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Organização

Julia Siqueira da Rocha


Tiago Ribeiro Santos
Ione Ribeiro Valle
Silvana Rodrigues de Souza

SOCIOLOGIA
DA EDUCAÇÃO
EM MOVIMENTO
Inventário Questões
Gabriel Langoüet François Dubet
David Le Breton
Entrevista Martine Plard-Derivry
Jean-Claude Passeron Éric Plaisance
Falar de aportes da sociologia francesa à pesquisa brasileira supõe
remontar à circulação de ideias e, em particular, à circulação de ideias
educacionais. Esse movimento, quando se trata da França e do Brasil,
está ligado à histórica aproximação intelectual entre esses dois países.
No campo das ciências humanas e sociais, na área da sociologia nota-
damente, a França tem sido um dos países que mais tem despertado
o interesse dos pesquisadores brasileiros.
A título ilustrativo, gostaríamos de assinalar que a preparação cien-
tífica de brasileiros, notadamente no que concerne à formação douto-
ral, nas áreas humanas e sociais, em instituições francesas teve início
em 1823. São, portanto, 200 anos de parceria acadêmica, facilitando
a circulação de ideias, mas também os deslocamentos e intercâmbios
entre professores e pesquisadores.
(...)
É na perspectiva dessas parcerias que esta obra reúne o pensa-
mento de renomados sociólogos franceses da atualidade. Um traço
comum a todos eles, está no fato de intercambiarem saberes com
pesquisadores brasileiros, recebendo-os inclusive em seus laborató-
rios de pesquisa, na condição de orientadores e coorientadores.
Além do reconhecimento à importância que esta troca imprime não
apenas aos estudantes, mas às Universidades com seus programas de
pesquisa e ao campo sociológico de ambos os países, a produção desta
edição visa aportar aos leitores uma inusitada e imprescindível síntese
aos dilemas da sociologia e em particular da sociologia da educação.

Organização
Florianópolis

2022
Editora Insular
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO EM MOVIMENTO
© 2022, Julia Siqueira da Rocha, Tiago Ribeiro Santos
Ione Ribeiro Valle, Silvana Rodrigues de Souza
Conselho Editorial da Editora Insular
Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas,
Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa e Waldir José Rampinelli

Editor
Nelson Rolim de Moura
Revisão Técnica e Conceitual
Julia Siqueira da Rocha, Tiago Ribeiro Santos, Silvana Rodrigues Souza Sato, Ione Ribeiro Valle
Revisão final
Estúdio Insular
Capa
Eduardo Cazon
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP)
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes - CRB-8 8846
R672s Rocha, Julia Siqueira da (org.) et al.

Sociologia da educação em movimento / Organizadores: Julia Siqueira da Rocha,


Tiago Ribeiro Santos, Ione Ribeiro Valle e Silvana Rodrigues de Souza. – 1. ed. –
Florianópolis, SC : Editora Insular 2022.
174 p.; E-Book: 1,41 Mb; PDF.
ISBN 978-85-524-0294-7.
1. Ciências Humanas e Sociais. 2. Formação Doutoral na França. 3. Sociologia da
Educação. 4. Sociólogos Franceses Contemporâneos. I. Título. II. Assunto.
III. Organizadores.
CDD 370.19
22-30281221 CDU 37.015.4
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Sociologia educacional.
2. Sociologia da educação.
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO EM MOVIMENTO
ROCHA, Julia Siqueira da (org.) et al. Sociologia da educação em movimento. 1. ed. Florianópo-
lis, SC: Editora insular, 2022. E-Book (PDF; 1,41 Mb). ISBN 978-85-524-0294-7.

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SUMÁRIO

Prefácio............................................................................................... 9

Apresentação.................................................................................... 13

QUESTÕES...................................................................................... 17
François Dubet responde...........................................................................19
David Le Breton responde..........................................................................37
Martine Plard-Derivry responde...............................................................60
Éric Plaisance responde..............................................................................66

INVENTÁRIO.................................................................................. 93
Uma breve história de vida, por Gabriel Langouët.................................95

ENTREVISTA................................................................................ 125
Jean-Claude Passeron: elementos de uma trajetória intelectual........ 127
Sobre as organizadoras, o organizador, a socióloga e os
sociólogos participantes................................................................. 165

Anexo – Questões em Francês........................................................ 169


Prefácio

Julia Siqueira da Rocha

Este é um daqueles projetos que nascem por inspiração. No outono


francês de 2015, com a tese pronta, aguardando a organização da banca
para defesa, fui a Paris comemorar meus 50 anos de vida e visitar um
amigo e uma amiga que estavam em seus doutorados sanduíches. As
pessoas que estão imersas em pesquisa acadêmica respiram seus temas
e a conversa sempre vai convergir para categorias de análises, autores,
artigos e afins; foi assim que parei com eles em uma aula na Sorbonne, lá
reencontrei o Professor Danilo Martuccelli, que me convidou para um
café, a ser tomado no dia seguinte no icônico Café de Flore.
Foi para ele que contei primeiro a ideia que estava fervilhando em
minha mente, a possibilidade de fazer entrevistas com os sociólogos que
acolhem os pesquisadores brasileiros na França, seriam as mesmas per-
guntas para todos, ele disse que a ideia era factível e, sim, se convidado,
aceitaria participar. Comecei a fazer uma lista mental de quem eram
esses professores e pensava em um título como: Dez perguntas para dez
sociólogos.
No café da manhã da véspera de meu retorno ao Brasil, contei so-
bre este projeto a Silvana Rodrigues Sato e Tiago Ribeiro Santos, meus
amigos desta jornada; o Tiago, geralmente comedido, se empolgou ime-
diatamente e Silvana, geralmente empolgada, ponderou se realmente
teríamos adesão e se nossa orientadora aprovaria.
Voltei com essa tarefa na mala, conversar com Ione Ribeiro Valle,
nossa orientadora. Foi na Sala do Grupo, como chamamos o Laborató-
rio de Pesquisas Sociológicas Pierre Bourdieu, ao qual todos pertence-
mos, na Universidade Federal de Santa Catarina, que anunciei a Ione
a ideia que tivemos em Paris, sim, agora a ideia já pertencia ao trio, e
antes mesmo de ouvir ela disse: lá vem trabalho! Segui contando o que

9
vínhamos gestando e imediatamente o projeto passou a ser tutelado por
nós quatro.
Os anos de 2016, 2017 e 2018 se destinaram à difícil formulação
bilíngue das perguntas, aos contatos para saber da adesão, ao envio das
perguntas, recebimento das respostas e à complexa tradução do francês
para a língua portuguesa. Nesse caminho, algumas adesões iniciais não
se concretizaram, como a do Professor Martuccelli, mas agregamos ou-
tras adesões, cuja participação encerra um esforço de síntese sociológica
de inestimável contribuição.
Não são dez os sociólogos e nem dez as perguntas, por fim temos
cinco sociólogos e uma socióloga e oito perguntas, mas destes apenas
quatro respondem as oito questões. São eles François Dubet, David Le
Breton, Martine Plard-Derivry e Éric Plaisance.
As perguntas por eles respondidas interrogam a sociologia e o so-
ciólogo, as profundas mudanças comunicacionais em curso, o lugar da
educação formal e a polissemia das violências. Nossos estrevistados fo-
ram generosos e produziram desdobramentos, aprofundamentos, brin-
dando o leitor com análises brilhantes e necessárias. Com estilos únicos,
permitem se reorientar no projeto e dizer: não saberia responder a isto.
Ou dizer: esta pergunta tem duas vertentes e só faz sentido respondê-la
em perspectivas distintas.
Acionam outros saberes por entenderem que a sociologia se com-
plementa na história, na antropologia, e bebe de conhecimentos tão
diversos quanto são os mundos em que vivemos, divergem de conceitos
clássicos, ao mesmo tempo em que podem chamar outros sociólogos
para dar força ao que pretendem dizer.
Um de nossos entrevistados responde a questões diferentes, pois
Tiago Ribeiro Santos viajou de Paris a Marseille no verão de 2016 para
entrevistar Jean-Claude Passeron, isto antes mesmo de termos definido
as questões e entrevistados deste projeto; o fez de forma assertiva, para
não perder o passo da história e conciliar os tempos técnicos, políticos
e burocráticos. Essa entrevista deve figurar entre as raridades conquis-
tadas na pré-pandemia.

10
Outro sociólogo, o Professor Gabriel Langouët, acolhe o pedido
feito a todos de também falarem sobre si e inventaria sua vida e obras,
num exercício bastante importante e que assegura registros autobiográ-
ficos, nos brindando com uma trajetória pessoal e profissional inspira-
dora.
Em 2019, as tratativas para a publicação e organização do material
estavam a bom curso, havíamos chegado a uma produção que permi-
te ao leitor escolher como quer interagir com os textos, podendo ler
em sequência ou de forma aleatória sem perder nenhum sentido, assim,
trata-se de uma obra do tipo que habita as cabeceiras de cama e acom-
panha conversas prolongadas.
Os anos seguintes, 2020 e 2021, trouxeram a pandemia da Co-
vid-19 e com ela incertezas, medo, sofrimento e morte, enquanto esti-
vemos encerrados em nossas casas vivendo o lockdown, nosso projeto
adormeceu. Chegamos em 2022 e este será o ano de sua publicação.
Todos entrevistadores e entrevistados somos, como você, leitor, sobre-
viventes da pandemia da Covid 19, e isso não é pouco, ao contrário, é
a prova de que seguimos sendo no mundo dentre aqueles que querem
contribuir para a sempre atual tarefa de pensar a vida na cena pública e
coletiva.

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Apresentação

Falar de aportes da sociologia francesa à pesquisa brasileira supõe


remontar à circulação de ideias e, em particular, à circulação de ideias
educacionais. Esse movimento, quando se trata da França e do Brasil,
está ligado à histórica aproximação intelectual entre esses dois países.
No campo das ciências humanas e sociais, na área da sociologia nota-
damente, a França tem sido um dos países que mais tem despertado o
interesse dos pesquisadores brasileiros.
A título ilustrativo, gostaríamos de assinalar que a preparação cien-
tífica de brasileiros, notadamente no que concerne à formação doutoral,
nas áreas humanas e sociais, em instituições francesas teve início em
1823. São, portanto, 200 anos de parceria acadêmica, facilitando a cir-
culação de ideias, mas também os deslocamentos e intercâmbios entre
professores e pesquisadores. Até 2019, já haviam sido defendidas 2.752
teses nas áreas humanas e sociais, abrangendo 11 disciplinas (história,
geografia, política, economia, antropologia, sociologia, psicologia,
educação, literatura, artes e direito); 226 destas teses pertencentes à
educação, 351 à sociologia e 193 à história.
É na perspectiva dessas parcerias que esta obra reúne o pensamen-
to de renomados sociólogos franceses da atualidade. Um traço comum
a todos eles, está no fato de intercambiarem saberes com pesquisadores
brasileiros, recebendo-os inclusive em seus laboratórios de pesquisa, na
condição de orientadores e coorientadores.
Além do reconhecimento á importância que esta troca imprime
não apenas aos estudantes, mas às Universidades com seus programas
de pesquisa e ao campo sociológico de ambos os países, a produção des-
ta edição visa aportar aos leitores uma inusitada e imprescindível síntese
aos dilemas da sociologia e em particular da sociologia da educação.
Assim, na primeira parte, organizamos os textos-respostas dos so-
ciólogos François Dubet, David Le Breton, Martine Plard-Derivry e Éric

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Plaisance. Todos discorrem suas respostas sobre um mesmo conjunto
de perguntas, e o fazem com a maestria de quem vivencia a sociologia,
acompanhando sua evolução teórica, sua condição mutante num mun-
do em constante e profunda transformação.
O fato de responderem a perguntas iguais revela a autenticidade e
genialidade de cada um dos entrevistados, que não fogem à percepção
de seus próprios limites, como vaticina Le Breton ao explicitar que a
análise [do mundo] está sempre em dívida com o detalhamento do te-
cido social. Além disso, “não apenas as situações mudam, os sociólogos
também”.
Dubet entende que pensar a sociologia é sempre questionar as
produções socialmente determinadas e compreender seus autores a luz
do contexto em que suas obras, pesquisas e teorias foram engendradas.
“Não se pode compreender nem Marx nem Durkheim nem Weber se se
ignora seus engajamentos e suas paixões, se se ignora a maneira como
suas sociedades pensavam sobre si mesmas”.
Ao analisar a especialização da sociologia, Plard-Derivry enten-
de como decorrente dos processos de acumulação do conhecimento,
mas alerta que “essa especialização deve estar acompanhada por uma
base generalista dos clássicos da sociologia a fim de poder ‘popularizar’,
numa perspectiva mais geral, os resultados das pesquisas e dos estudos
especializados. Na ausência desse duplo movimento, a hiper-especia-
lização conduz os especialistas a uma torre de marfim e aos diálogos
inter-especialistas, os quais passam a não estabelecer mais comunicação
com a sociedade civil, o que seria ridículo face ao próprio objeto da so-
ciologia, pois este supõe compreender os fatos sociais e, assim, permitir
aos agentes ou atores sociais agir com mais discernimento, se tornarem
mais ‘livres’ nas suas escolhas, uma vez que conhecem melhor os deter-
minismos”.
Plaisance em suas ponderações faz importantes anúncios da socio-
logia, mas também opera importantes denúncias quando analisa “o lu-
gar de expert que é objeto de intensos debates, ou de polêmicas, entre os
sociólogos. O exemplo mais violentamente caricatural é fornecido por
um livro que questiona brutalmente a sociologia da educação francesa,

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acusada de não ser unicamente uma sociologia de experts oficialmente
reconhecidos, mas sobretudo uma ‘sociologia de Estado’, sob o pretexto
de que ela às vezes se beneficiou de créditos de pesquisa em progra-
mas governamentais1. Inspirando-se em Pierre Bourdieu, o autor apre-
senta tipos opostos de sociólogos e tipos opostos de pesquisa: de um
lado, ‘cientistas de Estado’ adeptos de pesquisas ditas ‘aplicadas’, que não
controlariam as orientações de suas pesquisas (relacionadas, por exem-
plo, às escolas de periferia); de outro, sociólogos que seriam os únicos
legitimados do ponto de vista científico, vinculados à análise do sistema
de ensino como reprodutor de uma ordem social desigual”.
De fato, há muito o que ler, aprender e debater a partir das
contribuições recebidas nesta primeira parte da obra, que surge da
diversidade dos olhares sociológicos sobre questões tão atuais e caras
aos sociólogos de todos os tempos.
Passamos à segunda parte desta obra, que se compõe de um inven-
tário autobiográfico de Gabriel Langouët, que nos prende por relatos
como este: “Entrei na escola primária do meu pequeno burgo bretão
um pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, com três anos
e meio. Numa escola privada católica, contrariando o desejo expressa-
mente formulado pelo meu pai, que falecera quando eu tinha dois anos;
minha mãe me disse mais tarde que não tivera escolha, pois precisava
garantir seu emprego, comer e me alimentar; e eu sempre estive conven-
cido de que seu desejo era mais o internato do que a escola propriamen-
te dita”. E que se descortina em obras de suma importância ao campo
sociológico, todas devidamente registradas cronologicamente.
E, por fim, uma inestimável entrevista com Jean Claud Passeron,
autor citado por todos os entrevistados em alguma parte de suas res-
postas. Aos 92 anos de idade e uma vida dedicada à sociologia, sua
potência e lucidez marcam o intelectual orgânico, engajado, que segue
nos ensinando: “Eu queria que eles [estudantes] aprendessem ao me-
nos o que esse conhecimento pode aportar ao espírito crítico, o que
a estatística, os dados podem proporcionar ao raciocínio não apenas

1 POUPEAU, F. Une sociologie d’État. L’école et ses experts en France. Paris: Editions Rai-
sons d’agir, 2003.

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sociológico, mas também político. É preciso ter armas intelectuais, que
são metodológicas, para raciocinar com método, para não cometer erros
estatísticos”. E como spoiler podemos dizer que ele conta ao astuto en-
trevistador sobre seu início e rompimento com Pierre Bourdieu.
Ao nosso entender, a obra que ora apresentamos contém sociólo-
gos em profunda análise de si mesmos, da trajetória da sociologia como
disciplina e de distintos contextos sociológicos do mundo de ontem e de
hoje. O que podemos ter certeza é de que não é possível neste métier se
esquivar do estar inteiro no mundo.

Julia Siqueira da Rocha, Tiago Ribeiro Santos,


Ione Ribeiro Valle e Silvana Rodrigues Souza

16
Questões

17
François Dubet responde

1 A sociologia tem como uma de suas principais razões de exis-


tir a análise do contexto social vivido pelos indivíduos, o que
supõe o diálogo permanente com outras ciências, particu-
larmente com a história. Em que medida os estudos sociológicos − ou
uma sociologia histórica − podem contribuir para que os indivíduos se
situem criticamente no seu espaço e tempo, compreendam seus modos
de pensar e de agir, interfiram nas práticas sociais cristalizadas ao longo
dos tempos e coloquem em perspectiva novas formas de se relacionar
com o mundo e com outrem?
François Dubet. A sociologia se esforça para demonstrar que tudo
é social e que tudo se explica pelo social. Nossas ações, gostos e nos-
sos sentimentos mais íntimos, incluindo os dos sociólogos, remetem a
quadros sociais, a culturas e a imaginários que preexistem aos indiví-
duos e que os constituem. Esta afirmação se tornou a “marca de fábri-
ca” elementar da sociologia. Tudo é social também na medida em que
cada ação está restrita a imposições sistêmicas, a estruturas econômicas,
políticas e culturais, que determinam a ação dos indivíduos. Enfim, as
interações também são fatos sociais, na medida em que os códigos das
trocas e das identidades são socialmente definidos. No entanto, esses
postulados, que se tornaram trivialidades científicas e intelectuais, não
param de surpreender e às vezes de chocar os atores sociais, pois estes
creem espontaneamente que suas maneiras de ser, viver e pensar pro-
vêm de suas escolhas, como se estas fossem as únicas possíveis. “Como
se pode ser persa?”, perguntava ironicamente Montesquieu. Do mesmo
modo, a história e a antropologia exercem, há muito tempo, um papel
essencial, lembrando que outros mundos sociais além do nosso são pos-
síveis, enquanto a tendência ao etnocentrismo continua participando
de toda vida social. Assim como a história e a antropologia, a sociologia
19
desvela a evidência das coisas ao mostrar que existem mil e uma manei-
ras de crer, de exercer o poder, de ser uma mulher ou um homem, de
constituir uma família, de educar os filhos...
A afirmação de que tudo é social pode, portanto, ser entendida
como o primado da socialização: a ação humana é socialmente determi-
nada e a sociologia é útil na medida em que coloca em evidência a obje-
tividade dos determinismos sociais. Nesse sentido, a sociologia aniquila
com as ilusões dos atores e participa da emancipação humana, reve-
lando as “leis” do determinismo social. Nesse caso, a liberdade começa
a progredir primeiramente pelo conhecimento das imposições sociais.
Esse reconhecimento da diversidade das culturas e dos determinis-
mos sociais é, entretanto, muito mais antigo que a sociologia: há vários
séculos, os relatos de viagem, os romances, os trabalhos históricos não
dizem outra coisa. Parece-me, no entanto, que hoje uma parte das socie-
dades impulsiona o raciocínio mais longe e talvez de maneira mais ques-
tionável. A antiga questão da articulação da diversidade das culturas e
da unidade do homem, apresentada por Margaret Mead, Émile Dur-
kheim ou Claude Lévi-Strauss, é muitas vezes substituída pela afirma-
ção de um relativismo cultural e social absoluto. Se tudo é social, tudo se
tornaria incomensurável e ninguém poderia escapar do aprisionamento
em sua própria identidade, em sua própria cultura e em suas diferenças.
Enfim, tornar-se-ia impossível compreender e estudar outros além de si
mesmo. E é exatamente isso o que muitas vezes postulam as teorias mais
radicais dos diversos studies que organizam hoje o campo das ciências
sociais em muitos países, a começar pelos Estados Unidos.
Mas o princípio segundo o qual tudo é social pode ser entendi-
do num sentido profundamente diferente daquele dos determinismos
quando a sociologia afirma que a construção do social é produto da
ação humana. Lá onde os atores veem a vida social como a realização de
uma natureza social desejada pelos deuses, pelos príncipes, pelas “leis”
da natureza ou da economia, a sociologia mostra que o que se chama
de sociedade é resultado das nossas ações. Nesse caso, a ação é social
porque é produto da vida social, através das rotinas, das interações, dos
conflitos, das ideologias, dos movimentos sociais etc. Nesta perspectiva,

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a ação social não é concebida como a realização de um “programa cul-
tural” interiorizado, de um habitus que determina as condutas, mas ela
é a capacidade de resolver um certo número de problemas, de tensões e
de contradições. Os atores agem e protestam, inovam e desenvolvem es-
tratégias para reduzir as contradições entre os valores aos quais aderem
e as condições da vida social que lhe são impostas. Eles defendem seus
interesses e estabelecem compromissos, eles concordam com regras e
normas, eles inventam soluções para os seus problemas, eles inovam e
resistem. Em suma, eles agem e, em certa medida, os indivíduos são os
sujeitos da vida social e não apenas os átomos de um grande organismo.
Quando a sociologia coloca em evidência a maneira como é produzida
a vida social, ela mostra que existe uma parte de liberdade, inclusive
entre os dominados, fazendo, portanto, apelo a um princípio de respon-
sabilidade: a sociedade, sendo produto das nossas estratégias, dos nos-
sos valores e das nossas escolhas, sempre nos torna, em certa medida,
responsáveis. Como dizia Marx, os homens fazem sua história, mas eles
não sabem como a fazem, e a sociologia pode nos ajudar a compreender
o que nós fazemos através dos efeitos das nossas ações.
Essa dupla dialética da vida social – o ator é produto da sociedade
e a sociedade é produto das ações – está no centro de todos os grandes
clássicos da sociologia. De uma ou de outra maneira, todos dizem que,
por um lado, nós somos produto do social, e que, por outro, nós produ-
zimos o social que nos determina. Nesse caso, a vocação da sociologia,
o seu papel emancipador e crítico, é colocar em evidência esse duplo
mecanismo e essa contradição fundadora. Portanto, a sociologia deveria
desfazer-se do sociologismo, que reduz a ação a uma soma de determi-
nismos, assim como de uma sociologia da escolha racional pura, que
reduz a sociedade à soma dos cálculos e das liberdades individuais.

2 A sociologia francesa tem se constituído como uma impor-


tante referência para a compreensão de universos sociais di-
versos e, particularmente, para a percepção e o entendimen-
to dos interesses e apostas que orientam o mundo escolar. Isso tem sido
possibilitado pela importante circulação internacional de obras clás-

21
sicas e contemporâneas de sociólogos pertencentes a diferentes abor-
dagens teóricas. A que riscos e ganhos a sociologia, enquanto ciência,
se submete ao ser difundida em universos muitas vezes pautados em
tradições históricas e culturais distintas ou, até mesmo, contraditórias?
A partir de quais argumentos é possível redefinir, reafirmar ou refutar
concepções sociológicas, tendo como parâmetro pesquisas produzidas
em outros universos? Que desafios se impõem aos sociólogos que de-
sejam ampliar sua interação com colegas de outros universos acadêmi-
cos? O que os sociólogos podem esperar da internacionalização no que
concerne ao avanço da ciência em geral e da sociologia em particular?
Dubet. Eu serei tentado aqui a defender uma concepção sociológi-
ca da sociologia. Na medida em que os sociólogos mostram que a arte,
a religião, a ciência, as instituições, as desigualdades, as emoções etc.
são produções socialmente determinadas, é evidente que a sociologia
não pode escapar a esta regra de explicação pelo social. Ainda que a
sociologia se esforce para ser uma ciência, ela também é, e talvez sobre-
tudo, uma filosofia social que responde às questões que as sociedades se
colocam sobre si mesmas. Não se pode compreender nem Marx nem
Durkheim nem Weber se se ignora os debates políticos e filosóficos das
sociedades nas quais eles viveram, se se ignora seus engajamentos e suas
paixões, se se ignora a maneira como suas sociedades pensavam sobre
si mesmas. Tanto ontem quanto hoje, as querelas dos sociólogos não
são somente de natureza epistemológica; elas também são ideológicas,
políticas e morais. Enquanto se pode imaginar que a física nuclear não
muda de natureza ao ultrapassar as fronteiras entre as sociedades, as
sociologias permanecem fortemente enraizadas e “nacionais”. Sua pre-
tensão à universalidade depende amplamente da potência cultural e
geralmente “imperial” das sociedades das quais elas provêm. Durante
quase um século, a sociologia, conservadora ou revolucionária, foi o
pensamento social das sociedades capitalistas, democráticas, modernas,
dominantes, identificando-se com o progresso e percebendo-se como
universais.
Mas não se pode reduzir a sociologia a um simples pensamento
social enraizado em contextos e interesses específicos. De um lado, a
22
sociologia se esforça para ser uma ciência capaz de demonstrar em que
ela avança e de estabelecer resultados incontestáveis, independente-
mente dos contextos, ainda que continue difícil falar do seu propósito
de ciência no sentido de Karl Popper, sendo, nesse caso, mais amplo
falar de disciplina, o que faz com que a questão dos métodos seja um
tema essencial. De outro lado, e com uma aceleração impressionante
nos últimos trinta anos, foi formada uma comunidade sociológica in-
ternacional: a sociologia existe desde então na maior parte dos países,
as ideias, as revistas e as pesquisas circulam de maneira intensa entre as
diversas comunidades científicas nacionais. Além disso, dispomos de
dados estatísticos mundiais acessíveis que facilitam as comparações e
o benchmark internacional em um grande número de domínios: edu-
cação, saúde, valores, desigualdades... Em suma, assim como em outras
atividades, a sociologia se mundializou e ela está ficando cada vez mais
mundializada quando nos confrontamos com problemas globais: ecolo-
gia, segurança, direitos do homem, crises econômicas, desigualdades...
Como postulava Ulrich Beck, os “nacionalismos metodológicos” decli-
nam e não param de declinar, pois um sociólogo brasileiro ou francês
fala facilmente tanto com um colega americano ou japonês quanto com
seu vizinho de birô.
Por essa razão, pode-se pensar que a sociologia se tornará, enfim,
uma ciência universal? Eu não creio que isso seja tão simples assim. Pri-
meiramente, e voltarei sobre isso, a massificação da sociologia engen-
drou um fracionamento infinito de objetos e paradigmas. Basta contar
o número de comitês de pesquisa das associações científicas nacionais
e internacionais para se convencer disso. A sociologia está mais inter-
nacional, mas ela também está mais dispersa. Em seguida, não estou
certo de que a globalização uniformize o mundo tanto quanto geral-
mente se acredita: as sociedades nacionais conservam fortes singula-
ridades culturais, institucionais e históricas além da universalidade do
mercado capitalista e dos modelos de consumo. Enfim, assim como a
globalização econômica, a extensão de uma comunidade científica in-
ternacional também está atravessada por mecanismos de dominação.
Para se convencer disso, basta ver como as normas acadêmicas e cien-

23
tíficas norte-americanas se desenvolveram em todas as universidades
e em todos os laboratórios. Frequentemente, para estar dans le coup,
“na moda” e numa posição legítima, os pesquisadores imitam o que se
faz nos Estados Unidos. Depois de anos dominados pelas teorias da es-
colha racional, se vê difundirem-se os múltiplos studies nascidos nos
campi americanos. Em todas as comunidades científicas, os gate keepers,
que importam as correntes americanas – pragmatismo, interacionismo,
etnometodologia, escolha racional... –, ocupam posições dominantes.
Paradoxalmente, as teorias críticas da dominação também participam
desses mecanismos de moda, de influência e, para dizer de maneira sim-
ples, de dominação: as formas de crítica da dominação são oriundas
das universidades que dominam o mundo acadêmico e científico. Já a
questão da língua e do reino do inglês não é anedótica para as ciências
sociais, nas quais o enraizamento linguístico não é exatamente o mesmo
da pesquisa em biologia; assim como a história e a filosofia, a sociologia
deriva, em parte, da diversidade das literaturas e das línguas.
Todas estas observações não significam que a sociologia não possa
pretender ser uma disciplina universal e sua internacionalização prova
que ela o tem se tornando progressivamente. Mas essa universalidade
diz respeito mais a seus métodos do que a seus paradigmas, a suas técni-
cas que a suas hipóteses. A sociologia é uma disciplina universal quando
os métodos utilizados fundam a verdade daquilo que ela faz avançar,
mas as questões postas permanecem contextualizadas e enraizadas. To-
memos o exemplo do que é, aos meus olhos, um verdadeiro progresso: a
sociologia comparada em educação. Graças às enquetes internacionais,
nós sabemos objetivamente se os diversos sistemas escolares nacionais
acentuam ou reduzem o impacto das desigualdades sociais sobre as de-
sigualdades escolares. Nós também sabemos quais são os sistemas es-
colares mais eficazes e mais equitáveis. Mas, embora essas aquisições de
conhecimento sejam fundamentais, isso não significa que os sociólogos
devam se tornar experts e passem a convidar os sistemas escolares de seu
país a imitarem a Finlândia, reputada por ter o melhor sistema escolar,
“sendo, aliás, em tudo igual”. Como os brasileiros e os franceses têm
poucas chances de se tornar igualitários e luteranos como os finlande-

24
ses, é preciso admitir que o funcionamento real das escolas remete a
culturas e a estruturas sociais nacionais, a singularidades que não são
apenas resistências a um one best way revelado pelo benchmark interna-
cional. A sociologia, portanto, está sempre dividida entre um objetivo
de conhecimento e imperativos culturais, políticos e sociais. Quando
consegue estabelecer ligações entre esses dois polos, ela tem algumas
chances de interessar às sociedades; de outro modo, ela interessa apenas
aos laboratórios e às revistas pouco lidas, tornando-se uma ideologia
tecnocrática como as outras.

3 A sociologia contemporânea tem ampliado sua esfera de


atuação, a exemplo de outras disciplinas, muitas vezes por
meio da especialização. Estaria ela correndo o risco de se
fragmentar e de perder de vista sua base comum de sustentação ou, ao
contrário, a especialização teria vindo para fortalecer sua posição cien-
tífica? A leitura de clássicos, passados mais de um século desde a institu-
cionalização da sociologia na França, ainda se mostra pertinente?
Dubet. Meu julgamento sobre a situação atual da sociologia se
assemelha amplamente ao que formulou Andrew Aboott no final dos
anos 2000.2 Por razões relacionadas ao crescimento do número de pes-
quisadores, professores, departamentos e laboratórios, o que acentuou
a concorrência no campo científico, a disciplina sofreu um profundo
processo de fragmentação. Mais do que desenvolver uma sociologia ge-
ral sobre objetos específicos, os pesquisadores têm se interessado em se
identificar com um objeto muito particular, objeto que eles geralmente
mantêm ao longo de sua carreira a fim de “limitar os riscos”. Esses obje-
tos dão acesso a revistas, redes, comitês, colóquios, que com frequência
vivem em circuito fechado e quase não alcançam um reconhecimento e
uma influência públicos. A multiplicação dos studies é o sintoma mais
visível dessa lógica. Entretanto, ao mesmo tempo em que se desenvolve
e se especializa – a pesquisa interdisciplinar permanece extremamente
minoritária, apesar dos apelos pela interdisciplinaridade –, a sociolo-

2 ABBOTT, A. Departement and Discipline: Chicago Sociology at One Hundred. Chicago:


University of Chicago Press, 1999.

25
gia perde sua influência social na Europa e na América do Norte. Pa-
rece que ela tem muita dificuldade em atrair os melhores estudantes,
os quais se dirigem à história, à ciência política, à filosofia e, sobretudo,
à economia. Em muitos casos, a sociologia se torna uma expertise em
problemas sociais e em acompanhamento do trabalho social. Mas, so-
bretudo, a economia ganhou a batalha da influência graças a uma forte
tecnicidade e ao emprego de um paradigma dominante, enquanto que
a sociologia faz apelo a teorias limitadas, contraditórias e estanques. Pa-
radoxalmente, a sociologia progrediu em matéria de profissionalismo,
mas não é certo que tenha ganhado em cientificidade – frequentemente
confundida com um estilo de escrita dos artigos – e em generalidade.
Observam-se mais combinações de teorias clássicas e já antigas do que
uma verdadeira criatividade teórica em sociologia. Em certos países,
como a França, pode-se ter o sentimento de que uma lógica de “seitas”
sociológicas se sobrepõe a da discussão crítica em benefício da forma-
ção de redes, visando à conquista de postos e de posições de influência.
Apesar de seu crescimento, não creio que a sociologia esteja num bom
período de sua história. Será que isso estaria ligado a uma conjuntura
particular do desenvolvimento das universidades? Será que isso esta-
ria ligado a causas mais profundas e notadamente ao declínio da ideia
de sociedade, vinculada à modernidade e à formação das sociedades
nacionais, industriais, modernas e democráticas por meio das quais a
sociologia produziu a teoria e, às vezes, a “teologia” através dos grandes
clássicos?
Esse julgamento deve ser tomado pelo que ele é, um julgamento
subjetivo, e deve, portanto, ser recebido com prudência. No entanto,
continuo convencido de que a sociologia deve manter sua vocação de
disciplina geral, consagrada a objetos particulares que remetem ao que
Merton qualificou de teorias de “médio porte”. Evidentemente, existem
campos e objetos particulares, mas eles devem estar inscritos numa vi-
são geral da vida social. Sem isso, a sociologia corre o risco de não inte-
ressar a ninguém, a começar pelas demandas sociais que são demandas
de sentido e de explicação global. Para falar de maneira mais clara: a so-
ciologia deve aceitar o fato de ser uma filosofia social, uma ciência “mo-

26
ral”, uma ciência crítica que não se limita a denunciar e a desconstruir o
social no interior dos laboratórios, enquanto a vida social evolui ao seu
lado sem que o pensamento dos sociólogos a influencie. Após todas es-
sas considerações, fica fácil observar que a explosão dos genders studies,
dos post colonial studies, dos subaltern studies... no interior dos campi
onde se tornaram uma espécie de dogmas não impediu a degradação da
sorte da maioria das mulheres e das minorias éticas, desde que se saia do
mundo preservado dos laboratórios e das classes médias superiores. Os
sociólogos deveriam se perguntar por que isso permanece assim, indo
além de uma denúncia sempre muito fácil, por que a desconstrução que
ocupa um grande número de pesquisadores afeta tão pouco a consciên-
cia e a dureza das relações sociais e dos modelos culturais.

4 Mudanças profundas e sucessivas nas formas de comunica-


ção têm posto à prova as instituições clássicas de acesso aos
múltiplos tipos de conhecimento. Estaria a Escola, preconi-
zada pelos projetos de modernidade, perdendo seu lugar na socialização
das novas gerações? Que objetivo é atribuído à Universidade no que
concerne à formação profissional hoje? Como essas duas instituições
(Escola e Universidade) poderão fazer face à velocidade da informação?
Que tipo de relação o sociólogo, mas também os demais intelectuais,
pode estabelecer com os meios midiáticos?
Dubet. A maior parte dos sistemas educativos se encontra atual-
mente numa situação paradoxal. Por um lado, durante os últimos cin-
quenta anos, eles aumentaram seus empreendimentos por meio do
desenvolvimento do ensino secundário e superior na maioria dos paí-
ses. Por outro lado, eles se confrontam com uma crise de transmissão
e de educação, não conseguindo realizar suas promessas de justiça e de
igualdade. Para compreender essa situação, é necessário evocar rapida-
mente a história da escola pública tal como ela foi criada no final do
século XIX e início do XX. Essa escola tinha como vocação formar cida-
dãos que aderissem aos valores da modernidade (confiança na ciência
e no progresso) e construir uma consciência nacional em torno de uma
língua nacional e de um imaginário, notadamente histórico, nacional.

27
Essa era a escola da nação e da emancipação em relação às crenças tra-
dicionais, principalmente religiosas; escola que se apoiava sobre uma
forte legitimidade cultural e na qual os mestres possuíam prestígio e
autoridade, apesar das condições de trabalho geralmente serem difíceis.
Mas essa escola da emancipação e do progresso permanecia socialmente
conservadora, na medida em que, salvo algumas exceções, não coloca-
va em dúvida o rigor das hierarquias sociais: havia uma escola para a
burguesia, outra para o povo, outra para as classes médias, uma para as
moças, outra para os rapazes... Tudo mudou de uns quarenta anos para
cá em nome de dois grandes argumentos, em princípio, incontestáveis.
O primeiro é um argumento “de esquerda”, que denuncia a clivagem dos
sistemas escolares e a reprodução das desigualdades em nome da igual-
dade de oportunidades: doravante, todos os alunos deveriam ascender
à mesma escola, onde seriam orientados em função de suas capacida-
des. Assim, a escola deveria balançar as hierarquias sociais e engendrar
uma forte mobilidade. O segundo argumento, “de direita”, é o do capital
humano: a elevação do nível de educação é uma dimensão essencial do
crescimento econômico, do acesso ao emprego e da avaliação do nível
de vida dos indivíduos. Assim, a educação escolar é considerada como
um fator de produção.
O desenvolvimento do acesso ao ensino secundário e superior
transformou profundamente a natureza da escola. Na medida em que
a seleção e a orientação ocorrem ao longo da própria escolaridade, au-
mentou a concorrência entre as famílias, os alunos e os estabelecimen-
tos. Nos países mais ricos e que reivindicam a igualdade meritocrática
das oportunidades, passou-se de uma escola de castas para uma escola
de massa concorrencial, na qual cada um é orientado em função de suas
performances. Mas essa lógica não elimina o peso da origem social e
cultural dos alunos e, na maioria dos casos, as desigualdades escolares
continuam reproduzindo as desigualdades sociais. A promessa da igual-
dade das oportunidades não foi mantida.
Ao mesmo tempo, observamos em todos os lugares um declínio da
autoridade da cultura escolar confrontada com as culturas de massa, às
quais os alunos acessam facilmente. Os saberes escolares são definidos

28
mais pela sua utilidade performativa do que pelo seu papel emancipa-
dor. Escolhem-se as habilitações e formações mais úteis e mais rentá-
veis, e os professores se sentem arrastados por uma profunda crise de
legitimidade. No fundo, a escola se tornou uma vasta máquina de dis-
tribuição dos indivíduos na estrutura social, segundo um mecanismo
de competição escolar contínuo. Entretanto, toda essa evolução, que
evidentemente é progresso objetivo em termos de acesso aos estudos
longos, se desenvolve num clima profundo de crise e de crítica à própria
instituição escolar.
A universidade não escapa a esse fenômeno. Com a multiplicação
das universidades, a hierarquia dos estabelecimentos e das formações
se acentua e as habilitações profissionais tendem a se impor frente aos
velhos modelos “humboldtianos” de formação generalista e de pesquisa.
Sobre essa questão, a posição dos intelectuais é, ela também, transfor-
mada. No seu papel tradicional, sobretudo na França, mas também na
América Latina, o intelectual era um sábio, um escritor ou um artista
que fundava sua intervenção pública na defesa de princípios universais:
a liberdade, a justiça social, o conhecimento... Com a massificação do
ensino superior e da pesquisa, de um lado, e com a investida crescen-
te das mídias, de outro, esse papel tradicional se transformou. Mas, se
subsistem intelectuais tradicionais, duas outras figuras apareceram. A
primeira é a que Foucault nomeia como intelectual “específico” ou ex-
pert, que intervém no debate público em nome de suas competências
científicas. Os economistas, os pesquisadores vinculados às ciências du-
ras e às ciências humanas falam em nome de suas competências, seja
para criticar a ação dos governantes, seja para esclarecer os debates. Eu
acredito que esse é o papel que os sociólogos devem exercer, mais do
que o de uma denúncia global do “sistema”. A segunda figura é a do in-
telectual midiático, que não se pauta na autoridade de sua obra, mas na
sua própria presença midiática. Na verdade, esse intelectual é escolhido
pelas mídias em razão do seu talento em estúdios de televisão e na im-
prensa. A França conhece bem esses stars que escrevem apenas ensaios
e que somente são lidos porque passam na televisão. Esse intelectual é
um personagem público, assim como os jornalistas e os cantores, e se

29
espera que eles tenham opinião sobre tudo, inclusive sobre coisas que
ignoram. Enquanto os intelectuais se deixavam desmoralizar como in-
telectuais “orgânicos” dos partidos, e sobretudo do partido comunista
na França, o risco hoje é de se tornarem intelectuais da televisão. Quan-
to mais acredito ser preciso aprender a falar à opinião pública através
das mídias, mais acredito ser preciso aprender a controlar o seu uso.
Existem dois riscos para os sociólogos: o de nunca sair do seu mundo
profissional e o de se tornar um sociólogo das mídias.

5 Num momento em que os projetos de democratização mais


clássicos, voltados à modernização dos Estados contempo-
râneos, são postos em dúvida, novas questões/orientações/
recomendações têm sido apresentadas aos professores, pesquisadores
e administradores sugerindo outras abordagens teóricas. Como os so-
ciólogos têm se colocado, por exemplo, em relação à reintrodução da
discussão sobre justiça? Como os sociólogos podem enfrentar um dos
grandes – e velhos – problemas que afetam nossas sociedades: o en-
trecruzamento entre desigualdades sociais e desigualdades escolares?
Como atuar na Escola e na Universidade sem se deixar levar pelas prá-
ticas de dominação e de reprodução, naturalizadas em suas estruturas e
em suas próprias representações?
Dubet. A posição mais fácil é a da denúncia. Como as desigual-
dades sociais determinam fortemente as desigualdades escolares, basta
repetir isso incansavelmente, mas isso tem um duplo efeito: primeira-
mente, invalidar todos os projetos possíveis de reformas escolares em
nome de uma revolução radical improvável; em seguida, convencer os
professores de que o percurso escolar dos alunos é um destino social
implacável e que não há nada a fazer. Ao invés de assumir essa postura,
os sociólogos poderiam dizer três coisas.
Seria importante, primeiramente, explicar como as desigualdades
são reproduzidas, colocando em evidência as desigualdades da oferta
escolar, o fato de que as escolas e os professores são de “melhor qualida-
de” quando se dirigem aos alunos mais favorecidos. Uma oferta escolar
mais equitativa não eliminará a reprodução das desigualdades escola-

30
res, mas poderá limitá-las. A sociologia também pode mostrar porque
parece tão difícil construir uma oferta escolar mais justa. Os sociólogos
não têm vocação para ministros da educação nacional, mas sua exper-
tise permite que digam quais são as reformas mais eficazes a partir das
comparações internacionais: formação dos professores, financiamento
do sistema, definição dos programas... Novamente, não se trata de falar
em nome de um modo perfeito, mas em nome de um mundo melhor.
Enfim, os sociólogos podem ajudar a esclarecer as escolhas em ma-
téria de concepção de justiça escolar. Na verdade, a crítica às desigualda-
des escolares sempre mobiliza diversas concepções de justiça, de modo
que somos confrontados a uma pluralidade de modelos, tornando-se
necessário defini-los e hierarquizá-los. Na França e em muitos outros
países, a concepção dominante é a da igualdade de oportunidades, que
visa fazer com que a escola anule os efeitos das desigualdades sociais
em nome de uma competição meritocrática pura. Mede-se a igualdade
de oportunidades pela composição social das elites escolares, nas quais
todas as categorias sociais deveriam ser representadas. É inútil dizer que
esse jamais é o caso. Pode-se também raciocinar em termos de igualda-
des de resultados e dizer que a escola justa é primeiramente aquela que
eleva o nível dos mais fracos e dos menos favorecidos a fim de que as
diferenças entre as elites e as massas sejam reduzidas ao máximo possí-
vel. Enfim, pode-se pensar que a escola justa é aquela que é útil a todos e
que permite acessar ao emprego e elevar sua qualidade. De acordo com
essas concepções de justiça, as políticas escolares não serão exatamente
as mesmas: em nome da igualdade de oportunidades, desenvolver-se-ão
medidas de discriminação positiva em favor dos bons alunos de origem
modesta, dos filhos das minorias. Em nome da igualdade de resulta-
dos, a prioridade será dada à qualidade do ensino elementar e da escola
de base. Em nome da utilidade, se favorecerá a formação profissional
adaptada ao mercado de trabalho. Evidentemente, em cada um desses
casos, os interesses sociais em jogo não serão os mesmos e por trás das
ideologias mais vagas se escondem conflitos sociais mais precisos, como
a luta de classes.

31
6 Fala-se com frequência hoje das múltiplas figuras da violên-
cia (de macroviolências, de violências sutis, brandas, sim-
bólicas), da indisciplina, da injustiça, como se se tratasse de
um fenômeno novo. Como a sociologia está enfrentando esse debate,
que parece atravessado por interesses políticos e econômicos mesclados
a interesses religiosos? Como os sociólogos têm abordado a questão da
discriminação, das minorias, do nacionalismo, da laicidade? Como evi-
tar o esfacelamento do social sem ferir as singularidades?
Dubet. O que é novo é o terrorismo islâmico, que atinge vários
países: os Estados Unidos, a Europa e notadamente a França. Mas essa
forma de violência é muito específica e não deve ser confundida com
outras violências, como as violências sociais, domésticas em relação às
mulheres e às crianças, a delinquência, a exploração brutal dos traba-
lhadores... Na verdade, a violência não tem unidade, não se ganha nada
colocando a violência física e a simbólica numa mesma categoria. Cada
um sabe muito bem que a violência simbólica da escola, que ensina uma
língua “burguesa” a uma criança pobre, não é comparável a dos socos,
das armas, das prisões e das bombas.
Frente à violência islâmica, o pequeno mundo das ciências sociais
compartilhou as mesmas reações de pânico que o resto da sociedade.
Em muitos casos, ele foi tentado a reduzir o desconhecido do terrorismo
ao já conhecido da questão social: o terrorismo seria a expressão da po-
breza e da relegação das periferias onde vivem as famílias muçulmanas
oriundas da imigração. Aos meus olhos, essa interpretação não resiste à
análise, pois nem todos os jovens fascinados pelo terrorismo estão nessa
situação. A explicação em termos de guerra de religiões também não é
muito sólida, uma vez que a esmagadora maioria dos muçulmanos fran-
ceses denuncia o terrorismo e chega mesmo a se perceber como uma
das vítimas. Portanto, é preciso admitir que a violência terrorista tenha
uma dupla especificidade: a da crise do Oriente Médio e dos conflitos
religiosos daquela região; e a dos mecanismos de autoradicalização que
remetem a crises existenciais, as quais não são facilmente compreendi-
das através das categorias estritamente sociológicas, pois frequentemen-
te essas crises não estão associadas às dificuldades familiares, escolares
32
ou profissionais particulares. Um dos efeitos da violência terrorista é
atribuir à questão dos muçulmanos na França uma tonalidade dramá-
tica e crispar os debates e as posições, sobretudo quando os partidos de
direita fazem da identidade o tema central da vida política. Dois riscos
aparecem de forma simétrica e complementar. O primeiro é a defesa da
identidade nacional contra o Islã. Na França, essa lógica geralmente se
apoia numa concepção de laicidade que limita a expressão da religião ao
espaço privado. Consequentemente, é preciso proibir todas as manifes-
tações públicas do Islã. O risco oposto é o de aceitar todas as expressões
públicas e políticas do Islã sob o pretexto de que se trata da religião
dos oprimidos, de modo que a condenação de seus aspectos mais ar-
caicos, inclusive do estatuto das mulheres, decorreria de uma atitude
imperialista pós-colonial. Essas duas posições me parecem igualmente
perigosas e irresponsáveis, tanto uma quanto a outra, pois a primeira
ignora o fato de que as sociedades não são culturalmente homogêneas, e
a segunda ignora o fato de que existem liberdades e direitos individuais
que fundam as sociedades democráticas, a começar pelo direito de não
acreditar em Deus.
Os sociólogos, assim como todos os outros franceses, estão deso-
rientados com esse debate. Existe, no entanto, uma posição sociológica
elementar, que nós poderíamos defender. Ela consiste em lembrar que
o reconhecimento da alteridade, das diferenças, passa primeiramente
pela afirmação daquilo que temos de semelhante e de comum. Duran-
te muito tempo, essa foi a própria ideia de sociedade, a ideia de que
participamos do mesmo sistema. Hoje, o que pode ser definido como
comum a todos, além dos conflitos e das diferenças, quando já não é
mais a nação e as crenças? Talvez se tenha que refletir sobre os direitos
individuais e voltar ao tema do trabalho: afinal, durante muito tempo,
a integração dos imigrantes na vida das nações se fez em torno do tra-
balho e do movimento operário. De qualquer maneira, se se quer que o
reconhecimento das diferenças das minorias não ameace as maiorias, é
preciso que sejamos capazes de dizer o que temos em comum e os soció-
logos deveriam participar dessa exigência, a fim de que o conflito social
substitua a guerra das identidades.

33
7 Observa-se atualmente um debate, bastante acalorado, acer-
ca do aumento e da diversificação das obrigações impostas
aos professores/pesquisadores, o que estaria criando obstá-
culos ao avanço da ciência. Como o engajamento na pesquisa de pro-
fessores tem sido administrado na França e no quadro da Comunidade
Europeia? Como os sociólogos franceses têm se posicionado a esse res-
peito? A sobrevivência do intelectual, nas suas mais diversas concep-
ções, estaria ameaçada? O que se espera do intelectual face aos novos
desafios impostos à produção científica?
Dubet. Quando comecei a ensinar na universidade em meados
dos anos 1970, na área das humanidades e das ciências sociais, os uni-
versitários compartilhavam o ideal de uma profissão liberal: alguns
trabalhavam e publicavam muito, outros muito pouco, mas cada um
tinha a sensação de definir sua atividade com toda independência. Essa
concepção um tanto aristocrática da vocação universitária não resistiu
à massificação do ensino superior e à ideia de que a pesquisa é um in-
vestimento. O peso das imposições aumentou, cada um é membro de
um laboratório, sendo preciso publicar para existir; tudo isso é denun-
ciado como uma coerção. Mas, na França, em todo caso, essa deman-
da institucional aumentou consideravelmente o nível de atividade dos
pesquisadores e dos universitários. Na medida em que os laboratórios e
as equipes pedagógicas são regularmente avaliados, é muito difícil ficar
longe desse movimento, mesmo que seja por uma questão de “dignida-
de” profissional.
Mas, é preciso constatar que, apesar dos universitários e pesquisa-
dores criticarem esse sistema, eles majoritariamente aderem com gran-
de zelo, às vezes com zelo demais a meu ver, quando publicam demais,
acumulam os contratos de pesquisa e parecem obcecados pela sua car-
reira. Na verdade, assim como os executivos das empresas, eles denun-
ciam um sistema no qual participam com entusiasmo, o que faz com
que o conformismo acadêmico e a crítica ideológica geralmente acabem
coexistindo dentre os mesmos indivíduos.
Como alcançar uma situação mais equilibrada? Parece-me que a
divisão entre o ensino, que aporta pouco prestígio e reconhecimento
34
para fazer uma carreira, e a atividade de pesquisa deveria ser mais bem
realizada. Ora, na França, existe um grande desequilíbrio entre pesqui-
sadores de tempo integral, que ensinam apenas de forma voluntária e
remunerada, e universitários que com frequência estão sobrecarregados
com as tarefas de ensino. Além disso, seria preciso que o financiamento
das pesquisas fosse regular e plurianual, uma vez que a pesquisa obriga
a correr atrás de contratos, o que leva muito tempo e induz os pesquisa-
dores a jamais correrem o risco de mudar de objeto. Em muitos casos,
o modo de organização da pesquisa em ciências humanas e sociais foi
copiado do modo empregado pelas ciências duras e não é certo que esse
tipo de organização convenha às humanidades. Dever-se-ia permitir os
trabalhos de erudição e as enquetes longas, que exigem financiamen-
tos regulares, muito mais do que contratos de pesquisa curtos, mesmo
quando são generosamente financiados.

8 O debate sobre o papel dos intelectuais, e em particular dos


sociólogos, ganha força no Brasil, tornando-se ainda mais
efervescente nos momentos de crise. O que se pode esperar
desses profissionais quando eles se confrontam com interesses econô-
micos e políticos que se opõem às lutas pela superação de desigualdades
sociais crônicas? Como a sociologia poderia se tornar acessível a todos
os indivíduos sem perder de vista seu caráter científico ou, mais precisa-
mente, o rigor teórico-metodológico que a define como ciência?
Dubet. É preciso se alegrar ao ver os sociólogos participando de
debates intelectuais e sociais. Mas isso exige tanto o senso de respon-
sabilidades quanto de convicções. Na verdade, entendo que é preciso
intervir publicamente apenas nas áreas sobre as quais dispomos de
competências e de conhecimentos sólidos. Deve-se ser capaz de se calar
a fim de evitar as aventuras infelizes dos intelectuais, incluindo os de
maior prestígio, que com frequência dizem grandes besteiras em nome
da ideologia e de uma suposta competência universal. Essa sabedoria
também exige que os sociólogos admitam haver uma certa distância
entre a ação política e a análise sociológica: dizer o que deve ser feito
do ponto de vista da análise sociológica não é a mesma coisa que dizer

35
o que é possível de ser feito do ponto de vista político, das relações de
força entre os partidos e as classes sociais... Os sociólogos devem resistir
à tentação de se perceber como engenheiros da sociedade fornecendo
bons conselhos a políticos que não os ouvem; além disso, muitas vezes,
é melhor que esses conselhos não sejam ouvidos.
Em suma, seguindo as lições de sabedoria de Max Weber, que dis-
tinguia o sábio do político, os sociólogos poderiam evitar exercer o pa-
pel dos economistas, explicando sempre o que aconteceu, o que deveria
ter sido feito e se enganando na maioria das suas previsões. Nas conjun-
turas de grande incerteza, os experts e os intelectuais correm o risco de
se tornar os astrólogos dos tempos modernos.
Além da intervenção nos debates, parece-me que os sociólogos
não deveriam hesitar em adotar uma atitude pedagógica, empregan-
do seu tempo para explicar as enquetes, os argumentos estatísticos, a
comparação etc. O debate democrático se fortalecerá ao se apoiar em
argumentos sólidos que ajudem os cidadãos a perceberem alguns me-
canismos sociais básicos. Assim como um cidadão esclarecido deveria
saber o que é uma taxa de desemprego, uma taxa de crescimento e uma
taxa de inflação, ele também deveria ser capaz de compreender como
as desigualdades são construídas, como elas se reproduzem, como se
desenvolvem as cidades, por que certas religiões alcançaram sucesso,
dentre outros tantos problemas. Por essa razão, acredito que um ensino
elementar das ciências sociais no ensino fundamental e médio (entre os
12 e 18 anos) deveria fazer parte da cultura comum dos cidadãos de um
país. Não é imaginável nem sem dúvida desejável que todos os cidadãos
se tornem sociólogos, assim como não é possível e desejável que to-
dos eles se tornem médicos. Mas, assim como representa um progresso
compreender genericamente como funciona o seu corpo e adotar algu-
mas regras de higiene, também seria um progresso que os indivíduos
compreendessem melhor como funciona a sociedade e conseguissem
tirar daí algumas lições pessoais. Para esse trabalho de intervenção so-
cial, os sociólogos deveriam se afastar do mundo dos laboratórios e dos
campis, mas jamais deveriam deixá-los, pois é o conhecimento longa-
mente adquirido que lhes confere o direito de falar.

36
David Le Breton responde

1 A sociologia tem como uma de suas principais razões de exis-


tir a análise do contexto social vivido pelos indivíduos, o que
supõe o diálogo permanente com outras ciências, particu-
larmente com a história. Em que medida os estudos sociológicos − ou
uma sociologia histórica − podem contribuir para que os indivíduos se
situem criticamente no seu espaço e tempo, compreendam seus modos
de pensar e de agir, interfiram nas práticas sociais cristalizadas ao longo
dos tempos e coloquem em perspectiva novas formas de se relacionar
com o mundo e com outrem?
David Le Breton. A sociologia está repleta de abordagens so-
bre os homens ou suas sociedades; ela multiplica os ângulos de visão
e os métodos, procurando dar sentido à ação ou explicar os incessan-
tes movimentos do social. Cada análise sociológica é como uma visão
da sociedade através de uma faceta sem, todavia, chegar a esgotar os
movimentos de sentido. Cada ponto de vista sugere sua leitura do so-
cial, sem ser necessariamente contraditório em relação ao outro, cada
um privilegiando dados singulares, insistindo sobre o papel do ator ou
do sistema. Toda análise sociológica é uma interpretação do social. Ela
oscila necessariamente entre dialógica e polêmica, ainda que às vezes
certa arrogância prevaleça sobre o diálogo e o reconhecimento da infi-
nita complexidade do real. A reivindicação elevada de um maior rigor é
muitas vezes apenas uma relação de força teórica.
O sociólogo aplica sua sagacidade não sobre coisas, mas sobre re-
lações entre homens que possuem em si mesmos apenas poucos conhe-
cimentos das motivações e das consequências de suas ações. A condição
humana é tecida num universo complexo de sentidos e de valores, numa
afetividade individual e coletiva colocada em prática a cada instante.
Pensar uma teoria sociológica geral nesse contexto parece um grande
37
desafio, pois se os sociólogos são, em princípio, pessoas que se orientam
por meio de métodos rigorosos, eles não deixam de ser homens, como a
fragmentação teórica da disciplina, das nossas universidades, das nossas
revistas ou dos nossos colóquios testemunham. As abordagens socioló-
gicas traduzem nesse sentido as ambiguidades e as ambivalências do fato
social. A sociologia não significa a apreensão tranquila e administrativa
de uma realidade objetiva que os indivíduos ignoram ao construí-la; ela
não é uma teologia dedicada à revelação das práticas, mas uma aventura
mais modesta com indivíduos que apresentam certa conivência de saber
com os atores sobre o que faz e desfaz o social. O desmembramento da
sociologia (ou da psicologia, da filosofia, enfim de todos os componen-
tes das ditas ciências humanas e sociais) nos lembra insistentemente que
todo homem, mesmo sendo um sociólogo reconhecido, é antes de tudo
um artesão do sentido e dos valores que ele projeta sobre o mundo. E os
adeptos dessas múltiplas sociologias encontram um público em acordo
com as sensibilidades encontradas em outras partes do mundo social.
Até mesmo a referência canônica a um clássico não é uma garantia, pois
o Weber ou o Simmel de um não é o mesmo do outro. As obras também
se distanciam, à imagem do social, como um plano de projeção, como
um inesgotável assunto para pensar, no qual cada um, do estudante ao
pesquisador experiente, procura uma legitimidade tutelar.
A interpretação do sociólogo nunca é indiferente, uma vez que se
aplica a atores que dispõem de competências não esperadas pelos soció-
logos e exercem uma crítica permanente sobre as análises das quais eles
são o objeto. A sociologia se aplica a um mundo em transformação que
ela mesma contribui para modificar através dos debates que provoca,
e não a um mundo natural que é imutável e indiferente aos discursos
mantidos sobre ele. Sem dúvida, hoje, as ciências sociais são para as
nossas sociedades contemporâneas lugares de tomada de consciência de
si. Essa cumplicidade ambígua do sociólogo e do ator é com frequência
fonte de conflitos ou de discussões. A reflexividade do ator não é exer-
cida apenas no curso de sua existência: uma reflexividade institucional
e social acompanha constantemente as práticas. Todas as formas de co-

38
nhecimento são mobilizadas, muitas vezes de maneiras contraditórias e
lacunares pelos nossos contemporâneos, começando pelas mídias.
No que me concerne, minha prática de sociólogo está próxima
àquela da antropologia. Eu me reconheço na tradição aberta sobretudo
por Mauss, e continuada atualmente por pesquisadores como Georges
Balandier ou Maurice Godelier. A antropologia quebra, por definição
e por método, as fronteiras temporais e espaciais; ela abre o espaço e
o tempo para se apropriar de uma pluralidade de existências sociais e
culturais, oferecendo assim, como objeto de investigação, a mais am-
pla gama de humanidades. Ela é a ciência da pluralidade dos mundos,
da heterogeneidade social e cultural, uma ciência do homem nas suas
relações com o mundo e com os outros. Ela é um empreendimento de
tradução das culturas que visa realizar a ciência do homem por excelên-
cia. Ela rompe igualmente com as fronteiras disciplinares, em razão so-
bretudo de sua preocupação com uma abordagem totalizante dos fatos
humanos. A diferença é a matéria-prima de seu interesse pelo mundo;
ela se dedica a pensar na alteridade e na identidade, no Outro em Si e no
Eu no Outro. O outro não está encerrado num estatuto de alteridade, ele
não é afetado pela sua diferença, mas interrogado a esse respeito a fim
de melhor compreender a si mesmo. O Outro é o desvio que conduz ao
Eu, assim como o Eu é o desvio que conduz ao Outro. Ela oscila entre o
particular e o universal, procurando compreender como um e o outro
se entrelaçam. Ao colocar em perspectiva a diversidade, ela tenta levan-
tar as antropo-lógicas, as lógicas de humanidade, que apresentam sua
formulação singular num grupo que se vincula a um todo mais amplo.
A antropologia implica, portanto, uma abordagem comparativa entre
construções sociais e culturais variadas. Ela é, nesse sentido, um olhar
distanciado, um estudo da condição humana que se interessa pelo mais
concreto, que parte do particular para buscar o universal, pois o homem
somente aparece de outra maneira numa condição social e cultural de-
terminada.
Devido ao seu conhecimento da diversidade humana e à sua lu-
cidez sobre os dados fundadores da ligação social e da constituição de
si como sujeito, a antropologia alimenta um humanismo concreto. Na

39
crise de sentidos e de valores que atravessa nossas sociedades, no des-
locamento das antigas maneiras sociais e culturais de viver juntos, na
dispersão dos valores sob o ritmo do individualismo contemporâneo e
das fraturas sociais, a antropologia relembra as condições da existência
comum e aquelas que se impõem para que os atores experimentem o
gosto de nelas viver. A antropologia aplicada, por exemplo, mostra que a
mudança imposta de cima para baixo por uma instância política suscita
uma ampliação do bem-estar dos grupos somente através de condições
particulares.

2 A sociologia francesa tem se constituído como uma impor-


tante referência para a compreensão de universos sociais di-
versos e, particularmente, para a percepção e o entendimen-
to dos interesses e apostas que orientam o mundo escolar. Isso tem sido
possibilitado pela importante circulação internacional de obras clás-
sicas e contemporâneas de sociólogos pertencentes a diferentes abor-
dagens teóricas. A que riscos e ganhos a sociologia, enquanto ciência,
se submete ao ser difundida em universos muitas vezes pautados em
tradições históricas e culturais distintas ou, até mesmo, contraditórias?
A partir de quais argumentos é possível redefinir, reafirmar ou refutar
concepções sociológicas, tendo como parâmetro pesquisas produzidas
em outros universos? Que desafios se impõem aos sociólogos que de-
sejam ampliar sua interação com colegas de outros universos acadêmi-
cos? O que os sociólogos podem esperar da internacionalização no que
concerne ao avanço da ciência em geral e da sociologia em particular?
Le Breton. Uma abordagem em ciências sociais digna desse nome
realiza as análises no rigor de seu desenvolvimento sem medo de atra-
vessar uma fronteira disciplinar. O pensamento ignora os cães de guar-
da que procuram limitar o avanço. A única exigência é não deslizar para
outra epistemologia ou emprestar conceitos de uma caixa de ferramen-
tas de outra disciplina sem conhecer suas finalidades. O recorte disci-
plinar é estranho ao campo analisado pelo pesquisador, ele somente se
legitima por meio da preocupação com o rigor na abordagem dos fatos
e na sua interpretação. Mas, ao dificultar o desenvolvimento do pensa-

40
mento e a compreensão das práticas, ele desliza para o academicismo,
no sentido de uma esterilidade dedicada à repetição do mesmo, sem se
preocupar com as circunstâncias. Não existe sociologia ou antropologia
sem riscos, sem vontade de oportunidades diante dos seus objetos. Toda
pesquisa é primeiramente indisciplinada, nos dois sentidos do termo.
Ela se coloca diante de seu objeto sem prejulgar em nada suas descober-
tas, empregando ferramentas metodológicas e de análise consideradas
mais apropriadas sem se tornar prisioneira delas, pois cada campo, cada
nível de olhar, implica especificidades e às vezes exige recorrer a cami-
nhos transversais, a uma inventividade metodológica ou conceitual que
leva ao deslocamento das fronteiras.
As discrepâncias sobre as definições da realidade social, a polis-
semia constitutiva do campo social, sempre desencorajam toda preten-
são à cientificidade, à verdade das práticas sociais. Toda reivindicação
a esse respeito é sobretudo indício de uma sociologia doutrinária e dis-
tanciada de toda possibilidade de trocas e de polêmicas com as outras
sociologias. Todo conceito é uma escolha moral, assim como o empre-
go de uma metodologia e não de outra. Toda abordagem sociológica
defende ainda com mais fragilidade quando desconhece uma teoria do
sujeito, da ligação social; ela repousa sobre uma psicologia implícita so-
bre valores mais ou menos explícitos. Nesse domínio, o conhecimento
é sobretudo o produto dos debates e dos conflitos entre as diferentes
abordagens da realidade social. A pluralidade da sociologia remete à
pluralidade possível dos pontos de vista e dos métodos de abordagem,
ao contrário da superioridade de visões, dos valores implícitos ou ex-
plícitos que orientam a pesquisa. Ela se vê diante de diferentes questões
sobre a complexidade infinita do mundo e não aborda os mesmos atores
sociais, as mesmas modalidades de existência. Além disso, a mudança
constante nas condições de vida leva ao surgimento de novos proble-
mas, de novas questões. Uma polissemia epistemológica e metodológica
deve responder à polissemia do fato social. Uma sociologia pode se es-
forçar para recolher dados confiáveis ​​na imprecisão das coisas, por meio
de questionários ou sondagens; outra sociologia, com igual pertinência
científica, pode se dedicar a uma espécie de progresso com os homens

41
através de uma fidelidade particular a sua palavra (entrevistas, compar-
tilhamento das experiências, histórias de vida etc.). Esses ângulos varia-
dos de visão não são incompatíveis; eles são tanto formas de apreensão
quanto recortes nos fluxos do real. Os procedimentos de validação dos
fatos não se sobrepõem, não buscam os mesmos indícios, não privile-
giam as mesmas ferramentas, não trabalham com as mesmas fontes de
sentido, não atribuem o mesmo peso à palavra dos atores. Diferença
de sensorialidade epistemológica. Cada estudo sociológico traduz, por
um lado, o encontro entre a sensibilidade de um pesquisador, guiado
por certo número de princípios epistemológicos e pelo seu desejo de
rigor, e por outro, as ambivalências de um objeto que nunca é facilmen-
te apreensível, podendo mesmo ser polêmico. Elaboração recíproca do
olhar e do campo de análise ao qual nenhum conhecimento escapa. O
perigo em termos de ética do conhecimento está no endurecimento de
uma posição, na vontade de hegemonia de um olhar que pretende ser o
único legítimo, indiferente à polissemia ou às flutuações do fato social.
Esses paradigmas concorrentes não levantam apenas problemas de
conhecimento, eles também reúnem homens em torno de uma mesma
sensibilidade, eles os distribuem em laboratórios ou estruturas de en-
sino, editoras ou revistas diferentes. A visível adesão de um estudante
a um paradigma ou sua vontade de trabalhar com determinado orien-
tador de tese já o inscreve, sempre sem que ele saiba, numa rede de
pertencimento e de apoio que, ao mesmo tempo em que abre portas,
fecha outras. Ele aprende que há “bons” e “maus” objetos, segundo esse
paradigma e a comunidade intelectual que ele mais ou menos escolheu.
O “bom” sujeito será aquele que fará com que o paradigma funcione
melhor, a teoria global, que serve de fundamento para a análise. De-
pendendo dos lugares de adesão, um paradigma será mais ou menos
favorável à carreira do pesquisador, ao seu desejo de publicar. A escolha
de um paradigma supõe uma visão de mundo, ou seja, uma maneira
“política” de tratar os homens e os fatos; ela é testemunha de um sistema
de valores que leva a considerar essenciais ou fúteis certos dados e não
outros. As consequências do saber jamais são neutras. Elas permitem
mudanças de atitudes dos atores, elas fundamentam decisões sociais ou

42
políticas, elas delineiam prioridades para os responsáveis ou os cida-
dãos. Os paradigmas ou suas críticas geralmente se enraizam no que
apoiam mutuamente da política de uma instituição ou de grupos so-
ciais. A responsabilidade do pesquisador está em todos os momentos
engajada numa análise que nunca é indiferente no seu desenvolvimento
ou nas suas consequências.
Nós não eliminamos os ressentimentos, as invejas, as mesquinha-
rias que perpassam a comunidade sociológica, assim como qualquer co-
munidade humana, estando muito longe da phylia. Convém, portanto,
aceitar as ciências sociais como um jogo do espírito no interior de uma
espécie de ágora, que coloca em prática uma ética da conversação à ma-
neira de Habermas. Como os atores não são feitos da mesma madeira
com a qual se faz os feixes, é claro que o resultado dessas trocas não le-
vará ao estabelecimento de um consenso, mas, na melhor das hipóteses,
a um reconhecimento da pluralidade da sociologia, de sua conivência
com as outras ciências sociais. Não se trata, portanto, de pensar que
tudo está em tudo ou que todos os pontos de vista são bons, mas de se
interrogar sobre nossas ferramentas e nossas produções, de viver mu-
tuamente nas ciências sociais uma espécie de virada dialógica. A tarefa
das ciências humanas, e particularmente das ciências sociais, não é ter
resposta para tudo, mas ter questão para tudo e levar a investigação o
mais longe possível, não pelo prazer de desconstruir, mas para observar
os jogos de sentido que mantêm juntos os laços sociais.

3 A sociologia contemporânea tem ampliado sua esfera de


atuação, a exemplo de outras disciplinas, muitas vezes por
meio da especialização. Estaria ela correndo o risco de se
fragmentar e de perder de vista sua base comum de sustentação ou, ao
contrário, a especialização teria vindo para fortalecer sua posição cien-
tífica? A leitura de clássicos, passados mais de um século desde a institu-
cionalização da sociologia na França, ainda se mostra pertinente?
R. Toda teoria implica uma visão de mundo, uma moral implícita
que a alimenta. Certas sociologias escolheram falar a partir da convicção
de uma ruptura epistemológica entre os procedimentos de conhecimen-

43
to ligados à vida cotidiana e as modalidades de efetivação dos saberes
sociológicos. A epistemologia de inspiração durkheimiana considera
como pré-noção, ilusão, o saber comum. O sociólogo, seguindo certos
procedimentos de pesquisa, realizaria obra científica, ele diria a verdade
sobre a ação dos homens. Os homens desaparecem em proveito de lógi-
cas sociais que os ultrapassam, leis da história ou habitus inelutáveis os
encerram numa ignorância ontológica de si mesmos, que o sociólogo,
através de uma virada espiritual jamais explicada, se propõe a revelar-
-lhes. O social explica o social, mas sem que os indivíduos sejam trans-
formados em sombras. A sociologia não está, portanto, muito longe de
uma teologia. Pode-se lembrar da piada de Edgar Morin a esse propó-
sito, ao se perguntar por qual “erro divino” certos intelectuais tiveram o
privilégio de sempre poder esclarecer os outros, e particularmente seus
colegas, sobre seus erros.
Sociologias de outras vertentes, como as de Simmel ou de Weber,
levam em consideração a reflexividade e a competência dos atores. O
sociólogo pertence ao mundo vivido que procura compreender. Como
homem comum, ele recorre a tipificações que lhe permitem não apenas
estudar seu campo, mas também, mais modestamente, se mover na so-
ciedade e não ser considerado como um marciano. São esses mesmos
procedimentos de conhecimento que nos permitem assistir a um filme
ou ler um romance, ouvir uma anedota ou uma piada, ou presenciar
uma querela de calçada, compreendendo o princípio. O sociólogo tam-
bém é um ator competente no meio de outros, caracterizado sobretudo
pela intenção de melhor compreender certos aspectos da realidade so-
cial. As pré-noções não são mais as ervas daninhas a se arrancar a fim
de alcançar a verdade das ações, mas uma maneira dos atores se darem
conta do que vivem, mesmo que a sociologia não possa parar ingenua-
mente nisso. A tarefa da sociologia é aprofundar um conhecimento que
não é necessariamente estranho aos atores.
No tocante ao mundo da educação, os sociólogos da Escola de Chi-
cago e do interacionismo simbólico sempre me parecem bastante ativos
para abordar as questões contemporâneas. No início do século XX, eles
fizeram com que a adolescência e a juventude ingressassem na história

44
das ciências sociais, ao se interessarem sobretudo pela delinquência ju-
venil (F. Trasher, The gang, 1927; C.R. Shaw, The Jake roller: a deliquant
boy’s own story, 1930) ou marginal (W.R. Thomas, The unadjusted girl,
1923). Os trabalhos nessa área não pararam de se renovar ao longo do
tempo com o desenvolvimento do interacionismo simbólico.
Os sociólogos de Chicago foram os primeiros a se interessar pela
juventude sob múltiplos ângulos através de uma abordagem compreen-
siva, resultado de observações, de entrevistas e da coleta de histórias
de vida. Eles procuraram compreender as lógicas sociais que levam à
delinquência, à constituição de gangues, à violência, à prostituição, ao
fracasso escolar... Eles não pretendem elaborar um saber pelo saber, sua
intenção é modificar a chance das crianças e dos adolescentes de meios
populares e oriundos de imigrantes, notadamente sob a influência de
John Dewey no que concerne às formas de educação para tornar ho-
mens e mulheres reflexivos e criativos. Sua herança ainda permanece
viva. As metodologias postas em prática se refinaram ao longo do sécu-
lo, os problemas que à época atormentavam a cidade de Chicago apa-
recem ainda hoje em todo mundo, mas sua sensibilidade persiste em
muitos trabalhos contemporâneos igualmente preocupados em cons-
tituir um saber que alimente as ações políticas ou sociais, e sempre as
dos trabalhadores sociais e dos que intervêm nessas faixas etárias, como
médicos, professores ou psicólogos, por exemplo.

4 Mudanças profundas e sucessivas nas formas de comunica-


ção têm posto à prova as instituições clássicas de acesso aos
múltiplos tipos de conhecimento. Estaria a Escola, preconi-
zada pelos projetos de modernidade, perdendo seu lugar na socialização
das novas gerações? Que objetivo é atribuído à Universidade no que
concerne à formação profissional hoje? Como essas duas instituições
(Escola e Universidade) poderão fazer face à velocidade da informação?
Que tipo de relação o sociólogo, mas também os demais intelectuais,
pode estabelecer com os meios midiáticos?
Le Breton. O enfraquecimento dos quadros de socialização leva as
crianças a uma fixação na internet, que geralmente ocorre pelo distan-

45
ciamento da responsabilidade educativa dos pais. Os mais velhos estão
em atraso em relação aos usos adolescentes da internet; os pais e os pro-
fessores frequentemente são menos competentes para acessar as redes
sociais e os sites das gerações mais jovens; eles têm tendência a deixar
acontecer e a apostar na experimentação dos jovens, deixando-lhes a
autonomia. A realidade virtual é uma via de experimentação de si, de
exploração de mundos ainda pouco conhecidos através dos nicknames,
dos avatares ou das discussões intermináveis com ​​ outras pessoas nas
redes sociais. As tecnologias de comunicação e de informação modifica-
ram radicalmente os horários, a vida cotidiana e as modalidades de rela-
ções com os outros. Para alguns, elas constituem uma alternativa à vida
real, uma proteção contra a ambivalência do mundo. Elas transforma-
ram profundamente a intimidade. As tecnologias são menos um espaço
de transição que uma dissolução no seu modo de usar; um apagamento
de si para lutar contra as incertezas do crescer. A internet e todas as fer-
ramentas de comunicação e de informação favorecem um afastamento
de si e do grupo de pares, um refúgio em si mesmo, uma ótima escapa-
tória da sociabilidade comum com interlocutores conhecidos.
Se sua competência em matéria de comunicação é imensa, ela é
claramente menor quando se trata de compreender o funcionamento
dos sites ou sua programação. A ferramenta lhes interessa enquanto é
operacional. Eles desconhecem igualmente as implicações jurídicas de
uso dos sites que pirateiam, do direito à imagem ou dos direitos de au-
tores, dos filmes que baixam, dos propósitos que têm ou das imagens
que postam. Para muitos, a internet favorece uma fraca cultura geral.
Não lhes parece mais útil ler um livro, se interessar de forma aprofun-
dada por um assunto, se uma resposta imediata e pronta está disponí-
vel. É inútil recorrer à memória, pois basta recorrer à Wikipedia ou ao
Google. Crianças fixadas diariamente durante horas em frente às telas,
sem educação parental à imagem, e sem outra mediação, correm riscos
de retardo cognitivo, de problemas de atenção, de impulsividade etc. A
média estando em torno de seis horas e meia para meninos e de cinco
horas e meia para meninas.

46
Essa imersão nas diferentes tecnologias de informação e de comu-
nicação modifica profundamente as estruturas cognitivas das gerações
mais jovens que com elas cresceram (Biagini, 2012, p. 103). Os profes-
sores são confrontados com a dificuldade das gerações mais jovens de
ler e de se apropriar de um texto, apreender sua linearidade, sua abran-
gência. Elas não incorporaram a paciência e a atenção necessárias à
compreensão. Elas são confundidas por uma leitura que não mobiliza
uma atenção permanente à tela para responder às múltiplas solicitações:
apreender uma ligação, uma mensagem que aparece no canto da tela,
um vídeo que pisca em outro lugar e uma mensagem de atualização de
um programa.
Elas permanecem na superficialidade e, portanto, vulneráveis ​​às
opiniões prontas, aos rumores; elas não estão acostumadas a questionar
a argumentação de um texto, sua plausibilidade, sua proveniência... Fal-
tam-lhes os códigos de leitura, parasitados pelos hábitos de leitura das
telas. O texto digital, começando pelas inúmeras mensagens que elas
trocam via telefones celulares, é simples, rápido, e traz um sentimen-
to de evidência sem esforço particular de apropriação. Ele é propício
à velocidade, ao zapping. Se as diferentes telas encorajam a dispersão
cognitiva, o livro aparece em contraponto como uma fonte de tédio, que
vem romper com a hiperatividade digital por causa da sua lentidão, da
interioridade que sua leitura implica, do mergulho num universo ima-
ginário que faz apelo ao se deixar levar... As tecnologias de informação
e de comunicação formatam a percepção do mundo. Elas forçam a sa-
turação dos sentidos através do fluxo de mensagens que não param de
chegar, da música que flui como uma torneira de seu smartphone ou
dos locais de sociabilidade que elas frequentam, da necessidade de ter
os olhos em toda a tela na consulta de um site web.
A leitura de uma página na internet exige uma mobilização per-
manente mas estéril para apreender a multitude das informações apre-
sentadas, para triar a publicidade, para identificar os riscos de um clique
suscetível de acarretar uma série de problemas para voltar atrás, para
escolher os dados procurados na loucura dos que são apresentados. O
usuário geralmente experimenta uma sensação de saturação e de rai-

47
va por ter que remover o vídeo de uma publicidade, um anúncio. Seja
qual for sua vontade, ele é pego num zapping permanente. Não se tra-
ta mais de ler, mas de decodificação das informações, recuperando seu
valor num estado permanente de alerta. É impossível investir, de fato,
numa tarefa, pois, tecnicamente, a tela requer um borboleteamento e
exige uma triagem no fluxo de informações para reter algumas delas. O
jovem está num zapping permanente, ele nunca está completamente lá
onde se acredita, mas simultaneamente ele não está em nenhum lugar,
portanto sua presença é sempre diluída. O tempo não é mais do que
uma sucessão de instantes. Mas esse tipo de ubiquidade criada pela tec-
nologia distancia do que está próximo, de tal modo que a presença se di-
lui em todos os domínios nos quais ela pretende estar. Daí a dificuldade
de concentração dos alunos, muitas vezes apontada pelos professores.
Compreende-se o quanto a interioridade é aos seus olhos um abismo e
a lentidão um anacronismo insuportável.
Nos últimos anos, a noção de dependência logrou um sucesso
ainda mais interesseiro quando toda rotulação, nesse sentido, implica
o recurso a uma farmacopeia específica. Mas falar de dependência ou
de vício é sempre um julgamento de valor, pois a dependência é uma
condição da condição humana, ela impregna a existência cotidiana de
todos. Ninguém fala de vício para evocar a atitude dos torcedores de
futebol, por exemplo. Seu sucesso midiático ou psiquiátrico traduz a
medicalização de nossas sociedades, o uso crescente de um vocabulário
patológico para evocar muitos comportamentos. Falar de ciberdepen-
dência das gerações mais jovens tem ainda menos pertinência, uma vez
que elas estão em plena incompletude, em busca de si, num momento
da vida em que tudo muda permanentemente conforme os encontros,
os acontecimentos. O superinvestimento das redes sociais ou dos jogos
de videogame num adolescente não é uma patologia e isso não precisa
ser tratado, mas principalmente acompanhado. O jovem cuida de suas
feridas, de suas fragilidades, de sua dificuldade em elaborar sentidos, de
sua solidão ou de seu tédio. É difícil para o jovem limitar-se em si mes-
mo. A devoração de sua existência pelo virtual, se ela hipoteca seu futu-
ro ou induz um sofrimento, exige um cuidado em termos de acompa-

48
nhamento, de educação, de psicoterapia para ajudar o jovem a encontrar
seu livre-arbítrio, mas sobretudo a povoar seu universo de significados
e de valores. A tarefa dos professores é essencial para isso, ela consiste
em ensinar a criança a se mover nessa imensa biblioteca sem pensar que
isso vai substituir sua memória ou suas atividades da vida cotidiana.
As jovens gerações precisam de guias para ajudá-las a se apropriar das
ferramentas sem se perder.

5 Num momento em que os projetos de democratização mais


clássicos, voltados à modernização dos Estados contempo-
râneos, são postos em dúvida, novas questões/orientações/
recomendações têm sido apresentadas aos professores, pesquisadores
e administradores sugerindo outras abordagens teóricas. Como os so-
ciólogos têm se colocado, por exemplo, em relação à reintrodução da
discussão sobre justiça? Como os sociólogos podem enfrentar um dos
grandes – e velhos – problemas que afetam nossas sociedades: o en-
trecruzamento entre desigualdades sociais e desigualdades escolares?
Como atuar na Escola e na Universidade sem se deixar levar pelas prá-
ticas de dominação e de reprodução, naturalizadas em suas estruturas e
em suas próprias representações?
Le Breton. Cada vez menos conduzido por regulações coletivas,
o indivíduo está condenado à iniciativa, a encontrar em si as possibi-
lidades de sentido para permanecer ator de sua existência. Os grandes
relatos que ainda orientavam há alguns anos as existências individuais
e coletivas se disseminam na abundância das pequenas narrativas que
cada um elabora sobre si. A ambição consiste desde então em se tornar
si mesmo. O indivíduo moderno não é mais um herdeiro, ele não está
mais vinculado a uma origem ou filiação, ele tem suas raízes unicamente
na sua experiência pessoal. Ele se institui por si mesmo, certamente sob
a influência dos outros, pois ele sempre está imbricado na trama social,
com uma margem de manobra que lhe cabe construir, ele não escapa
às imposições da civilidade, à sua condição social e cultural e ao seu
meio, e notadamente às ofertas abundantes do mercado. Há trinta anos,
a preocupação ainda era mudar a vida, ela consiste hoje em mudar seu

49
corpo. Virada narcisista que traduz a crescente individualização de nos-
sas sociedades. Certamente eles podem “se comunicar” provisoriamen-
te em torno de uma emoção (Je suis Charlie), mas não por muito tempo.
Um arquipélago de indivíduos se encontra por um momento, antes que
cada um retome seu próprio caminho.

6 Fala-se com frequência hoje das múltiplas figuras da violên-


cia (de macroviolências, de violências sutis, brandas, sim-
bólicas), da indisciplina, da injustiça, como se se tratasse de
um fenômeno novo. Como a sociologia está enfrentando esse debate,
que parece atravessado por interesses políticos e econômicos mesclados
a interesses religiosos? Como os sociólogos têm abordado a questão da
discriminação, das minorias, do nacionalismo, da laicidade? Como evi-
tar o esfacelamento do social sem ferir as singularidades?
Le Breton. Com certeza, é importante interrogar as formas de vio-
lência. Dizer que um jovem é “violento” é um julgamento de valor que
não tem muito sentido se a situação global de seus comportamentos
não for levada em consideração. Ele talvez tenha uma boa razão para se
defender dos outros alunos, ou mesmo do desprezo de um professor por
ele. A noção de violência é sempre uma relação. Ela não é uma natureza,
mas um julgamento. Em que situação familiar ou institucional pessoal
ele está imerso; quem formula esse julgamento de violência sobre ele e
em que contexto particular.
Nossa tarefa de professor, de adulto, de pai, de vizinho é lembrar
certo número de quadros, de limites, e fazê-lo com amizade, não enfren-
tando o jovem frontalmente dizendo-lhe “não faça isso”, mas encontran-
do as palavras para dizê-lo, as quais são únicas a cada vez. É claro que os
jovens que têm esses comportamentos violentos ou de incivilidade não
encontram em sua família um quadro que lhes permita reconhecer os
limites e os outros. O paradoxo evidentemente é que se trata de jovens
que sempre têm a sensação de não estarem sendo respeitados e que sem-
pre têm na boca os termos de respeito, mas que não compreendem que é
respeitando os outros que entrarão, por sua vez, numa lógica de respeito

50
próprio. Mas, a questão é complicada. Não há outra maneira de respon-
der, senão tentando resistir e funcionar como um “recipiente”, lembran-
do da igual dignidade dos homens, das mulheres que estão nos lugares,
na sala de aula, no anfiteatro, no ônibus, na biblioteca... mas, por outro
lado, jamais pegar um chicote e dizer ao jovem “escute, pare com isso”:
essa é a resposta em espelho que provocará a violência e, ao mesmo tem-
po, reforçará a convicção do jovem de que ninguém lhe quer.
Às vezes é preciso ter muita astúcia para encontrar as palavras
que desarmem a situação com o sorriso e da qual cada um saia com a
sensação de que algo formidável aconteceu, que o encontro ocorreu...
Existem inumeras técnicas, que são frequentemente utilizadas atual-
mente por profissionais do serviço social, mas não apenas. Penso na
importância do teatro. Lembro-me do belo filme de Abdellatif Kechi-
che, L’esquive, por exemplo. Existem professores, animadores, que fa-
zem o jovem viver o teatro como uma maneira de se desprender de si
mesmo, de encenar personagens, de relativizar quem se é. Achei o filme
Kechiche magnífico. Nele, se vê crianças que crescem num bairro popu-
lar, crianças entrando na língua de Marivaux, que os tornam absoluta-
mente irreconhecíveis de um momento para o outro. Eles se interpelam
entre si com essas palavras cortantes, com um vocabulário limitado e
com uma língua desconstruída e, de repente, quando entram na peça
de Marivaux, eles falam um francês incrívelmente perfeito, eles falam
suavemente, eles se escutam. Aí se vê esse fabuloso processo de trans-
formação de si, de domesticação igualmente da fúria que existe em si e
que de repente encontra um quadro, encontra a beleza de uma língua.
Evidentemente também existem artes marciais, boxe, a utilização
da viagem e ações humanitárias que possibilitam ir edificar escolas em
uma sociedade africana ou alhures; a utilização do esporte “de risco”,
como a canoagem, o trekking, o alpinismo, a escalada... Um trabalho ab-
solutamente extraordinário é realizado nesse sentido em vários bairros
populares ou com jovens que estão em estado de grandes sofrimentos
afetivos; experiências que são realizadas por professores, assistentes so-
ciais ou animadores, que têm um impacto absolutamente maravilhoso
no aumento da autoestima desses jovens, fazendo-os sentir que sua vida

51
vale a pena ser vivida, criando neles igualmente o amor pela literatura, o
amor pelo encontro com o outro, fazendo com que descubram a amiza-
de, o fato de fazer coisas juntos... A escrita também parece ser um passo
formidável para dar sentido à sua história. É preciso haver mais recur-
sos, evidentemente, para colocar em prática todas essas experiências
em vários lugares e atingir muitos jovens que estão em grande estado
de angústia afetiva, e isso é possível. Evidentemente, é preciso vontade
política para apoiar associações, para apoiar iniciativas individuais ou
coletivas e, é claro, é preciso adultos que assumam com o coração essas
ações, porque se se as faz banalmente ou para realizar uma tarefa, elas
não têm sentido. De qualquer modo, se não se envolve pessoalmente,
não há nenhum impacto sobre os jovens.

7 Observa-se atualmente um debate, bastante acalorado, acer-


ca do aumento e da diversificação das obrigações impostas
aos professores/pesquisadores, o que estaria criando obstá-
culos ao avanço da ciência. Como o engajamento na pesquisa de pro-
fessores tem sido administrado na França e no quadro da Comunidade
Europeia? Como os sociólogos franceses têm se posicionado a esse res-
peito? A sobrevivência do intelectual, nas suas mais diversas concep-
ções, estaria ameaçada? O que se espera do intelectual face aos novos
desafios impostos à produção científica?
Le Breton. Estamos cada vez menos juntos, mas cada vez mais
lado a lado. As incivilidades, que nem sempre são intencionais, são o
sintoma disso. O liberalismo que penetra no tecido social transforma a
ligação social em relação de concorrência. Entramos no tempo do des-
prezo. Dar sentido e valor para a própria existência cabe agora ao indi-
víduo. Não somos mais dependentes de tradições, de caminhos com-
pletamente traçados. O mundo do consumo se impõe a cada um como
o único valor, o único horizonte. Se soubermos ser artesãos de nossas
existências, possuiremos em nós o gosto de viver e sem dúvida também
a vontade de mudar o mundo para torná-lo mais propício. Mas para
muitos viver é um peso, eles se banham não na profusão das possibili-
dades, mas no colapso do sentido, no sentimento de exclusão. Vivemos

52
menos um individualismo da liberdade do que um individualismo da
mercadoria que fragmenta os laços sociais e provoca o ressentimento
daqueles que são mantidos à margem. Somos livres como consumidores
e não como cidadãos. Não se trata da mundialização dos homens, mas
a do mercado.
Vivemos atualmente um fundamentalismo econômico que subor-
dina o mundo, uma religião laica que se impõe às sociedades humanas
do planeta inteiro, uma nova forma de colonização sutil, mas brutal em
suas consequências. Repete-se à exaustão que não há mais escolha. A re-
dução do homem à mercadoria ou ao consumo, a preocupação obsessiva
com o lucro, a rentabilidade, a eficiência, a comunicação, a velocidade
perturba profundamente os modos de pensar e de sentir das sociedades
humanas. A liberação das mercadorias é feita em detrimento dos ho-
mens. As elites mundializadas estão longe dos centros locais de tomada
de decisão política, social. Escapando das restrições da territorialidade,
elas também escapam da responsabilidade. Os lugares do poder finan-
ceiro ou econômico que governam a qualidade de nossas existências es-
tão desterritorializados e totalmente indiferentes à sorte dos indivíduos
para os quais eles encarnam o destino. O ganho econômico se torna um
fim absoluto. O divórcio entre política e economia é radical; a primeira,
tendo somente uma função residual de regulação, procura acompanhar
com algumas medidas sociais os movimentos impostos pela última. A
política mostra claramente o seu cinismo. Ela não fala mais de visão de
mundo, mas de custos. A preocupação contábil toma o lugar da política.
O mercado-mundo não é a humanidade-mundo, ele chega a ser
sua antítese. A mundialização não supõe ligar homens sob a égide da
curiosidade, do conhecimento, do encontro, da igual dignidade. A
mundialização é uma bela palavra para nomear habilmente uma rea-
lidade mais sórdida de colonização dos espíritos e dos mundos, sua
padronização estando sob a égide da comunicação, da mercadoria. A
preocupação das populações é colocada na melhor das hipóteses num
estudo próximo de marketing.
A liberalização planetária das trocas e dos movimentos de capitais
tem como preço o empobrecimento de uma grande parte da população

53
mundial. E a precarização crescente de uma minoria considerável da
população ocidental, confrontada com o afluxo daqueles que fogem da
miséria ou do terror que reina no seu país de origem.
Como Margaret Mead pensava nos anos 1970 para os Estados Uni-
dos, todos nós nos tornamos migrantes no tempo através da nomadiza-
ção do sentido que nos esforçamos para seguir ao extremo. A falta de
enraizamento do sentido engendra a desilusão, a falta de perspectiva. Os
valores que nos governam são os do mercado: a comunicação (contra
a palavra), a urgência (contra o passo do homem), a eficácia (contra o
florescimento de si no trabalho), a utilidade (contra o dom, a gratuida-
de), o dinheiro (contra o tempo), a competição (contra a sociabilidade),
o custo de vida (contra o gosto de viver). Esses não são valores de de-
senvolvimento ou de estreitamento da ligação social, mas uma corrida
penosa, no decorrer da qual o outro além de si é um cúmplice ou um
obstáculo; provisório, certamente, uma vez que os dados se invertem
facilmente. A obsolescência da mercadoria se tornou a da própria so-
ciedade, mas também a do homem, agora descartável como os outros
objetos. Obsolescência do próprio corpo, percebido por alguns como
insuficiente nesse contexto de competição e que convém ser afinado.
A promessa do incerto sobre o provável impede de se projetar um
futuro previsível e feliz. Ninguém sabe mais para onde está indo. A so-
ciedade tende a se resumir a um sistema de competição generalizado;
é recorrente falar de “reciclagem” permanente ou explicar que, a partir
de agora, será necessário que cada assalariado mude várias vezes de tra-
balho ao longo de sua existência. As fronteiras entre o lícito e o ilícito,
aquelas dos limites (de sentido), se desintegram. Elas são vividas mais
como obstáculos ao desenvolvimento pessoal. O que importa é saber
se se pode transgredi-las sem danos. Quanto à violência tão frequen-
temente denunciada nas nossas sociedades, esquece-se que o mais te-
mível vem do próprio mercado, dessa falta de escrúpulos em matéria
de ganho, que leva ao fechamento de empresas, apesar de rentáveis, na
perspectiva de melhores benefícios alhures.
Aparentemente, a mundialização reduz as distâncias, mas, longe
de conjugar as culturas, ela as suprime e leva, de fato, à americanização

54
do mundo ou ao empobrecimento dos sistemas simbólicos. Se o distan-
te está ao alcance da mão, o próximo se afasta e se torna estrangeiro. A
erosão das diferenças induz a resposta social da crispação sobre iden-
tidades de ressentimento irrisórias, mas mortais (comunitarismo, fun-
damentalismo religioso, racismo etc.). A falta permanente de sentido,
a desilusão das sociedades, a fragmentação da ligação social, a inquie-
tação que pesa sobre as existências cotidianas de muitos indivíduos, a
ausência de referências e de valores que podem recuperar a sociabilida-
de empurram os homens para uma demanda de segurança que contém
todos os perigos. O ódio ao diferente, a todas as formas de alteridade,
cresce de maneira vertiginosa, alimentando a nostalgia de um “nós”. Os
privilegiados devem se afastar da vida comum, se barricar em um entre-
-si para se proteger de uma violência, de uma delinquência da qual eles
são os principais propagadores, como mestres do dinheiro e do sentido.
Bairros com acesso meticulosamente controlado por vigias são cons-
truídos em muitas cidades de países ricos ou pobres. Não se trata mais
de se proteger de “hordas selvagens”, mas de outros cidadãos percebidos
como indignos e perigosos, os mesmos que o sistema marginaliza.
A elaboração de um gosto de viver que possa ser compartilhado
por todos, independentemente do estilo de sua relação com o mundo,
deve ser o imperativo primeiro de toda sociedade humana. Uma harmo-
nia das diferenças, que dê a cada um o sentimento de sua necessidade
interior e o júbilo de dela fazer parte. A mundialização, ao deixar de ser
a propagação de uma humanidade plural governada pelo mesmo sen-
timento de pertencimento e de dignidade, não é senão uma farsa eco-
nômica a serviço daqueles que possuem o dinheiro e querem aumentar
sua margem de lucro. Ela é (por enquanto?) o inimigo da humanidade
e toma o meio como fim, ou seja, os homens como meros veículos da
economia, ela já não faz mais da economia o meio dos homens. Mas ela
é uma bomba-relógio que divide a humanidade em necessitados e em
miseráveis; ela prepara um despertar doloroso, difundindo o ressenti-
mento em todos os lugares. Devemos inventar alternativas para sairmos
desse fundamentalismo que acredita na salvação pelo mercado. Para re-
tomar a fórmula de Gramsci, o pessimismo da inteligência jamais deve

55
desarmar o otimismo do coração e da vontade. A única mundialização
pensável seria a dos homens, e seu lema seriam as palavras de Miguel
Torga, para quem o mundo “é minha aldeia menos os muros”.
A sociologia se renova diante das profundas transformações da li-
gação social, mas sua imaginação epistemológica ou metodológica não
vacila. As análises contemporâneas são abundantes hoje. E a mundia-
lização impõe, além disso, intercâmbios entre sociólogos de diferentes
países. As obras são atualmente mais facilmente traduzidas do que ou-
trora e os deslocamentos, os intercâmbios, são contínuos e solicitam
mesmo hoje aos estudantes um modo que minha geração jamais teria
sonhado. As transformações sociais dessas últimas décadas tornaram
caducas as sociologias de inspiração marxista ou neomarxista; a noção
de habitus devendo ser problematizada a fim de apreender a fragmenta-
ção do social para levar em conta a reflexividade do ator, a “destradicio-
nalização”, a dissolução das instituições, a estandardização do trabalho,
a emergência de uma população “descartável” de refugiados, de sem-
-documentos produzidos por uma série de fatores ligados à globaliza-
ção, a morte como forma de reconhecimento de si no jihadismo etc.
O individualismo contemporâneo traduz o fato para que o sujeito
se defina através de suas próprias referências. Ele não é mais pautado
por regulações coletivas externas a ele, mas é forçado à iniciativa, a en-
contrar em si os recursos do sentido para permanecer ator de sua exis-
tência. A ambição consiste então em se tornar si mesmo. Isso não signi-
fica que o ator não tenha importância e que pare de obedecer às lógicas
sociais, mas que ele deve respondê-las segundo as modulações de seu
estilo próprio. O indivíduo moderno não é mais um herdeiro, no senti-
do de uma transmissão do habitus através de uma socialização familiar.
Ele não depende mais de um caminho já traçado, ele não entra mais na
carreira quando seus antecedentes não estão mais lá, segundo as pala-
vras da marselhesa. O indivíduo moderno não está mais determinado
por uma origem ou uma filiação, suas raízes estão unicamente na expe-
riência pessoal. Suas referências são aquelas que ele escolhe. Ele estabe-
lece por si só os laços que satisfazem ao sentimento de si, abandonando
os outros lá onde ele se reconhece menos. Cabe a ele se estabelecer por si

56
mesmo, certamente sob a influência dos outros e, particularmente, sob
a força do mercado, mas com uma margem de manobra que lhe cabe
construir. Sua liberdade não é uma escolha, mas uma obrigação, uma
vez que toda tutela desaparece e ele é o principal artesão de sua existên-
cia. Ele se torna um ator em busca de uma bricolagem identitária que
pertence somente a ele e não mais um agente movido por um habitus de
classe que o tornaria, de imediato, culturalmente dependente do passa-
do. De modo geral, a existência se torna permanentemente um dilema
identitário a ser resolvido.

8 O debate sobre o papel dos intelectuais, e em particular dos


sociólogos, ganha força no Brasil, tornando-se ainda mais
efervescente nos momentos crise. O que se pode esperar
desses profissionais quando eles se confrontam com interesses econô-
micos e políticos que se opõem às lutas pela superação de desigualdades
sociais crônicas? Como a sociologia poderia se tornar acessível a todos
os indivíduos sem perder de vista seu caráter científico ou, mais precisa-
mente, o rigor teórico-metodológico que a define como ciência?
Le Breton. No final dos anos 1980, comecei minhas pesquisas so-
bre os sofrimentos de adolescentes e suas consequências, partindo de
dois princípios fundadores da antropologia: nada do que seja humano
me é estrageiro, e é preciso de tudo para fazer um mundo. Eu mesmo ti-
nha passado por esses comportamentos quando era mais jovem e ainda
me restam o espanto e a culpa por ter sobrevivido enquanto alguns dos
meus amigos daquela época não estão mais aqui. Esses comportamen-
tos faziam sentido e era preciso compreendê-los com as ferramentas das
ciências sociais, de um ângulo radicalmente diferente do psicanalítico,
mas sem rejeitar completamente a contribuição da psicanálise. Certas
noções da psicanálise possuem uma pertinência antropológica, ainda
que não sejam facilmente transferíveis. O propósito não é fazer contra-
bando de elementos de análise nas ciências sociais vindos de alhures,
mas debater com elas.
Além disso, também se trata de escrever para mudar as coisas. Não
como militante, mas justamente como ilimitante, ou seja, recusando os

57
limites do sentido e lembrando aos leitores que sempre somos os arte-
sãos do sentido com o qual vivemos. Não há nada além do sentido no
mundo que nos rodeia. Redefinem-se permanentemente nossas existên-
cias. Citando Rilke: “Estamos em algum lugar no inacabado.” O mundo
sempre está inacabado diante de nós. Aliás, é isso o que sempre digo
a pessoas um pouco perdidas, que se queixam que a vida vai mal etc.
Nada nos é totalmente imposto. Nós sempre temos escolha. O pior nun-
ca está lá. Ao trabalhar com a dor, penso em pessoas que foram tortura-
das e nunca denunciaram ninguém, retomando uma vida quase normal
ao sair da prisão. Essas pessoas se orgulham de ter resistido. Cada um
inventa um escudo de sentido que um carrasco jamais poderá penetrar.
Depois de atravessar o deserto, existe renascimento possível. Essa é um
pouco a minha história. Jamais se perde, salvo se se acampar numa po-
sição de vítima. É preciso transformar o infortúnio em chance, como
uma transformação alquímica. O caminho da nossa vida é o que se faz
dela. Mesmo que isso demore anos. Além disso, percebo que os jovens
que experimentaram condutas de risco e que se saem bem são muito
mais fortes e inventivos depois. Eles se confrontaram com o sofrimento
e sabem que a vida é um bem precioso. Muitas vezes eles se engajam
num caminho de transmissão a outros com o sentimento de uma dívida
a ser paga: eu não quero que o outro caia como eu, quero devolver o que
aprendi ou o que os outros me ensinaram.
Trabalhar com os sofrimentos do ingresso na vida ou com a dor
de um ponto de vista estritamente sociológico exigiria limitar o olhar a
uma influência social muitas vezes desmentida pelo campo e pelo en-
contro com os atores. A relação social é uma configuração de sentido
encenada pelos atores, que frequentemente leva a resultados inespera-
dos tanto para uns quanto para outros, mas jamais aleatórios. O ator não
se reduz ao seu discurso, mesmo oferecendo um ensino precioso sobre a
maneira como ele vive (ou pretende viver) um acontecimento. Seu pro-
pósito não é uma fixação residencial, pois, além do fato de que ninguém
é transparente a si mesmo, as lógicas individuais se enlaçam em lógicas
sociais e/ou antropológicas que vão além da sua reflexividade. A ação
de um indivíduo jamais é unívoca, ela repousa sobre múltiplos objetivos

58
e significados que, às vezes, lhe escapam. Ela às vezes se prende a uma
ambivalência, a uma contradição, da mesma maneira que um indivíduo
não é redutível ao cogito, mas a um emaranhado de pensamentos, nem
todos alcançados por sua inteligibilidade.
Outras lógicas lhe escapam. Apreender o sentido das ações exige,
portanto, considerar a heterogeneidade das lógicas de ação que o ator
levou em consideração, aquelas que ele hierarquizou, organizou para
decidir sua ação. Mas o sentido de seus atos não é transparente ao seu
próprio olhar. Outros dados vêm se entrelaçar, a começar pela trama das
circunstâncias (o olhar dos outros, a concorrência das circunstâncias),
as razões afetivas que às vezes ultrapassam sua lucidez e fazem parte de
sua história singular. As razões afetivas são frequentemente as primei-
ras, especialmente num jovem que vive mais à flor da pele que um adul-
to, este mais inclinado a medir seus gestos. O mundo sensível se entrega
ao homem como uma inesgotável virtualidade de significados. O sen-
tido não está nas coisas, ele se instaura na relação do ator com as coisas
e nos debates travados com os outros visando sua definição; a projeção
do sentido é uma atividade social e individual que às vezes encontra a
resistência do mundo ou a de outros membros da sociedade. A profu-
são do mundo não se equivale à profusão de nossas análises. A análise
sempre está em dívida. Ela fracassa ao tentar se apropriar de tudo e essa
é sua chance. Muitos retomam alguns anos mais tarde campos dos quais
acreditaram ter dado conta sem experimentar o sentimento de estar em
débito com seu objeto. Não apenas as situações mudam, os sociólogos
também.

59
Martine Plard-Derivry responde

1
A sociologia tem como uma de suas principais razões de exis-
tir a análise do contexto social vivido pelos indivíduos, o que
supõe o diálogo permanente com outras ciências, particu-
larmente com a história. Em que medida os estudos sociológicos − ou
uma sociologia histórica − podem contribuir para que os indivíduos se
situem criticamente no seu espaço e tempo, compreendam seus modos
de pensar e de agir, interfiram nas práticas sociais cristalizadas ao longo
dos tempos e coloquem em perspectiva novas formas de se relacionar
com o mundo e com outrem?
Martine Plard-Derivry. A história é indispensável à compreen-
são do presente e a sociologia, em seus questionamentos, não pode ser
realizada sem a dimensão histórica. Além disso, na França, nós temos
como disciplina escolar a história-geografia, pois consideramos que a
história não pode se separar do espaço e vice-versa. A história social é
realmente um espaço-tempo... Por essa razão, a dificuldade está em con-
seguir descrever essas duas dimensões, mostrando que elas fazem parte
de uma mesma dinâmica: existe sedimentação e não sedimentação dos
espaços-tempos em nossas práticas atuais.

2
A sociologia francesa tem se constituído como uma impor-
tante referência para a compreensão de universos sociais di-
versos e, particularmente, para a percepção e o entendimen-
to dos interesses e apostas que orientam o mundo escolar. Isso tem sido
possibilitado pela importante circulação internacional de obras clás-
sicas e contemporâneas de sociólogos pertencentes a diferentes abor-
dagens teóricas. A que riscos e ganhos a sociologia, enquanto ciência,
se submete ao ser difundida em universos muitas vezes pautados em
tradições históricas e culturais distintas ou, até mesmo, contraditórias?

60
A partir de quais argumentos é possível redefinir, reafirmar ou refutar
concepções sociológicas, tendo como parâmetro pesquisas produzidas
em outros universos? Que desafios se impõem aos sociólogos que de-
sejam ampliar sua interação com colegas de outros universos acadêmi-
cos? O que os sociólogos podem esperar da internacionalização no que
concerne ao avanço da ciência em geral e da sociologia em particular?
Plard-Derivry. Volto ao sociólogo Pierre Bourdieu sobre a circu-
lação internacional das ideias e consequentemente da ciência. Na medi-
da em que as ciências sociais estão de fato “localizadas” se comparadas
às ciências “duras”, é necessário trabalhar no campo internacional das
ciências sociais, no campo da sociologia, da sociologia da educação e
das ciências da educação. Esses diferentes campos foram construídos de
distintas maneiras segundo os países e sua história. Consequentemente,
a produção dos conceitos e das noções deve estar relacionada a essas
condições de produção e de recepção, não somente em nível local, mas
também em nível internacional. Coloca-se e acrescenta-se a essas ques-
tões sociológicas a circulação das línguas e das traduções nas inter-re-
lações entre o local e o internacional. Essas questões são essenciais para
objetivar as condições sociais da produção em ciências sociais.

3
A sociologia contemporânea tem ampliado sua esfera de
atuação, a exemplo de outras disciplinas, muitas vezes por
meio da especialização. Estaria ela correndo o risco de se
fragmentar e de perder de vista sua base comum de sustentação ou, ao
contrário, a especialização teria vindo para fortalecer sua posição cien-
tífica? A leitura de clássicos, passados mais de um século desde a institu-
cionalização da sociologia na França, ainda se mostra pertinente?
R. A especialização é um movimento que me parece evidente,
pois responde à acumulação dos conhecimentos. Contudo, essa
especialização deve estar acompanhada por uma base generalista dos
clássicos da sociologia a fim de poder popularizar, numa perspectiva
mais geral, os resultados das pesquisas e dos estudos especializados.
Na ausência desse duplo movimento, a hiperespecialização conduz os

61
especialistas a uma torre de marfim e ao diálogo interespecialistas, os
quais passam a não estabelecer mais comunicação com a sociedade ci-
vil, o que seria ridículo face ao próprio objeto da sociologia, pois este
supõe compreender os fatos sociais e, assim, permitir aos agentes ou
atores sociais agir com mais discernimento, se tornarem mais livres nas
suas escolhas uma vez que conhecem melhor os determinismos.

4 Mudanças profundas e sucessivas nas formas de comunica-


ção têm posto à prova as instituições clássicas de acesso aos
múltiplos tipos de conhecimento. Estaria a Escola, preconi-
zada pelos projetos de modernidade, perdendo seu lugar na socialização
das novas gerações? Que objetivo é atribuído à Universidade no que
concerne à formação profissional hoje? Como essas duas instituições
(Escola e Universidade) poderão fazer face à velocidade da informação?
Que tipo de relação o sociólogo, mas também os demais intelectuais,
pode estabelecer com os meios midiáticos?
Plard-Derivry. A escola e a universidade perderam a exclusi-
vidade do acesso aos conhecimentos com as novas mídias e as novas
tecnologias, pois permitem a todos adquirir conhecimentos e propor
conhecimentos. Contudo, essas duas instituições não perderam sua le-
gitimidade quando se trata da validação dos conhecimentos e esse me
parece ser o grande desafio do século XXI. Pois, para isso, é preciso ficar
atento para não acompanhar o movimento de desvalorização dos di-
plomas, zelando pela democratização da educação; é preciso permitir
que cada um obtenha diplomas e certificações precisamente definidos
e validados.

5
Num momento em que os projetos de democratização mais
clássicos, voltados à modernização dos Estados contempo-
râneos, são postos em dúvida, novas questões/orientações/
recomendações têm sido apresentadas aos professores, pesquisadores
e administradores, sugerindo outras abordagens teóricas. Como os so-
ciólogos têm se colocado, por exemplo, em relação à reintrodução da
discussão sobre justiça? Como os sociólogos podem enfrentar um dos

62
grandes – e velhos – problemas que afetam nossas sociedades: o en-
trecruzamento entre desigualdades sociais e desigualdades escolares?
Como atuar na Escola e na Universidade sem se deixar levar pelas prá-
ticas de dominação e de reprodução, naturalizadas em suas estruturas e
em suas próprias representações?
Plard-Derivry. Eu não tenho muitos elementos para responder a
este problema recorrente entre desigualdades sociais e desigualdades
escolares, exceto que a escola e a universidade deveriam constituir-se
em um contrapoder contra as desigualdades sociais. Parece-me que o
debate no âmbito da escola centra-se principalmente nas relações com
o Estado, enquanto que no ensino superior o debate se torna cada vez
mais internacional. Quais são as instâncias internacionais que assumem
hoje esse debate das desigualdades sociais e econômicas no mundo? A
Unesco? A OCDE?

6
Fala-se com frequência hoje das múltiplas figuras da vio-
lência (de macroviolências, de violências sutis, brandas,
simbólicas), da indisciplina, da injustiça, como se se tra-
tasse de um fenômeno novo. Como a sociologia está enfrentando esse
debate, que parece atravessado por interesses políticos e econômicos
mesclados a interesses religiosos? Como os sociólogos têm abordado a
questão da discriminação, das minorias, do nacionalismo, da laicidade?
Como evitar o esfacelamento do social sem ferir as singularidades?
Plard-Derivry. Penso que a sociologia se confronta com um dis-
curso internacional, pois os problemas mundiais penetram o local e in-
versamente. Isso coloca a questão da popularização da sociologia em
vários níveis de discurso, o que chama a atenção da sociedade civil in-
ternacional. A sociologia é um esporte de combate, as singularidades
podem ser tanto reconhecidas, valorizadas e promovidas pela sociolo-
gia quanto combatidas. O discurso sociológico sempre deve estar fun-
dado em estudos ou pesquisas empíricas, em sínteses desses estudos, e
não pode comparar-se aos discursos de uma sociologia espontânea feita
por qualquer um.

63
7
Observa-se atualmente um debate, bastante acalorado, acer-
ca do aumento e da diversificação das obrigações impostas
aos professores/pesquisadores, o que estaria criando obstá-
culos ao avanço da ciência. Como o engajamento na pesquisa de pro-
fessores tem sido administrado na França e no quadro da Comunidade
Europeia? Como os sociólogos franceses têm se posicionado a esse res-
peito? A sobrevivência do intelecual, nas suas mais diversas concepções,
estaria ameaçada? O que se espera do intelectual face aos novos desafios
impostos à produção científica?
Plard-Derivry. A internacionalização do ensino superior e da
pesquisa permite uma circulação mais rápida dos conhecimentos, mas,
ao mesmo tempo, essa internacionalização parece ser levada a efeito
em detrimento da autonomia da pesquisa local e da pesquisa internacio-
nal, as quais passam a se apoiar em critérios quantitativos segundo uma
lógica neoliberal, na qual tudo se transforma em mercadoria: os cursos,
os currículos vitae, os conhecimentos, os estudantes, os professores.
Essa mercantilização internacional da pesquisa reduz tanto a autonomia
quanto a independência da pesquisa. Seria importante que houvessem
observatórios internacionais independentes para regular esse mercado
internacional do conhecimento e sobretudo os conflitos de interesses
que permitem às empresas privadas utilizar a pesquisa de acordo com
seus próprios interesses.

8
O debate sobre o papel dos intelectuais, e em particular dos
sociólogos, ganha força no Brasil, tornando-se ainda mais
efervescente nos momentos crise. O que se pode esperar
desses profissionais quando eles se confrontam com interesses econô-
micos e políticos que se opõem às lutas pela superação de desigualdades
sociais crônicas? Como a sociologia poderia se tornar acessível a todos
os indivíduos sem perder de vista seu caráter científico ou, mais precisa-
mente, o rigor teórico-metodológico que a define como ciência?
Plard-Derivry. Na França, o debate público é fomentado princi-
palmente por intelectuais midiáticos. Para difundir a reflexão de tipo

64
sociológico, retomo a ideia de Bernard Lahire, que consiste em incluir a
sociologia, assim como a filosofia, como disciplina obrigatória desde a
escola primária. Esse seria o único meio de evitar que a distância entre
os discursos dos sociólogos e os discursos midiáticos pare de crescer, de
aumentar até chegar à ausência de diálogo. Parece-me também que os
cursos de línguas, nas suas dimensões culturais e interculturais, seriam
um meio de introduzir um pouco de reflexão sociológica nas práticas de
comunicação com os outros, sejam quais forem suas posições sociais, e
isso desde a escola primária. Será que os atuais movimentos interdisci-
plinares, no nível escolar, não poderiam promover esses tipos de refle-
xões e tornar o diálogo entre sociólogos e a sociedade civil mais audível?

65
Éric Plaisance responde
[Antes de responder às questões propostas faz
observações preliminares]

Éric Plaisance. Diversas questões colocadas abordam não apenas


a dimensão científica da pesquisa, mas também, com muita frequência,
levantam a questão mais geral do papel social do pesquisador e particu-
larmente do sociólogo. De maneira mais direta e um pouco grosseira,
poder-se-ia dizer que é a utilidade da sociologia e inclusive o lugar so-
cial do sociólogo como pesquisador e cidadão que são postos em debate.
Na realidade se trata de um conjunto de interrogações que estão
longe de ser novas nas ciências sociais. Cita-se tradicionalmente a afir-
mação de Durkheim, para quem a sociologia não valeria “uma hora de
esforço se tivesse apenas um interesse especulativo” (A divisão do tra-
balho social, 1ª edição, 18933). Sabe-se também que Durkheim, fazendo
uma clara distinção entre o projeto científico da ciência da educação
(conhecimento) e as prescrições pedagógicas (ação), situava-se numa
posição ambígua junto aos republicanos da Terceira República e sobre-
tudo junto aos reformadores da escola primária gratuita, laica e obri-
gatória. É por isso que ele sustentava o lugar do professor primário na
educação moral laica no lugar do padre.
Se nos situarmos num período mais contemporâneo, também
podemos fazer referência a outro grande autor da sociologia, Norbert
Elias. Ele se interrogou sobre a maneira como os sociólogos são ou não
influenciados “por ideias e ideais preconcebidos, por paixões e peculia-
ridades do homem simples” (Engagement et distanciation, 19934). Sem
apresentar nem uma resposta peremptória nem uma solução definitiva,
ele afirma que os especialistas das ciências humanas “não podem deixar
3 DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
4 ELIAS, N. Engagement et distanciation. Contributions à la sociologie de la connaissance.
Paris: Fayard, 1993.

66
de tomar parte dos assuntos sociais e políticos de seu grupo e de sua
época (...) não podem evitar de se preocupar com eles” (Ibidem). A si-
tuação do pesquisador em ciências humanas não é a mesma do pesqui-
sador em ciências físicas, em que a distância é muito maior, entretanto,
a aplicação de métodos inspirados na objetividade das ciências físicas é
frequentemente apenas uma “fachada de distanciamento” e finalmente
um “verniz” (as expressões são do próprio Elias na tradução francesa).
Na França, os anos 1980 abriram novas pistas favoráveis à pesquisa
em ciências humanas. Não é por acaso que esses anos foram os anos
do novo poder socialista, com a presidência de François Mitterrand.
Em 1982, foi lançada uma nova lei de “orientação e de programa de
Pesquisa”, decorrente de uma ampla consulta e de assembleias que reu-
niram cerca de 20.000 pessoas provenientes de diversas áreas. Desde
então, noções foram colocadas em evidência, tais como as de “socie-
dade civil” e de “demanda social”; isso para dizer que as atividades de
pesquisa, apesar de suas especificidades, estão ancoradas na sociedade
e, num sentido mais normativo, devem levar em conta expectativas de
diferentes grupos em relação à pesquisa. Dentro desse questionamento
geral, as ciências humanas e sociais tiveram o seu lugar. Por exemplo,
o relatório do CNRS de 1982 sobre as “ciências do homem e da socie-
dade”, sob a responsabilidade do etnólogo Maurice Godelier, menciona
explicitamente as demandas sociais de conhecimento em educação. De
maneira geral, durante os anos seguintes (1980, 1990 e até a década de
2000), as orientações oficiais para a pesquisa em educação e formação
não negligenciaram as situações educacionais, os processos de aprendi-
zagem e, para dizer rapidamente, as preocupações concretas dos atores
da educação (“como aprender”, conforme havia formulado o programa
oficial dito “incitador de pesquisa”, de 2002).
De modo geral, as interrogações sobre a utilidade social da socio-
logia ressurgiram mais recentemente. Os anos 2000 suscitaram novas
reflexões, sem dúvida devido ao confrontamento com um contexto
sociopolítico bem menos favorável à pesquisa em geral e sobretudo às
ciências humanas, talvez também por causa do aumento de força de um
conjunto de procedimentos de avaliações aos quais foram submetidas

67
as unidades de pesquisa (as “agências de avaliação” tendo adquirido um
poder novo e considerável em meados dos anos 2000).
Citemos, a respeito disso, dois livros publicados durante os anos
2000: o de Bernard Lahire (2002) e o de François Dubet (2011).
O livro de Bernard Lahire é um livro coletivo, dele participam mui-
tos sociólogos visando responder à seguinte questão: “Para que serve a
sociologia?”5. Lahire resume assim o seu propósito: tratar da “questão
das condições de engajamento (de natureza política ou científica) dos
sociólogos nos debates públicos e nas lutas sociais, interrogando a fun-
ção crítica de grande parte dos trabalhos sociológicos ou analisando
formas de profissionalização do métier de sociólogo” (Lahire, 2002, p.
10).
Dentre esses textos, destaco o de Robert Castel6, que se interro-
ga, de maneira muita lúcida e pessoal, sobre a demanda social (o que
também permite trazer um elemento de resposta à questão 1, colocada
adiante, sobre a ajuda aos indivíduos). Desde que, diz ele, se concorde
com o que se chama de “demanda social” e que ele define como “o sis-
tema de expectativas da sociedade em relação a problemas cotidianos
que se solicita atualmente” (Castel, 2002, p. 70). Portanto, sem “purita-
nismo sociológico que despreza os compromissos com o século e exalta
as virtudes da pesquisa desinteressada à maneira como alguns artistas
propuseram, outrora, a arte pela arte” (p. 68). Contrária a essa posição
“a sociologia é um trabalho que se encarrega das questões sociais que
nos são solicitadas hic et nunc [de imediato] e cuja demanda social é a
expressão mais ou menos espontânea, mais ou menos confusa, mais ou
menos mascarada” (p. 72).
François Dubet propõe um livro mais pessoal, no qual apresenta
seus próprios testemunhos, na medida em que o próprio título coloca
em cena não a sociologia em geral, mas a pessoa do sociólogo como tal:
“Para que serve verdadeiramente um sociólogo?”7. A primeira resposta

5 LAHIRE, B. (Org.) À quoi sert la sociologie? Paris: La Découvert, 2002.


6 CASTEL, R. La sociologie et la réponse à la demande sociale. In: LAHIRE, B. (Org.) À
quoi sert la sociologie? Paris: La Découvert, 2002, p. 67-77.
7 DUBET, F. À quoi sert vraiment un sociologue? Paris: Armand Colin, 2011.

68
que ele fornece é também uma afirmação teórica sobre a própria noção
de sociedade: “A sociologia é útil porque as sociedades modernas não se
representam mais como realização de um projeto divino (...), as socie-
dades modernas devem construir representações de si mesmas” (Dubet,
2011, p. 7-8)
No que me diz respeito, estou cada vez mais preocupado em aliar
abordagens teóricas e metodológicas, de um lado, às preocupações so-
ciais, de outro. Sem dúvida, essa orientação foi reforçada a partir do
momento em que fui conselheiro da Ministra Ségolène Royal8 em 2001-
2002, para vislumbrar a reforma da lei de 1975 sobre as pessoas com
handicaps. Tratava-se, juntamente com dois outros colegas que exerciam
a mesma função de conselheiros e tendo um encarregado da missão
como responsável, de propor modificações nesta lei com o objetivo de
melhorar a situação das pessoas em diferentes domínios de sua vida.
Sendo encarregado, particularmente, das questões relativas à escolari-
zação, à formação profissional e ao emprego das pessoas com handicaps,
era levado a organizar com toda liberdade encontros no Ministério com
diferentes grupos ou representantes desses grupos: sindicatos, grupos
políticos, associações etc.
Estaria eu assumindo uma função de pesquisador, sendo sociólo-
go? Sem dúvida não, mas minha formação e minha atenção de sociólogo
me tornavam sensível às questões organizacionais da política e me per-
mitiam tomar distância em relação às tensões existentes não somente
entre os grupos reinvindicantes e o Ministério (ou entre esses grupos e
o governo como um todo), mas também entre os próprios ministérios
(por exemplo, entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação).
Não que essas tensões me fossem desconhecidas, mas sobretudo porque
agora eu podia vê-las de perto, com um foco privilegiado, podia medir
seus enraizamentos, às vezes sua profunidade histórica e, assim, perce-
ber os obstáculos quando se trata de uma revisão radical da lei. Essa
é quase a mesma situação vivida por François Dubet, a qual ele conta
no livro citado anteriormente. Ele assinala que fora encarregado pelo
ministro da Educação, Claude Allegre, de propor uma reforma dos colé-
8 Ministra da Família, da Infância e das Pessoas com Necessidades Especiais.

69
gios e descobrira, “provavelmente porque eu era muito ingênuo”, diz ele,
que “a lógica da política é de uma natureza completamente diferente da
lógica da sociologia. Não basta imaginar uma reforma justa, racional e
possível para convencer os atores políticos e sindicais a se aliarem, pois
não é nesses termos que a vida política é feita” (Dubet, 2011, p. 137).
Além desse período sociopolítico de 2001-2002, assumi diferen-
tes missões que aliavam explicitamente esses dois lados, o da pesquisa
e o das perspectivas de ação. Nessas pesquisas, as análises resultavam,
ou deveriam resultar, de acordo com alguns contratos de pesquisa, em
recomendações de ação postas à disposição dos atores sociais que pode-
riam eventualmente colocá-las em prática, se assim o desejassem.
Algumas pesquisas se baseavam unicamente em análises de lite-
ratura científica (não estritamente limitadas à sociologia, mas frequen-
temente abertas ao conjunto das ciências humanas), outras incluíam
pesquisas de campo. Os domínios explorados eram essencialmente: a
pequena infância, as situações de handicap (num sentido mais amplo
do que a noção controversa de “deficiência”), as evoluções da educação
dita especial em direção às novas e controversas modalidades educati-
vas, tais como a integração e a inclusão.
Essa ligação entre pesquisa e recomendações de ação suscita, por-
tanto, a questão sobre as funções do pesquisador, seja ele sociólogo ou
pesquisador em outras disciplinas, ou, mais exatamente, a questão da
articulação entre seu trabalho científico e seu trabalho de expert face
aos diferentes organismos, eles mesmos variados (agências de financia-
mento à pesquisa, organismos ministeriais, organismos associativos...
que não possuem a mesma ideia de pesquisa e do papel de pesquisador).
Face à questões sociais de uma efervescente atualidade, como situar
o trabalho científico de análise em ciências humanas? Um bom exemplo
dos debates que isso suscita é fornecido pela sociologia francesa, que se
viu, em 2015, confrontada com fortes contestações de sua legitimidade,
em ligação com os atentados terroristas que reivindicavam um Islã ra-
dical. O primeiro ministro da época, Manuel Valls, havia rejeitado com
uma rara violência retórica toda tentativa de explicação desses fenôme-
nos, confundindo-os com uma “cultura da escusa”. Dirigindo-se dire-

70
tamente ao primeiro ministro, Bernard Lahire respondeu acusando-o
de confundir explicação com justificação e acrescentou: “Todo mundo
acharia ridículo dizer que ao estudar os fenômenos climáticos os pes-
quisadores se tornavam cúmplices das tempestades mortíferas. É, no
entanto, esse o propósito que sustenta Manuel Valls a respeito das expli-
cações científicas sobre o mundo social. Não, compreender ou explicar
não é escusar. Não somos nem procuradores nem advogados de defesa
nem juízes, mas pesquisadores, e nosso métier consiste em explicar, da
maneira mais rigorosa e mais empiricamente fundada, o que se passa no
mundo social.”9 Este questionamento do trabalho sociológico de análise
levou duas associações profissionais francesas da disciplina, a AFS (As-
sociação Francesa de Sociologia) e a ASES (Associação dos Sociólogos
Professores do Ensino Superior), a pedirem ao primeiro ministro, brin-
cando com suas próprias palavras, para se explicar sobre seus propósitos
e se escusar!

1 A sociologia tem como uma de suas principais razões de exis-


tir a análise do contexto social vivido pelos indivíduos, o que
supõe o diálogo permanente com outras ciências, particu-
larmente com a história. Em que medida os estudos sociológicos − ou
uma sociologia histórica − podem contribuir para que os indivíduos se
situem criticamente no seu espaço e tempo, compreendam seus modos
de pensar e de agir, interfiram nas práticas sociais cristalizadas ao longo
dos tempos e coloquem em perspectiva novas formas de se relacionar
com o mundo e com outrem?
Plaisance. Esta vasta questão está constituída na realidade de duas
facetas bem diferentes: O diálogo com a história e as outras ciências
humanas e as relações com os indivíduos
[Primeira abordagem]
O diálogo da sociologia com a história é na verdade essencial, mas
em níveis que nem sempre coincidem exatamente com o trabalho do
historiador, que está fundamentalmente ligado ao uso sistemático dos
9 LAHIRE, B. Pour la sociologie. Et pour en finir avec une prétendue “culture de l’excuse”.
Paris: La Découverte, coll. Cahiers libres, 2016.

71
arquivos. Pode-se novamente evocar o lugar ocupado por Émile Dur-
kheim na sua célebre análise da evolução do ensino secundário na
França10 (1938), por Viviane Isambert-Jamati na análise dos discursos
de distribuição dos prêmios nos liceus11 (1970) ou, ainda, num campo
que não é mais o da educação mas o do assalariado, por Robert Castel12
(1995). Entretanto, o ponto de vista dos historiadores é frequentemente
muito crítico em relação aos trabalhos sociológicos.
Assim, o melhor representante da história da educação na França,
Antoine Prost, manifestou grandes reservas em relação à A Reprodu-
ção13 (1970) de Bourdieu e Passeron, não hesitando em escrever brutal-
mente (na revista Esprit, 1970) que se tratava de uma sociologia “esté-
ril”, voltada prioritariamente à elaboração de um sistema dos sistemas
de ensino. O mesmo autor explicita ulteriormente, e com muito mais
nuances, seu pensamento sobre as diferenças entre a leitura sociológica
e a leitura histórica das políticas educacionais14. A história é, aos seus ol-
hos, uma espécie de “pôr em intriga”, segundo a fórmula de Paul Veyne,
que envolve atores e eventos. Trata-se, diz ele, de uma história “que se
desenrola como um cenário”, nele “as datas assumem um valor eminente
de convenientes pontos de referência que sinalizam os momentos pri-
vilegiados nos quais o curso das coisas muda” (Prost, 1992, p. 222). A
sociologia é “mais determinista” na medida em que “busca as imposi-
ções, as condições, senão as determinações que envolvem a ação dos
atores”. E o autor acrescenta: “Em suma, à vontade dos atores, ele opõe a
força das coisas” (ibid., p. 223).
Mas ele também se pronuncia sobre sua proximidade com alguns
sociólogos, como Viviane Isambert-Jamati e Jean-Michel Chapoulie,

10 DURKHEIM, É. A evolução pedagógica na França. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.


11 ISAMBERT-JAMATI, V. Crises de la société, crises de l’enseignement: sociologie de l’enseig-
nement secondaire français. Paris: Presses universitaires de France, coll. “Bibliothèque de
sociologie contemporaine”, 1970.
12 CASTEL, R. Les Métamorphoses de la question sociale, une chronique du salariat. Paris:
Fayard, 1995.
13 BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema
de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
14 PROST, A. Éducation, société et politiques. Une histoire des enseignements en France de
1945 à nos jours. Paris: Seuil, 1992 et 1997.

72
este último próximo dos trabalhos dos sociólogos interacionistas ame-
ricanos e tendo adotado uma abordagem concreta e “não panorâmi-
ca” das realidades escolares. Num outro sentido, diz Prost, “a dimensão
sociológica é interior à história”, por exemplo a história dos Annales.
No final das contas, “uma análise atenta geralmente permite combinar a
história e a sociologia, a eficácia própria dos atores e a força das coisas”,
a questão levantada portanto sendo a de articular as duas abordagens e
não justapô-las (ibid., p. 231).
Quase na mesma época, num texto de 1996, eu também tentei exa-
minar a relação entre a sociologia e a história, procedendo a uma análise
crítica de A Reprodução (com o título Sociologia da Educação e História:
fechamento ou abertura?15). Eu notei que o raciocínio sobre a reprodu-
ção dos privilégios socioculturais através do sistema escolar apoiava-
se em estatísticas universitárias, portanto sobre um período de tempo
limitado a 4 anos, enquanto que a ambição da obra era oferecer uma
construção teórica generalizante das funções do sistema de ensino. Ora,
nada permitia, dado o próprio raciocínio utilizado, apreciar a ancora-
gem histórica do sistema educacional nem seus modos de constituição
nem a relatividade histórica de uma ou de outra forma de ação pedagó-
gica. Forçando uma pequena crítica, poder-se-ia parafrasear os autores
quando criticam “a ideologia universalista da escola libertadora”, uma
vez que eles desenvolviam uma teoria universalista da escola reproduto-
ra e, portanto, ignoravam as condições históricas particulares que estão
no princípio do funcionamento de tal escola.
É verdade que uma autocrítica foi desenvolvida posteriormente
por Jean-Claude Passeron16 (1991). Passeron distinguia dois elementos
na noção de reprodução: de um lado, os fenômenos de autorreprodução
da própria escola (perpetuação de uma cultura, especialização dos agen-
tes etc.); de outro, os fenômenos de reprodução social (continuidade das
estruturas de desigualdade social e cultural entre os grupos sociais). Daí
sua afirmação: “A figura funcionalmente estável deste encontro se aplica
15 LEFEBVRE B.; BAILLARGEON, N. (éds.), Histoire et sociologie. Montréal: Ed. Logiques,
1996, p. 225-243.
16 PASSERON, J.-C. O raciocínio sociológico: o espaço não-popperiano do raciocínio natural,
Petrópolis: Vozes, 1995.

73
apenas à ‘era de ouro’ da Escola burguesa (na França, final do século
XIX e primeira metade do século XX), isto é, no momento ‘orgânico’ em
que a ilusão da meritocracia escolar apresentou seu pleno rendimento
social e simbólico” (ibid., p. 91). Não haveria portanto, segundo o autor,
eliminação peremptória dos enraizamentos históricos, mas, ao contrá-
rio, chamada “à análise dos contextos que, por definição, permanecem
externos a todo modelo, ou seja, à história social da escola e à história
das relações de classe” (ibid., p. 91).
André Petitat também adotou um ponto de vista crítico sobre as
sociologias da reprodução17 (1982). Para o autor, a história constitui
“um alargamento salutar do horizonte e da problemática” (p. 21). Gra-
ças à contribuição dos dados históricos, por exemplo, sobre a constitui-
ção dos colégios do Antigo Regime, sobre as pequenas escolas de cari-
dade, sobre as escolas técnicas, se consegue mostrar que a escola não
se pauta apenas numa lógica de reprodução, mas ela também opera no
sentido de uma produção social original. É por isso que ela é “uma parte
interessada na gênese de alguns grupos sociais” e que ela contribui para
a transformação da estrutura das relações de classe (ibid., p. 464).
Além das relações da sociologia com a história, procurei expan-
dir voluntariamente para as ciências humanas e sociais, com o objetivo
de ter uma visão mais ampla que concerne, por exemplo, às aborda-
gens antropo-etnográficas, inclusive filosóficas, na medida em que os
diálogos partilhados entre os campos disciplinares, as colaborações, as
hibridações, se desenvolveram fortemente a partir dos anos 1980 em
nome da interdisciplinaridade, tendo esta sido oficialmente apoiada pe-
los programas públicos de pesquisa na França (o CNRS, por exemplo),
o que praticamente permitiu financiamentos para equipes de pesquisa.
Pode-se considerar que as abordagens de tipo etnológicas adquiriram
ganhos de legitimidade entre os sociólogos, em grande parte devido à
influência da sociologia interacionista americana.

17 PETITAT, A. Produção da escola/Produção da sociedade: análise socio-histórica de alguns


momentos decisivos de evolução escolar no Ocidente. Porto Alegre: Artes médicas, 1994.

74
[Segunda abordagem]
Uma representação banal e fortemente difundida é a do domí-
nio de investigação da sociologia que trata do social em oposição ao
individual18. É verdade que o movimento de constituição das discipli-
nas das ciências humanas conseguiu contribuir com essa visão. Émile
Durkheim imaginava que tínhamos em nós dois seres: um de dimensão
individual, e inclusive egoísta, outro de dimensão social, neste, ideias,
sentimentos, hábitos não expressam nossa personalidade, mas o grupo
ao qual fazemos parte. E é essa segunda dimensão que seria o objeto
próprio das ciências sociais, mesmo que elas devessem incluir em seu
programa científico as propensões ao individualismo.
Em outros textos dedicados à educação, Durkheim considerava
que a análise dos fins da educação competia à sociologia, enquanto a
psicologia devia se concentrar à análise dos meios. Mas a sociologia foi
levada a conceituar de outra forma as relações “indivíduo e sociedade”.
Sem dúvida, o autor principal a este respeito é Norbert Elias, que des-
construiu a oposição esquemática indivíduo/sociedade. Ele considerou
essa dicotomia como um produto do processo da própria civilização
e empregou o termo “configuração” como uma ferramenta conceitual
que ultrapassa a polarização entre as duas imagens paralelas, colocan-
do ênfase nas interdependências humanas, como uma rede que reúne
diferentes fios. “O termo configuração serve para criar uma ferramenta
conceitual manipulável, através da qual se pode afrouxar a imposição
social que nos obriga a falar como se ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ fossem
duas figuras diferentes e, além disso, antagônicas” (Qu’est-ce que la socio-
logie. Pandora éditions, 1981, p. 156-157. Première édition en allemand,
1970)19. “O conceito de configuração coloca, portanto, o problema das
interdependências humanas no centro da reflexão teórica da sociologia”
(ibid., p. 163).
É impressionante constatar que alguns sociólogos contemporâneos
colocam precisamente o conceito “configuração” no centro de suas
18 As linhas a seguir foram inspiradas no prefácio que escrevi para o livro do psicólogo Jean
Sébastian Morvan, Repenser l’échec et la réussite scolaire, Issy les Moulineaux (France),
ESF, 2015.
19 ELIAS, N. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2005.

75
interpretações dos dados recolhidos, para dar conta, por exemplo, das
vulnerabilidades sociais que se ancoram em histórias individuais (Jean-
-Yves Barreyre), ou das modalidades de transmissão cultural e de rela-
ção com a escrita nas famílias (Bernard Lahire). No caso dos processos
de transmissão e das dinâmicas que presidem as relações diferenciadas
com a escola e com a cultura escolar, se está, portanto, longe das pu-
blicações apressadas ou dos esquemas que religam fracasso e sucesso
somente ao pertencimento de classe. Nessa ordem das ideias, a utili-
zação do conceito “trajetória” permite apreciar os futuros escolares ou
universitários à luz das histórias singulares que se apreende através de
entrevistas aprofundadas e de observações, eventualmente realizadas
durante longos períodos. Se está, portanto, em condições de melhor
compreender trajetórias de sucesso aparentemente paradoxais entre
crianças oriundas de meio popular e, inversamente, trajetórias de fra-
casso entre crianças de meio privilegiado, ou ainda as tensões internas
de alguns jovens adultos de meio popular que acessando pela primeira
vez à Universidade entram em competição com o pertencimento no seu
bairro de origem. A sociologia atual desenvolve um campo de pesquisa
muito diversificado, que tem como ponto comum colocar em evidên-
cia a abordagem dos atores sociais em sua dimensão individual. Cito
rapidamente, sem entrar nas nuances e sem fazer a ligação com um
determinado autor: a sociologia da experiência, a sociologia dos pro-
cessos identitários, a sociologia psicológica centrada na construção dos
hábitos individuais, a sociologia do indivíduo, e até mesmo a sociologia
clínica! Como não ver aqui profundas afinidades com as análises de al-
guns psicólogos cuja abordagem clínica leva em conta a historicidade e
a singularidade do sujeito, visando recuperar o que está em jogo entre a
realidade psíquica e a realidade social?
Uma questão anteriormente colocada é mais delicada, pois parece
supor que existe uma resposta relativamente simples à ajuda que se deve
dar aos indivíduos para que se situem de maneira crítica no seu contex-
to de vida. No entanto, uma excelente explicação das tensões exercidas
sobre os indivíduos é fornecida pelos trabalhos de Robert Castel, de
modo que a elucidação dessas tensões pelos próprios indivíduos pode-

76
ria lhes permitir desenvolver uma visão mais crítica da sua própria si-
tuação. Castel está longe de uma apreensão aligeirada e pouco nuançada
da expressão “sociedade dos indivíduos”, proveniente de Norbert Elias,
e da propensão a valorizar o papel dos indivíduos, ou mesmo suas ca-
pacidades de autonomia nas sociedades modernas20. Segundo ele, uma
das tarefas da sociologia atual deve sobretudo visar a “liberar a base dos
suportes requeridos para que um indivíduo se torne capaz de ser re-
conhecido e tratado como tal na sociedade” (p. 403). Sua tese essencial
consiste em mostrar que “os indivíduos estão desigualmente apoiados
para serem indivíduos” (ibid., p. 404). Após realizar uma genealogia do
indivíduo moderno e de seus sucessivos suportes (a propriedade pri-
vada, depois a cidadania social), ele distingue duas figuras do indiví-
duo hipermoderno: o indivíduo “por excesso” e o indivíduo “por falta”.
No primeiro caso, estamos lidando com um indivíduo imerso em sua
subjetividade, tormentado por um hiperindividualismo, cada vez mais
afastado dos pertencimentos coletivos. Na segunda figura, do indivíduo
“por falta”, “falta a base dos recursos necessários para estabilizar o pre-
sente e antecipar o futuro” (ibid., p. 437). Essas são as “zonas cinzentas
da vida social”, onde se encontram situações disparatadas, trabalhadores
pobres, mas também desempregados, jovens à deriva, casos diversos de
precariedade muitas vezes duradoura. Castel conclui que “para ser po-
sitivamente um indivíduo, é preciso estar afiliado ou reafiliado, ou seja,
o indivíduo deve poder dispor de pontos de apoio, com base nos quais
ele pode assegurar sua independência social” (ibid., p. 444). A partir de
uma perspectiva mais pragmática e de orientações mais sociopolíticas,
Castel enuncia a necessidade de reconfigurar as proteções sociais e de
revalorizar o papel do Estado social como garantidor dessas proteções.
Outros autores contemporâneos também podem ser evocados,
devido à sua preocupação em promover uma modernidade social re-
novada e, ao mesmo tempo, por sustentarem um sujeito reflexivo e crí-
tico. Na sua grande diversidade, eles contribuem para a reflexão sobre a
mundialização e o neoliberalismo, abrindo pistas para o indivíduo mo-
derno. Dentre os quadros teóricos mais apropriados, aqueles que são

20 CASTEL, R. La montée des incertitudes. Paris: Seuil, 2009.

77
desenvolvidos na linha da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica me
parecem particularmente estimulantes.
Autores como Jürgen Habermas e Axel Honneth fornecem análises
do mundo atual e abrem pistas para o futuro. Em Jürgen Habermas,
é a integração de um processo democrático além dos estados-nação
que suscita suas reflexões e o orienta na direção de um “universalismo
sensível às diferenças”, incluindo todos os cidadãos, sejam quais forem
suas origens, numa “rede de reconhecimento recíproco”21 (Habermas,
2013, p. 68). É precisamente a noção de “reconhecimento” que está no
cerne da problemática de Axel Honneth. Citarei apenas esta frase: “A
experiência do reconhecimento é um fator constitutivo do ser huma-
no”22 (edição alemã de 1992), seu oposto sendo o desprezo, que leva “os
atores sociais a experimentar concretamente uma negação de reconhe-
cimento” (ibid., p. 115). O que ele chama de “realização de si”, suficien-
temente explorada nas patologias sociais, seria no entanto possível ao
nível do reconhecimento através da solidariedade que é “condicionada
por relações de estima simétrica entre sujeitos individualizados (e au-
tônomos)” (ibid., p. 157). Num ensaio mais recente, Honneth reconside-
ra de maneira bastante crítica as ideias tradicionais do socialismo, que
pesam como um “fardo”, e sugere reformulações das ideias socialistas
no sentido de “uma forma de vida” que articularia liberdade individual,
liberdade social e a solidariedade23 (edição alemã de 2015).

2 A sociologia francesa tem se constituído como uma impor-


tante referência para a compreensão de universos sociais di-
versos e, particularmente, para a percepção e o entendimen-
to dos interesses e apostas que orientam o mundo escolar. Isso tem sido
possibilitado pela importante circulação internacional de obras clás-
sicas e contemporâneas de sociólogos pertencentes a diferentes abor-
dagens teóricas. A que riscos e ganhos a sociologia, enquanto ciência,
se submete ao ser difundida em universos muitas vezes pautados em
21 HABERMAS, H. Après l’État-nation. Une nouvelle constellation politique. Paris: Arthème
Fayard, 2013, p. 68.
22 HONNETH, A. Luta por reconhecimento. São Paulo: Edições 34, 2009.
23 HONNETH, A. A ideia do socialismo. Lisboa: Edições 70, 2017.

78
tradições históricas e culturais distintas ou, até mesmo, contraditórias?
A partir de quais argumentos é possível redefinir, reafirmar ou refutar
concepções sociológicas, tendo como parâmetro pesquisas produzidas
em outros universos? Que desafios se impõem aos sociólogos que de-
sejam ampliar sua interação com colegas de outros universos acadêmi-
cos? O que os sociólogos podem esperar da internacionalização no que
concerne ao avanço da ciência em geral e da sociologia em particular?
Plaisance. Serei mais breve sobre o conjunto das vastas questões
seguintes, pois penso ter em parte respondido a algumas delas.
O que destaco como essencial é a difusão dos trabalhos socioló-
gicos ou, retomando uma noção utilizada em uma das questões, a “cir-
culação” no nível internacional de noções desenvolvidas em obras so-
ciológicas célebres. Sem nenhuma dúvida, a noção de “reprodução” é
o melhor exemplo dessa circulação, que afetou não somente os meios
acadêmicos, mas também meios muito mais amplos, como os de mi-
litância política e sindical. Essa é a situação que se observou na França
desde o início anos 1970, após a publicação dos livros de Bourdieu e
Passeron e de Baudelot e Establet. Por meio de estilos diferentes e com
dados também diferentes (para Bourdieu e Passeron a universidade;
para Baudelot e Establet, a escola primária), eles contribuíram ao forne-
cerem interpretações altamente deterministas das realidades escolares
em termos de perpetuação das desigualdades, de processos de domi-
nação ou de divisão social. Daí resultaram dois tipos de utilização dos
trabalhos: de um lado, um melhor conhecimento das realidades univer-
sitárias e escolares contra as aparências da democratização e dos discur-
sos oficiais ou sindicais sobre a escola “libertadora”; de outro, uma visão
fatalista que coloca sob suspeita toda ação pedagógica, desestabilizando
todo o corpo profissional, o dos professores. A denúncia da escola foi
consequentemente vivaz em alguns círculos militantes, colocando, por
exemplo, em questão a inércia dos governos em vigência (como da parte
do Partido Comunista ou de alguns sindicatos de professores), mas ela
se apoiava ao mesmo tempo em representações muito esquemáticas,
inclusive errôneas, dos trabalhos considerados. Mas é verdade que os

79
títulos das obras se prestavam facilmente a esse tipo de representação
brutal: A Reprodução (1970) e A escola capitalista na França (1972).
O contexto dos anos 1970 favoreceu essas difusões de trabalhos
denunciadores, devido à importância dos movimentos sociais críticos,
mas também graças à difusão muito facilitada de livros pelas editoras.
Basta lembrar novamente o grande número de publicações sobre o
tema do fracasso escolar. Na situação atual, não se vê as mesmas facili-
dades editoriais daquela época, mas também se observa que atores so-
ciais integraram algumas das interpretações esquemáticas precedentes
e, de maneira geral, por representantes das classes médias intelectuais.
Ora, a noção de reprodução se tornou um lugar comum e fácil, que
pode ocultar estratégias de “fechamento social”, como demonstrado por
Agnès van Zanten em sua análise das escolhas escolares entre as classes
médias24. Dada a presença de atores sociais “informados”, há, portanto,
necessidade de proceder a uma vigilância crítica e a uma sociologia da
difusão social da sociologia.
O que geralmente está em jogo é a divulgação de certos trabalhos
em ciências humanas e sociais, da qual participam as mídias e onde a
psicologia é frequentemente muito mais favorecida do que a sociologia,
principalmente a psicologia cognitiva e comportamentalista em nível de
difusão universal, pois esta pretende oferecer respostas rápidas e “pron-
tas” às dificuldades escolares.

3 A sociologia contemporânea tem ampliado sua esfera de


atuação, a exemplo de outras disciplinas, muitas vezes por
meio da especialização. Estaria ela correndo o risco de se
fragmentar e de perder de vista sua base comum de sustentação ou, ao
contrário, a especialização teria vindo para fortalecer sua posição cien-
tífica? A leitura de clássicos, passados mais de um século desde a institu-
cionalização da sociologia na França, ainda se mostra pertinente?
Plaisance. Que a leitura dos clássicos permaneça necessária, isso
me parece ainda mais pertinente quando debates atuais ainda podem
ser esclarecidos por algumas de suas problemáticas e de seus conceitos
24 ZANTEN, A. van. Choisir son école. Paris: PUF, 2009.

80
centrais. Observo rapidamente o de “solidariedade” em Durkheim ou
ainda, no mesmo autor, a distinção entre a pedagogia, “teoria prática”,
objeto de prescrição para ação, e a educação, objeto de análise científica.
A especialização, por sua vez, é ao mesmo tempo uma necessidade
e um risco de confinamento. Uma necessidade, devido aos muitos es-
tudos, sociológicos ou não, com abordagens fundadas num ou noutro
domínio, para poder desenvolver uma pesquisa informada. Um risco,
de outro lado, se se esquece ou negligencia a relação com a sociolo-
gia geral, com seus conceitos centrais e... com a produtividade de sua
história. Risco também de desenvolver uma sociologia solipsista, dis-
tante dos debates contemporâneos, por exemplo, sobre o lugar social do
indivíduo.
As renovações e as ampliações de território são muito necessárias.
No campo da pesquisa educacional, tenho regularmente revisado es-
sas orientações nas diversas edições do pequeno livro Les sciences de
l’éducation25, publicado pela edições La Découverte (5ª edição em 2012).
Pude notar o desenvolvimento de interesses por novos objetos, para
além dos paradigmas clássicos da reprodução e dos modelos estrutu-
rais: pesquisas sobre os professores, os saberes escolares (sociologia do
currículo), a experiência com a realidade escolar cotidiana, a aborda-
gem do espaço educativo local, a educação familiar, a infância como tal
(sociologia da infância). Gostaria de acrescentar ainda que a sociologia
da educação estabeleceu vínculos muito estreitos com a sociologia polí-
tica (por exemplo, com a utilização do conceito de “referencial de ação
pública” para interpretar a evolução das políticas de educação especial),
mas também com a filosofia política (como interpretar o novo lugar da
criança no mundo contemporâneo?).

4 Mudanças profundas e sucessivas nas formas de comunica-


ção têm posto à prova as instituições clássicas de acesso aos
múltiplos tipos de conhecimento. Estaria a Escola, preconi-
zada pelos projetos de modernidade, perdendo seu lugar na socialização
das novas gerações? Que objetivo é atribuído à Universidade no que

25 PLAISANCE, É.; VERGNAUD, G. As ciências da educação. São Paulo: Loyola, 2003.

81
concerne à formação profissional hoje? Como essas duas instituições
(Escola e Universidade) poderão fazer face à velocidade da informação?
Que tipo de relação o sociólogo, mas também os demais intelectuais,
pode estabelecer com os meios midiáticos?
Plaisance. Limitando-me à questão do lugar da Universidade,
consigo apenas levantar as profundas transformações que estão em
curso e que estão ligadas a uma concorrência generalizada, nos níveis
nacional e internacional, cujo sinal mais evidente é o da classificação
hierárquica das universidades em função de seus resultados de forma-
ção e de pesquisa (ranking de Xangai). Na Europa, a mudança come-
çou em 1999 pela Declaração de Bolonha, destinada a criar um espaço
europeu de ensino superior que seja internacionalmente competitivo.
Em princípio, os diplomas universitários europeus se sucedem em três
etapas (graduação, mestrado e doutorado), com a possibilidade de ob-
tenção de créditos de formação para os estudantes nos diferentes países.
Mas duas outras transformações são características do período recente:
a generalização das avaliações e a profissionalização dos estudos. A
avaliação se tornou a palavra de ordem das políticas universitárias e,
em nome da busca por uma maior objetividade, o papel das agências
externas ditas “independentes” foi instituído para julgar as “eficiências”
das formações e das pesquisas. Para a França, isso se dá pela instalação
em 2007 da Agência de Avaliação da Pesquisa e do Ensino Superior
(AERES), cujos membros são nomeados e não eleitos! E, em 2005-
2006, da Agência Nacional de Pesquisa (ANR), sendo esta uma agên-
cia de financiamento de projetos de pesquisa postos em concorrência e
avaliados ​​por pares.
Esses funcionamentos pesam fortemente sobre as atividades dos
universitários, que são obrigados a prestar conta regularmente dos seus
resultados: eles não estão sujeitos às inspeções como os professores do
ensino primário ou secundário, mas essas novas avaliações, frequente-
mente muito minuciosas, têm transformado seu métier. Vários autores
apresentaram fortes críticas contra essas agências, não tomando uma
posição contra a avaliação como tal, mas contra os excessos gerenciais e

82
o fascínio das cifras nas avaliações quantificadas (Roland Gori; Michel
Chauvière).
A profissionalização dos estudos é outro aspecto das reformas e
chega a se constituir como uma nova injunção que se impõe aos es-
tabelecimentos de ensino superior como uma modalidade necessária
de adaptação ao mundo econômico. Mas a própria noção é ambígua,
pois pode abranger tipos de atividades (reconhecidas institucionalmen-
te), indivíduos (aquisição de competências), organizações (modos de
funcionamento). Os contextos locais também desempenham um papel
importante na profissionalização das atividades universitárias, como,
por exemplo, as alianças com atores econômicos. De todo modo, cons-
tata-se qua há uma reestruturação dos estudos visando a profissiona-
lização e uma reorganização da oferta de formação (ver, por exemplo,
os trabalhos de Catherine Agulhon que abrangem em parte a América
Latina). Aos meus olhos, permanece como necessidade absoluta: pre-
servar as atividades de pesquisa nas universidades (para que continuem
a merecer o nome de universidade!) e resistir firmemente contra alguns
desejos políticos que visam suprimir estudos em áreas consideradas não
rentáveis!!! (Esse era o desejo explícito de Berlusconi na Itália contra a
arqueologia!).

5 Num momento em que os projetos de democratização mais


clássicos, voltados à modernização dos Estados contempo-
râneos, são postos em dúvida, novas questões/orientações/
recomendações têm sido apresentadas aos professores, pesquisadores
e administradores sugerindo outras abordagens teóricas. Como os so-
ciólogos têm se colocado, por exemplo, em relação à reintrodução da
discussão sobre justiça? Como os sociólogos podem enfrentar um dos
grandes – e velhos – problemas que afetam nossas sociedades: o en-
trecruzamento entre desigualdades sociais e desigualdades escolares?
Como atuar na Escola e na Universidade sem se deixar levar pelas prá-
ticas de dominação e de reprodução, naturalizadas em suas estruturas e
em suas próprias representações?

83
Plaisance. A introdução da problemática da justiça nas pesqui-
sas sobre a escolarização é, na minha opinião, uma abertura e um en-
riquecimento que vão além das questões ideológicas tradicionais sobre
a igualdade de oportunidades. Ela também não elimina a pertinência
do questionamento sobre a democratização, desde que se compreenda
as facetas contraditórias, bem descritas por Pierre Merle por meio do
termo “democratização segregativa”, ou seja, que mantém as desigual-
dades de sucesso de acordo com os pertencimentos sociais, apesar do
seu progresso geral. A reivindicação por mais justiça social e escolar se
beneficiou de contribuições teóricas novas com autores célebres, como
Rawls e Sen. Perguntou-se assim se o tema igualdade de oportunidades,
que parece consensual, não foi um obstáculo do ponto de vista episte-
mológico e uma astúcia das medidas a serem postas em prática. Uma
reflexão foi desenvolvida sobre a articulação entre equidade e igual-
dade: as desigualdades que melhorariam a situação dos mais desfavore-
cidos não seriam ilegítimas, e ações “positivas” compensadoras, visan-
do corrigir as desigualdades, também não seriam injustas. A questão
essencial é, portanto, saber se uma escola “justa” deve se contentar em
selecionar os melhores e os que têm mais mérito. François Dubet, numa
obra publicada em 2004, é um autor que faz fortes críticas à igualdade
meritocrática e propôs articular com cautela vários princípios da jus-
tiça: velar pela equidade da oferta escolar (igualdade distributiva das
oportunidades), oferecer uma base de cultura comum (igualdade social
das oportunidades), permitir a formação dos indivíduos e dos sujeitos
(igualdade individual das oportunidades)26. Ele chega até mesmo a
afirmar claramente: “parece-me preferível questionar quais são as de-
sigualdades aceitáveis ​​ou toleráveis ​​ou mesmo perfeitamente justas em
vez de privilegiar um único princípio de justiça, ainda que isso per-
maneça eternamente no céu das ideias. Essa escolha decorre da ‘ética
de responsabilidade’... ” (Dubet, 2004, p. 120).

26 DUBET, F. O que é uma escola justa? A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez, 2008.

84
6
Fala-se com frequência hoje das múltiplas figuras da violên-
cia (de macro violências, de violências sutis, brandas, sim-
bólicas), da indisciplina, da injustiça, como se se tratasse de
um fenômeno novo. Como a sociologia está enfrentando esse debate,
que parece atravessado por interesses políticos e econômicos mesclados
a interesses religiosos? Como os sociólogos têm abordado a questão da
discriminação, das minorias, do nacionalismo, da laicidade? Como evi-
tar o esfacelamento do social sem ferir as singularidades?
Plaisance. Sobre a questão da violência escolar, é o sociólogo
Éric Debarbieux quem produziu sínteses críticas e as pesquisas mais
convincentes. E, como qualquer bom sociólogo face à questões so-
cialmente difundidas, ele tomou cuidado para desconstruir a noção de
violência, levando-nos a refletir sobre os exageros midiáticos a partir de
alguns fatos isolados ou sobre as “recuperações políticas”. Sobre esse
assunto, ele evoca sobre o trabalho que fez no Brasil onde as cifras recol-
hidas em enquetes foram manipuladas para fins de sensacionalismo27.
No entanto, não se trata de afirmar que a violência na escola decorre de
uma construção puramente arbitrária, pois as vítimas existem verdadei-
ramente! Por isso, essa reivindicação em favor de uma investigação
científica rigorosa: “(...) uma ciência da violência na escola é necessária
ao menos para desconstruir a opinião pública, dar-lhe liberdade para
pensar face às regressões políticas em prática desde que se toca num
assunto no qual infância em perigo e perigo de infância se conjugam”
(ibid., p. 52). A intenção do autor é adotar uma definição ampla que pos-
sa levar em conta a polissemia do termo “incluindo tanto fatos maiores
e isolados quanto microviolências, frequentemente as mais repetitivas”
(ibid., p. 121). Do ponto de vista da pesquisa empírica, significa re-
cuperar dimensões muito diferentes de “violência”: microviolências,
delitos comuns, clima dos estabelecimentos, sentimento de violência
e de insegurança. E é importante colocar em prática indicadores como
os de vitimização, clima escolar (relações entre alunos, entre alunos e
adultos...), insegurança (violência e agressividade percebidas...). Um

27 DEBARBIEUX, É. La violence à l’école: un défi mondial? Paris: Armand Colin, 2006.

85
dos resultados essenciais é que há uma diminuição na percepção de
um clima escolar favorável, de confiança nos adultos e de sentimento
de segurança quando aumenta o fenômeno de vitimização. O interesse
desta abordagem é que ela enfatiza tanto os fatos reconhecidos quanto
as percepções subjetivas, conferindo um papel fundamental ao estabe-
lecimento como ator-chave, ainda que as condições socioculturais ex-
ternas não possam ser negligenciadas.
Uma ilustração marcante do lugar ocupado pelos estabelecimen-
tos escolares nos fenômenos de violência é fornecida por uma enquete
comparativa entre França e Brasil, que contraria as representações cor-
rentes sobre a violência escolar em ambos os países. Benjamin Moignard
fez uma pesquisa etnográfica num colégio francês e em outro, brasilei-
ro, ambos em meios populares, estudando as condutas e as atividades
desviantes e delinquentes dos adolescentes28. Ele formulou a hipótese de
que o ambiente local externo não é suficiente para explicar a realidade
do ambiente escolar; este tem suas próprias modalidades de construção,
no qual agem em interação alunos e professores. O resultado mais sur-
preendente desse trabalho de campo é que o colégio brasileiro, apesar
de localizado numa favela carioca considerada como o ponto central
do tráfico de drogas da cidade, tem um nível de violência inferior ao do
colégio francês. O estabelecimento brasileiro é considerado por muitos
alunos como um espaço de proteção contra a violência externa e se be-
neficia de “uma aura e de uma legitimidade comunitária que facilita a
preservação da ordem escolar” (ibid., p. 183). Uma das pistas de inter-
pretação desse resultado, à primeira vista paradoxal, deve-se, segundo o
autor, ao fato de que o colégio francês adota uma lógica repressiva que
elimina toda a dimensão educativa e deteriora o clima escolar, enquanto
o colégio brasileiro funciona a partir de uma lógica afetiva e até mesmo
paternalista da parte dos professores, o que preserva um clima escolar
mais sereno. Todavia, isso não resolve os problemas de emancipação
social dos alunos, seu acesso aos saberes e, sobretudo, a questão de uma
escola não segregativa.

28 MOIGNARD, B. L’école et la rue: fabriques de délinquance. Paris: PUF, 2008.

86
7
Observa-se atualmente um debate, bastante acalorado, acer-
ca do aumento e da diversificação das obrigações impostas
aos professores/pesquisadores, o que estaria criando obstá-
culos ao avanço da ciência. Como o engajamento na pesquisa de pro-
fessores tem sido administrado na França e no quadro da Comunidade
Europeia? Como os sociólogos franceses têm se posicionado a esse res-
peito? A sobrevivência do intelectual, nas suas mais diversas concep-
ções, estaria ameaçada? O que se espera do intelectual face aos novos
desafios impostos à produção científica?
Plaisance. Sobre essas questões, penso ter respondido parcial-
mente a algumas delas, em particular sobre as novas exigências que pe-
sam sobre os universitários, cada vez menos autônomos em razão dos
procedimentos invasivos de avaliação, sem esquecer das pesadas tare-
fas administrativas, das quais eles são cada vez mais responsáveis, por
exemplo, para a implementação dos diplomas no quadro europeu dos
créditos de formação.
Eu escolherei agora sobretudo o lugar de expert que é objeto de
intensos debates, ou de polêmicas, entre os sociólogos. O exemplo mais
violentamente caricatural é fornecido por um livro que questiona brutal-
mente a sociologia da educação francesa, acusada de não ser unicamen-
te uma sociologia de experts oficialmente reconhecidos, mas sobretudo
uma “sociologia de Estado”, sob o pretexto de que ela às vezes se benefi-
ciou de créditos de pesquisa em programas governamentais29. Inspiran-
do-se em Pierre Bourdieu, o autor apresenta tipos opostos de sociólogos
e tipos opostos de pesquisa: de um lado, “cientistas de Estado”, adeptos
de pesquisas ditas “aplicadas”, que não controlariam as orientações de
suas pesquisas (relacionadas, por exemplo, às escolas de periferia); de
outro, sociólogos que seriam os únicos legitimados do ponto de vista
científico, vinculados à análise do sistema de ensino como reprodutor
de uma ordem social desigual. Reconhece-se aí uma fidelidade estreita e
sectária ao programa de pesquisa iniciado em A Reprodução, em 1970, e
uma visão muito distorcida da produtividade das pesquisas em sociolo-
29 POUPEAU, F. Une sociologie d’État. L’école et ses experts en France. Paris: Editions Rai-
sons d’agir, 2003.

87
gia da educação ao longo de vários anos. Diversos colegas responderam
a esse panfleto mostrando seu caráter parcial e desprezível, assim como
seu surpreendente desconhecimento da história precisa dos procedi-
mentos abertos dos editais de oferta de pesquisa nos anos 1980 (Viviane
Isambert-Jamati, Éric Debarbieux, dentre outros).
Mas essa polêmica não impede de questionar de maneira mais
serena sobre a relação entre sociologia e expertise. Formulando direta-
mente: o sociólogo perde sua alma quando assume o papel de expert?
A perspectiva da aplicação lança uma suspeita radical sobre as pesqui-
sas produzidas? Uma definição geral de expertise se impõe: os soció-
logos podem estar implicados “na análise, no diagnóstico e na busca
de soluções para uma situação julgada problemática, graças ao saber
especializado do qual são detentores”30 (Tanguy, 1995, p. 457). Tomando
como exemplo uma missão que ela efetuou sobre a evolução do ensino
profissional na França, Lucie Tanguy mostra as tensões
​​ inevitáveis que
surgem entre o trabalho de expertise, que implica um reconhecimento
social, e o trabalho de análise científica, que implica uma legitimidade
específica entre os pares. Pois a expertise implica a formulação final de
“preconizações” ou de “recomendações” para atores sociais e políticos
encarregados ​​de sua aplicação ou não: “o pesquisador-expert vai, neces-
sariamente, no final da análise, isolar no sistema relações que fez apare-
cer sequências, lugares que lhe parecem estratégicos para a ação” (ibid.,
p. 472). O ponto essencial da atividade científica permanece, no entanto,
o de saber como problematizar, mesmo reformular as questões que lhe
são submetidas e saber como analisar as diversas posições envolvidas.
Na verdade, os sociólogos vêm sendo cada vez mais solicitados a
fornecer expertises no campo social, por exemplo, sobre a educação re-
lacionada à ambientes locais, à formação profissional, ao futuro das for-
mações universitárias, à política envolvendo as pessoas em situação de
handicap etc. A título pessoal, fui várias vezes solicitado a produzir pes-
quisas ou sínteses de literatura científica que poderiam levar a recomen-
dações de ação. Isso a pedido, seja de organismos científicos ligadas ao

30 TANGUY, L. Le sociologue et l’expert: une analyse de cas. Sociologie du Travail, 1995, n°


3, p. 457-477.

88
Estado (Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica − INSERM;
Comitê Nacional de Avaliação do Sistema Escolar − CNESCO), seja de
órgãos públicos (Fundo Nacional de Subsídios Familiares − CNAF), seja
de associações ou fundações que desejem ter comitês científicos (Asso-
ciação dos Paralisados da França; Associação dos Adultos e Jovens Han-
dicaps; Fundação Internacional para Pesquisa Aplicada sobre o Handi-
cap − FIRAH). As situações apresentadas por essas instâncias são, no
entanto, muito diferentes e as demandas não são da mesma ordem. No
caso das organizações científicas, os expertises levam primeiramente à
recomendações relacionadas à melhoria dos conhecimentos e apenas
uma pequena parte leva à perspectivas de ação social. Em outros casos,
a demanda é primeiramente, e explicitamente, perspectiva de ação, mas
que deve ser apoiada num balanço dos conhecimentos.
Limitar-me-ei a um exemplo pessoal mais preciso: o de uma pes-
quisa coletiva que envolvia diversos países da Europa e que fora finan-
ciada por um programa da União Europeia chamado Comenius31. O
objetivo geral do projeto consistia em fornecer materiais para reflexão
sobre as práticas educativas dos profissionais da primeira infância, a fim
de permitir sua melhoria na participação, mais ampla possível, na di-
versidade das crianças no processo educacional. Isso significa que, se-
gundo as demandas formuladas no quadro desse programa europeu, a
perspectiva de pesquiasa devia necessariamente levar a certas propostas
de ação visando a melhoraria das práticas ou das sugestões sobre as for-
mações profissionais. O contrato de pesquisa mencionava claramente
esta perspectiva. A questão geral era a seguinte: quais orientações peda-
gógicas facilitam a coeducação e a inclusão de crianças que apresentam
necessidades especiais? Mais concretamente: como praticar uma educa-
ção em conjunto, suprimindo as barreiras tradicionais que instituem a
segregação dos indivíduos? A noção de inclusão foi, portanto, usada e
definida como um processo que permite criar um ambiente educativo
apropriado para todos ou, ainda, como um processo em curso para o

31 KRON, M.; PLAISANCE, É. (eds.). Grandir ensemble. L’éducation inclusive dès la petite
enfance. Suresnes: Institut national supérieur de formation et de recherche pour l’éduca-
tion des jeunes handicapés et les enseignements adaptés − INSHEA, 2012.

89
acolhimento da diversidade. Esta orientação carrega um golpe fatal a
toda investigação científica se se segue o raciocínio citado anteriormen-
te por Poupeau? Eu não acredito nisso, pois se tratava de fornecer em
primeiro lugar enquetes de campo de tipo qualitativo, cujos resultados
eram discutidos e validados pelos colegas-pesquisadores, mas também
pelos profissionais. Sobre esse último ponto, a abordagem adotada tinha
alguns pontos em comum com a “intervenção sociológica”, iniciada por
Alain Touraine e continuada, por exemplo, por François Dubet.

8 O debate sobre o papel dos intelectuais, e em particular dos


sociólogos, ganha força no Brasil, tornando-se ainda mais
efervescente nos momentos crise. O que se pode esperar
desses profissionais quando eles se confrontam com interesses econô-
micos e políticos que se opõem às lutas pela superação de desigualdades
sociais crônicas? Como a sociologia poderia se tornar acessível a todos
os indivíduos sem perder de vista seu caráter científico ou, mais precisa-
mente, o rigor teórico-metodológico que a define como ciência?
Plaisance. Colocar a questão do intelectual (que em parte corres-
ponde a do expert tratado acima) supõe, antes de tudo, estar de acordo
com uma definição provisória que assuma a diversidade de suas figu-
ras no plano da história, mas também no plano da própria atualidade,
muito diversa segundo os países. Dentre as análises sociológicas mais
estimulantes sobre essa questão, recorro a de Éric Neveu, que toma
como quadro teórico a sociologia política dos problemas públicos, que
se desenvolveu nos Estados Unidos, principalmente a partir dos anos
70. A tripla fórmula Naming, Blaming, Claimingé (nomear, aproximar,
reclamar) é a que melhor e mais sucintamente resume esta tradição, que
visa compreender a constituição dos problemas públicos: “Constituir
um problema público significa começar a pensar uma situação como
não natural, não aceitável. É ‘realizar’ que ela é contestável. É em se-
guida ter como alvo a censura: identificar causas, explicações e muitas
vezes culpados. É enfim formular demandas e identificar interlocutores
ou instituições na direção de quem as carregue”32 (Neveu, 2015, p. 42).
32 NEVEU, É. Sociologie des problèmes publics. Paris: Armand Colin, 2015.

90
É por isso que se pode situar a figura do intelectual em toda sua di-
versidade, que pode ser tanto universitário, artista ou jornalista, mas
que, em todos os casos, permite a promoção de problemas públicos.
Casos franceses célebres são evocados pelo autor: Zola, no caso Dreyfus,
Sartre, nos eventos estudantis de 1968, Bourdieu, no momento das gre-
ves de 1995 etc. “O que identifica ‘os intelectuais’ é também sua capaci-
dade de inventar um território de palavra que lhe dê acesso ao espaço
público, uma vez que eles são mal representados no sistema político.”
Pode-se ainda compreender o campo intelectual como um espaço de
interseção entre campo da produção intelectual e campo político (ibid.,
p. 46-47).
Uma das questões levantadas consiste em saber se há desapareci-
mento ou decadência da figura do intelectual, pois o discurso pessimis-
ta faz parte dos lugares comuns, sendo recorrente. É, portanto, preciso
ser prudente quando se trata de um diagnóstico como esse, pois novas
figuras emergiram na França, desde as personalidades respeitadas (Ed-
gar Morin) até outras muitas vezes contestadas (Bernard Henri Lévy).
Ora, as condições de exercício do intelectual modificaram: tecnização
dos problemas, modelo do expert detentor de um saber específico con-
vidado pelos meios de comunicação televisivos, promoção de novos
questionamentos sociais (o autismo) etc. Seguindo Éric Neveu, pode-se
identificar uma “nova era” intelectual, por exemplo, chamada a parti-
cipar em Think Thank, laboratórios de ideias procuram fazer a ligação
entre reflexão e ação, às vezes relacionadas a partidos políticos, às vezes
a empresas. Essas estruturas “concentram uma força de ataque intelec-
tual, tanto reunindo competências quanto permitindo a sinergia entre
especialistas com competências complementares” (ibid., 56).
A esta análise da sociologia do intelectual, gostaria de acrescentar
dois pontos muito diferentes: 1. Um setor importante da produção inte-
lectual francesa, a psicanálise, tem sido na França objeto de descrédito
e de violentas rejeições, sustentadas pelas avaliações contestadas da Alta
Autoridade de Saúde sobre as eficácias comparadas das psicoterapias.
Certos meios de comunicação e alguns escritores intermediaram essas
operações denegridoras, que afetam atualmente as políticas públicas dos

91
centros de saúde e os centros médicos sociais para crianças em situação
de handicap. 2. A reflexão sobre os fenômenos de segregação social e os
debates relacionados à democracia podem ser nutridos por trabalhos
que se situam nas fornteiras entre a filosofia e a sociologia. Dentre esses
trabalhos, eu já fiz referência aos herdeiros da Teoria Crítica de Frank-
furt, Jürgen Habermas e Axel Honneth (citados acima), mas também
se pode recorrer a pesquisadores franceses, dentre eles Pierre Dardot e
Christian Laval, preocupados em construir uma “razão do mundo” que
ultrapasse o neoliberalismo através de contracondutas de cooperação33,
ou ainda Michel Chauvière que, em matéria de ação social, procura “de-
sativar a armadilha avaliativa pela via democrática”34.

33 DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
34 CHAUVIERE, M. L’intelligence sociale en danger. Chemins de résistances et propositions.
Paris: La Découverte, 2011.

92
Inventário

93
Uma breve história de vida

Homenagem à minha muito estimada mamãe

Gabriel Langouët
Professor emérito
Paris V − Sorbonne/CERLIS − CNRS

A jovem e dinâmica Universidade Federal de Santa Catarina, em


Florianópolis, com a qual colaborei várias vezes, acaba de me convidar,
através de uma de minhas colegas (Ione Valle), cuja tese, defendida em
2001, orientei há quase vinte anos, para retraçar minha própria história
de vida profissional. Um pedido semelhante já me havia sido feito há
algum tempo por uma das revistas do Instituto Nacional de Pesquisa
Pedagógica: eu respondi positivamente, sem, contudo, estar convencido
de ter tomado a distância necessária.
Quando encerrei, ao menos oficialmente, minhas atividades pro-
fissionais, eu quis escrever um livro que retomasse minhas pesquisas no
campo da educação e tentasse esquematizar um panorama dos últimos
50 anos35; eu queria mostrar as principais evoluções e ressituá-las, retro-
cedendo a um passado um pouco mais distante: na verdade, eu comecei
pela III República e pelas famosas “Leis Ferry”. Diversos amigos ou co-
legas sugeriram que eu incluísse algumas páginas sobre mim mesmo, a
fim de esclarecer as situações sucessivas que eu descrevia ou analisava;
e vários leitores afirmaram ter apreciado essa tentativa de aproximação.
Penso que, para os nossos amigos que não conhecem o sistema escolar
francês e sua história, mas conhecem um pouco nossa língua, a leitura
paralela dos dois textos pode ser bastante útil.
Eu quis retomar e aprofundar essa reflexão, a fim de compreender,
eu mesmo, o que forjou em mim essa vontade de fazer duas carreiras
numa única vida, como me criticou o Diretor da Escola Normal Supe-

35 LANGOUËT, G. Cinquante ans d’école. Et demain? Paris: Fabert, 2008.

95
rior de Saint-Cloud durante nossa entrevista e antes de aceitar definiti-
vamente a minha candidatura. Penso que agora eu sei e devo continuar
a agradecer à minha querida mamãe. Boa leitura a todos e todas.

Meus antepassados e eu

Na língua bretã, Langouët (lan, santuário, e gouët ou coët, madeira,


floresta) é o nome de um lugarejo36 (santuário ou igreja de madeira),
portanto, uma pequena comuna bastante próxima, ao norte de Rennes.
E, como frequentemente acontece com os lugarejos, Langouët também
é sobrenome de famílias bretãs, especialmente no Departamento de Ille-
-et-Vilaine ou nos departamentos limítrofes, Côtes d’Armor e Morbihan.
Com relação à minha linhagem paterna, eu a encontrei notadamente
entre meus antepassados, ​​habitantes da cidade de Pancé, conhecida na
região pelo seu castelo forte transformado em mina a céu aberto, pelo
seu esplêndido túmulo cinza, pelos seus asfódelos e pela sua bela falha
tectônica, a certidão de nascimento que, após a Revolução, substituiu
os registros das Paróquias, inclusive de seis dos meus antecendentes, de
Pierre-François, nascido no ano II (1794 ou 1795), a Gabriel, meu pai,
nascido em 1911. Com exceção do meu pai, todos eram agricultores
e proprietários das terras que exploravam. Parece-me também muito
provável que meu pai teria continuado agricultor se não tivesse perdido
prematuramente os seus pais, e isso quando ainda muito pequeno; as-
sim como eu, e também as gerações seguintes. “Tal pai, tal filho!”37 ou
a ilustração da solidez da teoria da reprodução38 que, evidentemente,
exigiria um exame mais aprofundado sobre o futuro das outras crianças
da descendência.
Parece-me que minha família já estava instalada nessa comuna
bem anteriormente: eu encontrei outros três ancestrais, nascidos antes
da Revolução e declarados no registro das Paróquias da localidade vizi-

36 Do original, lieu-dit, lugar na zona rural que tem um nome tradicional. (N.T.)
37 Thélot, C. Tel père, tel fils: position sociale et origine familiale. Paris: Dunod, 1988.
38 BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. Les héritiers. Paris: Minuit, 1964. BOURDIEU, P.; PAS-
SERON, J.-C. La reproduction. Paris: Minuit, 1970.

96
nha, Le Sel de Bretagne, principal localidade do cantão e paróquia mais
próxima de seu próprio vilarejo; um deles, chamado Pierre, aparece em
vários documentos entre os redatores do Caderno de Condolências do
cantão. Provavelmente eu teria encontrado outros registros se tivesse
explorado com mais atenção.
Em suma, e como comprovam os documentos notariados, precio-
samente conservados por minha mãe (partilhas, aquisições e baús), a
partir dos quais se poderia reconstituir verdadeiras histórias de vida,
se tratava, a exemplo de tantas outras, de uma família que permaneceu
profundamente ancorada nessa comuna durante três séculos, graças à
manutenção, geração após geração, de um filho e, geralmente, o primo-
gênito. Uma família profundamente ligada à propriedade do seu pró-
prio instrumento de trabalho e de sua independência, ainda mais que
está instalada numa comuna cuja metade das terras agrícolas pertence
a um único latifundiário, muito influente e preocupado com a escolha
de seus locatários, dos quais deseja abertamente fidelidade. Uma famí-
lia que, há quase cento e cinquenta anos, adquiriu uma das belas casas
do burgo, facilitando assim a distribuição direta de uma parte dos seus
produtos aos “burgueses” da comuna e, notadamente, aos seus artesãos.
Mas também uma família que, quando Ferdinand Langouët, meu avô,
e sua esposa Alice Gerard falecem no intervalo de poucos meses, em
1917, não deixa totalmente desprovidos seus dois filhos, Gabriel, meu
pai, e Adeline, sua irmã: certamente modestos, e mesmo divididos, os
bens que herdam (além da casa, várias casas alugadas ou colocadas à
disposição de seus “antigos”, e dez hectares de terras cultiváveis), bastam
para permitir que Claude Gerard, o irmão de Alice que ainda era sol-
dado (na guerra dos 1914-1918) aceitasse cuidar deles assim que retor-
nasse, a fim de inseri-los na sua própria família. Adeline, infelizmente,
não sobrevivera por muito tempo nessa época difícil, mas meu pai seria
mimado, especialmente por sua tia Eugénie, e cercado de primos que
sempre consideraria como irmãos.

97
Gabriel, meu pai, minha mãe, Marie, e seus pais

Gabriel, órfão de pai e mãe aos 6 anos, teve uma infância feliz na
sua família adotiva. Escolarizado na escola privada para meninos de
Pancé, ele obtém brilhantemente seu Certificado de Estudos Primários
(CEP) aos 12 anos, depois frequenta durante 2 anos a Escola Primária
Superior (EPS) privada da principal comuna do cantão, Bain de Bretag-
ne. Minha mãe sempre disse que havia guardado lembranças escolares
felizes desses dois anos complementares e que desejaria ardentemente
prolongá-los por mais tempo, mas se sentia, especialmente em relação
ao seu tio e à sua tia, levada pela necessidade de adquirir o mais rápido
possível uma qualificação profissional e sua autonomia; mas ela também
me dizia, sem dar muitos detalhes, que, em outros aspectos, conserva-
va fortes ressentimentos ligados a esse período de internato. Por muito
tempo tentei saber mais, mas o segredo sempre foi mantido, deixan-
do lugar a uma imaginação que, em mim, nunca cessou e, sem dúvida,
orientou algumas das minhas escolhas. Retornaremos a elas adiante.
Após esses dois anos, com 14 anos, ele começa a aprendizagem do
métier de carpintaria sob a responsabilidade de seu tio Claude; ele conti-
nua nessa atividade profissional até ingressar no serviço militar, na saída
do qual ele criaria sua própria empresa a cerca de quinze quilômetros de
lá, seja para não concorrer, seja para poder se autoajudar a se instalar,
em 1934, com sua jovem esposa, Marie Toublanc. Ele tinha 23 anos, ela
20; eu nasceria no ano seguinte.
Julien Toublanc e sua esposa, Marie Philippot, meus avós mater-
nos, tinham se instalado em Pancé em 1913, tomando posse de uma das
maiores e mais belas terras da comuna: 26 hectares juntos, numa aldeia
que contava somente com sua própria família, que aumentou rapida-
mente. Tinham respectivamente 30 e 20 anos. A mais velha, minha mãe,
Marie, nascera em 1914, seguida de outros dez filhos, entre essa data e
1934; dois morreram ainda na infância. Uma família fortemente cató-
lica, particularmente no que diz respeito à minha avó, mais solidária e
sobretudo menos rígida em relação ao meu avô, resolutamente aberta
a todos os novos conhecimentos e ao progresso. Os dois estavam, um

98
e outro, bem integrados na vida local da nossa comuna. Meu avô tinha
muito orgulho de seu Certificado de Estudos Primários, que obtivera
aos 12 anos, uma época em que menos de 20% das crianças o conse-
guiam. E ele queria o mesmo para os seus filhos, mas também que a
educação das meninas fosse equivalente a dos meninos. Por exemplo,
minha mãe obteve seu CEP aos 12 anos, mas ele a incentivou a pros-
seguir na escola nos anos seguintes, quando os trabalhos da fazenda
permitiam; e, quando ela completou 15-16 anos, ele a ensinou a dirigir.
Enfim, um acontecimento raro na época, especialmente no mundo ru-
ral; aqueles e aquelas que desejassem fazer os estudos complementares
sempre foram encorajados por ele a fazê-lo.
Um novo e belo período parecia estar se abrindo para os meus
pais. Mas a terrível doença da época, que atinge com toda força meu pai
no ano seguinte o leva a morte em 1937, colocando fim a esse magnífico
projeto. Minha mãe, completamente abalada, responsável por um filho
de dois anos, teve que voltar à casa de Pancé e tentar reorganizar sua
vida e a minha. Meu tio-avô Claude, novamente sem hesitação, aceita
ser meu co-tutor.
De acordo com o que me foi contado, pois não tenho nenhuma
lembrança própria desse período, a reinserção de minha mãe foi difícil
e ela atravessou um longo período de empregos precários enquanto a
ameaça da Segunda Guerra Mundial progredia.
Mas ela sem dúvida teve uma chance quando a comuna propôs que
ela cuidasse da agência de correio, a qual contava com duas equipes de
distribuição de cartas e encomendas, colocadas sob sua responsabilida-
de, e a instalou em sua própria casa, encontrando assim a oportunidade
de me manter ao seu lado até o final da guerra 1939-1945.

Meus primeiros anos de escola e minhas duas famílias

Entrei na escola primária do meu pequeno burgo bretão um pou-


co antes do início da Segunda Guerra Mundial, com três anos e meio.
Numa escola privada católica, contrariando o desejo expressamente for-
mulado pelo meu pai, que falecera quando eu tinha dois anos; minha

99
mãe me disse mais tarde que não tivera escolha, pois precisava garantir
seu emprego, comer e me alimentar; e eu sempre estive convencido de
que seu desejo era mais o internato do que a escola propriamente dita. E
na minha escola fui muito bem tratado.
Era uma escola para meninos39 com duas turmas: uma para os
“pequenos” e outra para os “grandes”. Eu era o único pré-escolarizado.
Eu podia brincar (ainda se falava muito pouco de jogos sensoriais) ou
folhear os livros destinados aos menores; mas eu tinha sobretudo a obri-
gação de não fazer barulho. Eu estava muito bem e aprendi a ouvir es-
pecialmente os que ainda não sabiam ler, mas também os que já sabiam.
Um dia, eu ousei puxar a manga do mestre e lhe disse: “Senhor”, pois a
gente sempre dizia “Senhor”, “Senhor, eu também sei ler”; ele devia ter
uns 16 anos. Ele verificou e concluiu assim: “Agora você vai poder traba-
lhar como os ‘grandes’”. E o meu “métier de aluno” começou naquele dia.
Esse primeiro professor eu jamais perdi totalmente de vista, ainda mais
que, mais tarde, ele se tornou o prefeito da minha pequena comuna.
Doravante, eu tinha adquirido o direito e o dever de ser aluno
como os outros. Após frequentar a turma dos “pequenos”, eu havia pas-
sado para a dos “grandes” (os ciclos bem antes da hora). Eu deixei essa
escola aos 10 anos, no final da guerra, para vir para a periferia de Paris.
Sem dúvida, eu jamais saberei com qual método aprendi a ler, a
isso atribuo, de fato, pouca importância. Certamente, o ponto de partida
do professor era o silábico. Mas, sem dúvida, porque eu tinha apenas
a possibilidade de ouvir sem participar, eu esperava com impaciência
as palavras que me permitiam compreender os avanços. E, ao contrá-
rio, quando minha mãe, à noite, retomava as palavras que eu conhecia
pouco ou não muito, eu tentava soletrá-las com ela para distinguir as
sílabas. Em outros termos, trata-se de um vai-e-vem permanente.
Sobretudo, o que eu sei é que tinha vontade de saber ler e que é di-
fícil impedir alguém de aprender quando ele tem vontade de aprender:

39 Havia, paralelamente, uma escola privada para meninas com duas turmas, funcionando
também sob a forte influência do poderoso fazendeiro local antes evocado. Uma escola
pública mista funcionava, ainda, com uma só turma e era frequentada, essencialmente,
por filhos de professores e por aqueles da assistência pública acolhidos em famílias da
comuna, geralmente pobres, mas muito generosas.

100
muito antes do método, está a capacidade do professor para desenvolver
o desejo de aprender e até mesmo a alegria profunda que se tira daí, para
retomar a extraordinária expressão de Georges Snyders40.
Mas eu não saberia fechar esse período sem evocar os apoios que
minha mãe assim e eu sempre tivemos da parte de nossas duas famílias.
A todos os seus membros a quem eu devo muito, e os anos seguintes
sempre me mostraram ou me fizeram lembrar o apego e a estima que
eles ou elas mantinham pelo meu pai. Eu penso, entretanto, dever ainda
mais a uns ou a umas. Na família Toublanc, em primeiro lugar, ao meu
avô Julien, homem tão curioso e tão atento aos outros que me apresen-
tou a fazenda e seus animais, a natureza e o respeito que lhe devemos.
Pude aprender a selar um cavalo e a guiá-lo, e tantas outras coisas, com
as quais me parece que ele manteve uma profunda conivência ao longo
de sua vida, especialmente através dos nossos combates pacíficos mas
apaixonados, no jogo de damas ou em outros jogos de sociedade; e há
também minha tia mais nova, Irène, três anos mais velha que eu, por
quem sempre mantive estima e afeição, e a quem, de fato, sempre con-
siderei como minha irmã mais velha. Na família Gérard e um pouco si-
metricamente, minha tia-avó Eugénie que, sendo de uma família menor
(de 4 meninos), me considerava como seu primeiro neto, uma vez que
considerava meu pai um pouco como o primogênito de seus próprios
filhos. Eu me regalava com seus pratos sempre maravilhosos e com suas
galletes de sarraceno, sem esquecer seus grandes abraços quando eu ti-
nha de dormir na sua casa: uma avó inigualável; mas também seu filho
mais novo, Roger, sete anos mais velho que eu, que sempre me conside-
rou seu irmãozinho: nós nos perdemos de vista em algum momento da
vida e continuo a lamentar por isso, especialmente agora que ele acaba
de falecer.
Enfim, algumas palavras sobre um incidente que mostra o quanto
se pode ferir uma criança de 9-10 anos, cuja vida já machucou bastante.
Minha avó materna tinha um irmão sacerdote missionário no Canadá
que, a cada dois ou três anos, parece-me, nos visitava. Ele era impressio-
nante aos nossos olhos pela sua erudição, mas também sentencioso aos

40 SNYDERS, G. La joie à l’école. Paris: PUF, 1986.

101
meus olhos: no fundo, o oposto de meu querido avô. Ele havia chegado
ao final da primavera de 1945 e propôs à minha mãe que eu o acompa-
nhasse dois dias na visita ao meu tio mais novo, Joseph, um ano mais
velho que eu, escolarizado num internato no departamento vizinho do
Loire Atlantique e à beira-mar, num pequeno seminário, primeiro nível
em vista do sacerdócio. Nós dissemos sim, prevendo dois dias de pré-
-férias à beira mar, pouco antes do verão. Mas, desde a primeira refeição
oferecida ao meu tio-avô, na qual eu era a única criança convidada, e as
questões que me foram dirigidas, eu não podia deixar de compreender
o propósito da viagem. E, tendo em conta o desejo de meu pai nesse
domínio, que não era ignorado por esse tio-avô, pois ele sabia tudo pela
minha avó, essa viagem me pareceu uma enorme traição, totalmente
inaceitável. Eu me mantive silencioso pelo resto da viagem e, na volta,
fiz minha mãe prometer de eu nunca mais ver esse tio-avô. Evidente-
mente, esse incidente não deixou de ter consequências sobre as minhas
orientações ulteriores.

Nossa chegada e inserção na região parisiense. Na sequência, minha


escolarização...

Recém-chegada à região parisiense, no verão de 1945, minha mãe


tinha duas prioridades: encontrar um alojamento decente e um trabalho
estável. Passadas algumas semanas, estávamos instalados num pequeno
mas muito bom alojamento, situado numa bela comuna na periferia sul,
a menos de 3 quilômetros de Paris; e ela tinha conseguido encontrar, na
comuna vizinha, um cargo de escriturária – para se ocupar da contabili-
dade –, o que correspondia a suas competências e à sua elegante caligra-
fia de lindos delineamentos, sem dúvida reconhecidos graças ao seu pre-
cioso CAP e à sua experiência de agente postal. Ela permaneceria nesse
campo profissional até o desenvolvimento fulgurante do setor terciário
e à utilização maciça das novas tecnologias (estenografia e datilografia),
ou seja, cerca de quinze anos mais tarde, quando foi obrigada a uma re-
conversão para empregos de “pequenas mãos” do setor secundário, nos
domínios da fabricação dos rádios e televisores, nos quais o trabalho das

102
mulheres era altamente considerado, como o fora anteriormente no se-
tor relojoeiro, por exemplo; ela ficou lá até sua aposentadoria, por volta
de 1975. Em vista das facilidades de transporte, após alguns anos em su-
búrbios, ela nos levou para Paris, nunca longe da estação Montparnasse,
e lá permaneceu até o final de suas atividades profissionais. Mas, como
mulher organizada que era, já havia vislumbrado sua aposentadoria; a
cerca de cinquenta quilômetros de Paris, primeiramente em Itteville,
numa casa com um grande jardim que se tornou sua paixão, adquirida
graças à herança recebida de seus pais (claro, herança modesta, porque
repartida entre 9 irmãos e irmãs); um pouco mais tarde, uma bela casa
de andar térreo, sempre com um jardim que lhe permitia prosseguir nas
atividades em que brilhava, para a satisfação de todos os seus. Ela fale-
ceu aí em 1998 e, mais uma vez, de diferentes formas, as duas famílias,
mas talvez mais os Toublancs que os Gerard, mostraram sua profunda
solidariedade e a estima que todos tinham por ela.
Com o alojamento encontrado, minha mãe me matriculou na es-
cola primária pública do meu bairro nas semanas que antecederam o
início das aulas. No meu boletim constavam as apreciações muito posi-
tivas do meu professor privado, mas o diretor, dizendo que o quinto ano
estava sobrecarregado, me matriculou, ao menos provisoriamente, no
quarto ano41. Meu professor não economizava seus encorajamentos, me
fazendo sentir meio desconfortável. Após duas ou três semanas, ele con-
firmou que eu conseguiria acompanhar o quinto ano, mas me manteria
em sua turma e me ajudaria, já pensando que eu devia a partir desse
ano realizar os exames para passar para o sexto ano. E foi isso o que ele
combinou com o diretor, de modo que eu poderia seguir os estudos da
noite com o professor e os alunos do quarto ano. O ano ocorreu assim,
muito bem sucedido, com o prêmio de honra além do mais, graças a
ele. As circunstâncias fizeram com que eu jamais o revisse; mas meço
minha dívida.
Eu prestei, portanto, dois exames de admissão para o sexto ano,
pois eles eram efetivamente distintos: um previa o ingresso no curso

41 Retrospectivamente, geralmente penso que a desconfiança do diretor era devida também


ao julgamento que ele fazia sobre o meu professor bretão.

103
complementar (que mais tarde seria chamado de colegial), o outro, a
entrada no liceu. Fui aprovado nos dois: no do curso complementar de
minha vila e no de um grande liceu próximo à periferia de Paris, o liceu
Michelet de Vanves. Minha mãe e eu optamos pelo primeiro, que nos
parecia mais próximo e em todos os sentidos mais seguro; eu entrei,
portanto, no curso complementar em 1946. Efetuei uma boa escolariza-
ção, cada vez melhor com o passar dos anos. Ali encontrei um professor,
o professor de matemática, que me ajudou a construir meu caminho,
preparando-me para o exame de admissão à Escola Normal de Pro-
fessores: psicologicamente primeiro, porque ele me convenceu e con-
venceu minha mãe a não interromper os meus estudos; concretamente
porque depois, juntamente com dois dos meus colegas de turma, ele
nos preparou, todos os dias após o estudo da noite, entre 18 e 19 horas,
durante vários meses, para o concurso. Eu o revi algumas vezes, gostaria
de ter lhe falado sobre a oportunidade que ele me proporcionou, mas,
curiosamente, nunca ousei.
Fui aprovado nesse concurso da Escola Normal de Paris, mas de
maneira mediana: eu era jovem em relação ao conjunto dos candidatos
e, sobretudo aos admitidos (éramos poucos com apenas 15 anos). Eu
certamente tinha as competências escolares esperadas, mas absoluta-
mente a cultura geral da maioria dos meus colegas, muitos deles filhos
de executivos de nível médio ou de professores, que tinham passado por
preparações especiais em tempo integral. Entretanto eu lutei e encontrei
apoios. Completei minha escolaridade, obtive o bacharelado sem maio-
res dificuldades e tentei, em vão, prolongar um cursus de estudos, depois
fiz a formação profissional com interesse. Fui nomeado professor aos
19 anos, em 1954. Não creio que tivesse vocação para esse métier, mas
tinha, sobretudo, a intenção feroz de perseguir os estudos42 e, especial-
mente, num quadro diferente daquele que queria me propor o irmão da
minha avó materna.

42 Estava persuadido de que eu não permaneceria lá.

104
Uma primeira etapa profissional aos 25 anos (1954-1978)

Esse período coincide, em grande medida, com o dos “Trinta Glo-


riosos” (1946-1975), marcado em particular na Europa por um forte
desenvolvimento econômico e um quase pleno emprego: uma situação
globalmente favorável, que não significa evidentemente uma situação
favorável para todos. É também um período que marca o fim da IV
República, nascida no final da guerra 1939-1945, e, diante da Guerra
da Argélia, faz apelo, desde 1958, ao General de Gaulle, que proporia os
fundamentos da V República e faria com que os mesmos fossem ado-
tados em 1962. E seus prolongamentos com, após Charles de Gaulle,
a presidência de Georges Pompidou, seguido de Valéry Giscard d’Es-
taing. Esse período contou, igualmente, com profundos distúrbios so-
ciais: no setor primário (agrícola), desertificação do campo e fechamen-
to de muitas escolas rurais, eliminação das pequenas explorações em
benefício das mais importantes, mecanização do trabalho provocando
o êxodo de uma mão de obra não qualificada para as cidades e desen-
volvimento sem precedente das indústrias agroalimentares. No setor se-
cundário (industrial), pensemos por exemplo no automóvel, mas tam-
bém nos eletrodomésticos; um desenvolvimento sem precedente, que
leva ao emprego imediato de pessoas pouco formadas, especialmente
de origem estrangeira, mas também à formação de muitos executivos e
técnicos ou engenheiros. Enfim, um desenvolvimento acelerado e sem
precedente do setor terciário (empregos e serviços). Assim, a demanda
por educação e, em particular, de acesso ao ensino secundário, só pode-
ria crescer, ainda mais que o crescimento demográfico era forte.
Mas também tivemos maio de 1968, e um movimento social de
amplitude pouco comum, indo muito além das universidades que pre-
cisaram, por isso, passar por reformas (Leis Faure), com incidentes pro-
fundos em todos os domínios, inclusive o das mentalidades. Por exem-
plo, a propósito das classes mistas que, em alguns meses, se impuseram
em todos os níveis do nosso sistema educacional.
Obtive minha primeira vaga como professor no outono de 1954
numa comuna da periferia sul, Fresnes, 5 ou 6 quilômetros de Paris:

105
uma comuna como muitas outras, talvez um pouco mais rural que ou-
tras, mas onde as torres substituíram rapidamente os prados e os cam-
pos que restavam. Um único grupo escolar, no centro e em torno da
prefeitura, reunia as escolas de meninos e de meninas, assim como a
escola maternal. Os professores constituíam uma equipe unida e agra-
dável a se integrar. Fiquei lá até minha ida para o serviço militar em
março de 195643.
Em abril de 1958, depois de pouco mais de dois anos de serviço
militar, inclusive um ano de Guerra da Argélia, pedi para retornar à
mesma escola, inserindo-me em suas atividades extracurriculares, es-
pecialmente em sua colônia de férias. Ao me casar em 1959, pedi minha
transferência para um dos grupos escolares de uma comuna vizinha
um pouco maior, Choisy-le-Roi, onde morava. Eu continuava na escola
primária, onde ensinei de setembro de 1959 a junho de 1962: eu tinha
escolhido ensinar no último ano do 1º ciclo, onde se encontravam todos
aqueles que haviam reprovado no exame de ingresso ao sexto ano, e que
me pareciam pouco diferentes de muitos que tinham sido aprovados.
Encontrei muitos alunos que poderiam ter realizado outros percursos,
pois muitos deles se mostraram efetivamente muito capazes quando as
reorientações eram possíveis. Rapidamente concluí que era preciso agir
antes, a fim de evitar resolutamente os guetos.
A Lei Debré, promulgada em 1959 apesar das fortes oposições do
campo laico, no qual eu me encontrava, concede uma ajuda substancial
aos estabelecimentos privados (notadamente o salário dos professores
através do orçamento do Estado), sob reserva de um contrato por meio
do qual eles se comprometem a participar do plano de educação fixado
pelo Estado, respeitando os programas oficiais. Hoje ela é considerada
como uma lei consensual, como a célebre lei de separação das Igrejas
e do Estado (1905). Mas a Lei Guermeur (1977) também mostrou o
quanto o equilíbrio permanecia frágil em relação a uma direita profun-
damente conservadora.
43 Formalmente contrário a essa guerra, eu fiz de tudo para não participar, e recusei até o
ponto de ser graduado. Mas o estatuto de consciência ainda não existia. E, após um ano,
fui transferido para um regimento que tinha sido dissolvido durante a guerra de 1914-
1918 por insubmissão: não havia outra escolha.

106
Desde o começo dos anos sessenta, do período chamado de “ex-
plosão” escolar, o ensino secundário foi forçado a abrir suas portas,
desenvolvendo mais amplamente os antigos cursos complementares.
Novas possibilidades de acesso a esses cursos foram oferecidas aos pro-
fessores sob certas condições (um certificado de mérito atribuído pelo
inspetor de um nível mais elevado) e com base num exame que verifi-
cava as competências dos postulantes, tanto em termos de saber quanto
de transmissão dos saberes. Eles se tornaram novos professores, menos
especializados do que os professores certificados (uma disciplina úni-
ca, por exemplo, matemática), bivalentes (por exemplo, matemática e
ciência ou francês e inglês...): o futuro corpo de professores de educação
geral (GCEP). Apresentando as condições requeridas à bivalência mate-
mática-ciências, eu postulei e fui aceito, tendo sido normeado no início
do ano letivo de 1962.
A reforma Fouchet (1963) marca uma etapa importante na gene-
ralização do acesso ao ensino secundário. O exame para ingressar no
sexto ano desaparece, uma vez que todas as crianças, no final da es-
cola primária, poderiam ser admitidas nos futuros colégios de ensino
secundário (CES). Mas em três habilitações bastante diferenciadas: I.
Clássico e moderno longo – para professores certificados e agregados44;
II. Moderno curto – PEGC; III. Transição – professores primários espe-
cializados. Estamos bem longe do colégio único que muitos esperavam.
De 1962 a 1972, atuei, portanto, como professor de colégio (PEGC).
Eu militava, sindicalmente, mas também, através da minha prática pe-
dagógica cotidiana, contra as habilitações e, em particular, a habilitação
III que, de fato, exceto em casos muito raros, constituía apenas um gue-
to. As passagens do moderno curto para o moderno longo eram mais
fáceis, especialmente após a harmonização dos programas previstos nas
leis Faure (1968), e alguns colégios chegaram, por sua própria iniciativa,
praticamente a apagar a distinção: foi o caso em particular do colégio
de Choisy le Roi, no qual ensinei por oito anos; na verdade, tínhamos
organizado uma espècie de “colégio único” antes da hora, assim como

44 Do original agrégé, título adquirido pelos professores aprovados no concurso intitulado


“agregação”, podendo atuar como professor em diferentes níveis de formação. (N.T.)

107
formas de apoio e recuperação, notadamente no quadro dos estudos su-
pervisionados da noite.
O desenvolvimento dos colégios, e principalmente dos CES (se
falava da abertura de um novo CES por dia), trouxe consigo a neces-
sidade de pessoal de direção. Ainda mais porque cada um foi colocado
sob uma dupla responsabilidade: um diretor (certificado ou agregado),
acompanhado por um diretor adjunto (PEGC). As admissões exigiam a
inscrição em listas de aptidão, nas quais os candidatos eram classifica-
dos. Inscrito na lista dos diretores adjuntos, apresentei minha solicita-
ção tendo em vista o início do ano letivo, em setembro de 1972. Minha
colocação permitiu ser nomeado no mais importante CES de Choisy le
Roi: 30 turmas e cerca de uma centena de professores. Exerci essa função
até junho de 1976 e extraio daí um julgamento bastante complexo: cer-
tamente encontrei elementos muito positivos, com os professores ou as
famílias, nos contatos com a municipalidade ou com o centro cultural, e
talvez especialmente através dos conselhos de classe; mas, também, es-
pecialmente em relação aos alunos, a impressão de ser o último recurso
quando todos os outros meios haviam esgotado. Enfim, e mesmo com
a reforma Haby, penso que permanecíamos muito distantes do colégio
único que eu desejava. Não creio que eu pudesse permaner lá.
Com relação ao ano letivo de 1976/1977, obtive permissão para
seguir em tempo integral, a título de formação continuada, um estágio
anual (aproximadamente 1.000 horas) sobre técnicas e meios modernos
de educação, oferecido pela Escola Normal Superior de Saint-Cloud: um
afastamento de um ano para refletir sobre a utilização dessas técnicas,
visando controlar melhor a prática, graças a um enquadramento perma-
nente de qualidade aos meios muito consequentes e às intervenções de
especialistas universitários ou do mundo audiovisual de alto nível. Um
ano excepcional.
Foi, portanto, com pouco entusiasmo que retomei a vaga de diretor
adjunto no retorno às aulas em setembro de 1977. Mas eu permaneceria
ali apenas alguns meses.

108
Meus preparativos em vista de uma eventual transição

Desde o início dos anos 1960 e, especialmente, pensando no meu


projeto de ingressar no corpo dos PEGC, retomei os estudos, mas sobre-
tudo de maneira informal e, geralmente, de modo muito individual: em
matemática, e em particular em matemática moderna, em informática
ou em linguística, por exemplo. No entanto, eu sentia que, se realmente
quisesse progredir, seria necessário construir um cursus, e um cursus
válido.
Um colega e amigo muito próximo, Serge Hermine, que tinha sido
professor na equipe do nosso colégio e acabara de ser nomeado assisten-
te na Universidade de Paris-Descartes, onde defendera sua tese, enalte-
cia as ciências da educação, que acabavam de nascer45 como disciplina
universitária, afirmando que não poderíamos deixar de nos interessar
pelos cursus propostos. Após discutir sobre as formações oferecidas, en-
tre cinco ou seis amigos muito próximos, decidimos nos matricular co-
letivamente em setembro de 1972. Certamente, esse coletivo foi muito
importante e uma fonte de emulação muito forte.
Obtive assim minha graduação e depois meu mestrado. Um dos
meus professores, Max Lumbroso, mestre de conferências, propôs que
eu assumisse um curso de metodologia e estatística, e passei, portanto, a
ensinar na Universidade de Paris-Descartes a partir do outono de 1974.
Paralelamente, iniciei uma tese de doutorado em sociologia da educa-
ção sob a brilhante e eficaz orientação de Viviane Isambert-Jamati, a
quem eu jamais conseguirei elogiar o suficiente as imensas qualidades
profissionais e humanas. Essa tese estava em fase de conclusão no final
de 1977 quando um cargo de assistente correspondendo muito bem ao
meu perfil estava para ser preenchido na Escola Normal Superior de
Saint-Cloud. Restava-me apenas tentar minha sorte.
A comissão de especialistas me classificou dentre os candidatos a
serem chamados, atribuindo-me o primeiro lugar. Entretanto, essa co-
missão, na ENS, tinha apenas voz consultiva, a decisão final ficando a

45 Criada em 1967 em três departamentos: Bordeaux (Jean Château), Caen (Gaston Miala-
ret), Paris-Descartes (Maurice Debesse).

109
cargo do diretor. Eu tinha um problema: o de não ser ex-aluno da Es-
cola, enquanto outros candidatos bem-sucedidos o eram. Após a en-
trevista com o Diretor, a espera de vários dias pareceu enorme. Mas ele
confirmou a avaliação da comissão.
Eu não gostaria de concluir esta parte sem acrescentar a lista das
obras do período, por me parecerem muito importantes em relação aos
meus centros de interesses e, em grande medida, passagens obrigatórias
para jovens pesquisadores em ciências sociais e educação. Ainda mais
porque, entre esses autores, muitos se tornaram próximos do ponto de
vista profissional e, muitas vezes, também amical. Essa seleção perma-
nece um ponto de vista e, portanto, diz respeito tão somente a minha
experiência.

Obras importantes do período 1954-1977


BAUDELOT, C., ESTABLET, R. L’école capitaliste en Fran-
ce. Paris: Maspero, 1971.
BOUDON, R. L’inégalité des chances, La mobilité sociale
dans les sociétés industrielles. Paris: COLIN, 1973. [A de-
sigualdade das oportunidades: a mobilidade social nas so-
ciedades industriais. Trad. Carlos Alberto Lamback. Brasí-
lia: Ed. Univ. de Brasilia, 1981.]
BOURDIEU, P., PASSERON, J.-C. Les héritiers. Paris: Mi-
nuit, 1964. [Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Trad.
Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2014.]
BOURDIEU, P., PASSERON, J.-C. La reproduction. Paris:
Minuit, 1970. [A reprodução: elementos para uma teoria
do sistema de ensino. Tradução de Reynaldo Bairão. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1975.]
CHERKAOUI, M. Les paradoxes de la réussite scolaire. Par-
is: PUF, 1973.
DUMAZEDIER, J. Société éducative et pouvoir culturel.
Paris: Seuil, 1976.
110
GIRARD, A. (dir.) Populations et l’enseignement. Paris:
PUF, INED, 1970.
GFEN, L’échec scolaire, doué ou non doué? Éditions socia-
les, 1974.
HOGGART, R. La culture du pauvre (trad. fr.). Paris: Mi-
nuit, 1970.
ISAMBERT-JAMATI, V. Crises de la société, crises de l’en-
seignement. Paris: PUF, 1970.
LEGRAND, L. Pour une politique démocratique de l’éduca-
tion. Paris: Presses Universitaires de France, 1977.
PORCHER, L. L’école parallèle. Paris: Larousse, 1974.
SEGRÉ, M. École, formation, contradictions. Paris: Édi-
tions sociales, 1976.
SNYDERS, G. Où vont les pédagogies non directives? Paris:
PUF, 1975.
SNYDERS, G. École, classe et lutte des classes. Paris: PUF,
1976. [Escola, classe e luta de classes. Trad. de Leila Prado.
São Paulo: Centauro, 2005.]
TANGUY, L. Le Capital, les travailleurs et l’école. Paris:
Maspero, 1976.
TARDY, M. Le professeur et les images. Paris: PUF, 1966.

Um segundo pedaço de minha vida profissional (1978-2003)

Os “Os Trinta Gloriosos” já ficaram para trás e uma nova crise


petrolífera castiga desde 1973: durante a presidência de Valéry Giscard
d’Estaing, a tendência pende mais para a recessão econômica e a desace-
leração da demografização da educação em todos os níveis, da educação
infantil às universidades; e o neoliberalismo, sem dúvida, impõe seus
limites.
A eleição de François Mitterand suscitou na França, a meu ver, uma
esperança, porque ele era, em vários aspectos, portador de um consenso

111
e de um projeto. Era a primeira vez que, por um longo tempo (dois man-
datos sucessivos de sete anos), ainda que se leve em conta os périodos de
coabitação, a esquerda governava. Para citar apenas alguns exemplos, a
abolição da pena de morte foi confirmada, o que representa um impor-
tante avanço: o Muro de Berlim e os Estados socialistas entraram em
colapso, apesar disso, a coesão franco-alemã se manteve. Certamente,
a guerra escolar foi retomada, e em duas vezes, mas a demografização
escolar, e mesmo sua democratização, continuou, mais lentamente, mas
de forma regular, a progredir.
O primeiro mandato de Jacques Chirac (1995-2002) se situa pre-
cisamente nesse período, mas isso de fato é muito particular: dois anos
tendo como primeiro-ministro Alain Juppé, cujo plano CPE (Contra-
to de Primeiro Emprego) engendra uma das maiores mobilizações dos
jovens nunca vistas, levando Jacques Chirac a dissolver a Assembleia
Nacional. Uma nova maioria, de esquerda, foi eleita, com a qual ele teve
que governar por 5 anos, tendo Lionel Jospin como primeiro ministro;
o cargo de Ministro de Graduação Nacional foi ocupado por Claude
Allègre, depois, por Jack Lang. Em termos de resultados referentes ao
desenvolvimento da educação, permanecemos, no entanto, do lado da
estagnação. Mas quem, em coabitação, seria responsável por esses re-
sultados?
A eleição de 2002 (o mandato tinha sido reduzido para 5 anos) foi
um verdadeiro seísmo. Lionel Jospin foi eliminado no primeiro turno,
dando lugar à Frente Nacional, representada por Jean-Marie Le Pen.
Jacques Chirac foi amplamente reeleito, apoiado pela maioria dos
partidos de esquerda. Ele escolheria Jean-Pierre Raffarin como primei-
ro-ministro e Luc Ferry como ministro da Educação Nacional.
O ano de 1978 foi, para mim, um ano de sorte, que, sem dúvida,
orientou favoravelmente meu futuro profissional, ou ao menos me enco-
rajou. Em janeiro, fui nomeado assistente na Escola Normal Superior de
Saint-Cloud, primeiramente no Centro Audiovisual (CAV), onde par-
ticipavámos da formação sobre as técnicas modernas de educação nas
escolas normais, depois, após 1981, no laboratório de ciências sociais,
onde preparavámos para o concurso de agregação: vinte e cinco anos

112
antes, depois da minha formação na Escola Normal de Professores, eu
tinha invejado meus colegas de promoção que tinham solicitado a con-
tinuação dos estudos na ENS, mas, por várias razões, eu simplesmente
não ousei fazê-lo. Poucos meses depois, defendi minha tese de terceiro
ciclo na Universidade de Paris-Descartes. Duas semanas após a defesa,
matriculei-me a fim de preparar um doutorado de Estado, sempre sob a
orientação de Viviane Isambert-Jamati.
Em 1980/1981, o responsável pelo estágio de técnicas e meios mo-
dernos de educação desejava se beneficiar de um ano sabático. Ele pro-
pôs que eu o substituísse durante um ano. Aceitei com prazer, principal-
mente porque ele havia se tornado meu amigo. Além disso, participar
de uma equipe que eu conhecia bem, de um trabalho de formação que
eu tinha conhecido como estagiário, me parecia uma experiência peda-
gógica apaixonante. Este foi o caso.
Desse período e de minha passagem pela ENS de Saint-Cloud, eu
poderia homenagear um grande número de pessoas, das mais anônimas
às mais reconhecidas, dos secretários exemplares ao diretor, agradecen-
do-lhes coletivamente. Mas gostaria de homenagear particularmente
Louis Porcher; ele é um dos que, em momentos difíceis, me ajudaram
a recuperar a autoconfiança, ao me convidar para participar da consti-
tuição do laboratório de ciências sociais que ele havia criado e, talvez,
acima de tudo, porque, a partir dali, um clima de cumplicidade intelec-
tual e de confiança mútua se criou entre nós, permitindo-nos, juntos,
encorajar e apoiar estudantes susceptíveis de empreender, por sua vez,
graças a nós, carreiras universitárias.
No início de 1981, especialmente quando Alain Savary, Ministro
da Educação Nacional, relançou as políticas de formação inicial e con-
tinuada, participei de muitas ações nas escolas normais ou em colégios
em reforma. Especialmente na formação continuada, experimentei si-
tuações entusiasmantes para um formador, em face de colegas, muitas
vezes voluntários é verdade, que já tinham tido ao menos uma breve
experiência, e queriam realmente aprofundar sua reflexão teórica, vi-
sando melhorar sua própria prática. Espero ter dado um pouco a eles,

113
mas reconheço que eles me possibilitaram muito. Estou completamente
convencido de que o essencial é realmente a formação continuada.
No ano seguinte, em 1982, passei a integrar uma equipe de pes-
quisa em sociologia da educação vinculada ao CNRS, implantada na
Universidade Paris-Descartes e dirigida por Viviane Isambert-Jamati.
O ano de 1983 foi decisivo para a minha própria carreira universi-
tária: nomeado mestre-assistente em Ciências da Educação na Univer-
sidade Paris-Descartes em março, defendi minha tese de doutorado de
Estado algumas semanas depois, sob a orientação de Viviane Isambert-
-Jamati e sob a presidência do professor Alain Girard, um grande soció-
logo, a quem devo muito e que constituiu, na minha carreira universitá-
ria, juntamente com alguns outros, uma forte referência. Fui nomeado
professor das universidades em dezembro, permanecendo, com muita
satisfação, em atividade durante vinte anos.
Ensinei sociologia na graduação, no mestrado e no doutorado de
terceiro ciclo, tendo orientado muitas teses francesas e estrangeiras.
Além disso, assumi, ao longo do período que deu sequência à minha
nomeação, uma série de responsabilidades coletivas: particularmen-
te durante o período Mitterrand, dirigi a Unidade de Formação e de
Pesquisa (UFR) de ciências da educação entre 1984 e 1988, depois o
Diploma de Estudos Aprofundados (DEA) e a formação doutoral entre
1989 e 1993. Fui eleito membro do Conselho Nacional das Universida-
des (CNU) em várias ocasiões e presidente da seção 70 desse Conselho,
referente às ciências da educação, a partir de 1992. Também fui eleito
vice-presidente da minha universidade em 1993 e diretor fundador da
Escola Doutoral “Educação, linguagem, sociedades” a partir de 1994.
Retornarei apenas muito brevemente à minha própria atividade
de pesquisa: para o leitor, as publicações são, evidentemente, o melhor
testemunho. Além daquelas relacionadas às minhas duas teses e às duas
obras de estatística aplicada escritas com Jean-Claude Porlier (como
listado nas principais obras), decidi concentrar meu olhar sobre o re-
corrente problema das relações entre os setores público e privado na
educação: o período Mitterrand foi marcado por duas fortes crises (em
1984 e em 1994). Dada a amplitude dessa tarefa, propus uma associação

114
com um de meus colegas, Alain Léger, que durou praticamente 10 anos,
tendo contado também com a participação de um de nossos amigos
historiadores, Claude Lelièvre; uma experiência, creio poder dizer, que
trouxe satisfação a todos. Nesse caso também, as publicações (conforme
lista) testemunham os avanços; mas também teses muito bem-sucedi-
das foram publicadas, como, por exemplo, a de Yveline Jaboin sobre um
estudo comparado dos professores dos dois setores. Enfim, e na última
década, retomei o tema da democratização, especialmente porque já se
percebia que as desigualdades, que tinham diminuído em alguns perío-
dos, tendiam, sobretudo a partir de 1995, a retomar sua ascenção: é isso
o que aparece através do PISA, mas também através de outras publica-
ções, inclusive as minhas.

Obras do período ou publicadas posteriormente que me


foram interessantes (Estão organizadas por ordem de pu-
blicação. Na verdade, esta escolha diz respeito apenas ao
meu ponto de vista).
Obras em geral: L’interculturalisme en Europe, Conseil
de l’Europe (PORCHER,1978); Histoire générale de l’en-
seignement et de l’éducation en France, tome IV (PROST,
1982); Le piège scolaire (BERTHELOT, 1983); L’école en
mutation (CHARLOT, 1987); L’école est-elle rentable? (ES-
TABLET, 1987); Tel père, tel fils. Position sociale et origine
familiale (THÉLOT, 1988); École et culture (FORQUIN,
1989) [Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do
conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993];
Histoire des institutions scolaires – 1789-1989 (LELIÈVRE,
1990); Les lycéens (DUBET, 1991); École et justice (DE-
ROUET, 1992); Ethnométhodologie et éducation (COU-
LON, 1993); Système éducatif et réformes (Robert, 1993);
La leçon de Condorcet (DUMAZEDIER, dir., 1994); L’école
des présidents, de Charles de Gaulle à François Mitterrand
(LELIÈVRE, NIQUE, 1995); Les sociologues de l’éducation
américains et britanniques (FORQUIN, 1997); Les jeunes,

115
l’insertion, l’emploi (CHARLOT, GLASMAN, 1998); L’ex-
cellence scolaire: une affaire de famille. Le cas des norma-
liennes et normaliens scientifiques (FERRAND, IMBERT,
MARRY, 1999); Réussir l’école (JOUTARD, THÉLOT,
1999); Les inégalités multipliées (DUBET, 2001) [As desi-
gualdades multiplicadas. Ijui: Inijui: 2000]; Les politiques
scolaires mises en examen (LELIÈVRE, 2002); L’école et
l’argent (GAUTHIER, ROBERT, 2005); Le système éducatif
en France (TOULEMONDE, 2006).
Democratização: seleção ou orientação, igualdades ou
desigualdades: La fabrication de l’excellence scolaire (PER-
RENOUD, 1984); L’enseignement s’est-il démocratisé?
(PROST, 1986); Le niveau monte, Réfutation d’une vieille
idée concernant la prétendue décadence de nos écoles (BAU-
DELOT, ESTABLET, 1988); Le fonctionnement de l’orien-
tation (DURU-BELLAT, 1988); La Bonne École. Évaluation
du choix du collège et du lycée (BALLION, 1991); Pour une
approche analytique du système éducatif (DURU-BELLAT,
MINGAT, 1993); La démocratisation de l’enseignement
aujourd’hui (LANGOUËT, 1994); Tableaux de familles.
Heurs et malheurs scolaires en milieux populaires (LAH-
IRE, 1995) [Sucesso escolar nos meios populares: as razões
do improvável. São Paulo: Ática, 1997]; L’évaluation des
élèves, enquête sur le jugement professoral (MERLE, 1996);
Les projets d’établissements (DEVINEAU, 1998); Collè-
ges en milieu populaire (DUBREUIL, 1999); L’hypocrisie
scolaire (DUBET, DURU-BELLAT, 2000); Les inégalités
à l’école. Genèses et mythe (DURU-BELLAT, 2002); École
et changement (BALUTEAU, 2003); Les oubliés de l’école
(Langouët, 2003); L’apartheid scolaire (FELOUZIS, LIOT,
PERROTON, 2005); Prévenir l’exclusion scolaire et sociale
des jeunes (ZAY, 2005).

116
Regiões de educação prioritária, discriminação positiva:
Fugir ou construir uma escola popular? (LÉGER, TRIPIER,
1986); L’école et l’espace local. Les enjeux des ZEP (HEN-
RIOT-VAN ZANTEN, 1990); Les savoirs scolaires (ISAM-
BERT-JAMATI, 1990).
As práticas pedagógicas, os métodos, as turmas e o con-
selho de classe: Suffit-il d’innover? (LANGOUËT, 1985);
L’enfant, la maternelle, la société (PLAISANCE, 1986);
L’école primaire au quotidien (SIROTA, 1988) [A escola
primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994];
Sociologie de l’éducation physique (COMBAZ, 1992); Le
conseil de classe: “peut mieux faire” (BALUTEAU, 1993);
Le collège au quotidien (FELOUZIS, 1994).
Escolarização de meninas: L’école des filles. Quelle forma-
tion pour quels rôles sociaux? (Duru-Bellat, 1990); Histoire
de la scolarisation des filles (LELIÈVRE C., LELIÈVRE F.,
1991); Allez les filles! (BAUDELOT, ESTABLET, 1992).
Sociologia dos professores: Enseignants du secondaire
(LÉGER, 1983); Les professeurs de l’enseignement se-
condaire (CHAPOULIE, 1987); Instituteurs: un coup au
moral! (CHARLES, 1988); L’ère des enseignants (HIRS-
CHHORN, 1993); Les professions de l’éducation et de la
formation (BOURDONCLE, DEMAILLY, 1998); Les en-
seignants, l’école et la division sociale (PEYRONIE, 2000);
Le prof dans tous ses états (JABOIN, 2003); La sociologie,
une science pour former les enseignants? (BALUTEAU,
2005).
As mídias e as novas tecnologias: L’informatique disci-
pline scolaire? Le cas des lycées (BARON, 1989); Laissez-
-les regarder la télé (MARIET, 1989); Télévision, culture,
éducation (PORCHER, 1994) L’informatique et ses usagers
dans l’éducation (BARON, BREUILLARD, 1996); L’éduca-

117
tion et les médias (GONNET, 1999); Les médias entre édu-
cation et communication (PORCHER, 2006)
Ensino público/ensino privado: Les consommateurs
d’école (BALLION, 1982) ; École publique ou école privée?
Trajectoires et réussites scolaires (LANGOUËT, LÉGER,
postface de Lelièvre C., 1994); Le choix des familles (LAN-
GOUËT, LÉGER, 1997) ; ÉLÈVES, PARENTS, ENSEIG-
NANTS (LANGOUËT, 2002).
Saberes escolares: Culture technique et critique sociale à
l’école élémentaire (ISAMBERT-JAMATI, 1984) ; Les sa-
voirs scolaires (Isambert-Jamati,1990) ; École et savoir dans
les banlieues… et ailleurs (CHARLOT, BAUTIER, RO-
CHEX, 1992).
Ensino técnico: L’introuvable relation formation/emploi
(TANGUY, dir., 1986); Quelles formations pour les ouvriers
et les employés en France? (TANGUY, 1991).
Manuais: Sociologie de l’école (DURU-BELLAT, HENRIO-
T-VAN ZANTEN, 1992); Sociologie de l’éducation (CA-
COUAULT, OEUVRARD, 1995); L’école et ses sociologies
(DE QUEIROZ, 1995).

Em 1995, durante a eleição de Jacques Chirac para a Presidência da


República, eu permanecia como professor da Universidade Paris-Des-
cartes, vice-presidente do grupo Ciências Humanas e responsável pela
Escola Doutoral “Educação, Linguagem, Sociedades”, que havia criado
em 1994. Evidemente, eu continuava a oferecer meus cursos de sociolo-
gia da educação e a orientar um número bastante grande de teses elabo-
radas por estudantes franceses ou estrangeiros.
Em 1996, por razões de progressão na carreira e tendo em vista
minhas orientações de pesquisa, mudei da seção 70 (Educação) para a
seção 19 (Sociologia) do CNU. Fiz essa solicitação segundo as regras ad-
ministrativas que estavam em vigor e os pareceres foram unanimemente
positivos. Alguns colegas nem compreenderam nem apreciaram minha
118
solicitação; lamentei profundamente, pois trata-se de um procedimento
legal e suscetível de facilitar as evoluções disciplinares das carreiras.
Deixei de exercer a responsabilidade pela Escola Doutoral em 2000
e a de vice-presidente do grupo Ciências Humanas em 2001. Entre 1995
e 2001, fui sucessivamente eleito membro do Conselho dos Estudos e
da Vida Universitária (CEVU) e membro eleito do Conselho de Admi-
nistração (CA) da Universidade Paris-Descartes. Como vice-presidente,
era membro do birô da universidade, que é, em certo sentido, seu “Con-
selho de Ministros”, onde penso ter defendido com objetividade e com
vivacidade as ciências humanas em seu conjunto, no estrito respeito aos
outros componentes da nossa universidade pluridisciplinar.
Paralelamente à minha atividade coletiva interna, e no prolonga-
mento de minhas próprias atividades de pesquisa, eu queria realizar
uma atividade internacional. Durante esse período, efetuei diversas
missões nos seguintes países: Alemanha, Brasil, Chile, Egito, Espanha,
Itália, Romênia. Minha colaboração com o Chile, que começou no iní-
cio dos anos 1990, após a retirada do poder de Pinochet, nunca deixou
de se desenvolver, particularmente com a Faculdade de Educação da
Universidade Católica de Santiago do Chile, mas também com duas
outras universidades (Concepción e Valparaiso). Na UC de Santiago,
contribuí para a implantação de uma formação doutoral, em ligação
com o professor Sergio Arzola, sociólogo daquela Universidade, depois
responsável pela formação doutoral. Durante esse período, no quadro
das cotutelas e de uma convenção entre nossas duas universidades, em
conjunto com os serviços de ação linguística da Embaixada da França
no Chile, garantimos, em comum, a orientação de várias teses brilhan-
temente defendidas, as quais obtiveram o duplo selo de nossas univer-
sidades.
Finalizei oficialmente minhas atividades na Universidade Paris-
-Descartes no início do ano letivo de 2003, tendo, como dizem de ma-
neira elegante os textos, atingido o limite da idade e sido, consequente-
mente, “riscado dos quadros” [rayédes cadres]. Mas a Universidade me
conferiu o título de professor emérito, que mantenho até o presente, o
que me permite notadamente continuar orientando teses.

119
Enfim, eu dirijo fora da Universidade, mas em comum acordo, o
Observatório da Infância na França, que foi informalmente criado no fi-
nal de 1996 pela Federação dos Alunos da Educação Pública (PEP), por
iniciativa de seu presidente Christian Nique. Esse observatório assumiu
uma forma mais institucional, a de um grupo de interesse econômico
(GIE) criado em 1999, por iniciativa da Federação da PEP e da Mutuelle
Générale da Educação Nacional46 (MGEN), presidido à época por Alain
Chauvet, depois com a colaboração da CAMIF, da CASDEN-BP e da
MAE. Os princípios de funcionamento eram simples: um conselho de
administração encarregado de velar pelo bom funcionamento do GIE
e propor temas de observação e de estudo sobre a infância e a adoles-
cência e, particularmente, sobre os jovens em dificuldade; um conselho
científico responsável pelo acompanhamento das atividades realizadas
e uma pequena equipe permanente de pesquisa (chegamos a ter seis
pessoas em tempo parcial) sob minha responsabilidade e dotada de
total autonomia no quadros dos projetos assegurados. Entre a criação
e o final de 2005, o Observatório publicou sete livros, que abrangem
sua própria produção científica e a de universitários renomados nos
vários campos cobertos (conforme obras principais), vários relatórios
e resultados de enquetes, quase 90 números de um jornal mensal, tra-
tando cada um deles de diferentes temas, mas sempre problematizados.
Enfim, o Observatório promoveu conferências e seminários de forma-
ção e participou de colóquios nacionais ou internacionais. Gostaria de
prestar homenagem a todos os que permitiram seu desenvolvimento: os
membros da minha equipe permanente, todos os universitários e outros
parceiros que convidei para que se tornassem autores ou membros do
conselho científico, bem como a maioria dos administradores, especial-
mente os da primeira onda.

***

46 Mutuelle générale de l’Éducation nationale, voltada à assistência da saúde


dos professores franceses.
120
A administração francesa, como já evoquei, tem uma curiosa e
bastante deselegante maneira de desqualificar o fim da atividade profis-
sional de seus agentes: os que a serviram, muitas vezes ao longo de uma
vida, são pura e simplesmente “riscados do quadro”. Em 2003, quando
fui “riscado do quadro”, solicitei o título de emérito, a fim de continuar
a orientação das teses colocadas sob minha orientação, mas também
prolongar os laços com o tecido universitário na França e no exterior.
Estabeleci uma regra simples: com exceção do caso das teses em curso,
não vislumbraria ações em ligação com as universidades, inclusive com
a minha, a não ser aquelas que já havia solicitado. Mantive-me com essa
postura, e se fizesse um balanço, penso que as demandas vindas das
universidades estrangeiras eram ainda mais ricas e frequentes do que as
que emanavam da França, as quais, entretanto, não faltaram: colóquios,
missões devido à publicação de meus livros, participações em bancas de
defesas de teses.
Para citar apenas um exemplo, em 2016, a Associação Francesa
de Educação Comparada e Intercâmbios (AFDECE), uma associação
importante aos meus olhos, organizou um colóquio em homenagem
ao nosso colega e amigo Louis Porcher, recentemente falecido. Sua pre-
sidente, Dominique Groux, e eu propusemos que o mesmo ocorresse
na Universidade Paris-Descartes, onde ele trabalhou especialmente no
quadro da formação doutoral. Gostaria de sublinhar a qualidade e a
convivialidade que encontramos junto a todos, especialmente Joël Le-
beaume, Diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Rebecca
Rogers, Diretora do Departamento de Ciências da Educação e o profes-
sor Georges-Louis Baron, cuja tese eu orientei, assim como sua habilita-
ção para orientar pesquisas (HDR), que, com sua equipe, aceitou os en-
cargos do colóquio. Para mim, um excelente símbolo de continuidade.
A última tese que orientei foi defendida em 2008. Sua autora,
Fanny Salane, obteve a menção mais elevada, seguida de um primeiro
prêmio (ex aequo) de sociologia oferecido pelo Observatório da vida
estudantil (2009). Ela foi rapidamente admitida num cargo de mestre
de conferências na Universidade Paris-Ouest Nanterre e publicou um
livro resultado de sua tese em 2010; tudo isso levou a um momento de

121
grande satisfação. Eu mesmo havia acabado de publicar Cinquenta anos
de escola. E amanhã? que, como vimos, foi uma maneira de concluir e de
encerrar minha relação com o campo da sociologia da educação; agora
eu poderia ser definitivamente “riscado do quadro”.
O ano de 2008 também marca o início de uma nova crise social,
totalmente mundial dessa vez, e um novo começo rumo a uma socieda-
de cada vez mais desigual. Esse foi especialmente o caso na França, em
que, como mostram as pesquisas do PISA, o sistema escolar permanecia
muito desigual, o elevador social estava en pane, pois a oferta de empre-
go regredia, aumentando o número de situações precárias e de pobreza,
ou mesmo de probreza extrema. Em uma palavra, a teoria da reprodu-
ção formulada por Bourdieu e Passeron permanecia ainda mais explica-
tiva do que quando fora apresentada: não bastava obter diplomas para
esperar a inserção, e as primeiras vítimas eram como sempre os mais
desfavorecidos, os jovens dos subúrbios-guetos e as crianças oriundas
da imigração. Rapidamente me convenci de que as desigualdades, em
todas as suas formas, constituiriam o desafio maior do século XXI. Mas
também percebi que era necessário estudá-las levando em conta sua
complexidade.
Graças, sobretudo, aos dados do PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento), consegui contribuir para mostrar, em
nível mundial, uma diversidade totalmente intolerável e injustificável,
tanto entre os Estados quanto entre as cidades: diferenças profundas en-
tre os salários, os níveis de educação e de saúde das populações, muitas
vezes, mas nem sempre, em forte correlação de crescimento. Mas tam-
bém, por exemplo, na União Europeia e em relação a outros Estados,
situações mais próximas, inclusive entre homens e mulheres, especial-
mente nos estados do norte da Europa, que permitiriam uma aproxima-
ção mais rápida e de maior eliminação da pobreza. Duas obras foram
publicadas, em 2011 e 2014 (conforme obras principais), que mostram
tanto as aflições em que vivem alguns seres humanos, na África, por
exemplo, quanto as esperanças. Duas obras que me convenceram a ir
mais rápido no sentido de um desenvolvimento humano ampliado em

122
benefício de todos; esse conceito caro a Amartya Sen e ao PNUD, e com
o qual compartilho plenamente.
Atualmente, o mundo parece enlouquecido. As catástrofes natu-
rais ameaçam um planeta constantemente agredido, as guerras de to-
dos os tipos ressurgem, decapitações selvagens através de bombardeios
indiscriminados, ou até mesmo tendo como alvo hospitais de socorro,
aniquilando homens, mulheres e crianças ou forçando-os a fugir e a
correr o risco de se afogar no Mediterrâneo, para o único proveito da-
queles que os transportam. Um por cento dos seres humanos possuem
50% das riquezas do planeta e alguns deles, como Donald Trump, ainda
parecem se vangloriar com isso. Mas muitas vozes se levantam, visando
evoluir tanto no sentido do compartilhamento quanto do respeito pro-
fundo pelo nosso planeta, especialmente entre os sociólogos e outros
pesquisadores em educação, mas também entre os economistas.
Com minha colega e amiga Dominique Groux, já mencionada an-
teriormente, trabalhei numa obra que contribui para mostrar a nocivi-
dade das desigualdades excessivas – que aponta para a sobrevivência do
nosso planeta –, mas também para mostrar que existem outras possibi-
lidades, e temos exemplos que comprovam isso. Mas a editora também
está em crise e precisamos escolher o momento oportuno e os profissio-
nais convencidos para nos acompanharem na sua divulgação. Nós man-
temos a firme vontade de conseguir publicá-la e faremos tudo para isso.

Principais livros de Gabriel Langouët

Technologie de l’éducation et démocratisation de l’enseignement.


Méthodes pédagogiques et classes sociales (préface de Viviane
Isambert-Jamati). Paris: PUF, 1982.
Suffit-il d’innover? Paris: PUF, 1985.
La démocratisation de l’enseignement aujourd’hui. Paris: ESF, 1994.
Les inégalités entre États et populations de la planète. Trop, c’est trop!
Paris: L’Harmattan, 2011.
Les inégalités dans l’Union européenne et ailleurs. Et si on osait? Paris:
L’Harmattan, 2014.

123
De Gabriel Langouët e Alain Leger

Public ou privé? Trajectoires et réussites scolaires (Postface de C.


Lelièvre). Publidix-Nanterre: Éditions de l’Espace Européen, 1991;
obra reeditada e completada com o título:
École publique ou école privée? Trajectoires et réussites scolaires. Paris:
Éditions Fabert, 1994.
Le choix des familles. École publique ou école privée. Paris: Éditions
Fabert, 1997.

De Gabriel Langouët e Jean-Claude Porlier

Mesure et statistique en milieu éducatif. Paris: ESF, 1ère éd., 1981; 6e éd.,
1996.
Pratiques statistiques en sciences humaines et sociales. Paris: ESF, 1989.

Sob a direção de Gabriel Langouët

Questions-réponses sur les collèges. Paris: ESF, 1980.


L’état de l’enfance en France, avant-propos de Christian Nique. Paris:
Hachette, 1997.
Les nouvelles familles. L’état de l’enfance en France. Paris: Hachette,
1998.
L’enfance handicapée. L’état de l’enfance en France. Paris: Hachette,
1999.
Les jeunes et les médias, préface de Jean-Noël Jeanneney. L’état de
l’enfance en France. Paris: Hachette, 2000.
Les jeunes et la santé, préface de Didier Sicard. L’état de l’enfance en
France. Paris: Hachette, 2001.
Public ou privé? Élèves, parents, enseignants. Paris: Éditions Fabert,
2002.
Les oubliés de l’école, préface de Claude Thélot. L’état de l’enfance en
France. Paris: Hachette, 2003.
Les jeunes et leurs loisirs, hommage à Joffre Dumazedier. L’état de
l’enfance en France. Paris: Hachette, 2004.
124
Entrevista

125
Jean-Claude Passeron:
elementos de uma trajetória intelectual

Tiago Ribeiro Santos47

A altura dos 86 anos, rememorando suas experiências pessoais e


intelectuais, Passeron falou sobre sua infância em Nice, sobre os marcos
do seu trabalho sociológico ao lado de Pierre Bourdieu e sobre as infle-
xões que fizeram de seu pensamento uma pedra-de-toque da epistemo-
logia das ciências sociais.
Tiago Ribeiro Santos – O senhor fez parte de uma geração de
sociólogos agregados48 em filosofia, pertencentes à Escola Normal Su-
perior que, na sequência, se consagraram ao terreno da sociologia. Pri-
meiramente, eu gostaria de compreender brevemente suas motivações
relativas ao encontro com Pierre Bourdieu. Em seguida, podemos avan-
çar na direção da sua reorientação intelectual no quadro da pesquisa
sociológica.
Jean-Claude Passeron – Vou falar da ruptura e do distanciamento
definitivo de Pierre Bourdieu, com quem colaborei durante treze anos.
Bom... 1961, eu chego a Paris como assistente de Raymond Aron, mo-
mento em que Bourdieu deixava o cargo para ir à Lille para ocupar o
cargo de mestre de conferências, e o sucedo. Costumo falar em todos
os lugares sobre a associação que eu empreendi em termos de..., vamos
fazer enquetes sobre a escola... enquetes de sociologia da educação. Eu

47 Entrevista concedida a Tiago Ribeiro Santos na condição de bolsista do Programa de


Doutorado-sanduíche no Exterior (PDSE), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior (CAPES), no verão de 2016, na residência do sociólogo Jean-Clau-
de Passeron em Marselha, na França. Na transcrição foi mantida a linguagem coloquial
do colóquio.
48 Do original “agrégés”, aprovados em concurso para atuar como professor de liceu ou de
faculdade e que confere aos aprovados o título de professor agregado. (N.T.)

127
preciso com frequência – e cada vez isso surpreende as pessoas – que,
ainda que Bourdieu – como eu – tenha vindo da Escola Normal Supe-
rior, não no mesmo ano, éramos agregados de filosofia...
Santos – Então vocês não estudaram juntos durante os cursos na
Escola Normal?
Passeron – Não! Não havíamos trocado sequer uma palavra! É
preciso compreender isso na sociologia dos intelectuais e da cultura
etc... Você pode imaginar como é esse meio fechado, cada vez mais
dividido à época entre comunistas, progressistas, católicos? Éramos
muito jovens, com todas as paixões e a vaidade de integrar a Escola
Normal Superior e, em consequência, as antecipações da maneira pela
qual se vai fazer carreira, uns contra os outros. Acontece que Bourdieu e
eu pertencíamos, entre os anos 1950 e 1955, à geração de estudantes que
foi recrutada para fazer a Guerra da Argélia.
Santos – O senhor tinha 25 anos na época...
Passeron – Sim, ao retornar dela, onde eu prestei o serviço mili-
tar mais longo da França, isto é, quase três anos... pois a manutenção
das bandeiras se alongava na medida em que a Guerra da Argélia ia
mal, e que o meu furor aumentava. Sem desencadeamentos políticos.
Portanto, eu fiquei lá dois anos e meio... Você compreende? E, quando
retornei, eu passei rapidamente nos exames da agregação, pois eu tinha
abandonado o concurso por indignação contra a besteira do sujeito, pa-
rece-me... Mas, na realidade, é porque havia um autor que eu nunca
tinha lido à época. E, no entanto, eu passei facilmente, embora tivesse
esquecido tudo. Eu fui o primeiro diplomado nessa agregação de filo-
sofia, em 1957. Ao retornar da Argélia, para mim era 1958, De Gaulle
havia tomado o poder. Eu fui fazer as provas escritas em Bordeaux, pois
era lá que eu habitava, esperando, como professor certificado, um posto
no liceu de Mont-de-Marsan, pertencente ao Departamento Landes. O
pior liceu da França, como dizia Lévi-Strauss, que também foi nomeado
e que de uma hora para a outra partiu para o Brasil...
Santos – O senhor disse “pior liceu da França”?

128
Passeron – Sim, porque é uma vila falsa. Veja, as vilas são Bor-
deaux, Marselha, Paris, é isso, mas nunca se é nomeado de primeira para
Paris. Lévi-Strauss conta nos Tristes Trópicos que, tendo sido nomeado
para Mont-de-Marsan, bom, na França se diz isso, é ser nomeado para
Limoges. Não é uma vila. É uma criação artificial da constituinte de
1789, 1790, quando a França foi dividida em departamentos. Você sabe
a definição... é preciso tornar todo burgo ou vila um lugar-chefe do de-
partamento, para que, numa jornada ou meia-jornada, se possa vir a
cavalo..., e essa é a definição de departamento que existe ainda hoje.
Lévi-Strauss, entretanto, não se lembrava, mas eu também fui nomeado
para Mont-de-Marsan alguns meses após retornar do serviço militar.
Sempre me lembro de Lévi-Strauss que não suportava essa vila; ele sabia
que efetivamente era uma vila que, em uma noite em 1790, com a Cons-
tituinte se transformara em departamento. Esse abandono noturno
durara muito, depois os representantes tiveram mandatos nos estados
gerais, estando, portanto, muito longe de sua província e das concor-
rências. E, em consequência, descendo para Bordeaux, após Bordeaux,
na Gasconha, há um longo conjunto, que são os Landes, onde só existe
areia e pinheiros. E, portanto, tem uma estrada lá que atende o país Bas-
co, em Dax, que é um pequeno burgo basco, na região basca francesa.
E, portanto, essa é uma estrada onde não tem nada. Atravessa-se o mar,
hoje ainda, existe a Baía de Arcachon..., mas, naquela época... É como se
procurava o lugar-chefe desse departamento, nem Dax que é embaixo,
e... se dividiu um negócio que não tem grandes vilas. Nenhuma! Por
isso era preciso criar um lugar-chefe e, no lugar em que se divide na
estrada de Bordeaux – País Basco – e aquela que leva não sei aonde, lá
para o sul da Garona, sobre o mar... uma estrada que leva a Toulouse etc.
Lá tem uma encruzilhada. Decidiu-se então criar Mont-de-Marsan, que
de imediato foi dotada de todos os atributos de um lugar-chefe: prisão,
tribunal, liceu... O liceu foi criado naquela época.
Santos – Trata-se de um lugar bastante isolado, não?
Passeron – Não, não desenvolvido... havia apenas funcionários da
prefeitura, da polícia, da prisão... Além disso, a vila morria às nove horas

129
da noite. Lévi-Strauss chega lá. Ele era um antigo normalista ambicioso
e tinha pressa em assumir o primeiro posto que se apresentasse no
estrangeiro. E ele continuou a procurá-lo... Foi o posto de São Paulo
que apareceu. Era um posto cuja particularidade era ser dotado pelos
negócios estrangeiros de um tratamento para introduzir, inicialmente,
a filosofia de Augusto Comte no Brasil – em consequência tinha um
duplo tratamento, o único na França, era e ainda é, e foi meu amigo Le-
brun um dos últimos a tê-lo ocupado, após, um discípulo de Althusser.
Eu conhecia todos eles. E então, em São Paulo, tem-se um duplo trata-
mento: o da educação nacional francesa, com a maioria de professores
expatriados e, sobretudo, não agregados; e um tratamento brasileiro
também muito elevado. É isso o que fez, portanto, com que Lévi-Strauss
pulasse em cima, porque era preciso ao menos ser candidato; e aprender
o brasileiro [português do Brasil] etc. E ele disse: “Eu vou fazer enque-
tes”, e é por isso que no início ele fez enquetes, as que se encontram nos
Tristes Trópicos... mas foi sobretudo para escapar do ensino de filosofia.
Bom, eu não sei se ele foi nomeado para Paris, talvez no segundo ano.
Enfim, eu também conheci Mont-de-Marsan alguns meses, que é um
charmoso burgo... sonolento... Tem um grande café aberto à noite, onde
algumas pessoas jogam xadrez, locais onde se joga à la manille, ou à la
belote49. Mas a vila é morta! Bom, talvez isso tenha mudado. Vou termi-
nar lá em Mont-de-Marsan, que já tinha uma equipe de rúgbi excelente,
internacional, que aliás não conseguia ser aprovada no bacharelado, e
eu vi imediatamente a possibilidade de dar lições, pagas, para ajudar
na aprovação no bacharelado pela terceira ou quarta tentativa, a um
excelente jogador, muito jovem, que precisava ser ajudado. E o clube
pagava... Bom, mas eu tinha uma carreira universitária, e eu passei por
lá como professor de filosofia, onde fui primeiramente nomeado; após o
meu serviço militar, voltei para lá até ser aprovado na minha agregação.
Pois, como fui o primeiro colocado, eu pude escolher. E então eu escolhi
Marselha. Isso foi em 1958, tendo permanecido lá ao menos três anos a
ensinar filosofia, num antigo sistema, a alunos filo-letras, dos quais eu
falo em vários textos. Era, como eu disse, o verão indiano da univer-

49 Dois tipos de jogos de cartas. (N.T.)

130
sidade, antes de 1968, com seus prejulgamentos, mas ao mesmo tem-
po era idílico; os alunos... bom, não havia nenhuma revolta, nenhuma
contestação. Eles adoravam os professores. Eu conheci isso durante o
meu ensino secundário, enquanto que hoje isso se tornou impossível,
enfim, eles todos reclamam. Então a única coisa que me aborrece, desde
o primeiro ano, quando me dei conta de que eu não me via recomeçar
um segundo ano, e então naquela época eu improvisava completamente.
Eu nunca pude fazer de outro modo, e hoje ainda é assim... Nos meus
seminários, eu tenho por hábito abrir numerosos parênteses, como fazia
Max Weber, para enumerar exemplos concretos e encontrar o fim do
parêntese... Então depois é todo um trabalho para colocar numa for-
ma legível, por escrito. Assim, preparando esse curso de... eu tinha uma
classe de filo-letras, como em muitos liceus franceses na época, e duas
classes de matemática. Bom, eu não ensinava filosofia, mas a lógica for-
mal... Aristóteles etc., e isso funcionava bem. Além disso, tinha uma
terceira sessão, que era de ciências experimentais. Assim, eu dava cursos
sobre todos os tipos de sujeitos, e eu os datilografava após, a partir de
algumas notas que tinha feito na máquina, me dizendo: “No próximo
ano isso vai me servir”. Mas, no segundo ano, eu me dei conta de que eu
não podia, eu tinha o curso que tinha dado no último ano cuidadosa-
mente datilografado, em língua escrita, com títulos e subtítulos. Tinha,
portanto, desde a metade da primeira página, uma associação de ideias,
uma associação de leituras de filósofos, que me faziam partir para outro
lado. E, portanto, eu não podia utilizá-los. Portanto, no segundo ano,
eu me dei conta de que eu não podia me repetir, eu não ia me repetir.
Naquela época, as pessoas se aposentavam perto dos 60 anos e alguns,
em geral, com uns quarenta anos de trabalho, enfim, 35 anos. Então eu
me disse: “não é possível! O terceiro ano já é um calvário!”. Eu devia tro-
car de sujeito. E, no entanto, é difícil percorrer o programa. Mas minha
curiosidade em filosofia foi além da história da filosofia ao ver diferen-
ças nas outras culturas, nos outros espaços e em outros momentos da
história. É por isso que naquela época eu comecei a aprender um pouco
de chinês, o sânscrito, coisas assim, para me desenraizar da filosofia. E
rapidamente eu passei a preferir ensinar a etnografia, a antropologia, a

131
etnologia e sobretudo a história. Mas eu esperava uma vaga, enfim, esse
era o meu objetivo principal para as horas complementares, porque os
agregados deviam ministrar apenas treze horas de aulas. Mas na ver-
dade se ministrava quinze ou dezesseis horas, porque era preciso fazer
horas suplementares. Bom, nessas quinze horas semanais, eu improvi-
sava o tempo todo. Houve um momento em que eu esgotei tudo o que
tinha na memória, ou certas obras, por isso eu precisava ir à biblioteca
universitária de Aix-en-Provence para emprestar obras de história da
filosofia. Então eu pensei: “é preciso que eu deixe o ensino secundário
e passe ao ensino superior”. O objetivo era: ao invés de ministrar quin-
ze horas, ministrar quatro, porque mesmo não sendo professor titular,
você sabe, existem os assistentes de professor. Bom, hoje é complicado,
não vou entrar no novo sistema, mas, bom, eu vi todas as vicissitudes
após 1968, e até 2000, e mesmo hoje com todas as mudanças, com todas
as multiplicações, enfim sobretudo no nível da lei que eu conheci muito
bem, da lei de orientação50 de Edgar Faure, no final de 68 e entrada de
69, quando eu obtive uma vaga na Universidade de Vincennes, após ter
sido professor de sociologia e ter fundado um departamento em Nantes.
Santos – O senhor poderia falar um pouco mais da sua experiên-
cia em Vincenne?
Passeron – É interminável. Enfim, lá eu não mudei muito, na ver-
dade, não levei Vincennes muito a sério, porque eu era dez anos mais
velho que os estudantes que haviam acabado de “fazer” 68, e que rapi-
damente se tornaram meus colegas. Enfim, você conhece o Brasil, por
exemplo, um filósofo marxista que eu tinha admitido em Vincennes
porque a universidade era nova… existia um núcleo que cooptava e ele
foi escolhido. E eu, sob a influência do meu mestre Althusser e sob a in-
fluência das minhas próprias convicções, naturalmente... Embora tives-
se sido assistente de Aron, e naquele momento tendo descoberto Max
Weber, que eu deveria ensinar na Sorbonne, eu admiti o fluxo crescen-
te de forças intelectuais jovens. Bom, quase todos eles eram marxistas,

50 Lei francesa que reformou administrativamente a Universidade em 1968, conferindo una


autonomia extra aos estabelecimentos de ensino superior.

132
mais os jovens comunistas, violentamente confrontados com os esquer-
distas. Durante dois ou três anos, Vincennes foi um campo de batalha
entre comunistas, que tinham aceitado a lei de orientação e que vota-
riam nas eleições, e os esquerdistas, que, por ameaça, intimidação etc.,
diziam: “É preciso se recusar a votar!”. No entanto, em Vincennes, havia
grupos que votavam, um grande grupo esquerdista, três grupos maoís-
tas e quatro ou cinco grupos trotskistas, todos diferentes. Mas sempre
tinha um grupo combativo para atacar a sala de votação e para jogar
as urnas num lago que ficava no centro da Universidade de Vincennes,
que não está mais lá, porque foi transferida para Saint-Denis. Então,
essa foi uma participação zero, porque a participação dos estudantes
prevista pela lei de orientação nas universidades era um jogo entre es-
querdistas e tradicionais, enfim, os professores que ainda faziam os exa-
mes eliminatórios e que se ligaram à lei de orientação e que votavam. E,
naquela época, eles, nos conselhos universitários, colaboravam, geren-
ciavam juntos, mas havia alguns diretores comunistas, enfim, reitores
de universidades, pois não se era mais um liceu, que eram comunistas,
como em Vincennes, e que, após algumas abdicações, pois a faculdade
foi ocupada e esvaziada pela polícia. Portanto, finalmente, houve a de-
missão do reitor, que foi sucedido por outro muito moderado que era
professor de história na Sorbonne, especialista em história diplomática,
que era muito conhecido, professor de russo, mas comunista. Nessa
batalha entre as autoridades universitárias do conselho científico e da
universidade, os grupos esquerdistas foram impedidos de ensinar. Eu
era um deles, enfim, eu não tinha ilusões, porque tinha conhecido a
universidade de 1968 em Nantes, onde criei o departamento de sociolo-
gia. E Nantes era um departamento em que os anarquistas eram fortes
porque é uma ilha anarquista, até mesmo na classe operária, que era
forte entre os sindicatos comunistas. Portanto, eu vi muito bem porque
essa revolta era sobretudo intelectual, que não havia medida pela meta-
de, ou reformismos, e eu sabia que isso seria assim. Mas, após todo esse
tempo, eu pensava: talvez se possa aproveitar para renovar, sobretudo
em sociologia, pois eu não mais me interessava pela filosofia, diferen-
temente de Jacques Derrida, que pensava ser possível criar um colégio

133
internacional de filosofia para romper com a filosofia clássica ensinada
na Sorbonne.
Santos – Foram duas estratégias similares, não?
Passeron – Não, porque Derrida era alguém como eu com a
sociologia e a enquete sociológica. Eu queria que eles [estudantes]
aprendessem ao menos o que esse conhecimento pode aportar ao
espírito crítico, o que a estatística, os dados podem proporcionar ao
raciocínio não apenas sociológico, mas também político. É preciso ter
armas intelectuais, que são metodológicas, para raciocinar com método,
para não cometer erros estatísticos. Já Derrida pensava como filósofo,
mas mesmo sua filosofia difícil de ser compreendida era moderna. Era
a época em que os filósofos – eu prefiro Foucault em vez de Derrida,
pois de Foucault eu estava mais próximo, éramos da mesma turma, en-
quanto que Derrida era quase como Bourdieu. Quando estávamos na
Escola Normal Superior, Bourdieu fazia parte de uma turma vizinha
à minha. A gente quase não se falava, porque ele passava o dia inteiro
lendo, ao invés de bater papo no intervalo, com alguns amigos meus...
com Foucault que era uns três ou quatro anos mais velho que eu, mas
ele sempre estava lá, como crocodilo, ou seja, como esses professores
aprovados na agregação, mas que durante certo tempo têm um cargo
para enquadrar os alunos e prepará-los para a agregação. Já Derrida
nunca estava lá, ele nunca papeava. Ele estudava Edmund Husserl com
muita obstinação, sobretudo porque tinha acabado de sair uma tradução
em francês, pois antes o único texto de Husserl que nos estava acessí-
vel era As meditações cartesianas, publicado na França em 1939, um
pouco antes da guerra; bom, esse era o único texto de Husserl que eu
conseguia ler... Enfim, ele fez um curso de alemão e foi convidado pela
Sorbonne para oferecer um curso que ele chamou As meditações car-
tesianas, que foi imediatamente traduzido na França. Há outros textos
lógico-fenomenológicos fundamentais, mas As meditações cartesianas,
que eu também faço referência, era texto obrigatório na Sorbonne na
ocasião desse convite, para partir de Descartes, para honrar a filosofia
francesa, e de fato ele emprega uma linguagem que vem de Descartes:

134
o ego. Enfim, ele acrescenta que o ego não é o único sujeito do conhe-
cimento, mas sim a intersubjetividade, isto é, que só se pode pensar em
comunicação conceitual com alguém sobre o qual se regula, como esse
alguém se regula sobre você para se compreender. Bom, essa é uma
ideia que existe na linguística, mas Husserl a encontrou por meio do
caminho puramente filosófico: que a base não é a subjetividade do ego
cartesiano, a base da verdadeira filosofia fenomenológica que descreve
como isso acontece é a intersubjetividade entre sujeitos racionais. E
na época eu disse: posso dizer agora que na época, quando cheguei
à Escola Normal Superior, sob a admiração de Spinoza, que sempre
foi e permanece sendo o meu autor predileto, como eu falo com fre-
quência. Mas, em termos de metafísica, esse é o modelo absoluto de
uma filosofia do entendimento racionalista, completamente perfeita e
sem contradição. As tentações spinozistas sempre habitam outros fi-
lósofos – Descartes se diferencia com sua teoria da alma e do corpo
–, não é o caso de outras filosofias, como a de Kant, de Fichte etc., ou
mesmo as que se situam em oposição. Sempre há uma fraqueza central
quando se percebe que a filosofia, do tipo de pensamento de Spinoza,
as habita secretamente. Spinoza é o passageiro clandestino de todas as
filosofias, porque sua demonstração é muito perfeita. Bom, não é física,
certamente, desde que se aceite a primeira definição: o que entendo por
causa-de-si, e a partir daí tudo é dito. Enfim, são lembranças das aulas
sobre Spinoza, ministrada por um dos meus mestres, Jean Beaufret, in-
trodutor da filosofia de Martin Heidegger na França naquela época, e
que era professor de khâgnes51 no Liceu Henri IV. Eu assisti durante
um ano as aulas de Beaufret, que falava completamente sem anotações,
andando de um lado para o outro na sala. Ele falava muito lentamente e
era fácil imitá-lo, o que consistia em filosofar na medida em que ele ia
encontrando coisas. Ele era muito organizado e logo compreendi, vou
resumir, que Beaufret tentava fazer compreender o ponto de partida das
ações na ética. Ele dizia: “tudo acontece...”, bom, naquela época, os
números de telefone parisienses eram ainda Odéon 48-36... ele dizia:

51 Classes preparatórias (khâgnes) visando o ingresso na Escola Normal Superior. Seus alu-
nos são chamados de khâgneux.

135
“a ética é algo, você chama OD 0101, e ao telefone não é uma secretá-
ria, mas o próprio Deus ou um ser sobrenatural que responde”, e isso
é verdade, porque tudo é dito nessa primeira definição da causa-de-si,
infinita, perfeita etc. Depois disso, todo o resto se chama teoremas em
Spinoza, isso é, efetivamente, segundo o método dedutivo. Portanto,
como ele conhecia bem a história da filosofia, Beaufret, que apresen-
tava Heidegger por meio de certas brincadeiras, elaborou uma obra
formidável na França, embora estivesse completamente isolado naque-
la época, interessando-se pelos pré-socráticos. Por exemplo, o poema
de Parmênides, que ele traduziu, e fez uma longa introdução por meio
de um pequeno texto moderno... enfim, naquilo que os pré-socráticos
como Parmênides, antecipavam Heidegger. Ele não foi o único, aliás,
Beaufret lembrava sobre isso Nietzsche, para além de Platão, que é uma
espécie de Jesus Cristo meio pagão... Nietzsche começou a chamar a
atenção sobre os pré-socráticos que são para ele uma espécie de templo
fugidio da filosofia. Beaufret chegava a pregar que praticava, bom, não
apenas os pré-socráticos, porque também havia Dionísio e tudo o que se
quisesse, como a mitologia, mas esse retorno ao antigo pensamento gre-
go ele buscava em Nietzsche. Enfim, Nietzsche também pensou sobre
outros temas, mas era uma época em que eu desconfiava muito, porque
se lia atravessado, porque havia muitos textos publicados, sobretudo no
final na sua vida, e ele leu como qualquer um sobre o nascimento da tra-
gédia. Ou seja, a obra de Beaufret foi utilizada pelos nacionalistas, por
essa gente que cuspia sobre a filosofia racional em nome do desprezo
da cultura universitária, pois ele adorava citar Nietzsche, quando fala-
va dos seus colegas historiadores um pouco rejeitados: “São camelos
da cultura”. Derrida habitava ao meu lado, a gente se dizia bom dia,
embora eu nunca tenha discutido filosofia com ele, mas ele exerceu
influência sobre minhas primeiras dúvidas em relação à filosofia e ao
fato de precisar deixá-la; a única ideia que retenho de Derrida é que eu
o conheço pouco. Nos primeiros anos, quando a gente se apresentava
para a agregação, 1954 ou 1955, não lembro bem, havia Althusser, que
geralmente estava doente, mas que se ocupava com muita seriedade da
formação dos que se preparavam para a agregação; ele os preparava ha-

136
bilmente, não em filosofias marxistas, das quais ele falaria mais tarde.
Na época, ele dava conselhos práticos, você compreende? Ele conhecia
tudo, todos os examinadores: “tem um fulano, e um fulano, ele é velho
como David, e, se você fala do potlatch, isso vai agradá-lo”. Ele pre-
parava admiravelmente bem e, aliás, isso era injusto, porque favorecia
os normalistas, que sempre se saíam muito bem na agregação. Ele dava
conselhos e era muito estimado pela comunidade universitária, junto
aos examinadores da agregação; ele dizia as notas do exame escrito dos
que passavam no exame oral. Em princípio, ele não devia fazer isso,
mas, por exemplo, eu, ele me disse que passei no oral: “Bom, você sabe,
você está na cabeça”.
Santos – Portanto, essa experiência vivida com Derrida levanta o
problema do mérito, que o senhor e Bourdieu colocaram em questão
em Os Herdeiros...
Passeron – Certamente! Para mim e Bourdieu o que inspira Os
Herdeiros (1964) e A Reprodução (1970) é o fato de que o culto ao exa-
me anônimo, perfeitamente justo e meritocrático, repousa sobre uma
ilusão. Bom, eu me senti, no início, bastante confuso ao preparar os
meus alunos para o bac52 no liceu Périer, em Marselha. Isso viria a ser o
ponto de partida d’Os Herdeiros, porque eu compreendi que essa prepa-
ração acabava favorecendo alguns alunos, já bastante favorecidos, que
estavam no liceu, oferecendo-lhes as credenciais da cultura burguesa.
À época, eu comecei a ler não um sociólogo, mas um filósofo francês,
Edmond Globot, que um pouco antes de 1939 escreveu um pequeno
livro, que era muito conhecido, chamado La barrière et le niveau. Em
outras palavras, tratava-se da confusão entre o nível de excelência inte-
lectual e cultural e a barreira de classe sociocultural. Ele elaborou esse
livro porque compreendeu, sem fazer sociologia, que na França o culto
ao bacharelado repousava sobre esse valor burguês. E ele começava a
perceber um movimento de democratização das instituições secundá-
rias desde os anos 1930, e que aliás culminaria nos anos 1950, quando

52 Baccalauréat (bac) equivale aos exames nacionais realizados no final dos estudos do liceu
(ou do ensino médio) visando conferir o grau de bacharel. (N.T.)

137
o liceu... enfim a escolaridade se alonga. Isso vai até o ideal de Chevène-
ment, que diz que “é preciso que toda uma faixa etária, até os 18 anos,
tenha o bac”; isso nunca aconteceu, ainda que se tenha chegado muito
perto, pois ocorreu o emburguesamento da classe trabalhadora, dos em-
pregados; seus filhos passando a ter bons resultados na escola. Aí vem o
problema dos imigrantes, eles passaram a ocupar a posição em que es-
tava o proletariado anteriormente, ou seja, fora da cultura, dos habitus,
portanto, o problema das desigualdades diante da escola se renovou e é
por isso que eu esqueci... bom, o problema é o mesmo que descrevemos,
Bourdieu e eu, em Os herdeiros. Naquela época, isso não se referia aos
filhos de imigrantes, não se referia aos filhos de magrebinos, embora já
estivesse iniciando uma imigração, seja de italianos, seja de poloneses,
mas eles começavam a se integrar culturalmente. Por isso, alguns so-
ciólogos dizem; “por razões religiosas, por questões católicas, isso não
coloca os mesmos problemas que colocaria ao Islã.” Ou também aos ita-
lianos, de todo modo, esses imigrantes não eram muito católicos, bom,
sou originário de Nice, e fiz meus estudos secundários no liceu de Nice
que, durante a ocupaçao, era fascista e depois alemão. Portanto, esses
imigrantes italianos eram quase todos populares ou intelectuais imi-
grantes antifascistas. Mas havia uma pequena franja de imigrantes, de
comerciantes, que era fascista; o meu açougueiro era fascista. Mas, gros-
so modo, passada uma geração, eles se tornaram franceses, enfim, eles
também se engajavam em massa, e quando a gente se engajava a gente
tinha a nacionalidade francesa. Aliás, como Apolinário, que era polo-
nês de nacionalidade e porque se engajou obteve a nacionalidade, mas
essa era a nacionalidade europeia, ou italiana, não creio que essa fosse
a nacionalidade católica, pois os antifascistas italianos eram próximos
do republicanismo francês, ou do antinazismo alemão. Enfim, dito isso,
eles não partiram, eles não puderam partir, ou seja, na Itália, como havia
desemprego, havia uma forte emigração de trabalhadores manuais para
Nice, mas isso chegava até Toulon ou mesmo até Marselha.
Santos – O senhor poderia nos falar um pouco sobre sua formação
secundária em Nice, antes de chegar a Paris?

138
Passeron – Os meus estudos secundários foram feitos em Nice e
foi lá que passei no bac. Ou seja, eu sou produto da condição de filho
único, o que exercia um papel na pequena burguesia da época, pois ha-
via poucos filhos únicos – eu ouvi isso durante toda minha infância –,
por razões de devoção pedagógica. Era preciso que o filho fosse único
se se queria que ele estudasse, bom, vá explicar isso aos pais dos meus
primos árabes. Eu tive uma mãe professora primária, mas que se casou,
na vila em que ela trabalhava, com um filho de agricultor relativamente
bem-sucedido. Ele pertencia à família da vila que era proprietária do
albergue, onde havia feiras, e donde se subia muito alto na montanha. É
uma vila acima de mil metros. Ela se casou com esse jovem agricultor,
que acabara de voltar do serviço militar em 1928. Evidentemente, ela o
convenceu, como fizeram milhares dos montanheses pobres da Proven-
ça, a se mudar para sua cidade. Era o início do êxodo rural na França. O
meu avô, dono do albergue e também amigo do conselheiro regional, do
prefeito, conseguiu um trabalho para o meu pai. Como dizia o meu avô,
como se dizia na vila, como diziam os outros agricultores: “Ele, ele tem
o braço longo”. Todas as crianças eram exploradas por suas famílias po-
bres em praça pública, por uma pequena pensão que elas recebiam e que
as fazia faltar as aulas, para cuidar do gado, mas quando chegavam aos
17 ou 18 anos eram obrigadas a se manter. Justamente naquele momen-
to, o meu pai, que se dava bem com o conselheiro regional conseguiu
um trabalho por ele recomendado. Ele colocou, portanto, as crianças
da assistência que trabalharam no albergue, admiravelmente, porque
eu conheci dois deles, ele os colocou em Mônaco, como bombeiros e
isso era o que havia de melhor, o ofício absoluto. Outros ele também
colocou em Nice, nos bancos. Portanto, não em empregos públicos, mas
em prédios públicos. Mas o meu pai, no mesmo ano do casamento, de
grande pompa na vila, emigra e se torna empregado do Crédit Lyonnais,
um banco. Rapidamente, como ele era muito dedicado e tinha um Cer-
tificado de Estudos [nível primário], pois, na época, era raro encontrar
alguém na vila que soubesse contar com rapidez e facilidade, se tornou
caixa e, mais tarde, caixa principal nesse banco em Nice. Portanto, eu
sou de origem urbana, filho de empregado, isso no nível dos meus pais,

139
mas não no nível dos meus avôs. Eu conhecia as duas ascendências fa-
miliares, que eram muito populares; minha mãe também era filha de
jardineiro na Provença, em Juan-les-Pins, precisamente. Bom, essa é a
minha origem social… Você talvez conheça um sujeito chamado Ber-
nard Lahire, que foi meu aluno. Bom, ele aplica Bourdieu e Passeron um
pouco mecanicamente, quando me coloca essas questões: “Sua família...
é...”. Bom, quero dizer, de todo modo, que ele reteve da sociologia de
Bourdieu e Passeron algo muito mecânico e muito determinista, ou seja,
como se essas singularidades exercessem um papel causal, suficiente e
total.
Mas eu era influenciado pelo fato de que tinha livros em casa, bom,
eu já os tinha no liceu: “Montaigne” – dizia minha mãe – “era a obra
da minha infância”. Ela me dizia porque haviam questões em torno do
racismo, e aos treze, quatorze anos eu os peguei porque minha mãe os
havia citado, e porque se aprendia um pouco de Montaigne no liceu.
Ainda tenho um exemplar completo que ela me deu e que tem coisas
sublinhadas dentro. Lembro que li os dois capítulos mais comentados,
que eram aqueles sobre os canibais, o segundo tinha um título muito
inesperado. Ele é, no século XVI, o primeiro antirracista no sentido de
Lévi-Strauss, pois é de uma virulência sobre os espanhóis e os portu-
gueses, e sobre os ingleses, porque se serviam de argumentos sobre a
denúncia da conquista espanhola, enfim, a qual ignora a importância
do pensamento católico espanhol e isso tudo contemporâneo de Mon-
taigne. De repente, encontrei textos que nunca tinha lido antes sobre a
colonização da África do Norte, sempre apresentada como uma vonta-
de de civilizar os outros e proporcionar-lhes benefícios. Estavam lá os
espanhóis, mas não apenas eles, o objetivo era levar o catolicismo. Mas
isso nem sempre funcionou, porque a igreja católica sempre foi mui-
to reticente ao dizer que os índios deveriam ser convertidos, que eles
não tinham almas. Bom, esse debate está em Montaigne. De repente, eu
percebo que um autor francês, quase três séculos antes de Lévi-Strauss,
escreve a mesma coisa na obra Race et histoire, a qual exerceu um papel
importante no relativismo cultural, na antropologia moderna... Bom, ele
diz coisas sobre o caráter violento, furioso, cúpido dos conquistadores
140
e sobre... Bom, aí nascem, no século XIX, as ilusões do bom selvagem e
também sua bondade natural antes de ser corrompida pela civilização.
Portanto, eu li isso em Montaigne, e li porque minha mãe admirava isso
e porque ela era anticolonialista, antirracista...
Bom, isso é o que há de mais importante. Eu pertenço a uma ge-
ração em que não havia beijinhos, carinhos, eu nunca abracei os meus
pais..., enquanto que ao meu redor... Enfim, acho que esse é um detalhe
na socialização. Muito cedo eu deixei de chamar minha mãe de mamãe,
chamando-a pelo diminutivo, como era utilizado pelos adultos. Como
ela se chamava Marie Thérèse, eles a chamavam Rité, bom, isso parece
bizarro, enfim, esse era o costume tanto nas camadas populares quanto
na burguesia.
Nesse sentido, há muitos detalhes referentes à minha instalação em
Nice desde o meu nascimento, pois nasci em Nice, onde eu fiz os meus
estudos em bairros populares nos quais minha mãe ensinava. Depois, no
liceu, e num liceu que não é o grande liceu de Nice, mas em Nice, aquele
que está anexo ao Parque Imperial, situado admiravelmente numa co-
lina, num antigo palácio do Tzar. Bom, nesse liceu pude começar com
a idade de treze anos e no quarto ano eu faria o grego, o que apavorou
minha mãe. E foi ela que insistiu para que eu fosse para o liceu, isto é,
para estudar latim, porque ela sabia que essa era a chave para o sucesso
da pequena burguesia.
Santos – Bem, trata-se de uma ascendência social na qual sua mãe
exerceu um papel importante...
Passeron – Sim, e meus professores também, eu suponho. Mas, no
meu caso, era minha mãe que estava do lado dos professores e que havia
se casado com alguém que veio do interior, não da campanha, mas da
montanha. Basta ver o liceu em que ela me colocou, porque ela era mui-
to ambiciosa; ela tinha conseguido bem cedo sua primeira vaga como
professora primária e tentado passar no bac por correspondência. Aí ela
compreendeu que isso não funcionaria, porque era o bac moderno e ela
não tinha estudado latim. Na segunda geração, no ano em que eu entro
no sexto ano, ainda existia um exame para entrar no liceu, portanto, nas

141
férias que precedem ao exame, enquanto estávamos de férias na monta-
nha, ela me fez estudar com o padre da vila, para que eu aprendesse um
pouco de latim antes de entrar no liceu.
Santos – Bom, continuam sendo grandes os investimentos da par-
te de sua mãe...
Passeron – Sim, no sentido de que “é preciso sair das classes po-
pulares.” Estudar num liceu, na época, exigia passar pelo ensino pri-
mário superior e obter um Certificado de Estudos. Nele, as professoras
primárias insistiam para que os bons alunos permanecessem, porque
se passassem se tornariam professores, talvez burgueses, enquanto que,
se permanecessem no ensino primário, poderiam ingressar nas escolas
normais de formação de professores e professoras primários. Por isso,
eles aconselhavam a continuar no ensino. À época, era preciso ser apro-
vado no brevê elementar e depois no brevê superior, que acho que ainda
existe, mas atualmente se passa no liceu, que é um diploma intermediá-
rio. Essas eram classes complementares modernas, por meio das quais
era possível se submeter ao concurso para uma escola de professores
primários, enquanto eu, que tinha o bac, podia me submeter ao con-
curso da Escola Normal Superior. Bom, isso representava uma grande
diferença entre as duas gerações.
Por essa razão, eu parti de lá dizendo para mim mesmo que acon-
tecia algo através da socialização de classe, vamos chamá-la de “meio
social”, para não dizer que tudo se passa em termos de classe. É sobretu-
do uma questão de entorno familiar mais amplo. Eu me sinto de origem
popular, porque os dois lados genealógicos da minha família – salvo o
caso de minha mãe – são compostos de jardineiros, artesãos, maçons na
vila e no campo, todos de origem muito pobre. Eu percebia, na escola
primária, que havia uma pequena diferença, bem pequena, em relação
aos meus colegas. Eu vivi a experiência de criar uma estratégia com os
maiores, que no pátio facilmente batiam nos menores, roubando suas
bolinhas de gude. Ao menos foi isso o que vi quando estava nesse esta-
belecimento situado num bairro operário. Nesse bairro, eu tinha cole-
gas. Eu tinha protetores das turmas maiores, pois eles diziam: “É o filho

142
da professora”. Portanto, eu escapei de coisas às vezes muito brutais. Eles
diziam: “Acaba com a paz dele” etc. Por exemplo, eu tive problemas de
saúde e precisava ir num centro respiratório por causa de uma infecção.
Esse centro estava situado num outro bairro bem longe e então fui es-
coltado por esses meninos maiores, que me acompanharam e que me
protegeram várias vezes dos ataques de meninos de outros bairros. Nas
lutas entre bandos, eu também era protegido pelo professor e pela mi-
nha mãe. Bom, isso é sociologia da socialização. Ah! Vou contar uma
anedota. Um dia, fiquei preso, após a saída de todos, na escola em que se
faziam exercícios respiratórios, porque a porta estava trancada. Como
eu devia ter uns oito ou nove anos, fiquei completamente aterrorizado.
Eu não conseguia abrir a porta. Eu me dizia “nunca mais vou conseguir
sair daqui”, então tentei escalar o muro, chamando desesperadamente.
Bom, é por isso que eu sei que era italiano: “Salvatore. Salvatore!”. Ele
me ouviu e me ajudou; ele era um menino grande, é isso!
Santos – O senhor falou dos investimentos em relação à sua mãe
e também sobre o que acontecia no interior da escola, e disse que isso
faz parte da socialização. Em que sentido o senhor pode identificar um
mérito que está lá e que faz parte da sua trajetória escolar?
Passeron – Trata-se da influência que um sociólogo americano
chama de educogène. Nem todos, porque há bons, malvados, brutos.
Minha mãe pertencia à primeira geração feminista a ser professora nes-
se meio, e na família era ela quem tinha o título mais elevado. Minha
avó tinha cinco ou seis irmãos. Era uma família de imigrantes italianos
que se chamava Cavalo, e que vinha da região de Piemonte... composta
de oito irmãos órfãos, que imigraram da Itália. Foi minha avó que me
contou isso, eu ainda não era sociólogo. Tendo imigrado muito jovens
ao longo da costa, uns se tornam maçons, como o que se casou com mi-
nha mãe, outro se casou com a irmão da minha avó, que aliás é irmão,
porque é ao mesmo tempo irmão e cunhado, esse era jardineiro. Nós
estávamos na Cotê d’Azur, e ele era jardineiro perto de Cannes. Então,
nas conversas familiares, ainda bem pequeno, eu aprendia a respeitar os
ricos, porque meu tio, grande comedor de raviólis, falava o tempo todo

143
“o quanto isso era terrível, bem feito para eles”. Ele, como jardineiro,
comia na mesa dos empregados domésticos, e ele via como o cozinheiro
se vangloriava: “Eles gostam muito da minha comida, mas eu cuspo na
sopa”. Eu também aprendi como ocorre o ódio de classe, a humilhação,
a revolta. Ele jamais iria se insurgir, porque era muito bem visto pelo
seu maître, ou pelo intendente, mas isso não o impedia da virulência.
Aí a gente compreende bem as revoluções. Portanto, eu estava nesse
meio que chamo de popular, no qual minha mãe era exceção, mas ela
era universalmente respeitada, ou seja, todos a consultavam, você com-
preende? Finalmente, passados seis anos, minha tia Rose, que era geren-
te de um comércio, foi se estabelecer perto de Nice, em Saint-Isidore,
também como gerente. Ela queria colocar os seus dois filhos na escola
primária. Portanto, eles estavam quase o tempo todo ausentes, como o
meu melhor amigo que tinha a minha idade, e que era uma criança da
assistência, assim como a família do meu avô... eu vi que ele não conse-
guiu progredir, pois não era mais como a geração do meu pai. Depois,
ele foi trabalhar como doméstico na casa da minha tia, que sucedeu
meu avô, porque o meu pai não quis retomar o albergue. Minha tia era
uma mulher muito comerciante, que aliás fez fortuna com esse alber-
gue, do qual ela se ocupava muito bem, mas a brutalidade em relação às
crianças da assistência que serviam ou com George que fazia todos os
trabalhos, e que carregava caixas de uma tonelada... Aos 18 anos, ele não
pode fazer o serviço militar, e essa era uma chance para aprender um
métier. Por causa do seu handicap, ele ficou preso na vila e teve como
único recurso um pouco de terras, eu o vi há pouco tempo antes da sua
morte, que é recente. Bom, ele era handicap, de uma família do interior,
mas que tinha um pouco de terras. Portanto, ele permaneceu lá, e o que
mais me chocou é que ele tinha uma consciência muito aguda do fato
de não ter tido chance.
Santos – Pode-se dizer que essa experiência exerceu um papel no
domínio da sociologia da cultura que o senhor escolheu?
Passeron – Sim, sim... Eu digo isso a propósito de um detalhe que
me remete, de um lado, às lembranças de quando eu ensinava no li-

144
ceu Perrier e, de outro, às minhas lembranças da escola popular de um
bairro de Nice. Observei que os poucos alunos que vinham do ensino
primário e não de um pequeno liceu burguês eram filhos de imigrantes,
mas de imigrantes italianos antifascistas, cujo pai era artesão moveleiro,
ou seja, estava no topo da classe artesanal, sobretudo artesanal para a
Itália. Bom, eu queria dar um passo adiante, então pensava: “Vou estu-
dar o grego”; eu nunca soube por quê. Tenho lembranças da classe que
precede o oitavo ano, que é quando se escolhia estudar grego. Lembro
que estava sentado atrás de um aluno que estudava grego e, portanto,
eu via mal sentado no banco de trás, eu quase não conseguia ler, então
eu pensava: “que livros estranhos são esses escritos nesse alfabeto?”. Era
uma espécie de curiosidade exótica sobre a escrita. Mais tarde, aconte-
ceu a mesma coisa com o chinês, que eu não sei nada. Mas é um alfabeto
estético. Bom, eu ignorava todas as consequências disso e, bom, minha
única lembrança é que isso me agradava. Isso se tornou importante nas
enquetes que eu fiz sobre a percepção estética: o que significa perceber
esteticamente em relação ao perceber utilitariamente?
Bom, lembro dessa situação que me agradou muito e então exerci-
tei essa lembrança com a sociologia. Eu pensava: “não... tu tens apenas
uma ilusão. Você nem se dá conta. Isso é porque você escolheu tua vo-
cação no desejo de ir o mais longe possível”. Mas eu compreendi já no
oitavo ano, e de repente, quando vi que mesmo os meus colegas mais
populares de sétimo ano não estavam lá. Isso era curioso, porque era
uma turma de quinze alunos, enquanto as turmas em geral eram de
trinta; uma turma de quinze em que quatorze eram filhos de médicos,
cirurgiões ou farmacêuticos. Em outras palavras, pensar em grego favo-
rece o raciocínio utilitarista, e mesmo hoje, quando isso está um pouco
na moda, mas na época isso era burguês. Enfim, em Nice eles são nume-
rosos, é uma cidade de aposentados dos quadros médicos e cirúrgicos.
Portanto, alta elite, mas isso não tem nada a ver com a cultura grega,
mas com todos os nomes de órgãos, de doenças, de fármacos; se você
sabe grego, você memoriza melhor. Efetivamente, mesmo atualmente,
me dou conta que identifico imediatamente a linguagem médica por-
que ela é quase inteiramente em grego. Consequentemente, as turmas

145
francesas de latim e grego estavam no alto da tabela, não tinha ninguém
de origem popular. Todos eles filhos de profissionais liberais, e eu... por-
que eu não podia ser enquadrado como de origem popular. E para os
outros, bom, causava um problema que eu fosse o primeiro da turma,
então eles tentavam chegar perto de mim, e se colocavam em situação
de emulação, pelo fato de eu escrever versos. Mas ao mesmo tempo não
havia tensão... bom, eu queria um nome que continuo tendo a propósito
da teoria da legitimidade; bom, dizer isso não é simples.
O exemplo que utilizei muito quando iniciei na sociologia diz res-
peito à desvalorização do diploma a partir dos anos 1950. Como nos
anos 1960 eu fiz muitas entrevistas sobre a socialização, eu ouvi muito
isso, que vai das classes populares às classes médias: “Hoje o bac não vale
mais nada! Com o bac você não é nada! É preciso ao menos uma gra-
duação!”. E vinte anos mais tarde eu ouvi: “Com a graduação você não
é nada... você não consegue sequer ser professor, é preciso ser aprovado
na agregação”. Eis aí a distância que se desloca com a multiplicação dos
diplomas e dos diplomados.
Santos – De acordo. Hoje nos encontramos no quadro de uma
“educação de massa”...
Passeron – Sim, que necessariamente desqualificou o valor de um
determinado diploma... o bac ou o certificado de estudos do meu pai,
esse não existe mais. Aliás, aquilo que já se falava nos anos 1930: “Co-
meça a haver um desemprego dos diplomados”. O que me permite a en-
quete sociológica atual é responder à seguinte questão: para um mesmo
diploma, para um determinado diploma, seja qual for a origem social, as
chances permanecem as mesmas dez anos mais tarde no que concerne
ao valor social de um capital escolar e àquilo que se faz com ele? Vê-se
imediatamente a interpretação que se faz, grosso modo, para ir mais
rápido, diz-se: “Tem padrinho”, mas não é tão simples assim. Existe o
circuito das recomendações, mas também o circuito dos interconheci-
mentos. Portanto, nossas enquetes dos anos 1960 mostraram que havia,
para diploma igual – o bac, a graduação, por exemplo –, uma remune-
ração profissional, mas também uma diferença de rendimento profissio-

146
nal segundo a origem social. Foi isso o que eu senti, de modo confuso,
ao longo da minha escolarização; foi isso que depois tentei cruzar com a
enquete sociológica dos anos 1960.
Santos – Que “resistências” o senhor encontrou na época em rela-
ção às suas ideias?
Passeron – Isso foi bem acolhido por uma parte dos professores,
apesar de Bourdieu ter como objetivo denunciar a hipocrisia dos profes-
sores que acreditavam estar prestando serviço. Na realidade, eles repro-
duziam os hábitos culturais, profissionais ou burgueses, favorecendo,
quase sem querer, os que eram desse meio social ao se apegar à legali-
dade formal da escola, dizendo: “Ela é gratuita”. Os marxistas, na época,
tinham uma péssima análise em relação ao que chamavam de classes
sociais; eles diziam: “Não existe o mesmo capital econômico”.
Santos – Eles tinham dificuldade para compreender o seu livro
então?
Passeron – Sim, tanto a esquerda quanto a direita. Isso provava,
segundo eles, que tudo é econômico, basta igualar as fortunas, os ren-
dimentos, as pessoas... Mas nós queríamos analisar o que acontecia na
cabeça das pessoas, na cultura, nas expectativas, nas antecipações, nas
representações. E foi por isso que Bourdieu e eu, na época, estávamos de
acordo, afinal, percebíamos a importância da teoria da legitimidade de
Max Weber, a qual deslocamos, pois legitimidade cultural não existe em
Weber, mas sim legitimidade política, legitimidade religiosa. Na aber-
tura do primeiro capítulo d’Os herdeiros há uma epígrafe de Margaret
Mead53, e é em analogia a isso que precisamos compreender o que é a

53 “Entre os Índios da América do Norte, o comportamento de visionário era altamente es-


tilizado. O jovem que ainda não tinha ‘tido uma visão’ habitualmente era levado a escutar
muitos relatos das visões que tinham tido os outros homens, relatos que descreviam em
detalhe o tipo de experiência que devia ser considerada como uma ‘verdadeira visão’ e
o tipo de circunstância especial [...] que validava um encontro sobrenatural e, portanto,
conferia ao visionário o poder de caçar, de conduzir um plano de guerra, e assim por
diante. Entre os Omaha, entretanto, os contos não davam detalhes sobre o que os visioná-
rios tinham visto. Um exame mais aprofundado levava claramente a perceber que a visão
não era uma experiência mística democraticamente acessível a qualquer um que a bus-
casse, mas um método cuidadosamente guardado para conservar no interior de algumas

147
boa educação. Na realidade, trata-se de um capital social que, através da
iniciação e da maneira como é representado, comporá na sequência os
valores de uma sociedade com seus níveis de qualificação. Assim, am-
pliamos o conceito de legitimidade, ou seja, adicionamos um tipo, no
sentido weberiano, de legitimidade nos funcionamentos sociais, que é o
da legitimidade que chamamos de cultural. De todo modo, queríamos
evitar o termo “ideologia”, porque eu sempre fui contra. Enfim, con-
cordamos durante treze anos, não mais, aí rompemos completamente;
essa ruptura tendo sido epistemológica. Sei que a questão surpreende
mesmo após vinte anos: “Mas, o que houve”. “Vocês brigaram? Ele dizia:
“não, não...”. Havia a suspeita das pessoas sobre a concorrências entre
intelectuais, o que, aliás, é verdadeiro. Cada um luta pelo seu bife, isto
é, pela sua especialização, sua teoria. A batalha a propósito da suprema-
cia intelectual é o bife dos intelectuais. Mas o bife se define quando a
gente aceita se deixar matar, isso explica o martírio. Pode-se ver muito
bem isso em relação à linguagem, tanto entre professores universitá-
rios quanto entre professores primários, entre os anticonformistas, que
acreditam que há uma legitimidade moral na cultura. Essa legitimidade
cultural exerce um papel essencial na reprodução social, porque não se
trata de ter tudo, enfim, de se beneficiar dos diplomas para ser médico,
chefe de empresa, diretor de marketing, mas isso acompanha, tornan-
do-se uma força para dominar os outros, a partir da convicção que se
tem de que seus valores são mais legítimos do que os dos outros. Ora,
através desse sucesso, também se transmite a legitimidade cultural do
seu próprio sucesso social. Vou terminar aqui, porque foi por isso que
Bourdieu lutou, e lá ele encontrou sua contradição, enfim, a única que
eu sublinho. Num dado momento, na tentativa de entender o próprio
mecanismo da reprodução, de insistir sobre as suas fraquezas, o que já

famílias a herança do pertencimento à sociedade dos feiticeiros. Em princípio, a entrada


na sociedade era validada por uma visão livremente buscada, mas o dogma segundo o
qual uma visão era uma experiência mística não especificada que todo jovem podia ter e
encontrar era contrabalançado pelo segredo, cuidadosamente guardado, referente a tudo
o que constituía uma verdadeira visão. Os jovens que desejavam entrar na poderosa so-
ciedade deviam isolar-se na solidão, jejuar, retornar e contar suas visões aos mais velhos,
isso para ver anunciado, se não fossem membros das famílias da elite, que sua visão não
era autêntica. Margaret Mead, Continuities in Cultural Evolution”.

148
está em Weber na sociologia religiosa, ele o descreveu como uma litera-
tura moralista...
Santos – No estilo de Pascal, como se vê nas Meditações pascalia-
nas...
Passeron – Organizamos (Claude Grignon e eu) um livro com diá-
logos sobre a miserabilidade e o populismo na sociologia e na literatura,
a partir de textos literários de um escritor proletário, de textos de litera-
tura muito legítimos e, sobretudo, de autodidatas, cujo título é Le savant
et le populaire. Misérabilisme et populisme en sociologie et en littérature
(1989). Este livro critica a teoria hierárquica de Bourdieu sobre a litera-
tura, sobre a pintura, talvez onde ele avançou com mais prudência, mas,
em relação à ciência... Isso significa dizer que o universitário, o profes-
sor, está dentro de uma elite de intelectuais, que o pesquisador persegue
a verdade científica, e que o que ele diz é verdadeiro, independentemen-
te do interesse que ele tem em dizer isso em oposição a outros intelec-
tuais. Bom, quando se apresentava o que ele mesmo dizia, ele utilizava
sem parar adjetivos que desqualificavam cientificamente o adversário
em seu próprio interesse científico, visando sua própria glória científi-
ca, ele encontrava uma contradição em torno da qual ele circulava. No
Homo academicus ele reconhece, aliás, duas ou três vezes: “Eu sei muito
bem que falo de mim ao descrever esses professores”, referindo-se à sua
própria legitimidade científica, “mas não é a mesma coisa, porque a ver-
dade científica transforma”. No entanto, existe uma teoria da realidade
científica e pouco importa se ela é religiosa ou metafísica. Eu senti isso
naquele momento, então elaborei com Grignon esse livro, porque ele era
muito sensível, de origem popular, e tinha trabalhado sobre os alimen-
tos quando estava no INRA. A partir de A Distinção, Bourdieu diz que a
alimentação popular é ao mesmo tempo a que é pensada como alimen-
tação das mulheres: o peixe ao invés da carne vermelha, mas isso não
é verdade! Nas enquetes que eu realizei, nunca observei que se comia
peixe nas costas mais populares bretãs, ou seja, a obsessão de encontrar
simplesmente a hierarquia das profissões nos conduz a perder o senso
da diversidade geográfica no espaço... os pescadores, sim, o peixe, mas

149
as mulheres aliás frequentemente não comem peixe, porque são pobres,
lá é sobretudo o leite, as massas. Enfim, Grignon era muito sensível a
essa espécie de simplificação dominocêntrica, como chamamos, que
está na cabeça dos dominantes e das elites como representação do povo,
e mesmo numa sociologia, como a de Bourdieu. Como consequência
disso, ele não vê os saberes populares compensatórios. Isso eu descobri
sobretudo na Itália, quando, de repente, fazendo conferências após Os
herdeiros, encontrei uma obra, que cito várias vezes, de um autodidata
italiano, que acontece em 1968, 1969, 1970... e que escreve sobre a sua
professora primária, de um burgo de Calábria, enfim, bem do interior, e
que tenta explicar a ela porque ela não conseguia compreender o que ele
sabia fazer. Ela diz a ele: “Se você tivesse que viver conosco como eu vivo
com vocês, na escola, então você seria como eu, desnorteado, quando
você percebesse que não consegue fazer esse nó, ligar as coisas etc.”. Esse
livro era muito popular entre os esquerdistas italianos e é citado na obra
Le savant et le populaire. E, em consequência, eles queriam simples-
mente inverter as escalas de legitimidade. Basta dizer que um romance
popular vale muito, enfim, porque refuta a ideia de que há uma legiti-
midade cultural e social. Esse é um erro sociológico, ele existe e exerce
um papel importante. Pode-se ler nas primeiras páginas de Le savant
et le populaire um diálogo entre Grignon e eu, no qual eu apresento o
esquema de inversão populista, que consiste em parar de levar em conta
a realidade para descrever como equivalentes em valor cultural saberes,
coisas que não o são no funcionamento da sociedade. A consequência
disso é cair no erro sociológico, e é a isso que chamamos de populismo;
os esquerdistas, sendo proletários ou revolucionários, não deixavam de
ser populistas. Essa é uma mistura que pode ser boa para a política, tal-
vez para a literatura, mas para a sociologia pode levá-la a cometer erros
de descrição. No caso de Bourdieu, a tentação é inversa, é o elitismo.
Para não atribuir demais ao populismo: são muito bons os saberes po-
pulares; o conhecimento das ervas medicinais, elas são tão boas quanto
à medicina etc. Para não avançar muito sobre essas coisas descritivas,
que eu nem considero científicas, mas meramente descritivas, porque
se descreve as coisas como elas são. Bom, existe como contrapartida um

150
elitismo em termos de valor científico e de valor estético, e é isso o que
se vê em O amor pela arte. Bom, tudo isso diz respeito à ruptura episte-
mológica de 1971.
Santos – Um ano após a publicação d’A reprodução...
Passeron – A reprodução foi a última obra que assinamos juntos
e, como é uma obra que atingiu a epistemologia do saber sociológico,
percebi a dificuldade que tínhamos para entrar em acordo. De um lado,
A reprodução, mas sobretudo A profissão de sociólogo, cuja primeira edi-
ção é de 1968. Essa obra exerceu forte influência sobre os jovens pes-
quisadores, pois, evidentemente, ela era contrária às ideias em voga na
época..., contrária aos excessos...
Santos – A profissão de sociólogo permaneceu muito ligada à lin-
guagem das ciências naturais...
Passeron – Sim, ao menos em relação à ruptura, e me refiro à
ruptura estatística. É preciso colocar as coisas à distância, e eu insisto
muito sobre isso, ao menos a respeito dos números e da medida. Bom,
depois se pode interpretar de maneira muito mais complexa e teórica,
mas se você começa a oferecer estatísticas falsas, como Le Pen e a Fren-
te Nacional, ou durante muito tempo o marxismo militante, que falava
sobre “o paradigma econômico da União Soviética”, suas propagandas,
aí você fica fora da sociologia; os intelectuais acabam se tornando pro-
pagandistas, políticos e ensaístas. Portanto, isso significava lembrar-lhes
das exigências propriamente epistemológicas de um métier científico. E
os números fazem parte. Mas, evidentemente, A profissão de sociólogo
também é contra o positivismo raso, à moda americana, que desde que
se diz “as amostras são representativas e isso prova que...”. Bom, contra
isso nós dizemos; “não...”, porque quando se acredita ler – enfim, eu de-
senvolvi isso no Raciocínio sociológico quinze anos depois –, quando se
acredita ser suficiente simplesmente ler uma tabela estatística, ou seja,
as frases...
É isso o que estou tentando comentar. Essa ruptura ocorre durante
a tentativa de..., enfim, é Bourdieu quem insiste nisso, porque para mim

151
1970 era o meu primeiro ano de Vincennes e eu tinha duas preocupa-
ções: colocar em funcionamento um departamento de sociologia com
gente muito boa, como Robert Castel, por exemplo, que havia com-
preendido muito bem as questões políticas sobre o que acontecera nos
últimos tempos em relação ao salário e às aquisições dos assalariados e
o que isso representava para o equilíbrio geral da sociedade. Portanto,
em Vincennes, eu tinha outras preocupações e fiquei um pouco distante
após a apresentação do primeiro volume d’A profissão de sociólogo. Um
segundo volume, ao qual nos referimos no prólogo, seria consagrado à
teoria e um terceiro, aos instrumentos metodológicos. Eu percebi, na
conclusão do Raciocínio sociológico, que Bourdieu e eu não estávamos
de acordo em relação aos fundamentos epistemológicos. E isso aparece
numa frase na conclusão dessa obra. Para expressar “o fazer científico
da sociologia”, eu tomo científico no sentido dado por Bachelard, pois
estivemos juntos na escola em 1961. Quando nos encontrávamos, ficá-
vamos surpreendidos em relação à nossa afiliação em termos de episte-
mologia do conhecimento e eu achava isso muito forte.
Na conclusão d’A profissão de sociólogo, existem afirmações muito
fortes sobre a sociologia, sublinhando que não se trata de um ensaio, de
um jornalismo ou de reportagens em que se interroga sobre o que as
pessoas pensam. Dizíamos, portanto, que existe esse mínimo que é defi-
nido por Bachelard, de quem retomamos os três princípios: a) a ruptura
com o senso comum (onde se vê bem o que Durkheim dizia sobre a
sociologia); b) a reconstrução dos fatos; e c) a interpretação do sentido,
que, de modo afirmativo, descreve um estado de fato, para falar como
Wittgenstein. Na ocasião, me dei conta de que queríamos dizer juntos
que “a sociologia é uma ciência como as outras”. Entretanto, passamos
todo o volume a descrever sobre as derivas ideológicas de pessoas que
não querem ver, é preciso que se diga isso, e nisso estávamos de acordo,
que se trata de uma ciência como as outras, mas “que tem mais dificul-
dades que as outras – silêncios – para ser uma ciência como as outras...”
Santos – Compreendo, isso é muito sutil...

152
Passeron – Sim, mas é muito difícil falar assim. Pois, de qualquer
modo, as dificuldades ideológicas são maiores do que as outras. Há mais
pessoas indecentes no jornalismo. Concordo! Existe um texto de Dur-
kheim que vai nesse sentido; ele explica que a física somente se tornou
verdadeiramente científica quando – ele explica isso na biobibliografia
citada em A profissão de sociólogo – desvinculou sua participação dos
costumes do século XVIII. Você sabe, a nobreza desejava descobrir a co-
nexão elétrica. Havia sobretudo Mesmer e a física era a da eletricidade.
Durkheim toma esse exemplo da história das ciências para afirmar: “a
física somente conseguiu se tornar verdadeiramente científica quando
se livrou, no século XIX, do mundanismo”. Pode-se dizer isso em outros
termos, o das pré-noções, e isso é muito grave, pois são os costumes que
cobrem as pré-noções. Portanto, isso era dito do mesmo modo: há um
mundanismo sociológico na televisão, nos jornalistas, nos ensaístas... e
isso é o que esfumaça a sociologia. Bom, dizia-se que ela era uma ciência
como as outras – a física, a matemática –, mas que tem mais dificulda-
de para ser uma ciência como as outras. Isso porque está cercada pelo
mundanismo, como no século XVIII, quando estava cercada pela moda
dos salões. Bourdieu queria dizer isso, uma vez que acreditava tanto na
ciência. Bom, eu também penso e esse é o ponto de partida do Raciocí-
nio sociológico quinze anos depois. Enfim, não se pode se esquivar des-
se problema epistemológico. Algo na estrutura dos objetos construídos
pela sociologia faz com que ela seja mais vulnerável a essa infiltração;
esse é um termo de Popper.
Não se pode chamar isso de irrefutabilidade da verdadeira socio-
logia. Como todas as outras ciências históricas, ela não inscreve seus
raciocínios unicamente no registro da assertiva histórica, ao contrário
das outras ciências dedutivas ou formais das quais participa a física?
Em consequência disso, é preciso acrescentar outras dificuldades sociais
decorrentes da posição do pesquisador. Esta frase é verdadeira quando
se trata das dificuldades sociais, mas quando se trata das dificuldades
que chamo de intrínsecas, internas ou de temperamento – para empre-
gar a linguagem médica –, de temperamento epistemológico de uma
ciência que é histórica, é evidente que nunca se pode esquecer a terceira

153
condição, que já estava na obra A profissão de sociólogo, ou seja, a in-
terpretação teórica, que não é única. É por isso que há tantos pontos de
vista, de disputas sociológicas, quanto de sociólogos. Um não se liga ao
outro. Marx é a grande exceção. Eu tentei descrever depois, no Raciocí-
nio sociológico, ou seja, ele é o único a fundar uma escola assim. Bom,
me pergunto por que Durkheim, que também é uma escola, acabou não
tendo o sucesso político de um mestre do pensamento. Deve ser por-
que, na época, alguém como Le Play, precisamente, também descreveu
a classe operária. Havia discípulos dos quais não se fala mais hoje, mas
ao se aprofundar percebe-se que é porque ele mesmo, pela sua tipologia
das famílias operárias, sai da decepção sociológica para passar para a da
moralização da classe operária, para os verdadeiros operários, os bons
operários etc. É isso o que significa sair da sociologia. Os esquerdistas
sociólogos explicam que toda descrição das destruições da classe ope-
rária foi confiscada pela burguesia medical sobre os costumes da classe
operária. Eles têm o direito, e isso já existia entre os esquerdistas. Lem-
bro que, ao ver imagens da promiscuidade social, na primeira classe tra-
balhadora, Durkheim dizia: isso é antes que os médicos, os higienistas,
cheguem para moralizar a classe operária, cujos efeitos aparecem até
na moral familiar do partido comunista. Enfim, a moral comunista dos
anos 1960, 1950 não era sociologia dos costumes da classe operária...
Vou concluir o que comecei sobre a relação entre epistemologia
e sociologia para voltar ao que desenvolvi em Philosophie et sociologie,
mas para ilustrar isso vou retomar à anedota de Derrida, que ainda não
expliquei. Volto, portanto, aos anos da Escola Normal Superior, onde
tudo começa... Minha ideia era deixar a filosofia. Portanto, quase toda
semana, quando Althusser não estava muito doente, muito sonolen-
to, ele fazia com que os que estudavam para a agregação preparassem
uma pequena apresentação, cujo sujeito era ele quem decidia, dizen-
do: “Prepare como se fosse a grande aula oral da agregação”. Ou seja,
do mesmo modo como acontece na grande aula, podendo-se mesmo
trazer obras da biblioteca da Sorbonne; tinha-se quatro horas para pre-
parar essa apresentação de quinze minutos, seguida de discussão por
mais quinze diante da banca. Althusser me dizia: “Eu escolho temas que

154
caíram na agregação dos anos anteriores, eu sei muito bem porque fu-
lano pode aplicá-lo etc.”. Inicialmente, na época, esse tema sobre o pa-
ralelismo lógico-gramatical me interessava. A lógica está na linguagem
ou é a linguagem que fabrica a lógica? Atualmente, consigo formular
uma opinião, mas na época esse não era um assunto que me agradava
tratar, porque eu não sabia aonde ir. Bom, ele escolhia temas como esse;
ele dava uma semana antes para preparar a apresentação sobre assuntos
que não se tinha visto e dos quais não se conhecia nada. Bom, alguns
dias antes ele anotava no quadro verde: “Seminário de Althusser”. Ou
então ele colocava: “Derrida, a epopeia fenomenológica”. Eu conhecia
com antecedência o terceiro gênero de Spinoza e precisava falar disso
ao menos um pouco. Eu tive muita dificuldade para me manter sobre
o plano escrito. Quando se chega a escrever sete horas seguidas, vi que
isso me servia e terminei primeiro, simplesmente porque improvisei,
não fiz plano como se faz oralmente, mas apenas um controle escrito.
Normalmente, compareciam apenas os que se preparavam para a agre-
gação indicada sobre Derrida. No entanto, a sala estava cheia, eu che-
guei no último minuto e vi que não tinha mais lugar para sentar, ou seja,
havia não apenas normalistas agregados, mas não filósofos, pessoas que
eu não conhecia bem. Derrida começa, aliás, com textos diante dele,
meticulosamente para retomar o fio. Ele passava lentamente para com-
preender bem, com uma grande clareza, mas com muita subtilidade ele
tentava fazer compreender a pertinência de um lado e, de outro, a con-
tribuição filosófica do raciocínio. Mas, como ele comenta muito, isso
avança ainda mais lentamente. Efetivamente, após quatro horas, ele diz:
“prefiro tentar concluir esse ponto”, e então fala mais quinze minutos.
E aí ele diz a Althusser: “Em todo caso, para a discussão, gostaria que
me dissessem...”, e Althusser lhe responde: “Bom, vamos considerar isso
como uma sessão à parte e, para os que se interessam, vou agendar para
a próxima semana: Derrida II”. Eu volto para a sessão porque eu falava
com frequência sobre fenomenologia, mas não com essa minúcia. Bom,
para essa sessão tinha muito menos pessoas, pessoas curiosas em razão
das suas disciplinas: “O que é a fenomenologia?”. Ele recomeça e fala du-
rante uma hora, sem acabar nunca. Ai, éramos apenas cinco agregados

155
de filosofia; eu escutava isso com muita curiosidade, dizendo-me: “Isso
é de todo modo filosofia! O que eu quero?”.
Bom, isso me dissuadiu e eu me disse: “Eu nunca vou conseguir”.
Esse nível me aborrece... Está-se tão distante de... Quando eu lia os fe-
nomenólogos que falavam de coisas concretas, como Kurt Goldstein,
quando eu o lia e lia a Structure du comportement de Merleau-Ponty,
percebia, de todo modo, que tanto Merleau-Ponty quanto Goldstein,
que, aliás, é um médico e que tomava exemplos de feridas do cérebro,
ou Sartre, que, aliás, é sempre concreto mesmo sendo filósofo. Veja, é
sempre nesses romances, mais do que em O ser e o nada, que há uma
passagem como essa. Lembro que eu era muito antifascista, e essa é uma
obra antifascista. Ele tenta descrever a formação do habitus fascista, de
alguém que quer ser chefe, tomando como exemplo o garçom do café.
Ele diz: esse rapaz que quer ser chefe para que os outros o obedeçam
com uma mistura de medo e de precipitação, e de reverência... Diferen-
temente da maioria dos clientes, Sartre havia observado isso, mas isso é
sociologia, na interação, no sentido de Goldstein, numa sala onde havia
clientes. Você sabe que têm pessoas que são obrigadas a gritar, a fazer
“sim, rapaz!”. E existem outros que, eu observei algo em seguida, alguns
não são evidentemente grandes patrões mas não falam, e mesmo o ra-
paz do café, o garçom dos Deux Margots por exemplo, que tinha mui-
to estilo, serão tentados a fazer isso, a levantar o índex da mão direita,
com um pequeno sinal de cabeça e que, como se tivessem ouvido a or-
dem, o garçom do café se volta e diz: “Sim, senhor...” Bom, eu achei isso
concreto. Mas é porque isso era sociologia interacionista, à maneira de
Goldstein. Portanto, entendendo Derrida, em termos de vocação... Foi
ouvindo Derrida, que não conseguia concluir e, assim como eu, quando
ensinava filosofia, fazia apresentações orais, bom, isso continuou a me
perseguir nos seminários.
Ainda hoje, quando entrego uma enquete ou nos seminários, pos-
sa usar seu tempo. Mas, quando vou aos Estados Unidos, de repente, me
vejo diante de algo no seminário, levo os meus papeis, mas na minha
frente há um púlpito com uma lâmpada e um copo d’água, bom, preciso
falar alguma coisa, mas não tenho nada e então sou obrigado a impro-

156
visar. Eu também senti isso nas minhas turmas de filosofia-letras. É por
isso que eu não quis mais continuar, precisa-se de tempo para iniciar
um problema, para ouvir objeções. Mas Derrida não tinha tempo para
ouvir objeções...
No fundo, eu pensei: é isso a filosofia, elaborar livros, um grande
livro como... é escrever O ser e o nada. Eu acho, de todo modo, que isso
me aborreceria, porque na verdade não há nada para rir. Enquanto a
sociologia possibilita uma certa ironia sobre as interações, elas são sem-
pre um pouco irônicas, eu diria humorísticas. Então escolhi a sociologia
pela distância humorística que ela permite na descrição dos comporta-
mentos, porque os pensamentos ou a interpretação dos comportamen-
tos dos outros seres humanos... essa é uma definição da sociologia.
Santos – Vê-se bem que há primeiramente uma ruptura com a fi-
losofia e, em seguida, poderia o senhor me falar de uma ruptura com o
trabalho colaborativo de Bourdieu.
Passeron – Os três pontos se encadeiam. E também tem aquele
referente ao meu questionamento de epistemologia que, em 1971, eu
queria discutir e escrever, porque depois mesmo discutir ficou difícil,
pois eu tinha muitos anos de experiência, bom, não era possível discu-
tir com Bourdieu sem que ele fizesse alguma coisa antes. E foi por isso
que eu pensei: “a sociologia com Bourdieu me cansa”. Foi importante
essa tomada de distância, tínhamos treze anos de obras em conjunto,
de coisas que assumimos. De repente, encontro coisas que eu tinha for-
necido, pois, em relação aos estudantes que ele tinha, éramos mais ou
menos parceiros. Mas com os estudantes era terrível a maneira como ele
captava o pouco interesse que havia em certas cabeças e então ele fazia
outra coisa. Então achei que não podia mais falar com ele, pois eu o re-
conhecia e não tinha mais o direito de me beneficiar, sobretudo após ele
ter publicado um artigo sobre o campo intelectual do século XIX, então,
bom, isso vem do meu velho geltaltismo em psicologia. Eu, nessa época,
já tinha feito psicofisiologia etc. e tinha sido tocado pela Gestalt theory,
ou seja, certamente por Koffka e por alguns livros da Gestalt theory, e
sobretudo por um discípulo da Gestalt theory, dos Estados Unidos, que

157
se chama Kurt Lewin e que muito utilizou essa noção de campos no
sentido da Gestalt theory. Com ele eu tinha em comum um certo estru-
turalismo, emprestado de Weber, sobre a descrição das relações num
espaço religioso. Entre o feiticeiro, o padre, o profeta e o público de fiéis
ou de laicos há uma análise estrutural. Weber não empregava a palavra,
mas lembro que, por exemplo, quando estava em Bordeaux, eu pensava:
“Já está em Weber essa história de que isso é uma estrutura”. Sim, de
acordo, mas é preciso saber se beneficiar. E eu comecei – eu continuo
definindo campo numa descrição sociológica – por um certo número
de condições, a saber, é preciso descrever as relações entre o padre, en-
fim, o resto é caricatura. No entanto, o campo literário no século XIX
tinha Flaubert, Maxime du Camp.
Santos – Que seria retomado em As regras da arte…
Passeron – Sim, seria retomado em As regras da arte. Gênese e
estrutura do campo literário. Eu disse sim, confrontando-me na época
com o que os estudantes pesquisavam, sobretudo porque eles frequen-
tavam, naquele momento, os seminários e faziam suas teses de terceiro
ciclo. Não se tinha uma boa quantidade de enquetes ou de resultados
sociológicos. Tratava-se simplesmente de uma análise, uma leitura do
campo literário, num léxico e numa linguagem bourdieusiana: habitus,
campo, predisposições... que não acrescentavam nada. Enfim, aconte-
ceu uma vez que a coitada que estava na banca de um dos estudantes
de Bourdieu começou a falar ligeiramente, dizendo: “Estou um pouco
cansada, o que o senhor nos ensina de novo? O campo dos pintores pai-
sagistas do século XIX... Isso é um campo?”. Bourdieu a tinha incen-
diado, perguntando-lhe: “Por que você o toma dessa maneira com esses
estudantes que tentaram pensar sociologicamente?”. Bom, depois dis-
so, ela não participou mais de bancas com Bourdieu. Eu tinha assistido
à uma defesa de tese, mas não era com Bourdieu, que falava do campo
do baile popular de Lyon. Sim, o baile popular me interessava. Por que
colocar no subtítulo o termo “campo”? Não tinha nada que justificasse
o termo “campo”, então coloquei algumas condições e a primeira foi:
Isso permite descrever os fenômenos de maneira a renovar as descri-

158
ções? O que renova é dizer “campo” e não “meio”? Trata-se sobretudo
de meio intelectual e não de campo intelectual. Nem todo meio intelec-
tual é um campo intelectual. Isso talvez possa ser um balaio de siris,
uma mistura na qual as pessoas se influenciam. Isso é muito confuso.
Um campo entre grandes autores, aí sim, porque eles se leem. Portanto,
é preciso que a linguagem que você emprega, primeiramente, aporte um
resultado concreto, descritivo ou relacional. Segunda condição: é preci-
so que você tome (nem sempre é o caso) como objeto espaços sociais;
é preciso que seja um espaço autonomizado em relação às influências
exteriores para que valha à pena descrever odologicamente as relações
que se tecem entre os atores do campo. É óbvio que Picasso tinha os
olhos fixados em Matisse. A pintura é um campo. Para descrever o cam-
po do baile em Lyon, que se baseia nas observações, em alguns pedaços
de entrevistas e em nenhuma tabela estatística, é preciso ver quem in-
fluenciou quem. Eles podem se encontrar uma única vez no baile de 14
de julho e nunca mais se rever, portanto, isso não é um campo. Eu co-
mecei a observar isso e vou dar exemplos. Eu os retirei de Kurt Lewin.
Para voltar à ruptura com Bourdieu, no final d’A profissão de sociólogo,
várias vezes eu me debrucei sobre as estratégias de conquista política
da notoriedade. Quando se fala de Kurt Lewin, ninguém pensará muito,
um leitor, se há leitores americanos e se se prefere não tê-los, tanto faz.
Mas Kurt Lewin tem uma importância na psicossociologia americana,
no isomorfismo, pois sua teoria é gestaltista tanto quanto as estruturas
psicológicas, por exemplo, a sensorialidade da retina (onde se projeta
a imagem), a percepção que integra outros elementos do cérebro, as
representações e construções dos esquemas, o nível mental, cortical.
Uma tese gestaltista que já estava em Koffka é o isomorfismo, ou seja,
encontram-se essas mesmas estruturas pregnantes nesses três níveis:
psicológicos, perceptivos e mentais, de modo esquemático. Kurt Le-
win percebeu a importância da estruturação do campo, mas, finalmente,
essa é uma coisa que não funciona, e mesmo politicamente, pois está
sob a influência democrática. Trata-se de uma política da manipulação
dos grandes sobre pequenos grupos. Mas é honesto cientificamente di-
zer que foi Kurt Lewin quem viu tudo o que isso condicionou. Durante

159
dois anos, Bourdieu dizia: “Não, eu não acho, esses idiotas america-
nos...”. Ele não aceitava, ele queria inventar o campo sozinho e naquele
momento eu compreendi porque ele se pautou no que tinha visto, ou
nas conversas que tivemos em que eu empregava o termo campo no
sentido gestaltista. E ele teve que se apropriar. Desde então começou a
escrever sobre o campo religioso em Weber. Aí eu pensei, depois de três
anos, vou desistir de empregá-lo, senão todos vão pensar que eu não
cito Bourdieu, ainda que eu tenha sido o primeiro a ler sobre o termo.
De repente, me dei conta de que acontecia a mesma coisa em relação ao
habitus. Então decidi acabar com as conversas com Bourdieu, e que ele
fizesse o que quisesse. Bom, embora muitos não saibam, habitus vem
de Weber, assim como ethos. Em Bourdieu, tudo é habitus, justamente
porque essa é a sua linguagem, mesmo que alguns estudantes descre-
vam todos os hábitos, todas as predisposições do indivíduo como um
habitus.
Na descrição, o fato de se tomar conceitos históricos, uns mais que
outros, o fato de se escolher conceitos visa fazer-se melhor compreen-
der. Em Weber, ethos e habitus faz a diferença; entre um ethos, ou seja, as
normas e os valores que permanecem implícitos naquele que obedece,
e o que fazem os teólogos quando têm uma ética. Eles racionalizam,
eles reorganizam o ethos pré-reflexivo, como teria dito Althusser, em
uma moral explícita, uma ética explícita; eles são teólogos, eles são in-
telectuais. E se eles não tivessem explicado na sua pastoral que tempo é
dinheiro ou o inverso, isso não teria revolucionado como fez o pietismo,
os fiéis na época do protestantismo, reunidos numa igreja pura, na qual
entram espontaneamente e consideram que aqueles que estão no exte-
rior não são dignos de estar no campo. O papel que isso exerce também
foi exemplo de Weber, que Bourdieu não conhecia tão bem quanto eu.
Este exemplo também vem de Weber, quando afirma que se trata de
uma força financeira e econômica, pois mesmo aqueles que não estão
nem aí, ou no limite, existem poucos assim nos Estados Unidos, sabem
que podem emprestar, porque essa é uma garantia de probidade absolu-
ta. De repente, eles mesmos faziam negócios, porque confiavam neles,
porque eram dignos de confiança e porque a sociologia permitiu definir

160
esse fenômeno, em particular o que distingue um ethos, que é o do rapaz
metodista, pietista. Eis aí porque escolher certas palavras teóricas mais
do que outras, isso leva a ser coerente, pois é preciso que se tenha a teo-
ria que explica o ethos e o habitus, o qual é empregado raras vezes em
Weber. É preciso empregar o habitus no sentido em que às vezes se re-
fere Weber a propósito de uma coisa completamente diferente de ethos.
É o habitus decorrente de uma educação autoritária e brutal e tomando
como exemplo a educação militar, como a dos jovens espartanos; a edu-
cação que fabrica efetivamente o habitus do soldado que vai colocar sua
vida em risco. Isso significa dizer que se trata de hábitos adquiridos na
educação, mas que são fortemente incorporados pela educação, então
chamemos isso de habitus. Bourdieu se lembra desse texto, porque ele
vai dizer: “o habitus é incorporado”, por exemplo. Mas ele somente é
verdadeiramente incorporado se for fruto de uma educação explícita,
como na cidade espartana. Enquanto a atitude flutuante, rica, diletante
do intelectual da Renascença, que se interessa a tudo, não é um habitus
diletante, mas uma personalidade, o que é chamado por outros sociólo-
gos um pouco psicanalistas de personalidade de base. Uma personali-
dade de base bem conhecida na Renascença, inclusive entre os pintores
e o que eles representam nas suas biografias. Pode-se dizer que eles têm
um habitus artista e, inversamente, que têm um habitus boêmio, como
se pode ver num dos discípulos de Bourdieu, Nathalie Heinich, que fora
tocada por Van Gogh. Ele é o pintor maldito, que, no limite, foi indi-
retamente explorado financeiramente pelo seu irmão, que vendeu seus
quadros após sua morte, e que era sincero... O que me surpreende é a
distinção que é preciso fazer entre a intenção do pintor de representar
algo, de atacar algo, e de dar a impressão de algo que consegue fazer
passar na sua mensagem. E, em terceiro lugar, na recepção de públicos
diversos. É preciso os três. No entanto, é difícil fazer compreender, pois
não há livros escritos sobre isso, enfim, havia um que se chamava Les
septs plaisirs de l’art; bom, eu li na correspondência de Van Gogh ao seu
irmão, quando ele estava em Arles, uma coisa extraordinária, na qual ele
explica sua intenção e descreve dois quadros. Um que se chama Le café
de nuit, me parece, e outro que se chama Ma chambre, bom, como eu lia

161
muitas críticas de arte – não de sociólogos – que diziam: “Ah! Sente-se
muito bem a tensão que queria representar Van Gogh no seu café no-
turno, suicida”. Enfim, “Assim como a impressão de repouso, de calma,
quase de volúpia baudelairiana, que sai desse quadro, com os amarelos
do quarto de dormir de Van Gogh”. Entre os quadros que propusemos à
observaçao de jovens que fizeram parte de uma pesquisa, perguntamos
a eles: o que isso evoca? “Que impressão sinistra ele quis representar”.
Ele quis representar, comentava outro, “uma impressão de felicidade”;
nesse momento, eu pensei, “isso é sociologia da recepção”. Van Gogh
escreveu ao seu irmão: “Eu quis representar o enclausuramento que me
ameaça a loucura neste quarto, enquanto tentei representar a liberação
que representa a abertura de um café”. Esse é o interior de um café. Por-
tanto, a enquete mostra que a intenção do pintor não corresponde ao
que um público lê na obra. Fora isso, os dois têm o direito de fazer o que
quiserem. E isso é a propósito da sociologia da recepção e da enquete.
Acontece a mesma coisa com as obras literárias e também com as obras
dos sociólogos. E foi nesse momento que eu concluí com Bourdieu, eu
pensei: “Ele começa a me cansar epistemologicamente”.
Santos – Para terminar. Se tomarmos algumas ideias centrais no-
tadamente do seu livro O raciocínio sociológico, em que a sociologia é
uma ciência histórica?
Passeron – Como todas as ciências históricas – e eu apenas sigo
Weber –, a sociologia não é uma ciência homológica ou de leis univer-
sais válidas independentemente das coordenadas espaço-temporais. Ela
sempre seria válida como uma história que contém algo que não é assim,
ela pode ser falsificada (essa é a teoria popperiana) e, em consequência
disso, é o conjunto da teoria que cai por terra. Popper sempre toma o
exemplo da teoria do segundo princípio de Carnot, que é uma teoria de
energia, ou de uma teoria que não teria o princípio da degradação da
energia. Poder-se-ia retirar daí tantas outras constatações que seriam
seguidas como movimentos que podem ser conservados sem desper-
dício, indefinidamente. Por isso, pode-se construir uma máquina em
perpétuo movimento em algum lugar no mundo, e que – é isso a teoria

162
de Popper – ninguém jamais conseguiu construir ou observar. Portanto,
essa teoria é falsificada, pois há degradação de energia. Bom, esse é um
tipo de ciência. Muitas ciências obedecem, quando não tomam como
objeto, as leis universais, o universo psicoquímico, psicomaterial. Mas,
ao se tomar a história do cosmos, Weber sublinhava que é a mesma coi-
sa em relação a um acidente de vias férreas, é preciso compor as causas
desse acidente. Bom, a enquete de acidentes deve fazer isso: a intenção
suicida do condutor, como o piloto de avião da Lufthansa, as leis da
gravidade, as leis mecânicas do aparelho que desviou por força de um
defeito, os aparelhos métricos que podem não ser confiáveis. Essa seria
a dimensão histórica dos fenômenos. Durante a minha infância, eu me
apaixonei por uma teoria não nomológica, em física aliás, era um bom
modelo: a teoria de La Place. Ele dizia: “Se eu fosse dar as características
físicas de todos os objetos materiais do universo, dados no momento
inicial, eu poderia deduzir tudo o que acontece hoje, inclusive as tem-
pestades”. Isso não é uma brincadeira, La Place pensava que a nomologia
não tinha ido muito longe e é a partir disso que Weber reage a propósito
da história. A cosmologia moderna se desenvolveu descobrindo a sin-
gularidade de um indivíduo, assim como na história de uma revolução,
na sequência de fogos que explodem em Jena, na revolução de 1948...
Certamente houve fogos, mas quais eram as expectativas das pessoas
que estavam lá? Weber também toma como exemplo o pânico da Bolsa
considerando como um acontecimento singular, ou seja, irredutível por
definição, construído a partir de universalidades não nomológicas. Em
consequência, a ciência histórica, mesmo a física, a história das socie-
dades humanas, a antropologia, a sociologia, a demografia, e todas as
demais ciências sociais somente são sociais porque são históricas, senão
se volta a Augusto Comte...

163
Sobre as organizadoras, o organizador, a
socióloga e os sociólogos participantes

Júlia Siqueira da Rocha

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC), com estágio sanduíche na Universidade de Strasbourg/França,
sob a coordenação do professor David Le Breton, e Mestre em Educação
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Consultora edu-
cacional na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), junto
à Pró-Reitoria de Ensino de Graduação.

Tiago Ribeiro Santos

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC), com estágio sanduíche na Universidade René Descartes − Sor-
bonne (Paris V), sob a coordenação da professora Régine Sirota. Mestre
em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Profes-
sor na Universidade Católica do Oeste (Angers, França).

Ione Ribeiro Valle

Doutora em Ciências da Educação pela Universidade René Des-


cartes − Sorbonne (Paris V), sob a orientação do professor Gabriel Lan-
gouët. Pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS), sob a coordenação do professor François Dubet. Professora
titular do Centro de Ciências da Educação/UFSC. Bolsista de Produti-
vidade em Pesquisa − CNPq - Nível 1D.

165
Silvana Rodrigues de Souza

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Cata-


rina (UFSC), com estágio sanduíche na Universidade de Vincennes-
-Saint-Denis (Paris VIII) sob a coordenação do professor Charles Sou-
lié. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Professora e Auxiliar de Pesquisa na Faculdade da Polícia Mili-
tar de Santa Catarina (FAPOM).

François Dubet

Doutor em Sociologia pela Universidade de Bordeaux II, sob a


orientação do professor Alain Touraine. Professor emérito de Sociolo-
gia da Universidade de Bordeaux II e diretor de estudos da École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).

David Le Breton

Doutor em Psicologia Patológica pela Universidade de Tours, sob a


orientação de Pierre Ansart. Professor de Sociologia e Antropologia da
Universidade de Estrasburgo e membro do núcleo de pesquisa Dynami-
ques Européennes (DynamE) também dessa Universidade.

Martine Plard-Derivry

Doutora em Didática das Línguas e das Culturas pela Universidade


Sorbonne Nouvelle (Paris III), sob a orientação da professora Geneviève
Zarate. Professora na Universidade de Bordeaux Segalen e membro do
Laboratoire Cultures, Éducation, Sociétés (LACES). Diretora adjunta
do Départements de Recherche / Évolution, comportements et organi-
sations (ECOr).

166
Éric Plaisance

Doutor em Educação pela Universidade René Descartes − Sorbon-


ne (Paris V), sob a orientação da professora Vivianne Isambert-Jamati.
Professor emérito da Universidade René Descartes − Sorbonne (Paris
V). Sociólogo, membro do Centre de Recherche sur les liens sociaux
(CERLIS/CNRS). Professor na Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO).

Gabriel Langouët

Doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes − Sor-


bonne (Paris V), sob a orientação da professora Vivianne Isambert-Ja-
mati. Professor emérito da Universidade René Descartes − Sorbonne
(Paris V).

Jean-Claude Passeron

Doutor em Sociologia e Epistemologia pela École Normale Su-


périeur. Diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences So-
ciales (EHESS) e membro fundador do Centro de Pesquisa Multidis-
ciplinar – SHADYC (Sociologia, História, Antropologia da Dinâmica
Cultural) em Marselha.

167
Anexo

Questões em Francês

Chers collègues,
En donnant suite à notre contact initial, quand nous vous avons
proposé de répondre à quelques questions, nous vous remercions de
votre disponibilité présentée auparavant. Les questions sont assez
générales et visent avant tout de permettre à chacun de vous de se centrer
sur un ou autre aspect, de disserter plus ou moins longuement selon vos
priorités, vos intérêts. Alors, il n’y a pas de consignes à suivre. Nous
objectif est réunir vos contributions dans une publications qui aura
comme caractéristique principale la diversité d’approches, de points de
vue, de perspectives théoriques et méthodologiques...
Nous espérons recevoir vos contributions avant fin de septembre
2016, en attendant que ce délai vous soit convenable.
1. La sociologie a comme une de ses principales raisons d’exister
l’analyse du contexte social vécu par les individus. Ce qui suppose le
dialogue permanent avec les autres sciences, en particulier l’histoire.
Dans quelle mesure les études sociologiques - ou une sociologie
historique - peuvent contribuer de sorte que les individus se situent
de manière critique dans leur espace et temps ? Comprennent-ils leurs
façons de penser et d’agir ? La sociologie peut aider les individus à
intervenir dans les pratiques sociales cristallisées au fil du temps ? De
cette façon, les individus peuvent-ils mettre en perspective des nouvelles
formes de se rapporter au monde et à l’autrui ?
2. La sociologie française s’est constituée comme une référence
importante pour la compréhension des divers univers sociaux et, en
particulier, pour la perception et compréhension des intérêts et des
enjeux qui guident le monde scolaire. Cela a été rendu possible par

169
l’importante circulation au niveau international des œuvres classiques
et contemporaines de sociologues qui appartenaient à différentes
approches théoriques.
À quels risques la sociologie, en tant que science, se soumet
lorsqu’elle est diffusée dans des univers souvent guidé par différentes
traditions historiques et culturelles ou même contradictoires ? À partir
de quels arguments, il est possible de redéfinir, de réaffirmer ou de réfuter
les conceptions sociologiques ayant comme paramètre des recherches
produites dans d’autres univers? Quels défis se sont imposés aux
sociologues qui souhaitent agrandir leur interaction avec des collègues
d’autres univers académiques ? Qu’est-ce que les sociologues peuvent
attendre de l’internationalisation en ce qui concerne l’avancement de la
science en général et de la sociologie en particulier ?
3. La sociologie contemporaine a élargi sa sphère d’action, à l’instar
des autres disciplines, souvent grâce à la spécialisation.
Comporte-t-elle le risque de se fragmenter et de perdre de vue la
base commune que le soutien ou, au contraire, la spécialisation serait
venue renforcer leur position scientifique ? La lecture des classiques,
plus d’un siècle depuis l’institutionnalisation de la sociologie en France,
se montre toujours pertinente ?
4. Des changements profonds et successifs dans les formes de
communication ont mis à l’épreuve les institutions classiques de l’accès
aux multiples types de connaissances.
Est-ce que l’école, préconisée par les projets de la modernité, serait
en train de perdre sa place dans la socialisation des nouvelles générations?
Quel but est attendu de l’université dans en ce qui concerne la formation
professionnelle aujourd’hui? Comment ces deux institutions (école et
université) peuvent faire face à la vitesse de l’information? Quel type de
relation le sociologue, mais aussi d’autres intellectuels, peut établir avec
les médias ?
5. Dans un moment où les projets de démocratisation les
plus classiques sont mis en question, surtout ceux concernant la
modernisation des États contemporains, de nouvelles questions/

170
orientations/recommandations sont présentées aux enseignants, aux
chercheurs et aux gestionnaires suggérant d’autres approches théoriques.
Comment les sociologues se positionnent-ils, par exemple, sur la
réintroduction de la discussion sur la justice? Comment les sociologues
peuvent faire face à l’un des grands - et au même temps anciens -
problèmes qui affectent nos sociétés: le croisement des inégalités
sociales avec les inégalités scolaires? Comment agir dans l’école et
l’université sans se laisser emporter par les pratiques de domination et
de reproduction, naturalisées dans leurs structures et dans leurs propres
représentations?
6. On fait souvent référence aujourd’hui à de multiples figures de
violence (macro violence, des violences subtiles, douces, symboliques),
d’indiscipline, d’injustice, comme si elles étaient question d’un nouveau
phénomène.
Comment la sociologie est confrontée à ce débat qui semble
traverser par des intérêts politiques et économiques, mélangés avec des
intérêts religieux? Comment les sociologues abordent la question de la
discrimination, des minorités, du nationalisme, de la laïcité? Comment
éviter la désintégration sociale sans blesser les singularités?
On observe actuellement un débat, plein de vivacité, à propos
de l’augmentation et de la diversification des obligations imposées
aux enseignants/chercheurs. Ce qui est censé imposer des obstacles à
l’avancée de la science.
Comment l’engagement des professeurs dans la recherche a été
mené en France et dans le cadre de la Communauté européenne?
Comment les sociologues français se positionnent-ils à cet égard? La
survie de l’intellectuel, dans ses différentes conceptions, serait menacée?
Qu’est ce qui est attendu de l’intellectuel face aux nouveaux défis imposés
à la production scientifique?
8. Le débat sur le rôle des intellectuels, et en particulier des
sociologues, gagne en popularité au Brésil. Il devient encore plus
effervescent en temps de crise.

171
Qu’est-ce qu’on peut attendre de ces professionnels quand ils sont
confrontés à des intérêts économiques et politiques qui s’oppose à des
luttes envisageant vaincre des inégalités sociales chroniques? Comment
la sociologie pourrait devenir accessible à tous les individus sans perdre
de vue son caractère scientifique ou, plus précisément, la rigueur
théorique et méthodologique qui la définit comme une science?

172
Este livro foi impresso
para a Editora Insular
em Agosto de 2022.
François Dubet
Doutor em Sociologia pela Universidade de Bordeaux II,
sob a orientação do professor Alain Touraine. Professor
emérito de Sociologia da Universidade de Bordeaux II e
diretor de estudos da École des Hautes Études en Scien-
ces Sociales (EHESS).

David Le Breton
Doutor em Psicologia Patológica pela Universidade de
Tours, sob a orientação de Pierre Ansart. Professor de So-
ciologia e Antropologia da Universidade de Estrasburgo e
membro do núcleo de pesquisa Dynamiques Européen-
nes (DynamE) também dessa Universidade.

Martine Plard-Derivry
Doutora em Didática das Línguas e das Culturas pela Uni-
versidade Sorbonne Nouvelle (Paris III), sob a orientação
da professora Geneviève Zarate. Professora na Univer-
sidade de Bordeaux Segalen e membro do Laboratoire
Cultures, Éducation, Sociétés (LACES). Diretora adjunta
do Départements de Recherche / Évolution, comporte-
ments et organisations (ECOr).

Éric Plaisance
Doutor em Educação pela Universidade René Descartes −
Sorbonne (Paris V), sob a orientação da professora Vivian-
ne Isambert-Jamati. Professor emérito da Universidade
René Descartes – Sorbonne (Paris V). Sociólogo, mem-
bro do Centre de Recherche sur les liens sociaux (CER-
LIS/CNRS). Professor na Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Gabriel Langouët
Doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes
– Sorbonne (Paris V), sob a orientação da professora Vi-
vianne Isambert-Jamati. Professor emérito da Universi-
dade René Descartes – Sorbonne (Paris V).

Jean-Claude Passeron
Doutor em Sociologia e Epistemologia pela École Normale
Supérieure. Diretor de estudos da École des Hautes Étu-
des en Sciences Sociales (EHESS) e membro fundador do
Centro de Pesquisa Multidisciplinar – SHADYC (Sociologia,
História, Antropologia da Dinâmica Cultural) em Marselha.
Júlia Siqueira da Rocha
Doutora em Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), com estágio sanduíche na Uni-
versidade de Strasbourg/França, sob a coordenação
do professor David Le Breton, e Mestre em Educação
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Consultora educacional na Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC), junto à Pró-Reitoria de Ensi-
no de Graduação.

Tiago Ribeiro Santos


Doutor em Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), com estágio sanduíche na Uni-
versidade René Descartes – Sorbonne (Paris V), sob a
coordenação da professora Régine Sirota. Mestre em
Educação pela Universidade Regional de Blumenau
(FURB). Professor na Universidade Católica do Oes-
te (Angers, França).

Ione Ribeiro Valle


Doutora em Ciências da Educação pela Universidade
René Descartes – Sorbonne (Paris V), sob a orienta-
ção do professor Gabriel Langouët. Pós-doutora pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS),
sob a coordenação do professor François Dubet. Pro-
fessora titular do Centro de Ciências da Educação/
UFSC. Bolsista de Produtividade em Pesquisa – CNPq –
Nível 1D.

Silvana Rodrigues de Souza


Doutora em Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), com estágio sanduíche na Uni-
versidade de Vincennes-Saint-Denis (Paris VIII) sob a
coordenação do professor Charles Soulié. Mestre em
Educação pela Universidade Federal de Santa Cata-
rina (UFSC). Professora e Auxiliar de Pesquisa na Fa-
culdade da Polícia Militar de Santa Catarina (FAPOM).

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