Você está na página 1de 63

IDADE MÍDIA

01-Idade Midia.indd 1 08/12/11 17:36


OUTROS TÍTULOS DE COMUNICAÇÃO E
NOVAS MÍDIAS PUBLICADOS PELA ALEPH:

H J
Cultura da Convergência

J B J G
YouTube e a Revolução Digital

G M C
Chief Culture Ofϔicer

01-Idade Midia.indd 2 08/12/11 17:36


Alexandre Le Voci Sayad

IDADE MÍDIA
A comunicação reinventada na escola

Prefácio de Gilberto Dimenstein

COLABORAÇÃO
Daniela Moreira
Fernando Rossetti
Ismar de Oliveira Soares
Marina Consolmagno
Sérgio Rizzo
Sylvio Ayala

01-Idade Midia.indd 3 08/12/11 17:36


Copyright © Alexandre Le Voci Sayad, 2011
Copyright © Editora Aleph, 2011

Livro
CAPA Oliver Quinto
FOTO DA CAPA Eddu Ferraccioli/REPENSE
PESQUISA E ENTREVISTAS Caio Dib de Seixas
COPIDESQUE Débora Dutra Vieira
REVISÃO Hebe Ester Lucas
PROJETO GRÁFICO Neide Siqueira
EDITORAÇÃO Join Bureau
COORDENAÇÃO EDITORIAL Débora Dutra Vieira
Marcos Fernando de Barros Lima
DIREÇÃO EDITORIAL Adriano Fromer Piazzi

Blog
(http://livroidademidia.colband.blog.br)
DIREÇÃO Alexandre Le Voci Sayad
EDIÇÃO Caio Dib de Seixas
REPORTAGENS Caio Dib de Seixas
Julia Griebel
TECNOLOGIA Fabio Gondo

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

EDITORA ALEPH LTDA.


Rua João Moura, 397
05412-001 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: [55 11] 3743-3202
Fax: [55 11] 3743-3263
www.editoraaleph.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sayad, Alexandre Le Voci


Idade mídia : a comunicação reinventada na escola / Alexandre Le Voci
Sayad ; prefácio de Gilberto Dimenstein. – São Paulo : Aleph, 2011.

Vários colaboradores.
ISBN 978-85-7657-119-3

1. Comunicação na educação 2. Reforma de ensino – Brasil I. Dimenstein,


Gilberto. II. Título.

11-13310 CDD-371.1022

Índices para catálogo sistemático:

1. Comunicação na educação 371.1022


2. Educomunicação 371.1022

01-Idade Midia.indd 4 08/12/11 17:36


ste livro é fruto de um trabalho de dez anos, que se passaram como

E dez minutos. Dizem que isso acontece quando as coisas andam bem.
Ou quando você envelhece. No caso, os dois.
Esta conquista educativa, que impactou a vida de tantos estudantes,
se deve muito à ousadia de Gilberto Dimenstein e Mauro Aguiar, inspira-
ções no campo da amizade e referências no trabalho.
Deve-se também ao esforço diário e à generosidade de Marina
Consolmagno, Pedro Fregoneze, Emerson Bento Pereira, Ricardo Aguirre,
Ricardo Birrer e Vanessa Crepaldi, a quem agradeço profundamente e de-
dico este trabalho.
Num tempo passado, semente das raízes do que faço hoje, impossível
me esquecer de Aléssio Toni e Laura Góes, que me izeram acreditar que
tinha algum talento, publicaram meus primeiros textos e me apresentaram
o “encanto da possibilidade”. Inesquecíveis são também Percy da Silva e
Michel Metzger, que me ensinaram a gostar mais de literatura, de escrever
e a aproveitar melhor a tecnologia.
Pelo tempo existencial (kairós) e paciência pedagógica, a Vanessa
Brandão. Por ter “segurado a onda” quando foi preciso, a Cassiano Pimentel.
E, especialmente, ofereço cada palavra deste livro a todos os estu-
dantes do Idade Mídia, que são os donos da bola e do projeto e que, sobre-
tudo, ousaram ser tolos junto comigo.

01-Idade Midia.indd 7 08/12/11 17:36


SUMÁRIO
Parte 1 APRESENTAÇÃO ....................................................... 13

Prefácio: A comunicação como inovação na escola


Gilberto Dimenstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Por que fazer comunicação na escola? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Parte 2 CENÁRIOS ................................................................. 27

Para além da leitura crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29


O permanente im do mundo como o conhecemos . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
O Idade Mídia por Fernando Rossetti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Parte 3 METODOLOGIA .......................................................... 71

O DNA do Idade Mídia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73


Comunicação e educação: namoro centenário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
O Idade Mídia por Ismar de Oliveira Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Desmiti icando o processo educativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Modelos de não aulas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
O Idade Mídia por Sérgio Rizzo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
O Idade Mídia por Sylvio Ayala . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
Dez anos em revistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

01-Idade Midia.indd 9 08/12/11 17:36


10 IDADE MÍDIA

Parte 4 PERSONAGENS ......................................................... 179

O Idade Mídia por Marina Consolmagno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181


Uma rede de pessoas e ações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Comunico, logo existo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

Parte 5 POLÍTICAS PÚBLICAS ............................................... 247

Por uma educação pública que entenda o jovem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249


O Idade Mídia por Daniela Moreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255

APÊNDICES .............................................................................. 259

Comunicação e educação em todo o mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261


Bibliogra ia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269

01-Idade Midia.indd 10 08/12/11 17:36


IDADE MÍDIA

01-Idade Midia.indd 11 08/12/11 17:36


PARTE 1

APRESENTAÇÃO

Tyler Cowen, um renomado economista e professor da George Mason Uni-


versity, blogueiro, autor do Marginal Revolution e articulista do The New York
Times, certa vez disse que ficava desapontado se os alunos não utilizassem o
Twitter durante suas aulas:

“Isso quer dizer que não falei nada


que merecesse registro”.

01-Idade Midia.indd 13 08/12/11 17:36


PREFÁCIO

A COMUNICAÇÃO COMO
INOVAÇÃO NA ESCOLA
Por Gilberto Dimenstein

dade Mídia é resultado de um laboratório desenvolvido durante anos no

I Colégio Bandeirantes, mostrando como as linguagens da comunicação e


da educação impactam a aprendizagem. Este é daqueles livros que vão
servir como referência na produção da inovação da comunicação dentro e
fora da escola.
Em todo esse período, duzentos alunos participaram desse projeto,
produzindo, por meio das mais diferentes experiências, comunicação vol-
tada ao seu cotidiano, mas dentro do contexto escolar. É tempo su iciente
para avaliar não só o efeito no curto prazo, re letido na relação do aluno
com a escola, mas, especialmente (o que é mais relevante), a geração de
habilidades que servem para o resto da vida.
Responsável pelo condução do Idade Mídia, Alexandre Sayad é o que
se chama de “educomunicador”, uma pro issão quase desconhecida, mas
com um futuro garantido. É alguém que usa os recursos da comunicação
para educar. Ou que usa os recursos da educação para comunicar. No Brasil,
contam-se nos dedos os pro issionais com essa vocação, uma aptidão de-
senvolvida por Alexandre desde os tempos em que participou como um dos
fundadores da Cidade Escola Aprendiz, uma organização nascida em 1997,
em São Paulo, inspirada em uma experiência digital do uso da internet para
a cidadania.
Quando o Idade Mídia surgiu, assumido pela direção da escola – no
caso, com entusiasmo pessoal de seu principal executivo, Mauro Aguiar –,
a internet ainda engatinhava em nosso país. Pouco se falava de banda larga,
que, se já não é acessível hoje, imagine há dez anos. Não existia nem sombra

01-Idade Midia.indd 15 08/12/11 17:36


16 IDADE MÍDIA

de redes sociais como Facebook, YouTube, Twitter ou Linkedin. Blogs esta-


vam começando a virar moda, transformando em comunicador o mais sim-
ples cidadão.
Mas já se falava (e muito) da necessidade de reciclar o currículo es-
colar tradicional, desligado do cotidiano, sem apelo, apresentado muitas
vezes apenas como um instrumento para fazer as provas e, depois, passar
no vestibular. Também já se falava que o papel da escola era preparar não
apenas para o trabalho, mas para uma vida de aprendizagem permanente.
O mercado de trabalho é, a inal, um constante vestibular.
Os educadores mais antenados sabiam que o currículo deveria mais
ser focado no cotidiano para que as disciplinas izessem sentido, abrindo
espaço para eixos multi e interdisciplinares. Várias matérias cruzadas aju-
dariam a despertar mais curiosidade e, no inal, mais funcionalidade.
Sabíamos que aquele ensino baseado na “decoreba”, dividido em
compartimentos, estava com os dias contados, só faltava o funeral. A era da
aprendizagem permanente implica a geração de uma série de habilidades
que não se casa com aquele tipo convencional de escola, a inal exige-se
inovação contínua, rapidez na associação de informação, capacidade de
síntese, autonomia para aprender.
O que não se sabia era como as novas tecnologias iriam produzir
plataformas interativas e colaborativas desconhecidas na história da pro-
dução do conhecimento. Desmontaram-se hierarquias e processos secula-
res de intermediação de informação. Os jornais viram seus leitores
desaparecerem ou obterem notícias das mais diversas fontes. Nunca se
produziu tanta informação ao mesmo tempo e, por consequência, tanta
desorientação. Assim como os meios de comunicação, as escolas viram-se
no meio desse bombardeio.
Com a interatividade, surgiu um novo protagonismo: o indivíduo não
quer apenas receber, quer compartilhar. Quer comunicar.
É nesse ambiente que o Idade Mídia apresenta uma série de res-
postas, trabalhando com o cotidiano e usando a comunicação para retratá-
-lo; fazendo dessa busca um meio de estabelecer relações com o que se
aprende em sala de aula. E mais. Fazendo do estudante um produtor de
conhecimento, um coautor; afinal, cada projeto equivale à produção de
uma revista.

01-Idade Midia.indd 16 08/12/11 17:36


A COMUNICAÇÃO COMO INOVAÇÃO NA ESCOLA 17

O que está escrito aqui não é apenas uma teoria, mas o relato de uma
experiência, com nome e cara, assentada numa visão de aprendizagem.
Mistura-se o vivo tom da reportagem com o olhar pedagógico.
O resultado certamente mostrará aos educadores como o uso da co-
municação na escola garante ao estudante o bem mais precioso da apren-
dizagem: a autonomia de aprender e a crença na capacidade de realizar.

Gilberto Dimenstein é jornalista, membro do conselho editorial da Folha de


S. Paulo e comentarista da rádio CBN . É fundador da ONG Cidade Escola Apren-
diz (www.cidadeescolaaprendiz.org.br) e da plataforma on-line Catraca Livre
(www.catracalivre.com.br).

01-Idade Midia.indd 17 08/12/11 17:36


POR QUE FAZER
COMUNICAÇÃO NA ESCOLA?
ez anos são uma vida de re lexões, experimentações e, sobretudo,

D histórias. Este livro se propõe a, ou pelo menos se esforça para, con-


tar como um curso que mistura comunicação e educação tornou-se
parte importante da existência dos quase duzentos jovens que o vivencia-
ram, e também como ele se recriou constantemente, tentando acompanhar
todas as novidades que a educação e a cultura impuseram em uma década.
De certa forma, revela como o Idade Mídia assimilou o eterno desa io de
colocar a educação no ritmo das transformações da sociedade.
O entusiasmo juvenil com que eu e a professora Marina Consolmagno
– e, no primeiro momento, também as professoras Clarice Kelbert (in me-
moriam) e Cândida Gancho – nos debruçamos sobre a possibilidade de
montar um curso que preparasse os jovens não só para o consumo da mídia
de massa, mas que também potencializasse sua capacidade de criação de
canais alternativos, foi determinante para que o Idade Mídia completasse
dez anos vivo, bem e atuante.
Num esforço de memória, percebo que tudo poderia se resumir a
uma labuta diária, e a uma constante ousadia, para revirar os paradigmas
da educação tradicional de ponta-cabeça. Para alguns, esse processo é com-
preendido como experimentação. Para outros, mais identi icados com pla-
nos e estratégias bem de inidas, é risco. E para aqueles que reverenciam o
passado, trata-se de pura maluquice.
Mas foi justamente experimentando sempre que conseguimos sacu-
dir o aprendizado e torná-lo cada vez mais importante e signi icativo para
aqueles a quem ele se destina: os jovens. Estes, sim, são os responsáveis

01-Idade Midia.indd 19 08/12/11 17:36


20 IDADE MÍDIA

por fazer o Idade Mídia durar e consolidar-se como pioneiro em sua área
entre os colégios de São Paulo; por mantê-lo vivo. E manter-se vivo signi ica,
para o projeto, manter-se sempre desejado nos corações e mentes dos es-
tudantes (daí a inspiração para a epígrafe desta primeira parte do livro).
Essa história desenhou-se permanentemente interpelada por bar-
reiras e desa ios. O primeiro, dos grandes, que encarei quando assumi o
Idade Mídia, foi minha própria idade. Então com 25 anos, me vi frente a
uma turma de estudantes, na mais so isticada escola de São Paulo, ávida
por algo que nem eu mesmo sabia o quê.
Trabalhar com comunicação junto a jovens era um tema familiar, mas
não no ensino formal. Eu já havia dado o pontapé inicial e ajudava a pensar
uma organização importante na educação não formal, a Cidade Escola
Aprendiz. Ou seja, tinha alguma vivência na área; lia muito sobre o tema,
era curioso e destemidamente ousado – características da minha própria
juventude à época.
Poderia começar aqui um belo romance épico sobre o nascimento do
Idade Mídia no Colégio Bandeirantes. Mas, revirando minhas recordações,
a história verdadeira mais se parece com um ilme roteirizado por Woody
Allen e dirigido por Win Wenders. Cômica, com grandes lacunas de silêncio,
e sempre em busca de signi icado.
Foi numa segunda-feira, após um feriado de Páscoa, em 2002, que o
jornalista e amigo Gilberto Dimenstein, sem mesmo me dizer “alô”, pontuou
ao telefone: “É hoje, hein!”. A frase navegou a esmo na minha mente procu-
rando signi icado ou outra sentença que pudesses completá-la, mas foi em vão.
Segundo me relatou, anos depois, ele teria previamente me avisado
da possibilidade de implementação de um curso de comunicação no Colégio
Bandeirantes. Não que eu me lembre. Nas camadas da cebola que descasco
em minha memória, fui chamado uma hora antes a assumir uma aula sobre
a qual fazia pouca ideia do que tratar. Posteriormente, soube que o curso
havia sido demandado por um grupo de estudantes, entre eles a hoje jor-
nalista Ana Luisa Westphalen, que participou da turma inaugural.
Pode parecer errado admitir que o imprevisto deva fazer parte do
universo da escola, mas o fato é que faz – e pretendo mostrar que isso pode
ajudar a educação.
A indelével linha tênue entre o destino que construímos e o acaso
que nos é oferecido fez parte do meu percurso até chegar ao Bandeirantes:
fui um estudante de jornalismo mais propenso a largar tudo pela psicologia

01-Idade Midia.indd 20 08/12/11 17:36


POR QUE FAZER COMUNICAÇÃO NA ESCOLA? 21

e um apaixonado pela educação. Pro issionalmente, comecei a “cobrir” a


área de educação (pouco desenvolvida no Brasil) para grandes veículos de
imprensa e alguns especializados, além de trabalhar para escolas particu-
lares na área de relações públicas.
Após ter dado um ano sabático a mim mesmo, morando em Londres
e Roma, e ter conhecido a rede mais a fundo, é que voltei com a impres-
são de que a comunicação e a educação tinham uma natureza comum, em-
bora pouco se misturassem no cotidiano. Foi quando conheci Dimenstein,
em meu retorno ao Brasil.
Ele, recém-cegado de Nova York, experimentava o que de mais avan-
çado havia na educação comunitária, iniciando os trabalhos na Cidade Es-
cola Aprendiz. E me chamou para fazer parte desse grupo desbravador. Foi
quando percebi que não precisava abandonar o jornalismo para ser atuante
na educação. O marasmo das redações não era a única possibilidade de
trabalho.
A partir de então, conheci pessoas que me guiaram ora para um tra-
balho jornalístico quali icado em educação, ora para um trabalho educativo
com base na comunicação.
É preciso coragem para admitir que o Idade Mídia nasceu desse
susto, e de uma folha quase em branco. Mas desenvolveu-se graças ao em-
penho de pro issionais que pesquisavam, estudavam e, sobretudo, estavam
antenados com o que de mais contemporâneo havia no mundo na área da
educação para a mídia.
O telefonema caótico de Dimenstein ganhou sentido para mim e para
o Idade Mídia com o passar dos anos, quando pude perceber duas questões
cruciais: a importância de o projeto ter nascido no Colégio Bandeirantes
– e entender por que ele é, de fato, a instituição mais so isticada do Brasil – e
a diferença que o curso pode fazer na vida de muitas pessoas.
Uma dessas percepções ocorreu-me num sábado ensolarado de maio
de 2008, quando começava a folhear a revista Época, aproveitando a luz
límpida do outono.
A reportagem de capa, que apresentava os oitenta melhores blogs de
todos os tempos, de imediato me chamou a atenção. Os blogs eram então
as vedetes do momento – e nas páginas do semanário des ilavam os diários
virtuais de pro issionais tarimbados como Marcelo Tas e Ricardo Noblat,
cheios de ironias sobre a vida provinciana de Brasília e de bom humor
sobre as mazelas da tecnologia.

01-Idade Midia.indd 21 08/12/11 17:36


22 IDADE MÍDIA

Mas um nome em particular destacou-se quase que automaticamente


daquele ranking: Stefano Azevedo. Sim, o ex-aluno do Idade Mídia, Stefano,
então com 20 anos, tinha um blog entre os oitenta melhores do mundo
segundo a revista Época.
Nesse momento, e acredito que somente nele, tudo em que eu apos-
tava e cria sobre o Idade Mídia pareceu se cristalizar: um aluno mediano

O garoto e os hipopótamos

“Você pode desenhar para mim um hipopótamo?”.


Pode soar estranho, mas com essa pergunta o estudante de jornalismo Stefano Aze-
vedo conseguiu desenhos de Win Wenders, Paulo Maluf, Alice Braga e David Lynch, entre
muitos outros. Criou um blog, o Hipopótamo Zine, com um vasto acervo. E o principal:
com apenas 20 anos, entrou para a lista dos oitenta blogs imperdíveis da internet, ela-
borada pela revista Época – atrás dele, ficaram jornalistas e blogs consagrados, como o
de Ricardo Noblat.
Mais que rabiscos, Stefano conseguiu com seu trabalho uma diversidade de olhares
sobre o mundo – de expressões. “Não há desenhos belos ou feios; os traços passam
ingenuidade muitas vezes, realismo em outras”, contou. A história de vida do estudan-
te provoca reflexões importantes acerca do ensino formal, da relação entre a educação
e as mídias e dos valores de uma juventude que acha o mundo careta demais.
A relação de Stefano com a mídia começou pela curiosidade em fuçar os recursos da
internet e ganhou força ao participar de um projeto em educomunicação, entre outros
cursos considerados extracurriculares pelo ensino formal. “Comunicar é difícil. Quem
pensa que é fácil, que é como respirar, está enganado”, provoca.
Para ele, a comunicação passa hoje pela reinvenção da linguagem e do conteúdo.
“Fazer comunicação não é repetir o que está aí; é recriar a linguagem, é fazer arte mes-
mo. Vejo experiências interessantes no YouTube quando se tenta reinventar a televisão,
e não reproduzi-la. Para mim, o Hipopótamo Zine não deixa de ser um site de fotojorna-
lismo”, completa, para espanto até mesmo deste colunista, que foi seu professor.
Por trás de uma mente criativa, empreendedora e, principalmente, repensadora como
a de Stefano, há um estudante mediano de escola básica. Ele passou pelas melhores
instituições privadas de São Paulo, mas nunca adaptou-se bem à grade formal, à corre-

01-Idade Midia.indd 22 08/12/11 17:36


POR QUE FAZER COMUNICAÇÃO NA ESCOLA? 23

do colégio, provocador, às vezes agressivo, ocupava a capa de uma revista


semanal importante. E para complicar: mantendo um blog que reunia de-
senhos de hipopótamos feitos por celebridades.
Duas questões importantes pairavam sobre a minha cabeça como
dois urubus. Primeira: será que, de alguma maneira, o garoto achara sentido
naquilo que ele desprezava: a escola? Segundo: por que esse blog foi con-
siderado um dos melhores do mundo?

ria do vestibular e mesmo à disciplina. “Gostava muito das escolas. Adoro o conheci-
mento. Amo ciências e coleciono livros de biologia até hoje. Mas sempre me mantive
alheio às questões do vestibular, a contragosto de pais e professores, e no ensino fun-
damental era um solitário”, contou, meio sem jeito.
Foi em uma dessas escolas que Stefano iniciou sua obsessão por desenhos de ani-
mais. No jornal do grêmio (outro importante espaço de criação para ele), mantinha uma
coluna que incentivava professores e estudantes a desenharem um porquinho – um
sucesso quando o jornal começava a circular. Em outra, o Horóscopo do Macarrão, o
irônico estudante relacionava características dos signos do zodíaco aos diferentes tipos
de massa – fusili, spaguetti, penne etc.
Com uma trajetória inusitada e irregular na sua formação, Stefano estuda hoje na
USP. E tem todas as qualidades para circular por qualquer área profissional e artística
que desejar – entrar e sair livremente –, porque, o que de fato foi construído no seu
processo educativo, foi uma identidade própria e uma maneira peculiar e muito profun-
da de ver o mundo.
Eu pensava que não me surpreenderia mais durante o bate-papo informal que deu
origem a esta coluna, até Stefano mencionar seus planos. Um documentário sobre a
vida de Mendel, pai da genética, está entre eles. “Gregor Mendel era um plantador de
ervilhas e, por isso, descobriu o código genético. Tem história mais interessante que
essa?”, indagou.
“Para mim, só mesmo a sua”, respondi.

(Publicado no portal Aprendiz)

– PS: Do Hipopótamo Zine (http://hipopotamozine.blogspot.com), Stefano evoluiu para o Vidrinho


(http://www.vidrinho.com.br)

01-Idade Midia.indd 23 08/12/11 17:36


24 IDADE MÍDIA

Não tardou para eu pedir a Stefano uma entrevista e escrever uma


coluna que gerou polêmica na mesma medida em que foi bem recebida. O
texto resume bem o que o curso signi icou para a vida de um outsider como
ele – que hoje trabalha com sucesso em muitas frentes, sendo a televisão
uma delas.
A última do garoto blogueiro já não me surpreendeu tanto: ele apa-
receu em cena do premiado documentário José e Pilar (de Miguel Gonçal-
ves Mendes) interpelando ninguém menos que o prêmio Nobel de
Literatura José Saramago, em busca de mais um desenho para sua coleção
de hipopótamos.
O sucesso de Stefano está ligado a uma cadeia incontrolável de fatos
que começa anos atrás, impulsionada pela tecnologia e pela luidez com
que as informações trafegam hoje no mundo e impactam a vida nas socie-
dades; uma mudança que desa ia a educação, e as pessoas que dela fazem
parte, a ser su icientemente corajosa para lidar com esse cenário.
Outro elo dessa sucessão de eventos que justi ica simbolicamente a
existência do Idade Mídia, este de caráter global, foi a catarse coletiva re-
sultante da queda das torres gêmeas, na tragédia do World Trade Center. O
fato de assistirmos àquilo em tempo real, via ou mesmo internet, e de
acompanharmos seus desdobramentos na velocidade em que aconteciam,
fez-me sentir na pele o que Marshall MacLuhan de iniu em palavras: a al-
deia global. O atentado fez da mídia uma arma capaz de nos ferir mais que
os próprios aviões; e a Al Qaeda sabia disso. Por outro lado, a exposição
midiática serviu de alerta para o mundo repensar a economia, a política e
também a educação.
E é esse cenário globalizado, luido e conectado que contextualiza
este livro, e é por meio dele que procurei explicar como uma ideia bem
desenvolvida tornou-se um curso desejado, muito imitado e inspirador de
experiências na educação pública e privada.
O nome do projeto nasceu de uma brincadeira inspirada nos estudos
do escritor italiano Umberto Eco, em seus textos que unem o conhecimento
eclesiástico – e de certa maneira sombrio – da Idade Média à sua antítese,
a época atual, em que a informação virou commodity, em que o excesso de
luz (e não a falta dela) é que atrapalha a construção de conhecimento. Vi-
vemos numa “Las Vegas” da informação. Vivemos a Idade Mídia.
Mas as páginas que se seguem vão além da etimologia e da conceitua-
ção de termos; o livro desenvolve e apresenta a metodologia aplicada e o

01-Idade Midia.indd 24 08/12/11 17:36


POR QUE FAZER COMUNICAÇÃO NA ESCOLA? 25

dia a dia do curso, seus valores, objetivos, desdobramentos, di iculdades


e vitórias.
Não foram esquecidos aqueles que compuseram o que chamo de
“Rede Idade Mídia”: uma estrutura não hierárquica e não linear de pessoas
das mais diversas origens e formações que ajudaram a enriquecer o aspecto
mais importante do projeto: a diversidade de olhares e participações. Meu
papel de educador nesses anos todos pode ser resumido em moderar o
acesso dos estudantes ao mundo por intermédio desses pro issionais, que
hoje somam mais de cinquenta.
Alguns deles participam do livro escrevendo sobre a importância
do curso e contribuem com seu olhar particular sobre o mesmo. Esses
textos pessoais, além de enriquecer, ajudam a dar um caráter mais livre
ao trabalho.
Quando imaginei sistematizar a experiência do Idade Mídia, de ime-
diato pensei num livro sobre educação de que todos gostassem, não so-
mente os educadores. Este é o desa io: abrir a experiência de forma rica,
fundamentada, mas também divertida e prazerosa. Uma obra acadêmica
que acabou por render-se à vontade de ser compreendida de maneira mais
ampla, um ímpeto jornalístico. Um livro que segue o ritmo de um ensaio-
-crônica, recurso muito comum em publicações norte-americanas e raro
por aqui.
Não obstante as inúmeras pessoas citadas nesta apresentação, e as
outras tantas que virão a seguir, não foi esquecido quem realmente dire-
cionou, quali icou, atuou e foi a verdadeira razão de ser do projeto (e este
é, de fato, um diferencial): o estudante. Dentre os mais de duzentos alunos
que passaram pelo curso (compondo também a “Rede Idade Mídia”), vi-me
obrigado a selecionar alguns nomes para compor o livro e outros para con-
tar suas maravilhosas histórias no blog que o complementa, estabelecendo
uma verdadeira experiência transmídia. Mas todos eles são, literalmente,
os donos da bola.
No grupo Idade Mídia, que mantemos na rede social Facebook, os
jovens ajudaram também a direcionar os caminhos deste trabalho conforme
ele foi sendo produzido.
Uma importante questão semântica: quando me refiro a jovem ou
a adolescente, não adoto a convenção do – Estatuto da Criança e Ado-
lescente, que considera adolescência e juventude períodos etários distin-
tos. Neste livro, os dois termos identificam os estudantes que cursam o

01-Idade Midia.indd 25 08/12/11 17:36


26 IDADE MÍDIA

ensino médio, foco do Idade Mídia, e aqueles que adentraram à universi-


dade, indistintamente.
Por im, me esforcei também para reunir um vasto acervo acadêmico
e de material de qualidade na internet sobre experiências que aproximam
o universo da educação e o da comunicação, sempre com um olhar cidadão
e social. Práticas que inspiram e embasam o trabalho do Idade Mídia. E
podem assim inspirar outras.
Em suma, o livro não foi feito para manter-se fechado, causando
ainda mais confusão nas prateleiras. Nasceu para ser lido e aproveitado.
Por isso, e também para provocar, evitei responder agora a pergunta-título
desta apresentação. Espero, sim, conseguir fazê-lo até o im da leitura: um
mergulho no universo da comunicação e da educação e na importância de
se garantir ao estudante o direito de se expressar.

01-Idade Midia.indd 26 08/12/11 17:36


PARTE 2

CENÁRIOS

Antes mesmo da internet, o arquiteto norte-americano Richard Wurman já


havia criado o conceito de hipertexto, em que informações saltavam aos olhos
de quem observava uma imagem. Em seus guias Access – mapas que mais se
parecem com infográficos –, janelas se abriam em 3D contendo mais informa-
ções sobre determinado local da cidade mapeada – isso tudo ainda em papel.
Logo Wurman se descobriu mais comunicador do que arquiteto. Publicou
Ansiedade de informação, que se tornou um clássico sobre as demandas que a
sociedade da informação impõe ao ser humano, inclusive no campo da educa-
ção. No livro, contou:

“Quando eu era criança, na Filadélfia, meu pai falou que eu não


precisava decorar a Enciclopédia Britânica; só precisava saber
como encontrar o que ela continha”.

01-Idade Midia.indd 27 08/12/11 17:36


PARA ALÉM DA
LEITURA CRÍTICA
uando a internet virar mais um capítulo na história da comunica-

Q ção, seu apogeu poderá ser identi icado no que aconteceu com a
saudita Raniya Almahozi, de 24 anos. Reprimida pelo regime ultra-
conservador de seu país, que proíbe as mulheres de dirigir um automóvel,
ela conseguiu o que parecia impossível: estimulou, por meio da comuni-
cação, suas compatriotas a lutarem pelo direito de levar seus ilhos à es-
cola de carro.
Raniya tirou sua habilitação no Bahrein e, por meio do canal de dis-
tribuição de vídeos YouTube, apareceu guiando seu carro na cidade de
Qatif, Arábia Saudita. A ação estimulou outras mulheres a fazer o mesmo.
O vídeo, que teve mais de cem mil acessos em poucos dias, gerou repercus-
são mundial e fez de Raniya uma ativista social que encontrou na comuni-
cação seu principal instrumento de expressão e aliada.
Em 2002, quando o Idade Mídia começou a se desenvolver, a internet
era pré-adolescente em nosso país, onde começou a funcionar comercial-
mente por volta de 1996; ninguém sabia ainda para onde iria aquela nova
mídia, que parecia apenas convergir todas as outras sem propor nada di-
ferente. Mas, de alguma maneira, casos como o de Raniya pareciam inevi-
táveis de acontecer num futuro próximo.
A proposta de levar a comunicação à sala de aula não poderia ignorar,
já naquela época, o fato de que produzir conteúdo era muito mais fácil
então do que alguns anos atrás; a rede abria espaços para todos nos tor-
narmos emissores de informação, e não meros receptores. Os blogs come-
çavam a virar febre, e os e-mails muitas vezes ganhavam contornos de

01-Idade Midia.indd 29 08/12/11 17:36


30 IDADE MÍDIA

pequenas newsletters – no entanto, o ápice da implicação social dessa mu-


dança ainda estava longe de se revelar.
Em outras palavras, não era mais possível culpar somente a televisão
pelo lixo cultural que adentrava aos lares. Começávamos a compartilhar os
bônus e os ônus dos conteúdos produzidos em volume cada vez maior, e
que até hoje mostram sua força com o conceito de crowdsourcing, nascido
na Universidade de Harvard.
A pergunta que norteou as primeiras re lexões junto à turma do
Idade Mídia, e que até hoje perdura, é: Como a educação pode lidar com
essa realidade? E indo mais fundo: De que maneira essas transformações
diárias nas formas como os seres humanos organizam, produzem e com-

A crise de identidade da TV

O fechamento da RCTV em Caracas (Venezuela) fez lembrar a velha América Latina


dos “anos de chumbo”. Embora seja possível entender alguns motivos apresentados
para a não renovação da concessão da TV por parte do governo venezuelano, utilizar o
exército e eliminar sumariamente um canal de comunicação aproxima qualquer país, por
mais petróleo que tenha, da atmosfera política que o destroçado Zimbábue usufruía até
alguns anos atrás.
Não há lado positivo nessa história, definitivamente. O episódio nos fez regredir
quarenta anos de conquistas políticas democráticas ao sul do Equador. Mas, felizmente,
há elementos hoje que distanciam o episódio da RCTV venezuelana do Brasil pós-1964.
O fato é que não somos mais, e seremos cada vez menos, dependentes da televisão
aberta e comercial para nos informarmos e nos exprimirmos. A TV é uma mídia com
crise de identidade. Prova cabal é a Free RCTV (www.freerctv.com), um movimento cole-
tivo que continua transmitindo a programação da expurgada emissora venezuelana na
internet. E ainda permite que o internauta se expresse a respeito da situação.
Curiosamente, os blogs e vlogs estão para os dias atuais como os jornais e fanzines
de resistência (O Bondinho, Versus, Pasquim etc.) estiveram para os “anos de chum-
bo”, quando o governo tentou controlar a informação. E há aspectos melhores na
mídia alternativa contemporânea: o poder de alcance imensurável e a interatividade
sempre possível.

01-Idade Midia.indd 30 08/12/11 17:36


PARA ALÉM DA LEITURA CRÍTICA 31

partilham informações – e, por consequência, estruturam seu pensamento


– entram no currículo engessado do ensino formal?
Na contramão do que buscávamos em nossa recém-criada experiên-
cia, a educação formal exercia, no início dos anos 1980, um papel extrema-
mente crítico, e até de repúdio, em relação à mídia centralizada da época;
a imagem da televisão como inimiga da criança e do jovem foi muito difun-
dida – um ícone presente até os tempos atuais, di ícil de se desvencilhar.
Era importante mantê-la porta afora da escola.
A sociedade que começava então a se conectar a uma rede global de
computadores naquele 2002, ano inicial de curso, ainda estava fortemente
arraigada a esses velhos modelos de comunicação. Por conta disso, a leitura
da mídia de massa – e também da alternativa– por meio de novos iltros e

Dentro dos caminhos que a TV traça, entre o formato digital e a internet, o YouTube,
acaba de abrir um espaço exclusivo para o debate político: o CitizenTube (http://www.
youtube.com/profile?user=citizentube). No começo, a política americana dominou o
canal, mas hoje já é possível assistir a vídeos sobre diversas questões da política mun-
dial, inclusive a latino-americana. Isso sem contar os movimentos que se proliferam
misturando educação e comunicação.
Enquanto soldados ocupavam os estúdios da RCTV, a educadora Milena Szafir circu-
lava com seu projeto “Manifeste-se” pelas ruas da Vila Brasilândia, zona sul de São
Paulo. Trata-se de um carrinho, tipo de pipoqueiro, que é na verdade uma estação móvel
de transmissão para a internet. Por meio de câmeras e microfones, é possível gravar e
transmitir ao vivo pela web depoimentos e reportagens.
Nos Estados Unidos, analistas de mídia já estão criando suas costumeiras estratégias
para articular lobbies com as grandes e tradicionais Fox News, CNN e Bloomberg, em
virtude das eleições presidenciais de 2008. Entretanto, muitos deles já manifestaram sua
preocupação com a nova TV e com portais do tipo YouTube.
Como controlá-los? Intimidando os milhões de usuários-cidadãos-repórteres que
postam conteúdos? No caso, a única inspiração possível (e terrível) vem da China, que
censura a internet há anos. Mas as leis de mercado, liberais e sedentas por consumido-
res, já estão forçando os líderes chineses a repensar seus conceitos democráticos.

(Publicado no portal Aprendiz)

01-Idade Midia.indd 31 08/12/11 17:36


32 IDADE MÍDIA

entendimentos, tornou-se um dos papéis do Idade Mídia em seu trabalho


com os jovens, mas jamais o central.
Conhecer a fundo o processo de como um jornal, uma rádio, um pro-
grama de televisão ou um site de internet são produzidos e veiculados,
tornando-se íntimo de seus jargões e procedimentos, é, sem dúvida, uma
e icaz maneira de compreender o viés político do olhar das reportagens
lidas, assistidas e escutadas nos meios de comunicação.
No entanto, já naquela época essa prática não parecia su iciente, de
forma isolada, para dar conta da complexidade com que a comunicação se
apresentava. Se o conteúdo do curso se resumisse a esse tema, cairia facil-
mente na armadilha de tornar-se uma repetição das experiências de “media
literacy” tão amplamente experimentadas nos Estados Unidos e na Europa
a partir dos anos 1960, com o avanço da televisão. A “alfabetização para a
mídia”, como icou conhecida por aqui, consiste em ver, re letir e criticar as
mensagens e os meios de comunicação existentes, num exercício comparado.
Na América Latina, a ideia de valorizar a inter-relação entre as áreas
da educação e da comunicação também não era novidade. Apareceu com
força nos estudos dos “Códigos da Modernidade” propostos pelo educador
venezuelano Bernardo Toro, em que uma “educação visual e midiática”
surge como uma das novas formas de alfabetização do século 21 (ainda sob
forte in luência da televisão).
Voltando às origens do termo “Idade Mídia”, ligadas ainda à ideia de
indústria cultural, reporto-me novamente a Umberto Eco em sua obra Via-
gem na irrealidade cotidiana (1983), na qual ele ressalta uma crítica às
velhas teorias da comunicação nas décadas de 1960 e 1970:

Naquela época, éramos todos vítimas (quem sabe até justamente) de


um modelo dos mass-media que era uma cópia daquele das relações
de poder: um emissor centralizado, com planos políticos e pedagógicos
precisos, controlado pelo Poder (econômico ou político).

Considerando essa análise, percebemos que o Idade Mídia já nasce


num século em que a comunicação torna-se não só uma ferramenta de infor-
mação, mas uma lente sob a qual a realidade é enxergada. Ela está para a
sociedade hoje assim como a religião esteve para a Idade Média, e a razão
para o Iluminismo; a comunicação dá o recorte e pauta os limites do que
podemos enxergar – é parte indissociável da construção de parâmetros éticos.

01-Idade Midia.indd 32 08/12/11 17:36


PARA ALÉM DA LEITURA CRÍTICA 33

Por conta desse contexto, o Idade Mídia precisava ter um papel e


objetivos mais ambiciosos com relação a seus estudantes. Não podia se
restringir a fornecer mera instrumentalização para se ler a mídia, e sim
possibilitar que seus alunos aprimorassem sua visão de mundo, interferis-
sem nele e também expressassem seus anseios.
A pesquisa abaixo ajuda a compreender o mundo que os jovens en-
caram no dia a dia, uma realidade na qual já nasceram imersos, segundo o
think tank Social Revolution.

„ Mais de 50% da população mundial tem menos de 30 anos.


„ Um em cada cinco casais se conheceram pela internet.
„ Três em cada cinco casais gays se conheceram pela internet.
„ Se o Facebook fosse um país, seria o terceiro maior do planeta.
„ Lady Gaga, Britney Spears e Justin Bieber têm mais seguidores
no Twitter do que a população inteira de Suécia, Israel, Grécia,
Chile, Coreia do Norte e Austrália juntos.
„ Noventa e três por cento dos pro issionais de marketing usam
mídias sociais para os negócios.
„ Cinquenta por cento do tráfego de internet do Reino Unido passa
pelo Facebook.
„ O YouTube é a segunda maior ferramenta de busca no mundo.
„ Se a Wikipédia fosse um livro, teria 2,25 milhões de páginas.
„ Noventa por cento dos consumidores acreditam nas recomenda-
ções colaborativas; apenas 14% acreditam em anúncios.

Fica mais do que claro, então, porque o legado do Idade Mídia na vida
de seus alunos se ampliaria muito se, além dessa já conhecida análise e
crítica da comunicação, o jovem pudesse de fato interferir no sistema de
comunicação. Nesse panorama, o exercício da cidadania passa pela expres-
são, pelo direito do jovem de se comunicar e intervir nos canais de poder
com sua própria voz. E foi justamente por esse viés que o curso encontrou
seu alicerce e o diferencial em relação a outras experiências: a produção de
comunicação autêntica, feita integralmente pelos jovens. Uma proposta
para além da leitura crítica da mídia.
Mas a educação estava pronta para isso em 2002?
A resposta é simples: não. Para seguir em frente, o Idade Mídia teve
de desa iar mitos que a educação, seus estudiosos e, sobretudo, as institui-

01-Idade Midia.indd 33 08/12/11 17:36


34 IDADE MÍDIA

ções tendem a perpetuar, sem discussão. Muitas vezes, essas questões pa-
recem estagnadas no ambiente educacional enquanto a sociedade se
transforma velozmente – como no caso da saudita Ranyia. Seu manifesto
foi bem-sucedido graças a seu domínio da comunicação e à consciência em
relação a seus direitos, garantidos nas convenções internacionais – a quem
deveria caber essa formação senão à escola? Esses fatos, somados à extrema
tradição religiosa muçulmana impregnada nas questões de um Estado não
laico, engrandecem ainda mais a conquista da ativista.
Quando falamos em uma experiência de comunicação dessa natureza,
é muito importante não nos apressarmos em rotulá-la, por mais óbvio que
possa soar. O universo educativo utiliza-se de tecnologia de forma burocrá-
tica, ou mesmo funcionalista; quando uma nova experiência desponta, é
comum que seja categorizada como outras surgidas anteriormente – e que,
neste caso, não lhe dizem respeito.

O Idade Mídia, por exemplo, não é:

„ curso proϐissionalizante de comunicação: o uso da comunica-


ção no programa é um instrumento para o exercício do direito à
expressão – é estratégico para uma leitura mais ampla de mundo.
Para os estudantes mais inclinados à comunicação é um grande
ganho, mas não o principal objetivo da experiência;
„ curso sobre uso das tecnologias na educação: a tecnologia é
situada como meio, não como im. Portanto, não se trata de um
curso instrumental ou técnico de uso de internet ou de qualquer
outra ferramenta;
„ curso sobre leitura crítica da mídia: como mencionado, a lei-
tura crítica do mundo é objetivo geral da escola. A crítica é de-
senvolvida durante os anos que o estudante passa pelo ensino
formal – um processo longo e cheio de nuances ligado à própria
construção da identidade. A leitura de mídia de massa ou alter-
nativa é apenas um dos aspectos abordados no Idade Mídia, mas
não seu foco;
„ curso de ensino a distancia: a educação a distância tem se con-
fundido muitas vezes com o ensino da comunicação. Na verdade,
o termo “a distância” diz respeito a uma modalidade de ensino
contraposta ao ensino “presencial”. Neste tempo em que vive-

01-Idade Midia.indd 34 08/12/11 17:36


PARA ALÉM DA LEITURA CRÍTICA 35

mos, esse modelo está ligado aos computadores e à internet –


embora tenha nascido com a expansão do correio nos Estados
Unidos. No caso do Idade Mídia, o modelo prevalecente é o pre-
sencial. Em alguns momentos, as redes sociais entram em cena
para fazer um papel catalisador, mas não como uma modalidade
de ensino a distância.

O Idade Mídia pode ser de inido, por im, como uma metodologia em
comunicação e educação, com foco na expressão do estudante. A vivência
de um ano inclui a ampliação de seu repertório cultural e de sua rede de
contatos sociais, a apropriação dos veículos de comunicação e a produção
original de mídia. Trata-se de um espaço transdisciplinar de cidadania, cria-
tividade e expressão; um laboratório de comunicação à disposição dos es-
tudantes para que eles, sobretudo, criem.
A cada ano, um grupo de vinte jovens ajuda a construir as bases para
o programa, de acordo com seus interesses e com as novidades no campo
da comunicação. Isso fez com que o curso pouco se repetisse em aulas e
temas, e mantivesse sua metodologia aberta à velocidade das transforma-
ções na sociedade.
Exemplo dessa transformação anual aconteceu em 2008, quando as
eleições municipais pautaram a mídia e a agenda política das cidades, as-
sunto que não poderia ser ignorado. Assim, o Idade Mídia aproveitou o
gancho para relacionar toda experiência do ano à discussão da formação e
desenvolvimento da cidade de São Paulo, que foi esmiuçada pelos alunos.
Eles tiveram, por exemplo, a chance de conversar com todos os can-
didatos graças aos debates realizados em parceria com o colégio. Por im,
publicaram a revista Maquete, cujas pautas abordavam uma “nova cidade
e seus desa ios”, como a recente imigração de bolivianos e croatas e os mais
inovadores estilos arquitetônicos presentes na plástica urbana.
Ao longo do programa, ao mesmo tempo em que conversam com
pro issionais das mais diversas áreas, os alunos conhecem espaços de co-
municação, aprofundam-se em conteúdos especí icos e tratam de projetar,
produzir e lançar um produto de comunicação (seja uma revista, um pro-
grama de rádio, um programa de televisão, um documentário, um fanzine
ou um projeto on-line). Também mantêm um blog ativo com desenvolvi-
mento semanal de artigos, além de outros produtos que são construídos
durante esse período.

01-Idade Midia.indd 35 08/12/11 17:36


36 IDADE MÍDIA

Reinvenção é a palavra de ordem do Idade Mídia. Talvez seja esse o


principal elemento que explique a continuidade do projeto – importante
para mantê-lo em compasso com o mundo e com os jovens estudantes.
O conceito preserva uma ambição ativa: a de revirar permanentemente os
paradigmas tradicionais da educação. Em outras palavras, o desejo perma-
nente de manter a educação pronta para lidar com todos os desa ios, cada
vez mais velozes, impostos a uma sociedade.
Tais desa ios não são poucos nem simples, muito menos duradouros.
Ficamos muitas vezes cegos em relação a seu impacto, pois estamos neles
submersos e acostumados a não reagir à velocidade com que se impõem.
A indiferença da educação a essas mudanças constantes pode ser o deter-
minador entre uma educação inovadora e de boa qualidade e uma escola
repetidora de modelos.
Conhecer essas transformações com mais profundidade é o primeiro
passo para entendermos que tipo de escola queremos hoje e para o futuro
– é o novelo que tentarei desembaraçar a seguir.

01-Idade Midia.indd 36 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM
DO MUNDO COMO O CONHECEMOS
ão é di ícil imaginar que se o historiador inglês Eric Hobsbawm

N transpusesse a obra fundamental A era dos extremos – sobre as pro-


fundas transformações político-sociais no século 20 – para os tem-
pos atuais, ela poderia facilmente se chamar “O mês dos extremos”, ou até
“A semana dos extremos”.
Se a rapidez com que as transformações têm ocorrido no campo da
tecnologia é pauta de muita discussão, sempre oscilando sobre o que é fato
e o que é fútil, o impacto que elas causam na sociedade pode ser sentido
por todos. O desenvolvimento político e econômico, o modelo de relações
entre as pessoas, a produção e o consumo de informação, o entretenimento,
a relação com o meio ambiente e a produção de inovação se modi icam
diariamente. A tecnologia acaba por impactar inclusive a maneira com que
pensamos e processamos informação, nossos modelos cerebrais.
Em que outra época, por exemplo, uma menina de 11 anos poderia
levantar US$ 200 mil para a recuperação do Golfo do México?
Pois logo após o grande vazamento de petróleo ocorrido por lá em
2010, Olivia Bouler, do Estado de Nova York, escreveu para a de pre-
servação ambiental Audubon Society perguntando como podia ajudar. “Sou
boa desenhista e estava pensando se conseguiria vender algumas pinturas
de pássaros e doar o lucro para a sua organização”, contou ela ao jornal
Folha de S. Paulo.
Como resultado, mais de trinta mil pessoas “curtiram” a página de
Olivia na rede social Facebook. No total, ela conseguiu arrecadar US$ 200
mil com a venda dos desenhos em prol da Audubon Society, e ainda cele-

01-Idade Midia.indd 37 08/12/11 17:36


38 IDADE MÍDIA

brou a façanha publicando um livro sobre pássaros, ilustrado com seus


desenhos, intitulado Olivia’s bird: saving the Gulf.
Essa história reúne elementos importantes da era de inovações em
que vivemos, e nos ajuda a entender como e por que o mundo se desfaz e
renasce a cada minuto.
O aspecto mais evidente é o fato de o Facebook – uma ferramenta
relativamente nova – já ser facilmente dominado por uma garota de apenas
11 anos, nascida numa era digital e conectada em rede. A noção de respon-
sabilidade em relação à catástrofe e a agilidade em executar um projeto se
devem muito ao fato de que informações hoje são muito mais facilmente
recebidas e produzidas por nós.
O que se omitiu da pequena história em quase todos os jornais nos
quais foi publicada é o contexto educativo de Olivia Bouler. As experiências
da educação formal e informal, além da participação familiar, foram deci-
sivas para que a garota desenvolvesse um senso de bom uso da comunica-
ção, conscientização socioambiental, autonomia e um protagonismo na
busca por soluções. Esses elementos foram a chave para o sucesso de seu
projeto, que talvez não fosse tão exitoso se acontecesse dois anos atrás, com
menos recursos e ferramentas disponíveis.
Esse “permanente im do mundo como o conhecemos” foi o desa io
ideal e motivador para a recente importância adquirida pela comunicação
junto à educação (fato ainda mais potencial do que real); e para que o Idade
Mídia encontrasse seu papel no Bandeirantes desde 2002. A inal, é sobre
esse cenário mutante, e muito real, que o curso é reconstruído a cada ano,
sempre acompanhando as permanentes transformações nas áreas da co-
municação e da educação e, sobretudo, na maneira como cada geração de
estudantes enxerga os desa ios da vida e procura se expressar sobre eles.
Em outras palavras, como os jovens projetam e buscam seus sonhos.
Os elementos que compõem esse pano de fundo serão desenhados a
seguir, mas alerto: podem já ter-se modi icado no momento em que você lê
este livro.

01-Idade Midia.indd 38 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 39

1. COMUNICAÇÃO

A era da criatividade

Caminhar do estacionamento até a porta do Colégio Bandeirantes na


hora do intervalo ou do almoço dos estudantes é a forma mais e icaz de se
manter atualizado sobre as novidades culturais da cidade. Você esbarra
com jovens conversando avidamente sobre as últimas melhores bandas,
músicas, peças e ilmes em cartaz. E mesmo que, por alguma razão, não
queria conversar naquele dia, há uma inevitável interação entre gerações.
Com muita sorte, consigo manter no rosto uma expressão de quem está
entendendo tudo o que aquele jovem está explicando sobre a última novi-
dade que acaba de substituir o que, até então, eu pensava ser de initivo.
Mas devo confessar que nem sempre essa cara funciona. Certa vez,
uma aluna do Idade Mídia me interpelou colocando fones de ouvido em mi-
nhas orelhas. Tocava um som macio, harmônico, em seu iPad. Na tela, um
plano-sequência mostrava jovens descolados cantando e tocando os mais
diferentes instrumentos em cômodos de uma casa. “Você conhece a Banda
Mais Bonita da Cidade?”, perguntou ela. Sem mesmo conseguir escutar a can-
ção, disparei: “Sim, conheço algumas, mas não essa”, tirando risos da garota.
“A Banda Mais Bonita da Cidade” é o nome de um grupo musical,
exemplo de um fenômeno típico de nossos tempos. Até o dia anterior a esse
episódio, a banda simplesmente não existia para o público em geral. Passou
a frequentar as rodas de discussão não ao aparecer na Globo, o que seria
justi icado, mas quando um de seus integrantes postou um vídeo caseiro
no canal YouTube e atingiu, com seus amigos, o chamado fenômeno da vi-
ralização. Ou seja, o vídeo se espalhou pela internet como um vírus e alcan-
çou seu público, os jovens, antes mesmo de a banda ter um único show
agendado, um disco gravado ou uma música executada na rádio; sem em-
presário ou gravadora para apoiá-la.
Milhões de acessos ao vídeo na internet levaram a banda, então, ao
programa Fantástico, fechando e consolidando assim um ciclo virtuoso.
Algo semelhante já havia ocorrido com a compositora paulistana Mallu Ma-
galhães em 2007, e com o conjunto britânico Artic Monkeys em 2002.
A velocidade com que as plataformas (vinil, , 3) e a indústria
fonográ ica se transformaram nos últimos anos é o emblema mais cabal de

01-Idade Midia.indd 39 08/12/11 17:36


40 IDADE MÍDIA

como a informação e a cultura são agora produzidas e consumidas, e de


como a economia corre atrás desse moto-contínuo.
Diante do jogo incerto que envolve o acesso do consumidor aos pro-
dutos culturais, a gravadora do conjunto inglês Radiohead, por exemplo,
disponibilizou músicas inéditas na internet para serem “baixadas” me-
diante um pagamento livre, a critério do internauta. Só assim escapou da
inevitável falência resultante da venda diminuta de CDs.
Para entender todo esse processo, os historiadores criaram novos
jargões como contraponto à chamada “era industrial”: “era da informação”
e “era do conhecimento” são alguns deles.

Além do sim ou não

Fidel Castro resmungou, desde Cuba, sobre a canção “Base de Guantánamo”, de


Caetano Veloso, parte do show “Obra em Progresso”. O músico, por sua vez, tentou
explicar que uma defesa dos Estados Unidos, principal tópico da crítica de Fidel, vai
muito além da simplicidade do sim ou não – ou do bom ou mau.
Afinal, o país responsável pelas atrocidades de Guantánamo é a mesma nação das
universidades, dos grandes jornais, do respeito aos direitos individuais – de Panteras
Negras a Ku Klux Klan. Como explicar isso?
Para tentar elucidar as sutilezas ausentes nas notícias dos jornais, mas presentes nos
fatos que circundam a vida de todos nós, a elegante, irônica e erudita metralhadora
opinativa de Caetano ganhou a parceria do democrático antropólogo Hermano Vianna
em “Obra em Progresso”.
Nasceu junto com o show um delicioso blog recheado de vídeos. Nele, Caetano
preaquece os temas das apresentações, mostra por que escolheu determinadas canções
e instiga o debate e a curiosidade de quem o acessa. Neste caso, não há disco; os pro-
cessos de criação se valorizam tanto quanto o produto final.
Mas é justamente o mundo do sim ou não o mais conhecido da escola apolínea e
linear de hoje. Que tipo de sofisticação de pensamento acreditamos ser importante
para a formação de um estudante?
A incompetência da educação mal dá conta de abordar discussões sobre atualidades
ou notícias de jornal, quanto mais de elucidar o complexo fato de que uma coisa pode

01-Idade Midia.indd 40 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 41

Não há dúvida de que informação precisa e útil é hoje sinônimo de


poder. No entanto, numa análise mais detalhada, veremos que o computador,
e mesmo a internet, já são revoluções pertencentes a um passado recente;
são ferramentas e estruturas que abriram caminho para que a informação
circulasse de uma outra maneira, fazendo com que a comunicação, assim,
se ampliasse. Computadores já são quase peças de museu, e a informação
banal está cada vez mais acessível a todas as camadas da sociedade.
De fato, o que mais causa impacto hoje na sociedade é menos a tec-
nologia e mais a comunicação: como os seres humanos lidam e criam “com”
essas tecnologias e “para” elas.

ser boa e ruim ao mesmo tempo. Aliás, essa colocação, a princípio, é considerada um
“erro” sob a ótica da educação formal.
Perceber que somos todos “obras em progresso”, e que opiniões podem ser cons-
truídas e destruídas quantas vezes forem necessárias, demanda, primeiramente, abrir a
escuta para a voz dos próprios estudantes. Daí a constatação de que os trabalhos que
envolvem produção de mídia em escola costumam dar mais vazão a essas questões.
Exemplo interessante é o blog Opinião, um instrumento que nasceu da vontade e
iniciativa dos alunos da área de Biológicas do Colégio Bandeirantes, em São Paulo (SP),
e foi apoiado pela instituição. Por meio dele, qualquer tema pode ser abordado, discuti-
do e reconstruído. Tudo num tempo e espaço que não são os escolares.
Voltando a Hermano Vianna, o coautor do “Obra em Progresso” coloca as novas
tecnologias como condição fundamental da educação, da cultura e da participação social;
por esse e por outros projetos, ele vem sendo reconhecido como um antropólogo/educa-
dor. Na grande mídia, basta lembrar o programa Central da Periferia, da Rede Globo, e
todas as produções do gênero que o antecederam – e que têm a mão de Hermano em
sua concepção.
Na internet, o portal colaborativo de artes e comunicação Overmundo, também idea-
lizado por ele, é uma das formas mais interessantes de uso descentralizador da rede, em
que todos são colaboradores, educadores e educandos. São todos sim e não simultanea-
mente, como na vida real.

(Publicado no portal Aprendiz)

01-Idade Midia.indd 41 08/12/11 17:36


42 IDADE MÍDIA

Numa visita à Universidade de Harvard escutei algumas vezes o


termo “era da criatividade”, conceito pouco difundido e com pouca litera-
tura a respeito. Mas parece-me ser este conceito o mais adequado, pois
deposita sobre o ser humano o bônus e o ônus de uma sociedade informa-
tizada e em rede. A inal, nunca é tarde para lembrarmos que a internet é,
antes de tudo, uma rede de pessoas, não de máquinas que agem sozinhas.
O computador e a internet jamais ajudaram, por exemplo, o compo-
sitor Caetano Veloso a criar uma bela canção; mas permitiram que ele ex-
pusesse a todos seu processo de trabalho, uma interessante experiência
que seria inimaginável há dez anos.
No que diz respeito à sociedade, à economia, à política e à cultura, a
“era da criatividade” causa diariamente um impacto gigantesco, in luen-
ciando a forma como os seres humanos vivem, se relacionam e trabalham.
Essas mudanças são tão rápidas e constantes que, muitas vezes, não nos
damos conta de que estamos reestruturando nossa maneira de pensar.
Olhemos com atenção algumas consequências de se viver imerso na
“era da criatividade”, e as perguntas sem respostas que ela nos apresenta.

A não linearidade
Lembro-me de assistir à palestra de um pro issional de de uma
grande empresa, e ele levantava possibilidades de como lidar com a se-
guinte situação que se impunha: todos os funcionários, da recepcionista
aos diretores, agora tinham o mesmo acesso ao pronunciamento semanal
do presidente da companhia. O que antes era visto como sinal de poder
para alguns (“o presidente disse para mim em uma reunião...”) deixou de
ser privilégio. Todos passaram a receber um pequeno vídeo com a mensa-
gem do presidente, e ainda podiam enviar e-mails diretamente para ele com
perguntas, sugestões e dúvidas.
O barateamento das tecnologias facilitou o caminho, junto com a in-
ternet, para que nos tornássemos produtores de comunicação, e não só
receptores. O que era uma via de mão única transformou-se num desenho
mais complexo.
A essa teia viva e tridimensional dá-se o nome de rede. Uma sociedade
em rede acaba por democratizar e pulverizar o acesso à informação e à sua
produção – por consequência, há uma reestruturação de poder, como no caso
do presidente da empresa que ica mais próximo de todos os funcionários.

01-Idade Midia.indd 42 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 43

Não por acaso, as primeiras teorias e percepções mais agudas de que


a sociedade começava a se organizar em redes nascem dos estudos do so-
ciólogo Manuel Castells em seu livro A sociedade em rede, prefaciado pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – e que gerou grande repercus-
são no meio político quando publicado.
Para se ter uma ideia do impacto dessa transformação, um programa
de televisão produzido nos anos 1980, por exemplo, demandava muito in-
vestimento para sua realização, além da complexidade para viabilizar sua
transmissão. Hoje, podemos assistir a pequenos programas feitos por al-
gum colega em seu quarto, sob demanda, no YouTube. Somos todos peque-
nos magnatas da comunicação. Nos idos dos anos 2000, os blogs já
começaram a ocupar o papel dos fanzines marginais da década de 1970,
acelerando o processo de aproveitamento da internet como “megafone” dos
grupos sociais.
A não linearidade dessa produção e do consumo de informação acaba
por tecer as tramas dessa rede e desconstruir o esquema unilateral, ou
mesmo piramidal, de comunicação e poder ao qual o mundo estava preso
até pouco tempo atrás. Esse é, sem dúvida, o principal legado da internet
para a “era da criatividade”.

Emissor

Mensagem

Receptor

Figura 1a Figura 1b

01-Idade Midia.indd 43 08/12/11 17:36


44 IDADE MÍDIA

A não informação
Efeito colateral da profusão de informação que corre pelos veios vir-
tuais da sociedade é a explosão de conteúdo que, a princípio, mais atrapalha
do que ajuda na construção de conhecimento: a chamada não informação.
A imagem romântica do jornalista que corre atrás da informação, por
exemplo, faz parte do passado – seu trabalho hoje é semelhante ao de um
garimpeiro numa montanha de lixo: achar e dar sentido ao que realmente
vale a pena. É o que defendem Bill Kovach e Tom Rosenstiel no livro Blur:
how to know what’s true in the age of information overload.
O arquiteto e estudioso da comunicação Richard Wurman – citado
na epígrafe que abre a Parte 2 deste livro – chegou a pesar a edição domi-
nical impressa do jornal The New York Times, que chegava a mais de cinco
quilos. Isso numa era pré-internet. Quem conseguiria lê-la na íntegra? Uma
edição desse tamanho (e peso) contém tanta não informação quanto a pró-
pria internet, e acaba mantendo em latência conteúdos que podem interes-
sar a inúmeras pessoas.
O termo “virtualidade” ganha signi icado quando imaginamos, por
exemplo, o conhecimento potencial armazenado por entre as estantes da
biblioteca do Congresso Americano. “Muito”, neste caso, pode facilmente
signi icar “pouco” se não houver conexões para capturar interesses espe-
cí icos e torná-los inteligíveis.
A criação de iltros próprios passa a ser, assim, uma demanda efetiva
de setores da sociedade. A vítima da epidemia da “ansiedade de informação”,
detectada por Wurman no início da internet, só pode ser curada com tais il-
tros. Não por acaso o Google é hoje uma das mais valiosas empresas do mundo.
Seu trabalho é, basicamente, guiar o internauta até o conteúdo que seja de
seu interesse, descartando a “não informação”. Ou seja, recortar e iltrar.

Complexidade da autoria
No mundo em rede e com profusão de criação e consumo de infor-
mação e cultura, “quem” inventou “o que” tornou-se uma das questões mais
complexas a ser enfrentada por empresários, inventores, advogados, pes-
quisadores e artistas.
O cineasta e escritor Arnaldo Jabor já desistiu de contar quantas ve-
zes negou a autoria de textos a ele atribuídos em e-mails que circularam
livremente. Mas a questão vai muito além da troca de autores.

01-Idade Midia.indd 44 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 45

A possibilidade potencial da criação coletiva tornou-se real quando


a internet passou a conectar os criadores. Quando essa coautoria é cons-
ciente, o problema se torna menor. Por exemplo, ao enfrentarmos um bug
em nosso navegador de internet, a empresa desenvolvedora costuma nos
pedir autorização para enviar o erro ao seu servidor central. Quando auto-
rizamos, admitimos o fato de estarmos ajudando a desenvolver uma nova
versão do mesmo navegador sem receber royalties por isso. Há um pacto,
mesmo que tácito, entre as partes.
Mas no mundo artístico e acadêmico da propriedade intelectual, as
certezas estão de “pernas para o ar”. Di ícil assegurar os direitos autorais
quando as obras circulam e são baixadas livremente – sem contar as vezes
em que são compostas por fragmentos e citações de outras obras, ou que
constituam homenagens a determinados autores.
A “era do Control+ /Control+ ” – como foi depreciadamente cha-
mada por alguns jornalistas – não é tão simples de ser compreendida. É
composta de muitas nuances que acabaram por colocar em xeque o antigo
copyright e estimular outras licenças de direitos.
É exatamente isso que explica o desenvolvimento do Creative Com-
mons – uma licença que possibilita condições especiais para determinado
tipo de uso. O conteúdo sob a responsabilidade do Creative Commons, por
exemplo, pode ser parcialmente liberado para reprodução, ou liberado para
ins especí icos e proibido para outros. Há categorias de restrição.
Empresas e governos, no entanto, estão perdidos em relação à ma-
neira como conduzem seu conteúdo, pois insistem em não lexibilizar o ve-
lho copyright. No Brasil, artistas passaram a tomar partido de forma explícita
junto ao Ministério da Cultura quanto ao caminho que os direitos autorais
devem seguir – de um lado, percebe-se que o autor é hoje lesado por conta
da reprodução ilegal de sua obra; de outro, defende-se um redesenho do
modelo de royalties no qual a remuneração por obra passe a ser obtida de
outra maneira que não a tradicional arrecadação de direitos autorais.
Já é tempo de perguntarmos se o termo “propriedade intelectual” é
ainda válido.

Redes sociais, mídia mainstream e transmídia


A “era da criatividade” tem encontrado seu terreno mais fértil nas
chamadas redes sociais, cujo conteúdo é produzido de forma descentrali-

01-Idade Midia.indd 45 08/12/11 17:36


46 IDADE MÍDIA

zada e direta por seus usuários, num fenômeno chamado crowdsourcing.


Uma de suas consequências pode ser constatada no fato de que, nos últi-
mos anos, a internet vem sendo pautada pelo relacionamento entre pes-
soas e pelos focos de interesse das mesmas. Os sites passaram a ser criados
a partir de grupos ou pequenas redes, característica que de ine a chamada
internet 2.0.
O lado menos alternativo dessa história é que, com os modelos co-
merciais mais diversos esquentando economicamente a rede, os grandes
grupos de mídia tradicional (como a Time Warner), e mesmo as empresas
“.com” (como o Google), começam a abocanhar fatias grandes do tráfego
on-line, formando uma espécie de cartel da mídia digital. Ou seja, para dei-
xar o cenário das mídias ainda mais confuso, até o caráter independente
que a internet carregava desde seu nascimento é hoje relativo – ela está
mais para um lobo em pele de cordeiro. Assim, muitas vezes os usuários
não estão cientes de que, ao produzir conteúdo na forma de postagens em
redes sociais ou repositórios de vídeos e outros arquivos, seguem traba-
lhando gratuitamente para um grande grupo de mídia, reinventando, assim,
o mundo digital.
Olhando sob outro ângulo as antes chamadas mídias tradicionais, ou
mainstream, notamos que elas também vêm se macaqueando como mídias
interativas e participativas. Um de seus expedientes é a divulgação do nú-
mero de telefone que você pode usar para eliminar personagens de um
reality show ou para escolher o ilme da próxima semana. No fundo, é a
mesma televisão de sempre travestida de “moderninha”.
O resultado é uma grande miscelânea midiática. Di ícil hoje separar
mídia alternativa de mídia de massa, conceitos válidos por décadas e que
desmoronaram em alguns anos. De concreto, a lógica “sob demanda”, inte-
rativa e participativa, legado da internet, parece mesmo o ponto focal para
o qual todas as mídias estão convergindo. O modelo de televisão digital é
um exemplo disso: já coloca agências de propaganda e anunciantes numa
encruzilhada, o dilema de “onde anunciar”, já que a programação será bai-
xada por demanda – o im do intervalo comercial.
Nessa mesma crise, os jornais e revistas em papel perdem leitores e
começam a barganhar seu conteúdo on-line, além de formatá-lo para tablets
e smartphones – a mobilidade ganha espaço. O New York Times, por exem-
plo, fechou suas reportagens na internet – antes disponíveis a todos – ape-
nas para assinantes, alegando perda de leitores de sua edição ísica.

01-Idade Midia.indd 46 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 47

Para além desse pastiche de correntes e de inições, o notável professor


do (Massachusetts Institute of Technology) Henry Jenkins, em seu livro
Cultura da convergência, frisa que o modelo transmídia é a perfeita interse-
ção do cruzamento da criatividade com o potencial on-line. Segundo ele, uma
mídia serve de continuidade para outra, muitas vezes sendo alimentada pe-
los próprios usuários. Além do bruxinho Harry Potter e da iloso ia contem-
porânea de Matrix, exemplos mais óbvios de como as “sagas” se perpetuam
na internet, Jenkins cita a mitologia de Star Wars como referência transmídia:
“Filmando em estúdios de garagem, reproduzindo efeitos especiais em com-
putadores e com trilhas sonoras de 3 ou s, os fãs criaram novas versões
da mitologia de Star Wars (1977)”, escreveu. Para um desses cineastas per-
didos no ciberespaço, Jason Wishnow, esse é o “futuro do cinema”.
Este Idade Mídia: a comunicação reinventada na escola também
arriscou um olhar transmídia disponibilizando conteúdo exclusivo, multi-
mídia, para o blog http://livroidademidia.colband.blog.br.

Novo consumo
Em 2011, uma conhecida fabricante de sapatos passou por uma si-
tuação delicada. Depois de lançar uma coleção que utilizava peles exóticas
de animais em vários itens, a empresa recebeu uma enxurrada de críticas
na internet por meio das redes sociais. Com a repercussão negativa, re-
tirou os produtos das vitrines e simplesmente deixou de fabricá-los.
A “era da criatividade” tem forçado as empresas a se conectarem
mais intimamente com seus clientes, uma vez que conceitos como respon-
sabilidade social e sustentabilidade estão cada vez mais difundidos. Isso
tem exigido um esforço hercúleo do mundo corporativo no sentido de res-
ponder rapidamente a essas demandas.
Como consequência, há uma nova geração de empresas mais atenta
a princípios que podem elevar o valor de suas marcas ou até depreciá-las.
Toda informação chega mais rápido; as respostas, por sua vez, também
devem ser muito ágeis. Nasce um policiamento em tempo real cobrando
um comportamento responsável.
A propaganda e o marketing, por outro lado, têm-se diluído em nosso
dia a dia sem que percebamos; consumimos anúncios acreditando piamente
estarmos lendo uma reportagem. A dicotomia entre conteúdo e propaganda
foi muito clara durante anos, seja nos intervalos comerciais que separam

01-Idade Midia.indd 47 08/12/11 17:36


48 IDADE MÍDIA

os blocos das novelas, seja nas páginas de uma revista. A prática do mer-
chandising chegava a ser tosca: a protagonista elogiando, num monólogo,
determinada marca de sabão em pó.
Hoje o cidadão encontra-se mais vulnerável. A rede social Facebook,
por exemplo, é a mais nova “América” para as agências de publicidade: uma
chance de ouro para transformar usuários em garotos-propaganda de ser-
viços e marcas – sem que eles sequer percebam.
Faça uma postagem elogiando o restaurante onde jantou no inal de
semana e você acaba por desencadear ativamente uma cadeia de marketing
viral. Anunciar sem ser percebido e camu lar marcas em conteúdo editorial
são a nova ordem do marketing.
A essa mistura conceitual somam-se novos hábitos de consumo que
nos tomam de surpresa a cada dia. Além de lojas de departamento e super-
mercados ísicos começarem a dar espaço para lojas virtuais, outras moda-
lidades de consumo testam os limites de liberdade e con iança do
internauta-consumidor, como as compras coletivas. Realidade nos Estados
Unidos, esta variante estabelece novos vínculos entre cidadão e empresa/
prestador de serviço – ainda não bem de inidos. O Brasil, com uma classe
média em ascensão, ávida por gastar, tende a se tornar o próximo labora-
tório de novas modalidades de compras e consumo.

Nova ferramenta de cidadania


De todas as possibilidades abertas e ainda não exploradas na “era da
criatividade,” as mais interessantes, e com grande poder de in luência, são
aquelas ligadas à cidadania e aos direitos humanos.
Os grupos e movimentos sociais sempre tiveram a necessidade de
unir-se para fortalecer determinada causa ou ação junto ao poder público
ou à própria sociedade. Para o estudioso de redes e militante político Fran-
cisco Whitaker, os eventos de 1968 foram, de certa forma, os pioneiros da
ação “em rede”, ou seja, as primeiras manifestações da humanidade em que
a juventude de todo o mundo ocidental lutava por um mesmo ideal – numa
época em que o correio e o telefone eram a mais avançada tecnologia. Ima-
gine a mesma movimentação na era da criatividade! Algo próximo foi o que
aconteceu na “primavera árabe”.
Não conheci uma pessoa sequer, jornalista ou não, que não tenha
icado emocionada com o poder das mídias sociais durante os eventos que

01-Idade Midia.indd 48 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 49

principiaram a ruína das centenárias ditaduras de alguns países árabes.


Muito provavelmente, foi a primeira vez na história que o poder esteve li-
teralmente nas mãos da população por meio da livre expressão. Graças aos
canais de internet e à criatividade do povo, o uso irrestrito da mídia – tra-
dicionalmente uma prerrogativa dos governos, com via de mão única – se
diluiu criando novos termômetros de satisfação social.
Segundo a irmou o editor da rede árabe Al Jazeera, Mohamed Nanabhay,
em palestra sobre o tema no (Massachusetts Institute of Technology):

As mídias sociais foram importantes porque serviram como ferra-


menta ideal para juntar grupos e indivíduos, antes dispersos, para uma
causa comum. E isso não respeitou fronteiras. O que aconteceu no Mar-
rocos serviu de motivação e empoderamento para os protestos poste-
riores na Líbia, na Síria e no Iêmen.

O relatório anual da Dubai School of Government, uma das mais res-


peitadas do mundo árabe, aponta que o Oriente Médio tem sido um dos
maiores públicos, alavancando, assim, a expansão da rede social. O número
de usuários dobrou em um ano – só os egípcios correspondem a 30% dos
usuários de todo o mundo árabe.
O relatório diz ainda que quando a internet foi derrubada pelos go-
vernos em crise como forma de conter grupos rebeldes, o ato acabou por
estimular ainda mais os insurgentes a procurar alternativas de conexão
para registrar sua indignação on-line.
Para aprofundar-se nesse estudo de caso, acesse o blog do livro e
consulte o relatório completo da Dubai School of Government, que detalha
como as mídias sociais tiveram papel ativo nos eventos do mundo árabe.

2. JUVENTUDE

Nem X, nem Y, nem Z. Uma geração


conectada, tolerante e com sonhos
Quando entrei pela primeira vez na sala de aula do Idade Mídia, de-
parei-me com somente nove estudantes dispostos a enfrentar um ano de

01-Idade Midia.indd 49 08/12/11 17:36


50 IDADE MÍDIA

curso, que já se apresentava como experimental, em meio à demanda do


ensino puxado do Bandeirantes. Talvez pela coragem, eram inevitavelmente
nove garotas. Essa foi a cena inicial do projeto.
Começamos a conversar, numa roda, sobre como cada uma consumia
comunicação e via seu futuro. De imediato, tive de segurar meu ímpeto de
compartilhar as expectativas delas como se fossem as minhas ainda – estava
com 25 anos. Esforcei-me também para dar um passo para trás e voltar a
ser “educador” – embora ainda estivesse experimentando essa posição.
O que mais me chamou a atenção naquele instante inaugural – e que
depois marcaria meus mais de doze anos trabalhando com jovens –, eram
os sonhos daquelas meninas, que não se limitavam a enriquecer ou comprar
um carro, mas colaborar com a redução das desigualdades sociais. A que
parecia ser mais jovem (mantinha ainda feições infantis), Ana Luisa West-
phalen, bolsista, disse que queria ser repórter desde criança – frequentar os
bastidores de Brasília e denunciar a letargia em torno da corrupção que lá
imperava. Quando criança, com um gravador de itas cassete em mãos, não
perdia tempo para sair entrevistando a todos, sobre tudo – contava ela. Hoje,
ico satisfeito e orgulhoso em acompanhar sua brilhante carreira nos jornais
O Estado de S. Paulo e Valor Econômico. Ela desvelou uma determinação que
se tornaria característica daquela geração, e de outras posteriores.
O sonho, ao contrário do que declararam alguns poetas, e do que sa-
botaram alguns pessimistas, não acabou. Pelo menos para a juventude – esse
período da vida que mistura experimentação, frustração, descoberta e muitas
pitadas de coragem . O sonho, tenho percebido ano após ano, se reinventa, e
permanece vivo. Se há uma palavra-conceito que de ine o “estar adolescendo”
é o verbo sonhar. Que implica diretamente o substantivo “possibilidade”.
“Entrar num projeto como esse é entrar na dimensão da imaginação
e da curiosidade humana. É isso o que eu mais gosto: descobrir”, escreveu
o estudante Fernando Len, do Idade Mídia de 2008, numa “declaração de
intenções” sobre por que deveria ser escolhido para o curso.
Pude perceber o mesmo sonho, com a mesma doçura nas palavras,
de jovens que têm uma vida mais apertada inanceiramente, como os
da comunidade de Heliópolis, onde lecionei por um ano. Por lá, almejava-
-se a fotogra ia com o mesmo empenho que Ana Luisa mirava o jornalismo;
muitos deles chegarão aonde desejam, estou certo. A possibilidade de
sonhar, felizmente, não escolhe classe social – bem como as angústias
da adolescência.

01-Idade Midia.indd 50 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 51

O ensaísta, professor de literatura da Universidade de São Paulo


(USP), José Miguel Wisnik, levantou as raízes da palavra adolescente, dentre
as muitas possibilidade etimológicas que se apresentam. Segundo ele, o
radical vem do verbo latino oleo (es, ere, olui), que quer dizer “exalar um
perfume”. A capacidade de sonhar dos meninos de Heliópolis, dos usuários
dos telecentros (com quem também estive em projetos de comunicação) e
dos alunos do Colégio Bandeirantes é o que os faz jovens, independente-
mente de suas origens. O adulto, segundo a mesma de inição de Wisnik, é
uma palavra cognata: já exalou (exalado, no particípio passado). Representa,
no caso, aqueles que, muitas vezes, não sustentam o encanto pela vida.
Parece-me quase impossível de inir uma geração de jovens. Mesmo
porque no “permanente im do mundo como o conhecemos”, são eles os
que mais carregam as marcas das rápidas transições. Mas procuro aqui
traçar algumas nuances importantes.
Se o sonho é o que de ine a juventude de forma atemporal, há carac-
terísticas muito particulares que indicam determinados grupos como úni-
cos. A velocidade das mudanças sociais que tratamos aqui me izeram
desistir de entender as “gerações” – que mudam a cada cinco ou dez anos
de intervalo entre si – tal como as entendem os psicólogos. Atualmente,
percebo mudanças profundas de ano para ano. Ou seja, em cinco anos é
possível lidar com cinco turmas de características muito diferentes.
Não me agrada a de inição de geração que muitos gurus do marketing
e do universo corporativo criam diariamente, apenas para caracterizar me-
lhor o público-alvo de seu novo sabor de refrigerante. Desses pesquisado-
res, há poucos que tratam a questão com mais profundidade, mesmo porque
ela não se restringe ao jovem como consumidor.
Um desses bons profissionais é o canadense Don Tappscot, autor
de Growing up digital e Grown up digital, clássicos sobre o tema. Ele se
refere à geração atual de jovens, que já nasce digital e em rede, com muito
bom humor:

Eles prezam a liberdade e a liberdade de escolha. Eles querem custo-


mizar as coisas, fazer do jeito deles. Eles são colaboradores natural-
mente, que gostam de diálogo, não de discurso. Eles vão humilhar você
e sua organização. Eles insistem na integridade. Eles querem diversão,
tanto faz se no trabalho ou na escola. Velocidade é normal. Inovação é
parte da vida.

01-Idade Midia.indd 51 08/12/11 17:36


52 IDADE MÍDIA

Para a geração que nasceu analógica, longe dos computadores e perto


das máquinas Remington, chamada por Tappscot de “migrantes digitais”, é
di ícil perceber que, para a juventude conectada da “era da criatividade”,
habilidades como velocidade e capacidade de realizar tarefas simultâneas
sem perder o foco são características inatas.
Hoje as crianças veem o mundo digital como um espaço tão natural
quanto o ambiente ísico. Basta perceber a con iança que têm ao usar um
mouse ou mesmo arrastar seus pequenos dedos na tela touchscreen de um
iPod – antes mesmo de começarem a andar com irmeza. Estudos recentes
apontaram o desenvolvimento de uma cadeia de neurônios 25% mais com-

A morte dos nerds

Pareceu-me um tiro que acertou o vaso quando se mirava o abajur, o livro The age
of American unreason, escrito pela norte-americana Susan Jacoby. Nele, a autora defen-
de haver, hoje, um desinteresse juvenil pelo conhecimento, a apatia de uma geração em
relação ao intelectualismo. Para Jacoby, os nerds ainda são hostilizados por representar
uma reserva cultural acima do cidadão médio.
O que a intelectual desconsidera é a forma como o conhecimento circula ou é orga-
nizado, que mudou muito da década de 1980 para cá. Quando pensamos num conheci-
mento estritamente acadêmico, cristalizado nos livros, a tese de Jacoby talvez faça um
pouco mais de sentido. Porém, outro tipo de conhecimento, menos robusto, mas tão
estimulador e relevante, passou a circular livremente entre jovens, crianças e adultos, e
nunca foi tão difundido e aproveitado quanto agora, na sociedade em rede. Misturado
com muita bobagem, admito. (Eis aqui um papel fundamental para a escola: ajudar a
separar as essencialidades.)
Isso não impede que, em outra embalagem, com outra velocidade e com a possibi-
lidade infinita de criação e interação, o conhecimento seja, sim, muito mais valorizado
que há dez anos. Por conta da internet, hoje é mais popular quem obtém primeiro a
informação, ou quem tem mais informação, seja sobre determinada música, um fato
político que acaba de acontecer ou até mesmo sobre as novidades do último game
lançado. Principalmente num grupo de amigos, o jovem que sabe mais é geralmente o
mais admirado.

01-Idade Midia.indd 52 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 53

plexa nas crianças de hoje em relação aos adultos. Para Tappscot, esta é
também uma geração mais esperta e rápida do que as anteriores.
Especialistas na área de recursos humanos têm quebrado a cabeça
para fazer com que os baby boomers (de 47 a 65 anos) e a chamada de
Geração (entre 31 e 46 anos) entendam a natural tendência de quebra de
hierarquia que os jovens atuais (conhecidos como Geração e Geração )
tendem a promover em um escritório, estimulando um trabalho mais cola-
borativo e desa iando tabus com mais rapidez e tranquilidade.
Como consequência, as empresas que têm foco na criação estão se
reorganizando organizacionalmente, pois perceberam que um ambiente

Quem passou a infância nos anos 1980 sabe o que os nerds significavam e como
viviam. Eram pouquíssimos, juntavam-se em grupinhos, eram virgens – na época, muitos
filmes americanos narravam a aventura da perda da virgindade de um nerd – e discri-
minados. Nerds era um termo pejorativo, para definir uma minoria.
Recentemente, estive presente em inúmeras feiras de ciência estudantis, nos Estados
Unidos – como a ISEF, que reúne mais de mil experimentos de todo o mundo – e na
América Latina, e fiquei impressionado em ver como os jovens cientistas namoram,
gostam de música, são integrados e valorizados por seus colegas mesmo que, even-
tualmente, tenham outras paixões.
Não é preciso ir tão longe. O Campus Party é um Woodstock do conhecimento. O
evento reuniu quatro mil jovens aficionados em tecnologia e cultura no Parque do Ibi-
rapuera, em São Paulo (SP). Passaram dias entre competições de robôs, de games, músi-
ca, paquera e troca de conhecimento.
O fato é que quem olhar para a juventude atual com as mesmas lentes que olhava
a juventude de outras épocas vai, a qualquer momento, acabar soltando a velha máxima
rabugenta “no meu tempo que era bom!”, e vai cometer um tremendo erro.
Os nerds foram minoria; agora, quem não tem assunto para uma conversa fica para
trás. Enfim, os nerds estão mortos. Vivam os nerds!

(Publicado no portal Aprendiz)

01-Idade Midia.indd 53 08/12/11 17:36


54 IDADE MÍDIA

mais colaborativo gera mais produtividade no tocante a seus mais jovens


trabalhadores. O Google, por exemplo, marcou essa mudança instalando
redes de descanso, mesas de sinuca, videogames e esteiras ergométricas
por entre as baias de trabalho.
Maior acesso à informação e à conectividade – exercendo meu ine-
rente otimismo – também resultou em jovens mais tolerantes às diferenças,
e isso Tapscott também sublinha em seus estudos. Talvez até mais que os
baby boomers, que pregavam a tolerância como valor mas não a viviam na
pele com tanta intensidade. A inal, hoje o jovem está exposto a uma ampla
gama de interesses pessoais, orientações sexuais e preferências políticas
graças a uma diversidade não censurada que se re lete intensamente tam-
bém no campo digital.
Isso pode não reverberar com o que lemos nos jornais diários. Infe-
lizmente, nesse campo, há um olhar míope: o do jovem intolerante, desin-
teressado e desinteressante. Esse re lexo disforme é alimentado por uma
fatia da imprensa sem preparação ou vontade para entender outras gera-
ções, mais ávida por vender jornais ou conseguir audiência do que por
entender a complexidade dos fatos relatados neste capítulo – faz-se um
recorte que toma uma ín ima parte como o todo.
Na minha vivência como educador, em ambientes dos mais diversos,
poucas vezes percebi, por exemplo, intolerância por parte dos colegas a um
estudante que demonstrasse seus primeiros sinais de orientação homos-
sexual. O mesmo para um aluno que poderia ter sido facilmente taxado
como nerd na minha juventude nos anos 1990, quem, por estudar determi-
nado assunto em profundidade, acabava discriminado pelo grupo. Ao con-
trário, a maior possibilidade do acesso à informação parece aguçar uma
experiência mais tolerante e curiosa de adolescência.
Outra característica da juventude raramente encontrada em quem
se dedica a estudá-la hoje, e que é facilmente confundida pelos adultos com
escárnio ou deboche, é o particular senso de humor, um comportamento
muitas vezes escrachado e politicamente incorreto, fruto de uma experi-
mentação de liberdade.
Lembro-me de ter demorado a achar graça quando vi, pela primeira
vez na , a cena de um rapaz, travestido de mulher, que atirava uma
granada (nitidamente feita de isopor) num caixa eletrônico que engolira
seu cartão. Tudo era tão grosseiramente encenado que a fumaça da explo-

01-Idade Midia.indd 54 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 55

são tinha sido produzida por um extintor de incêndio que aparecia num
canto da tela, na mão de um contrarregra.
Os rapazes responsáveis pelo esquete chamavam-se Hermes e Re-
nato, e durante dez anos foram os líderes de audiência na . A história
de ascensão dos humoristas é simbólica com relação à Geração ; começa-
ram gravando cenas em roteirizadas e atuadas por eles mesmos, em
Petrópolis, Rio de Janeiro. Enviaram as itas para a e, em pouco tempo,
além de contratados, sustentavam as maiores audiências do YouTube e ti-
nham as mais lotadas comunidades de fãs na rede social Orkut. A média de
idade dos integrantes do grupo era de 20 anos.
Entre 2003 e 2010 não se falava em outra coisas a não ser os episó-
dios de Hermes e Renato entre os estudantes do Idade Mídia. Aos poucos,
dado o contato diário com os alunos, comecei a perceber que palavrões e
grosserias característicos da série eram parte da sátira: os roteiros mime-
tizavam as chanchadas do cinema “boca do lixo” produzido no Brasil nos
anos 1980, e a estética parodiava a própria cultura trash da programação
televisiva. Tratava-se de uma profunda crítica em forma de comédia.
Em pouco tempo, Hermes e Renato tornou-se também um programa
imperdível para mim e me ajudou – e muito – a entender as turmas com que
iria trabalhar nas escolas. Chegamos a trocar episódios raros por e-mail.
Para essa geração, o “fora de moda” tem a velocidade da luz. A nos-
talgia do passado, às vezes em forma de louvação (como às bandas dos anos
1980), ou como deboche e escatologia (como o Hermes e Renato), é uma
maneira de escancarar e brincar com essa absurda rapidez da obsolescên-
cia. Não por acaso, acompanhamos a explosão do chamado stand-up comedy
no Brasil, em sua maioria feito por jovens.
Separei alguns episódios antigos de Hermes e Renato no blog do livro,
que ajudam a ilustrar este capítulo e a entender melhor esse contexto
(http://livroidademidia.colband.blog.br).

3. EDUCAÇÃO
Um lagarto preguiçoso ao sol
As carteiras dos estudantes na posição de ouvintes em contraponto ao
pequeno palco onde reina o professor, detentor do saber, é um arranjo que

01-Idade Midia.indd 55 08/12/11 17:36


56 IDADE MÍDIA

pouco choca, embora tenha alguns séculos de existência. Apesar do incômodo


que isso pode causar em plena “era da criatividade”, há, de certa maneira, um
olhar predominantemente conservador da sociedade sobre a educação, um
conformismo com a ideia de que ela deve manter-se da maneira como sempre
foi. Por isso, as boas escolas do passado costumam ser tratadas como templos
religiosos, quase intocáveis, apesar de o mundo ter se transformado tanto.
Ao contrário dessa imagem, basta adentramos a uma empresa, hos-
pital ou outro ambiente moderno para percebemos nítidas mudanças ísi-
cas, re lexo das profundas transformações sociais que aconteceram
ultimamente. A inal, icaríamos provavelmente inconformados em presen-
ciar uma cirurgia realizada com instrumentos obsoletos, numa maca antiga
e conduzida por médicos de formação antiquada. Convenhamos que obser-
var uma sala de aula disposta nos moldes das do século passado é uma
imagem menos chocante.
Contudo, no mundo do pensamento e nas práticas pontuais fora da
escola (as chamadas educação não formal e informal), houve mais evolução.
O universo de quem pensa e coloca a mão na massa da educação comple-
mentar jamais esteve tão fértil, geralmente irrigado por educadores de fora
da cátedra, inconformados com tal descompasso, como o empresário Ri-
cardo Semler ou o engenheiro Paulo Blikstein. Ambos são responsáveis por
projetos-modelo alinhados com nosso tempo – em pensamento e prática –,
mas ainda não conseguiram esmiuçar ou interferir no “vespeiro” que é o
currículo do ensino médio.
Essa inadequação educacional é bem antiga e pode ser encontrada, sob
a forma de menções e críticas, em diversos livros e estudos. A incompetência
do modelo escolar iluminista já vem sendo refutada desde os anos 1930, com
o baiano Anísio Teixeira, por exemplo, que propunha expandir o aprendizado
para fora dos muros da escola; e seguiu irme com o incansável Paulo Freire,
que encarou a educação como uma conquista social, e outros tantos teóricos
que até hoje propõem modelos para dar conta dessas transformações. Isso
para não mencionar o campo biológico, em que neurocientistas escancaram
diariamente pesquisas sobre as novas formações da rede neuronal. Mas
pouco disso se re lete em sala de aula – seja ela privada ou pública.
O fato é que, atualmente, a educação formal, salvo raríssimas exce-
ções, é composta por mitos desconectados da realidade, que são alimenta-
dos por um conformismo, e até um conservadorismo, que vêm de fora da
escola. Ideias preguiçosas, desconectadas do mundo real.

01-Idade Midia.indd 56 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 57

Até os governos e a administração pública, campos reconhecidos pela


lentidão em assimilar novidades, têm sido mais ágeis nas transformações
de modelos com o objetivo de facilitar a vida do cidadão e disponibilizar
informação de maneira mais fácil.
A escola, em crise internacional (é bom frisar que essa não é uma
questão somente brasileira), ainda é calcada num modelo baseado na me-
morização de conteúdos estanques e desconexos da vida. Aliás, essa bela
palavra, “vida”, é a menos encontrada na maioria das instituições atuais,
que são mais vistas como carma por quem as frequenta do que como locais
de descoberta e encantamento – como de fato deveriam ser reconhecidas.
Na década de 1960, Paulo Freire já chamava essa forma aprendizado de
“educação bancária”, em que a informação era depositada no aluno como
“cofre” e retirada dele nas provas.
Não estranharia se o leitor que acaba de matricular um ilho em al-
guma conhecida boa escola refutasse um recorte tão mórbido. Isso se ex-
plica pelo fato de as instituições venderem-se bem, seja como templos do
“construtivismo”, da “formação humanística para a vida” e ou do “ensino
tecnológico”. Eis o perigo dos mitos: se proliferam nas parábolas, mas não
no que são de fato.
Comprovar a e icácia de um ensino “construtivista” ou de “formação
para a vida” pode demorar tanto tempo quanto a própria infância ou ado-
lescência de um aluno – a educação é medida em anos, gerações. Para
anunciarem-se competentes, bastam às escolas alguns segundos e um cria-
tivo slogan publicitário. E nessa euforia comercial em parear-se à rapidez
das transformações na sociedade, as instituições de ensino realimentam
mitos sobre os quais vale a pena um olhar mais profundo.

Transdisciplinaridade
O modelo francês, de herança fordista, que separa disciplinas em
“gavetas”, ainda impera hoje na coluna vertebral escolar: o currículo. O
termo, cujo signi icado em latim é caminho ou percurso, tem servido hoje
mais como um cabresto na integração das disciplinas e áreas do conheci-
mento do que como uma trilha a ser seguida. No entanto, muitos não en-
xergam problema algum em sua existência centenária e na forte in luência
que exerce ainda hoje.

01-Idade Midia.indd 57 08/12/11 17:36


58 IDADE MÍDIA

Não há absolutamente nenhuma ação ou projeto que façamos, ou, indo


mais fundo, algum acontecimento que permeie a vida no planeta, que en-
volva uma única área de conhecimento, ou áreas do conhecimento de forma
isolada. Essa separação é uma invenção técnica, convencionada pelo homem.
Assim, assimilar o simples fato de que Maquiavel foi contemporâneo
de Leonardo da Vinci (e que eles se conheceram em vida) custará caro ao
estudante, no futuro, se não nos esforçarmos para integrar os conhecimentos.
A questão é antiga no campo do debate acadêmico, mas pouco foi
feito para integrar conhecimentos dentro da escola. Esse modelo tende a
se replicar posteriormente na universidade (que luta para integrar seus
cursos), em empresas (o mesmo para seus departamentos) e nos governos
(na fusão inter-setorial das áreas de interesse público).
Ironicamente, as mais recentes versões dos parâmetros curriculares
nacionais e outras legislações modernas que conquistamos nos últimos
anos propõem temas e modelos interessantes de projetos inter e transdis-
ciplinares. Mas, como não carregam caráter normativo, o que acontece nas
instituições, sobretudo no currículo, ainda é a aula de Matemática seguida
da de Biologia e assim por diante. Pílulas de cinquenta minutos de conhe-
cimento, fragmentado e estanque, separadas pelo soar do sinal.
O conceito de “transdisciplinar”, ainda hoje, não passa de uma ideia.
De forma geral, o mérito de quem consegue colocá-lo em prática é mais
individual, do esforço de alguns professores diferenciados, do que de uma
orientação institucional ou política.

Conexão com o estudante


Não descobri em doze anos de pro issão, por mais que tentasse, al-
guma pesquisa na qual o jovem colocasse a escola entre os locais mais
acolhedores de seus anseios, ou entre os mais importantes para ele.
Se o “adolescer” é mesmo o “exalar”, como dito anteriormente, a vida
do jovem é composta por uma explosão se sentimentos, sensações e apren-
dizados. Cada segundo é vivido com intensidade única e levado para o tra-
vesseiro à noite como um aprendizado, uma surpresa ou uma decepção.
Mas quais os espaços que efetivamente ecoam os anseios e as inquietações
desse estudante? Ou mesmo suas opiniões?
O descompasso das preocupações e rotinas escolares com a intensi-
dade das mudanças na adolescência tem feito com que a escola perca uma

01-Idade Midia.indd 58 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 59

chance de ouro de trabalhar “com o jovem” em sincronia com sua cultura,


em vez de atuar “contra ele”. Os valores muitas vezes não são compreendi-
dos pelas partes, e, portanto, não podem ser compartilhados.
Se a educação infantil e parte do ensino fundamental são uma conti-
nuidade da descoberta lúdica do mundo pela criança, o ensino médio marca
geralmente o im da “brincadeira”. De repente, o “viver” o conhecimento dá
lugar ao “memorizar” conteúdos, e a educação formal ainda insiste em pa-
rar por aí.
A sexualidade, as drogas, a descoberta do amor e tantas outras expe-
riências têm pouca reverberação na escola, sobretudo porque a voz do es-
tudante não é ouvida; geralmente, não há canal de expressão para ele. Mas
é na escola que o jovem vai passar grande parte de sua vida.
Tradicionalmente, a via de comunicação lui da escola para o estu-
dante e para os pais, e quase nunca no sentido contrário. Destaco aqui o
e-mail, o telefonema, a circular impressa, o mural interno. Mas responder
aos anseios do aluno signi ica primeiramente escutá-lo, abrir canais de mão
dupla para que ele possa se expressar.
Esse simulacro que a educação formal cria hoje em relação à vida que
acontece fora da escola é o cenário ideal para a criação do sentimento de não
pertencimento, de repulsa, e da mera obrigação por parte dos estudantes.
Até mesmo sem perceber, a escola hoje está fora das redes de conhe-
cimento que o jovem mais valoriza e nas quais aprende de fato: a roda de
conversa com amigos, os meios de comunicação de massa, a família e a
internet. Esses canais ganham cada vez mais relevância na descoberta e na
construção do aprendizado que icará para o resto da vida.
O que está em questão aqui não é a idealização tola de um ensino
totalmente prazeroso e alegre, mesmo porque a vida trata de demonstrar
que nada funciona dessa maneira; mas um modelo de educação que gere
interesse e curiosidade, que dê vazão à expressão e à criatividade e que,
portanto, aproxime naturalmente seus educandos, recolocando a escola,
assim, num patamar importante da vida do jovem estudante.

Informatização
Quando a escola pública recebeu seus primeiros computadores em
rede, em 1996, eu era um jovem repórter da revista Educação. Fiquei pasmo
ao cobrir uma aula de informática numa escola estadual, na qual o profes-

01-Idade Midia.indd 59 08/12/11 17:36


60 IDADE MÍDIA

sor ligava e desligava o computador na frente dos jovens, um por um, no


intuito de “ensiná-los”. Era uma aula de apertar botões. Os tempos eram
outros, muita coisa evoluiu, mas a criatividade e a tecnologia continuam
longe de se misturar em favor da educação. Computador ainda é sinônimo
de Word ou PowerPoint.
A imagem da sala de aula tão antiquada que mencionei no início deste
capítulo diz pouco a respeito do material que ela abriga, e muito do modelo
como ela funciona. Os microcomputadores, lousas digitais, tablets e outros
gadgets podem ser tão inúteis quanto um giz e um quadro-negro conven-
cional – o que não diminui o fato de que é importante tê-los disponíveis
(a inal, são eles que aceleram, como enzimas, “o permanente im do mundo
como o conhecemos”).
Porém, a revolução no processo educacional reside mais na maneira
como utilizar esse material tecnológico, em termos de modelo criativo
e recursos humanos (ou seja, professores), do que em tê-los de fato. O iPad
não signi ica uma revolução educacional por si só, mas a potencializa
e estimula. A lousa digital pode ser tão inanimada quanto um livro fechado
ou um lápis sem ponta. Contudo, usada com criatividade, ela pode inverter
o modelo de sala de aula, empoderando os estudantes nos processos
de aprendizagem.
As escolas têm tomado dois caminhos para se gabar de sua infraes-
trutura: o encantamento por meio de hardwares e dispositivos dos mais
diversos tipos, tomando-os como panaceia para um ensino moderno, ou os
ensinamentos técnicos oferecidos a seus alunos.
Todavia, o que há na verdade é uma crise de escassez de conteúdo
e forma para lidar com toda essa tecnologia, uma de iciência que começa
na formação universitária que não estimula seu uso na docência. Tecnolo-
gia sozinha não faz boa educação, mas é indispensável a ela, num projeto
mais amplo.

Construtivismo
O educador suiço Jean Piaget deve estar se revirando no túmulo ao
perceber o esvaziamento que afeta sua teoria quando o assunto é educação.
A carga de transformação do movimento reformista da Escola Nova
– que Lev Vygotsky e outros tantos educadores deixaram de legado à nossa
sociedade – é notável e fundamental para um ensino de qualidade. Entre-

01-Idade Midia.indd 60 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 61

tanto, o construtivismo passou a ser usado como selo de qualidade de um


modelo de educação “progressista” sem que a instituição educacional ver-
dadeiramente se esforce em adotá-lo.
Certa vez fui interpelado por uma jovem mãe que, entusiasmada, veio
me contar ter matriculado seu caçula numa escola construtivista. Minha
reação imediata foi perguntar: Mas qual delas não o é?
De fato, os princípios que regem a interação do sujeito com o meio,
que moldam sua inteligência como algo “a ser construído”, nos moldes do
proposto por Piaget, já foram tão assimilados nos cursos superiores de
educação que não consistem, atualmente, num diferencial entre as escolas.
E é bom que não sejam. Muito aconteceu desde o desenvolvimento
da teoria, no século passado; basta uma rápida olhada no conceito de múl-
tiplas inteligências de Howard Gardner – isso sem contar os inúmeros avan-
ços da neurociência, que trazem novidades diárias.
Ou seja, gabar-se de ser “construtivista” signi ica, por exemplo, o
mesmo que se vangloriar em defender a “liberdade” como valor da demo-
cracia – muito di ícil de discordar. Trata-se de um princípio elementar para
se educar hoje.
É muito positivo que os planos pedagógicos das escolas mesclem e
se alimentem das mais diversas correntes educativas e que, principalmente,
façam esses princípios chegarem à sala de aula e às atitudes dos educado-
res – uma maneira de encarar a complexidade da sociedade. São poucas
que o fazem.

Professores preparados
A estudante Samantha Natacci, que cursou o Idade Mídia em 2005,
colocou em debate, durante uma reunião de pauta, o tema cosplay1, que
começara a surgir na mídia fortemente àquela época. Fiz o papel de media-
dor do debate, admitindo que não sabia do que se tratava. Corri para casa
a im de pesquisar. Usei da experiência para criar meu próprio lema de
educador, um tanto bem-humorado: “O dia em que eu não tiver curiosidade
sobre o que é cosplay ou qualquer outra novidade, desisto de dar aula”.

1 Atividade lúdica em que jovens se fantasiam de personagens reais ou ictícios com o


objetivo de realizar um jogo de interpretações.

01-Idade Midia.indd 61 08/12/11 17:36


62 IDADE MÍDIA

Não nego ser uma tarefa árdua atualizar-se ao ritmo do “permanente


im do mundo como o conhecemos”. Mas acredito que acompanhar a cultura
do jovem deva fazer parte da preparação do professor; a inal, o estudante
deve ser visto hoje como uma ponta do diálogo na construção do conheci-
mento, não um repositório de informações. Esta, porém, não é uma prática
estimulada na maioria das escolas que a irmam preparar seus professores.
A formação continuada, ou o aprendizado permanente – o termo ori-
ginal é lifelong learning –, ganhou importância na “era da criatividade”, mas
da forma como tem sido encarada pela maioria das instituições se refere
mais a uma renovação de conteúdos do que ao aprimoramento nas formas
de educar e relacionar-se com os estudantes.
O gap geracional entre educador e educando é algo que sempre exis-
tiu e sempre existirá, mas se intensi ica conforme as mudanças sociais se
aceleram. Os professores envelhecem ano a ano, mas assumem turmas que
mantêm sempre a mesma faixa etária. Este é um tema perene para as esco-
las, que ainda não sabem como lidar, ou mesmo desprezam, uma maior
interação entre as partes. Usando a máxima da comunicação “um bom jor-
nalista conhece profundamente seu público-alvo e escreve para ele”, um
professor bem preparado deve falar a língua de seus estudantes, e, para
isso, precisa conhecê-los muito bem.

Formação para a vida


A carga de obviedade e generalismo do “educar para a vida” é tama-
nha que me estranharia estudar numa escola que não o izesse. Se assim
não fosse, o aluno estaria sendo preparado para o quê? A própria ideia de
currículo nasce com o propósito de formar cidadãos aptos a lidar com a
sociedade vigente.
Este é, sem dúvida, o slogan preferido das escolas e dos publicitários
– também o mais desprovido de signi icado. A priori, uma escola que não se
atualiza frente às transformações sociais já não tem como realizar essa pro-
posta, uma vez que a vida, de fato, acaba se revelando muito distante daquilo
que acontece no interior de seus muros. Mas o apelo no qual a educação
investe para se vender comercialmente diz respeito à cidadania, termo que,
por sua vez, também foi esvaziado pela mídia e pela sociedade civil.
A leitura de mundo sob a ótica dos direitos humanos, bem como o
acompanhamento das notícias da atualidade – a história que acontece en-

01-Idade Midia.indd 62 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 63

quanto você lê este livro – é uma das problemáticas menos resolvidas no


universo da educação formal. Talvez seja calcado nesses dois aspectos que
o termo “formação para a vida” seja tão repetido. A carga de conteúdos
curriculares abre pouca brecha para se tratar das questões cotidianas. Por
isso, o autocentrismo escolar tem sido um dos principais inimigos da edu-
cação de qualidade.
A desmiti icação do conceito de “formação para a vida” passa neces-
sariamente pelo fato de que a escola é somente um dos pontos da rede
responsável por tal objetivo – impossível realizar sozinha algo tão amplo e
complexo. Ela tampouco dará conta do trabalho se não interagir com outros
aspectos da vida do estudante, como seus interesses pessoais, sua família
e sua relação com a sociedade.
Surpreendentemente, a maioria das experiências que tentam resol-
ver essa questão acaba por “engessar” os direitos humanos no currículo,
assim como se fez com a química, a ísica ou a biologia. Nem a experiência
transdisciplinar proposta nos Parâmetros Curriculares Nacionais é posta
em prática.
Assim, a leitura de jornais e o estudo da sociedade têm se resumido
novamente às aulas expositivas de cinquenta minutos. São raras as insti-
tuições que transformam o “formar para a vida” em uma ação efetiva em
prol do estudante – sem relegar o projeto ao umbigo do currículo escolar.
Por exemplo, as realidades diversas da vida de jovens de periferia e das
regiões mais nobres das grandes cidades são pouco compartilhadas num
ambiente de ensino; apenas muito verbalizada. Estudantes das melhores
escolas não conhecem a rotina de um garoto de Heliópolis, nunca estiveram
lá. Em Heliópolis, por sua vez, há uma glamourização excessiva do “boyzi-
nho” da zona sul. Duas realidades tão distantes, sem pontos de contato, que
pouco trabalham por uma “educação para a vida”, ou por “um mundo me-
lhor”, aproveitando outro jargão muito utilizado.

Formação para a o mercado de trabalho


Os purismos ligados à meta de seguir “uma carreira pro issional”
estão em xeque. Di ícil para os mais velhos assimilarem essa informação,
já que a segurança de um emprego parece ser um dos sonhos mais deseja-
dos dos pais para os ilhos – situação simples de ser compreendida. Dizer
que as carreiras estão se lexibilizando e se fundindo, num movimento de

01-Idade Midia.indd 63 08/12/11 17:36


64 IDADE MÍDIA

integração de conhecimentos, pode soar “arriscado” para o futuro de um


jovem, mas trata-se apenas da realidade.
Quando ouço a máxima da escola que “forma para a carreira pro is-
sional”, sempre me pergunto se estamos tratando de um ensino médio pro-
issionalizante ou técnico. Se não for este o caso, caberia à escola elucidar
seus estudantes sobre como o emprego está em constante mutação. O que
mais percebo, no entanto, é a insistência em tratar a carreira como uma
tradicional e imutável opção de vida. Hoje, isso não é verdade nem para as
pro issões mais tradicionais. Vejamos alguns exemplos.

„ A medicina já começa a lertar com a engenharia e com a tecnologia,


e a abrir um lanco enorme de trabalho na implantação de próteses
– sem falar do campo da saúde pública, que mesmo ignorado está
em franca expansão; já os médicos não são tão bem remunerados.
„ O direito encontra a comunicação na medida em que se especia-
liza na questão da propriedade intelectual.
„ A comunicação se une à educação na elaboração de conteúdos
didáticos.
„ O mercado está saturado de dentistas.
„ O jornalismo começa a pagar melhor seus pro issionais.
„ A economia criativa, atividade mais a inada com o momento em
que vivemos, exige formação ampla em artes. E no tocante à cria-
tividade, o Brasil tem-se revelado um exportador de know-how,
basta lembrarmos exemplos como o do cineasta Carlos Saldanha
(da animação Rio, da Pixar).
„ Criar games para celular virou coisa séria, uma das pro issões
mais rentáveis da atualidade que, muitas vezes, não exige diplo-
ma universitário.
„ O funcionalismo público tem remunerado muito bem e atraído
excelentes pro issionais.

Nesse mundo de cabeça para baixo, a escola tradicional, autocentrada,


mal consegue acompanhar a expansão do ensino superior, tampouco está
atenta às sutilezas dessas transformações no emprego. O “formar para o mer-
cado de trabalho” parece-me uma realidade muito distante daquela escola
que não percebeu que o próprio termo “mercado de trabalho” está em desuso.

01-Idade Midia.indd 64 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 65

As razões que sustentam a qualidade da educação estão menos atre-


ladas ao maniqueísmo do “bem ou mal” do que se imagina. A escola, que
hoje se esforça para se mimetizar na sociedade, encontra-se nesse estado
letárgico por uma questão muito conveniente: como a sociedade tem di i-
culdades de acompanhar suas próprias mudanças, pouco exige das insti-
tuições de ensino para que se modernizem. Há uma impressão generalizada
de que “tudo vai bem”.
O papel construtivo da crítica, aqui, também ressoa sobre nós mes-
mos: Que escola queremos para nossos jovens? Ou melhor: Que escola eles
desejam para si próprios? A quem interessa mantermos os modelos curri-
culares? Por qual educação pagaríamos?
A instituição conteudista de hoje tem como inalidade quase única
encaixar no seu currículo todo o conteúdo exigido nos vestibulares, ou
em outros exames de admissão no ensino superior, com o intuito de in-
gressar seus estudantes nas melhores universidades. E acredite, esse já
é um grande trabalho. No fundo, são esses modelos de exame que acabam
tendo papel central na formatação curricular como a conhecemos. E quem
exige isso dela é a própria sociedade, ou melhor, os pais de alunos,
que mantêm o foco da educação média dos ilhos somente no acesso ime-
diato à faculdade.
São essas exigências e pressões feitas pelos clientes da educação – os
pais (evidentes para a escola) e os ilhos (ainda com pouco poder de deci-
são) – que acabam por instaurar uma crise permanente de identidade no
ensino médio, objeto de muito debate social. Deveria ele ser propedêutico?
Pro issionalizante? Humanista? As frequentes reformas na educação pú-
blica têm um quê de novidade desde 1940, mas carregam o mesmo lema
inatingível: aproximar o currículo escolar da vida cotidiana.
Essa falta de direção não é uma exclusividade da educação pública.
Desde que comecei meu trabalho com escolas, procuro tratar as questões
estruturais da educação como problemas sistêmicos únicos e universais,
e o que percebo é que eles se repetem nos modelos públicos nacionais
e internacionais.
Como jornalista, conheci escolas geridas das mais diferentes manei-
ras em todos os cantos do mundo. As que se diferenciavam pela qualidade
do ensino e pela sintonia com a “era da criatividade” traziam em si modelos
de inteligência únicos e, obviamente, pulsavam de acordo com as expecta-
tivas de pais e alunos.

01-Idade Midia.indd 65 08/12/11 17:36


66 IDADE MÍDIA

Lembro-me, por exemplo, de passar um dia em uma escola episcopal


caríssima nos arredores de Portland, no Oregon ( ), a , cujo currículo
é formado por projetos desenvolvidos pelos alunos. O estudante escolhe
um projeto cientí ico em qualquer área (um robô ou um jornal digital, por
exemplo) e tem aulas focadas nos conteúdos, habilidades e competências
pertinentes à sua opção. O ambiente escolar, que não tinha salas de aula,
mas amplos espaços equipados que mais pareciam “garagens criativas”,
transpirava vida e curiosidade, e os alunos, por consequência, acabavam
admitidos em ótimas universidades. Mas vale sublinhar que a não é um
exemplo padrão de toda a vasta rede educacional norte-americana – sobre-
tudo a pública.
No Brasil, projetos multidisciplinares que promovem a efetiva inte-
gração das disciplinas são fundamentos comuns de todas as mais brilhan-
tes experiências que conheci, e realmente abrem caminho para a interação
escola/comunidade. Por exemplo, uma instituição pública cravada no inte-
rior de Mato Grosso (Novo Mundo), em território amazônico, adota a ques-
tão da sustentabilidade como eixo de todas as disciplinas; talvez seja o
único lugar do mundo em que meninos, tratadores de gado durante o dia,
discutem à noite o papel da pecuária na devastação ambiental – e planejam
um futuro melhor.
Certa vez, entrevistando o educador Rubem Alves para a revista Trip,
pude compartilhar essas impressões com ele e perceber que não eram só
minhas. A escola mais interessante que ele conhecera lhe foi apresentada
pelo velejador Amyr Klink: na Dinamarca, há uma escola em que os alunos
têm como objetivo construir uma casa. Do projeto, que deve ter preocupa-
ções ecológicas, à construção, que exige pesquisas de materiais, tudo é alvo
de estudo e orientação. A Trip acabou usando o apelo do banheiro e do vaso
sanitário para vender mais revistas, a inal era lá, investigando para onde
iria o xixi dos moradores da casa, que os estudantes mais aprendiam sobre
o ciclo dos elementos orgânicos na natureza.
A proximidade da comunidade, da família e do próprio jovem em re-
lação à escola também tem sido um caminho interessante para o desenvol-
vimento de um espaço educacional relevante para os tempos atuais. As
charters schools norte-americanas têm revigorado comunidades cuja rede
educativa era anteriormente pouco e iciente; são escolas privadas que fun-
cionam num regime de concessão do poder público e têm uma gestão prio-
ritariamente feita por ex-alunos fundadores e por integrantes da comunidade.

01-Idade Midia.indd 66 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 67

Eles partem de uma simples pergunta para elaborar o plano político-peda-


gógico: Educamos para quê?
Escutar o anseio do estudante e direcionar, por meio de práticas inte-
ligentes, suas aptidões, parece ser a única maneira de reposicionar a escola
como player na teia de aprendizado da qual o jovem faz parte hoje – em
outras palavras, ganhar relevância nesse ambiente. É preciso ser corajoso
para admitir que a centralização da educação, muito defendida pelo sociólogo
francês Émile Durkheim, faz pouco sentido atualmente na sociedade em rede.
Eu mesmo sou fruto de experiências educacionais diversas, que va-
riaram das mais alternativas até as mais convencionais em São Paulo. Hoje,
tenho ciência de que o meu interesse por artes e literatura e a experiência
adquirida com os inúmeros cursos e projetos em que sempre me metia
(fotogra ia e navegação à vela), foram grandes responsáveis por minha for-
mação. Esse traquejo em adaptar-me a diferentes ambientes desenvolveu
o que mais prezo hoje como conquista: a autonomia. Por conta disso, soube
explorar os melhores professores das escolas por onde passei, eles foram
muito mais marcantes do que as instituições em si.
Faço essa digressão porque confesso que conhecia pouco o Colégio
Bandeirantes – não estudei lá. Sabia que era considerado “puxado”, e nada
mais. A imagem de rigidez se perpetuou por muito tempo, nutrindo certa
antipatia por alguns amigos que se autointitulavam “modernos”.
Fiquei surpreso e encantado com a instituição que conheci, pouco a
pouco, nesses dez anos de projeto, descobertas que me izeram entender
por que, em 2002, o Idade Mídia só poderia ter sido abraçado por um co-
légio como aquele.
São dois conceitos muito presentes no dia a dia que regem os princí-
pios do Bandeirantes: autonomia do estudante e valorização do conheci-
mento. Nenhuma outra escola em que estive ou pesquisei no Brasil investe
tão intensamente na formação (inclusive internacional) de seus professores,
na estrutura de trabalho e na elaboração de propostas educativas originais.
O resultado é uma comunidade de pro issionais engajados e bem
preparados e de alunos que realmente adoram estar lá, vivenciando um
ensino academicamente puxado. Os educadores se veem aliados dos alunos,
e estes retribuem com afetividade e esforço.
Para que tudo funcione tão bem, em primeiro lugar deve haver um
acordo tácito fundamental de que o jovem que lá quer entrar – tarefa nada
fácil, pois as vagas são muito disputadas – deseja mesmo se aprofundar nos

01-Idade Midia.indd 67 08/12/11 17:36


68 IDADE MÍDIA

estudos e esforçar-se. Para quem não gosta de estudar (e acredito ser esta
uma vocação da qual nem todos compartilham), o Bandeirantes é uma pés-
sima opção. Os alunos do ensino médio, por exemplo, não são obrigados a
assistir às aulas, mas o fazem porque desenvolvem responsabilidade e
autonomia; sabem que, se desistirem, não vão chegar aonde desejam.
Toda a estrutura ísica acadêmica (rede de internet aberta a todos,
tablets e laptops livres para uso diário e bibliotecas com publicações de
todo o mundo) está disponível em tempo integral para os mais criativos
projetos de alunos e professores.
Foram tais condições que tornaram possível também a realização de
projetos do corpo docente, como o que mescla história da arte e iloso ia
– experiência desenvolvida pelo professor Régis Lima; ou como a proposta
estruturada pela professora Clarice Kelbert, que trabalha um amplo leque
de vivências em cidadania, e com a qual o Idade Mídia se identi icou inicial-
mente. O “Cidadão na Linha”, como foi chamado no princípio, foi um projeto
pioneiro em abrir as portas dessa importante discussão acerca da cidadania
e da educação, e acabou por inspirar uma série de outras experiências.
Mas devo admitir que o que mais me preocupava no início do Idade
Mídia era a autonomia em trabalhar editorialmente com os alunos temas
importantes, mas polêmicos – como drogas e sexualidade –, sem a interfe-
rência dos adultos.
Quando fechamos a primeira edição de nossa revista, As Fanzonas,
iquei em dúvida se submetia o material ao diretor Mauro Aguiar antes de
enviar os originais à grá ica. Na minha proposta de curso, a decisão de
publicar determinado conteúdo era integralmente dos estudantes.
“Claro que não devo ler antes!”, disse Mauro, meio inconformado com
a indagação. Naquele momento, percebi de initivamente que estava no lu-
gar certo, com as pessoas certas, para desenvolver um excelente projeto.

01-Idade Midia.indd 68 08/12/11 17:36


O PERMANENTE FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS 69

O Idade Mídia por Fernando Rossetti

A cobertura jornalística da área de educação no Brasil teve uma expressiva


melhora qualitativa no fim dos anos 1990 graças ao sociólogo Fernando
Rossetti. Sempre com um olhar sistêmico, atento aos processos de transfor-
mação, durante muito tempo foi responsável pela área na Folha de S. Paulo.
Compartilhamos o mesmo desejo de “pular o muro” do jornalismo em edu-
cação para o trabalho educativo de fato, quando nos encontramos em 1999,
no início da Cidade Escola Aprendiz – e assim dividimos, junto com Gilberto
Dimenstein, as preocupações e ideias que dariam origem ao Idade Mídia e
a outras experiências na área.

Pequena história para


ficar na História

Por Fernando Rossetti

O Brasil tem sido um importante laboratório de experiências de aplicação


das novas tecnologias de informação e comunicação em espaços educativos,
como escolas e ONGs. Em poucos anos, demonstrou que o bom uso pedagó-
gico dos computadores e da internet é central para formar os cidadãos de
uma sociedade impactada por rápidas transformações tecnológicas.
Projetos como o Idade Mídia mostram que um estudante que produz
um jornal passa a ter uma relação diferenciada – e mais sofisticada – com
a cacofonia comunicativa a que estamos submetidos hoje.
Essas experiências também revelam que as implicações da revolução
nas tecnologias de informação e comunicação vão muito além da formação
de cidadãos. Hoje, o comportamento do consumidor é determinado por sua
atitude diante da publicidade. Ensinar a selecionar mensagens publicitárias
tornou-se central para a construção de uma economia mais sustentável.
O que as experiências pedagógicas mostram é que quando um estu-
dante produz um vídeo ele nunca mais assiste a outro passivamente; se ele
produz publicidade, ele adquire os anticorpos para esse tipo de mensagem.
Outra conclusão é que não basta mais formar as pessoas para serem
receptoras de comunicação. Na era das redes sociais, todos precisam se
tornar comunicadores.

01-Idade Midia.indd 69 08/12/11 17:36


70 IDADE MÍDIA

Bons projetos de educomunicacão ainda são muito restritos. A maioria


das escolas com laboratório de informática – o que já é um privilégio – usa os
computadores como máquina de escrever, e a internet como uma enciclopédia.
Por tudo isso, inserir a comunicação na educação, por intermédio da
internet e dos laboratórios de informática, tornou-se prioridade.
Meu primeiro contato com educomunicação foi com Gilberto Dimens-
tein, em 1997. Ele escrevia o livro Aprendiz do futuro e eu fazia um curso
sobre direitos humanos na Columbia University. Éramos ambos correspon-
dentes da Folha nos Estados Unidos.
No curso que eu fazia então, montei o projeto de um jornal, voltado
a educadores e estudantes, que resumiria semanalmente as principais notí-
cias da área. A internet acabara de chegar ao Brasil; não havia praticamen-
te nada publicado nela, muito menos conteúdo educativo, em português.
Voltando ao País, em meados de 1997, eu e Dimenstein implementa-
mos o resumo semanal das notícias de educação no site que foi lançado
junto com o livro Aprendiz do futuro. A redação era formada pelos estudan-
tes de seu projeto no Colégio Bandeirantes.
Toda uma geração de educomunicadores se formou nessas experimen-
tações pedagógicas do Colégio Bandeirantes e do Projeto Aprendiz, apreen-
dendo na prática conceitos que estavam nascendo com a chegada da
internet – inclusive o autor deste livro, Alexandre Le Voci Sayad.
Foi nessa época, em 2001, que eu e ele deixamos a função de gestores
no Aprendiz um pouco de lado e nos aventuramos a montar um projeto
experimental ao qual demos o nome “Redação Escola”. Literalmente nos
debruçamos sobre uma nova forma de educar usando a comunicação. Uma
pequena turma mista de estudantes de escolas públicas e particulares pro-
duziu interessantes fanzines. O embrião do Idade Mídia nascia ali.
Os resultados alcançados pelo Idade Mídia ao longo de seus dez anos
inspiram os que lutam para que todos os cidadãos adquiram, na escola e
em sua comunidade, as habilidades e competências comunicativas necessá-
rias para lidar com o tsunami de informações e imagens a que estamos
submetidos neste complexo século 21.

Fernando Rossetti é sociólogo e jornalista, atualmente diretor executivo do GIFE – Gru-


po de Institutos, Fundações e Empresas (www.gife.org.br).

01-Idade Midia.indd 70 08/12/11 17:36

Você também pode gostar