha.
E as filas andavam sem parar.
A “União” já estava quase a aparecer
e os punhos se fechavam.
Um sopro audaz passava em cada rosto.,
onde os olhos brilhavam.
“Viva a ‘União’, companheiros, viva o povo”.
E a voz interrompeu seu entusiasmo
e um silêncio caiu, inesperado.
E logo uma palavra subiu clara,
atravessando homens e mulheres,
como um fino punhal.
“A polícia, a polícia, companheiros”.
E houve um leve arquejar. E alguém falou:
“Avançar, companheiros, avançar.”
Era Recchia investindo desarmado
E a onda contida transbordou.

(Disponível em: https://moskowilha.blogspot.com/2016/12/poemas-de-lila-


ripoll.html. Acesso em: 12 dez. 2022.)
199

G – Página do Diário Oficial do Estado do Pará com a lei que institui o ano de 2009 como o
Ano Estadual Dalcídio Jurandir.

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