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VOLUME 1

EDUARDO MEDITSCH
R O S E D AYA N N E S A N T A N A N O G U E I R A
NICOLE GUIMARÃES

ORGANIZADORES
COMUNICAÇÃO
E PEDAGOGIA
EMANCIPATÓRIA
Memória da disciplina Pedagogia
da Comunicação no PPGCom da FAC UnB
A Universidade Necessária de Darcy Ribeiro
e a Pedagogia Emancipatória de Paulo Freire
inspiraram a disciplina cuja memória
é recuperada nesse livro.
COMUNICAÇÃO
E PEDAGOGIA
EMANCIPATÓRIA
Memória da disciplina Pedagogia
da Comunicação no PPGCom da FAC UnB
EDUARDO MEDITSCH
R O S E D AYA N N E S A N T A N A N O G U E I R A
NICOLE GUIMARÃES
ORGANIZADORES

COMUNICAÇÃO
E PEDAGOGIA
EMANCIPATÓRIA
Memória da disciplina Pedagogia
da Comunicação no PPGCom da FAC UnB

VOLUME 1

Florianópolis

2022
Copyright © Eduardo Meditsch, Rose Dayanne Santana Nogueira
e Nicole Guimarães (organizadores), 2022

EDIÇÃO
Nelson Rolim de Moura
CONSELHO EDITORIAL
Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas,
Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa, Sergio Ferreira Mota
e Waldir José Rampinelli
REVISÃO E PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Estúdio Insular
PLANEJAMENTO GRÁFICO E CAPA
Ayrton Cruz
FOTO DA CAPA
Darcy Ribeiro e Paulo Freire na despedida deste do cargo de Secretário Municipal de
Educação de São Paulo, em 1991. Foto de Márcio Novais. Fonte: acervo.paulofreire.org

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP)

M491c Meditsch, Eduardo; Nogueira, Rose Dayanne Santana; Guimarães, Nicole (org.).
Comunicação e pedagogia emancipatória, Volume 1: Memória da disciplina Pedagogia
da Comunicação no PPGCom da FAC UnB / Organizadores: Eduardo Meditsch, Rose Dayanne
Santana Nogueira e Nicole Guimarães; Prefácio de Dione Oliveira Moura.
– 1. ed. – Florianópolis, SC : Editora Insular, 2022.
395 p.; figs.; gráfs.; tabs.; quadros.
E-book: 5,2 Mb; PDF.

ISBN 978-85-524-0341-8.

1. Darcy Ribeiro. 2. Paulo Freire. 3. Pedagogia da Comunicação. 4. Pedagogia Emancipatória.


5. Universitária. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.
CDD 070.4:371.3
23-30281267 CDU 070:37.013

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Jornalismo; Métodos de ensino, instrução e estudo – Pedagogia.
2. Jornalismo; Prática pedagógica.

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MEDITSCH, Eduardo; NOGUEIRA, Rose Dayanne Santana; GUIMARÃES, Nicole (org.). Comunicação e
pedagogia emancipatória, Volume 1: Memória da disciplina Pedagogia da Comunicação no PPGCom da
FAC UnB. 1. ed. Florianópolis, SC: Editora Insular, 2022. E-book (PDF; 5,2 Mb). ISBN 978-85-524-0341-8.

EDITORA INSULAR INSULAR LIVROS


(48) 3334-2729 Rua Antonio Carlos Ferreira, 537
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SUMÁRIO

PREFÁCIO | Pedagogia da Comunicação para esperançar o futuro....... 8


Dione Oliveira Moura

APRESENTAÇÃO........................................................................................... 10
Os organizadores

PRIMEIRA PARTE | PALESTRAS E DEBATES

CAPÍTULO 1 | A Comunicação é uma disciplina científica


em estágio de construção............................................................................... 19
José Luiz Braga

CAPÍTULO 2 | O ensino superior como bem público:


a FAC, a UnB e a reforma de Córdoba......................................................... 50
Marco Antonio Dias

CAPÍTULO 3 | Ensino de comunicação no Brasil:


trajetória e novos rumos................................................................................ 68
Cláudia Peixoto de Moura

CAPÍTULO 4 | Origens e inconsistências da Comunicação


como Ciência.................................................................................................... 93
Francisco Rüdiger........................................................................................................ 93

CAPÍTULO 5 | Ensino de teoria, dilemas curriculares


e a experiência universitária que vai além das aulas............................... 122
Fábio Henrique Pereira

CAPÍTULO 6 | Vivências e resistências em Extensão Universitária.... 147


Fernando Oliveira Paulino

CAPÍTULO 7 | Vocação para a docência: depoimento


de uma professora de Comunicação Organizacional............................. 163
Elen Geraldes
CAPÍTULO 8 | Uma prática laboratorial onde ecoam as lições
de Paulo Freire............................................................................................... 188
Elton Bruno Pinheiro

CAPÍTULO 9 | O paradoxo da criatividade no ensino


da Publicidade................................................................................................ 213
Fábio Hansen
Juliana Petermann
Rodrigo Stefani Correa

CAPÍTULO 10 | Ensino de Jornalismo numa instituição privada:


a experiência do curso EAD da Uninter.................................................... 241
Guilherme Carvalho

SEGUNDA PARTE | TEXTOS DE PESQUISA,


EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES

CAPÍTULO 11 | O ideário da UnB e seu vínculo indissociável


com o princípio da educação superior como bem público.................... 264
Ana Carolina Melo

CAPÍTULO 12 | Cansados e sobrecarregados – experiências


dos pós-graduandos em comunicação da UnB com o ensino
remoto na pandemia..................................................................................... 280
Mayara da Costa e Silva

CAPÍTULO 13 | O ensino de Jornalismo em Manaus


e as Diretrizes Curriculares Nacionais....................................................... 301
Hemanuel Jhosé Alves Veras

CAPÍTULO 14 | Comunicação e Educação: sistemas sociais,


irritações e provocações............................................................................... 322
Ricardo de Alcântara Dantas

CAPÍTULO 15 | O ensino da Comunicação Integrada


e a sua aplicação prática no setor público................................................. 344
Jean Marcel da Silva Campos

CAPÍTULO 16 | Inovações em Pedagogia da Comunicação................. 359


José Luiz Niederauer-Pantoja

CAPÍTULO 17 | A diáspora acadêmica africana pós-colonial.............. 369


Jéssica de Lima Fernandes

CAPÍTULO 18 | Ensaio sobre Comunicação do Conhecimento.......... 385


Juliana Ferreira
P R E FÁ C I O

Pedagogia da Comunicação
para esperançar o futuro

Comunicação. Pedagogia. Pedagogia e Comunicação, dois campos,


a princípio, historicamente apartados, como fizeram os demais, movi-
mento bem documentado por Pierre Bourdieu por meio das Meditações
Pascalianas.
Pedagogia da Comunicação, um encontro possível a partir da pers-
pectiva proposta pelo sempre mestre Paulo Freire. E foi exatamente esse
fluxo da Pedagogia da Comunicação que foi oportunizado pela atuação
do pesquisador Eduardo Meditsch como professor visitante em nosso
Programa de Pós-Graduação, atuando na própria Pós, na Graduação e
na Extensão da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília
(FAC-UnB).
O processo de produção da obra, sob a coordenação do profes-
sor Eduardo Meditsch, contou com o assessoramento de duas pós-gra-
duandas da UnB: as valorosas coautoras deste livro, a Rose Dayanne
Nogueira e a Nicole Guimarães. Por fim, mais uma vez, nossos dois pro-
gramas – UnB e UFSC – tornamo-nos parceiros em um projeto comum,
e, como não poderia deixar de ser, um projeto/livro vocacionado para a
comunicação cidadã e, portanto, democratizadora.
A construção da disciplina que ensejou a produção do presente livro,
ainda, deu-se em um cenário muito peculiar – o período da pandemia
Covid-19, o processo de ensino remoto, as apreensões de cada estudante
sobre seu futuro profissional impactado com o cenário da pandemia.
Quase tudo se desorganizou, quase tudo passou a fazer pouco sentido,
todo esforço parecia quase em vão – era o que nós docentes ouvíamos,

8
com muita frequência, das e dos estudantes da pós-graduação nesse tão
difícil período da pandemia.
Contudo, eis que algumas luzes chegam para arejar o presente e
esperançar o futuro. E parte importante dessas luzes chegaram por meio
do encontro feliz do pensamento paulofreiriano, foco do projeto de pes-
quisa que o professor visitante Eduardo Meditsch desenvolveu no nosso
Programa, por um lado, e do pensamento de Darcy Ribeiro, fundador
da UnB, no marco dos 60 anos de nossa Universidade completos em
2022, por outro lado. Que encontro feliz, quanto de esperançar foi reno-
vado dentre nossas e nossos pesquisadoras e pesquisadores, eis o que
podemos ver na obra: uma plêiade de perspectivas muito bem inseridas
em uma constelação de comunicação cidadã, com todos seus desafios e
possíveis soluções/avanços/demandas.
Por fim, quando a Universidade de Brasilia já completou seus 60
anos de fundação, temos a satisfação de poder trazer à luz, por meio da
Insular, essa obra que marca a presença renovada do pensamento paulo-
freiriano, desde uma perspectiva da Pedagogia da Comunicação, à luz de
uma experiência pedagógica e de pesquisa no seio da UnB-Darcy Ribeiro.
Não poderíamos pedir mais. Aproveitem, ótima leitura, e renovado
esperançar, sempre!

Brasília, Campus Darcy Ribeiro, 6 de março de 2023.

Professora Titular Dione Oliveira Moura


Diretora da Faculdade de Comunicação da UnB
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (FAC-UnB)

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A P R E S E N TA Ç Ã O

Este livro resulta da disciplina Pedagogia da Comunicação, minis-


trada como Tópico Especial no Programa de Pós-Graduação da Facul-
dade de Comunicação (FAC) da UnB, durante o primeiro semestre de
2021 (semestre letivo 2020/2, retardado pela pandemia do coronavírus)
pelo professor visitante Eduardo Meditsch. Além dele, organizam esta
obra as pós-graduandas Rose Dayanne Santana Nogueira e Nicole Gui-
marães, que atuaram também como estagiárias-docentes em Ensino
Orientado, nas disciplinas da graduação ministradas por Meditsch no
período em que esteve como professor visitante da FAC.
A disciplina Pedagogia da Comunicação funcionou em sistema
de ensino remoto emergencial, como toda a UnB funcionava naquele
período, devido à pandemia de coronavírus1. Apesar das notórias limi-
tações do sistema de videoconferência em relação às aulas presenciais,
este trazia possibilidades, como a presença de convidados para debater
com os alunos, ainda que à distância, os temas da disciplina. Explorando
essa facilidade, o professor convidou destacados intelectuais e acadêmi-
cos para falarem sobre a função da Universidade, o ensino e a pesquisa
em Comunicação e sobre experiências pedagógicas desenvolvidas na
própria FAC e em outras instituições. Estas falas e os debates que as
seguiram foram transcritas com apoio das alunas e dos alunos da turma,

1 A partir de março de 2020, a UnB adotou uma série de medidas relacionadas ao funciona-
mento da universidade durante a pandemia da Covid-19, como a suspensão do calendário
acadêmico do primeiro semestre letivo daquele ano, a migração das atividades acadêmicas
para a modalidade remota emergencial e, posteriormente, na modalidade híbrida, entre ou-
tras, até o retorno presencial em junho de 2022.

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editadas pela organização e revisadas com apoio de alguns dos autores e
autoras. Elas compõem a Primeira Parte do livro.
Além disso, os estudantes também fizeram seus próprios textos,
refletindo sobre os temas tratados nas aulas, trazendo experiências pro-
fissionais e acadêmicas, desenvolvendo estudos empíricos pontuais.
Estes textos compõem a Segunda Parte.

Primeira Parte: Palestras e debates

O texto que abre esta coletânea – A Comunicação é uma disciplina


científica em estágio de construção – é a transcrição da apresentação e
debate com o professor José Luiz Braga, sobre a Comunicação enquanto
uma disciplina científica em estágio de construção. Atual professor visi-
tante da Universidade Federal de Goiás, Braga tem uma longa trajetória
acadêmica, passou duas vezes pela UnB, e em que se consolidou como
um dos principais nomes do país na formulação e institucionalização
do campo da Comunicação. Em sua fala, sintetiza sua visão atual sobre
o problema da constituição da disciplina científica, sobre a relação entre
ensino e pesquisa e sobre a forma crítica como vê a questão da interdis-
ciplinaridade na área.
O segundo texto – O ensino superior como bem público: a FAC,
a UnB e a reforma de Córdoba – traz o depoimento de outro ex-
diretor da FAC. A trajetória de Marco Antonio Dias, como professor
da Faculdade de Comunicação e vice-reitor da UnB e de diretor da
Divisão de Ensino Superior da Unesco, vincula-se com sua defesa
irrestrita da educação superior como bem público, acessível e iguali-
tária. E é a partir dessa ideia que traz um relato histórico, articulado
com suas memórias, sobre o curso de Comunicação da Universidade
de Brasília e os desafios e marcos do processo de criação de uma
pós-graduação em Comunicação na UnB, em plena ditadura militar
no país. Em sua narrativa, destaca também a influência da histórica
Reforma de Córdoba, de 1918, ocorrida na universidade argentina
de mesmo nome, em universidades de outros países latino-america-
nos, entre eles o Brasil.

11
No terceiro capítulo – Ensino de comunicação no Brasil: trajetória e
novos rumos –, a professora Cláudia Peixoto de Moura apresenta uma aná-
lise minuciosa da trajetória do ensino de Comunicação no Brasil, a partir
da análise dos currículos e das diretrizes que orientaram os cursos da área
de Jornalismo, Publicidade e Propaganda (PP) e, especialmente, Relações
Públicas (RP) no país, em que o primeiro parecer analisado é o 1962 e era
exclusivamente para o curso de Jornalismo. Segundo Moura, que participou
da Comissão de especialistas responsável pelas Diretrizes Nacionais da área
de RP, para construir um projeto pedagógico, além de entender o momento
atual, também é preciso olhar para o passado a partir do qual essas evolu-
ções e modificações aconteceram, para assim pensar nos novos rumos a
partir do contexto no qual se inserem. Pensar nas demandas sociais e na
inserção regional e também na articulação teoria e prática.
Em Origens e inconsistências da Comunicação como ciência, o
professor Francisco Rüdiger, cuja palestra compõe o quarto capítulo,
debruça-se sobre a Comunicação a partir de um resgate histórico que
inicia em 1920, com o conceito de “comunicação de massas”, e passa
por pensamentos contemporâneos do memorável Nilson Lage. O autor
reflete sobre o fato de as teorias da comunicação no sentido restrito
serem raras e terem pouco alcance no âmbito das pesquisas acadêmicas
da área de Comunicação, quando é dado enfoque aos fenômenos con-
cretos. As origens da propaganda e o jornalismo como ciência aplicada
são alguns dos temas debatidos no texto.
Partindo da percepção de que as teorias “precisam de alguma
forma permitir que os estudantes compreendam a prática deles”, no
capítulo Ensino de teoria, dilemas curriculares
 e a experiência universi-
tária que vai além das aulas, o professor Fábio Pereira conta sobre sua
experiência como docente e como organiza as aulas de Teorias do Jorna-
lismo. O autor também cita trabalhos que os alunos têm desenvolvido a
partir da dinâmica da disciplina, mostrando a importância de permitir
que os discentes, de alguma forma, utilizem o que aprendem em sala de
aula. “É importante que eles se vejam nessas teorias ou que a teoria os
ajude a entender o que estão fazendo”. O palestrante também destaca a
importância da vivência universitária fora da sala de aula, um elemento
da formação que escapa aos currículos.

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Em Vivências e resistências em Extensão Universitária, o professor
Fernando Oliveira Paulino apresenta um pouco de sua experiência em
atividades de extensão, as quais vivencia desde quando era estudante na
Universidade de Brasília, instituição na qual atualmente é professor de cur-
sos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Comunicação. Paulino
traz um balanço histórico a partir de um link com o ensino, a pesquisa e a
extensão e o projeto de criação das universidades, especialmente da UnB,
relacionando-o com o campo da Comunicação. Além disso, relata algumas
experiências de extensão, os aprendizados gerados a partir delas, em diá-
logo com outras experiências apresentadas pelos seus interlocutores.
Com uma trajetória que passa por graduação em Jornalismo em
São Paulo e doutorado em Sociologia em Brasília, a professora Ellen
Geraldes conta o caminho que percorreu até se tornar docente univer-
sitária e os desafios vividos na prática pedagógica. Em Vocação para a
docência: depoimento 
de uma professora de Comunicação Organizacio-
nal, a autora mergulha no seu dia a dia de sala de aula, reforçando a
importância de vincular cada conteúdo com o curso ministrado, a sen-
sibilização pela arte e a atualidade e o compromisso ético e afetivo de
dar retorno a tudo que é entregue em suas mãos pelos alunos. Na con-
clusão, dá ênfase às possibilidades, aos ganhos e “àquilo que nos tira da
cama todos os dias”.
“Alimento minha trajetória com a visão pedagógica do Paulo
Freire”, ressalta o professor Elton Bruno Pinheiro no capítulo Uma prá-
tica laboratorial onde ecoam as lições de Paulo Freire, em que apresenta
algumas experiências e vivências de ensino, pesquisa e extensão na prá-
tica laboratorial da Faculdade de Comunicação da Universidade de Bra-
sília (FAC/UnB). As lições do educador brasileiro ecoam e é possível
observar essa perspectiva freireana à medida que Pinheiro relata desa-
fios inerentes a tornar os laboratórios espaços de construção do conhe-
cimento – coletivos e individuais –, de experimentação, de criatividade,
inovação e de autonomia. Desafios que se intensificaram num contexto
de pandemia, gerando estratégias para levar adiante as práticas labora-
toriais sem a presencialidade.
Em O paradoxo da criatividade no ensino da Publicidade, os pro-
fessores Fábio Hansen, Juliana Petermann e Rodrigo Stefani Correa

13
abordam os resultados da pesquisa longitudinal que realizaram sobre o
ensino da Publicidade e Propaganda entre 2010 e 2018, os quais foram
consolidados em livro publicado pelos autores em 2020. A criatividade
está no foco e, à medida em que analisam suas próprias práticas e de
outros docentes em sala, destacam movimentos e transformações no
ensino e no mercado publicitário. “Onde está a criatividade que esta-
mos ensinando em disciplinas da criação publicitária na nossa prática
docente? Como fomentar a criatividade nos estudantes sem sermos
criativos nas nossas práticas?” Essas são algumas das questões que per-
meiam essa discussão.
Diferentes são os desafios do Ensino à Distância. Mas quais serão
as diferenças? E os prós e os contras? Como é estruturado um curso
EAD? No último capítulo da primeira parte – Ensino de Jornalismo
numa instituição privada: a experiência do curso EAD da Uninter –, o
professor Guilherme Carvalho responde a essas e outras perguntas
e aponta em detalhes a construção e a gestão do curso de Jornalismo
em EAD do Centro Universitário Uninter, o primeiro do Brasil. Além
disso, são apresentados dados como o do Censo da Educação Superior
de 2020 que mostram um processo de crescimento da oferta de vagas
na educação a distância. A educação presencial retraiu 5,2% no período
2018/2019 enquanto a oferta de vagas à distância cresceu 45%.

Segunda Parte: Textos de pesquisa, experiências


e reflexões

A segunda parte do livro traz os artigos produzidos pelos alunos


e alunas como resultados de suas reflexões a partir das aulas, e de suas
próprias experiências profissionais e pesquisas. No capítulo O ideário
da UnB e seu vínculo indissociável com o princípio da educação supe-
rior como bem público, Ana Carolina Melo resgata a memória do que
representou o projeto de criação da Universidade de Brasília (UnB),
idealizado por nomes como Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. A autora
contextualiza o momento histórico decisivo em que isso aconteceu –
que se confunde com o espírito de construção da nova capital – em que

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intelectuais públicos brasileiros viram na idealização de uma universi-
dade efetivamente transformadora, e comprometida com o país, um dos
caminhos para a superação do nosso subdesenvolvimento.
Mayara da Costa e Silva, no capítulo seguinte, apresenta os resul-
tados de um estudo empírico, de caráter quanti-qualitativo, realizado
com discentes do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade de Brasília. Em Cansados e sobrecarregados: experiências
dos pós-graduandos em Comunicação da UnB com o ensino remoto na
pandemia, a autora relata a percepção dos mestrandos e doutorando
desse programa sobre o Ensino Remoto Emergencial durante a pande-
mia, bem como suas dificuldades e perspectivas. Nesse sentido, ana-
lisa algumas questões, como aspectos tecnológicos e acesso à internet;
formato do Ensino Remoto; experiências com aulas remotas; dificul-
dades e vantagens.
O capítulo O Ensino de Jornalismo em Manaus e as Diretrizes Cur-
riculares Nacionais, de Hemanuel Jhosé Alves Veras, apresenta como
estão estruturados atualmente os cursos de Jornalismo existentes no
Amazonas no que diz respeito ao atendimento às Diretrizes Curri-
culares Nacionais da área. Foram identificados seis cursos de jorna-
lismo em Manaus: da Universidade Federal do Amazonas (Ufam),
única instituição pública que oferece o curso na cidade; da Faculdade
Boas Novas (FBNCTSB); da Faculdade Centro Universitário do Norte
(Uninorte); da Universidade Nilton Lins (UniNiltonLins); da Facul-
dade Martha Falcão/Wyden (FMF); e do Centro Universitário Fame-
tro (Ceuni-Fametro).
Já Ricardo de Alcântara Dantas inicia sua análise com a pergunta
“Como a Comunicação, enquanto campo de conhecimento, materializa-
se em uma sala de aula do ensino básico?”. Por meio de uma perspectiva
sistêmica, o autor busca observar como a Comunicação é inscrita no
programa educacional do ensino básico do país, em algumas leis, dire-
trizes e orientações gerais do sistema educacional para finalmente se
tornar conteúdo programático em sala de aula. Para isso, em Comunica-
ção e Educação: sistemas sociais, irritações e provocações, Dantas reuniu
depoimentos de oito docentes que são ou foram professores da faixa
escolar do ensino básico em Brasília (DF).

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No capítulo O ensino da Comunicação Integrada e a sua apli-
cação prática no setor público, Jean Marcel da Silva Campos parte
de uma articulação entre teoria e prática, baseada no pensamento
acadêmico de José Luiz Braga, para descrever e discutir aspectos do
processo de estruturação administrativa do Gabinete de Comunica-
ção (GCOM) do Governo de Mato Grosso, no ano de 2015. Nesse
sentido, o autor, além de registrar a complexidade da fase de estru-
turação administrativa da assessoria, busca ilustrar, com exemplos
práticos, as perspectivas de Braga sobre a interdependência entre o
fazer teoria e o fazer profissional, bem como sobre a definição do
campo da Comunicação.
O contexto da pandemia também leva José Luiz Niederauer-Pan-
toja a refletir sobre as Inovações em Pedagogia da Comunicação. Recor-
rendo aos aprendizados da disciplina “Pedagogia da Comunicação”, que
também motiva a publicação deste livro, tece alguns comentários sobre
a lógica da mudança e da inovação, em projetos políticos pedagógi-
cos, por exemplo, buscando apresentar elementos para a construção da
esperança freireana.
O capítulo seguinte, A diáspora acadêmica africana pós-colonial,
escrito por Jéssica Fernandes, explora o conceito de diáspora aca-
dêmica africana pós-colonial, tendo como base estudos de diversos
autores e dados sobre essa dispersão. Em especial, a diáspora é exem-
plificada a partir da obra de Chimamanda Ngozi Adichie, que relata a
vida da personagem Ifemelu, contando sua vivência no “Novo Mundo”
e narrando, inclusive, seu sucesso e o preconceito sofrido por ser uma
mulher negra imigrante.
No capítulo que fecha esta segunda parte, Ensaio sobre comuni-
cação do conhecimento, Juliana Ferreira apresenta um ensaio no qual
reflete sobre a comunicação do conhecimento, articulada com o pensa-
mento de Paulo Freire. A autora explora aspectos relacionados a como
a comunicação pode ser um princípio democrático para o ensino e
para a formação política de uma comunidade e de uma sociedade.
A partir de sua experiência como servidora do CNPq, problematiza
questões relacionadas à aquisição de conhecimento e à estratificação
da comunicação.

16
O conjunto do livro, com as transcrições das palestras e debates e
os capítulos escritos por estudantes da disciplina Pedagogia da Comu-
nicação, ministrada no PPG da Faculdade de Comunicação em 2021,
traz as perplexidades, os receios e as esperanças de um momento mar-
cado pela tragédia da pandemia, por um governo federal hostil à uni-
versidade pública e pela resistência da comunidade universitária a estas
adversidades. Apesar de tudo, a Universidade nunca parou, e graças a
isto, no novo momento em que se publica este livro, podemos ter um
renovado otimismo sobre a Pedagogia da Comunicação e seu estudo
em nosso país.
A edição deste e-book de distribuição gratuita se tornou possível
pelo apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tec-
nológico (CNPq), através da taxa de bancada da bolsa de produtividade
em pesquisa do professor (Processo 311040/2017-9). Alguns alunos e
alunas que participam também foram apoiados no período por bol-
sas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Às duas instituições de fomento, fundamentais para a ciência
e a pós-graduação brasileiras, nosso reconhecimento e agradecimentos.
O segundo volume de Comunicação e Pedagogia Emancipatória
trará a memória da disciplina Paulo Freire e a Comunicação, também
ministrada como Tópico Especial pelo professor Eduardo Meditsch no
PPG da FAC, além de textos e palestra realizados na primeira disciplina,
que cuja temática estava mais próxima da segunda. Agradecemos a
todas, todos e todes que colocaram mentes e mãos à obra para viabilizar
esta publicação.

Os organizadores

17
PRIMEIRA PARTE

PALESTRAS E DEBATES
CAPÍTULO 1

A Comunicação é uma disciplina


científica em estágio de construção1
José Luiz Braga2

Primeiro quero agradecer o convite do professor Eduardo Meditsch


que me dá uma oportunidade bem legal de estar na UnB novamente.
Isso é sempre importante para mim. A UnB foi um período riquíssimo
para minha experiência profissional de professor e pessoal, então é sem-
pre satisfatório e motivo de alegria voltar aqui.
Escrevi há poucos anos um artigo com título “Aprender metodo-
logia ensinando pesquisa”3. O que sei de metodologia vem não simples-
mente do que é informado em biblioteca. Mas, das necessidades do
ensino, dos problemas que os estudantes me traziam, das perguntas que
me faziam e isso é o que acho que nos faz, de algum modo, aprender. E,
com isso, num certo sentido, já estou entrando no assunto da nossa fala
que são os dois artigos que o Meditsch selecionou para vocês4.
1 Palestra à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-
do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 8 de março de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professor visitante na Universidade Federal de Goiás. Professor emérito da Unisinos. Foi pro-
fessor titular e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos
(RS) de 1999 a 2021. Foi pesquisador 1A do CNPq até 2021. Doutor em Comunicação pela
Université de Paris II, Institut Français de Presse (1984). Mestre em Educação pela Florida
State University. Foi professor no Departamento de Comunicação da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB, 1978-1987) e da Universidade de Brasília (UnB, 1987-1999), tendo sido,
nesta última, diretor da Faculdade de Comunicação. Foi presidente da COMPÓS (Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), gestão 1993-1995.
3 BRAGA, J. L. Aprender metodologia ensinando pesquisa: incidências mútuas entre metodologia
pedagógica e metodologia científica. In: LOPES, M. I. V.; MOURA, C. P. (Orgs.). Pesquisa em
Comunicação: metodologias e práticas acadêmicas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016, p. 77-98.
4 Os artigos debatidos em aula e neste capítulo foram 1) BRAGA, J. L. Ensino e pesquisa em
Comunicação: da teoria versus prática à composição contexto & profissão. Comunicação &
Educação XII, 2, mai.-ago. 2007. p. 21-27 e 2) BRAGA, J. L. Constituição do Campo de Co-
municação. Verso & Reverso XXV, 58, jan.-abr. 2011, p. 62-77.

19
Os dois, a rigor, não apresentam posições a serem aprendidas
por uma série de razões. Na verdade, eu os coloco, já na origem, como
desencadeadores potenciais de reflexões, de dúvidas e de críticas, pois
todos os que escrevi, que tive a possibilidade de apresentar antes de
publicar, foram enriquecidos pelo debate. Isso é muito importante para
o desenvolvimento do conhecimento. Fora isso, muitas coisas se modi-
ficaram. Como o Meditsch chamou atenção, são artigos publicados há
algum tempo. Um deles foi publicado em dois momentos, em 2001 e
2011. O outro foi publicado em 2007. Quer dizer, a parte mais recente
publicada já tem 10 anos. Muita coisa deixou de ser problema, surgiram
problemas novos, mais urgentes. Então, a questão que se coloca para os
artigos é muito mais de fazer perguntas, objeções, assinalar insuficiên-
cias. No caso dos estudantes, questões nas quais o artigo pareça exercer
algum tensionamento sobre sua pesquisa e, sobretudo, nos aspectos nos
quais a pesquisa de vocês exerce alguma objeção ou algum tensiona-
mento sobre o artigo. Então, é sobre isso que é interessante conversar.
Eu não vou falar diretamente sobre os artigos que vocês leram, mas
tratar um pouco de como vejo essas questões agora. Um dos dois trata
do ensino e questões pedagógicas da Comunicação. Faço uma discus-
são sobre formação de especialistas em profissões de Comunicação. Em
suma, curso de graduação em Comunicação, qualquer das profissões.
A questão é o modo de ensinar e o modo de aprender. Trabalho dois
tipos de relações entre teorias e práticas profissionais. Uma é aquela
tradicional e forma dos cursos, uma parte teoria e outra parte prática
profissional. O outro tipo de relação é entre a formação profissional e as
condições contextuais de seu exercício.
O outro artigo trata de questões epistemológicas. Faço uma discus-
são e o tema é o mesmo: das formações que vocês fazem como estudan-
tes. Apenas uma perspectiva abrangente sobre o campo. Discuto alguns
espaços, alguns aspectos que nas épocas em que escrevi, 2001 e 2011,
ofereciam dúvidas. Sinteticamente: o estatuto do conhecimento em
Comunicação; a ideia de interdisciplinarismo; a questão do objeto dos
estudos comunicacionais; o tipo de relevância que a mídia teria nesses
estudos; distinção entre a Comunicação e as demais ciências humanas e
sociais; e a questão da organização interna do campo. Nem todas essas

20
questões mantêm a mesma relevância como tinham em 2001 ou 2011
e, para as que mantêm relevância, os encaminhamentos certamente
devem ser outros. O que quero, sobretudo, nesta curta fala, é mostrar
que esses dois ângulos, da aprendizagem e da caracterização do campo
da Comunicação, podem ser duas faces de uma mesma questão geral
mais abrangente.
A partir de 2001, nós temos, então, referido em um dos dois arti-
gos dois momentos, num intervalo de dez anos e agora nos encontra-
mos num terceiro momento, de mais dez anos. Em 2011, a proposta da
editora era que fizesse uma revisão geral do texto de 2001. Concluí que
era muito difícil fazer isso, talvez fosse o caso de fazer um novo texto.
Mas, que cabia bem fazer algumas anotações. Então, o texto da publi-
cação original está integralmente lá, com aquele acréscimo de algumas
anotações. Essas anotações já assinalam algumas mudanças no período
de dez anos. Como é evidente, as mudanças continuam, a história não
para aí e, portanto, temos ainda outra situação. O que observo, então,
e quero chamar atenção, é que desde os anos 90 – vamos colocar mais
dez anos para trás do primeiro artigo – o nosso campo de conheci-
mento mostra uma boa variedade de modificações, que levaram justa-
mente aos debates no âmbito da Compós. Debates que me levaram a
escrevê-lo em 2001.
Assinalarei algumas dessas modificações, não sequenciando no
tempo, mas, em grosso modo, dinâmicas que vêm ocorrendo desde os
anos 90. Primeiro, no exercício das profissões da Comunicação e das
práticas profissionais relacionadas, mesmo indiretamente, porque não
aparece somente nas profissões diretamente de Comunicação. Mas,
por pessoas formadas ou não em Comunicação, exercendo funções
profissionais em outros campos, no campo do direito, da psicologia,
no campo geral das ciências humanas e sociais, na informática etc. Há
mudanças nos processos comunicacionais além de uma grande penetra-
ção ampliada. Até os anos 90, profissões da Comunicação eram aquelas
canônicas: Jornalismo, Publicidade, Editoração, Relações Públicas etc.
Agora, penetram em todos os âmbitos. Tenho certeza de que há jorna-
listas trabalhando em todos os âmbitos sociais e organizações de todos
os âmbitos sociais e assim também com as outras áreas.

21
Outra modificação é a questão do nosso objeto de conhecimento que
se modifica. Aquilo que eu discutia como nossa preocupação de objeto
em 2001 já não é mais uma preocupação. Na verdade, eu diria: sequer
devemos falar em “o objeto dos estudos da Comunicação’’. Nós estudamos
os mesmos objetos que as ciências humanas e sociais no geral, apenas
buscamos outra perspectiva. A História e a Sociologia estudam o mesmo
objeto: a sociedade. Apenas aplicam sobre esse objeto perspectivas muito
diferenciadas. Deveríamos falar, então, em quais são as perspectivas do
conhecimento comunicacional. Com isso, no compartilhamento dos
nossos conhecimentos, que era uma questão em 2001: como é que nós
compartilhamos o que é da Comunicação, da Sociologia e o que é da Psi-
cologia? Quando falo de compartilhamento, o que é de uma coisa e o que
é de outra, dá uma impressão muito territorial. Quando falo de perspec-
tiva, não há território. O território é o mesmo, é a sociedade. Então, não
há mais territórios e o problema é: quais são as perspectivas? No próprio
conhecimento teórico – e nós tínhamos nos anos 90 um certo elenco que
parecia muito proliferante e hoje vemos que, na verdade, eram poucas
teorias porque proliferação é o que acontece hoje – nós tínhamos um
número de grandes teorias ditas gerais que tinham sido feitas no campo
da Semiótica, da Política, da Sociologia, da Antropologia etc. Nós ficáva-
mos escolhendo entre umas ou outras dessas teorias.
O que defendo hoje é a necessidade de teorias de médio alcance. É
uma ilusão pensarmos que alguém vai fazer uma macro Teoria Geral da
Comunicação, que vai resolver todo o problema de caracterização e de
construção da disciplina. Teorias intermediárias que devem saber qual é
o seu alcance específico. Mudanças também no contexto social por várias
razões. Uma delas, a mais evidente, é o desenvolvimento tecnológico
continuado. Mas, não só a midiatização de todos os processos sociais.
Eu não confundo midiatização com desenvolvimento tecnológico. Claro
que a midiatização depende da tecnologia. No entanto, a midiatização
não é o uso generalizado das tecnologias, muito menos a influência das
mídias sobre o resto da sociedade. Vejo de outra forma. Midiatização é
um trabalho de toda a sociedade usando essas tecnologias. Portanto, o
campo da psicologia começa a fazer suas tentativas de uso de mídias,
assim como o campo do direito, da sociologia, das artes, da literatura etc.

22
Isso não é influência da mídia sobre, é ação experimental de todos os cam-
pos sociais no uso daquilo que até 30, 40 anos atrás parecia nos pertencer
enquanto profissionais da Comunicação. Hoje pertence à sociedade como
um todo, às vezes de modo muito atabalhoado, confuso. Mas, o fato é que
está nas mãos de todo mundo. Isso é uma mudança importante.
Quando falo em educação e trago essas mesmas questões para a
educação, o que percebo é o seguinte: os ritmos habituais que tínhamos
para a Educação até os anos 70, 80 do século passado, de modo geral
ou teoricamente, eram pensados como tempos de longo prazo. Porque
a Educação traz no conhecimento da sociedade aquilo que está estabi-
lizado para esta escola desde o primeiro grau até a universidade. Isso já
fez suas provas, está estabilizado, é conhecido, podemos trazer com soli-
dez para o campo da educação e podemos ensinar às próximas gerações
aquilo que já aprendemos e já sabemos. Historicamente, nem sempre
isso é verdade. E nós estamos num momento em que isso, com toda
certeza, não é mais verdade porque quando as coisas acontecem acele-
radamente e se modificam da noite para o dia, os conhecimentos nem
bem se estabilizaram e já começam a ser superados por outras experi-
mentações que, entretanto, sequer fizeram seus testes ainda para terem
garantias. Se ficarmos só com o estabilizado, formaremos nossas futuras
gerações com os padrões de duas ou três gerações anteriores. O que,
aliás, é o que parece que está acontecendo com a nossa política.
Constatada essa grande diversidade teórica investigativa, consta-
tadas as mudanças de contexto social, constatadas as experimentações
sociais que mudam tudo do dia para a noite, tenho experimentações
muito interessantes de orientandos de outras áreas. Por exemplo, uma
orientanda que veio da Psicologia, fez graduação, mestrado, é professora
universitária de Psicologia e decidiu fazer doutorado em Comunicação,
porque ela percebe que, para fazer a clínica, era muito complicado. Ela é
psicóloga clínica numa prefeitura e as pacientes chegavam para receber
atendimento e explicavam o seu sofrimento fazendo referência a perso-
nagens de novela. Ela dizia: “Como é que posso clinicar se eu não sei o
que está acontecendo neste universo?”. Foi assim que ela decidiu fazer
doutorado em Comunicação. Isso acontece em todas as áreas. Então,
está tudo atravessado. As especialidades são atravessadas.

23
Os campos sociais do Bourdieu, que são o exemplo máximo do
âmbito de institucionalização da sociedade, são atravessados por circui-
tos comunicacionais midiáticos e/ou não midiáticos. Escrevi sobre isso
no artigo “Circuitos versus campos sociais”5. Pois bem, essa é a situação
dessas formações: 2001 e 2011 já não valem mais. Todas essas modifica-
ções nesse contexto vão interferir tanto no ensino como na aprendiza-
gem. São duas coisas um pouco diferentes: o ensino e a aprendizagem.
Nós, professores, não temos a certeza de que aquilo que está sendo ensi-
nado é aquilo que está sendo aprendido. O que está sendo aprendido
depende, em grande parte, dos insumos que o próprio estudante traz.
Tudo isso interfere no ensino e na aprendizagem da Comunicação ao
mesmo tempo, e também na construção do campo de conhecimento e,
portanto, nos processos de pesquisa.
Se tudo está estável desse modo, o que fazer nessas condições?
Claro que nós não temos respostas estabilizadas. Por definição, não é
possível ter respostas estabilizadas para problemas que ainda não se
configuram com clareza para a nossa própria interpretação. Eu diria,
o primeiro aspecto: é preciso importar para o campo da Comunicação
algumas práticas das aprendizagens contextuais. Ou seja, a Educação
precisa reaprender a partir dos modos como se aprende. A minha pro-
posta é que precisamos acelerar o espaço inverso que continua existindo
da aprendizagem para a Educação. É preciso, então, trazer para o ensino
e para as práticas da pesquisa os problemas da realidade. Já não são os
problemas abstratos que elaboramos durante décadas em termos teóri-
cos. Teorias trabalham sempre em torno de problemas e já não são mais
tão claramente esses os problemas.
Gosto de usar uma expressão de Foucault para esse tipo de
problema que são “as urgências”. Urgência não é simplesmente uma
questão de pressa, é um problema que a gente nem conhece bem, mas
caiu em cima como uma urgência. Quando ela cai na sociedade, no
âmbito do senso comum, no dia a dia das pessoas, nas relações intera-
cionais das pessoas, nas situações concretas da política, da cidadania,

5 BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI
JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Org.). Mediação & midiatização. Salvador: EDUFBA; Brasília:
Compós, 2012, p. 29-52.

24
das relações sociais, e nos campos profissionais. Os problemas tam-
bém caem diretamente sobre os campos profissionais. Então, em pri-
meiro lugar, estamos preocupados com duas coisas simultaneamente:
como é que nós aprendemos e ensinamos Comunicação; e como é
que desenvolvemos pesquisa em Comunicação, ou seja, como desen-
volvemos teorias de Comunicação. Precisamos observar os espaços
da sociedade que se mostram problemáticos. É o nosso objeto, nosso
tema, preocupação, nosso âmbito de interesse de algum modo e
muito diversificadamente. Basta olhar os âmbitos de debate da Com-
pós, da Intercom, da SBPJor, da Compolítica, das entidades que vão
surgindo e estão focadas diversamente em problemas que devem ser
vistos como problemas de Comunicação.
Temos que perceber que nem sempre as soluções dadas pelas teo-
rias e/ou dadas pelas práticas profissionais – teorias e práticas profissio-
nais nesta fala que estou fazendo são duas coisas completamente pare-
cidas. Temos aquela tendência tradicional de distinguir de um lado as
teorias da Comunicação, de outro lado as práticas profissionais. Estou
propondo que são duas coisas parecidíssimas. Em que sentido? Práticas
canônicas e teorias canônicas olham duas faces da realidade, mas ambas
tendem a ser canônicas, estabelecidas, fruto de longos estudos teóricos
ou práticos de longa experiência. É esse canônico que não funciona
mais, nas duas igualmente. É preciso, então, perceber que essas soluções
canônicas práticas e/ou teóricas já não funcionam mais. Nós precisamos
definir o que está em estado experimental na sociedade.
Quando cai sobre a cabeça da sociedade um problema e ela testa
suas práticas habituais e/ou suas teorias habituais e não funciona, e não
resolve, o que é que essas pessoas que estão nessa situação fazem? Elas
saem tentando coisas, saem inventando soluções, saem debatendo, bri-
gando, em queda de braço, dizendo coisas canhestras, mas saem ten-
tando soluções. Então, eu diria: nós precisamos observar os problemas e
precisamos observar as tentativas de solução. Não ir simplesmente acre-
ditando nas alternativas. Ah! Estamos tentando utilizar essa alternativa.
Não! É necessário examinar o problema e as tentativas de modo crítico,
isso é claro. A gente precisa fazer o que? Precisamos estimular processos
de conversação e debate.

25
Eu diria que hoje o grande processo necessário de aprendizagem
é conversação e debate. É no debate, mais efetivamente, que podemos
aprender aquilo que não sabemos ensinar. Todos nós, professores ou
não. No debate, se houver um debate reflexivo, investigativo, passional,
para compartilhar dúvidas, inferências, tentativas. “Ah, eu acho aquilo!
O que você acha? Eu acho um pouco diferente. Então, vamos examinar
as experimentações diversas. Sobre o que? Sobre o que nos interessa”.
As práticas profissionais enquanto estudantes, enquanto profissionais,
enquanto professores. Sobre os temas que pesquisamos, sobre os nossos
próprios processos de pesquisa.
E, ainda, práticas e teorias são confluentes porque estão na zona de
problema, por um lado, e estão na zona do debate para efeito de busca
de melhores soluções, por outro. Claro que no debate, observar o pro-
blema na realidade social, observar as experimentações sociais, nada
disso significa abandonar os conhecimentos canônicos estabelecidos.
Porque, também, não vamos fugir de um abismo para acabar caindo no
abismo do outro lado da estrada. Não vamos inventar coisas novas. Na
verdade, nós precisamos aprofundar o conhecimento das teorias e das
práticas disponíveis. Mas, não para repetir, e sim para tentar perceber
suas lógicas. A que vieram e quando vieram? Que problemas resolviam
no momento em que resolviam efetivamente algum problema? Tanto
as práticas quanto as teorias? Qual é o alcance efetivo dessa experiên-
cia? Não basta apenas o profissional seguir rotinas, nem simplesmente
jogar as rotinas fora. “Ah, isso não vale mais nada!”. É necessário ver o
que essas rotinas resolviam, porque é que não resolvem mais e o que é
necessário inventar com racionalidade para resolver o que são os efe-
tivos problemas. Então, aprender somando e não mais aprender apli-
cando meramente sem reflexão.
Portanto, ensinar a trabalhar com teorias é diferente de ensinar
teorias. Ensinar a trabalhar com práticas é diferente de ensinar práticas.
Então, é nesse sentido, que diria que é o nosso desafio, nós que somos
professores, e ampliando para os estudantes, que somos pesquisadores,
é o nosso desafio enquanto pesquisadores. Não basta pegar as teorias
e sair aplicando, práticas não são só práticas profissionais de jornal,
de televisão, de agências de publicidade. Práticas também são práticas

26
de pesquisa. Por exemplo, aquela metodologia que a gente aplicou
durante dez anos, vamos continuar aplicando? São práticas, são rotinas.
E não podemos mais ensinar isso. “Ah, eu fiz para a minha tese de dou-
torado, deu certinho. Então eu vou ensinar para os meus alunos”. Não
vai mais dar certo! Então, ensinar a trabalhar com teorias e com práticas
não é a mesma coisa que ensinar teorias e práticas. Claro que tudo isso é
um desafio. Nós não temos regras por definição. Se tivéssemos, estaría-
mos de volta ao espaço canônico das coisas estabelecidas e estabilizadas.
Mas, simultaneamente, diria para todos nós professores, pesquisa-
dores, estudantes de graduação, é o momento, é o melhor lugar no
espaço do conhecimento e das profissões para estarmos neste momento
histórico: é no campo da Comunicação. É onde a Sociologia estava na
segunda metade do século XIX porque é o espaço que nós temos exa-
tamente que inventar. Podemos descobrir coisas novas. Então, tenho a
impressão de que esse desafio, por mais que seja desafiante, é, ao mesmo
tempo, muito estimulante porque temos coisas em processo.
Eu gosto muito de estimular que os alunos façam objeções. Os meus
alunos, habitualmente, são educadinhos demais, ou são tímidos, é difícil
fazer objeções. Alguns acabam se lançando e fazem e, geralmente, são
objeções muito interessantes. Então se fizerem objeções é muito legal.
Perguntas, questionamentos, coloquem outras posições. Acho que isso
é que deve ser pra funcionar em conversa mesmo, é bem legal.

Debate

Eduardo Meditsch: Sua reflexão levanta muitas questões. Acho


que muitos alunos terão questões. Lembro que desde aquele seu texto
de 2007, vi que tinha muita identidade com algumas questões que o
senhor coloca, até porque fiz, lá nos anos 1980, a minha dissertação
de mestrado justamente sobre essa dicotomia entre teoria e prática no
ensino do Jornalismo. Comecei a estudar isso naquela época e nunca
mais parei de, também, falar nesse assunto, embora de outro lugar de
fala, porque via a partir do Jornalismo, enquanto o senhor vê a partir
de uma perspectiva mais geral da Teoria da Comunicação. Então senti

27
muita afinidade em relação a essa preocupação que o senhor volta a
desenvolver agora, mas já naquele texto de 2007 a questão que coloca é,
na verdade, de uma mudança de cultura, tanto dos que trabalham com
as teorias canônicas, quanto dos que trabalham com práticas canônicas.
Não basta mudar o currículo, tem que mudar a cultura, acho que esta é
uma questão que fica da sua fala também. Então, emendando uma ques-
tão nessa, até por essa diferença de perspectiva, vendo as coisas a partir
do Jornalismo, naquele outro texto sobre a constituição do campo, cita
o trabalho que o senhor fez com a professora Maria Immacolata Lopes
e o professor Etienne Samain, que deram base inclusive a uma proposta
de reclassificação das áreas, mas que naquele momento dividiu muito.
Inclusive foram encaminhadas diferentes propostas, aquela pela Com-
pós, outra pela Intercom, pela SBPJor, e a área se dividiu. Então, lhe
pergunto hoje, como o senhor vê a questão da ciência aplicada e, parti-
cularmente, eu vejo muito um paralelo da Comunicação com a Educa-
ção. E o senhor, claro, que pensou nisso a vida toda: como vê esse outro
lado da Comunicação, que é o lado da ciência aplicada e que tem essa
semelhança com a Educação?

José Luiz Braga: Você tem razão, há uma questão de culturas em


mutação. Acho que, durante um largo período, nós ficamos todos, em
posições diversas, mas ficamos todos muito impressionados por essa
questão da unicidade do campo, ou das distinções internas dele. Então,
acho que, se fosse discutir aquele item do compartilhamento, referindo
aquele estudo que o Etienne Samain, a Immacolata e eu fizemos, diria
que hoje isso para mim é menos importante. Isso é uma questão prática
da agência de fomento, quem tem importância prática, é claro, porque
financiamento de pesquisas é uma coisa importante, e é interessante que
a gente não faça brigas internas de disputa de verbas de financiamento,
no entanto, isso é uma questão essencialmente prática, não é uma ques-
tão de conhecimento.
Alguns de nós pensamos num nível mais abrangente, como você
referiu, e acho que é verdade. Por exemplo, o GT de Epistemolo-
gia da Compós se preocupa com isso: pensar e olhar de longe e ver o
campo como um todo. Mas, quando fazemos isso, nós percebemos que

28
o campo como um todo não é um bloco monolítico, não é. Porque,
inclusive, quando se pensa isso, tende-se a ser excludente: é dizer o que
tá dentro e o que tá fora. As fronteiras de um campo, isso vale para
todos, inclusive para as ciências estabelecidas, é uma perspectiva que
pode se espraiar por muitos espaços. Então, acho que hoje a questão do
compartilhamento interno é menos uma questão de falar em áreas pro-
fissionais, áreas teóricas, espaço de pesquisa etc., e mais em pensar que
é um campo de diversidade.
Valorizo e tenho escrito sobre esse aspecto de valorização da diver-
sidade do campo. Eu não diria que a Intercom ou a Compós devessem
restringir o número de seus GTs: “isso aqui não é Comunicação, cai
fora...” O que assinalo e tenho assinalado, e quero colocar agora, é o
seguinte: a dispersão dessa diversidade é que é problemática. Reduzir a
dispersão e alguns pensam, talvez, reduzir a dispersão é reduzir a diver-
sidade. Não. Nós precisamos reduzir a dispersão mantendo a diversi-
dade. Como? Dialogando...
Temos colocado no GT de Epistemologia da Compós convites
sucessivos e tem respondido, até o momento, ainda muito timidamente,
colegas que são claramente especialistas em algum dos outros GTs, para
que tragam a sua experiência de pesquisa, porque é isso que nós discu-
timos. Eles são tão epistemólogos quanto nós, só que eles estão focados
num espaço. Trazer esse espaço é importante porque a gente não existe
sem esse outro espaço. Então, não se trata de reduzir especialidades,
mas de fazê-las dialogar. Porque o que tenho percebido é que nós apren-
demos nesse sentido.
Embora eu nunca tenho sido jornalista, a minha tese de douto-
rado é uma tese de Jornalismo, não só pelo tema, O Pasquim, mas pelo
ambiente em que fiz, no Institut Français de Presse, uma discussão jor-
nalística essencialmente. Essa aprendizagem que tive continua me ser-
vindo até hoje. Inclusive colegas da linha de Jornalismo do meu PPG
frequentemente me convidam devido à dualidade, de ter a possibilidade
de conversar, mas, ao mesmo tempo, ter um pé do lado de fora daquilo
ali. Então acho que isso que é importante.
Acredito que nós estávamos numa cultura de busca de quem tem
razão e quem tá errado, em vários níveis, dos profissionais, dos teóricos,

29
dos pesquisadores que seguiam Adorno, dos pesquisadores que seguiam
Peirce. Não tem mais sentido discutir isso aí hoje. Podemos aproveitar
qualquer desses espaços, e ninguém pode ter a pretensão de entender
de todos, para fazer com alguma eficácia aquilo que está fazendo, seja
pesquisa, seja trabalho prático. Não tenho a menor dúvida que um jor-
nalista será mais competente se tiver aprendido a fazer pesquisa.
A Comunicação está em processo de construção. No artigo de 2001,
dizia que não tem importância se é uma disciplina, se é um campo, não
tem importância, é o que eu acreditava e naquela época acho que era
válido dizer isso. Hoje, digo o seguinte: a Comunicação é uma disciplina
de conhecimento em estágio de construção, ou seja, é como a Sociologia
era na segunda metade do Século XIX. E, se estamos em construção,
não sabemos uma porção de coisas, não tem sentido sair fazendo queda
de braço. Temos que aproveitar o que está sendo feito, e o que funcionar
vai funcionar. É ótimo. E hoje acho que posso dizer isso porque nós
avançamos de lá para cá.
Tenho impressão de que os melhores pensamentos em todos esses
espaços estão trazendo contribuições inestimáveis. Acho que o Brasil,
inclusive, é um espaço de produção riquíssima, se souber aproveitar bem
a sua produção diversificada, nos campos teóricos etc. E aí claro que
cada um faz a sua coisa. Qualquer especialidade que tenhamos, o que
você está fazendo, qualquer um de vocês que estão ouvindo – quaisquer
dos professores, dos pesquisadores, estudantes na área – é alguma coisa
que, se for bem-feito, terá relevância tanto para sua profissão quanto
para o seu ensino, quanto para a construção do campo, porque o campo
se alimenta da diversidade.

Gisele Pimenta: Não podia deixar de aproveitar esse debate para


puxar um pouquinho para a discussão que faço na minha tese. Estou
terminando a tese e estudo radiodifusão pública. Estudo a imagem das
emissoras públicas de rádio e televisão em três grandes jornais de cir-
culação no país. O desafio que enfrentei, que foi um desafio epistemo-
lógico muito forte, que é fugir da tradição do campo da comunicação
na área da radiodifusão, uma tradição forte na dialética, uma tradição
forte nas teorias marxistas, e me lancei o desafio de usar o Bourdieu

30
para tentar observar essas lutas simbólicas da radiodifusão. Queria
compartilhar esse relato e ouvir do professor como a podemos fugir
dessas tradições, dessas teorias e metodologias consolidadas em deter-
minada área de estudo, porque tive esta dificuldade e sofri diversas
resistências, até mesmo pessoais. Por exemplo, não tinha domínio da
literatura de Bourdieu e então acho passei que um ano da minha pes-
quisa tentando me aprofundar no estudo de Bourdieu. Só que às vezes
paro e penso e, se eu pego uma banca um pouco mais exigente e eles
falarem assim: “Você perdeu um tempo enorme discutindo questões
epistemológicas, perdeu um ano tentando aprofundar essas questões
para dar outro olhar para esse objeto, e cadê o estudo do seu objeto?”.
Então, quero dizer que é preciso um fôlego muito grande e é preciso
também uma mudança de cultura muito grande da própria academia
em aceitar esses outros olhares, esses olhares que o professor Braga
falou, que são olhares complementares, é o olhar da diversidade, mas,
ao mesmo tempo, é desafiador, e que envolve questões de insegurança,
questões de apoio institucional etc.

José Luiz Braga: É bem abrangente a sua questão. Acho que todo
trabalho de tese e de dissertação comporta um espaço tentativo, experi-
mental, que comporta riscos. Como é um trabalho que se desenvolve
– mais a tese do que a dissertação – durante quatro anos, e ninguém
fica durante três anos e meio pesquisando só para depois em seis meses
escrever, pois você pesquisa e escreve desde o começo e, portanto, as
escritas vão se modificando. Para usar o seu exemplo, usando o que
disse, você passou um ano inteiro estudando epistemologia, então há
um risco de você pegar e escrever na sua tese uma terça parte, uma
quarta parte, de epistemologia em termos completamente abstratos,
antes de chegar no seu objeto.
Se estivesse na sua banca, eu provavelmente diria – se isso tivesse
acontecido, não sei – que você me deixou sem fôlego esperando pelo
seu objeto, que o seu objeto está no título, e, com certeza, está na intro-
dução. E, depois de ter dito qual é o objeto no título e na introdução,
você me gasta, por exemplo, é uma situação imaginária, oitenta pági-
nas em que o objeto não apareceu, e que os jornalistas dirão, digamos,

31
que você fez um longuíssimo nariz de cera. Eu assinalaria isso na minha
arguição. Não sei se, necessariamente, isso seria um pecado capital ou
se seria desculpável, depende do que você tivesse feito depois, porque
se tiver aproveitado bem aquilo, ok. Apenas diria, você não precisaria
de tanto. Poderia trabalhar um pouco mais o objeto no começo e desen-
volver a epistemologia junto com o objeto. Ao mesmo tempo, objeto,
epistemologia, que são táticas redacionais no fim, não é. E nenhum
de vocês tem tempo, ao fazer um mestrado e um doutorado, porque
mesmo doutorado com quatro anos passa antes de chegar depois de
amanhã. Quem tem tempo para, além disso, fazer uma oficina de texto,
de estudos redacionais etc.?
Mas, ainda que você caia nesses riscos, diria que não há grandes
problemas na hora da defesa. Tenho a impressão, se eu transferir para
vocês, que estão me ouvindo agora, o que é a minha experiência fre-
quente no meu PPG, diria que talvez vocês encarem a defesa muito
como fosse uma prova de final de curso. E não é, não encarem desse
modo. Vocês fizeram uma obra, com todos os problemas, com todas as
dificuldades. É uma obra que pode ser apresentada à discussão. E uma
arguição para mim é isso. Não é uma “provona” difícil no final de um
grande período de quatro anos. É uma discussão séria no início de uma,
mais longa ainda, vida profissional e ou de pesquisadora. É uma discus-
são. Então, tudo o que você precisa é de saber o que você fez. Você sabe
o que fez, quais são os limites, você não precisa discorrer. Os limites não
são defeitos, são insuficiências absolutamente normais num processo de
pesquisa continuada, e porque vocês são jovens.
Eu peguei esse meu artigo agora de 2007, que acho que não vejo há,
exatamente, treze anos, ou seja, desde que foi publicado. E eu rabisquei,
para preparar esta apresentação, a grande quantidade de bobagens que
estão ali escritas, de equívocos que estão ali, que se fosse escrever hoje,
não os escreveria mais. Eu não deveria ter publicado? Não, porque na
hora que publiquei era aquilo, e é só porque aprendi adiante. Então,
não há grande risco. Pensem na arguição como um espaço de defesa. E
você tem defesa: “olha, eu posso ter exagerado no tamanho da discussão
epistemológica, mas naquele momento para mim era importante, foi
aquilo que me deu base para o que veio depois”. Então, dá para arregaçar

32
as mangas e se defender, na hora da defesa. Não precisa nem de escon-
der o que foi apontado como limite, nem de pretender que aquilo não
existe, nem de dizer “ah, tá bom, então poxa, me desculpe”. Não, não há
desculpa, não há que ter desculpa, tem que mostrar o sentido que aquilo
teve para você.
É, o Bourdieu sim, mas gosto de tensionar porque é o seguinte:
um autor que a gente gosta simplesmente de aplicar ou não está pronto
ainda para gente, ou nós não estamos prontos para ele. Temos que ten-
sionar, tensionar o Bourdieu é sensacional porque a gente tensiona
com as nossas coisas, pois o Bourdieu não tinha nenhuma obrigação
de fazer o nosso estudo, somos nós que temos que fazer. Ele fez outros
e, portanto, nós podemos tensionar no sentido assim: “ah, isso aqui ele
não fez, mas o que ele fez me dá condições de tensioná-lo para fazer
o que quero fazer”. Então sim, Bourdieu, Foucault, outros menos da
moda, Lucien Goldmann, talvez vocês conheçam ou não, Barthes con-
tinua sendo falado, ou talvez seja menos referido, mas continua sendo,
enfim, autores que a gente possa tensionar. Então, se você fez um uso,
razoável, e eu acredito que você tenha feito um bom uso, se você passou
um ano só estudando o Bourdieu, fique tranquila. Não há problema de
banca que você tenha. Não há problema de banca não significa que todo
mundo na banca seja simpático, bonzinho, tranquilo e tal. Cuidem de
quem vocês convidam para a banca, mas vocês conseguem enfrentar,
portanto, não tem problema.

José Pantoja: Posso ter tido uma percepção um pouco envie-


sada do seu artigo, mas percebi e tive a impressão de que o senhor está
dizendo lá que a teoria da comunicação nasce de uma prática e a essa
prática se reporta e até transforma essa prática. E, sendo assim, fico até
ansioso para entender quais seriam as competências: o que se espera de
uma pessoa que conclua os cursos de graduação ou de pós-graduação
na área de Comunicação? Ou seja, o que está claro hoje a respeito dessas
competências que esse sujeito deva ter ou precisa ter para poder traba-
lhar como um profissional, digamos assim, competente, nesse ambiente
que estamos vivendo hoje, em que as coisas estão mudando mais do que
rapidamente, que estão mudando imediatamente.

33
José Luiz Braga: Na verdade, iria um pouco mais longe. Primeiro,
nós temos teorias no plural, um pouco isso que coloquei. Não acho que
há uma teoria geral da Comunicação. Na segunda metade do século XX,
o tempo todo era uma briga nesse sentido, qual era a melhor que lia, sou
partidário desse ou daquele. Ou então aceitações interdisciplinaristas,
junta tudo, é um pouco de cada coisa e tal. O que acho é o seguinte: nós
não temos ainda uma verdadeira teoria da Comunicação, mas teorias
da Comunicação existem, sobre a Comunicação, e estão surgindo de
diversos espaços. O que temos, talvez, é uma percepção clara de que
existe um problema comunicacional, macroproblema, mas essa per-
cepção começou a surgir apenas num canto ou noutro, num espaço,
num momento, num lugar mais, menos em outro. Talvez a questão da
retórica dos gregos, a questão do Jornalismo, com toda certeza, funda-
mental, passagem de informação, a questão da comunicação humana,
níveis psicológicos, claro, as mídias, quando surgiram, no entanto, um
pensamento sobre comunicação, que possamos chamar de teoria sobre
comunicação, elas não surgiram diretamente da prática. Claro, práticas
geram teorias práticas, com certeza. Alguns pesquisadores, alguns teó-
ricos mais exigentes, chamam essas teorias de teorias profanas, porém,
são teorias, são teorizações da prática, claro que surgem da prática.
Mas, a sua pergunta me dá oportunidade de lembrar um detalhe
que aparece nas anotações de 2011, que é aquela colocação do Auguste
Comte, da Sociologia, em torno de 1850, quando ele disse que as pri-
meiras perguntas de um campo de conhecimento ainda não existente
como ciência, como disciplina, como consolidado, as primeiras pergun-
tas e hipóteses surgem num outro campo já consolidado. Essa percep-
ção do Comte me parece extraordinária e válida, particularmente para
nós hoje no Brasil. O Comte faz, inclusive, a sequência, que digo no
texto. A matemática gerou as primeiras perguntas da cosmologia. As
primeiras perguntas da física foram feitas no âmbito da cosmologia, e a
física fez as primeiras perguntas da química, e fez as primeiras pergun-
tas da biologia, e fez as primeiras perguntas do que, depois, viria a ser a
sociologia. Por quê? Porque os problemas surgiram e aquele campo, por
exemplo, a física, quando descobriu os elementos orgânicos, começou a
fazer uma física dos elementos orgânicos. Daí fazem algumas hipóteses,

34
algumas perguntas, mas não vai muito longe, porque é física, porque ela
está presa dentro da sua lógica de conhecimento, da sua disciplina. E,
aos poucos, daqueles problemas percebidos, daquelas hipóteses, começa
a se organizar outra disciplina.
Ora, a Comunicação tem essa característica, em vez de surgir de
uma disciplina específica, os sociólogos acham que surgiu deles, da
Sociologia, por causa do Adorno, mas os linguistas acham que é deles.
Na verdade, os problemas comunicacionais começaram a surgir em
todas as disciplinas, todas as ciências humanas e sociais. Encontraram
problemas e começaram a fazer perguntas e hipóteses. A comunicação
começa a surgir, ainda não existe como ciência plenamente constituída,
e nós estamos nesse espaço desses problemas e hipóteses que todo
mundo está fazendo.
No entanto, eu não esqueci a questão da sua prática. Porque o que
o Auguste Comte não diz é o seguinte: A Matemática, de onde surgiu?
Não é uma questão interessante? Se cada uma vem surgindo da outra,
e a Matemática, que estava no começo, de onde surgiu? O Comte não
falou nada. Ele está mais preocupado em chegar na linha final dele, que
é a Sociologia. Ponto final. E leio ele e fico pensando, mas e a Matemá-
tica? Bom, teóricos da Matemática têm hipóteses a respeito, uma das
mais instigantes, de qualquer maneira não surgiu de outra ciência que
a gente tenha, se não teria uma regressão infinita. Pois bem, a matemá-
tica surgiu das práticas, a Matemática, essa teoria que digo histórica do
surgimento da matemática, surgiu da agrimensura, medir os terrenos
para a plantação de modo a conseguir a máxima eficácia de aproveita-
mento do terreno. Ou seja, a Matemática começa com desenvolvimento
da geometria, a partir de problemas da prática.
Muito bem, agora trazemos tudo isso para a Comunicação e, com
certeza, a Comunicação se aproveita disso porque, embora, na minha
concepção, a comunicação é coetânea com a espécie humana, não há
espécie humana sem comunicação, porque sem comunicação nós não
sobrevivemos. A comunicação das abelhas é muito definida por pro-
cessos biológicos das abelhas. Os nossos processos biológicos não são
suficientes para a nossa sobrevivência, nós precisamos de uma comu-
nicação que já é pós-biológica. Trabalho isso num artigo que se chama

35
“O grau zero da comunicação”6. Então, comunicação existiu desde sempre,
na minha perspectiva, e nós não sabíamos era perceber a comunicação, nós
percebíamos outros problemas, os gregos viam o problema da argumen-
tação, inventaram a retórica, que hoje a gente pode perceber como uma
questão comunicativa, não é? O problema de fazer circular informação e
veja que problema para uma sociedade que as informações não circulam.
E quando se inventa o que hoje chamamos de jornalismo, porque antes era
o correio do czar, o correio do Átila lá dos hunos etc., que saía a cavalo
levando uma mensagem porque transmitir aquela informação era funda-
mental. Desse problema surge, hoje, passo a passo, através de uma história
absolutamente extraordinária, o que nós chamamos de Jornalismo, e que é
um dos florões da Comunicação, porque é fundamental para a sociedade.
Então é claro que a comunicação humana surge e se desenvolve das
experimentações sociais, que vão resolvendo seus problemas múltiplos
de comunicação. E os que resolveram fazer alguma teoria e organizar
isso, fizeram e é isso que nós estudamos, essas práticas e essas teorias.
Como elas se encontram nesse estágio de mutações, indefinições, expe-
rimentações, e nisso fecho a sua questão tentando dizer o seguinte: o
que nós precisamos fazer enquanto estudantes ou enquanto professores,
junto com nossos alunos, é observar isso, o que está acontecendo. Por
exemplo, imagine fazer um curso sobre fake news, não simplesmente
explicando por A mais B tudo o que as teorias já escritas dizem sobre
fake news, mas olhando em torno, levantando vários exemplos e deba-
tendo. Um grupo de estudantes, um professor, que faça isso durante
umas três ou quatro semanas, simplesmente a partir do material prático,
me digam depois o que escreveram porque tenho certeza de que vou
aprender com o que vocês tenham feito.
Então eu diria que o espaço hoje é o espaço dessas experiências,
lembrando que não se trata de jogar fora o conhecimento estabelecido.
É usar o conhecimento para tensionar a realidade, usar a realidade para
tensionar o conhecimento. Se a conseguirmos fazer isso, e cada aula,
cada aula prática, tensionar as práticas, cada aula teórica, tensionar as
teorias, aprendendo com isso.

6 BRAGA, J. L. O grau zero da comunicação. E-Compós, Brasília, v. 18, n. 2, p. 1-17, 2015.

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E aí não precisa ser tudo não, não precisamos cobrir toda a área, a
área é gigantesca. Imagine se qualquer um de nós pode ter a pretensão
de entender o que os vinte GTs da Compós entendem, ou os muito mais
GTs do Intercom entendem. Não tem nenhum de nós que possa abarcar
todo esse conhecimento. Não precisa, não é necessário. Se estivermos
em uma das áreas, ou em duas ou três, se a gente tiver mais de duas,
ou três, ou quatro, eu acho ótimo. Três ou quatro é possível abranger
tranquilamente. Uma mais geral, uma mais prática profissional, uma
mais especializada num tema que é muito caro para nós, uma questão
sociológica, um autor, um conjuntinho desses podem ter certeza de que
é suficiente para um aluno, suficiente para um professor.

Juliana Ferreira: Sou antropóloga de formação, fiz mestrado em


Comunicação e estou pensando em delinear um objeto para doutorado,
quer dizer, a minha ideia de falar isso é porque e já tenho uma expe-
riência de interdisciplinaridade. A sua fala trouxe muitas coisas legais,
suscitou muitas reflexões e inclusive na definição das disciplinas. Acho
que, na verdade, essa definição dessas disciplinas é um grande campo de
batalha, muitas vezes sangrento, porque as pessoas sangram de um lado,
sofrem: “isso é meu, isso é seu, isso não é pertinente ao seu campo etc.”
Mas é porque é um pouco imaginário, e acho que um pouco improdu-
tivo, porque acho que a gente tem que pensar a interdisciplinaridade,
a transdisciplinaridade, como imiscuídas na nossa própria realidade,
no fazer ciência. Também trabalho no CNPq, então a gente tem uma
preocupação como agência, em como vamos direcionar o fomento para
certas áreas, tem que pensar em editais que sejam interdisciplinares,
que usem mais de um comitê assessor, pensar em outros modelos, mas
ainda não temos isso muito bem elaborado. Também gostaria de ouvir
mais do professor sobre as fake news, não podemos sair de uma aula
dessa sem falar sobre as fake news.

José Luiz Braga: Que interessante, você é antropóloga. No final


dos anos 80, quando voltei para a UnB, em 1987, nós ainda tínhamos
na pós-graduação mais estudantes vindos de outras áreas do que vindos
da graduação em comunicação. Sentíamos isso às vezes com uma certa

37
preocupação, mas hoje a minha preocupação é o contrário, pois sinto
falta de estudantes que venham de outras áreas, porque os estudos de
interface são importantes. Sempre fico muito satisfeito quando encon-
tro orientandos graduados em outras áreas.
Tenho preferido a expressão Estudos de Interface, porque nós esta-
mos muito perto ainda, historicamente, daquele período onde o pessoal
explicava, explicava-se o campo como sendo, estruturalmente por sua
própria natureza, como campo interdisciplinar: nós não somos uma dis-
ciplina, nós somos um agregado de estudos interdisciplinares. Eu sempre
discordei disso e está argumentado, inclusive, no artigo. Hoje, às vezes,
quando falo isso, quando o assunto surge, algumas pessoas entendem
que então sou contra a interdisciplinaridade. Acho também que não sou.
Acredito que estudos interdisciplinares são fundamentais. Eu, pessoal-
mente, tenho uma formação interdisciplinar. Sou graduado em direito, fiz
uma especialização em ciência política, mestrado em educação, o douto-
rado só que foi em comunicação, então acho que isso, para mim, sempre
foi muito útil. Agora uma coisa é: vamos fazer estudos entre a minha dis-
ciplina e a sua, e a do outro, e de um terceiro ou quarto, cada um trazendo
a sua perspectiva, é completamente diferente do que dizer que aquilo que
estudo é uma coisa interdisciplinar, é um amálgama, feita de um pedaci-
nho de sociologia, mais um pedacinho de psicologia, mais um pedacinho,
umas vinte gramas de antropologia ou de história etc., que não conseguiu
fazer sentido. Então, valorizando estudos interdisciplinares, e gosto da
expressão interface, temas de interface. Terminei agora de orientar esse
estudante da área de direito, jurista, professor em direito, advogado, fez
mestrado em direito, em Coimbra, aliás, e resolveu fazer doutorado em
comunicação, e aprendemos muito um com o outro. Relembrei meus
tempos de estudante de direito, porque os problemas que surgem, surgem
na interface e eu consigo vê-los como problemas de comunicação, que
surgem diretamente no âmbito jurídico.
Como você disse, Juliana, não tem o espaço para briga territorial,
há problemas comunicacionais em todos os espaços humanos, como há
questões históricas em todos os espaços humanos, na Educação, na Socio-
logia, na Linguística, no Direito, nas Artes, no ambiente universitário.
Podem ser vistos todos em perspectiva histórica, podem ser vistos todos

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em perspectiva psicológica. Então, são as perspectivas das ciências huma-
nas e sociais fornecendo perspectivas. Quando você vem da Antropologia
e pretende fazer o doutorado em Comunicação, traz essa potencialidade
que sugeri há pouco, conversando com o Pantoja, o aspecto da riqueza
das inter-relações de áreas. Acho que isso é muito produtivo.
Agora, a questão das fake news, com certeza é suscetível de análises
políticas em primeiro lugar, diretamente jornalísticas, e é uma discussão
profissional específica, uma discussão, aliás, premente, fundamental, crí-
tica, porque o jornalismo, o que a gente pode chamar realmente de jor-
nalismo, como coisa fundamental para a sociedade, está sendo agredido,
solapado pelas atividades de fake news. Uma área de risco seríssimo para
o jornalismo. Então é um problema prático profissional, é um problema
teórico, de jornalismo, é um problema teórico de comunicação genérico,
epistemológico, com toda a certeza, é um problema antropológico. É um
problema antropológico sério que numa sociedade surja essa potenciali-
dade do mal, de construção, porque é um processo construtivo.
Se até pouquíssimas décadas atrás se pensava o boato como uma
zona de risco, o boato hoje é zona de conforto para entendimento do que
está acontecendo. Fake news não tem nada a ver com boato, não é. Eu já
ouvi essa expressão, por isso que estou dizendo que não tem nada a ver:
“fake news é o boato tecnologizado; é o boato entrado na mídia”. Esta é
uma resposta mais que simples, simplória, porque fake news, a rigor, é
um monstro antropológico, um problema seríssimo, de sociologia, de
psicologia, de política, de história, da antropologia e, portanto, também
de comunicação, e o que temos que trazer são as nossas perspectivas. E
se a gente puder fazer um grupo interdisciplinar, com uma pessoa, duas
de cada um desses campos, acho que precisava como tática, não é nem
como âmbito de estudo universitário, para gerar artigo e teorias, é como
âmbito de defesa social.
Você tem razão de trazer como uma questão importante com toda
certeza, mas se cada um de nós escrever o seu artiguinho, sem nenhum
demérito na expressão artiguinho, penso nos meus artigos sempre que
vou escrever um artiguinho sobre tal coisa, na sua perspectiva, no seu
ângulo, e colocar em praça pública para debater, na Compós, na Inter-
com, em qualquer um dos outros das agências específicas, até na Socine,

39
inclusive, na SBPJor, com toda a certeza, na Compolítica, certamente, e
ouvir as discussões que surgem. Acho que a sociedade está precisando,
e essa é uma área de um grande problema, não é um problema só jorna-
lístico. Um grande problema social, seríssimo, para a democracia como
um todo. Para a história da espécie humana. Muito sério. Interessante
que você traga à tona essa questão. E é, com toda a certeza, um espaço
dos estudos de interface.

Rose Dayanne: Primeiro, muito obrigado professor José Luiz Braga


por nos trazer tanto, não só a estas questões que envolvem epistemolo-
gias ou práticas, mas também de incentivo sobre a nossa trajetória de
pesquisador. Então, lendo os textos que o professor Eduardo trouxe para
a disciplina e os seus artigos também, sempre tentando buscar aquela
coisa: qual é o objeto da Comunicação? Aquilo das interações etc., e
então o senhor chega aqui hoje e diz: não existe um objeto na comuni-
cação porque o diferencial é que podemos ver a sociedade, todos os pro-
cessos sociais, a partir de uma perspectiva de Comunicação. O que eu
queria entender é um pouco disso, porque em vários espaços nos quais
estamos falando sobre nossos objetos, surgem aquelas perguntas: o que
tem de comunicação nesse objeto, como que você o localiza nessa área?
Além dessa questão de como colocar essa perspectiva da Comunicação,
o senhor também falou sobre a questão do contexto social, e num dos
textos, não lembro se é o de 2001/2011, para evitar o determinismo do
contexto. Isso também é um desafio para mim, porque tenho percebido
na minha trajetória de pesquisa, de tentar dialogar com o meu objeto,
a partir da perspectiva de Comunicação, e também tentar evitar cair
no determinismo do que já está posto, do que já foi pesquisado, do que
chega a ser colocado, muitas vezes, como uma verdade absoluta.

José Luiz Braga: Vamos ver o que consigo debater, do que você
coloca, a questão da perspectiva, a dificuldade quando se propõe que o
que interessa para caracterizar uma disciplina do conhecimento, porque
o objeto é aquela questão da definição positivista, de que o que caracteriza
a disciplina do conhecimento é o objeto e o método etc. Todas as ciências
humanas e sociais ficam trocando figurinhas, trocando métodos como

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quando a gente, quando é guri, troca figurinha. Então, não tem mais
método específico, a etnografia e o processo de observação participante
estão sendo aproveitados em todas as áreas do conhecimento. Enfim, não
há identidade de método, e não há especificidade de objeto.
Mas a questão não fica propriamente simplificada quando fala-
mos em perspectiva porquê: que perspectiva é essa, não é? Se eu disser
assim: vamos estudar tal assunto em perspectiva histórica, todo mundo
vai entender, porque todo mundo está habituado com história, com
perspectiva histórica, pensar processos evolutivos, relações de suces-
sões de acontecimentos etc. Não precisa nem pensar isso, já intui o que
é perspectiva histórica, ou sociológica, ou perspectiva sociológica. No
entanto, se tenho perspectiva comunicacional não é muito claro, porque
não é claro para nós. Nós não temos, não conheço nenhum artigo, livro,
menos ainda, um artigo que diga a perspectiva comunicacional é essa.
Aliás, se eu encontrasse, eu ficaria desconfiado. Não acho que a gente
tenha. O que nós temos é uma pluralidade de perspectivas. O que é que
nos unifica? Ah, isso é um problema. Naquela diversidade que referi há
pouco, o que é que nos unifica? Nós somos uma juntada de perspectivas
diversas? Acho que não. Vou dizer o que acho que nos unifica: o que nos
unifica é o problema comunicacional.
Qual é o problema comunicacional que aparece quando – vou usar
um exemplo desse meu orientando de direito – o Supremo Tribunal Fede-
ral resolve colocar suas sessões de debate na televisão do próprio Supremo,
tanto que qualquer pessoa liga o canal do STF e assiste um debate, quando
antes dessa situação, até o início desse século atual, só jornalistas creden-
ciados entravam. Nem o público geral podia chegar lá e entrar. O que
é que acontece com o problema comunicacional? Ah, nós percebemos
que são problemas completamente diferentes dos problemas jurídicos.
Há um problema comunicacional, o de antes, aquelas mesmas figuras
decidiam no quase segredo da sua decisão, e o que aparecia em público
era decisão pronta. Hoje aparece todo mundo discutindo, dizendo coisas,
eventualmente canhestras, fazendo queda de braço, fazendo argumentos
esquisitos antes de chegar na decisão. Qual é o problema comunicacional
que isso tem no público pro entendimento da decisão? Muda tudo. Então
o problema aí é fácil, esse é um problema comunicacional.

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Assim, o que nos unifica é um problema comunicacional. Esse pro-
blema não é um problema isolado, um problema educacional, que não
tem nada a ver com o problema psicológico, com o sociológico, com o
antropológico, com o linguístico etc., não. Esse que citei é um problema
ao mesmo tempo jurídico. Os juristas arrancam os cabelos dizendo que
ninguém mais acredita em nada do Supremo, porque antes eles tinham
uma decisão pronta, redonda, que era o que se via, agora eles vêm gente se
digladiando e dizendo: mas, esse cara disse uma bobagem. Esse também
é um problema jurídico do peso decisório de uma decisão do Supremo. O
que significa que nós não isolamos em laboratório. Não dá para fazer pes-
quisa comunicacional de laboratório, não é. Pesquisa linguística dá, não
que todas sejam, muitas não são. Psicológico dá, não que todas sejam, mas
acho que comunicação, no estágio atual, não dá para fazer pesquisa de
laboratório, porque elas estão ali, no que percebemos, estão no problema.
Então diria, na verdade, assim: é preciso estar atento ao problema
que nós trazemos. Não significa o problema comunicacional, macro-
problema comunicacional que estaria na base das reflexões epistemo-
lógicas, não, qual é o problema comunicacional, como é o objeto, se
minha tese de doutorado é O Pasquim, o jornal humorístico na época
de uma ditadura militar, qual é o problema desse jornal. Estou citando
como exemplo de realidade, foi, efetivamente, a minha tese de douto-
rado. Eu não estou com problemas epistemológicos genéricos da comu-
nicação, meu problema é, qual é o problema de circulação de informa-
ção de um jornal que é humorístico, num momento em que existe uma
censura etc. Esse é o problema. É um problema que é de Comunicação?
Em que sentido? É um problema de circulação de informação, que é
também um problema político, mas que não é só um problema político,
porque metade do tempo, ou mais, eles não estavam discutindo política,
eles estavam discutindo costumes, costumes sociais, machismo e femi-
nismo, homoafetividade, que na época não era ainda um problema polí-
tico, se tornou. Agora virou um problema político outra vez. São proble-
mas comunicacionais, como é que essas coisas circulam, que diferenças
são essas que criam barreiras. Quando diferenças podem se encontrar
elas podem agir em comum, não significa anular as diferenças, mas elas
podem agir produtivamente.

42
Por isso diria, se pensarmos qual é o nosso problema: ah, tem um
ângulo político. Tem, está lá, estou vendo. Nesse ângulo político, qual
é o problema propriamente que vejo, que vejo como comunicacional?
Quando digo que vejo como comunicacional estou dizendo que não é
necessário que seja aquilo, que canonicamente tem uma teoria que vai
lá e nos diz que isso é um problema comunicacional. Quer saber, estou
vendo como comunicacional, eu defendo isso aí e ponho na minha tese,
ponho na minha dissertação, exatamente do modo como a Gisele colo-
cou no problema dela: tenho uma questão epistemológica, é o que estou
trabalhando, se estou trabalhando, vou alinhar argumentos, então vou
construir. Quando construo argumento, ao mesmo tempo eu aperfei-
çoo. Construir argumentos em teoria, em pesquisa, não é arranjar de
qualquer jeito a prova de que o que eu disse está certo. É, de alguma
maneira, tensionar o que disse.
A ideia de heurística para mim é importante, quando pensamos em
comunicação, porque eu não tenho uma teoria canônica, que diz direi-
tinho: isso é comunicação, isso aqui outro não é comunicação. Estou
numa zona de risco. Então, coloco problemas logísticos assim, perspec-
tivas heurísticas assim, para todos os efeitos práticos vou considerar que
isso aqui é um problema comunicacional, e aí começo a examiná-lo. Ao
examinar, a vantagem da teoria heurística é que ela pode se modificar,
ela está feita de início para se modificar. Então, do começo da minha
dissertação pro fim da minha dissertação, eu modifico.
Isso que sugeri, eu estou aproveitando e sei que você não pergun-
tou isso, mas aproveitando o que você diz, Rose, porque acho que diz
bem: preocupe-se se nada mudou do primeiro dia do projeto de pes-
quisa para quatro ou cinco meses antes do encerramento da pesquisa
e depois da defesa. Porque aquilo que a gente estava no começo, deve
ter se modificado, porque nós avançamos no nosso conhecimento. Nós
não queremos provar nada que nós já sabíamos. Provar uma hipótese
do início, ainda que eu disse que é uma hipótese, não avança grande
coisa, não é. Nós não queremos provar que a nossa hipótese está certa.
Claro que é ruim se a nossa hipótese estava radicalmente errada, mas
querer que a nossa hipótese esteja certa, não é o nosso objetivo. Isso, de
provar que a hipótese está certa, é o objetivo de pesquisa quantitativa.

43
Acho que muito dificilmente vocês estão fazendo pesquisa quantitativa.
O que é que nós queremos, claro que nós não queremos que ela seja
errada, se ela já tá errada a gente já tira do caminho, se nós não quere-
mos simplesmente que ela esteja certa, o que nós queremos? Claro que
é uma pergunta mesmo, não é só retórica.

Rose Dayanne: Se a gente não quer que ela esteja certa, queremos
que ela seja discutida, que seja comprovada ou não, mas que abra uma
discussão, mesmo que eu não a confirme, por exemplo, que ela dê uma
contribuição.

José Luiz Braga: Exatamente, muito bom. Se ela foi discutida sig-
nifica que você chegou no final da sua pesquisa em um ponto avante
do que ela começou com aquela hipótese. De algum modo você aper-
feiçoou a hipótese. Ela pode ainda ser uma hipótese. Vocês podem
tranquilamente chegar na defesa de tese, na defesa de dissertação com
proposições que ainda são hipotéticas, não são prováveis, mas elas avan-
çaram. Elas foram discutidas. Elas criaram outro âmbito para discussão.
E, portanto, podem ainda ser aperfeiçoadas sem nenhum problema.

Jean Campos: Muito obrigada pelas palavras. Encontrei muita


identificação, não conhecia antes da aula do professor Eduardo o texto
sobre a constituição da Comunicação. Minha formação é em Jorna-
lismo, concluí o mestrado em direito, e a minha pesquisa foi sobre fake
news. Então, quando vejo o senhor apontando no seu texto os equívocos
da palavra mídia, ora mídia empresa, ora mídia tecnologia, me lembrei
lá do começa da minha pesquisa, quando fui saber o que é que estava
acontecendo aí das fake news e queria fazer um estudo interdiscipli-
nar, encontrei no julgamento das ações de reparação por danos morais,
decorrente de fake news muitos desses equívocos, com a palavra mídia,
com a palavra meio de comunicação, veículo de comunicação. E aí todas
as decisões, e vou generalizar mesmo aqui, todas as decisões baseadas
em uma interpretação equivocada, ou por falta de uma definição na
jurisdição brasileira. Até por isso recorri a Bourdieu também, para falar
sobre os campos, e dediquei um capítulo da dissertação sobre o campo

44
da comunicação e o campo do direito. Me senti solitário lá no campo
do direito, trazendo algumas questões e comparando mesmo: olha, aqui
nessa decisão a reparação ocorre partindo desse conceito de veículo de
comunicação, aqui nessa outra a mesma interpretação não é aplicada.
Isso em todas as instâncias da justiça. E dentro dessa perspectiva, pro-
fessor, eu queria saber se o senhor acredita que o amadurecimento, eu
não sei nem se é essa palavra – amadurecimento – que posso utilizar, da
constituição da comunicação, se isso pode contribuir para a resolução
de problemas sociais, do problema social das fake news. E também, con-
siderando o que o senhor disse nas duas perguntas anteriores, das fake
news como um problema prático comunicacional.

José Luiz Braga: Boa questão, Jean. É, a questão está amadure-


cendo. É muito bom usar essa expressão. Se o nosso campo ainda não
é uma disciplina plenamente constituída. O nosso colega Luiz Signa-
tes, que é professor da Federal de Goiás, e foi nosso aluno na UnB, no
mestrado, depois fez o doutorado na USP, propôs no GT de Epistemo-
logia da Compós, há uns dois ou três anos, que a comunicação seria
uma ciência básica tardia, em vias de constituição. Gostei muito dessa
expressão. É uma ciência básica, e ser ciência básica implica que ela
tem potencialidade para componente, para âmbito de aplicabilidade, de
penetração praxiológica na comunidade, ainda que certos âmbitos da
praxiologia saiam à frente, o que é natural, e a elaboração teórica venha
no encalço, a constituição de uma ciência básica é produtiva.
Quando você usa a expressão amadurecimento, acho bom porque
assim: o problema não é se ela está constituída ou não. Uma coisa que
amadurece é uma coisa em constituição. Considerar um indicador de
amadurecimento, uma potencialidade de contribuição, acho excelente.
Por quê? Porque o meu principal argumento contra o conceito interdisci-
plinarista, de que o que caracterizaria a natureza do campo da comunica-
ção seja um campo interdisciplinar, é que afirmar isso significa que digo
que todos nós que estamos no campo da comunicação fazemos um traba-
lho parasitário. Por quê? Porque ele é gerado no âmbito de outros status,
da sociologia, da linguística, da antropologia, da psicologia, da história,
das artes, inclusive. E nós ficamos aqui nesse campo, que é interdisciplinar

45
fazendo o que? Sendo meramente parasitários das outras áreas. Isso me
irritava muito. Digo: eu não trabalho num campo parasitário. Se vocês me
convencerem que é interdisciplinar, mudo de profissão.
E retiro daí o meu conceito de que justamente um dos objetivos da
busca do conhecimento do campo da comunicação é passar a ser um
contribuidor para as demais áreas. Temos que gerar conhecimentos que
contribuam para a sociologia, para a linguística, para a história, assim
como a história contribui para a sociologia, a linguística pode contri-
buir para a antropologia e tem contribuído, em alguns momentos mais,
outros menos, porque é da ordem das ciências sociais. Ciências Sociais
formam um todo. Se nós não fizermos contribuições, nós não temos o
que fazer aqui. Então, um índice de amadurecimento é esse. Acho que
cotejo a situação de hoje com a situação de 2001, vinte anos depois,
acredito que nós já temos contribuições.
Quando vejo estudante que vem fazer mestrado ou doutorado,
vindo de outras áreas, eu não posso nem dizer que é o meu caso, tendo
vindo de Direito, porque era outro tempo e fui mais ou menos jogado
daqui para lá, conforme as circunstâncias. Mas hoje, quem tem uma
formação em qualquer dessas áreas, Linguística, Sociologia, Psicologia,
Antropologia, e que depois de uma graduação, de um exercício pro-
fissional, vem fazer mestrado e/ou doutorado em comunicação, é por-
que está buscando alguma contribuição, é porque percebe que precisa
daquilo, inclusive para sua profissão. Esses dois exemplos que dei, vou
citar os nomes, porque são importantes para mim: da Psicologia chama-
se Monalisa Xavier; do Direito, Hermundes Flores. Eles vieram para
fazer o doutorado em Comunicação, não é porque estão mudando de
profissão, é porque acharam importante buscar aqui.
Agora, diante da pergunta do Jean, diria que isso pode ser um bom
índice de amadurecimento no campo. E se pensarmos nesse sentido, a
gente pode pensar exatamente que outras contribuições podemos tra-
zer. Numa discussão sobre fake news, que com toda certeza pode ser, ou
deve ser interdisciplinar, como Juliana colocou, qual é a contribuição
da Comunicação? Eu tendo a crer que o campo da Comunicação pode
ser inclusive o eixo de agregação das outras. Trazendo as contribuições
das outras, mas produzindo no conjunto da sua contribuição como

46
problema comunicacional, porque vejo realmente fake news como um
problema nuclearmente comunicacional. Ele se torna jurídico porque
é um problema comunicacional sério. Se torna sociológico e político
porque é um problema comunicacional, não é? Como assegurar, que
notícias entre aspas que circulam são acolhidas, como informação fide-
digna, são manipuláveis para atingir seus resultados. Para a linguística,
constrói uma narrativa, que é uma questão linguística, que já foi impor-
tada para o Jornalismo, mas originalmente é uma questão linguística,
e o Jornalismo trabalha nas suas próprias questões. Essas questões são
particularmente interessantes.
É interessante ver se você está estudando isso, fazendo a sua expe-
riência da formação de mestrado em direito, mas as formações são sem-
pre muito úteis. Eu nunca fui advogado, nunca exerci, terminei o curso
de direito e fui fazer outra coisa. Mas, o que aprendi lá sempre me dá
alguma pista para alguma coisa, esse aspecto do interdisciplinar, que me
parece produtivo, é porque dá um pouco de profundidade de campo,
dá dimensões adicionais. Hoje é uma época que não é possível ser radi-
calmente especializado. O hiperespecialista, certamente, pode dar sua
contribuição, da sua especialidade, mas eu diria que é uma necessidade
mais rara da sociedade. Não quer dizer que a gente vá simplesmente
adotar generalistas genéricos.

Eduardo Meditsch: O senhor de novo puxou a questão da interdis-


ciplinaridade agora e, no texto, em algum momento propõe que a gente
deve substituir a visão da interdisciplinaridade pela da complexidade.
Pensar na complexidade. Acho essa perspectiva muito interessante.
Tinha outra questão relacionada a essa, que vou lhe perguntar que é
uma dúvida que ficamos no debate do outro texto, do livro Comunica-
ção & Educação7, em que você faz uma distinção entre interdisciplina-
ridade e transdisciplinaridade entre essas duas áreas, e isso não ficou
muito claro para nós. Como eu não consegui tirar as dúvidas da turma
a respeito disso, no seu texto, peço se o senhor puder falar também um
pouquinho disso.

7 BRAGA, José Luiz; CALAZANS, Regina. Comunicação & Educação: questões delicadas na
interface. São Paulo: Hacker, 2001.

47
José Luiz Braga: São três termos que circulam com alto grau de
periculosidade. Em que sentido? É porque eles são suscetíveis de inter-
pretações muito diversas. É difícil que essas palavras, sempre que vejo
essas palavras, entre outras, surgirem num texto, me pergunto: tenho
que verificar o que essas palavras estão fazendo nesse texto, porque elas
fazem coisas muito diversas, não é? Algumas dessas coisas eu tendo a
concordar e outras a discordar. Porque, por exemplo, quando a gente
fala em complexidade, às vezes a palavra complexidade vira uma espécie
de vale-tudo. Tudo é complexo, tudo pode ser dito, tudo vale, não há
mais distinções de nada, entre nada e nada. Então tudo se mistura, cai-
se numa espécie de holismo vago. De repente encontramos a palavra
fazendo isso, não é? E se gostamos da palavra no outro sentido, a gente
pode ser seduzido pela palavra e não perceber para onde está sendo
levado. Os textos nos levam para lugares diferentes. Estejam atentos
sempre. Eu sempre gosto de assinalar que textos fazem coisas. Nós só
compreendemos efetivamente um texto quando percebemos especifi-
camente o que ele está fazendo. Tenho usado isso em alguns seminá-
rios intensivos que faço há uns sete anos, seminariozinho curto, de três
aulas, pegando um tópico e desenvolvo aquilo... E tenho trabalhado essa
ideia de o que é que o texto está fazendo: vamos discutir o texto e o que
o texto está fazendo. Pois bem, essas três palavras entram dentro dessas
que pedem que se verifique o que é que elas tão fazendo.
Percebo a complexidade para perceber que estamos trabalhando
com uma multiplicidade de variáveis, que essas variáveis se integram,
que eu não posso dar aprioristicamente prioridade em nenhuma delas.
A gente ouve, com muita frequência, no nosso campo inclusive, dizendo
assim: no fim tudo se resume a uma distinção, uma diferença de poderes.
Ora, se tudo sempre se reduz a uma diferença de poderes, eu não estou
fazendo Comunicação, eu estou fazendo Política. Um setor de Política,
porque nem tudo em Política é relação de poderes. Processos delibera-
tivos é Política, e não depende exclusivamente de relação de poderes.
Então, o que uso com essa palavra, o que tento fazer com essa palavra?
Temos sempre no social uma grande pluralidade de palavras,
e tenho que estar atento para todas elas, e eu não posso pretender, se
estou fazendo um estudo específico, se estou estudando uma situação

48
empírica. Eu não posso de antemão dizer que a variável psicológica que
predomina, a variável política, a variável do tipo X, pontual, o ângulo,
a decisão de tal tipo. Tenho que estar aberto a que todas as variáveis, de
algum modo, estão se interferindo mutuamente. Não posso dizer essa
aqui predomina, determina todas as outras. Aquela questão do determi-
nismo que alguém falou. Eu não posso achar que uma delas determina
as outras. Todas se interferem mutuamente.
Descobri, há não muito tempo, que os matemáticos usam uma
expressão que acho muito bonita para essa complexidade de variáveis.
Eles usam a expressão “fatores de confusão”. Fatores de confusão signi-
fica exatamente isso, que eu não posso dizer que reúno dez variáveis, fiz
uma pesquisa de laboratório, e dizer de antemão que a variável do tipo
X interfere na Y, como se a Y não interferisse na X. Todas interferem em
todas, em graus diferentes, que variam conforme as circunstâncias, são
fatores de confusão. A complexidade me diz isso, temos que estar atentos
para a complexidade das coisas que são caracterizadas por isso. Não quer
dizer que todas valem. Quero descobrir, aqui percebi, essa variável teve tal
peso, incidiu desse modo apesar dessa outra incidir em contrário e tentar
equilibrar. Quero descobrir essas especificidades, mas tenho que desco-
brir sabendo que é complexo, que eu não vou ouvir respostas simples.
O inter e o trans, na verdade, vejo que temos, efetivamente, o inter-
disciplinar é o canônico, temos especialidades distintas que se encon-
tram e que, de algum modo, fazem interagir suas especialidades. Sou
um especialista na área de conhecimento A, você é um especialista na
área de conhecimento B, somos diversos na nossa especialidade e faze-
mos tentativas de fazer isso confluir de algum modo inteligente, racio-
nal, produtivo, criativo, e juntamos as nossas perspectivas, agregamos,
geramos uma composição. Gosto da palavra composição porque tem
a notação musical, inclusive, criamos harmonia na nossa diferenciali-
dade. A transdisciplinaridade me soa mais complexa.

49
CAPÍTULO 2

O ensino superior como bem público:


a FAC, a UnB e a reforma de Córdoba1
Marco Antonio Dias2

Nem sempre a história – mesmo a das instituições onde vivemos


e trabalhamos – é conhecida. A criação de um curso de pós-graduação
em Comunicação foi uma batalha, foi uma luta. No início dos anos 70,
houve a reforma do curso de Comunicação. Na reforma, imediatamente
veio a ideia de buscar as condições de criar um curso de pós-graduação,
inicialmente mestrado, evidentemente.
Em 1972, passei a decano de extensão da Universidade de Brasília
e o responsável pelo curso era o professor José Salomão David Amorim.
Juntos, conseguimos a aprovação. Era uma tarefa difícil, mas consegui-
mos nos mobilizar dentro da universidade. Conseguimos reunir profes-
sores, na época era difícil conseguir encontrar alguém, mesmo com mes-
trado em Comunicação, com doutorado ainda mais difícil. Conseguimos
encontrar algumas pessoas com doutorado em Comunicação Rural, o que
explica um pouco porque no início a orientação da pós-graduação em
Brasília foi mais voltada para a Comunicação para o Desenvolvimento.
Alguns não se adaptaram à orientação que se queria dar e outros
se adaptaram perfeitamente bem e deu para desenvolver o curso.

1 Palestra à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-


do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 19 de fevereiro
de 2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Entre 1981 e 1999, foi diretor da Divisão de Ensino Superior da UNESCO e o principal orga-
nizador da Conferência Mundial de Educação Superior, realizada em Paris, em 1998. Por suas
atividades como diretor da Divisão de Educação Superior, o governo Francês condecorou-o
com a “Légion d’honneur”, em novembro de 1993. No mesmo ano, o presidente do Brasil
concedeu-lhe a “Ordem Nacional do Mérito Educativo”. Foi também professor da Faculdade
de Comunicação da UnB, decano e vice-reitor da universidade.

50
Na inauguração, nós contamos com apoio e ajuda de pessoas extraor-
dinárias. Como o Luis Ramiro Beltrán, que era um boliviano, muitos
de vocês devem conhecer os trabalhos dele, e o paraguaio Juan Díaz
Bordenave, que era, não vou dizer discípulo, mas um amigo íntimo
de Paulo Freire. Bordenave tem várias obras e trabalhava na área de
comunicação rural, mas imediatamente ele se voltou para desenvolver
estudos e trabalhos de vinculação da educação com a comunicação,
sempre na mesma linha de Paulo Freire, ou seja: de que no sistema
educativo não basta ensinar, é necessário fazer as pessoas refletirem
e pensarem, e que a educação só se realiza, só se completa quando as
pessoas conseguem analisar o ambiente em que vivem e serem capazes
de buscar soluções para o que vivem.
Eu queria dizer que – acho importante e estava começando a falar
– muitas vezes não se conhece a história, inclusive, da própria institui-
ção. Então, quando você menciona aos estudantes, inclusive de pós-gra-
duação atual, faz referência a pessoas que ocuparam posições de chefia
ou de direção nesse período dos anos 70, imediatamente, alguns levan-
tam a antena e dizem: “esse aí foi dirigente no período da ditadura, foi,
portanto, um colaborador do capitão, um colaborador da ditadura”. E
esse é um dos equívocos, não quero falar em termo de defesa própria,
mas acho bom que todos saibam, inclusive a editora da UnB publicou
um livro meu também onde uma parte dessa história é contada, com
título UnB e Comunicação nos Anos 19703.
Esse livro foi publicado e quem quiser conhecer a história daquela
época já encontra elementos. Também aconselho, a quem quer conhe-
cer a história da UnB, a ler um documento básico que é a ata da segunda
reunião do Consuni (Conselho Universitário da UnB), quando o Con-
selho discutiu se confirmava ou não confirmava a punição dos estudan-
tes que lideraram ou que participaram da greve de 1977. Considero essa
reunião é fundamental para a história da UnB, porque revela – e quem
ler vai sentir – o clima de terror que se vivia na Universidade naquele
período e verificar que havia, de qualquer maneira, pessoas que eram
capazes de reagir e de se opor ao que foi feito.

3 DIAS, M. A. R. UnB e comunicação nos anos 1970: acordo tácito, repressão e credibilidade
acadêmica. Brasília: Editora da UnB, 2013.

51
A punição para os estudantes da Universidade de Brasília em 1977
foi talvez uma das páginas mais vergonhosas da história da educação
brasileira, porque foi uma punição injusta, uma punição de pessoas que
queriam manifestar um ponto de vista e não tinham cometido nada de
irregular. E, no inquérito forjado que foi feito (a ata da reunião mostra
isso claramente), não conseguiram nem provar aquilo que os responsá-
veis na época haviam elaborado e faziam, não conseguiram. Nem aquilo
que não era crime, eles não conseguiram provar. Então, é impressio-
nante. E defendo sempre a tese de que nos anos 70 houve na Universi-
dade de Brasília, como em muitos lugares no Brasil naquela época, um
período de ditadura e, em alguns aspectos, não era pior do que o Brasil
vive hoje. Era ruim, inaceitável. Quem tem nostalgia daquele tempo, ou
não conhece, ou tem um distúrbio. Não se pode imaginar, aceitar aquele
tipo de regime, aquele tipo de sistema.
Mas, houve coisas, houve gente que conseguiu de alguma maneira
fazer coisas positivas. Em 1969, a Universidade fez umas duas ou três
experiências para renovar o Curso de Comunicação e não deu certo,
então houve uma decisão da universidade. Havia praticamente uma
decisão, que não foi formalizada, na qual estava sendo decidido pelo
fechamento do Curso de Comunicação, porque não havia jeito de
encontrar uma solução. E, foi nesse momento – a história seria muito
longa e no livro eu conto uma parte, mas estava dentro de um contexto
maior da universidade e do país, internacional, – que dentro do pró-
prio governo houve gente altamente situada que concluiu que não ter
uma Universidade em Brasília que funcionasse, e que funcionasse com
eficiência, seria um desastre para o país.
E seria um desastre inclusive para os governantes, que tiveram essa
lucidez, coisa que governos posteriores que vocês conhecem não tive-
ram ou não têm. Os próprios dirigentes militares concluíram que sem
uma Universidade qualificada o país não poderia avançar, não poderia
se desenvolver e não poderia ter autonomia nenhuma. E elaboraram
planos para desenvolver um sistema, por exemplo, de pós-graduação
que recebeu recursos enormes e que fez com que, por exemplo, na Uni-
versidade de Brasília, se organizasse alguns programas que, em pouco
tempo, passaram a ser considerados programas de excelência no mundo

52
inteiro. Eu cito, independentemente, programas como Geologia, como
Economia, e, entre esses programas que passaram a ter destaque, estava
o de Comunicação.
O que houve na realidade? Houve o que chamo de acordo tácito
que hoje, 40, 50 anos depois, pode-se criticar. Mesmo os que participa-
ram podem fazer uma autoanálise e não defender totalmente. Mas, não
se pode analisar com os parâmetros de hoje, tem que se analisar com os
parâmetros da época. E o acordo tácito era: pessoas altamente qualifi-
cadas em diversas áreas foram convidadas para vir para a Universidade
de Brasília. Esse acordo tácito consistia no seguinte: vocês podem dar
as suas aulas, fazer o trabalho que acham que é o mais correto, o que
vocês não podem é atacar o governo dentro da sala de aula, não podem
se envolver diretamente em movimentos que vão atuar dentro da uni-
versidade, contrários ao governo ou ao que seja. E isso permitiu que se
desenvolvesse um programa de muita qualidade.
O Curso de Comunicação da Universidade de Brasília, entre 1970
e 1971, passou a ser considerado como o melhor do Brasil ou como um
dos dois ou três melhores do país. Tinha o da USP (Universidade de
São Paulo), que tinha muito mais recursos e uma grande quantidade
de professores qualificados, mas a Universidade de Brasília concorria
com a própria USP e passou a ter um respaldo e um nome no mundo
inteiro. Isso repercutiu em favor da Universidade, repercutiu eviden-
temente em favor dos professores. Nós passamos a ser convidados – eu
fui pessoalmente, mas não só eu, vários outros colegas – a partici-
par de vários encontros nos Estados Unidos, no Canadá, na França,
na Alemanha, no Irã, que na época estava sofrendo um processo de
modernização que podia ter dado alguma coisa positiva, mas acabou
dando errado.
Isso tudo teve um significado muito grande e foi aí que se lançou
a ideia do programa de pós-graduação, de mestrado, inicialmente, em
Comunicação. E para quem participou disso, tenho certeza de que se
vocês conversarem com o professor Salomão, ou com o professor Sérgio
Porto, que participou ativamente, embora ele ainda não tivesse o título,
ele fez o programa de mestrado e em seguida, em função do prestígio
que a Universidade tinha, ele teve acesso ao doutorado na Universidade

53
McGill, que é uma das grandes universidades canadenses. Essa história
explica o que, de certa maneira, está no DNA da UnB. Evidentemente, o
curso se ampliou muito, se desenvolveu para outras áreas, não se limitou
aquilo do início.
Dentro daquele acordo tácito que mencionei, nem todos concor-
dam com isso, mas que eu vivi aquilo e foi real. A orientação dada pelos
organizadores, não de todos os que participaram, porque alguns vie-
ram do doutorado, da Comunicação Rural ou dos Estados Unidos com
outra orientação, mas a orientação básica que estava sendo dada e que
se buscava, que se deu aos cursos, estava muito na linha do que o Paulo
Freire dizia, que era preciso conhecer a realidade, aprender a conhecer a
realidade e influir na realidade. Isso era importante.
Agora, a evolução toda que houve do curso, eu não pude acom-
panhar. Nesses últimos 40 anos, toda a evolução, sei que houve muitas
idas e vindas. A verdade é que hoje a UnB tem um Programa que é
importante, e isso é positivo. Hoje, vocês estão vivendo no Brasil e em
outros países um momento muito difícil, pior ainda do que o que vive-
mos nos anos 70. Fui diretor do ensino superior da Unesco por quase
20 anos, para ser exato por 17 e meio, e fui responsável pelo Programa
de Ensino Superior da Unesco nesses 20 anos. Muita gente não acredita,
mas recebi, depois que já estava na Unesco, a visita de Darcy Ribeiro,
que veio me visitar e trouxe o livro dele A Universidade Necessária4,
me deu uma dedicatória linda, a dedicatória mais linda que já tive na
minha vida. Discutimos muito e ele estava perfeitamente consciente e
de acordo com o trabalho que foi feito em várias áreas da universidade,
na área científica também, não só na área de ciências humanas. O pro-
blema que hoje está ocorrendo no mundo inteiro, é uma tentativa de
consolidação de uma tendência que considero extremamente negativa
e vai contra tudo aquilo pelo qual a minha geração, pelo menos grupos
da minha geração, lutaram.
Se analisarem a evolução da educação nas últimas décadas, vão
ver que havia sempre duas correntes que dominaram. Uma corrente
que queria ver a educação como instrumento de libertação e de

4 RIBEIRO, D. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

54
desenvolvimento, como instrumento para melhorar a sociedade. E o
grupo que via a educação como um instrumento de dominação, de
repetição, de manutenção de situações de injustiças e tudo mais. Dou
o exemplo da Universidade de Brasília. Na Universidade de Brasí-
lia, nesse período que menciono no início dos anos 70, um diretor
da Faculdade de Ciências da Saúde, Frederico Simões Barbosa, que
tinha sido diretor da Organização Mundial de Saúde e era uma figura
extraordinária, propôs e lançou o programa de saúde integrada em
Planaltina. Esse programa, pela primeira vez na história de Brasília,
conseguiu reunir a Universidade, o governo do Distrito Federal e o
Governo Federal. Na Universidade, ele era da Medicina, mas partici-
param pessoas de várias áreas, como de Psicologia, Serviço Social e,
inclusive, Comunicação.
Esse era um programa que fazia com que a comunidade partici-
passe da discussão dos problemas, participasse da proposta de soluções
e, na proposição de soluções, se desenvolveram programas e ativida-
des nos quais esses organismos governamentais entraram e que fazia
com que, por exemplo, as crianças fossem acompanhadas praticamente
desde o nascimento. E quando, por exemplo, uma criança não ia à
escola, desaparecia da escola, havia um controle para ver o porquê e,
vendo o motivo, tentar resolver. Inclusive, a parte cultural entrou. Havia
atividades do Bumba Meu Boi do Teodoro e a cultura teve implicação
nesse programa de Planaltina de saúde integrada.
O programa, dentro desse período do acordo tácito, funcionou
muito bem. Quando chegou por volta de 1976, essas comunidades
que se reuniam e discutiam os problemas, começaram a incomodar.
E foi um momento em que a direção da Universidade, em que houve
a crise de 1976 e 1977, e uma das primeiras coisas que a Universi-
dade, a diretoria, o superintendente executivo da época, que era um
coronel que vinha da área de segurança, e o vice-reitor que todos
conhecem a história, por uma medida administrativa, encerraram
o programa que havia conseguido reduzir o índice de mortalidade
infantil na área de uma maneira extraordinária. Então vocês veem
que isso tem impacto.

55
Reforma de Córdoba

O que era Córdoba no início do século XX? Era uma cidade, em


termos da época na Argentina, desenvolvida, mas era uma sociedade
que era totalmente controlada pelos que eles chamam de terratenientes,
os grandes proprietários de fazendas, grandes latifundiários. E os estu-
dantes eram filhos originários dessa classe, mas tomaram consciência,
com esse fenômeno da generosidade da juventude, e também houve
uma liderança forte e uma evolução política na Argentina com a elei-
ção de um governo que, na época, significava ser mais liberal. O que
era progressista naquela época era a incorporação da classe média, era
a incorporação do desenvolvimento da indústria. Isso representava o
progresso, bem ou mal, em relação à situação anterior em que só os
grandes proprietários de terras, que seriam os proprietários atuais de
boi e soja no Brasil, e, na época, na Argentina, eram o boi, a carne e o
trigo, que eram os que dominavam.
Muito interessante ver as fotografias da reforma de Córdoba, os
estudantes – dentro de um contexto político mais amplo em que se
discutiam ideias mais progressistas para a época – todos de paletó e
gravata, alguns estudantes, inclusive, com uma espécie de bengala. E é
impressionante imaginar, falar da revolução de Córdoba e como eram
os estudantes daquela época, inclusive como se vestiam. Mas, eles se
rebelaram contra o quê? Contra duas coisas.
Se rebelaram contra o dogmatismo. Qual era o dogmatismo? Na
época, a Igreja Católica, os jesuítas dominavam a Universidade de Cór-
doba, o que não tem nada a ver com padrão de um Papa Francisco, hoje,
por exemplo. Para os dirigentes da Universidade de Córdoba e outras
universidades da Argentina, mas em particular na de Córdoba, o que
valia era o dogma, era a “terra plana”, não era o desenvolvimento cientí-
fico, predominava o dogmatismo ideológico religioso medieval. Contra
isso os estudantes se rebelaram.
E se rebelavam também, ainda que a maioria deles fosse originária
da elite, contra o elitismo. Se rebelaram contra o fato de a universidade ser
totalmente desvinculada da realidade social. E um dos pontos de desen-
volvimento da Reforma de Córdoba é exatamente o desenvolvimento

56
da extensão, foi quando começou a se falar em extensão na universidade
latino-americana.
O que houve em Córdoba foi que os estudantes se manifestaram,
invadiram a universidade, ocuparam o reitorado, foram reprimidos e
afastados, mas houve uma reação nacional, o movimento explodiu nas
outras universidades, passou para os outros países, teve influência no
Uruguai, enorme e imediatamente, até na América Central. Quando
você analisa a história do ensino superior dos países da América Latina
na totalidade, eu diria que em 80% a 90% dos países, Córdoba teve uma
influência. Onde chegou com atraso? Em que país os princípios de Cór-
doba chegaram com atraso? No Brasil.
Os princípios de autonomia, liberdade acadêmica, extensão, a
participação dos estudantes, ou seja, o estudante não ser tratado como
alguém que não tivesse capacidade de raciocinar, mas que deveria ser
tratado como adulto e inclusive participando da gestão. Terminar com
as cátedras vitalícias, a existência de concursos, tudo isso começou em
Córdoba. E entrou imediatamente a luta política maior, a luta contra
as ditaduras.
No Brasil, todo esse catálogo de lutas, de temas a serem disputados,
se olhar a história da educação no país de 1960 para cá, era o que cons-
tava no movimento estudantil do início dos anos 60. A União Nacional
dos Estudantes, que batalhou, que fez vários seminários pela reforma
universitária. Quais eram as reivindicações da reforma universitária no
princípio dos anos 60? Eram a autonomia, a luta contra a ditadura, a
extensão vista como vínculo com a universidade. Era a greve feita e que
marcou a história, a “greve do 1/3”, que era para que em todos os órgãos
administrativos, todos os conselhos, 1/3 dos membros fossem estudan-
tes. Isso tudo vinha já de Córdoba. Eram ideias que já estavam presentes
em alguns países como o Peru.
Um dos líderes de Córdoba, na Argentina, um dos estudantes, não
digo líder, mas, pelo menos participante, era um peruano. Ele participou
e voltou para o Peru, acabou chegando a Presidente da República, o Vic-
tor Raúl Haya de la Torre. Ele evoluiu, retrocedeu um pouco, são outros
quinhentos. Como no Brasil, que o presidente da UNE se chamava
José Serra. O José Serra que vocês conhecem hoje, no meu entender,

57
não tem nada a ver com aquele mesmo José Serra de 1962 ou 1963. Há
evoluções e involuções.
Em um momento em que há dificuldade para universidades, ser
administrador universitário hoje não é fácil, porque não há uma cons-
ciência da importância para o país se desenvolver, ter autonomia e
desenvolver a ciência que, para isso, precisa de uma universidade livre
e com condições de trabalho. É o desenvolvimento da política de vira-
-lata, como costuma dizer o Roberto Amaral. É justamente o contrário
do que tem feito e o que fez a China.
Fui à China pela primeira vez já no final do meu período na Unesco,
mas principalmente quando estava na Universidade das Nações Unidas e
depois que saí também. Devo ter ido à China oito, nove ou dez vezes de
1998 a 2004, e fui depois outra vez em caráter mais particular em 2007. O
que ocorreu na China foi exatamente o oposto. O governo chinês, inclu-
sive na Conferência Mundial do Ensino Superior de 1998, a ministra da
Educação da China participou ativamente das discussões e, quando vol-
tou, teve uma reunião no gabinete do governo chinês, apresentou o relató-
rio da Conferência mostrando a importância que tinha para a China, para
não só continuar o que já vinha fazendo, mas intensificar. Se olharem as
estatísticas da China, a partir de 1999 houve um incremento de recursos
para pesquisa e para universidades incríveis. Os chineses, o que eles passa-
ram a fazer? Muitos chineses que tinham saído da China, alguns que eram
inclusive diretores de laboratórios e universidades norte-americanas,
alemãs e em outros países, foram convidados a voltar para o país, ofere-
cendo a eles possibilidade de instalar laboratórios tão modernos ou mais
modernos quanto aqueles que tinham nos Estados Unidos, na Alema-
nha ou em outros lugares, com salários superiores, com uma capacidade
de formação de grupos para desenvolverem isso. Começaram a mandar
um monte de gente para fora, mas não como infelizmente, ocorreu com
o Ciências Sem Fronteiras, que não teve, talvez, esse cuidado, na China,
mandavam para fora os estudantes para desenvolverem programas que
tivessem utilidade para o país e praticamente já com emprego garantido
na volta. Esse investimento deu um resultado incrível. E o resultado é que,
a partir daí, de 2010, cada vez mais as universidades chinesas se destacam
como melhores em vários campos.

58
Ninguém interprete que eu vá defender ou que esteja defendendo o
modelo político chinês onde tem muita coisa a corrigir, inclusive a fun-
ção da mulher na sociedade chinesa ainda é uma posição de submissão;
o problema de meio ambiente, eles ainda têm muita coisa a fazer, estão
fazendo, mas tem muita coisa a fazer ainda; e no sistema político, não
sou eu que vou defender aqui um sistema que seja de partido único, ou
seja, de não liberdade. Mas, nesse sentido de visão estratégica de um país
não ser dependente, de dar condições ao para enfrentar diretamente os
grandes do mundo, nisso eles tiveram uma visão que infelizmente diri-
gentes dos países na América Latina, em sua grande maioria, para não
dizer a totalidade, não tiveram.

Debate

Eduardo Meditsch: Gostaria de colocar algumas questões sobre


Córdoba. Havia essa origem da maior parte dos estudantes da elite,
digamos, agrária argentina, mas também havia uma influência forte dos
imigrantes, de uma classe média, principalmente filhos de imigrantes
da Itália, que levaram junto uma cultura política diferente, a influência
do anarquismo, essas coisas que também houve no Brasil, embora seja
pouco estudado, no início do século XX. E também outras questões
curiosas, tanto essa da cogestão que eles defendiam que acabou sendo
uma bandeira do Maio de 1968, e eu gostaria de destacar que o professor
Marco Antonio estava em Paris como estudante de doutorado no Maio
de 1968, e vivenciou aquilo de uma posição privilegiada e pode comen-
tar essa questão. E também a questão do livre ingresso, que não sei se
vigorou durante todo o tempo, mas a Argentina continua com o livre
ingresso vigorando hoje, não sei se vigorou durante toda a história, que
foi uma reivindicação também de Córdoba.

Marco Antonio Dias: Eles comemoram recentemente os 70 anos


da lei que estabeleceu a gratuidade. No momento em que, no continente
todo, os políticos querem estabelecer o pagamento da formação em nível
superior, os argentinos, de várias tendências, inclusive de tendência

59
liberal, continuam lutando pela gratuidade. Eu participei de uma soleni-
dade em Córdoba em 2018, de comemoração dos 70 anos da lei que foi
do Juan Perón, da lei que estabeleceu a liberdade.
Você mencionou uma coisa que, para mim, cada um tem seu his-
tórico pessoal. Evidentemente, em 1918, eu não estava lá, mas Córdoba
entrou no meu referencial exatamente por eu ter participado do movi-
mento estudantil nos anos 1960, e Córdoba era a referência. Para mim,
duas outras referências básicas que considero importantes na história
das ideias do ensino superior e na defesa do ensino superior como bem
público são: Maio de 1968, de maneira anárquica, mas foi o que foi; e a
Conferência Mundial do Ensino Superior de 1998, que definiu os prin-
cípios que foram resultado de uma dezena de anos.
Essa conferência foi fruto de uma dezena de anos de preparação,
com discussões no mundo inteiro, foi a maior Conferência que a Unesco
organizou na sua sede, quase 5 mil participantes, havia 500 estudantes,
havia delegações oficiais, evidentemente, e que apoiou a Declaração de
1998. Para quem estuda educação, comunicação e educação, aconselho
a ler esta Declaração, porque ali é uma lista de princípios que continuam
válidos e, desde então, há grupos poderosos e o que querem é destruir
essa lista, começando com a ideia de “ensino superior como bem público’’.
Houve uma Segunda Conferência Mundial em 2009 – 11 anos
depois, era pra ser em 2008, não conseguiram e fizeram em 2009 – e
essa conferência foi toda montada para tentar destruir os princípios
adotados em 1998. Não conseguiram, porque houve uma reação muito
grande no grupo latino-americano, inclusive na época a Sesu brasileira,
o Paulo Speller era o chefe da Sesu (Secretaria de Educação Superior do
MEC); na Argentina o ministro da Educação era um antigo funcionário
da Unesco, Juan Carlos Tedesco; e os professores da UGM, os repre-
sentantes da associação de Universidades do Grupo de Montevidéu,
que reúne as principais universidades públicas dos países do Mercosul,
inclusive a Universidade de Brasília, a Universidade Federal de Minas
Gerais, a Universidade de Santa Catarina. Esse grupo reagiu e conseguiu
mobilizar gente de todos os continentes e não deixaram.
Agora, estão anunciando uma Terceira Conferência Mundial
em 2021 (que foi reprogramada para 2022). O que vai acontecer?

60
A Conferência Mundial em outubro de 2021, com pandemia ou sem
pandemia, é um tema que, sem ser profeta, mas conhecendo essa evo-
lução, posso dizer a vocês que haverá uma tentativa muito grande de
eliminar e pôr por terra toda aquela ideia de que, por exemplo, educação
superior é bem público; de que o acesso à educação superior deve ser
igualitário, deve ser para todos; a ideia de que as instituições de ensino
superior, que vem de Paulo Freire, devem desenvolver em seus partici-
pantes e estudantes a capacidade crítica para analisar o que é a sociedade
e buscar uma solução para uma condição de sociedade melhor; a con-
tribuição para o desenvolvimento do conjunto todo do sistema educa-
tivo; a melhor participação das mulheres. Se não houver a participação
consciente desses grupos que mencionei, das associações universitárias,
como da UGM, como de outras associações, se não houver a participa-
ção das instituições que representam os estudantes, das instituições que
representam o corpo de docentes, se não houver realmente participação
de todas as regiões, é muito arriscado, vamos realmente ter um perigo.
E isso serve para alguma coisa? O que é aprovado na Unesco tem
sentido? É muito importante porque são esses princípios que depois
todos os governos utilizam para legitimar suas ações. Então se, de
repente, vem do organismo que é encarregado de educação, tem um
mandato, Nações Unidas, do mundo inteiro, para definir o que é edu-
cação e para definir quais são os princípios. Se este organismo vem e
defende a comercialização da educação, direta ou indiretamente, se
defende a elitização, se defende a não capacidade crítica, se não defende
a democratização total, então vocês podem saber que vai ter uma
influência muito grande e será muito ruim não só para a educação, mas
também para o desenvolvimento de políticas públicas no mundo inteiro.

Ana Flávia Kama: Eu tinha muito pouco conhecimento sobre a


Reforma de Córdoba e muito mais sobre Maio de 1968. É incrível, não
é? Eu sou uma latino-americana a quem chega muito mais o que acon-
teceu na Europa do que o aconteceu aqui do lado. Uma coisa que me
chamou muito a atenção na leitura e depois que ouvi uma entrevista
que o professor Fernando Paulino fez, acho que em 2018, com o profes-
sor, sobre essa questão da extensão. Na UnB, a atual decana de extensão

61
está tentando abrir novos polos, está tentando ampliar isso, que é uma
das missões das universidades, o tripé ensino, pesquisa e extensão. A
extensão fica até no final da frase, é um pouco deixada de lado, então
achei muito interessante quando você coloca que foi uma das reivindi-
cações lá em 1918 ou o que, talvez, gerou essa necessidade para a ideia
que se tem de universidade, que é trazer para a comunidade tanto o que
resulta da universidade quanto o que resulta da comunidade para a uni-
versidade, com esse compromisso de retornar para a sociedade o que ele
aprendeu. E aí fiquei pensando e deixo o questionamento: se isso é uma
questão, se é uma vocação latino-americana que surgiu em Córdoba,
essa necessidade da extensão, porque a gente sabe que as universidades
vieram da Idade Média, talvez não houvesse isso tão delineado, de ser
uma questão mais elitista. Então, nesse sentido, a extensão foi uma das
coisas que mais me chamou atenção e, voltando nisso, para saber se é
uma vocação nossa, como surge e como isso dialoga com tudo o que
você falou no livro Educação como bem público.

Marco Antonio Dias: É verdade que está nos genes da universi-


dade latino-americana, dos latino-americanos, esta posição, esta visão
crítica e, quando se fala em extensão, vem aquele problema. Muitos
devem conhecer o livro do Paulo Freire Extensão ou Comunicação?5.
Paulo Freire diz que o conceito de extensão inicial – em Córdoba já veio
com uma conotação social – vem das universidades americanas, prin-
cipalmente das universidades rurais. O conceito era elitista, o conceito
da universidade que leva ao povo ignorante o conhecimento. A ideia era
exatamente reverter: a universidade produz conhecimento, leva, mas se
inspira também e participa do conhecimento que existe e é gerado den-
tro da sociedade. Quer dizer, é uma comunicação em duplo sentido.
O exemplo do que falei sobre o programa comunitário, de edu-
cação comunitária integrada de Planaltina (que não lembro o nome
exato), era exatamente isso. Tinha grupos, a universidade tinha profes-
sores com conhecimento técnico-científico de saúde, de organização

5 FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

62
social, de psicologia, mas o programa foi organizado de maneira que a
população participasse, analisasse, visse qual era a realidade e passasse
a lutar para mudá-la e melhorar, se fosse o caso. E foi nessa hora que a
ditadura, dentro da universidade, acabou com o programa.
Em 2018, participei de uma jornada de extensão organizada pela
Udelar, Universidade de la República de Montevidéu, onde essa pro-
blemática toda foi estudada. A professora Olgamir estava lá e eu pude
ouvi-la e, do que ela falou, não sei se ela está tendo condições de pôr
em prática dentro da situação brasileira hoje, que é tão difícil, mas vi
que a Olgamir, a decana de extensão hoje da Universidade de Brasília,
é uma pessoa que tem a visão e o conhecimento pleno dessa evolução
do conceito.
Estive também, há muito tempo, na Universidade Federal de São
Paulo, em uma conferência na qual me solicitaram exatamente que
fizesse uma análise da evolução do conceito de extensão. É um trabalho
já não novo, que tem mais de 15 anos e que foi publicado, é encontrado
na internet, inclusive na página www.mardias.net6. Neste trabalho, mos-
tro a evolução toda do histórico do conceito de extensão e da sua aplica-
ção. Agora, era como Darcy Ribeiro fazia um pouco de galhofa. Darcy
Ribeiro dizia que na maioria das universidades a extensão era... como
ele falava? Eu não lembro o nome exato, mas ele fazia uma brincadeira
dizendo que da maneira como estava sendo feita não tinha sentido. A
extensão tinha que mudar, tinha que partir exatamente para ser um
canal de comunicação dupla.
Maio de 1968 é outra história, daria para fazer uma conversa espe-
cial sobre isso um dia. Tenho, talvez, uma das melhores documentações
de Maio de 1968, que em poucos lugares se encontra. Considero que
tenho duas universidades no Brasil. A Universidade Federal de Minas
Gerais, onde tive o meu primeiro diploma e ainda mantenho vínculos
com muitos professores. Eles fizeram uma sala com mais de 5 mil livros
e não sei quantos mil documentos, uma sala especial com a documen-
tação que acumulei durante esse período todo de jornalista e de pro-
fessor da UnB, da Unesco, da Universidade das Nações Unidas e tudo

6 Neste link, é possível encontrar trabalhos e publicações do professor Marco Antonio Dias.

63
mais. A documentação de Maio de 1968 ainda não foi entregue, mas já
está comprometida de ir para lá. Eu estava em Paris, terminando um
programa de terceiro ciclo e acompanhei. Acompanhei com prudência,
porque naquela época os estudantes estrangeiros que eram pegos eram
expulsos, e algum brasileiro que fosse, naquele momento, enviado pelo
governo francês para o Brasil, expulso por estar dirigindo o movimento
de 1968, estaria em risco pela ditadura.
Eu participei de passeatas e tudo mais com muita prudência, não
tive liderança, não fui líder, mas participei, estava dentro. Reuni a docu-
mentação toda, todos os jornais. Os estudantes lançaram um jornal
que só tinha 3 ou 4 exemplares, paravam, lançavam outros de diversos
grupos. O jornal Le Monde, no período todo, 70% do jornal era dedi-
cado ao movimento de Maio. E depois, com o correr dos anos, muitos
livros, muitos vídeos, muitos filmes. É uma documentação que dentro
de pouco tempo estará também à disposição. Infelizmente, não na UnB,
mas na biblioteca central da Universidade Federal de Minas Gerais.
É muito importante, eu ratifico, apoio e digo: aqueles que dizem
que a biblioteca hoje não tem sentido, não sabem o que estão dizendo.
Evidentemente, a biblioteca tem que se modernizar e organizar tam-
bém o acesso à documentação virtual, mas ter a documentação histó-
rica, manter, dar acesso aos estudantes, às comunidades, de todo esse
conhecimento desenvolvido no decorrer do tempo, na forma impressa,
continua fundamental.

Eduardo Meditsch: Em relação a esse vínculo, em que essa movi-


mentação das organizações internacionais, como o Banco Mundial,
como a OCDE, que levam essa proposta neoliberal e como isso chega no
Brasil. Vejo que temos algumas entidades e personalidades, me lembro
do ministro do FHC, o Paulo Renato, que representavam muito clara-
mente o discurso do Banco Mundial sobre educação e ele tem alguns
sucessores, que costumam ser fontes frequentes para a mídia como uma
autoridade em educação. E alguns levam a posição do Banco Mun-
dial como se fosse a posição da racionalidade na gestão da educação,
inclusive com uma questão que você aponta em várias partes do livro,
que é essa prioridade ao financiamento do ensino básico, que os países

64
em desenvolvimento não deveriam estar financiando o ensino superior.
Essa articulação acho que é muito importante ter claro porque influen-
cia as políticas públicas dos nossos países.

Marco Antonio Dias: Isso é fundamental para a sobrevivência do


país como autônomo. Se o país quer ser independente, se em algum
momento o país quer realmente ser independente, quer ter autonomia,
ele tem que ter capacidade não só de imitar, mas tem que ter capaci-
dade de produzir, de criar. Isso é evidente e foi isso que os chineses
descobriram. E os chineses não são mais inteligentes do que nós, eles
simplesmente puseram a cabeça para funcionar e, bem ou mal, resolve-
ram defender os interesses do país, os chineses e outros. Mas, quem não
quer fazer isso quer ter a política de vira-lata, que continuará adotando
políticas que só permitem o país imitar, formar gente para imitar.
É questão de concepção e, infelizmente, nos últimos tempos, nós
temos visto que no Brasil passou-se a adotar uma política onde as coi-
sas são decididas, depois se monta toda uma máquina, uma sentença
é decidida, uma condenação de uma pessoa é decidida, uma política é
decidida e depois monta-se todo um arcabouço institucional, adminis-
trativo, organizacional para pôr aquilo em prática. Para mim, é evidente
que, nos últimos anos, as autoridades responsáveis decidiram estimular
a privatização, decidiram esvaziar as universidades públicas, decidiram
não prosseguir, inclusive naquilo que foi lançado na época do general
Geisel do desenvolvimento do CNPQ como organismo capaz de produ-
zir, de desenvolver capacidades, elementos e pessoas humanas, e insti-
tuições capazes de produzir ciência e tecnologia.
A impressão que tenho é que já decidiram isso e estão trabalhando
para fazer aplicar a política do vira-lata e fazer com que nosso país
seja realmente um país meramente imitador. É um retrocesso enorme,
lamentavelmente. O Brasil ia avançando, avançando lentamente. Eu
acredito que muitos dos nossos amigos e nós mesmos, todos nós, tal-
vez tenhamos sido tímidos quando tínhamos possibilidade de fazer
valer mais essas políticas e, na verdade, hoje há um retrocesso. E se
não há reação, se a comunidade acadêmica não reage, se as associações

65
universitárias não reagem, se não existe movimento estudantil, há real-
mente que se temer pelo futuro do país, não há dúvida. Acredito que o
país estará nas mãos de vocês se vocês puderem trabalhar e produzir,
produzir com liberdade.
Esse tema que falei da Conferência Mundial, fiquem atentos. Nin-
guém estava sabendo, agora soube-se que já está decidido, deve-se reali-
zar uma reunião e estão otimistas pensando que a pandemia vai ter um
certo controle e que teria então uma Conferência Mundial, uma parte
presencial e uma grande parte virtual. A presencial seria feita em Bar-
celona, o que é uma grande coisa porque em Barcelona há instituições,
pessoas e tradição de muito debate e de muita luta. Mas, eu posso dizer a
vocês, repito, sem ser profeta, que a tentativa toda será feita para acabar
com todos esses princípios que vocês viram aí no livro, que no final tem
a síntese dos princípios da Conferência. O que chamo de agenda posi-
tiva era do que ministro Rubens Ricupero falava da necessidade de se
ter uma agenda positiva para o desenvolvimento, inclusive uma agenda
positiva para a educação.
Há dois anos e meio, três anos atrás, na Unesco, lançaram um livro,
um livrinho que punha em questão a natureza de bem público do ensino
superior. Para mim, aquilo foi um balão de ensaio. Alguns funcioná-
rios lançaram e eu fui um dos que reagiram contra imediatamente, mas
houve muitas conferências, houve quem reagisse, e esse documento está
lá encostado. Mas voltará, estou seguro de que voltará. Vai voltar porque,
já para a Conferência nos anos 80 e 90, nos preparativos da Conferência
de 1998, tentou-se manipular, tentou-se extrair de um organismo como
a Unesco, dessa Conferência da Unesco, uma declaração e princípios
que seriam completamente contrários a essa visão que digo que é a do
Paulo Freire, a visão humanista.
Deixa-me dizer uma coisa antes de terminar. Eu me orgulho de
ter sido da UnB, me orgulho de ter sido amigo de Darcy Ribeiro, me
orgulho de ter trabalhado com Paulo Freire. Eu era menino, de certa
maneira, mas, em 1963, quando Paulo de Tarso Santos levou Paulo
Freire para fazer a Campanha Nacional de Alfabetização, e me buscou,
eu era um jovem jornalista, sou carioca, mas era jornalista em Minas,
em Belo Horizonte. Ele me buscou para ser o assessor parlamentar.

66
Então fiz parte da equipe onde tinha Paulo Freire, Betinho, Luiz Alberto
Gomes, um líder católico, intelectual, e várias outras pessoas que faziam
parte dessa equipe. Eu era menino, jovem, inexperiente, ali aprendi
muito, porque tinha Brasília em 1963. Você pode imaginar o que era?
Nós tínhamos muita condição. Quantas noites passamos conversando
com Paulo Freire. Para mim, foi um aprendizado incrível. Darcy Ribeiro
veio depois e, como disse, recebi uma visita dele emocionante quando
era diretor da Divisão de Ensino Superior da Unesco, e Darcy é a figura
que é. Então, tenho orgulho de ser o “UnBniano”, Darcy Ribeiro me defi-
nia como bom “UnBniano”. Espero continuar a ser.
A quem interessa, existe um Instituto Internacional de Pedagogia
aqui na França que tem uma revista internacional de educação, que
circula no mundo inteiro em francês, inclusive, tem mais assinantes
nos Estados Unidos do que na França, e há dois anos eles fizeram um
número especial sobre os grandes educadores de todos os tempos. Tem
um capítulo sobre Confúcio, tem um capítulo sobre Piaget e todos os
grandes educadores que vocês possam imaginar. Me pediram para fazer
o capítulo sobre Paulo Freire e propus fazê-lo em parceria com o profes-
sor Venício Artur de Lima, que foi também diretor do curso de Comu-
nicação na UnB. O artigo foi selecionado, e repito, para essa publicação
que trata dos grandes educadores do mundo inteiro em todos os tem-
pos. Um deles é o Paulo Freire.

67
CAPÍTULO 3

Ensino de comunicação no Brasil:


trajetória e novos rumos1
Cláudia Peixoto de Moura2

Falaremos sobre o ensino de comunicação, a trajetória e os novos


rumos nas áreas de Jornalismo, Publicidade e Propaganda (PP) e Rela-
ções Públicas (RP). A apresentação está dividida em três pontos: a traje-
tória do ensino de Comunicação; a nova classificação das áreas; e tam-
bém abordo uma pesquisa que estou conduzindo com a temática do
ensino de comunicação.
Para entendermos este momento, sempre precisamos olhar para o
passado. Temos os pareceres do então Conselho Federal de Educação
(CFE) e as resoluções do Ministério da Educação (MEC), que são os
documentos utilizados na minha pesquisa sobre o panorama dos cur-
rículos mínimos. Quero registrar que os pareceres são mais detalhados
do que as resoluções. Muitas vezes, encontrei mais informações sobre a
discussão dos currículos nos pareceres do que nas resoluções, que são
documentos mais sintéticos.
E como essa legislação norteou a área? Temos cinco currículos
mínimos para o Jornalismo e três para as demais áreas. O primeiro

1 Palestra à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-


do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB, em 8 de abril de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisadora do Fórum Ensicom – Seminário
de Ensino da Comunicação da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação. Foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação
Organizacional e de Relações Públicas (ABRAPCORP) de 2012 a 2014. Participou, no MEC,
da Comissão de Especialistas que formulou as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cur-
sos de Relações Públicas.

68
parecer é de 1962 e era exclusivamente para o curso de Jornalismo. Já o
segundo parecer é de 1965 e também era exclusivo para o Jornalismo,
embora já houvesse na época alguma preocupação tanto com Publici-
dade e Propaganda como com Relações Públicas. Havia uma discussão
em disciplinas sobre a questão das organizações. O Jornalismo também
trabalhava com as organizações, porque já havia experiências em asses-
sorias de comunicação.
A partir de 1969, nós tivemos três currículos mínimos. No de 1969,
que foi um marco, o curso passou a ser de Comunicação Social, tipo um
guarda-chuva, e dentro dele surgiram as habilitações em Jornalismo,
Publicidade e Propaganda, Relações Públicas, Editoração e a habilitação
polivalente. Essa última permaneceu por apenas um breve momento,
porque os egressos na habilitação polivalente não estavam conseguindo
registro nas entidades de classe profissionais, tendo em vista que não era
uma formação focada naquela atividade profissional. Era uma habilita-
ção muito abrangente. Então, foi um breve período em que ela vigorou
e não foi mais indicada nas outras resoluções. As habilitações em Jorna-
lismo, em RP e em PP têm uma continuidade nas resoluções, tanto na
de 1978 como na de 1984.
Em 1978, temos a criação das habilitações em Rádio e TV e em
Cinematografia, era dessa forma que se chamavam. Depois, foram
transformadas em Radialismo, que era Rádio e TV, e na habilitação em
Cinema. O quadro foi se modificando em algumas outras atividades,
mas PP, RP e Jornalismo se mantiveram ao longo desse período.
E o currículo de 1984 foi o mais longevo da história, com quase 20
anos de existência norteando os cursos. Era um currículo mínimo, o que
significava uma certa obrigatoriedade em trabalhar com matérias indicadas
no documento. Essas matérias até poderiam ser desdobradas em determi-
nados conteúdos, no entanto, havia a necessidade de que esse material (con-
teúdos e matérias) compusessem os currículos dos cursos. Tal especificação
é muito maior nas três resoluções do curso de Comunicação Social. Em
relação a essa questão da obrigatoriedade, há uma diferença nas diretrizes
curriculares, particularidade que abordaremos mais adiante.
Tanto os pareceres como as resoluções indicam uma carga horária
mínima para o curso funcionar. No primeiro parecer, de 1962, que foi

69
a primeira experiência, não havia uma carga horária mínima especifi-
cada, porém, há um documento posterior no qual existe uma recomen-
dação. O parecer de 1965 previa uma carga horária mínima de 2.700
horas-aula. Depois, baixou para 2.200, em 1969. Em 1978, foram man-
tidas essas 2.200 horas e nasceram os Projetos Experimentais neste cur-
rículo. Aliás, tem uma publicação muito interessante daquela época que
previa equipamento a ser comprado e laboratório a ser construído. Essa
foi a grande dificuldade dos cursos, porque tudo o que estava exposto
naquele material era oficial. Então, deveria ser cumprido pelas universi-
dades para os cursos em implantação ou que estavam em andamento.
Nessas 2.200 horas de 1978 havia a inclusão dos Projetos Experimen-
tais. Os Estudos de Problemas Brasileiros e a Educação Física eram à parte,
além dessas 2.200 horas. Em 1984, no currículo que marcou a trajetória
do ensino de Comunicação no Brasil, até pelo tempo que vigorou, a carga
horária mínima voltou a ser de 2.700 horas. Muitos cursos configuraram
a formação utilizando a carga horária mínima como referência, além das
horas para os Estudos dos Problemas Brasileiros. Nessas 2.700 horas, da
resolução de 1984, continuaram incluídos os Projetos Experimentais.
Qual era a estrutura modular do curso? Podemos fazer uma com-
paração, quase um benchmarking: temos a proposta curricular dividida
em determinados conteúdos e matérias, conforme o documento traba-
lhado. No primeiro curso de Jornalismo, em 1962, tínhamos disciplinas
gerais, especiais e técnicas. Essa estrutura, na verdade, teve uma varia-
ção em termos de nomenclatura, mas ela foi bem semelhante no currí-
culo de 1965 e recebeu uma modificação maior na resolução de 1969,
quando se transformou em curso de Comunicação Social.
Dessa forma, o que tínhamos era uma parte comum do curso e
uma parte específica com afinidade em relação à formação profissional
que aquele aluno tinha escolhido. Era uma parte diversificada e espe-
cífica, que atendia aos interesses daquelas pessoas que estavam se dire-
cionando a sua área profissional escolhida, nesse momento, ao longo
do curso. Em 1969, as pessoas podiam entrar em Comunicação Social
e escolher sua habilitação ao longo do curso. Mais tarde, isso se modifi-
cou e o vestibular já previa a escolha na origem, ou seja, no ingresso do
aluno no curso de seu interesse.

70
A estrutura de um tronco comum, com matérias de cultura geral
e humanísticas, conservou-se. E existia também uma parte com as
matérias de natureza mais profissional, do campo de Jornalismo, de
RP, e de PP. Na resolução de 1978, havia uma indicação para o fun-
cionamento de laboratórios e compra de equipamentos, que rece-
beu muitas críticas e uma implantação bastante complicada, porque
nem todas as universidades e cursos conseguiram dar conta daquela
exigência tecnológica para a época. Por isso, ocorreu uma resolução
complementar, em 1979, postergando a compra ou a oferta de labora-
tórios para os alunos na medida em que as instituições de ensino não
estavam conseguindo cumprir as exigências oficiais. Nós temos que
pensar em equipamentos que vinham de fora do Brasil, e era um longo
tempo para receber as importações.
Já em 1984, essa estrutura do tronco comum era dominada pelas
áreas das Ciências Sociais e das Ciências da Comunicação, proporcio-
nando um lastro teórico para os alunos. A parte específica abordava as
técnicas, as linguagens e o campo profissional das habilitações, enquanto
os projetos experimentais passaram a ter uma carga horária definida
para a sua oferta e funcionamento.
Qual era a configuração do currículo mínimo de 1984, que foi o
último e influenciou as diretrizes de 2002? No tronco comum havia seis
matérias/disciplinas obrigatórias a serem cumpridas. Vou dar um exem-
plo: Português era considerado uma matéria e a instituição de ensino
poderia dividi-la em Português Aplicado à Comunicação, Português e
Literatura, ou poderia dar outra denominação para aquele conteúdo e
aquilo que fosse oferecido tivesse relação direta, vínculo direto com a
matéria que estava no documento oficial. Em complemento, tinha um
elenco de 21 matérias ou disciplinas eletivas, que a instituição de ensino
poderia escolher para fazer a composição das nove matérias/disciplinas
que seriam desdobradas em tantas outras, sendo praticamente metade
do curso voltado para as Ciências da Comunicação e Ciências Sociais.
Nesse sentido, existia, mais ou menos, uma equivalência com nove
matérias para Jornalismo, sete para RP e nove para PP. Não sei por que
só Relações Pública tinha sete, mas, de qualquer forma, o documento
indicava esse registro. Quase 20 anos se passaram e começou uma

71
movimentação para que esse currículo mínimo caísse e houvesse outra
recomendação para as formações. Isso tinha relação com as políticas
públicas daquele momento também.
Gosto de fazer o registro de que a Enecos (Executiva Nacional de
Estudantes de Comunicação Social) teve um papel fundamental nesse
movimento: os alunos dos cursos de Comunicação se mobilizaram para
que o currículo dos cursos que eles estavam realizando fosse modifi-
cado, modernizado e atualizado. A Intercom (Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação) e a Federação Nacional de
Jornalistas (FENAJ) tiveram um papel importante também. De modo
geral, as entidades de classe, as associações científicas da época e, prin-
cipalmente, os movimentos dos estudantes, através da Enecos, foram
fundamentais para esse processo ser repensado.
Houve um convite para que pesquisadores e professores com-
pusessem uma comissão, formada por representantes de todas as seis
habilitações que tínhamos, mais um representante discente. Todo esse
movimento foi interessante, muitas discussões aconteceram, idas e vin-
das que resultaram em uma primeira versão do documento, elaborada
pela Comissão de Especialistas em Ensino de Comunicação (CEE/
COM) que assessorava o Ministério da Educação (MEC). O convite foi
realizado através do MEC, para que essa comissão de especialistas se
reunisse, fizesse consultas, pesquisasse e montasse esse documento que
seria a versão zero das diretrizes curriculares.
Aconteceu um evento relevante nessa época em Campinas, um
congresso promovido pela Fenaj, onde essa discussão foi retomada,
inclusive com a participação de várias pessoas que estavam na comis-
são. Como resultado desse evento, um documento foi elaborado e nele
havia a recomendação de cursos de Comunicação com habilitações e
também a possibilidade de cursos com habilitação específica. E isso
foi interessante porque era uma novidade. Ademais, indicava algumas
áreas como interfaces fundamentais, mas não obrigatórias.
A diferença das diretrizes curriculares é que, como o próprio nome
diz, são diretrizes norteadoras, não há uma obrigação, existe uma reco-
mendação. A partir do momento em que existe a possibilidade de fazer
subdivisões de determinados conteúdos, subdivisões de determinadas

72
práticas, o currículo fica muito mais atraente para aquele momento
específico. Esses documentos foram elaborados de acordo com aquele
momento histórico, social, econômico e cultural. Então, é preciso con-
textualizar esses documentos.
O documento de Campinas foi muito importante porque pautou
a segunda versão da proposta da CEE/COM. Já havia cursos de Comu-
nicação com habilitações, mas também ocorreu a indicação de curso
superior com uma habilitação específica. E a sugestão não de disciplinas
propriamente e sim de áreas que pudessem contribuir com a formação.
O documento final da CEE/COM foi enviado ao MEC para tramitação
em várias instâncias, ocasião em que poderia haver inclusive alguma
modificação. Por fim, o proposto no segundo documento foi encami-
nhado para o parecer e a homologação.
Qual é a diferença, então, das diretrizes para os conteúdos de 1984?
O meu interesse era saber qual influência havia do currículo mínimo
para as diretrizes curriculares. Se tínhamos aquela estrutura de seis
matérias mais as três que poderíamos escolher das eletivas, englobando
50% do curso, mais aquelas sete ou nove relativas à formação profissio-
nal e os Projetos Experimentais. O que permanecia nas diretrizes no
documento final de 2002?
Já havia um entendimento de que os conteúdos básicos eram reco-
mendados, mas, muito abrangentes. O documento final apresentava
uma diretriz sobre o que significava conhecimentos teórico-conceituais,
conhecimentos analíticos e informativos sobre a atualidade, conheci-
mentos de linguagens, técnicas e tecnologias midiáticas, conhecimentos
ético-políticos, como se fosse uma definição de termos, com um texto que
indicava o que poderia ser entendido em cada um desses conhecimentos.
Nos conteúdos específicos, havia reflexões sobre a prática no campo geral
da Comunicação, entendendo a Comunicação como nossa área de base,
que seria parte geral dos conteúdos, mas também entendendo reflexões
sobre as práticas da parte específica da formação profissional.
Desse modo, estavam presentes as habilitações possíveis e uma
parte específica voltada à formação profissional. Com esse tipo de indi-
cação, de registro e de sugestão, era possível construir um currículo
contendo os conhecimentos teóricos tanto do campo da comunicação

73
como de cultura geral. Os conteúdos não estavam configurados como
um tronco-comum, mas diluídos pelo curso. Isso contribuiria tanto se
o currículo fosse montado de forma vertical como de forma horizon-
tal, na qual os alunos poderiam estudar sem a necessidade de superar a
parte básica do tronco-comum antes de entrar na parte específica rela-
cionada à escolha profissional.
Na carga horária, aquelas 2.700 horas se conservaram como míni-
mas. Na resolução de 1984, havia 45% de tronco-comum, 45% de parte
específica e 10% para projetos experimentais, que significavam 2.700
horas-aula. Além disso, os Estudos de Problemas Brasileiros e a Educa-
ção Física ocupavam horas a mais. No caso das diretrizes curriculares de
2002, aparecem os Projetos Experimentais ou Trabalho de Conclusão de
Curso, como uma modificação porque os Projetos Experimentais eram
atividades práticas, mas passaram a ser considerados equivalentes aos
trabalhos monográficos individualizados. Aparece, também, o aprovei-
tamento das atividades extraescolares que representam 20% da carga
horária total, excluindo o tempo dedicado aos Projetos Experimentais
ou Trabalho de Conclusão de Curso.
Qual é a configuração dessas diretrizes? Antes, tínhamos uma pirâ-
mide. Todos no tronco-comum e depois a divisão por área de atuação
profissional. Nas diretrizes de 2002, eu poderia fazer desenhos curricu-
lares. Teria conteúdos básicos e específicos e eles poderiam ser trabalha-
dos concomitantemente, de forma muito mais flexível para a montagem
da matriz curricular.
A parte de conteúdos básicos tem a ver com aqueles conheci-
mentos e os conhecimentos pensados em termos de Comunicação e
em termos de atuação profissional também seriam trabalhados. Eram
diretrizes bastante interessantes, já que permitiam vários desenhos e a
diferenciação entre os cursos, que passariam a ter um DNA em função
desse desenho curricular que seria elaborado pela instituição de ensino.
A partir de 2002, ficamos 11 anos praticamente nessa diretriz, no
entanto, ao longo desse período, já havia um movimento para que os
cursos se separassem. Nesse sentido, o Jornalismo foi o protagonista. O
movimento era para que os cursos tivessem identidades próprias, e não
um vínculo com a Comunicação. Um aluno formado na área não seria

74
formado em Comunicação com habilitação em Jornalismo, Publicidade
e Propaganda ou Relações Públicas e sim formado em Jornalismo, em
RP ou em PP, diretamente.
E qual é a diferença? Deixamos de ser um curso de Comunicação
Social com essas habilitações, nas quais havia a possibilidade de novas
habilitações, como em Comunicação Organizacional, Comunicação
Digital. Se formos olhar o Brasil, temos cursos com possibilidades de
novas habilitações dentro da área, do curso de Comunicação Social. São
braços que foram criados por conta dessa diretriz ser mais flexível, pos-
sibilitando novos desenhos.
O que aconteceu depois? Houve uma resolução em 2006 que sepa-
rou Cinema e Audiovisual. Então o Cinema, que era uma habilitação
anterior, passou a ter sua resolução específica em 2006. Em 2013, houve
a separação do curso de Comunicação Social e as três áreas de atuação,
que estavam juntas desde 1969, passaram a ter documentos diferencia-
dos. A Resolução no 1 foi do curso de Jornalismo e a no 2 de Relações
Públicas, ambas homologadas no mesmo dia, só que a área de Jorna-
lismo começou um ano antes a pensar suas diretrizes curriculares.
Eu nem vou me atrever a falar muito sobre a comissão de Jorna-
lismo, porque o Eduardo Meditsch fazia parte da comissão e ele deve
saber de todo esse movimento. Eu fazia parte da comissão do curso de
Relações Públicas. O que posso dizer com toda tranquilidade é como
essa comissão entendeu e elaborou o documento para a área de RP.
A proposta da área de Relações Públicas foi muito baseada no
documento de Jornalismo. Nós, da comissão, tínhamos como norte o
documento de Jornalismo porque havia vários movimentos interes-
santes para que RP ficasse mais independente da área de Comunica-
ção, com todos os problemas que isso poderia acarretar. Em relação à
Publicidade e Propaganda, somente em 2020 ocorreu o parecer a muito
custo. E é só o parecer, que ainda não foi homologado. Quer dizer, a
homologação significa que existe uma resolução para a implantação das
diretrizes, oficialmente.
São sete anos de diferença entre as diretrizes homologadas em
2002 e a elaboração das novas DCNs (Diretrizes Curriculares Nacio-
nais). Em Jornalismo, ocorreu em 2009, e em RP foi um ano depois.

75
Enquanto a comissão de Relações Públicas foi muito influenciada pelo
documento resultante do Jornalismo, a de Publicidade e Propaganda foi
à parte. Claro que a comissão consultou esses documentos já existentes,
mas houve uma construção muito mais lenta, até pela configuração e
interesse do curso, dos próprios movimentos do mercado. São várias
questões que fizeram diferença para que algum movimento acontecesse
na própria área, influenciando a constituição de uma comissão.
Trouxe como exemplo o curso de RP para mostrar a diferença entre
a resolução de 2002 e a de 2013. Isso teve um impacto na nossa forma-
ção e é claro que, de certa forma, vemos a influência do documento de
Jornalismo no de Relações Públicas. Algo que acho importante destacar
é o aumento da carga horária mínima. Isso prejudicou bastante alguns
cursos, porque eles não conseguiram fazer um desenho que pudesse
integralizar a formação em quatro anos. Isso tem relação com a gestão
do curso, que faz essa integralização. A carga horária mínima de 2.700
passou a ser de 3.200 horas, com detalhes que apontarei a seguir.
As habilitações deixaram de existir e tínhamos no curso de Relações
Públicas eixos complementares. Ficamos com quatro Eixos: Formação
Geral, Formação em Comunicação, Formação em Relações Públicas e
Formação Suplementar, mais os Projetos Experimentais e as Atividades
Complementares, que vinham das outras diretrizes. Além disso, a possi-
bilidade de práticas que são bem interessantes, pois fazem com que os
alunos circulem tanto no mercado como na academia e tenham outras
experiências. Na época, eu era coordenadora do curso de RP da Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Naquela oca-
sião, as diretrizes estavam sendo implantadas e, como gestora do curso,
tive a oportunidade de fazer alguns movimentos.
Quero mostrar a diferença entre um currículo mínimo e umas
diretrizes curriculares. É só um exemplo de uma aplicação. Tínhamos
3.200 horas a implantar. Eu não era de uma universidade pública, e sim
de uma universidade confessional, o que significa que ela é privada e
religiosa. Então, tinha que pensar em não onerar o estudante que iria
ingressar no curso, porque já é um curso caro. Não podia nem aumentar
o número de semestres, o que era uma recomendação, e nem onerar o
estudante com esse aumento de carga horária.

76
No entanto, temos que pensar que esse aumento de carga horária
está dividido basicamente em duas questões. A primeira é que de 2.700
horas, das diretrizes anteriores, para disciplinas, seminários e práticas,
apenas mais 100 horas foram agregadas, totalizando 2.800 horas para os
Eixos de Formação a partir de 2013. Das 3.200 horas, temos 400 horas
divididas em 200 horas de Estágio Supervisionado e 200 horas de Ativida-
des Complementares. Novamente, temos a divisão entre os Eixos. O Eixo
de Formação com 1.400 horas, mais o Trabalho de Conclusão de Curso,
e as outras 1.400 horas para os três eixos que Relações Pública previa. O
Jornalismo tem uma configuração diferente porque tem mais Eixos.
Para as 200 horas de Estágio Supervisionado, como é uma ativi-
dade obrigatória e exigia supervisão, no caso da PUCRS, optamos por
uma prática interna no campus ou em atividades em outros espaços da
própria universidade. Ou mesmo no mercado de trabalho, com super-
visão interna de um professor, envolvendo algumas parcerias institucio-
nais. Tudo isso precisou ser regulamentado, evidentemente. No caso das
Atividades Complementares, foram elencadas várias, inclusive internas,
como monitorias, pesquisa e também extensão, que agora já é algo reco-
mendado para a formação em qualquer curso superior.
Qual é a questão das horas a mais, para não fazer com que o curso
se prolongasse em termos de anos? Usamos créditos com horas varia-
das. Existe a hora do professor e existe a hora do discente. Todo aquele
trabalho elaborado fora da sala de aula, principalmente em Projetos
Experimentais, onde os alunos realmente ocupam um grande tempo
realizando as ações e os contatos, interagindo com as organizações e
com a mídia, e elaborando a proposta, passou a ser contado, a exem-
plo do processo de Bolonha. Tive uma influência desse processo e achei
muito interessante quando estive em Portugal, porque toda a bagagem,
toda a experiência realizada fora da sala de aula, que entrou na forma-
ção, pode ser hora contada, com a supervisão de professores. Acredito
que foi uma inovação e que os alunos acharam interessante, já que valo-
rizou o trabalho realizado fora da sala.
Assim, os quatro eixos de Relações Públicas ficaram: o de formação
específica em RP, que representa 50% do curso; e os demais eixos que
compõem a formação desse egresso na área, como Comunicação, Geral

77
e Suplementar, sempre pensando que parte desse último eixo pode ser
escolhida pelo aluno.
Na elaboração de um projeto pedagógico, que também é político,
precisamos pensar em toda documentação que possa auxiliar o gestor,
sua equipe e as pessoas envolvidas nesse processo. O projeto pedagógico
parece ser algo assim, como as pessoas costumam dizer: “agora vamos
montar uma grade curricular”. Não é uma grade curricular, é uma matriz
curricular. E essa matriz tem um cunho político, tem um cunho social,
tem um cunho cultural, tendo em vista que depende de vários aspectos
que envolvem a instituição de ensino, a região, os públicos participantes.
Existe todo um contexto que precisa ser avaliado.
E qual é a documentação para essa implantação? As diretrizes
curriculares exigem documentos que o gestor precisa. Precisa olhar os
instrumentos de avaliação do curso de graduação do Inep (Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), porque
um avaliador vai autorizar o curso, reconhecê-lo e credenciá-lo. Existem
instrumentos para cada um desses processos e é preciso entender o que
está sendo recomendado pelas diretrizes curriculares e o que será exi-
gido na avaliação dos cursos de graduação pelo Inep.
É necessário olhar também a legislação profissional de todas as
áreas. Para o curso de Jornalismo, a sua legislação. Para o de Relações
Públicas, a legislação é um pouco diferente. Em Jornalismo tem a Fenaj,
que dá as orientações para a área. Em RP, tem o Conselho Federal, que
igualmente orienta a área e é uma autarquia. Publicidade e Propaganda
já é outra configuração, e talvez por isso essa área tenha demorado um
pouco mais para fazer o movimento. Se tínhamos em Jornalismo a Fenaj
e em RP o CONFERP (Conselho Federal de Profissionais de Relações
Públicas), que poderiam encabeçar esse movimento, em PP não havia
uma entidade que pudesse iniciar a ação, a não ser aquelas que são asso-
ciações de agências publicitárias ou de publicitários. Há uma configu-
ração diferente. São áreas que existem em todas as regiões brasileiras.
Algo que recomendo observar quando estamos discutindo as
diretrizes curriculares são as publicações de instituições científicas e
de eventos acadêmicos. Ao olharmos os anais da SBPJor (Sociedade
Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo) os anais da Abrapcorp

78
(Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacio-
nal e de Relações Públicas), por exemplo, vamos encontrar muita dis-
cussão interessante que pode contribuir e colaborar para a construção
de um projeto pedagógico. Temos algumas revistas científicas que são
bem-conceituadas, nas quais há uma discussão, em algumas edições
temáticas, como a Revista Organicom3, e outras em que há uma especia-
lização em ensino de jornalismo, por exemplo.
Destaco também os relatórios de pesquisa, feitos por instituições
de pesquisas, questionando: Como está a área? Como está o mercado?
Porque isso mostra uma tendência do ser, que é o perfil do egresso, e do
fazer, que são suas habilidades profissionais. Gosto de olhar os dados,
pois eles revelam a tendência da área em termos de colocação no mer-
cado. E eu tenho que pensar nisso, pois não vou formar um profissional
de Jornalismo, de Relações Públicas e de Publicidade para ficar somente
discutindo comunicação. Preciso formar para discutir as suas práticas e
os seus processos, considerando um profissional em um mercado que
possa abrigar esse sujeito.
Sempre me pauto por um documento que a Fenaj tem, que são os
padrões de qualidade para o ensino do Jornalismo e as suas escutas. Não
posso apenas criar um projeto pedagógico com a opinião dos profes-
sores. Além da documentação, eu preciso escutar docentes e discentes.
Afinal, a Enecos foi protagonista no início das diretrizes, as entidades
de classe estão atentas às tendências profissionais, as associações cien-
tíficas têm relação com a pesquisa realizada na área, e as organizações
dos três setores são as que vão contratar essas pessoas. Ouvindo todos
os públicos – docentes, discentes, gestores de entidades, de associações
científicas e de organizações dos três setores – posso pensar no contexto
que vai interferir nessas profissões e em que contexto o egresso ingres-
sará no mercado de trabalho. Pensando que ele não pode só reproduzir
rotinas, precisa pensar nos seus fazeres.
Costumo dizer que temos um plano ideal e um plano real. O ideal
é pensar num projeto pedagógico. Mas, ao tentar retirar esses aspectos
do papel, as coisas se complicam, pois buscamos o ideal numa condição

3 Revista da USP, mais informações em: https://www.revistas.usp.br/organicom.

79
de realidade, na qual eu sempre terei variáveis interferindo nessa forma-
ção. Não posso pensar em comunicação sem refletir sobre as deman-
das sociais. Pelo menos é a minha visão. Temos que considerar as áreas
potenciais de trabalho em cada região.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, é um estado bastante agrícola,
é um estado que tem o setor coureiro-calçadista forte. Assim, tenho que
pensar como esse egresso pode ter um lugar (no mercado de trabalho)
considerando o seu entorno, essas especificidades regionais. Também
preciso pensar nas políticas institucionais porque elas estão, de certa
forma, interferindo na formação do egresso da universidade. Ele pode
ter uma formação mais voltada ao social, em função de características
institucionais, e isso vai definir o ser profissional.
Sobre competências e habilidades para definir o fazer profissional,
o que vamos considerar? Formação profissional, mas que seja interdis-
ciplinar, para permitir que esse egresso desenvolva competências, pos-
sibilitando que ele atue, ou pelo menos que aprenda a fazer pontes com
conhecimentos de outras áreas. Precisamos olhar as especificidades da
área, das funções profissionais que estão se modificando, os s papéis
básicos da profissão, as atividades típicas e as atividades emergentes, em
função de contexto, em função da história, em função da pandemia,
por exemplo. Há atividades que estão surgindo ou se modificando em
função de tecnologia. Tenho que pensar em tudo isso para construir o
projeto pedagógico prevendo uma formação mais plural.
Gosto também de olhar a área da Educação. Quando vamos fazer
um projeto pedagógico, precisamos refletir sobre o que é um currículo.
Falamos em currículo, matriz curricular, mas o que é um currículo?
Qual a definição? Quais são as tendências de um currículo? É necessário
pensar nas tendências curriculares porque elas têm que representar o
que se pensa, o que as minhas escutas possibilitaram, o que elas resulta-
ram para a montagem desse projeto pedagógico.
Se olharmos na área da Educação, há três vertentes curriculares.
A Técnico-Linear, que é o currículo centrado no fazer, na grade curri-
cular, visando às atividades profissionais. É um currículo formal, que
observa o que o egresso fará quando se graduar no curso. Outra tendên-
cia é a Circular-Consensual, que é onde estamos ou onde pelo menos

80
poderíamos estar nesse momento, em uma construção curricular a par-
tir da experiência das pessoas, escutando as pessoas, olhando o entorno,
sendo algo mais humanista. Há uma relação com o fazer, no entanto, é
um fazer pensado, é um fazer com uma característica mais humanizada,
sendo denominado de um Currículo em Ação, porque ele é constan-
temente atualizado. Não é que vá se modificar o projeto pedagógico a
todo instante, mas podemos modificar atividades e conteúdos, adequar
programas, discussões, tarefas e ações com metodologias ativas, que
hoje é o termo do momento. Podemos fazer adequações, pois é um cur-
rículo que não está engessado. Ele está em constante movimentação em
função dessa construção possível e permanente, a partir da contribuição
de muitas pessoas.
Por fim, existe o Dinâmico-Dialógico, que possui uma visão crí-
tica. É mais difícil de construir porque se trata de um currículo eman-
cipatório, baseado no questionamento sobre as práticas profissionais.
É uma reflexão crítica sobre o fazer. Há referências a respeito de um
Currículo Oculto, que possui uma literatura específica sobre o assunto,
no qual podemos interpretar além do que estamos vendo, do que está
posto. Acredito que estejamos naquele momento do Currículo em Ação,
mas o Currículo Oculto é muito importante e há algumas iniciativas
nesse sentido.
Falarei da extensão. Existe uma legislação que é de 2014, do Plano
Nacional de Educação, e que tem uma resolução que impacta a forma-
ção profissional superior. O Plano estabelece diretrizes para a extensão na
educação superior brasileira. Tem dois pontos para pensarmos em como
construir esse projeto pedagógico a partir das diretrizes, pois teremos
10% de créditos curriculares voltados a Projetos de Extensão Universitá-
ria. O documento define o que considera como Extensão Universitária e
faz alguns apontamentos. No entanto, esse termo concentra vários tipos
de ações desenvolvidas em Projetos de Extensão que já existem nas uni-
versidades há algum tempo. E a resolução estabelece que esses Projetos de
Extensão sejam identificados nos Projetos Pedagógicos.
Em alguma parte, no perfil do egresso, que é o ser na sociedade, há
necessidade de algum indicativo que apresente o seu papel social envol-
vendo a extensão. É uma atividade integrada à matriz curricular e pode

81
também estar vinculada à pesquisa. O mínimo de 10% da carga horária
curricular, quer dizer, das 3.200 horas, precisaria estar voltado à exten-
são, que envolva a intervenção em comunidades externas à instituição
de ensino, que pode ser feita através de algumas parcerias. A indicação
de créditos curriculares ou carga horária pode variar, pode apresentar
uma diferença. Então, precisa haver uma avaliação desses projetos, uma
vez que o prazo a contar é de dezembro de 2018. Significa que, desde
dezembro de 2021, precisamos ter implementado os projetos pedagógi-
cos observando as diretrizes que incluem projetos de extensão.
Quais são os desafios que temos para a formação, considerando
as diretrizes curriculares e a documentação necessária à construção de
um projeto pedagógico, que é uma peça política? Temos que pensar nas
demandas sociais e na inserção regional, pois são aspectos relevantes.
Também há a articulação teoria e prática. Falamos muito sobre a conexão
entre as disciplinas que vão permitir uma reflexão sobre o fazer comunica-
ção. Quando falo sobre o fazer comunicação, significa o fazer Jornalismo, o
fazer Relações Públicas, o fazer Publicidade e Propaganda, ou seja, o fazer
profissional. O egresso tem uma atividade profissional que possui diretri-
zes curriculares vinculadas à atividade profissional. A área, teoricamente,
seria de Comunicação. E, com isso, se chega a outra questão.
A produção acadêmica gerada nos cursos de graduação e de pós-
graduação é fundamental, pois visualizamos novas relações com o mer-
cado de trabalho a partir dos projetos de comunicação. Há diversos
projetos de comunicação, e agora também projetos de extensão e de
pesquisa, que podemos realizar junto com o mercado, mediante uma
aproximação. Quando as pessoas começam a se dar conta de que isso
é possível, há um movimento, há uma modificação. A produção gerada
pode nos ajudar nesse momento.
Ainda focando nos desafios, temos a integração de diversas áreas.
Isso é fundamental. As ciências da Comunicação precisam ser consi-
deradas em Jornalismo, em Relações Públicas, em Publicidade e Propa-
ganda, porque são as ciências que, de certa forma, nos dão, além de toda
discussão teórica que temos na área profissional, o olhar da Comunica-
ção. Uma visão, uma discussão mais teórica da Comunicação que pode
contribuir muito para a reflexão do fazer.

82
Historicamente, as nossas profissões estão vinculadas às Ciências
da Comunicação. Temos a renovação dos conhecimentos teórico-práti-
cos como algo importante porque novas atividades e novas identidades
profissionais estão ocorrendo por conta do avanço tecnológico. Há dois
ou três anos, tínhamos determinadas atividades. Hoje, temos outras que
já são adaptações, ocorridas em função de novas tecnologias ou da pan-
demia, o que obrigou as pessoas a trabalharem de uma forma diferente.
Há identidades distintas sendo tatuadas nos profissionais a partir desse
novo momento histórico.
Além disso, existe a avaliação dos cursos pelo Inep, considerando
a flexibilidade das diretrizes curriculares, os instrumentos que exigem
determinados aspectos e a nova classificação de área. E a inserção das ati-
vidades de extensão, em função de carga horária ou crédito, com interven-
ção em comunidades externas, que agora é uma questão a ser observada.
Com isso, chegamos às classificações dos cursos na área da Comu-
nicação. Há uma ruptura na área da Comunicação como conhecemos.
Farei uma comparação entre alguns organismos governamentais. Se eu
pensar nossa área segundo a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior), ela é classificada como de Comunicação
e Informação, adequada ao que fazemos. Contribui para o nosso fazer
comunicacional pensar a comunicação e a informação. Se pensarmos
de acordo com o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico), a área da Comunicação está dividida em Teoria
da Comunicação, Jornalismo e Editoração, com todas suas subdivisões,
Rádio e TV, o que lembra a divisão antiga que tínhamos nos currículos
mínimos. É uma divisão que ainda acontece e reconhece todas as áreas
– Relações Públicas e Publicidade e Propaganda estão ali, mais a Comu-
nicação Visual, que hoje seria a do Audiovisual. Temos a classificação do
CNPQ identificada quando fazemos uma solicitação de bolsa.
Ainda temos a classificação dos cursos de graduação e sequenciais,
que se chama Cine Brasil4. Já li e reli aquele documento com a finalidade

4 Manual para Classificação dos Cursos de Graduação e Sequenciais. Mais informações em:
https://www.gov.br/inep/pt-br/centrais-de-conteudo/acervo-linha-editorial/publicacoes-
institucionais/estatisticas-e-indicadores-educacionais/manual-para-classificacao-dos-cur-
sos-de-graduacao-e-sequenciais-cine-brasil.

83
de verificar se existe uma saída para as Relações Públicas e Publicidade e
Propaganda, porque fomos retirados da nossa área-mãe. Observei todos
os apêndices da classificação internacional normatizada de educação, que
é o Cine Brasil, no qual vemos a área 03 de Ciências Sociais, Jornalismo e
Informação, conforme documento original. O tópico Jornalismo e Infor-
mação envolve Jornalismo e Reportagem, que é a área detalhada e está
subdividida em Comunicação Social, Jornalismo e Produção Editorial. A
Comunicação Social, que era o guarda-chuva, passou a ser um braço de
Ciências Sociais, Jornalismo e Informação, agora denominado Ciências
Sociais, Comunicação e Informação, de acordo com o documento em sua
terceira versão. Publicidade e Propaganda e Relações Públicas foram para
a área 04, de Negócios, Administração e Direito, vinculadas à área deta-
lhada Marketing e Propaganda, subdividida em Marketing, Publicidade e
Propaganda e Relações Públicas, que vai aparecer somente neste tópico.
No Apêndice E, há o índice remissivo das Diretrizes Curriculares
Nacionais contempladas pelos rótulos. Esse apêndice vincula as forma-
ções e as profissões que já têm diretrizes curriculares homologadas com
os rótulos correspondentes em um quadro. Assim, temos Comunicação
Social com a resolução de 2002 ainda em vigor, porque há possibilidade
de cursos com a raiz em Comunicação Social, vinculados às Ciências
Sociais e ao Jornalismo, em outra posição.
Adiante no documento, chegamos ao Jornalismo, que tem a resolu-
ção de 2013, com o código 0321, muito adequado. Quando observamos
Relações Públicas, a resolução foi homologada no mesmo dia de Jorna-
lismo. Porém, RP foi para a área 04, dentro do rótulo 0413, que é Mar-
keting e Propaganda. É uma situação inadequada para quem teve toda
uma formação, desde 1969, dentro da área das Ciências da Comunica-
ção, pensando nos fazeres, trabalhando com a mídia, sempre de forma
mais social, mais abrangente. O curso de Relações Públicas foi retirado
dessa área e colocado dentro do guarda-chuva da Administração, que
olha a comunicação como um processo rígido.
Por que tudo isso? Na verdade, existe uma classificação internacio-
nal que vigora desde 1997 e há interesse em integrar a educação brasi-
leira a uma classificação internacional, para não haver diferença ao que
fora do país se tem em relação às áreas.

84
No nosso caso, desde 1997, havia Ciências Sociais, Negócios e
Direito. Em 2013, no exterior, a área passou a ser denominada Ciências
Sociais, Jornalismo e Informação, que é o modelo adotado em 2018, no
Brasil, e já chancelado. Tanto em 1997 como em 2013, algumas classi-
ficações se mantiveram. Os códigos 31 e 32, que preveem Jornalismo e
Informação, estão nos documentos de 1997 e de 2013. No caso de Rela-
ções Públicas e Publicidade e Propaganda, em 1997, o código era 34, de
Negócios e Administração. Estávamos juntos com Jornalismo e Direito,
que tinha o código 38. Em 2013, Negócios e Administração passaram
a ser uma nova área e então, internacionalmente, nos vinculamos ao
código 41: tanto Relações Públicas e Publicidade e Propaganda como
Direito. Esse é o motivo da nova classificação que temos no Brasil.
Quero demonstrar que o ensino de Comunicação no Brasil tem
uma história. E essa história é diferente de outros países, com uma tra-
jetória muito própria. As profissões vinculadas à Comunicação nasce-
ram, guardadas as devidas proporções, com um olhar mais social, dife-
rente da experiência estrangeira. Claro que temos no Brasil experiências
diversas, mas vejo Relações Públicas com um olhar mais social.
Os avanços tecnológicos estão alterando as atividades profissionais
e isso acaba refletindo na formação acadêmica, que vai refletir sobre as
novas identidades profissionais. Uma identidade profissional é constru-
ída, formatada ao longo da trajetória acadêmica e depois profissional,
em função de oportunidades, demandas e interesses. Várias questões
entram aqui. Penso que podemos realizar uma pesquisa voltada a esses
olhares diversos, para uma identidade do curso mais voltada às deman-
das sociais. Acredito que tanto Relações Públicas como Jornalismo têm
interfaces com outras áreas e são formações que considero para a vida.
Podemos ver isso nas novas funções e novas identidades profissionais
vinculadas a uma formação na área da Comunicação, que permite essa
circulação pela sociedade. Mas este é um pensamento meu.
Estou desenvolvendo um projeto observando quem pesquisa o
quê na nossa área, no ensino da Comunicação. Gosto muito de traba-
lhar com o Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPQ. Sei que é um
diretório com poucas informações, mas permite que eu analise a pro-
dução de cada líder, de cada pesquisador. Permite que observe quais

85
as bases teóricas, qual a produção resultante, como as pessoas circu-
lam nesse campo de atuação e de pesquisa. Isso sempre me interessou
muito e tenho acompanhado esses grupos de pesquisa. Apresentarei a
proposta brevemente.
O objetivo do estudo é mapear os grupos de pesquisa existentes
no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPQ, com a temática Ensino
de Comunicação no Brasil. Essa temática possibilita conhecer quem
são esses pesquisadores. Quanto às estratégias metodológicas, é uma
pesquisa exploratória, qualitativa, documental. A minha ideia é contex-
tualizar o ensino a partir dessa pesquisa que irá revelar as boas práticas
acadêmicas. Penso assim: se estou analisando o ensino da Comunica-
ção, posso questionar que boas práticas são essas para uma formação
mais plural, para uma sociedade diferente. Quais áreas de atuação são
privilegiadas? Qual o tipo de produção resultante desses grupos de pes-
quisas? Pretendo fazer uma relação entre a formação e a produção aca-
dêmica, analisando a produção resultante de um grupo de pesquisa que
está vinculado a uma abordagem do ensino de Jornalismo, de Relações
Públicas, de Publicidade e Propaganda e da Comunicação.
Quais foram minhas fontes de pesquisa? Os grupos de pesquisa,
mas também consultei uma rede de pesquisadores na área de educação
superior. Há vertentes do currículo, que acho necessário observar. E o
que a área de educação superior está abordando sobre esses currícu-
los? Quais são as discussões curriculares de hoje? Tanto essa rede de
pesquisadores do Ensino Superior – Ries (Rede Sulbrasileira de Investi-
gadores em Educação Superior) – como o Inep foram consultados.
Recorri à Plataforma Lattes, realizei um levantamento a partir de
uma série de termos de busca e importei tudo para uma planilha de
Excel, para formar um banco de dados. Usei alguns filtros e esses termos
tinham que aparecer ou no nome do Grupo ou no nome da linha ou nas
palavras-chave. Além disso, outro filtro utilizado foi o das áreas. Quando
abrimos o formulário, aparece a possibilidade de indicar a grande área,
e registrei Ciências Sociais Aplicadas, e a área Comunicação. Os filtros
impediram que outras áreas entrassem na pesquisa. Fiz um teste e, se
não indicava a área da Comunicação, emergiam grupos de outras áreas
usando a palavra comunicação com outro sentido.

86
A Ries, nascida em 1999 de uma forma informal, criou um Obser-
vatório de Educação, que contribui com o Inep, estabelecendo novos
indicadores de qualidade para a educação superior. Essa rede tem duas
séries de publicações: a Série Qualidade da Educação Superior e o Semi-
nário Internacional de Inovação e Qualidade na Universidade. O Semi-
nário aconteceu até 2019, na PUCRS. A série Pedagogia Universitária e
Qualidade do Ensino Superior, que faz parte da Qualidade da Educação
Superior, possui a Enciclopédia da Pedagogia, contendo um glossário
bem interessante. E a Inovação e Qualidade na Universidade é resultado
dos Seminários citados5.
Outra consulta foi feita nos documentos do Inep. Nos Instrumen-
tos de Avaliação Institucional Externa, há eixos como planejamento e
desenvolvimento institucional. Nos Instrumentos de Avaliação de Cur-
sos de Graduação, presenciais ou à distância, observei os Indicadores de
Qualidade da Educação. São publicações com indicadores relacionados
às avaliações. O indicador de qualidade que agrega diferentes variáveis
está relacionado às Avaliações de Desempenho, contendo o conceito
Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), titulação e
regime de trabalho dos docentes, percepções dos estudantes, organiza-
ção didático-pedagógica e infraestrutura do curso. Considerando os
grupos de pesquisa, a consulta breve ao Ries e os documentos do Inep,
apresentei o conteúdo dos resultados preliminares no Fórum Ensicom,
da Intercom, para pensarmos na formação de professores e de gestores
da área do ensino da Comunicação.
Ao construirmos um projeto pedagógico, precisamos entender
que esse documento refletirá o pensamento do grupo que o está ela-
borando. Por isso, são importantes todas as vozes para a composição
do projeto. Na pesquisa em desenvolvimento, reuni as dimensões mais
semelhantes, mediante um trabalho de codificação e agrupamento de
temáticas: Projeto Pedagógico; Práticas Sociais; Inovação e Internacio-
nalização; Tecnologias Educacionais; Produção Acadêmica e Formação
Docente. Para que possamos pensar em uma Pedagogia da Comuni-
cação, suas Práticas Pedagógicas e seus Processos Avaliativos, que são

5 Neste link, é possível acessar algumas das publicações da Ries citadas: https://www.pucrs.br/
humanidades/ries/.

87
a nossa grande fraqueza. Embora não tenhamos uma formação para a
docência, precisamos conviver com um problema de avaliação. Pensar
numa pedagogia, pensar num ensino na comunicação, refletir sobre
esse campo, sobre nossas práticas profissionais, todas essas questões são
fundamentais para a construção desse projeto pedagógico. Alguns ter-
mos emergentes, reveladores das práticas investigativas dos grupos de
pesquisa, são: a Construção de Conhecimento; a Educomunicação; a
Mídia-educação; as teorias da área da Educação.
Na primeira etapa, até 2017, tínhamos 32 grupos de pesquisa com
aqueles termos citados antes. Então, fiz uma vinculação com as dire-
trizes curriculares. Se fosse pensar nas diretrizes curriculares de 2002,
havia cinco grupos de pesquisa até aquele momento em funcionamento,
sendo que dois estavam na USP (Universidade de São Paulo). De 2003
até 2013, quando tivemos as primeiras diretrizes, havia 20 grupos de
pesquisa, ou seja, vários foram criados nesses 10 anos em diversas ins-
tituições de ensino. Desse modo, ocorreu um grande movimento para a
pesquisa sobre o ensino da Comunicação. Depois das últimas diretrizes,
de 2014 até 2017, tínhamos mais sete grupos criados. Estou me pau-
tando pela criação dos grupos que se mantiveram atualizados no dire-
tório do CNPQ, totalizando 32 grupos de pesquisa voltados ao tema.
Em termos de regiões do Brasil, o Sudeste tinha onze grupos, o Nor-
deste oito, o Sul seis, o Centro-Oeste quatro e o Norte três. Numa segunda
rodada em 2019, antes da pandemia, considerei apenas os grupos atuali-
zados. Notamos algumas baixas: ou esses grupos não estavam atualizados
ou não existiam mais. Ao final da segunda etapa, tínhamos 32 grupos em
2017 e 19 grupos em 2019, sendo que o Sudeste ficou com seis, o Nordeste
e o Sul com cinco cada, o Norte com dois e o Centro-Oeste com um.
Atualmente, estou na terceira etapa, de 2021, na qual irei comparar esse
material e ver o que aconteceu com o decorrer da pandemia.
Nesse ponto, cito de forma geral as obras de referência sobre o
ensino de Comunicação. Temos o saudoso José Marques de Melo e o
primeiro livro da Intercom sobre Ideologia e Ensino da Comunicação6,
que ele organizou e abriu caminhos para nós todos com a sua trajetória.

6 MELO, J. M.; FADUL, A.; SILVA, C. E. L. Ideologia e poder no ensino de comunicação. São
Paulo: Cortez e Moraes, Intercom, 1979.

88
Temos as obras do Eduardo Meditsch, uma referência no ensino de Jor-
nalismo. Portanto, temos belíssimos exemplos de que Relações Públicas
poderiam se valer. Lembro também das obras da Margarida Kunsch,
que foi a presidenta da Comissão de Especialistas para as diretrizes de
2013. Recomendo as obras do Fórum Ensicom, algumas com artigos
mais voltados às práticas docentes, outras com as práticas profissionais
voltadas à educação, e outras pensando o ensino como uma possibi-
lidade de ingerência sobre as rotinas profissionais, algo mais teórico e
não tão prático. As obras do Ensicom são bem plurais, diversificadas,
têm artigos em vários tons, por assim dizer. Todas essas obras estão dis-
poníveis gratuitamente no portal da Intercom. As obras da Ries, sobre a
questão curricular também são importantes.
Registro as obras que mais utilizei para a minha formação, no dou-
torado, sobre a questão curricular. Tenho acompanhado a trajetória des-
ses pesquisadores. Cito Antônio Flávio Barbosa Moreira, que é o grande
autor sobre a questão do currículo no Brasil e abordou definições e pos-
sibilidades. E mais dois autores portugueses: José Augusto Pacheco e
José Carlos Morgado, da Universidade do Minho, que publicam junto
com o Moreira. Eles têm uma visão muito interessante sobre a questão
curricular, que está mais voltada ao lado humanista, diferente do currí-
culo oculto, que tem outros autores mais alinhados a esse tipo de currí-
culo crítico. Em Portugal, há situações semelhantes à nossa, sendo pos-
sível adotar os autores. Desse modo, quando o foco está no currículo,
podemos construir um belo projeto pedagógico pensando no entorno,
pois precisamos olhar para a nossa sociedade.

Debate

Eduardo Meditsch: Parece que alguns movimentos políticos nesse


processo histórico de regulação não ficaram registrados nos documen-
tos oficiais. Por exemplo, nas diretrizes de 2001, em que houve todo
aquele debate e o encontro de Campinas, houve o documento que a
área mandou e, na verdade, o documento final do Conselho Federal
de Educação cortou muita coisa. E isso se perdeu na documentação

89
histórica. Como antes também, na implantação do primeiro currículo
de Comunicação, em 1969, a história que temos de relatos de alguns
textos da época é de que a proposta inicial foi de haver apenas um
comunicador polivalente, como prevaleceu em outros países da Amé-
rica Latina. E que depois houve uma reação das próprias escolas e isso
chegou à questão das habilitações como um meio termo, um acordo
entre as escolas, o Conselho e o MEC para que fosse administrado e
isso não está bem documentado. São coisas para irmos atrás porque
são movimentos políticos que ficaram de certa maneira perdidos, não
é? Sobre a questão do atraso da Publicidade, que você citou em rela-
ção às diretrizes. A Publicidade demorou muito mais e não sabia que
ainda estava pendente o parecer e que ainda não havia saído a resolu-
ção. Está vigente a diretriz de Comunicação de 2002 para eles? No caso
do Radialismo e da Editoração, ainda não existe nada. É muito com-
plicado esse processo. Ainda sobre a classificação também, há algumas
origens internacionais dessa classificação de Relações Públicas dentro
da área de Gestão? Na biblioteca da UFSC, pedimos para a direção alte-
rar a classificação porque havia uma prateleira de Comunicação den-
tro da Administração e muitas das obras de Comunicação acabavam
sendo colocadas lá e não na área de Comunicação que estava ligada ao
Jornalismo. Desse modo, havia uma duplicidade que acabava fazendo
com que as obras se espalhassem e não estivessem num lugar só. E isso
se deve porque historicamente a Comunicação era vista também como
uma subárea da gestão, que acabou prevalecendo na classificação da
UNESCO e não sabemos exatamente como foi organizada, mas pro-
vavelmente teve essa origem. Como você destacou, a história da área
acadêmica de Comunicação é muito diferente de país para país. Em
alguns países nem existe área de Comunicação. No nosso, temos a tra-
dição de mais de 50 anos de desenvolvimento da área de Comunicação,
então isso também influencia muito essas áreas que ainda não estão
consolidadas internacionalmente, não é?

Cláudia Peixoto de Moura: Penso que Relações Públicas não pode


ficar na área de Administração. Podemos rebatizar o curso, construindo
um projeto que tenha um link com as questões da área. Relações Públicas

90
e Publicidade Propaganda no Brasil estão coladas historicamente na
Comunicação. No exterior é outra situação, não podemos olhar somente
para fora. Temos uma história aqui, com as áreas construídas em con-
junto. Agora, para ficarmos na Comunicação, a minha proposta é que a
gente lance um curso com o termo Comunicação e não mais Relações
Públicas, e não mais Publicidade e Propaganda. E sim, um curso que
possa discutir essas questões, mas não necessariamente ser denominado
como tal. O que impacta isso? Temos entidades de classe que não sei se
vão reconhecer essa formação futuramente, pois há uma possibilidade
de não reconhecimento. No entanto, independentemente disso, penso
que ficar na Comunicação é prioritário.
Embora Relações Públicas seja ofertada até agora na área da Comu-
nicação, o registro no MEC já está na Administração. É uma esquizo-
frenia, não é? As Ciências da Comunicação é que dão o lastro para a
formação e o nosso registro está numa outra situação, como se o funda-
mento nas ciências que compõem a Administração fosse o norte, e não é
o caso. Aliás, cada vez mais Relações Públicas, que é onde estou atuando
mais, está próxima do Jornalismo e da área social. Não tem como desco-
nectar mais. Se fizermos isso, vamos romper com uma identidade que a
área tem hoje no Brasil, que é diferente da identidade de RP no exterior.
Assim, posso dizer tranquilamente que a área, com esse olhar
social, cresce cada vez mais e, nesse sentido, se aproxima do Jornalismo.
Considerando que agora até as contratações dos nossos egressos são fei-
tas muito mais por competências e não por diplomas, a questão passa
por isso. Enfim, toda a trajetória de Relações Públicas e de Publicidade
e Propaganda, que foi trilhada desde os idos dos anos de 1966, 1967,
todo aquele movimento para ter o curso de Comunicação, tudo aquilo,
de certa forma, foi por terra quando os dois cursos foram alterados em
termos de classificação para a área da Administração.
Mesmo havendo uma relação, porque trabalhamos com organiza-
ções, é necessário registrar que o nosso trabalhar em organizações difere
do trabalhar de alguém formado em Administração. O olhar para a
organização é outro. Estou pensando em alternativas, como rebatizar o
curso de Relações Públicas para que ele consiga ficar na Comunicação e
não seja guindado para a Administração, que possa voltar, pelo menos.

91
Eduardo Meditsch: O da UnB é Comunicação Organizacional,
certo? De certa maneira está protegido um pouco.

Cláudia Peixoto de Moura: Sim, é verdade e ele é reconhecido pelo


Conselho Federal de Profissionais de Relações Públicas. Os cursos espe-
cíficos de Relações Públicas já estão vinculados à Administração hoje.
Mas, até dois anos atrás, não eram. Na calada da noite, fomos para outra
área, sem levar em consideração todo o nosso embasamento, que tem
muito de Comunicação. Tem de Administração também, no entanto,
tem muito mais de Comunicação, sem sombra de dúvida.
Tem outros cursos que já possuem outras denominações: Comu-
nicação Empresarial, Comunicação Institucional. Temos Comunicação
Institucional em Portugal, que seria um bom exemplo para nós. Acho
que desse jeito poderíamos ficar dentro da área de Comunicação, do
rótulo de Comunicação Social, que é o último item das Ciências Sociais
e de Jornalismo (denominação original). Para nós, também é esquizo-
frênico, pois estou numa Pós-Graduação que é de Comunicação, mas
a área de formação profissional foi simplesmente para outro lado, sem
levar em consideração as Ciências da Comunicação, que estão nor-
teando a formação. Pode ser que em alguns cursos fique mais adequado
porque o foco seria nessa linha. Mas, não vejo coerência.
Com esta apresentação tentei mostrar para vocês um pouco de
toda a trajetória, para que pudessem observar os detalhes. Essa é uma
longa história. Todos nós pensamos em links para essa formação. E cada
um de nós, provavelmente, fez links diferentes. O ensino de Comuni-
cação é tão rico que nós não conseguimos dar conta. Sempre tem algo
mais para pesquisar, sempre tem uma porta a mais para abrir. Agradeço
muito o convite, pois cada vez que apresento algo, repenso os processos.
E isso é bom e faz com que aconteça uma nova interpretação, em outro
momento. Aquela minha interpretação de 2019, de 2020, já não é mais
a mesma. Já tem a interpretação de hoje, de como estou olhando hoje
o ensino da comunicação e tudo o que circula ao redor desse tema tão
rico, que ainda tem pouca publicação.

92
CAPÍTULO 4

Origens e inconsistências
da Comunicação como Ciência1
Francisco Rüdiger2

Começo a minha fala recorrendo a um livro que umas quinze pes-


soas do Brasil têm, nas quais me incluo. Comprei em 1995, na livraria
do Globo, que funcionava na Rua da Praia e era uma referência na capi-
tal gaúcha. Então, vou começar citando o livro O conhecimento do jorna-
lismo, de 1992, do professor Eduardo Meditsch, um livro que considero
hoje uma obra rara.
Nesta ocasião, não vou falar especificamente do texto do autor, mas
de uma peça que considero especialíssima do professor Nilson Lage,
que faz o prefácio desse livro. Este prefácio para mim é realmente uma
pérola acadêmica que deve ser cuidada com bastante atenção. Então,
vou ler alguns trechos do prefácio. O livro do professor Meditsch é sobre
jornalismo, mas o Nilson Lage, um dos pioneiros dos estudos acadêmi-
cos nessa área, faz uma menção à Comunicação, na página 13: “Comu-
nicação é uma abstração coisificada. É função de todos os sistemas, dos
nervos, dos circuitos, das estradas, do DNA, das radiações cósmicas, tudo
isso comunica. A sociedade, toda obra, silêncio ou fala é comunicação”.
1 Palestra à turma de Pedagogia de Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-
do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 18 de março de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-professor da PUCRS. Pesquisa-
dor do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq). Vencedor duas vezes do Prêmio
Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação. Publicou vários livros sobre a história do campo
acadêmico, como Epistemologia da Comunicação no Brasil – Ensaios críticos sobre teoria da
ciência Vitória: Mil fontes, 2022; As Teorias do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular,
2021; Origens do pensamento acadêmico em jornalismo: Alemanha, União Soviética, Itália e
Japão. Florianópolis: Insular, 2020; Síntese de História da Publicística – Estágios reflexivos da
ciência da comunicação pública alemã. Florianópolis: Insular, 2019.

93
Faria aqui apenas uma ressalva: que pode ser vista como comunica-
ção. E continua... “Exatamente por ser tão universal e abrangente a ação
nominalizada de comunicação não constitui corpus que se possa consi-
derar cientificamente. Ciência, a comunicação não é. Falta-lhe um sis-
tema de denominações peculiar e coerente, lógica interna assentada nos
seus próprios axiomas. A Teoria da Comunicação que se vem tentando há
décadas construir não passa de conjunto inorgânico de conceitos tomados,
ora pela cibernética, ora da sociedade, da sociologia, ora da antropologia,
da linguística, da psicologia e de uma ou outra corrente filosófica. A inter-
disciplinaridade, recurso último dessa aberração epistemológica, tem sido
incapaz de dar frutos. O diálogo entre especialistas, em que se traduzem
seus discursos e buscam resolver cada qual o problema do outro, funciona
quando há objetos concretos, demandas palpáveis, intenções definidas.
Não é este o caso da comunicação. Nas escolas de comunicação, a teo-
ria falece quando especialistas de diferentes áreas discursam seus saberes
para plateias perplexas de alunos à espera de que, no final, alguém fale
de comunicação. Até que um dia alguém fala de jornalismo, publicidade,
relações públicas, cinema, rádio, televisão, edição, e as coisas começam a
ficar mais claras”.
Essa passagem do Nilson Lage é uma passagem ontológica que
deveria ficar registrada nos anais da nossa área acadêmica. Pelo menos,
no meu ponto de vista. Claro que não é juízo dogmático, mas sim um
juízo sujeito à crítica, assim como qualquer outro que se apresente no
meio acadêmico.
Trabalho há muitos anos com o território chamado da Teoria da
Comunicação, mas para mim sempre foi claro que teorias da comuni-
cação no sentido restrito não apenas são muito poucas, mas têm pouco
alcance pelo menos no âmbito das pesquisas que se faz academicamente
na área de comunicação.
A área de comunicação importa quando ela estuda fenômenos
concretos, fenômenos específicos: a cobertura de uma cadeia de tele-
visão a respeito de um determinado evento político ou determinado
fenômeno cotidiano; a pesquisa importa quando alguém analisa uma
campanha de publicidade sobre um determinado produto que é capaz
de gerar polêmica; quando se examina o sistema de controle, os regimes

94
de propriedade das emissoras de rádio e televisão; quando se discute o
design na fotografia ou na internet. Esses são temas que merecem aten-
ção da pesquisa acadêmica, da pesquisa científica.
Se vocês começarem a observar com mais detalhes, vão ver que
a pertinência e a propriedade do termo comunicação como conceito
analítico e interpretativo nesse tipo de pesquisa é praticamente nulo.
A comunicação conquistou no século XX um status teórico. Mas, esse
status teórico não gerou um corpo teórico de grande relevância, de
grande envergadura. São poucas as teorias da comunicação. A própria
área de comunicação se baseia muito mais no fenômeno de ordem
administrativa, burocrática, do que propriamente de ordem acadê-
mica e científica.
Comunicação, quando nós começamos a esclarecê-la do ponto
de vista histórico, revela-se como designação de uma área de conhe-
cimento científico, como um fenômeno muito recente. Algo que só se
estabelece, embora muito rapidamente, a partir do final dos anos 40, por
uma série de circunstâncias que poderíamos esclarecer. Por exemplo,
até a Segunda Guerra Mundial, comunicação não era o nome de uma
área de conhecimento científico e muito menos o nome de uma ciência.
Comunicação era inclusive um termo que na semântica da sociedade
tinha um alcance muito pequeno.
Comunicação começa a ter uma relevância no âmbito dos negó-
cios, da tecnologia e da atividade empresarial com a invenção do tele-
fone, a disseminação do telégrafo, o telégrafo sem fio que dá origem ao
rádio. Tudo isso é acoplado ao significado mais antigo da comunicação
que valia ao de estrada e meios de transporte. Esse é um lastro histórico
do conceito de comunicação. Em sua parte mais enfática, dominante do
seu emprego, da sua pragmática, da sua semântica, comunicação não é
o que estudava alguma coisa. Comunicação sequer era objeto de estudo
acadêmico. Era um eventual objeto de interesse dos engenheiros. Os
engenheiros de comunicação nos exércitos, nos ministérios do interior
de vários estados, que tinham que cuidar das vias trafegáveis, dos trans-
portes de bens físicos.
A partir do final do século XIX, com surgimento de novas tecno-
logias de comunicação, o telefone e principalmente o telégrafo sem fio,

95
há uma ampliação do campo de aplicação da comunicação para aquilo
que chamamos de domínio do imaterial, ou seja, o transporte de símbo-
los, como falavam os alemães.
Os alemães foram os primeiros a estudar essa passagem do trans-
porte de pessoas e coisas para o transporte de símbolos, de sinais, os
quais as pessoas poderiam estabelecer. Na década de 1920, surge a
expressão “comunicação de massas”, com o aparecimento da radiodi-
fusão comercial, após a Guerra Mundial. Mas, até o final da Segunda
Guerra Mundial, o uso do termo comunicação como designativo de
uma área do conhecimento, de uma disciplina, ou de conjunto de estu-
dos, praticamente não existe, não se encontra na literatura.
Isso começa a mudar no finalzinho da Segunda Guerra Mundial
quando um estudioso americano oriundo da área de letras, mas que se
deixou fascinar por outro fenômeno, que era justamente o fenômeno que
tinha gerado uma espécie de tradição de estudo e de pesquisa, que era
o fenômeno da propaganda. Quando Wilbur Schramm, acadêmico do
centro-oeste norte-americano que prestou serviço no esforço de guerra
norte-americano na retaguarda como analista de propaganda e de infor-
mação durante o grande conflito de 1939 a 1945 – foi dispensado do
serviço militar, voltou para sua universidade fascinado com as técnicas
e com os meios de comunicação que as atividades de propaganda pas-
saram a dispor, propôs a sua universidade a criação de um programa de
pós-graduação para estudar esse tipo de situação e de fenômeno, assim
como estudar os meios de comunicação. Isso convergiu com vários
outros interesses e circunstâncias da vida intelectual norte-americana.
Uma espécie de desconfiança e resistência que havia surgido num país
de tradição liberal contra o fenômeno da propagada que se associou
durante a guerra aos regimes totalitários.
Então, contra uma conjuntura que marcou não só a vida da socie-
dade, mas também dos grupos intelectualizados que forneciam apoio e
trabalhavam junto aos militares e ao governo norte americano, tudo isso
convergiu e incentivou para que, no final da Segunda Guerra Mundial,
essa expressão “comunicação” se tornasse uma espécie de alternativa
vocabular e de limpeza de uma carga negativa que havia se associado ao
termo propaganda.

96
Logo, do ponto de vista histórico, se nós ligássemos a máquina
do tempo e voltássemos ao período anterior a 1945, veríamos que as
grandes discussões que posteriormente vão estar diante desse rótulo
chamado da comunicação eram travadas no âmbito do termo propa-
ganda. E antes da propaganda ainda existiam grandes discussões em
relação à imprensa.
Então, para fins didáticos, faço um esquema de compreensão que
distingue entre três grandes épocas da história e do manejo do emprego
dos meios de expressão pública, os meios de publicidade, não no sen-
tido comercial, mas de ação pública, três grandes eras que não necessaria-
mente se sucedem de maneira descontínua, mas que se sobrepõem: 1) Era
da Imprensa, que tem seu auge por volta de 1900; 2) em seguida, a partir
da Primeira Guerra Mundial, temos um período curto marcado pela dis-
cussão e pela preocupação com a propaganda, o que vai ser chamado de
comunicação depois do ano de 1945 e era chamado antes de propaganda;
3) e no final dos anos 1940 até o final dos anos 1980, temos a época de
algo que passou a ser uma espécie de mito não apenas dos intelectuais das
áreas humanas, como da sociedade, que se tornou a comunicação.
A comunicação ganhou, a partir do final dos anos 40, uma cono-
tação mítica, como algo que faz as coisas acontecerem. A comunicação
como algo muito importante e, em uma escala muito maior, daquilo que
já havia conseguido no mesmo sentido a propaganda e a imprensa. São
circunstâncias de uma retrospectiva histórica, as quais penso que devem
ser levadas em conta quando estudamos teoricamente a comunicação.
Estudos sem levar em consideração seus antecedentes, sem levar
em conta uma memória subterrânea, sem levar em conta as carac-
terísticas dos estudos da comunicação desde sua origem, acabaram
sendo esquecidos e ignorados. Então, por exemplo, a propaganda foi
de certa forma diluída na questão da comunicação; a imprensa e o jor-
nalismo foram depois da Segunda Guerra Mundial também incluídos
e reduzidos dentro desse novo espírito acadêmico que se pretendeu ser
moderno e várias forças e várias influências contribuíram para isso. Não
se deve ignorar de maneira nenhuma o impacto que teve nesse processo
de ordem reflexiva, de ordem conceitual, o desenvolvimento das tecno-
logias de comunicação.

97
Não precisamos falar nesse momento da expansão da televisão,
da informática. Sabemos que esses fenômenos que incorporaram à
vida pública, à vida da publicidade, bilhões de seres humanos em todo
planeta contribuíram para aquilo que muitos estudiosos chamam de
mundialização, globalização. Claro que isso teve repercussões no plano
reflexivo, no plano da vida intelectual. Por outro lado, a vida intelectual
deve ter alguma especificidade. E vejo essa especificidade na capacidade
da reflexão crítica, da pesquisa histórica, porque quando tratamos de
alguma coisa, isso que estamos tratando veio de algum lugar. Se não
determinamos claramente de onde vem aquilo que estamos tratando,
acabamos tratando o assunto de maneira limitada e isso é muito comum
na nossa área.
Nossa área sofre de um “presentismo”, como se o mundo sempre
tivesse sido inventado há menos de dez anos. Como se o que existisse
em faixas cronológicas anteriores simplesmente não importassem. Mas,
por isso, se paga um preço que é justamente se tornar vítima e prisio-
neiro do discurso do contemporâneo. Aquilo que em outras épocas,
mas não tão distantes, recebeu o nome de ideologia, e uma das grandes
ideologias do século XX é a ideologia da comunicação. A pretensão de
que a comunicação às vezes é a raiz ou a origem de todos os problemas;
e a pretensão outras vezes também externada de que a comunicação é
a solução de todos os males. Ora, esse discurso mítico, salvacionista ou
catastrófico, em relação à comunicação, surpreendentemente aparece
também na vida acadêmica, no discurso reflexivo.
E parte disso se origina no fato de que na área encarregada de estu-
dar o assunto nós não termos o cultivo de uma atitude histórica. A pai-
xão pela novidade, o fascínio pelo novo, que domina a indústria das
comunicações, de certa forma contagia a consciência reflexiva, a cons-
ciência analítica que muitos se propõe a adotar em relação ao fenômeno,
gerando um círculo relativamente diabólico de cegueira acadêmica em
relação ao que está sendo posto no campo das pesquisas e mesmo das
atividades profissionais, pela falta dessa visão retrospectiva que ajuda
a esclarecer muito daquilo que se apresenta no palco das teorizações,
dos debates conceituais, das interpretações a respeito da comunicação.
Porque seguindo a ideia de Nilson Lage, digo que comunicação vale –

98
é a tese que defendo há alguns anos – como designação de uma área
administrativa na universidade e quanto a isso não vejo nenhum pro-
blema. A universidade da atualidade, do final do século XX, não pode
ser pensada da mesma forma que é pensada a universidade moderna lá
na Alemanha.
Quando abrimos, na área da reflexão teórica, a perspectiva histó-
rica, nós nos confrontamos com um déficit crítico muito grande. Essa
é uma tese, um postulado epistemológico que eu conservo e procuro
aplicar nos meus trabalhos e sempre quando tenho oportunidade como
essa, eu faço questão de marcar. Eu sei que na nossa comunidade aca-
dêmica essa postura não é a dominante, mas cada um, de certa forma,
rende contas para seu próprio demônio. E, no meu caso, o demônio ao
qual sou servidor não abre mão dessa visão histórica.
Resumindo e já fazendo uma ligação para o ponto seguinte: Comu-
nicação não designa, no meu ponto de vista, uma ciência. Ela designa
fundamentalmente um campo acadêmico, que reúne uma série de fenô-
menos e atividades que podem ser estudados cientificamente e que dá
margem à formação de algumas teorias da comunicação que são muito
poucas, mas que, no desenrolar das suas atividades, seja no âmbito aca-
dêmico seja no profissional, tem pouca relevância.
A palavra comunicação ganha força na medida em que ela é rela-
cionada aos meios de comunicação, mas o que é importante, surpre-
endente, não é a comunicação e são os meios. Porque comunicação é
um termo abstrato, como diz o Nilson Lage muito bem. Comunicação
é uma categoria – em outro contexto eu diria que comunicação é uma
categoria metafísica, mas como nós temos que ser mais específicos –
e neste contexto que estamos, diria que comunicação é uma categoria
lógica. Ou seja, não é algo que permite uma abordagem empírica, ela
permite enquadramentos teóricos.
Comunicação não é alguma coisa que possamos ver, tocar, cheirar,
medir, quantificar. Comunicação é algo que nos ajuda a pensar. Mas, se
formos analisar a fundo o que a comunicação ajuda a pensar, vamos ver
que são coisas muito elementares e muito simples quando se trata dos
temas que interessam aos cursos e aos interesses que se agregam à área
de comunicação.

99
Comunicação tem uma pertinência muito maior no caso, por
exemplo, da psicologia, porque ela vai dar conta das dificuldades de
comunicação entre uma pessoa e outra, entre as famílias, então aí temos
a possibilidade de eventualmente examinar fazendo umas adaptações à
experiência, à empiria, mas fora disso o alcance na pesquisa e mesmo na
teoria do termo comunicação é muito pequeno, muito limitado. Então,
na área de comunicação, vale a pena estudar a comunicação? Sim, pode-
se estudar comunicação! Mas quais são as grandes teorias da comuni-
cação stricto sensu? São as que Habermas, que Luhmann e que alguns
teóricos marxistas dos anos 70. Fizeram algumas explanações interes-
santes, mas, fora isso, teorias especificamente que tratam e se estrutu-
ram com base no termo comunicação são inexistentes.
O que acontece é uma espécie de anexação forçada. Muitas vezes,
no meu ponto de vista, usando o termo do Nilson Lage, são aberrantes
na nossa área. Por exemplo, o tratamento das ideias da Escola de Frank-
furt como se fossem ideias da área de Teoria da Comunicação, mas
isso é uma coisa esdrúxula. Nas poucas vezes em que Adorno tratou da
comunicação foi para baixar o pau e denunciar o termo como categoria
ideológica que mascara outros processos.
Então, o que nós encontramos, pelo menos na geração fundadora
da Escola de Frankfurt, é uma crítica à comunicação como uma cate-
goria ideológica. Depois, o discípulo genial do Adorno foi Habermas,
que desenvolveu sua Teoria da Comunicação, mas essa teoria da comu-
nicação de Habermas é um capítulo das ciências sociais, da sociologia.
Habermas não se propôs a dar uma contribuição à área de comunica-
ção. Ele se propôs a discutir um problema da Teoria Social, da Teoria
Sociológica, que está ligada a uma série de pressupostos filosóficos, à
crítica da filosofia do sujeito que emergiu nos anos 60, 70. Ele está pro-
curando discutir uma questão de filosofia social, não uma questão de
meios de comunicação, de programas de televisão, de sites de internet,
de filmes de ficção, de telenovelas, de campanhas de relações públicas,
de publicidade. Não é isso que ele está tentando esclarecer.
Em geral, todos os esforços que conheço de tentar iluminar, ana-
lisar, aprofundar um entendimento desses fenômenos que acabei de
mencionar, seja com Luhmann ou com Habermas, tem resultados

100
muito pobres, muito vagos, sem um ganho epistêmico significativo.
Por quê? Porque são teorizações macro no campo dos fundamentos da
teoria social e essa não é a preocupação central das pesquisas, dos estu-
dos, que são feitos nas nossas áreas. Falo nossas porque o próprio termo
comunicação esconde uma diversidade de interesses muito grande. Por
exemplo, sempre questiono cinema e jornalismo. Quais são os pontos
em comum? Podemos encontrar? Sim, podemos, mas os pontos de dis-
tanciamento e diferenças são avassaladores. O cineasta quer fazer uma
coisa que não é a coisa que o jornalista pretende fazer. Então, isso se
agrava ainda mais quando consideramos áreas como a publicidade.
Tudo isso foi, de certa forma, agrupado à força na área de comunicação.
Logo, concluo a primeira parte da minha fala salientando a hete-
rogeneidade de interesses acadêmicos que se abriga na área administra-
tiva da comunicação, ou seja, eu vejo a comunicação como uma divisão
administrativa na universidade, não propriamente como uma divisão
científica. Então, me parece insustentável a ideia de que muitas vezes
de uma ciência da comunicação ou de uma tentativa de fundamentar
todos os interesses que são aglutinados nesse setor como uma só teoria,
ou mesmo variadas, mais de uma, ou a pretensão de que algum dia se
chegaria a uma teoria unificada. Mesmo no caso disso ser possível, não
daria conta do que são de fato os interesses que estão de certa forma
reunidos na área de comunicação.
Então, não vejo absolutamente nenhuma necessidade de que,
por exemplo, a área de cinema esteja na comunicação. Dependendo
da ênfase que se dá aos estudos e à formação na área de cinema, ela
pode estar na faculdade de economia, na faculdade de comunicação,
na faculdade de artes. O mesmo acontece com o curso de publicidade.
Dependendo da ênfase que se dá à formação no campo da publicidade,
ela pode estar na faculdade de economia, na administração, na facul-
dade de artes. Uma formação publicitária na questão da criação eu vejo
muito melhor atendida se estivesse, por exemplo, na área de artes. Em
outros lugares, fora do nosso país, é assim que acontece. Porque não tem
uma organização acadêmica, burocrática e centralizada, como acontece
no Brasil. No Brasil, tudo se decide em Brasília. E é decidido por um
grupo sempre muito pequeno e às vezes pouco representativo e sem

101
diversidade de interesses, que se manifestam em relação a uma determi-
nada atividade. Essa é uma discussão muito ampla e não vamos mudar
o país só porque queremos, ou porque acreditamos que nossas ideias
são boas, só reconhecemos uma circunstância. Partindo dessa premissa,
de que a área de comunicação, para mim não é uma área cientifica, ela
pode desenvolver estudos científicos, o que é bem distinto.
No Brasil, o termo publicidade se vinculou à propaganda comer-
cial. Em outras línguas, há uma variedade vocabular mais ampla, que
ajuda a fazer diferenças entre esses termos. Mas, no nosso país, publi-
cidade e propaganda em geral são sinônimos, são entendidos num
marco da ação empresarial privada. No entanto, acho que o termo
publicidade tem uma vantagem muito grande para dar conta daquilo
que se chama de comunicação. Tanto o jornalismo, quanto a publici-
dade, as relações públicas, o próprio cinema, a atividade do entreteni-
mento, do espetáculo, eles mexem com os públicos na medida em que
eles se expressam publicamente.
Há pouco eu falava com vocês que, no marco da trajetória do que
a gente chama de publicidade, uma categoria tipicamente moderna,
embora as origens do termo sejam remotas, com origem lá na antiga
Roma, no conceito de público, e abstraindo dessa origem mais remota,
na modernidade é muito presente a questão da publicidade. Então diria
o seguinte: na história da publicidade – aqui estou substituindo o termo
em relação ao da comunicação que acho inapropriado – na história da
publicidade, que dividi anteriormente em três grandes momentos, o
mais recente que é o da comunicação, um período intermediário, mas
que se prolonga subterraneamente, que seria o período da propaganda
(propaganda política, ideológica e comercial), e o período que fica mar-
cado pelos estudos de jornalismo e de imprensa. Ora, esses estudos tive-
ram início, numa perspectiva acadêmica, a partir de 1900. Isso não por
acaso. É quando a imprensa atinge seu auge, a imprensa popular. Não
a imprensa dos primeiros tempos, burguesa e aristocrática, que tinha
uma circulação muito restrita, que era ainda muito devota das fórmulas
literárias, do gênero literário. Não é que a literatura tenha desaparecido,
ela se metamorfoseou. Por volta de 1900, o jornalismo adquiriu uma
identidade institucional, criou feições próprias, se tornou um fenômeno

102
de massas que despertava tanta excitação quanto desperta há alguns
anos entre nós o fenômeno da internet.
Então, se quisermos compreender o que significou a questão da
imprensa e do jornalismo em 1900, podemos ter um bom termo de
comparação se levarmos em conta o que hoje desperta de entusiasmo,
e eventualmente de preocupação, o tema das novas tecnologias, res-
peitadas as diversidades de épocas e as circunstâncias específicas que
são bem diferentes. Nós temos aí um certo paralelismo entre esses dois
momentos na história que chamo da publicidade.
Dentro desse âmbito, é que começaram em diversas partes do
mundo, mas principalmente na Europa e nos Estados Unidos, pouco
mais tarde no Japão, os estudos, os planos e as intenções de se dedicar
em parte ao estudo, em parte à formação de pessoal para atuação nessa
atividade que, enfim, havia se tornado uma atividade importante que
suscitava discussões, seja no âmbito político, seja no âmbito espiritual
dos costumes, seja por parte das autoridades, seja por parte dos educa-
dores. Enfim, várias preocupações provindas de setores bem distintos,
até mesmo da religião, das igrejas, convergiram e fomentaram proje-
tos para transformar esse tema num tema de formação acadêmica e de
estudo científico.
O que eu gostaria de chamar atenção é para a diversidade, a falta de
unidade com que esse projeto mais ou menos comum se desenvolveu.
Darei três exemplos.
Na Alemanha, nós temos a partir da primeira e da segunda década
do século XX, vários planos para transformar o jornalismo em tema de
pesquisa científica, de estudo científico, de discussão acadêmica. Nós
não temos ali, como referência, o enfoque profissionalizante do ensino
de jornalismo. O ensino de jornalismo não é visto na academia dos paí-
ses alemães, como Áustria, Suíça e a própria Alemanha, como um meio
de formação profissionalizante. Ele é visto como um tema de relevância
histórica, política, social e outras, a respeito do qual cabe como respon-
sabilidade da universidade desenvolver o respectivo estudo acadêmico.
Veja que é interessante porque no caso alemão isso não signifi-
cava que a formação profissional fosse desprezada. O que acontece é
que a formação profissional era reservada ao que os alemães chamavam

103
de escolas técnicas superiores. Nas escolas técnicas superiores, onde por
sua vez não faltava uma introdução teórica, uma discussão conceitual,
mas rápida e leve, ali havia, em cursos de pequena duração, de um ano,
um ano e meio, havia ali a oferta de formação profissional. Agora, a
universidade rejeitava essa pretensão, que não era vista na academia de
países de língua alemã como algo que era da sua responsabilidade.
E, por fim, se a gente quisesse ainda fazer um retrato mais deta-
lhado, devemos levar em conta também que os sindicatos ofereciam
cursos, evidentemente de uma superficialidade muito grande, de cur-
tíssima duração, os sindicatos também assumiam a responsabilidade
de fornecer alguma formação para o seu pessoal. Mas, isso deve ser
compreendido também em relação às particularidades da sociedade
alemã da época. Os alemães fizeram ao final do século XVIII e XIX
uma reforma educacional que transformou seus diferentes sistemas de
ensino em sistemas de excelência. Então, os jovens saíam da forma-
ção que corresponderiam ao nosso ensino médio, formação sólida e
muito densa, que de certa forma tornava aqueles que iam para a área
de jornalismo pessoas bastante preparadas e respeitadas. Inclusive tem
análises que mostram as tensões que surgiam entre esses diversos gru-
pos sociais. O pessoal da área de jornalismo tinha uma consciência
moral em relação aos seus deveres patrióticos, uma coisa muito sin-
gular daquela época e daquele país. Por isso, as questões não podem
ser abordadas apenas no plano da atividade acadêmica, pois elas são
atravessadas por outras preocupações.
Resumindo: no caso alemão, sem ignorar as demandas do mundo
do trabalho, a ênfase dos estudos de jornalismo foi científica. Consistia
em transformar o jornalismo em objeto de pesquisa científica. Para isso,
surgiu inclusive uma ciência específica que foi a dos jornais. A ciência
dos jornais que para seus defensores deveria ser inclusive uma ciência
autônoma, independente da sociologia, distinta dos estudos literários,
incompatível com a sociologia. Então, surgiram vários debates que eu
resumo no primeiro capítulo do meu livro sobre as origens do pensa-
mento acadêmico em jornalismo3, mas esse é um modelo.

3 RÜDIGER, Francisco. Origens do pensamento acadêmico em jornalismo: Alemanha, União


Soviética, Itália e Japão. 2. ed. revista e ampliada. Florianópolis: Editora Insular, 2020.

104
Nos Estados Unidos, o modelo dominante foi o modelo da for-
mação profissional, de escolas profissionais. Embora tivesse algumas
exceções, a ênfase ali era a profissionalizante. Era o preparo de pessoal
para o mercado de trabalho, ou seja, muito ensino baseado no exercício
prático. A presença em laboratório, na feitura de atividades, aquilo que
podemos chamar não pejorativamente de “tarefismo”, de fazer tarefa,
complementada por alguns cursos de informação genérica: cursos de
formação sobre economia, sobre direito, sobre história internacional,
nacional. Nada a ver com comunicação. Que é algo que vai surgir só
depois da Segunda Guerra Mundial.
Então, o modelo americano era um modelo no qual o jornalismo
se apresentava no meio acadêmico como algo que não era acadêmico,
que era técnico e profissionalizante complementado por cursos daquilo
que a gente chama entre nós de cultura geral. Quem trabalha com jor-
nalismo não é obrigado a fazer faculdade, mas se quiser fazer faculdade
tem que ter complementação de cursos de cultura geral. Não se pretende
que o estudante se torne um pesquisador científico em jornalismo, mas
se pretende preparar um profissional para o mercado e com perfil que
carrega consigo informações de ordem geral de várias disciplinas, mui-
tas delas inclusive escolhidas livremente, de acordo com os interesses de
cada estudante. Outro modelo bem distinto do alemão.
Por fim, nós temos o modelo soviético. O partido comunista, bol-
chevista, comandou uma revolução. Essa revolução mudou radicalmente
o cenário da Rússia Imperial. Houve a introdução de um projeto moder-
nizante que rompeu várias tradições, com várias instituições, procurou
dar um salto na história através de uma elite, de uma vanguarda revo-
lucionária transformadora, em meio ao desenvolvimento desse projeto
durante os anos 1920, foi criado um instituto estatal de jornalismo. O pro-
jeto desse instituto estatal de jornalismo, que gerou trabalhos interessan-
tíssimos e muito ricos tanto no campo da pesquisa como da teoria do jor-
nalismo, agregava os modelos norte-americano e alemão. Pretendia tanto
formar profissionais quanto dar a esses profissionais uma capacidade de
compreensão científica da realidade, não só da realidade do jornalismo,
mas também da própria realidade que se estava pretendendo construir na
pátria, o socialismo, que era a União Soviética.

105
Esperava-se que os estudantes desse instituto estatal de jornalismo
fossem tanto estudiosos da sociedade e da imprensa quanto profissio-
nais que iam levar para seu fazer, para seu ofício, esses conhecimentos
científicos que agregavam contribuições de tantas outras disciplinas,
não apenas a teoria do jornalismo que eles desenvolveram, mas também
da história, da economia, da sociologia, das artes gráficas. Uma espécie
de intelectual total. Um intelectual de espírito iluminista que fosse capaz
de sintetizar, na sua própria individualidade, todas as competências e
todas as faculdades que, dentro de uma visão clássica do conhecimento,
oriunda do iluminismo, seriam importantes para a construção de uma
nova sociedade.
Então, só considerando esses três modelos, nós vemos como foi
diferenciada a gênese da instituição do jornalismo no plano acadêmico.
Não houve um só modelo. Dependendo do lugar, o modelo foi diferente.
No caso alemão, se pretendeu formar uma ciência do jornalismo. No
caso americano, formar profissionais, inclusive temos registros e docu-
mentos onde fica muito claro por parte da universidade que a ciência do
jornalismo era uma coisa estapafúrdia. E em outros países, não apenas
se aceitou que poderia haver uma ciência, no caso marxista do jorna-
lismo, mas essa ciência deveria ser posta em prática pelos profissionais
de jornalismo no seu dia a dia, no seu trabalho em redação, na feitura de
jornais, de revistas, do contato com os cidadãos e tudo mais.
Com as circunstâncias históricas da vida europeia no século XX,
com o avanço da ditadura stalinista na União Soviética, com surgimento
da ditadura hitlerista na Alemanha, com a Segunda Guerra Mundial,
todas essas experiências acabaram sendo corrompidas e sendo vitima-
das de diferentes formas.
Na Alemanha, o regime investiu bastante nos institutos de jorna-
lismo, como chamavam lá, mas cobrou que esses institutos passassem a
preparar mão de obra de acordo com a nova ideologia nacional-socia-
lista4 e isso cobrou um preço quando a guerra terminou. Na União Sovi-
ética, com o avanço do stalinismo, se instalou uma espécie de dogmática
da teoria e acusou-se os responsáveis pelo instituto estatal de jornalismo

4 Nacional-socialista era o termo que identificava os nazistas na Alemanha.

106
de Moscou de heterodoxia, de não seguirem o catecismo dominante, e
o instituto acabou passando por reformas, e antes da Segunda Guerra
Mundial todos eles foram fechados. A formação de jornalistas acabou
sendo função das escolas comunistas, como eles chamavam lá. Então,
para trabalhar no jornalismo era preciso em primeiro lugar ser um mili-
tante do partido e fazer suas escolhas. Sobreviveu de maneira próspera a
experiência norte-americana, que, todavia, acabou sendo atraída para a
nova área de comunicação após a Segunda Guerra Mundial.
Depois, isso vai ter uma série de desdobramentos, sobretudo nos
últimos anos. Mas, não quero mais me estender e gostaria de ter um
retorno, de poder fazer uma avaliação do que apresentei para vocês, do
que pode ter significado de relevância, de curioso, de contribuição para
o que vocês estão estudando.

Debate

Eduardo Meditsch: Essa questão da historicidade semântica, de


como os termos vão sendo substituídos, obviamente cada termo implica
um conceito, uma maneira de ver as coisas, e como isso condiciona nossa
própria visão sobre o que seja jornalismo, comunicação, imprensa, mídia
e todas essas coisas. O comentário que vou fazer é muito da minha expe-
riência pessoal. Cada vez que pego seus livros fico entusiasmado com a
sua contribuição de trazer essas informações e a possibilidade de depois
irmos mais a fundo nelas. No caso estudo de jornalismo, vemos que
muitos desses debates que aconteceram nessa época e dos quais você
nos traz notícia, continuam tendo uma enorme atualidade. Os debates
sobre a formação dos anos 1920 na União Soviética, várias questões que
são abordadas sobre jornalismo e que se perderam. Tenho chamado a
atenção para isso, do silenciamento, de como nossa área apaga nossa
própria memória e de como é importante recuperarmos isso. Como
esses debates são extremamente pertinentes para as discussões atuais.
Claro que o que já se pensou em outras situações históricas sobre nossos
objetos de estudo, nossas preocupações com eles, são muito pertinentes
para enriquecer as nossas experiências atuais.

107
E me chamou atenção principalmente uma questão, eu costumo
enfatizar que você estuda muito a história das ideias, até dei uma pales-
tra na UnB sobre a história política da comunicação, e também tenho
enfatizado a história política da nossa área. E uma coisa que não citei
lá, mas me chamou muita atenção uma vez que convidamos o professor
Donsbach, quando ele publicou aquele texto sobre “jornalismo como
conhecimento” na Journalism. O professor Donsbach fez a aula inaugu-
ral no nosso Doutorado na UFSC, fez uma palestra muito interessante,
mas ele não citou nenhum autor alemão. Todos os autores que ele citou
eram norte-americanos. Depois, nós conversamos e disse a ele que
tínhamos curiosidade sobre recuperar esse pensamento alemão, do qual
tínhamos muito pouco contato. E perguntei: “Por que o senhor preferiu
os autores norte-americanos e não os autores alemães?”. Citei alguns e
ele disse que eles não eram científicos. E aí a gente vê o impacto desse
modelo americano de ciências da comunicação no pós-guerra e de
como até muito recentemente isso continua estando presente na acade-
mia alemã. A importância desses acontecimentos políticos, você falou
do stalinismo, do nazismo, no seu livro fala do fascismo na Itália, e do
poderio dos Estados Unidos na Guerra Fria para impor seus modelos
também. E de como isso nos fez apagar coisas que são fundamentais
para a gente recuperar e justamente ter um fio histórico.

Francisco Rüdiger: O Donsbach era cria da Elizabeth Noelle-


Neumann. Ela foi muito influenciada por um período em que viveu nos
Estados Unidos quando foi fazer uma série de estudos antes da Segunda
Guerra Mundial e voltou com uma série de ideias que num primeiro
momento ela não manifestou, mas que ao término da Segunda Guerra
Mundial se tornaram interessantes porque o país estava destruído, ocu-
pado pelos Estados Unidos e seus aliados. Era importante reestruturar a
academia alemã, então ela foi uma espécie de protagonista principal dessa
renovação acadêmica que houve na Alemanha após a Segunda Guerra
Mundial, introduzindo os métodos e técnicas da pesquisa empírica, uma
abordagem que na Alemanha era praticamente desconhecida, embora
tenha sido levada para os Estados Unidos por um austríaco que nós
conhecemos bem, que era o Paul Lazarsfeld. Um intelectual, pesquisador

108
e sociólogo que levou para os Estados Unidos os métodos e técnicas da
sociologia empírica e lá esses métodos conquistaram a academia norte-
americana e foi lá que a Elizabeth Noelle-Neumann conheceu esses méto-
dos e acabou levando de volta para a Europa e fazendo prosperar.
Então, esses aspectos são alguns fatores que ajudaram a caracteri-
zar esse período anterior à Segunda Guerra Mundial em parte como um
período não científico e em parte também como um período sombrio,
um período suspeito, a respeito do qual era melhor deixar intocado. Mas,
mais recentemente, nos últimos vinte anos, o cenário tem mudado. Não
de maneira a projetar novamente essas ideias como ideias dominantes,
mas tem uma erudição bem grande que recupera essa parte histórica lá.
Agora os alemães não estão tão alheios a esse período.

Nicole Guimarães: Professor, muito da sua fala, quando você come-


çou, eu identifiquei com uma disciplina que eu tenho feito e que tem
várias questões que me inquietam: não tem uma historicidade, começa-
mos as discussões a partir do hoje, do presente, e eu sempre me pergunto
“por onde começou?”; a maioria dos textos serem de ciência política ou
sociologia, não são de comunicação; e a comunicação ser usada como a
causa dos problemas. Enfim, eu pensei muito nisso. E minha pergunta é:
o que você diria para uma estudante de pós-graduação em comunicação?
Para não cair nessas “armadilhas” da comunicação como algo abstrato,
em termos de metodologia, pesquisa. Eu gostei muito da questão histó-
rica, sinto que é muito importante entender porque as coisas estão acon-
tecendo agora. Então, gostaria de saber sua orientação para alguém que
está fazendo mestrado ou doutorado em comunicação.

Francisco Rüdiger: Eu apostaria, olha que posso me enganar, que,


apesar de ser pós-graduação em comunicação, no trabalho que você vai
apresentar na dissertação de Mestrado você não vai tratar da comunica-
ção. Já tem o tema?

Nicole Guimarães: Minha proposta inicial é falar sobre a comuni-


cação em relação à economia, tendo uma autarquia federal como estudo
de caso, porque ela tem falado muito sobre transparência, estar próxima

109
da população, inclusão financeira. Pensei em usar o que o Paulo Freire
fala sobre comunicação, a comunicação como diálogo. E tentar fazer um
paralelo com o que a autarquia diz que é comunicação e o que tem feito
em relação à comunicação. Mas com sua aula já estou imaginando que
vou cair na abstração sobre o que seria essa comunicação.

Francisco Rüdiger: Eu estou intuindo, pelo que você está falando,


que você vai fazer um estudo de relações públicas de uma autarquia
federal, não é isso? Por exemplo, se você for fazer um estudo sobre como
a autarquia aparece na revista Veja ou no Jornal Nacional, você não está
fazendo um estudo de comunicação, está fazendo um estudo de tele-
jornalismo. Ou de jornalismo em revista. Comunicação é uma espécie
de papel celofane que as pessoas que entram dentro da área acadêmica
usam para, de certa forma, envelopar um conjunto de estudos e se a
gente vai analisar caso a caso, em detalhe, praticamente não falam em
comunicação e, quando falam, falam de uma maneira que na maior
parte das vezes é dispensável. Ou seja, eu poderia tirar a palavra e o
argumento, e a tese se sustentaria.
Esse é o ponto. Quero dizer, o alcance teórico analítico do tema
comunicação é quase insignificante, a relevância do termo comunicação
na nossa área, ela é teórica. Mas em que sentido ela é teórica? Eu vou
fazer uma tese, uma dissertação, discutindo teoricamente a comunicação.
Então não preciso de uma autarquia federal, Correio Braziliense, Rede
Globo, não preciso de relações públicas, assessoria de comunicação ou de
imprensa. Não preciso de nada disso. Vou fazer um estudo teórico sobre a
comunicação enquanto uma categoria cujo status é filosófico.
Para compreender, no meu ponto de vista, esse problema epistemo-
lógico que é também metodológico, precisamos fazer o retrospecto his-
tórico. Por exemplo, você pode falar que vai trabalhar com as teorias da
comunicação, mas será que são teorias que estão na área da comunicação,
mas que são teorias sociológicas, políticas, da economia? Ou são teorias
onde o conceito de comunicação tem um significado analítico e inter-
pretativo? São pouquíssimos os trabalhos que eu conheço bem-sucedidos
nesse aspecto, porque as discussões que a teoria da comunicação favorece,
estimula, na nossa área são discussões puramente teóricas. Como tenho

110
interesse filosófico, eu gosto. Mas sempre digo aos meus alunos, se você
vai estudar o noticiário do Jornal do Brasil ou do jornal do SBT, não vá
com esse repertório, não tem nada a ver. Vai ficar uma desfiguração.

Juliana Ferreira: Professor, sua fala foi muito instigante. A primeira


questão que gostaria de colocar é a formação do Campo da Comuni-
cação e fazendo paralelo com outros campos também, porque eu vim
da Antropologia e a gente também teve uma dificuldade em se colocar
como ciência. Acho que a comunicação tem uma práxis, diferentemente
de outras que são mais academicistas, que dependem de uma teoria
forte. A comunicação tem uma práxis forte. Por conta dessas caracterís-
ticas da comunicação, não podemos pensar que ela seja, de repente, dos
primeiros campos por natureza multidisciplinar? Com uma tendência
diferente nessa configuração dos saberes? Se essa é uma característica
multidisciplinar do campo, a gente não pode agregar com mais proprie-
dade as outras linhas, como na filosofia tem a semiótica, como parte do
campo da comunicação mesmo?

Francisco Rüdiger: Então, voltaria aqui às páginas que considero


inesquecíveis do Nilson Lage. Vejam o que ele dizia em 1992: “A inter-
disciplinaridade, recurso último dessa aberração epistemológica chamada
ciência da comunicação, tem sido incapaz de dar frutos. O diálogo entre
especialistas, que entre si traduzem seus discursos e buscam resolver
cada qual o problema dos outros, funciona quando há objetos concretos,
demandas palpáveis, intenções definidas”. Mas não é esse caso que tem se
visto na comunicação. Então, quando se apresenta o discurso da inter-
disciplinaridade, esse discurso é sempre utópico, esperançoso e progra-
mático, que não chega a se concretizar em exemplos palpáveis que se
tornem modelos de pesquisa, de análise, de reflexão para outros.
Se pegarmos a literatura, e a literatura é o próprio testemunho
da área científica, produto da atividade científica, pelo menos na ótica
humanística, ela se apresenta nos relatórios, nas publicações. Então, se a
gente analisar as publicações, nós vamos ver que essa interdisciplinari-
dade não rende, não gera produto significativo, não gera obras exempla-
res, que são transmitidas e compartilhadas e, mais ainda, conservadas

111
por uma comunidade no sentido de dizer para os que estão chegando
“é assim que se começa a trabalhar”. Nós temos trabalhos sociológicos,
antropológicos, historiográficos, eventualmente no campo da economia
política, mas trabalhos da comunicação nesse sentido interdisciplinar
eu poderia citar um ou dois, que nem foram feitos por pessoas da comu-
nicação. Mas como o tema, o assunto, cai dentro dos interesses da área
de comunicação, nós poderíamos aproximar.
Então, há a tensão entre um discurso programático, que é sedutor e
encantador, é quase dionisíaco, porque parece uma coisa revolucionária,
e as realizações que são muito pouco palpáveis. Nós não temos exemplos
significativos a dar. Os grandes trabalhos são aqueles que têm uma disci-
plina dentro de uma linha de conhecimento, de um paradigma, de uma
abordagem que ganha força na medida em que evita um dos males que
vitima nossa área, no Brasil parece muito evidente, que é o ecletismo, é
usar um pouquinho das ideias de um papo de gente que não assimilamos,
o pensamento na globalidade, e que parece que no nosso terreno se jus-
tifica. Eu tenho uma atitude bastante precavida em relação a isso. Nada
contra se alguém me apresentar o exemplo. Eu vou julgar, mas até a prova
palpável, não adianta ficar dizendo o que se tem que fazer.

Eduardo Meditsch: Queria enfatizar que quando o Rüdiger está


falando de publicidade, eu até quando discuti a tradução do livro do
Otto Groth, apesar do livro usar o termo publicidade como uma das
características fundamentais do jornalismo, penso que seria melhor em
português, para expressar o que o Groth e o Rüdiger estão falando, que
usássemos o termo publicização para distinguir de publicidade. Porque
publicização não tem nada a ver com publicidade, como a gente usa a
palavra no senso comum no Brasil, e até do ponto de vista técnico den-
tro da comunicação no Brasil. Por isso, só fazendo essa observação para
termos sempre essa distinção, que acho muito importante.

Francisco Rüdiger: Vejo o seguinte: a palavra comunicação se inse-


riu no meio acadêmico deixando de lado, por exemplo, a engenharia.
Tem lá no curso de engenharia uma série de disciplinas que é enge-
nharia de comunicações. Falam sobre o cálculo de informação que põe

112
no sistema, mas não tem nada a ver com os livros que a gente estuda.
É porque na área das humanas, humanidades, num determinado
momento, lá nas origens, houve uma apropriação de esquemas concei-
tuais e temas teóricos da área de engenharia de sistemas, de engenharia
de comunicações, eletrônica, houve uma assimilação. Não que não
tenha havido também teorias da comunicação, que chamo das teorias
da comunicação das humanidades, que são importantes.
Muitos de vocês já estudaram na graduação o pensamento da
Escola de Chicago. A Escola de Chicago tem uma teoria da comunica-
ção, mas essa teoria de comunicação da Escola de Chicago e que merece
ser estudada nos cursos de comunicação, faz parte de uma ilustração
acadêmica para quem vai para a área de comunicação. Primeiro não é
originalmente da comunicação, porque quando surgiu nem havia ainda
área de comunicação. Isso é da parte da sociologia, antropologia e psi-
cologia social. Mas tudo bem, pode ser estudada também por quem está
na pós-graduação em comunicação.
O que vejo de problema é quando as pessoas perdem a noção dessas
trajetórias, desses limites, dessas circunstâncias e começam a misturar
isso com mais aquilo e mais alguma coisa. Então fica muitas vezes um
pastiche conceitual e essa ideia que foi difundida e que em nosso tempo
de faculdade ouvíamos muito, a interdisciplinaridade. É um negócio que
efetivamente fascina, porque parece ser uma coisa revolucionária, ino-
vadora, mas é um discurso vazio. Que não se concretiza no sentido da
produção de um conhecimento, não interfere na produção do conheci-
mento no plano da pesquisa. Ou seja, a pesquisa, no meu ponto de vista
e de análise, ela até fica prejudicada quando o estudante, o estudioso,
quer fazer um estudo interdisciplinar. Porque ele vai misturar no seu
trabalho de investigação um tópico de epistemologia que até hoje não
foi resolvido, pelo menos nas humanidades. Claro que a proximidade
da sociologia, da antropologia e da história é muito maior. Por exemplo,
eu não vejo inclusive diferença epistemológica fundamental entre essas
áreas, embora seja tema de discussão. Mas, no caso de uma interdisci-
plinaridade, que seria a da comunicação, isso aí eu não encontro, nunca
encontrei. Eu vejo discurso em favor de tal coisa e cito aqui de novo o
Nilson Lage: “A teoria falece quando especialistas de diferentes áreas

113
falam sobre seus saberes para plateias perplexas, à espera de alguém que
diga afinal o que é a comunicação”. E a gente sai de lá sabendo que é
interdisciplinar, mas isso não é conhecimento. É uma postulação abs-
trata, na pesquisa não vale nada, não fortifica em coisa nenhuma.

Jessica Fernandes: Como o senhor colocou, a comunicação como


campo acadêmico é muito recente. E a comunicação é um termo abs-
trato e amplo. Você acha que essa interdisciplinaridade é porque a
comunicação é um termo abstrato? É pela falta de teoria? Ou de repente
a necessidade de colocar todo mundo como comunicação é para tentar
fortalecer? Por que acontece isso?

Francisco Rüdiger: Eu vejo com grande curiosidade isso, embora


esse tema tenha inúmeros precedentes na história do pensamento oci-
dental. Para não ampliar muito a questão, até 1945, vamos arbitrar essa
data, comunicação era objeto de uma coisa da qual se tratava. Então,
comunicação era algo que estava diante de nós. Depois de 1945, isso é
uma invenção dos americanos, a comunicação saiu dessa posição, não
totalmente, de objeto, e ela se tornou sujeito, o nome de um estudo de
alguma coisa. Então, o que aconteceu, e o surpreendente é que aconte-
ceu num período de tempo muito curto, no máximo em 15 anos, surgiu
a expectativa, a crença, e aquele lá talvez tenha sido o momento mais
forte em que ela se manifestou. Pelo menos, tudo que veio depois se ori-
gina daquele momento e que teria surgido uma nova ciência, a comuni-
cação seria uma ciência. Essa ciência seria nova e revolucionária, por-
que interdisciplinar ainda por cima. Eu considero todo esse movimento
como a manifestação histórica de uma ideologia científica, de uma espé-
cie de mito acadêmico, que tem base em algumas circunstâncias.
A primeira delas é a expansão da indústria das comunicações.
Olhe bem a diferença, a indústria das comunicações e comunicação no
singular. Telefonia, telégrafo, rádio, sinais de televisão, depois as comu-
nicações entre computadores, entre seres humanos e computadores, os
satélites. Então, a indústria, o negócio das comunicações, que já vinha
progredindo de maneira notável desde o final do século IX, um dos
associados à Escola de Chicago, falou da evolução nas comunicações.

114
Para simplificar, ele dizia menos assim: as comunicações eram por
meio de estradas e de navios a vapor. Agora a comunicação está sendo
também possível pelo telégrafo, pelo telefone e rádio. Logo, vem a tele-
visão e assim por diante, mas tudo isso não são fenômenos científicos
no sentido das humanidades. São fenômenos científicos que, inclusive,
em grande parte, como eles tiveram esse epicentro nos Estados Uni-
dos, foram tocados por grandes empresas da indústria elétrica e ele-
trônica. As grandes fabricantes de material elétrico que organizaram,
foram criadas para vender o aparelho de rádio. Também as primeiras
emissoras seguiam o projeto, modelos e franquias das grandes fabri-
cantes de material elétrico. Então, comunicação era algo que consti-
tuía um negócio, uma indústria, uma atividade humana, sofisticada,
mas uma indústria.
Durante a Segunda Guerra Mundial, entre os americanos, que de
certa forma assumiram a bandeira, a causa da democracia, durante a
guerra se tornou muito constrangedor para os americanos e para seus
aliados, principalmente os ingleses, usar a palavra propaganda, porque
tinha se tornado, sobretudo nos anos 20 e 30, uma palavra estigmati-
zada e mais: uma palavra que havia sido apropriada pelos regimes tota-
litários. Na União Soviética, Alemanha Nazista, Itália Fascista, havia os
ministérios da propaganda e esses regimes eram regimes totalitários.
Então, nas democracias, notadamente no caso da Inglaterra e dos Esta-
dos Unidos, o uso da palavra propaganda gerou até comissões parla-
mentares no congresso norte-americano para investigar questões liga-
das à propaganda totalitária num regime democrático. Então esse tema,
esse tópico, esse termo propaganda, se tornou um termo estigmatizado,
negativo, que nas democracias constrangia o uso.
Acontece que quando estourou a guerra mundial e mesmo nos
seus momentos anteriores, ali na década de 30, quando cresciam aque-
las tensões entre fascismo e comunismo, já nessa época, as democracias
tinham que ter sua política nessa área, tinham que intervir na disputa
pela opinião, pela conscientização, pela conquista das mentes, da sim-
patia, das influências. Só que o termo propaganda nos regimes demo-
cráticos estava queimado. Era um termo que não confluía com as expec-
tativas, considerando que esse termo tinha sido apropriado e explorado

115
de uma maneira que, do ponto de vista do outro, era condenável pelos
regimes autoritários.
Então, quando os americanos começaram a se envolver com a
guerra, abriram mão do termo propaganda e passaram a falar em
comunicação. Tem livros que documentam muito bem esse período: a
comunicação é democrática e a propaganda é autoritária, e totalitária; a
comunicação é positiva, é algo salutar, todo mundo deve se comunicar.
Fazer propaganda, no sentido que tinha o termo na época de 30 e 40,
não considerando nosso cenário atual, mas o da época, tinha uma cono-
tação no mínimo discutível.
Aqui no Brasil, nós tivemos durante a ditadura varguista, o Estado
Novo de 1937 a 1945, o Departamento de Imprensa e Propaganda.
Vargas e as pessoas que o auxiliavam constituíram esse departamento
tomando como modelo o Departamento de Imprensa e Propaganda da
ditadura de Salazar em Portugal, que por sua vez havia tomado como
modelo os Ministérios da Propaganda de Mussolini e de Hitler. Claro
que aqui no Brasil, onde as tradições democráticas eram na época prati-
camente inexistentes, eram puramente retóricas, o país era oligárquico,
acho que é até hoje, imagina naquela época. Então, o país era oligárquico
e tinha aderido a um modelo de estado ultramoderno e o fascismo e o
nazismo foram para a época modernidades importantes. Eles represen-
taram modelos de modernização da política e da sociedade que Vargas
incorporou em diversos aspectos. Um desses aspectos foi justamente no
âmbito da propaganda, de lançar mão das técnicas, dos bens, dos pro-
cessos de propaganda. Curiosamente, no Brasil não havia naquela época
por parte da maioria dos intelectuais, não vou nem falar da população
em geral, não havia uma denúncia ou hostilidade ao termo propaganda.
Isso em parte surgiu entre alguns setores depois da ditadura varguista.
Essa associação da propaganda com a ditadura.
Mas, nos Estados Unidos, isso aí foi imediatamente rejeitado. Logo
que terminou a Primeira Guerra Mundial, o conceito de propaganda na
sociedade liberal norte-americana, a propaganda conduzida pelo Estado,
foi condenada veementemente. Então, retomando e fechando o racio-
cínio, os intelectuais americanos, o grupo que assessorava o governo
Roosevelt, abriu mão. Claro que essa abertura é uma abertura retórica.

116
De fato, o que eles estavam fazendo era propaganda, mas não caía bem
dizer, não era aceitável moralmente dizer, que se fazia propaganda. Então
se falava em informação de guerra e comunicação democrática.
E o Wilbur Schramm embarcou nessa canoa e transformou aquilo
que era objeto no nome de uma ciência. Esse fenômeno, como eu dizia,
é curiosíssimo pela sua rapidez e por ter ocorrido em todo mundo. Mas,
notem bem do ponto de vista da história do pensamento, em que nós
dizemos hoje que a física é uma ciência, mas dentre os gregos a physis
não era uma ciência, era o nome do mundo. Quem estudava a physis
na antiga Grécia, na Grécia da filosofia, era a metaphysis. A metafísica
estudava a física. Na modernidade, na era da ciência, a metafísica caiu
em descrédito, e se falava em ciência. Mas aí o termo grego acabou se
perdendo na trajetória e a física passou a ser o nome da ciência, mas
isso tem a ver justamente com essas mudanças históricas e sociais, na
maneira como os conceitos são trabalhados.
Quando o assunto é visto no passado ele não gera complicações
para os contemporâneos. Mas quando o assunto é contemporâneo,
como é o caso da comunicação, isso acarreta prejuízo. Como foi a pri-
meira pergunta da estudante que se manifestou, o trabalho dela não é
sobre comunicação, é um trabalho sobre a maneira como uma autarquia
federal gere a sua publicidade. Porque não é a comunicação mesma que
está em jogo, mas a ação de uma entidade pública, que podia ser um
partido político, uma empresa jornalística, junto ao público. O emprego
do termo publicidade, esfera pública ou publicística acho muito mais
adequado do que o termo comunicação.

Jean Campos: Professor, considerando o que o senhor fala sobre


essa questão da historicidade semântica, que o tempo de algum modo vai
alterando o sentido das palavras, a interpretação, entendi que a comu-
nicação por muito tempo foi mais uma questão administrativa e buro-
crática e que há pouco tempo a comunicação conquista e se consolida
como um campo teórico. Considerando essas premissas, coloco uma
questão prática que eu venho investigando, que é o caso das fake news.
Encontrei nas principais decisões do Judiciário brasileiro alguns erros
em relação ao conceito de comunicação, como meio, mídia, veículo

117
de comunicação. Na CPI das fake news, fiquei agoniado de ver pessoas
trazendo diversas interpretações dos conceitos de comunicação e como
isso vem gerando distorções. Na TV existe uma regulamentação que é o
direito de resposta, nas redes sociais não existe para alguém que sofreu
um dano moral. O senhor vislumbra alguma saída, o campo da comu-
nicação ajudando o do direito, partindo desse recorte da conceituação
dos nossos termos?

Francisco Rüdiger: Essa ideia de que uma área pode ajudar a outra
eu acho fantasiosa, porque o que pode haver é ajuda entre as pessoas. As
pessoas podem se ajudar, as áreas não têm como ajudar umas às outras. E
estamos falando de áreas que têm, no caso do direito, os seus rituais, as suas
doutrinas, os seus princípios, as suas ambições intelectuais, que são enor-
mes no meu ponto de vista. Os integrantes do Supremo se julgam hábeis
em falar da história universal, da estrutura das sociedades, dos regimes de
família. Eu sei que eles têm assessores, apoio de profissionais, mas em geral
esse apoio é de pessoas do meio jurídico. E o meio jurídico, você sabe, espe-
cialmente no Brasil, ele é devedor da tradição bacharelesca, aquela que na
origem fazia o profissional do direito uma encarnação do humanista, fazia
do jurista um humanista, um defensor dos valores humanistas.
Cito o livro do Sérgio Adorno, Os Aprendizes do Poder, sobre a for-
mação da classe jurídica no Brasil, em que ele mostra muito bem que
os juristas brasileiros no século XIX não estavam tão preocupados com
o direito positivo, com a execução da justiça, estavam preocupados era
com a ordem política, com os destinos da coletividade, e as tarefas pro-
priamente do judiciário eram secundárias, até porque não tinha povo
naquela época. Então, os grandes programas jurídicos não aconteciam
na vara de família ou criminal, aquilo era despachado de maneira sumá-
ria. Isso começa a mudar a partir de 1930, quando o povo faz a sua apa-
rição e emerge como sujeito histórico na vida nacional.
Então, a realidade nacional começa a se modificar a partir de 1930
e o Judiciário é cada vez mais chamado a tratar de questões cotidianas,
institucionais, questões relativas às empresas, aos negócios, às famílias,
aos crimes, de uma maneira que não é mais compatível com aqueles
critérios oligárquicos do século XIX da República Velha. Mas acontece

118
que a consciência e a formação bacharelesca não desaparecem de uma
hora pra outra. E a maior prova disso, e sempre me causa uma pequena
irritação, quando vou ler os acórdãos, é só ver uma decisão do Judiciário
sobre uma pendenga entre os usuários dos serviços telefônicos com a
empresa. Então, uma questão completamente banal é merecedora de
acórdãos e sentenças com base em Guimarães Rosa, em Habermas, mas
isso é uma coisa horrorosa. E isso se manifesta, por incrível que pareça,
também no Supremo Tribunal Federal, é o Lewandowski tentando dar
aula para o Brasil do nazifascismo; é o Barroso falando que conhece
os rumos da história, da história universal e que está do lado certo da
história. Mas talvez nem Deus seja capaz de saber qual é o lado certo da
história, mas o ministro sabe e diz que está do lado certo.
Então, essa tradição bacharelesca do humanismo pretensioso ainda
está fortíssima no nosso direito e a gente muitas vezes detecta, como
você falou, questões que poderiam ser resolvidas com base nos disposi-
tivos legais mais conhecidos, mas fazem apelo à sociologia, à economia,
à comunicação, à mídia, a conceitos da antropologia, quando não há
necessidade disso para resolver o assunto. Dado que a força do esta-
mento jurídico no Brasil é fazer parte da classe dominante – em que
o estamento jurídico é um dos seus eixos estruturantes –, ninguém se
meta com o estamento jurídico, que vai sair chamuscado, se não for
condenado pelo resto da vida.
Então, a ideia de que a comunicação pode ajudar o direito me
parece fantasiosa. Em relação a tua questão, é que as redes sociais ense-
jam processos que a gente chama de comunicação, mas de publicidade,
que são diferentes das que aparecem na emissora de televisão. Nesse
caso, é muito mais fácil de resolver o problema, é calúnia, injúria e difa-
mação nesses processos. Agora, por exemplo, alguém pediu direito de
resposta no canal do Felipe Neto, é um negócio nada a ver, o canal é
dele. Ali ele faz o que ele bem entende. Claro que como ele está interfe-
rindo na esfera pública, na publicidade, se ofender alguém com calúnia
e difamação claro que a pessoa pode entrar com um processo.
Eu sempre digo que no meio acadêmico das humanidades, desde
algum tempo, há uma tendência a complicar assuntos que são simples. A
gente quer embananar o assunto de uma maneira que não é necessária,

119
quer tirar leite de pedra muitas vezes, e uma das razões para tanto é um
fascínio pelas teorias, pelas conceituações que podem ter até a sua qua-
lidade no âmbito, por exemplo, da filosofia, mas quando são aplicadas à
compreensão de fatos cotidianos, realidades imediatas, mistificam em vez
de fazer aquilo que penso que é papel das humanidades, que é esclarecer,
iluminar os mistérios, as complicações dos assuntos. Essa seria a minha
filosofia da ciência. A ciência, ao contrário do que muitos às vezes dizem,
não veio para complicar o real, veio para esclarecer as confusões que o
real, que o processo social, a vida humana, geram. Nem sempre isso é
possível. Tem determinados assuntos que exigem um tipo de esforço inte-
lectual sofisticado, mas não são os casos típicos.

Eduardo Meditsch: O Nilson Lage, no trecho que você citou algu-


mas vezes, faz uma exceção da utilidade de uma perspectiva interdisci-
plinar que seria a de ciência aplicada. Ou seja, que aí poderiam sentar
vários especialistas em torno de um problema, como vemos atualmente
em relação à pandemia, e tentar cada um, a partir da sua perspectiva,
trazer a solução para aquele problema prático. Pergunto como você vê
essa questão dentro da nossa área de comunicação em relação a ques-
tões que superam ela.

Francisco Rüdiger: O termo ciência aplicada, recentemente eu


estava lendo a respeito, é algo pouco teorizado. O que é ciência aplicada?
Por exemplo, ciência aplicada seria a arquitetura. A arquitetura aplica a
matemática e a estética ao desenho de obras, de construções de edifí-
cios, de parques etc., mas na arquitetura nós teríamos ainda toda uma
parte da pesquisa, da criação de novas obras. Não é simplesmente a apli-
cação, é a pesquisa. Então, tem duas maneiras de entender as ciências
aplicadas: tem uma maneira modesta, que é a profissional, em que vão
entrar as questões do jornalismo, do dia a dia. Então, o sujeito traba-
lhar num escritório de arquitetura e trabalhar no escritório da redação,
em um caso é fazer a notícia e no outro é fazer a casa. Mas, eu posso
ter um arquiteto que não está simplesmente interessado em construir
a casa conforme a empresa pediu, mas ele quer criar um novo design,
uma nova concepção de moradia. Nesse caso, ele está desenvolvendo

120
um projeto, fazendo uma coisa diferente. Eu acho que essa dimensão
também está ao alcance do jornalismo, mas ela não vai se colocar ao
alcance do jornalismo da mesma forma que ela pode se colocar para
o arquiteto, porque aí estaremos no domínio da experimentação. E a
experimentação no mundo do trabalho jornalístico é muito limitada,
porque tem as pressões do negócio, tem as urgências do dia a dia, as
circunstâncias do mercado de trabalho, do exercício da profissão.
No mundo do trabalho, a dimensão experimental que eu vejo no
jornalismo não tem condições de prosperar e acho que seria difícil dar
grandes exemplos de onde ela tem prosperado dessa forma. Agora,
na universidade nós teríamos, no meu ponto de vista, um local espe-
cialmente vocacionado para esse desenvolvimento. Eu não vejo como
exclusão do puro treinamento profissional, tenho uma visão agregadora
ao invés de excludente. Tem lugar para todas as possibilidades conforme
as pessoas que estão lá. Se há pessoas com esse interesse tanto em desen-
volver quanto de assimilar a experimentação jornalística essa possibi-
lidade deveria ser incentivada nos meios acadêmicos. Não adianta só
ensinar a pessoa a fazer notícia como ela era feita há mais de 100 anos,
vamos ver outra forma de elaborar informação experimentalmente.
Então, inclusive, a procura de outras áreas, de outros pontos de vista.
Trazer o arquiteto pra dentro da faculdade, mas não para o jornalismo
aprender arquitetura, mas para o arquiteto interferir na pesquisa experi-
mental do jornalismo. Trazer para a faculdade o advogado, juiz, profes-
sor da área de direito, para desenvolver alguma coisa na informação que
agregue diretamente na prática, no viés do jornalismo.
E aí sim eu vejo, em relação ao jornalismo, em tese, possibilidades
atraentes para interdisciplinaridades e aquilo que chamamos de ciência
aplicada. Porque no dia a dia, nas redações, nas empresas, o jornalismo
não tem nada que ver com ciência aplicada, é uma atividade profissional
com gente mais ou menos talentosa, que cria, ou dá uma gambiarra para
fazer uma reportagem diferente, mas não é científico. É na base da impro-
visação, das circunstâncias que o próprio sujeito domina muito pouco,
então ele não tem controle de experimento. Pelo contrário, ele mostra sua
bravura e sua coragem. E, para isso, evidentemente a contribuição que
tenha adquirido na universidade pode ser um elemento de diferenciação.

121
CAPÍTULO 5

Ensino de teoria, dilemas curriculares


e a experiência universitária
que vai além das aulas1

Fábio Henrique Pereira2

A ideia é falar um pouquinho da minha experiência e, sobretudo,


da forma como eu organizo as aulas de Teorias do Jornalismo. E tam-
bém falar sobre alguns trabalhos que os alunos têm desenvolvido para
vocês observarem a dinâmica da disciplina.
Para começar, algumas considerações. Embora a disciplina seja
de Teoria do Jornalismo, eu me considero muito mais um pesquisador
do que um teórico. Vocês conhecem aquela série The Big Bang Theory?
Uma das coisas que eu acho bem interessante na série é a relação que o
Sheldon tem com o Leonard, porque o Sheldon é um físico teórico, e o
Leonard é um físico experimental. E boa parte do desprezo que o Shel-
don tem em relação ao Leonard, é porque enquanto o Sheldon fica ali
elucubrando, descobrindo em meio a um pensamento abstrato os mis-
térios do universo, o Leonard é o cara que vai para o laboratório testar
as teorias e fazer um trabalho manual e mais chato, menos interessante.
Eu acho que é interessante, porque na verdade, provavelmente, essa
relação reflete as relações entre teóricos e pesquisadores experimentais

1 Palestra ministrada em 29 de abril de 2021, via Google Meet, transcrita e editada para com-
por esta publicação.
2 Professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. É doutor
em Comunicação pela UnB com estágio (doutorado-sanduíche) na Université de Rennes 1
(França). Em 2016, realizou estágio de pós-doutoramento na Université Libre de Bruxelles
(ULB, Bélgica). De janeiro a março de 2012, atuou como pesquisador-visitante no Centre
d‘Études sur le Brésil da Université de Québec à Montréal (UQAM, Canadá). Ocupou em
março-abril de 2013 a Chaire des Amériques da Université de Rennes 2 (França). Foi profes-
sor visitante do Departamento de Ciência Política da UQAM, de janeiro a abril de 2014. Em
janeiro de 2019, atuou como professor visitante no CELSA, Sorbonne Université (França).

122
da Física, e provavelmente existe um laço muito parecido no campo de
Comunicação, ou seja: uma disputa entre as pessoas que vão descobrir
fundamentos da comunicação e essas grandes abstrações; e as pessoas
que têm uma vocação, e/ou um interesse maior de fazer pesquisa empí-
rica, ir a campo. E o fato de estarmos falando do Jornalismo complica
ainda mais essa relação.
Ouvimos muito nas associações e também no próprio Programa de
Pós-Graduação em Comunicação, esse tipo de tensão entre as pessoas
que acham que a verdadeira pesquisa está na grande reflexão teórica
abstrata, que vai descobrir os fundamentos e aquelas que gostam de ir a
campo. Então, nessa história toda eu sou o Leonard, não o Sheldon. Eu
sou o cara que faz pesquisa de campo, que elabora os trabalhos a partir
de uma pesquisa empírica, e isso marca muito o que faço. Eu abro uma
exceção em pesquisa teórica, que é um trabalho que desenvolvo com
um colega francês com o objetivo de elaborar uma teoria sobre as trans-
formações dos mundos do jornalismo. Mas, é algo muito amparado, de
fato, a pesquisa de campo também. Reunimos evidências com base no
trabalho de campo que vão nos permitir, em algum momento – já tem
uns três anos que estamos escrevendo esse artigo –, elaborar alguma
coisa de escopo teórico.
Eu entrei na disciplina de Teoria de Jornalismo, após a reforma do
currículo, já com base nas novas diretrizes. Não sei quem dava essa dis-
ciplina antes, provavelmente algum professor que se aposentou logo em
seguida. A partir daí, quem assumiu Teorias do Jornalismo foi algum
professor substituto e o negócio não funcionou. Em uma reunião de
departamento em que se coloca esse problema “olha, não está dando
certo, eu preciso de alguém daqui”, eu falei “olha, pra esse semestre, eu
resolvo”. Então eu entro interinamente, e eles nunca mais me tiraram.
De qualquer forma, eu me interesso pelo tema e sou um grande defen-
sor de uma formação que tenha uma base teórica, eu não cheguei neste
espaço com esse escopo.
A segunda coisa decorrente dessa minha percepção das teorias é de
que elas precisam de alguma forma permitir que os estudantes compre-
endam a prática deles. Permitir que eles, de alguma forma, utilizem isso.
Sobretudo os que já fazem estágio, é importante que eles se vejam nessas

123
teorias, ou que isso os ajude a entender o que eles estão fazendo. Isso vai
ter uma relação importante na escolha das teorias que vou discutir, e no
tipo de trabalho que faço ao organizar o programa da disciplina. Basi-
camente o que eu peço é um trabalho de análise de práticas e situações
concretas do Jornalismo, partindo de uma reflexão teórica.
O terceiro ponto é algo que eu tenho feito, que venho refletindo
muito desde 2017 e 2018, que é a ideia de que a gente tem que trans-
formar essa disciplina em um espaço de diálogo com a sociedade. Ou
seja, se as teorias do Jornalismo servem para que os estudantes compre-
endam suas práticas e essas práticas atravessam a sociedade, nós temos
que pensar formas de restituição desse conhecimento à sociedade.
Então têm três pontos que marcam muito a disciplina. Peço aos
alunos que façam vídeos de difusão da teoria para um público mais
amplo. Em seguida, convido sempre um técnico da UnBTV para a ava-
liação dos vídeos, organizamos um júri técnico e outro científico, para
avaliar se do ponto de vista de um telespectador da UnBTV esse vídeo
seria eficaz ou não.
Outro trabalho, que começamos há pouco tempo, é o projeto de um
observatório de educação para a mídia3, que desenvolvemos em parceria
com colegas canadenses, no qual oferecemos uma oficina de análise de
mídias, e, em seguida, realizamos um exercício para que os alunos pos-
sam aplicar isso na análise de um tema específico. Esse observatório tem
uma outra vertente, que é um projeto de sensibilização de professores do
ensino médio, para que chegue nas escolas do Distrito Federal.
O terceiro ponto é pensar com eles também a ideia de que a pes-
quisa pode ser uma carreira possível no Jornalismo. Eu trabalho com
carreiras e a gente tem uma ideia clara do mercado de trabalho de Jor-
nalismo, e a aula em que discuto com eles a sociologia profissional do
grupo é muito delicada, porque você mostra os dados das pesquisas e
você diz “olha, o mercado acabou. O mercado que vocês imaginavam
quando entraram no curso: ‘Vou trabalhar como jornalista na Globo,
ou na Folha de S. Paulo’; isso não existe mais, não se contrata mais”.
Então, boa parte da discussão passa também por questões ligadas,

3 Observatório Internacional Estudantil da Informação. Disponível em: http://www.observin-


fo.unb.br/.

124
por exemplo, ao empreendedorismo e à economia do Jornalismo. Mas
também buscamos mostrar que ter uma boa formação teórica abre outra
carreira, que é a carreira da pesquisa, e que tem que começar a pensar
que tornar-se um pesquisador, um professor universitário, é um projeto
de carreira tão legítimo quanto o de trabalhar na Folha.
A Faculdade tem que dar uma formação que permita essa multi-
plicidade de carreiras. No livro As diferentes maneiras de ser jornalista:
um estudo sobre as carreiras profissionais no jornalismo brasileiro (2021)4
discutimos sobre isso, porque na verdade a carreira jornalística é muito
mais heterogênea do que a gente imagina. Entra a pessoa que é profes-
sor, que é assessor de imprensa, que trabalha na televisão, que é produ-
tor de TV, que faz edição, a formação tem que ser pensada com base
nessa multiplicidade de carreiras. Às vezes perdemos um pouco esse
foco, porque o imaginário do jornalista basicamente é construído em
torno da figura do repórter. Precisamos desconstruir esse imaginário
profissional ao falar de carreira profissional. O ser jornalista é muito
mais amplo do que isso5.
O quarto ponto é baseado em duas percepções. Primeiro, tenho
uma visão muito sociológica da ciência. Não entro no debate, que às
vezes vemos na área, se existem teorias do Jornalismo, se o Jornalismo
é ou não parte da Comunicação, ou se a Comunicação é parte da Socio-
logia. Eu não sou um epistemólogo para discutir isso, mas tenho uma
ideia de como se constituiu o campo de estudo do Jornalismo no Brasil,
da dimensão desse campo, da quantidade de pesquisadores que estão
envolvidos no estudo desse objeto, o que legitima termos uma disciplina
de Teoria do Jornalismo.
E o último ponto é sobre a visão bastante construtivista que tenho
do Jornalismo. Meu curso traz uma visão construtivista das teorias do
jornalismo. Isso é uma opção, é uma escolha. Eu poderia estruturar de
outra forma, mas essa é a forma como vejo o Jornalismo. Lembro que
estávamos discutindo em uma aula o conceito de “acontecimento”, com
4 Disponível em: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/82.
5 LE CAM, Florence; PEREIRA, Fábio Henrique; RUELLAN, Denis. Introdução: Mudanças
e permanências do Jornalismo. In: MOURA, Dione Oliveira; PEREIRA, Fábio Henrique;
ADGHIRNI, Zélia Leal (Org.). Mudanças e permanências do Jornalismo. Florianópolis: Insu-
lar, 2015, p. 11-23.

125
um texto da Vera França, e um aluno falou algo como: “ah, então quer
dizer, na verdade, que todo acontecimento é uma construção midiática”.
Eu respondi algo como: “Olha, se você sair daqui sabendo o que você
acabou de falar, eu fico feliz, assim”. Eu sei que eles podem perder esse
conhecimento no dia a dia da socialização na profissão, mas ter uma
ideia clara do que é o Jornalismo enquanto construção social da rea-
lidade, para mim é importante. Então, é a partir destes pontos que eu
parto para elaborar o curso.
Sobre o plano da disciplina de Teorias do Jornalismo: na nossa
ementa temos pontos como: fundamentos epistemológicos; noções de
fato, acontecimentos, notícia e informação; valores-notícia, verdades,
verossimilhança, mudança e permanência; produção jornalística e iden-
tidade profissional; fundamentos do Jornalismo e relações com o público.
Entre os objetivos, temos, primeiro, a ideia da discussão da relação
entre Jornalismo e sociedade. Essa ementa foi feita quando nós ainda
tínhamos uma linha de pesquisa na pós-graduação de Jornalismo e
sociedade. E essa relação é importante para situarmos o nosso objeto.
Então, na primeira aula começo deixando três afirmações: 1) “O jorna-
lismo nunca vai acabar”; 2) “O jornalismo é feito apenas por jornalis-
tas”; 3) “O jornalista é aquele que produz informações”. E também situar
os estudos do Jornalismo no campo das Ciências Sociais, apresentar e
discutir as teorias de Jornalismo e analisar as aplicações dessas teorias.
Nesse sentido, tem três estudos de caso que peço para eles fazerem. E
todos os três, na verdade, passam por essa ideia de como podemos usar
uma teoria para entender uma situação mais ou menos concreta na prá-
tica jornalística.
O primeiro, por exemplo, é sobre economia do Jornalismo, modelo
de negócios. Apresento oito situações de empresas, de organizações jor-
nalísticas fictícias, que têm situação de perda de leitor, querem expan-
dir o modelo de negócio, uma rádio comunitária querendo aumentar o
público, e peço para eles me darem uma solução, por exemplo, em texto.
O segundo é sobre o valor-notícia e gatekeeper. Apresento várias notí-
cias de um dia, e peço para eles escolherem oito para irem para a capa
de um jornal, para a home do site, e justificarem porque escolheram as
oito. E a terceira é entrevistar um jornalista sobre a carreira. Além disso,

126
um trabalho ligado ao Observatório e um trabalho final, que é um pro-
duto individual sobre a discussão de umas das teorias do Jornalismo
para um público leigo.
Na bibliografia eu coloco, temos dossiês da Brazilian Journalism
Research (BJR) sobre teorias do Jornalismo e sobre a pesquisa do Jorna-
lismo no mundo. Dois livros que editamos sobre teorias do Jornalismo
com a Editora Insular6 na Série Jornalismo e Sociedade, e um livro que
é meio canônico, clássico, que é o Jornalismo: questões, teorias e estórias,
organizado pelo Nelson Traquina7.
Na primeira aula, fazemos a apresentação do plano e a discussão
da dinâmica do curso, e na seguinte, faço uma primeira leitura de socio-
logia da mídia e do Jornalismo, na qual apresento o conceito de campo
jornalístico, de multisocial do Jornalismo, e depois a ideia do trabalho
do Lippmann sobre a natureza da notícia8, que na verdade é um traba-
lho – imagino que vocês já tenham lido – que é precursor nessa ideia
de que o Jornalismo é uma construção, em que, na verdade, ele antecipa
várias ideias do construtivismo nas Ciências Sociais. Depois, entro na
discussão de mudanças e permanências do Jornalismo, tentando mos-
trar que várias coisas que eles acham que começaram com a Internet –
pois eles acham que tudo começou com a Internet – são práticas muito
mais antigas, tentando mostrar os mecanismos de mudança e perma-
nência do Jornalismo. Depois uma aula de economia do Jornalismo, que
é extremamente difícil de achar textos que trabalham com isso; seguida
de uma aula sobre crise estrutural do Jornalismo, a discussão da crise
do modelo de negócios. Na sequência, uma aula sobre Jornalismo como
profissão, trabalho a sociologia profissional do Jornalismo.
Depois, começamos a entrar nas teorias que chamamos de teo-
rias das notícias, ou teorias do Newsmaking, que são as mais canôni-
cas, como Gatekeeping, valor-notícia; e, em seguida, rotinas produtivas

6 MOURA, Dione Oliveira; PEREIRA, Fábio Henrique; ADGHIRNI, Zélia Leal (Orgs.). Mu-
danças e permanências no jornalismo. Florianópolis: Insular, 2015, e MOURA, Dione Oli-
veira; PEREIRA, Fábio Henrique; ADGHIRNI, Zélia Leal (Orgs.). Jornalismo e Sociedade.
Teorias e Metodologias. Florianópolis: Insular, 2012.
7 TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1993.
8 LIPPMANN, Walter. A Natureza da Notícia. In: Opinião Pública. Petrópolis: Vozes, 2008,
p. 289-303.

127
e relações com as fontes, e, na aula de relações com as fontes, trago uma
fonte de informação e peço para que a fonte fale para eles como que é o
Jornalismo do ponto de vista da fonte, ou seja, inverto a ideia. Por exem-
plo, já trouxe os deputados distritais Fábio Felix e Reginaldo Veras, e nós
fizemos uma conversa com eles. Um bate-papo com as fontes de infor-
mação. Então, a ideia é mostrar para os alunos que, do mesmo jeito que
o jornalista tem uma forma de lidar com uma fonte, tem interesses, tem
estratégias, as fontes têm estratégias, formas e interesses na relação com
o jornalista. Todo trabalho que a gente chama de sociologia das fontes,
que vem de um texto que o Philip Schlesinger publicou em 19919, é de
mostrar que a metáfora das fontes é uma metáfora muito ruim, porque
dá a impressão de que a fonte está ali para ser buscada pelo jornalista.
Na verdade, o autor vai mostrando que a fonte tem a própria lógica de
funcionamento de atuar no Jornalismo, e que teríamos que entender, na
verdade, essas formas de atuação. E não essa ideia de que a fonte jorra,
mas, mostrar que a fonte também atua estrategicamente na mídia.
Na sequência, eu saio um pouco das teorias e faço uma discus-
são um pouco mais contemporânea para falar de fake news, para, em
seguida, discutir o conceito de acontecimento, com o texto da Vera
França que é muito didático nesse sentido10, e o exercício da oficina de
análise crítica da mídia. Também faço uma aula de sociologia dos públi-
cos, que é uma temática bem interessante de discutir, porque na verdade
existem muitos estudos sobre públicos no Jornalismo que começaram
a ser produzidos, sobretudo, a partir da primeira década deste século,
entre 2005, 2010, 2015, publicou-se muita coisa sobre público. No
entanto, o conceito de público é extremamente complicado de definir
e, de modo geral, temos uma dificuldade muito grande de entender e
de operacionalizar um estudo sobre públicos. Foi um ponto que dis-
cuti também para quem participou da aula de Seminário de Pesquisa
na pós-graduação, sobre o protocolo metodológico para poder inves-
tigar um público é extremamente complicado, sobretudo, se quisermos

9 SCHLESINGER, Philip. Media, State and Nation: Political Violence and Collective Identities.
London: Sage, 1991.
10 FRANÇA, Vera. O acontecimento e a mídia. Galáxia, 24, p. 10-21, 2-12. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/12939.

128
entender o público como algo além do que aquela pessoa que responde
uma survey, um questionário.
Na sequência, uma discussão mais geral sobre como é o contexto
de estudo do Jornalismo no Brasil, apresento alguns trabalhos sobre
quais as temáticas que as pesquisas em Jornalismo do Brasil abordam,
então têm alguns trabalhos de bibliometria da produção do Jornalismo
no país que já foram publicados. Enfim, sobre o que está sendo tratado
na nossa pesquisa em Jornalismo para que eles tenham uma ideia.
Já, essa leitura de estudos comparados, foram eles que pediram.
Perguntei se eles queriam que acrescentasse alguma coisa, para saber
como é que as pessoas no resto do mundo estudam Jornalismo. Então, a
ideia seria discutir um pouco com eles como é que são outras tradições
de estudos do Jornalismo. E, por fim, as apresentações dos trabalhos
finais, que são os vídeos que eles fizeram.
Tem alguns trabalhos em que eles fazem animação, outros uma
coisa um pouco mais interativa, mas a ideia é justamente tentar ver a
capacidade da pessoa de compreensão do conteúdo e de exemplificação
numa linguagem simples. Estamos tentando há algum tempo viabilizar
isso na própria UnB TV, para que eles comecem a veicular na programa-
ção deles. Só que às vezes é uma interlocução um pouco complicada por
questões técnicas, precisa de um formato, de uma qualidade, e que nem
sempre a gente consegue fazer. Mas é isso, minha apresentação era essa,
e fico à disposição para conversar.

Debate

Eduardo Meditsch: Acredito que a teoria não é útil só para quem


vai para área acadêmica, ainda mais nesse contexto em que as pessoas
vão ter que se virar fora desse mercado que antes existia. Aprender a
fazer projetos, justificá-los, é fundamental, e a teoria dá uma base
importante para isso.

Fábio Pereira: Sim, falo muito disso na disciplina de metodologia,


que é a mais difícil de sensibilizar os alunos, porque para eles parece

129
mais abstrata ainda. Eu falo: “sei que vocês não querem fazer pesquisa”.
Alunos de Publicidade e Audiovisual podem até ter uma rejeição maior.
Mas sempre argumento com eles que em algum momento terão que
fazer algum projeto ou uma pesquisa de avaliação de imagem de uma
organização, um projeto de consultoria, e que precisarão ter alguma
noção de metodologia.

Juliana Ferreira: A pergunta está relacionada ao Observató-


rio que o professor comentou e também em relação às atividades de
extensão. A gente vê que tem muito trabalho com o pessoal da UnB
TV, mas não teria como fazer também um projeto, não sei se já existe,
a revista Campus, por exemplo. Não teria como fazer um projeto de
extensão com a revista?

Fábio Pereira: O Observatório está com um projeto de exten-


são. Em algum momento, na disciplina de Introdução à Comunicação,
nós fazíamos apresentações para escolas públicas, e pedíamos para os
estudantes irem às escolas públicas do Distrito Federal e apresenta-
rem teorias da comunicação para os alunos. Particularmente, acho tão
complicado preencher o formulário de extensão. Porque são longos e
burocráticos. No caso do Observatório, porque era alguma coisa que
começou a ganhar escopo, tinha uma parceria internacional, começou
a ter financiamento canadense envolvido, então começamos a nos orga-
nizar melhor. Mas sim, acho que é importante a ideia de, de repente,
fazer algum tipo de discussão com a revista Campus Repórter, imagi-
nando alguma produção derivada, que pode ser algo legal, e acho que
eles podem se interessar. Mas sim, acho que o espírito é esse mesmo,
que essas coisas não fiquem só na disciplina e que reverberem na car-
reira, mas também na forma como eles vão se ver, ou seja, na própria
experiência universitária, na verdade.
Fiz algumas pesquisas sobre socialização na universidade, nas quais
a gente se dá conta de que a pergunta que as pessoas se colocam em
relação à validade do ensino de Jornalismo – “Ah, o Jornalismo forma
ou não para o mercado de trabalho?” – é completamente equivocada,
porque elas partem do princípio de que a única função da universidade

130
é essa. E nas entrevistas em profundidade, você se dá conta de que a
vivência universitária é muito mais rica e tem muito mais dimensões
envolvidas em relação a construção de identidade política, construção
de identidade de gênero, formação de redes, formação de redes de con-
tatos e de amigos. Tem tanta coisa envolvida na formação universitária,
que temos que começar a pensar que nossas possibilidades enquanto
professores têm que ir além. Por isso, a ideia de pensar projetos parale-
los associados à disciplina.
Por exemplo, quando você pergunta para um jornalista “O que
você aprendeu na universidade?”, e a resposta é: “Aprendi nada, a uni-
versidade serviu pra nada, tudo que eu aprendi foi no mercado, e é no
estágio que você aprende a ser jornalista”. Esse é um discurso muito
comum na profissão e tem uma série de implicações. Continuando
a entrevista, você descobre que “foi na universidade que eu fui num
museu pela primeira vez; foi na universidade que comecei a me inte-
ressar por cinema, porque tinha um cineclube”. Entende que não é
porque a universidade não ajuda, é porque a pergunta que fazemos
é equivocada. A percepção que a gente tem dessas passagens é fun-
damental. Por exemplo, a última pesquisa do Samuel Lima e Jacques
Mick (2013) indicou que 89% dos jornalistas tiveram passagem por
uma faculdade de Jornalismo. Isso é muito fundamental na confi-
guração do profissional para a gente simplesmente avaliar da forma
como se avalia.

Eduardo Meditsch: Você também está responsável pelas disci-


plinas de metodologia, inclusive no curso de Publicidade. Você sente
alguma diferença de trabalhar num curso e no outro? Não sei também,
se nas grades curriculares, nos projetos pedagógicos, existem uma posi-
ção diferente, uma função diferente, ou se basicamente é o mesmo curso.
Pergunto ainda como você vê a questão dos projetos pedagógicos em
relação a inserção de teoria, de metodologia? Estou trabalhando com
alunos na disciplina de pré-projeto e vemos que eles, nos últimos semes-
tres, já esqueceram da metodologia que tiveram no segundo semestre.
Se fossem mais próximas, talvez tivessem um aproveitamento melhor da
disciplina para fins de realizarem uma pesquisa?

131
Fábio Pereira: Os perfis são claramente diferentes. Isso primeiro
te exige um exercício de diversidade metodológica, que é muito mais
complicado, não só na Publicidade, como também do Audiovisual, por
exemplo. Toda vez temos que ter algo de análise fílmica, uma coisa que
não tenho a menor ideia de como fazer, então trago alguém de análise
fílmica para falar com eles. O pessoal da Publicidade gosta muito de sur-
vey também, então tem que separar pelo menos umas duas aulas para
poder discutir não só métodos quantitativos, mas uma função de amos-
tragem etc. Existem interesses e situações muito distintas entre as habi-
litações, então acho que, como a disciplina de metodologia é no terceiro
semestre, eles não conseguem associar nenhuma utilidade com isso. Eles
não conseguem entender para que serve uma disciplina de metodologia,
porque eles ainda estão muito na ideia de começar a fazer prática. Acho
que é todo mundo que vem um pouco nessa lógica. No entanto, acaba
que por mais que eu faça exercício de dizer “olha, isso aí não serve só
para quem vai ser pesquisador”, nem sempre eles conseguem entender.
Essa disciplina vai no mesmo semestre para todo mundo, e ainda tem
algo de tronco comum na verdade. Então, geralmente são dois professo-
res. Nesse sentido, nós acabamos fazendo um exercício de introdução à
filosofia da ciência e à sociologia da ciência, sobre o que é um objeto de
pesquisa, entre outros, antes de ir nas técnicas, o que é muito mais difí-
cil para eles, porque na verdade estamos falando de coisas que eles não
têm a menor ideia de como lidar ainda. Eu achei que a Covid-19 aju-
dou muito nesse sentido de introduzir a ciência na conversa cotidiana.
Consigo dar muito mais exemplos falando da situação e dos debates
sobre a pandemia em relação à falseabilidade, por exemplo, do porquê
que a ciência sempre trabalha com verdade transitórias, eles começam
a ver um pouco isso na prática. Concordo com você, pois acho que a
disciplina ainda está muito solta na verdade. Acredito que a disciplina
esteja no terceiro semestre porque queriam amarrá-la às disciplinas de
teoria, porque na verdade fazem introdução à Comunicação, introdu-
ção à Publicidade, por exemplo. Temos também uma disciplina sobre
teorias da Comunicação no terceiro semestre, e a de metodologia. E, no
quarto, eles fazem teorias do Jornalismo. Então, acredito que sigam essa
lógica, numa lógica de formação de uma base teórica. Agora, quando

132
você tenta recuperar isso no sétimo, por exemplo, eles não têm a menor
noção do que está acontecendo.

Eduardo Meditsch: O que você acha dessa transformação, que


aconteceu no Jornalismo, e agora na Publicidade. O Audiovisual tam-
bém está discutindo o novo projeto pedagógico, já a Publicidade tem
umas diretrizes que estão quase aprovadas no Conselho Nacional de
Educação também. Nesse sentido, vemos que também há um debate
dentro da FAC em relação ao próprio projeto original da UnB, que seria
de que os dois primeiros anos fossem mais voltados para essa vivência
dentro da universidade como um todo, e depois então a profissionaliza-
ção fosse tratada a partir do terceiro ano. Como você percebe isso, até
como ex-aluno da FAC, como professor agora? Como funciona, o que
funciona, o que não funciona?

Fábio Pereira: Acho que o blocar a formação básica e a forma-


ção específica não funcionou. Não funcionou comigo quando era aluno,
na verdade. Por que você tem a impressão que está esperando o curso
começar: “Quando que vai começar o meu curso de verdade?”. Você
tem que esperar três semestres para entender o que é um lead. Então,
a transversalização da formação é interessante, até como forma mesmo
de construção de projeto de carreira. Eu, por exemplo, fui descobrir no
quinto ou sexto semestre que eu queria fazer pesquisa. Quando comecei
a fazer reportagens, eu falei: “Não, esse negócio de matéria jornalística
eu não gosto”. Eu dei sorte de entrar em um PIBIC e achei legal: “Dá para
gostar de Jornalismo sem ser jornalista”. E só fui descobrir isso no meio
do curso para lá. Então, eu acho que até para você se planejar é melhor
que isso seja mais transversal. O meu problema é com o que as pessoas
estão achando que é o Jornalismo, por exemplo, as pessoas fazerem um
projeto de curso para associar o Jornalismo ao Jornalismo de informa-
ção feito em mídia. E o curso tem se construído muito em relação a isso,
que o único perfil que vale é esse. E, como falo, esse mercado de traba-
lho não existe mais. Fizemos uma pesquisa com os relatórios de estágio
dos nossos alunos, que demonstra que a grande maioria está fazendo
edição de rede social, marketing digital, fazendo assessoria de imprensa.

133
De 40 apenas 10 estão de fato estagiando em mídia. E estagiando, por-
que na verdade estagiar é fácil, o problema é arrumar um emprego.
Então, compreender a ideia de ampliar o mercado de trabalho passa
primeiro por ter uma formação em termos de empreendedorismo que
fosse mais integrada com o projeto final. E essa foi uma demanda nossa.
Quer dizer, ter empreendedorismo no sexto e pré-projeto no sétimo
período, porque aí o aluno poderia desenvolver um pré-projeto empre-
endedor, se formar com um pré-projeto empreendedor, no qual o aluno
poderia já sair com uma startup jornalística própria pronta. No entanto,
atualmente, o empreendedorismo está perdido no terceiro semestre,
esse é um problema. E outro problema é a ideia de que se as pessoas
estão fazendo marketing digital, edição de mídia sociais etc, deveria ter
um curso com um pouco mais de flexibilidade nas optativas para ofe-
recer matéria na Publicidade, no Audiovisual. Porque realmente, nós
pensamos o curso muito com disciplina de mídia, e o mercado de mídia
não existe mais. E isso é um problema mesmo em termos de preparação
para o mercado de trabalho.

Juliana Ferreira: Professor, é nesse sentido que o senhor trabalha


com a ideia de transformação no Jornalismo, ou tem outros aspectos
também?

Fábio Pereira: A ideia da transformação do Jornalismo é tentar


mostrar, primeiro, a ideia de que essa transformação nunca é tão radi-
cal quanto imaginamos, por isso que não falamos nunca “a transforma-
ção”, mas sim de mudanças e permanências. E assim tentar mostrar pra
eles que existe uma lógica de permanência. Aqui nem estou falando de
projeto pedagógico, mas de pesquisa. Eu terminei um livro com uma
colega franco-belga, no qual analisamos o discurso sobre a inovação que
circulou nas organizações internacionais tipo Wan-Ifra e Pew Research
Center dos últimos 15 anos. O que nos mostra, na verdade, que existe
uma injunção ideológica em inovação permanente no Jornalismo, e
que as empresas que produzem essas injunções não têm a menor ideia
de para onde o Jornalismo vai, e que temos aí os últimos 15 anos de
modismos que são lançados, que fracassam de forma retumbante,

134
e que são substituídos por outros modismos. Então, nos anos de 2005 e
2006, todo mundo falava de Jornalismo cidadão. Nos anos 2009 e 2010
todo mundo falava de tablet. Depois se começou a falar de storytelling
interativa, depois de newsgame, e essas coisas não vingaram. Então, é
preciso combinar as duas coisas no sentido de mostrar que, obviamente,
o Jornalismo não pode ser feito agora como era feito nos anos 1990, mas
também não fazer um currículo que simplesmente acompanhe esses
discursos de inovação, porque eles não sabem para onde estamos indo.
É um equilíbrio que é muito difícil de ser feito, na verdade. Porque a
maior parte das pesquisas mostra que é óbvio que hoje em dia você não
descarta redes sociais, não descarta uma série de coisas, mas que um
bom texto, por exemplo, continua sendo fundamental para ser um bom
jornalista. Nesse ponto, agora voltando a falar da parte pedagógica. Esse
é um lado da pesquisa.
O outro lado da pesquisa que é esse de sociologia profissional, que
é de mostrar que existe um processo e sempre existiu um processo de
diluição das carreiras jornalísticas. O Jornalismo sempre foi muito mais
amplo do que o discurso do profissionalismo costuma dizer. É aquela
ideia do médico que não é só cirurgião. Por isso, temos que estar abertos
a pensar que esse processo de reinvenção permanente não acaba. Outro
dia, lembro que circulou um anúncio de emprego de editor de meme
no jornal. Me lembro também em uma aula da pós de sociologia profis-
sional, em que um aluno falou assim: “Não, mas isso não é Jornalismo,
não é sério”. E eu falei, por que não é Jornalismo? Então, é também saber
lidar com que apesar dessa permanência, a carreira se diversifica. Isso,
é claro, se a gente começar a achar que editor de meme não é coisa de
jornalista, quem vai tomar esse mercado de trabalho vão ser as outras
áreas de Comunicação, e nossos alunos vão ficar no desemprego.

Hemanuel Veras: Ouvindo essa fala do professor sobre a experiên-


cia com os alunos e refletindo um pouco sobre a minha experiência, uma
coisa que me chamou muita atenção nesse primeiro contato com os alu-
nos, além das questões desse cenário remoto que estamos passando, foi ver
como eles já não têm mais como referências só jornalistas de telejornais,
por exemplo. Quando eu cursei lá atrás, isso era bem forte. Os próprios

135
alunos tinham nessa perspectiva profissional grandes nomes do telejor-
nalismo da época. E o que eu percebi agora é que se tem muito como
referência, na verdade, veículos de comunicação que funcionam nas redes
sociais. Eles consomem por rede social, ou mesmo por lista de transmis-
são no WhatsApp, ou também influenciadores, aí já entra nessa questão
de é ou não Jornalismo. Acho que é muito significativa essa mudança e
precisamos tentar entender isso para preparar os alunos. Eles têm noção
de que o mercado é outro já, pelo que eles consomem e têm interesse. Mas
como que a gente vai preparar isso nas grades curriculares?

Fábio Pereira: Pergunta até difícil e, antes de eu responder, para


poder pensar um pouco, vou comentar sobre um ponto. Meu douto-
rado foi sobre jornalistas-intelectuais no Brasil. E eu fui entrevistar na
verdade sobre um tipo de Jornalismo que hoje em dia não se faz mais.
Eu entrevistei o Dines, o Cony, o Carlos Chagas, o Zuenir Ventura, essa
geração. E os meus alunos não têm a menor ideia de quem eles são. Quer
dizer, quando eu entrei no curso, no final dos anos 90, para mim eram
referências do que eu queria ser. E não é que os meus alunos não gostem
desse tipo de Jornalismo mais intelectual, mas é que para eles não faz o
menor sentido. Em relação à carga, à estrutura, acho que é justamente
tentarmos ter uma clareza, por isso o debate da ideia das mudanças e
permanências é importante, do que é importante para ser um bom jor-
nalista, que perpassa qualquer tipo de atividade nessa heterogênea car-
reira, ou seja, fazer uma boa operação, uma boa noção de ética, ter uma
boa formação teórica, ter um bom texto. E as coisas que são ligadas a
dispositivos, a inovações, elas têm que ser absolutamente modulares.
Se você coloca assim, “a moda agora é newsgaming” e todo mundo está
indo para o newsgaming: então, vamos criar uma disciplina no currículo
de newsgaming? Não, porque daqui a cinco anos a disciplina precisa ser
refeita. Então, é pensar em um formato de curso que não engesse ou que
não seja refém, justamente, desse tipo de perfil. Porque você pode ter
certeza que esse sentimento que está tendo com essa geração, de que,
eles já estão numa lógica de influenciadores digitais. Eu estava numa
aula de públicos com meus alunos e eles sabem tudo sobre Clickbait,
sobre métrica, um monte de coisa. Quer dizer, eles já estão muito mais

136
ligados. Então, assim, é pensar um curso que não vá a reboque dessas
coisas, mas que tenha alguma flexibilidade para poder, justamente, ofe-
recer essas formações pontuais num momento em que esse mercado
ainda se faz necessário. Ou seja, eu não acho que é um problema, é uma
coisa do ponto de vista didático, significa que você, professor, tem que
estar lendo tudo que está saindo nos jornais acadêmicos. É isso, ter uma
bibliografia de graduação quase semelhante à da pós. É começar a ter
artigo lá de cima. E do ponto de vista do currículo, é não fazer um cur-
rículo engessado que esteja ultrapassado em cinco anos.
Por exemplo, hoje se fala em redação convergente. Tinha uma
época que redação jornalística era separada, depois era convergente, aí
virou open space, depois voltou a separar. Em função da saúde da mídia,
o tipo de profissão jornalística vai oscilando. Tentar mimetizar isso num
curso de Jornalismo é besteira, porque têm quatro ou cinco polos de
produção de inovação no mundo, três jornais de referência, por exem-
plo: The New York Times, Washington Post e The Guardian. Basicamente,
as inovações em termos de Jornalismo são produzidas nesses locais. Tem
meia dúzia de empresas de tecnologia que eventualmente influenciam
num processo jornalístico e de duas a três instituições que cuidam de
dar consultoria para os jornais para que eles façam isso. Então, a gente
trabalha com uma lógica de informação que funciona assim: o New York
Times inventa uma inovação, daqui três, quatro anos chega na Folha de
S. Paulo, e daqui mais três, quatro anos chega no Correio Braziliense, e
somam mais três anos resolvemos dar essa inovação na universidade.
Então, se passam 10 anos entre a inovação desenvolvida no New York
Times e o currículo. E aí ela está velha. Então, assim, é besteira a gente
trabalhar com essa lógica do ponto de vista de incorporação curricular.

Hemanuel Veras: Professor, ao mesmo passo que as redações


de comunicação trabalham com a questão para além da produção de
conteúdo também. Na conversa com os alunos, no primeiro momento,
assim, acabamos chegando numa questão sobre o último debate pre-
sidencial dessa última eleição, e teve uma aluna que falou que só sabia
quem era o Boulos porque assistiu uma live em que jogava um joguinho
on-line. Eu fiquei assim, nossa, questão de exceção, não é?

137
Fábio Pereira: Eu acho que isso é mais grave. Essa ideia que você
está colocando, de pensar uma produção mais ampla de conteúdo é
mais inteligente. Os estudos sobre carreira mostram o seguinte: a car-
reira jornalística está cada vez mais curta; as pessoas abandonam a car-
reira de Jornalismo cada vez mais cedo. Isso no mundo inteiro. Tem um
estudo em que eles comparam a idade média do trabalhador nos países
e a idade média dos jornalistas. Os jornalistas são mais jovens que a
maioria das profissões, porque os jornalistas não ficam muito tempo na
profissão. Os estudos estão mostrando que o Jornalismo está virando
não uma carreira para a vida inteira, mas uma carreira para o primeiro
momento da sua inserção profissional, e que em algum momento você
vai reconverter a outra. Existem poucos estudos sobre reconversão de
carreira de jornalista. Roseli Fígaro, da USP, estava tentando organizar
um, justamente para tentar entender para onde estão indo os ex-jorna-
listas. Estamos tentando montar um projeto nesse sentido. Mas, todos
os indícios dizem que eles estão indo para áreas de produção cultural,
produção de conteúdo cultural, ou seja, áreas ligadas, que é o que conse-
guimos fazer bem, então é onde a gente precisa ensinar bem os alunos.

Eduardo Meditsch: Vejo aí uma tensão entre a questão do con-


ceito de Jornalismo e a questão da produção de conteúdo. Por um lado,
acho que tem que ter essa preocupação num curso de graduação com o
mercado profissional, com os egressos, ou seja, que eles possam traba-
lhar em várias coisas. Por outro, acho que é importante também tentar
delimitar teoricamente o que é Jornalismo e o que não é. E aí, acho o
conceito de produção de conteúdo bastante problemático para isso. Até
porque é um conceito que veio da informática, e é adotado principal-
mente quando muda a lógica das próprias empresas no sentido do que
elas vão explorar. Num primeiro momento as empresas, digamos assim,
surgem como jornais, se a gente vê um histórico das empresas jornalís-
ticas, no qual havia essa identidade, o conteúdo que elas produziam era
Jornalismo. E então elas vão se alargando, vão se tornando empresas
multimídia, e já não é só Jornalismo, é o comunicador também, e todos
os outros profissionais da área artística-cultural que vão se agregando. E
chegamos num terceiro estágio, que é a produção de conteúdo, e nessa

138
produção de conteúdo a lógica é das plataformas digitais. Para elas qual-
quer coisa é conteúdo, inclusive informação falsa, que para elas dá o
mesmo lucro do que qualquer outro tipo de conteúdo, desde que seja
algum conteúdo. Cria-se um problema, digamos assim, para definir-
mos onde é o limite do Jornalismo, ou até qual é a função do curso em
relação a isso. O problema deontológico, do Jornalismo e da simulação
do Jornalismo. A simulação do Jornalismo também começa na própria
assessoria de imprensa, na Publicidade, por exemplo, numa campa-
nha eleitoral, em que aparece a pessoa como repórter entrevistando o
público, os candidatos, simulando uma reportagem, e aí a identidade
se perde, e com a perda da identidade, a simulação do Jornalismo vai
virando uma coisa mais forte de que o próprio Jornalismo. E acho que
isso também contribui para a crise do Jornalismo. É impossível delimi-
tar, mas também é necessário, de alguma maneira, delimitar. Penso que
isso é um dos grandes problemas estruturais do Jornalismo hoje. E de
como os cursos vão enfrentar isso.

Fábio Pereira: Eu acho que a ideia é tentar ver, porque esse movi-
mento de dizer o que é e o que não é Jornalismo é constante. Que é
sempre muito mais vantajoso que consigamos, nesse movimento de
apropriação de algumas práticas, colocá-las como práticas jornalísticas.
E, nesse movimento, a gente posicionar, justamente, definir uma ética
profissional, definir uma série de valores e uma forma de fazer para
práticas que emergem, do que simplesmente se limitar também a uma
visão muito purista do que seria. Porque aí a gente perde o controle, as
pessoas que se apropriam disso, e realmente não tem nenhum tipo de
interesse, de ética, de nada.

Ricardo Dantas: Na última edição da revista piauí, uma moça


escreveu uma carta aberta ao Caetano Veloso. Há dez anos mais ou
menos, saiu a notícia: Caetano Veloso estaciona o carro no Leblon. E
hoje essa moça é uma pesquisadora, mora na Dinamarca, e conta como
foi todo o processo daquele dia11. Era uma quinta-feira de pós-Carnaval.

11 Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eu-existo/. Acesso em: 12 dez. 2022.

139
Tem uma coisa de newsmaking ali, em que ela conta como funcionava,
a questão de pegar uma foto de um banco de paparazzi, tentar escrever
uma notinha, tinha que fazer dez por dia. Enfim, mostrei essa reporta-
gem para os alunos de ComOrg, de uma disciplina que se chama Ges-
tão em Comunicação. O comentário geral deles, jovens de 18, 19 anos,
foi que isso parece muito com o que é um perfil de rede social. Achei
interessante que a visão deles era do que a menina estava descrevendo,
de como ela como jornalista, formada, trabalhava. Para um jovem hoje
de 18 anos, parece alguém com perfil na rede social atuando. Ao mesmo
tempo todos entenderam que aquilo era o início de carreira dela, que foi
um processo, e que ela foi crescendo. Ela mesma fala na carta que depois
foi trabalhar na Folha, e agora é pesquisadora. Enfim, que a carreira
também se constrói começando, vamos dizer assim, de baixo, fazendo
essa produção de conteúdo mais simples, mais simplória, e se a pessoa
crescer e se desenvolver vai ter uma carreira. Achei interessante comen-
tar pois está dentro desse nosso debate sobre o que é ou não Jornalismo
e também do newsmaking.

Eduardo Meditsch: É muito bom esse texto. Eu li e, nas minhas


redes sociais, no Facebook, com meu ex-alunos, teve muita repercussão.
Muitos se identificaram com o texto, porque passaram por essa fase den-
tro das suas carreiras, e uma fase de grande decepção, como ela coloca,
em relação ao ideal do Jornalismo que eles levavam da faculdade, com
a realidade que se depararam, os limites que tinham de atuação nesse
período. E a moça, na verdade, foi para a Folha, mas acabou saindo da
carreira de produção e se tornou uma pesquisadora.

Juliana Ferreira: Queria perguntar sobre uma das três questões


que colocou no início, sobre se o jornalista produz informações. Eu
tenho um pouco de viés quando alguém vem falar isso para mim, por-
que a gente viveu uma fantasia de produção de verdades. Durante dois
anos, vivemos uma fantasia chamada Lava-Jato, com uma mídia mains-
treaming que apoiou o golpe. Muita gente embarcou nisso porque estava
na Folha de S. Paulo, por exemplo. Na Folha, essa semana, ainda saiu
uma matéria horrorosa sobre Cuba. E essa criação de verdades é uma

140
situação complicadíssima, porque é uma institucionalização de uma
informação num veículo de informação massiva que é validado. A Folha
de S. Paulo não é um jornal qualquer, e veicula uma coisa dizendo que
as pessoas em Cuba vivem na miséria, falta comida etc. É meio estranho
ouvir, nesse contexto de hoje, um tipo de reprodução de discurso desse
nível. Então, queria que o senhor falasse um pouquinho mais sobre essa
construção de verdades e sobre fake news.

Fábio Pereira: Você tem dois problemas aí. Se tem um tabu que
o jornalista nunca ousou cruzar é o tabu da verdade. Obviamente, nós
discutimos muito objetividade etc., mas se tem uma coisa que você não
vê nem Jornalismo literário e nem ninguém que ousou relativizar, é a
ideia de verdade. E o processo de difusão de fake news e a ideia de novas
formas de circulação de outras verdades, subverdades alternativas etc.
num espaço público é algo que o grupo profissional ainda não sabe
muito bem como lidar. A única reação que o grupo profissional teve em
relação a isso foi dizer que o que é publicado é verificado: “nós fazemos
fact-check”. E esse discurso pode ser satisfatório para o grupo profissio-
nal, mas não necessariamente restabelece a credibilidade do Jornalismo.
Porque, por um lado, como você disse, o fato de você dizer a verdade ou
checar a verdade não elimina o risco da crítica em relação à informação
que é politicamente orientada, como, por exemplo, essa matéria que citou
da Folha. Segundo, porque o vínculo que as pessoas estão criando, uma
vez que as formas de consumir informação, obviamente, se espalharam,
se constrói em relação à informação não é mais o mesmo vínculo de
credibilidade com a empresa de mídia. E terceiro, eu estou orientando
um doutorando que queria analisar fact-check, queria descobrir, na ver-
dade, quem consome fact-check, e me disse: “Professor, vamos mudar
de tema, de tese, porque eu descobri que quem consome fact-check é
só jornalista”. Então, isso tem um problema, porque a resposta que o
grupo profissional e as empresas de mídia deram a essa concorrência
em relação aos fatos, não resolveu o problema da credibilidade. O dis-
curso que se tem atualmente é o seguinte: “Leia a gente, porque damos
uma informação credível”. Tenta convencer uma pessoa à direita ou à
esquerda desse tipo de discurso para você ver. Conversa com a pessoa

141
bolsonarista, por exemplo, de que a Globo não é comunista e veja o que
vai responder, algo como: “Não, a Globo diz fake news”. Então do ponto
de vista da credibilidade profissional, os grupos reagiram muito mal e
não conseguiram dar uma resposta correta. E assim, o trabalho que fize-
mos com nossos alunos foi em dois níveis. Primeiro, para mostrar o
papel das plataformas e dos algoritmos na seleção de notícias que não
necessariamente são verdadeiras. Então, a pessoa que deu essa aula foi
mostrando como na verdade a operação seletiva dos algoritmos, de fato,
é uma catástrofe. E tentando mostrar que esse tipo de consumo de infor-
mação que o outro colega descreveu, sobre como “meus alunos agora
não veem mais televisão e vão direto para as redes sociais”, do ponto de
vista, obviamente, da construção da agenda pública, é uma catástrofe.
E a outra discussão é sobre formas de tentar atuar de modo distinto
junto ao público, no sentido de promover uma educação mais eficaz ao
consumo de informação. Por isso que o projeto do observatório é ligado
ao projeto de atuação no ensino médio. Primeiro porque não preciso
sensibilizar os alunos de Jornalismo do que que é uma fake news, eles
têm uma ideia mais clara. Segundo, porque achar que o que vai conven-
cer a sociedade da qualidade da informação é o velho discurso de que
só a mídia de referência faz informação de qualidade porque verifica
etc. não funciona, não está funcionando. A mídia perdeu credibilidade,
igual você falou, com a Lava-Jato, e todo o processo que nós tivemos.
Ninguém consegue, até a gente, que às vezes tem uma ideia mais clara,
não consegue confiar. Então, essa distinção que se faz “está no Facebook
é falso, está no WhatsApp é falso, está na Globo é verdadeiro” também
não é a melhor resposta. Mas, eu também não tenho a menor ideia de
como resolver isso.

Eduardo Meditsch: Acho que não tem solução dentro do possí-


vel, nem dentro das empresas no momento. Uma coisa que eu acho que
temos que pesquisar é justamente essa questão do contrato de comu-
nicação. Acho que sempre tratamos a questão do contrato da comu-
nicação a partir da teoria do discurso, alguns usam o contrato cogni-
tivo, usam termos análogos para se referir a isso, mas sempre parece
um contrato, como se fosse um contrato muito ingênuo, que um oferece

142
e outro consome. Um espera aquilo e outro oferece aquilo, que não é de
nenhum dos dois lados iguais. Porque, na verdade, nós nunca consu-
mimos mídia com essa ingenuidade sugerida pela ideia do contrato. Eu
acho que alguns estudos de recepção, por exemplo, desde aqueles que o
Carlos Eduardo Lins da Silva fez com a Globo, e mesmo os estudos de
cognição, como os Van Dijk, também vão mostrar que é isso. A primeira
coisa que decodificamos em qualquer relação de comunicação é quem
é que está falando e o que é possível esperar dessa pessoa ou instituição.
Então, se a gente liga o Jornal Nacional para se informar, por um lado
sabe que eles podem fazer um Jornalismo de alta qualidade, porque tem
competência para isso quando querem fazer. Então, vais lá para se infor-
mar por causa disso. E, por outro lado, tu sabes que eles têm posições
políticas, e que isso também vai aparecer. E mesmo que tu não cons-
cientizes tudo isso, vais decodificar cada uma das matérias com essas
referências que já tens sobre eles, não é uma posição ingênua. Então,
acho que isso é uma coisa para se estudar mais, inclusive as empresas de
comunicação deveriam levar mais a sério, porque realmente não adianta
ficar afirmando sempre o mesmo discurso sobre o papel do Jornalismo
e da liberdade de imprensa, que tem que ser garantida por causa disso,
quando, na prática, elas se desmentem todo dia também.

Jean Campos: Professor Fábio, me chamou atenção na sua fala a


parte que você relaciona alguns aspectos práticos que nós jornalistas,
estudantes de comunicação, não relacionam com a formação acadê-
mica. Como você disse, o interesse despertado, o interesse pelo cinema
e outros que nascem dessa experimentação no percurso acadêmico.
Isso vai ao encontro do que eu tenho discutido num novo artigo com
o professor Eduardo também. Justamente porque me interessei após a
minha formação por questões em que não tive uma formação teórica,
no entanto, tive uma noção do que era aquilo em outras oportunidades,
seja participando de centro acadêmico, dentro do ambiente da univer-
sidade, em que se tem acesso a questões políticas. Nesse sentido, queria
saber do senhor, qual é o link, ou se enxerga um link, dessas questões
que estão além da formação acadêmica para dentro dessa formação?
Em que momento a pedagogia da comunicação entraria para moldar

143
ou teorizar isso, para evitar essa sensação de que não foi dentro da uni-
versidade que isso nasceu, quando muitas vezes foi lá que nasceu?

Fábio Pereira: Essa pergunta é difícil. Eu cheguei a essa conclusão


porque fui entrevistar jornalistas, e perguntava para eles e pedia para
descreverem a experiência na universidade. Os jornalistas que tinham
até 30 anos, todos falavam mal, que a universidade não serviu para nada
etc. Os jornalistas que tinham mais de 30 anos diziam que até que eles
aprenderem muita coisa, que na época não se deram conta, mas que foi
importante para eles. Aí você se pergunta assim: “Será que os cursos de
Jornalismo nos anos 80 eram melhores do que os de agora?”. Acho que
não. Então, a primeira resposta, tem a ver com o processo de socializa-
ção nas redações. Acho que todo mundo aqui que entrou numa reda-
ção deve ter ouvido o chefe falar: “Esquece tudo que você aprendeu na
universidade, que aqui a gente vai te ensinar a ser jornalista”. E você, até
30 anos, reproduz esse discurso como parte de integração ao meio pro-
fissional. Ser jornalista é falar mal da universidade, é falar mal o curso
de Jornalismo, do ponto de vista da socialização profissional. É muito
estranho, mas é isso. É aquela coisa do filho que precisa falar mal do
pai para poder se emancipar. E, nesse momento, quando você conversa
com essas pessoas, começa a perceber, no discurso, lastros da passagem
pela universidade que vão aparecendo ao longo da entrevista. Então a
pessoa que fala: “É, eu tenho que tirar foto aqui no meu site. Ainda bem
que eu fiz a introdução à fotografia”. Então, a primeira é essa, a ideia de
dizer que a universidade não serviu para nada, também é uma estratégia
discursiva de construção da identidade profissional. O Jornalismo ele se
constrói num ethos importante de dizer que para ser jornalista não pre-
cisa de formação, só basta ter talento e vocação. Esse ethos é importante
para construção da identidade do grupo.
A outra coisa é que nesses lastros, começamos a nos dar conta
disso, de que tinha um cara que era um brilhante jornalista de cultura,
que diz que foi ao ir ao cinema que ele se descobriu. Então, chegamos
num ponto, que a gente que é professor sabe, mas não quer admitir,
quer dizer, que a passagem na universidade não se restringe a nossas
aulas. As nossas aulas são um pedaço da vivência que o aluno tem,

144
e que aquela vivência é muito mais completa e toma muito mais tempo
do que imaginamos. Que muita coisa acontece fora do ambiente de aula
que não temos controle e que vai formar o jornalista, que vai levar a
variações do tipo de perfil de jornalista se ele passa por uma universi-
dade pública ou uma privada. Tudo isso vai contar na socialização.
E termino esse capítulo do meu livro dizendo: “Eu queria muito
fazer uma grande etnografia nas universidades”. Sabe, acompanhar aluno!
Só que não posso fazer isso nunca, por exemplo, acompanhar aluno em
centro acadêmico, em festa, em boteco, para você descobrir, na verdade,
onde que está acontecendo o processo de socialização na universidade.
Porque não é só na sala de aula. Bom, agora com esse ensino a distância,
provavelmente é só agora, um negócio estranho, acho temos aí uma rela-
ção muito complicada que vai emergir disso. Mas, a minha ideia é de que
a vivência universitária é muito mais rica do que a sala de aula. Mas, isso
é uma hipótese, uma intuição com os indícios das entrevistas. Eu gostaria
muito de fazer uma pesquisa de campo para descobrir realmente como a
gente aprende a ser jornalista dentro desse tipo de formação, porque aí são
essas coisas que comentamos e que acho que estão na memória de todo
mundo. Lembro da minha passagem pelo Centro Acadêmico, indo para o
estúdio de rádio gravar programas de política, de fazer fanzine. Eu lembro
muito a forma como a UnB me marcou, e não foram só os professores da
UnB que me marcaram. Eu lembro do PIBIC, que não é uma coisa que
aprendemos na sala de aula como funciona. Lembro das conversas com a
minha orientadora. Então, tem tanta coisa ali, que a gente não consegue
apreender, porque as pesquisas sobre formação do Jornalismo geralmente
se limitam a análise de grade curricular, ou a survey com estudante, que é
o que fiz em algum momento, em que você pergunta “você aprendeu ou
não?”, e ele diz “não”.

Eduardo Meditsch: Muito legal essa observação. Eu estava falando


um pouco sobre essa experiência que os alunos estão vivendo agora, no
ensino remoto, em que realmente estão perdendo uma parte imensa da
vida universitária por causa dessa situação. Mas, realmente, a gente não
consegue pensar nisso, e quando pensa em estratégias pedagógicas se
pergunta: como colocar tudo isso dentro de uma estratégia pedagógica?

145
Mas de forma geral é isso mesmo, um período de vivência que alguns
vão conseguir viver dentro da universidade, e outros não, por razões
sociais e profissionais, vão ter que passar muito tempo fora, vão viver
menos a universidade, mas que é um período de formação fundamental
até pela idade das pessoas, que estão muito abertas a aprender de todas
as fontes, e os cursos formais são só uma parte delas.

146
CAPÍTULO 6

Vivências e resistências
em Extensão Universitária1
Fernando Oliveira Paulino2

Farei uma introdução relacionada à comunicação e à extensão e,


depois, vou ouvir um pouco as questões que vocês têm em relação ao tema.
Então, a saída que considero ser importante é localizar pelo menos
duas coisas. A primeira é a criação de universidades no Brasil, que foi
bastante tardia se comparada às experiências europeias, para falar de
um ponto de partida sobre essas reflexões. A criação de instituições de
ensino superior, embora saibamos que não surgiram apenas na Europa
ao longo do tempo, pois o conhecimento também passou por algumas
importantes experiências no Oriente Médio. Enfim, deixando essas
reflexões de lado e localizando as instituições de ensino superior numa
interpretação mais clássica, digamos assim, do que costuma ser atri-
buído na academia: as instituições de ensino superior surgiram muito
antes na Europa e mesmo na América Latina, já existiam antes de se
constituírem como tal no Brasil.
Apenas na década de 20 começam a surgir movimentos pela cria-
ção de universidades, entendendo essas instituições não somente como
agrupamentos de escolas de ensino superior, isso já existia e as pessoas
chamam aqui, grosso modo, de faculdades. Mas, como instituições que
1 Palestra ministrada à turma de Pedagogia da Comunicação, ministrada pelo professor Eduar-
do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 20 de maio de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professor e ex-diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/
UnB). Presidente da Federação Brasileira de Associações Científicas e Acadêmicas da Comu-
nicação (SOCICOM) e da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação
(ALAIC). Coordenador do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Comunicação Comu-
nitária da FAC.

147
tivessem tanto uma abrangência maior em relação ao conhecimento e
áreas, campos do saber, que não tivessem somente atividades do ensino,
mas, sobretudo, atividades de pesquisa. Agruparia inclusive algumas
ações que se estabeleceram como atividades de extensão, especialmente
no campo da saúde, e, ao longo dos anos, a partir principalmente da
década de 20, com questões relacionadas ao que costumamos associar
hoje à cultura e à comunicação.
Nesse processo histórico, se destacaram pessoas importantes para
nós, tais como Anísio Teixeira, que teve uma função bastante significa-
tiva nesse processo. E surge, ali pelos anos 40, 50, uma mobilização de
intelectuais associados à transferência da capital do Rio de Janeiro para
Brasília, que deságua nas ações associadas a essa transferência de capital
e à criação da Universidade de Brasília, já no começo dos anos 60, sendo
que nossa universidade em 2022 completa 60 anos. E, nesses primeiros
anos de atuação da Universidade de Brasília (UnB), havia uma expec-
tativa de que a UnB não desenvolvesse apenas atividades de ensino e
de pesquisa, mas que também oferecesse um diálogo mais fluído com
a sociedade.
Nesse sentido, a UnB marca o aniversário do segundo ano de Bra-
sília. O Correio Braziliense tem matérias relacionadas ao dia 21 de abril
de 1962 e que demonstram no discurso de inauguração da Universidade
de Brasília uma preocupação de fazer da UnB um centro de ativida-
des, não apenas para os seus estudantes, mas também para o mundo à
nossa volta. Digo o mundo porque havia, e é coincidente com muitas
das nossas reflexões, uma expectativa de que inclusive uma Conferência
de Educação Superior acontecesse na UnB com o apoio da UNESCO,
no ano de 1962, 1963, e que a partir de 1964 – isso é textualmente citado
no discurso do Darcy Ribeiro na Pós – a UnB teria atividades noturnas,
conseguiria agregar um número maior de brasileiros nas ações. Assim,
está nos documentos históricos da nossa universidade uma expectativa
de que se usassem as tecnologias de teledifusão e do rádio, um meio
bastante hegemônico naquele período, como instrumentos de propaga-
ção, de distribuição e, arriscaria dizer, de compartilhamento do saber.
Infelizmente, esse projeto foi interrompido e a Universidade de Brasília
teve muitas dificuldades no período de 1964 até 1965.

148
Existe um relatório produzido pela Comissão Anísio Teixeira de
Memória e Verdade, de que tive a honra de participar, e está disponí-
vel on-line3. São aproximadamente 700 páginas nas quais uma equipe
de professores sistematizou transgressões aos Direitos Humanos entre
1964 a 1968 e muito dessa história que estou aqui resumindo está dis-
ponível, com documentos, fotos. Observo que essa interrupção do
projeto da Universidade de Brasília, que foi sistematizada no livro do
professor Salmeron4, e está em muitas das obras do Darcy Ribeiro,
também tem que ser vista em perspectiva. Porque se por um lado a
UnB teve sua trajetória alterada, por outro arrisco dizer que muito
desse nosso gene, de ter uma universidade baseada no tripé ensino,
pesquisa e extensão, e, sobretudo, a própria estrutura do ICC ser um
espaço de interação das diversas áreas do saber, não se perdeu com-
pletamente no tempo e no espaço, porque muitas experiências foram
se construindo em meios marginais, digamos assim, à estrutura do
regime militar e inspiraram essas experiências, algumas iniciativas e
resultados bastante interessantes.
Então, por exemplo, tem um assunto ainda pouco revelado na
história da nossa universidade que são as experiências nos campi avan-
çados. A Universidade de Brasília teve uma participação bastante sig-
nificativa no Mato Grosso, na Amazônia, mesmo no Nordeste, naquele
final dos anos 1960, começo dos anos 1970, que já demonstravam essa
perspectiva e incluíam a comunicação como uma área importante do
saber para o desenvolvimento dessas atividades.
Marco Antonio Rodrigues Dias, Vladimir Carvalho, Murilo
Ramos e Luiz Gonzaga Motta foram pessoas que se preocuparam
bastante com esse tripé e com ações que tinham um diálogo com a
realidade internacional e que, dando um salto no tempo, acabaram
desabando em documentos e ações como as atividades que levaram
à criação da Comissão Internacional para os Estudos dos Problemas
em Comunicação, também conhecida como Comissão MacBride,
que produziram, há quarenta anos, o relatório Um mundo Muitas

3 Disponível em: www.comissaoverdade.unb.br.


4 SALMERON, Roberto A. A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965. Brasília: Editora
da UnB, 1998.

149
vozes5 que trata, de certa maneira, de como poderíamos criar uma
Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. Arrisco
dizer também da cultura, com atuação da universidade, de maneira
destacada, e com o desenvolvimento de políticas de comunicação,
com ações nas quais o Estado poderia promover uma maior circu-
lação de ideias, não somente restritas àquelas pessoas que já tinham
acesso à informação, a grosso modo.
O caldo histórico que temos na Universidade de Brasília, lem-
brando que outras universidades também tiveram um papel destacado,
mas a partir da realidade da UnB, desse caldo cultural, digamos assim,
dos anos 1960, 1970, especialmente a partir da década de 1980, e da
tentativa de retomada das ideias de democratização da universidade,
foram surgindo diversas iniciativas associadas a reacender a chama, e
isso possibilitou a realização de vários festivais culturais na UnB, como
o histórico FAAC, com duas edições nos anos 1980 e o SBPC em 1986.
Desse modo, a partir de 1985, a universidade que tinha sido tão
perseguida durante o regime militar, na época da ditadura6, tentava de
qualquer maneira retomar o tempo perdido, utilizando do embrião, da
força e da posição estratégica na capital para proporcionar uma nova
realidade da educação, de ensino superior. Hoje, muito do que tem sido
feito na faculdade tenta seguir essa nossa característica, essa nossa his-
tória e nossa possibilidade de estabelecer um diálogo mais fluido entre
o conhecimento acadêmico e o saber popular. Saindo dos muros da uni-
versidade, trazendo as pessoas para dentro da UnB e tentando buscar
uma agenda compartilhada a partir desse trabalho.
Na minha experiência, tenho buscado acoplar o ensino, a pes-
quisa e a extensão, entendendo que essa perspectiva vai muito além
de um assistencialismo, de uma perspectiva vertical e se pauta muito
mais numa possibilidade de formação. E também de entender que
esse diálogo acaba apresentando oportunidades para as pessoas reve-
rem suas posições, seus estereótipos em relação à comunidade à nossa

5 UNESCO. Um mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa época. Rio de


Janeiro: FGV, 1983.
6 Ver depoimento de Darcy Ribeiro no filme Barra 68 – Sem perder a ternura, de Vladimir
Carvalho. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lKz8AGSdwpY.

150
volta. Parafraseando aquele lema, ainda hoje importante, da Teologia da
Libertação: “O coração sente, a cabeça pensa, a partir de onde o pé pisa”.
À medida em que buscamos desenvolver atividades com as pes-
soas dentro e fora da universidade, temos um potencial de os estudantes
olharem diferente, para uma realidade diferente, como aquela de Planal-
tina, a cidade satélite ou região administrativa, tecnicamente falando do
Distrito Federal, que costumava ser, e ainda é, muito vista a partir dos
olhos associados à violência. Há mais possibilidades de olhar Planaltina
a partir do seu patrimônio cultural, pois é uma região administrativa
herdeira de um município que já existia antes da mudança da capital
do Rio para Brasília, por exemplo. E também temos a fé das pessoas
olharem para a universidade de uma forma mais compartilhada, de uma
maneira a entenderem o espaço, o ambiente acadêmico como próprio,
têm as pessoas que trabalham e que estudam nesse lugar.
Tem um depoimento muito interessante de um radialista lá em Pla-
naltina, que revela o esforço de entender que a Universidade de Brasília não
é apenas os estudantes, os seus professores, os técnicos, que a Universidade
de Brasília é pública e que o público deve ser percebido. Acredito que esse
é um problema estrutural do Brasil, como sendo algo de ninguém, tem que
ser entendido como algo compartilhado, algo de todas e de todos.
Minha intenção era fazer um pouco esse balanço histórico, desse
link ensino, pesquisa e extensão a partir do projeto de criação das uni-
versidades, especialmente da Universidade de Brasília, e localizar algu-
mas pinceladas ligadas à Comunicação antes de falar diretamente das
experiências a seguir. Agora gostaria de ouvir vocês e as expectativas em
relação à extensão, porque isso também me ajuda na sequência a falar
das atividades que temos desenvolvido.
Já senti como algo meio diferente falar de extensão na pós-gra-
duação. Pós-graduação não é só pesquisa? Não é algo restrito à pesquisa?
E vejo que não é. Dá para fazer essa ponte e eu queria ouvir as perspec-
tivas que vocês têm a partir da pós-graduação em relação às atividades
que costumamos chamar de extensão e que podem também, segundo
Paulo Freire, ser compreendidas mais como comunicação, mais como
partilha do que como algo vertical, como algo que apenas parte do prin-
cípio do estender conhecimento de maneira unidirecional.

151
Debate

Ana Flávia Kama: Estou em um projeto chamado Habeas Liber


da Faculdade de Direito da UnB e entrei como técnica, pois sou biblio-
tecária, para colaborar com letramento informacional, com leituras
colaborativas, essa questão de se estimular a leitura. Vamos propor
algumas rodas de leitura com os alunos da rede pública com os livros
do PAS7. A maioria é aluno do Direito e de fora sou eu e uma colega
da editora. De pós-graduação, apenas eu. E tenho outras experiências
com projetos da Biblioteca Central da UnB, mas não é algo acadêmico,
é mais administrativo.

Rose Dayanne: Já participei de atividades de extensão, mas não tão


institucionalizadas como as que tive contato na FAC. Quando fiz uma
especialização na Universidade Federal do Tocantins, tínhamos uma
disciplina na grade que era sobre extensão e nós tínhamos que fazer
algum tipo de atividade de extensão em escolas públicas. Meu grupo
procurou uma escola e, quando fomos à escola, tínhamos uma ideia do
que íamos levar e estávamos com uma ideia bem planejada. Uma ativi-
dade de redação, alguma coisa nesse sentido. No nosso primeiro contato
com a diretora e com a coordenadora, falando da nossa disponibilidade,
elas falaram assim: “Não, a gente precisa que vocês falem o que é ser jor-
nalista. Temos um grupo dos estudantes de turma noturna e alguns de
Educação de Jovens e Adultos, então estamos numa fase em que os alu-
nos estão em dúvida sobre profissão, sobre o que querem fazer, a gente
vai fazer uma semana de profissões, então vocês caíram aqui como uma
luva”. Então, a minha primeira reflexão com esse contato foi retomando
Paulo Freire, de quando já levamos o nosso conhecimento como se eles
estivessem ansiosos por aquilo e sem ter um diálogo. Esse primeiro
contato com a diretora mostrou que tínhamos algo a oferecer, mas não
necessariamente o que eles queriam naquele momento, eles tinham
outra demanda. Aprendemos tanto com os estudantes que vinham
da escola pública, que tinham outras demandas, outras perspectivas,

7 Programa de Avaliação Seriada do Distrito Federal.

152
e traziam experiências de vida que eram mais ricas do que qualquer
conteúdo teórico que pudéssemos ter compartilhado ali.

Juliana Ferreira: Na Unicamp, trabalhei em um projeto de inicia-


ção científica, com a professora Olga Rodrigues de Moraes Von Sim-
son, chamado “Persistências e mudanças no viver cotidiano da cidade
de Campinas”, em dois bairros completamente antípodas, um era
nobre e o outro popular. Íamos à casa das pessoas, fazíamos entrevistas
longuíssimas, com várias sessões, 16, 20 sessões. Enfim, coletávamos
alguns objetos, depoimentos, fotografias e no final do projeto fazíamos
uma exposição. Conseguimos inaugurar um museu do lado da estação
ferroviária. Era um projeto grande. Fazíamos a mostra e acompanháva-
mos os grupos escolares nesse museu. Depois que o projeto finalizou,
o espaço fechou.

Fernando Oliveira Paulino: Agora descreverei um pouco da nossa


experiência na Faculdade de Comunicação da UnB e do trabalho que
tem sido realizado desde 2001, a partir da criação da Rádio Laboratório
de Comunicação Comunitária, a RALACOCO, que surge justamente
a partir da demanda da Universidade de Brasília e dos seus professo-
res, técnicos e estudantes por uma emissora de rádio que ainda é, como
se diz em espanhol, asignatura pendiente. Ainda é uma tarefa pendente
para todos nós e é herança desse fluxo, desse processo histórico que
falava para vocês agora há pouco.
Fizemos um trabalho de algumas oficinas com jovens, pautadas na
ideia e na possibilidade do rap como instrumento de mobilização social
e de educação. Então, no período “pré-MP3, em parceria com a Secre-
taria de Saúde do DF e com o Ministério da Saúde, produzimos alguns
CDs de prevenção à AIDS, DST, tuberculose e hanseníase; e, fruto des-
sas oficinas, surgiram conteúdos audiovisuais com a participação dos
estudantes e também com a utilização da comunicação como esse ins-
trumento de transformação.
São muitas histórias ao longo do tempo, mas lembro de quando
fizemos esse CD de prevenção à AIDS e o primeiro impulso com o
pessoal do rap que veio era de fazermos um rap sobre AIDS. Tentando

153
ser o mais autêntico possível, a primeira leitura era pesada, com letras
machistas e sexistas. Então, trabalhamos os conteúdos e junto, por
exemplo, com uma pessoa que é a Josi Paz, gaúcha radicada em Brasí-
lia há muitos anos, doutora em Sociologia e que no Mestrado no PPG-
COM/UnB analisou as campanhas de prevenção à AIDS, a letra do rap
mudava significativamente. O que antes era uma agressão à mulher e a
atribuição à mulher pela culpa de alguém ser contaminado pela AIDS,
especialmente naquele momento – começo dos anos 2000 – se trans-
formava em um texto, uma referência muito mais apropriada, digamos
assim, do que a primeira leitura que tinha sido feita e isso também em
diversos outros tópicos.
O projeto começou em 2002 e, com a criação do Campus da UnB
Planaltina em 2006-2007, fomos convidados a desenvolver mais ati-
vidades a partir de Planaltina para estimular uma inserção maior da
universidade e uma comunicação mais bem estabelecida entre a uni-
versidade e a realidade local. Isso significou o desenvolvimento de mais
trabalhos associados ao patrimônio cultural. A partir do campus de Pla-
naltina e de instituições à volta, conseguimos nos últimos anos fazer
algumas ações interessantes, dentre elas, a web série chamada “Minha
Planaltina”8. Contamos com os esforços dos estudantes, da Associação
dos Amigos Centro Histórico de Planaltina, de um grupo de jovens, de
dentro e de fora da UnB, de dentro e de fora de Planaltina, e criamos a
web série que está disponível on-line.
No início, queríamos fazer disso um embrião para outros espaços.
Por que não Minha Taguatinga ou Minha Florianópolis, por exem-
plo? Para estimular esse senso de pertencimento, porque Planaltina,
como dizia, é uma localidade com mais de 200 anos de história e que,
por uma série de circunstâncias históricas, acabou ficando à margem,
ofuscada, com a transferência da capital e o foco na construção e na
inauguração de Brasília.
Muito dessa realidade do que é hoje a paisagem do Distrito Federal
não se localiza apenas com a inauguração da cidade, com a chegada
de Juscelino Kubitschek, mas houve toda uma prática de apagamento,

8 Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLNj32Rxs_7Wi0Gh1GJ9cReM2CnI


qgO1yo.

154
que tem sido cada vez mais deixada de lado na visão que alguns his-
toriadores chamam de triunfalista de Brasília. Tem um historiador, o
Luís Ricardo Magalhães, que fez uma tese sobre essa questão e que ins-
pira nosso trabalho. Luís Ricardo tem uma provocação que, segundo
ele, ainda falta um Erico Veríssimo para fazer O Tempo e o Vento9 da
região do Distrito Federal. Ainda temos essa demanda cinematográfica
e literária para falar dos processos e é um grande estímulo para tratar
de questões associadas ao patrimônio cultural em espaços do DF, para
além da Esplanada dos Ministérios.
Uma das iniciativas, como dizia, foi a criação da web série. E um
dos episódios trata justamente sobre o centro histórico de Planaltina,
a partir do depoimento de uma pessoa envolvida com a promoção do
patrimônio, que é o Rodrigo Otávio, da Associação dos Amigos do Cen-
tro Histórico. Ele faz a ponte entre o passado, o presente e, de certa
forma, o futuro.
Nos últimos semestres, a partir de uma parceria que se estabeleceu
com o Ministério da Ciência e Tecnologia e recursos da Fundação de
Apoio à Pesquisa no DF, a FAP, executamos algumas atividades em par-
ceria com escolas de Planaltina, Sobradinho, Sobradinho 2 e da Fercal.
Foram experiências associadas à Comunicação, à mobilização social, à
educação e ao acesso à informação. Desenvolvemos algumas oficinas
em parceria com os professores e estudantes de escolas dessas regiões e
as atividades mostraram o desafio que temos de desenvolver a atividade
de comunicação e mobilização social com pessoas desterritorializadas.
Então, penso que é um esforço significativo e que não deixa tam-
bém de ser um paradoxo. Quando começamos o trabalho, era mais pre-
sencial. À medida que chegávamos aos lugares, era disruptivo e estimu-
lava as pessoas a conversar, até para saber o que estava acontecendo. Só
que sinto que hoje em dia há um desafio para a universidade desenvol-
ver atividades de extensão em ambientes desterritorializados, nos quais
está grande parte das pessoas. Além disso, as pessoas estão conectadas
via mídias sociais e isso também tem sido um ponto importante para o
trabalho, por isso da web série.

9 VERÍSSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. Porto Alegre: Globo, 1979.

155
No começo do nosso trabalho, às vezes tínhamos poucas tecnolo-
gias que possibilitassem um contato mais permanente com as pessoas.
Hoje em dia, talvez vivamos certas circunstâncias de entropia informa-
tiva. Se poderia haver uma certa inércia por falta de informação, hoje
está havendo um excesso de informação, que embaralha o trabalho que
é realizado, mas isso não significa deixar de realizar a ação. Acredito que
essa é uma grande força do trabalho, na qual os estudantes, os professo-
res e os técnicos envolvidos encontrem ainda mais condições de contato
e de aprimoramento por meio do ensino, da pesquisa e da extensão.
Nesse sentido, tem uma roda permanente que giramos e que
ao longo do tempo tem sido importante para as pessoas que fazem
parte e para a nossa qualificação também. Porque sinto, até à luz
das experiências internacionais, que as universidades no Brasil têm
precariedades, deficiências, mas nossas experiências de ensino aco-
plado à pesquisa e extensão costumam ser reconhecidas fora do país,
costumam chamar atenção.
Na Alemanha, temos parceria desde 2013 com a Universidade de
Dortmund e há uma conexão direta com questões associadas à extensão
e à forma como esses espaços estabelecem pontes com o mundo que
está à volta e que não é algo da tradição das universidades. Enquanto na
Europa existem inúmeras outras instituições culturais e educativas, no
Brasil as universidades assumem essa responsabilidade diante do vácuo
em termos de políticas públicas, em termos de instituições culturais.
Assim, tenho buscado inspiração em diversas pessoas como Nise
da Silveira, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Luis Humberto, também
fundador da UnB, para ter força e colocar em prática as ações.

Eduardo Meditsch: Como gestor ou ex-gestor da Faculdade de


Comunicação da UnB, como a atividade de extensão é enquadrada nas
atividades da faculdade? Como consegue mobilizar as pessoas ou não,
até que ponto e como você vê essa perspectiva de correlação?

Fernando Oliveira Paulino: Essa sua questão me permite falar


de questões um pouco mais dificultosas do trabalho. Imaginemos a
seguinte situação: digamos que vivêssemos em São Paulo 99 anos atrás

156
e fôssemos amigos da Tarsila do Amaral, do Osvaldo de Andrade e do
Mário de Andrade e que eles batessem na nossa porta falando que que-
riam organizar um evento para discutir o modernismo e tal. E aí você
não quer participar da comissão organizadora ou pelo menos ir ao tea-
tro municipal ver o que está acontecendo? E um amigo seu está lá na sua
casa, ouvindo a conversa e levanta a mão e pergunta: está tudo bem, mas
vai ter certificado? Esse pesadelo me vem à cabeça, porque agora vive-
mos esse paradoxo no mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo em
que é importante o reconhecimento ou curricularização e o lançamento
de dados no sistema, tenho um pouco de preocupação com o excesso de
força do sistema perante as pessoas. Parece um pouco 2001 ou Ela, para
falar de um filme mais recente, que vocês já devem ter visto com Joaquin
Phoenix e que trata um pouco de como a tecnologia se impõe.
Uma métrica que tenho é que o tempo de registro de uma atividade
não pode ser superior à duração dessa atividade e, infelizmente, na uni-
versidade, temos vivido uma situação bizarra. Para fazer uma palestra
de uma hora, leva 4, 5, 8 horas para registrá-la no sistema que, muitas
vezes, não vai servir para muita coisa além de certificar as pessoas que
participaram da atividade. Então, é um drama que todos nós vivemos,
especialmente na extensão.
Como se diz hoje em inglês: este é um mindset que se estabeleceu.
Em uma reunião com um dos responsáveis pelo sistema da UnB, falei
que tínhamos que melhorar o sistema porque, por exemplo, se convida-
mos o Oscar Niemeyer para dar uma palestra na UnB, precisamos ter o
CPF do Oscar Niemeyer, o RG do Oscar Niemeyer, o nome da mãe do
Oscar Niemeyer, do pai do Oscar Niemeyer. Não há a menor razão de
ser. O técnico levantou a mão e falou: “Professor, desculpa, esse aí não é
um bom exemplo”. Como assim não é um bom exemplo? Se o meu cole-
giado diz que Oscar Niemeyer é uma pessoa que interessa à Faculdade
de Comunicação, por que precisamos desses dados? Aí ele disse: “Pro-
fessor, desculpa, esse não é um bom exemplo porque o Oscar Niemeyer
foi professor da UnB e temos esses dados no sistema”.
Então, indo mais no conceitual, na época em que estava na dire-
ção, entre 2015 e 2019, busquei estimular muitos colegas a apresenta-
rem propostas para os editais. Algumas propostas foram encaminhadas,

157
conseguimos recursos dentro e fora da UnB para a realização delas, mas
padecemos desse problema: o estrutural, com o Currículo Lattes e o
registro no sistema que se impôs sobre o conceitual.
Por mais que tenhamos nos esforçado para fazer, entendo os
colegas que não se animam a desenvolver essas atividades porque elas
costumam dar muito trabalho. Para falar da minha realidade de hoje,
conseguir que uma pessoa de Nova Iorque se disponha a falar sobre
o filme dela para um grupo de estudantes e levar as pessoas demanda
uma produção enorme. E a instituição oferece pouco reconhecimento
e pouco suporte. A universidade poderia oferecer mais para que os
professores e estudantes fizessem parte das atividades e isso implica,
por exemplo, o registro das atividades e a participação dos técnicos em
ações de extensão.
Então, é importante estabelecer uma cota de créditos, como foi
feito recentemente, como estabelecer condições comparativas de regis-
tros de projetos, mas temo que isso possa significar, na prática, uma
imposição da forma sobre conteúdo. Das pessoas começarem a criar
atividades de extensão “mais para inglês ver” ou sem necessariamente
a estrutura necessária que seria desenvolvida, e isso acabar dificultando
os trabalhos já estabelecidos ao longo do tempo.
Não querendo ir muito para o lado pessoal, mas, recentemente,
aprovamos três projetos no último edital de extensão da universidade
e foram convocados os coordenadores das propostas, algo como 150
professores, participaram da reunião para apresentar o SIGAA e como
a instituição deveria cadastrar. Na minha visão, é mais interessante
chamar as pessoas para discutir conceitos, ações intercruzadas, fazer
um tutorial e um registro simples do trabalho do que ficar tendo que
cadastrar o termo de compromisso e o termo de cessão dos direitos
de imagem para aqueles que vão participar da Semana Universitária,
por exemplo.
Acho que as universidades no Brasil estão mais amarradas do
que as experiências que acompanho fora do Brasil, especialmente na
Europa. Precisamos de tanto papel, tanto documento, tanto memorial e
isso tem sido uma doença que precisamos tratar. Sinto que tem piorado.
Essa robotização da universidade.

158
As administrações da Faculdade de Comunicação ao longo do
tempo têm buscado oferecer espaços. Temos uma sala de extensão, que
foi uma inovação criada no período de 2009 e 2011 que congrega os
estudantes logo na entrada da FAC. Porém, ainda acho que estamos
longe de ter o suporte, as possibilidades estruturais para que o trabalho
seja realizado e que transcenda uma visão mais vertical.
Se analisarmos os sites das universidades públicas brasileiras,
chamam mais atenção aos atos administrativos do que às atividades de
ensino, pesquisa e extensão. Os sites das universidades herdam algu-
mas fragilidades do serviço público, mas também herdam muito do
que as universidades, às vezes, são mais amarradas pelos sistemas do
que têm possibilidade de colocar em prática ações que possibilitem a
comunicação, mobilização social e educação. Isso acaba se refletindo
também no distanciamento entre a educação superior, as instituições
de educação superior, e grupos da sociedade que acabam caminhando
numa outra direção.

Juliana Ferreira: No Brasil, por muito tempo, jogamos muita


coisa importante fora. Não registrávamos. Então, penso que esse é um
movimento em que ainda não conseguimos encontrar um equilíbrio,
mas que é necessário ainda tentarmos registrar e seguir. O que vejo da
realidade brasileira, diferente de outros países, é que temos na carreira
de pesquisadores, cientista e professor numa pessoa só que admite
todas as facetas da pesquisa. Nas universidades americanas, por
exemplo, há pessoas específicas dentro dos laboratórios para aquela
pesquisa e que estão encarregadas de administrar partes burocráticas
dela. Eles têm uma visão de que aquilo ali vai tirar o pesquisador da
bancada de trabalho dele, então colocam outra pessoa. Só que estamos
vendo um desmonte do sistema inteiro no Brasil. As universidades
estão sem dinheiro, sem orçamento. As agências de fomento também.
No caso do CNPq, está com menos orçamento do que a área de Comu-
nicação Institucional do Ministério. É uma estrutura que é diferente.
As universidades têm poucos funcionários e poderiam ter uma estru-
tura melhor para fazer esses registros, para tirar os pesquisadores e
professores do emaranhado burocrático.

159
Fernando Oliveira Paulino: Fui estudante de iniciação científica e
o sistema me amparou. Eu defendo o sistema. Também acho que exis-
tem algumas críticas ao sistema que são muito imprecisas, imperfeitas,
injuriosas. Não estou jogando o sistema científico do Brasil na lata de
lixo, mas temos que aperfeiçoá-lo. É importante ter registro de atividade,
porém vejo que isso gerou certa mania, sabe? Uma referência boa de filme
é o Brazil10, que está disponível on-line e trata um pouco sobre o excesso
do sistema e como esse sistema é utilizado por países totalitários.

José Luiz Niederauer: Sobre a avaliação das atividades de exten-


são, elas também são atividades de responsabilidade social, não são?
Elas têm foco no sentido de envolver os estudantes com os conceitos e
com as práticas. A curiosidade é se existe alguma avaliação ou alguma
percepção mais clara da repercussão que a extensão tem na prática diá-
ria das pessoas.

Fernando Oliveira Paulino: Nós não somos contra a avaliação,


pelo contrário, costumamos ter relatórios e muitas reuniões após as ati-
vidades. No caso da extensão, ainda há um desafio maior para o esta-
belecimento de métricas e indicadores para avaliar o impacto. Temos
registros qualitativos que passam por depoimentos, sobretudo.
Depois do trabalho em Planaltina, vimos o lugar e as pessoas de
uma forma diferente, porque, hoje um pouco menos, mas, especial-
mente no começo das atividades antes da política de reserva de vagas
na universidade, muitos estudantes não tinham saído no plano piloto.
O trabalho também servia para isso. Para estabelecer mais pontes com
a realidade à volta da universidade. Sem querer maximizar demasiada-
mente o trabalho que a gente faz, mas também daria para medir, embora
não conseguimos ainda, como as regiões administrativas são cobertas.
Por exemplo, pelos estudantes de Jornalismo que participam de um tra-
balho como esse em comparação a pessoas que não tiveram a mesma
oportunidade. Tenho a impressão que os estudantes de Comunicação
que passaram pela Comunicação Comunitária (ComCom)11 têm uma
10 Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0088846/.
11 Para mais informações sobre as atividades da ComCom: http://www.comcom.fac.unb.br/.

160
possibilidade maior de olhar para o outro, de desenvolver um senso de
alteridade mais significativo.
Pela experiência e pelo trabalho contínuo que tem sido realizado,
confesso que ainda não conseguimos fazer esse comparativo, até porque
houve certa diluição dos fluxos e dos processos de produção e distri-
buição de conteúdos. Antes era mais fácil, digamos assim, de fazer essa
métrica olhando no principal veículo à época, no Correio Braziliense,
como egressos da FAC/UnB cobriam, no caderno de cidades, as outras
regiões administrativas em comparação com pessoas que não tinham a
mesma experiência. Hoje em dia, isso se difundiu muito com o Metró-
poles, a internet e as mídias sociais.
Queria frisar o seguinte: essas experiências que compartilhei são
mais associadas ao trabalho que tenho participado desde 2001. Mas, a
FAC tem outros projetos como aqueles associados à educação e comu-
nicação e educação ambiental, desenvolvidos ao longo do tempo pela
professora Dione Moura e os associados a exibição de filmes por meio
da professora Rosemeire.
Tem um trabalho do SOS Imprensa, que é um projeto de ensino,
pesquisa e extensão criado em 1996. Fui da primeira geração de bolsis-
tas de iniciação científica, em 1996, do SOS Imprensa, que já tem 25 anos
de funcionamento. Fundado pelo professor Luiz Martins e que agora
está sob a coordenação da professora Rafiza, que tem feito uma ação
dentro da Rede Nacional de Observatório da Imprensa.
Tem ações também ligadas à Comunicação Organizacional e exten-
são. Além disso, há o Laboratório de Áudio, coordenado pelo professor
Elton Bruno, com muitos conteúdos disponíveis on-line. Se colocarem
labaudio.unb.br, podem encontrar a categorização de livros que ele fez.
Lembramos também da professora Nélia Del Bianco e do professor
Carlos Eduardo Esch que fizeram muitos trabalhos associados a áudio,
dentro e fora de Brasília, em parceria com a professora Valci Zuculoto
da Universidade Federal de Santa Catarina.
Temos que render homenagem a essas pessoas porque, mesmo
diante de uma série de dificuldades, conseguiram fazer, contribuir para
o aprimoramento da percepção, da importância da comunicação, e,
dentre essas, está o professor Eduardo Meditsch, que tem um trabalho

161
fantástico e que nos inspira bastante a compreender as minúcias da
Comunicação e do Jornalismo e as possibilidades de compatibilizar
ensino, pesquisa e extensão.
Não posso deixar de estimulá-los a acompanhar outras iniciativas
e outras universidades. Uma instituição querida é a Federal de Santa
Catarina, que tem algumas experiências também radiofônicas, como o
trabalho de Rogério Christofoletti. Não faltam boas experiências. Talvez
uma grande questão para a nossa realidade latino-americana, brasileira,
seja encontrar uma situação na qual a sociedade e o Estado caminhem
um pouco mais em compasso, digamos assim, que talvez as universi-
dades sejam instituições que possam amparar essas ideias e viabilizá-
-las na prática, para que haja mais condições de elaboração, execução e
avaliação de políticas públicas. De acordo com as necessidades que nós
temos e não o contrário, porque muitas vezes vivemos, parafraseando
um livro, uma realidade na qual o Estado está contra a sociedade.
As pessoas que passaram nessa disciplina com vocês poderiam ser
atores-chave para alteração, para mudança, para transformação. Elas
devem ser cada vez mais estimuladas e, obviamente, não devem ser per-
seguidas pelas suas ideias e isso significa defender com unhas e dentes a
importância da universidade, as atividades de ensino, pesquisa e exten-
são e a liberdade de cátedra acadêmica.

162
CAPÍTULO 7

Vocação para a docência:


depoimento de uma professora
de Comunicação Organizacional1

Elen Geraldes2

Qual a especificidade de dar aula de Comunicação? E não de His-


tória, por exemplo, e não de Sociologia, que também é uma área que leio
muito, na qual ingressei por meio do doutorado. É importante pensar
que a maioria das professoras e dos professores de Comunicação não
tem formação pedagógica ou passou por licenciaturas e treinamentos
específicos para serem docentes.
Uma outra especificidade que eu vou identificar aqui é uma valori-
zação do “fazer-fazer”, que significa “vai lá e faz uma reportagem, vai lá
e faz uma matéria”, muito mais do que um “saber-fazer”. Então, muitas
vezes nós abreviamos ou interrompemos aquela etapa inicial de explicar
como se faz, ou debater ou compartilhar ou pensar uma técnica e vamos
muito para o “faça e depois a gente corrige”, para uma certa formação
mais intuitiva.
E uma terceira especificidade é uma fragilidade conceitual da nossa
área, que se apropria muito da Sociologia, da Filosofia. Acredito que é
uma área que muitas vezes padece de uma baixa autoestima e talvez nem
precisássemos tanto desse esforço de adaptação conceitual, que fazemos

1 Palestra ministrada à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo pro-


fessor Eduardo Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 6 de
maio de 2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professora associada do curso de Comunicação Organizacional da Faculdade de Comuni-
cação da Universidade de Brasília e professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos
Humanos e Cidadania (PPGDH) do CEAM/UnB. É jornalista e mestra em Comunicação
pela Universidade de São Paulo, especialista em Docência On-line – Processos de mediação,
monitoramento e interação, doutora em Sociologia e pós-doutora em Ciência da Informação
pela Universidade de Brasília.

163
de outros conceitos que nos são alheios, dos quais nos apropriamos por
muita insegurança.
E quanto às especificidades de Comunicação Organizacional3?
Dentro da Comunicação, a ComOrg não tem um charme ou apelo
midiático. Compreender como se ensina e como se aprende Comuni-
cação Organizacional passa por essa especificidade. Muitas vezes, no
Jornalismo nós já temos todo o imaginário desenvolvido do que é ser
jornalista. Então, naquele primeiro dia de aula, docentes e discentes
estão ali nos seus papéis. Eu me lembro de entrar na Escola de Comuni-
cação e Artes da USP como uma estudante de Jornalismo, e escolher se
comprava um caderno ou um bloquinho. E foi uma decisão tão adulta,
tão profissional para mim, escolher um bloquinho. Tudo isso porque
tem um imaginário que nos antecede. Nem sempre para o estudante de
Comunicação Organizacional existe este imaginário prévio.
Segundo, acho importantíssimo que, diferentemente de outras
áreas da Comunicação, as nossas conexões são com a Administração,
com a Psicologia Organizacional, que são áreas com as quais a Comuni-
cação dialoga menos. E uma terceira especificidade é que, muitas vezes,
a área de Comunicação Organizacional é vista com desconfiança por
que nós somos mais novos, chegamos depois, e somos considerados
uma área menos artística. Eu não sei exatamente se a Comunicação é
artística, mas a ComOrg seria menos artística ainda. E seria vista tam-
bém como uma área menos crítica. A ideia de que se você faz a Comuni-
cação Organizacional de uma grande corporação não caberia a você ser
crítico e teria apenas que convencer o restante da sociedade.
E, por fim, a ideia de que a Comunicação Organizacional seria uma
área até intuitiva. Mas isso também está nas outras habilitações da Comu-
nicação. Por exemplo, quando o nosso curso começou, ouvíamos comen-
tários de colegas de outras habilitações de que a responsabilidade da nossa
área seria fazer confraternizações, montar eventos. “Olha lá, ComOrg é
festinha. Qualquer um sabe montar um evento. Qualquer um sabe fazer
a Comunicação Pública. É só ir lá e fazer.” E, dentro dessa série de clichês
e estereótipos, isso constitui a área com a qual a gente trabalha, coisas

3 Para fins edição e estilo, em alguns momentos, utilizaremos ComOrg para nos referir à Co-
municação Organizacional.

164
que nós temos que desconstruir na nossa prática, coisas que temos que
reinventar, tendo todo esse peso de não ter uma formação específica em
Educação. É uma descoberta, é uma construção, que não tem, talvez, esse
acúmulo como teria em outras disciplinas ou cursos.
Agora vou falar um pouquinho da minha história como profes-
sora. Eu fiz graduação em Jornalismo e trabalhei muitos anos como jor-
nalista, mas eu já fazia o mestrado. Desde o início assim, trabalhando
e fazendo o mestrado, e tendo o universo da Universidade como um
grande objetivo. Eu sempre gostei muito de dar aula, sempre gostei
muito desse espaço da Universidade. Se eu tivesse vindo de uma outra
família que tivesse estimulado essa profissão, provavelmente minha
opção antes de ser jornalista e comunicóloga, seria ser professora, pois
sempre tive um fascínio por esse universo. Então, mantive ali o “plano
b” muito forte, pois sabia que para chegar a ser docente, eu precisava
fazer aquela trajetória de cursar mestrado e de fazer doutorado, e então
fiz tudo muito rápido.
Eu comecei a dar aula como professora substituta durante o meu
mestrado. Então, surgia ali uma oportunidade, ou tinha um seminário,
ou um professor que precisava fazer uma viagem, e assim fui circulando
em disciplinas muito diferentes. E essa foi uma coisa comum na minha
trajetória. Outro dia estava contabilizando e acho que já lecionei em
mais de 40 disciplinas. Eu gostava, e às vezes nem conhecia nada daquela
disciplina, mas o professor precisava: e então eu ia, pesquisava aquele
conteúdo, lia e fazia associações. Acho que foi muito importante isso,
porque eu acredito realmente que uma forma muito eficaz de aprender
mais alguma coisa é dar aulas. Pois esses dois polos constituem e são
faces da mesma moeda, que são o ensino e a aprendizagem.
Quando eu vim para Brasília no final dos anos 90, movida por um
concurso, pois passei no concurso do Itamaraty para Oficial de Chance-
laria, era um plano também, pois, se eu gostasse, seria diplomata. Por-
que esta questão da Comunicação que tinha sido muito fértil, para mim
mostrava muito seus limites, os limites do Jornalismo, aqueles interesses
muito nítidos, e ao mesmo tempo ter sempre que fazer aquele jogo de
cintura de lidar com aqueles interesses evidentes daquelas empresas de
comunicação. Às vezes, você fazia aquela matéria ótima, mas não rolava.

165
As pautas já eram muito direcionadas. Eu vi muito esse problema e tam-
bém outro problema de falta de continuidade. Então, aquela atividade,
em algum momento, passou a ser para mim sem sentido, isso no Jorna-
lismo como repórter, editora, revisora.
E na trajetória nas organizações, achei interessante porque come-
çavam a surgir outros desafios, organizações de terceiro setor, que tam-
bém tinham as suas pautas, os seus interesses, mas que pelo menos eram
diferentes dos interesses que eu vivenciava até ali. Aí eu falava: “vou
trabalhar no Itamaraty porque eu quero ser uma profissional da comu-
nicação e da transparência naquele espaço”. Mas, imaginem uma profis-
sional da transparência no Ministério das Relações Exteriores, que acho
que é o lugar em que há um culto muito forte ao segredo, necessidade de
silêncio, de relações muito assimétricas... Enfim, eu era uma menina de
São Paulo, criada com toda aquela ideologia da livre iniciativa e nunca
no meu universo passou pela minha cabeça ser servidora pública, não
tinha nada a ver com a minha história familiar e pessoal. Mas eu vim
para o Itamaraty e tinha aquela vontade de ser professora.
Tinha começado o doutorado na ECA, mas não pude continuar
porque não havia doutorado em Comunicação na UnB ainda. Então,
eu queria continuar e não podia, e o Ministério se mostrou uma grande
decepção. Momento em que eu vi um anúncio no jornal, no Correio
Braziliense, de seleção para o doutorado em Sociologia na UnB. E eu
pensei: “Olha lá, eu não entendo muito de Sociologia”. Eu tive Sociologia
da Comunicação com Mauro Wilton de Souza, com a Maria Aparecida
Baccega, com a Maria Immacolata Vassalo Lopes, com aqueles professo-
res daquele turbilhão que era a ECA no começo dos anos 1990, na gra-
duação e depois na pós-graduação. Então, escrevi um projeto e coloquei
a Comunicação lá, meio disfarçada, mas estava lá, a Comunicação, o
meu DNA, algo que eu não queria negar. Apresentei o projeto, fui muito
bem avaliada, e fui para a entrevista. Eu me lembro de que na entrevista,
fui recebida como uma estranha por ser de outra área e de outra cidade.
Mas fiz meu doutorado, que foi uma homenagem a tudo que estu-
dei na vida. Era um doutorado sobre vacina, sobre a erradicação da
poliomielite no Brasil. O sucesso das estratégias vacinais e como o Brasil
se tornou um dos países em que mais rapidamente se erradicou a pólio

166
no mundo. Então, a tese “Além das três gotinhas: legitimação e risco na
erradicação da poliomielite no Brasil” virou o livro Comunicação cientí-
fica e sociedade de risco4.
Eu não fiquei nem um ano no Itamaraty e pedi exoneração para
fazer o meu doutorado com tranquilidade, dar aulas e ser feliz. Eu que-
ria realmente estar na Universidade e ser uma docente. Então, o douto-
rado fiz muito rápido, em dois anos e meio. Eu tinha de fato pressa, pois
queria mesmo investir no que eu nunca tinha tido tempo de investir
integralmente, que era ser professora. Em seguida, fui convidada para
ser professora em uma instituição privada. Nunca tinha entrado numa
faculdade particular, meus ensinos médio e fundamental foram em ins-
tituições privadas, mas o ensino superior, graduação, mestrado e douto-
rado, foram, estava sendo, em instituições públicas.
Eu entrei e foi muito interessante, pois estava terminando o douto-
rado e ministrando 40 horas de aulas semanais. Então, me lembro que
chegava cansada, aquela jornada de 40 horas em sala de aula, você não
chega e descansa, vai corrigir trabalhos. E eu passava um trabalho em
cada turma, em cada aula, e eram umas 10 turmas. Eram 400 trabalhos
semanais corrigidos. Eu reservava duas horas quando acordava e duas
horas antes de dormir para a correção, descansava um pouco, e escrevia
a tese, entre meia noite e duas da manhã, todas as noites, de domingo a
domingo. Lembro que teve um Ano Novo em que eu olhava pela sacada
do meu prédio, digitando a minha tese, tapava os ouvidos, e, como não
tinha fone, colocava algodão nos ouvidos para não ficar ouvindo os
fogos. Às vezes dava um friozinho desses de madrugada, e meu marido
acordava e levava um chá quentinho para eu tomar enquanto escrevia a
tese. E foi assim até concluir meu objetivo.
As pessoas me perguntavam porque demorei tanto tempo entre
concluir o doutorado e entrar na universidade pública. E eu respondia
que havia acontecido um governo que não tinha concurso, que era o
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Então eu passei em
outra instituição privada, e, em 2002, comecei a dar aulas na Universi-
dade Católica. A experiência foi muito bacana porque passei também

4 GERALDES, Ellen. Comunicação Científica na Sociedade de Risco. Brasília: Editora Universa,


2008.

167
a fazer pesquisa e iniciação científica com os alunos. Nós fazíamos os
projetos de pesquisa e era muito interessante. Porque o primeiro movi-
mento que tive de dar aula em uma instituição privada era realmente
sala de aula, o tempo todo, e a nossa grande discussão era se haveria
possibilidade de ter algumas horas a mais para orientação de TCCs, no
entanto, era uma disputa, era um braço de ferro que as coordenações
tinham com as direções: “que tinha que dar lucro, que professor era
muito caro, porque não podia...”. E daí, entro numa universidade, que
não era uma universidade pública como a UnB, mas que tinha muitas
bolsas de estudo e estudantes muito bons, muito engajados e interessa-
dos. E havia esse convite à pesquisa também. Foi um aprendizado dar
aula em salas cheias, dar muitas aulas e de tentar fazer aulas que tives-
sem um dinamismo. Esse aprendizado foi muito intenso pra mim e eu
o carreguei quando entrei no curso na UnB em 2010 para constituir as
minhas estratégias de aula, que eu quero compartilhar aqui.
Começar a aula sempre com um momento para troca de informa-
ções sobre o curso e sobre a experiência de ensino. Hoje no ensino remoto,
toda aula começo perguntando sobre como está o momento do semestre.
Como está sendo essa experiência do agora. Eu adoro dar aula para o
primeiro semestre, gosto muito dessa energia de quem está ingressando e
sempre começo a falar sobre a trajetória na universidade, o que é isso, afi-
nal, quais as possibilidades de ensino, de pesquisa e de extensão. Tem esse
momento que acho importante, seja no remoto ou no presencial, que é o
momento da afetividade mesmo, como se a gente só engrenasse se tivesse
essa troca. Porque às vezes os ambientes ficam muito ruins. Eu que já dei
aula em várias instituições, em situações muito específicas, me lembro em
uma instituição que dei aula, que houve um problema ali e foram cortados
os financiamentos estudantis, e ao entrar para a aula, com essa estratégia
de falar um pouco no início, e nesse momento tudo desaguou, choveram
comentários, observações. E nós não desenvolvemos os outros aspectos
da aula, mas foi muito importante aquela catarse, pois depois, nas aulas
seguintes, nós já tínhamos vencido essa etapa.
Em segundo lugar, ainda hoje, para cada aula, eu faço um plano de
aula, embora tenha o plano de ensino para o semestre inteiro, eu gosto
de elaborar um plano de cada aula. Sempre falo: “vamos falar disso hoje,

168
vamos conversar sobre isso. E isso se conecta no curso com esses aspec-
tos”. Por que eu faço isso? Porque acho muito importante, na minha
vivência, de alguém que tem o DNA comunicacional porque estudou
Comunicação desde sempre, e que dá aulas há mais de duas décadas
em Comunicação, o que me passa é a ausência de continuidade. Como
nós temos muitas vezes conteúdos legais e interessantes que ficam total-
mente fragmentados, eu gosto muito de trabalhar esta continuidade.
Então, tento fazer a vinculação de como aquele tema, aquele conteúdo,
se relaciona com o restante do curso.
Penso também que é muito importante fazer uma sensibilização
pela arte e pela atualidade. O que significa isso? Significa que estou sem-
pre aqui com um livro: “Olha gente, esse livro que li, muito legal...”. Eu
levo uma música, falo do que está sendo discutido na CPI da Pandemia.
Essa também é uma forma de engrenar, de trazer as pessoas para o que
já foi discutido, lido, vivido. Essa ideia de que o conhecimento precisa
estar situado em algumas bases e eu preciso mobilizar, chacoalhar. Em
seguida, claro, fala-se daquele conteúdo e se lança a palavra para os alu-
nos participarem. Que hoje é um movimento ainda mais difícil, porque
parece que a câmera, o equipamento, a mediação, aumentam dez vezes a
vergonha. Mas, fico o tempo todo estimulando essa troca, essa conexão.
E termino sempre uma aula com uma atividade. “Vai lá, vai construir o
seu conhecimento.” Aqui eu provoquei, mobilizei, sensibilizei, mas leia
aquele texto que está indicado, faça um comentário, veja um filme, me
traga alguma coisa. E sempre tento devolver o que chega até mim.
Eu trabalho muito com meu grande tema de pesquisa, que o curso
de Comunicação Organizacional me permitiu aprofundar, que é a
comunicação pública, é a ideia de transparência. Trago sempre a ideia
de que não é somente útil ter voz, ter voz não é o suficiente. Nós que-
remos ter voz e queremos ser ouvidos. Então, o trabalho que chega na
minha mão tem o meu compromisso ético, humano, afetivo de retor-
nar, de compartilhar, de buscar possibilidades, de provocar, isso é muito
importante para mim.
Vamos para um exemplo prático. Trabalho muito com a Lei de
Acesso à Informação (LAI). Esse semestre eu voltei de um segundo
pós-doutorado sobre este tema e ofereci uma disciplina optativa sobre

169
o assunto. Na última aula que eu dei sobre o tema, perguntei para os alu-
nos se eles ouviram falar nos seus cursos sobre transparência, comunica-
ção pública e lei de acesso à informação. E foi muito rica essa troca, por-
que era uma disciplina optativa, com pessoas de vários cursos. Tinha um
aluno de Engenharia que comentou que atualmente a área está discutindo
a transparência com certo receio porque houve várias denúncias ligadas
à Petrobrás, e surgiu a discussão da corrupção. E outra aluna acrescentou
que a transparência não é somente uma luta contra a corrupção.
Em seguida, expliquei que nós iríamos conversar sobre a LAI, a
transparência e a comunicação pública, em um aspecto que acho fun-
damental. Estamos rumo aos 10 anos da lei de acesso à informação, que
é uma lei que, apesar das suas contínuas ameaças, pegou no Brasil. A
minha pergunta é: Por que nem 0,5% da população já utilizou a LAI? O
que nos faz, de certa forma, impermeáveis ao uso desse instrumento em
busca de transparência? Foi legal porque cada um evocou no curso o que
já tinha visto sobre comunicação pública, dados abertos. E então, fomos
costurando. Isso se vincula à comunicação pública sim, se vincula a
dados abertos. Alunos de Jornalismo falaram que se vincula à apuração,
o pessoal da Educação falou que se vincula à ideia de construir relações
simétricas. E então, eu trabalhei com a ideia de que o acesso à informa-
ção na nossa sociedade de origem colonial, escravocrata, patriarcal bate
em uma grande barreira de que muitas vezes nós não temos letramento
informacional. Então, as informações não chegam a nós hierarquiza-
das, do ponto de vista de que algumas têm uma fonte melhor, ou foram
melhor apuradas. Nós não conseguimos, enquanto sociedade, muitas
vezes, estabelecer o diálogo com o que recebemos.
E o que trabalhei para sensibilizá-los da discussão foi a CPI da pan-
demia, de como não se trata somente de corrupção, mas de uma total
ausência de diálogo, que passa por uma linguagem inadequada, pela
ideia de não se ter um objetivo em comum, pela fragilidade dos meca-
nismos de comunicação pública, e passa também pela fofoca. Então,
nós construímos algumas categorias informacionais, busquei também
alguns teóricos da fofoca, e trabalhei com eles uma música com vídeo5.

5 Música “Turma da Fofoca”, de Andrea Fontes, clipe oficial disponível em: https://www.youtu-
be.com/watch?v=6t-Q1DOk_n8&ab_channel=MKNEWS.

170
Nessas aulas sobre a LAI, eu tenho muito receio de quando a gente
começa a falar, de as pessoas acharem chato, pesado e difícil de fazer pon-
tes. Então, com o vídeo da turma da fofoca, que descobri procurando na
rede, surgiu uma rica discussão a respeito, por exemplo, da questão racial,
pois naquele vídeo os fofoqueiros são negros; uma discussão sobre gênero,
pois, embora seja um casal fazendo a fofoca, a iniciativa é da mulher, como
se fosse aquela que inicia a fofoca, e o homem, tal como Adão, enganado
pela Eva, cai na fofoca. E assim têm várias questões. Tem também a ideia do
que é fofoca, que nós conseguimos relacionar, por exemplo, com as ques-
tões da veracidade e da linguagem não-técnica, o que foi bem interessante.
É com sensibilização e trazendo um material que muitas vezes é da cultura
pop ou da cultura religiosa, mas que sempre pode ser apropriado e proble-
matizado. Eu diria que a minha grande metodologia de ensino sempre foi
essa: me cercar de vários materiais e discuti-los.
Então, na aula seguinte, ao falar dessa questão do direito à comuni-
cação, eu trouxe o livro da Abi Daré6, escritora nigeriana, que fala sobre
o casamento forçado de uma menina de 14 anos, que foge, é obrigada
a viver em uma condição de escravidão e encontra a sua própria voz
pela educação. E a ideia de que a construção do direito à comunica-
ção passa por outros direitos, numa relação de interseccionalidade e de
diálogo. Após termos um momento de troca e conexões, passamos para
uma atividade de construção do conhecimento, para que cada um, cada
uma, olhasse para a Universidade e fizesse uma questão sobre a LAI,
que pudesse entrar via lei de acesso à informação para a Universidade,
alguma coisa que não fosse transparente, que não estava dito, que habi-
tava, muitas vezes, o universo da fofoca, mas ninguém sabia ao certo. E
surgiram questões maravilhosas: a respeito do preço do restaurante e
de como foi definido esse preço; sobre processos de assédio moral. E foi
interessante essa ideia de construir a utilização da LAI em uma socie-
dade que ainda a utiliza muito pouco.
Quais os desafios que eu enxergo em ser docente de Comunica-
ção e de Comunicação Organizacional? Acho que nesse momento as
duas coisas dialogam muito. Eu sempre observei que um grande desafio

6 DARÉ, Abi. A menina que não se calou. Rio de Janeiro: Editora Verus, 2021.

171
é a relação entre os colegas. Às vezes eu me perguntava: será que é só
nos cursos de Comunicação? Será que é da Universidade isso? Será que
é de ser professora? Será que é de ser humano? Eu acho que são relações
extremamente tensas. Claro que no ambiente da Comunicação, no mer-
cado de trabalho da área, também vivenciei relações muito tensas e de
muita competitividade, como vocês podem observar. Mas será que esse
ethos do nosso mercado profissional, ele se reproduz nos nossos cole-
giados, nos espaços universitários, na academia? Então eu sempre achei
esse desafio das relações entre colegas muito difícil.
Outra questão, o desafio das relações entre os cursos, como se hou-
vesse uma hierarquia. Lembro-me de uma vez que os alunos de Comu-
nicação Organizacional pegaram uns equipamentos, umas câmeras e
foram gravar. Então, uma professora de Audiovisual, indignada numa
reunião do colegiado, disse o seguinte: “Olha, eles saíram com os nossos
equipamentos”, quando os equipamentos são da Faculdade e não de um
curso. Então eu olhei e pensei em como as relações entre os cursos são
difíceis, são desafiadoras.
Eu participo de vários projetos de pesquisa e também sou uma pes-
quisadora apaixonada. Embora, não tenha vergonha de dizer que sou
mais uma mulher de ensino. Essa é a minha prioridade, é o que eu mais
gosto, que acho que está na minha história, no meu temperamento, na
minha personalidade, na minha vivência, no meu gosto, na minha sub-
jetividade. Mas, eu acho que na universidade eu coloco essa valorização
da pesquisa entre aspas, porque não sinto que seja exatamente pesqui-
sar, mas ter alguns produtos da pesquisa que são mais bem vistos e se
dá uma atribuição a eles que nem sempre o ensino tem. E há muitos
docentes que enxergam a sala de aula como o espaço da monotonia e a
pesquisa como o espaço do plus, daquela coisa legal. Eu acho que a sala
de aula é um espaço muito legal de pesquisa, inclusive.
Uma outra coisa que acho forte é a pouca continuidade das práti-
cas. Eu vejo que às vezes surgem práticas muito legais que não têm con-
tinuidade, práticas em aula. Então, é raro em uma disciplina, por exem-
plo, ter dez edições, aperfeiçoando, melhorando, descobrindo alguma
coisa que contagia, fazendo parcerias, mas, mesmo as bem-sucedidas,
são muito interrompidas.

172
Eu vejo também um grande esvaziamento dos modelos de avaliação.
A única coisa que me entedia na sala de aula, na experiência docente, são
os modelos de avaliação repetitivos, pomposos, que acho meio sem sentido.
Claro que um desafio é o excesso de trabalho. Acho que isto está muito
ligado a ser docente mesmo. Temos muitas frentes, e então meu lattes tem
que brilhar. As aulas têm que acontecer e são muitas. E tem os PIBICs7, tem
as reuniões e de uma hora para outra tem que entregar um relatório.
E esse elemento de solidão também. Eu faço parte de um grupo com
outras quatro amigas do curso. Nós criamos um grupo de encontro em
que nós tomamos um chá virtual. E isso tem feito muito bem. Eu parto
da ideia, pelo menos minha vivência como docente foi assim, de que nós
professores, muitas vezes, puxamos um caminhão cheio de gente ladeira
acima. Imagina que tem quarenta alunos que dependem de você, que se
você estiver doente aquela rotina será alterada, independentemente de
você ter garra, energia, otimismo e vibração para levar até o final dessa
disciplina, por exemplo. Nas disciplinas de Comunicação Organizacio-
nal, as turmas são lotadas, com mais de cinquenta alunos, cabe todo
mundo, quanto mais gente mais divertido. E nisso você às vezes está
muito só. Então, nós nos apoiamos e é muito bom. Essa experiência,
é fruto dessa maturidade como professoras, como mulheres. Daí, uma
teve o projeto apoiado, a gente comemora. Foi pela primeira vez, depois
desses anos todos, que eu sinto que não estou só.
Falei dos limites, mas eu seria injusta se não falasse das possibilida-
des e dos ganhos, daquilo que nos tira da cama todos os dias. Nessa tra-
jetória, eu fui professora homenageada mais de 40 vezes; orientei mais
de 200 trabalhos de graduação. De fato, eu tenho alguns ex-alunos e alu-
nas que são meus amigos há mais de duas décadas. A minha professora
de graduação, por exemplo, escreveu um livro sobre a história da vida
dela e me colocou como personagem. Então, eu sinto que é uma troca
muito boa, que é uma experiência de contínuo aprendizado. E que dá
grande medo, como um medo que é muito forte que é o de desatualiza-
ção tecnológica e profissional: será que eu ainda tenho algo a dizer? Isso
me inquieta às vezes, mas continua funcionando, dando certo.

7 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica.

173
Debate

Eduardo Meditsch: É um depoimento maravilhoso, acho que


tocou em tantas questões importantes e conseguiu resumir assim tan-
tos aspectos dessa nossa vida de professor, que fiquei impactado aqui.
Achei muito legal essa sua colocação sobre essa perspectiva ou essa
estratégia didática de levar materiais, de problematizar essas questões,
e nisso temos discutido bastante Paulo Freire, isso é tão freiriano. De
certa maneira, tem até uma analogia com o método original dele de
alfabetização, em que ele colocava aquelas gravuras para problematizar
o mundo real, e é uma adaptação disso para o ensino superior que é
muito interessante. E também essas questões mais emocionais que você
trouxe, que estão relacionados à nossa atividade de docentes, acredito
que todos nós de alguma maneira enfrentamos isso. E a relação entre
colegas realmente é uma questão que também tenho falado sobre. Não
sei se realmente a universidade é um lugar em que as pessoas, até pela
relativa autonomia que têm, diferente do que acontece numa empresa
de mídia, embora haja também esse ego no trabalho como jornalista,
não tenha talvez tanto espaço para a expressão desse ego como pela
autonomia que se tem na universidade. E isso não é de agora, tenho
observado isso desde o meu mestrado. Lembro de uma disciplina que
fiz na ECA com o professor José Marques de Melo sobre Pedagogia da
Comunicação e essa relação era um dos temas. Isso acontece em muitos
meios, mas na universidade, por algum motivo, que vale uma pesquisa,
certamente merecia ser mais investigado. Outra questão que você trouxe
é essa relação da Comunicação Organizacional com áreas com que nor-
malmente, digamos assim, os estudos mais tradicionais ou hegemônicos
da nossa área, não se relacionam. Isso também tem me chamado muita
atenção, particularmente mais voltado para o Jornalismo, e acho que
tem duas áreas que deveríamos nos relacionar muito mais que seriam
a da Educação e a da Ciência da Informação. Que são duas áreas das
quais realmente as Teorias da Comunicação não se alimentam. Então, a
Comunicação Organizacional traz outras referências e isso é enriquece-
dor para a nossa área. Nós falamos muito de interdisciplinaridade, mas
a nossa interdisciplinaridade, de fato, é muito limitada para algumas

174
disciplinas e pouco aberta para outras. E ainda essa questão com a qual
você encerrou, de uma maneira muito emocionante, que envolve o
nosso trabalho com a solidão, e é muito interessante essa experiência
que compartilhou do grupo, e eu sinto uma necessidade enorme disso,
especialmente nessa situação de professor visitante que não está fisica-
mente na universidade, e em todo esse contexto de pandemia. E também
a questão do medo. Cada aula é um desafio e tem dias que você não está
bem e isso acontece muito na nossa vida. Essa pressão da tecnologia em
constante transformação, a pressão da pesquisa científica. Essa dupla
orientação da universidade, para o ensino e para a pesquisa, e de como
isso muitas vezes tensiona a vida dos professores. De como o ensino não
é valorizado como a pesquisa, em termos de carreira, embora, é claro,
em termos de satisfação pessoal seja muito gratificante.
A senhora na sua disciplina adota uma série de técnicas de par-
ticipação e sensibilização e ao mesmo tempo diz que se sente solitária
no Departamento. Ou seja, onde está o momento do planejamento e o
monitoramento no curso de Comunicação do que foi planejado? Eu fico
curioso para entender aquele documento (Projeto Político-Pedagógico
do curso) que está escrito, parece que não se realiza totalmente, parece
que é difícil transformar aquele plano do papel em uma ação cotidiana
que reflita nesse respeito que a senhora demonstrou, e tem demons-
trado, pelos seus alunos.

Elen Geraldes: Que pergunta instigante. Eu acho que já viven-


ciamos isso com amigas da Psicologia que falam “todo mundo deveria
se entender na Psicologia, ter um caminhão de empatia, saber ouvir”.
E na Sociologia, em que as relações deveriam fluir. Ou na Comunica-
ção que as pessoas deveriam saber se comunicar. Ou na Comunicação
Organizacional em que a comunicação interna deveria ser maravilhosa.
De fato, a gente tem todas essas técnicas. Por exemplo, atualmente eu
sou professora de Planejamento, tenho lido e me dedicado a isso, mas é
muito difícil e talvez passe por esse caráter de autonomia do docente. E
nós perdemos muita coisa pelo caminho. Uma profissão que já teve um
reconhecimento financeiro e uma visibilidade simbólica enormes, mas
que foi sendo deixada de lado. No entanto, algo em que a gente se agarra

175
e que nos constitui é a autonomia: por exemplo, o MEC (Ministério da
Educação) não muda a nota dada por um professor. Isso eu me lembro,
como diretora de curso, tive alguns cargos de gestão, e houve realmente
situações de muita injustiça, onde você vai para instâncias, mas o MEC
não muda a nota que um professor deu. Então, é uma autonomia que é
quase incoercível, que nos torna quase ingovernáveis e é algo que não
necessariamente nos beneficia. Eu comparo com tema livre de redação.
Eu me lembro de que numa época a Fuvest (Fundação Universitária
para o Vestibular da USP) colocou o tema livre de redação e nunca
houve tantas reprovações, porque o tema livre é algo muito difícil de se
enfrentar. Então, de fato, é uma incoerência. Pois, nós conhecemos os
mecanismos, nós temos as técnicas, nós já as trabalhamos teoricamente,
mas para que elas aconteçam é necessário ter essa disposição. Você
mudaria seu plano de ensino por conta de algo que foi compactuado?
Às vezes não se respeita nem uma ementa. Nas instituições privadas
existem mecanismos de controle que são bem mais “efetivos”. Por exem-
plo, alguém que reclama que a ementa não foi respeitada, pode implicar
demissões, mas mesmo assim há muitas formas de burlar isso. Agora,
em uma instituição pública – também nem defendo que haja essas téc-
nicas –, infelizmente, isso faz parte. Eu não sei se mais ou menos do que
em outros cursos, porém acontece, e é uma grande incoerência.

Ana Flavia de Faria: Há uma dificuldade maior em dar aulas de


graduação? E os calouros, são o maior desafio? Como fisgar aquela
turma para que não sejam pessoas que irão sair do curso? Como pode-
mos instigar questões tanto do ensino como da pesquisa? Quais são as
técnicas ou o que te motiva em incutir nos alunos da graduação essa luta
epistemológica do currículo, de como tudo internacionalmente muda e
acaba atingindo o Brasil e a América Latina no campo da Comunicação?
De como é esse desafio, porque foi muito rico o que você mostrou para a
gente e acho que a sua resposta, de certa forma, pode ser interessante e
aplicada também ao ensino de outras áreas do conhecimento.

Elen Geraldes: Muitas coisas interessantes. A primeira, eu fui pro-


fessora da pós muitos anos aqui da Comunicação, resolvi sair não pelos

176
alunos, mas por aqueles conflitos que acontecem. Fiquei pesquisando
na universidade e, pela primeira vez, percebi o quanto a Comunicação é
endógena. É outra contradição. Nós circulamos muito na Comunicação
e pensei “onde que vou dar aula na pós? Pois quero em algum momento
conhecer outros estudantes”. Isso na Sociologia eu fazia, porque tive tur-
mas como prática docente de alunos de outros cursos. E estou aplicando
para a pós da Ciência da Informação, que acho que tem muita coisa a
ver com a Comunicação, do ponto de vista dos conteúdos, embora os
ethos sejam muito diferentes. Então, será um desafio aprender como as
coisas funcionam. Foi interessante também você falar dos calouros. Para
a ComOrg, os calouros nunca foram muito um desafio. É interessante
até por ser um dos cursos que têm menos evasão na universidade. E os
calouros são autossugestionáveis. Lembro-me de que às vezes eu apare-
cia com um livro na aula e no outro dia eu via uns quatro livros iguais
nas carteiras. Depois eu acho que as coisas vão se endurecendo. Dizem
que existem dois sonhos dos estudantes universitários: o primeiro é o
sonho de entrar na Universidade, que rapidamente se torna o sonho
de sair da Universidade, infelizmente. Eu tinha muita ansiedade a res-
peito disso: será que está funcionando? Será que o pessoal está apren-
dendo? Quando acabava uma disciplina, eu ficava duas semanas triste,
pensando que apesar de tanta construção, as coisas funcionaram muito
pouco, mas hoje eu relaxo tranquilamente. Porque eu acredito mesmo
que o nosso papel é de sensibilização para alguns temas e que a cons-
trução do conhecimento é uma parceria. Eu vou de mãos dadas com
o outro, mas eu não posso carregar nos meus ombros, os ombros do
professor já carregam muito peso. Por exemplo, no primeiro dia de aula,
o aluno vem me contar sobre o pai que usa crack e me pergunta: “O
que que eu faço?”. É com isso que eu me deparo no dia a dia, essa é
minha vida. E eu não posso, além de tudo, colocar no ombro a respon-
sabilidade pelo conhecimento do outro. Então, eu digo: coloque o seu
máximo, nesta perspectiva de buscar relações, fazer associações, e esse
conhecimento vai acontecer desde que ele seja buscado. Tem que ter
sensibilização e uma motivação daquele estudante e às vezes em alguns
semestres aquelas pessoas não estão motivadas, mas sempre tem o gér-
men dessa sensibilização que pode ser construído.

177
E já fazendo uma ponte com o currículo de ComOrg, nós somos
o primeiro curso do Brasil, e um dos primeiros do mundo. E isso
nos deu muita liberdade. O currículo original foi construído pelo
pessoal das outras habilitações, tinha gente da Publicidade, tinha do
Jornalismo. E o que deu certo foi que a gente se apropriou com o
máximo de paixão de cada disciplina. Eu passei a minha vida toda
acreditando que eu tinha de ser fruto de um projeto pedagógico. Eu
falava sobre isso e acreditava que o meu curso tinha que ser fruto
daquele projeto pedagógico. Hoje eu acredito que o projeto pedagó-
gico é fruto de quem somos como professores. Mas fica chocante: “E
se cada um der o que quer?”. Porque as pessoas frequentemente já dão
o conteúdo que conhecem e dominam, elas já fazem a apropriação
delas. O importante é que elas façam a melhor apropriação possível
daquela ideia, daquela construção, daquela utopia, que é o projeto
pedagógico e, a partir dessa apropriação, que elas construam pontes.
Então, eu acho que em alguns momentos há fragilidade quando essas
pontes não são construídas, quando as pessoas se seduzem – e eu
acho muito sedutor – pelo “projeto Eu & S.A.”, com o foco em si mes-
mas, deixando o curso como uma coisa chata que é um compromisso
no final do dia. Então a gente tenta dizer o seguinte, “que legal, esse é
o seu caminho, mas vem e traz um pouco disso para o curso”. Vamos
fazer um PIBIC com esses alunos e tentar integrar o que nós pesqui-
samos ao que nós ensinamos. Porque, se não, gera aquela cisão que
é horrível entre o professor de pós e o professor de graduação. Um é
“top” porque tem esse reconhecimento institucional, e o outro car-
rega o piano das dez mil disciplinas que ninguém ouve. Esse tipo de
cisão é horrível, acho que acaba com o curso, gera as assimetrias e as
injustiças pelas quais a gente sofre tanto.

Alberto Miranda: Uma das questões que me deparei ao ingressar


na pós em Comunicação é que não existe uma área de pesquisa dentro
da pós-graduação em ComOrg. E eu queria ouvir um pouco de você
que passou todo esse tempo de Comunicação Organizacional, orientou
muita gente tanto na graduação quanto na pós-graduação: como é a sua
visão na pós-graduação da Comunicação Organizacional?

178
Elen Geraldes: Eu acho que a Comunicação Organizacional está
em todos os lugares e está em lugar nenhum. Nas empresas juniores eu
observo isso. Não tem uma empresa júnior de ComOrg, mas se formos
olhar todos os quadros diretivos têm estudantes de ComOrg. Nós temos
pelo menos cinco egressas que já estão no doutorado. Tem muita gente,
mas de fato pesquisando outras coisas. Alguns assuntos que no fundo
são de Comunicação Organizacional, mas não exclusivamente. A gente
chegou a pensar em criar uma linha de pesquisa de Comunicação Orga-
nizacional. E eu acho que é muito interessante isso, mas houve mui-
tas resistências no próprio curso, porque, se você cria uma linha, acaba
denunciando quem não estuda Comunicação Organizacional ou quem
é avesso a ser colocado em uma caixa da Comunicação Organizacional.
E eu já senti mais falta disso, porque eu acho que uma linha nos legi-
tima, nos impulsiona ainda mais e nos faz participar dos grandes fóruns
da Comunicação Organizacional, porque ela não é de forma nenhuma
uma área frágil, mas sim uma área muito institucionalizada dentro da
Comunicação. Eu diria que mais institucionalizada do que outras áreas
que a gente conhece. Dando um spoiler, nesse grupo de amigas, nós esta-
mos pensando em propor uma Especialização. Eu sei que as especializa-
ções foram muito banalizadas na década de 1990 e anos 2000, mas ainda
acho que são locais de fala muito importantes. Porque eu ainda acho que
um egresso de Jornalismo muitas vezes não entende nada de Comunica-
ção Organizacional. Inclusive, dou-me como exemplo, fui construindo
esse conhecimento depois da graduação. Então, nós podemos ir cons-
truindo, a partir desse corpo de estudantes e da riqueza dessa produção,
talvez essa linha tão almejada. Eu já tenho em mente vários futuros pro-
fessores do nosso curso, de pessoas que saíram e vivenciaram o curso.

Rose Dayanne: Pensando como uma futura professora, imagino


que uma das primeiras coisas que os estudantes de Comunicação Orga-
nizacional perguntariam seria sobre o mercado de trabalho. Então, o
que falar para os alunos quando eles perguntam: em que podemos tra-
balhar? Quais são os campos de trabalho? A outra questão, retomando
o comentário sobre Paulo Freire, gostaria de saber sobre a sua relação
e proximidade com o método de Freire, no sentido que você trouxe

179
na sua fala de “lançar a palavra”. De trazê-lo assim de forma tão possível
também no ensino superior e não só na alfabetização.

Elen Geraldes: A gente precisa de gente que goste de dar aula. Em


geral, sou muito tolerante, mas uma coisa que eu não tolero é colega
que não quer estar aqui. Então, eu fico mal-humorada, fico grossa,
eu não aguento. Dar aula é uma oportunidade muito grande. A gente
influencia a vida de muitas pessoas, nós tocamos muitas coisas. E eu
vi tanto como aluna quanto como colega, muitos professores que não
queriam estar aqui. Desde os colegas que eram aqueles professores full
time quanto aqueles part time, que durante o dia trabalham em alguma
área de Jornalismo, da Publicidade ou de Relações Públicas e, em outro
período, para ganhar um pouco mais, dão aula, mas não preparam uma
aula, não têm interesse em nada, só fazem uso daquele espaço de poder
para terem conquistas. Como coordenadora, a gente lida com situações
assim. E nesse aspecto, minha ética é lacaniana no sentido de não ceder
ao próprio desejo, se você está lá numa posição de poder, que é ser pro-
fessora, não pode manipular outra pessoa. Então, tem que querer estar
aqui. É fundamental, é um pré-requisito muito importante. Eu não con-
sigo admirar e respeitar um professor, uma professora que não gosta de
aula, que não quer dar aula.
A respeito do mercado de trabalho, eu começo toda aula falando
do mercado de trabalho de ComOrg. Pois, de fato, uma vez uma aluna
me falou que não foi o curso que não a preparou para o mercado de
trabalho, mas não foi preparado um mercado de trabalho para o curso.
Então, é uma área ainda desconhecida, ainda temos que fazer proje-
tos para sermos conhecidos, por outro lado, temos os estudos que nós
fizemos sobre empregabilidade nos últimos semestres e que são bas-
tante positivos. Embora ainda acho que falte o conhecer, porque quem
conhece gosta, mas pouca gente ainda conhece. Falta um trabalho mais
sistemático do curso para se apresentar. Acho que é fundamental isso.
Quando você me pergunta sobre Paulo Freire, a minha forma-
ção como estudante tem um aspecto que é muito importante. Eu tive
a oportunidade, o privilégio de ser alguém que foi muito estimulada
a ler. “Você quer fazer uma receita nova, vai lá e estude...” Isso está

180
na minha formação. Embora não tenha tido uma formação sistemática
em Pedagogia, eu busquei muito. Eu li muito Paulo Freire. Eu ouso dizer
que tudo que apareceu e o que não apareceu eu fui buscar, li o método
e também os leitores de Paulo Freire, e ele me tocou. E eu gosto muito
que ele trabalha a ideia da escola como o espaço que, além do con-
teúdo, é o espaço da vida. Ele trabalha a ideia do professor como aquele
que motiva. Ele trabalha a ideia de que o outro sabe de alguma coisa.
Quando eu comecei a dar aula em Brasília, uma delas foi em um curso
recém-criado. Eu tive oportunidade de ser uma doutora em uma época
em que não havia praticamente doutores na cidade que dessem aula em
Comunicação e na iniciativa privada, então eu dava muita aula e estava
ali, era jovem e ganhava dinheiro. Então eu ficava chocada porque eram
estudantes que passaram por processos de seleção muito ruins, eram
estudantes frágeis, de pouco conhecimento. Então, vinha a reunião dos
professores. E cada um, para se enturmar, contava algo que o estudante
tinha escrito que era absurdo, que era horrível e todo muito ria. E eu
achava aquilo ruim e me sentia mal. Mas, quem mudou a minha per-
cepção foi Paulo Freire, quando ele diz que o outro sempre tem algo
para te dizer. Pode ser que você não consiga ouvi-lo, mas o outro tem
algo a dizer. Pois ninguém é uma tábua rasa, na qual você vai escrever os
seus abençoados conteúdos. Isso seria poder demais. É querer demais.
As pessoas já têm seu universo. Então, eu tenho que achar o espaço de
conexão com o universo delas.
Nessa turma em que apresentei o vídeo da “Turma da Fofoca”,
eu percebi que tinha uma aluna na sala que nunca falava nada. Ficava
o tempo todo com a câmera desligada. E você não pode pedir para a
pessoa ligar a câmera – às vezes a pessoa tem uma casa que ela não
quer que seja vista – e forçar uma situação. Eu parto desse pressuposto.
Mas quando eu passei o vídeo da fofoca, ela ligou a câmera e falou que
o vídeo tocou muito ela, em seguida compartilhou a experiência e a
vivência dela. Ela falou que às vezes achava que tudo que vivenciava na
sua vida privada não dialogava com o que a universidade é, como se
nada que ela falasse pudesse interessar a essa universidade. E eu fiquei
tão chocada. E Paulo Freire para mim foi isso, aprender que o outro tem
algo a me dizer. Porque é muito fácil do nosso local confortável de classe

181
média que teve todos os estímulos, todas as oportunidades, você achar
que o outro não tem nada, que é preguiçoso, ignorante, que o outro
tem um repertório pequeno, que ele tem que ficar quieto e me ouvir.
Eu estou trabalhando cada vez mais, descobrindo isso. Quando alguém
chega já me contando algo que os alunos não sabem, não conhecem ou
que fazem errado – é mais raro na universidade pública, mas às vezes
vem alguma coisa assim –, eu leio essa pessoa como Freud dizia: o que
Pedro me diz de João fala muito mais de Pedro do que de João. Eu sem-
pre retomo, o que será que nesse aluno toca tanto esse professor ou essa
professora, do ponto de vista de insegurança, para ele se reafirmar como
alguém tão superior ao outro.

Mayara da Costa e Silva: Sobre as suas vivências com os alunos,


na sua experiência como professora de Comunicação Organizacional e
também de outras áreas, você acredita que algumas práticas dentro do
ensino de Comunicação vão mudar a partir do que a gente está vivendo
atualmente com o ensino remoto? Poderia falar, por exemplo, de novas
práticas que você teve que incorporar e que acha que talvez isso seja algo
para levar para o futuro? E como enxerga essas novas práticas daqui
para a frente?

Elen Geraldes: No ano passado eu ia para Madrid fazer um pós-


doutorado na Universidade Complutense e no dia que eu iria viajar foi
quando fechou tudo e acabei fazendo o curso remoto. O que teve alguns
ganhos também, porque eu tive tempo de fazer outros cursos. E eu aca-
bei fazendo uma especialização em docência on-line. Porque eu ima-
ginava que ao voltar esse seria o cenário. E voltei neste semestre. E foi
muito boa a especialização, foi um sonho antigo. Eu nunca tinha feito
especialização porque era aquela coisa de fazer mestrado, doutorado,
pós-doutorado. Nem olhava para a especialização. Cheia daqueles pre-
conceitos bobos, mas foi ótimo o curso.
Então, a primeira percepção. Nós temos o ensino remoto e não
educação a distância. Isto a gente vai ter que construir com muito inves-
timento, porque é um processo bem mais complexo. Então, eu estou
aqui na prática do ensino remoto, trabalhando, como todas e todos nós,

182
para conseguir manter o mínimo de dignidade. Às vezes, em uma turma
tem 30 alunos que acompanham muito bem, mas cinco estão sempre
caindo, e mandam mensagens pedindo desculpa, que a internet fica
caindo. E eu entendo. O ensino remoto vai revelar uma dura realidade
de desigualdade do acesso à rede. Eu sou uma pesquisadora de políticas
de comunicação e acredito que esse é um cenário muito intenso, que
não pode ser descartado. Mas, particularmente da minha vivência, eu
gostei de muita coisa. Bom, eu acho muito importante ter a vivência de
sair da minha casa e ir para o espaço da universidade onde eu encontro
pessoas de vários lugares e nós dividimos alguma coisa. Isso é muito
importante. Esse encontro transforma a universidade e transforma as
nossas vidas. Eu morava em uma cidade que era muito ruim de desloca-
mento, que é São Paulo, que é caótica, mas ir para a USP, para a cidade
universitária, compartilhar daquele espaço é muito importante. Embora
eu concorde que para quem tem condições muito inadequadas de trans-
porte, de tempo, de dinheiro, é complexo. Alunos que às vezes chega-
vam e não conseguiam comer, aquela ansiedade, chegavam atrasados.
Então não me surpreende o fato de muitos estudantes não quererem
voltar ao presencial, talvez até mesmo entre os docentes, pois o espaço
da casa é o espaço mais seguro, que eu domino mais, que eu me arrisco
menos, talvez.
Eu acho que combinar, ter momentos híbridos, incorporá-los em
algumas disciplinas, pode ser muito enriquecedor, pode ser realmente
inclusivo. Eu passei a vida inteira achando que educação a distância
era algo excludente, fraco. Depois dessa especialização, eu percebi que
eu não sabia nada sobre educação a distância, eu sabia sobre ensino
remoto. E, além disso, que ela pode sim ter um papel de inclusão muito
legal, mas que precisa de novas estratégias. E precisa ser inventada por
nós, ter novos pactos. Eu vejo que tem que ter pactos dos dois lados.
É difícil manter a motivação. Numa turma de graduação eu tento ser
econômica, vou falar por uma hora, mas daí as perguntas vêm. E a gente
acaba falando mais tempo, mas é difícil manter a motivação quando tem
um monte de gente entrando no seu quarto. Uma hora a aluna ligou o
áudio e tinha som alto, e ela pediu desculpas, porque o irmão estava
ouvindo música do lado. E gente passando e conversando. Então, a aula

183
tem de ser construída. Eu acho que tem de ser construída e existem fer-
ramentas que podem ser exploradas. E, sem endeusar essas ferramentas,
vamos dar uma chance. Não em todas as disciplinas, isso não vai ser a
salvação da humanidade, mas acho que a gente poderia contrabalançar
mais. A maioria dos cursos não tinha uma disciplina que tivesse pelo
menos o modelo híbrido, e, talvez, a gente saia dessa experiência com
um equilíbrio maior.

Juliana Freire: A hostilidade do ambiente da educação – do


bullying, de uma aprovação social, os corpos estão em transformação,
entre outros – pode ser um fator para a não vontade dos estudantes pela
volta do ensino presencial? E outra questão é: como combater as fake
news em todo esse cenário, dentro da sua experiência toda, como pode-
mos elaborar estratégias?

Elen Geraldes: Eu queria destacar uma coisa que você falou que é
muito importante. De fato, há uma hostilidade no ambiente universitá-
rio. É um ambiente sedutor. Nossa, a UnB é linda, os prédios são muito
bonitos, circular por lá é legal. Mas como qualquer ambiente universitá-
rio é um ambiente hostil, até um ambiente perigoso, para quem estuda
à noite. Tem a hostilidade em relação aos corpos e, embora isso seja
muito discutido na Universidade, ainda é muito forte. Dos padrões que
às vezes são estéticos ou padrões de roupa. Isso existe sim, essa ideia de
que não é o meu lugar. Eu já ouvi muitos alunos e alunas falarem sobre
isso, “de que esse não é o meu lugar”. E a gente fala, “não, o seu lugar é
aqui sim”. Eu me lembro que uma vez eu discuti isso com uma aluna,
ela estava muito chateada. Ela havia entrado por meio de uma ação afir-
mativa e então ela tinha uma carência financeira enorme e pretendia se
desligar da UnB, era o plano dela, para trabalhar em uma loja e à noite se
preparar para um concurso. Daí, eu disse que via vários furos no plano
dela: “você vai estar tão cansada de trabalhar o dia inteiro, como vai
conseguir estudar à noite? Que concurso você quer fazer? Por que você
não tenta construir algo aqui? Você não gosta do curso?”. Então, ela disse
que adorava o curso, mas que não conseguia ter amigos. E eu, sensibi-
lizada por Paulo Freire, penso o seguinte: alguém ia falar, numa leitura

184
tradicional da Psicologia, o problema é seu; vamos te treinar para você
ter amigos. Mas eu acho que Hannah Arendt vai nos dizer o seguinte: eu
não posso colocar a culpa na pessoa porque o deserto existe, eu tenho
que olhar onde está o deserto; qual é o deserto. E ela foi me contando
que achava que as pessoas olhavam para a roupa dela. E foi muito cons-
trangedor para ela ter se aberto daquele jeito. Então, a gente conversou
e tentou estabelecer mecanismos de empoderamento, aproximação de
colegas do passado que tinham a mesma origem etc. E ela concluiu o
curso muito bem. Atualmente, está no doutorado. Hoje é uma pessoa
que teve outra trajetória na vida dela. É uma trajetória que passa pela
universidade. A universidade transforma vidas. Eu acredito nisso. E, às
vezes, seria uma desistência porque alguém não se importa. Às vezes,
uma pessoa está precisando apenas de uma amizade, de alguém com
quem ela se visse, se identificasse.
Sobre falar das fake news, eu acho muito importante que a gente
perceba que há uma permeabilidade nossa diante de informações que
não tem procedência e origem. Por exemplo, eu sou uma militante
pelos direitos dos animais, então se vocês olharem o meu Instagram, as
quinze primeiras mensagens são de “veganismo por amor; veganos sin-
ceros”. É como se meu mundo estivesse ali, eu vejo isso, é o que eu lido
no meu dia a dia. E nesse aspecto, pelo fato de que o algoritmo nos esco-
lhe, lidamos com pouca oposição. Então, cai uma mensagem ali e eu
caio tranquilamente no golpe. Embora tenha tido todo um treino para
desconfiar, apurar, investigar. Então, não é justo que a gente exija das
pessoas todo um treino que elas não tiveram. O processo é longo e passa
por todo um letramento informacional, que é necessário e importante,
nós precisamos ser letrados para lidar com essas práticas. Por exem-
plo, trabalhamos em Projeto no semestre passado com meninas e fala-
mos sobre essa questão das fotos que a gente manda, uma coisa banal,
alguém pede, um amigo, um namorado. Com 14 ou 15 anos, na impul-
sividade, mas aquela foto transforma a vida de uma pessoa de forma
incontrolável. A relação entre suicídio e vazamento de nudes é imensa.
Há uma teórica que diz que a principal causa de suicídio entre meninas
é a relação direta com esses vazamentos. Então, eu penso que de todos
os lados têm que ter esse letramento – de quem vaza imagem, de quem

185
solta, e também da outra pessoa que envia, no sentido de se proteger
ao enviar, não deixar seu rosto visível. Existem alguns mecanismos que
podem ser utilizados para se preservar, isso é letramento informacional.
E eu acho que falta e a gente precisa investir nisso, na Comunicação, na
Ciência da Informação, na vida e até no ensino médio, para aprender a
lidar com esses novos desafios.

Eduardo Meditsch: Uma questão que você levantou na sua fala ini-
cial, mas acabou não falando muito sobre isso, é a questão da avaliação na
pedagogia. O que você teria a falar sobre isso e que ainda não falou?

Elen Geraldes: Depois desse curso de docência on-line, discuti


muito os processos avaliativos. A avaliação não como aquela finaliza-
dora – que é aquela no final, você nunca mais vê a prova e só comemora
o resultado, algo que já abri mão há muito tempo –, mas falando da
avaliação como algo mais processual. Para mim é importante tentar
construir, descobrir, formas de avaliação por meio de cases, por meio
da criação, que sejam mais criativas. Por exemplo, em planejamento, a
primeira avaliação foi o mapa dos afetos. Eu explico que em uma orga-
nização você tem que partir da ideia de missão, de identidade organi-
zacional, e isso vai para uma visão, para os valores. Então, propus que
construíssem esse mapa dos afetos em que apareça essa missão, valores,
objetivos e metas, que tenha por pergunta original: o que me tira da
cama? E foi muito rico. Porque teve desde pessoas falando que o que as
tira da cama é porque é dia de lavar o cabelo: “Eu adoro, lavar o cabelo
é uma homenagem que eu faço a mim mesma”. Eu achei isso tão lindo.
Até pessoas que colocaram metas muito boas. Uma aluna colocou que
estava num momento que tinha um filho, estava na segunda gradua-
ção, e que queria um emprego “que não me roube da minha vida”. E à
medida que eles vão colocando, eu falo: vamos fazer estratégias para
isso. Então, eu acho que avaliação tem sentido para mim quando ela
tem sentido para o estudante, quando não tem a artificialidade de algo
que ele faz, ela faz, e que nunca mais vai lembrar. Eu não quero coisas
artificiais, quero coisas que se conectem com a trajetória de vida e de
curso daquela pessoa. É difícil porque envolve inclusive motivação e ela

186
tem que ser construída. Acredito que tudo passa por ela. E não dá para
motivar quando você não conecta as coisas, quando estão desconecta-
das daquele universo. É preciso muito encaixe. Não é fácil, às vezes, eu
me pego assim nas coisas e penso que eu não quero assim, para mim
não tem sentido mais pensar em prova. Respeito quem faz, mas é uma
coisa que não me dá nenhuma motivação e fico imaginando o outro
respondendo questões e usando a memória.

187
CAPÍTULO 8

Uma prática laboratorial onde ecoam


as lições de Paulo Freire1
Elton Bruno Pinheiro2

Inicio trazendo um panorama dos laboratórios da Faculdade de


Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), e exemplos do
laboratório de áudio, em que tenho atuado de forma mais direta, mas
sempre buscando a interlocução com meus colegas coordenadores de
laboratórios específicos.
Na minha vivência pedagógica, tenho atuado, sobretudo, no Depar-
tamento de Audiovisual e Publicidade e, eventualmente, no Departa-
mento de Jornalismo. Com essa experiência, essas notas de uma vivência
pedagógica, que perpassam a minha passagem também pelo curso de
graduação em Letras na Universidade Federal da Paraíba, observo um
pouco a preocupação pedagógica e como isso reverbera no meu contexto
de ensino laboratorial. Foram muitos anos, já que atuei também no ensino
médio e técnico. Acredito que isso tudo fica conosco como um tesouro
que vamos descobrindo aos poucos, analogia com aquele documento da
UNESCO que fala da educação como um tesouro a ser descoberto.
Primeiro, abordarei um pouco a visão pedagógica, que está mais
próxima a mim e que estou tentando compartilhar desde 2017. Atual-
mente, estou na coordenação do laboratório da FAC e falarei dessas

1 Palestra ã turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-


do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB, em 10 de maio de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professor adjunto e pesquisador da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de
Brasília (UnB). Doutor em Comunicação e Sociedade pela UnB e mestre em Comunicação
e Culturas Midiáticas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Coordenador Geral de
Laboratórios da FAC/UnB.

188
vivências de ensino, pesquisa e extensão, como laboratório, as práticas
laboratoriais. E também conversar sobre como penso questões de desa-
fios e perspectivas.
Entrei na FAC em 2015, quando cheguei para o doutorado, sob
orientação da professora Nelia Del Bianco, concluído em 2019. O dou-
torado foi muito interessante, porque já me permitiu uma aproximação
mais orgânica com as partes, já me encontrando com algumas disci-
plinas da graduação. Uma convivência com o professor Dário, em um
curto período como substituto, logo em seguida, a entrada como pro-
fessor da Faculdade e no laboratório de áudio, de um modo mais espe-
cífico, encontrando alguns projetos e uma trajetória localizada em algu-
mas pessoas da FAC, com muita contribuição.
Compartilho aqui, e é só uma visão pedagógica: acho muito
interessante assumirmos o que acreditamos e o que pensamos. Vamos
desenrolar várias coisas: como elas são pensadas de modo planejado;
como elas são executadas. Uma delas, aquela autocrítica que se faz muito
importante e que todos fazemos no exercício da docência, da pesquisa,
do ensino e da extensão: o momento da avaliação. Quando preparava
essa palestra, fiquei pensando muito nisso, na nossa necessidade, nesse
exercício pedagógico, de se voltar mais para esses momentos em que
pensamos sobre o que estamos fazendo, para dar continuidade.
Alimento minha trajetória com a visão pedagógica do Paulo Freire.
Mais especificamente, trago aqui a perspectiva da autonomia, uma visão
que inspira de fato, porque é um convite para entregarmos a essas pessoas,
aos estudantes, aos pesquisadores da informação, a questão da responsa-
bilidade. E também tem o conhecimento dos saberes, dos conhecimen-
tos prévios que cada um possui e, ao mesmo tempo, pensar, assim como
Freire, que ensinar não é transferir conhecimento, muito menos no labo-
ratório – que é o local da experimentação e da busca pela inovação.
Então, entendo também os laboratórios como um compartilhar
com os colegas. Esses espaços proporcionam estarmos ali, nas práticas de
produção e de construção e desconstrução, também coletiva, respeitando
quem está ali também. É a individualidade, a personalidade, a cultura
dos nossos estudantes. Essa perspectiva de autonomia me motiva muito,
porque também vai para essa ideia da liberdade, mas uma liberdade,

189
que eu brinco às vezes, que é uma liberdade orientada, na verdade, quer
dizer o que: que a gente está sempre ali para acompanhar e refletir sobre
esses movimentos de autonomia.
Ainda compartilhando um pouco dessa visão pedagógica, que per-
passa a nossa atuação no laboratório, seja como professor, seja como
coordenador que tem tocado a rotina com colegas, trago outro pensa-
mento de Freire sobre a construção e produção do conhecimento moti-
vada pela curiosidade: os próprios laboratórios em suas estruturas pre-
cisam despertar a curiosidade, a própria forma como se organizam.
Falando do laboratório físico, faz muito tempo que não vamos
neles, até sobre isso temos conversado: sobre a ambiência, de que modo
podemos promover espaços onde os processos de construção e produ-
ção orientada, mas também de liberdades e autonomias, de responsabi-
lidade, estejam acolhidos.
Tem um laboratório que estamos pensando que chama Laboratório
de Ideias, foi assim batizado pelo conselho da faculdade, no final da gestão
do professor Fernando Paulino. Ele se localiza no subsolo, colado com
nossa pós-graduação. A ideia é que ele possa, com esse nome, promo-
ver um encontro entre os alunos da graduação e pós-graduação e acolhe-
dor, para que os alunos se sintam mais conectados. Esse laboratório é um
espaço que está sendo concebido tanto na estrutura quanto naquilo que
ele vai aplicar, seria uma experiência interessante para a colocarmos aqui,
para ser algo que possa nos aproximar e construir juntos.
Nesse sentido, seria a questão da curiosidade algo que deve mover
as práticas. José Luiz Braga fala que a curiosidade deve mover a pesquisa,
todos devem estar presentes em todos os movimentos de pesquisa, desde
quando pensamos o tema até quando concluímos a pesquisa, devemos
nos manter curiosos em relação aos desdobramentos dela, o que refleti-
mos. E vejo que nas práticas laboratoriais também, porque muitas vezes
essa questão do manejo da técnica pode causar falsas sensações e que:
“Agora eu aprendi de verdade porque eu pus a minha mão, eu fiz e está
bom até isso que eu fiz”. Temos a visão do Freire sobre a incompletude,
guardando as proporções devidas, no sentido de que vamos sempre em
busca de mais ou de outras experiências para ressignificar o que já pro-
duzimos, por exemplo.

190
A questão da curiosidade me lembra também Juremir Machado,
quando ele fala na pesquisa, daqueles movimentos de descobrir, fala
da necessidade que temos de, por exemplo, três movimentos básicos:
de estranhar, de entranhar e de desentranhar. Acho que nas práticas de
laboratório também tem que convidar os estudantes para fazer isso, pri-
meiro espaço da inovação e também do encontro, considero que deve-
mos motivá-los a esse exercício reflexivo. Seria o que algumas pessoas
ficam colocando, aquela de dicotomia, que eu não acredito muito, mas
que falamos até para fins didáticos, da teoria de uma reflexão antes da
entrada no laboratório em si, do tema. Eu prefiro chamar de um movi-
mento de escuta, de conversa, de encontro com os estudantes. Dessa
forma, treinamento da experimentação mesmo e o processo de avalia-
ção é o desentranhamento.
Não vou me aprofundar nessas outras visões que também me ins-
piram, mas de uma forma bem resumida trago aqui, pois muitas vezes
temos medo de referências que podem ser muito datadas, e até tenho
pensado bastante sobre isso, em como às vezes falamos nos autores, mas
não os revisitamos.
Além de Freire, retomo a questão da educação para o século XXI.
Em relação às aprendizagens fundamentais, temos buscado desenvol-
ver nos laboratórios da FAC, algo que está em construção, que as práti-
cas de laboratório possam, como diz nesse documento, serem espaços,
serem movimentos que promovam para o aluno a noção do aprender a
conhecer, a fazer, a viver junto, do trabalho coletivo, compartilhado, do
aprender a ser. Essa questão do aprender a ser volta para a ideia da auto-
nomia e da responsabilidade que a gente entrega nas mãos do estudante
ou da estudante no contexto do laboratório. E esse aprender é também
o aprender a fazer, aprender a aprender também dentro dessa lógica.
Tem outra visão, que traz a ideia de competência, então entendo
também um laboratório como um espaço para a construção das com-
petências, no sentido de ali poder entender que dentro de um labora-
tório não estamos para transmitir conhecimento, mas é um ambiente
que pode favorecer o combate à ideia daquelas caixinhas que os currí-
culos muitas vezes nos impõem. E é uma defesa de uma educação vol-
tada para pensar então saberes, as habilidades, a questão da informação

191
que o aluno já traz. Edgar Morin, no texto dos saberes necessários à
educação do futuro3, convida a pensar sobre como ensinar, romper com
a fragmentação de como você ministra uma matéria ou como conduz
práticas de laboratório.
Também é um desafio fugir um pouco da ideia “de uma inteligên-
cia parcelada, compartimentada, mecanicista”, que o laboratório às vezes
até motiva, isso de uma forma, muitas vezes, natural, e acaba podendo
promover produções reducionistas a essa fragmentação. E, por último, a
questão da aprendizagem ressignificativa, a valorização do conhecimento
prévio de quem vai integrar as ambiências nos laboratórios. Quando se
abre para esses processos de escuta, entendo que o conhecimento prévio
chega até o professor, até a equipe técnica que está ali no ambiente dos
laboratórios. Temos visto isso na prática quando fazemos os movimentos
prévios de escuta, escolhendo temas que vão ser trabalhados, a metodo-
logia do trabalho com projetos, de como o conhecimento prévio sendo
valorizado cria um processo de aprendizagem de fato mais significativo,
simbólico. Percebemos até uma atitude mais crítica e, citando Leonardo
Boff, precisamos de sujeitos críticos, criativos e cuidadosos.
Defendo que, quando valorizamos os conhecimentos prévios e a
escuta, encontramos isso nos resultados das produções. Vou dar um
exemplo de um trabalho que estamos fazendo em uma disciplina do
laboratório de áudio sobre a memória e como os resultados finais dessas
produções, em todos os sentidos, da pesquisa, da escrita dos roteiros e
da qualidade técnica superam outros trabalhos que também acabamos
por sugerir, mas que não vinham de um tema que o estudante, de fato,
tinha vivência ou do qual ele estava disposto a falar naquele momento.
As visões que tenho e que tenho compartilhado com meus cole-
gas de departamento, não só com os coordenadores de laboratório, é de
uma busca para um olhar dos nossos atuais currículos, especialmente
no caso do Audiovisual, que passou por uma avaliação recente em 2019,
mas que vai passar por outra. Nesse processo, temos buscado experiên-
cias pedagógicas de outras instituições e organizações para lançar luz
naquilo que queremos fazer.

3 MORIN, E. Os sete saberes necessários à Educação do futuro. Disponível em: http://portal.


mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf.

192
Vou compartilhar duas experiências e dizer a base delas para vocês.
A da OSCIP, a Serta4, está no sertão de Pernambuco, em duas cidades
de lá, Ibimirim e Campo da Sementeira. Um curso que foi criado num
centro tecnológico de agricultura familiar e é uma organização que
existe desde 1989 e tem a missão de formar pessoas a partir da lógica do
desenvolvimento sustentável. São dois cursos que existem nesse centro
tecnológico e o que chama a atenção na forma como eles conduzem as
práticas pedagógicas, inclusive laboratoriais, é que a própria estrutura
do curso é diferente da que pensamos e convivemos hoje na universi-
dade, da FAC/UnB.
Lá, o currículo divide a vivência dos estudantes em uma espécie de
três tempos. Durante todo o curso, geralmente técnico de dois anos, o
aluno vai ter uma vivência, um tempo chamado de “tempo escola”, onde
ele vai de fato compartilhar conhecimento sobre a área que ele escolheu,
a área que ele está estudando, e reconhecer o papel da instituição e dele
como um sujeito orgânico, parte orgânica da escola.
Tem o “tempo do aluno”, que é um momento em que eles são
colocados de fato como protagonistas, e há um movimento de escuta
para saber o que esse estudante quer, o que ele tem como objetivo para
vida, e a estrutura curricular se mobiliza, a estrutura do curso se volta
para esse protagonismo do estudante. É interessante essa coisa de se
abrir e conhecer o sujeito com quem você está, formando e sendo tam-
bém formado por ele, como sugere Freire. Acredito que nos laborató-
rios é possível nos abrirmos a esse tipo de prática, de colocar a pessoa
como protagonista.
E tem o outro tempo, que é o “tempo família”, no qual coloca-se a
família como parceira. Como é um curso que está em uma região muito
específica, há a possibilidade de encontro com a família, da troca e da
busca de solução para alguns problemas relacionados com a vivência do
estudante na escola ou à individualidade dele. Uma experiência peda-
gógica muito interessante pensar que estamos ali com um tempo para
viver nosso tempo da escola, nosso tempo como protagonistas e tam-
bém a escola como um espaço para vivências com a família.

4 Para mais informações sobre a Serta: http://www.serta.org.br/.

193
Um segundo exemplo, que é da Universidade Federal do Paraná,
do campus Litoral, nas práticas pedagógicas desse campus, que tem
vários cursos, um deles é o curso de Linguagens e Comunicação. Os
estudantes passam pelo curso com 20% do currículo desenvolvendo
projetos de aprendizagem. A ideia é voltar à formação cidadã, quer
dizer, o estudante vai, nesse momento, desenvolver um projeto de inter-
venção na realidade, escutar dali suas intenções e esse projeto pode ser
acompanhado por qualquer docente, ou por um conjunto de docentes,
e ele permeia o curso inteiro, não é pontuado como se fosse no primeiro
semestre ou segundo. Ele segue o curso inteiro, acompanhando carga
horária, inclusive.
Depois tem os fundamentos teóricos e práticos, os 60% de currí-
culo dessa instituição. Aqui é o momento em que eles chamam de for-
mação profissional, é muito interessante porque é onde os estudantes
se encontram inclusive com outras pessoas que têm o mesmo interesse
em determinadas áreas, os diversos cursos se encontram em disciplinas,
componentes curriculares. A partir de seus interesses, o aluno constrói
o seu 60% do currículo. E tem mais 20% que eles chamam de interações
culturais e humanísticas, que é o momento em que o curso se volta de
forma ainda mais direta para a sociedade, o foco aqui seria o que eles
chamam de formação humana.
Tenho feito nos laboratórios, nas matérias de laboratório, a possi-
bilidade de experimentar um pouco desses dois cases, claro que com o
contexto. Uma coisa é você ter um curso todo estruturado, outra coisa
é você pegar aquela sua disciplina de 60 horas e tentar desenvolver algo
parecido. O que tenho já para antecipar dessa experiência é o trabalho
com projetos, é diferenciada a possibilidade de estar em um laboratório
e buscar romper com a fragmentação.
Voltando para o laboratório de áudio e mostrando essa visão peda-
gógica, que de certo modo nos encanta, nos traz alguma iluminação,
vamos dizer assim, nos motiva, apresento para vocês o espaço onde
eu, Carlos Eduardo, Elis Regina e outros professores trabalhávamos até
antes da pandemia. Uma estrutura com dois estúdios, com oito ambien-
tes ou ilhas de edição de áudio, com assinaturas de programas de edição
e captação de áudio diversos.

194
Temos o nosso site institucional e dois produtores audiovisuais que
são especialistas em produção sonora, o Glauber Oliveira e o André
Araújo. Além do laboratório de áudio, outros laboratórios da FAC que
contam com técnico especializado são: os laboratórios multimídia,
com toda uma equipe; e o laboratório de fotografia, que acompanha
o desenvolvimento. Além dos laboratórios, claro, nossos técnicos são
organizados em núcleos que atendem a todos os outros laboratórios:
Núcleo Técnico de Audiovisual e Núcleo de Tecnologia da Informação.
Esses exemplos são onde os técnicos estão o tempo inteiro, cuidando
desses espaços. E ainda temos duas estagiárias e, além de mim, mais
docentes trabalhando e desenvolvendo projetos diretamente no caso do
laboratório de áudio, Carlos Eduardo e Elis Regina.
No ensino remoto, temos utilizado algumas plataformas como a
Microsoft Teams, proporcionadas pela UnB, e o Google Classroom. As
redes de comunicação também têm sido ambiente de aprendizagem e
alguns recursos educacionais abertos, como o Audaz e o Encor, que têm
uma perspectiva limitada em termos de abertura, mas podem ser consi-
derados também como um recurso educacional aberto. Essa estrutura
está tensionada pela pandemia, entretanto, de modo geral, ilustro que
continuamos a compreender o laboratório como um espaço de socia-
lização, de troca de conhecimentos, de produção, de construção do
conhecimento, de experimentação, de invenção, de inovação.
E vai ser, na minha compreensão, um desafio à parte nesse processo
de retomada, porque os ambientes laboratoriais são muito específicos.
Por exemplo, o de áudio é totalmente fechado com sistema de condicio-
namento de ar, que precisa de todo um cuidado específico. Nas nossas
rotinas normais já são um pouco difíceis os processos de manutenção.
Na nossa volta, teremos que nos organizar muito, e vale a pena o esforço
coletivo, pensar juntos, porque não podemos deixar de oferecer a opor-
tunidade dessas práticas laboratoriais para os estudantes. O que estamos
fazendo agora é algo emergencial, buscando nos reinventar. Claro que
levaremos muito disso, eu acredito, para quando a gente voltar, porque
voltaremos, mas voltaremos não os mesmos certamente.
Chego, então, naquele ponto em que quero compartilhar as vivên-
cias de ensino nos laboratórios e as vivências do curso de Audiovisual.

195
Introdução à Linguagem Sonora e Roteiro, Produção e Realização em
Áudio são duas matérias obrigatórias de 60 horas e quatro créditos. Bus-
cando suprir um pouco o que ainda considero como uma espécie de
lacuna no nosso currículo, criei uma matéria optativa para falar espe-
cificamente dos podcasts e também para acolher a demanda de outros
cursos que não têm essas matérias como obrigatórias e que não conse-
guimos acolher porque são sempre vagas limitadas.
Nessa matéria, Tópicos Especiais em Comunicação 3, abordamos
os podcasts de uma forma mais específica, estudando de modo mais
aprofundado, por exemplo, a produção de podcasts narrativos, com
estratégias de imersividade. E outra matéria que falarei um pouco sobre
como ela surge de um movimento contrário, da pesquisa e da extensão,
e vira disciplina, é a matéria Comunicação e Negritude, que foi criada
ano passado como optativa também e vem acolhendo esse protago-
nismo, esse senso de responsabilidade do estudante. Na minha vivência
de ensino, acredito, mais uma vez, que, segundo a fala do Freire, o ensi-
nar inexiste sem o aprender e vice e versa. Ele fala bem direto sobre isso
em Pedagogia da Autonomia. Então, em todas essas matérias, nos labo-
ratórios, aprendemos muito. Nenhum semestre tem sido igual ao outro.
Para dar outro exemplo, nos laboratórios, acompanhando a produ-
ção do laboratório de jornalismo na FAC, e o trabalho que se faz com
o Campus Jornal o Campus Multimídia, experiências incríveis em que
os alunos também desenvolvem suas atividades com muita autonomia,
é possível perceber. Outro exemplo é do laboratório de publicidade e
propaganda, também percebo esse senso de autonomia, de liberdade
para experimentação dos alunos. E assim acontece de forma também
interessante com as práticas de laboratório do curso de Comunica-
ção Organizacional, um laboratório que é mais recente e com projetos
desenvolvidos especificamente pelo curso como a inserção dos alunos
que integram o laboratório com os outros projetos, como aconteceu
com a matéria Comunicação e Negritude. Falarei um pouco de algumas
experiências que estamos vivenciando nessas matérias.
Antes, preciso falar que qualquer matéria pode se tornar um labo-
ratório, qualquer disciplina pode se tornar e é um laboratório. Mas,
falando desse modo mais específico, dessas matérias que estão designadas

196
como laboratório, é preciso destacar que todas as práticas desenvolvi-
das nelas estão tensionadas, pelo que resolvi chamar aqui, no contexto
político-pedagógico, de as forças que atuam sobre os currículos, sobre
as definições de área e que, muitas vezes, é preciso adequar aos espaços
abertos para desenvolver as práticas. Então, falar do Curso de Audiovi-
sual, onde tenho ministrado matérias voltadas para as mídias sonoras,
especificamente, do protagonismo do rádio, que depois de 2019 pas-
sou a ser chamado de curso de Comunicação Social Audiovisual, sem
a palavra habilitação, uma questão técnica. Porque os alunos entravam
todos num único curso e depois eles tinham que decidir. Desde 2019, no
Enem, já não é mais assim.
E as disciplinas que ministro se encontram nos dois lugares: uma
no 3 semestre e outra no 4o semestre, e para qualquer matéria de labo-
o

ratório é interessante compreender o contexto em que ela está no semes-


tre, de onde os alunos vieram e para onde irão. Introdução à Linguagem
Sonora no 3o, e Roteiro, Produção e Audiovisual no 4o semestre, são as
únicas matérias no curso, que tem oito semestres, em que o aluno vai ter
a prática no laboratório direto.
Entretanto, tenho percebido um movimento, sobretudo por causa
dessa onda dos podcasts, é preciso dizer e nomear a coisa, de outras
matérias buscando conviver mais, desenvolver projetos conosco no
laboratório, isso é muito bom. Mas, é um desafio às práticas de labo-
ratório porque os alunos vêm de uma estrutura que é completamente
voltada ao Cinema, no curso de Audiovisual, se observarmos para além
das disciplinas teóricas no campo da Comunicação, importantíssimas,
temos uma predominância das técnicas voltadas para o Cinema, e isso
se explica pela história e importância que esse curso tem na UnB.
O Audiovisual foi um curso criado em 2001, passou por uma
reforma e entrou em vigência com esse nome em 2003. Teve uma
reforma em 2009 e uma avaliação e nova revisão do currículo em 2019,
que não mudou a estrutura das disciplinas, mas revisou o documento
e que vai passar a prever uma nova estruturação. Esse é o contexto que
acho muito importante e grifo para mostrar que as matérias Introdu-
ção à Linguagem Sonora e Roteiro em Produção e Realização em Áudio
estão juntas com outras. Esse é um desafio que tenho buscado e acho

197
interessante pensarmos em como envolver as outras matérias, criar ali
uma interdisciplinaridade entre elas e saber como a disciplina de labo-
ratório pode contribuir, sobretudo no 3o semestre, em que os alunos
chegam relatando que essa é a primeira matéria prática do curso inteiro.
E nesse semestre, eles dizem que é a única porque eles fizeram lá no
primeiro a Oficina Básica do Audiovisual e só depois eles começam a
fazer disciplinas mais práticas, então o meu tema aqui é buscar estabe-
lecer um diálogo no 4o semestre, por exemplo, com essa disciplina de
Documentário, porque é um tema que pegamos para trabalhar de um
modo mais aprofundado na questão dos documentários em áudio. Tal-
vez quem esteja aqui nos assistindo, com certeza, ou já são professores
ou serão: uma dica para observar isso e ver como consegue lidar.
De todo o modo, falando do copo meio cheio, nós somos nota
cinco, o curso foi aprovado com nota cinco e isso nos orgulha muito.
Demonstra o que temos feito, temos tido práticas interessantes e isso
tem sido reconhecido com vários prêmios que os estudantes vêm
ganhando em concursos da Intercom e outros festivais, então acredito
que é interessante registrar isso também.
Quando volto aqui para as vivências de ensino, ainda, para falar
de outra frase que me chama atenção: “ensinar exige rigorosidade
metódica”. As práticas de laboratório, por mais que eu defenda a flui-
dez, autonomia, liberdade, elas precisam da rigorosidade metódica, e
é interessante como Freire explica isso: uma forma de organizar essa
aproximação dos sujeitos do que ele chama do objeto cognoscível.
Entendo aqui, tentando fazer um exercício de cotejamento mesmo, que
uma forma de exercitar essa rigorosidade metódica são os planos de
ensino, o planejamento. Um planejamento que leve em conta o processo
que vai se desenvolver no laboratório, de estímulo a criadores, à forma-
ção de criadores, de sujeitos inquietos, de sujeitos curiosos, humildes,
persistentes, instigadores.
Acredito que o primeiro trabalho do laboratório precisa dessa rigoro-
sidade metódica, caso contrário seu encantamento pode causar uma disper-
são. Mas, esse planejamento não tem sido algo distante, ele ajuda bastante.
Reitero isso porque é planejar no sentido de estabelecer menos objetivos, é
além de dizer a ementa, qual é o programa, é estabelecer as metas e objetivos

198
a serem cumpridos em comum acordo com os estudantes. Nas disciplinas
do laboratório de áudio, temos feito uma dinâmica de discutir esses planos
antecipadamente com as equipes de monitoria que têm crescido. Pensamos
e discutimos com os monitores, que estão ali como uma voz dos estudantes,
e noto que isso já tem causado sim diferença realmente, pois quando chega-
mos com as propostas e quando muda é pouca coisa.
Uma das ideias já desenvolvidas pelos laboratórios é a dinâmica
de trabalhar com projetos integradores. Por que essa ideia de projetos
integradores? Retomo aqui o pensamento do Freire. Compreendo que
a parte desses projetos concretiza o que o autor propõe, vamos encon-
trando ali reais sujeitos da construção e reconstrução do saber ensinado.
Então, trago alguns exemplos de projetos integradores que foram pensa-
dos, como falei anteriormente, a partir desse diálogo com os estudantes,
representados ali pelas equipes de monitoria. Assim surgiu, por exem-
plo, o primeiro tema que me surpreendeu quando fizemos a matéria
optativa sobre podcast. Quando pensávamos no tema, os estudantes
diziam que o mais importante era entender o que era podcast, porque
está todo mundo produzindo, consumindo, mas o que é isso?
Então, fizemos as reflexões, as oficinas, trouxemos convidados, dis-
cutimos, analisamos, escutamos e o exercício laboratorial foi uma série
de podcasts sobre podcast, a que eles deram o título de podosfera. Foram
oito ou dez episódios discutindo temas diversos, a partir de artigos cien-
tíficos. Eles criaram formatos diferentes de abordagem desses temas,
como, por exemplo, estudar podcast baseado num texto da colega da
Intercom Débora Lopes e do João Alves. Assim, foi muito interessante
o diálogo que trouxe a principal ideia desse semestre, a primeira oferta
dessa disciplina. E aconteceu com os outros projetos.
Nesse semestre, estou trazendo aqui esse exemplo, o tema da
divulgação científica também foi discutido previamente com a turma
e tem um processo da turma anterior sempre sugerir temas para a pró-
xima turma que virá, a partir da experiência deles. E isso foi muito
interessante, pois surgiu de algumas inquietações do semestre anterior e
a turma deste semestre acolheu.
O tema da memória é muito interessante e temos trabalhado com
a escrita de si, memórias e afetos e desse projeto que percebo saírem

199
as produções em áudio mais cuidadosas, porque elas estão ali homena-
geando os pais, avós, às vezes as cidades de onde vieram, ex-professores,
um bichinho de estimação. Então, o cuidado parece que é triplicado na
produção sonora nesses casos.
Mas, falando dos interesses dos estudantes, queria mencionar o
primeiro projeto de quando cheguei à FAC e era muito Cinema. Os
alunos respiravam Cinema, e então a gente produziu uma série de 20
programas sobre cinema, falando das trilhas sonoras, falando do uni-
verso sonoro como um todo do cinema. Foi tão interessante porque esse
tema também gerou um projeto de extensão, em parceria com a Rádio
Câmara, uma prática laboral que transbordou e permitiu o contato dos
estudantes com uma emissora de caráter público tão importante.
Outra questão que mobiliza bastante a atuação dos laboratórios
é quando pensamos nessa aprendizagem em rede que, no nosso caso
de áudio e também percebo nas disciplinas do laboratório de jorna-
lismo, por exemplo, o Campus Multimídia, a autonomia que as equipes
ganham. As equipes que conduzem determinadas funções dentro de um
projeto, fazem toda a diferença. No nosso caso, essa lógica já começa
com a escolha dos monitores, que sempre é feita um semestre antes: se
pensa quem serão os monitores do outro, se discute esses temas. Temos
sempre feito esse papel de colocar os estudantes como protagonistas e
isso é muito interessante, é uma motivação a mais e eles se sentem de
fato com aquela responsabilidade.
A aprendizagem em rede me faz pensar em outra frase do Freire,
que fala que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. Quando
estamos em rede, essa questão do respeito é fundamental. Já aconteceu
também de, ao longo de um semestre numa disciplina laboratorial, no
momento de escolher um tema, abrir-se de fato para aquilo que estamos
sentindo a urgência de falar. Então, tinha um tema mais abstrato para
falar, e já até pré-aprovado, mas quando vamos para o recorte, delimita-
ção, encontramos outros quereres e é muito interessante respeitar isso:
os quereres e os saberes.
No semestre passado, na questão do sotaque, que vocês estão escu-
tando o meu não tão comum talvez de se ouvir, encontramos questões
muito fortes na turma e gerou um podcast específico sobre sotaques. É uma

200
série, um documento muito interessante, que eles e elas produziram, assim
como a série que fala da questão da religiosidade, especificamente no tema
da Umbanda. Respeitar esses saberes dos educandos não é um segredo, é
uma prática que deve ser de fato observada no ensino laboratorial.
A aprendizagem em rede tem outro aspecto que queria falar e des-
tacar, que os laboratórios permitem. Eles têm conectado muito os estu-
dantes. A aproximação, o laboratório nesse ambiente de socialização, os
projetos conectam, às vezes, até quem não está na matéria e cria uma
rede muito interessante na produção desses produtos, que servem como
um portfólio para os alunos que saem, nossos egressos e egressas. No
site do laboratório de áudio tem as produções. É interessante o que o
laboratório proporciona também nesse sentido.
Já vi estudantes criarem projetos, sementinhas de projetos, de
start ups, começarem a trabalhar de modo mais organizado nas agên-
cias, a partir dessas práticas de laboratório. E uma que destaco é sobre
a questão da acessibilidade, que é um tema que surgiu, está aí, é preciso
estar atento, mas que surgiu de maneira muito natural no laboratório
de áudio. Quando encaminhamos as produções para receber o feedback
de emissoras que iriam transmitir nosso conteúdo, elas perguntaram
se tínhamos experiência de conteúdos acessíveis. Isso motivou a aluna
que recebeu a demanda a produzir seu TCC pensando em estratégias
de acessibilidade no caso do áudio. E agora ela compartilha e traz essas
oficinas no contexto do laboratório.
No ensino remoto emergencial, essas práticas mudaram, porque
temos uma socialização que está limitada, nossas condições de trabalho
estão afetadas, tem toda a questão relacionada à saúde mental e ainda
enfrentamos uma rotina acadêmica que é burocratizada, com os prazos,
os índices, enfim. Mas, para superar todos esses aspectos que tensionam o
ensino laboratorial, até esses dias no Simpósio Nacional do Rádio, conver-
sando com alguns colegas, um deles me perguntou: “mas você está minis-
trando essas matérias de laboratório desde que começou a pandemia? A
gente não tem essas disciplinas de laboratório na minha instituição”.
Sei que é um desafio, há instituições que nem têm laboratório, é
um privilégio, vou dizer assim, ter um laboratório com estrutura e téc-
nicos. As universidades são diferentes. Mas, os problemas me parecem

201
semelhantes, são correlatos, na verdade. No nosso caso, para buscar
superá-los, começamos, digo nós mesmo, o professor Carlos Eduardo e
também a professora Elis Regina, fazer uma corrente mesmo, uma rede
de trocas de experiências. Nós investimos nesse processo de escuta do
que os técnicos pensavam a respeito de retornarmos ao ensino labo-
ratorial, do que os ex-monitores pensavam sobre e do que tínhamos à
disposição. Aqui foi muito importante também o processo de escuta
com a rede de inovação universitária da UnB e a RIU do CEAD, Centro
de Educação à Distância. Algumas experiências de lá nos encorajaram
a seguir. Sugiro que visitem o site do Rotas da Inovação Universitária
(RIU)5, onde o CEAD disponibiliza diversas experiências de professo-
res de várias áreas. Decidimos continuar, assim, valorizando as práticas
coletivas e individuais, e isso se apresenta na forma como estruturamos
os planos de ensino.
Entretanto, há matérias que vimos a necessidade de ter trabalhos
individuais para nos conectarmos mais com o estudante e ele se sentir
melhor acompanhado na sua produção. Nas matérias de introdução é
importante ainda existirem os trabalhos individuais, já nas matérias que
seguem conseguimos desenvolver mais práticas coletivas. Mas, as duas
são importantes no ensino emergencial. Fortalecer as redes a partir dos
contatos, fizemos isso também, de movimentar disciplinas laboratoriais
nos conectando a colegas e pesquisadores que estão produzindo na pan-
demia. Temos esse aspecto que tenciona tudo isso, os pontos positivos
e negativos, e para cuidar de tudo estamos cada vez mais tendo uma
disponibilidade integral, o que causa um movimento para pensarmos a
precarização do trabalho nesse contexto.
Vejo as matérias laboratoriais, pelas experiências de quem comen-
tou comigo que não está oferecendo, que é exatamente sobre os receios
de ter que realmente acompanhar, oferecer isso, ser honesto com o
estudante. Espero que não fiquemos muito mais tempo no emergencial
porque é realmente cansativo, é possível, mas é cansativo. Começamos
a pensar em outras possibilidades para superar isso, como, por exem-
plo, compartilhar matérias com colegas, essa metodologia com projetos

5 Para mais informações sobre o RIU: https://riu.cead.unb.br/menu-secundario

202
é muito interessante, porque as redes ou grupos de trabalho se criam de
forma orgânica.
Temos buscado executar a aprendizagem em rede convidando
outros colegas de outras áreas da UnB que já são colaboradores do labo-
ratório de áudio e vamos criando pontes para outros laboratórios, como,
por exemplo, a questão da acessibilidade, que considero uma lacuna na
FAC, não é nenhum pecado dizer quando temos uma lacuna. Mas, nós
temos o Instituto de Letras da UnB com professores com essa expertise
incrível, então esse tipo de ponte tem servido para todos os laboratórios
e está disponível para todos. Fazemos isso disponibilizando as vídeo-
aulas e oficinas, nos canais institucionais, dentro do YouTube. E convi-
dando colegas para participar, de outras instituições, para compartilhar
suas experiências conosco, tem sido bem bacana. E gente do chamado
mercado se aproximando mais.
Sobre ensino remoto emergencial, inspirados pelo RIU, “cami-
nhos para a docência na cultura digital”, acompanhamos as orientações
dessa equipe do CEAD, da qual me aproximei mais e estou envolvido
em outros projetos de lá. Foi muito interessante, então tem excelentes
materiais instrucionais para quem quer desenvolver matérias chama-
das laboratoriais ou não, nesse momento da pandemia. Uma das nossas
estratégias foi a elaboração de vídeos tutoriais, então já temos conteúdo
sobre recursos educacionais abertos e os alunos podem baixar, no seu
computador, no seu celular, sem precisar pagar para utilizar, como é
o caso do Audacity ou do Encore. Tem 18 tutoriais que roteirizamos,
os técnicos gravaram e estão à disposição, inclusive esses tutoriais vão
compor um processo de formação mais ampla para outras áreas da UnB,
vão poder contribuir com isso, com professores que vão usar, por exem-
plo, podcasts como um instrumento de ensino e de avaliação.
Falar em práticas de ensino, ensinar, como diz o Freire, exige criti-
cidade, e no laboratório também precisa existir a reflexão, crítica sobre
a prática. Em nenhum momento nos distanciamos de nossas teorias e
dos nossos textos, e temos buscado aproximar também essas referências
deles, com várias estratégias. Vai desde o que postamos nas redes sociais,
aos grupos que temos com as turmas, de laboratórios. Todas têm grupo
no WhatsApp e o professor, no meu caso, acompanha esses grupos,

203
mas às vezes estou ali só observando, e, quando é preciso, aciono algo,
mas vejo o protagonismo dos alunos, a iniciativa. Chamo atenção de
como isso vai permeando nosso trabalho, quem acompanha as redes do
LabAudio6 vai vendo como vamos compartilhando devagarinho nossas
referências. Isso porque, voltando para Freire, ensinar exige estética e
ética. Então, fazemos muita questão que sejam dados os devidos cré-
ditos, que os alunos aprendam nas matérias práticas a necessidade de
referenciar fontes, conteúdos, porque às vezes passa e é algo que temos
acompanhado. Não deixamos mais que isso passe despercebido, a falta
de referenciação.
Dessa forma, a questão ética da estética, a questão da criticidade, a
reflexão sobre a prática acontece nas disciplinas do laboratório de áudio.
Primeiro que toda a parte teórica da matéria, vamos chamar assim, é
sistematizada numa ficha de indicadores e no momento em que os
estudantes vão produzindo seus trabalhos eles precisam refletir sobre
aqueles aspectos teóricos. Na própria linguagem sonora, pedimos que o
estudante reflita sobre como ele utilizou, qual uso, como ele imaginou,
qual análise ele faz do uso de cada um desses elementos, dos efeitos, do
silêncio, da voz. Quando estamos falando em documentário em áudio,
perguntamos: “Nesse seu trabalho você usou que tipo de fonte? Depo-
entes, especialistas, autoridades?”. “E estratégias de imersividade, quais
você utilizou?”. Pedimos que o aluno explique isso também. Tem outro
instrumento que é aplicado para todas as matérias, que é uma ficha de
avaliação da disciplina e de autoavaliação.
Vivências de pesquisa nos motivam também. Não há ensino sem
pesquisa e pesquisa sem ensino. Temos buscado conectar os projetos de
pesquisa e mostrar que os laboratórios desempenham um papel na pes-
quisa e mostrá-la como uma prática também de laboratório porque, às
vezes, sobretudo no Curso de Audiovisual, os alunos muito facilmente
querem fazer a distinção do que é prática e do que é teoria. Por exemplo,
em um desses projetos, o “podcast em atualidade mediada”, os alunos
estão ao mesmo tempo na iniciação científica, alunos da graduação, que
estão fazendo uma cartografia sobre podcasts de divulgação científica

6 Para mais informações sobre o Laboratório de Áudio da Faculdade de Comunicação LabAu-


dio: http://labaudio.unb.br/.

204
e estão produzindo um podcast de divulgação científica, que se chama
Viva Voz. Nessas conexões, é possível perceber a inserção de um moni-
tor no projeto, além dos alunos de iniciação científica, a participação
desse monitor, de um estagiário, de outros alunos de outras disciplinas
que vão conhecendo o projeto e vão se inserindo de maneira a contri-
buir como podem.
Isso acontece também do Observatório da Difusão Pública da
América Latina. Os alunos tinham feito uma análise e se inspiraram em
um dos textos do professor Eduardo Meditsch, um conceito que ele nos
apresentou sistematizado, com a Juliana Betti, sobre auditoria. Então,
estamos escutando e analisando mais a natureza sonora de programa-
ções de emissoras públicas, de diferentes países da América Latina.
Nesse contexto, está sendo produzido um programa, um piloto, para o
Observatório, que será para o laboratório da Difusão Pública e para o
LapCom (Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB).
“Escute a Negritude” é um projeto que surgiu da inquietação dos
próprios alunos, da frente negra da FAC, quase 100 estudantes nesse
grupo. Eles, desde o começo, se identificavam com essa temática, muito
embora houvesse a lacuna. Esse projeto começou como extensão por-
que foi reunindo os alunos nessa frente, apoiando a movimentação cul-
tural deles e virou projeto de iniciação científica comigo. A partir disso,
criou-se uma matéria, com o laboratório de áudio como suporte.
Na pesquisa, queria chamar a atenção para algumas das práticas
que são desenvolvidas no laboratório. Fazemos questão de dizer aos alu-
nos que vamos registrar a memória, inclusive por ser um tempo muito
peculiar dos nossos movimentos de ensino e pesquisa. Apresento três
exemplos de produções: uma lançada e duas no prelo, todas das maté-
rias laboratoriais.
Uma delas é a pesquisa de exploração em linguagem sonora, com
produções técnicas, com seus roteiros disponíveis e análises, num con-
junto de 45 estudantes. Eles publicaram seu primeiro capítulo num livro
coletivo, o que empolgou a turma e inspirou projetos que serão lançados
em breve, são eles:
Escuta sobre Rádio: produção em roteiro e realização em áudio,
voltado ao conceito do rádio, como compreendê-lo. Principalmente,

205
para os estudantes mais jovens. A pandemia nos inspirou a ir ao encon-
tro de vários pesquisadores, com entrevistas, das quais os estudantes
transcreveram e algumas foram feitas de forma síncrona. Algumas pro-
duções em áudio sendo feitas com a base nas perguntas desse projeto e
suas entrevistas;
Escutas sobre Podcast: nasceu da matéria Laboratório de Podcast.
Para os estudantes pensarem o que é podcast, outro movimento para além
de estudar os textos. Os estudantes encontraram pesquisadores e podcas-
ters e escutaram sobre como eles designam essa modalidade radiofônica.
Nas vivências de extensão fizemos pontes com a prática laboratorial,
envolvendo outros laboratórios, como o Projeto UnBCast7. O laborató-
rio de publicidade se aproximou em colaboração do laboratório de áudio.
Vamos interconectando, prezando outras habilidades e expertises.
As práticas de laboratório de áudio têm sido muito procuradas por
outras aulas, sobretudo, por causa do boom dos podcasts. Outra questão
que temos feito é abrir o laboratório, por meio da extensão universitária,
transformando em um espaço de conexão com as outras áreas, o que já
aconteceu com Letras, Psicologia, Direito, História e Ciência Política.
Os estudantes de outras áreas se orgulham em dizer que são do LabAu-
dio e contribuem bastante para as disciplinas.
Para descansar um pouco Freire, trago aqui a frase do professor
Boaventura de Sousa Santos (2017), quando esteve na UnB: “O caminho
para a Universidade está na extensão”. Sobre todas as ameaças de cortes, a
extensão pode ser um braço muito forte, com a capacidade de fortalecer
as práticas de laboratório, na medida em que aproxima outras pessoas
com experiências interessantes. A distribuição dos nossos conteúdos do
Laboratório de Áudio tem sido feita também nas redes sociais.
Como destaca Freire, “ensinar exige consciência do inacabamento”8
(FREIRE, 1996). E acreditamos que tudo isso que falamos é um processo
em construção e esperamos poder a partir de agora compartilhar e rece-
ber o feedback de quem assiste, escuta ou lê nossas inquietações.
7 Para mais informações sobre o UnBCast, projeto de extensão sobre podcasts universitários
e narrativas sonoras voltadas à divulgação científica, cultural e artística, em: https://www.
unbcast.com/.
8 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.

206
Debate

Eduardo Meditsch: Muito boa a maneira como vocês do Labora-


tório de Áudio da FAC/UnB conseguem integrar o ensino, a pesquisa
e a extensão. É um grande exemplo a ser seguido. Gostaria que você
falasse um pouco mais sobre o conceito de aprendizagem em rede, para
esclarecer um pouco mais.

Elton Bruno Pinheiro: Discutimos a ideia da aprendizagem em


rede de forma bem ampla na FAC. Dois colegas que nos inspiram são a
professora Márcia Marques e o professor Pedro Russi. Essa aprendiza-
gem em rede para nós tem dois significados básicos. Um deles é a cone-
xão que acreditamos que precisamos realizar em duas dimensões, pelo
menos, na interna entre os estudantes de um componente curricular
específico, de uma disciplina: eles precisam entender que estão ali em
rede, em corrente, com elos entre eles para alcançarem objetivos que
são coletivos, enquanto grupo de uma matéria. Uma perspectiva interna
de fortalecer uma rede entre os estudantes. Já o outro, numa dimensão
externa, de conectá-los com o que está além do universo da matéria em
si. Quando você cria pontes com as outras áreas do conhecimento na
própria UnB ou com quem está externo à universidade.
Percebemos que a institucionalidade que um laboratório traz para
uma rede é diferenciada. Por exemplo, em 2019, o último semestre antes
da pandemia, tive a oportunidade de levar os alunos para as emissoras,
uma aula de campo. Fomos para a EBC conhecer os estúdios das rádios,
depois fomos para a rádio Câmara, Senado e Justiça. A outra turma iria
fazer esse passeio pelas emissoras comerciais, mas não foi possível. Con-
tudo, pela natureza, pelos afetos e o que a própria UnB desperta nas
pessoas, encontramos muitos egressos felizes nos recebendo com ale-
gria, tiravam fotos com a turma, enquanto o oposto era também real e
o mais esperado. Essa situação abriu outras fontes, consolidando novos
projetos com essas visitas. Logo, o aprendizado em rede possui vários
outros significados, como níveis de formação dessa rede, porém para
nós tem sido mais o aspecto da praticidade, com a dimensão interna e
externa de se pensar em rede.

207
Eduardo Meditsch: Muito interessante também você fazer a cos-
tura de toda a sua exposição com Paulo Freire. Estamos muito ligados
a essa perspectiva freireana e foi importante você mostrar como ele se
aplica numa área em que pretensamente seria mais técnica, mais des-
ligada de uma reflexão e como todo trabalho é justamente ligado na
reflexão e na busca teórica, na relação com a pesquisa e a extensão.
Puxando um pouco para a questão do curso de Audiovisual, no qual
você participa do projeto pedagógico, para nos contextualizarmos, você
citou as forças que atuam, aquelas externas, quando falamos em diretri-
zes curriculares, avaliação, dentre outras. Como vocês estão vendo den-
tro do curso? Além da mudança em relação ao ingresso dos alunos, que
agora não entram mais no curso de Comunicação em geral, mas sim
no curso de Audiovisual, já escolhido no vestibular, que antes não era.
O que vocês estão pensando? E como as novas diretrizes estão influen-
ciando nisso tudo? Particularmente, as novas diretrizes de Publicidade.

Elton Bruno Pinheiro: Sobre as mudanças no curso de Audio-


visual, é bom esclarecer que em 2019 o que houve foi uma revisão
e atualização do documento pedagógico e não uma mudança na
estrutura curricular. Nenhum componente foi retirado ou incluído,
mas foram revisados aspectos formais e de quantidades de estudan-
tes, egressos, dentre outros. Contudo, a reforma do currículo passou e
talvez não fosse esse o caminho para pensar a reestruturação, somente
a partir da divisão. Ainda é um desafio para entendermos as áreas e
talvez a divisão não deveria ser, na minha concepção, o elemento base
para se pensar na mudança do currículo. Já foi separado, foi um pro-
cedimento administrativo.
Para pensar numa nova estrutura do currículo, foram feitas duas
pesquisas internas: com alunos atuais do Audiovisual, desde os calou-
ros, para analisarmos suas aspirações, e formandos também, que têm
uma visão mais ampla do curso; e também alcançamos uma quantidade
significativa dos egressos. Desta forma pudemos ouvi-los todos eles.
Defendi muito a questão de escutar todos e todas. Que são outros movi-
mentos que são muito discutíveis, que às vezes parecem que são bandei-
ras, mas que são as disputas que precisam ser naturalizadas. Acredito

208
que não é o caso, porque há uma parte expressiva que desconsidera, por
exemplo, o ensino da Comunicação.
Até que ponto essa discussão não tem que ser feita por outro
caminho que seria o de pensar nessa aproximação com as áreas, com
quem ministra matérias ou com um diálogo com o próprio currículo
e ementa dessas matérias, porque os alunos cursam juntos isso. O que
pode ser muito rico é que em algumas matérias, por exemplo, jor-
nalistas encontrem publicitários, produtores audiovisuais ou comu-
nicadores organizacionais. Mas, é preciso ser dito o porquê de os
alunos estarem juntos. O que não é algo específico da Comunicação,
pois passei pela faculdade de Letras e lembro de ter aula com alunos
da Física e Matemática nas matérias pedagógicas, e sabíamos porque
estávamos juntos. Se você não explica o porquê dos alunos de vários
cursos estarem juntos numa disciplina, surge um ruído, uma falta de
compreensão ou de diálogo com os estudantes.
O que aconteceu com o Jornalismo é um modelo interessante. A
Comunicação permaneceu com seu lugar no curso e outras especifi-
cidades foram mais bem contempladas com a mudança curricular. No
entanto, há uma resistência, não de forma negativa, mas no sentido de
com isso provocar uma abertura maior e uma reflexão mais ampla do
que é a Comunicação, a importância de ela permanecer sobretudo nos
tempos atuais.
Por exemplo, no curso Audiovisual, no plano político pedagógico,
quando se fala da internet, rádio e cinema, temos 85% dos componen-
tes curriculares voltados para o Cinema. Não é a produção audiovisual,
mas sim o Cinema. Fica um pouco estranho quando os alunos chegam
no terceiro ou quarto semestre e encontram rádio ou linguagem sonora.
É preciso também atualizar essas questões. Os alunos falam de questões
que não conseguimos contemplar e aqui na UnB é muito forte o ensino
do cinema e documentário. Contudo, há um crescente de alunos inte-
ressados em animação, cada vez mais, dentro da FAC.
Durante um bom tempo, fiquei ministrando as matérias de Pré-
projeto em Audiovisual e Metodologia para os formandos e em uma
dessas minhas matérias estive muito inquieto. Eu não sou especialista
de animação, não sou dessa área, mas promovemos um seminário

209
na FAC de uma semana sobre animação. Foi bastante interessante por-
que vimos que a extensão poderia ser um caminho para suprir uma
lacuna que não conseguiremos preencher de uma forma tão rápida, já
que isso iria requerer um novo laboratório, com novos professores e
talvez técnicos, concursos públicos e consensos envolvidos sobre isso.
Já na extensão precisamos de alguém com vontade de fazer. Aprende-
mos bastante nesse evento e outras conexões que nunca havíamos pen-
sado foram feitas. Na Semana Universitária de 2019, desenvolvemos o
tema da animação, por exemplo, algo de que os alunos falam muito.
Não vamos nem falar do rádio, para não ser suspeito, mas os alunos
sentem que têm poucas matérias. Temos tentado trabalhar de maneira
interessante. Televisão é outra questão que os alunos sentem muita falta,
já foi dito, sobre as narrativas seriadas, essa é uma lacuna forte.
Para renovar o currículo temos que parar para pensar um pouco
nas áreas, no que os alunos têm interesse, como está o mercado, as pla-
taformas, por exemplo. Muitos dos nossos alunos têm interesse em
conhecer melhor as tecnologias contemporâneas e precisam de um
olhar específico. E como um último exemplo, de algo que não está muito
voltado à especificidade de um meio, depois de falar de animação, per-
cebemos os alunos com muita vontade na área da distribuição. Essa é
uma lacuna também. Eles têm desejo de aprender melhor sobre isso.
Não temos um componente específico sobre isso, nem optativo, nem
obrigatório. Temos professores que estudaram essa área e conseguem,
dentro de suas matérias, cotejar o tema. No entanto, a distribuição como
tema é algo importantíssimo para qualquer produção, em todas as lin-
guagens e níveis.

Eduardo Meditsch: E nessa atividade de ouvir os egressos e os for-


mandos, quais foram as principais questões que chamaram atenção?

Elton Bruno Pinheiro: Dos formandos, o que nos surpreendeu,


apesar de imaginarmos, foi a compreensão dos alunos sobre a impor-
tância da teoria. Porque se criou um clima de que o currículo tiraria
disciplinas teóricas, o que criou uma tensão muito interessante entre
uma camada expressiva dos alunos, pelas respostas que recebemos.

210
Quando um aluno chega ao final do curso, ele percebe, até pelo que é
cobrado para concluí-lo, que a pesquisa é muito importante. Então, os
alunos identificaram que não existia uma matéria específica que tratasse
da pesquisa em Audiovisual, disseram de forma muito direta isso: que
eles aprendem pesquisa em Comunicação, mas não em Audiovisual. Li
algumas respostas e essa questão da pesquisa foi notada por muitos.
Por outro lado, alguns questionam, dizem que temos muita Comu-
nicação. Sou suspeito, pois acho que precisaria de mais até. Entendo o
que eles dizem, que querem entender o que é Comunicação, mas que-
rem entender também a teoria de sua área. No curso de Jornalismo,
por exemplo, quando fiz, não tinham essas matérias sobre a Teoria do
Jornalismo ou História do Jornalismo, não tinha. E é por isso que esta-
mos fazendo esse movimento de olhar o que aconteceu numa área que
é nossa também. Nos formandos, se percebeu muito isso, da percepção
de que a pesquisa é muito importante.
Já dos egressos, percebemos mais a identificação e um olhar mais
saudoso para a faculdade. De modo geral, amadurecem a experiência e
percebem que foi um momento bom. Alguns falam sobre a questão da
prática, o inverso do olhar dos formandos, o que é muito interessante.
Às vezes, pode ser o momento em que alguns alunos passam pelo curso,
com professores com aptidões ou quereres mais voltados da chamada
prática, às vezes os professores se afastam, e chegam alguns que têm
outras abordagens.
Percebemos todos os tipos de resposta, mas dos egressos, em sín-
tese, tem muito a ver com a questão da prática, da prática relacionada ao
Cinema mesmo, específica. Eles identificam muito Cinema no currículo,
mas, talvez, uma predominância de estudos mais voltados a aspectos
históricos, conceituais e críticos e menos à prática. Precisamos lembrar
que os colegas estão lendo e trazendo questões para o jogo, nos choca-
mos e nos divertimos lendo as respostas, algumas são já conhecidas,
mas que ninguém quer dizer. E, por isso, é muito importante a escuta.

Eduardo Meditsch: O grande problema é como colocar nos qua-


tro anos todas essas questões curriculares e de necessidades, dar uma
base teórica ampla do ponto de vista da abertura da comunicação como

211
um todo, depois uma base teórica mais focada nas áreas. E, no caso do
Audiovisual, talvez fosse a situação de também faltar blocos de especia-
lização de Rádio, TV e Cinema, mas, para tudo isso, não basta colocar
os nomes, como você bem lembrou, requer estrutura e professores.

Elton Bruno Pinheiro: O Audiovisual funciona um pouco assim.


Tem dois semestres, quinto e sexto, onde os alunos fazem blocos expe-
rimentais. Mas, o interessante em algumas respostas foi que esses blo-
cos pudessem ser abertos a outras práticas e não somente a produção
em Cinema. Então, o bloco é constituído por um conjunto de matérias
que vão desde a produção, direção, edição, direção de atores, ilumina-
ção, fotografia. Contudo, esse é um bloco muito específico para aquele
semestre, como são dois, os estudantes questionam porque não temos
blocos dessa forma para experimentar com TV, por exemplo. Ou por-
que não é aceita uma produção diversa, como uma experiência para TV.
Poderia ser uma forma de alcançarmos esses quereres, essa necessi-
dade, ou de valorizar essa autonomia do estudante, já que ele está num
curso de Audiovisual. Costumo brincar na disciplina Roteiro, Produção
e Realização em Áudio, que apelidamos de RPRA e que alguns alunos
chamam carinhosamente de Rádio, porque a ementa é toda voltada para
esse assunto. Costumamos chamar o bloco do rádio e dizer que não
verão mais esse assunto, a não ser que sigam com os projetos nos labora-
tórios. Às vezes, o segredo nem está em disputar o espaço, não em criar
algo novo, mas sim de olhar de uma maneira diferente o que as áreas
que estão ali vão nos permitir.

212
CAPÍTULO 9

O paradoxo da criatividade
no ensino da Publicidade1
Fábio Hansen2
Juliana Petermann3
Rodrigo Stefani Correa4

Vamos pautar a nossa fala naquilo que consideramos a consolida-


ção da nossa pesquisa, que vem de um período de oito a dez anos de
pesquisa longitudinal, que é o livro Criação Publicitária – Desafios no
Ensino5. No livro, tratamos dos desafios no ensino de criação publici-
tária, mas pensando também nas questões da criatividade no ensino de
um modo mais abrangente. Essa obra foi lançada no segundo semestre
de 2020 e, no nosso entendimento, acaba consolidando os achados da
nossa pesquisa ao longo desse tempo.
A nossa fala aqui é destinada tanto para docentes quanto discentes,
da graduação e da pós-graduação. Uma coisa que debatemos há bas-
tante tempo é que precisamos, cada vez mais, falar para mestrandos e
doutorandos, futuros professores e professoras. Então, certamente, se
vocês estão num espaço de pós-graduação, de mestrado, de doutorado

1 Palestra à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-


do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB em 13 de maio de
2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). É um dos fundadores do Grupo de Pesquisa Inovação no Ensino
de Publicidade (IEP).
3 Professora da Universidade Federal de Santa Maria e professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Comunicação da mesma universidade. É uma das fundadoras do Grupo de Pes-
quisa Inovação no Ensino de Publicidade (IEP).
4 Professor associado do Programa de Graduação em Comunicação da Universidade Federal
de Santa Maria. É um dos fundadores do Grupo de Pesquisa Inovação no Ensino de Publici-
dade (IEP).
5 HANSEN, F.; CORREA, R. S.; PETERMANN, J. Criação publicitária: Desafios no ensino.
Porto Alegre: Editora Sulina, 2020.

213
em Comunicação, mais do que pesquisadores e pesquisadoras, vocês
devem ter a ambição de, se já não são, se tornarem docentes. Nesse sen-
tido, esse é um espaço também rico para apresentarmos um pouco o
que pensamos, compartilhar e ouvir o que vocês têm a dizer.
A finalidade das nossas pesquisas e aquilo que tentamos trazer para
sala de aula é a criatividade no ensino de Publicidade e Propaganda. A ino-
vação está associada à criatividade e é o que temos consolidado nas nossas
pesquisas, nas publicações, nas nossas práticas que aparecem também no
livro. Organizamos esta apresentação em alguns momentos. No primeiro,
vamos abordar o contexto da nossa pesquisa, o modo como temos realizado
e o que detectamos e percebemos sobre os movimentos e as transformações
no mercado publicitário e, evidentemente, as questões de ensino que são as
questões que interessam mais. Na sequência, entramos com uma parte, que
é um capítulo do livro, sobre a criatividade no ensino, os fatores associados
ao desenvolvimento da criatividade estudantil.
Então, brevemente, convidamos a acessar o site do grupo de pes-
quisa Inovação no Ensino de Publicidade (IEP)6, no qual temos parceria
interinstitucional entre a Universidade Federal do Paraná, Universidade
Federal de Santa Maria e Universidade Federal de Pernambuco, uni-
versidades onde começamos a pesquisa. Tivemos apoio nessa pesquisa,
ainda em 2014, participando da seleção de um edital do CNPq para pes-
quisar e depois dar vazão a esses conhecimentos. No site, temos espaços
de colaboração também, onde estudantes, colegas e docentes podem se
manifestar compartilhando experiências de ensino. Temos um espaço
de blog e, em função da pandemia da Covid-19, criamos um espaço
multimídia com a participação de professores e professoras que fazem
relatos de experiência de ensino e de ensino remoto, por meio de áudio
e vídeo. Nós estamos pesquisando, desde o ano passado, sobre o ensino
remoto de Publicidade e Propaganda na pandemia, um relatório que
temos consolidado no site. Consideramos que o nosso Grupo de Pes-
quisa tenta contemplar os dois lugares: o lugar de quem ensina e o lugar
de quem aprende Publicidade e Comunicação; e de como esse processo
acontece nesse mundo real e no mundo ideal, entre o possível e o ideal.

6 Para mais informações sobre o IEP: https://www.grupoiep.com.

214
O que temos como parâmetro é querer despertar a criatividade.
Não só nos estudantes, nos colegas, mas também em nós, para estimu-
lar aulas mais criativas. Uma pergunta que nos norteia é: como fomen-
tar a criatividade nos estudantes sem sermos criativos nas nossas prá-
ticas? Precisa partir de nós, precisamos ter um pouco de legitimidade
para poder falar sobre isso. Desse modo, a valorização da criatividade
durante o processo de ensino e aprendizagem foi e continua sendo o
centro da nossa pesquisa.
Os resultados consolidados nesse livro contemplam uma jornada
de pesquisa longitudinal. Foram oito anos, de 2010 até 2018, dessa
investigação sobre o ensino de Publicidade e Propaganda. Priorizamos
a imersão em sala de aula, pelos diálogos internos nesse ambiente, um
espaço que nem sempre é tão observado assim nos estudos de Comuni-
cação e de Publicidade. Selecionamos cursos de graduação em Publici-
dade e Propaganda em oito instituições de ensino superior espalhados
pelo país (UFPR, UFSM, UFPE, UP, UNISC, USP, Uniderp, ESPM),
com a preocupação de que a escolha dessas instituições decorre de uma
projeção de resultados não restrita a um cenário regional. Com exceção
da região Norte, há representantes de instituições de todas as regiões e
nesse cenário temos as públicas (federal e estadual) e as privadas.
Mostramos algumas das disciplinas, todas foram obrigatórias, no
campo criativo na área de Publicidade e Propaganda, que examina-
mos durante, pelo menos, um período letivo entre 2010 e 2018. Então,
evitamos relatos e entrevistas, porque, no nosso entendimento, seria
um erro metodológico retirar o docente ou a docente do seu espaço
natural para saber sobre a sua estratégia de ensino. Fizemos essa inves-
tigação gravando aulas e, além dessa gravação, valemo-nos de outra
técnica de coleta de dados que foi a coleta documental, com plano de
ensino, ementas, conteúdo programático, sistema de avaliação, textos
colocados em discussão, briefings, trabalhos solicitados aos estudan-
tes, devolutivas, feedbacks e provas. Foi um conjunto bem amplo de
disciplinas que acompanhamos.
Tivemos acesso aos dados mais específicos a partir da programa-
ção e do cronograma estabelecidos no programa de ensino das disci-
plinas por cada professor e professora, em período letivo específico.

215
Com eles, definimos as aulas a serem observadas que variaram entre
quatro a oito aulas por disciplina. Nesse planejamento que começou em
2010, na totalização, foram mais de 130 aulas gravadas, cerca de 400
horas/aulas e 21 disciplinas. E depois começamos a trabalhar na produ-
ção do livro e a nos debruçar no volumoso material que reunimos. Essa
foi um pouco da parte metodológica.
Com isso, queríamos compreender a nossa atuação docente em sala
de aula. Como falamos, não estávamos confortáveis com as nossas práti-
cas docentes e nem estamos. Precisamos estar em constante atualização.
Desse modo, não fazia sentido não investigar o nosso próprio fazer na
sala de aula de Publicidade. O motor da nossa pesquisa está justamente
nisso, nesse descontentamento com o nosso próprio desempenho cria-
tivo nas disciplinas de Criação que ministramos. E, nessa altura, tem
uma contradição que nos perturba até hoje, que é ensinar criação sem
ser criativo nos métodos e nas estratégias. Essa contradição foi o motor
da nossa pesquisa. É exatamente o trabalho de campo, a ida à sala de
aula, onde as coisas efetivamente acontecem, no nosso entendimento, o
que enriqueceu a pesquisa.
Entender o campo publicitário, mas também entender o campo
da educação a partir de uma pesquisa empírica, sem abrir mão de uma
massa crítica conceitual, de uma massa crítica metodológica forte. E
então formamos essa tríade, por assim dizer, entre processo de ensino
e aprendizagem, sujeitos e instituições envolvidos nesse processo de
ensino e aprendizagem. Formando essa tríade: processos, sujeitos e
instituições.
Dado o contexto da pesquisa, abordaremos o contexto do mer-
cado, incluindo os jovens que são os nossos alunos. Temos um capítulo
sobre isso no livro no qual olhamos bastante para esses estudantes e o
mercado publicitário. Traçamos um panorama das mudanças sociais,
culturais, econômicas e tecnológicas, o seu reflexo no mundo do traba-
lho publicitário e, por consequência, no ensino, como acaba incidindo
no ensino de Publicidade.
Priorizamos os deslocamentos experimentados, não só na Publici-
dade, mas também as mudanças vividas pelos jovens. Em que sentido?
Hoje são novas formas de ser, de pensar, de agir e, consequentemente,

216
novas formas de aprender e de ensinar. Um ponto a destacar é que esta-
mos falando de coisas que escrevemos antes da pandemia da Covid-19,
que trouxe mais transformações e novas formas de sentir, de pensar, de
aprender e de ensinar. Isso fica ainda mais transformado.
Logo, questionamos: o campo publicitário vive em crise, um campo
em crise de identidade, se afastando muito do paradigma das agências
de publicidade e ainda sem outro paradigma estruturante. Está em
movimentação, em transformação, em mudança, como sempre esteve,
mas talvez o atual momento seja de uma mudança muito mais acelerada
e muito mais ágil. Essa alteração da indústria da propaganda atravessa
um momento de revisão de prática de trabalho, de atividade publici-
tária em reconfiguração, de reinvenção de processos criativos, revisão
do modelo de negócios, digitalização de processos, com a inteligência
artificial que gera dilemas éticos. Enfim, transformações na atividade e
no fazer que acabam repercutindo na forma como traremos isso para a
sala e repensar os processos de ensino e aprendizagem.
O livro Criação Publicitária – Desafios no Ensino é permeado por
perguntas. Trazemos muitas provocações, perguntas que consideramos
fundamentais para problematizar com os estudantes em sala de aula,
para examinar com eles os movimentos do mundo do trabalho publi-
citário e para compreender o funcionamento, a profissão, as crises, as
estruturas das agências, os modelos, as práticas que estão em mutação.
O livro tem essa função de auxiliar neste aspecto, porque há um alarga-
mento da própria definição clássica do que é Publicidade e Propaganda.
O que é publicidade e propaganda hoje? Quais são os pontos de contato
das marcas com os consumidores? A publicidade, ela persuade? Sim,
é para persuadir, sim, mas ela hoje traz outras experiências e tem uma
função de criar vínculos e contatos entre conectar marcas e pessoas,
anunciantes e consumidores.
Nesse sentido, as novas plataformas, como YouTube, Twitter, Goo-
gle e Facebook, consolidam outros caminhos técnicos e criativos com
produção de conteúdo, novos concorrentes com as agências de propa-
ganda, outras formas de produzir, criar e editar conteúdo. São outros
players participando desse mercado e a grande questão é como trazemos
esse conteúdo para a sala de aula.

217
Percebemos que o relacionamento entre público, marcas, produtos
e conteúdos se modificou significativamente, modificando também o
fazer publicitário, o trabalho criativo e a nossa forma de ensinar Publici-
dade e Propaganda e pensar nesses processos. Então, o consumidor das
narrativas publicitárias é cada vez mais chamado a participar das estra-
tégias, naquilo que se tem como uma solução colaborativa de problemas
pelo trabalho conjunto de equipes que resultem em processos de cons-
trução coletivos, denominados de processos de intercriatividade, que
são redes de cooperação. Não só entre profissionais de Publicidade, mas
de profissionais de Comunicação e de outras áreas, com uma participa-
ção e uma cooperação forte dos consumidores. Publicitários e publici-
tárias acabam sendo curadores de ideias dessas iniciativas de cocriação,
desempenhando uma atividade de curadoria.
Tal contexto também nos faz pensar o processo de criação e como
é trabalhado em sala. E, consequentemente, precisamos conhecer mais
e melhor esse jovem contemporâneo que é o nosso aluno hoje, o pro-
fissional de amanhã, mas que está conosco hoje. Assim, algumas hipó-
teses que exploramos no livro são a; “juniorização”; a outra é a “qua-
lificação de profissionais inadequada para as demandas atuais”, o que
passa por um processo de ensino e de formação também; e a outra é a
“queda da atratividade da atividade publicitária” junto aos estudantes
e aos novos talentos.
Notamos, em resumo, que os jovens ingressam mais cedo no
mundo do trabalho criativo e são cobrados com elevada responsabili-
dade quando ainda estão num processo de formação emocional. Esses
jovens acabam tendo que assumir postos de trabalho e substituindo
profissionais que saem também muito jovens para empreender em
outro ramo de negócios. Como consequência, há um elevado índice de
retrabalho, perde-se tempo, há um risco sobre a qualidade do traba-
lho das entregas publicitárias, falta tempo para os jovens ampliarem o
repertório, que cobramos deles em sala, devido às longas e excessivas
jornadas de trabalho. Muitas vezes, gera frustração de uma expectativa
profissional e um desinteresse pela própria sala de aula, por falta de
tempo e por desmotivação com a própria profissão. Então, é uma cadeia
que acaba se formando.

218
O outro aspecto é a remuneração, a precarização do trabalho e
uma remuneração baixa. Jovens com pouca experiência aceitam ganhar
menos, assumindo cargos de comando, sem preparo adequado ainda
para a função exercida no mercado. Os salários muito baixos nem sem-
pre são suficientes para a manutenção de condições mínimas, como
moradia, transporte, alimentação e vestuário, e tem uma consequência
ainda mais nociva que, na nossa percepção, é a de que quem persiste na
profissão de Publicidade e Propaganda é a classe média alta. Tal fenô-
meno agrava o cenário homogêneo e hegemônico que nos coloca na
busca por uma publicidade mais diversa e inclusiva. Como incluir e ter
outras representações se temos um padrão consolidado de docentes e
também de estudantes?
“Os jovens até podem não ter certeza sobre o que querem, mas
eles sabem o que não querem.” Essa frase apareceu em algumas partici-
pações nos congressos que fizemos para falar da pesquisa e que tem se
sustentado nos estudos em parceria com a professora Cristiane Mafa-
cioli Carvalho, da PUC/RS, com grupo INOVAPP (Grupo de Pesquisa
Inovações das Práticas Publicitárias). Nesses estudos, as professoras têm
pesquisado: como esse jovem não quer mais a agência; como passou a
ter outras aspirações; como estão olhando para outros espaços de tra-
balho, com outras alternativas, startups, empreendedorismo, youtubers,
creators, influenciadores digitais; e como estão pensando em cuidar de
redes sociais de empresas, trabalhar com tecnologia, com entreteni-
mento, com produção de conteúdo, trabalhar em projetos de responsa-
bilidade social.
Há uma intensa migração de profissionais, de jovens, para os seto-
res de Marketing e Comunicação das grandes empresas. Eles têm bus-
cado mais a consolidação de trabalho, mais consolidados em termos de
carteira de trabalho, para evitar a precarização. São novas empresas que
se organizam como consultoria, como plataformas de conteúdo e que
vão absorvendo esses profissionais.
Dessa forma, cabe pensar o cenário que pesquisamos de olhar a sala
de aula, do mercado em transformação na publicidade e do cenário juve-
nil, das juventudes, e como essa condição toda que compõe o campo publi-
citário atravessa o processo de ensino e aprendizagem em Publicidade

219
e Propaganda e nos faz, ou não, repensar a nossa própria prática docente.
Como isso chega na sala de aula nas questões de ensino?
Na nossa pesquisa sobre o ensino de Publicidade, nos deparamos
com uma espécie de cânone de três facetas, nesta ordem de importância:
de como nós, professores, nos enxergarmos primeiro como publicitários,
depois como criativos e só depois como docentes. Só que não como docen-
tes criativos. Essa é uma contradição que encontramos como cerne do que
pesquisamos. Esse habitus docente se assenta muito sobre um publicitá-
rio sem a devida preocupação com a docência criativa, sem uma devida
preocupação com o ensinar criativamente. Ou seja, uma criatividade não
aplicada para o fazer docente, mas muito mais para o fazer publicitário.
E nós identificamos na pesquisa que o habitus docente demarcava:
professor, publicitário, homem, com razoável prática de mercado e com
uma reduzida formação pedagógica. Esse habitus docente, no ensino de
criação, corresponde a uma forma predominante de ensinar. São sabe-
res profissionais, relativos ao mundo do trabalho, que acabam sendo
dominantes: o publicitário, o criativo, no seu pior estereótipo, acaba
predominando em comparação à docência, ao professor ou à profes-
sora. E, assim, concebemos, na nossa pesquisa, ao fazer essa análise
crítica e teórica, três posições de sujeitos: a cristalização dessa vertente
pouco criativa do ensino de Criação; a resignação a essa vertente pouco
criativa do ensino de Criação Publicitária; e a resistência a essa vertente
pouco criativa do ensino de Criação Publicitária.
A cristalização do habitus docente caracteriza o institucionalizado
como sentido dominante no ensino de Publicidade. São situações de
aprendizagem acompanhadas ao longo da nossa pesquisa, inclusive das
nossas próprias aulas, em que constatamos uma conduta padrão, uma
rejeição a outras metodologias de ensino, deixando de experimentar
outras atividades em sala de aula ou um espaço para um pensamento,
ou expressão crítica e criativa para estratégias inovadoras de ensino.
Testemunhamos uma produção quase enlatada de aulas agarradas a
manuais, a regras consagradas, com o máximo de rigor científico, mas
com o mínimo de criatividade.
Questionamos, de certa forma, que é cômodo responsabili-
zar o estudante e pedir que apenas ele mude, porque nesse processo

220
de mudança, as interlocuções precisam ser reestruturadas, as práticas
precisam ser repensadas, as metodologias revistas e o tempo destinado
ao planejamento das aulas precisa ser ampliado. Cabe a nós, professo-
res, também, repensar as estratégias de ensino para motivar e estimular
os estudantes criativamente, em detrimento a enquadrá-los no contexto
estritamente mercadológico.
A segunda posição é a resignação ao habitus docente no qual os
docentes se sentem motivados em arejar e oxigenar o ensino, mas que
pela própria sobrevivência se submetem a uma lógica empresarial de
instituições de ensino superior. É quando a educação é tomada pelo
aspecto econômico, que sua função se reduz a reproduzir a força de tra-
balho. E a criatividade fica em segundo plano. A resignação ao habi-
tus docente acaba refém das instituições de ensino e o desafio está nas
condições estruturais que impedem a construção de um discurso peda-
gógico mais criativo.
Estamos tratando aqui do temor da demissão, o ambiente em rápida
mutação, desemprego, e isso causa insegurança e freia a exposição ao risco.
Então, aquela professora, aquele professor “auleiro”, que passa 30, 40 horas
semanais em sala, como esse professor e essa professora vão ter condições
de preparar a sua aula de modo cuidadoso? Como vão poder corrigir tra-
balho e dar feedbacks cuidadosos? Não tem tempo suficiente para isso e
nem suficiente para ampliar o seu repertório, o que dirá ter tempo para
ir ao cinema, ao teatro, assistir séries, ler livros, estudar e pesquisar mais.
Nesse sentido, a nossa prática docente deve permitir um reflexo de inven-
tividade nos exercícios que criamos para os discentes. Entretanto, nem
sempre é possível, sabemos do assoberbamento da maioria dos docentes
e outros entraves que impedem uma prática mais liberta.
Por fim, temos a resistência ao habitus docente. Diríamos que é
o mundo ideal, diante do mundo possível. É a tomada de posição que
resiste a essa vertente pouco criativa do ensino de Publicidade. E é isso
que assumimos, pelo menos, como propósito, como meta de tentar
ensinar Publicidade e Criação Publicitária com criatividade.
No livro, exploramos as posições-sujeito mais a fundo. Aqui dei-
xamos alguns vestígios de algo muito mais simples do que se imagina:
ter autocrítica, olhar para o conflito e crescer com o conflito. Estamos

221
falando de uma gestão compartilhada da aula, entre professor e estu-
dante, de construir a aula e projetos com os estudantes e não para os
estudantes. É a materialização do diálogo enquanto metodologia de
ensino. Valorizar o capital cultural e social dos estudantes, nos retirar
da centralidade. Dessa forma, a nossa ação criativa se revela muito na
preparação cuidadosa de cada atividade, de cada exercício que criamos
– de novo, o verbo criar – para os estudantes, na geração de exercícios
desafiadores que sejam favoráveis a uma prática criativa.
O trabalho docente, o amor (ou labor) docente, é um traba-
lho de planejamento criativo. A criatividade inexiste sem diferentes
experiências, sem diferentes olhares. A criatividade inexiste sem
diversidade, sem inclusão. Então, na sala de aula, precisamos incluir
o estudante, trazê-lo a participar e pensar a aula, porque assim esta-
mos incluindo, diversificando e fazendo o trabalho de troca de expe-
riências e de olhares.
Quando começamos a olhar para o ensino mais criativo – o profes-
sor criativo e não somente o publicitário criativo – é muito nítido o sur-
gimento de dois mundos que não são necessariamente contraditórios,
mas que nos denota uma compreensão mais aprofundada sobre a ideia
de criatividade. A criatividade, em termos gerais, é muito abstrata e
muito fluida. Existe uma passagem que incluímos no livro que fala algo
nesse sentido: a criatividade, aquela aplicada ao ensino, existe a partir
de um processo criativo em que há uma integração de acontecimentos.
Tem renovação de ideias, experimentação de atividades, admissão de
feedbacks mais ágeis e uma ordenação de posturas pedagógicas no sen-
tido de inovar e também de renovar determinadas questões.
Quando falamos de criatividade, podemos cair no equívoco de nos
prender a uma ideia generalista do que é a criatividade. Assim como a
criatividade também não se sustenta mais só sobre os processos criati-
vos, temos que entender essa criatividade como um campo relacional,
que se integra com diversas questões e muitas delas se prendem ao habi-
tus docente. Então, nessa lógica, para não ficar disperso ou preso em ele-
mentos muito generalistas, tomamos como prioridade elencar algumas
dimensões criativas para que isso seja mais crível para se analisar como
objeto, e mais palpável.

222
Dentro dessas Dimensões Criativas do ensino, temos umas que são
mais perceptíveis, mais táteis, e outras nem tanto. As mais perceptivas
estão ligadas a ações inovadoras, abordagens metodológicas diversas
(estamos falando de uma diversidade do ponto de vista da Teoria da
Complexidade sugerida por Edgard Morin), a ambientes de aprendi-
zagem (onde estamos imersos e em quais condições nos encontramos
dentro desses espaços) e as dinâmicas de produção (aquilo que gera-
mos na interação professor-aluno ou aluno-outros alunos). Entre outras
dimensões que são menos palpáveis, mas que são muito intrínsecas a
essas qualidades criativas, entram os aspectos como a motivação, o inte-
resse (docente, em ser criativo, e interesse discente em participar dessas
dinâmicas), a disposição e o know how (a qualidade de como absorve-
mos novos conhecimentos).
Dessa forma, se entendermos que o campo profissional publici-
tário vem passando por tantos desafios, tantos processos inovadores e
revolucionários, por que essa condição também não deve ser refletida
nas dinâmicas pedagógicas? Essas são questões que nos perseguiram a
todo tempo dentro da nossa pesquisa.
Uma questão muito importante é trabalhar a equivalência entre
duas características que são de suma importância. A primeira caracte-
rística é a instabilidade, tomar como partida que a sala de aula sempre
vai ser um ambiente instável, porque ali coabitam diversos interesses,
pontos de vista, diversas análises críticas e conceituais e também indi-
víduos com origens e instruções culturais e socioeconômicas distintas,
que criam um ambiente muito diverso. Essa instabilidade precisa ser
compreendida como um elemento positivo desse elemento motivador.
A segunda é a equivalência, é saber encontrar os diferentes e esti-
mular onde cada um é mais fraco ou onde as pessoas podem crescer
mais em alguns aspectos. Do ponto de vista prático, por exemplo, temos
por hábito prevalecer as práticas onde os sujeitos se sentem mais con-
fortáveis, então por que não subverter essa ordem? Por que não colocar
um aluno mais tímido e reservado para participar de atividades onde
ele possa equilibrar essa necessidade de uma expansão, essa necessi-
dade de uma expressão melhor? Por que alunos com domínio técnico
sobre softwares não podem desenvolver outras habilidades e vice-versa?

223
Entender esse desequilíbrio que acontece no meio pedagógico é um ele-
mento importante para começarmos a articular mudanças nesse processo.
Outro ponto é a opção de considerar o erro como uma ótima
opção de aprendizagem. Tomamos como consciência que os processos
avaliativos e algumas dinâmicas práticas do campo criativo publicitá-
rio priorizam ou, de alguma forma, valorizam mais os acertos do que
os erros. Nesse sentido, a ideia é tentar uma espécie de disrupção e
inverter essa ordem. Fazer com que os erros sejam objeto de análise de
igual importância, ou seja, podemos entender que o erro pode ser um
caminho mais curto para aprendizagem. O erro pode nos levar a uma
ancoragem com elementos de uma tentativa de inovar, de subverter,
de transformar determinadas realidades que já estão postas. Para isso,
também é preciso recompensar o trabalho e o esforço, mais do que os
acertos, e também aprimorar o tempo e a qualidade dos feedbacks. O
feedback é um dos instrumentos mais sensíveis na pedagogia criativa
que conseguimos constatar ao longo dos estudos. E ao ter um feedback
rápido, ágil, quase em tempo real, você consegue interferir mais na
realidade da sala de aula.
Por último, permitir a avaliação do discente pelo discente, refor-
çando a ideia de que equilíbrio é também equilibrar o ímpeto criativo
com a responsabilidade que se espera de um profissional. Algumas vezes,
a atividade criativa publicitária está no estigma da rebeldia, do impro-
viso, do lado puramente artístico e esses não são elementos exclusivos e
balizadores da criatividade. Existem critérios que definem o reposicio-
namento da postura profissional, do comprometimento com a análise
de dados, com a sustentação amparada em pesquisas científicas. Existe
uma lógica do profissionalismo publicitário relevante para os processos
criativos também, para eles não ficarem subjugados a uma questão mais
lúdica, simplesmente de uma inspiração ou meramente insights e outras
lógicas que foram enfatizadas pelas nossas literaturas ao longo do tempo
e por processos criativos nas dinâmicas da aula. Por exemplo, será que
só o brainstorm ou será que só a realização de um briefing ou desen-
volvimentos de reunião de brainstorming são suficientes para dar conta
de insights criativos? Até que ponto os estudos de comportamento de
consumo, uma análise detalhada de pesquisa entre comportamentos

224
de consumidores e novos aspectos contemporâneos da sociedade tam-
bém não interferem nessas dinâmicas?
Então, é tentar trazer um pouco dessa equação para não criar tam-
bém um abismo entre teoria e prática. Esses são alguns parâmetros mais
palpáveis que apresentamos no livro para sairmos um pouco do equívoco
do generalismo, do verniz mais superficial sobre a ideia de criatividade.
Na pesquisa, embora tenhamos olhado para outras salas de aula,
olhamos primeiro para a nossa. A primeira coisa foi nos analisar
enquanto professores e professora da disciplina de criação publicitária
e pensar o que estamos fazendo ali e como poderíamos, talvez, fazer
diferente. Uma inquietação com a nossa postura, primeiro, enquanto
docentes, e depois com uma definição metodológica, com coleta de
dados, para que pudéssemos falar desse assunto com maior proprie-
dade. Assim, a nossa pergunta parte de como ser mais criativo e inovar
em nossa sala de aula, com práticas docentes, fazendo com que os estu-
dantes também assumam posturas mais criativas não só para o trabalho
publicitário, pensando no seu futuro, mas também para que eles tenham
uma vida mais criativa, pensando a criatividade de modo geral.
Desse modo, fizemos a investigação em outras salas, mas, princi-
palmente, na nossa. Começamos a perceber, nos nossos levantamen-
tos de dados, que tínhamos uma sala de aula bastante estagnada, bem
mais do que gostaríamos de ter encontrado. Encontramos boa vontade
e rigor, porém, encontramos mais do mesmo e aquilo começou a nos
chamar atenção, a partir de uma questão que já tínhamos levantado:
onde está a criatividade que estamos ensinando em disciplinas da cria-
ção publicitária na nossa prática docente?
A questão é que temos, como seres humanos, a tendência à insti-
tucionalização de processos. Isso é uma necessidade de sobrevivência,
inclusive, e uma economia de energia. Não podemos ficar inventando
a roda todos os dias e isso também não seria possível no ensino. O que
encontramos no ensino é uma naturalização do que fazemos na nossa
vida. Construímos processos, vemos as pessoas fazendo as coisas de um
determinado jeito e muito do que observamos nessa constituição do
habitus docente vem da ausência de uma formação pedagógica, espe-
cialmente porque nos constituímos, enquanto docentes, olhando para

225
outras práticas. Vivemos a experiência como alunos e alunas e as expe-
riências que foram legais trazemos para nossa sala de aula, reprodu-
zindo daquela mesma forma.
Assim, temos a tendência a fazer com que as coisas permaneçam
do mesmo jeito e, por isso, vimos, na Publicidade, uma grande ten-
dência a passar um briefing, dividir a turma em grupos e executar esse
briefing com os alunos, no processo de orientação. Fazendo aquela ati-
vidade quando o docente passa de grupo em grupo orientando, depois
nos reunimos para apresentar o produto desse trabalho. Mas, em termos
criativos, nada de novo. Então, pensamos qual seria a saída, pensando
em economizar energia e na institucionalização de processos como uma
necessidade. Quando estamos diante de um processo de transforma-
ção – e estamos vivendo um processo de transformação na Publicidade,
quase que constante, e, principalmente agora, uma transformação acele-
rada com os processos de digitalização –, qual poderia ser a nossa con-
duta? Pensamos que, para sobreviver a esse grande processo de transfor-
mação, poderíamos traçar estratégias de adaptabilidade e fazer com que,
dessa forma, estejamos um pouco mais preparadas e preparados para
passar por esse momento. Inclusive porque ficamos de frente com uma
geração que é bem diferente da nossa em termos digitais e vamos assu-
mir no nosso livro e na nossa pesquisa o conceito do novo Sensorium,
um conceito de Jesús Martín-Barbero, que aborda a juventude.
Quando entramos na sala de aula pela primeira vez, ainda temos uma
idade parecida com a dos estudantes e depois isso vai se perdendo com
o passar do tempo. Continuamos com os nossos repertórios enquanto o
repertório discente vai se renovando a cada ano na nossa frente. Acon-
tece aquelas coisas do exemplo da novela que dava e que ninguém mais
conhece, o exemplo da música que ninguém mais conhece. Então, como
vamos conseguir, ao mesmo tempo, constituir ou atualizar o nosso reper-
tório a ponto de que possa ser compartilhado com os estudantes? Como
podemos olhar para o repertório estudantil como sendo um repertório
possível de atualização da nossa própria sala de aula?
Entendemos que nessa troca já há uma grande estratégia. E quando
falamos nesse conflito geracional, o Martín-Barbero, há 20 anos, já dizia
que ele tinha dois desafios da Comunicação ao ensino. O primeiro

226
na relação que o jovem tem com a tecnologia, que é uma relação dife-
rente da nossa; e o segundo desafio é uma necessidade de olharmos para
o ambiente educacional de uma forma muito diferente do que temos
hoje, um ambiente educacional descentralizado e difuso, sem hierar-
quias. A sala de aula com um professor ou uma professora à frente, as
cadeiras em classes enfileiradas, com uma predominante fala docente e,
com o que vimos nos nossos dados de pesquisa, o diálogo bastante res-
trito. Uma das coisas que nos chamou atenção, como dado importante,
foi a presença de perguntas retóricas somente e a falta de uma disponi-
bilidade real para o diálogo.
Fica aquela pergunta: o que vocês sabem sobre o assunto? E já trata
de passar para a próxima questão. Ou o que vocês acham sobre isso?
Ninguém respondeu, então segue adiante, não retoma a questão, não
incentiva efetivamente que o estudante participe. Então, as perguntas
retóricas não servem como estratégia de diálogo. Analisamos que, nesse
ponto, precisa de uma revisão bem urgente. Quando falamos de ensino
criativo, tratamos dessa reformulação de papéis, olhando para as hierar-
quias em sala, procurando refazer isso, valorizando os saberes da juven-
tude, o que chamamos de “saberes-mosaicos” da juventude como força
motriz da inovação e da criatividade. Defendemos que grande parte das
dificuldades que temos em sala é porque acabamos não chamando o
estudante para o nosso lado e não potencializando aquilo que o estu-
dante tem para oferecer em termos de inovação para a sala de aula.
O que observamos também, nem tanto na etapa de levantamento
de dados, mas já no momento de compartilhar os resultados da pesquisa,
no percurso da análise dos dados, que tínhamos muito mais resignação
docente do que discente. Apresentamos os dados e ouvíamos da nossa
plateia: “ah, é isso mesmo, porque os estudantes não sabem o que que-
rem”; ou “os alunos não têm interesse em discutir a didática em sala de
aula”; ou ainda “ah, eu não posso chamar o estudante para construir um
plano de aula comigo porque eles não sabem, não têm conhecimento
didático-pedagógico”. E o quanto nós temos? Qual é a nossa forma-
ção didático-pedagógica? Efetivamente, não estudamos isso, estamos
aprendendo na prática. Por que não compartilhar esse momento com
os estudantes?

227
Ao mesmo tempo, quando apresentamos para plateias que tinham
uma constituição mista, com estudantes também, já ouvíamos mais dos
estudantes, “vamos lá, eu estou interessado também”; ou “estou interes-
sada, eu quero fazer da sala de aula outro lugar”; “como eu posso ajudar
o meu professor para nos transformarmos juntos?”. É claro que isso é
só uma informação, não verificamos a diferença em termos científicos,
mas se isso aconteceu pelo menos uma vez já é algo para observarmos
e para pensarmos que podemos contar com o estudante e com a estu-
dante. E não é na outra ponta, é aqui do meu lado na sala de aula.
Nesse sentido, fizemos algumas perguntas durante a pesquisa,
temos mais questionamentos do que respostas. Gostamos disso por
também estarmos aprendendo enquanto pesquisamos, e estarmos
aprendendo enquanto professores, que bom que não sabemos tudo ou
sabemos pouco. A primeira pergunta é: “Como iniciar um processo
de transformação em sala de aula?”. O primeiro ponto dessa pergunta
é conservar o diálogo como principal estratégia. Observar para que
tenhamos uma sala de aula descentralizada e com a capacidade de ser
atualizada pelos saberes estudantis. Via diálogo, conseguimos.
Outro ponto é entender que identificamos muitos problemas no
mercado publicitário e reformulando nossa sala de aula podemos refor-
mular o mercado também. Falamos, por vezes, como se fosse algo muito
distante: “a Publicidade isso, a Publicidade aquilo”, mas a Publicidade
somos nós também. Somos parte constitutiva desse mercado, porque
as pessoas que vão sair da nossa sala de aula vão fazer o mercado publi-
citário ali na frente. Então, temos muita responsabilidade em como o
mercado publicitário se constitui.
A outra pergunta que colocamos é: “Como podemos planejar
aulas mais criativas?”. Nessa pergunta, elencamos cinco princípios
criados a partir de pressupostos teóricos do que é a criatividade alia-
dos à análise de alguns exemplos do mercado. O primeiro princípio
é que a criatividade só vem da diversidade. Nesse ponto, a principal
questão é que temos mais a aprender sobre a diversidade com os e
as estudantes do que propriamente ensinar. Se olharmos, o próprio
mercado de Publicidade já tem muito mais essa discussão sobre diver-
sidade, inclusive na constituição das equipes e, também, no que diz

228
respeito à representação nos anúncios. Hoje, felizmente, já discutimos
muito mais a representação da mulher na Publicidade, muito mais
do que se discutia há alguns anos. No mercado, temos exemplos de
modelo de empresa, como uma consultoria que trabalha basicamente
sobre a representação da mulher na propaganda7. É um modelo de
negócio baseado em discussões importantes. São discussões que tam-
bém precisam ser incorporadas na sala de aula.
Como professora da criação publicitária, há alguns anos, me dei
conta de que, quando ia designar tarefas de direção de arte, passava
essas tarefas normalmente para os meninos. E me questionei o porquê
de isso estar acontecendo. Foi toda uma discussão e aqui mesmo na
universidade, criamos um projeto que se chama 50|50 para trabalhar
a igualdade de gênero na criação publicitária. Esse dado modificou um
pouco, mas vamos dizer que não chegamos a 30% de participação femi-
nina na criação publicitária. É um mercado muito desigual ainda e que
precisamos, ainda na sala de aula, refletir sobre isso.
O outro princípio é o trabalho criativo em grupo. Temos como
base teórica o pensamento do Domenico di Masi em que ele fala como
criar equipes mais potentes, criativamente, quando unimos o pensa-
mento abstrato com a capacidade de concretização de outras pessoas.
Então, no modo como organizamos a distribuição de grupos em sala de
aula, podemos também ter o pensamento de como trabalhar melhor os
diferentes potenciais criativos dos estudantes.
O outro princípio denominamos “criatividade universal”, que é a
valorização de um pensamento divergente. Nesse ponto, temos como
base o pensamento de Joy Paul Guilford, em que a criatividade está mais
relacionada a fazer perguntas múltiplas e diferentes do que achar uma
única resposta correta. Normalmente, temos isso como base, como se
a criatividade fosse solucionar problemas e encontrar a resposta certa,
quando não. Teríamos que encontrar infinitas respostas possíveis e até
reformular as nossas perguntas. Desse modo, já é um modo diferente de
olhar para a sala de aula e enxergar a criatividade como um todo colo-
rido da vida, que é a base do pensamento de Donald Woods Winnicott.

7 Consultoria 65/10. Site: http://meiacincodez.com.br.

229
O quarto princípio é o da simplificação, nele pensamos como a pró-
pria publicidade se tornou complexa e burocrática demais, por vezes,
departamentalizada demais e isso acabou repercutindo em nossa sala de
aula. Tem uma fala do CEO de uma grande empresa que diz assim: “Eu
sou cliente. Na realidade, eu não quero saber esse monte de processo
que vocês têm aí e que, de certa forma, só torna o processo muito demo-
rado e muito difícil”. Isso acaba acontecendo na sala de aula e acabamos
não revendo as próprias funções que temos nos grupos, no modo da
realização das tarefas. Nessa grande departamentalização, tem o atendi-
mento que passa para o planejamento que passa para criação que volta
para o atendimento. Não exploramos a potência estudantil. Normal-
mente, quem já tem mais predisposição para apresentar um trabalho
ou a dialogar com um cliente vai ser o atendimento, assim, acabamos
não favorecendo outras experiências. Nessa perspectiva, o princípio da
“criação para o mundo” é relacionado a exercitar a criatividade como a
resolução de problemas gerais e não somente problemas publicitários.
A nossa penúltima pergunta: o que falamos sobre repertório, como
temos tempo para atualizar o nosso repertório se não temos tempo nem
para preparar a aula? E essa é, cada vez mais, a nossa verdade. Temos o
nosso ponto principal que é reconhecer a disparidade entre o repertório
docente e discente, mas valorizar os saberes discentes e aproveitar para
potencializar o nosso próprio repertório e a sala a partir do repertório
estudantil. Ter cuidado com frases como: “Ah, no meu tempo isso...”. É
necessário olhar para a história da propaganda e trazer essa história para
aula, mas observando alguns pontos. A história da propaganda é contada
de uma forma muito homogênea. Por exemplo, se olharmos rapidamente,
quase não encontramos a participação das mulheres na história da pro-
paganda. Isso já é um ponto para observar essa história de outra forma.
Para finalizar, a nossa próxima pergunta: “Que práticas inovado-
ras podemos propor?”. De forma mais geral, vislumbramos que educar
para a diversidade e aprender sobre diversidade com os estudantes é um
ponto importante. Transformar o ensino para transformar o mercado é
um pressuposto fundamental. Renovar os exemplos em sala de aula. Às
vezes, tem campanhas que ainda são trazidas e hoje elas não seriam nem
permitidas, se for pensar em termos éticos da linguagem publicitária.

230
E, às vezes, encontramos isso circulando em salas de aula com argumen-
tos de que a apresentação é antiga, mas não poderia mais estar. Nesse
sentido, renovar esses exemplos, assumir em sala de aula um processo
de constante transformação em que possamos a cada dia e a cada prática
desenvolver, pensar, como fazer isso de outra forma.
Em meio a tudo isso, quando falamos de processo de transforma-
ção da sala de aula, destacamos a sobrecarga docente e quais são as for-
mas de fazer essa transformação de modo que não coloque toda a res-
ponsabilidade nas costas do professor e da professora, porque sabemos
as situações complexas de trabalho que temos. Sabemos das questões
da precarização do ensino no nosso país, e sabemos que o que esta-
mos falando não é fácil. Então, a nossa ideia, com a pesquisa e com o
grupo, é que possamos criar espaços de compartilhamento de experiên-
cias docentes interessantes porque, assim, nos fortalecemos enquanto
docentes. Quando vamos para uma sala, a ideia é que possamos romper
o silêncio, conversar e trocar experiências docentes interessantes que
possam oxigenar a nossa sala de aula.

Debate

Eduardo Meditsch: Uma pesquisa fantástica, e o que vocês conse-


guiram levar dessa experiência de pesquisa para as diretrizes curricula-
res nacionais dos cursos de Publicidade?

Fábio Hansen: Na medida em que fomos à sala de aula, embora


com intenção e cumprindo isso de olhar a perspectiva docente, ao longo
desses anos de pesquisa, tivemos uma série de estudantes trabalhando
conosco. Seja na iniciação científica, mestrandos, graduandos em tra-
balho de conclusão de curso. A partir daí, conseguimos entender um
pouco esse lugar do estudante e, de certa maneira, levar para as diretri-
zes curriculares pelo menos algumas dessas demandas, ou desses pensa-
mentos, daquilo que os estudantes também gostariam, como estivessem
representados em termos de competência, em termos de disciplinas, de
conhecimentos e de conteúdos indispensáveis à formação deles.

231
Como muitos deles também estão atuantes no mercado publici-
tário, são estudantes que acabam trazendo bastante para a sala de aula.
Nós, professores, acabamos nos afastando um pouco do mercado publi-
citário, nos atualizamos com cursos paralelos ou pela pesquisa, mas
nós não estamos na vivência do dia a dia do mercado publicitário e
os estudantes estão. E a participação deles foi nesse sentido, de trazer
aquilo que estão vivendo no dia a dia, problematizando, do ponto de
vista estratégico, do ponto de vista também ético, cidadão e humano.
Entre tantas outras coisas, nossa pesquisa conseguiu trazer a perspec-
tiva discente para contribuir com as diretrizes curriculares nacionais de
Publicidade e Propaganda.

Juliana Petermann: Toda a nossa atuação, de certa forma, nesse


processo das diretrizes, foi pautada pelos dados que coletamos, e ofe-
recemos, para o documento, uma visão mais geral da criatividade no
ensino da propaganda e mais abrangente do que pensar as disciplinas
da criação publicitária, enquanto disciplinas relacionadas à criatividade.
A pensar que a criatividade precisa ser muito mais orgânica em todo o
processo de formação. Além disso, vale destacar que nas nossas diretri-
zes os aspectos da atualização do mercado de trabalho foram dados que
acabamos coletando em experiências discentes.
O processo da construção das nossas diretrizes foi bastante demo-
crático e houve muitas oportunidades de conversa. O que imaginamos
para o ensino, sendo de consenso, o papel aceita, mas quanto a imple-
mentar isso no dia a dia, na prática, é outra coisa. Institucionalmente,
teria muito mais força para a transformação do ensino do que simples-
mente recair a responsabilidade total no professor. Os processos institu-
cionais são muito mais demorados. No próprio plano pedagógico, pode
ter uma proposta de ensino e isso não se concretizar na prática docente.
E vemos muito isso: “A ementa dessa disciplina é sensacional! Isso aqui
deveria estar acontecendo!”. E quando abrimos a porta não é assim.
Partimos de um olhar que procura ser bastante subjetivo ao papel
docente, é da nossa própria prática, naquele dia em que saímos da sala
de aula, fechamos a porta e saímos dali sabendo: “Hoje não fluiu, não
consegui me comunicar com essa turma e não sei o que aconteceu”.

232
Saímos desconfortáveis e questionamos: “Como que eu vou restabelecer
o diálogo, como consigo me comunicar com essas pessoas? Às vezes,
passamos um semestre inteiro e a comunicação simplesmente não acon-
teceu. E, mais do que professores e professoras, nós somos profissionais,
também, de Comunicação. Imagina na Publicidade, ensinamos a cons-
truir discursos persuasivos e a como elaborar um texto publicitário que
possa seduzir a compra e não conseguimos organizar o nosso próprio
discurso em sala de aula. Como nos afastamos? Por que isso não fluiu?”.
É claro que institucionalmente as coisas acontecem melhor, quando
temos um amparo institucional influencia na sala de aula. Todas às vezes
que organizamos a sala em círculo, temos que organizar e desorganizar
e voltar a colocar as cadeiras em fila porque tem uma normativa no
nosso centro de ensino que diz que a nossa sala tem que ser de classes
enfileiradas. Então, precisamos chegar, chamamos todos os estudantes e
solicitamos: “Vamos fazer um círculo”. E, no final da aula: “Vamos reto-
mar o normal da sala enfileirada”. Assim, se tivéssemos uma sala de aula
com uma estrutura que favorece a circulação das ideias, o olho no olho
com os estudantes, isso já seria revolucionário, mas não temos.

Alberto Miranda: Quando falamos sobre erros e sobre a possibili-


dade de aprendizado, sobre como encaramos a questão do erro em sala
de aula e sobre os motivos que nos fazem ter tanta dificuldade em admi-
tir o nosso erro e, principalmente, de entendê-lo como um processo e
não necessariamente como uma ruptura. O questionamento está mais
em cima do: como fazer essa comunicação entre professor e aluno, entre
instituição e aluno, para que se construa essa ideia de que a sala de aula
é um espaço livre de construção, aprendizagem, de erros (especifica-
mente) e livre de julgamentos?

Rodrigo Stefani Correa: É uma linha tênue, mas que, de uma forma
bem objetiva, a melhor estratégia é construir o planejamento pedagó-
gico com a participação dos alunos. Tínhamos uma resignação cultural
quando desenvolvíamos trabalho em equipes e eles queriam formar as
equipes entre os conhecidos. E aí começamos a subverter isso fazendo
por sorteio. Mas, o sorteio não é aleatório, criamos uma dinâmica para

233
saber como misturar os alunos. E apresentamos essa proposta no início
do semestre. Quando reparamos a dinâmica com a justificativa, com
a metodologia e explica isso para o aluno e não simplesmente coloca
como uma decisão arbitrária sua, acreditamos que os alunos integram e
acreditam na proposta.
Quando mostramos quais são os benefícios daquela função, é possí-
vel perceber que eles vão concordando, se modificando, mesmo embora,
de uma forma velada e secreta, eles ainda tenham essa resistência. No
entanto, no final, conseguimos formar um consenso não totalitário, mas
positivo e que isso dá movimento. Dessa forma, tudo depende de como
o ou a docente apresenta a proposta, de como a prepara integrando os
estudantes nesse caminho.

Juliana Peterman: Nesses momentos que são mais de desafio, pre-


cisamos construir um lugar confortável na sala de aula. Esse lugar em
que os estudantes se sentem acolhidos. Sabemos que estamos desafiando
a outra pessoa em algo que não é fácil para ela, então é preciso avaliar
também pelo processo, não simplesmente pelo produto final. Tendo um
nível máximo de dificuldade de apresentação de um trabalho, por exem-
plo, a pessoa conseguiu apresentar o trabalho, então, a avaliação vai ser
diferente da avaliação que faríamos do ponto de vista de uma pessoa
com toda a facilidade para se comunicar e para apresentar um trabalho.
Também muda no momento em que vamos avaliar, com palavras de
incentivo e um feedback amigável criamos o ambiente em que a pessoa
diz: “Aqui eu posso errar. Esse é um momento em que eu posso me desa-
fiar nesse aspecto que tenho mais dificuldade. Posso me desafiar porque
vou encontrar acolhimento, tanto docente como entre colegas”. E enten-
der que vamos ter um ambiente bastante obtuso no mercado de trabalho
e que, então, a nossa sala de aula seja esse lugar, de certa forma, mais pro-
pício à experimentação, ao erro e, consequentemente, à inovação.
Observamos o lugar da universidade como tendo tempo e potên-
cia, inclusive para olhar para as metodologias de trabalho, para tudo o
que possa demorar mais, inclusive para troca e para os feedbacks, coisas
que não têm no mercado de trabalho. Então, é uma diferença e uma
potência que se tem numa sala de aula.

234
Eduardo Meditsch: E, ao mesmo tempo, é um aprendizado de pro-
fissionalismo. A questão das amizades, dos grupinhos, e dizer: “Olha,
no mercado de trabalho, você não vai escolher com quem vai trabalhar”.
Então, tem que aprender a trabalhar com outras pessoas e a se relacionar
profissionalmente com elas. Penso que isso é, também, algo que funciona.

Rodrigo Stefani Correa: O tema da inteligência emocional é bem


forte. Temos um caso recente na universidade de um estudante que,
se ele tivesse que apresentar trabalhos orais, desistiria da disciplina,
simplesmente trancava. E tentamos inseri-lo dentro de uma realidade
do que seria possível para ele: começou gravando as apresentações e
mandando reservadamente para os professores. No final da história, o
aluno acabou de defender o TCC e fez uma apresentação oral para uma
banca de professores falando exemplarmente e foi fantástico. Então, um
aluno que tinha dificuldades seríssimas de sociabilidade trancou mais
de sete disciplinas, porque simplesmente se negava a apresentar tra-
balhos orais ou fazer trabalhos em grupo, era uma condição dele. E,
com muito diálogo, com aproximação, tentativa, erros e acertos, con-
seguimos um pouco de flexibilidade e inteligência emocional também.
Vamos aprendendo.

Ana Carolina Melo: Sobre o perfil dos profissionais que conse-


guem se estabelecer mais facilmente no mercado publicitário, de pro-
fissionais de classe média e de classe média alta, fiz uma correlação
com alguns números que vi. Nos últimos anos, houve um aumento nas
universidades públicas tanto de alunos de renda mais baixa e também
por políticas de diversidade. Gostaria de saber se vocês notaram essa
diferença no curso de Publicidade e se isso tem contribuído, durante as
aulas, para repensar outros produtos. Vocês viram mudança de perfil?
Isso aconteceu, também, na Publicidade? Isso contribui para que o mer-
cado possa pensar em novos produtos, pensar em novos públicos?

Fábio Hansen: Tentarei responder de modo sintetizado em três


aspectos, pois essa questão é muito importante. Primeiro, objetiva-
mente, sim. Pela nossa experiência, percebemos a alteração do perfil

235
socioeconômico dos estudantes e mais diversidade, mais inclusão. Falo
de classe social, de etnia, de sexualidade e de identidade de gênero.
Então, sim, percebo isso.
Não percebo tão fortemente, ainda no mercado publicitário e me
refiro, sobretudo, a cargos de liderança. Porque uma coisa é eles se inse-
rirem numa universidade, que é o primeiro passo, outra é a inserção no
mercado publicitário, principalmente nos espaços tradicionais, como
agências, setores de marketing, de comunicação, veículo de comuni-
cação. Nos setores mais tradicionais, percebemos uma inserção, mas
ainda uma dificuldade de ser protagonista. Ainda há muito estereó-
tipo, muito preconceito, para ter condições de serem recebidos. Nós, na
universidade, sobretudo pública, estamos mais preparados para rece-
ber esse estudante, para fazer uma interlocução com ele, para integrá-
lo e colocá-lo no protagonismo. E ainda sinto que parte do mercado
publicitário, principalmente nesses espaços mais convencionais, não
está preparada para recebê-los. Entretanto, o mercado tem alternativas
para isso, existe uma série de consultorias de diversidade, outros players
abertos à inserção desses profissionais. Ainda é um processo de constru-
ção, de desenvolvimento, com o tempo.
E o terceiro é o contexto de pandemia. Infelizmente, os estudantes
que estão sendo mais afetados pela pandemia, com evasão e cancela-
mento, são estudantes com dificuldade socioeconômica, que têm auxí-
lio econômico, com algum tipo de bolsa de permanência, por cotas. São
estudantes que acabam, muitas vezes, não conseguindo mais seguir no
remoto porque não tem a infraestrutura, não tem a internet, não tem
um computador, e, principalmente, porque eles estudam e trabalham,
precisam pagar as contas e não tem nenhuma condição de concentração
num espaço que precisam compartilhar com uma família de cinco, seis
pessoas, em metros quadrados minúsculos.
A pandemia vai desencadear um retrocesso nesse processo de
inclusão. Infelizmente, é o que estou percebendo, de esse estudante ter
que, por condições socioeconômicas e, consequentemente, emocio-
nais, não tendo recursos para tratar a saúde emocional, acaba tendo
que desistir do curso para tratar outras coisas que são prioritárias,
neste momento, como pagar boleto, atender os pais, a família e acaba

236
deixando o estudo em segundo plano. Então, temos uma consequên-
cia muito danosa, inclusive para essa revisão, para essa ampliação, essa
diversidade, essa inclusão, não só no sistema educacional, mas também
no sistema publicitário. Vejo em crescimento, mas ainda em processo.

Juliana Petermann: Em termos de permanência, vejo a minha sala


de aula bastante transformada por uma política de inclusão. E isso, aos
poucos, começa a se refletir no mercado de trabalho. No entanto, temos a
dificuldade de permanência. A publicidade ainda é bastante elitista. Tenho
alguns dados levantados em pesquisa de mestrado que dizem “eu fui tra-
balhar em tal agência e não tinha roupa para ir trabalhar”; ou “eu não con-
seguia pagar o transporte até a agência, que era muito afastada do local em
que moro”; ou “eu era convidado para almoço que consumiria a metade do
meu salário”. Esse tipo de questão, própria de um habitus profissional que
é branco, de classe muito alta e que tem um processo de transformação a
passos lentos, quem se estabelece em locais de comando da publicidade
são normalmente filhos de publicitários. A Publicidade é quase heredi-
tária, são filhos de publicitários que já tiveram o seu nome consolidado.
Então, é muito difícil vir de uma realidade completamente diferente desse
mercado, se inserir e permanecer por essa diferença tão grande. Tem reali-
dades que são muito distintas. Mas tem exemplos interessantes.

Nicole Guimarães: Pensando além da Publicidade, outros profes-


sores já comentaram sobre a frustração entre a expectativa e a realidade
dos alunos quando começam um curso na universidade. Será que esse
diálogo com os estudantes não é o futuro e até mesmo a forma como
a universidade conseguirá sobreviver? Até por ter tantas oportunida-
des surgindo fora da área acadêmica? Hoje os jovens podem conseguir
empregos on-line, com rede social, Instagram, sem faculdade. Então,
talvez esse espaço de mais diálogo, de ouvir o que o aluno quer, de
usar a criatividade, de não ser tão tradicional e a estrutura não falar
mais alto, mais do que a prática e do que o outro quer. Será que esse
não é o futuro? Eu fiquei me perguntando porque, pela apresentação,
é muito além da Publicidade, acho que os questionamentos refletem
em todos os cursos, praticamente. Essa é uma questão, mas tem outra.

237
Vocês pesquisaram universidades de várias regiões do país e queria
saber se observaram alguma diferença cultural, já que o nosso país é
tão grande, tão diferente, se nas salas de aula perceberam algo diferente
de uma região para outra e por que não teve a região Norte, se foi uma
opção metodológica ou se era mais difícil?

Fábio Hansen: Começarei pelo final, com a questão do Norte. Ten-


tamos com duas instituições importantes do Norte, do Pará, e no fim
acabamos não conseguindo. E nas instituições privadas era um pouco
mais difícil negociar isso porque tínhamos que entrar na sala, gravar as
aulas. Logo, é um processo mais complexo do que nas públicas. No final
das contas, não houve essa autorização e já estávamos com produção
de dados volumosa. Por conta disso, acabamos mesmo não batendo na
porta de outras instituições do Norte.
A percepção que tivemos, e isso está consolidado nos artigos e
também no livro, é que, infelizmente, os modos de ensinar são muito
padronizados ou, a partir da teoria que usamos, são muito institucio-
nalizados. Então, essa realidade, essa diversidade local ou regional, até
percebemos pontualmente em um briefing que vem, em uma demanda
de atender uma realidade local, resolver aquele problema de comuni-
cação, seja para pequenos negócios, para pequenas empresas. Até tem
uma relação com a comunidade local, agora, o quanto isso modifica o
fazer publicitário, o quanto modifica o nosso fazer, em termos de pro-
cedimento e didática, nos aspectos pedagógicos, é muito pouco. Então,
até imaginávamos, pela questão da universidade privada e da pública.
Começando pelas nossas práticas. Se olhar para as minhas práticas,
principalmente antes dessa nossa pesquisa, mesmo com mudança de
universidade, de cidade, de estado, mas também de pública para pri-
vada, não alterei tanto as minhas práticas, no sentido das regionalida-
des, no sentido da questão geográfica, fora a relação, preocupação, com
a inserção no local.
As práticas, as literaturas e o modus operandis das disciplinas são
praticamente idênticos. É claro que tem um pouco do contexto do
objeto de estudo, você analisa os cases da cidade, do estado, daquela
região, mas, a prática pedagógica em si, está homogeneizada.

238
Juliana Petermann: Em relação à primeira pergunta, penso que temos
um acesso muito facilitado às questões da tecnologia e à produção de con-
teúdo publicitário, no caso, digital. Então, vemos que cada vez mais cedo
os estudantes têm experiências profissionais, até mesmo por esse desejo de
ser influenciador digital. Essa ideia de ser eu mesma uma mídia, essa ideia
é muito sedutora, de me tornar youtuber, influencer, de ser eu a mídia. Cada
vez mais vemos tanto na experiência de produção de conteúdo individual,
eu mesma produzindo o meu conteúdo, mas também na experiência de
produção de conteúdo no geral. “Eu tenho a minha câmera, então já tenho
os meus clientes, já atendo, já cuido da página do Instagram de várias mar-
cas” e isso já nos primeiros semestres. O impacto disso no momento da
decisão de fazer e de concluir o curso eu não consigo responder agora.
Em princípio, diria que não, que o papel da universidade ainda
tende a ser reconhecido, como a formação de um pensamento com-
plexo, de um lugar que permite a circulação desse sujeito entre várias
práticas profissionais antes de ele se dedicar a uma exclusiva. Penso que
a universidade ainda é vista como esse espaço de experimentação e de
construção de uma base teórica, de um pensamento complexo. Res-
pondo, não sei se com a minha expectativa, que permaneça assim, e do
quanto eu consiga avaliar propriamente a realidade. A minha resposta
aqui é bem tendenciosa, pelo meu ponto de vista e pelo que eu desejo.

Fábio Hansen: O meu acreditar é o que acreditamos no nosso


grupo de pesquisa. O ensino superior existe para o amadurecimento
intelectual, para construir o pensamento crítico, o lugar da universidade
é o lugar da reflexão, sobretudo nos cursos de Comunicação Social. Não
necessariamente de dar a resposta definitiva, não de resolver os proble-
mas, mas, resumidamente de fazer pensar. Então, talvez o que tentamos
nas nossas pesquisas ao longo desses anos e na nossa própria sala de
aula é, cada vez mais, trazer isso para o estudante.
Essa relação não é entre esse dualismo, mas essa aproximação e essa
tentativa de harmonizar, entre a tecnologia e a humanização, o sensível
e o técnico. Sei que esses são grandes desafios e o nosso livro é sobre
desafios no ensino, e sobre o que acreditamos. O lugar da universidade
é cada vez mais importante.

239
Eduardo Meditsch: Muito legal a ideia geral de colocarem a ques-
tão da criatividade no espelho para o ensino: “Nós ensinamos criativi-
dade, mas não somos criativos?”. De certa forma, isso é um problema para
toda a área da Comunicação, não é só da criação publicitária. Falamos de
Comunicação e não conseguimos, muitas vezes, comunicar com os nos-
sos alunos. A questão das gerações foi algo que marcou muito para mim.
Trouxe duas coisas que para a minha geração eram mais complicadas: a
questão da mutação tecnológica e a questão das culturas das gerações.
Sou bem mais velho do que vocês, comecei a dar aula com 26 anos, para
alunos que tinham 20 anos. Era uma maravilha a maneira de se entender.
Quando cheguei aos 60 e os alunos continuavam tendo 18 e 20 anos, as
coisas eram bem mais difíceis. Fora a questão das minhas referências pro-
fissionais serem de outro século. E as questões tecnológicas eram muito
desafiadoras. Chegou a um ponto de eu dizer: “Olha, não estou conse-
guindo ter a qualidade das minhas aulas como eu gostaria, é hora de cair
fora”. Porque, como não podemos escolher o que fazemos na universi-
dade, a minha maneira de escolher era me aposentar e ficar como volun-
tário, ministrando o que me sentia confortável. Outro ponto a considerar
é a precarização, que, mesmo nas universidades públicas, pelo produti-
vismo acadêmico, acabamos precarizando e, muitas vezes, nos sentindo
frustrados por não conseguir preparar uma aula como gostaríamos por-
que temos quinhentas outras tarefas.

Juliana Petermann: Algo que queria observar em relação a esse con-


flito geracional, especialmente agora com o ensino remoto, temos a impres-
são de que para os estudantes está tudo muito fácil, afinal, eles são nati-
vos digitais. No entanto, o que vimos em outros levantamentos de dados é
que essa não é uma verdade. O ensino remoto é uma dificuldade para nós,
por questões geracionais, com toda a questão do próprio home office, das
demandas, mas temos a expectativa de que para os estudantes, por ser um
contexto digital, eles estejam mais acostumados e isso que será mais natu-
ral e não é. As nossas pesquisas revelam que os estudantes estão sofrendo
muito com a falta do contato, da sala de aula. Embora a perspectiva do
digital possa parecer muito natural para eles, não é e está gerando bastante
sofrimento. Cada aula é uma nesse contexto do ensino remoto também.

240
CAPÍTULO 10

Ensino de Jornalismo numa


instituição privada: a experiência
do curso EAD da Uninter1

Guilherme Carvalho2

Começo falando um pouco sobre o curso de Jornalismo da Unin-


ter. O curso tem duração de quatro anos e funciona atualmente nas
modalidades EAD e semipresencial. Temos ainda um curso presencial,
mas que está sendo descontinuado e a última turma cursando deve fina-
lizar até final de 2022. A sede do curso, dentro das três modalidades, é
no Campus Tiradentes, em Curitiba. E a Uninter tem o primeiro curso
EAD de Jornalismo do Brasil, pelo menos em funcionamento. A Está-
cio chegou a se cadastrar no MEC para oferecer também, mas o curso
não chegou a vingar naquela época. Então, a Uninter foi a primeira a
oferecer, de fato, vagas no curso de jornalismo na modalidade EAD. Já o
curso presencial existe desde 2007 e conta com uma certa tradição, pois
estamos falando de mais de 13 anos de curso.
Na equipe de professores, atualmente, somos 27. Mestres e douto-
res que compõem a equipe do quadro docente do curso, com experiên-
cia profissional de mercado e também acadêmica. Então, praticamente
todos ali tiveram experiência de mercado e obrigatoriamente todos
ou são mestres ou são doutores. Nós tínhamos um mestre na equipe,
que era o professor Mauri König, que é uma sumidade no jornalismo

1 Palestra à turma de Pedagogia da Comunicação, disciplina ministrada pelo professor Eduar-


do Meditsch no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAC-UnB, em 24 de abril
de 2021, via Google Meet, transcrita e editada para compor esta publicação.
2 Pós-doutor em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2019). Doutor pela
Unesp e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professor
e coordenador do curso de jornalismo do Centro Universitário Uninter. Também é diretor
científico da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abej).

241
investigativo, superpremiado, um cara super reconhecido pelo mer-
cado, e que era especialista, mas ele concluiu o mestrado dele ano retra-
sado. Hoje todos os professores são mestres ou doutores. E no Campus
Tiradentes nós temos o nosso espaço físico, com estúdios, laboratórios.
O início do curso EAD começa em fevereiro de 2017, a primeira
turma entra em 2017, mas a preparação desse curso inicia bem antes,
em 2015, quando a instituição estabelece no Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI), aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e
Extensão, a inclusão do curso de Jornalismo como EAD. Então, nós pas-
samos a trabalhar na organização da grade curricular e estruturação do
curso para pensá-lo à distância. Lembrando que a Uninter é um centro
universitário criado em 2001, como faculdade, depois vem crescendo
e é muito forte na modalidade EAD. Começa sobretudo nos cursos de
pós-graduação, como o IBPEX, e depois vem se desenvolvendo, cres-
cendo e ganhando muita visibilidade. Também por causa da legislação
na área de educação, que passa a permitir o ensino a distância e, a partir
disso, começa a se expandir e ficar reconhecida como uma instituição
fortemente na área de educação à distância. Mas a Uninter também tem
cursos presenciais e semipresenciais e lançou recentemente uma nova
modalidade, chamada telepresencial. Enfim, no Curso de Jornalismo
são ofertadas mil vagas e cem nos mais de 700 polos da Uninter espalha-
dos pelo Brasil, inclusive Brasília e nas cidades-satélites, além de polos
nos Estados Unidos, Portugal, Inglaterra e Japão. É um curso que tem
em praticamente todos os estados, com alunos espalhados por todo o
país e também em outros países.
Queria trazer aqui alguns números interessantes para pensarmos
esse cenário da educação a distância e que vão mostrar porque hoje
temos também um curso de jornalismo a distância, e tantos outros.
Um dos dados que trago é o do número de vagas oferecidas em cur-
sos de graduação, por modalidade de ensino no Brasil. Esses são dados
do Censo da Educação Superior de 2020 referentes ao ano de 2019 e
mostram um processo de crescimento da oferta de vagas na educação
a distância. A educação presencial retraiu no período 2018/2019, uma
queda de 5,2%, enquanto que a oferta de vagas a distância cresceu 45%,
no espaço de um ano.

242
Gráfico 1: Número de vagas oferecidas em cursos de graduação, por
modalidade de ensino no Brasil – 2014-2019

Fonte: MEC/Inep; Censo da Educação Superior.

Outro dado interessante demonstra a evolução do número de alunos


ingressantes nos cursos de graduação, nos últimos 10 anos. É possível obser-
var que em 2009 havia uma quantidade muito maior de alunos em cursos
de educação superior presencial, 1,732 milhão alunos, contra 332 mil da
educação a distância. No gráfico a seguir, percebe-se que há uma curva de
crescimento da educação a distância e que a de presencial se mantém está-
vel. A ponto de, no ano passado, 2020, finalmente termos uma igualdade no
ingresso de alunos da educação superior em ambas as modalidades. Logo,
2020 foi o ano em que esses números se igualaram. E há uma tendência,
portanto, pensando numa previsão pro futuro, olhando essas tendências,
provavelmente em 2021 a educação a distância deve superar já em número
de alunos a educação superior no Brasil. Isso aqui mostra um cenário, um
mercado, que tem ficado muito favorável à educação a distância. Há uma
procura maior por essa modalidade, e em jornalismo não é diferente.
Eu fiz uma busca no portal do E-MEC para ter dados atualizados
dessa situação e temos o seguinte cenário: são 430 cursos de jornalismo
ativos no Brasil, segundo os dados do portal do Ministério da Educa-
ção onde estão cadastrados os cursos superiores. Extintos: 86 cursos.
Em extinção: 37. Aliás, esses são dados interessantes, porque aqui nós
podemos, talvez, contestar um pouco aquele discurso que temos ouvido
frequentemente, de que o fim da obrigatoriedade do diploma estaria

243
colocando em xeque a formação superior em jornalismo, reduzindo a
importância do ensino superior na área. Então esse é um dado que mos-
tra pra gente que não é bem assim. Considerando a relação de cursos em
extinção e cursos extintos nos últimos 40 anos, mais ou menos, do total
de 430 ativos, apenas 38 são cursos a distância.

Gráfico 2: Número de ingressos em cursos de graduação – 2009-2019

Fonte: MEC/Inep; Censo da Educação Superior.

Quando a Uninter cadastrou o curso EAD em 2015, naquele ano


havia apenas o curso da Estácio que citei anteriormente. Dois anos
depois nós tínhamos quatro cursos. Eram o da Uninter, esse da Estácio,
que não tinha sido ativado, o da Universidade do Contestado, e mais
um da Uninta, ou alguma dessas fortes na EAD. A Uninter, só para se
ter uma ideia, em número de alunos, hoje é a quinta maior instituição de
ensino superior do Brasil. São mais de 230 mil alunos matriculados. Ela
só perde para o grupo Kroton, que tem um pool de instituições, Unias-
selvi, Unip e Estácio, que também são muito fortes na EAD. A Uninter
está entre as principais, portanto. A Kroton, só para se ter uma ideia,
tem mais de 1 milhão de estudantes.
Então, cerca de quatro anos atrás, tínhamos quatro cursos ativos de
Jornalismo cadastrados no E-MEC, na modalidade de EAD. Nos dados
que puxei hoje são 38. Então, temos aí mais uma evidência desse cresci-
mento do ensino superior a distância na área de Jornalismo.

244
Outro dado são os números do Atlas da Notícia, que é aquele dado
que foi levantado pelo PROJOR, fruto de uma pesquisa que tem sido
realizada já com uma certa frequência, bastante conhecida, a respeito
dos “desertos de notícia”. Dados que mostram um número bastante sig-
nificativo de municípios no país que não tem nenhum veículo próprio
de jornalismo local. São 3.280 municípios mapeados por essa pesquisa
que não tem um jornal local. Mais ou menos 34 milhões de brasileiros,
portanto, que não tem como acessar ou consumir conteúdos noticiosos
e informações a respeito da sua cidade, trabalhados jornalisticamente.
E aproximadamente 18% da população que vivem nesses chamados
desertos de notícia3. Esse é um dado interessante porque em alguma
medida demonstra a necessidade da educação à distância também.
Muitos dos nossos alunos – e eu posso afirmar isso porque eu
conheço muitos alunos, são casos de profissionais que já estão atuando
em jornalismo – já atuam na área, estão em meios de comunicação, mas
que não têm oportunidade de fazer o curso superior, porque na cidade ou
na região onde moram não existe curso superior em jornalismo. Ou não
existia curso superior em jornalismo, e agora eles passam a ter essa opor-
tunidade porque os polos estão espalhados pelo país. Estão em grandes
centros, mas também no interior, em cidades menores, que não têm uma
instituição de ensino superior, e essas pessoas jamais conseguiriam fazer
jornalismo se não fosse nessas condições com o curso a distância.
Então, esses dados mostram ainda uma certa lacuna na formação,
nas possibilidades de formação superior, ou na demanda por informa-
ção, que é importante também para essas regiões, e que não contam com
profissionais, ou onde não existe um jornal, não existe uma produção
de notícia porque não tem profissional e pessoas pensando jornalismo.
Então são questões que acabam, de algum modo, fortalecendo o papel
das instituições de ensino, dos cursos a distância.
Queria trazer aqui o que diz nossas diretrizes curriculares. São dire-
trizes aprovadas em 2013 que vem de um longo processo de debate. E um
dos itens das diretrizes, ou dois momentos em que as questões práticas
aparecem, e estou levantando aqui as questões práticas porque geralmente

3 Os dados divulgados em 2022 apontam uma redução dos chamados desertos, mas 2.968 ci-
dades do país ainda não têm um veículo jornalístico que trate de temas locais.

245
é o que suscita o debate a respeito da educação a distância em jornalismo,
é o tema mais polêmico na oferta de um curso EAD nessa área, está rela-
cionado à prática laboratorial, é o eixo 6 das DCNs. O documento fala da
prática laboratorial como um eixo formador do profissional em jorna-
lismo, ou seja, é preciso apostar também na formação prática desse futuro
jornalista. E o artigo 16 deixa isso mais específico, em seu inciso V, obri-
gando os cursos a manterem uma permanente atualização dos laborató-
rios técnicos especializados para aprendizagem teórico-prática do jorna-
lismo a partir de diversos recursos de linguagem e suportes tecnológicos,
de biblioteca, hemeroteca e bancos de dados com acervos especializados.
Então esse é um item que, de algum modo, implica na obrigatoriedade
dos cursos em oferecer também atividades práticas e condições para que
esses alunos possam desenvolver essas atividades, a partir de laboratórios
técnico-especializados. Esse é o item que foi tema de um longo debate
internamente, entre nós, com a reitoria e com o corpo diretivo da Uninter
também, porque a gente sabia que essa era uma questão importante. A
gente já sabia que essa era a questão mais polêmica.
Então o curso, para vocês entenderem, falando agora mais do
curso de Jornalismo da Uninter, é um curso que, diferentemente do que
nós vemos tradicionalmente nos cursos superiores, não trabalha em
regime semestral, e sim em regime quadrimestral. Ou seja, no lugar de
ter dois semestres por ano, temos três quadrimestres por ano. E a cada
quadrimestre, o aluno tem 4 disciplinas que são ofertadas e mais uma
atividade prática, ou o que a gente vai chamar de “projeto laboratorial”.
Ele faz um projeto prático na área de jornalismo. Por exemplo, quando
o aluno entra no módulo, ou no que a gente chama de UTA (unidade
temática de aprendizagem) Mídias Sonoras, ele vai ter as disciplinas
de Radiojornalismo, Redação para Rádio, Expressão Oral e Edição em
Rádio. São quatro disciplinas que estão associadas ao tema do Radiojor-
nalismo. E o projeto prático que é desenvolvido, ou projeto laboratorial
como chamamos, se chama Uninter Informa, que é nosso radiojornal
laboratório. Então o aluno, a cada módulo, vai se dedicar exclusiva-
mente a uma área específica do jornalismo. Uma hora televisão, outra
hora impresso, internet, assessoria de imprensa, e por aí vai. Além disso,
dessa oferta e estrutura curricular, o curso EAD oferece aulas ao vivo.

246
Toda sexta-feira os alunos têm encontros ao vivo com os professores.
Temos uma ferramenta de videoconferência própria. Os alunos podem
interagir por ali, mandando perguntas, fazendo comentários. Eles con-
seguem então interagir com os professores nas aulas ao vivo.
Nas quintas-feiras, nós promovemos encontros com os professores
orientadores dos projetos laboratoriais, só para falar das atividades práti-
cas. Também numa dinâmica síncrona, em que um professor apresenta,
conversa e debate com os alunos, interagindo ali ao vivo. E, além disso,
eles têm oportunidades de contato com os professores a partir de tuto-
rias. O aluno pode mandar perguntas, questões aos professores. A nossa
estrutura de curso, além desses encontros ao vivo, dessas possibilidades
de interação, também prevê atividades chamadas assíncronas. Vão se
basear muito no que tem sido comumente chamado de “sala de aula
invertida”, ou seja, o aluno tem acesso a um material didático, composto
de rota de aprendizagem, com os temas chaves, um debate sobre os
temas chaves da disciplina, videoaulas. São 6 horas de videoaulas para
cada disciplina, e mais um livro-base.
Cada disciplina do curso tem um livro-base, que visa permitir que
o aluno tenha um contato com aquele tema e com aquela disciplina de
uma maneira mais aprofundada. Os livros são produzidos pela Unin-
ter, pela editora da Uninter, chamada Intersaberes, dos quais participam
nossos professores e professores convidados. Então, o material didá-
tico do curso é constituído por três itens: a rota de aprendizagem; as
videoaulas; e os livros-base de cada disciplina. Além disso, os alunos
têm essas possibilidades de encontro com aulas ao vivo, encontro com
professores, mais a tutoria interativa, e mais os vários eventos que pro-
movemos frequentemente como seminários, debates, palestras, mesas,
que são outros momentos de interação com os alunos.
Nossa estrutura curricular do curso funciona assim: entendendo
que são três quadrimestres por ano e quatro anos de curso, portanto
teremos 12 quadrimestres no total, ou 12 módulos, como chamamos.
Cada módulo é composto por quatro disciplinas mais os PL (que são
os Projetos Laboratoriais), portanto teremos 70 disciplinas. Um curso
tradicional de Jornalismo naquele formato semestral tem em média 50
disciplinas. E por que trabalhamos com mais disciplinas? Porque como

247
o tempo de conclusão de cada disciplina é menor, fechado em 56 horas
cada disciplina, conseguimos ofertar uma diversidade maior de discipli-
nas para o aluno. Obviamente que tudo isso está baseado num estudo
que fizemos a partir das diretrizes curriculares, identificando ali quais
são as demandas, que tipos de conhecimento, enfim, tudo isso baseado
em estudos para tentar montar essa grade curricular.
O curso está dividido em três ciclos. Há um ciclo de entrada, que
chamamos de primeiro ciclo. O aluno sempre entra no Primeiro Ciclo,
em um dos três módulos do Primeiro Ciclo. Portanto, esses três módu-
los do Primeiro Ciclo não têm pré-requisitos. O aluno pode entrar no
meio do ano ou no último módulo do ano, e no ano seguinte ele vai
voltar para o primeiro, depois fazer o segundo e vai pular para o que
chamamos de Segundo Ciclo e fazer uma dessas seis UTAs do Segundo
Ciclo. E depois que passar pelo Segundo Ciclo, o aluno vai para o Ter-
ceiro Ciclo, que são as últimas três disciplinas, onde terá as disciplinas
de TCC, por isso que acaba sendo separado. Eu não sei se está claro, mas
é só para explicar brevemente como isso funciona.

Laboratórios

Então, referente à questão prática. O curso oferece gratuitamente


um laboratório de prática individual, popularmente conhecido como
kit (nome oficial é Laboratório de Práticas Individuais – LPI). Esse kit é
composto por filmadora, gravador e tripé. É o que permite que o aluno
tenha em casa então um laboratório próprio. Além desse kit de har-
dwares (equipamentos), os alunos também recebem um Pacote Adobe,
que são mais de 20 softwares que ficam disponíveis para eles. Quando o
aluno entra no curso, recebe um link para fazer download dos softwares
gratuitamente, e vai ter lá no seu computador Photoshop, InDesign,
Premiere, Illustrator, todos os softwares da Adobe disponíveis gratuita-
mente a todos os nossos alunos. E esse é um diferencial enorme, porque
eu não conheço outra instituição que ofereça o pacote de softwares da
Adobe gratuitamente e também não conheço nenhuma instituição que
dê o kit de equipamentos para o aluno.

248
Lá atrás, tínhamos um debate e alguns diziam que seria interessante
repensarmos essa ideia do kit, tentando propor a ideia de constituir labo-
ratórios por polo (estrutura física para atendimento ao aluno na cidade
onde reside). Quer dizer, cada polo teria que ter um laboratório de rádio,
um laboratório de TV, um laboratório de foto, que ficaria inviável por-
que os polos não comportam essa estrutura. São mais de 100 cursos que
a Uninter oferece hoje entre cursos de Bacharelado, Licenciatura e Tec-
nológicos, então é muita coisa e não teria como cada polo ofertar essa
estrutura. Então a saída que encontramos naquele momento era essa, ou
seja, dar o equipamento para cada aluno e o aluno poderia desenvolver as
atividades práticas. Obviamente não é um material profissional, ele não
vai estar trabalhando com filmadoras e gravadores profissionais, enfim,
ele vai trabalhar com equipamentos que permitam que ele desenvolva
os trabalhos práticos que precisa. O kit traz uma câmera 4K no formato
GoPro, um gravador de mão para o aluno poder captar áudio, fone de
ouvido, cabos, tripé e a maleta que ele recebe, e mais o pacote Adobe que
fica à disposição desses alunos. Além do software Microsoft Office, que
a Uninter possui convênio e também disponibiliza para todos os alunos.
Bom, além do que eu falei anteriormente das questões práticas que
são desenvolvidas nos projetos laboratoriais, os alunos da EAD também
têm essa possibilidade de desenvolver projetos de extensão em TV, Rádio,
Impresso e Digital. Temos vários projetos que rodam o ano todo com
orientação de professores e os alunos da EAD também podem participar
desses projetos. Eles fazem reuniões semanais, fazem produção, fecham
edições. Eu mesmo coordeno um projeto de extensão na Uninter chamado
“Uninter Informa” que é nosso programa de radiojornal. Os nossos proje-
tos laboratoriais são espaços para desenvolvimento tanto dos projetos labo-
ratoriais como dos projetos de extensão, e conseguimos trazer para dentro
do mesmo canal, digamos, as produções provenientes dos dois ambientes,
tanto da extensão quanto da disciplina, do aspecto disciplinar. Então, nós
temos fontes de conteúdo que alimentam esses canais muito fortemente,
são alunos do Brasil inteiro, praticamente uma redação nacional. O projeto
que coordeno, por exemplo, é um programa que tem hoje, como extensio-
nistas, 10 alunos de diferentes lugares, tenho alunos de Pernambuco, de
Brasília, do Rio Grande do Sul, enfim, de tudo que é lugar.

249
Também temos pesquisa. Os professores recebem horas para pes-
quisa, orientam alunos da Iniciação Científica que são também EAD.
Então, conseguimos fazer as duas coisas. E as reuniões acontecem por
videoconferência, videochamada, e as coisas acontecem. Bom, essa pro-
dução prática toda vai para o Portal Mediação, que é o site de notícias
produzido pelos alunos do curso de Jornalismo, é o portal do curso
que agrega sete canais diferentes. Temos produção de TV, produção de
rádio, produção digital. E essa produção toda, além dos nossos canais
que estão associados ao Portal Mediação, também vão para a TV Profis-
são, que é uma TV própria da Uninter, um Canal de TV com emissoras
associadas aqui em Curitiba, com transmissão que já deve estar aconte-
cendo também em outras cidades, incluindo Brasília que logo terá um
Canal de TV chamado IESTV, que deve inaugurar em breve.
Já o portal de notícias Mediação é para onde vai a produção de
notícias dos alunos. Ali é um espaço exclusivamente dos alunos. E tudo
isso que eu falei dos projetos de extensão e laboratoriais vai para dentro
desse portal. Claro que tudo supervisionado, tudo passa pela supervisão
dos professores.
A atividade prática é a grande questão, mas o que me parece é que
com essas evidências de produção, eu diria sim, produções muito bem-
feitas, temos boas produções dos alunos da EAD também, algumas até
muito surpreendentes, até muito superiores, e que acabam ganhando
espaço, visibilidade e inclusive prêmios. O curso frequentemente tem
recebido o reconhecimento da INTERCOM, pelo prêmio Expocom,
pelo prêmio Sangue Novo, que é um prêmio regional aqui do Paraná
também. Enfim, é um projeto interessante de curso.

Debate

Eduardo Meditsch: A primeira pergunta é relacionada à questão


das vagas oferecidas e desse crescimento do número de alunos. Essas
vagas oferecidas estão sendo efetivamente ocupadas na mesma pro-
porção em que estão sendo oferecidas? Essa é a primeira questão. Uma
outra coisa que não ficou clara aí em relação ao funcionamento do curso

250
é o papel dos polos no curso de Jornalismo, o que é que os polos fazem
no curso de Jornalismo?

Guilherme Carvalho: As vagas oferecidas são bem superiores à


quantidade de inscrições, mas acho que isso é um pouco praxe das ins-
tituições, oferecer uma quantidade maior de vagas, porque é mais fácil
você trabalhar com um quantitativo de vagas sobrando do que ter que
ficar depois, ano a ano, corrigindo esses números. Então na Uninter ofe-
recemos 1.100 vagas anuais. O que eu posso dizer é que elas chegam
próximo disso, é a informação que eu posso dar. Mas, algumas insti-
tuições chegam a oferecer 10.000 vagas, e eu duvido que fechem 10 mil
vagas. Outras oferecem 2 mil vagas, mas a gente vê que a proporção
é muito superior. Pegamos aquele gráfico que mostra a quantidade de
vagas ofertadas em relação ao presencial e ao EAD e o crescimento de
inscrições, e vemos que tem uma quantidade muito maior de vagas ofer-
tadas do que de alunos inscritos. É que no presencial acabamos ope-
rando com um número muito mais justo, muito mais próximo à quan-
tidade ofertada de fato.
Quanto ao papel dos Polos de Apoio Presencial, eles têm primeiro
um laboratório de Informática, com acesso ao pacote Adobe, então se
o aluno quiser desenvolver algum trabalho prático lá, ele consegue.
Mas hoje, menos ainda, o polo tem se tornado um espaço essencial ou
fundamental, porque até pouco tempo, a única atividade desenvolvida
no Polo eram as provas, ainda que o polo tivesse biblioteca, laborató-
rio de informática, espaço para estudo, e alguns polos inclusive fazem
eventos presenciais com palestras e debates. Mas com a pandemia da
Covid-19 temos uma Portaria do MEC liberando a realização de pro-
vas em casa, que era a única coisa que exigia a obrigatoriedade do
aluno ir no polo, ou seja, ir até o polo para fazer a prova. E agora não
tem mais isso. A Uninter inclusive instituiu um sistema que o aluno
faz a prova de casa com a câmera ligada e a tela do computador sendo
gravada, então ele tem uma captura de tela com a câmera ligada e o
microfone também. Talvez isso não elimine todos os riscos da cola,
mas talvez reduza bastante, porque ele não vai conseguir acessar nada
na tela do computador, e tem uma pessoa que fica monitorando para

251
ver se o aluno não está abrindo o material. Mas era a única coisa que
exigia essa ida dele ao polo, além da matrícula, é claro, que ele tinha
que ir lá fazer ou entregar documento.

Eduardo Meditsch: Você tem a experiência de coordenar os dois


tipos de curso, o presencial e a distância, e agora há pouco estávamos
conversando com o professor David Renault falando de alguns proble-
mas que o coordenador de curso tem que enfrentar, por exemplo, essa
questão de termos que planejar um projeto pedagógico e depois isso ser
colocado na prática, quando a vida dos alunos tem uma série de outros
fatores, de outras variáveis, que normalmente não previmos no projeto
pedagógico, por exemplo, os alunos vão trabalhar, fazer estágio, e aquilo
que se pensou do percurso ideal do aluno dentro do curso não vai acon-
tecer. Você tem a experiência dos dois casos, um provavelmente com
um número muito maior de alunos do que o outro, que você tem que
lidar como coordenador, e como acompanhar esse percurso dos alu-
nos e quais as diferenças, na verdade, que você sente como coordenador
entre uma experiência e outra?

Guilherme Carvalho: O perfil do aluno presencial é diferente.


Ele é um aluno mais dependente, é um aluno que vai aprender mais na
atividade em sala de aula. É lógico que estou falando aqui de uma rea-
lidade muito particular, que é a realidade da Uninter, em que os alunos
em geral, sobretudo do curso presencial, para os padrões de Curitiba,
são diferentes das demais particulares. São alunos trabalhadores do
comércio, gente que rala bastante para conseguir pagar suas contas,
que ajuda em casa, então esse é o nosso perfil porque é a menor men-
salidade dentre os cursos de jornalismo presenciais de Curitiba. Eles
precisam muito desse momento da sala de aula, do professor expli-
cando, e terão dificuldades para fazer o chamado autoestudo, para se
disciplinar e estudar em casa. E na EAD esse é o grande desafio porque
o aluno da EAD precisa ter uma disciplina enorme. Quando começam
as turmas eu sempre faço uma reunião com eles, uma videoconferên-
cia, e uma das coisas que eu sempre digo é: “quem entrou achando
que o curso era fácil dançou, porque quem já estudou EAD sabe que

252
no curso EAD é mais difícil aprender do que no curso presencial, pois
vocês não vão ter o apoio diário presencial e frequente dos professo-
res ali, vocês vão precisar estudar, precisar pesquisar, para vir para as
aulas, para tirar dúvidas e debater os assuntos que serão importantes
para aprofundar o aprendizado de vocês”.
Então esse aluno da EAD acaba sendo mais proativo. E aí tem um
detalhe que é assim: esses alunos, quando eles não se adaptam, e acon-
tece bastante, e não por acaso temos um índice de evasão muito maior
na EAD, muitos desistem do curso. Faz um ou dois anos, e não é por-
que ele não consegue pagar, ainda que este também seja um problema,
sobretudo em períodos de crise, mas são alunos que desistem porque
não se adaptam. Então, de certo modo, há uma filtragem dos alunos e
quando a gente chega ali no último ano, tem uma leva sempre muito
boa. Quer dizer, sempre não, porque estou tendo a primeira leva agora,
a primeira leva acabou de se formar no final do ano. Mas vemos que são
alunos sempre muito bons, porque a gente pega o histórico deles e vê
que além das notas, tem as produções deles e são produções muito boas
e eu tenho me surpreendido nesse sentido. Em termos de desempenho,
eu diria o seguinte, esses nossos alunos aqui, meio que se assemelham
em termos de rendimento, avaliação, de nota. O que percebo muito é,
aí eu não tenho muitos elementos para comparar com outros cursos
EAD em jornalismo, mas no presencial eu diria que a curva de cres-
cimento do aprendizado do aluno é muito maior do que de um aluno
de uma universidade federal, por exemplo, porque eu dei aula em uma
federal e eram alunos excepcionais, alunos super selecionados, muito
inteligentes e com muito acesso, e que já partiam de um patamar muito
elevado e para você formar esse cara jornalista, a curva que você tem
de fazer de crescimento dele não é tão forte, ele não precisa fazer um
esforço tão grande. O meu aluno, hoje, para chegar num patamar de
formação de um jornalista, para ser aceitável no mercado tem que fazer
um esforço muito maior, pra essa turma é um grande desafio. Mas eu
diria que o nosso grande desafio é manter esses alunos. Muitos deles
acabam desistindo por uma série de fatores, às vezes por desgosto com a
profissão, por não conseguirem pagar, ou por não se adaptarem mesmo
a esse formato, porque essa ideia do autoestudo não vem só para o EAD.

253
No presencial a gente aplica o mesmo padrão. Tanto que a grade do
EAD, os professores e a estrutura de curso é exatamente a mesma, com
a diferença de que eu não tenho o encontro presencial diário com os
professores. Agora não mais no presencial também porque estamos
fazendo tudo remoto, mas as aulas acontecem diariamente também.

Eduardo Meditsch: E quanto ao trabalho dos professores, o que


muda, como funciona um departamento num curso a distância? Você
trabalhou nos dois, também trabalhou em uma universidade pública
então pode fazer uma grande comparação.

Guilherme Carvalho: Veja, a gente tem algumas coisas que eu acho


que são diferentes, que trazem uma certa particularidade. Na EAD, o
que temos muito são correções de provas e trabalhos, porque o volume é
muito grande, e orientação de TCC e de estágio. É o que vai ter de diferen-
cial. Porque o processo de aula é parecido, ou seja, você prepara o mate-
rial para ter uma aula expositiva ou com participação, depende muito do
professor ou da didática dele, ou das exigências daquela disciplina. Mas
ele vai fazer um encontro como esse que estamos fazendo aqui, vai para
um ambiente virtual, com alunos do Brasil inteiro, é como se fosse uma
grande sala de aula e ali as coisas vão se desenrolar. Mas essa parte, do
ponto de vista administrativo acadêmico, que é orientar TCC, corrigir as
provas e trabalhos, que são os nossos PLs, isso que tem demandado uma
grande carga horária dos professores, muito mais do que as aulas, porque
a produção do material didático tem um tempo determinado.
A partir do momento que você terminou a produção, você não
tem mais a demanda de ficar produzindo o material didático, não existe
esse trabalho contínuo. O que acontece é que a cada três anos fazemos
a atualização e revisão do material. Então as aulas são gravadas nova-
mente, o texto é reescrito, revisa o que deu certo e o que não deu, mas
o restante permanece. Agora, se formos colocar no papel a proporção
de aluno/professor, obviamente a quantidade de alunos por professor
é muito maior. Mas como funciona o curso a distância, tem uma outra
lógica, uma outra dinâmica. Agora os professores, a maior parte, são
40 horas, trabalham no regime integral, e a maioria dos professores,

254
pelo menos no Curso de Jornalismo, ou tem horas de extensão ou tem
horas de pesquisa, ou tem os dois, não com as mesmas condições de
uma universidade pública, em que o professor tem às vezes 20 horas de
pesquisa ou extensão, não tem condição porque não ficaria viável finan-
ceiramente para o negócio, porque, afinal de contas, é uma empresa.
Mas há esse incentivo à pesquisa, inclusive há bolsas de Iniciação Cien-
tífica também, o que não acontece, a gente sabe, em outras instituições
privadas de cursos presenciais. Na nossa, acontece mesmo sendo EAD.
Até porque a estrutura do curso EAD e a rentabilidade do curso EAD,
que é muito maior do que a do curso presencial, permite que a institui-
ção ofereça essas condições melhores. Essa é uma situação diferenciada,
por exemplo o software da Adobe, porque conseguimos disponibilizar
um software da Adobe para cada aluno, porque compramos na quan-
tidade e nesse caso a quantidade reduz muito o valor do pacote para a
Adobe, assim como o kit de equipamentos. É isso que permite que seja
proporcionado tudo isso para os alunos. É um diferencial.

Gisele Pimenta: Gostaria de ouvir um pouquinho sobre essa dinâ-


mica do EAD e essa filosofia do autoestudo perante as atividades prá-
ticas de laboratório? Entendo a necessidade desse papel ativo do aluno,
mas como ficam o acesso a equipamentos, ferramentas, as dinâmicas
pedagógicas da aula mesmo para esse ensino remoto que, no caso do
Jornalismo, tem uma forte carga prática e que a meu ver necessita desse
aporte estrutural e institucional das faculdades.

Guilherme Carvalho: Esse é o cerne da questão, a atividade prá-


tica. No começo, quando iniciamos o curso em 2017, percebemos que
tinha um desafio grande ali, porque os alunos não estavam conseguindo
desenvolver alguns trabalhos, e não estavam conseguindo porque a exi-
gência para fazer certas coisas não estava muito clara. A instrução de
como ele poderia desenvolver o trabalho não estava muito clara. Então
nós começamos a gravar pequenos vídeos, por exemplo, como editar
uma foto usando o Photoshop, como diagramar um jornal, como editar
um vídeo usando o Premiere. Essas orientações mais técnicas nós não
colocamos na aula, não vem pra sala de aula, como um debate mais

255
técnico, está em vídeo. Falamos para eles: “tem um vídeo, um material
disponível que você precisa assistir e fazer a partir daquilo”. Vira um
curso que o aluno faz e no final ele ainda pode ganhar um certificado de
horas complementares e assim conseguimos desenvolver.
As orientações para os projetos práticos se dão em três momentos.
Acontece por um manual de produção, que é disponibilizado para o
aluno, então ele tem o PL, que é o Projeto Laboratorial. Cada Projeto
Laboratorial é como se fosse uma disciplina do curso, uma disciplina
especial, que conta com uma estrutura própria no nosso Ambiente Vir-
tual de Aprendizagem, que tem esse manual, que explica como fazer, o
que ele tem que fazer, tudo está descrito lá. Conta com exemplos, alguns
modelos, com algumas ferramentas que ele pode usar para desenvolver
o trabalho prático e vídeos que vão explicar como tem que ser feito.
Além disso, ele vai ter essa possibilidade de orientação da produção por
meio das aulas interativas das sextas-feiras e por meio das tutorias inte-
rativas das quintas. Então, em algum momento, vai ter a possibilidade
de interação síncrona com o professor e também de forma assíncrona,
por meio do acesso de um link no qual pode perguntar, mandar ques-
tões e fazer essa consulta. Mas essa orientação cotidiana a que estamos
acostumados, da gente fazer aquela reunião presencial, discutir pauta,
o cara vai pra rua, você volta e avalia com ele, isso não dá pra fazer
na EAD. O aluno da EAD não é avaliado pelo processo, mas sim pelo
resultado. Esse é o grande diferencial no desenvolvimento de trabalhos
práticos num curso EAD. Mas essa é a dinâmica, nós não fazemos dife-
rente. E como falei anteriormente, esse é um fator que geralmente sele-
ciona o aluno, porque quando ele não consegue fazer e começa a atrasar
a entrega de trabalho prático, ele reprova e acaba desistindo do curso.
Por isso que temos um alto índice de evasão também, é um índice bem
forte, acima de 50%, que é a média dos cursos EAD no geral.

José Pantoja: Eu gostaria de ouvir você, porque na apresentação


anterior (do professor David Renault), o professor coordenador do
curso relatou uma quantidade bem significativa de problemas no acom-
panhamento do Projeto Pedagógico. Queria saber se vocês aí contam
com alguma ferramenta ou como funciona o acompanhamento do que

256
foi planejado, em termo dos resultados que estavam definidos, e consi-
derando também o trabalho dos professores, da equipe docente.

Guilherme Carvalho: Essa é uma questão bem importante porque


virou um outro instrumento do curso, a verificação de resultados. Hoje
a Uninter usa uma avaliação interna, que é feita a cada final de módulo,
onde o aluno recebe um questionário para responder, identificando
como foi a produção, se conseguiu fazer, o que ele achou do material
didático e dos professores. Então essa é uma ferramenta de gestão que
fica acessível aos coordenadores. Eu recebo toda avaliação. E nessa ava-
liação temos conseguido identificar quais os principais problemas, por
exemplo, uma disciplina ficou mal avaliada e então começamos a procu-
rar porque a disciplina obteve um mau resultado. Tem as questões aber-
tas, nas quais podemos identificar os comentários, como o aluno dizer
que não conseguiu abrir um link ou que não entendeu um conceito, e
isso nos permite fazer um processo de revisão constante do material,
daquilo que foi produzido e, eventualmente, quando tem alguma recla-
mação de alguma aula que não foi bem dada, um material que não ficou
legal, ou um professor que não usou nada na aula para apresentar, e isso
é uma coisa que faz diferença porque o aluno precisa ter um estímulo
visual pra aula, porque nesse formato acaba, as vezes, cansando o aluno
da graduação. Então esse comentário chega por meio desses relatórios.
Chega pelos canais formais, digamos, que são os relatórios da avaliação
interna e chega também por canais informais. Os alunos têm meu e-mail
e eu recebo e-mails do Brasil inteiro. Às vezes até no meu telefone. Não
sei como eles conseguem meu número. Mas têm os canais oficiais que
sempre chegam, têm essas informações que vem por esses outros canais,
e eu tenho também os meus “informantes” no curso.
Acho que essa é uma questão importante também de você ter
alguém de confiança no curso, e eu tenho sempre uns dois ou três em
cada região, que vão sempre me alimentando com informações, vão
me dizendo como é que está indo. Porque esse contato direto com o
aluno é importante, porque vai nos permitindo identificar onde é que
estão essas lacunas ou esses problemas. Essa é uma ferramenta impor-
tante além, é claro, das nossas reuniões de professores. Temos reuniões

257
de colegiado, reuniões do Núcleo Docente Estruturante (NDE)4 que
acontecem com frequência, onde fazemos avaliação do resultado do tra-
balho, das produções dos alunos, daquilo que saiu no final da UTA. Nos
reunimos para verificar como foi a produção, o que dá para aproveitar,
o que pode ser inscrito em prêmios. Então é mais ou menos assim que
acabamos fazendo esse acompanhamento do processo.

Juliana Ferreira: Queria saber se existe alguma interação com as


universidades públicas, e queria saber se você sente alguma diferença
do tipo de aluno formado na Uninter para os outros formados nas uni-
versidades tradicionais e também da possibilidade de vocês chamarem
empresas de fora para fazerem projetos de inovação, vendo a própria
parte mercadológica, para que os alunos possam ser absorvidos nesse
mercado e se existe alguma interação nisso?

Guilherme Carvalho: A Uninter tem essa disposição em apostar


muito em inovação tecnológica. A ferramenta de AVA é uma ferramenta
muito boa e muito bem produzida, quer dizer é uma instituição que tem
uma ferramenta própria de videoconferência e outras várias ferramen-
tas que são usadas, e isso é algo bem interessante. Mas a gente tem um
problema que é a distância entre um aluno que eventualmente tem uma
grande dificuldade, que é quase um analfabeto digital, e o melhor aluno,
que é um aluno fora de série e eu brinco que é um aluno “federável”, que
é um aluno que podia estudar em uma universidade federal ou uma
pública, que é um espaço de seleção forte, é muito grande, é uma dis-
tância muito maior do que de um curso presencial onde os alunos estão
mais ou menos nivelados, tanto em uma pública como em uma privada.
Então na EAD você vai ter de tudo, uma diversidade muito grande entre
um aluno que tem muitas dificuldades e o aluno que é muito bom. O
que eu quero dizer com isso é que mesmo que a gente invista na ques-
tão tecnológica, alguns ainda não vão conseguir aproveitar e não vão
conseguir usar, porque ele mal consegue achar alguma coisa no Goo-
gle, por incrível que pareça. Não estou falando do aluno do curso

4 É uma instância dos cursos de graduação que define o projeto pedagógico.

258
de Jornalismo especificamente, estou falando do aluno de EAD em geral.
É um problema que tem sido encarado com grande dificuldade, é um
dos fatores que tem provocado tanta evasão. É uma grande preocupação
da Uninter e imagino que das outras instituições também. Esse semia-
nalfabetíssimo digital é preocupante.
Sobre a relação com as públicas, temos aqui em Curitiba, mais
próximo, é claro. Eventualmente, fazemos algum evento. Tem um
seminário de pesquisa que fazemos anualmente, está inclusive com
inscrições abertas, e esse seminário conta com a participação da UFPR
e de outras particulares aqui da região. Temos também algumas rela-
ções, e é claro alguns grupos de pesquisa, participação em eventos dos
nossos professores, que acabam estabelecendo essas relações interins-
titucionais. Mas a Uninter, como instituição, não só o curso de Jor-
nalismo, a Uninter tem uma relação muito forte com a Universidade
Federal de Santa Catarina. Muitos professores que ajudaram a fundar
e a pensar toda a estrutura da Uninter vieram da Federal de Santa
Catarina, o próprio reitor da Uninter hoje, professor Benhur Gaio, é
proveniente da UFSC. Essas relações acontecem e também com insti-
tuições internacionais. A Uninter tem apostado muito nessa interna-
cionalização, até porque o nome é Centro Universitário Internacional,
se não tiver nada de internacional fica contraditório.
Em relação à diferença entre os formandos, eu não consigo identi-
ficar ainda, porque formamos a primeira turma de EAD agora no final
do ano. O que eu posso dizer é que dessa leva que saiu, eu conheço
alguns alunos pela produção, ou fui orientador de TCC desses alunos,
alguns deles inclusive, é o que eu percebi é que são excelentes alunos. É
aquele perfil que eu falei, muitos deles já trabalham em meios de comu-
nicação, já estão fazendo seu segundo ou seu terceiro curso superior, já
têm, portanto, uma experiência na pesquisa, na própria graduação, já
encaram de uma maneira muito diferente essa realidade da educação
superior, ainda mais na EAD. Mas só vamos conseguir, de fato, ter uma
dimensão mais correta disso, acho que daqui a alguns anos, tentando
identificar, por exemplo, quantos deles conseguiram ingressar no mer-
cado de trabalho, como é que está a condição profissional desses ex-
alunos, talvez mais por aí.

259
Quanto às parcerias interinstitucionais, temos várias parcerias
para a realização de estágio. A Uninter tem uma central de convênios.
Há um tempo atrás fizemos uma parceria com o Blasting News, que
é um portal colaborativo, com sede na Inglaterra, mas acabou que o
projeto funcionou durante um ano e não deu muito certo, porque o
Blasting News ficou uma coisa muito ampla e perderam o controle de
filtragem também. Para os alunos era interessante no início porque
eles ganhavam um espaço, às vezes até dava um dinheiro que, depen-
dendo do número de clicks, o site remunerava. Não sei se vocês chega-
ram a conhecer o Blasting News, ele chegou a ser um dos sites de notí-
cias mais acessados do Brasil segundo aquele ranking da Amazon, da
Alexa. Depois, não fizemos mais parcerias assim interinstitucionais.
Temos parcerias internas, com a TV Profissão, que é a TV da Uninter
e a produção dos nossos alunos vai para a TV, e vai também para uma
Rádio Web que também é da Uninter. Agora parcerias para a EAD
não chegamos a fazer. Agora, aqui em Curitiba, houve parcerias com
escolas, tínhamos o projeto de educomunicação que era bem legal
também, com produções de jornais em escolas. Mas essas parcerias
mais amplas são mais difíceis, elas dependem dessa dinâmica local,
que daqui de Curitiba, às vezes, não é possível.

Eduardo Meditsch: Como coordenador, em relação a formar uma


equipe de professores, como está sendo esse desafio, qual é o perfil desse
professor que dá certo na experiência de EAD? Como todos aqui são
mestrandos e doutorandos e estão iniciando a carreira acadêmica, o que
você diria pra eles a esse respeito?

Guilherme Carvalho: Um dos desafios iniciais, lá atrás, e que


foi muito desgastante pra mim e para os meus colegas com certeza,
foi pensar um curso EAD, inicialmente, porque não existia nenhum
curso EAD no Brasil. Então, não sabíamos muito bem como fazer, a
não ser por aquilo que já sabíamos sobre jornalismo, presencialmente
falando, e por aquilo que a Uninter já tinha, todo um know-how com
os cursos EAD em outras áreas. Foi um esforço grande da equipe, para
parte dela e inclusive para mim, romper com um preconceito muito

260
forte em relação à educação a distância, e isso, obviamente, gerou um
enorme estresse. Mas, apesar de ser um momento de tensão, acho que
esse é o grande desafio do coordenador, que é conseguir alinhar os
interesses que vêm da diretoria, os que vem dos seus colegas, os inte-
resses que vem dos alunos.
O professor que quiser dar aula em uma Uninter, ou em uma outra
EAD, e acho que essa é uma tendência para boa parte dos cursos supe-
riores porque vão acabar trabalhando com esse formato híbrido, é saber
fazer aulas, produzir material, conseguir despertar o interesse dos alu-
nos em um formato como esse que é um desafio grande, porque não
fomos formados para isso, não fomos formados nem para dar aula, não
é? Nossa área não é uma licenciatura, então é um desafio tremendo.
Muitos professores não ficaram. Por sorte, posso dizer que a maio-
ria dos meus colegas que não ficaram eu mantive contato, alguns saí-
ram, infelizmente, não por vontade própria, mas porque realmente não
dava, e o clima ficou muito difícil. Mas, em geral, o que eu diria é que
o perfil exige essa versatilidade com vídeo, com a produção dialógica, a
compreensão também das limitações e das condições desses alunos que
estão em uma sala de aula nacional, em uma super sala. E também não
dá para ter preconceito com a EAD, porque, mais cedo ou mais tarde,
você vai se deparar com isso. Eu, por exemplo, passei por períodos de
crises existenciais com a EAD, ainda mais vindo de uma universidade
pública e de um meio como o nosso, que é extremamente crítico à EAD.
E falo isso pelos meus colegas da ABEJ (Associação Brasileira de Ensino
de Jornalismo) também, pois percebo ainda uma resistência.
Os professores que nós temos são muito versáteis, não só na ques-
tão de como dar a aula, mas também nas disciplinas, que é diferente do
que é nas públicas, que você tem lá a cadeira que é daquele professor,
que é outra coisa bem importante, porque nesse formato, lógico que o
professor não vai conseguir dar tudo. Por exemplo, eu não dou aula de
Telejornalismo, porque eu não sei, eu nunca trabalhei com isso, não sei
como é e se eu falar, vou fazer errado, nunca estudei isso, não é minha
praia, então não dou aula disso. Então algumas coisas vão garantir que
aquele professor que tem aquele conhecimento específico acabe dando
aquela disciplina, mas, no geral, esse professor precisa meio que dar

261
conta de um leque grande de disciplinas, não vou dizer de todas, mas de
um leque grande de disciplinas para conseguir preencher essas necessi-
dades do curso. Acho que esse é um perfil importante.
A experiência de mercado é uma coisa importante, mas não é uma
coisa assim fundamental, da mesma maneira que a titulação muito ele-
vada não é. Mas um medo que vocês não precisam ter é de que: “Se eu
fizer doutorado não vou ser contratado por uma instituição porque as
privadas só querem professores especialistas”. Não é nosso caso, por-
que eu sou doutor e tenho outros professores também que são doutores.
Pelo menos a Uninter tem apostado nisso, porque ela sabe que esse é um
fator que qualifica o ensino e que qualifica as avaliações da instituição.

262
SEGUNDA PARTE

TEXTOS DE PESQUISA,
EXPERIÊNCIAS
E REFLEXÕES
CAPÍTULO 11

O ideário da UnB e seu vínculo


indissociável com o princípio
da educação superior
como bem público

Ana Carolina Melo1

Introdução

Este capítulo propõe resgatar um pouco da memória do que repre-


sentou o projeto de criação da Universidade de Brasília (UnB), idea-
lizado por nomes como Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. E faz isso a
partir da contextualização do momento histórico decisivo em que isso
aconteceu – que se confunde com o espírito de construção da nova capi-
tal – em que intelectuais públicos brasileiros viram na idealização de
uma universidade efetivamente transformadora, e comprometida com o
país, um dos caminhos para a superação do nosso subdesenvolvimento.
É o ideário do que representou o projeto da UnB – brutalmente
interrompido pelo golpe militar de 1964 – que mais tarde vai inspirar
Darcy Ribeiro a escrever A Universidade Necessária (1978a) já no exílio.
Sendo assim, este artigo se baseia no resgate histórico realizado pela
professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Adelia
Miglievich-Ribeiro (2017), intelectuais, projeto e missão e no discurso
emocionante Universidade para quê? (1986) proferido pelo próprio
Darcy já no processo de redemocratização brasileiro, quando a UnB
pôde finalmente resgatar a autonomia e o caráter emancipatório que lhe
foram subtraídos.

1 Mestranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), bacharel em Comunica-


ção Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
e especialista em Assessoria em Comunicação Pública pelo Instituto de Educação Superior
de Brasília (IESB). Jornalista de carreira do poder público federal desde 2010 e entusiasta da
Comunicação Pública.

264
Por fim, conecta o espírito do projeto da UnB – a partir de seu com-
prometimento com a universidade pública brasileira e com o estímulo
ao avanço científico autônomo – ao conceito da educação superior como
bem público, sustentado pelo professor Marco Antônio Dias2. A conexão
torna-se apropriada em um momento histórico novamente decisivo em
que o país enfrenta fortes crises institucionais, entre elas a da escassez do
investimento público na educação superior e na pesquisa científica nacio-
nal, alvo ainda de uma forte campanha de ataque e descredibilização.
Neste contexto, as lealdades defendidas por Darcy para a universidade
brasileira no seu discurso sobre o “renascimento da UnB” representam
uma referência de encorajamento de como a universidade pública brasi-
leira pode atravessar e superar os desafios do atual momento.

Momento político e intelectuais públicos


da educação brasileira

O Brasil possui uma história muito particular, que parece se repe-


tir, nos frustra e muitas vezes nos indigna. A fundação da Universidade
de Brasília (UnB), no entanto, é fruto de um momento histórico crucial,
singular – e conturbado – do Brasil nos anos 1950 e 1960 do século
XX – que se confunde com a construção da nova capital – sustentado
na convicção e no entusiasmo de uma geração comprometida com um
projeto político e social amplo de modernização do país.
É nesse contexto, que perpassa sobretudo os anos da gestão do
presidente Juscelino Kubitschek – JK (1956-1961) ao governo João Gou-
lart (1961-1964), em que os intelectuais públicos brasileiros – como cha-
mados pela professora Adelia Miglievich-Ribeiro (2017) da Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes) – defendem a centralidade – no âmbito
desse projeto nacional ambicioso e abrangente – da implementação

2 Ex-vice-reitor da UnB na década de 1970 e diretor da Divisão de Ensino Superior da Unesco,


de 1981 a 1999, em Paris. Nesta posição, foi o principal coordenador da Conferência Mundial
sobre Ensino Superior de 1998 que ratificou como princípio o direito estabelecido pela Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos do acesso igualitário ao ensino superior, atendidos os
critérios de mérito, além de defender a ampliação desse acesso a grupos diversos, por meio da
adoção de iniciativas diferenciadas que promovam a expansão de igualdade de oportunidades.

265
de políticas educacionais e culturais transformadoras e emancipatórias
que fossem capazes de alterar estruturas históricas e contribuir para a
construção de uma sociedade efetivamente inclusiva e democrática. São
nomes como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

Anísio Teixeira

Anísio é considerado um dos maiores ideólogos de mudanças


estruturais promovidas na educação do Brasil no século XX e uma
referência para os dois demais (FERRARI, 2008). Em Brasília, a pedido de
JK, foi responsável por idealizar e implementar o sistema de educação
pública do Distrito Federal, onde implantou o conceito de complemen-
tação das escolas-classe e parque – já introduzidas por ele antes disso,
como secretário de Educação da Bahia, seu estado natal – e que repre-
sentam a base para projetos posteriores de educação integral no Brasil.
A concepção previa que as escolas-parque funcionariam como uma
complementação às escolas-classe, responsáveis pela formação intelec-
tual dos estudantes. Nas escolas-parque as crianças realizariam ativida-
des esportivas, artísticas e seriam estimuladas em práticas promotoras
da cidadania (PIRES, 2019). Anísio foi um dos maiores defensores do país
de uma escola pública – gratuita e laica – democrática e de qualidade e
seguindo as ideias de John Dewey (1852-1952) – de quem foi aluno nos
Estados Unidos – acreditava que era possível “formar ‘cérebros’ criativos
e autônomos, sem distinção entre filhos de trabalhadores e das elites”
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017, p. 591).
Como enfatiza Adelia Miglievich-Ribeiro, o modelo educacional
projetado por Anísio previa uma continuidade entre escola e univer-
sidade, desde o jardim de infância à Universidade de Brasília (UnB).
Nesse sentido, Anísio esteve ao lado de Darcy na idealização do projeto
da UnB. Anos antes, na década de 1930, havia sido responsável pela
concepção e instituição da Universidade do Distrito Federal (UDF),
ainda no Rio de Janeiro – mais tarde fechada pela Ditadura do Estado
Novo de Vargas (1937-1946) – e que se tornou também uma referência
para o projeto da Universidade de Brasília (GALVÃO, 2017).

266
Anísio era o reitor da UnB quando a universidade foi invadida por
forças militares após o Golpe Militar de 1964 e é autor de obras como
Educação não é um privilégio (1967) e Educação é um direito (1968).

Darcy Ribeiro

Darcy é considerado um personagem emblemático para a polí-


tica, a cultura e a história do país. Antropólogo, teve na pauta indígena
um dos seus maiores compromissos de vida, educador, sociólogo, foi o
primeiro reitor da UnB, ministro da Educação e da Casa Civil do presi-
dente João Goulart e no período de redemocratização vice-governador
do Rio de Janeiro e senador da República já no período democrático.
Durante a ditadura militar brasileira, exilado, Darcy vai atuar
como um “reformador de universidades”3 na América Latina e no então
chamado Terceiro Mundo. Foi no exílio que ele escreve a Universidade
Necessária, lançado em 1969, e em muito baseado no projeto inicial da
UnB, no qual defende a responsabilidade da universidade pública para a
superação do subdesenvolvimento latino-americano.
Como destaca Isa Grinspum Ferraz: “Darcy fez parte de uma gera-
ção de intelectuais e artistas que acreditava firmemente ser possível
construir um projeto cultural abrangente para o Brasil e para a América
Latina. Um projeto destinado a revolucionar as estruturas do país e do
continente, e não apenas reformá-las [...] era uma geração de humanis-
tas que queria nada menos que o todo” (2008, p. 10-11, apud MIGLIEVICH-
RIBEIRO, 2017, p. 588).

Paulo Freire

Patrono da Educação brasileira e mundialmente conhecido, o edu-


cador, filósofo e pedagogo Paulo Freire foi o autor do 1o Plano Nacional
de Alfabetização brasileiro, encomendado pelo governo João Goulart

3 Em países como Uruguai, Chile, Peru, México, Venezuela, Costa Rica e Argélia.

267
e inspirado no seu projeto piloto que foi capaz de alfabetizar 300 tra-
balhadores rurais em 45 dias, no interior do Rio Grande Norte, e que
previa a formação de educadores em massa no país.
Assim como os projetos dos demais, o Plano Nacional foi inter-
rompido pelo Golpe Militar de 1964. Freire é autor de A Pedagogia do
Oprimido (1968), e o terceiro teórico mais citado em trabalhos acadê-
micos de ciências humanas em todo o mundo, além de doutor Honoris
Causa por dezenas de universidades, entre elas Harvard, Cambridge
e Oxford. Como destaca o jornalista Márcio Ferrari (2008), na revista
pedagógica Nova Escola, Freire é tido como “o mentor da educação para
a consciência”.

O projeto e a criação da UnB

A Universidade de Brasília foi fundada oficialmente em 1962, no


governo do presidente João Goulart, exatamente dois anos após a inau-
guração de Brasília.
No entanto, seu projeto estava sendo construído muito antes disso.
No dia da inauguração da nova capital, a mensagem enviada por JK ao
Congresso Nacional já propunha a criação da nova universidade.
A UnB foi a primeira universidade do país a ser criada a partir
de um plano orientador definido – a ser pensada desde a raiz – como
defendia Darcy Ribeiro (1986), para ser uma “universidade semente”,
capaz de gerar o desenvolvimento que o Brasil não tinha. Até então,
as universidades brasileiras eram criadas pela junção de faculdades.
O professor Marco Antônio Dias descreve um pouco do espírito
dessa criação:

Inaugurada em 21 de abril de 1962, sob inspiração de um grupo


liderado por Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Frei Matheus Rocha
e contando com a colaboração de Oscar Niemeyer e Lucio Cos-
ta, a Universidade de Brasília representou, no contexto brasileiro,
uma revolução na vida acadêmica. Em torno dos que concebe-
ram a Universidade, reuniram-se professores comprometidos com

268
as reformas de que o país necessitava para se modernizar, para se
democratizar e para construir uma sociedade melhor, mais justa e
mais igualitária. Era o protótipo da universidade cidadã (DIAS, 2013,
p. 15 apud MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017, p. 593).

Para a construção desse projeto ambicioso, Darcy mobilizou


dezenas de professores, pesquisadores e cientistas brasileiros e estran-
geiros, com suas famílias, para o Planalto Central, entusiasmados com
a possibilidade da construção dessa universidade inovadora, crítica
e inclusiva. Nesse sentido, o projeto da UnB pode ser visto como um
passo à frente de Córdoba, a reforma universitária de 1918 na Argen-
tina, que defendeu preceitos como a autonomia e democratização da
universidade e sua real integração com a sociedade que a sustentava,
preconizando princípios que mais tarde movem iniciativas como o
Maio de 1968, na França.
A extinção das cátedras e a adoção do sistema de créditos para as
disciplinas – reconhecidos em todo o ambiente universitário – foram
das principais inovações do projeto da UnB, o que passou a permitir
uma maior liberdade e aproximação entre os diversos departamentos
da universidade, promovendo uma integração transformadora entre as
diversas áreas do conhecimento, considerada fundamental por Darcy
para a ampliação da experiência acadêmica e para o estabelecimento
de um “centro nacional de criatividade científica e cultural” (RIBEIRO,
1986). O modelo serve como referência para as principais universidades
públicas do Brasil até os dias de hoje (PIRES, 2019).
Conforme coloca Adelia Miglievich-Ribeiro (2017, p. 588), a UnB
“expressava a mentalidade utópica de uma geração comprometida com
um projeto acadêmico, educacional, arquitetônico e social” para o país.
E foi criada para ser uma universidade flexível, dinâmica e moderna,
diferente de todas as demais, comprometida em pensar os problemas
do país e os caminhos para a sua superação. Como enfatizou o próprio
Darcy Ribeiro, no célebre discurso Universidade para quê? (1986), o Bra-
sil não precisava de mais uma universidade conivente.

269
A Ditadura Militar e a interrupção
da Universidade Necessária

A instituição do golpe militar de 1964 no Brasil representa a


interrupção brusca do projeto originário da Universidade de Brasília,
concebido por Darcy e Anísio. Assim como em diversos outros setores
da sociedade brasileira, a intervenção militar na UnB teve consequên-
cias trágicas:

A propaganda de ódio à UnB já se alastrara. Não se tratava de co-


nhecer seu projeto acadêmico, mas de aniquilá-lo haja vista que,
numa estreita avaliação, o campus seria um “antro comunista” ali-
mentado, dentre outros, pelos “marxistas” Darcy Ribeiro, Oscar
Niemeyer, Claudio Santoro, Fritz Teixeira de Salles (MIGLIEVICH-
RIBEIRO, 2017, p. 599).

Invadida por forças militares em 9 de abril de 1964, a UnB assistiu


parte de seu corpo de professores e estudantes ser preso. Além disso, o
governo militar retirou Anísio Teixeira do cargo de reitor, nomeando o
médico Zeferino Vaz, de tradição antissindical, para a posição, além de
destituir o Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília.
Em um primeiro momento, o novo reitor se comprometeu a abrir
diálogo com a comunidade acadêmica e trabalhar para a libertação dos
professores e estudantes presos. Contudo, com o endurecimento do
regime, acaba sendo responsável pela instituição de um clima de “ter-
rorismo cultural” na instituição que resultou na demissão e expulsão
de professores e alunos por razões políticas. Sucumbindo a pressões,
Vaz pede demissão e o professor da Universidade de São Paulo (USP),
Laerte Ramos de Carvalho, nomeado para o cargo, solicita ao Depar-
tamento de Ordem Política e Social (DOPS) o envio de tropas ao cam-
pus, o que aumenta a tensão, o número de prisões, demissões e expul-
sões de professores e alunos. Como resposta, 223 professores da UnB
– o que representava 80% do corpo docente da universidade naquele
momento – pede demissão naquela que é considerada a “maior diáspora
da história das universidades no mundo”, chamada por Darcy como

270
“Dia da Vergonha”. Em sua obra, UnB: invenção e descaminho (1978b,
p. 84), Darcy Ribeiro aborda o processo de desmantelamento da concep-
ção libertária da UnB promovido pelo regime militar brasileiro, no qual
a UnB, seus alunos e professores enfrentaram duras invasões posteriores,
prisões e desaparecimentos, em uma realidade de constante vigilância:

Uma universidade assim, livre e libertária, só pode sobreviver numa


ordem democrática. Quando subvertida a institucionalidade consti-
tucional, se tomou do povo a liberdade de buscar os caminhos de sua
própria emancipação – precisamente porque ele os estava encontran-
do – os custódios da regressão tiveram que reprimir todos os que se
opunham à nova ordem e, entre eles, naturalmente, também a UnB.

Do exílio, Darcy viu o projeto da UnB ser desfeito. É nessa opor-


tunidade que ele escreve A Universidade Necessária (1969), em muito
inspirado na concepção e no plano orientador da UnB. Além disso,
passa a atuar em projetos de reformulação universitária para países
latino-americanos e africanos como Uruguai, Chile, Venezuela, Peru,
México, Costa Rica e Argélia. Como destaca Adelia Miglievich (2017,
p. 604), Darcy “nunca deixaria de falar sobre se fazer universidade pública
como possibilidade de se refundar a nação (...). Nem o exílio o afastou
de suas convicções mais genuínas. Soube reinventar-se e persistir, ainda
que ciente do ‘campo de possibilidades’ instalado”.
De volta ao Brasil, no processo de redemocratização, Darcy é eleito,
no início dos anos 1980, vice-governador do Rio de Janeiro na chapa
com Leonel Brizola e implantam no estado os Centros Integrados de
Educação Pública (CIEPs), inspirados nos projetos anteriores de educa-
ção integral e integradora de Anísio Teixeira.
Após 21 anos de controle e vigilância constantes no campus, em
1985, a UnB busca a reintegração com o seu projeto e concepção ori-
ginários a partir da gestão do reitor Cristovam Buarque (1985-1989),
responsável pelo processo de redemocratização da instituição, do res-
gate da autonomia universitária e de aproximação da UnB com a socie-
dade, em um processo marcado pelo desafio contínuo – e atual – pela
integração e diálogo com as necessidades da população (LONGO, 2014).

271
É na posse de Cristovam Buarque que Darcy profere um dos dis-
cursos mais emblemáticos da história da UnB e da educação superior
brasileira, publicado mais tarde sob o título Universidade para quê?
(1986). Segue abaixo um dos trechos mais representativos:

Não se equivoquem, porém, pensando que a Universidade de Bra-


sília já foi ou só foi. Ela é e sempre será nossa maior ambição. A
UnB é a ambição mais alta da inteligência brasileira, este é o nosso
sonho maior, esta é a utopia de quem entre nós tem cabeça para
pensar este país e senti-lo com o coração. Todos os intelectuais
brasileiros estão de olhos postos aqui (...) Todos sabíamos que a
UnB hibernava mas ia reviver. Esta Nação não pode passar sem
ela, eu já disse. Agora ela renasce e renasce porque o Brasil renas-
ceu em liberdade.

A conexão com a Reforma Córdoba


e com o princípio da educação superior
como bem público

Pensado no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o projeto da
UnB representou uma ruptura com o modelo universitário ainda pre-
dominante no Brasil, na América Latina e em muitos países da Europa,
como exposto a partir de reivindicações posteriores como o Maio de
1968. Contudo, como já mencionado aqui, a concepção da UnB pode
ser considerada uma evolução dos princípios trazidos 40 anos antes
em território latino-americano: na cidade de Córdoba, Argentina, em
1918. Como explica o professor Marco Antônio Dias, Córdoba foi palco
do primeiro grande movimento, no continente americano, a promover
uma reforma profunda no sistema de educação superior de um país,
com repercussão sobre toda a região. Em entrevista às professoras da
UnB, Liziane Guazina e Dione Moura (2020, p. 140), Dias enfatizou o
significado da Reforma e da consequente Declaração de Córdoba para
uma educação superior autônoma e inclusiva:

272
Córdoba estabeleceu os elementos básicos de ação para a defesa das
liberdades acadêmicas e da autonomia universitária, um dos princí-
pios que facilitaram a unidade das forças acadêmicas e a luta contra
as ditaduras que, em particular nos anos 1960 e 1970, dominaram
o continente com o sacrifício das liberdades, da dignidade humana,
de gerações inteiras de latino-americanos (...). À Reforma de Cór-
doba, devemos muito. O centenário de Córdoba deu-nos a oportu-
nidade de retomar uma reflexão profunda sobre nossas sociedades
e sobre o papel que nas transformações deve exercer o ensino supe-
rior. Uma nova declaração de Córdoba, nesta fase de nossa história,
deverá contribuir para a formação de um cidadão consciente, que
lutará, por todos os meios, por um desenvolvimento inclusivo, que
não exclua nenhuma categoria de pessoa, e pela construção de uma
sociedade mais justa.

Entre os princípios trazidos por Córdoba e que influenciaram


projetos como o da UnB estão: a defesa da autonomia universitária,
que passa pela prerrogativa da comunidade acadêmica para estabe-
lecer seus programas de ensino e possuir liberdade para a seleção de
seus dirigentes e professores independente de ingerência de gover-
nos; a primordialidade das instituições universitárias se vincularem
efetivamente com a sociedade que as sustenta, de modo a contribuir
para a superação dos problemas sociais; a necessidade de transferir
à sociedade os conhecimentos que possui e que produz, por meio
de iniciativas como a extensão universitária; a democratização do
acesso à educação superior; a modernização científica com a supe-
ração de posições dogmáticas; e a defesa da formação integral do ser
humano (DIAS, 2017, p. 110).
Nesse sentido, é fundamental enfatizar que o princípio da edu-
cação superior como bem público – que remonta a Córdoba e no qual
a concepção da UnB e da Universidade Necessária de Darcy Ribeiro
sempre estiveram ancoradas – se sustenta na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, que prevê em
seu artigo 26:

273
Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo
menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elemen-
tar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a
todos, bem como a instrução superior está baseada no mérito.

Como consequência, o sistema das Nações Unidas – sobretudo a


Unesco, a Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura
– sempre considerou a educação como um direito humano. No que se
refere à educação superior, o Pacto Internacional dos Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais, da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1966
estabelece em seu artigo 13: “A educação de nível superior deverá igual-
mente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um,
por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação
progressiva do ensino gratuito” (GUAZINA e MOURA, 2020, p. 134). O pacto
é assinado por mais de 150 países, entre eles o Brasil, que o ratificou em
24 de janeiro de 1992. A concepção do ensino superior enquanto bem
público foi também reiterada pela Conferência Mundial sobre Ensino
Superior, de 1998, em Paris4.
No Brasil, um aspecto fundamental a ser enfatizado é o processo de
democratização pelo qual tem passado o ensino superior brasileiro em
função de iniciativas inclusivas adotadas nas duas primeiras décadas do
nosso século como a política de cotas para negros, indígenas e alunos
procedentes de escolas públicas, o que tem mudado o perfil dos estudan-

4 O professor Marco Antônio Dias (GUAZINA e MOURA, 2020) esclarece que há duas con-
cepções como as instituições encaram a educação superior em nível global: enquanto a)
serviço público: prestado, predominantemente, pelo poder público, mas que pode ser tam-
bém oferecido por outras instituições em sistemas de concessão, delegação ou autorização,
de modo a priorizar o interesse coletivo e b) empresas voltadas para vender produtos
àqueles que podem pagar. Neste segundo caso, os estudantes são vistos como clientes. É o
modelo predominante nos Estados Unidos e na Inglaterra e também majoritário no Brasil
há algumas décadas. Segundo o Censo da Educação Superior 2019 – realizado pelo Insti-
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e divulgado em
outubro de 2020 – o Brasil possui 2608 instituições de educação superior como universida-
des, centros universitários, faculdades, institutos e centros de educação tecnológica. Desse
universo, 302 são públicas – ou 11,57 % do total, 110 delas ou 4,2% federais, 132 estaduais
(5,06%) e 60 (2,3%) municipais – enquanto 2.306 são privadas, o que representa mais de
88,42% do total. Segundo o levantamento, hoje 75,8% das matrículas em graduação no
Brasil se encontram em instituições particulares, ao passo que 24,2% estão nas públicas, o
que indica que a rede privada reúne três em cada quatro alunos de graduação do país ou
6,5 milhões de estudantes.

274
tes das universidades públicas do país. Segundo estudo divulgado pela
Andifes, divulgado em 2019, 70,2% dos alunos de universidade federais
hoje no país são provenientes de famílias com renda per capita de até 1,5
salário-mínimo. Em 2010, esse número era de 44%. Além disso, 51% se
autodeclaram pretos, pardos ou indígenas5.
Como defende a professora Maria Arminda Arruda, diretora da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (USP) – em entrevista ao Jornal da USP – as universidades
brasileiras têm exercido um papel civilizatório fundamental em função
de suas políticas de inclusão. A professora lembra que o Brasil integra as
mais importantes economias do mundo, mas possui níveis de desigual-
dade de países muito pobres e enfatiza que o papel inclusivo exercido
pelo ensino universitário gratuito tem contribuído para reduzir essa dis-
tância (ARAGAKI, 2019).
É indispensável mencionar ainda o que representam as institui-
ções públicas de ensino superior para o desenvolvimento de pesquisas
científicas no Brasil: mais de 95% da produção científica brasileira em
bases internacionais são produzidas em universidades públicas, con-
forme dados divulgados pela Academia Brasileira de Ciências (2019)6.
Apesar da série de dificuldades conhecidas publicamente, o país
encontra-se da 13a posição na produção científica global entre mais
de 190 países, segundo publicação da Clarivate Analytics realizada a
pedido da Capes. Em um momento em que o Brasil perde milhares de
vidas diariamente para um vírus até pouco tempo desconhecido – e
letal – seria razoável esperar o reconhecimento do poder público e da
sociedade brasileira para a centralidade da valorização do conheci-
mento científico.

5 Disponível em: https://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2019/05/V-Pesquisa-do-Per-


fil-Socioecon%C3%B4mico-dos-Estudantes-de-Gradua%C3%A7%C3%A3o-das-Universida-
des-Federais-1.pdf.
6 Disponível em: http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-por-
mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/.

275
Considerações finais

No início da década 2020 do século XXI enfrentamos no Bra-


sil certamente um dos períodos mais marcantes, duros e decisivos da
nossa história. Lidamos com uma epidemia de escala global que tem
matado milhares de brasileiros e matou milhões de seres humanos em
todo o mundo.
No entanto, a resposta que cada país tem dado à pandemia do
coronavírus tem sido muito distinta entre os diferentes países. O Brasil
lida com a maior pandemia do século com um governo – eleito por voto
direto – que desacredita e questiona constantemente a ciência e o papel
das universidades públicas do país. O custo tem sido muito alto, o que
nos faz questionar todos os dias quantas dessas perdas – de familiares,
amigos e amores – teriam sido evitáveis. A comunidade internacional
assiste à tragédia brasileira perplexa e ciente que parte desse drama
poderia ter sido evitado.
As universidades públicas e a pesquisa científica no Brasil
enfrentam há alguns anos uma forte campanha de ataque e descre-
dibilização por parte de determinados setores da sociedade que nos
remonta aos desafios semelhantes enfrentados por projetos como
da Universidade do Distrito Federal (UDF), idealizado por Anísio
Teixeira, e da Universidade de Brasília (UnB), tão inovadores que
preconizavam no Brasil princípios que seriam defendidos e propaga-
dos anos mais tarde em escala mundial. Assim como nos anos 1930
e 1960, o Brasil vive um dos períodos de maior polarização política
de sua história – e, como de costume nesses momentos, se volta con-
tra a ciência – revelando como a história se repete, nos levando à
lamentável constatação de que a sociedade brasileira parece não ter
aprendido apesar de suas tristes lições.
No que se refere ao financiamento do ensino superior e da pro-
dução científica, as universidades brasileiras têm enfrentado há alguns
anos uma crise orçamentária drástica, o que tem resultado em um
processo de sufocamento da pesquisa científica no Brasil, e levado a
uma nova diáspora de cérebros de pesquisadores e cientistas brasilei-
ros pelo mundo em busca – naturalmente – de maiores remunerações,

276
mas também de condições adequadas para exercerem suas atividades,
reconhecimento e respeito por parte da sociedade a que servem7.
Em nível internacional, o professor Marco Antônio Dias alerta para os
princípios que devem prevalecer na realização da 3a Conferência Mundial
de Educação Superior da Unesco, prevista inicialmente para acontecer em
2021, em Barcelona, Espanha, e adiada em função da crise sanitária global.
Segundo o professor, em conversa com os alunos do Programa de Pós-Gra-
duação em Comunicação da UnB, os debates atuais indicam para uma revi-
são da concepção da Unesco do ensino superior como bem público para
sua percepção enquanto produto, destinado àqueles que podem pagar.
Diante de tantos desafios à frente, é válido lembrar e honrar Darcy
Ribeiro (1978a) para quem a defesa da qualidade do ensino, do caráter
público e do compromisso democrático das universidades constituem a
essência dessas instituições enquanto espaços autônomos de conscienti-
zação e crítica da sociedade. Em um momento duro como o atual, no
Brasil e na América Latina, as lealdades defendidas por Darcy em seu
célebre discurso Universidade para quê? (1986) – durante o “renascimento
da UnB” e seu encontro com a liberdade – representam uma referência
de encorajamento de como a universidade pública brasileira pode buscar
caminhos para persistir: a partir do comprometimento com a ciência, da
luta do Brasil contra o atraso e do seu compromisso com a tolerância8.

7 A Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021 previu uma redução no orçamento discricionário
das universidades federais de 18,16% só em relação a 2020, num corte, de um ano para o ou-
tro, superior a R$ 1 bilhão, conforme divulgado pela Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). É a partir dessa fonte que são custeados
os programas de assistência estudantil, por exemplo. Comparando 2021 a 2019, as perdas
acumuladas chegam a 28%, sem considerar a inflação, conforme reportagem de maio de 2021
do jornal O Globo. Se for realizada a correção pelo IPCA, o orçamento dessas instituições em
2021 é praticamente o mesmo de 2004, quando o país possuía 51 universidades federais e
574 mil alunos. Hoje, são 69 universidades – 18 a mais – e o dobro do número de estudantes:
mais de 1,1 milhão de alunos só nas universidades, além de mais de 215 mil em institutos
e centros tecnológicos federais, totalizando uma rede com mais 1,3 milhão de estudantes,
segundo o Censo da Educação Superior de 2019. Os cortes são tão elevados que podem levar
à interrupção de pesquisas voltadas ao desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19 e ao
fechamento de leitos nos hospitais universitários para vítimas da doença.
8 Os compromissos defendidos por Darcy Ribeiro para a universidade pública brasileira têm
sido relembrados constantemente pelo professor Eduardo Meditsch, da UFSC, nas oportuni-
dades que tem de dialogar com a comunidade acadêmica e com a sociedade, e cuja mensa-
gem serviu de estímulo e inspiração para a elaboração deste capítulo, “pensado e sentido com
o coração”, como defendia Darcy ao sonhar a UnB.

277
Referências bibliográficas

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279
CAPÍTULO 12

Cansados e sobrecarregados –
experiências dos pós-graduandos
em comunicação da UnB com
o ensino remoto na pandemia

Mayara da Costa e Silva1

Introdução

Isolamento social, uso de máscaras faciais, álcool em gel e uma pan-


demia. O mundo todo se deparou com novas práticas e hábitos quando,
em dezembro de 2019, o vírus da Covid-19 ou coronavírus, causador de
doenças respiratórias, foi descoberto em Wuhan, na China, e se alastrou
pelo resto do mundo (SUN; et al., 2020).
A pandemia da Covid-19 trouxe mudanças que tiveram impactos
sociais, culturais, econômicos, políticos e educacionais no mundo todo.
No campo da educação, docentes e discentes tiveram que se readaptar a
novas práticas pedagógicas, ao uso de tecnologias digitais e ferramentas
interativas para ministrar e assistir aulas pela internet, já que as aulas
presenciais foram suspensas para evitar o contágio.
Mais de 1,5 bilhão estudantes do mundo foram afetados pela
pandemia que resultou no fechamento de escolas e universidades
(UNESCO, 2020). No Brasil, em 18 de março de 2020, o Ministério da
Educação (MEC) publicou um documento que autorizava a substitui-
ção das aulas presenciais por aulas remotas. Escolas e universidades
brasileiras começaram a se preparar para uma realidade de ensino
mediada por telas de computadores/notebooks, smartphones e outros
dispositivos móveis.

1 Doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da


Universidade de Brasília (UnB), Mestra em Comunicação Social e Jornalista pela Universida-
de Federal do Piauí (UFPI). Idealizadora do @blogueirinhaacademica nas redes sociais.

280
Além de todos os impactos na saúde pública, a pandemia tam-
bém agravou o desemprego e potencializou as desigualdades sociais,
sobretudo em relação ao acesso à internet e conexão como mostra a
pesquisa de satisfação e qualidade da Agência Nacional de Telecomu-
nicações (Anatel), divulgada em março de 2021. Essa pesquisa mos-
trou que o serviço de conexão de internet (a banda larga) foi avaliado
como um dos piores serviços de avaliações de telecomunicações de
2020 (AGÊNCIA BRASIL, 2021).
Tendo como pano de fundo este cenário pandêmico, algumas pes-
quisas científicas buscaram compreender como a educação brasileira
vem sendo impactada pela pandemia (ARRUDA, 2020; CUNHA; et al., 2020;
SILVA; et al., 2020; RONDINI; et al., 2020). A literatura também aponta para
a importância do uso das tecnologias digitais e ferramentas interativas
como novas práticas pedagógicas (BELLONI, 1998; SANTOS, 2009; NUNES;
AIRES, 2019), em que a Educação à Distância (EaD) e o Ensino Remoto
se fazem presentes.
Oliveira e Santos (2020) explicam que a EaD é um processo educativo
que além de superar limites geográficos faz com que alunos e professores
se encontrem via ferramentas tecnológicas de maneira síncrona (quando
a comunicação ocorre em tempo real, por exemplo, aulas via internet que
acontecem ao vivo) ou assíncrona (quando a comunicação não ocorre em
tempo real, por exemplo, aulas gravadas em vídeo e que podem ser assis-
tidas em qualquer horário). Assim, a EaD é uma modalidade planejada
por professores e tutores em que as aulas são ministradas à distância. Já
o Ensino Remoto, é explicado por Cunha; et al. (2020), como uma moda-
lidade de ensino adotada como solução emergencial para que os alunos
não fossem prejudicados sem aulas durante a pandemia.
Existem estudos sobre as práticas de EaD e do Ensino Remoto
(SANTOS, 2009; ALVES, 2011; SILVA; et al., 2015; FARIA; et al., 2019; NUNES; AIRES,
2019) e sobre como a pandemia da Covid-19 impacta a vida de estudan-
tes e professores brasileiros (HODGES, 2020; MOREIRA; et al., 2020). Porém,
ainda são incipientes estudos sobre como o Ensino Remoto na pandemia
afeta os discentes de Pós-Graduação de universidades em vários âmbi-
tos de suas vidas como na socialização com amigos e professores, saúde
mental, processo de ensino aprendizagem, organização dos estudos,

281
produtividade acadêmica e, principalmente, como esses estudantes ava-
liam essa prática de ensino.
Diante desses argumentos, este artigo tem como questionamento
central: como os discentes do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação (PPGCOM) da Universidade de Brasília (UnB) avaliam o Ensino
Remoto em tempos de pandemia a partir de suas experiências? A par-
tir disso, surgem outros questionamentos: como esses discentes lidam
com esse momento peculiar? Quais suas maiores dificuldades diante
do ensino remoto? O que eles acreditam que pode ser melhorado no
Ensino Remoto?
Este artigo, de caráter quanti-qualitativo, busca ter uma contribui-
ção empírica cujo objetivo geral é compreender a percepção dos discen-
tes de mestrado e doutorado do PPGCOM da UnB acerca do Ensino
Remoto em tempos de pandemia, bem como suas dificuldades e pers-
pectivas. Para isso, foi aplicado um questionário on-line, via Google
Forms, entre os dias 27 de maio a 15 de junho de 2021, em que tivemos
19 respondentes.
Este trabalho é divido em cinco partes. A primeira, esta introdu-
ção é seguida pela seção sobre os aspectos conceituais de Educação à
Distância, Ensino Remoto e uso das tecnologias digitais. A terceira e a
quarta seção são sobre os procedimentos metodológicos e resultados,
respectivamente. A quinta parte é a discussão dos resultados seguida
das considerações finais e referências bibliográficas.

Educação à Distância (EaD), Ensino Remoto


e o uso de tecnologias digitais

Enquanto autores como Santos (2009), Silva; et al. (2015), Nunes e


Aires (2019) e Oliveira e Santos (2020) buscam compreender a prática
EaD, por outro lado, autores como Hodges (2020), Giorno e Rosa (2020)
e Rondini; et al. (2020) alertam para o fato de que no contexto da pan-
demia da Covid-19 o que temos presenciado na realidade brasileira é
a prática do Ensino Remoto ou também chamado de Ensino Remoto
Emergencial. Isso porque, para eles, enquanto a modalidade EaD é uma

282
prática já previamente planejada com professores, tutores e instituição
de Ensino, o Ensino Remoto Emergencial veio para suprir as demandas
educacionais que a pandemia trouxe como o fato de escolas e universi-
dades terem sido fechadas e milhares de alunos não puderam ter aula.

Para operacionalizar e contribuir positivamente para o aprendizado


dos estudantes, a oferta de disciplinas em um ambiente de ensino
remoto requer planejamento, organização, disponibilidade tecno-
lógica e capacitação dos docentes. No entanto, devido ao caráter
imediatista imposto pela pandemia e a falta de experiência anterior
da instituição, o planejamento para esse período foi feito de forma
emergencial (HODGES; et al., 2020).

Seguindo a mesma linha de pensamento de Hodges; Rondini;


et al. (2020) explicam que o Ensino Remoto Emergencial foi a princi-
pal alternativa encontrada pelas instituições de educação de todos os
níveis de ensino e que, na verdade, o que existe é uma transposição de
conteúdos em que professores, do dia para a noite, tiveram que adap-
tar suas aulas presenciais para aulas via internet e que isso ocorreu
com uma preparação parcial ou até sem. Os autores acrescentam que
essa modalidade de ensino é vista como mudança temporária devido à
crise pandêmica, tanto que defendem que o Ensino Remoto não subs-
titui a modalidade presencial.
Cunha; et al. (2020) alertam que no Ensino Remoto existem algu-
mas limitações como a didática, por conta do formato das aulas, e tam-
bém em relação à dinâmica que foi imposta para discentes e docentes.
Os autores explicam que no Ensino Remoto a interação não ocorre da
mesma maneira das aulas presenciais, pois acreditam que como há mais
aulas expositivas, então há mais tarefas sendo solicitadas aos discentes
e, assim, há menos interação e menos diálogo.
Giorno e Rosa (2020) acrescentam que algumas dessas limita-
ções podem estar relacionadas à dificuldade no formato que o Ensino
Remoto exige, desde ter contato com as plataformas, assistir aulas gra-
vadas ou ao vivo. Ou seja, os fatores tecnológicos podem ser limitantes
caso discentes ou docentes tenham problemas de acesso, conexão com

283
a internet ou até se não souberem manusear a plataforma ou o sistema
de videoconferência em que a aula será ministrada.
Vale lembrar que essas limitações, mencionadas pelos autores
acima, também podem estar relacionadas a outro impacto que a pande-
mia tem gerado na vida das pessoas: a saúde mental. Até porque dados
mostram que a Covid-19 tem potencializado diversas emoções como a
ansiedade, o estresse e o medo (ORNEL; et al., 2020). Fora isso, há também a
questão da falta de interação pessoal com colegas, docentes e funcioná-
rios da universidade, outro fator que pode ser enquadrado como limi-
tante no Ensino Remoto.
Ferreira (2014) explica que a formação universitária não se define
apenas em estudar em uma universidade, mas também em socializar
nos espaços universitários, seja na biblioteca, sala de aula, corredores,
lanchonetes, e também fora deles, como na casa dos colegas para fazer
trabalhos e até nos bares após as aulas. Com o isolamento social, por
causa da pandemia, essa socialização não tem acontecido. A interação
com colegas de turma, docentes e funcionários tem se limitado a uma
interação remota que, geralmente, acontece por meio de aplicativos de
mensagens como WhatsApp, smartphones e chamadas de vídeo.
Giorno e Rosa (2020) também reportam que junto do ensino
Remoto, na pandemia, as pessoas passaram a trabalhar de suas casas
(home office) e que para as mulheres que possuem filhos essas tarefas
tornam-se mais difíceis. É o que mostra também pesquisa realizada pela
Parent in Science (2020) que mediu o quanto a pandemia impactou na
produtividade acadêmica e constatou que a produtividade das mulheres
com filhos caiu drasticamente se comparada com a produtividade de
homens com ou sem filhos.
O uso das tecnologias digitais na prática de ensino não é caracte-
rística do surgimento da internet, mas, de fato, se potencializou com
ela. Belloni (1998) fala da importância da prática pedagógica permeada
por tecnologias. A autora traz reflexões de que com as tecnologias as
tarefas do docente se tornam mais complexas e que isso exige uma for-
mação inicial e continuada. Apesar de seus estudos fazerem referên-
cia às escolas, enxergamos que as contribuições da autora vão além
e podem servir para as universidades. Por exemplo, ela explica que

284
as tecnologias podem ser úteis para construir e difundir conhecimen-
tos “sem desumanizar o ser humano” (BELLONI, 1998, p. 12), desde que
se saiba utilizar a linguagem que essas tecnologias exigem e a maneira
que as pessoas as utilizam.
Em relação a essa readaptação dos docentes, Vieira e Silva (2020)
acrescentam que os efeitos e desafios da pandemia fizeram com que
docentes tivessem que aprender, de maneira súbita, a usar recursos tec-
nológicos que até então não tinham costume de usar como sistemas de
videoconferências, aplicativos, entre outros.
Vasconcelos e Araújo (2020) afirmam que os docentes se transfor-
maram em youtubers justamente porque tiveram que aprender a gravar
videoaulas e editar os vídeos. Os autores entendem que o uso das tec-
nologias na educação serve como estratégia pedagógica a fim de que
haja inovação e melhorias na educação e na aprendizagem dos discen-
tes, porém ressaltam que no contexto pandêmico a falta de capacitação
com as tecnologias, a busca por aprender novas estratégias de ensino
mediante tecnologias e o excesso da carga horária de trabalho gerou
muita dificuldade para os docentes. Dificuldades essas que também são
compartilhadas pelos discentes dos mais variados tipos de ensino, afinal
a pandemia da Covid-19 interferiu na vida de todos.

Procedimentos metodológicos

Para alcançar o objetivo principal deste estudo – compreender


a percepção dos discentes de mestrado/doutorado do PPGCOM da
UnB acerca do ensino remoto em tempos de pandemia, bem como
suas dificuldades e perspectivas – foi realizado um questionário on-
line, via Google Forms, entre os dias 27 de maio e 15 de junho de
2021. O formulário disponibilizado foi compartilhado em grupos de
WhatsApp. A participação ocorreu de forma voluntária, por isso a
amostra configura-se como não probabilística (DANTAS; LIMA, 2018).
Assim, tivemos um total de 19 discentes que responderam ao questio-
nário e que compõem a nossa amostra: são doze doutorandos (63,2%)
e sete mestrandos (36,8%).

285
O questionário inicia-se com a seguinte explicação:

Olá, tudo bem? Espero que você esteja bem de saúde. Me chamo
Mayara da Costa e Silva e sou Doutoranda em Comunicação da
Universidade de Brasília (UnB). Estou fazendo uma pesquisa sobre
o ensino remoto em tempos de pandemia para a disciplina de Peda-
gogia e Comunicação sob supervisão do professor Eduardo Medits-
ch. Você é aluno (a) regularmente matriculado (a) no PPGCOM/
UnB? Então, eu gostaria de saber sua opinião, bem como suas difi-
culdades e percepções sobre o ensino remoto. Você pode me ajudar
respondendo este questionário? Juro que não vai tomar muito o seu
tempo: você vai levar 5 minutinhos para responder (ou até menos).
Lembrando também que você não será identificado (a) na pesquisa.
Muito obrigada!
Abraços virtuais.

Em seguida é perguntado qual é o curso no Programa de Pós-Gra-


duação em Comunicação da UnB (mestrado ou doutorado) do(a) res-
pondente. Logo após são apresentadas as 22 questões das quais 15 são
de múltipla escolha e sete são de resposta livre. As perguntas podem ser
conferidas na tabela a seguir:

Tabela 1: Perguntas do questionário


Pergunta 1 Qual dispositivo móvel você utiliza para assistir aula?
Pergunta 2 Você assiste aula acessando wi-fi, internet móvel do celular ou os dois?
Pergunta 3 Você assiste aula de qual ambiente físico?
Você já teve problemas tecnológicos que fizeram com que você
Pergunta 4
perdesse aula?
Caso você tenha algum problema em ligar a câmera na hora da aula
Pergunta 6
explique brevemente o porquê.
O que mudou na sua rotina de estudos com o ensino remoto?
Pergunta 7 (Exemplo: como está sua organização com estudos, leitura de textos,
entrega de trabalhos no prazo dado pelos professores?).
Pergunta 8 Você se sente mais cansado(a) por estar em ensino remoto?
Você acha que a pandemia e seus efeitos como o isolamento social,
Pergunta 9 por exemplo, interferem negativamente no seu desempenho de
aprendizado nas aulas remotas?

286
Qual desses recursos auxiliam você a compreender mais o conteúdo
Pergunta 10
dado pelos professores durante as aulas remotas?
Você prefere assistir as aulas gravadas, ao vivo ou prefere ter as duas
Pergunta 11
opções?
Quando o contexto atual melhorar você gostaria de ter aula do tipo
Pergunta 12
presencial, remoto, híbrido
Avalie sua experiência com as aulas remotas nesses tempos de
Pergunta 13
pandemia
Sobre os tipos de avaliações que os professores fizeram/fazem nas
Pergunta 14
disciplinas que você cursou/cursa. Qual você prefere?
Você considera que essas avaliações feitas de forma remota pelos
Pergunta 15
professores ajudam no seu aprendizado?
Qual dessas ferramentas você utiliza mais para interagir com seus
Pergunta 16
colegas de turma e professores?
Você considera satisfatória essa interação remota (que ocorre por meio
Pergunta 17
das tecnologias digitais) com os colegas de turma e professores?
Comente brevemente o que você acha dessa interação remota que está
Pergunta 18 substituindo as conversas de corredor, o cafezinho entre as aulas ou até
mesmo as saídas para barzinhos pós aulas.
Pergunta 19 Qual é a sua maior dificuldade com o ensino remoto?
Pergunta 20 Na sua visão qual é a vantagem de ter ensino remoto?
Em poucas palavras o que você acha que precisa ser melhorado nas
Pergunta 21
aulas remotas do PPGCOM?
Você tem alguma consideração a fazer relacionada ao ensino remoto
Pergunta 22 e que não foi citado neste questionário? Fique à vontade para relatar
alguma experiência/vivência.
Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Os dados coletados foram analisados de forma descritiva analítica


no qual, em um primeiro momento, os resultados foram categorizados
conforme os tipos de perguntas e apresentados em formas de tabelas.
As categorias são: aspectos tecnológicos e acesso à internet, formato do
Ensino Remoto, experiências com aulas remotas, dificuldades e vanta-
gens. Após a descrição dos dados é feita a discussão dos mesmos.

Resultados

Um dos achados é em relação aos aspectos tecnológicos e acesso à


internet como mostra a Tabela 2. Alguns discentes utilizam mais de um
dispositivo para assistir aulas, 15, 8%, como notebook, celular e tablet,
mas o notebook é o mais utilizado, por 84,2%. Em relação ao acesso

287
à internet, a maior parte dos alunos se conectam à internet pelo wi-fi,
89,5%, mas 10,5%, responderam que usam o wi-fi e a internet móvel do
celular dependendo de como está a conexão no dia. Três discentes res-
ponderam que usam mais de um deles. Quando questionados de qual
ambiente físico assistem aula todos responderam que de casa.

Tabela 2: Dispositivos utilizados para assistir aula


Dispositivo Respondentes
Celular 0
Tablet 0
Notebook/computador 16
Mais de um deles 3

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Em relação a problemas tecnológicos que fizeram com que per-


dessem aula, 63,2%, 12 discentes, responderam que não tiveram esses
problemas, mas 36,8% responderam que sim.
Outro questionamento feito foi em relação a ligar a câmera na hora
da aula. Apesar de 78,9% (15 discentes) dizerem que não tem problemas
com isso, 21,1% (quatro discentes) disseram que tem e os motivos são
os mais diversos, como a questão da aparência física, de estar realizando
outra atividade de casa no momento que está assistindo a aula, cons-
trangimento ou até na tentativa de melhorar a qualidade do vídeo da
conexão da internet como indica a Tabela 3:

Tabela 3: Motivos que levam os discentes a não ligaram as câmeras


durante as aulas remotas
“Às vezes estou assistindo a aula e fazendo outra coisa em casa, ou
Resposta 1 trabalhando, lavando louça, outras vezes estou apenas desarrumada
mesmo.”
Resposta 2 “Constrangimento.”
Resposta 3 “Bebê em casa durante as aulas, as vezes preciso atendê-la durante a aula.”
Resposta 4 “Por causa da qualidade da conexão ou doa meus sobrinhos em casa.”

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

288
Sobre a rotina de estudos com o ensino remoto, a maioria do dis-
centes 89,5% (17 discentes), responderam que se sentem mais cansados
e 10,5% (dois discentes), disseram que não. Ao responderem sobre o que
mudou na rotina de estudos com o ensino remoto, por exemplo, em rela-
ção à organização com estudos, leitura de textos e entrega de trabalhos
no prazo dado pelos professores, os discentes comentaram que a rotina
de estudos mudou completamente com esse tipo de ensino, que há uma
sobrecarga de trabalho de casa juntamente com o apoio na educação dos
filhos, a dificuldade de conciliar estudos, aulas, escrita de trabalhos com
os afazeres de casa e home office. Um discente disse que com o ensino
remoto os horários estão mais flexíveis e outro relatou que não sentiu
tanta diferença na rotina de estudos, mas que acredita que este tipo de
ensino é mais limitado, pois as trocas feitas em sala de aula ou no intervalo
delas, no presencial, são mais espontâneas. Outras mudanças relatadas
pelos discentes em relação ao ensino remoto são apresentadas na Tabela 4:

Tabela 4: Mudanças na rotina de estudos com o ensino remoto


“Eu tento ir resolvendo por prazos, os mais urgentes, e vou distribuindo na
Resposta 1
semana, mas é difícil seguir esse planejamento.”
Resposta 2 “Falta de acesso a biblioteca como ponto negativo.”
“Ficou mais difícil organizar o fluxo de trabalho, tanto porque há
demandas da casa que requerem atenção; há uma fadiga mental e cansaço
físico maiores, porque as horas em frente ao computador aumentaram
Resposta 3 muito e as atividades físicas e lazeres diminuíram (passa-se quase que o
dia inteiro no mesmo cômodo da casa); tenho menos acesso aos livros que
preciso para pesquisar; caiu drasticamente a troca de experiências e apoios
com colegas.”
“O tempo rende mais porque não há deslocamento, mas me sinto mais
Resposta 4
cansada pelo acúmulo de tarefas.”
“Mudou muito, as vezes não consigo me organizar direito, pois a minha
Resposta 5 casa serve pra trabalho, estudo e vida familiar, administrar tudo isso me
deixa confusa e atrapalha muito o meu rendimento.”
“Minha rotina mudou completamente. Não tenho mais uma hora
Resposta 6 dedicada, como tinha antes quando ia para a biblioteca, para desenvolver
meus estudos de maneira adequada.”
“Tento reservar um horário específico depois de todos os serviços
Resposta 7
domésticos e familiares.”
“Faço minha organização de acordo com minhas possibilidades. Se antes
Resposta 8 eu conseguia dedicar 3 horas por dia para as leituras, trabalhos e artigos,
hoje são no máximo duas horas.”
“Razoável. A lógica e as exigências de instantaneidade do mundo digital
Resposta 9
são muito fortes e acentuam a ansiedade.”

289
“Todos os compromissos acabaram se misturando (home office, ensino
remoto, demandas da casa e maternidade) por causa do isolamento exigido
Resposta 10
pela pandemia, o que afeta muito a separação de tempo específico para
estudo.”
“Produtividade caiu muito, assim como o rendimento em termos de
leituras e pesquisa. A falta de acesso a bibliotecas e espaços para estudos,
a questão psicológica da pandemia, perda de conhecidos, doenças de
Resposta 11 entes da família, o caos político, aliados contribuem a uma autocobrança
e necessidade de cumprir prazos irreal. Temos que lidar, também, com
bloqueios na hora de escrever nossos trabalhos, além do comum. Então, a
rotina de estudos mudou drasticamente com a atual situação vivida.”
Fonte: Elaborado pela autora (2021).

O desempenho de aprendizado nas aulas remotas também foi uma


questão abordada em que 84,2% (16 discentes) disseram que a pande-
mia e seus efeitos como o isolamento social interferem negativamente no
desempenho. Apenas 15,8%, 3 discentes, responderam que não afetou.
Sobre o formato do Ensino Remoto os discentes disseram que
gostam de ter opções de aulas gravadas e ao vivo 57,9% (11 discentes), e
42,1% (oito discentes) preferem aulas ao vivo. Em relação aos recursos
que auxiliam a compreender mais o conteúdo dado pelos professores
durante as aulas remotas, conversa/diálogo com professores e turma foi
a mais votada 73,7% (14 discentes), seguidas dos slides com 10,5% (dois
discentes), imagens com 5,3% (um discente), vídeo 5,3%, (um discente)
e colegas apresentando seminários 5,3% (um discente).
Por outro lado, um dado interessante é que quando perguntados
sobre quando o contexto atual melhorar, qual formato de aula teria pre-
ferência, 52,6% (dez discentes) optaram pelo formato híbrido, com a
possibilidade de fazer disciplinas de forma remota e outras presenciais,
36,8% (sete discentes) optaram pelo formato presencial e apenas 10,5%,
dois discentes, escolheram o formato remoto.
Em relação à experiência com aulas remotas os dados foram interes-
santes pois mostraram que 47,4% (nove discentes) disseram que a experiên-
cia foi intermediária, 36,8 % (sete discentes) disseram que a experiência foi
boa e 15,8% (três discentes) falaram que foi muito boa. Em relação às ava-
liações feitas pelos docentes, a elaboração de textos científicos como artigos
foi a mais votada com 36,8% (sete discentes), seguidas da apresentação de
seminários com 31,6% (seis discentes) e discussão de textos com os colegas

290
da turma também com 31,6% (seis discentes). A maioria dos discentes con-
sidera que essas avaliações feitas de forma remota pelos professores ajudam
no seu aprendizado: foram 84,2% (16 discentes), respondendo que sim e
apenas 15,8% (três discentes) votando que não.
Ainda sobre a experiência com aulas remotas, foi possível perce-
ber que apesar da maioria dos discentes utilizarem o WhatsApp para
interagir com colegas de turma e professores – 89,5% (17 discentes),
poucos são os que usam o e-mail para isso: apenas 10,5% (dois discen-
tes). Além disso, a maioria, 73,7% (14 discentes) falaram que consi-
deram essa interação remota insatisfatória. Apenas 26,3% (cinco dis-
centes) responderam que é satisfatória. Desses que responderam que
essa interação é satisfatória, é porque considerando o contexto atual é
o que dá para fazer. Outro discentes acredita que a interação remota
está substituindo a interação presencial e que isso é ruim. Na opinião
da maioria dos discentes a interação remota é superficial, limitada por
não permitir o estreitamento de laços afetivos com colegas de turmas
e professores, insuficiente e objetiva em que o foco é a necessidade de
produção e assim o conhecimento mútuo se torna muito limitado. Eles
também relataram que a interação presencial faz a diferença por sermos
seres comunicativos e que nada substitui o diálogo presencial. Outros
motivos de o porquê da interação remota ser considerada insatisfatória
pelos discentes são apresentados a seguir:

Tabela 5: Motivos da interação remota ser insatisfatória


“Eu acho a interação remota importante e necessária nesse contexto de
Resposta 1 pandemia, isolamento. Mas não acredito que substitua a interação presencial
e tudo que ela possibilita.”
“Já frequentava a universidade sempre correndo, pois tenho emprego de
40 horas semanais e dois filhos pequenos. De um lado facilitou a logística
por não ter deslocamentos. Por outro complicou não ter privacidade
e interações espontâneas que, muitas vezes, ajudam na formação do
Resposta 2
pensamento, no desafogo, em outras afetividades que não apenas as
familiares. A grande desvantagem é a pandemia. A tecnologia que se
mostrou existir e ser produtiva, pode ser um recurso interessante não como
substituto, mas como acréscimo.”
“Eu utilizo WhatsApp e e-mail para tirar dúvidas pontuais em relação a uma
disciplina, trabalho ou questões administrativas. Não sinto que exista uma
Resposta 3
sociabilidade real nos meios virtuais. Pra mim, não houve substituição do
cafezinho ou do barzinho.”

291
“É muito triste não ter uma conversa olho no olho com as pessoas, não poder
Resposta 4 esclarecer dúvidas com clareza e discutir assuntos diversos com os demais
colegas.”
“Faz muita falta para uma real troca de ideias e construção de relações
profissionais e intelectuais. O tempo de conversa fica restrito ao momento do
Resposta 5
encontro remoto, o que diminui o diálogo para a construção de conhecimento.
É pouco contato depois do final dos encontros remotos.”
Fonte: Elaborado pela autora (2021).

Quando questionados sobre as maiores dificuldades e vantagens


com o ensino remoto, variadas respostas apareceram. Como maiores
dificuldades foram apontadas a dificuldade de se concentrar nas aulas
remotas, a falta de contato direto com colegas e professores, o gerencia-
mento do tempo, conseguir ler e escrever somente em casa, ter dedi-
cação exclusiva durante a aula ao vivo, pois por estar em casa há baru-
lho e alguém perguntando algo, o cansaço das telas de computador e
smartphone que facilitam a distração, o isolamento em relação à comu-
nidade universitária e aos espaços de troca e o acesso à biblioteca, a falta
da espontaneidade das aulas ao vivo com as entonações e discussões, o
tempo dedicado na frente do computador, produtividade e aprofunda-
mento de temáticas.
Em relação às vantagens do ensino remoto foram citadas a eco-
nomia de tempo, a possibilidade de várias pessoas que estão em outros
lugares físicos participarem das aulas, a possibilidade de interagir e ter
acesso aos conteúdos e professores que estão em diversas partes do
mundo. Também são vistas como vantagens o estar em casa durante
a pandemia e assim fazer o tempo render e encaixar mais atividades,
assistir aula de qualquer lugar, gastar menos tempo com deslocamento
e assim economizar recursos financeiros, ter a administração do tempo
a seu favor, não ficar parado na pandemia, conseguir voltar e assistir
novamente o conteúdo gravado.
Quando questionados sobre o que precisa ser melhorado nas
aulas remotas do PPGCOM da UnB, alguns alunos responderam que o
modelo atual é o possível e que reconhecem o esforço, empenho e dedi-
cação do corpo docente, administrativo e dos próprios discentes. Um
discente respondeu que as aulas são satisfatórias dadas as atuais circuns-
tâncias e que acredita não fazer sentido nenhum uma pós-graduação

292
stricto sensu no formato EAD com aulas gravadas, leitura de texto sem
debate e exercícios.
Outros responderam que seria interessante capacitar professor e
técnicos na utilização das ferramentas disponíveis e assim oferecer mais
suporte aos alunos, bem como haver mais interação dos colegas nas aulas,
uniformizar as plataformas utilizadas, seja pelo aplicativo Zoom, Google
Teams etc. mais debates do que exposições, flexibilização dos métodos de
avaliação, aulas muito longas que se tornam cansativas, possibilidade de
misturar as aulas do ao vivo com conteúdos já existentes e a possibilidade
de haver aulas híbridas à medida que a vacina avance.
Alguns discentes também relataram suas experiências com o
Ensino Remoto. Um discente comentou que essa modalidade de ensino
deve existir no futuro, mas como possibilidade secundária. Uma dis-
cente comentou que foi um desafio e ficou ansiosa ao ter que fazer arti-
gos científicos para cada disciplina mesmo em meio a uma pandemia.
Outro discente comentou de forma bem taxativa que o PPGCOM da
UnB não opte por essa alternativa. Por outro lado, houve discentes que
comentaram que o Ensino Remoto possibilitou que tivessem aulas de
qualidade com professores de outras cidades e países e que essa possibi-
lidade deveria existir no PPGCOM.

Discussão dos resultados

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD)


sobre Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso
pessoal realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2019, mostra que os equipamentos utilizados para acessar a Internet nos
domicílios é o smartphone (99,5%), notebook (45,1%), televisão (31,7%) e
tablet (12,0%) e nos domicílios que havia utilização da internet a conexão
do tipo banda larga fixa ou móvel (3G ou 4G) era a mais utilizada. Esses
dados corroboram com os achados da nossa pesquisa, pois 84,2% dos pós-
graduandos em Comunicação da UnB utilizam o notebook para assistir aula
e de vez em quando os smartphones e/ou tabletes. Além disso, a grande
maioria dos discentes (89,5%) se conectam pelo wi-fi de suas casas.

293
Outro dado interessante da nossa pesquisa é que os discentes de
Comunicação da UnB comentaram que a rotina de estudos mudou
completamente com o Ensino Remoto. Existe uma sobrecarga das tare-
fas de casa como acompanhar os estudos dos filhos que também estão
assistindo aula em casa e cuidar dos afazeres domésticos, tudo isso se
junta aos trabalhos acadêmicos, seja em relação à produtividade na ela-
boração de artigos científicos ou a própria elaboração da dissertação ou
tese. Na visão dos discentes, conciliar essas tarefas e seguir um planeja-
mento se tornou mais difícil.
Uma pesquisa realizada pela Parent in Science (2020) mostra como
a pandemia impactou na produtividade acadêmica de pós-graduandos,
docentes e pesquisadores brasileiros. A pesquisa revela que a pandemia
afetou mais a produtividade acadêmica de mulheres com filhos do que
a produtividade acadêmica dos homens com ou sem filhos. Isso pode
ser explicado se levarmos em conta que, na maioria das vezes, as mães
ficam com os filhos em tempo integral ou porque elas não têm com quem
dividir as tarefas, ou ainda porque são mães solo. Essa junção de tarefas
como a maternidade, home office e estudos também foi relatada por algu-
mas discentes da nossa pesquisa que afirmaram, por exemplo, não ligar a
câmera durante as aulas por ter que atender a bebê e outra discente a qual
relatou que sua rotina mudou porque a maternidade, demandas de casa,
do trabalho e da pós-graduação acabaram se misturando.
Nesse sentido, nossa pesquisa revela que os discentes se sentem
cansados mentalmente por estarem com acúmulos de tarefas. Com isso
eles não tem conseguido manter sua produtividade acadêmica e cum-
prir prazos e ritmos de estudo. Assim como os docentes, os discentes
também se sentem cansados mentalmente e fisicamente por passarem
horas em frente ao notebook/smartphone e por estarem em casa cum-
prindo o isolamento social.
Inclusive essa questão do cansaço mental por causa do acúmulo de
tarefas e da ansiedade gerada pela pandemia foram alguns dos pontos
citados na nossa pesquisa. Tanto prova que 84,2% dos discentes disse-
ram que a pandemia e seus efeitos, como o isolamento social, interferi-
ram negativamente no desempenho de aprendizado nas aulas remotas.
Um dos discentes disse que sua produtividade acadêmica caiu muito,

294
assim como o rendimento em termos de leituras e pesquisa e que isso
também se deve a perda de conhecidos e familiares doentes por causa da
Covid-19. Além disso, a maioria do discentes, 89,5%, responderam que
se sentem mais cansados.
Ornell; et al. (2020) explicam que em uma pandemia, emoções como
o medo aumentam os níveis de ansiedade e estresse. Essas emoções
interferem em outras searas da vida pessoal como organização familiar,
fechamento de comércio e escolas etc.
As incertezas com o futuro e com os contextos econômicos e polí-
ticos também são preocupações dos discentes, o que também implica
na saúde mental dos mesmos. Ornell; et al. (2020) inclusive apontam que
é urgente e necessário haver mais pesquisas e ações estratégicas para a
saúde mental, já que ainda não se sabe ao certo quais as sequelas que a
pandemia pode deixar na saúde mental das pessoas.
Quando perguntados sobre as vantagens do ensino remoto, os dis-
centes de Comunicação da UnB apontaram a flexibilidade dos horários
para estudar e não precisar se deslocar até à universidade já que as aulas
são remotas. Os dados corroboram com a pesquisa de Silva (2020) que
buscou compreender como discentes brasileiros do Ensino Médio e de
cursos de Pós-Graduação avaliavam o Ensino Remoto. Os resultados da
autora mostram que os discentes também apontaram como vantagens a
flexibilidade de horários e diminuição de gastos já que não há desloca-
mentos até as escolas/universidades.
Em nossa pesquisa os discentes responderam que algumas das des-
vantagens do Ensino Remoto são a dificuldade de seguir um planejamento
de estudo, a falta de acesso à biblioteca, a falta de interação presencial
com docentes, colegas de turma e funcionários e também a falta de outros
espaços de socialização da universidade como o intervalo das aulas para
tomar café e a saída com os colegas de turma para barzinhos após as aulas.
Ferreira (2014) define a socialização como o conjunto de experiên-
cias que engloba o mundo social e as práticas sociais dos indivíduos.
O autor explica que o ambiente universitário traz transformações de
práticas, linguagens e ideologia nos discentes e que a socialização uni-
versitária é importante porque serve como alívio afetivo e também para
realizar melhor as tarefas acadêmicas:

295
Então, a socialização universitária serve, simultaneamente, como
meio de alívio afetivo, pela satisfação emocional e social (amizades,
encontros, festas, passeios, sexo, relações amorosas), e como recur-
so comum e autogerido para a realização bem-sucedida das tarefas
acadêmicas e a compreensão dos conteúdos (apresentações em sala
de aula, participação em eventos e boas notas (FERREIRA, 2014, p. 131).

Durante a pandemia essa interação está ocorrendo de forma remota.


Nossos dados mostram que 73,7% dos discentes consideram essa inte-
ração remota insatisfatória justamente porque sentem falta da interação
presencial como mostra alguns dos relatos extraídos da Tabela 5:

É muito triste não ter uma conversa olho no olho com as pessoas,
não poder esclarecer dúvidas com clareza e discutir assuntos di-
versos com os demais colegas.) Faz muita falta para uma real tro-
ca de ideias e construção de relações profissionais e intelectuais. O
tempo de conversa fica restrito ao momento do encontro remoto, o
que diminui o diálogo para a construção de conhecimento. É pouco
contato depois do final dos encontros remotos.

Outra desvantagem relatada pelos discentes é a falta de acesso às


bibliotecas que por causa da pandemia estão fechadas. Ferreira (2014)
expõe que o universitário brasileiro aprende não somente na sala de
aula, mas também com os tempos extracurriculares, ou seja, em outros
ambientes da universidade como laboratório e bibliotecas e até fora deles
(lanchonetes, bares, casas dos amigos). Daí a importância da socializa-
ção dentro e fora do ambiente universitário.
A experiência dos discentes em Comunicação com as aulas remo-
tas revelam que 47,4% dos discentes consideram a experiência interme-
diária e que 36,8% consideram uma experiência boa e 15,8% muito boa.
Isso mostra que apesar dos obstáculos encontrados no Ensino Remoto e
que apesar da pressa com que esse tipo de ensino foi implantado, os dis-
centes reconhecem seus próprios esforços e dos docentes e funcionários
do PPGCOM da UnB. Isso é até relatado por um dos discentes ao dizer
que diante do contexto, foi o possível a se fazer.

296
Nossos dados mostram que apesar dos discentes relatarem as des-
vantagens e insatisfações com o Ensino Remoto quando perguntados
sobre qual formato de aula teriam preferência quando o contexto pan-
dêmico melhorar, 52,6% votaram no Ensino Híbrido em que pudessem
ter aulas remotas e aulas presenciais. Isso mostra que o Ensino Híbrido
pode ser uma opção futura de modalidade de ensino nas universida-
des, desde que haja planejamento e desde que os discentes e docentes
tenham as vantagens de economizar com deslocamentos e flexibilizar
seus horários, mas sem perder a interação presencial e a socialização
nos espaços universitários e fora deles.
Outro ponto interessante da nossa pesquisa é o que tange a questão
do que poderia ser melhorado no Ensino Remoto do PPGCOM da UnB.
Como já mencionado os discentes reconheceram o esforço do PPGCOM
em fazer dar certo o Ensino Remoto. Vieira e Silva (2020) lembram que
esse tipo de reconhecimento se faz necessário uma vez que os docentes
foram forçados a aprender (de maneira rápida) a utilizar recursos tecno-
lógicos, plataformas na internet e sistemas de videoconferência.
Por outro lado, alguns discentes da nossa pesquisa também relataram
que para melhorar o Ensino Remoto seria interessante capacitar docen-
tes e técnicos quanto à utilização de recursos tecnológicos, plataformas e
ferramentas interativas e flexibilizar os prazos para entregas de trabalhos.

Considerações finais

Este estudo serviu para contribuir de forma empírica e suprir algu-


mas lacunas encontradas na literatura, como o fato de compreender
como o Ensino Remoto implantando justamente por causa de um fenô-
meno recente – a pandemia da Covid-19 – é avaliado por pós-graduan-
dos. O artigo buscou compreender como mestrandos e doutorandos do
PPGCOM da UnB avaliam o Ensino Remoto em tempos de pandemia.
Acreditamos que o Ensino Remoto não deve ser comparado à prá-
tica EaD porque cada modalidade de ensino tem suas especificidades.
Enquanto a EaD possui uma estrutura pensada, previamente organi-
zada com conteúdo planejado, aulas gravadas, presença de professores

297
e tutores e se destina a pessoas que querem ter a opção de estudar a
distância, o Ensino Remoto o qual estamos vivendo serve como um
rearranjo das aulas presenciais. Porém, essa experiência também traz
outras reflexões no sentido de que o ensino nas universidades pode ser
repensado e melhorado a partir das tecnologias, como mostraram os
resultados desta pesquisa quando grande parte dos discentes disseram
que escolheriam a modalidade de ensino híbrido caso um dia haja essa
possibilidade no PPGCOM da UnB.
Não podemos esquecer que a rotina dos discentes de fato mudou e
que eles estão mais cansados mentalmente e sobrecarregados com aulas,
afazeres domésticos e home office, daí a importância também para aten-
tar à saúde mental dos mesmos, até porque estudos mostram que viver
em uma pandemia eleva a ansiedade e o estresse.
Outro ponto relevante também é o quanto a socialização no espaço
universitário é importante para a formação, desenvolvimento e processo
de ensino aprendizagem dos discentes, desde ir à biblioteca até encon-
trar com amigos em bares após as aulas. O Ensino Remoto tem suas van-
tagens, mas não devemos esquecer que a interação via internet e telas de
notebooks e smartphones não transmite as mesmas emoções e sensações
do que os encontros presenciais. De qualquer modo, vale ressaltar que
os discentes do PPGCOM DA UnB enxergam o Ensino Remoto como
uma possibilidade, um acréscimo, mas não como substituto do ensino
presencial, pois consideram que a interação “olho no olho”, de forma
presencial, com colegas, docentes e funcionários, é insubstituível.

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300
CAPÍTULO 13

O ensino de Jornalismo em Manaus


e as Diretrizes Curriculares Nacionais
Hemanuel Jhosé Alves Veras1

Introdução

Em 2022, as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs)


para os cursos de Comunicação Social, com suas várias habilitações,
entre elas a de Jornalismo, completam seus 20 anos de vigência. Essas
Diretrizes Curriculares fazem parte da reforma do ensino brasileiro ini-
ciada em 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Desde 1962, os cursos de Jornalismo no Brasil já seguiam um Parecer
do Conselho Federal de Educação (CFE) que instituía uma divisão de disci-
plinas gerais e específicas dentro da formação. Com a criação dos cursos de
Comunicação Social em 1969, o Jornalismo vira apenas uma das habilita-
ções existentes e passa a seguir o Currículo Mínimo da nova área. O último
desses foi estabelecido por uma Resolução em 1984 (MOURA, 2002).
Necessariamente, os cursos de Comunicação Social deveriam
seguir um tronco comum, com uma formação humanística geral e teó-
rica, e na segunda metade do curso disciplinas da área específica da
habilitação que os estudantes cursavam, mais voltada para a prática pro-
fissional e, portanto, com pouco tempo de estudos voltados para a teoria
específica da área profissional para a qual os estudantes se preparavam
para atuar.

1 Jornalista pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e mestre em Ciências da Comu-


nicação pela Ufam. Trabalha como Analista Legislativo – Jornalista na Assembleia Legis-
lativa do Amazonas (Aleam) e como professor de Comunicação Social na Faculdade Mar-
tha Falcão/Wyden (FMF). Atua como coordenador voluntário no Nepciber/CPA. E-mail:
hemanuel.veras@gmail.com.

301
Com as Diretrizes Curriculares, algumas mudanças importan-
tes foram implementadas, como o fim das disciplinas obrigatórias
dos Currículos Mínimos e a adoção dos eixos de conhecimentos que
devem ser desenvolvidos dentro dos cursos, tanto no tronco-comum
como na parte específica, além da possibilidade da criação de novas
habilitações.
Cursos de Jornalismo específicos só se tornaram possíveis com a
publicação da Resolução no 1/2013 do Conselho Nacional de Educa-
ção (CNE), com as DCNs para o curso de graduação em Jornalismo.
Com essas novas Diretrizes, os cursos de Jornalismo podem mudar a
dinâmica da divisão entre tronco comum e área específica e focar no
desenvolvimento de um corpo teórico mais próximo da área. Entre-
tanto, como as Diretrizes têm por característica flexibilizar a criação das
Matrizes Curriculares, muitas vezes ainda é possível perceber influên-
cias dos Currículos Mínimos.
Para a área do Jornalismo, os Currículos Mínimos anteriores apro-
fundaram a ausência de um corpo de conhecimentos específicos que
apresentassem maturidade científica e que pudessem criar um consenso
interno e externo à categoria profissional. Essa ausência gerou dificul-
dades para legitimar essa profissionalização e garantir um mercado de
trabalho específico para os profissionais que a exercem.
Segundo Meditsch (2010), essa fissura demonstra a fragilidade na
formação desses profissionais e também as características do campo
acadêmico no qual esses cursos estão tradicionalmente inseridos. Os
cursos de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo demons-
travam assim dificuldades em apresentar teorias que sustentassem a
especificidade e relevância do Jornalismo como área acadêmica. Um
desdobramento prático dessa fissura foi a decisão, em 2009, do Supremo
Tribunal Federal de derrubar a obrigatoriedade do diploma de Jorna-
lismo para atuação profissional no mercado de trabalho.
Levando em conta esse contexto, surgiu o interesse de compreender
como estão estruturados atualmente os cursos de jornalismo existentes
na cidade de Manaus, capital do Amazonas, no que diz respeito ao aten-
dimento às DCNs da área. Esse capítulo objetiva fazer essa reflexão a
partir de uma análise comparativa entre Matrizes Curriculares.

302
Foram identificados seis cursos de jornalismo em Manaus (BRA-
SIL, 2017): da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), única insti-
tuição pública que oferece o curso na cidade, da Faculdade Boas Novas
(FBNCTSB), da Faculdade Centro Universitário do Norte (Uninorte),
da Universidade Nilton Lins (UniNiltonLins), da Faculdade Martha Fal-
cão/Wyden (FMF) e do Centro Universitário Fametro (Ceuni-Fametro).
Após o levantamento, entrou-se em contato com os coordenadores
dos cursos, mas apenas cinco deles foram localizados. Para realizar a
análise comparativa do presente trabalho foram feitas solicitações de
acesso às Matrizes Curriculares, mas apenas dois dos coordenadores
atenderam a esse pedido com os dados que serão utilizados em nossa
análise: os da Ufam e da Fametro.
Para realizarmos uma análise comparativa dessas matrizes e ana-
lisar como atendem às exigências das DCNs, vamos antes resgatar um
pouco do contexto histórico do começo dos cursos de Comunicação
Social no Brasil e suas consequências para a formação em Jornalismo,
que na época tornou-se uma habilitação e agora volta a ser um bacha-
relado autônomo.

O ensino do Jornalismo no Brasil

A historiografia do campo acadêmico do Jornalismo no país revela


a origem de uma lacuna, ou fissura, na formação profissional do jorna-
lista. Segundo Meditsch (2010), o problema começou com a inserção das
formações superiores em Jornalismo dentro de Comunicação Social,
que já surgiram com um Currículo Mínimo próprio e que não buscava
responder às preocupações específicas do Jornalismo, já que se tratava
apenas de uma habilitação entre outras.
Para entendermos essa desconexão nos cursos de Jornalismo, pre-
cisamos entender uma mudança histórica realizada nesses currículos
por conta de uma conjuntura política internacional anterior e a trans-
formação em uma habilitação dos cursos de Comunicação Social.
A Comunicação Social chegou ao Brasil originalmente na Facul-
dade de Comunicação da Universidade de Brasília, proposta por

303
Pompeu de Sousa em 1962. O projeto previa três escolas distintas: a
de Jornalismo, a de Rádio, TV e Cinema e a de Propaganda e Publi-
cidade. Mas com o início da ditadura militar o projeto nunca saiu do
papel (MEDITSCH, 2015).
Após o golpe militar, uma nova concepção de Comunicação foi
implantada primeiro na UnB e em seguida no Currículo Mínimo de
todas as universidades do país, objetivando enfrentar a “ameaça comu-
nista” e a legitimação do regime militar. Essa mudança, realizada em
1969, objetivou a inserção no país de um novo profissional, um comu-
nicador social polivalente, com uma preparação multimídia e multifun-
ção, para participar da “guerra psicológica” contra a “ameaça comunista”.
Essa inserção tem relação com um contexto internacional e na atua-
ção da Organização das Nações Unidas para Ciências, Educação e Cul-
tura (Unesco), que influenciou politicamente a introdução da formação
em Comunicação Social na década de 60 no Brasil e em outros países.

A mesma Unesco que, em 1980, propôs uma Nova Ordem Inter-


nacional da Comunicação, encampando o Relatório MacBride, foi
quem duas décadas antes internacionalizou a nascente disciplina da
Mass Communication Research, através de suas escolas internacio-
nais para a formação de professores de Jornalismo, como o CIESJ
de Estrasburgo e o Ciespal do Equador, e da criação da principal
entidade acadêmica internacional da área até hoje, a AIERI/IAMCR
(Informação verbal)2.

A Unesco foi criada como um braço da Organização das Nações


Unidas (ONU) no pós-guerra. Desde sua criação a entidade defende os
meios de comunicação como estratégicos para o progresso e a dissemi-
nação de conhecimentos. Por conta disso, a Unesco buscou qualificar a
formação dos jornalistas em todo o mundo criando centros de pesquisa
e estudo e propondo modelos de currículo para jornalistas e, depois,
comunicólogos.

2 Fala do professor Eduardo Meditsch na mesa “40 anos do relatório MacBride: avanços e de-
safios no campo da comunicação”, 43o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em
1o de dezembro 2020.

304
Com o contexto da Guerra Fria, a entidade incentivou a formação em
Comunicação Social em vários países, deixando como herança várias das
fissuras percebidas em cursos de formação de Jornalismo na região e uma
dificuldade da legitimação do campo de estudos em Comunicação Social.
Com o golpe militar, a tarefa de inserir nas formações em Jorna-
lismo o funcionalismo característico dos currículos norte-americanos
coube a um técnico chamado Celso Kelly que foi o autor do Currículo
Mínimo de Comunicação Social do país (MEDITSCH, 1999). É nessa época
que é inserido o Jornalismo Comparado e que são encorajadas as abor-
dagens teóricas advindas de outras áreas que serviriam de modelo para
a nova ciência da Comunicação Social.

O Ciespal não se limitava a propor a criação de um novo tipo de


profissional: propunha a extinção e a substituição das profissões
previamente existentes. A política do Centro influenciou a regu-
lamentação profissional em diversos países e conseguiu unificar a
linguagem acadêmica da área em todo o continente, com a boa des-
culpa de “facilitar o intercâmbio” (MEDITSCH, 1999, p. 3).

Obviamente essa imposição só foi possível às instituições de ensino,


o que alienou essa formação e a figura desse “profissional polivalente”
das necessidades das empresas de Jornalismo. Assim, o divórcio da for-
mação acadêmica e da produção teórica com a realidade profissional foi
forçado por questões políticas. A figura desse “jornalista polivalente”
que seria o comunicólogo nunca foi aceita pelo mercado de trabalho.
Isso aconteceu em grande parte porque na prática, esse profissional
formado em Comunicação Social nunca foi demandado pelo mercado
de trabalho, que continuou a absorver mão de obra baseado apenas nas
habilitações que abrigaram as antigas profissões (MEDITSCH, 2010).
Mesmo assim, os cursos de Comunicação Social mantiveram em
seus currículos mínimos, normalmente executados na primeira metade
da graduação, várias disciplinas teóricas necessárias para esse comu-
nicador polivalente e no restante da formação, em geral na segunda
metade, abrigaram disciplinas práticas de cada habilitação, sem ou com
pouca ligação com as disciplinas teóricas do tronco comum.

305
Essa estrutura curricular aprofundou a desconexão entre teoria
e prática durante o curso. Essa dualidade impediu que uma Teoria do
Jornalismo fosse desenvolvida no interior dos cursos. Essa dificuldade
se encontra porque a composição desse campo teórico durante muito
tempo se concentrou nos efeitos dos meios de comunicação e pouco nos
objetos aos quais a parte prática do curso se voltou (BRAGA, 2011).
Essa desconexão acabou também oportunizando que a produção
científica sobre o Jornalismo fosse ocupada por pesquisadores de outras
áreas, interessados pela relevância desses objetos e pela falta de uma
teoria específica para compreender esses fenômenos que a Teoria da
Comunicação não conseguiu desenvolver. Esse impulso interdisciplinar
fortaleceu as pesquisas, mas ocupou o espaço do desenvolvimento de
uma pesquisa específica que desse conta de abarcar esses objetos meto-
dológica e teoricamente. Com isso, pouco se desenvolveu na academia
brasileira do que pudesse compor uma Teoria do Jornalismo.
A respeito dessa presença de outras disciplinas nos estudos sobre
a Comunicação Social, Braga (2011) aponta que anteriormente conside-
rava o esforço em situar o campo como interdisciplinar “por natureza”
resvalava nessa visão de que a Comunicação é um espaço teórico vazio,
em que outras disciplinas podem encontrar terreno fértil para pesqui-
sas. Entretanto, nos últimos anos ele considera que os pesquisadores
começaram a se dedicar às interfaces entre a Comunicação e áreas mais
bem estabelecidas, sem, contudo, se deixar levar para a outra área, o que
auxiliou muito na consolidação do campo.
Para Meditsch (2010), a dicotomia profissional x acadêmico cor-
responde à dicotomia Jornalismo x Comunicação Social, uma vez que
as práticas profissionais da área não encontram consonância na teoria
acadêmica estudada nos cursos de Comunicação Social, muitas vezes
originada a partir de autores e metodologias de outras áreas.
Como essa falta de interligação entre teoria e prática na área de Jor-
nalismo é estrutural, ela acaba por impedir que qualquer um dos lados
possa se desenvolver plenamente, tanto o exercício das técnicas práticas
como a teorização da área profissional. Isso porque essa cisão parte do
pensamento que a prática e a teoria são coisas que se desenvolvem iso-
ladamente e não de forma conjunta (BRAGA, 2007).

306
Um curso de graduação que trabalhe apenas com uma teoria já
pronta e afastada das vivências e experimentações possíveis na acade-
mia por si só já apresenta um panorama teórico descontextualizado.
Braga (2007) destaca que, nos cursos de Comunicação Social no Brasil,
a atividade de pesquisa ficou restrita às disciplinas teóricas presentes
no tronco-comum, como se a pesquisa fosse apartada das dinâmicas e
práticas profissionais.
O autor indica a pesquisa acadêmica como a cesura possível entre
a teoria e a prática nesses currículos. Em vez de uma teoria apartada
da realidade, voltada apenas para a leitura de obras fechadas e longe
do contexto em que os educandos estão inseridos, um uso dessas obras
para compreender as práticas exercidas ao longo dos currículos.
Essa mudança também desloca a parte prática do currículo de um
eixo voltado apenas à geração de produtos como treino profissional para
a construção de experiências, experimentações e reflexões. Mesmo a
divisão do currículo entre Comunicação social/geral x Jornalismo/espe-
cífica, pode ser costurada desde que prática e teoria caminhem juntas,
sempre se relacionando por meio da pesquisa.
A desconexão entre teoria e prática não acontece apenas no Bra-
sil, mas também nos Estados Unidos, onde a departamentalização,
que foi importada para as universidades brasileiras em 1969, também
dificulta uma alavancada da produção científica na área de Jornalismo
(MEDITSCH, 2012).
Mas somente em 2013, com a institucionalização das DNCs dos
cursos superiores de Jornalismo, o ensino na área pôde vislumbrar
outras construções curriculares que buscassem resolver essa fissura
entre a prática e a teoria jornalística.

Do status de habilitação ao bacharelado

Faz-se necessário compreender também que esses currículos são


construídos a partir de uma política pública educacional que busca
refletir as conjunturas sociais e mercadológicas onde cada uma das ins-
tituições de ensino está inserida. Essa política pública se materializa

307
nas Diretrizes Curriculares Nacionais existentes hoje para a área de Jor-
nalismo. Mas antes de 2013 isso não era possível.
Os esforços para criação das DCNs específicas de Jornalismo já
datavam dos debates para a consolidação das Diretrizes dos cursos de
Comunicação Social, no final dos anos 90. Durante esses debates a área já
entendia que deveria haver especificidade para cada habilitação. Segundo
Moura (2002, p. 200), houve uma movimentação no sentido de implantar
uma comissão específica de Jornalismo e a proposta chegou a ser enca-
minhada para apreciação do CNE, cujo parecer foi contrário ao processo.
Pouco depois, em 1999, a subárea se posicionou com a realização
do Seminário Nacional de Diretrizes Curriculares do Ensino de Jor-
nalismo, realizado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUCCAMP) em conjunto com outras instituições, como a Federação
Nacional de Jornalistas (Fenaj) e o GT de Jornalismo da Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).
O evento resultou em um documento que, entre outras indicações,
falava da possibilidade de cursos superiores específicos e fora da Comuni-
cação Social, além de um perfil específico para a formação em Jornalismo
e indicações de tópicos de estudos, atividades e disciplinas para as habili-
tações específicas. Esse documento do Seminário em Campinas influen-
ciou sobremaneira o documento final da Comissão de Especialistas em
Ensino de Comunicação Social, que manteve a existência dos Cursos de
Comunicação Social e a possibilidade dos bacharelados específicos.

A primeira versão do documento (CEE/COM) refere-se a cursos de


Comunicação, sem especificar as habilitações. A partir do Docu-
mento de Campinas, que foi dirigido à habilitação em Jornalismo, a
segunda e terceira versões do documento oficial passaram a especi-
ficar as habilitações, inclusive fazendo menção a um curso Superior
de uma habilitação específica (MOURA, 2002, P. 214).

Com a oficialização das DCNs de Comunicação Social em 2002, alguns


debates posteriores já previam os rumos que deveriam ser percorridos pelas
diretrizes próprias da área de Jornalismo. Mas houve resistência por parte
de muitos professores em permitir que surgissem formações específicas.

308
Em 2005, num debate realizado na Universidade de São Paulo
(USP), a Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunica-
ção (Compós) propôs um aumento da Teoria da Comunicação como
área de estudos e a transferência da Comunicação Social das Ciências
Sociais Aplicadas para as Ciências Humanas (MEDITSCH, 2015). Essa pro-
posta expôs uma fissura que se origina na concepção de grande área que
não contempla as especificidades de cada uma das profissões formadas
pelas habilitações, impedindo que elas desenvolvam suas próprias teo-
rias, objetos e metodologias.
O debate terminou com o envio da proposta da Compós ao Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
junto com contrapropostas de outras entidades da área. Isso expôs as
contradições internas do corpo de pesquisadores em Comunicação
Social e culminou com a criação de pós-graduações específicas e das
novas Diretrizes, que foram formas das habilitações buscarem autono-
mia em relação ao curso de bacharelado em Comunicação Social.
Em 2009, o CNE formou uma Comissão de Especialistas para
elaborar Novas Diretrizes Curriculares dos cursos de Jornalismo, ins-
tituindo um processo de autonomia em relação aos cursos de Comuni-
cação Social. Essas DCNs para os cursos específicos foram instituídas
pela Resolução CNE/CES no 1, de 27 de setembro de 2013.
Com isso os Cursos de Jornalismo e as Instituições de Ensino Supe-
rior que os abrigam passaram a ter liberdade de compor suas matrizes
curriculares fora da dinâmica de tronco comum/teoria geral x discipli-
nas específicas/prática profissional. É importante reiterar que a vigên-
cia das DNCs de Comunicação Social já trouxe um grande avanço ao
Ensino Superior uma vez que as Diretrizes não impõem e nem obrigam
que os colegiados precisem cumprir Currículos Mínimos, como acon-
tecia anteriormente.
Essa liberdade de construção dos currículos seguindo apenas as
orientações dos eixos de aprendizagem das DNCs, respeitando contex-
tos regionais e mercadológicos é interessante. Mas a velocidade com que
as instituições de ensino conseguem realizar essas mudanças nos currí-
culos é sempre lenta na revisão de currículos em relação às mudanças
mercadológicas e tecnológicas.

309
Segundo Braga e Calazans (2001), o sistema escolar é socialmente
legitimado como espaço de aprendizagem, mas não consegue dar conta
das articulações entre o processo educacional e os processos de intera-
ções social midiática. Se os espaços educacionais já têm dificuldade em
lidar com as mudanças operacionalizadas em nossa sociedade midiati-
zada, o desafio é maior nos currículos que preparam os profissionais que
vão atuar nessa produção midiática.
Essas mudanças tecnológicas são contempladas na nova regulação
dos Cursos também, pois as DCNs foram pensadas no contexto desse
profissional de Comunicação inserido numa sociedade globalizada.
Segundo Santana (2020), “assim, as diretrizes curriculares assumem a
responsabilidade de (re)pensar os métodos e as bases do ensino, com o
objetivo de preparar profissionais para atuar em um contexto de muta-
ção tecnológica”. Dessa forma, os colegiados dos cursos têm a possi-
bilidade de se estruturarem para contemplar essas novas linguagens,
tecnologias e técnicas, sem perder de vista os predicados do Jornalismo.
Importante destacar também que as DCNs de Jornalismo não são
uma ruptura com a área de Comunicação, da qual os cursos ainda fazem
parte. As disciplinas de diversas áreas das Humanidades, por exemplo,
continuam nas novas Diretrizes e correspondem ao que um dia foram
os conteúdos básicos dos cursos de Comunicação Social. A presença
dessas disciplinas teóricas de outras áreas é importante uma vez que a
Resolução no 1/2013 estabelece que o Jornalista deve ter uma atuação
ética e cidadã, além de compreensão dos contextos históricos, políticos
e sociais, para o que esses conteúdos são imprescindíveis.
Nesse sentido, Campiolo e D‘Ávila (2018, p. 24) destacam que “um
dos horizontes apontados nas Diretrizes é capacitar os futuros jorna-
listas a olhar o local, regional e nacional. Conhecer as raízes, as causas
sociais, políticas e culturais dos temas tratados”. A preocupação de for-
mar profissionais que atuem com compreensão do contexto histórico,
político e social se mantêm nos cursos de Jornalismo, podendo inclu-
sive se aprofundar nos contextos específicos e locais. Para compreender
como esses aspectos estão garantidos no curso vamos destacar alguns
pontos das DCNs relevantes para nossa análise comparativa.

310
Características das Diretrizes Curriculares
Nacionais de Jornalismo

Em 20 de fevereiro de 2013, a Câmara de Ensino Superior emitiu


o Parecer no 39/2013 CNE/CES, que reuniu um relatório de avalia-
ção e o Projeto de Resolução criado pela Comissão de Especialistas.
Iremos analisar especificamente o que diz o Projeto que se tornou a
Resolução no 1/2013, em 27 de setembro de 2013, instituindo as DCNs
dos bacharelados em Jornalismo, que continuam pertencendo à área
da Comunicação, mas agora deixam de ser habilitações e se tornam
cursos independentes.
O 10o artigo define a carga horária mínima de três mil horas,
contemplando disciplinas, atividades complementares, estágio
supervisionado e Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Estes dois
últimos são obrigatórios. O estágio supervisionado, que antes não
existia como obrigatório, deve ter no mínimo 200 horas de dedica-
ção e só pode ser realizado com acompanhamento de um jornalista
profissional e de um docente. O TCC deve ser feito individualmente
e pode ser um trabalho jornalístico prático, com interfaces com
outras áreas, ou um trabalho teórico dedicado a objetos da área do
Jornalismo.
Para propiciar aos alunos uma formação que desenvolva o perfil e
as competências elencadas pela Resolução, ela estabelece, no seu artigo
6o, os eixos de formação que devem estruturar os currículos. Para a aná-
lise comparativa que esse trabalho realiza, esses eixos são um ponto de
interesse da resolução, pois serão uma forma de categorizarmos e com-
preendermos melhor a estrutura das matrizes analisadas.
A resolução apresenta como primeiro eixo o de Fundamentação
Humanística, que objetiva formar jornalistas que exerçam a profissão
privilegiando a cidadania no contexto brasileiro.
O eixo de Fundamentação Específica tem como objetivo propor-
cionar clareza conceitual e crítica sobre as especificidades e funda-
mentos da profissão: a resolução fala dos fundamentos, ordenamento
jurídicos, instituições, pensadores, obras canônicas e pesquisa cientí-
fica específicas.

311
O terceiro eixo é o da Fundamentação Contextual, que embasa os
conhecimentos das teorias da comunicação, informação e cibercultura
dentro da Matriz Curricular. Assim como os dois primeiros eixos, esse
também busca agregar disciplinas que fundamentam os pensamentos
sobre a área, mas dessa vez na grande área a que o Jornalismo pertence:
a Comunicação.
Também é estabelecido o eixo de Formação Profissional que obje-
tiva embasar o conhecimento teórico e prático dos processos jornalís-
ticos. Esse eixo objetiva desenvolver conhecimentos e habilidades dos
estudantes para que consigam exercer a crítica e a prática jornalística,
utilizando bem gêneros e formatos jornalísticos.
O penúltimo é o eixo de Aplicação Processual, que busca capacitar
os alunos a utilizarem as ferramentas metodológicas e técnicas do Jor-
nalismo para realizar coberturas em qualquer suporte e mídia.
Por fim, a Resolução apresenta o eixo de Prática Laboratorial, que
objetiva desenvolver habilidades profissionais a partir da aplicação de
informações e valores em produtos direcionados a públicos reais. A
ideia é que esse eixo integre os demais, possibilitando que sejam desen-
volvidos projetos editoriais delimitados e com periodicidade.
Para realizar nossa análise comparativa entre os cursos de Jorna-
lismo das duas instituições de Ensino Superior atuantes em Manaus,
vamos avaliar o atendimento aos pontos apresentados nos artigos 6o e
10o. Para comparar as disciplinas de ambos os cursos vamos adotar cate-
gorias equivalentes aos seis Eixos estabelecidos nas DCNs.
É importante destacar que essa categorização de uma disciplina em
apenas um dos eixos será realizada apenas para efeitos desta análise,
uma vez que cada uma dessas disciplinas pode se encaixar em dois ou
mais eixos à medida que agreguem ou separem os conteúdos a partir
das decisões do colegiado de cada curso. Compreendido isso, podemos
visualizar na Tabela 1 essa categorização.

312
Tabela 1: Comparativo das disciplinas dos cursos de Jornalismo
da Ufam e da Fametro
Eixos Ufam Fametro
• Sociologia e antropologia (66h)
• Metodologia do trabalho
científico EAD (88h)
• Métodos e técnicas do estudo e
• Filosofia e ética EAD (88h)
da pesquisa científica (60h)
• Responsabilidade
• Psicologia social (60h)
Eixo de socioambiental e
• Tópicos especiais em filosofia
Fundamentação sustentabilidade EAD (88h)
(60h)
Humanística • Ciência Política (66h)
• Introdução à antropologia
• Psicologia social EAD (88h)
cultural (60h)
• Realidade socioeconômica e
• Optativas (180h)
política brasileira (66h)
• Educação para os direitos
humanos EAD (88h)
Carga horária 420 horas 638 horas
• Fundamentos de fotografia e
imagem (60h)
• Tópicos especiais em Jornalismo
I (60h)
• Tópicos especiais em Jornalismo
Eixo de • Teorias do Jornalismo (66h)
II (60h)
Fundamentação • Tópicos especiais I (66h)
• Fundamentos do Jornalismo e
Específica • Tópicos especiais II (66h)
das Relações Públicas (60h)
• Tópicos especiais em Jornalismo
III (30h)
• Fundamentos do direito
aplicado ao jornalismo (60h)
Carga horária 330 horas 198 horas
• História da Comunicação (66h)
• Sociologia da comunicação
• Análise do discurso (66h)
(60h)
• Sociologia da comunicação
• Ciência política e comunicação
(66h)
Eixo de (60h)
• Teorias da comunicação (66h)
Fundamentação • Teoria da Comunicação (60h)
• Estética da Comunicação (66h)
Contextual • Política de comunicação no
• Tecnologias da informação e da
Brasil (60h)
comunicação EAD (88h)
• A comunicação no Amazonas e
• Multimídia e comunicação
na Amazônia (60h)
digital (66h)
Carga horária 300 horas 484 horas

313
Eixos Ufam Fametro
• Oficina de Leitura de produção
de Texto I (60h)
• Planejamento visual, editoração • Fundamentos de economia
eletrônica e webdesign (60h) (66h)
• Oficina de Leitura de produção • Leitura, interpretação e
de Texto II (60h) produção textual (66h)
Eixo de
• Teoria e estética do audiovisual • Edição e planejamento gráfico
Formação
(60h) em jornalismo (66h)
Profissional
• Fundamentos de administração • Jornalismo especializado (66h)
(60h) • Estatística EAD (88h)
• Redação Jornalística I (60h) • Empreendedorismo e inovação
• Redação jornalística II (60h) EAD (88h)
• Redação jornalística III (60h)
• Jornalismo especializado (60h)
Carga horária 540 horas 440 horas
• Linguagem cinematográfica e
audiovisual (60h) • Fotojornalismo (66h)
• Assessoria de imprensa (60h) • Técnicas de reportagem,
• Técnicas de reportagem, entrevista e pesquisa jornalística
entrevista e pesquisa em (66h)
Jornalismo I (60h) • Jornalismo opinativo (66h)
• Webjornalismo (60h) • Técnica de locução, produção
Eixo de
• Fotojornalismo (60h) e apresentação para rádio e tv
Aplicação
• Técnicas de reportagem, (66h)
Processual
entrevista e pesquisa em • Radiojornalismo (66h)
Jornalismo II (60h) • Linguagem audiovisual (66h)
• Webrádio (60h) • Comunicação Organizacional
• Técnicas de reportagem, (66h)
entrevista e pesquisa em • Telejornalismo (66h)
Jornalismo III (60h) • Jornalismo digital (66h)
• Webtv (60h)
Carga horária 540 horas 594 horas
• Oficina básica de audiovisual • Laboratório de redação
(60h) jornalística impresso (66h)
• Oficina básica de assessoria de • Documentário (66h)
imprensa (60h) • Trabalho de conclusão de curso
• Oficina básica de jornal I (66h)
impresso e webjornal (60h) • Estágio supervisionado (110h)
Eixo de Prática
• Oficina básica de rádio • Trabalho de conclusão de curso
Laboratorial
convencional e webradio (60h) II (66h)
• Oficina básica de tv • Laboratório de jornalismo
convencional e webtv (60h) investigativo (66h)
• TCC em Jornalismo (270h) • Estágio supervisionado II (110h)
• Atividades acadêmico-científico- • Atividades complementares
culturais (180h) (140h)
Carga horária 750 horas 690 horas
Carga horária
2.880 horas 3.044 horas
total
Fonte: elaborada pelo autor (2021).

314
Ao avaliar os dois cursos é fácil identificar que o curso de Jorna-
lismo da Ufam ainda não fez a reformulação de sua Matriz Curricular
para atender as novas DNCs da área3 e isso pode ser identificado na
ausência do Estágio Supervisionado obrigatório e na diferença de carga
horária total: são 2.880 horas, quando as atuais DNCs exigem 3.000
horas para os cursos. Ainda assim, ao analisar as matérias que podem
ser categorizadas em cada eixo e a carga horária distribuída no curso,
podemos ver que boa parte da atual matriz pode ser reaproveitada no
futuro Projeto Pedagógico e que a inserção do Estágio Obrigatório com
suas horas mínimas pode fazer com que o curso alcance a nova carga
horária obrigatória. No curso da Fametro a Matriz Curricular já está
atualizada e cumprindo essas obrigações.
Ao compararmos o quantitativo de matérias categorizadas como
pertencentes ao eixo de Fundamentação Humanística, percebemos que
o curso da Ufam oferece quatro disciplinas fixas de áreas de humanas
conexas, sendo uma delas de metodologia, e a carga horária equivalente
a três disciplinas optativas, que foram categorizadas aqui pelo fato de
todas optativas sugeridas na matriz pertencerem à área de humanida-
des, contabilizando 420 horas somente neste eixo.
Na matriz da Fametro identificou-se oito disciplinas obrigatórias
de formação em humanidades, mas cinco delas são oferecidas pela
instituição no formato EAD, contabilizando 88 horas de carga horária
cada, enquanto as disciplinas presenciais contabilizam 66 horas cada.
Ao todos as disciplinas do curso aqui somam 638 horas.
Ambos os cursos oferecem disciplinas introdutórias sobre antro-
pologia, filosofia, psicologia social e metodologia, mas o curso da Fame-
tro tem como diferencial oferecer disciplinas obrigatórias sobre susten-
tabilidade, política no contexto local e direitos humanos.
Quanto às disciplinas do eixo de Fundamentação Específica, con-
seguimos identificar um número bem maior de disciplinas na Matriz
Curricular do curso da Ufam do que no da Fametro: seis disciplinas

3 O atual coordenador do curso explicou que existe uma comissão responsável pelo novo
Projeto Pedagógico e Matriz Curricular, cujos trabalhos foram atrasados pela pandemia de
Covid-19 e a suspensão de atividades presenciais. E, assim como as demais atividades admi-
nistrativas e de ensino, o trabalho da comissão já está sendo retomado de forma remota.

315
dedicadas à fundamentação da área do Jornalismo, somando 330
horas, enquanto a Matriz da Fametro oferece apenas três, somando
198 horas. O dado parece ser incoerente, uma vez que o curso da
Ufam ainda está estruturado como de Comunicação Social e o da
Fametro já é de Jornalismo, mas é preciso levar em conta que para
essa análise específica estamos categorizando cada disciplina apenas
em um eixo, sem levar em conta que nem todas podem ser categori-
zadas apenas em um desses.
Além de três disciplinas de tópicos especiais em Jornalismo, a
matriz da Ufam oferece disciplinas que fundamentam a área do Jorna-
lismo (e das Relações Públicas por se tratar ainda de uma matriz de um
curso de Comunicação Social), do direito aplicado à área e da fotografia.
Por outro lado, a matriz da Fametro oferta a disciplina de Teorias do
Jornalismo, ausente no curso da Federal e central para a fundamentação
teórica da área, e duas disciplinas de tópicos especiais.
Quando se trata das disciplinas categorizadas como pertencentes
ao eixo de Fundamentação Contextual, o curso da Fametro oferece mais
disciplinas que o da Ufam: sete, somando 484 horas, contra cinco, que
somam 300 horas. Em comum, os cursos oferecem disciplinas sobre
sociologia da comunicação e teorias da comunicação.
A matriz da Ufam oferece como diferencial uma disciplina sobre
comunicação e ciência política, uma sobre políticas de comunicação
no Brasil e uma interessante disciplina dedicada ao estudo da comu-
nicação no Amazonas e na Amazônia, enriquecendo o currículo dos
estudantes com questões regionais e locais. O curso da Fametro, por
outro lado, oferece disciplinas sobre a estética e a história da comu-
nicação, além de disciplinas voltadas especificamente para as tecno-
logias da informação, comunicação digital e análise do discurso, que
pertence a uma área conexa.
Ao analisarmos apenas as disciplinas categorizadas no eixo de
Formação Profissional, o curso da Ufam oferece nove, contabilizando
540 horas, ao passo que o da Fametro oferece seis disciplinas, contabi-
lizando 440 horas. O curso da Ufam apresenta como diferencial a dis-
ciplina Jornalismo Especializado além das disciplinas de oficinas para
o exercício de habilidades profissionais. Ambos os cursos oferecem

316
fundamentos em outras áreas de conhecimento que podem acrescentar
na atuação dos futuros profissionais, como fundamentos em adminis-
tração na Ufam e fundamentos em economia, estatística e empreende-
dorismo na Fametro.
Ao chegarmos na categoria equivalente ao eixo de Aplicação Pro-
cessual percebemos que em ambos os cursos esse último eixo foi o que
mais agregou disciplinas e carga horária nas matrizes analisadas. Foram
contabilizadas nove disciplinas de cada curso, com as da Ufam somando
540 horas enquanto as da Fametro contabilizaram 594 horas.
Em comum, ambos os cursos oferecem disciplinas sobre lingua-
gem audiovisual, técnicas de reportagem e comunicação organizacional.
A matriz da Fametro oferece como diferencial Jornalismo Opinativo.
Por fim, ao categorizarmos as disciplinas do eixo de Prática
Laboratorial, identificamos que a Ufam oferece 7 disciplinas, con-
tabilizando 750 horas, ao passo que a matriz da Fametro oferece 8
disciplinas, contabilizando 690 horas. Em ambos os cursos foram
identificados os Trabalhos de Conclusão de Curso e as Atividades
Complementares, além de disciplinas práticas denominadas labora-
tórios ou oficinas. Em ambos os cursos é nesse eixo que se encon-
tra a maior carga horária acumulada, o que demonstra a ênfase das
duas formações em praticar as teorias e técnicas desenvolvidas nos
eixos anteriores. Mesmo sem o estágio supervisionado obrigatório, o
curso da Ufam contabiliza mais horas para as disciplinas desse eixo
de exercício prático.
Ao analisar as disciplinas presentes em ambos os cursos, se identi-
fica a presença tímida de disciplinas que trabalhem com pesquisa cien-
tífica. As únicas disciplinas de metodologia da pesquisa aparecem nos
primeiros períodos do curso e apenas no final, com as disciplinas de
TCC, a pesquisa volta a ser expressa nas matrizes dos cursos. As ativi-
dades de pesquisa podem compor as horas de Atividades Complemen-
tares, presentes em ambos os cursos, mas tornam-se uma opção entre
outras tantas no rol das atividades possíveis de cobrir essas horas. Com
isso, a pesquisa científica, que para Braga (2007) é a cesura existente entre
a teoria e a prática dentro dos cursos de Jornalismo, deixa de estar em
evidência dentro das formações.

317
Uma das características das DCNs de Jornalismo é buscar entre-
laçar teoria e prática, se distanciando do currículo de tronco comum
e tronco específico de disciplinas dos cursos de Comunicação Social,
que aprofundou uma fissura entre o desenvolvimento de uma teoria
do campo jornalístico e a prática jornalística ao longo dos cursos
(MEDITSCH, 2010). Esse esforço pode ser percebido ao contabilizarmos
e compararmos as cargas horárias das disciplinas aqui categorizadas
nos três primeiros eixos, predominantemente teóricos, e nos três últi-
mos, mais voltados à prática.
No caso do curso da Ufam, que ainda está estruturado como uma
habilitação de Comunicação Social, as disciplinas dos três primeiros
eixos somam 1.050 horas, o equivalente a cerca de 36% da carga horária
do curso, enquanto as dos três últimos eixos somam 1.830 horas, cerca
de 63% da carga horária. Já no curso da Fametro, que atende as DCNs
dos cursos de Jornalismo, os três primeiros eixos somam 1.320 horas,
cerca de 43% do curso total, e os três últimos 1.724 horas, cerca de 56%
do total. Nota-se assim uma carga horária bem mais equilibrada entre
os eixos predominantemente teóricos e práticos.
A questão é bem mais complexa, entretanto. Tanto a distribuição
das disciplinas entre os eixos, sendo aqui classificadas como perten-
centes apenas a um, como as características que as DCNs atribuem a
eles apresentam bem mais porosidade do que simples categorizações
apresentadas aqui, úteis para esse exercício de reflexão.

Considerações finais

A presente análise comparativa entre a forma com que as Matri-


zes Curriculares dos cursos de Jornalismo da Ufam e da Fametro traba-
lham disciplinas teóricas e práticas em suas grades curriculares indica
que ambos os cursos objetivam formar profissionais com uma bagagem
teórica expressiva sobre a sociedade brasileiras, seus aspectos sociais e
políticos, além de conhecimentos sobre áreas conexas e pertinentes ao
exercício profissional.

318
Ainda assim, grande parte das cargas horárias são disponibilizadas
para disciplinas práticas nos dois cursos. No curso da Ufam essa relação
é mais desigual do que no da Fametro, e uma explicação possível é que o
primeiro ainda se estrutura como um curso de Comunicação Social. Ainda
assim, o curso da Ufam, como está hoje, apresenta disciplinas que contem-
plam os seis Eixos determinados pela legislação e apresentam uma boa
quantidade de disciplinas que atendem à fundamentação específica da área.
Com isso, o futuro Projeto Pedagógico e a Matriz Curricular podem balan-
cear mais a carga horária distribuída entre disciplinas práticas e teóricas.
O curso da Fametro, que já atende às DCNs da área, apresenta uma
gama de disciplinas interessantes, focando em temáticas sobre internet,
direitos humanos, sustentabilidade e empreendedorismo. Essa gama de
assuntos enriquece o currículo e a visão de mundo dos estudantes, tra-
balhando questões emergentes e disruptivas. O equilíbrio identificado
entre disciplinas teóricas e práticas é um mérito da Matriz Curricular,
que pode também incrementar disciplinas voltadas para o desenvolvi-
mento das teorias específicas da área, para além de uma única disciplina
de Teorias do Jornalismo.
Essa mirada sobre esses dois cursos, partindo de uma análise das
Matrizes Curriculares, também despertou questões sobre os estudos
dos currículos de Jornalismo. Identificou-se que uma mesma disci-
plina pode fazer parte de dois ou mais eixos previstos nas DCNs. Para
a reflexão proposta neste capítulo, a categorização em apenas um dos
eixos é interessante, mas arbitrária quando se pensa além dele.
Por fim, também foi identificado que ambos os cursos não apresen-
tam muitas disciplinas que se dedicam necessariamente à pesquisa cien-
tífica. Uma maior presença da produção científica e acadêmica nesses
currículos, com disciplinas dedicadas à pesquisa, pode conectar os sabe-
res teóricos e práticos dessas formações e aprofundar a compreensão
da área. Apenas com essa dedicação de professores e estudantes o Jor-
nalismo pode se consolidar como área acadêmica e reverter o distan-
ciamento entre teoria e prática na área. E tudo isso pode começar em
currículos que privilegiem essa aproximação.

319
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321
CAPÍTULO 14

Comunicação e Educação: sistemas


sociais, irritações e provocações
Ricardo de Alcântara Dantas1

Introdução

Como a Comunicação, enquanto campo de conhecimento, mate-


rializa-se em uma sala de aula do ensino básico?2. Seres comunicantes,
como todos os demais, os alunos e professores operam sua interação
numa relação essencialmente comunicativa. As habilidades comunica-
cionais, as trocas de conceitos e dados, a construção do conhecimento,
todos são elementos chave em uma sala de aula e construídos por uma
operação comunicativa. Para além da natureza imanente da relação
educação/comunicação, buscaremos observar qual(is) caminho(s) a
Comunicação percorre, enquanto campo do conhecimento, para alcan-
çar a sala de aula em forma de conteúdo, ou qualquer outra forma – se
é que ela alcança.
Através de uma perspectiva sistêmica das relações entre o campo
científico da Comunicação e o sistema da Educação, na forma do sis-
tema educacional brasileiro, buscaremos observar brevemente como
a Comunicação é inscrita no programa educacional do ensino básico
do país, em algumas leis, diretrizes e orientações gerais do sistema
educacional, para finalmente se tornar conteúdo programático em
sala de aula.
1 Jornalista, mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade de Brasília (UnB). Funcionário e assessor de imprensa da Caixa Econômica
Federal. E-mail: ricodantas@gmail.com.
2 No Brasil: Ensino Infantil; Ensino Fundamental; Ensino Médio. Compreendem os primeiros
17 anos de uma criança.

322
Não temos por objetivo traçar um histórico de como essa inscrição
da Comunicação enquanto saber se deu – ou não se deu – no sistema
educacional brasileiro. Ao contrário, a partir do que está posto (em algu-
mas das normativas do estado brasileiro para a Educação), buscaremos
observar, sem pretensões estatísticas ou quantitativas, como essa inscri-
ção opera em algumas práticas. Para isso reunimos os depoimentos de
oito docentes que são ou foram professores da faixa escolar do ensino
básico em Brasília (DF) com a finalidade de conhecer: 1) se na formação
(licenciatura ou bacharelado) dos profissionais houve algum conteúdo
ministrado especificamente sobre Comunicação; 2) se nessa formação,
além de discussões sobre mídias, houve conteúdo sobre a Comunicação
enquanto campo de conhecimento científico; 3) qual a opinião dos pro-
fissionais com relação a necessidade do campo científico Comunicação
em suas formações; 4) como cada um dos oito profissionais formulou
sua abordagem sobre o tema comunicação para a sala de aula; 5) se os
profissionais se sentem preparados para trabalhar esse tema; 6) se esse
preparo, ou a falta dele, foi resolvido na prática com estudos e práticas
de iniciativas pessoais ou através da formação científica.
Com essas duas perspectivas: a) o que está posto de forma progra-
mática em alguns documentos do sistema educacional brasileiro sobre
a Comunicação enquanto saber para o ensino básico; b) o depoimento
de oito docentes do ensino básico sobre como abordam a Comunicação
enquanto saber na sala de aula; buscaremos observar nosso objetivo ini-
cial: como a Comunicação, nestas perspectivas limitadas da pesquisa,
alcança a sala de aula enquanto tema. Sem a pretensão de esgotar o
assunto ou mesmo alcançar alguma explicação conceitual ou entrar em
debates epistemológicos, nossa intenção é descritiva, com o objetivo de
perceber a operação da interação de dois sistemas sociais, a Educação
e a Comunicação (enquanto campo de conhecimento científico), numa
perspectiva das teorias de sistemas do sociólogo Niklas Luhmann (2016).
Este, portanto, é um ensaio interpretativo e teórico.
Algumas observações nos colocaram neste caminho: a partir
da disciplina Pedagogia em Comunicação, do programa de Pós-Gra-
duação em Comunicação da Universidade de Brasília, foram trava-
das discussões sobre a importância da comunicação na obra de Paulo

323
Freire, o que trouxe a este autor o insight sobre a interface entre Educa-
ção e Comunicação enquanto sistemas que se relacionam de maneira
imanente; ao observar sua filha, aos cinco anos de idade, em uma sala
de aula virtual observando conteúdos sobre mídias, o autor deste texto
observou múltiplas camadas de interfaces entre Educação e Comuni-
cação enquanto saberes e práticas, inclusive, tecnológicas; interessado
no assunto e projetando este ensaio, descortinarmos de nossa igno-
rância, a partir dessas percepções nas salas de aula, que a irritação,
utilizando um termo luhmanniano (2016), entre os sistemas Educação
(mais precisamente o subsistema Pedagogia) e o sistema Comuni-
cação avançou até a neologia “educomunicação”, e mais do que isso,
que sob este termo tem-se buscado constituir-se e consolidar-se um
campo do saber e de prática científica; por fim, conhecemos a pro-
posta de extensão Observatório Internacional de Educação para Mídia,
da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, que tem
como um dos objetivos a formação de docentes das áreas de ciências
sociais e humanidades de escolas públicas do Distrito Federal para
educação com a mídia; estes são alguns dos fatores que nos motivaram
para este ensaio.
A partir desse amálgama perceptivo, vamos construir este texto
primeiramente situando um elo (ainda que frágil) entre Paulo Freire e
Niklas Luhmann: o construtivismo e as teorias de como opera a comu-
nicação. Nessa primeira seção discorreremos brevemente também sobre
a abordagem sistêmica da Educação, a partir de Luhmann (1996), bem
como iremos trazer alguns conceitos luhmannianos elucidativos das
observações sistêmicas. Nesta seção abordaremos também a concepção
do ato comunicativo em Paulo Freire (2013). Em seguida, apresentare-
mos sucintamente algumas Leis (e projetos de leis) e diretrizes do sis-
tema educacional brasileiro, buscando observar como (e se) abordam
a Comunicação enquanto campo do saber, com ênfase no documento
“Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica”, do Minis-
tério da Educação brasileiro. Mais adiante traremos os resultados das
entrevistas (a partir de seis perguntas fechadas) com os docentes e suas
observações de sala de aula para observar e descrever a operação prática
do programa do sistema Educação no que diz respeito à Comunicação

324
para estes docentes. Esperamos que estes dados e a observação sistêmica
da Educação e da Comunicação nos permitirão compreender um pouco
da interação entre estes sistemas.
Cientes do tamanho do tema para o espaço de um breve ensaio,
destacamos, porém, tratar-se de um trabalho inicial, com possíveis
desdobramentos de pesquisa, uma vez que, dentre outras, resta uma
lacuna imprescindível para a consolidação desta pesquisa: como os
programas educacionais da Comunicação, enquanto saber formativo
e científico, discutem e observam o papel da Comunicação na prática
docente do ensino básico? Como, de fato, a Comunicação enquanto
campo, se relaciona com as escolas, docentes e alunos, bem como os
espaços de debates do sistema Educação, a partir da Comunicação?
Será a extensão o caminho principal desta relação? De quais exten-
sões estamos falando, quantitativa e qualitativamente? Qual o papel
do tema emergente “Educomunicação” nessa perspectiva das relações
entre Educação e Comunicação?
Optamos por começar por algumas observações do sistema da
Educação. Com fôlego e mais espaços como este esperamos poder vol-
tar nessas questões.

Construtivismo: um ponto de encontro


entre Niklas Luhmann e Paulo Freire

Para Castañon, o construtivismo surge da concepção kantiana de


que “não temos acesso ao que este mundo é em si mesmo”:

Qualquer versão de construtivismo só pode ser adequadamente


compreendida a partir da distinção kantiana entre número e fenô-
meno. Para Kant, o conhecimento sensível não nos revela as coisas
como são em si mesmas (números), e sim, como aparecem para o
sujeito. Por isso nos dão acesso a fenômenos. Conhecemos o apa-
recer das coisas para nossa consciência, não a essência daquilo que
acreditamos estar fora de nós: ‘fenômeno’, ordinariamente, significa
‘aparição’ (CASTAÑON, 2015, p. 214).

325
É neste ponto que conseguimos estabelecer um elo entre o pensa-
mento de Freire e Luhmann no que diz respeito à operação comunica-
tiva. Esta, no caso, não se dá por transferência, por ato de “depósito” de
uma informação ou ensinamento no outro. A operação é muito mais
um processo construtivo em que a efetividade comunicativa estará na
ação ativa de autoconstrução entre as partes. É assim que se dá o apren-
dizado em Freire e é assim que se rompe a improbabilidade da comuni-
cação em Luhmann.
Para o sociólogo alemão, reside na operação autopoiética (MATU-
RANA & VARELA, 2001) do sistema a sua capacidade de transformação,
sempre dentro dos limites do próprio sistema3. Em Freire (2013), o apren-
dizado é um construir aprendizados, não uma recepção passiva do que
vem do outro4: o professor instiga, provoca o aluno, e este constrói em
suas próprias operações o aprendizado, em relação crítica com este pro-
fessor e com o mundo que o cerca.
Na Sociologia de Luhmann, desaparecem (ou não importam) a
questão sujeito e objeto, o que o enquadraria epistemologicamente
numa vertente do construtivismo, partindo da cibernética de segunda
ordem de Heinz Von Foerster (2003), que se denomina de Construti-
vismo Radical. Já na Pedagogia de Freire, a concepção de sujeito e objeto
o aproxima mais de Piaget e Vygotsky (FEITOSA, 2016), apesar de Cas-
tañon (2015, p. 210) diferenciar o construtivismo de Piaget (construtivismo
piagetino) ao de Vygotsky (socioconstrutivismo).
O ponto de intersecção entre Luhmann e Freire que assinalamos
independe das discussões filosóficas e conceituais do sistema científico
acerca da posição do construtivismo em que se encontram ou não (e
a própria concepção do construtivismo enquanto teoria do conheci-
mento). Nos escapa, ainda, os próprios problemas epistemológicos do

3 Conceito originalmente desenvolvido pelos pesquisadores da neurobiologia Humberto Ma-


turana e Francisco Varela (2001). Na biologia, os seres vivos seriam sistemas autopoiéticos
(autofazer-se, autoconstrução, autoengendramento). Sociologicamente, a autopoiese é o
processo de autoconstrução dos sistemas sociais pela comunicação, elemento este que nos
permite observar e compreender os sistemas e as diferenciações sistêmicas.
4 “Por isso mesmo é que, no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele
que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso
mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações exis-
tenciais concretas” (FREIRE, 2013, p. 21).

326
construtivismo, as classificações, as relações entre idealismo e realismo,
entre outras. O que destacamos é a ideia, nos dois autores citados, de
que a comunicação não é uma operação de transferência.
A impossibilidade de transferência direta da informação em Luh-
mann (2016) ocorre porque os sistemas são fechados, não recebem ou
incorporam formas nem conteúdos em operações de input e output,
mas, por outro lado, processam dentro de seu próprio sistema fechado e
“irritado” as comunicações que o ambiente complexo (outros sistemas)
causaram, numa operação que pode ser transformadora ao reduzir a
complexidade do ambiente e, consequentemente, aumentando a com-
plexidade do próprio sistema nessa operação. Contudo, esse processo
visa a manutenção da identidade, e não a mudança.
Existem pontos fundamentais que talvez tornem a teoria de siste-
mas de Luhmann e o pensamento de Freire irreconciliáveis. O primeiro
deles é o humanismo. Para Freire, o ato educador/científico deve ser
dirigido à transformação, ao desenvolvimento, à mudança, à libertação
do homem. Este é o objetivo onde principia e encerra o fazer científico e
o estar ativo no mundo enquanto educador. Freire centraliza no homem
o seu esforço científico-teórico-prático.

Comecemos por afirmar que somente o homem, como um ser que


trabalha, que tem um pensamento-linguagem, que atua e é capaz de
refletir sobre si mesmo e sobre a sua própria atividade, que dele se
separa, somente ele, ao alcançar tais níveis, se fez um ser da práxis.
Somente ele vem sendo um ser de relações num mundo de relações.
Sua presença num tal mundo, presença que é um estar com, com-
preende um permanente defrontar-se com ele (FREIRE, 2013, p. 38)

Luhmann (2016), em sua teoria de sistemas, por sua vez, não buscava
transformação do mundo. Além de ser uma impossibilidade no contexto
de sua própria teoria, uma vez que os sistemas se autorregulam e se trans-
formam em suas próprias operações, para ele, o papel do sociólogo é des-
crever o mundo, não transformá-lo. O que Luhmann buscou transformar
foi a própria Sociologia. Por consequência, terminou por, em certa medida,
transformar diversas áreas do saber. Esse é um choque com Freire:

327
O fundamental, porém, é que esta reflexão, de caráter teórico, não se
degenere nos verbalismos vazios nem, por outro lado, na mera ex-
plicação da realidade que devesse permanecer intocada. Em outras
palavras, reflexão cuja explicação do mundo devesse significar a sua
aceitação, transformando, desta forma, o conhecimento do mundo
em instrumento para a adaptação do homem a ele (FREIRE, 2013, p. 21).

Outro ponto fundamental é que para Luhmann (1996) a educação não


tem a função de melhorar o homem. Seu processo é próprio do sistema
Educação. Para Barone (2013), “Em Luhmann, os homens, e os seus desejos,
não ocupam a centralidade da sociedade, mas sim, o seu entorno, o que
justifica dizer que a ação social é resultado sistêmico de comunicações ou
ligações, e não propriamente produto dos homens”. Não seriam apenas os
homens os únicos capazes de perceber a realidade, aliás, para Luhmann, o
homem só percebe a realidade porque está fora dela (BARONE, 2013)5.
O que poderíamos afirmar é que a própria observação do mundo
é um ato transformador em si mesmo, o sistema observação resulta em
variantes culturais inúmeras e frutíferas, com estreita relação ao estar
no mundo. Luhmann (2016) considera o homem um elemento fora da
sociedade, com seu sistema de consciência, por sua vez, acoplado ao
sistema mundo, ou seja, o homem é o ambiente da sociedade e não
seu centro. Isso não é necessariamente uma afirmação anti-humanista
(MÉLICH, 1996)6. Ela é, na verdade, uma descrição que traz outro ele-
mento ao centro da tessitura social: a comunicação. Essa descrição, por
mais que não queira seu autor transformar o mundo, é por si só trans-
formadora. Com desdobramentos ainda em curso, com alcances poten-
ciais ainda por se fazer, e com efeitos nos próprios sistemas educativos,
5 “Para Luhmann não há atores/sujeitos no sentido da teoria da ação, como em Weber ou Haber-
mas, pois, segundo ele, os sistemas compreendem os sistemas, não sendo o sistema psíquico, o
único capaz de compreender o que se denomina realidade. A realidade para ele só existe porque
estamos fora dela (realidade como entropia máxima). Se estivéssemos imersos na realidade,
não seríamos capazes de detectá-la, uma vez que os sistemas estão constituídos como forma de
reduzir essa complexidade. Assim, os homens deixam de ter preponderância ativa nessa teoria
basicamente anti-humanista, mas que permite representar a sociedade enquanto teoria da so-
ciedade e não como uma teoria das relações sociais” (BARONE, 2013, p. 7).
6 “El antihumanismo de Luhmann resulta, a la postre, un nuevo humanismo, un humanismo
renovado. No se ataca al ser humano, sino que se le sitúa en su justo lugar.” MÈLICH, J. In:
LUHMANN, N. Teoria de la Sociedad y Pedagogía. Barcelona: Paidós, 1996, p. 23.

328
dentre tantos outros, a teoria luhmanniana termina por irritar/provocar
e, quem sabe, em sua medida, transformar, ou tornar menos complexo
(e, paradoxalmente, mais complexo ao mesmo tempo) algo do mundo.
O que aqui propomos é menos a difícil discussão que aprofunde as
intersecções e as incompatibilidades de duas teorias, no mínimo, díspa-
res, por ser um espaço curto e por que temos um outro objetivo, qual
seja, falar sobre as interfaces do sistema Educação e do sistema científico
do campo da Comunicação, com efeitos sobre a abordagem do tema da
comunicação no ensino básico. Não seria impossível supor, no entanto,
que dois pensadores de caráter prolífico e interessados como Freire e
Luhmann não pudessem conversar sobre suas teorias, espantados e
ingênuos um com relação ao outro – posição em que me encontro em
relação aos dois –, de modo que ao encontrarem este ponto fundamen-
tal em suas duas teorias, a comunicação, não pudessem estabelecer um
interessante (improvável, mas interessante) diálogo. Não pretendemos
opor teses em uma dialética hegeliana, apenas expor um pouco das duas
em um encontro resultante de um outro encontro, uma disciplina de
pós-graduação que se chama Pedagogia da Comunicação.
Com dois autores que atravessam esses dois subsistemas do sistema
científico, a Pedagogia e a Comunicação, estabelecemos um diálogo em
que buscamos elucidar alguns aspectos de como a comunicação, enquanto
tema, permeia o pensamento dos dois teóricos assim como é o elemento
de nossa própria observação empírica desta pesquisa a que nos propomos.

O sistema Educação e o subsistema


Ensino Básico brasileiro

Crianças, com média de cinco anos de idade, em uma escola par-


ticular de Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal, no
mês de abril de 2021, escutaram a história do fundador da escola. A
história foi narrada pela professora obedecendo minimamente algumas
estruturas de uma notícia televisiva – lead, pirâmide invertida e frases
curtas e objetivas, ainda que estes elementos não tenham sido mencio-
nados ou mesmo sejam conscientes para a docente – que marcaram

329
enfaticamente uma diferença para quando a professora conta histó-
rias literárias, folclóricas, míticas. A professora enunciava sua narra-
tiva como apresentadora de um telejornal, mimetizando a entonação
característica daqueles profissionais. Após ouvir a narrativa, os alunos
deveriam transformar trechos da história em uma “imagem noticiosa”,
através de desenhos elaborados pelos próprios alunos. Estes deveriam
escolher o que desenhar, contanto que os desenhos remetessem a algum
trecho da história com elementos imagéticos desta.
Em uma sequência de três aulas, outros elementos do universo jor-
nalístico, nas mídias tradicionais e nos meios digitais, foram abordados
em sala de aula, sempre com exercícios que remetiam às técnicas do
jornalismo. As crianças brincaram de ser repórteres, fotógrafos, cartu-
nistas, entrevistadores e entrevistados. Algumas tarefas deveriam ser
feitas conjuntamente com os pais, que também se tornavam jornalistas
momentâneos, entrevistados ou audiência. Diante de abordagens práti-
cas de estruturas midiáticas pela professora, eram notáveis dois elemen-
tos intencionais: o ensino da linguagem midiática e o ensino das mídias
como elementos que forjam cultura.
O autor deste ensaio e sua filha eram alguns dos interlocutores
dessas ações comunicativas/educativas. Ao que, então, surgiram algu-
mas perguntas a este pesquisador: como a professora se preparou para
ministrar aquele conteúdo? Este conteúdo é uma diretriz para o ensino
básico? Onde está inscrito? De que forma o campo da Comunicação,
enquanto sistema científico, participa dessa ação claramente imersa no
ambiente do sistema Educação?
As questões se perfazem por algumas reflexões: a noção de que
a Comunicação deveria tomar parte deste ato comunicativo para além
da mimetização e problematização dos veículos de comunicação de
massa e suas técnicas produtivas. Como se ensina artes plásticas, his-
tória e matemática na esfera destes saberes e dos debates destes campos,
a Comunicação poderia/deveria ser ensinada a partir de sua própria
esfera científica. De fato, ela o é, não haveria outra maneira, uma vez que
o sistema científico Comunicação opera suas comunicações de forma
a refletir em como se observa o fazer jornalístico (e também o fazer
publicitário) por parte de seu ambiente (as pessoas e suas consciências,

330
a própria Educação, a Pedagogia, o sistema educacional), mesmo que de
forma indireta por muitas vezes.
Contudo, ousamos afirmar que a relação entre Comunicação e Edu-
cação é predominantemente “passiva” na perspectiva da Comunicação,
ao menos em algum ponto; e essa passividade diz muito mais respeito
à esfera do sistema Comunicação enquanto campo do que a do sistema
Educação. Este caminha seus próprios passos em sua clausura operacio-
nal, relacionando-se com os diversos saberes científicos e seus códigos
de verdadeiro/não verdadeiro, operando seu próprio código relacionado
ao programa de aprendizado, formação e carreira, com notas boas/notas
ruins (BARONE, 2013)7, positivo/negativo, relacionando-se ainda às dire-
trizes do Estado, por sua vez atravessado pelos sistemas político, legisla-
tivo, jurídico e econômico. Todo esse ambiente complexo para o sistema
Educação é processado pelas irritações que estes sistemas do ambiente o
provocam, e numa operação de redução de complexidade por parte do
sistema Educação, as comunicações geradas terminam, num processo
autopoiético, por aumentar a complexidade deste sistema.

A princípio, Luhmann classifica três tipos de sistemas: biológicos,


psíquicos e sociais. Os modos de operação e reprodução de cada um
deles implicam para o primeiro, a vida, para o segundo, a consciên-
cia e para o terceiro, a comunicação. Para Luhmann (idem), é um
equívoco considerável imaginar que apenas os sistemas psíquicos
podem compreender o mundo, o que significa dizer que os siste-
mas sociais se compreendem a si próprios. No que diz respeito ao
sistema educacional, este teria início apenas quando, numa lógica
de comunicação, o professor buscasse entender se foi compreendi-
do. Tal postura repõe a ideia de que os enunciados que proferiu,
embora simulassem fator de racionalidade pessoal no domínio da
compreensão, inscreveram-se numa perspectiva autopoiética do
sistema (BARONE, 2013, p. 9).

7 Fernando Barone (2013) propõe a seguinte tipificação do sistema educacional: Sistema Edu-
cacional (e os fatores centrais de redução da complexidade) – Código binário: Notas boas/
notas ruins – Programação: Programas de ensino e aprendizagem – Modo: Obrigações esco-
lares, expectativas de carreira – Função: Formação, formação continuada e escolha de carrei-
ra (BARONE, F. Ponto-e-vírgula, 2013, n. 12, p. 5-32. p. 11).

331
A discussão da relação entre os sistemas científicos e o sistema
educacional atravessa sistemas jurídicos, políticos e legislativos, como a
entrada e retirada de disciplinas do currículo comum do ensino básico
brasileiro8, a competência para ministrar determinada cátedra9 ou arti-
cular saúde pública e educação10.
Com intenção de desafogar litígios no sistema jurídico, com a
aposta de que a promoção do ensino do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (ECA) poderia ter esse efeito, Gimenez e Veronese (2018) anali-
saram, numa perspectiva sistêmica, a prática do ensino do ECA em uma
escola do interior do estado de São Paulo, de forma a verificar como
a “irritação” do sistema jurídico no sistema educacional poderia, num
processo autopoiético, gerar comunicações no sistema educacional de
modo a produzir efeitos de sentido nos alunos, que por sua vez podem,
no decurso de sua trajetória, se envolver em menos litígios, desafogando
o complexo e sobrecarregado sistema judiciário.
Estes são alguns exemplos de como o sistema Educação, inse-
rido em um ambiente complexo, se relaciona com outros sistemas.
O sistema do campo científico da Comunicação, portanto, também
é ambiente do sistema educacional (o contrário também vale). Para
identificar algumas irritações na relação entre os dois, no sentido
que parte do sistema Comunicação em direção ao sistema Educação,
decidimos verificar como o tema da comunicação (o termo exato e
também os termos jornalismo, mídia, redes sociais e publicidade)
surgem no documento basilar para educação básica brasileira: Dire-
trizes Curriculares Nacionais para Educação Básica, do Ministério
da Educação.

8 Três em cada dez projetos de lei em trâmite na Câmara visam alterar a base curricular da edu-
cação básica, com inclusão de disciplinas. Matéria da Folha de S. Paulo a partir de estudo do
Observatório do Legislativo Brasileiro. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educa-
cao/2021/05/projetos-no-congresso-buscam-aumentar-numero-de-disciplinas-nas-escolas.
shtml?origin=folha. Acesso em: 20 mai. 2021.
9 Projeto de alteração em Lei proposta pelo deputado federal Chico Alencar, tornando exclu-
siva ao licenciado em Sociologia, Sociologia e Política e Ciências Sociais, a possibilidade de
ministrar a cátedra de Sociologia no ensino básico. Disponível em: https://www.camara.leg.
br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=877335. Acesso em: 20 mai. 2021.
10 Projeto de lei do deputado federal Marcelo Belinati. Disponível em: https://www.camara.
leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1424289&filename=PL+4028/2015.
Acesso em: 20 mai. 2021.

332
O documento tem 546 páginas divididas em seções voltadas para os
ensinos infantil, fundamental e médio, além de seções com diretrizes para
educação de jovens adultos, educação no campo, educação profissional,
educação indígena, educação quilombola, educação para cultura afro-
-brasileira e africana, educação ambiental e educação em direitos huma-
nos – dentre outros detalhamentos. O termo “comunicação” aparece 88
vezes (Tabela 1). Levantamos cada uma dessas utilizações, apenas descar-
tando quando era título de textos em referências bibliográficas.

Tabela 1: Comunicação nas Diretrizes Curriculares Nacionais


de Educação Básica
QUANTIDADE
TERMO “COMUNICAÇÃO” MENCIONADO COMO:
DE MENÇÕES:
Ferramenta tecnológica (suporte/recurso para práticas educativas) 39
Sistema de difusão (meios de comunicação: TV, rádio, jornal) 12
Elemento de ligação (“comunicação entre os diferentes saberes”) 8
Linguagem (libras, braile, por exemplo) 8
Cultura (expressões como música, teatro, dança, língua, sinais) 5
Interação (1) (entre alunos e professores) 4
Interação (2) (entre escolas ou entre entes do poder público) 3
Interação (3) (entre escola e famílias) 2
Profissão (“(...) profissões que não geram produtos industriais, tais
2
como artes, saúde, comunicação, educação e lazer.”
Educomunicação 2

Fonte: Elaborada pelo autor (2021).

Verificamos que predomina o uso do termo “comunicação” aliado


à tecnologia da informação. Nesse caso, a comunicação é mero suporte
tecnológico para sala de aula, escolas, docentes e alunos. Em seguida, na
segunda abordagem com mais menções, a comunicação é equivalente
a meio de difusão (meios de comunicação de massa), e ora surge como
elemento a ser observado e criticado (por exemplo: volume de informa-
ção não é conhecimento; cuidados com o consumismo; cuidados com
preconceitos) ora, numa perspectiva freireana de educar com a mídia,
como instrumento para ser utilizado no processo de aprendizagem.
Nessa abordagem, na seção de Educação Ambiental, surge também o
termo “educomunicação”, por duas vezes.

333
Vale ressaltar que o termo “jornalismo” não aparece nenhuma
vez no documento, “publicidade” aparece três vezes, mas no sentido
constitucional de dar publicidade aos atos públicos, e “mídia” aparece
24 vezes, quase sempre associada a meios de comunicação ou recursos
para aulas; o termo “redes sociais”, no sentido de mídias sociais, não
aparece nenhuma vez, ainda que o documento seja datado de 2013.
Se considerarmos que os termos “matemática” e “português”
surgem no documento 30 vezes cada um, “pedagogia” surge 43 vezes
e “filosofia” 15 vezes, percebemos que a palavra “comunicação” e seu
uso corrente e polissêmico avança muito além do sentido de campo de
conhecimento. Outra palavra nessa perspectiva, “história”, surge 219
vezes no documento.
Com isso queremos demonstrar que não é a quantidade de cita-
ções que nos interessa, mas sim o que algumas dessas nos demonstram,
em documento balizador do ensino básico brasileiro, sobre o campo
do conhecimento Comunicação em relação com o sistema Educação. O
primeiro deles é que esta definitivamente não é considerada, no docu-
mento, uma disciplina. Nossa interpretação não observa a comunicação
como um saber nas Diretrizes, mas como um mecanismo, uma ferra-
menta ou um elemento para discussão. Outra conclusão a que chega-
mos é que se trata de um termo, em vários de seus sentidos, presente e
importante para o documento e para o que se considera ensino/apren-
dizado na escola básica.
Destacamos brevemente alguns outros documentos do sistema
educacional brasileiro. No documento “Política Nacional de Alfabeti-
zação”, do Ministério da Educação, publicado em 2019, e com relação
direta com o ensino básico brasileiro, a palavra comunicação não é men-
cionada. Ao todo, 60 milhões de brasileiros, da população com mais de
25 anos, não tem a educação básica11, mas a política brasileira para reso-
lução deste problema não menciona a comunicação como ferramenta,
como saber nem como recurso tecnológico para implementação desta
política pública. Diferentemente das diretrizes para o ensino básico,
aqui a comunicação não tem efeitos de sentido no sistema educacional.

11 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/images/11.07.2019_Apresentacao-ed-basica.pdf. Acesso


em: 20 mai. 2021.

334
Através da polêmica MP 74612, tornada norma jurídica em 2016,
dentre outros pontos que geraram amplos debates, as disciplinas Filoso-
fia, Sociologia, Artes e Educação Física não são mais obrigatórias para
o ensino básico. O documento não menciona a comunicação, porém
Bonfim; et al. (2018), sob uma análise partindo do campo da “Educomu-
nicação”, destacam que a ausência de tais disciplinas enfraquece as dis-
cussões sobre a construção social da realidade, ponto em que a comu-
nicação é tema fundamental independente da disciplina que a aborde.
Messias (2018) remete à “Educomunicação” como um conceito
“concebido mediante o cruzamento entre parâmetros já advindos dos
anos 1960 e 1970, na América Latina, nos postulados de Mario Kaplún,
Juan Dias Bordenave, Paulo Freire, Valerio Fuenzalida, Luis Ramiro
Beltrán, entre outros (...)”.

Enquanto objeto de estudo latino-americano, essa área do conheci-


mento é apresentada à comunidade científica em paper publicado
nos anais do XXII Congresso Nacional da Intercom, realizado na
Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, em 1999. O trabalho,
intitulado “Educomunicação: ou a emergência do campo da inter-re-
lação comunicação/educação” (SOARES; MACHADO, 1999), foi exposto,
presencialmente, por Eliany Salgadeira Machado, então pesquisadora
vinculada ao Núcleo de Comunicação e Educação da USP, no Grupo
de Pesquisa Comunicação e Educação (MESSIAS, 2018, p. 20).

Desde então a Educomunicação cria sua própria epistemologia


e forma, a partir do ano de 2010, bacharéis e licenciados em Educo-
municação nas universidades federais de Campina Grande (UFCG) e
São Paulo (USP). Dentre outras questões pertinentes a este campo que
constrói sua trajetória científica, nos interessa perceber que as tensões
dos sistemas Educação e Comunicação estão presentes e “visíveis” (ou
ausentes e invisíveis) não apenas em documentos e diretrizes para o
ensino básico, mas também no sistema científico. Romancini (2018) des-
taca que em toda região ibero-americana, grande parte dos países tem

12 Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/


126992. Acesso em: 21 mai. 2021.

335
linhas de pesquisa em suas universidades que reúnem discussões entre
Comunicação e Educação.
As interfaces entre Comunicação e Educação, portanto, à luz das
operações sistêmicas em Luhmann (2016), nos revelam que as múltiplas
irritações entre os sistemas em um ambiente complexo, engendra sub-
sistemas e processos comunicativos que intensificam a complexidade
dos dois sistemas, com repercussões nos sistemas políticos, jurídico e
científico, para citar alguns.
Adiante analisamos brevemente, de modo provisório e ainda bus-
cando um caminhar investigativo para estas questões postas até aqui, os
relatos de oito docentes com atuação no ensino básico em Brasília (DF).

Educar com a mídia: de paradigma freiriano


a prática comum

Em diálogo com Sérgio Guimarães, Paulo Freire identifica no poder


um elemento primordial para se pensar os meios de comunicação:

(...) é impossível pensar o problema dos meios sem pensar a ques-


tão do poder. O que vale dizer: os meios de comunicação não são
bons nem ruins em si mesmos. Servindo-se de técnicas, eles são o
resultado do avanço da tecnologia, são expressões da criatividade
humana, da ciência desenvolvida pelo ser humano. O problema é
perguntar a serviço “do quê” e a serviço “de quem” os meios de co-
municação se acham. E essa é uma questão que tem a ver com o
poder e é política, portanto (FREIRE; GUIMARÃES, 2013, p. 22).

Essa perspectiva é coerente com o construtivismo libertador freiriano,


em que o aprendizado é o caminho para ação/libertação: “A percepção
parcializada da realidade rouba ao homem a possibilidade de uma ação
autêntica sobre ela” (FREIRE, 2013, p. 30). O sistema educacional, portanto, em
relação à preocupação com os meios de difusão de informações (uma das
facetas do saber comunicacional), deveria, em Freire, “abraçar” os meios de
comunicação como instrumentos de auxílio na aprendizagem:

336
Para mim, é a demanda de uma escola que estivesse à altura das
novas exigências sociais, históricas que a gente experimenta. Uma
escola que não tivesse, inclusive, medo nenhum de dialogar com os
chamados meios de comunicação. Uma escola sem medo de convi-
ver com eles, chegando mesmo até, risonhamente, a dizer: “Vem cá,
televisão, me ajuda! Me ajuda a ensinar, me ajuda a aprender!”, não?
(FREIRE; GUIMARÃES, 2013, p. 32).

Para o professor de biologia e ciências, P.I.P., 39 anos, que atuou


13 anos na rede pública de ensino do Distrito Federal, em escolas de
Taguatinga e Ceilândia, sempre no ensino básico, é justamente a pers-
pectiva de mediar o consumo da mídia (relações de poder) e utilizar-se
dela para educar, o caminho que traçou em contato com a Comunicação
em sala de aula:

Abordei, algumas vezes, a forma como as informações chegam para


as pessoas. Somos bombardeados por informação o tempo inteiro,
especialmente na internet, e é necessário realizar a filtragem do que
recebemos, a fim de se estabelecer o que pode ser ou não uma fonte
de notícia confiável.

A professora R.S.C.M., 40 anos, pedagoga e professora do ensino


infantil em uma escola particular no Distrito Federal, tem uma perspec-
tiva semelhante:

Na escola, trabalho os meios de comunicação. As crianças apren-


dem através de projetos que ficam nos meios de comunicação anti-
gos e os de hoje em dia, a importância dos meios para nos comuni-
carmos e sobretudo, onde e como podemos utilizá-los.

A perspectiva freireana de utilizar as mídias e meios de comuni-


cação como instrumentos de ensino é amplamente difundida e aceita
pelos docentes entrevistados. Avançamos, porém, para um outro fato:
apenas um dos docentes com quem conversamos tem alguma forma-
ção específica no campo da Comunicação, no curso de Artes Cênicas –

337
ainda, mais por um esforço deste campo de ensino/aprendizado do que
do sistema científico Comunicação.
Os entrevistados também concordam que, durante a graduação, o
campo da Comunicação deveria fazer parte, em algum momento, da for-
mação geral dos docentes, assim como deveriam estar explicitamente defi-
nidas algumas diretrizes nos documentos balizadores do ensino básico.
Apresentamos nas Tabelas 2 e 3, mais abaixo, os oito entrevista-
dos e as seis perguntas de resposta livre que ministramos. Além do que
está apresentado, alguns entrevistados enviaram por texto mais alguns
comentários sobre o tema. Na Tabela 2 trazemos as duas perguntas ini-
ciais: houve na formação acadêmica conteúdo ministrado com o tema
Comunicação, diretamente? Todos responderam que não. A segunda
pergunta foi se tiveram contato com o tema Comunicação enquanto
saber científico em algum momento da formação. Foram seis respostas
não e duas sim.

Tabela 2: Entrevista com professores do ensino básico


Contato com a
Conteúdo ministrado com
PROFESSORES DO Comunicação enquanto
tema Comunicação na
ENSINO BÁSICO saber científico (em
formação acadêmica?
qualquer momento)?
S.D.C., 49 anos, Geografia
NÃO NÃO
e Direito
E.A, 49 anos,
NÃO NÃO
Administração Escolar
I.R.M.M, 37 anos, Biologia NÃO NÃO
R.S.C.M, 40 anos,
NÃO NÃO
Pedagogia
P.I.P., 39 anos, Biologia NÃO NÃO
Produziu trabalhos para
aula de Didática utilizando
R.L.S, 39 anos, História NÃO
o cinema e discussões sobre
o tema
K.T.S.F, 44 anos, História NÃO NÃO
Discutia-se Rádio, TV
e jornais nas aulas da
J.B.C. 43 anos, Artes faculdade para usar a
NÃO
Cênicas favor do docente/artista.
Trabalhou conceitos e
produção de mídia
Fonte: Elaborada pelo autor (2021).

338
Na Tabela 3 estão as outras quatro perguntas: se o professor consi-
dera o tema da Comunicação importante para a formação acadêmica;
como o professor construiu sua abordagem para o tema Comunicação
na sala de aula; se o professor se sente preparado para abordar o tema
Comunicação na sala de aula; e, por fim, como se mantém atualizado
para abordar o tema Comunicação na sala de aula.

Tabela 3: Continuação da entrevista com professores do ensino básico


Como
Importância da Se sente
PROFESSORES construiu sua
Comunicação preparado Como se
DO ENSINO abordagem
para atuação para abordar o atualiza?
BÁSICO para falar de
profissional tema?
Comunicação
S.D.C., 49 anos, Sim, pandemia Fez um curso
Geografia e foi um grande específico para NÃO Vivências
Direito desafio pandemia
Cursos da
E.A, 49 anos, Secretaria
(não
Administração SIM de Educação NÃO
respondeu)
Escolar e pesquisas
próprias
Busca fazer
projetos com Leituras e
Pouco, gostaria
I.R.M.M, 37 alunos sobre estudos de
SIM de mais cursos
anos, Biologia Fake News e interesse
sobre o tema
buscar fontes próprio
confiáveis
Atua nas mídias
Faz projetos sociais como
SIM, com para ensinar pedagoga,
R.S.C.M, 40
ênfase nas redes como utilizar SIM busca seus
anos, Pedagogia
sociais os meios de conhecimentos
comunicação de forma
prática
Buscou ensinar
a diferenciação
P.I.P., 39 anos,
SIM de fontes POUCO Vivências
Biologia
confiáveis e não
confiáveis
Busca em
Pouco da
discussões Pelo que se
formação
SIM, essencial abordar o prepara, sim,
R.L.S, 39 anos, acadêmica e
para criar tema da mas sente falta
História muito mais de
postura crítica comunicação, de um curso
leituras e buscas
principalmente específico
pessoais
redes sociais

339
Como
Importância da Se sente
PROFESSORES construiu sua
Comunicação preparado Como se
DO ENSINO abordagem
para atuação para abordar o atualiza?
BÁSICO para falar de
profissional tema?
Comunicação
Vivências
Por intuições
K.T.S.F, 44 anos, e estudos
SIM e pesquisas NÃO
História de próprio
pessoais
interesse
Usa Base
Comum
SIM, para SIM, mas Base de estudo
Curricular,
prevenir sente falta de acadêmico
J.B.C. 43 anos, Currículo em
manipulação de incentivo à e pesquisa
Artes Cênicas Movimento
informações, pesquisa na pessoal para
DF, LDB e
fake news área aprimorar
Regimento da
Secretaria
Fonte: Elaborada pelo autor (2021).

Percebemos que, ao menos para os entrevistados, a formação aca-


dêmica destes não abordou sistematicamente o tema da Comunica-
ção. Com a quantidade de entrevistados e a superficialidade dos dados
levantados (por exemplo, seria necessária uma exaustiva análise nos
programas atuais de graduação para analisar como é formalizado, ou
se é formalizado, o tema da Comunicação na grade curricular dos cur-
sos) não se dá conta de responder a interface inexistente ou existente do
sistema científico Comunicação no sistema científico de outros cam-
pos do conhecimento. Porém, o que nos interessa é notar o que é unâ-
nime entre os entrevistados: a comunicação é tema corrente na prática
docente e um tema considerado importante. Numa análise sistêmica,
isso nos quer dizer que, aparentemente, as interações e interfaces entre
Educação e Comunicação são mais profundas e transversais do que
revelam as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Básico.

Conclusões

O tema comunicação, tanto em amplitude polissêmica quanto em


forma sistêmica científica, interage com a educação também em suas
múltiplas formas. Os alunos são afetados pelos conteúdos propostos

340
pelo sistema educacional e pelas ações comunicativas dos professores,
e também pelos meios de difusão que carregam nos bolsos em forma
de smartphones, além de tantos outros meios de difusão e processos
comunicativos nas suas interações com o mundo.
A discussão científica da comunicação tem uma contribuição
importante para fazer com o sistema educacional do ensino básico
brasileiro. Porém, percebemos em documentos do sistema educacional,
bem como na fala de alguns docentes do ensino básico no Distrito Fede-
ral, que mesmo forte a relação comunicação vs. educação na atuação
docente e na vida das pessoas, é fraca enquanto influência do sistema
científico Comunicação no subsistema educação básica (e todo seu
ambiente complexo).
Citamos no começo deste ensaio o projeto de extensão da Universi-
dade de Brasília Observatório Internacional de Educação para Mídia, da
Faculdade de Comunicação da Universidade (FAC-UnB). Um dos obje-
tivos é ocupar uma lacuna na formação dos docentes do ensino básico:
as práticas e debates do jornalismo e da produção midiática. Com essa
e outras iniciativas, bem como uma breve descrição do surgimento do
novo campo da Educomunicação, buscamos demonstrar como o sis-
tema científico Comunicação busca conscientemente participar da for-
mação docente e da abordagem científica do sistema Comunicação em
sala de aula do ensino básico (abordagem que é feita de uma forma ou
de outra pelas vivências das pessoas, com ou sem ações comunicativas
da Comunicação enquanto ciência).
Se a posição de Paulo Freire de que os meios de comunicação devem
ser instrumentos a favor do ensino/aprendizagem surge bem arraigada
nos documentos do sistema educacional (ao menos nas diretrizes do
ensino básico) e na prática dos docentes entrevistados, por outro lado,
este fazer é um processo muito mais ligado às comunicações do sistema
Educação e suas operações em clausura irritadas pelos sistemas de difu-
são do que uma relação efetiva do campo da Comunicação.
Vimos que um novo campo do saber se forma entre os sistemas
Comunicação e Educação, a Educomunicação, ocupando esse espaço.
Também vimos que a interface entre os dois campos no sistema cien-
tífico, ao menos nas pesquisas e pós-graduações das universidades

341
dos países latino-americanos e íbero-americanos são prolíficas (ROMAN-
CINI, 2018).
Por que, então, o campo da Comunicação não tem um papel pre-
ponderante no que diz respeito a seus próprios processos operacionais
nas relações com o sistema educacional, para além das abordagens dos
efeitos de mídia? Qual o tamanho, de fato, desse papel e em que medida
ele vem sendo debatido e projetado é uma grande lacuna que não damos
conta neste ensaio. Por se tratar de uma investigação provisória e inicial,
poderemos avançar sob estes aspectos, atendendo à percepção de que
é vantajoso para o sistema científico Comunicação operar uma relação
com o sistema Educação, em que pese o subsistema ensino básico brasi-
leiro, com ganhos para ambos os sistemas.
Finalmente, acreditamos que, ainda que de maneira interpretativa,
pudemos observar algumas perspectivas das relações sistêmicas entre a
Comunicação e a Educação, que foi nosso objetivo inicial ao percorrer a
trajetória do campo da Comunicação em alguns aspectos do sistema edu-
cacional, com ênfase no ensino básico. A abordagem luhmanniana para
os sistemas sociais nos permite compreender os processos comunicativos
como operações que reduzem complexidade do ambiente e aumentam a
complexidade dos sistemas em seus processamentos, numa perspectiva
que nos aproxima da noção dos processos comunicativos em Paulo Freire,
onde o aprendizado se dá não por recepção passiva de informações e téc-
nicas, mas por processamentos internos das consciências, onde o papel
do educador é mediar e facilitar esses processos numa relação dialógica.
Essa própria noção comunicativa em Freire e Luhmann e os deba-
tes que decorrem da abordagem da comunicação como elemento da
tessitura social, nos parecem frágeis na abordagem em sala de aula do
ensino básico, se restringindo o tema da comunicação aos efeitos de
mídia e de meios de difusão de informações. Talvez, e isso não nos foi
possível afirmar, mas nos interessa investigar, a abordagem sistêmica
das interfaces entre Educação e Comunicação nos permita avançar para
uma análise produtiva dos processos comunicativos e sua complexidade
em sala de aula do ensino básico brasileiro.
E aqui nos aproximamos de Freire com a perspectiva de que essa
pode ser uma ação transformadora.

342
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343
CAPÍTULO 15

O ensino da Comunicação Integrada


e a sua aplicação prática
no setor público

Jean Marcel da Silva Campos1

Introdução

Previsto nos principais textos referentes aos direitos humanos fun-


damentais, o direito de acesso à informação é fundamental para a for-
mação da opinião pública. Ele é imprescindível para a concretização de
todos os demais direitos humanos, já que a informação leva o indivíduo
a conhecer os seus próprios direitos. As políticas de transparência, por
conseguinte, ao mesmo tempo em que obrigam quem opera as políticas
públicas a justificar suas decisões, aproximam o cidadão da tomada des-
sas decisões, da definição das prioridades e da formulação dos planos de
execução e alocação de recursos.
No Brasil, a conquista da Constituição da República de 1988 repre-
sentou um grande avanço para a consolidação do Estado Democrático
de Direito. Um marco recente nessa caminhada foi a regulamenta-
ção da informação como um direito fundamental, por meio da Lei no
12.527/2011, a chamada Lei de Acesso à Informação (LAI).
Mais do que nunca, tornou-se necessário o tratamento da informa-
ção como uma política pública. Mas, para aplicar novas metodologias de
trabalho a partir dessas mudanças, teorias e práticas da comunicação pre-
cisam dialogar entre si e com outros campos. E como aplicar na prática
as teorias ensinadas na graduação de comunicação visando o aperfeiço-
amento da função social dos departamentos públicos de comunicação?

1 Jornalista (UFMT), mestre em Direito (UNICEUB-DF), especialista em Gestão da Comuni-


cação (UNICEUB-DF) e pesquisador do tema Fake News.

344
É da necessidade de articulação entre teoria e prática, bem como
da experimentação acadêmica das mudanças sociais que ocorrem todos
os dias, que os questionamentos e propostas apresentadas por José Luiz
Braga (2007; 2011) se fazem necessárias.
Ao verificar os elementos dispostos nesse cenário, o presente capí-
tulo toma como referência pontos do pensamento acadêmico de José
Luiz Braga para descrever e discutir aspectos do processo de estrutura-
ção administrativa do Gabinete de Comunicação (GCOM) do Governo
de Mato Grosso, realizada no ano de 2015. O objeto de análise foi deli-
mitado a partir da experiência pessoal deste autor que desempenhou a
função de Secretário Estadual de Comunicação no Governo de Mato
Grosso entre os anos de 2015 e 2016.
Além de um registro da complexidade da fase de estruturação
administrativa do GCOM – que inclui a tentativa de tradução para a lin-
guagem jurídica das políticas públicas às particularidades do exercício
das profissões da comunicação e das práticas profissionais relacionadas
à época analisada –, o texto busca ilustrar com exemplos práticos as
perspectivas de José Luiz Braga (2011) sobre a interdependência entre o
fazer teoria e o fazer profissional, bem como sobre a definição do campo
da comunicação.
Ao contrário da visão simplista da Comunicação como “campo
interdisciplinar”, o autor coloca em questão a necessidade de se perceber
as articulações entre o campo da Comunicação e as outras áreas. Para
ele, o conceito de interdisciplinaridade pode corresponder à percepção
de que um campo de estudos que hoje se vê inevitavelmente atraves-
sado por dados, conhecimentos, problemas e abordagens concebidos e
desenvolvidos em outras disciplinas e/ou tecnologias. Nesse caso, todos
os campos de conhecimento são interdisciplinares, ou seja, a comunica-
ção não teria existência isolada (BRAGA, 2011, p. 62). Isso tenta ser provado
no presente artigo por meio do estudo de caso.
Do ponto de vista acadêmico, considera-se que os argumentos
teóricos dos autores apresentados sustentam a hipótese de que o desen-
volvimento da gestão da comunicação pública necessita de uma articu-
lação teórica permanente dos estudos da comunicação com áreas como
o direito e a administração pública.

345
O assunto aqui abordado é explorado em pesquisa teórico-empí-
rica, tendo como base a busca de informações e conhecimentos de
autores que analisam e discutem questões sobre a gestão da comuni-
cação, comunicação organizacional integrada, políticas públicas, bem
como a coleta empírica de dados nas publicações oficiais do Governo de
Mato Grosso – Diário Oficial (IOMAT).
Do ponto de vista do pesquisador, quer-se contribuir de modo prá-
tico com as ações de estruturação dos departamentos de comunicação
na esfera pública, especialmente no que diz respeito à redação dos textos
normativos setoriais.

A teoria e a realidade da gestão


da comunicação pública

Uma questão que se coloca em tempos de aumento da cobrança


pelo desempenho da função social da comunicação é a formação dos
profissionais que lideram departamentos de comunicação pública. A
formação acadêmica desses profissionais atende aos desafios que a atu-
alidade impõe para a Gestão da Comunicação pública?
Em Ensino e pesquisa em Comunicação: da teoria versus prática à
composição contexto & profissão, José Luiz Braga aborda o tema a partir
da disjunção que marca a formação em Comunicação no país: a separa-
ção entre disciplinas teóricas e práticas. Essa disjunção, de acordo com
Braga (2007, p. 21), produz uma descontinuidade nos processos formado-
res, tendo repercussões tanto na graduação quanto na pós-graduação.
Ele indica que teoria e prática são modos de conhecimento e que, se não
houver interação desde os objetivos iniciais para a formação dos dois
âmbitos, não haverá como construir articulações posteriores entre tais
processos elaborados isoladamente.
Foi a partir dessa constatação de Braga (2007) que este autor se viu
provocado a refletir sobre as contribuições de sua formação na gra-
duação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e da pós-graduação

346
em Gestão da Comunicação nas Organizações do Uniceub-DF no exer-
cício da função de gestor público da comunicação.
A primeira hipótese levantada para uma análise dessa natureza se
aproxima daquilo que o próprio Braga (2007, p. 21) pontuou como risco
da informação teórica. A grade de ensino da graduação, sem dúvida,
pode ser interpretada pelo gestor público da Comunicação Social como
“descontextualizada e ausente de uma práxis que lhe possa dar sentido
e atualidade”. Isso porque na graduação de Comunicação Social não se
discute, por exemplo, a normatização dos processos comunicacionais
como premissa básica para garantir o funcionamento e legitimação dos
departamentos. Sendo ainda mais específico, é preciso que o conhe-
cimento sobre como se desenvolvem as atividades da comunicação –
adquirido na graduação – esteja estruturado em um conjunto de textos
regulatórios próprios do campo do direito e das políticas públicas.
Nota-se, portanto, a importância da constatação feita por Braga
(2007, p. 21) de que os processos do fazer profissional no campo comu-
nicacional não se esgotam no “adestramento das práticas canônicas”. O
autor reflete que o conhecimento adquirido na graduação, muitas vezes,
não será capaz de atender às situações concretas:

Mesmo que sejam desenvolvidas as atividades mais pertinentes, que


os estudantes se tornem hábeis nos procedimentos mais reconheci-
dos como próprios e necessários das profissões que exercerão, esse fa-
zer arrisca tornar-se mecanicista e por isso desajustado das situações
concretas que o estudante enfrentará na vida profissional – a menos
que, por intuição ou talento próprio, se exercite nas transferências
e adaptações do que aprendeu a circunstâncias às vezes muito dife-
renciadas. Não só pelas evidentes diferenças entre o laboratório, na
Escola, e a oficina real, na empresa, mas também pelo deslocamento
constante dos papéis profissionais e pelo surgimento de novos desa-
fios do fazer, durante a vida profissional (BRAGA, 2007, p. 22).

Analisando o histórico dos dois cursos mencionados pelo autor


deste artigo, é possível identificar lacunas na formação da graduação,
no que diz respeito às técnicas de gestão da comunicação. Como bem

347
mencionado por Braga, novos desafios do fazer surgem ao longo do
tempo. Para desempenhar funções administrativas na gestão pública,
um profissional de comunicação precisa de conhecimentos que ainda
são pouco explorados na graduação. Isso é um fato.
Para preencher as lacunas de conhecimento identificadas nas expe-
rimentações do exercício profissional, uma parcela de profissionais já
graduados busca a pós-graduação. O curso de pós-graduação em Gestão
da Comunicação nas Organizações do Uniceub-BF tem como objetivo
formar profissionais para planejar, desenvolver, gerir, controlar e ava-
liar políticas, estratégias, processos e procedimentos de uma empresa
ou instituição pública. Dessa segunda experiência acadêmica do autor
deste artigo, foi possível descobrir um conjunto de novos conceitos que
articulam teorias aprendidas anteriormente na graduação. Porém, com
essas duas formações, as situações concretas que envolvem disciplinas
do direito e da administração pública ainda permanecem sem resolução.
Considerando que “o âmbito da teoria exige contextualização,
posições praxiológicas, fazeres e reflexividade; e o âmbito das práticas
impõe experimentação, enfrentamento de desafios, boas competências
do aprender e reflexão” (BRAGA, p. 22), tentarei fazer algumas conexões
entre a teoria da Comunicação Integrada – que articula técnicas apren-
didas na graduação e na pós-graduação – e a prática da experimentação
do cargo de gestor público.
Dessa forma, pretendo aproximar o máximo possível da realidade,
em confluência com a proposta de Braga:

O processo de produção teórica é, sobretudo, um esforço de desen-


tranhar da complexidade do mundo real elementos essenciais que
nos ajudem a compreender e a descrever essa realidade. A teoria que
majoritária e essencialmente se espera de nossos pesquisadores não
é a grande teoria abstrata e generalizadora: é aquela próxima dos
fenômenos, a teoria do concreto, mais imediatamente perceptiva de
uma práxis comunicacional – a teoria da coisa vista, do processo
percebido, a teoria do objeto (BRAGA, 2007, p. 23).

348
Comunicação Integrada: Conceitos

A investigação acerca das metodologias da gestão da comunicação


indica que é preciso compreender o universo das organizações, analisar
suas características e a arquitetura organizacional para, então, situá-la no
contexto da contemporaneidade. Se levarmos em conta que os departa-
mentos de comunicação pública reúnem áreas de Rádio e TV, Assessoria
de Imprensa, Publicidade, Gestão de Redes Sociais etc. – que precisam
atuar em sinergia para informar com transparência –, o modelo de gestão
mais eficaz seria aquele capaz de transferir as informações particulares
para as situações variadas e específicas ao mesmo tempo em que desen-
volve a capacidade de resolução dos problemas. Portanto, o diálogo per-
manente entre as teorias e práticas seria mais do que necessário.

Isso significa que a ação realizada não leva apenas a um trabalho


bem-feito; permite também ampliar o repertório gerando experiên-
cia. A construção da experiência depende de outras coisas além da
repetição adestradora de gestos até que nos tornemos habituados a
fazê-los sem hesitação. Envolve ainda articulações compreensivas
entre o problema enfrentado e seus contextos; entre o problema e
as soluções obtidas; e entre problemas diferentes, com suas com-
plementaridades e tensionamentos. Devem-se incluir, ainda, arti-
culações compreensivas entre as questões concretas enfrentadas e
as teorias que falam de tais questões, para perceber o que cada um
desses dois componentes do conhecimento oferece e o que deixa a
dever com relação ao outro (BRAGA, 2007, p. 24).

A proposta de diálogo entre a teoria e a prática na construção da


experiência é a meta da Comunicação Integrada, composta por Comuni-
cação Institucional, Comunicação Mercadológica, Comunicação Interna
e Comunicação Administrativa. Apesar das diferenças e especificidades
de cada área, o relacionamento entre elas deve se estabelecer com har-
monia, respeitando os objetivos específicos de cada setor. Ou seja, cada
uma dessas modalidades deve liderar seus processos e atuar de forma
sinérgica com toda a organização, formando o composto de comunicação

349
integrada (KUNSCH, 2003, p. 151). Essa subdivisão de tarefas e a interação
entre as áreas fica evidente na Figura 1, elaborada por Kunsch:

Figura 1: Comunicação organizacional integrada

Fonte: Kunsh, Margarida. Planejamento de Relações Públicas na Comunicação Integrada


(2003, p. 151).

Conforme se observa na imagem acima, três grandes grupos inte-


gram o que Kunsch (2003) chamou de Composto da Comunicação Inte-
grada. Cada um desses grupos possui suas respectivas áreas que, por
sua vez, se sustentam em teorias próprias. Na gestão pública, o primeiro
grande desafio para aplicação prática dessa teoria seria mapear onde
estão e como funcionam essas áreas para, depois, se trabalhar na orga-
nização dos fluxos de informação de forma convergente.

350
Félix (2011, p. 147) vai ao encontro dessa abordagem ao defender a
necessidade da construção de uma política de comunicação que deve
trabalhar para a consolidação da imagem institucional junto ao público
externo; contribuir para os resultados em comercialização de produ-
tos e serviços, e formar um ambiente de integração junto ao público
interno que passa a produzir suas tarefas à luz da missão, metas e obje-
tivos estratégicos.
A Comunicação Integrada é, na visão de Félix (2012), um pro-
cesso abrangente que une todas as funções que produzem algum tipo
de comunicação ou que se relacionam com públicos, cujo gerencia-
mento deve ser regido por meio de uma gestão única de comunicação,
ou mesmo de um colegiado ou comitê de comunicação. O gestor que
estiver à frente de tal missão deverá se relacionar com a alta adminis-
tração e compartilhar as decisões do poder com os microssistemas,
além de ter que criar oportunidades de integração de todas as áreas
no dia a dia.
Conforme sinaliza Bueno (2014, p. 11), a Comunicação Empresarial
evoluiu de uma prática fragmentada para um novo patamar em que se
ressalta a sua perspectiva estratégica. O autor também sublinha uma
das hipóteses dessa pesquisa: que a formação de profissionais para atuar
nesse campo continua precária e restrita, prejudicando o avanço de
áreas importantes como a gestão pública da comunicação.
Segundo Kunsch (2012, p. 15), existem alguns princípios consi-
derados fundamentais para nortear a comunicação na administração
pública. Assim, a instituição pública/governamental precisa se estabele-
cer como instituição aberta, que interage com a sociedade, com os meios
de comunicação e com o sistema produtivo. Além disso, necessita atuar
como um órgão que extrapola os muros da burocracia para chegar ao
cidadão comum, graças a um trabalho conjunto com os meios de comu-
nicação. Deve ser uma instituição que ouve a sociedade, que atende às
demandas sociais, procurando, por meio da abertura de canais, ame-
nizar os problemas cruciais da população, como saúde, educação, trans-
portes, moradia e exclusão social.
Kunsch (2012, p. 15) sublinha que, na esfera pública, para que o
Estado cumpra sua missão e promova de fato a construção da verdadeira

351
cidadania, faz-se necessária uma mudança cultural de mentalidade,
tanto do serviço público, quanto da sociedade, para resgatar a legiti-
midade do poder público e sua responsabilização (accountability), por
meio de um controle social permanente.
As críticas dos teóricos da Comunicação Integrada quanto à for-
mação dos profissionais de comunicação para liderar os processos inte-
grados e em relação à ausência de uma articulação bem definida entre as
diversas áreas que compõem o “Composto de Comunicação” esbarram
na discussão sobre a formação do campo da comunicação levantada por
Braga (2011). A questão destacada pelo autor não é propriamente a do
estabelecimento de categorias para verter os diferentes projetos e teori-
zações e, sim, a questão voltada para o desenvolvimento de dinâmicas
de articulação e de desafio mútuo entre ângulos diferenciados de obser-
vação do fenômeno comunicacional.

Trata-se antes de buscar espaços – em nível mais abstrato que o das


pesquisas específicas – nos quais diferentes investimentos investi-
gativos, sobre ângulos variados do fenômeno comunicacional, pos-
sam buscar composição e tensionamento de suas questões e hipóte-
ses. Essa perspectiva não corresponde a aplainar diferenças, nem a
subsumir resultados de um ângulo a outro. Trata-se, mais simples-
mente de: (a) desafiar hipóteses de um ângulo pelos resultados de
outro, através de um tensionamento entre as diferentes visadas; (b)
buscar perguntas mais abrangentes; (c) desenvolver hipóteses heu-
rísticas que procurem articular fragmentos de conhecimento dife-
rentemente produzidos (BRAGA, 2011, p. 74).

Normatização da Comunicação Integrada

A implantação do novo modelo de comunicação do governo de


Mato Grosso demandou não somente um olhar conceitual da comu-
nicação integrada, mas também a busca por elementos de concreti-
zação da estratégia dentro de um complexo arranjo que se iniciou no
campo jurídico.

352
Para avançar este entendimento, buscou-se inserir a comunicação
no contexto das políticas públicas, definidas por Bucci (2006, p. 31) como
“arranjos complexos típicos da atividade político-administrativa, que a
ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar”.
Pela sua definição:

Política pública é o programa ou ação governamental que resulta de


um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados –
processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo,
processo orçamentário, processo legislativo, processo administrati-
vo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do
Estado e as atividades privadas, para realização de objetivos social-
mente relevantes e politicamente determinados (BUCCI, 2006, p. 39).

Partindo dessa definição de políticas públicas e da necessidade de


atuação normativa para modernização da gestão pública, cabe registrar
os elementos jurídicos que, juntos, construíram a nova estrutura do
Gabinete de Comunicação:
1. A Lei Complementar no 566/2015 que “Dispõe sobre a orga-
nização administrativa do Poder Executivo Estadual e dá
outras providências”;
2. Decreto no 152/205 – Trata da estrutura administrativa do
Gabinete de Comunicação e distribuição de cargos;
3. Decreto no 667/2016 – Regimento Interno do Gabinete de
Comunicação.

Todas as medidas se sustentaram conceitualmente nas diretrizes


estratégicas apresentadas e debatidas no início deste estudo, previstas
nas obras de Kunsch (2003), Félix (2017) e Bueno (2014). A estruturação
administrativa do órgão governamental de comunicação iniciou-se com
a Lei Complementar no 566/2015, aprovada na Assembleia Legislativa
de Mato Grosso. Em apenas um artigo desta lei, foi sintetizada a compe-
tência do Gabinete de Comunicação (GCOM), anteriormente chamado

353
de Secretaria de Comunicação2. O órgão passou a funcionar como uma
espécie de “guarda-chuva” da comunicação. Ou seja, todos os profissio-
nais que atuavam direta ou indiretamente na comunicação do governo
passaram a ser lotados neste órgão.
Dando continuidade à implantação de uma estrutura que compor-
tasse ações integradas e permanentes, foi publicado o Decreto no 152,
em 1o de julho de 20153. Buscou-se delimitar unidades administrativas a
partir da referência dos três autores citados: o secretário de Comunica-
ção passou a gerir o Gabinete de Comunicação (Comunicação Organi-
zacional) em conjunto com três outras estruturas: Secretaria Adjunta de
Jornalismo (Comunicação Institucional), Secretaria Adjunta de Comu-
nicação Integrada (Comunicação Mercadológica) e Secretaria Adjunta
de Administração Sistêmica (Comunicação Interna)4.
2 Ao Gabinete de Comunicação compete:
I – gerir a política de comunicação social do Poder Executivo estadual;
II – gerir ações de comunicação, propaganda e publicidade das ações de governo e dos even-
tos internos e externos;
III – gerir os serviços de assessoria de imprensa, bem como as entrevistas coletivas e indivi-
duais;
IV – gerir o conteúdo web do Poder Executivo estadual, bem como a padronização institu-
cional de todos os portais eletrônicos;
V – gerir os serviços de marketing de relacionamento;
VI – gerir a política de comunicação institucional interna do Poder Executivo Estadual;
VII – estimular a participação da comunidade em eventos cívicos, bem como contribuir para
a divulgação da cultura estadual e maior conhecimento da realidade mato-grossense, no pró-
prio Estado e no País.
3 Ao Gabinete de Comunicação (GCOM) compete gerir a política de comunicação social e ins-
titucional do Poder Executivo Estadual, aos públicos internos e externos; as ações publicitá-
rias e de marketing de relacionamento, divulgando eventos internos e externos do Governo;
os serviços de assessoria de imprensa, entrevistas coletivas e individuais; o conteúdo web e a
padronização dos portais eletrônicos do Poder Executivo Estadual; estimular a participação
da sociedade em eventos cívicos, contribuindo para a difusão da cultura estadual e reconhe-
cimento da realidade mato-grossense.
4 Art. 3o A estrutura organizacional básica e setorial do Gabinete de Comunicação (GCOM)
compreende as seguintes unidades administrativas:
I – NÍVEL DE DIREÇÃO SUPERIOR
1 – Gabinete do Secretário de Estado do Gabinete de Comunicação;
1.1 – Gabinete do Secretário Adjunto de Jornalismo;
1.2 – Gabinete do Secretário Adjunto de Comunicação Integrada;
1.3 – Gabinete do Secretário Adjunto de Administração Sistêmica.
II – NÍVEL DE APOIO ESTRATÉGICO E ESPECIALIZADO
1 – Núcleo de Gestão Estratégica para Resultados (NGER);
2 – Unidade Setorial de Controle Interno (UNISECI).
III – NÍVEL DE ASSESSORAMENTO SUPERIOR
1 – Gabinete de Direção;

354
Figura 2: Estrutura organizacional do Gabinete de Comunicação

Fonte: Quadro previsto no Decreto 152/2015 do governo de Mato Grosso.

O último passo para se estabelecer a missão e as competências das


unidades administrativas e atribuições do Gabinete de Comunicação foi
a publicação do Regimento Interno – um instrumento de gestão obriga-
tório com a finalidade de normatizar a organização e o funcionamento
dos órgãos e entidades. O documento foi publicado em 13 de novembro
de 2015, por meio do Decreto no 325/2015.

2 – Unidade de Assessoria.
IV – NÍVEL DE ADMINISTRAÇÃO SISTÊMICA
1 – Superintendência Administrativa e Financeira;
1.1 – Coordenadoria de Orçamento;
1.2 – Coordenadoria Financeira e Contábil;
1.3 – Coordenadoria de Apoio Logístico;
1.4 – Coordenadoria de Tecnologia da Informação;
1.5 – Coordenadoria de Gestão de Pessoas.
V – NÍVEL DE EXECUÇÃO PROGRAMÁTICA
1 – Superintendência de Rádio;
2 – Superintendência de Televisão;
3 – Superintendência de Jornalismo;
4 – Superintendência de Publicidade;
5 – Superintendência Digital;
6 – Superintendência de Comunicação Integrada.

355
Há, portanto, a concretização no campo do direito de uma visão de
comunicação que toma como premissa a articulação integrada de suas
ações para a população, a partir de um sistema complexo de conhecimen-
tos e práticas que considera as relações entre o Estado e seus distintos
públicos de interesse. Pode-se dizer que, para ter efeito formal, esse pro-
cesso demandou que as teorias da comunicação e as necessidades práticas
das áreas que compõem um departamento público de comunicação fos-
sem traduzidas para a linguagem jurídica da administração pública.

Conclusão

O presente artigo não teve como escopo fazer uma análise da grade
curricular dos cursos de comunicação das universidades mencionadas, mas
tomou como ponto de partida a formação de um estudante e a articulação
dos conhecimentos adquiridos nessas instituições, à luz das questões levan-
tadas por José Luiz Braga (2011) sobre o fazer teórico e o fazer profissional.
A partir dos autores analisados, algumas perspectivas foram iden-
tificadas:
• Ao contrário do que o senso comum pode indicar, os conheci-
mentos adquiridos na graduação contribuem com o exercício
prático das profissões de comunicação, mesmo que de forma
limitada;
• Autores que abordam a Gestão da Comunicação e a Comuni-
cação Integrada na pós-graduação apontam uma possível defi-
ciência na formação dos profissionais que irão atuar nas áreas
de gestão da comunicação pública. Essas deficiências, porém,
não se esgotam na pós-graduação;
• Já nos estudos da Pedagogia da Comunicação, constatou-se que
o desenvolvimento do Campo da Comunicação como campo
de pesquisa passa pela observação das interações da comuni-
cação social;
• O mapeamento de problemas práticos e tentativas de resolu-
ção, bem como o exame crítico dessas situações, são processos
que podem contribuir com o ensino da Comunicação Social;

356
• As teorias e as práticas da comunicação precisam ser perma-
nentemente debatidas para que as rotinas de ensino e aprendi-
zado sejam ajustadas conforme o tempo e situação.

Considerando essas constatações, registra-se, por fim, a necessi-


dade de análise permanente das situações práticas aplicadas ao caso con-
creto analisado; uma vez que o objetivo do presente artigo foi descrever
as soluções buscadas à época. Certamente, em 2021, novos problemas
já existem e muitas alternativas buscadas anteriormente necessitam de
adequação ou não servem mais.

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357
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em: 17 mai. 2021.

358
CAPÍTULO 16

Inovações em Pedagogia
da Comunicação
José Luiz Niederauer-Pantoja1

Introdução

Nesse longo período em que vivemos sob a névoa fria do coronaví-


rus, combatemos um inimigo invisível. Estudantes, professores e admi-
nistradores abrem as janelas pela manhã, observando o brilho do sol e
a claridade das manhãs sabendo que elas trazem, todos os dias, a pro-
babilidade da doença e da morte. Neste capítulo, procuro apresentar as
minhas percepções comunicativas neste tempo de coronavírus e refletir
sobre seus efeitos neste momento impressionante da nossa história sobre
a terra. Nesse sentido, recorro aos aprendizados na disciplina “Pedago-
gia da Comunicação” para tentar tecer um comentário sobre a lógica da
mudança e da inovação, procurando construir uma esperança freireana.
No cenário da pedagogia da comunicação, o ofício didático deve
ser um “ato comunicativo e integrador, que procura transformar o estu-
dante passivo em agente consumidor ativo, livre, responsável e crítico
dos meios de comunicação, por meio de diferentes formas de expres-
são criativa, por imagens, códigos, símbolos, relações, emoções e sensa-
ções” (PORTO, 2002). Para tanto, como ensina Freire (2002), ele deve acei-
tar como princípio o reconhecimento da autonomia do estudante e de
sua capacidade potencial de apreender o processo educativo, criando

1 Possui graduação em Administracão pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do


Sul (1984) e mestrado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(1989). Atualmente ocupa a Direção de Gestão do Instituto de Treinamento e Capacitação
(INTRAC), voltado para a realização de projetos na área da educação.

359
sistemas comunicativos que o levem a construir-se como cidadão capaz
de promover uma transformação social. Fala-se, aqui, de transforma-
ção, de criação e de construção, termos que costumam aparecer forte-
mente relacionados ao conceito de inovação.
Com Freire (2002), aprendemos que o processo educacional não deve
ser uma simples transmissão de informações, por trazer em si a comple-
xidade de uma dinâmica de grupo, no qual intervêm as relações entre
estudante e professor, e especialmente entre o estudante e seus pares. Ele
produziu uma série de inovações teóricas importantes que tiveram um
impacto considerável no desenvolvimento da prática educacional, tor-
nando a educação uma atividade coletiva, um diálogo entre os participan-
tes, em vez de uma palestra unilateral “de cima para baixo” de uma pessoa
para o benefício da outra (FREIRE, 1996). Boa parte de suas ideias perma-
nece contemporânea e ainda se revela inovadora para o cenário educa-
cional.brasileiro a ponto de continuar instigando educadores e estudiosos
da educação, a questionar e desafiar as mudanças na realidade educativa,
política e social, mais ainda sob a névoa da pandemia do coronavírus.
Diante disso, convém refletir a respeito dos espaços possíveis para a ino-
vação nos cursos de graduação na área de Comunicação, especificamente
de Jornalismo, com vistas à identificação de possibilidades e fronteiras
para o desenvolvimento de práticas inovadoras.

Projeto Pedagógico e inovação

Pensin e Nikolai (2013, p. 34-35) atentam para a necessidade de com-


preender “a inovação como pressuposto orientador da prática educa-
tiva”. Por essa perspectiva, uma aula na universidade deve ser planejada
para ser dinâmica, atrativa e efetiva para o estudante, fazendo com que
se engaje com o ensino e a partir daí se desenvolva.
Ministro da Educação nos anos 1960, Darcy Ribeiro se recusava
a aceitar uma universidade “de mentira, inconsciente de si e contente
consigo mesma, que evita pensar o Brasil como problema” (RIBEIRO,
1986, p. 6). Para Ribeiro, “a primeira obrigação da comunidade de pro-
fessores e alunos é olhar para a frente para prefigurar o que há de ser,

360
fixando metas e lutando por elas com clareza sobre os objetivos a serem
alcançados”. Darcy entendia que “o saber ou a técnica, por competentes
que sejam, nada significam, se não se perguntam para quê e para quem
existem e operam, se não se perguntam a quem servem, se não se per-
guntam se há conivência do sábio com o cobiçoso” (RIBEIRO, 1986, p. 6).
Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não esta-
beleça que todas as instituições de ensino precisam ter um Projeto Político
Pedagógico, o Fórum de Pró-reitores de Graduação das Universidades
brasileiras o considera um instrumento balizador para o fazer universi-
tário, que deve expressar a prática pedagógica do curso, dando direção à
ação docente, discente e da gestão. Nesse sentido, o Projeto Pedagógico
é o lugar de fala da inovação pedagógica, norteando o caminho para se
chegar à nova universidade e à construção daquilo que há de ser.
Por tudo isso, para que se abra espaço para a inovação, é perti-
nente adotar na elaboração do Projeto Pedagógico a perspectiva freire-
ana de conhecer a realidade e analisá-la para então pensar sobre novos
caminhos e possibilidades (FREIRE, 1967). Nesse trajeto, toma-se como
ponto de partida o conhecimento discente e sua realidade para propi-
ciar a construção de novos conhecimentos e o trabalho colaborativo no
espaço institucional. Adicionalmente, deve-se desenvolver e implemen-
tar processos educativos que utilizem reflexão e análise para transfor-
mar a realidade e produzir conhecimento adotando o diálogo como ins-
trumento de qualificação e aprimoramento das interações (FREIRE, 1999).
Pode-se, assim, acreditar que para que haja inovação na pedagogia no
contexto atual, o principal requisito é abrir mão do modelo tecnicista e
levar em conta, o modelo humanista de educação.
Com essa visão, este capítulo examina as propostas pedagógicas
nos cursos de Comunicação/Jornalismo em um grupo de Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES), com o intuito de compreender
as possibilidades e a disposição para a inovação, sem, contudo, ter a
pretensão de generalizar qualquer resultado. Para tanto, analisou-se os
Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC), de Comunicação/Jornalismo
em Universidades Federais de cinco regiões brasileiras: Universidade
Federal de Rondônia (Região Norte), Universidade de Alagoas (Região
Nordeste), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Região Cen-

361
tro-Oeste), Universidade Federal de Juiz de Fora (Região Sudeste) e
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Região Sul).
A referência adotada para análise foi a estrutura sugerida pelo
Ministério da Educação para registro das informações, contida nas
Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013), examinando-se aspec-
tos específicos do Projeto Pedagógico, vinculados diretamente aos
espaços abertos pelas instituições para, como sonhava Darcy Ribeiro,
“olhar para a frente para prefigurar o que há de ser, fixando metas e
lutando por elas com clareza sobre os objetivos a serem alcançados”
(RIBEIRO, 1985).
Acredito que no ensino universitário nos dias de hoje, práticas
pedagógicas inovadoras podem fortalecer a aprendizagem e o engaja-
mento acadêmico (COSTA; VITÓRIA, 2017), que são, de fato, importantes
para o aproveitamento e permanência no ensino superior, para a inte-
ração entre professores e estudantes na busca da boa aprendizagem e,
enfim, na formação do conhecimento. Entretanto, ao comparar o pro-
posto nos PPP’s dos cursos de jornalismo com seus resultados nas ava-
liações oficiais2 (IGC e CPC), observei que os indicadores ali adotados
podem refletir a qualidade geral dos referidos cursos, mas não alcançam
sua capacidade para enfrentar o desafio da inovação pedagógica.
Por qualquer ângulo que se observe, inovação é mudança. Quando,
porém, se trata de inovação no sistema educacional, não sabendo como
implementá-la, a reação primeira é não avançar. Apesar disso, nesse
contexto, a inovação, para acontecer, deve envolver o desenvolvimento
de novos projetos relacionados à prática pedagógica, ao ensino e ao
aprendizado, tratando das mudanças nos fluxos, métodos e do desen-
volvimento de novos processos dirigidos à eficiência ou novas formas de
produção ou entrega da atividade educacional (inovação dos processos)
e combinar as iniciativas voltadas à renovação de recursos humanos e
insumos relacionados à gestão de mudança, transformação cultural e
capacitação (inovação organizacional).

2 O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) disponibili-


za o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o Índice Geral de Cursos Avaliados da Instituição
(IGC), que são indicadores de qualidade da educação superior.

362
A estrutura do Projeto Político Pedagógico

Vasconcelos (2006), reitera que mais importante do que produzir


um texto bem elaborado, é construir o envolvimento e o desenvolvi-
mento das pessoas, especialmente os educadores, por meio da participa-
ção efetiva no processo de construção do Projeto Pedagógico, de modo
que o planejamento seja “do grupo” e não “para o grupo”. O problema
principal está em sustentar uma mudança, não tanto em fazê-la, daí a
necessidade de participação. Frente a essas ponderações, considero que
uma definição para inovação educacional deva envolver a ideia de uma
ação pedagógica planejada para ser nova e que promova mudanças para
melhor no processo de ensino-aprendizagem, em um dado contexto
escolar, considerando os interesses e necessidades dos alunos.
Entendo que as inovações pedagógicas respondem ao objetivo
de formação do docente e do estudante, e nesse sentido, sirvo-me da
experiência de Freitas (2017) que, investigando os modelos tradicionais
de ensino, nos quais raramente se problematiza a forma de ensinar, per-
cebeu a inovação como um processo que depende da articulação plane-
jada de dimensões como “gestão”, “planejamento”, “docentes capacitados
e comprometidos”, “estudantes participativos” e “infraestrutura”.
O artigo 3o do Projeto de Resolução sobre as Diretrizes Curricula-
res Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo, aprovado em
20/02/2013 (BRASIL, 2013), estabelece uma estrutura orientadora para a
elaboração, análise e aprovação do Projeto Pedagógico do curso de gra-
duação em jornalismo. Essa estrutura, ainda que se afirme, em seu artigo
8o que “as Instituições de Educação Superior têm ampla liberdade para,
consoante seus projetos pedagógicos, selecionar, propor, denominar e
ordenar as disciplinas do currículo a partir dos conteúdos, do perfil do
egresso e das competências apontados”, acaba servindo como um molde
que sob muitos aspectos subjuga o ensino superior e todas as Instituições
que desejam ver seus cursos aprovados e reconhecidos oficialmente. Além
disso, essa estrutura de regulação e as normas estabelecidas possuem o
condão de inserir as instituições em um coletivo de IFES com aprova-
ção do MEC, o que em muitos aspectos ignora as necessidades de desen-
volvimento de cada região e acaba se tornando mais em um argumento

363
de marketing do que em um avanço concreto. Essa estrutura de regulação
impede que se abra a porta para a criatividade nas instituições de ensino e
nos cursos de Comunicação. Sem fazer qualquer crítica ao modelo vigente
de Diretrizes Curriculares, que também estabelece critérios para elabora-
ção e aprovação de projetos pedagógicos, destaco que um resultado visível
é um grupo significativo de instituições de ensino produzindo elaborados
documentos repletos de citações a Paulo Freire e outros educadores que
propagam a ideia de uma educação libertadora do estudante, reflexiva e
crítica, ao mesmo tempo em que, orientadas pelas diretrizes curriculares,
sequer deixam claro em seus projetos as estratégias pedagógicas a serem
adotadas em seus cursos.
Ao mesmo tempo, reproduzem no que definem como “grades cur-
riculares”, inúmeras disciplinas semelhantes ou de mesma denominação,
de norte a sul do país. O quadro apresentado a seguir, pretende mostrar,
nas cinco IFES analisadas, o percentual de disciplinas convencionais e o
percentual de disciplinas práticas – que costumam ter um caráter “ino-
vador” – presente em seus cursos, que nunca ultrapassa 20% da carga
horária total do curso. A experiência com aulas práticas deve abrir espa-
ços ao estudante, sujeito da aprendizagem, estimulando-o a pensar e
refletir sobre seu papel, produzindo conhecimento e ampliando o seu
aprendizado a partir de ações concretas suas e não apenas por meio de
aulas expositivas.

Quadro 1: Percentual de cargas horárias dos cursos de jornalismo


CARGA HORÁRIA DISCIPLINAS DISCIPLINAS
IFE % %
TOTAL CONVENCIONAIS PRÁTICAS
UNIR 3.800 h 3.400 h 90% 400 h 10%
UFAL 3.180 h 2.240 h 70% 560 h 17%
UFJF 3.005 h 2.525 h 84% 480 h 15%
UFMS 2.705 h 2.161 h 80% 544 h 20%
UFRGS 3.000 h 3.000 h 100% - -

Fonte: o autor.

As Diretrizes também estabelecem critérios para a elaboração e


entrega dos Planos de Disciplinas aos estudantes. Mas a frequente ado-
ção de métodos de ensino tradicionais que simplesmente entregam

364
o conteúdo sob a forma de aulas expositivas, leituras de textos, ou ativida-
des em laboratórios, joga para o estudante a responsabilidade de entender
e saber aplicar o novo conhecimento, enquanto garante à Instituição de
Ensino a tranquilidade de atender a todas as exigências oficiais. Ao menos
nos formulários preenchidos. Este é, segundo Mevey (1997), um dos pro-
blemas dos processos educacionais. Além disso, segundo este autor, mui-
tos professores atribuem prioridade às suas próprias pesquisas e carreiras,
não reservando espaço para o trabalho individual com os alunos.
Para que se atenda às necessidades da educação contemporânea, é
necessário garantir uma interação da universidade com a vida cotidiana,
se abrindo ao encontro do mundo que existe do outro lado do muro,
propiciando condições para que perceba o entorno de forma menos
imodesta, podendo assim torná-la participante ativa para influir nos
contextos em que vive. Kourganoff (1990) concorda com esse argumento,
sustentando que devido à sistemática de avaliação do trabalho docente
nas universidades, a maior parte dos professores do ensino superior
dedica a essência de suas atividades às pesquisas pessoais, relegando os
estudantes a um segundo plano nas preocupações universitárias. Isto é
ainda agravado pela inexistência de programas de formação de profes-
sores universitários, pois a maioria dos professores das disciplinas bási-
cas e específicas vêm de bacharelados e de programas de pós-graduação
em que há pouco ou nenhum conteúdo de ordem pedagógica.
Por isso, surpreende a pouca importância atribuída nos PPPs exa-
minados ao processo de monitoramento de sua execução. Esta é uma
etapa importante de qualquer projeto, que envolve um olhar para os
ambientes interno e externo, por parte dos integrantes do curso, cole-
tando informações para que se implementem ajustes necessários. Trata-
se de um processo contínuo e extremamente relevante para a construção
e reconstrução do saber organizacional e ambiental e para o alinha-
mento dos envolvidos no processo pedagógico.
Com uma visão alinhada do curso, professores, estudantes e ges-
tores tornam-se capazes de entender os seus lugares e papéis na estru-
tura da instituição, adquirindo consciência daquilo que é aceitável em
termos de desempenho, resultados e padrões, facilitando, com isso, a
realização de ajustes para assegurar a efetividade do produto pedagógico.

365
O monitoramento estimula uma avaliação permanente do que foi imple-
mentado via Projeto Pedagógico para incrementar a qualidade do curso
como um todo. Com a realização e publicação do Projeto Pedagógico,
como elemento base para avaliação e aprovação dos cursos nos dias de
hoje, é correto esperar que os professores, coordenadores de cursos,
chefes de departamentos e outros funcionários concebam suas discipli-
nas e cursos de modo a estimular o interesse e a iniciativa, a promover
desafios e a considerar os talentos individuais dos alunos. Portanto, é
importante que os professores planejem e ministrem suas disciplinas
e conteúdos considerando sua interrelação com outras disciplinas do
currículo, segundo um enfoque sistêmico.

Considerações finais

Os sofridos aprendizados decorrentes da pandemia do coronaví-


rus, são hoje contundentes e inquestionáveis. Eles expõem a necessidade
de avançar do discurso da inovação educacional, presente nos marcos
conceituais e legais da educação brasileira, para uma prática educativa
nos cursos de Comunicação no Brasil que incorpore os novos conceitos
sobre o papel da educação trazidos pelas novas demandas de formação.
A inovação pedagógica no ensino superior depende de diversos
fatores, desde o apoio e comprometimento institucional até o conhe-
cimento docente sobre o entendimento de práticas inovadoras. Nesse
sentido, seria importante que os professores fossem incentivados a aper-
feiçoar-se em termos pedagógicos para que pudessem propor inovações
em sua ação na sala de aula. A inovação, na esfera do ensino superior,
busca criar práticas pedagógicas mais autônomas e atrativas, que sejam
do interesse dos estudantes, que tenham sentido e significado para eles,
pois a motivação para aprender e engajar-se no processo de aprendiza-
gem depende igualmente do estudante e do professor, ao assumir seu
papel de mediador desse processo.
A elaboração do Projeto Pedagógico deve refletir o planejamento
da prática educativa, não devendo ser mais um entre tantos docu-
mentos institucionais para avaliação oficial, sem qualquer repercussão

366
na prática cotidiana. É preciso que os vários segmentos da estrutura da
IFE e do curso tenham ciência de que o trabalho de planejamento não
termina com o detalhamento dos planos de ação. Todos os profissionais
necessitam desenvolver o processo de avaliação e acompanhamento
dos planos de ação construídos coletivamente e, para que isso ocorra,
é necessário que se realize o levantamento e a análise das informações
referentes à execução das ações planejadas, para que seja possível cor-
rigir os rumos e fazer as adaptações necessárias ao longo do processo e
não apenas no final.
Esse acompanhamento permite a sistematização e distribuição de
informações para que os diferentes sujeitos do fazer educativo possam
rever suas posições, propor novas intervenções e tomar novas decisões.
Essa preocupação, possibilita uma negociação e avaliação permanente
da prática pedagógica de forma articulada à função social da universi-
dade, permitindo que a inovação pedagógica saia do discurso e se rea-
lize, viva, na prática.

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VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejamento: Plano de Ensino-Aprendiza-
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368
CAPÍTULO 17

A diáspora acadêmica africana


pós-colonial
Jéssica de Lima Fernandes1

Introdução

As diásporas ocorrem desde os tempos mais remotos. O fenômeno,


atualmente, pode estar ligado a motivos diversos, desde a fuga de cená-
rios de guerra até a busca por emprego ou qualidade de vida. A tendên-
cia da dispersão é mais frequente de países ou regiões menos desen-
volvidas para lugares mais estruturados. Neste capítulo, será discutida
a diáspora acadêmica africana, sob uma perspectiva pós-colonial, por
ser essa dispersão um dos motivos mais acentuados de deslocamento de
intelectuais para outros países.
A África é um continente extremamente afetado pela diáspora aca-
dêmica, o êxodo de cérebros que causa uma falta de pesquisadores e de
mão de obra qualificada em vários países do continente africano, uma
vez que grande parte dos intelectuais que se dispersam para estudar nos
países mais ricos não regressam a suas origens.
Neste capítulo, será apresentado o conceito de diáspora acadêmica
africana pós-colonial, tendo como base os estudos de diversos autores,
mostrando dados e desdobramentos dessa dispersão, em especial, a
diáspora exemplificada na vida e obra de Chimamanda Ngozi Adichie.
A autora conta a vida da personagem, Ifemelu, relatando sua vivência
no “Novo Mundo”, narrando, inclusive, seu sucesso e o preconceito
sofrido por ser uma mulher negra imigrante, transformando a forma

1 Jornalista pelo ICESP, graduanda de Letras-Inglês pela Universidade de Brasília (UnB).

369
como Ifemelu se percebia no contexto da diáspora e definindo a própria
postura como profissional e escritora.

O conceito da Diáspora

O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2008) define diáspora


como “dispersão de um povo ou de uma comunidade ou de alguns dos
seus elementos”. De acordo com Silva e Xavier (2018, p. 2), o conceito de
diáspora tem sido usado em referência à dispersão forçada dos povos
dos países africanos, em especial, para o Ocidente. O termo diáspora
foi originalmente usado na Bíblia, no livro do Deuteronômio 28:25, a
partir das traduções gregas, “baseando-se na etimologia muito citada
do termo do grego dia que significa “através” e speirein que significa
“semear” ou “Dispersão” (SILVA; XAVIER, 2018, p. 2).
Essa dispersão pode ser ocasionada pelas mais variadas razões,
desde um deslocamento forçado pela escravidão, por guerras, desas-
tres naturais, perseguições políticas ou religiosas. Ou até mesmo uma
dispersão ocasionada pela busca de trabalho ou melhores condições de
vida (SANTOS, 2008, p. 181).
Quanto ao seu uso, o termo “diáspora”, nos últimos 40 anos, tem
sido escolhido para demonstrar as conexões e ponto comuns entre
grupos de ascendência africana em todo o mundo, como aponta Brent
Hayes Edwards, em The uses of diaspora (2001, p. 41).

Diáspora Africana

Os termos “diáspora” e “dispersão”, além de servir para variados


usos, também têm sido usados, de acordo com Santos (2008, p. 181), em
estudos pós-coloniais, e ainda com o propósito de identificação étnico-
racial africana.

Também tem se prestado aos interesses políticos, ideológicos e eco-


nômicos que buscam aglutinar e, em alguns casos, levar de volta

370
para o continente de origem africanos e afrodescendentes espalha-
dos por todo o globo terrestre (SANTOS, 2008, p. 181).

A diáspora passou a ser amplamente estudada nas disciplinas de


História da África e Estudos Afro-americanos. Silva e Xavier apon-
tam que:

O primeiro Instituto de Estudos da Diáspora Africana foi criado


na Howard University em 1979 e reuniu um grupo internacional
de acadêmicos que promoveram uma série de conferências, proje-
tos de pesquisa e programas acadêmicos. Além da participação das
universidades americanas, outras universidades em Londres, Ale-
manha, França, entre outros, também criaram centros de pesquisa
(SILVA; XAVIER, 2018, p. 2).

As autoras ressaltam que esta área foi alimentada por estudos de


nomes importantes como W.E.B Du Bois, que pensava a diáspora como
um retorno à África, no sentido de unir as questões dos povos africanos
com as dos seus descendentes. Em Os usos da Diáspora, Edwards (2017)
faz menção a esse pensamento:

Considera-se em geral que essa ênfase numa colaboração de van-


guarda em direção a uma articulação unificada dos “povos africa-
nos” no nível da política internacional foi influenciada por diversas
correntes populares; a mais importante dessas correntes incluía as
diversas ideologias sobre o “retorno”, que foram um componente
frequente da experiência africana no Novo Mundo. De fato, Du Bois
chegaria mesmo a afirmar que as motivações do pan-africanismo
são paradigmaticamente afro-americanas. Se as populações negras
do Novo Mundo tiveram sua origem na fragmentação, na opressão
racializada e na desapropriação sistemática do comércio escrava-
gista, então o impulso pan-africanista origina-se da necessidade de
confrontar ou curar esse legado por meio de uma organização ela
mesma racial: por meio de ideologias de um retorno real ou simbó-
lico à África (EDWARDS, 2017, p. 42).

371
O pensamento de Du Bois nesse “retorno à África” contempla a
diáspora pós-colonial. Essa concepção de pós-colonialismo defendida
por Santos (2003, p. 26) como tendo duas acepções principais, a primeira,
definida pelo período após a colônia ter sua independência, e a segunda,
por uma desconstrução da narrativa escrita pelo colonizador. Ele afirma:

Na primeira acepção, o pós-colonialismo traduz-se num conjunto


de análises econômicas, sociológicas e políticas sobre a construção
dos novos Estados, sua base social, sua institucionalidade e sua
inserção no sistema mundial, as rupturas e continuidades com o
sistema colonial, as relações com a ex potência colonial e a questão
do neocolonialismo, as alianças regionais etc. Na segunda acepção,
insere-se nos estudos culturais, linguísticos e literários e usa privile-
giadamente a exegese textual e as práticas performativas para ana-
lisar os sistemas de representação e os processos identitários. Nessa
acepção, o pós-colonialismo contém uma crítica, implícita ou ex-
plícita, aos silêncios das análises pós-coloniais na primeira acepção
(SANTOS, 2003, p. 26).

Acerca das características do pós-colonialismo, Stuart Hall (2003,


p. 109) ressalta que o termo “pós-colonial” não se restringe a uma época
ou sociedade. O autor afirma que o “pós-colonial” faz uma releitura da
“colonização” como um processo global e ainda

produz uma escrita descentrada, diaspórica ou “global” das gran-


des narrativas imperiais do passado, centradas na nação. Seu valor
teórico, portanto, recai precisamente sobre sua recusa de uma pers-
pectiva do “aqui” e “lá”, de um “então” e “agora” de um “em casa” e
“no estrangeiro”. “Global” neste sentido não significa universal, nem
tampouco é algo específico a alguma nação ou sociedade. Trata-se
de como as relações transversais e laterais que Gilroy denomina
“diaspóricas” (GILROY, 1993) complementam e ao mesmo tempo des-
locam as noções de centro e periferia, e de como o global e o local
reorganizam e moldam um ao outro (STUART HALL, 2003, p. 109).

372
Antonio Alone Maia, em O Pós-colonial, a partir de Stuart Hall,
Ella Shohat e Chinua Achebe, escreve um artigo sobre intelectuais que
fizeram parte da diáspora colonial. No artigo, Maia (2015, p. 10) faz uma
afirmação sobre Stuart Hall, sociólogo jamaicano radicado no Reino
Unido: “Stuart Hall escreve não como jamaicano na Jamaica, mas sim,
como jamaicano vivendo na diáspora. Esse é o pano-de-fundo para
entender o lugar a partir do qual ele fala”. Da mesma forma o faz Chi-
mamanda Ngozi Adichie, em seu livro Americanah (2013), porém, tendo
como pano de fundo a Nigéria. Assim, é incontestável que a diáspora
pós-colonial acaba por definir o sujeito que faz parte deste contexto.

Perspectiva histórica da diáspora


pós-colonial na África

Em uma perspectiva histórica do ensino superior africano, de


acordo com o Plano Estratégico do Conselho para o Desenvolvimento
da Pesquisa em Ciências Sociais na África (2007, p. 3), o continente afri-
cano entrou em um período pós-colonial com uma quantia relativa-
mente pequena de universidades e centros de pesquisa avançada em
ciências sociais, isso desconsiderando os centros de pesquisa de ciências
coloniais (criadas em diferentes partes do continente). As universidades
mais antigas das universidades africanas modernas são: a Universidade
de Al-Ahram, no Egipto, o Colégio Fourah Bay (FBC), em Serra Leoa, a
Universidade de Cairo, no Egipto, e a Universidade de Argel, na Argélia,
fundadas em 1875, 1887, 1908 e 1909, nesta ordem.
Depois da criação das universidades citadas, houve um longo inter-
valo até o surgimento de novos centros formais de ensino e pesquisa
avançados, sobretudo, fora da África do Sul. Portanto, a CODESRIA
(2007, p. 3) afirma que só depois da Segunda Guerra Mundial que foram
criados os centros universitários de Kampala, Accra, Dakar, Ibadan,
Argel, Cairo e Cartum.
De acordo com os dados da CODESRIA, as universidades moder-
nas e centros de pesquisa avançada eram raros durante a fase colonial
Africana. Essa situação mudou somente no período pós-colonial.

373
O período pós-colonial no continente africano trouxe o cresci-
mento das universidades africanas ao mesmo passo que crescia uma
vida acadêmica e uma visão política da universidade como forma de
desenvolvimento nacional:

O surgimento e o crescimento acelerado das universidades caminha-


ram a par e passo com a criação de uma vida académica associativa
vibrante a nível nacional, sub-regional e continental. As várias asso-
ciações profissionais – desde associações de historiadores, cientistas
políticos, sociólogos e geógrafos às associações de filósofos, artistas
literários e economistas – deram um carácter distinto de pesquisa à
vida universitária e complementaram a cultura de seminários a nível
de docentes e departamentos e de palestras universitárias para anco-
rar o sistema de revisão de pares que estava a ser fomentado como
sendo um pilar fundamental para a excelência. A dinâmica da vida
associativa e a cultura de seminários despoletou o surgimento de jor-
nais académicos e serviu de justificativa para o lançamento da im-
prensa universitária. Embora as autoridades políticas possam ter tido
uma abordagem excessivamente utilitária em relação à universidade
em termos de vê-la em primeiro lugar, como uma avenida para a pro-
dução em massa de recursos humanos de alto nível para a urgente
tarefa do desenvolvimento nacional, os recursos, todavia, reservados
para o avanço das fronteiras da pesquisa e das bibliotecas eram, no
geral, tratados como recursos importantes que mereciam atenção
particular. Em muitos aspectos, este período na história da universi-
dade africana poderia, em termos de retrospectiva, ser caracterizado
como um dos melhores momentos na sua vida. Enquanto momento
em que as coisas funcionaram bem, o papel que o CODESRIA foi
chamado a desempenhar – e o nicho que o Conselho criou para si
próprio – implica naturalmente levar em conta esse estado relativa-
mente favorável de coisas (CODESRIA, 2007, p. 4).

Mesmo este período sendo um dos melhores com todo o potencial


e realizações da geração pioneira de universidades teve o seu declínio
com a deterioração no clima político e pela crise econômica, o que levou

374
ao colapso de todo o sistema universitário e consequentemente a fuga
de cérebros. O declínio que se instaurou no final dos anos 1970 trouxe
instabilidade política, acompanhada por violência e repressão político-
administrativas, piorando uma relação entre a academia e autoridades
políticas que, normalmente, não era agradável, fazendo com que as uni-
versidades fossem cada vez mais afetadas.

Foi assim, por exemplo, que Maquerere, um importante centro de


ensino regional e internacional no Uganda, foi gradualmente redu-
zido, primeiro, a uma universidade ugandesa de enfoque limitado e,
depois, face à crise política, a sombra do que era antes, sitiado e des-
provido de todas as formas de estudos sérios, precisando de novos
esforços para reconstruir as fundações básicas (CODESRIA, 2007, p. 5).

Diáspora acadêmica – A Fuga de cérebros

A diáspora acadêmica africana, ou seja, a dispersão de intelectuais


de países africanos para outros países, caracterizada por Marco Antônio
Dias (2017, p. 31) como “pilhagem de cérebros”, faz os especialistas ques-
tionarem sobre o que se deve fazer para evitar o êxodo de competências.
Feldman relata que no continente africano, poucos chegam a cur-
sar o ensino superior, profissionais que acabam por beneficiar outros
lugares do mundo:

A África está sangrando. Boa parte de seu sangue vital – indivíduos


instruídos, que poderiam ajudar a enfrentar seus problemas mais
graves – está se esvaindo. Essa “hemorragia” de engenheiros, médi-
cos, professores, enfermeiros, empresários, cientistas e outros profis-
sionais com extensa formação constitui a “fuga de cérebros” (brain
drain) da África. Em um continente onde relativamente poucos che-
gam a cursar o ensino fundamental, quanto mais o ensino superior,
esses indivíduos, em cuja formação a sociedade muitas vezes investe
um volume desproporcional de recursos, estão levando suas valiosas
habilidades para outras partes do mundo (FELDMAN, 2013, p. 28).

375
O fluxo da fuga dos cérebros não é equitativo, segundo Joanguete
existem países que recebem mais cientistas estrangeiros e outros que os
‘perdem’, quando há uma superação nos números de saída em relação
aos de retorno, porém nem sempre este cientista expatriado é ‘perdido’,
podendo contribuir igualmente para a transferência de conhecimento,
“mas no caso africano a situação é lamentável. Trata-se de cérebros per-
didos e sem retorno” (JOANGUETE, 2010, p. 119).
As razões pelas quais os indivíduos instruídos estejam deixando o
continente africano são inúmeras, como pontua Feldman:

A mais prevalente parece ser a renda bem maior que eles podem ob-
ter na Europa e em outras partes do mundo, em comparação à terra
natal. Em muitos países africanos, os salários são bastante baixos
em relação aos padrões internacionais, especialmente no caso de
profissionais como engenheiros, médicos e enfermeiros. Eles perce-
bem que seu valor econômico é bem maior fora do continente e, por
isso, estão saindo em massa, atraídos pelas melhores oportunidades
econômicas em outros lugares (FELDMAN, 2013, p. 29).

Dias ressalta que a Associação de Universidades Europeias analisou a


situação dos intercâmbios entre a Europa e a África, em 2010, com o obje-
tivo de encontrar saídas para reverter essa situação. Segundo Dias, “esti-
mava-se, em 2010, que, em escala mundial, o número de pesquisadores
formados na África representava apenas 2,3% do total mundial, percen-
tagem inferior à de um só país europeu, o Reino Unido”. Conforme Dias,
essa circunstância é propiciada por diversas razões, inclusive porque:

a maioria das pessoas formadas abandonava o continente ou a ele


não regressava, quando completava os cursos no exterior. Pesquisa-
dores, doutores, engenheiros, professores, administradores de alto
nível, buscam sempre encontrar lugares onde possam dispor de
melhores oportunidades de empregos, com salários decentes e boas
condições de vida para eles e suas famílias. Isto afeta a África, mas
também a América Latina e outras regiões em desenvolvimento ou
menos desenvolvidas (DIAS, 2017, p. 31).

376
No trecho, é percebido que profissionais que estiveram outrora em
posição de colonizados buscam melhores condições de vida em outros
continentes, além disso, aponta a posição complicada do continente
africano que possui desvantagem no número de pesquisadores forma-
dos e de mão de obra qualificada que estão no exterior:

Pesquisas baseadas na Universidade Católica de Louvain, por exem-


plo, revelam que 67% da mão de obra qualificada do Cabo Verde
estão no exterior, assim como 63% da de Gâmbia e 53% da de Serra
Leoa. Analisados dez países africanos, a média observada é superior
a 40% (DIAS, 2017, p. 32).

Os números mostram uma situação preocupante, e Dias ainda


revela que este cenário se intensifica pela redução dos investimentos
públicos (no ensino superior e pesquisa), bem como pelas desfavoráveis
condições de trabalho: “Os salários são por demais inferiores aos que
bons pesquisadores podem encontrar na Europa (de dez a vinte vezes
inferiores). O estímulo à fuga de cérebros torna-se então muito forte”
(DIAS, 2017, p. 32).
De acordo com Feldman, o Banco Mundial calculou em 2010, que
aproximadamente 30,6 milhões de africanos deixaram seus países de
origem. Sendo que a maioria destes indivíduos migraram para outros
países africanos. Apesar do padrão, 90% dos indivíduos que emigraram
do Norte da África se mudaram para países fora do continente.

Os dois destinos mais populares para a migração intracontinental


são a Costa do Marfim e a África do Sul, que recebem, respecti-
vamente, 8% e 6% dos emigrantes internos. A França, destino de
preferência para os que estão deixando o continente, recebe 9% de
todos os emigrantes. A Arábia Saudita recebe 5%. Os EUA e o Reino
Unido recebem 4% cada (FELDMAN, 2013, p. 30).

Em relação à fuga de cérebros, Dias (2017, p. 32), lista que em pri-


meiro lugar, no continente europeu vivem 48,3% dos diplomados afri-
canos; em segundo lugar, vem Estados Unidos, com 31,8%, em terceiro

377
lugar o Canadá, com 12,4%, e em quarto lugar, a Austrália, com 6,8%.
Os dados também revelam que existem, no continente africano, 169 pes-
quisadores por um milhão de habitantes. Esse número é bem pequeno
se comparado à Ásia que conta com 742 pesquisadores por um milhão
de habitantes, e ínfimo em relação aos 2.728 na União Europeia e 4.654
na América do Norte, por milhão de habitantes.

A urgência do regresso após o êxodo

A realidade do êxodo de cérebros que acarreta a falta de mão de


obra qualificada e de pesquisas no continente poderia ser evitada. De
acordo com Dias, os programas de cooperação bilaterais e multilaterais
deveriam criar condições para que esses pesquisadores retornassem a
seus países, para que desenvolvessem um trabalho com condições favo-
ráveis nesse retorno. De acordo com o autor, existem programas que
preveem esse tipo de cooperação:

Parece ser o caso de um deles na Universidade de Upsala na Sué-


cia (International Science Program – ISP), que dá prioridade não a
indivíduos isolados, mas a unidades, em particular departamentos
de universidades africanas. O programa atua no campo da química,
da física e das matemáticas. No período de 2003 a 2008, o programa
ISP foi implementado em 12 países, dos quais 10 na África Subsa-
ariana, tendo propiciado a obtenção de 138 doutorados e 600 mes-
trados com um êxodo de cérebros limitado a 5% (DIAS, 2017, p. 32).

Além do programa da Universidade de Upsala, Dias (2017, p. 34)


também menciona a China como um país que adotou uma política
correta para evitar a diáspora acadêmica. O autor ressalta que o país,
além de melhorar os equipamentos dos laboratórios de suas insti-
tuições, também garantiu condições favoráveis de trabalho. Dessa
forma, a China, no momento em que enviou estudantes para estudar
no exterior, se assegurou de que eles teriam boas condições de traba-
lho no regresso.

378
Enviar e financiar estudantes para ir ao exterior sem lhes propiciar
boas condições no retorno é, da parte dos países em desenvolvi-
mento, uma atitude de suicídio. Estarão dando, de mão beijada, aos
países ricos a possibilidade de recrutar os melhores cérebros, já com
formação avançada, dos países em desenvolvimento. Dispositivos
incitativos para a volta, assim como infraestruturas adaptadas no
domínio da pesquisa e melhores perspectivas de carreira, podem se
revelar mais úteis que medidas restritivas que criem obstáculos às
liberdades dos estudantes e dos pesquisadores (DIAS, 2017, p. 34).

José Antônio dos Santos (2008, p. 191), em Diáspora Africana, cita o


esforço realizado para viabilizar o regresso. Exemplo disso foi o Primeiro
Encontro em Angola de Quadros – angolanos na diáspora, em 2004, em
Luanda. Na ocasião, foi discutida a possibilidade de regresso para os
cidadãos bem-sucedidos, pela falta de mão de obra de profissionais,
intelectuais e técnicos, por conta da guerra civil angolana que ocorreu
de 1961 a 2002 e levou milhões de pessoas a deixarem o país. Santos res-
salta que, nesse caso, essa preocupação era direcionada à parcela bem-
sucedida da população, pois a grande maioria da diáspora angolana
continuava vivendo como refugiados de guerra, sofrendo toda sorte de
subemprego e subnutrição em alguns países do continente europeu.

A relação de Chimamanda Adichie


com a Diáspora Acadêmica Africana

Chimamanda Ngozi Adichie, nasceu em Enugu, Nigéria, em 1977.


De acordo com a biografia da escritora, disponível na página de Biogra-
fias de Mulheres Africanas da UFRGS (2014) o romance da autora Meio
sol amarelo (2006) “selou o status da escritora como um dos principais
nomes da literatura africana no início do século XXI”. A palestra de Adi-
chie intitulada O perigo de uma única história (2009) possui, no canal do
YouTube do Ted Talks, mais de 8,5 milhões de visualizações.
A jornada de Chimamanda com a diáspora começou quando ela
estudou medicina e farmácia durante um ano e meio na Universidade

379
Escola da Nigéria, mas percebeu que não queria seguir essa carreira.
Foi então que Adichie deixou a Nigéria para estudar Comunicação nos
Estados Unidos. Chimamanda faz parte da diáspora da Nigéria para os
Estados Unidos, mais especificamente da diáspora acadêmica.
Em uma perspectiva pós-colonial, Chimamanda, em suas obras,
conta histórias sob um olhar africano e imigrante. Em uma matéria da
Folha de S. Paulo, em 2017, sobre um livro que reúne 12 contos da escri-
tora, a autora da matéria, Giovanna Dealtry, destaca que Chimamanda
rompe com a representação uniforme da África.
Em O perigo de uma única história (2009), Adichie aborda o pro-
blema de resumir um país ou continente a uma coisa só. Como, por
exemplo, resumir o continente africano à pobreza e à escuridão.

Eu acho que essa única história da África vem da literatura oci-


dental. Então, aqui temos uma citação de um mercador londrino
chamado John Locke, que navegou até o oeste da África em 1561
e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos
negros africanos como “bestas que não tem casas”, ele escreve: “Eles
também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca e olhos em seus
seios”. Eu rio toda vez que leio isso, e alguém deve admirar a imagi-
nação de John Locke. Mas o que é importante sobre sua escrita é que
ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas
no Ocidente. Uma tradição da África subsaariana como um lugar
negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras
do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são “metade demônio, me-
tade criança (ADICHIE, 2009).

Assim como Stuart Hall escreve como um jamaicano vivendo a


diáspora, afirmação feita por Antonio Alone Maia (2015, p. 10) em O Pós-
colonial a partir de Stuart Hall, Ella Shohat e Chinua Achebe, Chima-
manda escreve com a Nigéria como o país de onde emigrou.
Em seu livro Americanah, Chimamanda conta a história da perso-
nagem Ifemelu, que está nos Estados Unidos, voltando para o seu país de
origem, que é o mesmo da autora, a Nigéria. Americanah é um romance
que narra a história de amor de Obinze e Ifemelu, que seguem caminhos

380
diferentes e se reencontram anos depois na Nigéria. Ifemelu tem uma jor-
nada diaspórica devido aos momentos difíceis enfrentados pela Nigéria,
e migra para os Estados Unidos, onde começa a estudar. Já Obinze migra
para o Reino Unido. No decorrer do romance, Ifemelu vivencia todos os
dilemas de ser uma mulher negra imigrante, sofrendo na pele o racismo, o
machismo e a xenofobia. Em Americanah, a questão racial não é percebida
pela personagem até o momento em que ela chega aos EUA, onde o pre-
conceito racial aflora. Ifemelu se destaca academicamente e consegue ser
bem-sucedida com um blog onde conta a sua realidade. Apesar do sucesso,
ela sempre está sofrendo diversos preconceitos por ser quem é, fazendo
com que a sua realidade defina a sua escrita, como uma imigrante africana
que vive uma vida acadêmica na América. Os personagens Obinze e Ife-
mellu se encontram anos depois na Nigéria, e, apesar de terem migrado
para continentes diferentes, eles passam por situações parecidas.

Embora as situações tenham suas particularidades, Ifemelu e Obin-


ze enfrentam condições semelhantes de discriminação racial, pre-
conceito, perda, dificuldades de adaptação e de empregabilidade,
isolamento e saudades. Essas questões, decorrentes da experiência
de mobilidade transcontinental, são centrais no romance, ensejando
uma condição pós-colonial de tensão entre passado e presente e de
intensas negociações entre abandono, manutenção ou reapropriação
de valores culturais, sejam nigerianos, ingleses ou estadunidenses. No
turbilhão da pós-colonialidade que caracteriza todas as dimensões
em Americanah, chamam-nos a atenção as estratégias de representa-
ção do processo de descolonização cultural articuladas por Adichie,
centralizadas na protagonista Ifemelu (BRAGA, 2019, p. 51).

Essas estratégias de representação do processo de descolonização


expostas por Braga (2019, p. 51) são apresentadas como novos posicio-
namentos que podem beneficiar o sujeito pós-colonial, que elabora os
efeitos opressivos da colonização, que perduram na mente, no espírito e
na imaginação pós-colonial. Braga ainda ressalta que é possível afirmar
que a descolonização cultural se faz presente nos projetos dos escritores
pós-coloniais do século XXI, e isto inclui Chimamanda Adichie.

381
Considerações finais

A diáspora é um termo que vem dos tempos mais remotos e que é


usado para caracterizar diferentes momentos e experiências da disper-
são. A partir dos tempos coloniais, os motivos da diáspora mudaram,
mas eles seguem tendo raízes na colonização, fazendo com que a pers-
pectiva pós-colonial seja fundamentada com críticas à concepção do
colonizador. O período pós-colonial não amenizou a diáspora acadê-
mica africana, que ainda se mostra muito forte, com a falta de incentivos
para o regresso de intelectuais aos seus países de origem.
Criar condições favoráveis de trabalho, melhorando o equipa-
mento dos pesquisadores e criando boas condições de regresso ao país
de origem são boas políticas que podem evitar a diáspora acadêmica,
e que se mostram fundamentais nesse processo, pois enviar e financiar
estudantes ao exterior sem esse planejamento pode se tornar uma “ati-
tude de suicídio” fazendo com que os países desenvolvidos se benefi-
ciem da diáspora.
Mesmo com o preconceito racial, a maioria dos intelectuais africa-
nos não retornam aos seus países de origem, em parte devido à falta de
incentivos para o regresso desses estudiosos.
Chimamanda Ngozi Adichie integra este capítulo como inspiração
e como exemplo atual da diáspora acadêmica. Ela conta brilhantemente
em Americanah a história de Ifemelu, uma mulher negra nigeriana que
sai de seu país para viver a diáspora na América. A escritora mostra seu
sucesso e suas dificuldades, em especial o preconceito racial, que não era
percebido pela personagem até a chegada aos Estados Unidos, fazendo
com que ela logo se percebesse como uma mulher negra e imigrante.
O fato de ser uma acadêmica vivendo a diáspora muda a jornada
social, científica e profissional da pessoa, que, ao mesmo passo que
vive várias adversidades, também tem a oportunidade de contar a sua
história de uma maneira diferente, como falar da colonização africana
sob a perspectiva do colonizado, e não somente sob a do colonizador,
fazendo com que as pessoas se identifiquem com um personagem como
Ifemelu, que é negra, imigrante, mulher e usa tranças no cabelo.

382
Referências bibliográficas

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384
CAPÍTULO 18

Ensaio sobre Comunicação


do Conhecimento
Juliana Ferreira1

Vivemos em uma sociedade dependente de ciência e tecnologia,


em que quase ninguém sabe algo sobre ciência e tecnologia.
Carl Sagan

Tratar sobre a construção do Conhecimento Científico seria o


mesmo que contar a evolução da humanidade, como organizamos as
informações sobre o mundo e sobre nós mesmos e como colocamos
essa construção de forma coletiva e certificada. A academia detém essa
função de qualificar e de assegurar os ritos de verificação do conhe-
cimento. As universidades valem-se como reprodutoras dessa lógica e
sedimentam as contribuições individuais em grandes coleções de sabe-
res. As estruturas e formas de pensamento conduzem a construção e a
organização das informações, as associações, classificações e parentes-
cos informacionais por afinidades e derivações.
Na compartimentação do conhecimento segue-se a especialização e
o refinamento de ideias e fatos para esmiuçar uma vertente fenomenoló-
gica. Mas há o paradoxo de que, quanto mais específico o conhecimento,
mais distante das ramificações originais e mais distante de um olhar inte-
grado com outras classificações e áreas do conhecimento. Não é à toa que
as áreas do conhecimento são também chamadas de disciplinas, dado que
se referem à ordem, à doutrina na instrução de um estudante, ao cumpri-
mento dos ordenamentos para uma profissão, ao senso da obediência e de
orientação e também ao aspecto punitivo da disciplina.
Esses aspectos trazem muita rigidez ao processo de acumulação de
conhecimento na academia e contrastam com a possibilidade de agregar

1 Possui graduação em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (1998) e mes-


trado em Comunicação pela Universidade de Brasília (2003). É Analista de Ciência e Tecno-
logia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq.

385
saberes locais e da percepção dos próprios alunos na complexa atividade
que é o aprendizado, assertivamente abordada por Paulo Freire. O autor
faz uma relação direta com democracia e ensino, dele se depreende que
há uma dissociação que leva à universidade um status de verdade e um
status elitizado apartando a população do universo acadêmico e também
afastando as possibilidades de apropriação do conhecimento gerado nas
universidades pela população com baixo nível de escolaridade.
Neste sentido, a proposta pedagógica de Paulo Freire coloca a comu-
nicação como parte do método de aprendizado para os dois lados, con-
siderando dois interlocutores, rompendo a hierarquização dos mantene-
dores dos saberes acadêmicos ou a manutenção da educação tradicional
bancária. Assim, o aluno passa a ser objeto e sujeito a quem se direciona
o ensino, ele faz parte ativamente da sua apropriação de conhecimento,
trazendo a democracia como cerne na construção histórico-social para
integração dos alunos em resgate à dignidade e à própria humanização de
pessoas marginalizadas, fora do letramento, por exemplo.
A questão da comunicação na dinâmica de aprendizagem foi
abordada por Paulo Freire no livro Extensão ou Comunicação e insere
a questão da relação gnosiológica, de como o conhecimento transita,
estabelecida intersubjetivamente na relação comunicativa entre os sujei-
tos. A argumentação traz um processo de autonomia dos estudantes,
uma referência contra a domesticação do pensamento e a disciplina, que
antes organizava os conhecimentos; passa a ter uma abordagem huma-
nizada e integradora entre sujeito, objeto e comunicação, agindo na
perspectiva da liberdade de pensamento, da criação de espírito crítico e
o que possibilitaria a democracia real.
A comunicação passa a ser um princípio democrático para o ensino
e para a formação política de uma comunidade e de uma sociedade. O
ensino, durante o período ditatorial, foi tratado no Brasil como extensão
e disciplinarização, em que os alunos eram encaixados em lógicas sub-
missas, como a experiência do MOBRAL2 e das cartilhas de alfabetização:
tornavam-se alfabetizados, mas iletrados, uma alfabetização funcional

2 O Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) foi criado como fundação em dezem-


bro de 1967, pela Lei no 5.379. Se de início o objetivo era alfabetizar apenas a população
urbana entre 15 e 35 anos, a partir de 1974 o MOBRAL inclui a faixa entre 9 e 14 anos.

386
isolada do letramento informacional. Segundo Gasque (2010), o letra-
mento constitui-se no processo de aprendizagem necessário ao desenvol-
vimento de competências e habilidades específicas para buscar e usar a
informação. Em outras palavras, o letramento informacional é a “estrutu-
ração sistêmica de um conjunto de competências que permite integrar as
ações de localizar, selecionar, acessar, organizar, usar informações e gerar
conhecimento, objeto da aprendizagem, visando à tomada de decisão e
resolução de problemas” (GASQUE; TESCAROLO, 2020).
Dentro das estruturas rígidas das disciplinas, as matérias, ou os
objetos aos quais se debruçam as ciências, tomam contornos específicos
conforme a área do conhecimento e cada disciplina traz uma aborda-
gem como uma lente que recodifica o mundo. A construção de discur-
sos hegemônicos dentro das disciplinas conduz o conhecimento na ten-
tativa de ampliar fronteiras imaginárias com o insondado, uma matéria
escura e intangível que nos impulsiona a revelar seus segredos, mesmo
que sejam apenas abstrações intelectuais de algum problema.
A formação dos campos, a construção do conhecimento e dos
saberes, o equilíbrio entre as áreas mostra que há uma imanência entre
as disciplinas como parte de um grande arcabouço do conhecimento
humano chancelado por ordens rígidas de institucionalização de sabe-
res: as universidades, que replicam o saber formal, o esmiuçamento das
conclusões de pesquisa pelos pares, os laboratórios e lugares de excelên-
cia onde os discursos de ordem do saber se configuram. A Ciência segue
a sua evolução neste formato há séculos, com uma busca incessante por
novas palavras, novas categorias, novas associações, novos elementos,
novas metodologias, novas formas de interpretar o mundo.
Nesse rigor de estilo e precisão, o respeitável universo acadêmico
precisa também se renovar e se repensar por meio dos seus sucessos
e fracassos, como resultado de experiências objetivas pautadas na
realidade representativa de culturas locais. É no local, em oposição ao
universal, que o conhecimento se concretiza e se faz presente, onde é
transportado de outras fontes para casar com um fragmento de espaço-
tempo local, pessoal e coletivo, transitório e fugaz.
Seria mais fácil elaborar interpretações em casos de sucesso como
consequências do conhecimento cumulativo, mas neste caso, trataremos

387
de um ensaio para aproximar algumas possíveis interpretações sobre a
potência da comunicação do conhecimento científico para a sociedade
brasileira no contexto de disputas de narrativas. Nessas disputas de nar-
rativas, entremeadas de conhecimentos fragmentados e de manipulação
informacional de cunho político, com teorias subterrâneas que povoam o
imaginário brasileiro, há uma impressão de fracasso informacional, de que
a população pode embarcar em grandes aventuras ficcionais sem base na
realidade. O fracasso que não deve ser entendido com um fracasso de ges-
tão, de ordem eminentemente política, porque tem justamente uma razão,
uma lógica cultural, um tanto indefinida, de como as verdades artificiais são
constituídas, como a academia foi estigmatizada e depreciada como desva-
lor cultural e como a ciência ou o conhecimento científico falhou em abaste-
cer, em alimentar, em fazer com que a sociedade brasileira se beneficie deles.
De forma otimista, dessa disputa pela categoria de “verdade” sobre
a pandemia viral de Covid-19, mais especificamente, podemos conside-
rar que temos um importante aprendizado coletivo para ser tratado em
âmbito democrático e representativo. A forma pessimista é que nesse
mercado de ideias, infelizmente, uma das consequências do engano da
população é a morte ou diversas sequelas advindas do contágio do vírus.
As falsas verdades e as narrativas distópicas distorcem os fatos a
ponto de parte da população brasileira desacreditar nas indicações pro-
pagadas pela OMS, pelos eminentes epidemiologistas, biólogos, médi-
cos e a comunidade internacional acerca das medidas protetivas e de
prevenção. Aliás, parte da categoria médica também proclama falsida-
des sobre tratamento precoce e o pensamento mágico da cloroquina e
da ivermectina presentes no kit contra Covid-19.
No contexto da propagação da desinformação sobre proteção na
pandemia, em meio a processos políticos, que se tornou o conhecimento
sobre a pandemia de Covid-19 no Brasil, faz-se cada vez mais necessário
que as ciências tomem a frente para fazer um diagnóstico social preciso
para compreender este fenômeno. Faz-se necessário elaborar propos-
tas para reverter a propagação dos falsos saberes, dos usos indevidos
de informações não acabadas e de uma espécie de crise persecutória
ou paranoia ou conspiratória que se tornou um grande instrumento de
manipulação de correligionários políticos.

388
O fracasso do processo de comunicação é mensurado em vidas
humanas perdidas que poderiam ser evitadas com tecnologias sociais
simples, mas de grande impacto cultural e político. A alternativa cons-
piratória consiste em uma avaliação vaga de que a economia não pode-
ria parar e que o impacto do isolamento social seria mais danoso para a
população que ficaria sem trabalho, sob a hipótese de que a economia tem
que ser mantida, independentemente dos critérios de segurança sanitária.
Nunca antes foi tão importante mostrar e enaltecer a necessidade
da transparência científica e a neutralidade política de dados e fatos
sobre o conjunto que se chama tratamento precoce, a vacina em si, e
as precauções sanitárias (uso de máscaras, isolamento, álcool em gel).
Diante da necessidade de transparência e da propagação e a apropriação
de conhecimentos e saberes produzidos pela Ciência, nunca se fez tão
importante a questão da publicização do conhecimento qualificado e
chancelado nos processos de pesquisa. Mas não se trata apenas de divul-
gar e sim, de comunicar, de estabelecer diálogos.
Digo processos de pesquisa porque o exercício da investigação
segue um certo rito para validação e reconhecimento da comunidade
científica e acadêmica ao seguir as rigorosas etapas estipuladas tanto
nos métodos (nas sequências e modalidades de abordagem, referências,
desenvolvimento de hipóteses, entre outros) quanto nas universidades
(na hierarquização entre aluno e professor e no processo de obtenção
dos títulos depois do rito da defesa). A produção do conhecimento é um
processo a depender do objeto, da abordagem, dos métodos adotados
delineados em cada área do conhecimento e em cada linha de pesquisa
e em cada arcabouço teórico escolhido para a elucidação de um pro-
blema. Por outro lado, a aquisição do conhecimento é um processo a
depender do sujeito e da troca dialógica entre sujeitos: “O que caracte-
riza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que
ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo” (FREIRE, 1983, p. 67)
Por outro lado, o conhecimento local deve ser considerado para
que as propostas de como lidar com a pandemia tenham de fato efetivi-
dade. Não adianta fazer um decreto de limites de mobilidade social se
não há a apropriação da comunidade que sustente e interpele a determi-
nação legal. Para isso se valem também os exemplos de personalidades

389
políticas, e extensas campanhas de conscientização e da necessidade de
vacinação massiva.
Não há muitas informações sobre as comunidades no interior, de
difícil acesso, a realidade das comunidades não foi relevada, caindo
em um intenso esforço dos agentes de saúde. As comunidades isola-
das e indígenas sofreram vários tipos de dificuldades, desde atritos
com madeireiros, mineiros, especuladores, agentes privados armados,
intervenções religiosas, invasão de terras, inação da FUNAI, ausência
de vacinas e fome. Por outro lado, comunidades urbanas organizadas
começaram a agir em grandes esforços solidários como a Central Única
das Favelas, por exemplo. Esses casos devem ser tratados especifica-
mente porque as ações são especializadas para cada tipo de necessidade
social. Entretanto, há duas características: a necessidade de aporte do
Estado, seja para a concessão de auxílio financeiro emergencial, seja
para a vacinação em massa dessas populações.
A aquisição de conhecimento não é apenas um processo singular
e pessoal, ela é dialógica e tem um componente emocional e um racio-
nal. Já a construção do conhecimento requer um ambiente coletivo e
validado, o seu ponto máximo passa pela comunicação do produto aca-
dêmico. A comunicação é a síntese da pesquisa (lembrando a máxima
marxista do materialismo histórico: tese – antítese – síntese), mas de
nada serviria se não houvesse uma interlocução. No caso, a interlo-
cução vem por meio dos pares, professores e colegas, no momento da
defesa e em cada possibilidade de palestra, debate e de consolidação
de artigos científicos. Ambientes que são limitados e que não fornecem
muita abertura a um público não especializado ou minimamente fami-
liarizado com o modus operandi do universo acadêmico. Dessa forma, a
comunicação científica fica também muito limitada e a produção de dis-
cursos acadêmicos não dialoga com a população abertamente, ficando
delineada em seu campo.
A comunicação da pesquisa passa a outro padrão, um universo
em que se mistura mercado e validação acadêmica e testa a excelência
da pesquisa pelos seus efeitos nos pares pesquisadores e a capacidade de
agregar ao conhecimento do discurso dominante na área, na linha de
pesquisa e no tema abordado. O universo das publicações científicas tem

390
características também sintéticas do meio em que é produzido, em geral,
é especialista, hierárquico, oligárquico e elitista, não tem a pretensão de
ampla divulgação para todos os públicos e visa apenas a comunicação
com os pares. A relevância dos artigos passa a ter a quantificação das suas
citações como um dos indicadores de qualidade do artigo e da pesquisa.
A elitização do saber trouxe também uma espécie de estratificação
no público-alvo das revistas, propondo camadas de públicos diferentes,
conforme seus interesses e características. Em uma tentativa de catego-
rização, é proposta aqui a divisão em níveis de interesse, de conexão e
de objetivo das publicações.
O primeiro nível, de relação mais direta, se dá entre os pares, assim
estabelecendo o nível mais intenso de interesse de público, é o que se
correlaciona e promove possíveis debates, citações, controvérsias entre
outros afetos. Existe um nível de interesse menos intenso, referente às
intersecções interdisciplinares e paralelas de cientistas de outras áreas
que se interessam mais pelo método do que pelo resultado. Há um ter-
ceiro nível que diz respeito à alimentação do mercado de revistas cien-
tíficas que necessita dos artigos para se manter. Há um quarto nível,
relativo aos gestores públicos e administradores que necessitam de
indicadores de publicação e de citação para estabelecerem métricas de
qualidade e de sucesso das pesquisas fomentadas. Há um quinto nível
referente à inovação, onde empresas estariam interessadas em serviços
ou produtos para o mercado. Há ainda um sexto nível de curiosos inde-
finidos que tem interesse diletante pelo conhecimento.
De fato, nesse esquema estratificado de públicos de revistas científi-
cas há o principal ao qual o universo da publicação científica não se dirige,
que é o público não iniciado ou não especializado na definida área do
conhecimento do artigo, nem no mercado, nem no meio acadêmico. Esse
deveria ser considerado o mais importante, pois se trata da capacidade de
comunicação com a própria sociedade na apropriação do conhecimento
construído para a vida em coletividade, para o homem comum.
Essa estratificação do público reflete também na estratificação do
saber em sua característica elitizante. Essa estratificação traz uma nova
dimensão de disciplina na compartimentação do conhecimento, pois
separa categorias de seres humanos conforme seu capital intelectual

391
e organiza a sociedade de forma excludente. Essa relação estratificada
do conhecimento pode ser considerada como uma espécie de valor, de
economia do conhecimento que tange a uma sociedade de desiguais. A
apropriação de parcelas do conhecimento e a estratificação dos públicos
subvertem a própria noção de conhecimento que passa a ser tratado
como um bem, como forma instrumentalizada de poder, em que se
manipulam as opiniões em casos de exposição em mídia massiva. Dessa
forma, as verdades científicas ficam muito distantes do homem comum
e passam a ser, mais do que ignoradas, desprezadas, com a desvaloriza-
ção do que foi produzido na academia. Os artigos acadêmicos para os
pares perdem a sua capacidade dialógica de comunicar suas pesquisas,
resultados e descobertas, para a sociedade.
O grande problema da comunicação estratificada, além da perda
da capacidade dialógica com o público não especializado, é a manipula-
ção das informações para uso político e a falta de autonomia da popula-
ção nos seus processos de escolha e de decisão. Uma das propostas para
mudar esse quadro seria investir na educação inclusiva, que permitisse ao
interlocutor se posicionar criticamente sobre as peças com informações
veiculadas sem qualificação, que transitam em seu meio social, extrato
informacional ou categoria de interesses. De outra forma, a projeção para
o futuro seria a permanência da intolerância conceitual, com violência
estrutural, no cerne da sociedade brasileira. Resta, então, fazer um grande
esforço pela comunicação dialógica que traz autonomia e liberdade.

(Em respeito aos grandes exegetas da educação no Brasil, Paulo


Freire, nosso patrono, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro que sempre ensina-
ram que ensino e democracia são fundamentais para a consolidação de
projeto de um País autônomo).

Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Olivei-
ra, prefácio de Jacques Chonchol, 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Dispo-
nível em: https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/7.-Extens%C3%A3o-
ou-Comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educati-
va. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Disponível em: https://cpers.com.br/wp-content/
uploads/2019/09/9.-Pedagogia-da-Autonomia.pdf.
GASQUE, Kelley Cristine Gonçalves Dias. O pensamento reflexivo na busca e
no uso da informação na comunicação científica. 2008. Tese (Doutorado em
Ciência da Informação) – Departamento de Ciência da Informação, Faculdade de
Estudos Sociais Aplicados, Universidade de Brasília, Brasília.
GASQUE, Kelley Cristine Gonçalves Dias; TESCAROLO, Ricardo. Desafios para
implementar o letramento informacional na educação básica. Educação em Re-
vista, UFMG, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, apr. 2010. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S0102-46982010000100003&script=sci_arttext. Acesso
em: 1 mar. 2010.

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Este livro foi produzido nas fontes
Minion Pro e Raleway,
em dezembro de 2022.
Ana Carolina Melo • Cláudia Peixoto de Moura •
Dione Oliveira Moura • Elen Geraldes • Elton Bruno
Pinheiro • Fábio Hansen • Fábio Henrique Pereira
• Fernando Oliveira Paulino • Francisco Rüdiger •
Guilherme Carvalho • Hemanuel Jhosé Alves Veras
• Jean Marcel da Silva Campos • Jéssica de Lima
Fernandes • José Luiz Braga • José Luiz Niederauer-
Pantoja • Juliana Ferreira • Juliana Petermann
• Marco Antonio Dias • Mayara da Costa e Silva •
Ricardo de Alcântara Dantas • Rodrigo Stefani Correa

ISBN: 978-85-524-0341-8

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