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Iniciação à docência:

espaços, conexões
e processos no
PIBID/UFRGS
Luciane Uberti
Roselane Zordan Costella
Andrea Hofstaetter
Organizadoras

Iniciação à docência:
espaços, conexões
e processos no
PIBID/UFRGS

OI OS
EDITORA

2017
© Dos autores – 2017
luciane.uberti@gmail.com

Editoração: Oikos
Capa: Umbelina Barreto
Revisão: Carlos A. Dreher
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund

Conselho Editorial (Editora Oikos):


Antonio Sidekum (Ed.N.H.)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (Unisinos)
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I56 Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS /


Organizadoras Luciane Uberti, Roselane Zordan Costella e Andrea
Hofstaetter. – São Leopoldo: Oikos, 2017.
224 p.; 16 x 23cm.
ISBN 978-85-7843-703-9
1. Professor – Formação. 2. Práticas pedagógicas. 3. Ensino e
aprendizagem. I. Uberti, Luciane. II. Costella, Roselane Zordan. III.
Hofstaetter, Andrea.
CDU 371.13
Catalogação na publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário

Apresentação ............................................................................................. 7
Andrea Hofstaetter
Luciane Uberti
Roselane Zordan Costella
Dos embates às potencialidades do PIBID: um olhar retrospectivo ........... 11
Andrea Hofstaetter
Luciane Uberti
Roselane Zordan Costella
Analisando o movimento “Escola sem Partido”, seus problemas
e concepções: um relato do PIBID História/UFRGS ................................ 21
Gabriel dos Santos Giacomazzi
Carolina Boschi Monteiro
Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos
no ensino de filosofia ............................................................................... 37
Inara Zanuzzi, Leonardo Porto, Rúbia Vogt, Fábio Goulart,
Alexandre Hidalgo Nicolini, Dominique da Silveira Quevedo,
Eduardo Teles, Gianluca Ravasio Focchesatto,
Márcia Gabrielle Rodrigues Laux, Maria Carolina Gurgacz,
Marina Silveira da Silva, Rafaela Antunes Nunes,
Ronald Augusto da Costa e Tabaré José Reynoso.
Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização
no espaço escolar ..................................................................................... 49
Gabriel Schenkmann Arnt
Rosimeri Aquino da Silva
Projeto Dom Quixote no cotidiano – uma experiência de leitura
e produção textual em língua estrangeira no Ensino Fundamental
em escola estadual .................................................................................... 60
Giovana Oliveira
Kimberling Schaun
Monica Mariño Rodriguez
Do Haiti ao Brasil e vice-versa: a prática da pedagogia
de projeto no PIBID/Francês ................................................................... 68
Sandra Dias Loguercio
Daniela Paulina Führ
Jéssica Pozzi
Júlia Hartmann das Chagas.
Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar ...................... 82
Antonio Carlos Castrogiovanni
Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID da Educação Física . 96
Eduardo Rodrigues Oliveira
Rogério da Cunha Voser
Dia do Lazer PIBID-UFRGS-Educação Física: desenvolvendo
competências através do lúdico e da tecnologia ....................................... 112
Clézio Gonçalves
Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística
na rede pública ....................................................................................... 123
Ana Paula Silva dos Reis
Flavia Pilla do Valle
As moscas pibidianas na sopa da educação ............................................. 137
Paula Mastroberti
Como fazer um texto a seis mãos? .......................................................... 156
Umbelina Barreto
Lia Regina Roveda Tassi
Juliana Gonzalez
Eliana Uczak
Eduardo Turski
Ário Gonçalves
Ressonâncias do aprender em uma prática docente no ensino da Geometria... 176
Lisete Regina Bampi
Letícia Diello

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Apresentação

A produção de mais um livro com relatos de experiências e reflexões


sobre o trabalho do Projeto PIBID/UFRGS junto a escolas da rede pública de
Porto Alegre é mais uma oportunidade de conhecer um pouco daquilo que
move as ações de cada subprojeto envolvido. Todas as áreas de conhecimento
da Educação Básica e todas as suas disciplinas fazem parte de nossa atuação.
Nesta publicação estão presentes disciplinas de três áreas, a saber: Ciências
Humanas, Linguagens e Matemática. Em cada um dos capítulos, o leitor po-
derá compartilhar das inquietações e produções que acompanham a iniciação
à docência em nosso projeto.
No artigo intitulado “Dos embates às potencialidades do PIBID: um
olhar retrospectivo”, as autoras Andrea Hofstaetter, Luciane Uberti e Rosela-
ne Zordan Costella analisam o desenvolvimento do programa na universidade
desde o ponto de vista de quem atua na coordenação institucional e de gestão.
Trata-se de uma análise que situa o PIBID na área da formação de professores,
problematiza a Portaria da CAPES 046/2016, que, embora felizmente revoga-
da, pode sinalizar pretensões de políticas públicas futuras para, por fim, indi-
car a importância de tal projeto tal como proposto atualmente.
O capítulo “Analisando o movimento ‘Escola sem Partido’, seus pro-
blemas e concepções: um relato do PIBID História/UFRGS”, produzido pela
equipe de coordenadores do subprojeto História, faz uma abordagem crítica
da proposta do Movimento Escola sem Partido, contra-argumentando a partir
das incongruências e contradições do próprio projeto. O grupo toma posição
em favor de uma escola sem mordaça, de uma educação de qualidade, defen-
dendo o ensino e a aprendizagem emancipadores e contextualizados da histó-
ria, dando a ver ações tomadas em favor da disseminação da discussão sobre
este projeto em escolas onde atuam e na sociedade como um todo.
“Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos no ensi-
no de filosofia” é uma produção da equipe de bolsistas de iniciação à docência
do subprojeto Filosofia. Os autores trazem relatos de atividades que proble-
matizam a maneira pela qual nos colocamos a ensinar determinados temas
sem incorrer em posturas de pretensa neutralidade ou de proselitismo moral.
Os pibidianos se perguntam sobre como trabalhar a diversidade sexual, por

7
Apresentação

exemplo, sem pressupor ser neutro, nem mesmo doutrinador. Para fugir de tal
binarismo, os autores afirmam que, ao longo da organização curricular, o do-
cente deve procurar favorecer a capacidade de refletir e avaliar, investindo na
autonomia intelectual e de pensamento dos alunos.
Em “Registros Pibidianos sobre uma tentativa de democratização no
espaço escolar”, Gabriel Schenkmann Arnt e Rosimeri Aquino da Silva anali-
sam como a inserção de estudantes de licenciatura na Educação Básica tem
contribuído para a compreensão da sociologia na educação contemporânea.
Os autores destacam as aprendizagens feitas no que se refere à compreensão
sociológica das experiências de gestão democrática e de experimentação da
autonomia na escola e, especialmente, a necessidade de compreender o campo
em permanente construção e desconstrução, sujeito às alterações propostas
pelos diferentes projetos de governo.
Giovana Oliveira, Kimberling Schaun e Monica Mariño Rodriguez apre-
sentam, no capítulo intitulado “Projeto Dom Quixote no cotidiano – uma
experiência de leitura e produção textual em língua estrangeira no Ensino Fun-
damental em Escola Estadual”, uma experiência de apropriação de leitura e
de produção de escrita em espanhol. Partindo de um clássico da literatura, os
alunos se envolveram com um projeto de escrita de contos autorais, em que
contextualizam Dom Quixote no mundo contemporâneo. O percurso foi mar-
cado por descobertas e surpresas a respeito das próprias habilidades de ler e
escrever em espanhol, a partir do que foi sendo construído e proposto pelas
bolsistas de iniciação à docência.
“Do Haiti ao Brasil e vice-versa: a prática da pedagogia de projeto no
PIBID/Francês” constitui-se de uma contribuição de Sandra Dias Loguercio,
Daniela Paulina Führ, Jéssica Pozzi e Júlia Hartmann das Chagas. A partir da
análise de suas experiências no subprojeto Francês, em especial, de uma pro-
posta que os aproximou de imigrantes haitianos, as autoras destacam a rele-
vância do ensino do francês como língua estrangeira para a realidade da esco-
la pública brasileira. Para as autoras, um ensino que aborde a francofonia, as
diferenças culturais e a variação linguística da língua é tão importante quanto
desafiador, tendo em vista, entre outras dimensões, as características das socie-
dades contemporâneas.
O artigo de Antonio Carlos Castrogiovanni, intitulado “Fazendo e acon-
tecendo no espaço geográfico – nosso lugar”, demonstra uma preocupação
com a possibilidade de a Geografia distanciar-se do currículo escolar e descre-
ve a importância do conhecimento geográfico na composição curricular. O

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

aluno precisa compreender o conteúdo como autor no espaço geográfico, ex-


perimentando a cidadania. Para tanto, apresenta algumas atividades práticas
desenvolvidas no subprojeto, que demonstram o sentido do que pode ser o
processo de ensinar e aprender para o campo de conhecimento da Geografia.
No texto “Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID da
Educação Física”, Eduardo Rodrigues Oliveira e Rogério da Cunha Voser per-
guntam a respeito das motivações que levam os acadêmicos a se inscreverem
para ser pibidianos. Para tanto, apresentam e analisam as respostas dadas pe-
los ingressantes no subprojeto PIBID – Educação Física/Esporte, que enfo-
cam a qualificação da formação do futuro professor de Educação Física. Por
fim, os autores defendem que o licenciando tem a chance de problematizar as
questões da área antes do término da graduação, experienciando situações
antecipadamente e aprendendo a superar os desafios da prática educativa do
educador físico.
Clézio Gonçalves colabora com este livro no texto “Dia do lazer PIBID-
UFRGS-Educação Física – Desenvolvendo competências através do lúdico e
da tecnologia”. O autor aborda a necessidade de considerarmos o desenvolvi-
mento e a aprendizagem humana desde a perspectiva lúdica, no intuito de nos
distanciarmos de metodologias de ensino conteudistas, cujo efeito na aprendi-
zagem torna-se questionável. Defende, com isso, uma maior disponibilidade
do professor em acolher o universo subjetivo presente no cenário da atividade
lúdica.
“Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística na
rede pública”, de Ana Paula Silva dos Reis e Flavia Pilla do Valle, expõe refle-
xões sobre metodologias de ensino no subprojeto de Dança. O artigo relata
uma experiência de docência a partir dos processos de criação utilizados na
disciplina de Educação Artística dos anos finais, na Escola Estadual de Ensi-
no Fundamental Fabíola Pinto Dornelles, na cidade de Porto Alegre, minis-
trada pela supervisora e o bolsista do PIBID. Assim, o texto explora a dimen-
são criativa, as metodologias e técnicas no ensino da dança no intuito de refle-
tir sobre as escolhas docentes e as concepções pedagógicas que subsidiam a
prática docente.
“As moscas pibidianas na sopa da Educação”, de Paula Mastroberti,
faz um relato de experiência desde a entrada da autora na coordenação do
subprojeto de Artes Visuais, passando por algumas experiências no programa,
até a experimentação de dificuldades de ordem político-pedagógica enfrenta-
das pelo PIBID na UFRGS. A partir de uma concepção de heroísmo distante

9
Apresentação

do senso-comum, o pibidiano é considerado um herói, protagonista da pró-


pria luta, que enfrenta obstáculos para superar problemas comuns ao campo
educativo. Por fim, destaca-se que o PIBID possibilita um diálogo profícuo
entre universidade e escola, bem como entre professores e estudantes nos dife-
rentes níveis de atuação.
O artigo intitulado “Como fazer um texto a seis mãos?”, de Umbelina
Barreto, Lia Regina Roveda Tassi, Juliana Gonzalez, Eliana Uczak, Eduardo
Turski e Ário Gonçalves, é uma apresentação de propostas realizadas por cinco
bolsistas de iniciação à docência do subprojeto de Artes Visuais coordenado
pela Prof.ª Umbelina Barreto. Cada um dos cinco bolsistas apresenta seu per-
curso de formulação, execução e reflexão sobre projetos de trabalho realizados
com diferentes turmas, na Escola Estadual Anne Frank, em Porto Alegre, e o
leitor é levado a realizar as articulações entre os projetos através do olhar reflexi-
vo lançado sobre a intervenção nos espaços da escola, ancorado nas alusões à
poesia de Manoel de Barros e nas reflexões de Morin e Maturana.
“Ressonâncias do aprender em uma prática docente no ensino da geo-
metria”, constitui-se de um texto produzido por Lisete Regina Bampi e Letícia
Diello. As autoras colocam-se a perguntar sobre a possibilidade de mostrar
ressonâncias do aprender, desde a perspectiva de Gilles Deleuze. As experiên-
cias do PIBID de Matemática são problematizadas desde a compreensão do
aprender como tradução de signos e exemplos didáticos de criação, com o
objetivo de desenvolver novos sentidos à prática educativa.
Desejamos que a leitura desta publicação seja inspiradora e motive para
a criação de novas propostas e discussões!
As organizadoras

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Dos embates às
potencialidades do PIBID:
um olhar retrospectivo
Andrea Hofstaetter1
Luciane Uberti2
Roselane Zordan Costella3

O atual projeto do PIBID-UFRGS teve início em 2014, por meio do


Edital 61/2013 CAPES-MEC, com previsão de estender-se por um período de
4 anos. O período de 3 anos e alguns meses decorridos até agora trouxe inú-
meras experiências e embates, considerando-se o contexto de atuação, que é a
Educação Básica em articulação com a Educação Superior. Estamos, portan-
to, no último ano de sua execução, tendo um bom motivo para fazermos uma
avaliação desde um olhar retrospectivo. Pois este é o objetivo do texto que ora
se apresenta.
Trabalhamos com foco na formação inicial e continuada de professores,
em cursos de Licenciatura de todas as áreas e disciplinas presentes na Educa-
ção Básica. Agrupamos professores universitários de 19 cursos de Licenciatu-
ra da UFRGS, integrados a professores licenciados atuantes em escolas públi-
cas, a estudantes de graduação de nossos cursos e a estudantes e gestores da
Educação Básica da rede pública de ensino.
Professores da universidade orientam alunos da licenciatura para atua-
rem na Educação Básica junto a supervisores na própria escola. Atuamos em
escolas públicas, em convênio com a Secretaria Estadual de Educação do Rio
Grande do Sul, com a intenção de contribuir para um atendimento qualifica-
do aos alunos que dele necessitam. Acreditamos no potencial da educação de

1
Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFRGS, da área de Ensino de Arte e Coordenado-
ra de Gestão de Processos Educacionais do PIBID-UFRGS.
2
Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFRGS, da área de Didática, Currículo e
Formação de Professores e Coordenadora de Gestão de Processos Educacionais do PIBID-
UFRGS
3
Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFRGS, da área de Ensino de Geografia e
Coordenadora Institucional do PIBID-UFRGS.

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HOFSTAETTER, A.; UBERTI, L.; COSTELLA, R. Z. • Dos embates às potencialidades do PIBID

qualidade para a transformação de histórias de vida e para a projeção de pers-


pectivas de formação e atuação no seio da sociedade.
O total de pessoas atingidas direta ou indiretamente pelo projeto PIBID-
UFRGS ultrapassa 20.000. O impacto do trabalho é percebido em cada encon-
tro com grupos e pessoas envolvidas. É visível, através de relatos, vivências,
diálogos e trocas de experiências de mais variadas formas, como este envolvi-
mento afeta a formação de cada um dos participantes; como esta oportunida-
de cria possibilidades de aprendizagem para todos; como as realidades de tra-
balho e reflexão são atingidas, no sentido de ampliar as referências para a
construção da docência e da professoralidade (PEREIRA, 2010, p. 63); como as
formas de aprender vão alcançando outras dimensões além daquelas já vivi-
das e experimentadas.
O PIBID é um programa de bolsas de iniciação à docência, sendo um
dos focos principais a construção da docência, o tornar-se professora ou pro-
fessor. Esta construção está intimamente ligada à subjetividade, à construção
de si. O campo da docência é um campo de permanente transformação, assim
como são os contextos de vida dos quais a educação faz parte. Tornar-se profes-
sora ou professor é um processo de constituição de si. Marcos Villela Pereira, ao
referir-se a estes processos utiliza o termo professoralização e professoralidade, en-
tendendo que esta é “uma marca, um estado singular, um efeito produzido no (e
pelo) sujeito” (PEREIRA, 2010). E nas experiências de constituição de si, todos
os movimentos “produzem num mesmo lance o sujeito e o professor. O sujei-
to se professoraliza e se subjetiva ao mesmo tempo. E, ao se professoralizar,
contribui para a subjetivação de outros sujeitos” (PEREIRA, 2010, p. 63).
A construção da professoralidade é um processo permanente e sempre
inacabado. É tarefa interminável. E se faz a partir dos sentidos atribuídos às
realidades experienciadas pelos sujeitos. Ainda de acordo com Villela Pereira,
“os processos de subjetivação e de professoralização representam uma via bas-
tante importante para assumir a formação e a auto-formação como processos
infindáveis” (2010, p. 65). Cada um vai realizar suas construções subjetivas de
forma singular, de acordo com seus referenciais de vida e visões de mundo,
marcadas por histórias, culturas, vivências e fatores diversos, múltiplos, dife-
renciados. E que vão se acrescentando e transformando no decorrer da vida.
O PIBID, como campo de construção da professoralidade, é um grande
compartilhamento entre processos de professoralização e de constituição da
subjetividade daqueles com quem se compartilham saberes, conhecimentos e
experiências, entre professores em formação, professores atuantes em diferen-
tes níveis de ensino, e os estudantes crianças, jovens e adultos, para quem o
trabalho é dirigido. Dessa forma, tem contribuído muito para a constituição

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

da subjetividade de todos que têm tido a oportunidade de fazer parte desta


trajetória.
Neste percurso, há muito a ser comemorado e rememorado. Vários fo-
ram os momentos de discussão em reuniões, seminários internos, seminários
nacionais, viagens para apresentação de trabalhos, grupos de estudo, reuniões
pedagógicas semanais, realização de projetos interdisciplinares, trocas entre
participantes de diferentes subprojetos e, sobretudo, de aprendizagem nos en-
contros de sala de aula e nos espaços do ambiente escolar, com os alunos das
escolas de atuação. Feiras, oficinas, jogos, aulas diferenciadas, apresentações de
projetos e de criações realizadas, saídas de campo, descobertas com experiências
das mais diversas, contato com manifestações artísticas e culturais, idas a ex-
posições, museus, cinema, teatro, explorações por ambientes desconhecidos e
encontros inusitados com objetos de estudo das mais diversas áreas, marca-
ram indelevelmente a memória, o corpo, a mente, o afeto de cada um.
Toda esta bagagem acompanhará cada sujeito participante, produzindo
outros frutos e criações ao longo da vida e em contato com outros sujeitos.
Não há como não multiplicar e compartilhar estas experiências e aprendiza-
gens com outros sujeitos. Os pibidianos levam consigo várias sementes a se-
rem lançadas por onde passarem, como propositores de novas experiências e
novos compartilhamentos multiplicadores.
A trajetória, no entanto, teve momentos árduos. Vivemos, nestes últimos
tempos, algumas situações difíceis no campo das políticas públicas para a Edu-
cação, em que foi necessário lutar pela permanência do próprio programa, bem
como pela manutenção das atividades e propostas planejadas, em função do
corte de recursos inicialmente previstos para a viabilização do trabalho.
Tivemos que lutar persistentemente contra uma portaria que pretendia
impor mudanças radicais no desenho do projeto, com alteração drástica da-
quilo que estava em andamento e no qual todos os envolvidos acreditavam
como sendo a maneira mais apropriada e necessária de atuação e articulação.
A alteração dos objetivos e regras do programa, reconhecido e legitimado pela
LDB em 2013, sofreu tentativa de alteração pela Portaria n. 046/2016 da CA-
PES. Precisamos sair às ruas portando faixas e bandeiras, em defesa do que já
havia sido construído e que havia mostrado ótimos resultados. Necessitáva-
mos convencer o poder público da validade desta proposta de trabalho e da
situação de emergência em que se encontrava, o que foi realizado com dedica-
ção e paixão.
Durante o período de vigência da portaria, foi necessário, também, ade-
quar as propostas e planejamentos aos cortes no orçamento inicial, que previa
um montante mais substancial do que aquele que se mostrava possível a partir

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HOFSTAETTER, A.; UBERTI, L.; COSTELLA, R. Z. • Dos embates às potencialidades do PIBID

dali. Coordenadores de área, supervisores e bolsistas de iniciação à docência


tiveram que usar muito de sua criatividade para produzir materiais de trabalho
e organizar atividades, contando com recursos reutilizáveis e buscando alter-
nativas para gerir os poucos recursos disponíveis.
Uma luta constante foi também pela permanência do número de bolsis-
tas, através do lançamento de editais para suprimento de vagas abertas de subs-
tituição. Dispusemos de uma atenção cuidadosa para com os processos de
cadastramento e de descadastramento de bolsistas para não recair na então
compulsória redução de vagas. Desta forma, muitos estudantes de Licenciatu-
ra tiveram a oportunidade de passar pelo programa e com ele também apren-
der. Consideramos que todas essas articulações microfísicas permitiram ao
PIBID, em nível nacional, barrar a Portaria 046/2016, de cuja orientação po-
lítico-pedagógica discordamos veementemente.

O embate
Profissionais da educação, de todo o país, comprometidos com o for-
talecimento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID e PIBID Diversidade) marcaram posição em defesa do importante
trabalho realizado pela parceria entre universidades e escolas públicas. Inte-
grante desse movimento, o FORPIBID também manifestou-se contrário à
Portaria n. 046/2016 da CAPES, publicada no DOU de 15 de abril de 2016,
pedindo sua revogação. A Portaria n. 046/2016 da CAPES exigiu que as IES
assinassem um termo de adesão, renunciando aos projetos institucionais em
andamento (Editais 061 e 066/2013 regidos pela Portaria 046/2013), rompen-
do com a vigência programada até dezembro de 2017.
Na UFRGS, tal como no FORPIBID, entendemos que “a Portaria n.
046/2016 muda o enfoque do PIBID, deslocando a natureza do Programa da
formação inicial de professores para atender à demanda por reforço escolar,
tida como solução para melhoria nos índices de aprendizagem. O documen-
to: 1) determina o fim dos subprojetos organizados por cursos de licenciaturas;
2) não menciona áreas de conhecimento do PIBID, tais como Licenciatura em
Educação Física, Artes Plásticas e Visuais, Ciências Agrárias, Música, Dança,
Ciência da Informática/Computação, Teatro, Psicologia, Enfermagem, Teo-
logia, Línguas Estrangeiras, dentre outras; 3) é omisso quanto à formação de
professores para a etapa da Educação Infantil, bem como para as modalidades
da Educação Especial, Profissional e Educação de Jovens e Adultos, desconsi-
derando as determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a For-
mação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Bá-

14
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

sica, que abrange as diversas áreas das licenciaturas; 4) altera as condições


essenciais de formação dos bolsistas de iniciação à docência, transferindo a
função de supervisão na escola para professores que não estão em efetivo exer-
cício em sala de aula e aumentando o número de escolas para o supervisor
acompanhar; 5) reduz o número de professores das universidades e das escolas
que compõem as equipes, aumentando a proporcionalidade entre licenciandos
e formadores; 6) exclui o Coordenador de Gestão Educacional, sujeito que
articula as atividades pedagógicas realizadas nas IES e escolas parceiras do
Programa; 7) transfere suas funções para os Coordenadores Institucionais e
para os coordenadores de áreas; 8) não faz menção ao PIBID Diversidade,
desarticulando as ações de formação de professores para as comunidades indí-
genas, quilombolas e do campo; 9) ignora a organização da formação inicial
dos professores por meio dos cursos de licenciatura e demandas emergenciais
de formação para a Educação Básica; 10) define atribuições essenciais para o
desenvolvimento do programa para as redes de ensino, sem que haja seguran-
ça de que serão compreendidas e atendidas nas diferentes realidades regio-
nais” (FORPIBID, 2016).
Como coordenadoras de gestão e institucional do PIBID na universida-
de, destacamos que a portaria comete o equívoco de propor a interrupção do
importante trabalho desenvolvido pelos cursos de licenciatura na Escola Bási-
ca, através do programa. Reiteramos que, “ao desenvolver as atividades peda-
gógicas planejadas por professores da universidade, professores das escolas e
futuros professores, o PIBID produz um movimento de formação inicial e
continuada, portanto, contribui com a reflexão e alteração das práticas peda-
gógicas, tanto nas escolas, quanto nas universidades”.
Os coordenadores de área do PIBID/UFRGS, depois de discutirem
exaustivamente as reformulações na estrutura do programa, referentes à por-
taria da CAPES, e de buscarem alternativas para adequar o PIBID/UFRGS
às determinações desta, concluíram que tal adequação é política e pedagogica-
mente equivocada, considerando sua implementação inexequível, destacan-
do-se, entre outros, os aspectos abaixo relacionados:
1) Não ter havido uma avaliação concreta das propostas do PIBID/
UFRGS em andamento, pelo Edital 061/2013, que indicasse a necessidade
de uma reformulação na sua estrutura;
2) Não apresentar, na nova proposta, oportunidade para elaboração de
subprojeto que atenda à formação de jovens e adultos (EJA), desconsiderando
as necessidades e as pesquisas realizadas nesta universidade referentes a esta
modalidade de educação. O novo desenho somente prioriza alunos na idade
certa;

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HOFSTAETTER, A.; UBERTI, L.; COSTELLA, R. Z. • Dos embates às potencialidades do PIBID

3) Trata-se de um equívoco considerar anos iniciais somente o grupo de


alunos até o 3º ano do Ensino Fundamental, etapa em que se concentrará 40%
dos bolsistas de toda a instituição;
4) Estabelecer que os professores por área do conhecimento trabalhem
com alunos a partir do 4º ano do Ensino Fundamental, sendo que as licencia-
turas habilitam os professores para atuarem do 6º ano do Ensino Fundamen-
tal ao Ensino Médio;
5) A distribuição de três bolsistas de iniciação à docência por escola,
sendo que um mesmo supervisor terá que acompanhar os projetos em, no
mínimo, três escolas;
6) Sobrecarga do número de bolsistas de iniciação à docência por Coor-
denador de Área;
7) Sobrecarga de trabalho do Coordenador Institucional em vista de não
estarem contempladas cotas de bolsas para Coordenadores de Gestão Peda-
gógica, fato que se torna ainda mais grave, pois a Portaria n. 046/2016, da
CAPES, preconiza que o Coordenador Institucional deverá assumir também
uma Coordenação de Área, se a instituição desenvolver até cinco projetos;
8) Mudança nos objetivos principais do programa. O objetivo original
do PIBID referia-se à formação inicial de professores das diferentes licenciatu-
ras, por meio da qualificação destas na relação com a escola, e posteriores
efeitos na Educação Básica. Com a nova portaria, o PIBID passa a ter objetivo
estrito de qualificação da Educação Básica, em especial, na área de alfabetiza-
ção, numeramento e letramento, como se este fosse o objetivo primeiro e ex-
clusivo da formação docente nas universidades. Ora, embora também o seja, a
nossa universidade e o nosso aluno não podem ser responsabilizados pela con-
juntura política da educação, da formação docente, da qualificação profissio-
nal, problemas de longa data com soluções quase inexistentes nos distintos
planos de governo.
9) Ferir a autonomia das IES no que se refere à escolha de escolas e de
supervisores;
10) Desarticular a relação entre a universidade e as escolas, estabelecen-
do atribuições aos sistemas de ensino sem consultá-los;
11) Responsabilizar o pibidiano pela qualidade na Educação Básica,
sabendo que esta deficiência é histórica e depende da intencionalidade das
políticas educacionais; e
12) Desrespeitar o diálogo iniciado entre o FORPIBID e a CAPES, en-
viando reformulações que não haviam sido acordadas.

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Por todos os motivos acima expostos, consideramos que a proposta de


substituição do Edital 061/2013 pela Portaria 046/2016 tornava o trabalho do
PIBID inexequível. Tendo isso em vista, solicitamos apoio nas mais diversas
instâncias da universidade e de fora dela para que ocorresse a revogação da
referida portaria, bem como a manutenção do projeto em andamento até o
final de 2017, conforme previsto pelo Edital 061/2013. Pois, eis que consegui-
mos a revogação.
Destacamos que a avaliação constante de cada subprojeto, em contato
com as gestões das escolas e da universidade, trouxe alternativas para nos for-
talecermos nesta luta e para ultrapassar as dificuldades do cotidiano. Soma-se
a isso nossa forte fundamentação teórica, que está apresentada em várias pu-
blicações realizadas ao longo desses anos e, também, em anais de congressos e
seminários realizados em diferentes localidades do país e do exterior. Produzi-
mos em tais publicações, sem dúvida, importantes relatos de experiências, refle-
xões teóricas a elas ligadas e perspectivas para continuidade e fortalecimento
do trabalho de constituição da docência.
Chegamos a esta última etapa de execução do projeto com um número
considerável de participantes com bolsas, sendo, no total, 319 bolsistas de ini-
ciação à docência, 64 supervisores de escolas, 32 coordenadores de área, 3
gestoras de processos educacionais e 1 coordenadora institucional. O PIBID/
UFRGS, próximo da conclusão de sua atuação pelo Edital 61/2013, atua em
23 escolas estaduais e 1 escola federal, com 19 subprojetos que têm 23 ênfases.
Mas sabemos que outro edital do PIBID está por vir. Entre outras coisas, isso
é o que nos motiva a falar das potencialidades do Programa.

Das potencialidades

O PIBID está pautado em três potencialidades de visões multidirecio-


nadas: a formação do futuro professor, a formação continuada dos profissio-
nais que já estão nas escolas e a formação experienciada do professor das uni-
versidades que estão trabalhando nas licenciaturas.
A qualidade da formação dos futuros professores, ou alunos que estão
nas licenciaturas, está pautada não apenas em tempos a mais de experiências
nas escolas, mas em significativas potencialidades que permitem um conheci-
mento representativo dos cotidianos escolares. Faz-se necessário, nesta forma-
ção, um vasto cardápio de oportunidades utilizadas para ajustar a relação pe-
dagógica que emerge dos acontecimentos na universidade com os aconteci-
mentos originários da escola.

17
HOFSTAETTER, A.; UBERTI, L.; COSTELLA, R. Z. • Dos embates às potencialidades do PIBID

Nas universidades, a preocupação marcante na formação de um aluno


está no poder das metodologias de ensino e no domínio vasto da literatura que
sustenta a razão epistêmica da ciência ali envolvida. Muitas vezes, a necessi-
dade de ampliação de carga horária relacionada a disciplinas ou atividades
que envolvam a aproximação da escola da Educação Básica e do aluno univer-
sitário é relegada a planos inferiores e pouco discutida no interior dos cursos.
Diante desta realidade, de forma ainda retraída surgem novas legisla-
ções para que os alunos mesclem suas possibilidades acadêmicas às possibili-
dades de enfrentamento com as inúmeras situações reveladas pelas escolas.
Este momento tensionado e necessário dá origem a um novo lugar, entendido
aqui como um retalho espacial demarcado por processos identitários de tem-
pos e espaços. Este lugar de contato e de reações a partir de situações inéditas
e plurais que a escola apresenta é o lugar demarcado pelo PIBID.
O PIBID supera as reações das legislações e, igualmente, supera as ati-
vidades de estágios ou práticas que possam surgir no interior das súmulas das
disciplinas que compõem as arquiteturas curriculares das universidades. Este
programa oportuniza o reconhecimento da paixão que está embutida no sen-
timento dos alunos que se preparam na universidade para uma batalha desco-
nhecida, travada num campo menos conhecido ainda, que é a escola. Esta
paixão não aparece durante as intermináveis aulas que lhe possibilitem o co-
nhecimento técnico da sua ciência, esta paixão diz respeito à ação e reação
indissociáveis do licenciando no contexto de sua prática.
Este lugar do PIBID é nobre e desta forma enobrece aquele que o ocupa.
Em depoimentos de egressos ou de alunos participantes do programa é muito
comum frases como: “Conheci escola, entendi uma sala de professores, partici-
pei de conselhos de classe, me encantei com alunos, sabendo que posso ensi-
nar”. “Até então, não sabia como lidar com as diferenças, não entendia que um
aluno poderia aprender diferente do outro”. Estas e outras manifestações permi-
tem reconhecer que estamos lidando com um programa que ensina o que, mui-
tas vezes, não é possível ensinar nos bancos escolares de uma universidade.
Não se está aqui desprestigiando o saber que enobrece uma ciência, até
porque ele é indispensável para poder qualificar esta ciência como parte do
campo pedagógico na relação entre escola e universidade. Como afirmamos
em outras produções (COSTELLA et al., 2015, 2016), o que se quer alertar é
sobre a capacidade que os licenciandos precisam desenvolver para tornar esta
ciência “consumível” nas escolas.
Neste sentido, vê-se outra possibilidade que o programa oferece: a for-
mação continuada dos professores que estão nas escolas. Esta formação não
se restringe a acontecimentos oficializados para este fim, mas está presente em

18
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

cada reunião que estes professores têm na universidade, a cada troca de ideias
com os pibidianos, a cada sensação de poder e reconhecimento em diferentes
formas de autoria das suas ideias.
É importante ressaltar que fica evidente o papel do professor como um
estimulador permanente de ideias, postas à prova em cada aula, em cada des-
construção e em cada tensão que propicia ao apresentar o desconhecido de
uma forma mágica, provocando encantamento aos seus alunos. O encanta-
mento dos alunos da Educação Básica não é o mesmo encantamento destes
professores pelas suas aulas na universidade. Trata-se aqui de outras memórias,
de outras gerações, de outras inúmeras sombras desconhecidas que permeiam
cada sala, cada configuração.
As memórias computadas dos bancos escolares, na troca entre os pro-
fessores universitários e seus alunos, não são necessariamente utilizadas na
troca que ocorre nas escolas. A função soberana do professor na escola está
em reconhecer na relação entre ele e seus alunos como se processa o entendi-
mento ou a compreensão do que está sendo ensinado e aprendido. Sabe-se
que, no decorrer da vida, esquecemos como aprendemos e temos, como pro-
fessores, que ensinar o que aprendemos. Neste sentido, o professor necessita
continuamente estudar e reestudar os processos de ensino e de aprendizagem.
Reativar memórias, reformular com autoria, sentir-se representado pe-
las idéias, faz do professor, que tem o papel de supervisor das escolas ou aque-
le que convive com este e não tem este papel definido, ativar possibilidades de
sínteses autorais, ofertadas por pensamentos que refletem suas práticas.
Importa destacar a importância deste programa para os professores uni-
versitários. Inúmeros depoimentos dos coordenadores de área poderiam pre-
encher laudas e mais laudas sobre o significado do PIBID em suas práticas.
Uma de nossas coordenadoras de área mais antigas do PIBID/UFRGS costu-
ma nos dizer que o PIBID mudou a universidade, que o seu curso não é mais
o mesmo, que a licenciatura passou a ser valorizada e que seus alunos persisti-
ram em ser professores graças a este desenho possibilitado pelo PIBID (RE-
LATÓRIO PIBID, 2016).
O professor da escola, a própria escola e os bolsistas de iniciação à do-
cência estão modificando a forma de pensar das universidades. A singularida-
de peculiar proposta nas experiências que acontecem nas escolas, vem mudan-
do, de alguma forma, a compreensão do papel da universidade na formação
de professores.
Como um caminho nebuloso de uma fumaça em direção ao infinito,
suas inúmeras e mutáveis silhuetas, interpretadas com um bom teor subjetivo,
as licenciaturas começam a ser vistas de outra forma. Verdades postas e crista-

19
HOFSTAETTER, A.; UBERTI, L.; COSTELLA, R. Z. • Dos embates às potencialidades do PIBID

lizadas começam a ser falseadas, por conta da presença da e na escola, dos


professores da escola e dos licenciandos que dela se apoderam. Os conteúdos
e os conceitos antes trabalhados unilateralmente agora percorrem diferentes
caminhos.
A composição do solo dá vazão à horta escolar, os componentes quími-
cos da Tabela Periódica começam a compor o entendimento do aluno sobre o
mundo, as fórmulas viram possibilidades de experimentos, o espaço e o tempo
estudados transformam-se em aulas fora da escola, as discussões teóricas da
universidade se revezam em descrições cotidianas dos alunos secundaristas.
Aos poucos, os conteúdos se misturam com alunos e as ordenações especifica-
das, ditas coerentes, passam a ser discutidas de forma mais (des)organizada.
O PIBID muda a escola, muda a universidade e muda um outro lugar
que nossos alunos passam a conhecer: a relação entre tudo isso. Na Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, o desenho deste programa possibilitou e
ainda possibilita a qualificação dos processos que envolvem o ensino e a apren-
dizagem, ou seja, deu e dá voz a quem dela precisa para contagiar a vontade de
ensinar e de aprender.

Referências
COSTELLA, R. Z.; UBERTI, L.; HOFSTAETER, A.; STURM, I. Iniciação à Docên-
cia: reflexões interdisciplinares. São Leopoldo: Oikos, 2015.
COSTELLA, R. Z.; UBERTI, L.; HOFSTAETER, A.; STURM, I. Percursos da prática
de sala de aula. São Leopoldo: Oikos, 2016.
FÓRUM EM DEFESA DO PIBID. FORPIBID. Carta de apoio ao PIBID. 2016.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CAPES. Edital 061/2013 – Programa Institucional
de Bolsa de Iniciação à Docência.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CAPES. Edital 066/2013 – Programa Institucional
de Bolsa de Iniciação à Docência – Diversidade.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CAPES. Portaria 046/2016 Regulamenta o Progra-
ma Institucional de Bolsa de Inicição à Docência.
RELATÓRIO parcial do PIBID-UFRGS 2016. Porto Alegre: UFRGS, 2016.
PEREIRA, Marcos Villela. A pesquisa em Educação e Arte: a consolidação de um
campo interminável. Revista Iberoamericana de Educación. n. 52. Madrid: CAEU – OEI,
2010, p. 61-80.

20
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Analisando o movimento
“Escola sem Partido”, seus problemas
e concepções: um relato do
PIBID História/UFRGS
Gabriel dos Santos Giacomazzi1
Carolina Boschi Monteiro2

1 Introdução

Na pauta da reunião geral do subprojeto História, do Programa Institu-


cional de Bolsa de Iniciação à Docência3 (PIBID) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), realizada no dia 26 de agosto de 2016, para
além de considerações e disposições gerais sobre o andamento das atividades
em cada uma das quatro escolas públicas de Educação Básica da cidade de
Porto Alegre (RS) que recebem bolsistas de ID (Iniciação à Docência) de nos-
so projeto,4 constou a definição de uma ideia que estaria há tempos em gesta-
ção: a criação de grupos de trabalho, constituídos por bolsistas e coordenado-
res, no intento de pesquisa e difusão de temáticas relevantes à educação e for-
mação de sujeitos críticos e informados. Compreendeu-se, portanto, a necessi-
dade de se abordar, não apenas estritamente em sala de aula, mas sob a forma
de oficinas, palestras e os demais tipos de atividade extraclasse que o PIBID já
proporciona nos colégios em que atua, temáticas relacionadas, por exemplo,
ao movimento negro, às ocupações de escolas e ao movimento estudantil de
forma mais geral, às questões de gênero e sexualidade e tantas outras que,

1
Gabriel dos Santos Giacomazzi. E-mail: giaco.acad@gmail.com.
2
Carolina Boschi Monteiro. E-mail: monteiro-carolina@hotmail.com.
3
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) foi implementado no ano
de 2007 através de edital MEC/Capes/FNDE, visando “antecipar o vínculo entre os futuros
mestres e as salas de aula da rede pública. Com essa iniciativa, o PIBID faz uma articulação
entre a educação superior (por meio das licenciaturas), a escola e os sistemas estaduais e
municipais.” Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/pibid>. Acesso em: 02 dez. 2016.
4
A saber: a Escola Técnica Estadual Irmão Pedro, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o
Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Colégio Estadual
Emílio Massot.

21
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

apesar de permearem a realidade dos estudantes, ainda são pouco abordadas,


ou mesmo evitadas e rechaçadas.
Foi desta forma que surgiu o grupo de trabalho no qual estão inseridos
os autores deste artigo – além de quatro coordenadores: o professor Benito
Bisso Schmidt e as professoras Carmem Zeli de Vargas Gil, Caroline Pacievitch
e Mara Cristina de Matos Rodrigues – e cujos frutos são as produções relata-
das neste artigo. Produções pautadas em torno de uma problemática: a legiti-
midade do conhecimento histórico, a partir da compreensão de que esta se encon-
tra em litígio por forças para muito além dos limites acadêmicos; forças estas
reunidas sob um movimento que tem ganhado notoriedade em tempos recen-
tes, e que atende pelo nome genérico de “Escola Sem Partido”. Cabe a este
trabalho, pois, num primeiro momento, fazer uma síntese5 das ideias, proposi-
ções e métodos do dito movimento e, ao mesmo tempo, enumerar os problemas
que não apenas nosso grupo de trabalho, mas todo um setor envolvido e preocu-
pado com uma educação de qualidade percebe com as ações de tal movimento
para, enfim, contrastar uma análise a partir de nossa perspectiva e enumerar as
medidas concretas tomadas pelo grupo de trabalho para trazer esse debate ao
grande público, à luz de uma perspectiva democrática.

2 A problemática tem nome e partido

2.1 O Movimento “Escola Sem Partido”


Há uma incipiente bibliografia com abordagem crítica às reivindicações
do Movimento Escola Sem Partido. Para fins didáticos, utilizaremos aqui como
referência um artigo de Fernando de Araujo Penna (2016), o qual acreditamos
ser uma boa síntese introdutória ao tema. Partimos da premissa de que o “apar-
tidarismo” em termos epistemológicos não passa de um devaneio, que a opção
por formalizar crítica e se posicionar contra o ESP6 é uma escolha, sobretudo,
militante; especialmente numa conjectura de constantes ataques ao Ensino Pú-
blico e ao que ele representa. Por isso, entendemos como vital a resistência, no
âmbito acadêmico, a uma série de projetos que “constituem uma ameaça a qual-

5
Para uma análise mais completa e totalizante do Movimento Escola Sem Partido, cf. PENNA,
Fernando. “Programa ‘Escola Sem Partido’: uma ameaça à educação emancipadora”. In:
GABRIEL, Carmen Teresa; MONTEIRO, Ana Maria; MARTINS, Marcus Leonardo Bomfim
(Orgs.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, texto
que norteia, de maneira geral, este trabalho.
6
Utilizaremos esta sigla para nos referirmos de forma genérica, neste trabalho, ao Movimento
Escola Sem Partido.

22
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

quer projeto educacional de caráter emancipador que dialogue com os alunos e


a realidade na qual estão inseridos” (PENNA, 2016, p. 43).
O ESP, movimento encabeçado pelo advogado Miguel Nagib, tem suas
origens no ano de 2004, restringindo-se, entretanto, a seu website
(www.escolasempartido.org) até, uma década mais tarde, ganhar notoriedade
quando da formulação de seus ideários em Projeto de Lei, apresentado à
jurisdição do Estado do Rio de Janeiro pelo deputado estadual Flávio Bolso-
naro (PSC-RJ) em 2014.7 A publicação do template do anteprojeto original
de Nagib no referido site facilitaria a rápida difusão de iniciativas semelhan-
tes em inúmeras instâncias legislativas no país (PENNA, 2016, p. 44). Um
projeto derivado chegou ao estatuto de Lei no Estado de Alagoas, em maio
de 2016, sob o enganosamente amigável nome de “Escola Livre”8. Este últi-
mo foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a qual recebeu,
em março de 2017, parecer positivo do Ministro Roberto Barroso, impug-
nando a Lei.9

2.2 O partido do “Escola Sem Partido”


Mas quais ideários seriam esses? Em primeiro lugar, a ideia de que ha-
veria uma suposta, nunca definida, “doutrinação ideológica” no âmbito da
educação nacional, e este é o argumento motriz do movimento; assim, segun-
do os apoiadores do ESP:
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizan-
do de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles
adotem padrões de julgamento e de conduta moral, especialmente moral
sexual, por vezes incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais
(PL n. 2794/2014).10

7
PL n. 2794/2014. Disponível em: <http://aler jln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/
e4bb858a5b3d42e383256cee006ab66a/45741a7e2ccdc50a83257c980062a2c2?OpenDocument>.
Acesso em: 20 nov. 2016.
8
Lei n. 7.800, de 05 de maio de 2016, que instituiu o Programa “Escola Livre” no Estado de
Alagoas, tendo sido posteriormente vetada por inconstitucionalidade. Disponível em: <http://
sapl.al.al.leg.br/sapl_documentos/norma_juridica/1195_texto_integral>. Acesso em: 23 nov.
2016.
9
Vide Medida Cautelar expedida em 21/03/2017. Disponível em: <http://www.cp2.g12.br/
images/comunicacao/2017/Mar/ADI%205537.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2017. O Ministro
do Supremo faz, em seu relatório, importantes colocações. Ver também o parecer da
Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.537/
AL e 5.580/AL. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/adi-5580-e-adi-
5537-escola-livre.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2016.
10
Parágrafo inicial da justificativa do PL 2974/2014 (RJ). Note-se como a retórica do movimento
apela ao senso-comum e aos fatos dados como “notórios”.

23
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

Eis uma fórmula recorrente em praticamente todas as justificativas dos


projetos de lei. De fato, são cópias exatas de um dos modelos de anteprojeto11
disponíveis no website do ESP, como citado. Não é à toa, pois, que Penna (2016)
nos alerta sobre a importância de que, “para compreender a proposta, precisa-
mos conhecer as concepções do movimento que deu origem a ela” (PENNA,
2016, p. 45), ou seja, conhecermos não apenas o teor dos projetos de lei e suas
justificativas, mas também a matriz de tais proposições.
Mais recentemente, no entanto, quando seguimos o link para o sítio ori-
ginal do movimento (escolasempartido.org), uma janela pop-up surge imedia-
tamente em primeiro plano na página, com os dizeres: “Esta é a página do
Movimento Escola Sem Partido. Para visitar a página do anteprojeto de lei,
contra a doutrinação nas escolas, ‘clique aqui’.”, em que o clique aqui se trata
de um link para outro website (www.programaescolasempartido.org), este, por
sua vez, com um layout muito mais limpo e com uma proposta aparentemente
mais didática sobre o projeto em si e sua tramitação. Quais seriam os interes-
ses envolvidos em desviar a atenção do teor do site original?12
Afirmar que algo – no caso, a doutrinação ideológica – se trata de “fato
notório”, é algo vago. Essa definição tampouco é explicitada no teor dos PLs,
este quase uma invariável. Tomemos, a título de exemplo, o Artigo 3º do PL
867/2015, de autoria do Dep. Federal Izalci (PSDB-DF):
Artigo 3º - São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de ativida-
des que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais
dos pais ou responsáveis pelos estudantes (PL 867/2015).

Podemos, de início, questionar dois elementos: o primeiro, acima men-


cionado, diz respeito ao fato de que a “ausência da definição da prática que se
quer proibir já aponta um gravíssimo problema na formulação do projeto de
lei e um dos elementos de sua inconstitucionalidade” (PENNA, 2016, p. 46).
No que consiste essa doutrinação? Podemos ter uma ideia se voltarmos ao pri-
meiro parágrafo da justificativa do PL. Os “professores” e “autores de livros
didáticos” se aproveitam de suas respectivas funções para “tentar obter a ade-
são dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas” (nova in-
definição: quais correntes políticas e ideológicas?) e levá-los a adotarem “pa-
drões de julgamento e de conduta moral, especialmente moral sexual, por ve-

11
“Anteprojeto de Lei Estadual e minuta de justificativa”. Disponível em: <http://
escolasempartido.org/component/content/article/2-uncategorised/484-anteprojeto-de-lei-
estadual-e-minuta-de-justificativa>. Acesso em: 25 nov. 2016.
12
Ambos tais como quando acessados em 25 de nov. 2016, com nova visita em 30 de mar. 2017.

24
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

zes incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais”, o que seria
uma afronta, uma vez que, para o ESP, os docentes não devem ensinar senão
aquilo que, agora retomando o teor do PL, não estiver em conflito com “as
convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
Para justificar essa subordinação dos professores e do currículo ao arbítrio da família
do estudante, recorrem à Convenção Americana de Direitos Humanos, um do-
cumento de 1969 ratificado no Brasil em 1992, o qual, em seu Artigo 12, inci-
so IV, diz que “os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus
filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com
suas próprias convicções.”13 Ora, trata-se de um consenso em que inexiste o
direito a se forçar alguém a aderir a certa moral ou credo, e esta é a intenção da
convenção; entretanto, a interpretação do ESP desconsidera o fato de que sa-
las de aula são ambientes diversos e plurais, em que o exercício da cidadania e
da democracia também passa pelo conhecimento do outro, da diversidade; e
isto é muito diferente de obrigar estudantes a isto ou aquilo. Os PLs expressam,
quase que literalmente, que, caso os pais de alunos se sintam desconfortáveis
com qualquer coisa que lhes ofenda em sentido moral ou religioso, o docente
que as ministrar deverá ser submetido a medidas legais.
Curiosamente, as justificativas dos PLs deixam de mencionar o Artigo
13 da mesma convenção, que trata especificamente das liberdades de pensa-
mento e de expressão, em seus incisos I e II:
I - Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse
direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações
e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou
por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro pro-
cesso de sua escolha.
II - O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar su-
jeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser
expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da
moral públicas (Convenção Americana de Direitos Humanos) (grifos nos-
sos).

Este artigo, em consonância com a legislação vigente no Brasil, em es-


pecial nossa Constituição Federal de 1988, explicita o modo como o ESP fere
o direito à liberdade de expressão, garantida, em seu aspecto geral, no Art. 5º,

13
“Convenção Americana sobre Direitos Humanos”. Disponível em: <https://
www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 22 nov. 2016.

25
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

IV e IX14, e em seu aspecto relativo à Educação, no Art. 206, II15; mencione-se


ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, em seu Art. 3º, IV16.
Não apenas fere tais princípios norteadores da educação nacional, mas refor-
ça este absurdo:
Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal
– não se confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de ex-
pressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a
liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala
de aula, uma audiência cativa (PL 867/2015)17.

Os autores do PL visam denunciar a “confusão” entre as liberdades de


ensinar e de expressão, mas, em verdade, eles próprios confundem ou manipu-
lam a liberdade de expressão com o aval para “se dizer qualquer coisa sobre
qualquer assunto”18 sem ulterior responsabilização, o que não é verdade. A
liberdade de expressão já encontra seus limites na esfera penal, nos casos em
que ela servir como base, por exemplo, a discurso de ódio ou a ameaças aos
Direitos Humanos em geral – vide, por exemplo, novamente o inciso II do
Art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que é bem explícita
neste sentido: a censura prévia defendida pelo ESP é incompatível com a liberda-
de de expressão que ele visa limitar.
O ESP, neste sentido, submete o currículo escolar ao jugo prévio dos
pais e responsáveis por estudantes; prévio no sentido de que os PLs visam
prevenir que as práticas curriculares entrem em conflito com suas múltiplas
crenças e valores simultaneamente. O que é absurdo, já que as crenças dos pais e
responsáveis podem ser bastante diversas e, seguidamente, conflitantes entre
si. Mas não são apenas estas restrições à liberdade preconizadas pelo ESP.
O Art. 2º do PL 867/2015 visa estabelecer, de forma antinômica, uma
série de princípios à Educação nacional, ignorando o fato de tanto a CF/88
quanto a LDB/96 já disporem sobre tais princípios (Art. 206 da CF/88 e Art.

14
Artigo 5º, IV – É livre a expressão do pensamento, sendo vedado o anonimato. [...] IX – é livre
a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 27 nov. 2016.
15
Art. 206, II – II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber.
16
LDB, Art. 3º, II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento,
a arte e o saber. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/
lei9394_ldbn1.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2016.
17
Excerto da Justificativa do PL 867/2015.
18
Esta definição de liberdade de expressão se encontra em: <http://www.escolasempartido.org/
faq>. Acesso em: 27 nov. 2016.

26
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

3º da LDB/96). Assim, seu inciso III estabelece a “liberdade de aprender, como


projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência”. Ou
seja, “ignora intencionalmente aqueles [princípios] com os quais eles foram
agrupados em incisos no artigo 206 da nossa Constituição” (PENNA, 2016,
p. 49). De fato, caso comparemos este inciso tanto com o Art. 206, II da CF/
88, quanto com o Art. 3º, II da LDB/96, dos quais esse é uma cópia omissa,
perceberemos a ausência das liberdades de “ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber”. O ESP pretende, portanto, remover definitiva-
mente tais liberdades, indissociáveis tanto do processo geral de ensino-apren-
dizagem quanto da própria produção do conhecimento científico e de sua di-
fusão? É o que tais evidências demonstram.

2.3 Possíveis concepções de História presentes no “Escola Sem Partido” e


seus problemas
Outros problemas podem ser encontrados nas reivindicações do Movi-
mento Escola Sem Partido, como a visão do estudante como um passivo re-
ceptor de conteúdos a ser manipulado pelo doutrinador. Nesse sentido, o ESP
denuncia, em seu website, o “sequestro intelectual” sofrido pelos estudantes
em aula, cujo fruto seria uma “Síndrome de Estocolmo” coletiva, a qual faria
os referidos alunos não apenas ignorarem a doutrinação, mas também desen-
volverem laços afetivos que os fariam defender seu “sequestrador” (PENNA,
2016, p. 53-54). Eis a base do “reconhecimento da vulnerabilidade do educan-
do como parte mais fraca na relação de aprendizado” (Art. 2º, V, do PL 867/
2015), uma concepção deduzida não a partir de escritos pedagógicos, mas,
sim, do Código de Defesa do Consumidor.19
Gostaríamos de chamar a atenção, no entanto, a uma questão que, em
nosso entender, tem relação direta com o campo científico no qual se situam os
autores deste artigo: a Ciência Histórica. Afinal, que concepção ou concepções
de História revela uma leitura mais atenta das ideias do ESP?
Recorramos novamente ao website do movimento. Na aba denominada
“Flagrando o doutrinador”,20 encontramos uma curiosa lista de “indícios” de
que um professor pode ser, na verdade, um doutrinador. Entre eles, destacamos
os seguintes:

19
“Professor não tem direito de ‘fazer a cabeça’ de aluno”. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2013-out-03/miguel-nagib-professor-nao-direito-cabeca-aluno>. Acesso
em: 07 dez. 2016.
20
Disponível em: <http://escolasempartido.org/flagrando-o-doutrinador>. Acesso em: 04 dez.
2016.

27
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

Você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu profes-
sor:
– se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos
relacionados ao noticiário político ou internacional;
– adota ou indica livros, publicações e autores identificados com determina-
da corrente ideológica; [...]
– não admite a mera possibilidade de que o “outro lado” possa ter alguma
razão (Website Escola sem Partido).

O primeiro dos três itens evidencia, de imediato, uma concepção que


envolve, principalmente, a dissociação entre os “conteúdos” da disciplina e,
podemos dizer, a própria realidade do estudante, não permitindo ao docente
tomar uma questão do cotidiano como exemplo didático ou debater questões
pertinentes ao ensino, sobretudo das ciências humanas. Uma educação que não
dialogue em nenhum aspecto com a realidade de para quem ela é voltada – o
estudante – não é educação. Não é à toa que o livro de Armindo Moreira, intitu-
lado Professor não é educador, seja citado como uma das referências teóricas do
Movimento Escola Sem Partido21: esta obra visa demonstrar “a dissociação en-
tre o ato de educar, que seria responsabilidade da família e da religião, e o ato
de instruir, a que o professor deveria se limitar em sala de aula” (PENNA,
2016, p. 46). Portanto, para o ESP, não existe educação em âmbito escolar.
Entendemos que o desejo de obrigar os professores a se restringirem à
“matéria objeto da disciplina”, como parte de visão destes como meros instru-
tores e, portanto, reprodutores de “um conhecimento produzido em outro espa-
ço” (PENNA, 2016, p. 46), revela uma visão e uma compreensão da ciência
histórica como possível de ser objetiva e neutra, concepção já criticada pelas
principais correntes historiográficas e filosóficas contemporâneas, vinculadas
a diversos matizes do espectro ideológico. Visitando novamente o website do
ESP, encontramos o seguinte:
O fato de o conhecimento ser vulnerável à distorção ideológica – o que é
uma realidade inegável, sobretudo no campo das ciências sociais – deveria
servir de alerta para que os educadores adotassem as precauções metodoló-
gicas necessárias para reduzir a distorção. Em vez disso, a militância utiliza
esse fato como salvo-conduto para a doutrinação (Website Escola sem Parti-
do).22

Em primeiro lugar, apontemos que o ESP confunde “distorção ideoló-


gica”, à qual o conhecimento estaria vulnerável, com a metodologia empregada
para se chegar a este conhecimento. Uma visão do professor de História en-

21
Uma imagem com a capa do livro está presente no canto inferior esquerdo do website do
Movimento (www.escolasempartido.org). Acesso em: 07 dez. 2016.
22
“FAQ”. Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/faq>. Acesso em: 23 nov. 2016.

28
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

quanto um instrutor é, ao mesmo tempo, uma visão da História como uma


objetiva sucessão narrativa de fatos. Contudo, o professor não narra o passado
pois, para Keith Jenkins,
[...] passado e história são coisas diferentes. Ademais, o passado e a história
não estão unidos um ao outro de tal maneira que se possa ter uma, e apenas
uma leitura histórica do passado. O passado e a história existem livres um
do outro; estão muito distantes entre si no tempo e no espaço. Isso porque o
mesmo objeto de investigação pode ser interpretado diferentemente por di-
ferentes práticas discursivas [...] ao mesmo tempo que, em cada uma dessas
práticas, há diferentes leituras interpretativas no tempo e no espaço
(JENKINS, 2007, p. 24).

Ou seja, o professor/historiador não é guardião do passado, senão do


discurso produzido acerca desse passado no processo de sua reconstrução
científica. A História ensinada é, portanto, historiografia – o que se escreve
sobre o passado – e, portanto, sujeita a metodologias específicas de interpreta-
ção. A mera sequencialidade de fatos não pode se chamar de História, pois
carece de interpretação; e o ofício historiográfico chegaria ao fim uma vez
catalogados, de forma enciclopédica, todos os “fatos” da História. Uma as-
piração pertencente aos rankeanos do século XIX, em seu acentuado “feti-
chismo dos fatos (...) completado e justificado por um fetichismo de docu-
mentos”, como nos lembra Edward H. Carr (1978, p.18). Ao contrário do
que se pensa, e do que muitos defensores do ESP possivelmente defendem,
os “fatos” e “documentos” não falam por si senão a partir do inquérito me-
todológico. Neste sentido, Carr argumenta:
De acordo com a visão do senso comum, há certos fatos básicos que são os
mesmos para todos os historiadores e que formam, por assim dizer, a espi-
nha dorsal da história – o fato, por exemplo, de que a Batalha de Hastings
aconteceu em 1066. Mas esta maneira de ver requer duas observações. Em
primeiro lugar, não são fatos como este que interessam primordialmente ao
historiador. Sem dúvida é importante saber que a grande batalha foi dispu-
tada em 1066 e não em 1065 ou 1067, e que foi disputada em Hastings e não
em Eastbourne ou Brighton. O historiador não deve errar nessas coisas. [...]
Estes tão chamados fatos básicos, que são os mesmos para todos os historia-
dores, normalmente pertencem mais à categoria de matéria-prima do histo-
riador do que a própria história (CARR, 1978, p. 14).

Complementamos com uma passagem de Jenkins, em consonância com


(e sob influência dos) escritos de Carr:
Entretanto, tais fatos, embora sejam importantes, são “verdadeiros” mas
banais no âmbito das questões mais amplas que os historiadores discutem.
Isso porque eles não estão demasiado preocupados com os fatos “descontí-
nuos” (os fatos “individualizados”), já que essa preocupação só cabe àquela

29
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

parte do discurso histórico que se chama crônica. Não: os historiadores têm


ambições, desejam descobrir não apenas o que aconteceu, mas também como
e por que aconteceu e o que as coisas significavam e significam. [...] Essa é a
inevitável dimensão interpretativa, a problemática, quando os historiadores
transformam os acontecimentos do passado em padrões significantes que
nenhuma representação literal desses acontecimentos como fatos poderia
jamais produzir (JENKINS, 2007, p. 60).

Numa escola, portanto, é inconcebível uma aula de História desprovida


de historicidade, e um processo educativo despido de educação; e é exatamen-
te isto que defende, direta e indiretamente, o Movimento Escola Sem Partido.
Voltando agora à lista de possíveis maneiras de “flagrar” o doutrinador,
nos deparamos com outro item que acreditamos ser interessante destacar:
“[o professor doutrinador] adota ou indica livros, publicações e autores identi-
ficados com determinada corrente ideológica”. Aparece aqui, novamente, uma
especificidade indefinida; cita-se “determinada corrente ideológica” sem se referir
a qual (apesar de todos os indícios apontarem para correntes ideológicas identi-
ficadas com o espectro político da esquerda, como admite o próprio website do
movimento)23. Outro problema que retorna é, justamente, o da neutralidade. Caso
o professor adote determinados livros em detrimento de outros, ignorando-se o
fato de esta escolha se basear em aspectos metodológicos, pedagógicos ou curri-
culares, ele estará doutrinando seus estudantes. O ESP postula uma insustentável
neutralidade, portanto, do conhecimento histórico, falha em dois aspectos: o
primeiro, na problemática relação que já mencionamos existente entre fatos e
interpretações; uma História “neutra”, sem “distorções ideológicas”, seria uma
História factual, pois qualquer interpretação a essa História – por meio de livros
e materiais didáticos específicos – seria parte de um maquiavélico plano de ensi-
no ideológico24; o segundo aspecto, devido ao simples fato – e esta é a maior
contradição do movimento – de a neutralidade se tratar, em si, de uma postura
metodológica e, portanto, com um “lado” muito bem definido. Uma citação de
Keith Jenkins pode novamente nos elucidar essa questão:
Ao dizer que se deve fazer uma escolha explícita de posição, não quero dei-
xar subentendido que você, se não quiser fazer essa escolha, talvez produza
uma história “sem tomada de posição”. Ou seja, não quero dar a entender

23
Ver novamente o “FAQ” do website do ESP. Disponível em: <http://
www.escolasempartido.org/faq>. Acesso em: 23 nov. 2016.
24
“IV – ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de
forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;”
(PL 867/2015, Art. 4º, IV). Este inciso inibe a liberdade metodológica dos docentes, por um
lado; por outro, é contraditório no sentido de obrigar os professores a apresentarem “todos os
lados” e, ao mesmo tempo, vetá-los do ensino dos “lados” que estejam em conflito com a
moral dos pais ou responsáveis.

30
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

que você terá algum tipo de liberdade para escolher ou não – pois isso seria
irrefletidamente liberal. No discurso liberal, em algum lugar e de alguma
maneira, sempre existe uma espécie de campo neutro de onde parece mes-
mo que podemos escolher ou não. Esse campo neutro não é considerado
uma posição que a pessoa já ocupa. Em vez disso, é tido como um ponto de
vista desapaixonado, de onde podemos relaxar e fazer objetivamente esco-
lhas e juízos imparciais. [...] não é possível haver um lugar não posicionado.
A única escolha é entre uma história que está consciente do que faz e uma
história que não está (JENKINS, 2007, p. 106).

Para concluirmos esta parte, gostaríamos de tecer um breve comentário


acerca do último item que coletamos no website do ESP: “[o professor doutri-
nador] não admite a mera possibilidade de que o ‘outro lado’ possa ter alguma
razão”.
Na cidade de Porto Alegre foi aprovada, no ano de 2010, a Lei Muni-
cipal n. 10.96525, de autoria do vereador Valter Nagelstein (PMDB-RS). Esta
lei tornou obrigatório, no âmbito do ensino municipal, o “ensino sobre o
holocausto do povo judeu” (Art. 1º), questão de suma importância para a
memória da comunidade judaica do município, como para a humanidade de
modo geral.
Em 2016, no entanto, o mesmo vereador foi responsável por protocolar,
junto à Câmara de Vereadores de Porto Alegre, a versão municipal do projeto
de lei “Escola Sem Partido” (PLL 124/2016)26. Estando nós cientes, agora,
das intenções do ESP para com a educação, e da importância de se conceder a
“mera possibilidade de que o ‘outro lado’ possa ter alguma razão”, gostaría-
mos de saber como o vereador Valter Nagelstein procederia, em sala de aula,
na hipótese de vigência simultânea de ambas as leis. Afinal, como ser “neu-
tro” na História do Holocausto? Existe um “outro lado” além daquele que
afirma o genocídio de milhares de judeus, ciganos, comunistas, homossexu-
ais, testemunhas de Jeová e outros grupos atingidos pelo terror nazista? Os
negacionistas podem ter alguma razão? Cremos que não.

3 Planos de ação por uma educação sem mordaças

Tendo como objeto de estudo – e também como objeto a ser combatido – o


projeto ESP, bem como toda movimentação causada ao seu redor para o des-

25
“Lei n. 10.965, de 18 de outubro de 2010”. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/
cgi-bin/nph-brs?s1=000031310.DOCN.&l=20&u=%2Fnetahtml%2Fsirel%2Fsimples.html&p
=1&r=1&f=G&d=atos&SECT1=TEXT>. Acesso em: 06 dez. 2016.
26
“Projeto de Lei do Legislativo – 124/2016”. Disponível em: <http://www.camarapoa.rs.gov.br/
processos/128712>. Acesso em: 06 dez. 2016.

31
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

monte da educação, o grupo formulou um plano de ação e resistência, visan-


do a inserção do debate junto à comunidade escolar.
Para que pudesse haver uma mobilização contundente e efetiva, o gru-
po precisaria, primeiramente, conhecer seu oponente (e não se basear apenas
em “fatos notórios”, como esse o faz). Para tanto, como já foi dito, servimo-
nos do Projeto de Lei 867/2015, juntamente com o maior número possível de
aparatos virtuais e midiáticos que o sustentam e difundem. Além da leitura
crítica do PL e do website, o grupo também se comprometeu com o estudo de
textos e leituras contrários ao ESP e outros referentes à História, à Educação e
à Política.
Foram, então, selecionadas categorias problemáticas, ou ideias contidas
no projeto que deveriam ser trabalhadas mais extensivamente: termos vagos e
mal especificados, que dificultavam a compreensão da efetiva intencionalida-
de da proposta, ou mesmo ideias apresentadas que, empregadas da maneira
que foram, difundem uma visão falaciosa e errônea da educação e da ciência
histórica. O grupo acabou então destacando conceitos como neutralidade, ideo-
logia, doutrinação, os quais abordamos ao longo deste trabalho. Entendeu-se
como necessário, também, que houvesse maior reflexão sobre as ideias empre-
gadas no projeto acerca do exercício da docência enquanto mera transmissão
e da vulnerabilidade e fragilidade do educando em um processo unilateral de
aprendizagem.
O próximo passo seria entender de que maneira tais categorias eram
difundidas e como isto era feito de modo a gerar tamanha adesão dentre a
população. Assim, foram analisados os mecanismos de ampla divulgação do
movimento ESP, para que fosse possível criar uma resposta pela mesma via. As
redes sociais, como já era esperado, se constituem em uma plataforma bastante
propícia para a divulgação deste conteúdo político, apesar de sua alegada neu-
tralidade. Neste meio, grande quantidade de informação difundida refere-se não
apenas à propaganda do movimento ESP, mas também a uma oposição ferre-
nha – e em grande parte agressiva – a qualquer modelo de educação que vise a
formação para a cidadania determinada e garantida pela Constituição Federal.
Através destes mecanismos de comunicação, são distorcidas quaisquer tentati-
vas de abraço à pluralidade e às diferenças que a escola possa ter.
Como estratégia de divulgação de informações através de recursos fá-
ceis e rápidos, as charges parecem ter bastante espaço, principalmente por
sua efetividade em transmitir uma mensagem deturpada. Nestas imagens
veiculadas, pode-se facilmente identificar qual a representação que se inten-
ciona construir acerca dos elementos do sistema educacional, e de que ma-
neira esta corrobora e alicerça o PL. Nelas, frequentemente encontramos a

32
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

tentativa de criminalização da docência. Seguidamente o docente figura como


o vilão do processo supostamente unilateral do ensino. É a partir desta cons-
trução de imaginário que o projeto vai dar suporte para uma de suas princi-
pais alegações: a restrição dos direitos e liberdades do/a professor/a. Veja-se
o exemplo abaixo:

Imagem 1: Goela abaixo27

Nesta imagem, o professor, sugestivamente vestindo uma camiseta ver-


melha ornada por uma estrela (referência ao Partido dos Trabalhadores), obri-
ga estudantes a “engolirem” uma cartilha nas cores do “arco-íris”, referência à
bandeira utilizada por movimentos LGBTT.
É vinculado a isto que se constrói outro sustentáculo do movimento. A
ideia de um professor doutrinador só se torna possível e aceitável, porque se
cria uma visão de educação onde a única via de transmissão de ideias e pensa-
mentos é no sentido professor-aluno: aquele deteria e centralizaria toda capa-
cidade argumentativa e articuladora, enquanto este se encontraria em cons-
tante posição de fragilidade, sempre submetido à violação do docente e à sub-
missão a ele. A criação imaginária de um professor autoritário e centralizador
é necessária para que se possa promover o PL enquanto um mecanismo de
“proteção” dos estudantes.

27
Coletada na página do ESP no Facebook, onde muito mais material de semelhante teor pode
ser encontrado. Disponível em: <https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/photos/
a.346888065462191.1073741829.336441753173489/703760683108259/?type=3&theater>.
Acesso em: 08 dez. 2016.

33
GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

3.1 Panfleto
A estratégia pensada para ser empregada dentro das escolas foi a produ-
ção de um panfleto que pudesse apresentar alguns aspectos relativos ao debate
educacional acerca das propostas do ESP. Desta maneira, teríamos como atin-
gir de maneira rápida os alunos da escola e até mesmo levar o material para
dentro de suas casas, para que pudessem inserir as famílias na discussão. O
caráter da produção, então, deveria ser introdutório, sem deixar de ser comple-
xo, promovendo algumas reflexões sobre a educação e os modelos desejados
para essa, com base nas críticas de Paulo Freire à educação bancária. Deveria
ainda ter caráter instigante e convidativo.
Realizou-se uma extensiva busca de imagens que pudessem ser utiliza-
das na confecção do material, de maneira que fosse possível criar um recurso
visual que chamasse a atenção e fosse, ao mesmo tempo, potencialmente ade-
quado à nossa perspectiva de educação e de ciência. Optamos por recursos
que criassem uma visão da escola enquanto um ambiente positivo e plural,
sendo o professor um mediador das diferenças. Eis o resultado:

Imagem 2: Primeira e última páginas do panfleto


produzido pelo grupo de trabalho do PIBID

Partiu-se, então, para produção textual de nosso material. Em se tratan-


do de algo introdutório, deveria apresentar o PL e alguma de suas ideias, bem
como os contrapontos que julgamos adequados a elas. Fizemos, então, uma
seleção de determinadas categorias problemáticas que consideramos centrais,
e para cada uma delas procuramos trazer outro olhar, menos incisivo e autori-

34
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

tário, mais questionador e respeitoso. Ao fim, o leitor é convidado a pensar


sobre o modelo de educação desejado, e de que maneira é possível se construir
uma escola respeitosa, defensora dos Direitos Humanos e afinada com a refle-
xão científica. O resultado segue abaixo:

Imagem 3: Páginas internas do panfleto

3.2 Vídeo
Sabendo que a internet é um catalisador da difusão e adesão do projeto
ESP, buscou-se veicular por esse mesmo meio um material que pudesse ser
direto e de fácil compreensão, trazendo questionamentos sobre as intenções e
implicações de uma educação dita “sem partido”. Este foi elaborado a partir
de uma série de entrevistas com estudantes, professores e outras pessoas liga-
das à área da educação. Antes da publicação destas entrevistas sob a forma de
uma multiplicidade de vídeos a serem amplamente divulgados na internet, foi
produzido um material mais introdutório, com apenas dois minutos de dura-
ção, no intuito de ser um convite ao debate e à problematização do ESP.28
Posteriormente, por conta da participação de membros do subprojeto
História na Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça (FGESM), foi firmado um
acordo de cooperação entre nosso grupo de trabalho e a Organização Não-
Governamental “Minha Porto Alegre”, também membro da FGESM. A ONG

28
“PIBID História UFRGS Por Uma Escola Sem Mordaças!” Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=DPRpkD0xFYw>. Acesso em: 09 dez. 2016.

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GIACOMAZZI, G. dos S.; MONTEIRO, C. B. • Analisando o movimento “Escola sem Partido”, ...

já realizava um trabalho semelhante, tendo produzido a série de vídeos “Fala,


Professor!”29. Ficou, assim, acertado que as novas entrevistas realizadas pelos
bolsistas passariam a fazer parte desta mesma série, ampliando os horizontes
de divulgação desta temática tão essencial.

4 Conclusão

Jacques Rancière, como lembra Fernando Penna, concebe a escolari-


zação ideal sob os termos da emancipação (PENNA, 2016, p. 48). Inspira-
dos nesse autor, acreditamos que uma educação unilateral, permeada pelo
medo, pela vigilância curricular e moral e por sua decorrente judicialização
– como defendida pelo Movimento Escola Sem Partido – caminha para
muito longe de espaços de aprendizagem afinados com os debates científi-
cos e que beneficiem a formação de cidadãos conscientes da diversidade.
A experiência do estudo, da compreensão e da ação contra o Escola
Sem Partido tem sido, aos que assinam este trabalho, muito valiosa. Não
apenas por se tratar de uma questão fundamental que abarca todo o ofício
histórico e pedagógico, mas por termos a oportunidade de nos instrumen-
talizarmos a este debate, que deverá se prolongar por muito tempo.
Esperamos também, por fim, inspirar outras pessoas, ligadas ou não
à educação, a juntarem-se a esta resistência ao autoritarismo e à censura.

Referências
CARR, Edward Hallett. Que é História?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2007.
PENNA, Fernando. Programa ‘Escola Sem Partido’: uma ameaça à educação emanci-
padora. In: GABRIEL, Carmen Teresa; MONTEIRO, Ana Maria; MARTINS, Mar-
cus Leonardo Bomfim (Orgs.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2016.

29
“Fala, Professor!”. Canal da Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça no YouTube. Disponível
em: <https://www.youtube.com/channel/UCiKBZ6kEIAMfWFCPsIbEJUA>. Acesso em:
09 dez. 2016.

36
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Feminismo, Gênero & Super-heróis:


temas contemporâneos no ensino de filosofia
Inara Zanuzzi, Leonardo Porto, Rúbia Vogt,
Fábio Goulart, Alexandre Hidalgo Nicolini,
Dominique da Silveira Quevedo, Eduardo Teles,
Gianluca Ravasio Focchesatto,
Márcia Gabrielle Rodrigues Laux,
Maria Carolina Gurgacz, Marina Silveira da Silva,
Rafaela Antunes Nunes, Ronald Augusto da Costa
e Tabaré José Reynoso.

O diálogo com as demais áreas do conhecimento é natural para a filoso-


fia, pois os seus objetos de investigação são os fundamentos de todo o conhe-
cimento humano, seja no campo teórico ou no da ação. São temas da reflexão
filosófica a metafísica e a ontologia, que estudam a natureza da realidade, o
tempo e o espaço, e os objetos que a constituem, inclusive os abstratos (os
números, as formas geométricas); também é tema desta reflexão a epistemolo-
gia, que estuda os fundamentos do conhecimento humano. Além destes temas
teóricos, a filosofia também aborda a ação humana, através do estudo da ética
e da política. Por fim, a estética investiga o nosso juízo sobre o belo, tanto nas
obras humanas quanto na natureza.
O desafio no ensino de filosofia é efetivar esta capacidade dialógica para
que possa ter um caráter interdisciplinar, no sentido de estabelecer uma liga-
ção curricular com outras disciplinas, sem perder a sua singularidade. Contu-
do, dada amplitude temática da filosofia, é necessário um critério para selecio-
nar o conteúdo. Normalmente este critério é a tradição, ou seja, a história da
filosofia. É um critério bastante vago, uma vez que inclui toda a filosofia, in-
clusive a contemporânea. Portanto, é preciso encontrar outro critério que nos
permita selecionar o conteúdo e a forma de sua abordagem.

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37
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

Aujaleu (1997) escreve que o ensino filosófico recai sobre três objetos:
“as obras e os textos filosóficos, o pensamento e a prática humana e o pensa-
mento dos próprios alunos (p. 37)”. O autor deixa claro que esses objetos de
ensino não são excludentes: “com relação as obras, trata-se de resgatar os
modelos de racionalidade e totalização que elas propõem; com relação aos
outros dois casos, convém aplicar as normas assim resgatadas aos dados reais
que constituem o ambiente cultural, social e existencial dos alunos (AUJA-
LEU, 1997, p. 37).
Nossa proposta é realizar as três etapas mencionadas por Aujaleu: usa-
mos as teorias e o método filosófico para abordar temas contemporâneos e,
ao fazer isso, pretendemos tornar mais acessíveis o conteúdo e o método
filosófico.
Em nossa atuação na Escola Estadual Padre Reus e no Colégio de Apli-
cação da UFRGS, utilizamos o conteúdo filosófico para analisar e discutir
assuntos contemporâneos, o “feminismo” e “questões de gênero”, mas tam-
bém fizemos o inverso: usamos a cultura contemporânea, os super-heróis das
estórias em quadrinhos, para estudar a filosofia da Grécia Clássica.
Abordar o feminismo nos permitiu uma aproximação com a área de His-
tória, e as questões de gênero, com a da Sociologia. Mas além da aproximação
com outras áreas, é preciso também estabelecer uma conexão com o interesse
dos alunos. No caso do feminismo, fomos ao encontro das aspirações de várias
alunas da Escola Padre Reus, que se mobilizaram contra a postura sexista de
alguns professores. Durante a ocupação da escola por parte dos alunos no ano
de 2016, foi manifestado o interesse destes com relação ao tema dos vários
tipos de sexualidade, o que nos levou a criar a oficina sobre questões de gênero.
Utilizar estórias em quadrinho é uma forma de aproximar a filosofia da cultu-
ra popular.
Seguindo os passos de nossa proposta curricular, iniciamos o estudo do
feminismo e das questões de gênero com uma noção básica de ética, pois em
ambos os casos estamos tratando de preconceitos sociais e morais.
Surge, entretanto, uma tensão: como ensinar o respeito à mulher e à
diversidade de comportamento sexual sem incorrer em proselitismo moral?
Ambos são temas polêmicos, e a neutralidade do professor diante destes será
falsa. Porém, ao assumir uma posição, não estará doutrinando os alunos? Para
evitar este resultado, o professor deve desenvolver nos alunos a capacidade de
avaliarem por si mesmos o que está em jogo nestes temas, ou seja, deve desen-
volver a autonomia intelectual dos alunos. Este objetivo, aliás, deve percorrer
todo currículo, pois, sem autonomia de pensamento, os alunos serão meros
repetidores daquilo que “assistem” em aula.

38
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Desenvolvimento da autonomia intelectual

Autonomia é usualmente entendida como a capacidade de governar a si


mesmo. Não deve ser confundida, evidentemente, com a mera espontaneida-
de, pois ser autônomo implica a capacidade de justificar escolhas: “quando
alguém faz uma escolha autônoma (...) supõe-se que sejamos capazes de ex-
plicar o que esta pessoa fez apontando as razões que tinha [para fazer tal esco-
lha]” (NAGEL, 2004, p. 192). Autonomia pressupõe a capacidade de dar ra-
zões para as escolhas realizadas, e, como salienta Nagel, esta capacidade não
se aplica apenas ao campo da ação humana: “na crença, assim como na ação,
os seres racionais almejam a autonomia” (2004, p. 196).
Um currículo voltado para desenvolver a autonomia dos alunos, antes de
estabelecer o conteúdo, precisa determinar o modo através do qual o tema será
abordado, pois o objetivo desse currículo não é apenas transmitir um determinado
conhecimento, mas também ensinar a avaliar, produzir e pesquisar novos conheci-
mentos (teóricos ou práticos). O currículo para a autonomia, por conseguinte,
não exclui a aquisição de conhecimento, na verdade ele a complementa, na medi-
da em que visa ensinar o aluno a interpretar o conteúdo aprendido, a compará-lo
com outros conteúdos e a produzir novo conteúdo a partir do que aprendeu.
Avaliar novos conhecimentos implica saber compreender e relacionar os
conceitos envolvidos neste conhecimento, e saber entender a relação entre as
várias informações que constituem este conhecimento: estas informações não
estão soltas e sem relação entre si, pelo contrário, na medida em que um con-
teúdo é relevante e consistente, seus constituintes estão organizados por infe-
rências. Assim, avaliar novos conhecimentos requer a capacidade de realizar
análise conceitual e análise de inferências. Estas capacidades são também re-
queridas para a produção de novo conhecimento, uma vez que este novo conhe-
cimento também deverá ser relevante e consistente.
Pensamos no desenvolvimento destas duas capacidades nas atividades que
seguem, a fim de evitar que os temas polêmicos transformassem o ensino de filo-
sofia em mera doutrinação, mas igualmente evitando uma falsa neutralidade.

Introdução à ética
Etapas da atividade:
1) Iniciar apresentando como se divide a ética, segundo Fábio Gai Pereira.
(Ética: perspectivas sobre o seu ensino, 2013, p. 15-20):
a) Consequencialismo (citar o Utilitarismo, que foi exemplificado pelo autor)
b) Ética do dever (citar Kant e religiões que têm regras morais fixas)
c) Ética das Virtudes (citar Aristóteles)

39
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

2) Mostrar um vídeo com alguma cena/parte que denote:


a) Racismo (Perguntar o que aconteceu na cena/parte apresentada)
b) Machismo (Perguntar o que aconteceu na cena/parte apresentada)
c) Homofobia (Perguntar o que aconteceu na cena/parte apresentada)
3) Perguntar o que essas três cenas e essas três nomenclaturas (que provavel-
mente eles identificarão como racismo, machismo e homofobia) têm em
comum.
4) Será identificado o preconceito, e, a partir disso, levantamos o questionamen-
to se eles acham que uma boa teoria ética poderia aceitar esse tipo de atitu-
de e por que. (Aqui entendemos preconceito como qualquer opinião ou sen-
timento concebido sem exame crítico; sentimento hostil, assumido em con-
sequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou im-
posta pelo meio; intolerância.
5) Após responderem, apresentamos, resumidamente, a resposta dada por Ja-
mes Rachel (2013):
5.1 A concepção mínima de moralidade
A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a mo-
ralidade é, pelo menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão –
isto é, para fazer aquilo a favor do qual existem melhores razões –, dando
simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo que
será afetado por aquilo que fazemos.
Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que significa ser um
agente moral consciente. O agente moral consciencioso é alguém preocupado impar-
cialmente com os interesses de quantos são afetados por aquilo que ele, ou ela, fazem;
alguém que cuidadosamente filtra os fatos e examina as suas implicações; que
aceita princípios de conduta somente depois de os examinar, para ter a certeza
de que são sólidos; que está disposto a “dar ouvidos à razão”, mesmo quando
isso significa ter de rever convicções prévias; alguém que, por fim, está disposto a
agir com base nos resultados da sua deliberação.
É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas aceitam
este “mínimo”. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima deba-
tem-se com sérias dificuldades, e, por isso, a maior parte das teorias da mora-
lidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção mínima.
Assim, a maioria das teorias da moralidade não discorda sobre a neces-
sidade de aplicar o conceito mínimo de moralidade, representado pela razão e
pela imparcialidade, mas podem discordar e divergir quanto à forma de apli-
car isso, de maneira que possamos englobar o máximo de pessoas possível.

40
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Se concordamos com a concepção mínima de moralidade, consequen-


temente iremos admitir que o preconceito será sempre antiético. Portanto, ape-
sar de ainda não conseguirmos eleger uma teoria ética como a melhor a ser
seguida, para cada situação podemos, ao menos, optar por uma que abarque a
exigência do uso da razão e da imparcialidade ao ditar um princípio ético.

O feminismo sob a perspectiva filosófica

Com a movimentação dos alunos do Rio Grande do Sul, no ano de


2016, ocupando grande parte das escolas do estado em busca de melhorias na
educação, surgiram ideias e oportunidades de aplicação de oficinas para os
alunos.
Em vista desse cenário e devido à longa ocupação na Escola Padre Reus,
surgiu a proposta do grupo de estudos “Feminismo sob uma perspectiva filo-
sófica” através da iniciativa do grupo de bolsistas do PIBID-Filosofia, com o
intuito de fortalecer os argumentos pró-feministas dessas alunas.
O objetivo geral de nossa proposta é estimular a capacidade argumenta-
tiva com embasamento teórico e filosófico na defesa de diferentes pontos de
vista das autoras e feministas estudadas, de modo que possamos estar cons-
cientes das consequências de cada defesa, levando em conta o respeito à plura-
lidade de opiniões.
Também pretendemos demonstrar que o incentivo a um olhar filosófi-
co para os grupos que lutam pelo seu reconhecimento, como no caso das
mulheres, é uma excelente ferramenta para o alcance da representatividade
e, consequentemente, para a igualdade de direitos universais, acreditando
que a defesa de um debate sadio de ideias com embasamentos reais e o res-
peito perante os diferentes pontos de vista são essenciais para a ascensão da
paz no meio social.
A análise de argumentos ou, simplesmente, as noções lógicas que utili-
zamos na filosofia são de grande importância para articular esses questiona-
mentos. Se nosso raciocínio é falho, a lógica pode mostrar isso e também nos
ajudar a reformulá-lo, de maneira que possamos ser mais coerentes com aqui-
lo que dizemos e defendemos.
Sendo mais coerentes, podemos ser ouvidos com maior frequência, e
nossa opinião pode ser levada mais em conta em uma discussão. No caso de
defendermos a representatividade das vozes ainda suprimidas na sociedade,
uma delas sendo a mulher, isso é muito importante como ferramenta de dis-
curso.

41
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

1 Primeiro Encontro:
1.1 Apresentação da proposta do grupo de estudos.
1.2 Abertura do tema através da dinâmica proposta com a pergunta “O que
é ser mulher?”, escrevendo as respostas das alunas no quadro de forma
anônima.
1.3 Leitura e discussão de um trecho da introdução do livro “O Segundo
Sexo”, de 1949, de Simone de Beauvoir, no qual ela questiona o que é
ser mulher.

2 Segundo Encontro:
2.1 Exposição do contexto histórico do surgimento do feminismo, com foco
em alguns acontecimentos marcantes na Europa e no Brasil.
2.2 Com relação ao feminismo no cenário internacional, focou-se a Revo-
lução Francesa e sua influência no pensamento de Olympe de Gouges
(1748-1793), que, desencantada com o fato de os revolucionários não
incluírem as liberdade para as mulheres no ideário da Revolução, escre-
veu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”.
2.3 Também foi abordado o movimento sufragista no século XIX, que ori-
ginou o movimento feminista na Inglaterra, o qual, por sua vez, inspi-
rou o movimento feminista no Brasil. Deste, foi abordado o papel pre-
cursor de Nísia Floresta Brasileira Augusta, que em 1832 publicou o
livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”. Existe um vídeo
sobre esta feminista brasileira no youtube neste endereço: https://
www.youtube.com/watch?v=-fqz5fsFssE.

3 O que Filosofia e Lógica têm a ver com o Feminismo?


A lógica lida com raciocínios e argumentos, estes fazem parte de qual-
quer reflexão filosófica (ex.: teoria do conhecimento, ética, filosofia política,
estética).
Além do mais, a luta pelo reconhecimento e pela igualdade política e
social da mulher exige “armas” fortes.
A filosofia, por sua vez, é uma excelente ferramenta para fortalecer a
luta feminista e o crescimento individual de cada mulher, pois proporciona:
3.1 Conhecimento de si mesmo e do nosso papel na sociedade em que esta-
mos inseridas.
3.2 O hábito de buscar sempre as melhores justificativas para o conheci-
mento e saber que ele não é estático.
3.3 Coragem de abandonar nossas opiniões para investigar a natureza de
nossas ideias de maneira livre e crítica.

42
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

3.4 Consciência das nossas limitações sobre o conhecimento e maior tole-


rância com as novas informações que nos chegam.
3.5 A não aceitação imediata às coisas e às ideias de terceiros sem maiores
considerações.

4 O ensino de lógica:
4.1 Inferências
4.1.1 Elementos da inferência:
a) sentença ou proposição: expressão linguística que pode ser ver-
dadeira ou falsa;
b) valor de verdade: dizer que uma sentença ou proposição é algo
verdadeiro ou falso é dizer que ela tem valor de verdade;
c) argumento: um argumento é um conjunto de pelo menos duas
proposições, tais que algumas (eventualmente, uma) – as pre-
missas – pretendem levar à aceitação da verdade de outra – a
conclusão;
d) argumento válido: um argumento é válido se o conjunto das
suas premissas tem como consequência a conclusão;
e) argumento inválido: um argumento é inválido se o conjunto
das suas premissas não tem como consequência a conclusão.
4.2 Raciocínio Dedutivo: é uma inferência na qual se afirma que a conclu-
são é necessariamente verdadeira se as premissas também o forem. Portan-
to, não há qualquer possibilidade de as premissas serem verdadeiras
4.3 Raciocínio Indutivo: É uma inferência na qual se afirma que a conclusão
tem alta probabilidade de ser verdadeira se as premissas também o forem.
4.5 Analogia: Um raciocínio análogo é uma relação de semelhança entre
duas coisas ou mais.
4.6 Condições Suficientes: Condição Suficiente é aquela que satisfaz o re-
quisito mínimo para assegurar a ocorrência efetiva de outro evento.
4.7 Condições Necessárias: são aquelas que devem ser satisfeitas antes que
outro evento possa ocorrer.
Exemplo de análise de um argumento usando o conteúdo feminista:
Premissa 1: Se uma sociedade é justa e equitativa para as mulheres, então
homens e mulheres terão iguais direitos sociais, políticos e econômicos, assim
como liberdades e oportunidades iguais.
Premissa 2: Mas, em muitas sociedades ocidentais, homens e mulheres
não têm iguais direitos sociais, políticos e econômicos, assim como não têm
liberdades e oportunidades iguais.

43
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

Conclusão: Muitas sociedades ocidentais não são justas e equitativas


para as mulheres.
(Fonte: Feminismo Liberal, Julinna C. Oxley, em “Os 100 argumentos
mais importantes da Filosofia Ocidental”)

Gênero e diversidade sexual

Entendendo que, em nossa sociedade, a educação tem importante parti-


cipação na construção de papéis de gênero e no próprio processo de constru-
ção e de identificação de gênero da criança e do adolescente, as atividades
visam possibilitar a discussão e a reflexão acerca do que é ser homem e mu-
lher, do que é orientação sexual e do que trata a identidade de gênero. Para que
existam relações mais igualitárias entre mulheres e homens e aceitação e res-
peito à diversidade sexual e de gênero, torna-se necessário pôr em xeque a
rigidez dos padrões estabelecidos. Assim, propomos a conscientização de que
a construção de gênero é social, histórica e contínua. Acreditamos que essas
questões devem fazer parte do currículo da Filosofia, uma vez que, além de as
questões de gênero e de sexualidade estarem presentes em todas as disciplinas
no cotidiano escolar, no caso da Filosofia, em particular, elas ganham uma
análise conceitual e argumentativa rigorosas, que são próprias da disciplina.
Atentos a isso, tomamos como ponto principal de problematização os concei-
tos de “mulher” e de “homem” e, por meio do método filosófico, reconstruí-
mos seus significados e passamos a colocar em questão a própria existência de
tais conceitos. Os alunos são levados, assim, a questionar filosoficamente suas
crenças aparentemente mais estáveis e sólidas acerca do que é ser homem e do
que é ser mulher. Nesse sentido, entendemos que a escola e a aula de Filosofia,
sendo espaços significativos de convivência, diálogo e reflexão para os adoles-
centes, podem promover o rompimento de estereótipos de gênero, reduzindo
preconceitos, desigualdades e discriminações.

Etapas da atividade:
1) Dividir o quadro em 3 colunas e perguntar às/aos participantes o que vem
imediatamente à cabeça quando escutam a palavra “sexo”.
2) Escrever a palavra “sexo” na primeira coluna do quadro e, conforme forem
falando, anotar as respostas fazendo uma lista.
3) Na sequência, solicitar que façam o mesmo com as palavras: “sexualidade”
e “gênero”.

44
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

4) Ao final, ler todas as definições que surgiram para cada uma das palavras
propostas e pedir que façam comentários sobre as respostas que surgiram.
Que ideias aparecem em mais de um conceito? Como podemos definir me-
lhor cada conceito para torná-los mais precisos?
5) Iniciar a discussão, utilizando as seguintes perguntas: Qual a diferença en-
tre sexo e sexualidade? Qual a diferença entre sexo e gênero? O que é diver-
sidade sexual e identidade de gênero? E como a orientação sexual se relaci-
ona com tudo isso?

Exemplo de atividade:

Por que a charge é cômica?


Porque a mulher pensa que Laerte propõe mostrar sua operação de tro-
ca de sexo, quando é irônica e pensa na de amídalas?
A mulher, que parece ter ficado incomodada com a presença de Laerte,
utiliza-se de quais critérios para poder usar o banheiro feminino?

6) Apresentar à turma a personagem Lorelay Fox, interpretada pelo ator Da-


nilo Dabague, e propor que assistam ao seu vídeo “É preciso apoiar as dife-
renças”.
7) Analisar e discutir o vídeo tendo como base o texto de apoio que reflete
sobre o vídeo, “Definindo Mulher/Homem...”.
8) Analisar e reconstruir os conceitos de “homem” e “mulher”, buscando, ar-
gumentativamente, questionar a própria existência de “homem” e “mulher”,
isto é, questionar a possibilidade de se determinar o que seriam tais concei-
tos.
9) Discussão final.

A seguir, apresentamos um exemplo de análise conceitual usando a de-


finição de “gênero”:

45
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

46
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Super-Heróis e a Filosofia

A oficina Super-Heróis e a Filosofia foi pensada para as turmas de EJA


do Colégio de Aplicação da UFRGS. Com o objetivo de apresentar os super-
heróis (possivelmente já conhecidos pelos alunos que participarão da oficina)
e relacionar esses heróis (seus trejeitos, maneiras de ser, filosofia de vida) com
teorias de alguns dos principais filósofos conhecidos pela maioria, fazendo,
assim, uma introdução à filosofia de um modo mais geral.
Ao relacionar os personagens das histórias dos X-men com um filósofo
para apresentar de forma simples a teoria dos primeiros filósofos para as tur-
mas de EJA, obtemos o interesse dos alunos por aprender a filosofia de forma
diversificada, com linguagem de fácil entendimento, e desenvolvemos a capa-
cidade desses alunos de fazerem suas próprias relações das teorias de filósofos
com seu cotidiano.

Exemplo de comparação entre os personagens e a filosofia:

1 Tales de Mileto e o naturalismo:


Tales de Mileto foi o primeiro filósofo de que se tem notícia. Sua teoria
era baseada no naturalismo, ou seja, a criação do mundo e tudo o que existe se
deu por processos naturais. Buscava um princípio único da explicação do
mundo (que ele acreditava ser a água). Acreditava que todas as coisas são uma
só coisa fundamental, ou um só princípio. As investigações de Tales marcam o
momento em que começa a filosofia (segundo Aristóteles), pois passa a admi-
tir uma reflexão racional sobre a concepção do mundo.

1.1 Naturalismo e os X-men:


A história básica original é simples. Em várias partes do mundo nasce-
ram crianças com mutações genéticas, sem um motivo determinado, parecen-
do um aperfeiçoamento natural da natureza, ou evolução que estava predeter-
minada a acontecer naturalmente. Esses mutantes podem fazer um grande
bem aos seres humanos ou infligir-lhes um terrível mal. Os demais humanos
que não possuem mutações costumam sentir muito medo dos humanos mu-
tantes, pois estes deram um grande salto evolucionário, sendo chamados de
Homo Superior, e suas capacidades são desconhecidas e dificilmente controla-
das por aqueles que não possuem poderes. As histórias contam com diversas
etnias, sendo os quadrinhos mais multiculturais que existem, e também, a his-
tória em quadrinhos que mais tem personagens femininos na Marvel.

47
ZANUZZI, I. et al. • Feminismo, Gênero & Super-heróis: temas contemporâneos...

2 Platão e a justiça:
Platão questiona se as pessoas amam a justiça ou o bem, porque é certo,
ou porque sabem que, se forem injustas ou imorais, sofrerão consequências
negativas. Para que a justiça tenha alguma validade, ela deverá ser uma virtu-
de e, portanto, deve contribuir de modo constitutivo para a boa vida de quem
é justo. Platão argumenta que nossa natureza é tal que, no fim, apesar de nos-
sos desejos presentes, seremos mais felizes tanto nessa vida quanto após a morte,
se vivermos em harmonia com a justiça, voltando nossa atenção para o bem.

2.1 Justiça e os X-men:


Por que alguém com superpoderes deveria ser bom? Os X-men, associa-
dos a Xavier, personificam o amor ao próximo. Eles trabalham para o bem dos
outros, incluindo até aqueles que tentam persegui-los e prejudicá-los. O amor
e o interesse deles pelos outros parece incondicional em qualidade e universal
em extensão.
O mero fato de que a comunidade mutante contém tanto os seguidores de
Xavier, que tentam alcançar a meta de uma paz inclusiva, quanto os seguidores
de Magneto, que visam a seus fins mais exclusivistas por meio da violência,
mostra que a escolha do bem não é fácil nem automática para os mutantes.

Referências
ALMEIDA, A; MURCHO, D.; TEIXEIRA, C. 50 Lições de Filosofia, 10. ano. Lisboa:
Didática, 2013.
AUJALEU, Edouard. “Philosophie et Histoire de la Philosophie en Classe Termina-
le”. In: “L’Étude de Philosophie”, Academie de Montpellier, 1997.
GALLO, S. Filosofia: experiência do pensamento. Volume único. São Paulo: Scipione, 2014.
[Unidade 2, capítulo 3: Corporeidade, gênero e sexualidade].
MORRIS, M.; MORRIS, T. Super-Heróis e a Filosofia – Verdade, justiça e o caminho
Socrático. São Paulo: Madras, 2009.
NAGEL, Thomas. Visão a partir de lugar nenhum. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PEREIRA, Fábio. Ética: perspectivas sobre o seu ensino. In: SPINELLI, Priscilla Tes-
ch; PORTO, Leonardo Sartori; ZANUZZI, Inara; SANTOS, Rafael Bittencourt (Orgs.).
Diálogos com a escola: experiências em formação continuada em Filosofia na UFRGS.
Porto Alegre: Evangraf, 2013, v. 1, p. 171-196.
RACHELS, James. Elementos de Filosofia Moral. Porto Alegre: AMGH, 2013.
SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. São Paulo: Autêntica, 2012.

48
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Registros pibidianos sobre uma tentativa


de democratização no espaço escolar
Gabriel Schenkmann Arnt1
Rosimeri Aquino da Silva2

A imaginação sociológica no cotidiano escolar


A inserção de estudantes na Educação Básica como bolsistas do Progra-
ma de Iniciação à Docência (PIBID) – subprojeto Ciências Sociais, assim como
suas inserções nos estágios de docência em Escolas de Ensino Médio da Rede
Estadual de Ensino, têm propiciado a emergência de temas sociológicos diver-
sos para trabalhos de conclusão de curso, produção de artigos e pesquisas di-
versas por eles elaboradas.
A ampla gama de temáticas trabalhadas pelos estudantes bolsistas e es-
tagiários tem contribuído para a compreensão e para a ilustração da pertinên-
cia da sociologia na educação contemporânea, uma educação complexa, con-
flitiva e, fundamentalmente, instigante para aquelas e aqueles que nela atuam
e/ou desejam atuar. Assim, são elaborados trabalhos de diferentes ordens, ma-
tizes e orientações teóricas sobre, por exemplo, a violência na escola, interdis-
ciplinaridade, etnografia no ambiente escolar, pesquisa e prática de ensino,
relações entre professores e alunos, direitos humanos, identidades docentes e
discentes, racismo e evasão escolar, reestruturações no ensino, feminismo, ci-
dadania, pedagogia crítica, gênero e sexualidade, participação política, demo-
cracia, história política, culturas e sociedade, Lei Maria da Penha, movimen-
tos sociais da atualidade, Estado, relações sociais e individualismo, entre ou-
tros temas atuais.
Estar dentro da escola durante a graduação em Ciências Sociais, segun-
do relato de muitos estudantes, propiciou diversas oportunidades de aprendi-
zado e questionamentos para serem aprofundados ao longo da graduação e da

1
Licenciado em Ciências Sociais (UFRGS). Bolsista PIBID – Subprojeto Ciências Sociais de
2012 a 2015. Estagiário de Sociologia de 2014 I/II.
2
Coordenadora do PIBID-Ciências Sociais. Professora DEC/UFRGS. E-mail:
rosimeriaquinodasilva@gmail.com.

49
ARNT, G. S.; SILVA, R. A. da • Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização...

prática de ensino no Ensino Médio. A imaginação sociológica é acionada,


pois, nos termos de Mills (1972), seus instrumentos, suas “lentes” e seus concei-
tos são de grande importância para a percepção dos acontecimentos do mundo
social, das transformações, das estruturas e de suas conexões com a atuação dos
indivíduos, para além das aparências imediatas.
Os conhecimentos sociológicos, ao se fazerem presentes na escola públi-
ca, ao demonstrarem sua pertinência e suas proximidades com a vida cotidiana
das pessoas, podem contribuir para os debates em torno de suas vulnerabilida-
des e potencialidades, e a escola pode ser “(...) o melhor ambiente para se fazer
sociologia”3. Na avaliação desses bolsistas, a experiência de uma espécie de prá-
tica docente compartilhada, proporcionada pelo PIBID, foi de fundamental im-
portância para que alguns deles realizassem um estágio de docência exitoso.
As dinâmicas, as oficinas, as observações participantes, a nutrição de
ideias coletivas, os conteúdos sociológicos, a relação com os alunos, e, funda-
mentalmente, os aprendizados “colhidos” dos professores supervisores, servi-
ram-lhes de base para o desenvolvimento de seus trabalhos individuais, nas
aulas do estágio.
Compreender a escola através de uma perspectiva ampliada, diferente
do habitual, do já conhecido, compõe o fazer sociológico na Educação Básica.
Da mesma forma, contextualizar ideias, causar estranhamento e também sen-
tir-se afetado pelo acesso a outras formas de conhecimento, oriundas muitas
vezes dos saberes práticos dos professores, também é parte desse fazer do ensi-
no de sociologia. Na definição de Tardif (2000), tratam-se de saberes utiliza-
dos pelos profissionais em seu espaço de trabalho. Eles englobam habilidades,
competências, atitudes que lhes são demandadas cotidianamente. É impor-
tante compreender como esses saberes “(...) são integrados concretamente nas
tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam,
aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas
atividades de trabalho” (p. 13).
A atuação dos alunos secundaristas nos espaços do Ensino Médio, tam-
bém se constitui em tema de interesse dos integrantes do PIBID, subprojeto
Ciências Sociais. Assim, elaboram-se questões em torno desses personagens
fundamentais da cena escolar. Como ocorre a participação dos secundaristas
nas atividades características dessas instituições? Quais são os sentidos que
eles atribuem a escola? Alunos do Ensino Médio compreendem as articula-
ções entre a vida em sociedade e as atitudes individuais? Esses, entre outros

3
Estagiária Lizey Silveira da Silva. Relatório de Estágio de Docência em Ciências Sociais I,
2015, p. 24.

50
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

questionamentos, estão presentes nas investigações dos estudantes da Licencia-


tura em Ciências Sociais e bolsistas do PIBID.
Se a escola, assim como outras regiões da vida social, é meritocrática,
nos termos de Dubet, “(...) ela ordena, hierarquiza, classifica os indivíduos em
função de seus méritos, postulando em revanche que esses indivíduos são
iguais” (2003, p. 40). Os alunos secundaristas, nessa perspectiva, podem se
perceber como os autores de seus desempenhos, como seus responsáveis. Quan-
do esses alunos se dão conta, em alguma medida, de que seus esforços pare-
cem não valer a pena, pois não conseguem enxergar claramente a aplicabilida-
de dos conteúdos trabalhados, eles podem desenvolver atitudes tais quais re-
traimento, hostilidade, pois não conseguem jogar o jogo institucional de for-
ma que saiam vencedores. É como se sempre saíssem perdedores, e a violência
por eles exercida contra a escola e tudo que ela representa fosse uma estratégia
de defesa da própria dignidade. Essa é uma hipótese sujeita a múltiplas verifi-
cações por parte da imaginação sociológica, pois outras compreensões são
possíveis. Por exemplo, alunos secundaristas não participariam da escola pelo
simples fato de não se sentirem representados. Pode ser mais cômodo perma-
necer inerte e não engajado, pois, mais adiante, de que valeria o engajamento
e o posicionamento crítico se os trabalhos que podem ser executados só exi-
gem uma resposta mecânica e uma postura subalterna diante da dominação
vigente? Por mais que ele se esforce não só na sua avaliação pessoal, mas tam-
bém na avaliação que ele sofre dos professores, ele não vai obter êxito, pois é
tomado por uma sensação de insuficiência. Ele continua ali dentro, frequenta
as aulas, acompanha a rotina da escola, mas está ausente, mesmo estando
presente. Alunos quase etéreos, amorfos, como se estivessem o tempo inteiro
desmotivados, destituídos de razões para engajar-se.
Entretanto, verificam-se outras posturas: de engajamento, de participa-
ção, de atribuição de importância à rotina escolar, alunos que se sentem prota-
gonistas/coadjuvantes do ambiente escolar, e talvez o que contribua para esse
tipo de atitude seja uma trajetória de acolhimento em outras instituições, desde
a família, e a escola que cria um ambiente no qual o sujeito se sente integrante.
Um dos objetivos centrais do Ensino Politécnico, como veremos a se-
guir, consistia justamente na integração dos alunos. Para tanto, apresentare-
mos alguns dados de um breve estudo de caso sobre a vigência do Conselho de
Classe Participativo em uma das escolas parceiras do PIBID, subprojeto Ciên-
cias Sociais.4

4
ARNT, Gabriel Schenkmann. Conselho de classe participativo: possibilidades e limitações à democracia.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Ciências Sociais, UFRGS, 2015.

51
ARNT, G. S.; SILVA, R. A. da • Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização...

Conselhos de Classe Participativos, uma tentativa


de democratização do espaço escolar

Os conselhos de classe participativos, de acordo com o projeto de im-


plantação do Ensino Politécnico, no Ensino Médio do RS, objetivavam a cria-
ção de um espaço democrático na escola, muito embora em algumas escolas
da rede pública já ocorressem participações de alunos em conselhos de classe.
Na nossa escola, disse um professor, “tornou-se usual a participação de repre-
sentantes de turmas nos conselhos, inclusive quando se discutia a atribuição
de notas. Não foi exatamente uma novidade, mas assim foi apresentado, num
primeiro momento”.
O Conselho de Classe Participativo foi constituído como uma engrena-
gem, como um eixo fundamental de um novo Ensino Médio, cuja durabilida-
de vigorou, de fato, nos anos letivos de 2014 a 2016, de acordo com informa-
ções de professores. Na avaliação de muitos professores da rede pública esta-
dual, a Educação Básica se encontra à mercê de planos de governo, portanto
sujeita a constantes e, por vezes, inelutáveis modificações. Por que escolhemos
esse acontecimento? Trata-se de um evento ilustrativo da tensão do fazer
sociológico em realidades (como a realidade da escola) que se encontram em
pleno movimento e mutação, de um tempo, segundo Bauman, de sucessões
infinitas de novos inícios, devidas “[...] antes de tudo ao rápido cancelamento
dos conhecimentos pregressos”. Um tempo onde as decisões, as novas propos-
tas, os projetos, são inconstantes e breves, inscritos em um mundo “[...] instá-
vel e perecível” (p. 669). Se a contemporaneidade é instável, como instituições
escolares nela atuam? Práticas curriculares, sejam elas concernentes à avalia-
ção, sejam elas relacionadas aos conteúdos e ações dos atores sociais nelas
envolvidos estão, constantemente, sob novos olhares e projetos, alguns clara-
mente tecnicistas, outros de caráter humanista e/ou políticos críticos. A busca
por inovação parece “multiplicar-se ao infinito” (VEIGA-NETO, 2017, p. 35).
O Conselho de Classe Participativo constituiria um espaço em que os
alunos poderiam, conjuntamente com o corpo docente e diretivo da escola,
discutir e avaliar o ensino ao longo do trimestre. Porém, mesmo que ali se
desse uma abertura para que os alunos pudessem expor a sua opinião acerca
dos temas vivenciados, de acordo com observações feitas ao longo desse estu-
do, alguns alunos, em alguns casos, pareciam relutantes a dar a sua opinião, a
participar, a sentir-se integrantes, de forma efetiva, desse lugar. Que fatores
influenciaram a participação de alunos nos conselhos participativos? Quais as
possibilidades e limitações que o Conselho de Classe Participativo apresentou
para a consolidação de um espaço democrático, de uma forma de relaciona-

52
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

mento integrado e horizontal entre professores e alunos? A escola da atualida-


de pode ser pensada como uma instituição democrática?
Compreender que o conceito de democracia está em disputa na socieda-
de em geral para pensar as relações de poder existentes dentro da escola parece
ser um bom caminho para o encontro de algumas respostas às questões acima
referidas. Relações sociais democráticas, em termos gerais, pressupõem parti-
cipação, igualdade, liberdade de escolha, mas essas dimensões podem ser in-
suficientes, pouco abrangentes, distintas e relativas, como tem nos mostrado a
história e a etimologia da palavra “democracia”.
O Conselho de Classe Participativo, de acordo com a proposta pedagó-
gica para o Ensino Médio Politécnico e o Regimento Padrão do Ensino Médio
Politécnico5, constituiria, de forma sistemática, esse espaço no qual professo-
res, equipe diretiva e alunos se reuniriam com a finalidade de acompanhar o
desenvolvimento e a aprendizagem, individual e coletiva dos alunos. Consti-
tuir-se-ia, portanto, no momento da reflexão, de todas as áreas, sobre o proces-
so de aprendizagem da turma e do aluno. Nele ocorreriam ações propositivas
com vistas à redefinição do trabalho docente, e de discussões de permanente
construção dos processos de conscientização, de democratização, emancipa-
ção e de diálogo entre os envolvidos no ato educativo. O Conselho de Clas-
se Participativo seria “[...] a instância do processo de gestão democrática”
(SEDUC, 2012, p. 12).
Todos os envolvidos poderiam analisar os índices de avaliação e pensar
melhorias do processo de ensino-aprendizagem, haveria maior dinamicidade
na gestão pedagógica escolar. Esse tipo de relação, tipificada como democráti-
ca, ocorreria nos conselhos de classe participativos, envolveria os diversos pro-
fissionais da escola e propiciaria o desenvolvimento de um processo educativo
de reflexão e discussão coletiva sobre o fazer da escola como um todo, para
além da mera avaliação por desempenho individual. Juntos, os componentes
da comunidade escolar poderiam criar novas alternativas e soluções para os
conflitos, e isso contribuiria para a autonomia e o protagonismo dos alunos
(DOS SANTOS, 2010, p. 309).
A escolha da avaliação emancipatória como um dos eixos desse novo
Ensino Médio ocorreria na escola, pois a escola seria um espaço privilegiado
para a execução dessas práticas, pois priorizaria o desenvolvimento de capaci-
dades e habilidades humanas dos estudantes. A reunião de iguais e diferentes
legitimaria práticas e decisões democráticas, com a organização de coletivos,
superação de conflitos e convivência com o contraditório (SEDUC, 2011).

5
Regimento Padrão do Ensino Médio Politécnico – Parecer CEED n. 310/2012 (1ª parte).

53
ARNT, G. S.; SILVA, R. A. da • Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização...

Segundo Paro (2011), a avaliação se dá em dois momentos. Primeiro,


durante o processo, quando a avaliação se faz presente na medida em que,
para alcançar o objetivo, se faz necessária uma avaliação constante, para que
as atividades estejam conformes ao objetivo traçado. E segundo, avaliar o pro-
duto já pronto, para, com isso, averiguar a sua qualidade, se cumpriu o objeti-
vo traçado. Ou seja, avaliação em processo e avaliação em produto. Se o pro-
duto é um objeto, a avaliação pode ser feita com total ou quase total indepen-
dência em relação ao processo de produção. Porém, quando o produto é um
sujeito, no caso da educação, essa avaliação não é nada precisa, tornando-se
extremamente problemática, e só ocorre com um número muito limitado de
seus elementos constitutivos (PARO, 2011).
A essência dessa mudança de paradigma está no acompanhamento do
processo de aprendizagem, um método de avaliação contínuo, com o intuito
de diagnosticar avanços e dificuldades e, assim, poder repensar práticas de
ensino, buscando alternativas para a superação de dificuldades. Esse tipo de
avaliação preconiza a consciência crítica, a autocrítica, o autoconhecimento,
o protagonismo e emancipação dos sujeitos. Torna possível a apropriação da
aprendizagem ao sujeito e, ao professor e à escola, a reflexão aprofundada do
processo de aprendizagem, possibilitando o replanejamento e reorientação de
suas atividades (FERREIRA, 2013).
De acordo com os argumentos acima referidos, essa nova prática de
avaliação apresentaria também o argumento irresistível de que ela se contra-
punha ao paradigma convencional de avaliação, ou seja, ela é utilizada com o
intuito de mensurar e classificar e, como consequência, um instrumento de
exclusão, de estigma e de dominação.
Avaliações convencionais vêm, ao longo da história educacional, contri-
buindo para que a escola desempenhe o papel de responsável pela seleção natu-
ral dos mais fortes e competentes. Segundo Mosna, professores que não conse-
guem envolver seus alunos nas atividades pedagógicas, “apelam” para medidas
arbitrárias, ameaças e retaliações. Esse tipo de avaliação ainda estaria presente,
e, em resposta, o objetivo do aluno seria passar de ano e ser aprovado. Assim, a
reprodução de relações autoritárias se dariam cotidianamente, impedindo que a
escola se torne um espaço para a construção da cidadania (MOSNA, 2013).

Cenas escolares

O período de observação do presente estudo transcorreu durante a vi-


gência da bolsa PIBID subprojeto Ciências Sociais, e durante o Estágio de
Docência de um dos autores deste estudo. Foi observado que o Conselho de

54
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Classe Participativo se deu em duas etapas. Na primeira etapa, a turma se


reuniu com o representante da Coordenação Pedagógica e/ou Direção e o
professor conselheiro (eleito pela turma no início do ano letivo). Os alunos,
em conjunto, responderam um questionário com o perfil da turma, as dificul-
dades pedagógicas encontradas, as propostas de solução, as atividades signifi-
cativas do trimestre e as expectativas para o próximo. Ao preencherem o ques-
tionário, eles discutiram e chegaram a um consenso. Ao final da discussão, a
Coordenação Pedagógica levou o questionário para ser devolvido aos repre-
sentantes da turma no dia do Conselho de Classe Participativo.
Em um segundo momento, ocorreu o Conselho de Classe Participativo,
em que toda a turma e todos os professores, além da Coordenação Pedagógica e
da Direção, estavam presentes. O conselho iniciou com a leitura do questioná-
rio. Em seguida, cada um dos professores deu o seu parecer sobre a turma e
sobre a avaliação que fizeram do trimestre, sendo a última fala do professor
conselheiro. Após todas as falas, abriu-se espaço para que os alunos fizessem
alguma colocação, entretanto, nenhuma foi feita. Finalmente, a Direção ou a
Coordenação Pedagógica encerraram com recomendações para o próximo tri-
mestre.
Em uma reunião de determinada turma com a Coordenação Pedagógi-
ca para o preenchimento do questionário de avaliação, observou-se que o pro-
fessor conselheiro cedeu um dos seus períodos para que a coordenadora peda-
gógica pudesse aplicar o questionário. Os alunos foram organizados em círcu-
lo. O questionário foi entregue, e foi explicada sua finalidade.
Ao preencherem o questionário, foi relatado que alguns alunos tiveram
problemas de relacionamento com uma professora específica, mas que por
medo de retaliações eles não expuseram essas reclamações. Entretanto, foi
argumentado que de nada valeria expor essa situação, já que a tensão estava
instalada entre alunos e a referida professora. A solução, apontada pelos alu-
nos foi a de conversar com a professora somente no final do ano, depois de
encerradas as atividades na escola.
Em uma outra situação, ocorrida durante o Conselho Participativo, uma
turma reclamou quanto às explicações de um professor que recém havia entra-
do na escola. Porém, o professor argumentou que a turma não estava habitua-
da à sua maneira de lecionar, mas aos poucos se acostumariam. Na medida
em que outros professores se posicionaram de forma elogiosa a essa mesma
turma, esse professor referido mudou sua postura e disse que estaria à disposi-
ção para dialogarem. Esta situação ocorreu em um conselho do primeiro tri-
mestre. No conselho seguinte, do próximo semestre, a turma relatou que a
postura do professor tinha mudado, e que eles já não enfrentavam esse tipo de
problema.

55
ARNT, G. S.; SILVA, R. A. da • Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização...

Observando uma outra circunstância, no mesmo conselho, uma turma


colocou em seu questionário críticas à maneira como uma professora lidou
com os problemas entre ela e a turma. Porém esta professora não estava pre-
sente, e outra professora veio em defesa dela, pedindo que eles conversassem
em um outro momento. Houve protestos, mas não insistências. Alguns alu-
nos, entre sussurros, diziam que já haviam tentado solucionar a questão, sem
sucesso, e o assunto não foi mais comentado. Depois de encerrado o conselho,
a coordenadora pedagógica disse que o Conselho de Classe Participativo com
professores tendo essa postura perdia todo o seu sentido.
Em vários conselhos, os alunos concordavam sobre os motivos de difi-
culdades pedagógicas, tais quais muita conversa entre colegas, atrasos, irres-
ponsabilidade. Houve um consenso de que isso ocorria por parte dos alunos, e
parecia que esses tinham respostas prontas para os professores, atendendo às
suas expectativas quanto à melhora e à solução dessas questões. Essa aparente
consensualidade sobre os motivos das dificuldades pedagógicas surtia elogios
dos professores quanto à maturidade da turma em reconhecer seus problemas.
Na sala dos professores, um professor relata que a turma rejeitou a pro-
posta de adiantamento do prazo de um trabalho, e isso, para ele, era uma de-
monstração de desunião que havia nessa turma. O professor pergunta à coor-
denadora se o questionário já havia sido aplicado nessa turma, e ela responde
que não. Logo, ele adverte: “caso eles digam que são uma turma unida e parcei-
ra, já diz para eles que tu sabes que eles não são, por causa desse exemplo”.
É importante ressaltar que a proposta do Ensino Médio Politécnico foi
cercada de polêmicas e críticas, muitas delas feitas durante a greve dos profes-
sores de 2013. Algumas dessas críticas foram sustentadas pelos professores da
escola: a falta de debate dessa proposta junto aos professores; a falta de orien-
tação e capacitação da SEDUC para a implementação da proposta nas esco-
las; tempo muito curto para implementação; o aumento da carga de trabalho
sem o devido reconhecimento salarial da categoria.
A crítica mais contundente é quanto ao processo avaliativo dos alunos,
e esse era o aspecto mais importante do projeto, pois os professores deveriam
atribuir conceitos, e não mais dar notas. E esses conceitos deveriam ser cons-
truídos por áreas, e não em cada disciplina, e para justificar cada um dos con-
ceitos seria necessário construir um parecer sobre o aluno. Muitos professores
na escola reclamaram, uma vez que não estão habituados a trabalhar com
conceitos e muito menos em conjunto. Tornou-se necessária a realização de
muitas reuniões para que os conceitos fossem obtidos. Muitos professores sim-
páticos à proposta do Ensino Médio Politécnico criticaram esse aspecto con-
cernente à avaliação.

56
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

As cenas acima referidas ilustram, em parte, argumentos de Medeiros


de que os mecanismos, tais quais o Conselho de Classe Participativo, que pre-
tendem tornar a escola mais democrática, podem ser esvaziados ou despo-
tencializados de sentido pela própria escola. Eles enfrentam dificuldades de vá-
rias ordens. Entre elas, haveriam problematizações excessivas por parte daque-
les sujeitos que desvalorizariam o sentido de uma prática participativa e esva-
ziam o ideal de democratização educacional (MEDEIROS, 2009). Mas essa
seria uma explicação possível. Acreditamos que as estruturas de funcionamento
da escola, relativas, por exemplo, as formas de avaliação, são de longa data e
tanto os alunos quanto os professores, por elas foram subjetivados.

Conclusão

No presente trabalho, argumentamos que a presença do PIBID, sub-


projeto Ciências Sociais, e os estágios de docência na mesma área discipli-
nar, têm contribuído para a imaginação sociológica nos termos de Mills. Como
exemplo, trouxemos a realização de um Trabalho de Conclusão de Curso,
em que um ex-bolsista e estagiário de Ciências Sociais elenca como seu obje-
to de estudo problemáticas que se dão em torno da implantação dos conse-
lhos de classe participativos nas escolas públicas do Estado do Rio Grande
do Sul.
No caso estudado, os principais problemas relativos ao Conselho de
Classe Participativo orbitavam em torno da dificuldade em se constituir um
outro tipo de avaliação que exigisse outras disposições por parte dos sujeitos
nela envolvidos, diferentes dos mecanismos clássicos de avaliação.
Nessa tentativa de implementar um conselho de classe participativo, exis-
tem dificuldades em perceber que se pode avaliar de outra forma o desempe-
nho dos alunos. As normas e regras institucionais, que já foram incorporadas
ao funcionamento da escola, são reconhecidas enquanto legítimas e mais ade-
quadas. Portanto, para além de uma motivação individual de mudança no
processo avaliativo, através do conselho, há um entendimento tácito anterior
sobre o que significa um bom desempenho, e sobre o tipo de avaliação que
pesa para mensurá-lo.
E o aluno, esse aprende o jogo institucional e não consegue, por exem-
plo, denunciar uma dificuldade em relação a um professor, por medo de sofrer
retaliação. Isso pode ser resultado de um aprendizado que não se faz só na
escola, mas em muitas instituições, pois alunos reconhecem que existe uma
relação de poder, alguém com mais poder do que ele. Sendo assim, de que
adiantaria se opor?

57
ARNT, G. S.; SILVA, R. A. da • Registros pibidianos sobre uma tentativa de democratização...

A vivência de um acontecimento como esse suscita, num estudante de


Ciências Sociais, a necessidade de uma maior compreensão sobre relações de
poder, funcionamento e estrutura escolar, conceito de democracia, relações
hierarquizadas, sobre sentidos diversos acerca de coletividade, participação e,
finalmente, sobre normas e regras tradicionalmente institucionalizadas.
O protagonismo e a autonomia dos alunos, os saberes dos professores e
a construção de uma gestão democrática são projetos educacionais em perma-
nente construção, desconstrução, ajustes, sujeitos a readaptação de acordo com
a realidade da escola e a motivação dos atores sociais que nela se fazem pre-
sentes. A dinamicidade e a pouca durabilidade de um projeto de governo colo-
ca em discussão conceitos fundamentais, não só para a compreensão socioló-
gica, mas para os estudos do campo educacional em geral, especialmente aque-
les voltados para a temática da autonomia e da gestão democrática na escola.

Referências
AZEVEDO, José Clovis; REIS, Jonas Tarcísio (Orgs.). Reestruturação do Ensino Médio:
pressupostos teóricos e desafios da prática. São Paulo: Fundação Santillana, 2013,
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DOS SANTOS, Almir Paulo. Aluno sujeito da avaliação: conselho de classe participa-
tivo como instância de reflexão. Roteiro, [S.l.], v. 35, n. 2, p. 299-318, ago. 2010. ISSN
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DUBET, F. A escola e a exclusão. In: Cadernos de Pesquisa, n. 119, São Paulo, julho/
2003.
FERREIRA, Vera Maria. Ensino Médio Politécnico: mudança de paradigmas. In:
MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
MOSNA, Rosa Maria Pinheiro. Avaliação: paradigmas e paradoxos no âmbito do
Ensino Médio. In: AZEVEDO, José Clovis; REIS, Jonas Tarcísio (Orgs.). Reestrutura-
ção do Ensino Médio: pressupostos teóricos e desafios da prática. São Paulo: Fundação
Santillana, 2013, p. 219-239.
PARO, Vitor Henrique. Crítica da estrutura da escola. São Paulo: Cortez, 2011.
PORCHEDDU, A. Zygmunt Bauman: Entrevista sobre a Educação. Desafios Pedagógi-
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as movediças. In: Cadernos de Pesquisa. V. 39, n. 137, p. 661-684, maio/ago. 2009.
SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional Integrada ao
Ensino Médio – 2011-2014. Out./nov. de 2011. Disponível em: <http://
www.educacao.rs.gov.br/pse/html/ens_medio.jsp?ACAO=acao1>. Acesso em: 30 nov.
2014.

58
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


Regimento Padrão do Ensino Médio Politécnico – Parecer CEED n. 310/2012
(1ª par te). Disponível em: <http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/
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TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários
Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas con-
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VEIGA-NETO, Alfredo. Crise da Modernidade e inovações curriculares: da disciplina para
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2015/10/CrisedaModernidadeAlfredo.pdf>. Acesso em: 10 maio 2017.

59
Projeto Dom Quixote no cotidiano
– uma experiência de leitura e
produção textual em língua estrangeira
no Ensino Fundamental em escola estadual
Giovana Oliveira1
Kimberling Schaun2
Monica Mariño Rodriguez3

Introdução

O projeto aqui relatado teve como propósito incentivar a leitura e a es-


crita em língua espanhola, além da apropriação da literatura para a vida dos
alunos. A leitura se deu a partir da edição de Don Quijote de La Mancha da
editorial Weeble, publicada em Madrid, Espanha, em fevereiro de 2016, publi-
cação comemorativa dos 400 anos da morte do autor espanhol Miguel de Cer-
vantes. A escrita foi o resultado do produto final do projeto, um livro de con-
tos de autoria dos alunos nos quais tiveram que trazer Dom Quixote para o
mundo contemporâneo.
O projeto foi aplicado nas duas turmas de sétimo ano do Ensino Funda-
mental da Escola Estadual de Ensino Fundamental Uruguai, na cidade de
Porto Alegre – RS, no segundo semestre de 2016, em dois períodos semanais
consecutivos de 45 minutos cada, totalizando 90 minutos de aula. As duas
turmas que trabalharam com o PIBID Espanhol têm alunos muito esforçados
e comprometidos, o que proporcionou uma experiência muito prazerosa e in-
centivadora para as pibidianas. É característica dos dois grupos a participação
ativa em sala de aula. Desta forma as discussões propostas foram riquíssimas.
Os alunos tinham entre 12 e 14 anos, e seus hábitos de leitura eram bem diver-

1
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2
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3
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60
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

sificados, desde estudantes que se declaravam leitores apaixonados até os que


não tinham nenhum contato com literatura. Isto em um primeiro momento
foi preocupante, pois não se sabia como receberiam a proposta de trabalhar
com a leitura completa de um livro, ainda que numa versão adaptada para
crianças, ainda mais escrito há tantos anos. Porém, mostraram-se abertos e
empolgados. Ambos os grupos tiveram, no ano anterior, aulas de língua espa-
nhola na escola, portanto já tinham um conhecimento prévio do idioma, o que
foi considerado para a criação do projeto e auxiliou muito no seu desenvolvi-
mento. Este fato também representou uma maior confiança vinda dos alunos, já
que não apresentavam receio em escrever e falar em língua espanhola.
As duas turmas já conheciam as bolsistas e o funcionamento do PIBID
Espanhol, de forma que não foi necessário fazer observações prévias à aplica-
ção do projeto, pois o contexto de cada turma já era conhecido.

Objetivos

Os principais objetivos do projeto foram: incentivar a leitura em língua


estrangeira (Espanhol) e o contato com os clássicos literários de uma forma
mais acessível ao público infanto-juvenil; pensar em diferentes estratégias de
leitura, como leitura em grupo, individual e debates acerca do conteúdo lido;
apresentar aos alunos o personagem Dom Quixote, uma das mais importantes
e conhecidas figuras da literatura espanhola e mundial, e trazê-lo, através dos
textos criados pelos estudantes, ao mundo contemporâneo; homenagear o ani-
versário de 400 anos da morte do autor Miguel de Cervantes, romancista, dra-
maturgo e poeta espanhol: seu livro Dom Quixote é muitas vezes considerado
o primeiro romance moderno e teve uma grande influência sobre a língua es-
panhola.
Além disso, pretendeu-se proporcionar ferramentas para a produção li-
terária e criativa dos alunos, além da possibilidade do aluno reconhecer-se
como autor, pois o produto final do projeto resulta na criação de um livro de
contos escritos pelos alunos, que, além de ser apresentado para a turma, é
compartilhado com toda a comunidade escolar através de cópias deixadas na
biblioteca da escola. Buscou-se incentivar e melhorar a pronúncia em espa-
nhol com leitura em voz alta do livro, além de leitura e apresentação do conto
escrito pelos alunos para a turma. Trabalhou-se o léxico necessário tanto para
a comunicação básica em língua estrangeira quanto para a escrita dos contos.
Visou-se fornecer maior contato das turmas com a língua espanhola, com base
em aulas ministradas completamente em espanhol e buscou-se estreitar os la-
ços entre os alunos e a leitura, procurando tornar a tarefa mais agradável e

61
OLIVEIRA, G.; SCHAUN, K.; RODRIGUEZ, M. M. • Projeto Dom Quixote no cotidiano...

prazerosa, e também os laços entre os alunos e a escrita, atividade fundamen-


tal da boa expressão linguística.

Metodologia

Baseado na pesquisa-ação, definida por David Tripp em Pesquisa-ação:


uma introdução metodológica4 como “forma de investigação-ação que utiliza téc-
nicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para
melhorar a prática”, o projeto foi continuamente debatido e avaliado, toman-
do novos rumos sempre que necessário para melhor se adaptar a cada grupo e
contexto. A pesquisa-ação se distingue tanto da prática rotineira quanto da
pesquisa acadêmica tradicional por compartilhar certos elementos com am-
bos; ela permite que se faça a prática rotineira, a ação, porém não apenas por
fazê-la, e também a pesquisa dos objetivos alcançados ou dos problemas en-
contrados, porém não se limitando a teorias de o que fazer, porque os proble-
mas e sucessos são sempre colocados na prática para ver o que de fato aconte-
ce. Dessa forma, é possível uma melhora constante da prática e a avaliação de
por que e como os problemas acontecem e de que forma e como os sucessos
são alcançados, criando ferramentas para o estudo da prática e condições para
uma prática cada vez melhor e mais consciente.
O trabalho de pesquisa-ação era realizado, então, parte em sala de aula,
parte na universidade. Todas as semanas as bolsistas se reuniam com a coorde-
nadora do subprojeto Espanhol, Monica Mariño Rodriguez e a supervisora da
escola, Maria Lúcia John, e o restante do grupo de pibidianos. Com base em
textos teóricos debatidos nas reuniões e no relato da aula da semana, o grupo,
conjuntamente, analisava a situação de cada turma atendida e pensava em
novas estratégias e soluções de problemas. Todo o material utilizado em sala
de aula era produzido nessas reuniões semanais, e nunca extraído de nenhu-
ma outra fonte. As bolsistas, com o auxílio da coordenadora e da supervisora,
pensavam em todas as atividades que deveriam ser realizadas em aula e produ-
ziam o material necessário para o bom andamento das classes.
A professora titular de espanhol da escola, Maria Lúcia John, tem uma
confiança imensa no PIBID Espanhol UFRGS e por esta razão sempre nos foi
muito receptiva e aberta às propostas apresentadas. Neste projeto não foi dife-
rente. Apoiou-o e ajudou muito na complicada tarefa de assegurar que as leitu-
ras fossem feitas pelos alunos, seja nos seus momentos de fala em sala de aula

4
Disponível em: <http://w0ww.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a09v31n3.pdf>. Acesso em: 1o maio
2017.

62
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

ou durante a semana, lembrando-os o que deveriam fazer. Todos os planeja-


mentos de aula contemplavam os conteúdos solicitados no início do semestre.
Esta parceria foi muito benéfica para ambas as partes, pois representa a união
e a troca de experiências entre gerações bastante diferentes, já que ela leciona
há mais de 30 anos, enquanto as bolsistas apenas têm suas experiências iniciais.
Quanto aos alunos, em um primeiro momento foi apresentado o proje-
to e seus objetivos, e obtida uma resposta positiva vinda deles, que apresenta-
ram uma grande empolgação com a ideia de escrever seus próprios textos fic-
tícios. Para dar início ao projeto, foi introduzido o conceito de Novela de Cava-
laria, gênero predominante e prestigiado na época de Cervantes, porém já em
declínio na época da publicação de Dom Quixote, e que o escritor satiriza em
seu livro, quebrando assim paradigmas. Foi fundamental esta contextualiza-
ção, pois perceber a crítica presente na obra norteou suas perspectivas durante
a leitura. Seguindo, houve também uma breve contextualização histórica e
literária da obra a ser lida e estudada, além da vida do autor. Neste momento
percebemos que a maioria dos alunos conhecia a figura de Dom Quixote e
alguns de seus episódios, mas não tinham muito claro que se tratava de um
livro e nenhum conhecimento sobre o autor. Muitos haviam assistido a adap-
tações televisivas da história, mas nunca lido algo escrito.
Também foram apontadas as distinções históricas da época em que o li-
vro foi publicado com os dias de hoje, o que foi importante para a concretização
do projeto, uma vez que os alunos seriam convidados a fazer uma contempori-
zação do livro. O conceito de “clássico” foi debatido com a turma para estabele-
cer, conjuntamente com o grupo, definições do que é ser universal e atemporal,
uma vez que Dom Quixote segue sendo um dos livros mais lidos do mundo,
mesmo após 400 anos de sua publicação. Os alunos foram questionados sobre
qual acreditavam ser o motivo deste fenômeno, e as hipóteses foram muito
variadas, mas ao final todos concordaram que o livro certamente deveria ter
elementos que, mesmo com a distância temporal de quando foi escrito, ainda
conversam com as pessoas dos dias de hoje. Isto, de certa forma, foi muito im-
portante no sentido de incentivar que os alunos, movidos pela curiosidade de
descobrir estas respostas, lessem o livro para tirar suas próprias conclusões.
Para finalizar esta etapa, foi apresentada aos alunos a figura do “Cava-
leiro” e proposta uma chuva de ideias sobre as características que os estudan-
tes pensavam constituir este personagem. Com o auxílio das pibidianas, os
alunos chegaram a conclusões muito acertadas e que foram fundamentais para
o desenvolvimento da construção da personalidade de Dom Quixote, como o
fato de ser corajoso, leal, leitor, apaixonado, bondoso, generoso, etc. Foi im-
portante ressaltar, nesta parte do projeto, que havia as características físicas e

63
OLIVEIRA, G.; SCHAUN, K.; RODRIGUEZ, M. M. • Projeto Dom Quixote no cotidiano...

psicológicas do cavaleiro e que, enquanto a maior parte dos cavaleiros tinha


características de herói, como força e altura, o cavaleiro da história trabalha-
da, magro e moribundo, ainda assim poderia ser corajoso, sábio e respeitoso
como os cavaleiros-heróis.
Um dos pilares principais deste projeto é o incentivo à leitura, e, por
esta razão, o objetivo era que os estudantes efetivamente lessem o texto literá-
rio. Assim, foi distribuída em aula para cada aluno uma versão comemorativa
adaptada para crianças do livro Don Quijote de la Mancha.
A leitura foi realizada em aula e em casa, e os alunos eram questiona-
dos sobre seu entendimento da história para que todos estivessem no mesmo
nível de leitura e avançando conjuntamente na narrativa. Como ferramentas
para assinalar os avanços na leitura e na compreensão do protagonista da his-
tória, dois painéis foram feitos e fixados na sala de aula: um chamado “O
Caminho do Herói” e um de característica de Dom Quixote. No primeiro ha-
via os lugares por onde Dom Quixote passa conforme a obra avança e também
dois bonecos, um de Sancho Pança e um de Dom Quixote, que eram movidos
pelo painel para acompanhar esses movimentos, ajudando os alunos a não es-
quecer por onde já tinham passado e também na localização de onde estavam.
No segundo foi feita uma lista, construída pelos alunos a cada aula, de caracte-
rísticas psicológicas do herói que puderam identificar de acordo com os capítu-
los lidos. Toda vez que um capítulo era lido, os alunos falavam diversas caracte-
rísticas que tinham percebido sobre Dom Quixote, e todas eram anotadas, de-
pois de chegarem a um consenso, no quadro; ao final, era feita uma votação em
que escolhiam as três que se destacavam mais, que eram anotadas no painel.
Junto com a leitura, foram realizadas atividades lúdicas e estruturais/
gramaticais para auxiliar na compreensão linguística e literária do livro. Fo-
ram estudadas partes do corpo, características físicas e características psicoló-
gicas a partir dos personagens, para a futura construção de seus próprios per-
sonagens adaptados; léxico de cidades e estabelecimentos comerciais segundo
o trajeto feito pelos protagonistas. Todos estes conteúdos estavam programa-
dos no cronograma do sétimo ano da escola. Sobre questões de interpretação
textual, foram debatidos muitos temas, como o questionamento, presente no
livro, sobre Dom Quixote ser louco ou não e seus motivos. Os alunos foram
convidados a uma atividade que envolvia pensar no sentido dos dois pontos
de vista opostos sobre o personagem e imaginar como um personagem louco e
um são encarariam a mesma situação. A turma também foi convidada a ler
trechos do livro em voz alta durante as aulas para exercitar sua oralidade, pro-
núncia e leitura coletiva. Alguns capítulos foram destinados a leitura indivi-
dual em casa, e na aula seguinte perguntas condutoras de discussão eram pro-

64
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

postas pelas bolsistas, permitindo que o conteúdo das leituras individuais fos-
se discutido em aula pelo grande grupo.
Terminado o livro, foi apresentada aos alunos a proposta de produção
final: a escrita de um conto retratando Dom Quixote, com todas as caracterís-
ticas assinaladas durante o semestre, nos dias atuais, em situações contempo-
râneas. Para que isso pudesse ser realizado, como foi mencionado antes, du-
rante a aplicação do projeto foram trabalhados os verbos no presente do indi-
cativo e nos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo, características físi-
cas e psicológicas, estabelecimentos comerciais, cidades e meios de transporte,
todos esses temas contextualizados na narrativa da obra literária.
Para que se familiarizassem com o gênero literário conto, uma aula foi
dedicada especialmente a observar a estudar as características estruturais e
literárias do conto. Foi mostrado que seu tamanho era menor que o de um
romance, e até mesmo do livro adaptado que estavam lendo; que era uma
história completa por si só, ainda que pequena, que costuma envolver um con-
flito principal, que pode ser resolvido ou não. Para ilustrar tudo isso, foi leva-
do um conto para sala de aula, distribuído para todos os alunos. Seguindo a
prática de leitura, eles foram convidados a ler em voz alta para seus colegas.
Além do conhecimento linguístico, foi de extrema importância realizar ativi-
dades de interpretação de texto, mostrando que, por se tratar de literatura, o
autor do conto tinha mais liberdade para “jogar” com a linguagem. O conto
foi muito bem recebido pelas turmas, que entenderam como o gênero funcio-
na e já puderam ir pensando em como elaborar a história em que estavam
pensando para este formato.
Uma vez que os alunos tinham as ferramentas necessárias para a cons-
trução de sua própria história, as turmas foram divididas em duplas e cada
uma delas criou o primeiro rascunho, que foi lido e devolvido com correções
gramaticais e sugestões. As duplas trabalharam sem maiores problemas; cada
uma possuía um dicionário, oferecido pela escola, onde podiam consultar pa-
lavras das quais não soubessem o significado ou a ortografia. As histórias fo-
ram criadas em conversas pelos próprios alunos, e muitas duplas auxiliaram
umas às outras na hora da escrita. Houve uma aula dedicada exclusivamente
para a reescrita dos contos, quando os alunos puderam ler as sugestões feitas
pelas bolsistas, debatê-las entre si e novamente com as bolsistas. Ao final, to-
das as duplas conseguiram fazer tanto o rascunho quanto a reescrita de seus
contos, com todas as dúvidas eliminadas, sentindo-se bastante seguras com o
seu trabalho. Nos quesitos gramatical e linguístico, a escrita do rascunho e de
uma versão final também possibilitou, tanto aos alunos quanto às bolsistas,
perceber quais eram as maiores dificuldades de escrita da turma, informação

65
OLIVEIRA, G.; SCHAUN, K.; RODRIGUEZ, M. M. • Projeto Dom Quixote no cotidiano...

importante para a professora da escola, que poderia dar continuidade ao tra-


balho sabendo em que áreas focar para melhor atender aos seus grupos.
Por fim, no último dia do projeto, os contos produzidos pelos alunos
foram devolvidos e distribuídos na forma de livro. Cada dupla pôde ler e inter-
pretar, segundo a sua escolha, o seu conto para a turma e explicar como foi seu
processo criativo, além de responder a curiosidades dos colegas sobre sua his-
tória. Houve momento final de confraternização, simbolizando a publicação
dos livros de contos da turma, que a partir daquele momento tinham materia-
lizado seu reconhecimento como autores e produtores de conteúdos literários
em língua estrangeira, neste caso, em língua espanhola.

Conclusão do projeto

Os alunos foram desafiados a superar suas expectativas e receios. Ao se


depararem com um livro clássico, ainda que adaptado para o público infantil,
e considerando que práticas de leitura em língua estrangeira não são muito
comuns no ensino escolar, muitos deles duvidaram de sua capacidade ou se
sentiram inseguros com o projeto proposto. Porém, conforme as aulas avança-
ram, sobretudo graças ao fato de todas as aulas, explicações e atividades serem
ministradas em língua espanhola e à percepção de que efetivamente podiam
entender e interagir em aula, perceberam que sua compreensão linguística era
suficiente para compreender e desfrutar da narrativa.
No decorrer do projeto, foi possível constatar que os alunos estavam
realmente se apropriando do texto lido, podendo estabelecer comparações e
tecer críticas aos personagens, demonstrando assim sua habilidade leitora e de
interpretação textual. Com a produção final, foi possível comprovar que a ideia
do projeto foi compreendida por todos os alunos, e o nível linguístico espera-
do das produções foi alcançado.
Os temas escolhidos para as narrativas foram diversos e muito criativos,
reflexo da total liberdade criativa de que dispunham e de sua real vontade de
produzir um material de qualidade. O fato de trabalharem em duplas foi pro-
veitoso para que eventuais dúvidas pudessem ser solucionadas com ajuda do
parceiro, além de diminuir qualquer insegurança que pudessem ter. Ao terem
seus contos devolvidos no formato de livro, os alunos demonstraram orgulho
de seu trabalho e vontade de disseminá-lo. As tarefas de ler e escrever foram
trabalhadas de forma que não foram vistas como maçantes e cansativas, mas
como uma possibilidade de atividade prazerosa e cotidiana. Por fim, puderam
reconhecer-se como seres criadores e produtores de literatura, orgulhosos do
material que produziram.

66
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Considerações finais

O projeto Dom Quixote pode ser aplicado em qualquer turma de Ensi-


no Fundamental com compreensão básica do idioma espanhol, sempre quan-
do o professor fornecer o suporte básico dos mecanismos gramaticais necessá-
rios, observando e adaptando-se às características e necessidades de cada gru-
po. Com sua realização, mostra-se que os alunos não devem ser subestimados;
que não apenas podem e conseguem ler uma obra inteira, escrever em língua
estrangeira com autonomia e criatividade, como também essas atividades de-
vem ser estimuladas em sala de aula. Isto trabalha positivamente sua autoesti-
ma e lhes mostra que são capazes de algo que num primeiro momento pode
parecer distante ou muito difícil. Projetos que permitem a atividade criativa
dos alunos, além de desafiá-los constantemente, estimulam o aprendizado
autônomo e libertador.
Com as bases da pesquisa-ação, o projeto, ao final, coincidiu com as
necessidades e dificuldades dos grupos, permitindo às bolsistas que todas as
atividades fossem adaptadas de forma a haver maior envolvimento e vontade
de participação por parte dos estudantes. Também se mostra importante res-
saltar que o projeto em nada atrapalhou a continuação do ensino da matéria
prevista nas turmas, apenas o contextualizou. Os grupos, enquanto o projeto
estava em andamento, realizaram provas trimestrais sobre os conteúdos gra-
maticais e linguísticos propostos, e obtiveram resultados satisfatórios. O traba-
lho por projetos tem muito a acrescentar ao cotidiano escolar dos alunos, uma
vez que proporciona atividades diferentes do que estão acostumados e os esti-
mula a trabalhar criativamente e a procurar novas soluções para os problemas
que venham a surgir, não permitindo que fixem um mesmo jeito padrão de
solução de problemas. Programas como o PIBID são uma das raras oportuni-
dades que os futuros professores têm de aplicar a teoria estudada na universi-
dade, pensar em projetos pedagógicos e aplicá-los. O aprendizado que este
programa proporciona aos alunos da graduação não pode ser mensurado, e o
sucesso de projetos como o Dom Quixote no contemporâneo só demonstra a
importância da sua existência.

Referências
SANCHEZ, T. Quijote de la Mancha (versão adaptada). Editorial Weeble, 2016. Dispo-
nível em: <http://www.weeblebooks.com/es/don-quijote-de-la-mancha/>. Acesso em:
1o maio 2017.
TIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. 2005. Disponível em: <http://
w0ww.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a09v31n3.pdf>. Acesso em: 1o maio 2017.

67
Do Haiti ao Brasil e vice-versa:
a prática da pedagogia de projeto
no PIBID/Francês
Sandra Dias Loguercio1
Daniela Paulina Führ2
Jéssica Pozzi3
Júlia Hartmann das Chagas4

Introdução

O trabalho desenvolvido pelo subprojeto PIBID-Francês da Universida-


de Federal do Rio Grande do Sul em parceria com o Colégio Estadual de
Ensino Médio Júlio de Castilhos (Porto Alegre, RS) busca, de maneira geral,
alimentar o interesse pela diversidade linguística dentro da escola.5 Carente de
políticas públicas, desde o final dos anos de 1980, que promovessem o ensino
diversificado de línguas estrangeiras/adicionais na Educação Básica, a oferta
escolar ficou restringida ao ensino do inglês e, mais recentemente, com a Lei
n. 16.161 (promulgada em 2005), do espanhol.6 Esta situação, por um lado, foi
na contramão do incentivo ao plurilinguismo, como vemos na comunidade
europeia (conforme Quadro Comum Europeu de Referência para o Ensino de
Línguas, 2001), e que, por outro, gerou a escassez de recursos materiais e huma-

1
PIBID/Francês, Departamento de Línguas Modernas. E-mail: sandra.loguercio@hotmail.com.
2
Ex-bolsista PIBID/Francês, licencianda em Letras – Português e Francês. E-mail:
dani_fuhr@yahoo.com.br.
3
Ex-bolsista PIBID/Francês, licencianda em Letras – Português e Francês. E-mail:
jessica.pozzi@hotmail.com.
4
Ex-bolsista PIBID/Francês, licencianda em Letras – Português e Francês. E-mail:
juliahchagas@gmail.com.
5
Os objetivos gerais de nosso subprojeto são a iniciação à docência de licenciandos em Letras
(com ênfase em Francês ou em Francês/Português) e a formação continuada de professores de
Francês (coordenador e supervisor), o que se dá pela aproximação entre escola e universidade,
pela troca de experiências entre os diversos atores e pela valorização de diferentes competênci-
as no trabalho em equipe.
6
Com a Lei n.13.415, de fevereiro de 2017, a oferta do ensino de Espanhol se torna facultativa
no Ensino Médio, retrocedendo à situação anterior.

68
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

nos para o ensino de outras línguas (ver Parâmetros Curriculares Nacionais,


Códigos e suas tecnologias. Língua estrangeira moderna, MEC, p. 25, 2000),
além de elitizar sua aprendizagem, uma vez que essa passa a ser feita, priorita-
riamente, por cursos livres da iniciativa privada (escolas de idiomas). É nesse
sentido que, junto ao colégio que nos acolhe e garante ainda nos dias de hoje
professores de Língua Francesa em seu quadro docente, acreditamos poder res-
guardar minimamente a diversidade linguística e o direito dos discentes de am-
pliar seu repertório linguístico e cultural e, dessa forma, seus meios de pensa-
mento, ação e interação na sociedade contemporânea.
Nesse contexto, um dos eixos de nosso trabalho tem sido o estudo do
Francês a partir da noção de francofonia ou, em outras palavras, da diversidade
linguística e cultural que configura o falante de Francês. Essa porta de entrada
leva o educando não apenas a ter contato com a realidade linguística tal como
ela se apresenta em suas variedades (contextuais, geográficas, sociais e históri-
cas), mas cria novas referências da língua e das culturas – associadas normal-
mente à França ou ainda à Paris –, permitindo com que se enriqueça o imaginá-
rio linguístico-cultural e, assim, que se construa uma gama de possibilidades de
aproximação com outros povos, sejam francófonos ou não. De apelo bem me-
nos evidente atualmente do que o Inglês ou o Espanhol em nossa sociedade, a
língua francesa aparece, de modo geral, em meio escolar mais como estrangeira
do que adicional7, uma vez que não é a língua exigida em nosso mercado de
trabalho e tampouco para a interação com nossos vizinhos latino-americanos. É
fundamental, dessa forma, que se conheça quem fala, onde e por que se fala Fran-
cês a fim de construir, antes de tudo, o interesse por sua aprendizagem.
Além disso, essa abordagem parece contribuir para a elaboração de con-
ceitos importantes quando tratamos de ensino de língua, tais como: variedade
linguística (a “língua” é feita por seus falantes), situação de comunicação (o
uso da língua ocorre em situações precisas de comunicação), texto (nos comu-
nicamos por meio de textos orais e escritos), discurso (todo texto é marcado
por uma posição do sujeito social, histórica e ideológica) e cidadania (poder
usufruir plenamente de seus direitos e desempenhar seus deveres para com a
sociedade supõe a leitura crítica e autônoma de nossa própria realidade e do
mundo que nos cerca, feito de diversidade linguística e cultural).

7
Segundo Schlatter e Garcez (2009), o termo língua adicional enfatiza o caráter de acréscimo a
outras línguas que já fazem parte do repertório linguístico dos sujeitos, além de sugerir que, em
comunicações transnacionais, a distinção entre nativo/estrangeiro deixa de ser relevante ou
mesmo não se verifica, uma vez que uma determinada língua (o Inglês ou o Espanhol, por
exemplo) pode servir como meio de comunicação entre indivíduos de formações socioculturais
e nacionalidades distintas.

69
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

Para a realização desse trabalho, apoiamo-nos prioritariamente em prin-


cípios defendidos pelo Referencial Curricular, Lições do Rio Grande do Sul
(2001, doravante RC) e pelo Quadro Comum Europeu de Referência para as
Línguas (2000, doravante QCER). O primeiro, em sintonia com a área de Lin-
guagens e Códigos, prioriza as competências de leitura de textos orais e escri-
tos, a produção de textos e a resolução de problemas relacionada ao próprio
letramento e também a atividades pessoais e coletivas que façam sentido na
vida dos educandos dentro e fora do ambiente escolar. Como podemos ler no
documento:
espera-se que os alunos tenham uma nova oportunidade de contato significativo
com a língua a cada unidade, para usá-la de maneira segura, autoral e profici-
ente para desempenhar ações concretas, situadas em suas vidas na escola e na comu-
nidade (SCHLATTER, M.; GARCEZ, P., 2009, p. 135, grifo nosso).

Essa concepção do ensino de línguas estrangeiras/adicionais está em


consonância com o segundo texto, produzido em âmbito europeu, mas de
relevância internacional para a educação linguística. Ao promover a aborda-
gem orientada para a ação, o QCER compreende que todas as atividades
linguísticas, sejam elas realizadas em sala de aula ou não, “inscrevem-se no
interior de acções em contexto social, as quais lhe atribuem uma significa-
ção plena” (QCER, edição portuguesa, 2001, p. 29). É a partir, pois, da rea-
lização de tarefas situadas, definidas conforme o interesse e/ou as necessi-
dades do grupo escolar, que se utilizam de textos, suscitando a criação de
estratégias de comunicação por parte do educando, que se aprendem lín-
guas. Vale ressaltar ainda a importância que esse documento atribui à valori-
zação do componente intercultural, como a tomada de consciência da diver-
sidade sociocultural e o respeito pelas diferenças que entram em contato nesse
ensino-aprendizagem.
Para nós, ambas as propostas se traduzem, na prática, por uma pedago-
gia de projeto, uma, entre outras, das orientações que temos adotado no âmbi-
to do PIBID/Francês da UFRGS. Em voga há algumas décadas entre pedago-
gos e na escola, o termo projeto, na educação,
designa uma ação dirigida a um objetivo futuro e que se organiza de manei-
ra adequada para alcançar tal objetivo. [...] De qualquer forma, um projeto
é pensado, calculado, progressivo e avaliado: isso implica que ele seja cons-
truído de início e ajustado no decorrer de seu andamento (qualquer que seja
o tempo total de execução)8 (CUQ, 2003, p. 205).

8
Todas as citações escritas originalmente em francês são de responsabilidade das autoras.

70
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Esse “objetivo futuro” é compreendido, mais comumente, como uma


produção concreta, que pode ser, por exemplo, a produção de um texto, de um
jornal, de uma exposição, a realização de uma enquete ou experimento cientí-
fico, uma criação artística ou artesanal, entre outras, desde que siga alguns
princípios. De acordo com Puren (2011), estes residem em quatro etapas:
• na concepção do projeto (o que vai ser produzido, para quem e por quê?),
que é fruto de uma construção coletiva dos educandos, no mínimo negociada
com o professor,
• no planejamento (o que é necessário realizar, por quem e como realizar
as tarefas?), considerando que um projeto é constituído por etapas e procedi-
mentos precisos para sua execução com os quais todo educando pode envol-
ver-se em níveis variados, em função de suas capacidades e interesses,
• na realização (reflexão, análise e ajustes do processo),
• e na avaliação da produção final (o objetivo almejado foi atingido? Foi
satisfatório para o grupo?).
Se bem conduzido e adequado ao grupo, além de motivação para parti-
cipar das atividades, que visam, antes de tudo, a criar situações de aprendiza-
gem – ou, mais precisamente, “obstáculos a serem superados para que novas
aprendizagens aconteçam” (PERRENOUD, 1999) –, diversos aspectos relati-
vos ao amadurecimento do educando são favorecidos. Enquanto indivíduo e
sujeito que age e interage dentro de uma comunidade, ele tende a reforçar,
durante o percurso realizado, sua autoestima, confiança, autonomia, capaci-
dade de argumentar e negociar, de tomar decisões, de cooperar com o colega e
com o grupo, entre outros.
É à ilustração da aplicação desses princípios pedagógicos que dedica-
mos este artigo por meio do relato de uma experiência realizada no contexto
de nosso subprojeto. Com a descrição das etapas de elaboração do projeto, do
percurso de atividades e da produção final, refletimos sobre saberes e compe-
tências próprios ao ensino-aprendizagem linguístico, mais especificamente pro-
piciados pela experiência em língua francesa e culturas francófonas.

1 Por que falar do Haiti: elaborando o projeto

Desde o ano de 2010, data do terremoto que arrasou o país, muitos


haitianos acabaram partindo em busca de melhores condições de vida. Para o
Brasil, a imigração foi sentida principalmente entre 2014 e 2015, em virtude
das centenas de imigrantes haitianos que chegavam e se instalavam em muitos
estados, entre eles o Rio Grande do Sul. Como a grande maioria dos que aqui
chegaram e fixaram residência, sua presença se tornou constante em vários lo-

71
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

cais da cidade: ruas, mercados, postos de gasolina, entre outros tantos. A par-
tir dessa mudança na cidade, que se fez sentir não somente por sua presença,
mas também pela discussão nos jornais, noticiários, entre outros meios, e pas-
sou a ser reconhecida pelos cidadãos de maneira geral, percebemos que havia
um campo importante a ser explorado por nós em sala de aula: quem são os
haitianos? Qual sua história? Que língua(s) eles falam? Como podemos inte-
grá-los socialmente? Enfim, de que modo podemos intervir em uma realidade
que passa a ser nossa também?
Por outro lado, nosso público secundarista9 já estava atento, de alguma
forma, à presença cada vez mais visível e constante dos haitianos na cidade e
às informações dos noticiários, o que facilitou a abordagem do tema. Antes de
sua chegada ao nosso país e, mais especificamente, à nossa cidade, a referên-
cia que os alunos tinham de falantes francófonos limitava-se quase exclusiva-
mente aos franceses. A presença de imigrantes na cidade colaborou para que o
horizonte dos alunos começasse se alargar. Significou, de fato, um convite
para o novo: a descoberta de horizontes que ultrapassavam os limites dos ter-
ritórios europeus.
Já em nossa primeira intervenção, que tinha como objetivo discutir a
origem da língua francesa, quem são seus falantes, onde estão, entre outros
aspectos, o Haiti surgiu na fala dos alunos que, segundo eles, era conhecido,
“também falavam francês”. Nesse espaço de discussão que propusemos na
primeira aula, o Haiti e os haitianos passaram a ser o centro do interesse dos
alunos. Curiosos e instigados por aprenderem uma língua que era falada por
pessoas que viviam no continente americano, a apenas alguns quilômetros de
distância (e não a centenas de quilômetros, como é o caso daqueles que habi-
tam o território francês, por exemplo), o desejo de conhecer um pouco mais
sobre esse país surgiu de forma natural.
Trabalhar essa temática pareceu-nos, dessa forma, especialmente opor-
tuno por duas razões principais: por um lado, seria uma forma de fornecer
subsídios para que os alunos pudessem fazer uso da língua francesa de forma
concreta para intervir socialmente, buscando conhecer e aproximar-se desses
indivíduos recém-chegados; por outro, poderíamos sensibilizar a sala de aula
e, através de nossos alunos, a escola para a situação dessas pessoas, que se
encontram, na maioria das vezes, além de fragilizadas pela imigração imposta
pelas circunstâncias de seu país de origem, distantes muitas vezes de seus fami-
liares, em situação de desamparo e de exclusão no país que as recebe. Gostaría-

9
Alunos do turno da tarde, do 3° ano do Ensino Médio, na faixa etária dos 17 aos 20 anos de idade.

72
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

mos de problematizar a questão da imigração, promover esse olhar para o outro.


Nesse sentido, nosso papel social e humano também seria problematizado em
sala de aula. No entanto, como colocar isso em prática? As dificuldades eram
várias: além do obstáculo linguístico, havia dificuldades de ordem estrutural e
prática, como a conciliação de horário e o deslocamento das partes.
A ideia de colocar imigrantes haitianos e secundaristas em contato foi
se desenhando aos poucos e naturalmente, a cada novo encontro com a turma.
O interesse dos alunos pelos haitianos residentes em Porto Alegre era latente,
tomando forma através de perguntas simples e curiosas que revelavam o que
deveria ser trabalhado: “o que buscam no Brasil/ em Porto Alegre?”; “o que
acham dos brasileiros/ dos gaúchos?”; “estão gostando de morar aqui?”; “pen-
sam em voltar para seu país?”, entre tantas outras indagações.
Diante de tamanha curiosidade, decidimos que, em vez de tentarmos
responder a essas perguntas, poderíamos criar um elo de interlocução real en-
tre os próprios alunos e os haitianos presentes em Porto Alegre. A partir disso,
propusemos atividades que permitissem com que os participantes elaboras-
sem suas perguntas em francês para que pudessem ser respondidas por um ou
mais haitianos10, ou seja, que produzissem uma espécie de entrevista. Em ra-
zão das dificuldades apontadas anteriormente, tanto dos secundaristas quanto
dos imigrantes, a solução encontrada foi produzir uma vídeo-entrevista, em que
os participantes pudessem ser filmados de forma alternada e ter acesso ao mate-
rial uma vez concluído. Tal recurso possibilitaria igualmente um registro da in-
terlocução, que poderia servir de suporte para outros projetos pedagógicos.

2 Como conversar com um haitiano em francês:


realizando o projeto

Tendo em vista a filosofia do projeto PIBID/Francês, o planejamento


das aulas deu-se de maneira a buscar o interesse dos alunos pela língua através
de uma relação mais direta com quem fala – nesse caso, o contato com o imi-
grante haitiano – e tornar mais clara a compreensão de onde se fala, além do
seu porquê. Para isso, seria necessário demonstrar um recorte do percurso da
língua francesa no mundo: primeiramente com a colonização, da França para
o Haiti; atualmente com a imigração, do Haiti para o Brasil.

10
Gostaríamos de registrar nosso mais sincero agradecimento a Júlia de Campos Lucena, gra-
duanda em Licenciatura em Letras, ex-bolsista do PIBID/Francês, que, atuante como volun-
tária junto a um projeto de atendimento a imigrantes refugiados em Porto Alegre, possibilitou
nosso contato com a comunidade haitiana, e a Joseph Presnor, que gentilmente aceitou o
convite para colaborar com o projeto, sendo o nosso entrevistado.

73
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

2.1 On parle français en Amérique?


A nossa primeira atividade – Falamos francês na América? – com o grupo
de alunos do colégio foi planejada como o primeiro momento de um grande
encontro de culturas, em que teríamos o reconhecimento entre a turma e as
bolsistas, assim como com um mundo ainda pouco conhecido pelos alunos.
Após uma breve atividade de apresentação pessoal, em que introduzimos pela
primeira vez as estruturas necessárias para dizer o seu nome (Je m’appelle...) e
perguntar (Et toi ?), além de um jogo para conhecermos melhor os gostos e
preferências dos participantes, as bolsistas ministrantes começaram as ativida-
des de introdução mais diretas ao Francês. Primeiramente, através de um ví-
deo com compreensão guiada que explica como a língua francesa nasceu (com-
ment est née la langue française ?). Assim, antes de passarmos o vídeo, pergunta-
mos aos alunos se eles tinham algum conhecimento sobre em quais continen-
tes do mundo havia pessoas que falavam a língua francesa. Já, nesse momen-
to, além de mencionarem a Europa e a França, alguns alunos levantaram o
nome do Haiti, o que demonstra o quanto a presença desses imigrantes haitia-
nos já se fazia bastante perceptível entre eles, como comentado anteriormente.
Essa pergunta serviu como principal orientação para o entendimento do ví-
deo, que é uma animação daquilo que se narra, assim como de palavras-chave
que auxiliavam na compreensão do áudio.
Após um primeiro contato com o vídeo, e da resposta à primeira per-
gunta que dizia respeito a seu conhecimento prévio, as bolsistas ministrantes
auxiliaram os alunos a buscar os elementos necessários para responder à ques-
tão principal, guiando-os pelas imagens e por palavras-chave de diferentes
momentos do vídeo. A partir daí, sugeriu-se uma nova reflexão: a língua fran-
cesa sempre foi como ela é? Ou seja, sempre foi “Francês”? Aos poucos, os
participantes foram se habituando a filtrar as informações necessárias, o texto
(multimodal), ao qual estavam sendo expostos pela primeira vez, tornando-se
cada vez mais legível, e a reflexão proposta sendo desenvolvida.
Em seguida, a narrativa do vídeo foi retomada em português. Nesse
momento, os participantes puderam refletir, mais especificamente, sobre o que
seria uma “língua viva”: apoiando-se na origem das palavras pays, prudence,
magasin e internet, os alunos ressaltaram que uma língua viva é feita de pala-
vras novas, que podem vir de outras línguas; que as línguas se misturam e
atravessam fronteiras geopolíticas, assim como os povos.
Em um último momento desse encontro, foi proposta uma atividade
em que os alunos deviam descobrir o mapa da francofonia, colorindo os paí-
ses que supunham a presença, oficial ou representativa, da língua francesa.
Ao compartilhar seu mapa com os colegas, iam enriquecendo seu material e

74
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

deixando-o mais completo. Por meio da discussão entre os participantes, final-


mente refletiram sobre os motivos pelos quais países tão afastados tinham uma
mesma língua em comum ou, em outras palavras, por que existem tantos países
distintos que falam Francês? Sem muita dificuldade, com base em seus conheci-
mentos prévios, muitos souberam justificar pelo processo de colonização.

2.2 Qui suis-je?


Na atividade a seguir – Quem eu sou? –, trabalhamos com os alunos as
maneiras de fazer uma apresentação pessoal e de falar sobre coisas de que
gostamos. Nosso ponto de partida foi um outro vídeo, dessa vez em que um
jovem estudante haitiano faz uma breve apresentação sua. Assim, ao mostrar-
mos o vídeo para os alunos, procuramos incentivar mais a compreensão do
francês através de questões como: comment il s’appelle? Il a quel âge? Quelle est sa
nationalité? Quelle est sa profession? (Como ele se chama? Qual a idade dele?
Qual é a sua nacionalidade? Qual é a sua profissão?). Tais perguntas, além de
auxiliarem no processo de compreensão do vídeo, serviriam, mais tarde, como
base para a apresentação pessoal dos alunos. Assim, utilizando-se da mesma
estratégia de compreensão guiada da atividade anterior, as bolsistas ministrantes
pausavam o vídeo conforme os alunos reconheciam as estruturas de resposta
às questões feitas inicialmente, atividade que contribuiu para a internalização
das estruturas de pergunta e, também, de resposta.
A segunda parte da aula foi dedicada para colocar em prática, oralmen-
te, essas estruturas que haviam sido reconhecidas no vídeo de apresentação.
Dessa forma, as bolsistas ministrantes propuseram uma roda de apresenta-
ções: a apresentação pessoal partiu do grupo das bolsistas, de modo que elas
pudessem exemplificar, utilizando construções linguísticas usuais nesse con-
texto de interação: je m’appelle... (para dizer o nome), j’ai...ans (para dizer a
idade), je suis étudiant(e) (para dizer a sua profissão) e, para concluir, et toi?
(lançando a pergunta ao colega).
A terceira e última etapa da aula consistiu em explorar as maneiras de
falar sobre coisas de que gostamos, assim como faz o estudante haitiano no
vídeo que haviam assistido. Desse modo, após o reconhecimento da estrutura
j’aime (eu gosto de) em conjunto com os alunos, foi adicionada a estrutura ao
texto de apresentação pessoal. Cada participante formulou sua resposta e, com
a ajuda das bolsistas, que escreveram no quadro alguns exemplos de ativida-
des com palavras morfossemanticamente transparentes, ou seja, parecidas com
o português [étudier (estudar), danser (dançar), entre outras], descobriu como
expressar sua preferência em francês. Repetiu-se então a rodada de apresenta-
ções, acrescentando-se essa informação ao texto inicial.

75
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

Ao final desse segundo encontro, as bolsistas explicaram aos alunos que


estavam estudando tais estruturas e conhecendo um pouco mais sobre a lín-
gua francesa para que conseguissem elaborar uma entrevista com um haitiano
que se mudou para Porto Alegre, em que eles deveriam se apresentar e fazer
perguntas para conhecê-lo melhor. Ainda que tímidos, foi com grande empol-
gação que os alunos receberam a proposta, provavelmente pelo fato de ser essa
a primeira vez que estariam fazendo algo concreto com a língua estrangeira
estudada na escola.

2.3 Qui suis-je? Je me présente


Com a terceira atividade – Quem eu sou? Me apresento! –, buscamos dar
continuidade ao andamento das apresentações e reforçar a apropriação do texto
por parte dos alunos, já formulado anteriormente. Para isso, após uma breve
recapitulação do que havia sido estudado na aula anterior, propusemos um maior
aprofundamento na parte em que os alunos falam sobre aquilo de que gostam
de fazer. Com base no que pôde ser coletado no primeiro encontro sobre suas
preferências, foram apresentadas, por escrito e oralmente, diversas possibilida-
des de formulação, como, por exemplo, j’aime étudier, dormir, manger du chocolat
ou j’aime le chocolat, aller au cinéma ou j’aime le cinéma, jouer au foot ou j’aime le foot,
le chocolate, le cinéma, etc. (eu gosto de estudar, dormir, comer chocolate, ir ao
cinema, jogar futebol ou gosto de futebol, de chocolate, de cinema, etc.). Esse
momento foi bastante oportuno para demonstrarmos relações entre a escrita e a
fonética das palavras, que foi apreendida sem muitas dificuldades, já que, nesse
momento, os alunos já estavam familiarizados com os enunciados que haviam
aprendido com a prática da expressão oral quando das apresentações pessoais.
Para concluir e exercitar a expressão oral, retomamos a rodada de apre-
sentações, dessa vez contanto com todas as bases de enunciados utilizadas até
então. Essa apresentação pessoal serviu de ensaio para a etapa seguinte, em
que os alunos seriam filmados, a fim de construir uma vídeo-entrevista a ser
levada a Joseph Presnor, nosso colaborador haitiano.

2.4 On pose des questions!


Já no quarto encontro – Fazemos perguntas! –, foi realizada uma recapitu-
lação do texto pessoal e do tipo de enunciado que o compunha para se traba-
lhar especialmente pronúncia e entonação.
Em seguida, inversamente ao que havia sido feito anteriormente, as bol-
sistas ministrantes elaboraram perguntas em francês, utilizando um vocabulá-
rio conhecido pelo grupo de alunos, a fim de verificar sua compreensão e in-

76
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

troduzir maneiras de formular perguntas em francês. Por exemplo: est-ce que


vous aimez aller au cinéma / manger des frites / dormir pendant le week-end? (você
gosta de ir ao cinema...) etc.; Qu’est-ce que vous préférez écouter: du rock ou du rap?
(o que você prefere:...) Qu’est-ce que vous faites pendant la semaine? (o que você
faz no fim de semana) etc.; Quelles sont vos séries préférées? Quels sont les meilleurs
films de l’actualité? Quels sont vos jeux-vidéos préférés? (quais são suas séries prefe-
ridas, os melhores filmes, quais são seus jogos de vídeogame preferidos, etc.).
Com base nesse exercício de interação oral, foram então sistematizadas
no quadro três maneiras simples de formular questões em francês: com o uso
de est-ce que, qu’est-ce que equel(le)s est/sont. Assim, os alunos já tinham os ele-
mentos de léxico e gramática básicos para elaborar suas próprias perguntas.
Com um primeiro exercício de elaboração individual de perguntas que gosta-
riam de fazer ao entrevistado e as correções necessárias, os participantes fo-
ram se apropriando aos poucos de seu “dizer” e adquirindo segurança para se
expressarem em francês.
O encontro seguinte serviu para que os alunos pudessem firmar e exer-
citar novamente as maneiras de perguntar, assim como para expandir o voca-
bulário e treinar a pronúncia.

2.5 On pose des questions! Parte final


No sexto e último encontro – Fazemos perguntas! Parte final –, foi feita a
gravação do vídeo, atividade que passou por uma preparação dos participantes.
Em um primeiro momento, foram retomados no quadro exemplos de questões
que já haviam sido formuladas e que poderiam ser utilizadas como modelo. Em
seguida, dividiu-se a turma em grupos de 3 integrantes, e foi distribuído a cada
grupo um conjunto lexical aleatório – tais como, musique, sport, lieu, alimentation;
loisir, Brésil/Brésiliens, Gaúchos, Porto Alegre; la langue française, les Français, le
créole, etc. – que pudesse servir de inspiração para as perguntas e, ao mesmo
tempo, delimitar os temas que comporiam a entrevista. Cada grupo deveria for-
mular três perguntas sobre os assuntos selecionados, uma para cada estrutura
interrogativa trabalhada previamente. Para isso, além do auxílio das bolsistas
ministrantes, podiam fazer consultas a dicionários.
Após a elaboração das perguntas, cada grupo apresentou à classe suas
questões para que, ao final dessa etapa, cada aluno pudesse escolher qual das
perguntas gostaria de fazer ao haitiano. Selecionadas as questões, cada aluno
escreveu a sua pergunta em uma folha de ofício A4, de modo que esta pudesse
ser usada de suporte no momento da gravação (um momento que é vivido,
pela maioria, com certa tensão, provocando bloqueios de expressão e esqueci-
mentos).

77
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

As perguntas selecionadas foram, entre outras: Qu’est-ce qui vous manque


de votre pays ? (do que você sente saudade?) Quels sont vos rêves au Brésil? (quais
são seus sonhos no Brasil?) Est-ce que vous aimez le churrasco? (você gosta de
churrasco?) Qu’est-ce que vous aimez faire à Porto Alegre? (o que você gosta de
fazer em Porto Alegre?). A gravação foi feita com cada um dos participantes
que intervinham, primeiro, apresentando-se e, segundo, lançando a pergunta
para a entrevista.

3 Da escola à comunidade de haitianos e


de volta à escola: concluindo o projeto

Tais atividades citadas anteriormente culminaram em um produto final


que vinha sendo construído desde o início das atividades: a vídeo-entrevista
com um imigrante haitiano residente em Porto Alegre. Os estudantes, portan-
to, trabalharam no decorrer dos seis encontros objetivando participar de uma
situação autêntica de comunicação, ou seja, genuína, não imitativa, estudan-
do, por exemplo, as diferentes maneiras de se fazer perguntas em francês para
conhecer alguém e também um vocabulário básico para se apresentar e falar
um pouco de si, de seus gostos pessoais.
Assim, após um trabalho dedicado à apropriação, de forma gradual,
das maneiras de se expressar em francês na situação descrita anteriormente,
pudemos concluir nosso objetivo produzindo, finalmente, a entrevista. Nela,
vemos que todo conteúdo linguístico está vinculado a um propósito comuni-
cativo e a um interesse de conhecimento por parte dos alunos, que, pela pri-
meira vez, entravam em contato com um imigrante francófono e, através dele,
descobriam uma outra realidade do nosso país. Além disso, como todo pro-
cesso de conhecimento e alteridade, este também exigiu um autoconhecimen-
to, sendo necessário que os participantes, antes de indagar o outro, pudessem
falar de si mesmo dar-se a conhecer, refletindo sobre quem são (na sociedade,
na família, entre colegas, etc.).
Formuladas e selecionadas as questões que seriam direcionadas a Joseph,
ou seja, concluída a última atividade para elaboração do produto final, os
alunos participantes foram gravados com um aparelho fotográfico digital para
complementar os demais vídeos já filmados anteriormente. Deste modo, edi-
tamos os vídeos de forma em que ele tivesse uma linearidade compreensível, a
fim de levá-lo e apresentá-lo ao imigrante colaborador com o projeto para que
ele o assistisse e pudesse responder em francês às perguntas feitas pelos alunos
do colégio.

78
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Fomos então ao encontro de Joseph em sua casa, na Zona Norte de Porto


Alegre, próxima ao Centro Vida11, local de referência para imigrantes refugia-
dos que chegam a Porto Alegre. Joseph, de 37 anos, pai de duas filhas (que
permaneceram no Haiti), chegara à cidade há quase dois anos no momento da
entrevista, tempo suficiente para aprender Português e poder alterná-lo com o
crioulo (língua da família, da comunidade haitiana) e o Francês (oficial em seu
país de origem e aprendida na escola). De forma alegre e muito simpática, ele
nos recebeu, conheceu um pouco do PIBID/Francês e do trabalho que desen-
volvemos na escola, para então assistir à gravação feita com os alunos. Em se-
guida, iniciou sua fala para o vídeo, apresentando-se e dizendo que “ama seu
país, o Haiti”, procurando utilizar a mesma estrutura lexical e gramatical – j’aime
– utilizada pelos estudantes. E foi assim, de forma bastante colaborativa, falan-
do pausadamente e empregando um vocabulário simples para que os aprenden-
tes da escola pudessem compreendê-lo, que nosso entrevistado respondeu, de
maneira franca e delicada, a cada uma das questões anteriormente trabalhadas
com os secundaristas em aula e gravadas em vídeo. Após a gravação do entrevis-
tado, retornamos ao colégio em uma atividade de fechamento do projeto para
que os alunos assistissem ao vídeo completo, com a apresentação de cada um,
seguida das perguntas e das respostas do imigrante, com o propósito de receber
um retorno do trabalho feito durante os encontros do PIBID na escola. Com
alguma dificuldade, os alunos puderam ter, já em uma primeira audição, uma
compreensão global das respostas do entrevistado. Em seguida, as bolsistas fo-
ram retomando o texto de Joseph, resposta por resposta, a fim de que reconhe-
cessem as estruturas lexicais e gramaticais que haviam sido trabalhadas em aula
e fossem capazes, por fim, de compreender a intenção comunicativa de seu in-
terlocutor. Entre outras coisas, descobriram os lugares preferidos de Joseph em
Porto Alegre, que o Haiti tem belas praias e que lá também se come churrasco,
que a música e a leitura são importantes para Joseph e que, ao final, a língua
francesa nem era mais tão “estrangeira” assim.

4 Considerações finais

A aplicação de um projeto de ensino de Francês como língua adicional/


estrangeira que abranja a francofonia e evidencie as diferenças culturais e mes-

11
Centro cedido pelo Governo do Estado, em 2015, para o acolhimento provisório de imi-
grantes refugiados (haitianos e senegaleses em sua maioria), com o apoio da Secretaria
Estadual do Trabalho e da Secretaria Estadual dos Direitos Humanos. Entre outros servi-
ços, o Centro Vida oferece acolhimento noturno, alojamento, avaliação de saúde e media-
ção para inserção no mercado de trabalho (conforme informações coletadas no site http://
www2.portoalegre.rs.gov.br).

79
LOGUERCIO, S. D.; FÜHR, D. P.; POZZI, J.; CHAGAS, J. H. das • Do Haiti ao Brasil e vice-versa

mo a variação linguística que comporta uma língua é, sem dúvida, relevante


para a realidade da escola pública brasileira. Relevante, entre outros aspectos,
para a compreensão do papel do ensino de línguas nas sociedades contempo-
râneas, bem como da redefinição do próprio ensino de línguas. Por outro lado,
é preciso ressaltar que carecemos ainda de informações ofuscadas por uma
cultura eurocêntrica, e por isso mesmo, nós do PIBID/Francês da UFRGS,
oriundos de um contexto acadêmico que não escapa a essa cultura, fomos
desafiados ao definir tal projeto pedagógico. Aprendemos, portanto, juntos
com nossos alunos secundaristas sobre a situação dos atuais imigrantes que
chegam ao Brasil, conhecemos um pouco deles (quem são? como vivem? o
que buscam? o que enfrentam em nossa cidade? etc.) e transformamos igual-
mente nosso olhar sobre o estudo de línguas e culturas, sobre comunicação e
interação com o outro.
No que diz respeito à metodologia, segundo as etapas já mencionadas
de Puren (2011), concluímos nosso propósito, desde a concepção do projeto,
do planejamento pensado especialmente para o público com o qual estávamos
lidando (adolescentes em uma escola pública, que possivelmente escolheram
estudar a língua francesa não porque queriam, mas porque deveriam optar por
uma língua a fim de completar a carga horária necessária referente à série
posta), até sua realização. Esta transcorreu de forma tranquila, com poucas
adaptações, já que os alunos desde o início pareceram motivados com a ideia
do produto final, e a avaliação desse produto – feita por nós e por eles – foi
especialmente recompensadora. Não porque a validamos por uma prova de
proficiência em língua, mas porque tivemos a prova de que podemos de fato
interagir com outros povos, aprender com eles e transformar nosso olhar sobre
o mundo. Essa aproximação com os imigrantes haitianos foi motivadora para
continuarmos a dar espaço para projetos que nos coloquem em contato com
outras comunidades francófonas, certamente tão mais próximas da realidade
brasileira do que a própria França, preponderante ainda hoje no imaginário de
quem se dedica a aprender francês.

Referências
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâ-
metros curriculares nacionais, códigos e suas tecnologias. Língua estrangeira moderna. Brasí-
lia: MEC, 2000, p. 49-63.
CUQ, Jean-Pierre. Dictionnaire de didactique du français. Langue étrangère et seconde.
Paris: CLE International, 2003.

80
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas – Aprendizagem, ensino, avaliação.


Lisboa: Edições Asas, 2001.
PERRENOUD, Philippe. Apprendre à l’école à travers des projets: pourquoi? comment?
Portfolio, Université de Génève, 1999. Disponível em: <http://www.unige.ch/fapse/
SSE/teachers/perrenoud/php_main/php_1999/1999_17.html>. Acesso em: 02 mar.
2014.
PUREN, Christian. Argumentaire en faveur de la pédagogie de projet. Formation de profes-
seurs, Fès, Marrocos, 2011. Disponível em: https://www.christianpuren.com/mes-tra-
vaux/2014b/>. Acesso em: 02 mar. 2014.
SCHLATTER, Margarete; GARCEZ, Pedro M. Línguas adicionais (Espanhol e In-
glês). In: RIO GRANDE DO SUL, Secretaria de Estado da Educação, Departamento
Pedagógico. Referenciais curriculares do Estado do Rio Grande do Sul: linguagens, códigos e
suas tecnologias. Porto Alegre: SE/DP, 2009, p. 127-172.

81
Fazendo e acontecendo no
espaço geográfico – nosso lugar
Antonio Carlos Castrogiovanni1

Para início de diálogo

O ensino da Geografia, em nossa leitura, deve acreditar que a constru-


ção do conhecimento se faz pela compreensão dos processos, e não na enfado-
nha e acrítica forma classificatória em hierarquias espaciais e marcadores tem-
porais (CASTROGIOVANNI, 2011b). O percurso do ensinar Geografia tem
que partir da análise histórica do espaço, ou seja, a sua gênese. Este espaço
que é (re)construído por mulheres e homens na sua riqueza multicultural e de
formas tão diversas e ricas precisa ser constantemente interpretado sob a batu-
ta da complexidade. Para nós é fundamental compreendermos provisoriamente
o passado à luz do presente e o presente em função do emaranhado de redes
tecidas conjuntamente no qual vivemos e de que, portanto, não damos conta
na sua plenitude. Esta contribuição visa dar exemplos de possibilidades peda-
gógicas para ensinar/aprender/reaprender Geografia adjetivada pelo que acre-
ditamos neste momento geo-histórico – construção de constantes problemati-
zações na busca de verdades temporárias.

Como (re)conhecer o lugar

O espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia, é constituído por


formas materiais visíveis, naturais e construídas pelas sociedades através das
relações que se estabelecem ao longo do processo histórico. Estas relações en-
tre sujeitos e ações, caracterizam um lugar no tempo histórico e devem ser
preocupação de estudo da Geografia. Produzido por sociedades desiguais, o
espaço geográfico se configura em tonalidades desiguais. No entanto, assume
características próprias que, por sua vez, inter(trans)relacionam-se e formam
uma unidade complexa que é o todo socioespacial. O espaço é um verdadeiro

1
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82
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

campo de forças, tensões e (re)ações cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolu-
ção social não se faz de forma idêntica em todos os locais, favorecendo a for-
mação dos particulares lugares. A escola, que também compõe o espaço geo-
gráfico, é um todo social repleto de campos de forças, tensões e (re)ações. Por-
tanto, ela não pode ficar no tratamento das informações. Precisa, sim, dar
conta de problematizações que encaminhem para constituir sentido às infor-
mações e, assim, tecer o conhecimento. Morin (1999) colabora dimensionan-
do o conhecimento a partir da complexidade, observando no próprio sujeito
que nascer é conhecer, pontua:
[...] o conhecimento é, necessariamente, uma tradução de signos/símbolos
e um sistema de signos/símbolos; (...), ou seja, tradução construtora a partir
de princípios/regras, que permitem construir sistemas cognitivos, articulan-
do informações/signos e símbolos; solução de problemas, a começar pelo
problema cognitivo da construção tradutora à realidade, que se trata de co-
nhecer (MORIN, 1999, p.64-65).

Conhecer é problematizar a informação. É estar constantemente duvi-


dando e acrescentando vida à informação. É buscar a construção tradutora à
realidade, sabendo que parece ser impossível compreender a realidade na sua
plenitude. Assim, o conhecimento “é provisório bem ao gosto e dentro da lógica
e da ilógica da vida” (RAMOS, 2016, p. 81). Conhecer é estar constantemente
problematizando o sentido que as informações podem nos oferecer e que dão
sentido à vida. Conhecer a vida é viver elaborando a nossa existência!

Fazendo e acontecendo – dando sentido ao lugar

Atualmente, vemos com preocupação a possibilidade do fim da Geo-


grafia como disciplina escolar. É, também por isso, que defendemos a necessi-
dade do professor não ser um mero repetidor de informações ou um simples
ativista, e, sim, um interlocutor ativo em suas práticas pedagógicas para trans-
formar as informações em conhecimento e o conhecimento em sabedoria, pro-
vocando o seu aluno a tornar-se sujeito que compreenda, mesmo provisoria-
mente, e atue como autor no espaço geográfico. Em outras palavras, auxilian-
do-o a ser cidadão!
A seguir, trazemos algumas oficinas que fazem parte das práticas que
temos construído com a colaboração dos alunos pibidianos do Subprojeto Geo-
grafia da UFRGS. São propostas que vão ao encontro do que pensamos sobre
o que pode ser o ensinar/aprender/dar sentido à Geografia. Não estão acaba-
das, pelo contrário, devem ser (re)vistas como provocativas. Esperamos que
cada professor, leitor, também exerça o seu papel de coautor.

83
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

Proposta 1 – Cidade de Porto Alegre – Formação territorial

Primeiro momento – Ocupando territorialmente

Objetivo: Nessa primeira parte, a oficina tem como objetivo desenvol-


ver diversas habilidades, desde o sentido de orientação ao conhecimento da
área natural onde se edificou o sítio de Porto Alegre. Aqui há uma
(re)construção dos conceitos de Geografia Física e a relação da natureza com
a formação histórica do espaço geográfico. Conceito de situação e sítio urba-
no são reavaliados.

Materiais: Um computador conectado ao projetor para a apresentação


dos mapas e imagens ou celulares conectados à internet. Na falta destes, mate-
rial fotocopiado.

Interdisciplinaridade: A proposta pode ser realizada com a participa-


ção das áreas da História, Ciências Sociais, Biologia e Português.

Dinâmica: Inicialmente, uma representação da área natural de Porto


Alegre é exposta ao grupo de alunos, sem saberem que se trata do futuro sítio
urbano da cidade. Após, será trabalhada a importância que teve a natureza
para os primeiros sujeitos que aqui chegaram e como a natureza exerceu papel
no processo de organização do tecido urbano e no crescimento econômico.

Fonte: MENEGAT, Rualdo (Coord.). Atlas Ambiental de Porto Alegre. 3. ed. Porto Alegre:
Ed. Universidade/UFRGS, 2006

84
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Problematizações:

Você faz parte de um grupo de colonizadores que chegaram a estas terras.


Que local ocuparia em um primeiro momento? Por quê?
Em nossas experiências, grande parte dos alunos escolhem a praia junto
à foz do curso d‘água, São categóricos em afirmar que a primeira coisa é ficar
próximo de um curso de água e pela facilidade de transporte para comunica-
ção/trocas com outros grupos de outros lugares e segurança quanto a possí-
veis invasores.

A nucleação inicial sofrerá uma expansão. Qual é a provável área desta ex-
pansão? Por quê?
Para boa parte, a expansão se dará em função do curso de água. Alguns
traçam o trajeto em direção à nascente do riacho (Riacho Dilúvio). São feitos
comentários interessantes a respeito das áreas mais baixas, como a planície à
esquerda do promontório que hoje é o 4° Distrito de Porto Alegre. Os alunos
trazem, geralmente, a necessidade em permanecerem próximos à água.

Considerando que os ventos predominantes sopram de SW e o promontório


está na direção leste-oeste, onde seria o melhor local para a construção de
um porto?
Primeiro tem-se que explicar o significado da palavra promontório, pois
muitos não sabem do que se trata – importante dar exemplos, como o morro
onde se situam a Rua Duque de Caxias e a Avenida Independência. O pro-
montório avança sobre as águas do Lago Guaíba). Após, mostra-se no mapa a
rosa dos ventos, para que, assim, os alunos possam se localizar – retomada do
conceito de orientação a partir da rosa dos ventos. Depois de algumas explica-
ções sobre o vento relacionando-as com a localização subtropical da área, os
sedimentos provenientes do curso de água, chegamos ao local onde hoje se
encontra o antigo Porto Mauá. É importante não falar que é Porto Alegre.

Considerando que esta área está situada no Hemisfério Sul, que vertentes
(encostas dos morros) seriam mais propícias para as atividades agrícolas?
Por quê?
Fazendo uso da Geografia Física, debate-se a posição aparente do sol
ao longo do dia, bem como a quantidade de insolação. Fala-se da vegetação de
áreas úmidas e áreas secas, comparando com a vertente do morro voltada para
o norte e outra voltada ao sul. Através de diálogo, fica entendido que o melhor
local para cultivar é na vertente voltada ao norte.

85
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

E para construir uma residência, em qual vertente seria melhor?


Considerando a luz solar diária que ocorre nas áreas subtropicais do
Hemisfério Sul, o melhor seriam casas voltadas para o leste e o norte e, secun-
dariamente, para oeste. Evitar casas voltadas para o sul.

Sabendo que aos poucos vai ocorrendo um aumento populacional, que local
seria mais propício para novas nucleações?
Novamente focam nas planícies do mapa e nas dificuldades de ser ocu-
pada a área sul do mapa, por exemplo. Conclui-se que seria melhor ao longo
da costa e ao longo dos cursos d’água.

Conclusões temporárias:
Após estas interrogações e conclusões, foi realizada a problematiza-
ção: A área trazida por esta imagem apresenta alguma semelhança com qual
cidade do Brasil? Por quê?
Alguns dizem Rio de Janeiro, outros com algum lugar qualquer, como
áreas que constituem parte do litoral, e poucos conseguem reconhecer como
sendo a área natural da situação e construção do sítio de Porto Alegre.
Quando descobrem tratar-se de Porto Alegre, analisa-se o sítio urbano
através da existência de morros e cursos de água. Resgata-se a própria história
do povoamento da cidade. É importante falar sobre a questão de que o centro
histórico não está no centro do tecido urbano e é um braço adentrando o Gua-
íba. Por fim, verifica-se que o povoamento sugerido ocorreu parecido com o
que de fato aconteceu com o Porto dos Açorianos e a importância do Lago
Guaíba para a localização e o crescimento da cidade.

Segundo Momento – Vivenciando a evolução urbana


Objetivo: Já nesse segundo momento, o objetivo foi entender o porquê
do povoamento ter iniciado no local onde hoje é o centro histórico e se direcio-
nado para o norte do que hoje é o município de Porto Alegre. Trabalhamos a
geomorfologia do terreno, a bacia hidrográfica do Rio Jacuí/Lago Guaíba e
após, a atratividade exercida pela cidade de São Paulo.
Também discutimos os benefícios da ocupação do centro histórico, a
influência exercida no passado pelo promontório, e as implicações desse cres-
cimento limitador. Outro objetivo é compreender os problemas da cidade na
perspectiva não só da circulação atual do transporte, mas num contexto maior,
enquanto mobilidade urbana. Por fim, buscar soluções para melhorias da ci-
dade considerando os problemas citados e convocando os alunos para serem
organizadores desse espaço.

86
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Materiais: Um computador conectado ao projetor para a apresentação


dos mapas e imagens, ou um celular conectado à internet.
Interdisciplinaridade: É possível fazer ótimas parcerias com História,
Artes Visuais, Matemática e Língua Portuguesa.
Dinâmica: Através de um mapa, fazemos alguns questionamentos aos
alunos sobre a evolução da malha urbana que constitui a cidade:
1) Que elementos contribuíram para a expansão e a ordenação do teci-
do urbano de Porto Alegre? Se você fosse organizar a cidade desde o princípio,
o que você mudaria? Por quê?
2) Reorganizando a cidade: O quê? Onde? Por quê? Para quem?
Após essas perguntas, conforme for a produção por parte dos alunos,
introduzimos alguns elementos, como informações e curiosidades do ponto
de vista histórico. Dessa forma, acreditamos que alguns subsídios possam de-
sencadear novos questionamentos.

Fonte: MENEGAT, Rualdo (Coord.). Atlas Ambiental de Porto Alegre. 3. ed. Porto Alegre:
Ed. Universidade/UFRGS, 2006

Ainda sobre as problematizações, após o entendimento de todos sobre o


crescimento da malha urbana, solicitamos que façam propostas para melhorar
a ordenação espacial no município, partindo do bairro da escola.

87
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

Com esta proposta procura-se, com a ajuda da História, compreender a


evolução urbana da cidade de Porto Alegre através de uma dinâmica que con-
sidera inicialmente uma cidade fictícia com a finalidade de pensar o local inse-
rido no global.

Oficina 2 – A cidade como poesia

O espaço urbano não é construído por um sujeito, mas para muitos, e


estes apresentam diferenças de temperamento, formação, ocupação profissio-
nal, origem étnica e diversidade social e, portanto, interesses e forças. A cidade
deve ser vista como uma representação da condição humana, sendo que esta
representação se manifesta através da arquitetura em si e da ordenação dos
seus elementos. As cidades modernas são complexas e procuram apresentar
áreas com especialização que atendam as características individuais dos diver-
sos grupos. Tais áreas apresentam diferenças e criam particulares marcas na
paisagem urbana, geralmente disciplinadas ou incentivadas por planos direto-
res que atendem interesses de empresas construtoras. Quando o plano diretor
não existe, tende a aumentar a indisciplina na ordenação espacial. A salvaguar-
da dessas especificidades é necessária, pois favorece a heterogeneidade do tecido
urbano e conserva a história da ordenação espacial, assim materializada.
A cidade é um produto vivo que faz parte do espaço. No Brasil, o con-
ceito de cidade está associado ao aspecto político, ou seja, são sedes adminis-
trativas dos municípios, que por sua vez representam a menor parcela do terri-
tório com gerenciamento político próprio.
O espaço deve ser visto como um fator da evolução social, portanto
produzido e reproduzido constantemente. O movimento histórico é que cons-
trói o espaço. O espaço é uma instância da sociedade; portanto, como instân-
cia, contém e é contido pelas demais instâncias. A cidade que passa a ser o
nosso lugar é uma parte do todo que é o espaço geográfico, mas ela não é o
todo, embora, pela possibilidade de interatividade e densidade social, ela pare-
ça para muitos sujeitos alunos ser o todo (CASTROGIOVANNI; BATISTA,
2016).
As cidades são partes representativas da complexidade que é o espaço
geográfico. Os elementos móveis das cidades, ou seja, os fluxos são tão impor-
tantes como os fixos, ou seja, os que pertencem a elas. Os sujeitos com olhares
investigativos, papel que assumimos quando estamos em movimento no espa-
ço, fazem parte dos fluxos. Os residentes não são meros observadores deste
espetáculo de interações, mas parte dele. Os fluxos também interagem, for-
mam resistências, aceleram mudanças, criam expectativas, desconstroem o apa-

88
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

rentemente rígido cenário urbano. Na maioria das vezes, nossa percepção não
é total, mas parcial no tempo e no espaço. A cidade não é apenas um conjunto
de elementos observados (fixos), mas o produto de muitos construtores. Al-
guns construtores parecem ter mais direitos no processo de elaboração do de-
sign das cidades. Ela até pode ser estável por algum tempo em linhas gerais,
inclusive ocupando limitantes territoriais, mas, pela própria dinâmica do capi-
talismo, dificilmente deixa de modificar alguns detalhes, detalhes estes que
para o professor de Geografia podem ser fundamentais no processo de capita-
lização da paisagem enquanto instância de investigação pedagógica. Com isso,
define-se o espaço urbano sempre como dinâmico.
Olhar para as cidades é sempre um prazer especial, por mais comum
que possa ser o panorama urbano. A cidade é uma construção física e imagi-
nária, compreende um lugar e faz parte do todo geográfico. O tecido urbano é
dinâmico e está inserido no processo histórico de uma sociedade. O traçado
de uma cidade é uma arte processual e representa uma leitura temporal. A
cada instante, há mais do que os olhos podem ver, do que o olfato pode sentir
ou do que os ouvidos podem escutar. Cada momento é repleto de sentimentos
e associações a significados. Portanto, há uma constante construção de signi-
ficações. A cidade é o que é visto, mas, mais ainda, o que pode ser sentido. É
com este olhar que devem agir os profissionais para serem especulativos e,
com isto, mais criativos. Sendo assim, é possível sempre descobrir novas paisa-
gens e elaborar problematizações criativas (CASTROGIOVANNI, 2011a).
Objetivo: Construir o conceito de cidade e a sua complexidade a partir
dos questionamentos: O que é uma cidade? De quem são as cidades? Elas têm
dono(s) ou não? Quem é/são o(s) dono(s) da cidade? Desenvolver a habilida-
de da observação para um olhar investigativo e qualificado, provocando a aná-
lise das tensões, forças e reações que ocorrem no espaço urbano.
Conforme Carlos (2005), quando nos questionamos sobre o que é a ci-
dade, essa pergunta fica no ar, e qualquer sujeito que vive na cidade sabe o que
ela é, mas desconhece a sua complexidade. A cidade é um substantivo vivo e
repleto de subjetividades. É preciso enxergá-la com desconfiança e, ao mesmo
tempo, com poesia.
Material: computador conectado a um projetor e folhas e lápis. O com-
putador pode ser substituído por celular conectado à internet.
Interdisciplinaridade: É possível trabalhar com Língua Portuguesa,
Artes Visuais, História, Literatura e Ciências Sociais.
Dinâmica: Esta atividade visa provocar os alunos a questionarem a res-
peito dos seus próprios direitos em relação às “suas” cidades. O professor pode

89
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

trabalhar questões como: A cidade é democrática ou não, como podemos ob-


servar? Nós, sujeitos, somos ou não autores da nossa própria cidade?

Primeiro momento

Aula: Num primeiro momento, o professor, através do Power Point (ou


outras mídias), mostra algumas imagens de cidade. Discute a importância da
existência das cidades e o conceito de cidade para a Geografia. Pode trazer os
conceitos de autores como Ana Fani Carlos, que, em seu livro A Cidade, nos
diz que ela é um modo de viver, pensar, mas também sentir. Através desses
conceitos, é importante o professor provocar um pequeno debate entre os alu-
nos a respeito de se a mesma possui donos ou não, se há democracia nas cida-
des, os espaços de prazer, de medo, e as fronteiras que existem nas cidades.
Estes são apenas alguns exemplos de questões que poderiam ser usadas para
provocar o debate na turma.
As questões que podem ser apresentadas aos alunos seriam:
1) De quem são as cidades? Por quê?
2) A cidade é democrática ou não? Como podemos observar? Por quê?
3) O que incomoda na cidade? O que incomoda a ponto de querer fazer-
mos mudar? Mudar a cidade ou de cidade?
4) Quais são os espaços de trocas e quais são os espaços de medo que
existem em nossa cidade? Por quê?
5) A nossa cidade é de todos ou não? Por quê? (buscando contra ponto
com a primeira problematização).
6) Por que não existem vendedores ambulantes nas ruas de bairros ricos
e se fazem presentes nas ruas de bairros pobres?
Após esse debate, devem ser entregues folhas com as questões já pontua-
das, para que os alunos possam respondê-las fazendo uma síntese da discussão.

Segundo Momento

Já no próximo momento da oficina será mostrado um vídeo sobre o


poeta gaúcho Mário Quintana. Após o vídeo, o professor deverá declamar o
poema “O Mapa”, também do autor Mario Quintana.

O Mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)

90
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Sinto uma dor infinita


Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,


Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada


Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,


Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar


Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...


(Mário Quintana)

Novamente, deve-se provocar uma reflexão, desta vez com o foco sendo
a opinião do poeta, o que era a cidade para ele. Tecer considerações no qua-
dro. O professor pode pontuar outras manifestações sobre a cidade e agregar
esta de Mario Quintana.
Depois de lido novamente o poema, trazer alguns questionamentos numa
folha fotocopiada, a respeito da sua mensagem, e possibilitar aos alunos que
respondam por escrito às problematizações seguintes:
1) Por que o autor expressa que o mapa pode ser a anatomia de um
corpo? A cidade possui corpo ou não?
2) É possível dizer que o Planisfério é a anatomia do Planeta Terra? Por quê?
3) Por que o autor expressa que sente uma dor infinita por onde jamais
passará?
4) Ao ler o Planisfério, por que países você sente uma dor infinita? Por
quê?

91
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

5) Em seus sonhos, como seria essa rua encantada de Porto Alegre ma-
nifestada por Mário Quintana?
6) O que falta na sua rua para ela ser uma rua encantada?
7) É possível construir a leitura de uma cidade só com o andar ou não?
Por quê?
Solicitar a leitura das respostas e associar os depoimentos dos alunos ao
do poeta. Assim, o professor pode ir pontuando no quadro as ideias que possi-
bilitam o entendimento da complexidade que encerra uma cidade. É impor-
tante o professor ter a clareza de que cabe a ele a geografização do poema.
Apresentar um mapa da cidade (planta urbana) e perguntar aos alunos
quais são as diferenças entre os “dois mapas”. Questionar: – qual dos dois
mapas é o mais correto? Por quê?
Como fechamento para a atividade, o professor pode propor que os alu-
nos que façam um poema ou outra manifestação textual sobre as reflexões que
tiveram durante as discussões. É importante orientar esta nova produção lite-
rária, como, por exemplo, dando cinco palavras que deverão fazer parte da
produção.

Terceiro Momento

A seguir, oferecemos aos alunos a letra da música Cidade Vazia. Ela traz
outra dimensão geográfica de uma cidade. Entregamos uma folha fotocopia-
da com oito retângulos e solicitamos a construção de uma história em quadri-
nhos na qual terão que representar os versos da letra. Criar no mínimo três
personagens e um título para a história.

CIDADE VAZIA, de Cacife Clandestino

Nos arranha-céus, as estrelas tem preço


Enquanto nas favelas, ruas sem endereço,
Realidade da cidade de calamidades, onde eu suponho,
Enquanto não houver a igualdade, a paz será um sonho
Na cidade vazia

Bem vindo a cidade da vaidade


Maquiando sua maldade em meio à verdade
Sob as luzes, menores com os seus capuzes
Nessa terra de abutres, carregando suas cruzes

92
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Uns na lama e outros na jacuzzi


atrás da grana, engatilhando a pistol uzi
já não se fazem crianças como antigamente
Hoje o menor de 12 tem o dobro de antecedentes

Ambiciosos, gananciosos com sede de poder


Idolatram mentirosos com a cara estampada em um pôster
Exposto, imposto o gosto de ser enganado
Ainda podendo ver o rosto do safado, tá tudo errado

O menor abraça o seu pai que a vida a polícia já tirou


Na beira da estrada das ilusões onde a inocência o tempo levou

[Refrão]
Nos arranha-céus, as estrelas têm preço
Enquanto nas favelas, ruas sem endereço
Realidade da cidade de calamidades, onde eu suponho
Enquanto não houver a igualdade, a paz será um sonho

Problematizamos:
1) Por que as estrelas nos arranhas-céus têm preço? E nas favelas?
2) Como conseguir paz nas cidades?
3) Como pode ser feita a maquiagem numa cidade, para esconder as
maldades?
4) Pagar imposto é uma necessidade para mantermos as instituições e
vivermos em comunidade. Por que o autor fala “exposto, imposto de ser enga-
nado”?

O fenômeno urbano está vinculado à história moderna. A cidade é um


mundo de representações. Independe de ser pequena ou uma metrópole, ela
pulsa, vive, seduz, agride, transforma-se e transforma aqueles que nela intera-
gem. Ela tem limites ilimitados no tempo e muitas vezes no espaço. A cidade
é repleta de entornos e estabelece entornos, alguns fortes, expressivos; outros
suaves, interativos com a continuidade espacial. A cidade é viva; mesmo não
sendo conceitualmente dinâmica, apresenta um dinamismo de relações.

93
CASTROGIOVANNI, A. C. • Fazendo e acontecendo no espaço geográfico – nosso lugar

Para não concluir

Partimos da epistemologia construtivista e da prática relacional, por-


tanto, um saber fazer para superar a simples memorização/descrição, aparecen-
do estas dissolvidas nos processos mentais mais elaborados, como a análise
tempo-espacial. Em nossa leitura, somente se objetiva o ensino da História e
da Geografia fundada nessa base epistemológica. Ou seja, compreendendo a
História e a Geografia como um conjunto de conhecimentos produzidos/dis-
cutidos na relação sujeito-objeto, como um complexo processo de construções
subjetivas, nas trocas cotidianas com as condições concretas da vida, como
resultado temporário de caminhos de síntese. Mas esses fundamentos episte-
mológicos estão permeados e se expressam na prática docente como um ato
político na leitura do mundo que está em constante reconstrução, já que o
conhecimento é uma construção social e, como tal, não pode se libertar das
posições e condições de classe do educador.
Quem ensina Geografia busca a leitura dos processos. Compreender os
processos é tomar por base a análise objetiva e, considerando as subjetivida-
des, apreender o conjunto das conexões internas, com seus conflitos, suas prá-
ticas sociais nem sempre preocupadas com a justiça social. Busca, igualmente
preocupar-se com os movimentos contraditórios, como unidade dos contrários.
Tudo está ligado a tudo, constituindo uma trama. Assim, o processo de cons-
trução de habilidades e conhecimentos, que vai do empírico à abstração dinâ-
mica, é infinito e favorece a existência de competências (CASTROGIOVAN-
NI; COSTELLA, 2006).
Aprender Geografia é estar se inserindo nas diferentes formas e estrutu-
ras, transitando pelas diferentes escalas e entendendo provisoriamente os di-
versos eventos que constituem a nossa existência. E, como já foi pontuado,
nesse processo, enquanto sujeito, mas também enquanto objeto histórico: ob-
jeto, pois é condicionado, mas sujeito, pois é um ser inacabado; e, consciente
disso, pode transcender os próprios condicionantes históricos. É com esses
olhares insatisfeitos que propomos esses percursos, para auxiliar o professor
em seus saberes, para fazer fazendo com mais saber. Estas são as propostas,
salientando que todas são inacabadas se considerarmos as verdades provisóri-
as e os contextos nos quais foram desenvolvidas.

94
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Referências
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos; COSTELLA, Roselane Zordan. Brincar e car-
tografar com os diferentes mundos geográficos: a alfabetização espacial. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 2006.
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos (Org.). Ensino de Geografia: caminhos e encan-
tos. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011a.
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos. Geografia. In: CASTROGIOVANNI, Anto-
nio Carlos; MEINEREZ, Carla Beatriz; MORITZ, Maria Lúcia de Freitas; HICK-
MANN, Roseli Inês (Orgs.). Iniciação à docência em Ciências Sociais, Geografia e História –
(re)inventando saberes e fazeres. São Leopoldo: Oikos, 2011b.
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos; BATISTA, Bruno Nunes. Geografia na esco-
la: lugar para estudar, entrelugar para encontrar, espaço para... Traduzir! In: Revista
Didáctica Geográfica, Associación de Geógrafos Españoles, Madrid, n. 17, 2016.
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
MORIN, Edgar. O Método 3 – O conhecimento do Conhecimento. Porto Alegre: Suli-
na, 1999.
RAMOS, Roberto José. A Educação e o Conhecimento: uma abordagem complexa.
In: CASTROGIOVANNI; TONINI; KAERCHER; COSTELLA (Orgs.). Movimentos
Para Ensinar Geografia – Oscilações. Porto Alegre: Letra1, 2016.

95
Estudo acerca das motivações para
o ingresso no PIBID da Educação Física
Eduardo Rodrigues Oliveira1
Rogério da Cunha Voser2

1 Introdução

A formação de novos professores de Educação Física vem sendo muito


debatida nos últimos anos. Diversos autores têm publicado trabalhos a respei-
to desse tema, discutindo sobre o currículo que é trabalhado nos cursos de
graduação e se somente o conteúdo teórico que é ensinado seria suficiente
para a atuação no ambiente escolar. Darido (1995) afirma que as possibilida-
des de diminuir o afastamento entre teoria e prática da formação curricular
seria a aceitação de um modelo em que a prática de ensino não apareça apenas
no final da formação, e, sim, que inclua a prática desde o início da trajetória
acadêmica. Entretanto, é necessário que essa ação seja acompanhada de perto
por um supervisor que instigue o estudante a refletir sobre essa prática.
Tentando possibilitar esse enlace entre teoria e prática, foi criado o Pro-
grama Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PIBID/CAPES). O PIBID
tem o intuito de valorizar a formação dos professores da Educação Básica
através da inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas desde o
início da sua trajetória acadêmica, a fim de que estes desenvolvam atividades
didático-pedagógicas sob a orientação de um docente da licenciatura e um
professor da escola onde acontece a atuação. Dentre as áreas contempladas
pelo programa está a Educação Física, em que está inserido o subprojeto es-
porte na escola, o que motivou esse estudo. Atuo como bolsista desse subpro-
jeto desde a sua criação em 2014 e, neste tempo, tenho adquirido inúmeras
experiências e também evidenciado grandes desafios.

1
Egresso do PIBID no subprojeto da Educação Física/Esporte. Departamento de Educação
Física. E-mail: eduardo.kyle@gmail.com.
2
Coordenador do PIBID no subprojeto da Educação Física/Esporte. Departamento de Educação
Física. E-mail: rogerio.voser@ufrgs.br.

96
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Acreditamos que esse estudo se justifica pelo grande impacto que tem
na formação de novos professores de Educação Física. A atuação como bol-
sista no PIBID é um diferencial na trajetória dos alunos de graduação, possibi-
lita-lhes encarar a realidade de trabalhar em escolas públicas de Educação Básica
e perceber como é de fato uma aula de Educação Física, podendo aliar a teoria
que é passada em sala de aula com a prática. Pensamos que, tendo essa expe-
riência o bolsista tem uma contribuição fantástica em sua formação como fu-
turo professor de Educação Física, ganhando a chance de problematizar as
questões da área já antes de concluir o curso, aprendendo como lidar com as
situações que irão ocorrer durante as aulas e superar os desafios que apareçam
no seu desenvolvimento.
Baseado no acima exposto, tem-se a seguinte problemática deste estudo:
Quais são as motivações iniciais que levam os acadêmicos da Educação
Física a se inscreverem para participar do processo seletivo para o ingresso no
subprojeto esporte da escola do PIBID?
Como objetivo geral, propôs-se apresentar e analisar as motivações cita-
das pelos ingressantes no subprojeto esporte da escola do PIBID.

2 Referencial teórico

2.1 Formação de professores: um olhar sobre a Educação Física


Ao falarmos em Educação Física, uma das discussões predominantes
sobre a área vem sendo a formação profissional no âmbito da licenciatura.
Rodrigues (1998) acredita que as licenciaturas em Educação Física estão mui-
to focadas em passar um conhecimento cientifico, deixando de lado o aspecto
intelectual e crítico. Limitando o pensamento a isso, o professor não estará
preparado para lidar com as variadas circunstâncias que podem aparecer em
suas relações enquanto docente. É preciso que haja um equilíbrio entre os dois
saberes, considerando que ambos são importantes. Não basta ter domínio so-
mente de atividades técnicas, também é necessário ter ciência de todos os ele-
mentos que fazem parte do processo educativo.
Em seu trabalho, Francisco (2013) afirma que, mesmo com as mudan-
ças que aconteceram no conhecimento gerado pela Educação Física no final
da década de 1970 e início dos anos 1980, ainda permanece uma hegemonia
de conteúdos biológicos durante a formação, embora tenha crescido o debate
acerca das teorias críticas. Ainda que tenha ocorrido esse desenvolvimento, as
discussões de natureza crítica parecem não estar integradas no processo, ape-
sar do aumento nas reflexões sobre a área com o surgimento de diversas abor-
dagens pedagógicas para a Educação Física.

97
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

“O modelo de formação de professores de educação física no Brasil pa-


rece não dar conta de contemplar as discussões produzidas a partir dessas abor-
dagens ou ainda parece estar um pouco distante” (FRANCISCO, 2013, p. 204).
Os motivos para que aconteça tal situação são os mais diversos. Há um emba-
te entre as áreas biológicas e as ciências humanas dentro do curso que em nada
ajuda na formação acadêmica. Nota-se um confronto entre os intelectuais dos
dois campos para dar mais importância ao seu objeto de estudo e não há mui-
to interesse em procurar uma solução em que todos saiam beneficiados. É
necessária uma unificação de todos esses conhecimentos, que de fato são in-
dispensáveis ao professor que está em formação. Desta forma, será possível
qualificar o currículo vigente a fim de propiciar uma melhora na construção
profissional que está sendo realizada.
Passando para a relação entre teoria e prática, Betti e Betti (1996) jul-
gam ser esta ligação a base dos problemas que atingem os currículos de forma-
ção profissional em Educação Física. “O conceito de prática está baseado na
execução e demonstração, por parte do graduando de habilidades técnicas e
capacidades físicas. Há separação entre teoria e prática. Teoria é o conteúdo
apresentado na sala de aula, prática é a atividade na piscina, quadra, pista,
etc.” (BETTI; BETTI, 1996, p. 10).
Outros estudos evidenciam essa desvinculação entre o conteúdo da for-
mação inicial e a prática profissional, fato que pode prejudicar a futura atua-
ção do educador, que não recebe os subsídios necessários para contornar de-
terminadas situações.
De modo geral, a academia privilegia a teoria (conhecimento científico)
em detrimento da prática (saber da experiência). Os programas de formação
inicial costumam estar separados dos problemas reais que o professor deve
enfrentar em seu trabalho cotidiano. Por exemplo: os alunos socialmente des-
favorecidos e que, hoje, constituem a maioria dos alunos da escola pública são
“desconhecidos” pelos docentes em formação. Assim, um dos desafios da for-
mação inicial é trazer, para a reflexão nos cursos de licenciatura a realidade
escolar (CALDEIRA, 2001, p. 91).
Aproximar o licenciando do ambiente escolar é primordial, na intenção
de fazê-lo sentir-se parte desse espaço em que ele está inserido. Deste modo,
ele estará pronto para superar os obstáculos que a falta de relação entre a teo-
ria e a prática pode causar, indo além do ensino dos conteúdos sob responsabi-
lidade da disciplina, conseguindo refletir sobre a sua atuação.
É necessário que haja avanços nos currículos do curso nas instituições
de ensino superior, a fim de estabelecer um modelo que dê a mesma importân-
cia para a teoria e a prática.

98
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

O professor é preparado para trabalhar em uma situação de ensino-apren-


dizagem ideal, com alunos e condições ideais. Tanto na universidade quanto
nos programas de formação continuada – quando são oferecidos – confron-
tam-se com a frustração de receberem conhecimentos referentes a situações
nas quais tudo ocorre de forma controlada e as ações são sempre eficazes e
sem traumas, dando-lhes a impressão de que são profissionais incompetentes
por não conseguirem reproduzir com sucesso essas propostas (GASPARI et
al., 2006, p. 126).
Além dessas considerações que foram feitas, ainda surge outro entrave na
discussão desse tema: São muitos conhecimentos adquiridos durante a gradua-
ção, e não há tantas chances de testá-los na prática. Somente os estágios obriga-
tórios não preparam o estudante para ser professor de Educação Física. Algu-
mas disciplinas ainda possibilitam certas vivências, como observações de aulas
ou que os profissionais em formação ministrem alguma prática para seus cole-
gas, porém apenas isso não é suficiente. É fundamental que o futuro docente
possa colocar a teoria em prática, para refletir sobre sua ação e ter claro para si
que em muitas oportunidades será preciso ressignificar o conteúdo visto em sala
de aula, a fim de obter melhores resultados em sua intervenção.
A prática deve ser a protagonista ao longo da caminhada, o aluno deve
ter contato com a sua área de atuação desde o começo de sua trajetória acadê-
mica, seja vendo profissionais mais experientes em ação ou mesmo discutindo
sobre as estratégias que este utiliza para atingir seus objetivos. Assim ele estará
mais preparado para resolver os problemas que vão acontecer em suas aulas.
É relevante salientar que o educador deve seguir sua formação após con-
cluir a graduação, para qualificar sua intervenção pedagógica. O profissional
deve entender que esse processo está sempre em construção, acompanhando
as mudanças que acontecem na escola, local de sua atuação e que lhe possibi-
litará ter essa continuidade. As propostas para dar sequência na formação dos
docentes, muitas vezes, se dão por meio de atividades já realizadas anterior-
mente, como seminários e cursos, que estão apenas repetindo o percurso inicial
do licenciado. Há uma dificuldade em enxergar que a maioria da formação
dos educadores se dá na escola, e esta se apresenta com potencial para a refle-
xão e analise pedagógica.
Essa sequência do processo formativo pode ser feita através de consul-
tas à literatura da área, que está em constante atualização, de um aconselha-
mento com profissionais mais experientes ou de um diálogo com a supervi-
são/direção da escola, tudo para atingir um nível maior no desenvolvimento
de suas atribuições. O investimento realizado com esse objetivo é visto com
bons olhos, por manter o docente motivado e ajudá-lo a qualificar o ensino.

99
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

O trabalho coletivo tem sua importância no aprimoramento dos educa-


dores. A reflexão entre os pares é relevante por oportunizar um rompimento
com uma visão tecnicista da atividade docente. Tal processo não pode perma-
necer estagnado, sem avanços, levando em consideração que não é algo defini-
tivo. É fundamental que exista renovação frequente dos conhecimentos, por
meio de troca de informações entre os professores. Desse modo, haverá evolu-
ção na formação de todos.
Cabe ao coletivo de professores questionar sua própria prática, revisá-la
e refletir sobre o que está fazendo e por que fazê-lo dessa maneira, e não de
outra. Cabe, também, ao professorado compartilhar saberes e experiências,
trocar informações sobre os alunos, confrontar pontos de vista diferentes, re-
fletir sobre os saberes por eles produzidos (CALDEIRA, 2001, p. 94).
A ação comum do professorado estimula a discussão, a reflexão e um
planejamento mais apurado da prática. É algo que exige comprometimento,
respeito, solidariedade e um olhar crítico. Combinados esses fatores, teremos
uma solução conjunta dos problemas que se apresentam na intervenção do-
cente, além de enriquecer sua formação com o intercâmbio de experiências e
pensamentos durante o processo.

2.2 Contextualizando o PIBID na UFRGS


O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID)
começou a fazer parte da UFRGS em 2009, com edital de 2007. A princípio,
os cursos de licenciatura que foram contemplados pelo programa foram: Artes
Visuais, Biologia, Ciências Sociais, Física, Geografia, História, Letras, Mate-
mática e Química. Em razão do êxito obtido com os subprojetos dessas áreas,
outros cursos se inscreveram na abertura do novo edital em 2009: Filosofia,
Teatro e Pedagogia.
Dentro da nossa universidade, o PIBID busca estimular a formação de
docentes trabalhando em conjunto com as escolas estaduais do Rio Grande
do Sul. Procura habilitar os licenciandos e futuros professores para a atuação
na Educação Básica e contribui com a articulação entre teoria e prática, auxi-
liando na formação dos alunos da instituição. Dentre as metas estabelecidas
pelo programa, é interessante mencionar que esta intervenção realizada pelo
PIBID deseja fortalecer o espaço institucional dos cursos de licenciatura na
universidade, incentivando a sua procura para que haja uma valorização do
magistério.
O curso de Educação Física foi incluído no PIBID em 2012, inicial-
mente com dois subprojetos: Educação Física na Educação Infantil e nos anos
iniciais do Ensino Fundamental e Educação Física no Ensino Fundamental e

100
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Médio. Mais tarde, em 2014, uma nova proposta foi idealizada, e daí surgiu o
subprojeto Esporte na Escola, também atuando junto ao Ensino Fundamen-
tal e Médio.
A apresentação de todo este caminho percorrido até aqui pelo PIBID
dentro da UFRGS nos mostra a evolução deste programa ao longo dos anos,
de modo a estar totalmente inserido em nossa instituição atualmente. Graças
a ele, é possível esse enlace entre os conhecimentos adquiridos na faculdade e
os saberes produzidos na escola. O estudante de graduação tem a oportunida-
de de se aproximar da docência logo cedo e ainda proporciona ao supervisor
uma reflexão sobre sua prática, ao mesmo tempo em que este acompanha o
desenvolvimento das atividades.
O docente da escola que monitora o trabalho pode agregar conhecimen-
tos novos, muitos dos quais pode não ter visto em sua graduação, o que possi-
bilita o surgimento de novas estratégias de ensino de sua parte, inovando a sua
prática, apresentando outros conteúdos aos alunos e por consequência, tor-
nando suas aulas mais atrativas. Já para o graduando, ter a chance de vivenciar
à docência durante a sua formação é um diferencial enorme.
Os bolsistas, sendo inseridos no ambiente escolar, conseguem ter uma
ideia clara do que é ser professor, visto que existe a convivência com os educado-
res das outras disciplinas, o trato com os funcionários da instituição e as rotinas
a serem cumpridas (reuniões, avaliações, planejamento). Além disso, possibilita
uma melhora substancial nas aulas de Educação Física, pois, os licenciandos
trazem consigo novos saberes que elevam a qualidade das atividades desenvolvi-
das, aumentando o número de práticas ofertadas aos estudantes.

2.3 O subprojeto Esporte na Escola


O subprojeto em questão faz parte de um dos grupos da Educação Físi-
ca, iniciando suas atividades no primeiro semestre de 2014. A finalidade pri-
mordial da proposta deste projeto é incentivar o crescimento dos alunos como
cidadãos, educando-os utilizando uma proposta voltada para o esporte. Por
intermédio de atividades esportivas, procura-se trabalhar diversos aspectos so-
ciais presentes no ambiente escolar, buscando agregar na formação integral
dos alunos. Sendo o esporte uma manifestação da cultura corporal muito pre-
sente em nossas vidas, nada melhor do que valer-se dessa estratégia para con-
tribuir na construção do caráter dos educandos.
A ideia é desenvolver o trabalho através do esporte educacional, que
evita a seletividade e o excesso de competição entre os praticantes, objetivan-
do alcançar uma evolução na formação dos sujeitos envolvidos na ação. Tal
prática deve ser ofertada de forma agradável e desafiadora, propiciando a par-

101
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

ticipação de todos, inserindo-os nas aulas, que devem apresentar um caráter


plural. O interessante é idealizar um cenário que possibilite às crianças e aos
jovens o acesso à prática esportiva, levando em consideração suas vontades e
expectativas, transformando sua realidade de ensino, permitindo-lhes envolvi-
mento direto no processo de aprendizagem.
Para englobar esses elementos, utiliza-se uma metodologia diferencia-
da, com enfoque nos jogos. Diferente do modelo de ensino mais usual existen-
te nas escolas, em que há uma preocupação exagerada com a técnica, esse
método baseia-se na parte global-funcional, desenvolvendo o aprendizado a
partir de pequenas situações encontradas na modalidade em questão, poden-
do haver modificação de regras ou alterando o número de jogadores, de bolas
ou de alvos. Essa abordagem se aproxima mais da prática real do esporte, au-
xiliando na criação de um entendimento tático eficaz.
Alguns autores têm-se manifestado sobre o assunto em seus trabalhos.
Para Barroso e Darido (2006), se o esporte está inserido na vida dos indivíduos,
é justo que o mesmo se faça presente na escola, especialmente como conteúdo
das aulas de Educação Física. Deste modo, seu aparecimento nas instituições de
ensino tem como meta preparar o cidadão para intervir diretamente na sociedade
que irá pertencer. Há uma ligação entre a escola e o esporte, visto que a primeira
tem o ato de educar como base, desempenhando a função de capacitar os alu-
nos, e o segundo pode ser uma ferramenta muito eficiente nesse processo.
Já Neuenfeldt (1999) constata que o esporte contribui na formação dos
educandos, se o professor tirar proveito de sua prática, sabendo trabalhar os
diferentes contextos que o envolvem. É necessário ir além do gesto técnico,
ensinar também os alunos a refletirem e desenvolverem sua capacidade críti-
ca, trazendo discussões sobre a prática realizada. Dessa forma, o docente pode
contribuir efetivamente na educação do jovem que ali se encontra. É indispen-
sável fazer o aluno enxergar significado no conhecimento assimilado durante
as aulas, para que de fato ocorra adesão à prática regular do desporto. É im-
portante relacionar a prática esportiva com a vida fora da escola, analisando
as características semelhantes entre as duas, pensando em como tirar proveito
do aprendizado adquirido em seu cotidiano.
“O esporte participa direta ou indiretamente de nossas vidas, possui
espaço garantido em todos os jornais, em horários nobres da TV, estando pre-
sente nas atividades de lazer, em competições de alto nível e nas aulas de Edu-
cação Física” (NEUENFELDT, 1999, p. 237). Essas, dentre outras circunstân-
cias, atestam o seu desenvolvimento junto aos escolares, pois trata-se de um
fenômeno sociocultural e problematizá-lo durante os encontros melhora a com-
preensão dos educandos sobre como o tema é tratado nos diferentes meios.

102
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Permite grande interação social, resolução de situações problema e pos-


sibilita o trabalho em equipe, aspectos que com certeza aparecerão em algum
momento da vida adulta dos alunos. Contempla elementos importantes para
o desenvolvimento geral dos estudantes, trazendo questões como o respeito ao
adversário, saber lidar com situações favoráveis e adversas, o crescimento do
repertório motor através do aprendizado dos fundamentos das modalidades e
permite o contato com algo que é muito presente na cultura do nosso país,
visto que a pratica desportiva é muito forte em todo o território nacional.

2.4 As motivações para o ingresso no PIBID:


um olhar sobre a Educação Física
Este estudo de caráter qualitativo e descritivo analisou a carta de moti-
vação de vinte e sete ingressantes de ambos os sexos, com idade entre 22 anos
e 33 anos, no PIBID Educação Física.
No quadro 1, pode-se verificar a síntese de todas as respostas escritas na
carta de motivação que foi entregue no momento do ingresso no PIBID da
UFRGS.

Quadro 1: Respostas dos bolsistas selecionados em relação às motivações para


ingressar no PIBID

Motivações para o ingresso no PIBID


“Minha mãe é professora... eu estudei em escola pública… PIBID tem
um conceito bom na Universidade... O conteúdo trabalhado na teoria na
graduação é colocado em prática...” ACS1
“Oportuniza ao futuro professor vivenciar o dia a dia da escola pública
conhecendo a clientela e enfrentando desde cedo os desafios que aparece-
rão… Só o estágio obrigatório é pouco para os desafios que a escola pública
exige…” ABF2
“... além de agregar muito ao meu currículo em uma futura oportuni-
dade de emprego na rede pública de educação, seria uma grande chance de
adquirir experiência e conhecimento em nossa atividade fim, afinal esta-
mos sendo formados para sermos professores...me agrada muito contribuir
para a formação de crianças e adolescentes, me traz grande satisfação e mo-
tivação para seguir em frente...” ARR3

103
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

“A motivação que me levou a fazer parte do PIBID foi principalmente


aprender ganhando experiência.” CG4
“Qualificar para a área de licenciatura… permitirá compartilhar e tro-
car experiências...será um excelente desafio, pois será possível enfrentar as
mais diversas situações, permitindo a reflexão sobre a experiência e a práti-
ca…” DPS5
“Adquirir experiência para minha carreira profissional... pretendo des-
mistificar que a Educação Física não precisa de professor, bastando apenas
uma bola... Como já estudei em colégio público, sei que há uma maior dife-
rença entre estilos e interesses por parte dos alunos... transformando a aula
em um aprendizado não só para mim, como para os estudantes.” EAM6
“Entendo que a vivência na sala de aula é muito importante para a
nossa formação... Acredito que é muito interessante conhecer uma nova
realidade, um novo espaço, uma nova comunidade... Tenho a intenção de
utilizar toda a bagagem que a graduação e minhas experiências anteriores
me dão, a fim de proporcionar intensas e valiosas vivências para os educan-
dos... Acredito que será uma experiência enriquecedora, e que trará vivências
e conhecimentos somente adquiridos na prática.” ECFR7
“Aumentar a minha experiência no ensino escolar para conhecer a re-
alidade mais de perto.” ERN8
“A oportunidade de trabalhar no ambiente escolar e ajudar a formar
cidadãos... trabalhar a disciplina desde as séries iniciais é muito importante
para o desenvolvimento de habilidades... é uma experiência que preciso ter
para me testar... tenho muito para aprender sobre a docência com a inter-
venção dos coordenadores, todos devem ter muito a oferecer...” ERO9
“Bom, primeiramente minha motivação era ter uma atividade produ-
tiva, no sentido de experienciar essa vivência em estar à frente de uma tur-
ma, dando as orientações, instruções, preparar aulas, atividades e também,
claro, a parte financeira que é um auxílio que ajuda a vida do estudante de
graduação.” JVR10
“Primeiramente pela experiência de dar aula, como ainda não decidi
em que área quero atuar dentro da Educação Física, penso que é importan-
te vivenciar na prática. Além disso, sempre tive bons professores de Educa-
ção Física na escola, queria saber como era estar no lugar deles, e talvez
fazer alguma diferença na vida dos alunos, assim como meus professores
fizeram.” LOR11

104
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

“Escolhi a Educação Física porque acredito que a educação, de uma


maneira geral, junto à atividade física, seja um campo favorável desde a
idade inicial até a terceira idade...” LSL12
“Durante esse período de aprendizado na graduação, encontro algu-
mas dificuldades em pensar a escola como é de fato... Gostaria desde já de
conhecer qual o perfil dos que lá estão, compreender seus contextos de vida
e assim viver a profissão efetivamente...” LCS13
“Eu precisava de uma bolsa e sempre ouvia falarem bem do PIBID,
que era uma bolsa que dava muita experiência na escola, que é uma área em
que quero atuar.” LF14
“Enxerguei no PIBID uma forma de conhecer a docência e poder co-
locar em prática o embasamento teórico passado pela universidade. Outro
ponto que me despertou interesse foram relatos de colegas que já estavam
no programa e comentavam sobre o aprendizado que estavam obtendo.”
LNGL15
“Minha vontade é experienciar o papel de professor em escola públi-
ca... visando diversificar as atividades... Meu principal foco é realmente
aprender... ajudar as pessoas a desenvolverem melhor suas capacidades mo-
toras e psicológicas.” MFR16
“Conheci o programa através de uma palestra... O PIBID pode ser um
grande passo na minha formação como professor... busco adquirir experi-
ência... me certificar de que esta é a área certa para meu futuro como educa-
dor.” MGGT17
“Desempenhar a docência momentaneamente e futuramente... pos-
suo disponibilidade de horário para cumprir minhas obrigações.” MLM18
“Minhas aulas de Educação Física sempre foram muito monótonas e
maçantes... Ajudar a construir um indivíduo que saiba o valor da coletivi-
dade, do respeito, suas qualidades e defeitos... Como professores somos res-
ponsáveis pela educação e pelo bom direcionamento de nossas crianças...”
MMS19
“Tenho interesse nesse programa desde que fiquei sabendo de sua exis-
tência... fiz um estágio obrigatório na Educação Infantil e gostei muito, foi
minha primeira experiência... considero que o PIBID seja a melhor opção
para todos aqueles que querem realmente se tornar professores.” MCM20
“Aprendizagem, experiência, conhecer desafios da docência.” NRC21

105
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

“Acho que a vontade de dar aulas de Educação Física e possibilitar a


melhora das minhas aulas para o estágio obrigatório. O PIBID nos possibi-
lita uma excelente forma de saber nos portar diante da turma e nos ensina
como elaborar aulas de qualidade aos nossos alunos.” PE22
“Meu principal motivo para ingressar no projeto foi o fato de poder,
desde cedo na minha profissão, entrar no mercado de trabalho. Por não ter
experiência nenhuma na área, o PIBID supre exatamente as minhas neces-
sidades, por se tratar de um programa em que temos acompanhamento de
supervisores e professores no dia a dia e também em encontros previamente
marcados para debatermos diversos assuntos relacionados a nossa realida-
de de trabalho como professor de escola pública.” RST23
“Quis buscar experiência, como seria algo novo para mim, queria uma
vivência mais compartilhada em que eu pudesse aprender com um colega
de profissão também.” RM24
“Será muito importante para o meu crescimento profissional e um gran-
de aprendizado... vivenciar a realidade do ensino público, suas condições
de trabalho e estrutura... Com o esporte, conseguimos inserir valores e ensi-
nar de uma forma prática.” TCTO25
“A principal motivação foi através dos professores que usaram algum
tempo de sua aula para falar do PIBID, e isso despertou meu interesse em
vivenciar a realidade nas escolas com o auxílio dos professores.” TSJ26
“O professor é o responsável por ser o exemplo a ser seguido pelos
alunos, aquele que mostrará um leque de opções a crianças que muitas ve-
zes já entram na escola sem esperanças de um futuro melhor... acredito que
nós, futuros profissionais da educação, temos o dever e a responsabilidade
em nossas mãos de ser a principal peça de transformação na sociedade em
que estamos inseridos.” WAL27

Nas falas dos bolsistas sobre as motivações para ingressar no PIBID,


um dos pontos mencionados foi a possibilidade de relacionar a teoria observa-
da nas aulas da graduação com a prática propriamente dita. De fato, a atuação
no programa permite um olhar diferenciado para essa questão, já que o licen-
ciando está introduzido na realidade escolar. Estando à frente de uma turma,
o acadêmico tem a oportunidade de colocar o conteúdo conceitual à prova,
analisando se este é suficiente para uma intervenção de qualidade em uma
aula de Educação Física.

106
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Ao professor se atribui o papel de intermediário entre o conhecimento e


o estudante, para que este tenha protagonismo no processo de aprendizado.
Será que os saberes adquiridos em minha formação superior fornecem as fer-
ramentas necessárias para que eu cumpra esse papel? Através dessa experiên-
cia no PIBID, é possível fazer essa reflexão, pois o graduando estará exercitan-
do a docência de forma concreta.
Em seu estudo, Torres e Ferreira (2013) afirmam, apoiados por outros
trabalhos, que a teoria se apresenta afastada do cenário prático encontrado
pelos professores. Deveria haver uma aproximação maior entre o que está sen-
do ensinado na universidade e o que se observa na realidade das escolas públi-
cas, que possa ser aplicado de maneira efetiva.
Acreditamos que este distanciamento está em não preparar o acadêmi-
co para lidar com situações que são corriqueiras na escola, como o descaso
dos alunos e até dos próprios colegas de trabalho com a disciplina, a desvalo-
rização da categoria a qual ele irá pertencer ou até mesmo a relação professor-
aluno, onde não é aconselhável impor uma metodologia, mas, sim, dialogar
com todos, a fim de ganhar a confiança para desenvolver suas ideias.
“A formação acadêmica se caracteriza por ser o período onde o estu-
dante se apropria dos saberes e habilidades da profissão e se torna capaz de
integrá-los para poder atuar na escola, buscando uma competência profissio-
nal ampliada” (KOGUT, 2012, p. 2). É o espaço onde se aprende a planejar, se
recebem orientações sobre metodologia e didática, se compreende quais conteú-
dos são de responsabilidade da Educação Física, mas não se tem uma ideia real
do que virá pela frente, uma aula de graduação não contempla tal situação.
Os encontros teóricos têm por objetivo deixar o futuro profissional apto
a trabalhar com este componente curricular na instituição de ensino, porém,
fica difícil imaginar as condições que encontraremos no local para desenvolver
o trabalho. Apenas os estágios obrigatórios para entender o contexto escolar é
pouco. A atuação no PIBID deveria ser exigência para quem frequenta um cur-
so de licenciatura, assim esse vínculo entre teoria e prática seria feito de maneira
eficiente, proporcionando uma qualificação maior ao futuro educador.
Outro ponto que apareceu nos depoimentos foi a experiência adquirida
na área de atuação através do PIBID. Uma das justificativas para o ingresso no
programa foi vislumbrar nele uma possibilidade de enriquecer o currículo pro-
fissional, preparando-se para as oportunidades de trabalho que irão surgir, além
disso, tomar conhecimento sobre o cotidiano escolar, uma vez que tornar-se
professor de Educação Física é a atividade final do curso.
É uma vivência encarada como qualificação, em que o aprendizado está
em lidar diretamente com as questões da docência, desenvolvendo atividades

107
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

que proporcionem um amadurecimento, que demonstrem ser acertada a esco-


lha profissional que foi feita. Com essa aproximação antecipada entre profes-
sor e escola que o PIBID permite, eleva-se o nível de formação do licenciando,
que estará mais preparado quando tiver a chance de assumir o seu cargo.
A inserção no campo de atuação habilita o indivíduo para lidar com os
desafios que irão surgir em seu ambiente de trabalho, facilitando a resolução
dos problemas que podem acontecer. Com certeza, formar-se-á um educador
extremamente capacitado, pois trará consigo um alcance maior de pensamen-
tos sobre a educação, a função da escola e qual o seu papel em todo o processo,
qualidades que não estão presentes em professores recém-formados.
Clates, Leães e Gunther (2013), em seu estudo, entrevistaram egressos
do curso de licenciatura em Educação Física do CEFD/UFSM que integra-
ram a equipe de bolsistas do PIBID. Evidenciaram a contribuição dessa ex-
periência em seu processo formativo, por entenderem que os estágios obriga-
tórios não atingem a carga horária suficiente para um real entendimento do
espaço escolar.
Nesse sentido, os egressos enfatizam de um modo geral as experiências
pré-profissionais e profissionais que estiveram presentes de forma construtiva
nas narrativas como sendo fundamentais para afirmação na profissão, repre-
sentando um momento importante em suas vidas, fazendo-os compreender a
importância da inserção no PIBID, no qual se permitiu um maior conheci-
mento acerca da realidade da futura profissão e das falhas do processo de for-
mação, ajudando-os no percurso formativo com a antecipação da socialização
docente (CLATES, LEÃES E GUNTHER, 2013, p. 6).
Essa referência da literatura vai ao encontro dos dizeres expressos nesse
trabalho. Os bolsistas têm o privilégio de adquirir experiência na prática, tra-
zendo segurança para desempenharem suas funções. Também percebem o que
é preciso buscar além da formação que estão recebendo na universidade, por
já estarem familiarizados com a rotina de uma escola e se qualificam para uma
entrada favorável no mercado de trabalho.
O bom conceito do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Do-
cência foi mencionado durante as falas dos entrevistados como fator que os
motivou a procurá-lo. Alguns comentários positivos que ouviram a respeito
do programa, enfatizando a experiência prática nas instituições de ensino, ti-
veram impacto em sua decisão de participar dele. Há consenso em afirmar que
o PIBID é a melhor opção para quem realmente deseja ser professor, por tudo
que ele proporciona e pelos princípios que o norteiam.
Talvez essa boa caracterização do PIBID esteja baseada na ideia de va-
lorização do magistério, por promover esse contato entre professores que já

108
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

exercem a profissão e os que ainda estão em formação. Essa troca de experiên-


cias só melhora o trabalho que está em andamento, e ter um projeto voltado
especialmente para o desenvolvimento da docência resgata a vontade dos edu-
cadores de fazer o seu melhor, traz essa sensação de reconhecimento, incenti-
vando os bolsistas a seguir na Educação Básica.
Os profissionais da educação necessitam de capacitações e formações
que venham proporcionar uma nova dinâmica no cotidiano escolar, que possi-
bilite aos docentes e discentes a interatividade com o conhecimento de forma
objetiva e prazerosa, acompanhando as modificações dos paradigmas e o cres-
cimento tecnológico (SILVA et al., 2012, p. 215).
É exatamente isso que torna o programa atrativo, a chance de promover
uma prática criativa e arrojada, dando novos ares à rotina dos alunos. Essas
informações sobre o PIBID se espalham entre os acadêmicos, fazendo com
que cada vez mais licenciandos queiram integrá-lo, a fim de obter um acrésci-
mo em seu aprendizado.
Um dos objetivos do PIBID é trazer o jovem estudante de licenciatura
para os processos que fazem parte do cotidiano escolar, gerando, assim, um
significativo crescimento acadêmico, um conhecimento que estaria longe de
ser atingido apenas com os estágios supervisionados constantes no currículo
do curso de graduação em Licenciatura Plena em Educação Física (SILVA et
al., 2012, p. 216).
No decorrer de seu período na faculdade, são escassas as oportunidades
de entrar em contato direto com o espaço escolar, e, mesmo quando há essa
possibilidade, o olhar como educador não é tão apurado quanto ao que este
programa promove. Só com essa proximidade, as competências e habilidades
que são indispensáveis à prática docente serão desenvolvidas, o que fortalece
sua implementação, já que proporciona essa vivência que nem mesmo a grade
curricular do curso contempla.

3 Considerações finais

Ao desenvolver este estudo, foi possível identificar quais as motivações


dos graduandos bolsistas do PIBID ao buscarem a entrada no programa. A
chance de relacionar a teoria que lhes foi passada em aula com a prática nas
escolas, ganhar experiência em sua área de atuação e o bom conceito que tive-
ram do programa, definido pelas informações que colheram a respeito dele
motivou-os a ingressar na função.
Sem dúvida, suas colocações permitiram a reflexão sobre mudanças que
devem ser feitas na estrutura do curso de Educação Física das Instituições de

109
OLIVEIRA, E. R.; VOSER, R. da C. • Estudo acerca das motivações para o ingresso no PIBID...

Ensino Superior. É preciso manter a teoria e a prática num mesmo nível de


importância durante a graduação, evitando separar uma da outra, com ativi-
dades que se assemelhem ao máximo com o ambiente escolar, impedindo que
haja uma idealização de situações que estão longe do que se encontra na Edu-
cação Básica.
A oportunidade de adquirir experiência em sua atividade fim desperta
o interesse dos candidatos na bolsa, por ser um item que possa chamar a
atenção dos comandantes das escolas em uma disputa futura pelo cargo de
professor, considerando-se um maior preparo para o trabalho de um indiví-
duo que exerceu as atividades sob responsabilidade de um docente antes de
tornar-se egresso.
Essas características presentes no PIBID constroem um conceito positi-
vo do referido programa junto aos alunos, o que também os atrai a procurá-lo.
Em nenhum outro momento de sua trajetória acadêmica é possível estar tão
próximo da realidade escolar, inclusive tendo contato com outros profissio-
nais que já iniciaram sua caminhada há muitos anos.
Diante das motivações que foram apresentadas pelos bolsistas durante
o estudo, sugere-se que seja obrigatória a atuação no PIBID nos cursos de
Licenciatura das universidades, para benefício dos próprios acadêmicos em
seu processo formativo, tamanha a qualificação que pode ser obtida através da
participação no programa.

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

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111
Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física:
desenvolvendo competências
através do lúdico e da tecnologia
Clézio Gonçalves1

Figura 1: Abertura de um Dia do Lazer

Fonte: Arquivo do Projeto

O PIBID-Educação Física da UFRGS proporciona a populações de es-


colas públicas com baixo IDEB a oportunidade de ampliar seu repertório de
vivências através do lúdico com o uso de tecnologias de registro de áudio e
vídeo como elemento mobilizador destas experiências. Objetiva construir e
aplicar propostas vivenciais lúdicas e sensibilização corporal junto a estudan-
tes do Ensino Fundamental e Médio de instituições de ensino públicas da

1
????????????????????????????????????

112
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

grande Porto Alegre. Desenvolve metodologias de vivências lúdicas utilizan-


do dispositivos móveis tecnológicos (equipamentos de registro digital). Seu
público alvo além dos estudantes de Ensino Fundamental e Médio de escolas
públicas de Porto Alegre; é constituído também pelos acadêmicos do Curso de
Educação Física e professores das escolas em que o projeto se realiza. O seu
desenvolvimento acontece no formato de oficinas semanais e atuações regula-
res ou pontuais em aulas de Educação Física, intercalando produções em ví-
deo das atividades vivenciadas pelos alunos participantes. Para os acadêmicos
de Educação Física, é a oportunidade de vivenciar a ação pedagógica através
da inserção do elemento lúdico em sua prática. Para os professores efetivos
das escolas participantes, é a oportunidade de interagir com os seus alunos
através de uma perspectiva diferenciada da ação rotineiro.
Estas vivências são aplicação efetiva de atividades que se constituem
em potencializadoras das capacidades cognitivas e afetivas de estudantes em
escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio de Porto Alegre. As vivên-
cias são desenvolvidas em consonância com os atuais estudos da neurociência
e das ciências cognitivas, considerando-se o uso das tecnologias interativas
como fomentadoras de potenciais de aprendizagem e formação humana.
As atividades lúdicas têm sido preteridas no universo escolar. É convic-
ção deste projeto que as vertentes de ação neste campo de experiências, atra-
vés de vivências integradas e ações interdisciplinares com outras áreas do cur-
rículo escolar, são fomentadores de competências e valores desejáveis nos PPPs
institucionais para a formação de um sujeito cidadão integral. Mobiliza parce-
la significativa dos alunos e acadêmicos, tendo por base o uso de tecnologias
digitais. A estratégia de construção das atividades e das vivências encontra-se
em consonância com as atuais pesquisas nas ciências cognitivas desenvolvidas
numa perspectiva interdisciplinar de diferentes conhecimentos Kishimoto nos
diz que:
Brincando [...] as crianças aprendem [...] a cooperar com os companheiros
[...], a obedecer às regras do jogo [...], a respeitar os direitos dos outros [...],
a acatar a autoridade [...], a assumir responsabilidades, aceitar penalidades
que lhe são impostas [...], a dar oportunidades aos demais [...], enfim, a
viver em sociedade (1993, p. 10).

Pensando-se nesta perspectiva, dando continuidade ao descrito em tra-


balhos anteriores (GONÇALVES, 2015), este projeto orienta-se por diferentes
princípios, destacando-se para este texto, de forma resumida, os seguintes:
1 Aprendizagem é um fenômeno complexo. Com este princípio, assu-
mimos com humildade que todos os fatos explicativos da aprendizagem ainda
são um arranhão epistemológico na forma como o cérebro de cada aluno se

113
GONÇALVES, C. • Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física: desenvolvendo competências...

estrutura, conferindo-lhe uma forma única e singular de perceber/sentir o


mundo e, com isto, uma forma igualmente singular de aprender este mundo.
Morin (2008) afirma a este respeito que a contribuição mais significativa das
neurociências neste campo foi desmistificar “equívocos conceituais” sobre li-
mites do cérebro humano e sua capacidade de se desenvolver. Neste sentido,
as evidências das neurociências sobre a plasticidade neural é fenômeno ainda
longe de compreensão plena no tocante a suas potencialidades e processos de
funcionamento. Mas se mantém uma convicção. O aprender é processo contí-
nuo ao longo de toda a vida. Estudar estas referências é tarefa do para compre-
ender a dimensão da aprendizagem como condição vital de existência.
2 Tecnologia afeta subjetividades. Autores como Bourg (2008) afirmam
que a humanidade está circunscrita ao seu entorno tecnológico (MATURA-
NA; VARELA, 1995). Isto significa que, desde as épocas imemoriais, a huma-
nidade emergiu de sua condição mais primitiva para a evolução de um cérebro
complexo, quando iniciou sua construção tecnológica de interação com o meio.
As próprias eras da pré-história são consideradas a partir de artefatos tecnoló-
gicos (Idade da Pedra, Idade do Bronze). Para os participantes do projeto (bol-
sistas, docentes), fica clara a importância em compreender como a tecnologia
afeta a constituição da subjetividade humana. Percebem-se fenômenos con-
temporâneos que anos atrás inexistiam. Se em décadas pré-digitais os alunos
apresentavam atestados médicos para ausentarem-se da escola, hoje o uso das
redes sociais constitui-se num fator de dispersão, inclusive dentro da sala de
aula. A tecnologia é uma presença na história humana. Para este projeto, o
que interessa são as diferentes dimensões em que o humano pode atuar entre a
realidade analógica, aumentada ou digital. Compreender e reconhecer as alte-
rações na subjetividade é evidência necessária para perceber na medida em
que começa a registrar em vídeo e foto todos os encontros das atividades do
subprojeto na escola.
3 Sensibilidade é reação local. Este princípio é derivado da afirmação
de Humprey (1995) quando diz – em uma época que o conceito de realidade
virtual ainda era incipiente e a realidade aumentada nem sequer era conside-
rado – que “ser sensível é ser capaz de reação local”. McLuhan (1986) alertava
que a tecnologia podia afastar a percepção imediata do humano de sua reali-
dade local, levando-o ao distanciamento de vivência imediata e sensível. Hum-
prey evidencia isto nas neurociências. Atualmente parece que a conexão via
web permite estar conectado com as mais diferentes possibilidades on line, e
uma incrível incapacidade de atuação vivencial com situações reais que acon-
tecem no cotidiano. Compreender esta realidade possibilita que a oferta de

114
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

experiências e vivências associadas a reflexões significativas se tornem um es-


paço motivador para os alunos. Basta olhar alguns eventos da juventude atual-
mente (tais como Comic-Con, League of Legends ou Anime Extreme), cuja afluên-
cia de milhares de jovens demonstra um desejo intenso de personificar na rea-
lidade existencial um personagem favorito, levando-os a caracterizarem-se como
tal. É importante compreender que a sensibilidade legítima é aquela que se
manifesta em seu entorno local. Daí a utilização de artefatos tecnológicos nas
vivências que o projeto desenvolve, oportunizando aos alunos participantes
perceberem-se de forma diferenciada em sua aventura de aprender de forma
diferenciada.
4 Lúdico como consciência de si e de competências pessoais. A apren-
dizagem é um fenômeno complexo, e a aprendizagem de algo novo é sempre
fator de desorganização do sujeito (Varela, 2003). Por isto exige disciplina e
determinação do aprendente para efetivar-se. Entretanto, a ciência depara-se
com o fato de sujeitos, ao longo de sua aprendizagem, realizarem a aprendiza-
gem de forma mais efetiva através de processos lúdicos. Alguns estudos nas
neurociências, como os de Marian Diamond, comprovaram que ratos, ao ex-
perimentarem ambientes com condições mais ricas de exploração, apresenta-
ram maior desenvolvimento de sinapses. Assim também sujeitos que, ao atin-
girem determinado patamar de ação, aprendem melhor na medida em que
permitem divertir-se com sua vivência. Conforme Marcellino (1990), existe
no lúdico uma possibilidade de aprendizagem significativa, mas também de
autoconhecimento como processo no desenvolvimento de competências ne-
cessárias para uma ação efetiva e realizadora do sujeito aprendente. No espa-
ço lúdico, as chances de erro em qualquer processo de aprendizagem são idên-
ticas a qualquer outro formato. A diferença está na forma como se encara o
erro. E, neste caso, investe-se na aprendizagem como construtiva a partir do
erro, observando-se os próprios limites nas simulações lúdicas e a capacidade
de rir de si mesmo como elemento essencial para uma aprendizagem significa-
tiva de competências sociais e emocionais no exercício docente.
Estes princípios (juntamente com outros) orientam as propostas de vi-
vências dos bolsistas, sejam em aulas ou em oficinas durante cada semestre.
Todo este conjunto de ações conflui para um evento semestral que reúne os
estudantes das escolas, bolsistas, professores e comunidade em geral num
momento integrativo de tecnologias e ludicidade permeada pela construção
de um humor inteligente. Denominou-se este evento de Dia do Lazer PIBID/
UFRGS.
O Dia do Lazer Esefid PIBID/UFRGS é um evento aberto e gratuito
que acontece a cada semestre. Seu objetivo é oportunizar espaço de criativida-

115
GONÇALVES, C. • Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física: desenvolvendo competências...

de e exercício de competências artísticas e de organização de grupo para alu-


nos das disciplinas de lazer do curso de Educação Física, alunos de escolas
estaduais e bolsistas PIBID. Seu público alvo são acadêmicos do Curso de
Educação Física, docentes e servidores UFRGS, familiares da comunidade
esefiana e alunos e professores da rede estadual de ensino atendidos pelo PIBID/
UFRGS. O evento intercala produções em vídeo e apresentações ao vivo de
esquetes e coreografias cover, construídas pelos alunos dos cursos de Educação
Física e da rede estadual PIBID, tendo por base o humor inteligente e saudá-
vel. O projeto justifica-se como espaço de exercício de criatividade e compe-
tências artísticas e trabalho em grupo numa perspectiva lúdica e saudável, opor-
tunizando espaço gratuito de entretenimento para a comunidade em geral.
Em cada semestre, uma comissão julgadora é formada, convidando-se perso-
nalidades do meio educacional e artístico do cenário do RS. Esta comissão
tem a difícil tarefa de definir quem a fez rir mais, pautado pela criatividade,
pelo humor inteligente e saudável. Já passou pelo Dia do Lazer a presidência
do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, a pró-reitoria de extensão, o Vice-
reitor da UFRGS, entre tantas outras personalidades.
Importante registrar que o formato do Dia do Lazer muda a cada mês,
como forma de criar novos desafios que estimulem as competências de traba-
lho em grupo, expressão pessoal e criatividade com bom humor. Descrever na
escrita o que a vivência do momento significa é um desafio deveras paradoxal,
uma vez que se busca resumir na dimensão das palavras aquilo que é intensa-
mente vivenciado no dia em que acontece. Ao longo de atuação do PIBID
Educação Física, todos os bolsistas empenharam-se na realização do Dia do
Lazer, em diferentes momentos, seja na construção de atividades próprias para
apresentação no respectivo dia, seja na mobilização dos alunos das escolas
públicas atendidos pelo nosso projeto. Em maior ou menor grau, sempre fo-
ram brilhantes e competentes ao trazerem suas propostas de apresentação, de-
monstrando competências organizacionais e expressivas, integrando alunos e
colegas num momento singular de humor.
O nascimento deste momento – Dia do Lazer – amparou-se nas seguin-
tes diretrizes.
a) Vivenciar o lúdico: Considerando-se a vivência como um fator im-
portante na consolidação de comportamentos desejáveis, o Dia do Lazer é um
momento que oportuniza uma experiência real de expressão pessoal e da ca-
pacidade de trabalhar em grupo. Em diferentes ocasiões, estudantes das esco-
las do PIBID, bem como os bolsistas, além dos acadêmicos manifestavam sua
ansiedade com a apresentação. Para a imensa maioria, seria sua primeira ma-
nifestação frente ao público. Entretanto, a possibilidade de fazê-lo de forma

116
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

lúdica aliviava este tensionamento, mas não retirava o paradoxo com que en-
saiaram exaustivamente disciplinados, para vivenciarem momentos com o ob-
jetivo de promover humor inteligente. A satisfação de cada um quando recebia
o merecido aplauso depois das risadas provocadas pela atuação, mostrava um
sorriso de satisfação recompensador pela tarefa cumprida e da percepção da
capacidade de fazer algo numa perspectiva distinta.
É possível perceber-se tal reação no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=bvFBfTSc70w
Pode-se chegar neste vídeo buscando pelas palavras “Santa Ceia” e
UFRGS.
b) Produção de vídeos e apresentações ao vivo: As atividades se alter-
nam entre apresentações ao vivo e produções em vídeo. Com isto, cria-se a
possibilidade daquele que, porventura, se entende como muito tímido para
subir ao palco ter a oportunidade de demonstrar sua criatividade através da
produção e da edição de material em vídeo. Em muitas situações a partir das
produções do vídeo, motivam-se a ir para o palco e ter a oportunidade da
experiência ao vivo. Tanto as experiências ao vivo como as produções em ví-
deo precisam respeitar uma regra: são de tempo curto e utiliza-se dotação or-
çamentária restrita... ou seja... fazer muito... com pouco.
Neste link, um exemplo da capacidade criativa na resolução de um de-
safio de produção de um filme
https://www.youtube.com/watch?v=i6F7KkHbWG8
Palavras-chave Power Rangers Esef
c) Utilização e exploração da tecnologia como elemento criativo: A
tecnologia como forma de integração entre diferentes faixas etárias e geração
de pais e filhos aproxima as famílias através da música. Pela primeira vez na
história, a tecnologia permite o resgate musical das gerações pré-internet, e os
nativos digitais podem conhecer de fato que estilo de canções seus pais viven-
ciaram e resgatar enquanto experiência atualizada o que fora aquele momento.
Este momento fica nítido no link abaixo
https://www.youtube.com/watch?v=5DhkzzjUT9A
Sobre isto, merece atenção a citação de Lanier quando questionado so-
bre as razões pelas quais as pessoas têm necessidade de criar realidades. Suas
palavras servem para a devida percepção de suas possibilidades:
Por causa das nossas limitações, somos criaturas muito estranhas. Cresce-
mos com nossos cérebros e corações capazes de imaginar qualquer univer-
so, mas nosso corpo pode ser somente humano. Queremos nos conectar
mutuamente, mas nossos meios para fazer isso são muito limitados. So-
mos separados uns dos outros por inúmeras circunstâncias. Podemos tro-

117
GONÇALVES, C. • Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física: desenvolvendo competências...

car palavras uns com os outros, tocar uns aos outros e fazer muitas coisas
mais, mas queremos estar mais ligados. Queremos ser capazes de criar
qualquer universo em nossa cabeça de que nosso coração goste. Lutamos
sempre contra as limitações da realidade física [...] (p. 95-97).

Neste sentido, o Dia do Lazer oportuniza uma oportunidade única de


conexão com o seu grupo de trabalho e com o público que apreciará sua pro-
dução.
d) Autoria criativa na produção: A possibilidade do acadêmico, bol-
sista ou estudante sair da condição de consumidor de conteúdo digital e pas-
sar a ser produtor (grifo nosso) de conteúdo vivencial concreto e disponibili-
zado no universo virtual, representa a possibilidade de exercício de uma com-
petência criativa que, além de mobilizadora, começa a fazer deste estudante
(aluno de escola pública, acadêmico e bolsista EFI) perceber que a ação no
mundo acontece a partir de uma decisão de tornar real uma proposta plane-
jada, executada e ensaiada em momentos anteriores para um desfecho con-
forme todas as etapas elaboradas. Como diz Merleau-Ponty: “Se o corpo
pode simbolizar a existência é porque a realiza e porque é a sua atualidade”
(1996, p. 227).

Figura 2: Público presente (alunos, acadêmicos e pais)

Fonte: Arquivo do Projeto

118
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

O Dia do Lazer mobiliza parcela significativa dos acadêmicos das disci-


plinas de lazer na organização, na execução e na avaliação de atividades dife-
renciadas, tendo por base o uso de tecnologias digitais e a realização de tarefas
singulares (esquetes, covers, produção de vídeos, etc.). Funciona como labo-
ratório de criação, organização coletiva e desenvolvimento de competências
relacionais e cognitivas para alunos de graduação em Educação Física da
UFRGS, bolsistas PIBID-CAPES e escolas estaduais. A estratégia de constru-
ção das atividades e das vivências encontra-se em consonância com as atuais
pesquisas nas neurociências desenvolvidas por este docente numa perspectiva
interdisciplinar de conhecimentos de diferentes áreas.
Os links que se disponibilizaram aqui são publicação que os próprios
alunos (acadêmicos, bolsistas PIBID ou estudantes) fizeram em sites de con-
teúdo público como forma de registrarem e compartilharem a alegria e a cele-
bração das vivências que experimentaram. É uma pequena fração do que acon-
tece de fato na ocasião em que muitos pais vêm acompanhar seus filhos e,
além das risadas, retornam para seus lares na convicção de que vivenciaram
momentos de humor saudável e inteligente e que um outro mundo é possível.
Para encerrar este pequeno texto que tenta traduzir em palavras a dimensão
das vivências e emoções de todos que de alguma forma trabalharam pela rea-
lização do Dia do Lazer PIBID-UFRGS, transcrevo as palavras do hoje reitor
da UFRGS Prof. Dr. Rui Oppermann, registradas na Ata 1194-14 do Conse-
lho Universitário da UFRGS, ao participar como jurado, quando diz que “pas-
sou uma tarde maravilhosa e recarregou toda sua certeza de que seus estudan-
tes e comunidade tinham uma missão importantíssima de buscar uma socie-
dade melhor. Aqueles indivíduos que fizeram de tudo um pouco mostraram
que seriam excelentes profissionais da área” (ATA 1194-14 Conselho Univer-
sitário UFRGS linhas 375 a 380).
Porém, qualquer importância vivencial, qualquer aprendizagem signifi-
cativa derivada do Dia do Lazer não existiria sem a dedicação, a competência
e a atuação dos bolsistas PIBID que atuam neste projeto ao longo de sua exis-
tência. O empenho deles em cumprir suas tarefas de iniciação docente aliada à
capacidade mobilizadora junto aos estudantes confere a estes a oportunidade
de exercitarem sua criatividade de forma a se tornarem autores de ações pró-
prias no exercício de competências pessoais.
Tendo a experiência lúdica como eixo desta ação docente, é importante
destacar o que Gonçalves Junior (2004) nos lembra ao fazer referência sobre a
o significado da palavra “recreação” em sua etimologia. Apoiando-se em au-
tores como Cunha (1997) e Ferreira (2004), registra que “recreação” é uma
expressão proveniente, possivelmente, do latim recreatio-onis, a partir do radi-

119
GONÇALVES, C. • Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física: desenvolvendo competências...

cal recreare (recrear), mais o sufixo ção (criação), significando aquilo que causa
prazer, alegria, e satisfação, envolvendo de alguma forma o querer da pessoa
no desenvolvimento de sua espontaneidade. Conforme diz o autor “a expres-
são recreatio-onis também origina a palavra recriação, ou seja, ato ou efeito de
recriar” (GONÇALVES JUNIOR, 2004, p. 130).
Nesta perspectiva, um professor-lúdico é aquele capaz de estimular e
também acolher as diferentes produções lúdicas de seus educandos, reconhe-
cendo nelas a conexão com o aprender significativo enquanto processo de de-
senvolvimento pessoal. No jogo compartilhado, na produção tecnológica pro-
duzida, o aluno acolhe fantasias, provoca o despertar da criatividade e do de-
sejo de saber.
Não se trata de conduzir uma brincadeira ou deixar que os alunos brin-
quem livremente, mas de provocar um “brincar com”, no uso responsável da
tecnologia com um olhar de humor saudável. Assim, compartilhar suas pro-
duções – brinquedos, personagens, enredos –, de instigar a curiosidade deste
aluno, estimulando-o a descobrir e a descobrir-se, a criar e a criar-se. Dito de
outra forma, de tomar em consideração o desejo de conhecer, o que implica
conhecer-se. Ao compartilhar as brincadeiras, o professor compartilha tam-
bém a imaginação colocada em cena pelos alunos de uma forma lúdica e sau-
davelmente elaborada. Segundo Oliveira (2006a), o humor, o entusiasmo e a
alegria são elementos fundamentais à educação. Com certeza, possibilitam a
constituição de ambiente acolhedor, que convida os alunos ao desejo de apren-
der de outras formas, a fazer de sua imaginação criativa um alimento para a
construção de conhecimentos de forma autoral e produtiva.
Isso implica ir além de propor apenas brincadeiras ou jogos para os alu-
nos. Exige do professor/bolsista uma disponibilidade para viver (grifo nosso)
o lúdico, fazendo do lúdico um recurso efetivamente educativo. Isso represen-
ta disponibilidade para acolher todo um universo subjetivo circulante no cená-
rio ficcional constituído pela atividade lúdica. Porém, parece existir um dis-
tanciamento entre o conhecimento do funcionamento do psiquismo e desen-
volvimento cerebral dos alunos e suas implicações para o aprendizado e a for-
mação do professor. Este é um fato que questiona a formação do professor
longe de possibilitar um acolhimento diferenciado e efetivo, se, desde a forma-
ção inicial, na graduação, até a formação continuada, pouco se aborda o fun-
cionamento e o desenvolvimento do humano na perspectiva lúdica, privile-
giando apenas os aspectos formais conteudistas mais comuns em muitos mo-
delos de aprendizagem.

120
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Figura 3: Apresentação de escola

Fonte: Arquivo do Projeto

Referências
ATA 1194-14. Conselho Universitário UFRGS, linhas 375 a 380.
BOURG, D. O Homem Artifício. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, 1997.
DIAMOND M. C.; Krech D.; ROSENZWEIG, M. R. Os Efeitos de um Ambiente
Enriquecido na Histologia do Córtex Cerebral do Rato, J Comp Neurol, n. 123, p. 111-
120, 1964.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004.
HUMPREY, N. Uma história da Mente. São Paulo: Campus, 1995.
GONÇALVES JUNIOR, L. Atividade recreativa na escola: uma educação fundamen-
tal (de prazer). In: SCHWARTZ, G. M. (Org.). Atividades recreativas. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2004, p. 130-136.

121
GONÇALVES, C. • Dia do Lazer PIBID/UFRGS-Educação Física: desenvolvendo competências...

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos tradicionais infantil: o jogo, a criança e a educa-


ção. Petrópolis: Vozes 1993.
LANIER, J. In: GRECCO, A. Homens de Ciência. São Paulo: Manole. 2001.
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Workshopsy, 1995.
McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix,
1986.
MERLAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Livraria Freitas Bastos,
1996.
MORIN, E. A religação dos saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
OLIVEIRA, M. L. Escola não é lugar de brincar? In: ARANTES, V. A. (Org.). Humor
e alegria na educação. São Paulo: Summus, 2006, p. 75-102.
VARELA, F. et al. A mente incorporada. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

122
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Os processos de criação em dança


em aulas de Educação Artística
na rede pública
Ana Paula Silva dos Reis1
Flavia Pilla do Valle2

Introdução
Este texto pretende expor algumas reflexões sobre metodologias e técni-
cas de ensino através dos processos de criação em dança que são utilizados no
decorrer dos anos na disciplina de Educação Artística dos anos finais, na Es-
cola Estadual de Ensino Fundamental Fabíola Pinto Dornelles, na cidade de
Porto Alegre, ministrada pela supervisora e o bolsista do Programa Institucio-
nal de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Pretende, assim, relatar uma
experiência de docência em dança, articulando-a com saberes da criação e do
ensino de dança. Isso envolve: definir o entendimento de criação em dança
neste trabalho e os conceitos de metodologias e técnicas de ensino na dança;
narrar as escolhas pedagógicas (objetivos, metodologia, avaliação) e o desen-
rolar das 20 aulas do assunto (estrutura geral das aulas); e, por fim, refletir
sobre as escolhas docentes, suas mudanças de rumo e as próprias concepções
pedagógicas que subsidiam o fazer.
A dança no RS é ainda recente no currículo, e discutir seus encaminha-
mentos é um importante instrumento de formação em todos os níveis, seja dos
futuros professores seja de educação continuada. Desta forma, este trabalho
se justifica por compartilhar experiências artístico-educacionais. Opta-se por
observar e refletir as aulas em questão, narrando-as na pesquisa. Contá-las
pode ajudar futuros professores a pensar a docência e a abrir caminhos para
trocas entre os pares.
São levantados os seguintes questionamentos: Como se dão as cria-
ções no contexto escolar? De que modos os alunos produzem suas sequências

1
Supervisora, PIBID/UFRGS.
2
Coordenadora, PIBID/UFRGS.

123
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

de dança? Que técnicas de aula são utilizadas pela professora e pelo bolsista
do PIBID?

Abordagens metodológicas

No relato de experiência das aulas, as marcas de autoria fazem a dife-


rença. As características de autoria são reveladas quando o autor se coloca
como sujeito de uma experiência que mobilizou sentimentos. Utiliza-se a ob-
servação pessoal, sobre a qual Negrine (2004, p. 64) destaca que “[...] a ‘obser-
vação inteligente’ das coisas nunca está isolada das nossas crenças, valores e
história de vida, ela sempre provoca reflexões sobre o observado”. O autor
ainda destaca que “deve ser uma observação voluntária e seletiva, isto é, deve-
mos ir a campo com certa determinação, mais do que observar” (NEGRINE,
2004, p. 65)
Observando as pessoas em seu contexto natural e diário, entrevistando-as e
analisando seus relatos e documentos, se obtém um conhecimento direto da
realidade, não filtrada por definições conceituais, operacionais e escalas pre-
viamente estruturadas (ARNAL; RINCÓN; LATORRE, 1990, p. 103, apud
GAYA, 2008, p. 56).

Esta pesquisa envolve uma turma de 7º ano de uma escola estadual da


cidade de Porto Alegre. Ela é composta de sete meninos e oito meninas com
idades entre 14 e16 anos. Foi dado aos alunos um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido para autorização pelos pais e conhecimento deles próprios
da experiência nesta pesquisa. Mesmo assim, os alunos não têm identificação
direta nesse trabalho.
O registro das informações deu-se por meio de diário de campo, com-
posto por anotações da professora, registros em vídeos e fotos.
A pesquisa ocorreu através dos seguintes passos:
– Seleção de material para revisão bibliográfica sobre o assunto.
– Organização, revisão e afinamento do planejamento.
– Elaboração dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
– Realização das aulas (20 aulas no total) e registro no diário de campo.
– Cruzamento dos referenciais teóricos com os dados produzidos no
diário de campo.
– Redação final do artigo.
As análises dos dados buscam responder aos objetivos do trabalho as-
sim como cruzar com as análises dos materiais já produzidos no assunto até
então.

124
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Embasamento teórico

A pesquisa ancora-se em literaturas que contextualizam as temáticas de


dança na escola, arte-educação, além de processos de criação em dança, a fim
de nortear e fundamentar o estudo.
É comum em escolas ainda ver algumas pessoas relacionarem a arte às
figuras geométricas, desenhos abstratos, cópias de coreografias, apresentações
em datas comemorativas ou ainda reduzirem a arte a uma ‘moeda de troca’
em que, caso o aluno não obtenha uma boa nota em determinada disciplina,
como Português e Matemática, ele não poderá participar da aula, já que o
conteúdo de artes não seria indispensável como os demais. Estes são apenas
alguns dos preconceitos que permeiam não só gestores escolares e professores,
mas também pais e alunos, que reproduzem falas, como: “artes não reprova
mesmo” ou “em que vou utilizar artes depois do colégio”, e ainda “artes não vai
me ajudar a conseguir um bom emprego”. O julgamento errado ao conteúdo de
artes vai frequentemente ao encontro destas questões que visam resultados rela-
cionados à aprovação ou ao viés profissional do aluno no futuro.
Fazer, não para vender. Realizar, não para possuir. Dedicar-se, não por um
pagamento. Construir, não pela utilidade. Esforçar-se, não para vencer. Co-
nhecer, não para competir. Unir-se aos outros, não pelo retorno individual,
mas pela construção de algo maior que as individualidades e de posse so-
cialmente coletiva. Esses são alguns valores presentes no fazer/fruir/pensar
da arte e que podem e devem estar presentes no ensino de Arte. Ensinar arte
não pode se desvincular do fazer/pensar arte (MARQUES; BRAZIL, 2012,
p. 33).

Mostrar para estes alunos, pais e professores que a arte na escola pode
ter um papel tão importante quanto qualquer outra disciplina não é uma tare-
fa fácil para o professor. De qualquer forma, é fundamental que ele assuma
uma função de articulador, mostrando para estes jovens que as linguagens
artísticas possibilitam formas diferentes de ler e vivenciar o mundo, tornando-
os seres mais múltiplos, pelo fato de vivenciarem esses saberes, conforme elen-
ca Marques, na citação acima.
Existem hoje, diversas teses, livros e artigos que argumentam em favor
da arte na escola; inclusive mudanças na legislação1 que incluem habilitações
artísticas como: a dança, a música e o teatro no currículo escolar. Mas ainda

3
A Lei 13.278/2016 inclui as artes visuais, a dança, a música e o teatro nos currículos dos
diversos níveis da Educação Básica. A nova lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB – Lei 9.394/1996), estabelecendo prazo de cinco anos para que os sistemas de
ensino promovam a formação de professores para implantar esses componentes curriculares
no Ensino Infantil, Fundamental e Médio.

125
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

assim, o professor de artes encontra algumas resistências em relação ao con-


teúdo estudado e até mesmo à metodologia das aulas. Na área da dança, os
possíveis objetivos de uma aula de dança na escola – que podem envolver des-
de a criação, a expressão até a apreciação, causam estranhamento aos alunos
no início das aulas. Isto porque, exceto na Educação Física, as disciplinas em
geral não direcionam a atenção ao corpo do aluno ou ao seu movimento e,
tampouco, permitem espaço para que o aluno crie ou se expresse através de
ambos. Na arte, mais do que o resultado, o processo que o aluno leva para
criar uma obra ou para expressar sua ideia ou até mesmo um sentimento, deve
ser valorizado. “Dançar é tão importante para uma criança quanto falar, con-
tar ou aprender geografia. É fundamental para a criança, que nasce dançando,
não desaprender essa linguagem pela influência de uma educação repressiva e
frustrante [...]” (BÉJART apud GARAUDY, 1980, p. 10).
Trazer para as aulas exemplos de que a arte pode dialogar com as mais
variadas áreas, buscar referências no cotidiano dos estudantes, aproximá-los
de diferentes culturas e propor experiências artísticas que deem vazão às suas
imaginações e ideais, são propostas pedagógicas que podem despertar o inte-
resse destes jovens e fazê-los compreender que o campo de conhecimento de
arte pode ser tão amplo e significativo como qualquer outro.
É principalmente o professor de arte que tem entre suas funções abrir as
portas e construir para/com os estudantes pontes entre o “mundo da arte lá
de fora” e o universo da arte na escola, construindo pontes de mão dupla, ou
seja, articulando “a arte lá de fora” com o projeto político pedagógico e o
planejamento, os seus e o da escola (MARQUES; BRAZIL, 2012, p. 54).

Outra forma de aproximar estes alunos da arte e fazer com que eles se
sintam inseridos neste “mundo” é fazê-los perceber que as linguagens artísti-
cas buscam inspiração em diversos elementos, como por exemplo: diferentes
culturas, questões políticas, nos sentimentos ou emoções, na natureza e até
mesmo no cotidiano. Este último é um dos motes utilizados nesta experiência
em sala de aula para propor tarefas de criação.
Desta forma, os alunos são questionados sempre sobre o que costumam
fazer em casa com a família, o que gostam de fazer com os amigos, se praticam
alguma atividade física ou se já praticaram no passado, etc. Tenta-se fazer com
que eles busquem referências que já estão acostumados a vivenciar ou que
gostam de praticar no dia a dia e transformem isso em dança, mesmo que num
primeiro momento, sem perceber de fato que o estão fazendo. Faço dessa situ-
ação uma relação com a seguinte citação:
Em situações assim, no momento em que eles apresentam o resultado de
seus exercícios de composição, aparece a diversidade de referências (linha-

126
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

gens claras) que operam nas pessoas que compõem o grupo. É com a baga-
gem que existe em cada corpo que cada tarefa se realiza. Isso no trabalho
individual, e especialmente no início do processo (PALUDO, 2015, p. 86).

Apesar de fazer com que o aluno busque subsídios mais próximos da sua
rotina e assim deixá-lo mais confortável na tarefa de criação, procura-se aos
poucos qualificar o seu movimento. Esse processo envolve a fluidez e a consciên-
cia do movimento no corpo e demanda tempo. Demanda também extrema aten-
ção por parte dos professores para compreender a proposta de criação do aluno
e orientar o que pode ser aproveitado dali e o que deve ser repensado.
Do estudante que acaba de ser introduzido a uma arte de fazer danças não
será esperado produzir uma obra de arte com o mesmo nível de sofisticação
que um estudante que tem dois ou três anos de treinamento. Através da
experiência e prática contínua, o compositor gradualmente adquire conhe-
cimento de material de movimento e métodos de se construir com o material.
O grau desse conhecimento afeta o nível resultante de sofisticação nas cria-
ções de dança (SMITH-AUTARD, 2000, p. 4).

Os movimentos que surgem nas tarefas de criação são variados. Alguns


provêm de movimentos semelhantes aos de lutas, outros remetem ao futebol,
outros ao basquete, alguns são movimentos da ginástica, ou de jogos do vi-
deogame, etc. A partir da criação desses movimentos, há um processo de acu-
mulação deles e de trabalho nas transições entre eles.
Os movimentos de transição do corpo não são próprios apenas da dança:
encontram-se em todos os gestos e movimentos da vida comum. Mas a dan-
ça transforma-os, condensando-os e concentrando-os quando se achavam
dispersos, conectando-os diretamente, quando entravam em sequências nar-
rativas ao serviço de movimentos significativos, ampliando-os quando eram
imperceptíveis na vida, pondo-os no próprio centro do movimento dançado
(GIL, 2004, p. 92).

Discute-se, a seguir, acerca das tarefas de criação nas aulas de arte e a


possibilidade disso potencializar a capacidade de criação do aluno. Para tanto,
é relevante discorrermos sobre a dança no currículo escolar e como vêm se
processando essas composições artísticas em dança.

Relato da experiência em si

A partir da ideia de reconhecer e explorar os movimentos cotidianos e


mais conhecidos, realizou-se uma proposta para a turma. A Escola Estadual
de Ensino Fundamental Fabíola Pinto Dornelles, diferente da maioria das es-
colas da rede pública, possui uma sala anexa ao ginásio com uma estrutura
adequada para o trabalho de dança na escola. A sala de dança da escola tem

127
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

linóleo, espelho e barras de ballet, que foram cedidos por um grupo de dança
da capital. A proposta iniciou a partir de uma aula inspirada em poesias, na
qual cada um dos alunos deveria abrir uma página aleatória de um livro desse
assunto e ler para a turma. No final da aula, após alguns comentários sobre
interpretação e voz em leituras, pediu-se que os alunos escrevessem para o
próximo encontro um texto em forma de poesia que narrasse o modo como
eles se veem no mundo ou como eles acreditam que as pessoas os veem.
Denominou-se esta aula como o “estudo da poesia a partir de si”. Con-
versamos sobre a dificuldade que alguns relataram ter tido em escrever um
texto que lhes soasse em tom poético. Isso aconteceu por ser difícil falar de si?
Foi devido a ser a primeira vez que alguns leram poesias em uma aula? Foi
uma experiência prazerosa? Logo depois, as poesias foram recolhidas, emba-
ralhadas e entregues novamente, solicitando que cada aluno lesse para a tur-
ma o que estava escrito. Nenhum dos alunos leu a sua própria poesia, e, de-
pois que cada um deles lia, foi pedido que escrevessem num papel de qual
colega eles acreditavam ser aquelas palavras e por quê. No final da aula, dispu-
seram-se as poesias e o que eles tinham escrito sobre o que leram numa mesa,
para que cada um recolhesse, por vez, a sua poesia e a impressão do colega.
Na terceira aula, houve um laboratório de criação em que os alunos
deveriam criar uma dança composta de gestuais que expressassem o que ti-
nham escrito nas suas poesias, ou seja, gestuais que evidenciassem como eles
se enxergavam ou como eles achavam que os outros os enxergavam.
A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o
sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpre-
ta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coi-
sas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a
certas problematizações e no interior de certas práticas (LARROSA, 1994,
p. 42).

Como os encontros aconteciam duas vezes na semana, porém em um


curto período de 45 minutos cada encontro, esse laboratório, além de algumas
atividades planejadas, previa também um encontro da semana dedicado ape-
nas para a criação da gestualidade. Nestes encontros, o bolsista do PIBID e a
professora orientavam os alunos com ideias e sugestões para as suas criações.
Todas as aulas, até os ensaios, tiveram o propósito de auxiliar no máximo de
elementos de criação como a questão espacial, expressiva, da forma do gesto,
da qualidade de movimento, etc. Além de apresentar a sua criação na penúlti-
ma aula do bimestre, eles tinham também que entregar um memorial com
anotações do que sentiam durante as criações, ilustrações que poderiam ser
recortes ou até mesmo desenhos próprios. Enfim, eles deviam fazer uma espé-
cie de um diário do processo de produção desta experiência.

128
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Foi de fato a partir da quarta aula que se iniciou o “estudo da transpo-


sição da poesia para o corpo”, em que esclarecemos as dúvidas que os alu-
nos lançaram quando apresentamos a ideia do laboratório de criação da ges-
tualidade. Iniciamos, então, com uma atividade, em que os alunos dispostos
em círculo tinham que olhar para o colega do lado durante cinco segundos
sem mexer o corpo, apenas a cabeça movendo, e assim sucessivamente. De-
pois, um de cada vez olhava durante cinco segundos para um colega aleató-
rio na roda, e este deveria repetir a ação. Em seguida, foi realizado o jogo do
“zip-zap” que também trabalha esta questão do olhar e do foco, em que “zip”
é um movimento com as mãos para o colega que está ao seu lado na roda e
“zap” é o mesmo movimento para um colega aleatório na roda. Os alunos
gostaram muito das atividades e pediram para repeti-las em outra oportuni-
dade. Além disso, observou-se que houve muita concentração para o desen-
volvimento das tarefas, o que muitas vezes é difícil de ser alcançado em uma
turma de pré-adolescentes. Ainda nesta aula, foi feito um jogo, no qual um
aluno escolhia um colega e falava uma imagem que deveria ser representada
pelo escolhido; por exemplo: “ondas do mar com ressaca” ou “ondas do mar
tranquilas”.
A partir da quinta aula, os encontros alternavam-se entre atividades que
orientassem os alunos no estudo da “dramatização da gestualidade” e labora-
tórios de criação individuais. Ainda neste dia, foi solicitado que os alunos
escolhessem um colega para ajudá-lo na sua composição.
A sexta aula iniciou com uma caminhada aleatória pela sala, enquanto
se davam alguns comandos aos alunos, tais como: caminhar mais lento, mais
rápido, mudando as direções, olhar para o colega por quem passava etc. De-
pois, os alunos sorteavam ações levadas pelos professores e deveriam reprodu-
zi-las apenas com uma parte do corpo. Exemplo: ação chicotear com o braço,
ação flutuar com as pernas. Em seguida eles tinham que fazer, em grupo, uma
sequência de movimentos com as ações sorteadas em ordem crescente e, de-
pois, em ordem decrescente.
Já a sétima aula foi dedicada à criação da gestualidade, e cada aluno
deveria escolher um colega para ser seu diretor por uma aula. Além disso,
solicitou-se que cada aluno trouxesse para a próxima aula um objeto que tives-
se para si algum tipo de significado.
A proposta da oitava aula era estudar a “utilização de elementos cêni-
cos” em uma determinada ação. Foi feita, então, uma atividade em que cada
aluno deveria pensar e testar como utilizar na sua criação o objeto que trouxe-
ra para a aula. Após os alunos experimentarem seus trabalhos agora com um
objeto, conversou-se sobre o uso de elementos cênicos na dança e como eles

129
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

podem favorecer um trabalho. A nona aula foi dedicada à criação da gestuali-


dade com os objetos cênicos.
Na décima aula, os professores decidiram fazer uma apresentação-teste
da gestualidade, pois observou-se que alguns alunos estavam utilizando os en-
contros dedicados à criação apenas para brincadeiras, e outros estavam muito
angustiados com a data da apresentação. Neste dia, logo após mostrarem em
que fase estava a sua criação, faziam-se alguns comentários sobre os trabalhos
dizendo se estava num bom caminho, se precisavam trabalhar mais, se o obje-
to estava sendo bem utilizado ou não, etc. Percebeu-se que os alunos que esta-
vam brincando nas últimas aulas, sentiram-se um pouco confusos no momen-
to da apresentação, reflexo de pouca dedicação e interesse nas últimas aulas.
Apesar disso, houve surpresas boas por parte de alguns, que tinham trabalhos
bem elaborados.
A aula seguinte, décima primeira, foi dedicada à criação da gestualida-
de pensando sobre as considerações que os professores haviam lhes dado. Além
disso, houve mudanças de rumo em alguns trabalhos. Dois alunos, por exem-
plo, solicitaram que apresentassem o trabalho em dupla, pois iriam unir a ideia
de ambos.
A partir da décima segunda aula, demos início ao “estudo do espaço” para
a composição da gestualidade. O pibidiano orientou um exercício em que os alu-
nos sorteavam tarefas para fazerem na criação da gestualidade, por exemplo: “fa-
zer a sua gestualidade de trás para frente”, ou “fazer a sua gestualidade sem sair do
lugar”. Os alunos relataram que acharam o exercício difícil, por outro lado disse-
ram também que se sentiram “desafiados” e que gostaram de ter feito. No final da
aula, pediu-se que eles trouxessem uma trilha sonora para a sua gestualidade. Na
aula seguinte, além dos alunos experimentarem suas criações, eles também testa-
ram se a trilha sonora que escolheram fazia sentido para a gestualidade.
Ainda sobre o “estudo do espaço”, a décima quarta aula iniciou com
uma caminhada aleatória em que o professor jogava uma bolinha de papel
para um aluno, e este iniciava uma contagem e jogava para outro colega, e
assim consequentemente até que todos tivessem pegado a bola de papel. A
regra era não parar a caminhada para jogar a bola de papel e também não ficar
muito tempo pensando qual colega ainda não tinha pegado a bola. A proposta
desta aula era pensar na trajetória da gestualidade no espaço e experimentá-la
pela sala de dança, um de cada vez. Logo depois, os professores organizaram
as barras de balé móveis que havia na sala para delimitar um espaço onde os
alunos deveriam repetir a sua trajetória, dessa vez todos juntos. Repetimos
duas vezes, sendo que em cada uma delas o espaço diminuía e inserimos al-
guns bancos como obstáculos.

130
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

As quatro aulas seguintes foram dedicadas aos ensaios dos alunos para
o dia da apresentação da gestualidade. Durante esses ensaios, procurava-se
dar orientações, mas com o cuidado de não modificar muito o trabalho do
aluno, a fim de não interferir no seu produto final.
Na décima nona aula, realizamos as apresentações das gestualidades, e
os alunos entregaram os memoriais. Já na vigésima aula, fez-se uma roda de
comentários sobre a apresentação da gestualidade e os memoriais.
No dia da apresentação, os professores sentiram como se estivessem
conhecendo os alunos pela primeira vez, pois podia-se ver, em alguns, particu-
laridades, aspirações, características que antes ainda não se havia observado e
que provavelmente eles também ainda não haviam tido a oportunidade de des-
cobrir em si mesmos para revelar aos outros.
A unicidade do indivíduo, a busca pela singularidade de uma linguagem
própria são fatores que movem a criação em arte e é onde ocorrem inúmeras
transformações com o objetivo de dar vida a um produto cultural que pode,
ou não, pré-existir (ASSMANN, 2014, p. 2).

Uma das alunas inspirou-se na sua religião, pois acreditava que existia
muito tabu e preconceito e gostaria que as pessoas respeitassem. Um aluno
que costuma publicar vídeos na internet filmou o seu cotidiano, projetou o
vídeo e o reproduziu ao mesmo tempo. Outra aluna distribuiu balas aos cole-
gas e explicou que a escolha da bala “era porque era dura, mas ao mesmo
tempo doce”, e era assim que ela se enxergava. No final fez uma movimenta-
ção que, segundo ela, representava a dureza e a doçura da bala e dela mesma.
Uma terceira aluna gravou um áudio da sua poesia e reproduzia em movimen-
tação com o uso de alguns elementos cênicos, como cartas (que eram citadas
no áudio) e lenço, pois ela fazia dança do ventre.
Teve também dois alunos que fizeram a gestualidade em dupla. Ela lia
versos da poesia de ambos, enquanto ele, em outro ponto da sala a desenhava.
Em seguida os dois faziam uma movimentação juntos, caminhavam e saíam
da sala de mãos dadas. Relataram depois que quiseram representar coisas que
ambos gostam de fazer, como ler e desenhar, e o quanto a presença dele dava
suporte para ela.
Apesar da boa produção da maior parte da turma, dois alunos não conse-
guiram fazer a apresentação: um porque não conseguiu superar a timidez e no
momento da apresentação “improvisou qualquer coisa”, quando lhe dei a opor-
tunidade de tentar, e outro, porque não conseguiu desenvolver o trabalho, pois
brincou nas aulas dedicadas à criação. É fato também que a timidez esteve presen-
te na maioria dos alunos, mesmo os que apresentaram, pois nas aulas anterio-
res em que fizemos o ensaio final, exceto os dois alunos que não apresentaram,

131
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

todos se saíram muito bem, gerando uma expectativa muito grande em mim e
no pibidiano, principalmente por tudo o que se produziu durante os dois meses
de aula. De qualquer forma, o motivo desta timidez pode ter sido a presença de
convidados que foram até a escola para assistir as apresentações.
Na aula seguinte, fizemos uma roda de conversa na qual cada um falava
sobre o seu trabalho, numa espécie de avaliação e discussão conjunta. O que
mais chamou atenção nas falas foi que a grande maioria dos alunos disse que
puderam “mostrar o que são”. Houve também alguns que disseram que gosta-
ram das aulas, acharam diferente de tudo que já tinham feito, pois nas aulas
dedicadas à criação “era livre, mas ao mesmo tempo não era. Já que a professo-
ra cobrava muito”. Também a maioria disse que achou muito difícil transpor
para o corpo o texto que tinham escrito no início do bimestre. Ainda um que
relatou que “antes das aulas não imaginava que isso podia ser arte”.
Essa experiência levou às seguintes reflexões: porque a escola até hoje
tende a padronizar estes alunos? É somente a escola que os padroniza? Por con-
ta desta “padronização”, estes alunos assumem características, gostos, pensa-
mentos ou ideais que não condizem com eles mesmos? Tal qual os pensadores
da dança colocam: “um único movimento, ou uma sequência de movimentos,
deve revelar, ao mesmo tempo, o caráter de quem o realiza, o fim pretendido, os
obstáculos exteriores e os conflitos interiores que nascem deste esforço” (LA-
BAN, apud GARAUDY, 1980, p. 113).
Durante o bimestre, apareceu o quanto de criatividade e potencial esses
alunos carregam dentro de si. Acredita-se que mesmo os que não conseguiram
produzir, independente do motivo, tinham muito a acrescentar para as aulas, e
que essa negação ao trabalho pode ser um reflexo do que esta ‘padronização’
oferece aos alunos, mas que a criação em dança na escola pode trabalhar e de-
senvolver desde o estímulo à reflexão, da fruição estética, ao exercício do corpo.
A criação se dá através de inimagináveis e incontáveis possibilidades de
resoluções/combinações com diferentes materiais que resultarão na obra de
arte como tal, e essas combinações dependem do envolvimento, da sensibi-
lidade de cada artista. Para que possamos ser criativos ou para desenvolver
a criatividade é necessário que o ambiente seja favorável, estimulador, ou
que pelo menos permita nossa manifestação de algum modo. Do contrário,
matam-se possibilidades de desenvolvimento da criatividade, pois é difícil
ser criativo num ambiente hostilizante, que não aceita idéias novas e/ou que
reprime o que é fora do comum (FIAMONCINI, 2003, p. 63).

As técnicas: ensino e criação


Segundo Libâneo (1990, p. 53), “técnicas, recursos ou meios de ensi-
no são complementos da metodologia colocados à disposição do professor

132
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

para o enriquecimento do processo de ensino”. Ainda segundo o autor, “o


método é o caminho para atingir um objetivo” (1990, p. 150). Partindo deste
pensamento, entendo que um dos métodos utilizados nas aulas passa pelo
reconhecimento do aluno e seu universo através de autonarrações de si, seja
de forma verbal ou escrita. Posteriormente, transpõe-se a narrativa para o
movimento corporal e almeja-se fazer com que o aluno se reconheça como
parte integrante e importante na aula.Um exemplo disso são as primeiras
aulas no início do ano, nas quais se solicita que os alunos novos se apresen-
tem citando quem são, o que gostam ou não de fazer, o que fazem de lazer,
como é a sua família etc. Ou então, no caso de alunos antigos, pede-se que se
reapresentem ou escrevam se algo neles mudou de um ano para o outro,
quais foram as mudanças e porque eles acreditam que elas aconteceram, o
que esperam deste ano nas aulas de artes etc. Essa atividade é importante
para que se consiga não só conhecê-los, mas para que haja uma aproximação
maior entre professor e aluno.
A partir da escrita no início do ano, propõe-se aos alunos atividades de
reconhecimento em que possam refletir suas características pessoais, quais são
as habilidades corporais que eles já vivenciaram, como os seus corpos atuam
no mundo, quais são as bagagens que eles trazem com eles e como elas reper-
cutem na maneira como eles são ou desejam ser na sociedade. Essas ativida-
des são importantes para esta análise, pois grande parte do material que se
utiliza para as criações que são produzidas em aula surge deles próprios. Eles
são os agentes e o objeto de estudo das aulas, ancoradas no pensamento de
Klauss Vianna (2005, p. 41) que diz que “é impossível dissociar vida de sala de
aula”. Considerando que cada um possui individualidades, o professor deve
estar atento e valorizar o que cada aluno pode oferecer para a disciplina. E
mesmo em um coletivo que é uma sala de aula, esta é uma forma de trabalho
capaz de fazer com que o aluno obtenha um melhor aproveitamento do con-
teúdo e possa reconhecer-se como indivíduo na sociedade.
É possível notar que alguns alunos ainda apresentam certa resistência
às aulas de dança e às linguagens artísticas. Eles acreditam que estas são algo
a que eles não podem ter acesso, pois fazem parte de um mundo apenas de
pessoas com maior poder aquisitivo e que apenas por esta razão podem fre-
quentar galerias, shows, teatros e compreender o que um espetáculo propunha
dizer ou o significado de um quadro. Este pensamento de alguns dos alunos
vem também acompanhado da ideia de que a arte não é útil ao mercado. Ou
seja, ao contrário de português e matemática (disciplinas com maior carga
horária no currículo), a educação artística não oferece pré-requisitos para o
preparo do aluno como profissional.

133
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

Desmistificar estes pensamentos e reconstruir novos valores em relação


ao ensino da arte e, mais especificamente, à dança na escola, é muito impor-
tante para que os estudantes saibam que esse acesso é garantido por direito,
independente da condição social, e que pode contribuir para sua formação
como cidadão, e não apenas como profissional.
O acesso à arte por meio da escola formal é o início de um caminho para
sistematizar, ampliar e construir conhecimento nas diferentes linguagens ar-
tísticas que nos possibilitam interagir no mundo de forma diferenciada. É o
mesmo tipo de direito que garante o acesso à Matemática, à Língua e às
Ciências que estão presentes nos currículos. Arte é conhecimento, cujo di-
reito é universal, arte é um conjunto de saberes que são imprescindíveis para
que o cidadão possa inteligir, experienciar e atuar no mundo (MARQUES;
BRAZIL, 2012, p. 26).

A opção por trabalhar a gestualidade como mote para o desenvolvimen-


to de uma sequência de dança ocorreu devido ao fato de observar que muitos
alunos apenas se sentiam confortáveis na reprodução de movimentos que se
repassava e também por, em algumas criações, aparecerem tentativas de reali-
zar passos característicos a determinados estilos que eles vinculavam à dança.
Não se discorda da utilização destes recursos por parte dos alunos, mas, ao
mesmo tempo, em atividades de improvisação, percebia-se que a turma tinha
muito potencial, e que o grupo apresentava uma diversidade muito interessan-
te de personalidades, histórias, além de em muitos momentos da aula eles se
sentirem confortáveis de compartilhar suas particularidades.
Pensou-se, então, se não seria mais produtivo propor que os alunos fi-
zessem uma reflexão sobre si mesmos, que se ouvissem mais para que, a partir
daí, se pudessem trabalhar as expressividades, o gesto, e, por fim, a absorção
de tudo isso no corpo movido pela dança. Por uma dança que seria inteira-
mente deles, desde a criação, o processo e a produção. Nesta perspectiva, de
acordo com Marinho:
O gesto tem a possibilidade de se expandir como um movimento no corpo
que dança. Por suas características, dá a ele uma dimensão diferente do modo
de organizar e padronizar o movimento de dança. Entende-se que as con-
venções criadas pelos gestos, inicialmente pertencentes ao cotidiano, podem
ser alteradas no labirinto da criação. Do mesmo modo, o passo de dança
altera seu sentido. É justamente nesse trânsito entre passo e gesto que algo
novo pode emergir no corpo do dançarino. Um modo de compreender a
investigação de novos vocabulários (MARINHO, 2005, p. 96-97).

São inúmeras frases que os alunos dizem e que fazem refletir sobre as
aulas, mas uma que talvez melhor caracterize o que mais se ouve dos alunos nas
primeiras aulas de dança é: “Tá, mas e quando vai começar a dança de verdade
mesmo?”. Isso acontece, pois as aulas não se configuram em apenas levar coreo-

134
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

grafias ou sequências coreográficas para eles dançarem. Os principais objetivos


que norteiam as aulas são: introduzir a dança como uma forma de manifestação
artística, estudar a história da dança e os principais artistas, desenvolver a cons-
ciência corporal, relacionar e contextualizar a dança às outras linguagens artís-
ticas e estimular o potencial criativo e expressivo do aluno.
A educação deve ser global, não apenas visando a um aspecto do ser humano,
o que supõe a dança na educação por ser um aprendizado que integra o co-
nhecimento intelectual e a livre expressão do aluno. O uso da dança na sala de
aula, contudo, não visa apenas proporcionar a vivência do corpo e diminuir
tensões decorrentes de esforços intelectuais excessivos. Na medida em que
favorece a criatividade, pode trazer muitas contribuições ao processo de apren-
dizagem, se integrada com outras disciplinas (SCARPATO, 2001, p. 58).

Segundo Dantas (1999, p. 100), “o corpo que dança é um corpo cons-


truído, elaborado, trabalhado. Construído, na sua vida cotidiana, em proces-
sos de socialização, de educação, de repressão, de transgressão”. Desta forma,
a dança no contexto escolar tem a importância de integrar corpo e mente,
fazendo com que o aluno expresse suas opiniões, ideias e sentimentos através
do movimento. A dança por intermédio de atividades que estimulem a cons-
ciência corporal, a expressão e a criatividade, pode contribuir para que o alu-
no se reconheça como indivíduo na sociedade.
A pesquisa surgiu, portanto, após perceber-se que grande parte dos pla-
nos de aula concentravam-se em propor tarefas de criação para os alunos: se-
jam criações livres, com restrições de movimento impostas, a partir de temáti-
cas, individuais ou em grupos. Há uma aposta em tarefas que prezam pela
criatividade através da dança, por valorizar a espontaneidade e a imaginação
dos alunos e também que acredita que a reprodução de passos pouco contri-
buiria em uma aula de artes que preza pela reflexão e produção do aluno a
partir de si mesmo.
A dança na escola não deve priorizar a execução de movimentos corretos e
perfeitos dentro de um padrão técnico imposto, gerando a competitividade
entre os alunos. Deve partir do pressuposto de que o movimento é uma for-
ma de expressão e comunicação do aluno, objetivando torná-lo um cidadão
crítico, participativo e responsável, capaz de expressar-se em variadas lin-
guagens, desenvolvendo a autoexpressão e aprendendo a pensar em termos
de movimento (SCARPATO, 2001, p. 59).

Acredita-se na colaboração dos alunos nas sequências coreográficas e


entende-se isso como uma troca de conhecimentos muito potente tanto para o
aluno quanto para o professor. Além disso, não se acredita na reprodução de
passos como única forma de fazer com que os alunos dancem. É apenas mais
uma entre tantas formas que propiciam que eles dancem e pensem a dança.

135
REIS, A. P. S. dos; VALLE, F. P. do • Os processos de criação em dança em aulas de Educação Artística...

O processo de ensino é uma atividade conjunta de professores e alunos, or-


ganizado sob a direção do professor, com a finalidade de prover as condi-
ções e meios pelos quais os alunos assimilam ativamente conhecimentos,
habilidades, atitudes e convicções (LIBÂNEO, 1990, p. 29).

É fundamental que o professor constantemente reconstitua a própria


substância da prática educativa a qual defende. Cada aula na escola é visuali-
zada como uma estreia por parte dos docentes. Por mais que seja o mesmo
conteúdo (coreografia), os mesmos alunos (público), a mesma sala de aula
(teatro), o frio na espinha e o medo de não dar certo acompanham a entrada
na sala de aula (ou no palco). Pode ser por conta do pouco tempo de experiên-
cia dos docentes ou da área, ou, alguns diriam, que por falta de preparo. Por
outro lado, talvez para um professor este tal desconforto seja até importante
para que ele possa estar sempre se reinventando.

Referências
ASSMANN, André. A Criação de um Processo de Criação. Cena em Movimento, Porto
Alegre, n. 4, 2014.
DANTAS, Mônica. Dança: o enigma do movimento. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS, 1999.
FIAMONCINI, Luciana. Dança na educação: a busca de elementos na arte e na esté-
tica. Pensar a Prática, Goiânia, v. 6, p. 59-72, 2006.
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
GAYA, Adroaldo. Ciências do movimento humano: introdução à metodologia da pesqui-
sa. Porto Alegre: Artmed, 2008.
GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminuras Ltda., 2004.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
MARINHO, Nirvana. O gesto na dança contemporânea: que papel cumpre. In: SO-
TER; PEREIRA (Orgs.). Lições de Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005.
MARQUES, Isabel A.; BRAZIL, Fábio. Arte em questões. São Paulo: Digitexto Edito-
ra, 2012.
NEGRINE, Airton. Instrumentos de coleta de informações na pesquisa qualitativa. A pes-
quisa qualitativa na educação física: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Editora
Universidade/Sulina, 1999.
PALUDO, Luciana. O lugar da coreografia nos cursos de graduação em dança do Rio Grande
do Sul. Brasil. 2015. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1 dêem 0183/114690>.
Acesso em: 37 mar. 2017.
SCARPATO, Marta Thiago. Dança educativa: um fato em escolas de São Paulo. Ca-
derno Cedes, São Paulo, v. 21, n. 53, p. 57-68, abril, 2001.
SMITH-AUTARD, Jacqueline. Dance Composition. 4. ed. Nova Iorque: Routledge, 2000.

136
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

As moscas pibidianas
na sopa da educação
Paula Mastroberti1

Eu sou a mosca que pousou em sua sopa


Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar.
(Mosca na sopa, Raul Seixas)

O voo antes do pouso

Logo à entrada do site criado para divulgar as atividades pibidianas do


Subprojeto Artes Visuais, dispus um texto-manifesto, do qual retiro uma parte:
Somos como moscas. Incomodamos, zumbizando os ouvidos da Educação.
Por isso, às vezes não nos querem por perto, às vezes interditam nossa pre-
sença, às vezes nos expulsam com inseticidas, com mata-moscas.
Mas basta que nos aceitem e nos acolham, para que reconheçam nosso pa-
pel transformador. As moscas pibidianas reciclam a matéria inerte, e trans-
formam o corpo em decomposição das pedagogias já mortas, evisceradas,
em matéria viva!
Somos mais que pibids, somos das artes. Aquelas ditas visuais (como se só
um sentido nos coubesse!) Ao invés de olhos, ocelos. Os ocelos de uma mos-
ca permitem uma visão redonda, de atrás-frente-lados no tempo-agora. En-
xergam a diversidade inimaginada do espaço e de suas cores. Captam o
movimento do mundo como um filme onde até os segundos se cristalizam
num mínimo frame. Um microgesto chama a atenção. Por isso, a mosca es-
capa antes do tapa! (MASTROBERTI, 2016).

A mosca é um inseto-metáfora de minha predileção há anos. Na escola e


na família, sofria muita crítica por viver meio fora do ar (hoje, a expressão mais
acertada seria off-line). Eu era “moscona”, apelido cujo significado negativo –
indicando distração ou desatenção – fui invertendo ao longo da vida, até fazer
dele meu avatar guerreiro. Ao tomá-lo por empréstimo do meu acervo imaginá-

1
Profa. do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS e Coordenadora do
Subprojeto PIBID Artes Visuais. E-mail: paulamastroberti@gmail.com.

137
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

rio pessoal para compor o texto acima, eu afirmava o crescimento da importân-


cia do PIBID não só em relação às minhas demais atribuições docentes, mas
como prática de fé num ideal possível de educação escolar e universitária.
Para melhor entender o significado dessa declaração, talvez seja melhor
recuperar brevemente o histórico da minha relação com o programa.

Mosca tonta

Quero iniciar pela imagem de uma festa promovida pela Coordenação


do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência da UFRGS, ocor-
rida no final do ano de 2014, quando os quase 30 coordenadores dos subproje-
tos selecionados pelo edital comemoravam alegremente o primeiro ano cum-
prido.
Eu era então uma docente não só recém-chegada à universidade, mas
recém-chegada à própria docência, tendo passado em concurso em 2013, logo
após 6 anos de pós-graduação cursada em instituição privada. Ainda procura-
va me inteirar sobre o funcionamento do sistema acadêmico público, suas si-
glas misteriosas e burocracias pouco acolhedoras. Assim, até o final de 2014, a
responsabilidade de coordenar um subprojeto PIBID me causou um pouco de
medo, confesso. Achei o programa imenso, maior de qualquer outro do qual
tenha participado ou gerenciado. Porém, havia uma grande motivação para
aceitar a incumbência: no PIBID, eu prosseguiria em contato, mesmo sendo
professora universitária, com o ambiente escolar.
Como escritora e ilustradora participante de projetos de incentivo à leitu-
ra, passei muitos anos de minha vida entrando em escolas públicas e privadas,
convivendo com estudantes de todas as idades, embora o foco maior da minha
produção literária fosse o juvenil. É que a visita de um escritor é considerada um
evento muito importante na escola para que se exclua a presença das séries inici-
ais ou da educação especial destinada aos adultos. Da mesma forma, o projeto
de pesquisa do qual fiz parte enquanto pós-graduanda e bolsista CNPq também
me permitia o contato com crianças e adolescentes de várias idades, através das
oficinas semanais que desenvolvíamos, em turno inverso ao escolar, para o pro-
jeto coordenado por minha orientadora, Vera Teixeira de Aguiar. O projeto atua-
va em algumas escolas e também no Campus Aproximado PUCRS Vila Nossa
Senhora de Fátima, situado no Bairro Bom Jesus, em Porto Alegre2.

2
CLIC era o nome do projeto vinculado ao Núcleo de Leitura Literária e Multimídia do Progra-
ma de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, coordenado pela Profa. Dra. Vera Teixeira de Aguiar, e que atuou de 1996 a

138
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Na festa comemorativa do final de 2014, entretanto, eu ainda estava


tensa. O primeiro ano havia requisitado de mim muita energia: se as escolas
permaneciam um ambiente familiar, coordenar um grupo de bolsistas estu-
dantes de licenciatura e professores supervisores era algo inédito para mim.
Tínhamos um projeto a ser cumprido, eu e a colega Umbelina Maria Duarte
Barreto. Ele ressaltava no PIBID um caráter que ia além da simples experiência
prática na docência, mas que incluía pesquisa e reflexão. E, sendo um PIBID de
Artes Visuais, entendia a educação inalienável da criação poética. No come-
ço, fora um pouco difícil fazer os nossos alunos e supervisores entender que o
programa não equivaleria, para nós, coordenadoras, a uma simples atividade
equivalente a um estágio não obrigatório.
De minha parte, eu terminava o ano preocupada, sobretudo, com a inte-
gração do grupo como equipe de trabalho e com a promoção do espírito de
cooperação para elaboração de propostas coletivas em educação. Essa é, até
hoje, uma das minhas prioridades, perpassando outras condutas minhas den-
tro do PIBID e influenciando o modo como eu o entendo, como o leitor ou
leitora verá nesse artigo.
Parece-me que a formação do profissional educador prossegue indivi-
dualista; ele ou ela é pensado como um sujeito restrito a atuar em sala de aula,
cuja porta, assim que fechada, o(a) isola, com sua turma de alunos, dos de-
mais espaços da escola e da comunidade onde esta se insere. A ausência de
preparo do futuro educador para a integração com o coletivo docente e com a
comunidade ao redor, seja como membro ou gestor, é, na minha opinião, o
maior obstáculo à interdisciplinaridade, foco principal do Edital 96, de 2014, no
qual nos inscrevemos. Obstáculo maior, inclusive, do que qualquer dificuldade
quanto ao entendimento do seu significado. Todos nós, educadores, agimos, de
alguma forma, interdisciplinarmente. Falta-nos, entretanto, para além de uma
reflexão teórica mais profunda sobre nossas atuações3, uma maior atenção e
consciencialização (VARELA et al., 2001) para o reconhecimento da enação4

2010 no Campus Vila Nossa Senhora de Fátima, junto às crianças da comunidade, com idades
entre 7 a 14 anos, através de oficinas abertas que interligavam a literatura a outras linguagens,
como teatro, música e artes plásticas. Participei do projeto como mediadora de oficinas duran-
te os dois anos do mestrado e parte do doutorado, integrando a equipe que incluía bolsistas e
voluntários da graduação e da pós-graduação.
3
A Coordenadora Gisele Secco do PIBID Interdisciplinar Campus Vale promoveu uma ação
nesse sentido, criando um grupo de estudos sobre interdisciplinaridade, do qual infelizmente
não consegui participar.
4
Tanto a expressão atenção e consciencialização, quanto enação, partem dos cognitivistas Francis-
co Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch. Na obra Mente corpórea (conforme tradução para
o Instituto Piaget, 2001), eles preconizam a reeducação cognitiva de nossa mente corporalizada

139
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

docente interdisciplinar. Somos habituados, desde o período estudantil uni-


versitário – especialmente numa universidade gigante como a nossa – a uma
rotina solitária, em que cursos e disciplinas são ainda organizados de forma
compartimentada, quando não dispersiva, para alunos e professores. Estes mal
se roçam pelos corredores, e a conversa é breve e superficial, pois sequer temos
espaço-tempo para o convívio afetuoso, para o ócio grego – livre de obrigações
e agendas, mas produtivo. Também as reuniões não nos oferecem muitas opor-
tunidades: a maioria não ultrapassa o burocrático, repletas que são de pautas
maçantes; estas, quando – e se – vencidas, acabam com qualquer vontade de
sociabilização risonha, descontraída, da qual brotaria, espontaneamente, a troca
criativa de afinidades e de interesses (troca essa a matriz geradora de ações
interdisciplinares).
Na escola, o padrão tende a repetir-se. Reuniões, conselhos de classe:
nada disso substitui a informalidade – lembrando que é informal a operação
que advém do interior de nossas subjetividades – de uma saudável e necessária
confraternização. As festas realizadas na comunidade escolar, as comemora-
ções que envolvem professores e alunos não ultrapassam, em grande maioria,
a condição de extensão pedagógica, cuja alegria ensaiada merece tão-somente
uma salva obrigatória e calculada de palmas.
Mas voltemos à festa no final do ano de 2014. Os coordenadores, mes-
mo estressados pelas inúmeras demandas pibidianas, entusiasmavam-se com
os primeiros resultados. Nenhum outro momento seria tão profícuo para o
estabelecimento de uma parceria interdisciplinar. Assim surgiu o convite de
Gisele Secco, coordenadora do PIBID Interdisciplinar Campus Vale para que
eu ministrasse, entre janeiro e fevereiro de 2015, um minicurso interino aos
bolsistas pibidianos das mais variadas formações, dentro de um laboratório do
Instituto de Física. A Oficina Pibidianos em Quadrinhos foi preparada para forne-
cer subsídios para criação de materiais gráficos, dentro da modalidade dos qua-
drinhos, para as diversas disciplinas. Ela não seria a última ação interdisciplinar
promovida com nossa parceria. Em 2016, eu voltaria a integrar, com apoio de
Luciano Bedin e seu projeto Dicionário Raciocinado de Licenciaturas, uma outra
atividade criativa de entrelaçamento de áreas, envolvendo bolsistas e alunos de
licenciatura da UFRGS e da UFSM na produção de textos e ilustrações para a

(a mente integrada ao corpo) de modo a torná-la atenta aos seus estados e ações, aceitando a
consciência como um processo de enação contínua. A adoção do termo consciencialização – ao
invés do usual conscientização –, implica imbuir a consciência de maior dinamicidade; já o
termo enação define, segundo os autores, os fenômenos cognitivos da mente corporalizada e
atuante em um mundo não previamente dado, mas resultantes de uma história de interações e
de conhecimentos adquiridos.

140
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

publicação Super-herói universitário5, uma espécie de manifesto crítico, político e


poético sobre a educação universitária, o PIBID e a escola.
O encerramento festivo de 2014 era um indicativo da coesão do grupo
coordenador pibidiano. Eu começava a me sentir confortável e apoiada pelos
colegas, por meus bolsistas e por uma coordenação institucional que, na figura
de Roselane Zordan Costella, mostrava-se segura, entusiasmada e atenciosa.

Se uma mosca incomoda muita gente, imaginem 90.2546...

O ano de 2015 iniciou auspicioso para a minha equipe pibidiana. Mais à


vontade nesse território e, diga-se de passagem, também na UFRGS – o progra-
ma e o papel que eu desejava exercer dentro dele iam se tornando mais e mais
nítidos para mim. Ah, sim, havia o subprojeto aprovado pelo edital, nossa bús-
sola apontando claramente para os diversos objetivos a serem cumpridos em
quatro anos. Mas, se há algo que um pesquisador, sobretudo um bolsista do
PIBID pode e deve de imediato aprender, é que todo projeto não passa da ex-
pressão de um desejo, uma pulsão represada em palavras. Do plano do desejo ao
da concretização, tantos são os desvios! Não os faltaram, em 2015.
O primeiro decorreu de um fenômeno para o qual eu não havia atenta-
do: a eventual necessidade de substituição dos bolsistas de licenciatura. Isso
ocorria – e ainda ocorre – ou por estarem prestes a se formar, ou por arruma-
rem um emprego, ou ainda por entarem em conflito com as direções tomadas
pelo grupo e a coordenadora, ou por problemas particulares diversos. Em 2015,
a instabilidade já aparente do próprio programa também acabou desmotivan-
do alguns alunos e alunas. Contudo, preferi absorver a renovação compulsória
do espelho de bolsistas por via do aspecto contributivo; de algum modo, ela
impedia a sedimentação de propostas e olhares sobre o projeto e, embora tivés-
semos que retomar algumas ações, como os mapeamentos escolares7, essas revi-

5
COSTA, Luciano Bedin; MASTROBERTI, Paula (Orgs.). Super-herói universitário. Dicionário
Raciocinado de Licenciaturas, Tomo V. Porto Alegre, 2016.
6
Segundo dados fornecidos pelo FORPIBID em 2015, o programa fora ampliado desde o seu
primeiro edital em 2009 e instalava-se em 284 Instituições de Nível Superior (IES), 5.898 esco-
las, com 90.254 bolsas concedidas.
7
Os mapeamentos escolares, tal como constam no nosso subprojeto, consistem num relato ou
registro poético a partir das observações do ambiente escolar, sua comunidade e seu imaginá-
rio. O mapeamento já havia iniciado em 2014, constando como uma etapa inicial do nosso
cronograma; contudo, com a entrada de novos pibidianos e mesmo com as mudanças de escola
ao longo do percurso, a ação de mapeamento acabou por transbordar de diversas maneiras,
conforme o ponto de vista e as habilidades de cada estudante de licenciatura, ao assumir da
bolsa. A atividade de mapeamentos pode ser apreciada a partir do nosso site: http://
pibidufrgsartesvisuais.weebly.com/.

141
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

sões acabaram repercutindo positivamente nos que permaneciam, sobretudo


quando os envolvemos em uma espécie de tutoria dos mais novos.
Um segundo desvio, esse realmente inesperado, decorreu da nossa saí-
da de uma escola e o desligamento de sua supervisora, para transferência da
equipe em nova escola. Ocorre que nem sempre as moscas pibidianas são bem-
vindas em sua tarefa de reciclagem e revitalização do espaço educacional. Elas
incomodam aqueles professores – desacomodá-los seria dizer pouco, pois o
PIBID remexe ou deveria remexer, potencialmente, as vísceras do corpo esco-
lar – habituados às mesmas didáticas por anos a fio, solicitando uma partici-
pação mais ativa das direções e coordenações pedagógicas. Contudo, esse im-
previsto foi também contornado e compreendido como parte do aprendizado
para a formação docente. Fizemos muitas reflexões sobre esse processo e creio
que todos saímos ganhando em termos de experiência naquele período, embo-
ra tivéssemos que recomeçar praticamente do zero em outra escola.
O terceiro desvio foi mais grave e não pode ser encarado por nós com a
mesma desenvoltura e alegria: nuvens cinzentas avizinhavam-se, encobrindo
o horizonte pibidiano, devido às ameaças de cortes por parte das instâncias
superiores federais. Tais ameaças, combatidas corajosamente por nós, em ali-
nhamento ao FORPIBID8, foram os grandes e maiores desestabilizadores do
Programa em 2015. Cada notícia, enviada assiduamente pela coordenação
institucional, era recebida com inquietação. Replico, por exemplo, partes da
mensagem do FORPIBID que nos foi encaminhada pela coordenadoria em
22 de junho, advertindo sobre uma carta aberta a ser lida durante audiência da
representação nacional pibidiana com o presidente da CAPES, Carlos Afonso
Nobre e o Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, requisitando nossas
assinaturas:
Nos dias 06 e 07 de julho, o FORPIBID terá audiência com o Presidente da
Capes e com o Ministro da Educação, quando pretendemos apresentar a
Carta Aberta do Pibid. Em paralelo a outras formas de mobilização, essa
medida se faz imprescindível, podendo evidenciar o envolvimento dos mi-
lhares de sujeitos diretamente implicados com o Programa. Em sendo as-
sim, conclamamos os coordenadores, supervisores e bolsistas de iniciação a
participarem do abaixo-assinado que será apresentado em Brasília.
[...]
Ao redigir essa mensagem, recordamos um diálogo entre Paulo Freire, estu-
dantes e professores da Universidad de la Republica, Uruguai, em 1989. Na
ocasião ele lhes dizia que ‘uma das coisas que devemos fazer é não esperar
que a sociedade se transforme. Se esperarmos ela não se transforma; temos

8
Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do Programa Institucional de Bolsa de Ini-
ciação à Docência.

142
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

de fazer, e é nos metendo dentro do processo, na própria intimidade do pro-


cesso em movimento que descobrimos caminhos”. Assim, É chegada a hora
de ampliarmos o movimento chamado PIBID, seguindo juntos e sempre em
defesa da Educação. (Excerto do email reencaminhado pela Coordenação
Geral do PIBID UFRGS em 22 de junho de 2015, a pedido dos remetentes.
Grifos dos autores.)

Assinavam a carta Alessandra Santos de Assis (Presidente do


FORPIBID),Gicele Maria Cervi (Vice-Presidente), Paulo Ricardo da Silva Rosa
(Tesoureiro), Silvia Maria de Contaldo (Secretária Executiva) e Edson Brito
(Representante do PIBID-Diversidade). Em anexo, a Carta Aberta informava
a relevância indiscutível do programa:
[...] Saímos do estado de mera constatação dos resultados negativos da edu-
cação básica, mostrados pelos exames internacionais. Fomos além do regis-
tro de que esses resultados vêm sendo produzidos pela má qualidade e até
mesmo ausência de professores com devida formação, por exemplo, nas dis-
ciplinas de física, química e matemática. O PIBID foi o primeiro e é único
no enfretamento do desafio de formar mais e melhores professores para a
educação básica. A iniciação à docência insere o estudante dos cursos de
licenciatura no conjunto de práticas docentes, reconhecendo a escola públi-
ca como espaço indispensável de formação do professor. O PIBID promove
a aproximação dos licenciandos à realidade do ensino, com uma inserção
assistida por professores mais experientes, com oportunidade de investiga-
ção dos problemas que afetam o ensino, assim como de experimentação e
inovação pedagógica. Além do enriquecimento da experiência formativa,
passamos a ter uma significativa produção contextualizada de conhecimen-
to sobre a docência, que vem sendo amplamente socializada em publicações
e eventos científicos e educacionais, nacionais e internacionais. Assim, o
PIBID vem produzindo um ciclo virtuoso de valorização de professores em
formação, de legitimação de sua atitude reflexiva, de estímulo ao compro-
metimento político dos futuros professores e da universidade com a escola
pública (Carta Aberta do FORPIBID, emitida em 22 de junho de 2015).

Após esses apontamentos, a carta pleiteava, entre outras, “a manuten-


ção das bolsas e repasse imediato dos recursos de custeio, [...] condições bási-
cas para a realização do programa e consecução das ações”, a sua continuida-
de e ampliação, lembrando a responsabilidade da União.
Apesar do abaixo-assinado, não obtivemos o resultado aguardado: os
recursos diminuíram, e não houve aumento do número de bolsas para o pro-
grama. Nem mesmo o envio de dados comprovadores tanto da sua eficiência9

9
Conforme a carta afirma, textualmente: “Saímos do estado de mera constatação dos resultados
negativos da Educação Básica, mostrados pelos exames internacionais. Fomos além do registro
de que esses resultados vêm sendo produzidos pela má qualidade e até mesmo ausência de pro-
fessores com devida formação, por exemplo, nas disciplinas de física, química e matemática.

143
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

quanto da necessidade de ampliação10 tendo em vista as metas do Plano Nacio-


nal de Educação foram capazes de demover a CAPES e o Ministério.
Por que será que, apesar da previsão de um futuro nebuloso, eu via tudo
tão nítido, então? Talvez, exatamente por isso, pelo contraste entre luzes e
sombras. À medida que as últimas aumentavam, mais o programa fluorescia
diante de mim (ou em mim). O Subprojeto PIBID Artes Visuais, idealizado
por mim e pela professora Umbelina em palavras digitadas num documento
virtual, cumpria-se nas entrelinhas, pois é nelas que o sentido se faz e o leitor
se descobre: “Espero que meus leitores leiam em meus livros algo que eu não
sabia, mas só posso esperar isso daqueles que esperam ler algo que eles não
sabiam”, dirá Ítalo Calvino.11
Assim, se a minha equipe descobriu no Subprojeto PIBID Artes Visuais
sentidos que não haviam sido planejados, com eles percebi possibilidades para
execução antes não vislumbradas. Cada bolsista passou a imprimir no projeto
a sua marca; a coordenação passou a ser mais leve, menos preocupada com
planos impositivos, formatados aprioristicamente; eu passei a escutar mais aten-
tamente alunos e supervisoras; flexibilizei pressupostos em nome do desejo e
do sentimento coletivo; cooptei habilidades e competências de cada licencian-

O PIBID foi o primeiro e é único no enfretamento do desafio de formar mais e melhores


professores para a Educação Básica. A iniciação à docência insere o estudante dos cursos de
licenciatura no conjunto de práticas docentes, reconhecendo a escola pública como espaço
indispensável de formação do professor. O PIBID promove a aproximação dos licenciandos à
realidade do ensino, com uma inserção assistida por professores mais experientes, com opor-
tunidade de investigação dos problemas que afetam o ensino, assim como de experimentação e
inovação pedagógica. Além do enriquecimento da experiência formativa, passamos a ter uma
significativa produção contextualizada de conhecimento sobre a docência, que vem sendo am-
plamente socializada em publicações e eventos científicos e educacionais, nacionais e interna-
cionais. Assim, o PIBID vem produzindo um ciclo virtuoso de valorização de professores em
formação, de legitimação de sua atitude reflexiva, de estímulo ao comprometimento político dos
futuros professores e da universidade com a escola pública” (Carta Aberta do FORPIBID, rece-
bida em email enviado pela Coordenação Institucional em 22 de junho de 2015).
10
Sobre a necessidade de ampliação do programa, diz a Carta: “Conforme a meta 15 do Plano
[Plano Nacional de Educação – PNE], dar continuidade e ampliar o trabalho iniciado com o
PIBID é uma responsabilidade da união. Mais que isso, as demais metas estabelecidas pelo
Plano, a exemplo da universalização da educação infantil ou da elevação da escolaridade
média da população, dependem diretamente da formação de professores, em quantidade e
qualidade. Dão suporte ao PNE outros recursos, como a inserção do Programa no texto da
LDB e o reconhecimento de seus objetivos na nova proposta de Diretrizes Curriculares para a
Formação de Professores da Educação Básica. Esses são sinais do caráter estratégico e estru-
turante do PIBID” (Carta Aberta do FORPIBID, recebida em email enviado pela Coordena-
ção Institucional em 22 de junho de 2015. Entre-colchetes meu).
11
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,
p. 189.

144
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

do, agregando-as em torno de um objetivo comum: iniciação à docência, sim,


mas sempre em atenção à comunidade escolar e à formação humana de sujei-
tos educadores. A interface pibidiana permeabilizou-se, agregando a equipe
que enfim exercia o papel ativo e coadjuvante. Não é a toa que, no no final de
um ano já desbotado em tons de cinza, tenhamos brilhado no Seminário Ins-
titucional de Verão, apresentando um salto não apenas quantitativo, mas qua-
litativo em nosso trabalho. Duas atividades culturais em especial ficarão em
minha memória como parte do acervo das belas atuações naquele ano: a apre-
sentação de Do autorretrato a selfie, um projeto da Equipe PIBID Artes Visuais
do Colégio Marechal Floriano Peixoto, e a performance Pibid, a cor da esperan-
ça, desenvolvida pela Equipe PIBID Artes Visuais do Colégio Aplicação de
Porto Alegre12. Esta última apresentação, entretanto, já anunciava a nossa pre-
ocupação com o destino incerto do programa. Mal sabíamos o que nos aguar-
dava no início de 2016.

Moscas na sopa das políticas educacionais

Apesar das inseguranças, iniciamos o terceiro ano pibidiano normal-


mente. Realizamos, tal como já havia sido promovido em 2015, um encontro
da equipe para confraternização e reflexão. Esse evento é, para mim, um dos
mais importantes: embora possua um caráter festivo, seu sentido é também
educativo, ao envolver uma ação muito simples: por volta do período das fes-
tas de final de ano, ao enviar uma espécie de ata final em que realizo um balan-
ço do ano pibidiano, convido os alunos e supervisores a produzirem, para
“dar sorte” ao período vindouro, uma espécie de “amuleto”. O objeto, a ser
produzido pelo próprio bolsista, deve ser neutro em gênero (pois nunca se
sabe quem o ganhará) e constituir-se como um desejo ou manifesto simbólico,
oferecendo uma nova dimensão significativa para o pibidiano em seu percurso
anual no programa. Na hora, sorteamos os nomes de quem presenteará a quem;
um de nós inicia com a descrição do colega sorteado, para que adivinhemos
de quem se trata; o ganhador dá seguimento à troca de amuletos, até que não
reste nenhum.
Da primeira vez, fiz um caderninho de anotações que incluía uma ima-
gem do arcano “Mundo” do tarô e um poema de minha autoria sobre as rela-
ções entre a educação e o mundo, de tonalidades freireanas:

12
Ambas as produções, assim como outros trabalhos apresentados no Seminário Institucional
PIBID/UFRGS de Verão em 2015, podem ser apreciadas em vídeos disponibilizados no
Canal PIBID Artes Visuais do YouTube: https://www.youtube.com/channel/
UC5HTWdyq9ozCREa4kqYczkQ .

145
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

Figura 1: Amuleto “O Educador e o Mundo”, para o ano de 2015

Fonte: Arquivo da autora

Em troca, recebi um origami multicolorido e interativo. Da segunda


vez, montei um caleidoscópio com réguas escolares envolto num pequeno
poema (um haikai) e recebi um novo origami, dessa vez um tsuru, pássaro
símbolo japonês de saúde, paz e prosperidade. Para o ano de 2017, colori os
palitos de uma caixa de fósforos e os redispus na embalagem, cujo rótulo alte-
rei no computador, incluindo o logotipo do PIBID Artes Visuais e os dizeres
“acenda uma cor de esperança em 2017”.Mantive a expressão fiat lux [faça-se
a luz], pois faz sentido no contexto simbólico do amuleto. No verso da caixa,
escrevi à mão a citação de Paulo Freire que tem me norteado nas lutas pela
manutenção do programa: “Minha esperança é necessária, mas não é suficiente.
Ela só, não ganha a luta, mas sem ela, a luta fraqueja e titubeia” (FREIRE,
2011, p. 14-15):

146
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Figura 2: Amuleto “Acenda uma Cor de Esperança”, para o ano de 2017

Fonte: Arquivo da autora

Ainda no início de 2016, ao promover a confraternização, estendi na


parede uma folha de papel kraft e distribuí canetas coloridas para que os mem-
bros da equipe escrevessem, a partir de um dos lados do papel, aquilo que
mais gostaram de realizar no PIBID; do lado oposto, aquilo que não os agra-
dou; ao centro aquilo que desejariam que acontecesse e se realizasse. Assim,
apesar dos cortes de recursos que fissuravam o programa, produzimos, com
muito otimismo, um mapa de expectativas para o futuro, a partir de nossas
satisfações e das nossas críticas:

147
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

Figura 3: Mapa de satisfações, de críticas e de expectativas produzido pela


equipe pibidiana em 2016

Fonte: Arquivo da autora

No dia 23 de fevereiro, em meio a um calor de rachar, participamos de


uma passeata organizada pela coordenação institucional em Porto Alegre, sa-
indo do Campus Centro da UFRGS até a Secretaria da Educação do Estado
do Rio Grande do Sul, para defender a manutenção do programa. A hashtag
“#FicaPIBID”, presente em postagens em redes sociais desde o ano anterior,
agora surgia nas faixas que interrompiam o fluxo do trânsito na capital.

Figura 4: Imagem da passeata

Fonte: Arquivo da autora

148
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

A Portaria 4613 caiu como uma chuva de granizo sobre os ainda ensola-
rados dias do mês de abril de 2016. Além de revogar a Portaria 96 de 2013, sob
cujo edital inscrevemos nossos subprojetos, ela estabelecia normas absurdas,
impossíveis de serem cumpridas, como o que se observa, por exemplo, no Ar-
tigo 10, parágrafos 1o e 2o:
§1º Cada coordenador de área deve orientar no mínimo 20 (vinte) e no má-
ximo 30 (trinta) bolsistas de iniciação à docência.
§2º Cada supervisor deve acompanhar no mínimo 10 (dez) e no máximo 15
(quinze) bolsistas de iniciação à docência (PORTARIA 46, p. 5).

Também no edital era explícita, no Inciso I do Artigo 18, a exclusão de


todos os projetos vinculados às artes, como as visuais, o teatro, a música, bem
como dança e a educação física:
Art. 18. Pode participar do PIBID instituição habilitada de acordo com cada
edital e que:
I. possua pelo menos um curso de licenciatura legalmente constituído nas
áreas de Pedagogia, Letras, Ciências, Matemática, Biologia, Física, Quími-
ca, Geografia, História, Filosofia e Sociologia (PORTARIA 46, p. 7).

A Portaria e o seu Edital foram de imediato questionados por boa parte


dos coordenadores. Em reunião realizada no dia 25 de abril, a polêmica ins-
taurou-se: apesar dos inúmeros prejuízos às áreas excluídas e das exigências
disparatadas, alguns de nós recusavam-se a apoiar a decisão da maioria pre-
sente, que exigia a revogação imediata e o boicote geral ao Edital pelo PIBID
da nossa universidade.
A reunião gerou uma Carta de Repúdio por parte do PIBID/UFRGS,
em acordo às demais manifestações dos PIBIDs de outras universidades, como
a UFRJ. Em 27 de abril, o FORPIBID enviou à CAPES e ao Ministério da
Educação uma nova Carta Aberta, produzida a partir do último encontro do
Fórum, cujo subtítulo “Contra a opressão e pela coragem de formar professo-
res” indicava a nossa posição de repúdio frente ao novo edital imposto inad-
vertidamente, em meio à execução do edital anterior.
Apesar das decisões tomadas pelas coordenações institucionais pibidia-
nas de todo o país, recebíamos, surpreendentemente, mensagens de colegas
declarando-se textualmente preocupados em não perder o prazo para inscri-
ção no recente edital, manifestando-se, ao contrário, favoráveis ao seu acolhi-
mento. De nada adiantava explicar que não o poderiam fazer sem a entrada da

13
O teor completo da Portaria 46 pode ser acessado em: <https://www.capes.gov.br/images/
stories/download/legislacao/15042016-Portaria-46-Regulamento-PIBID-completa.pdf>. Úl-
timo acesso em janeiro de 2017.

149
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

Pedagogia (cujas coordenadoras negavam-se terminantemente, em apoio às


áreas excluídas e às decisões institucionais).
A partir disso, a tensão e a discórdia só fizeram aumentar. Na ocasião, eu
vivia, além disso, um momento particularmente difícil, pois recebera a notícia
de que uma das minhas supervisoras havia entrado em conflito com a sua dire-
ção ao defender sua equipe, acusada, entre outras coisas, de ocupar excessiva-
mente o espaço e a infraestrutura da escola.14 Pela segunda vez, precisávamos
nos retirar, em virtude do “incômodo” que causávamos. Assim, na reunião se-
guinte de coordenadores, em meio a discussão agressiva já instalada, também
eu acabei perdendo a paciência e levantei minha voz, indignada, colocando-me
a favor do repúdio à Portaria 46 mais uma vez, retirando-me em seguida.
Mesmo esclarecidos quanto à inexequibilidade do edital, o grupo dissi-
dente de coordenadores insistiu em encaminhar novos projetos. Nesse mo-
mento, o PIBID UFRGS, fragilizado pelas ameaças advindas das instâncias
superiores, por pouco não rachou em virtude da quase demissão da coordena-
dora institucional. A ela eu planejava adjuntar a minha própria, pois encon-
trava-me no grau zero de otimismo e energia.
Contudo, enquanto esses coordenadores, amparados por instâncias su-
periores, preparavam-se para atender aos ditames da nova portaria, Roselane
Costella permaneceu em firme oposição, respondendo corajosamente à notí-
cia de suas adesões. A nossa coordenadora institucional veio, assim, em nome
dos princípios éticos que deveriam estar guiando o coletivo pibidiano nesse
momento difícil:
Prezados colegas, não costumo me estender em mensagens, mas neste mo-
mento precisei escrever com maior detalhamento em respeito a todos os
PIBIDIANOS.
Me causou estranhamento o conteúdo da mensagem enviada, pois provo-
quei (provocamos) discussões em todas as instâncias em relação ao absurdo
proposto por esta Portaria. Estamos discutindo há tempos com os Coorde-
nadores de Área, com Bolsistas de Iniciação à Docência, com as escolas,
com as licenciaturas, com a Reitoria, com o Conselho Universitário e com o
restante da comunidade universitária e fora dela.
Eu não continuarei coordenadora institucional do PIBID/UFRGS, não por-
que não tenho interesse, mas porque tenho consciência das mudanças pro-
vocadas pela Portaria 046.

14
Utilizamos uma sala desocupada para expor os trabalhos de “Do autorretrato a selfie” e reali-
zamos um sarau musical na abertura, que foi um grande sucesso entre a comunidade escolar.
A biblioteca da escola também foi utilizada inúmeras vezes para o desenvolvimento de ativi-
dades e reuniões da equipe. Nada disso interferia na rotina escolar. Contudo, sabíamos que a
direção costumava alugar os espaços vagos para atividades externas; sobre a biblioteca, sua
administração estava a cargo de nossa supervisora, e nós a utilizávamos apenas durante o
horário por ela cumprido quando nessa função.

150
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

[...]
Esta nova Portaria vai propor um abandono dos nossos bolsistas nas esco-
las, vai retirar o que temos de mais significativo que é a relação do professor
de sala de aula com nossos licenciandos, vai reforçar uma concepção que
tentamos muito descaracterizar, que somos responsáveis pelo fracasso da
escola pública e por isso, nossos bolsistas e coordenadores precisam intensi-
ficar seus esforços acompanhando no mínimo três escolas no ensino médio
e 7 nos anos iniciais semanalmente, sendo que semanalmente ainda preci-
sam fazer reuniões com supervisores e com licenciandos. Os supervisores
terão que acompanhar um número igual de escolas, sendo assim, por mais
cálculos que façamos não há possibilidade de realizarmos um trabalho de
qualidade. Não teremos mais coordenação de gestão, talvez porque tenha-
mos muito menos o que pensar de processos.
Neste momento, a minha preocupação está centrada na qualidade e para
mim qualidade também é dizer NÃO a uma proposta que não tem como ser
realizada.
Quero dizer que, se algum projeto for postado pela UFRGS, eu estarei acompa-
nhando e cobrando a qualidade que imprimimos no PIBID desde a sua origem.
Estamos assumindo, ao enviarmos propostas, que a escola pública não pre-
cisa de Educação Física (que hoje temos 42 bolsistas), de Artes Visuais, Mú-
sica, Francês, Espanhol, Teatro, Dança, entre outros.[...] (Email encami-
nhado pela Coordenadora Institucional Roselane Zordan Costella em 26 de
maio de 2016 a todos os coordenadores do PIBID/UFRGS.)

Em 14 de junho de 2016, graças à mobilização incansável, recebemos


finalmente a notícia da revogação da infame portaria e de seu edital. Não sei
quanto aos demais coordenadores que quase foram prejudicados, mas o meu
constrangimento ainda não se desfez de todo. Aprendi o quanto nós, das áreas
de artes, ainda somos vítimas da desconsideração por parte do mundo cientí-
fico e o quanto temos ainda a desenvolver, dentro da universidade, justamente
aquilo que eu considero a maior oportunidade que o PIBID nos oferece: o
espírito de união coletiva e de colaboração entre as áreas – pois não é esse o
princípio da interdisciplinaridade? Lamento e reclamo a falta de aprofundamento
da consciência crítica e ética do educador, sobretudo do docente acadêmico,
modelo maior para os licenciandos. Não é de espantar que as artes fossem nova-
mente vitimadas pela Proposta de Emenda Constitucional n. 241 ou 55 e pela
Medida Provisória n. 746, esta que, entre outras resoluções escabrosas, as colo-
ca praticamente fora do currículo obrigatório do Ensino Médio.15

15
A PEC 241 pode ser lida, na íntegra neste link: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=1468431&filename=PEC241/2016. Já a MP 746 encontra-se
acessível aqui: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv746.htm
(Dados registrados em 2016).

151
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

Moral da história: a mosca sempre escapa antes do tapa

Mas eu não quero encerrar este discurso com mais críticas ou queixas.
Vamos concluir com alegria e amor: o meu amor é incondicional aos estudan-
tes e aos professores escolares em geral, sobretudo àqueles unidos pela rede
pibidiana. Depois de quase abandonar o navio ao naufrágio que, por força da
nossa luta, não aconteceu, voltei-me com fome e sede para a minha desorien-
tada equipe, disposta a recuperar o entusiasmo perdido. Não foi, ou melhor,
não está sendo fácil. Uma boa notícia: a escola onde se encontra atualmente
nossa supervisora expulsa, depois de alguma desconfiança com relação ao pro-
jeto, decidiu nos acolher e agora maravilha-se com nossa atuação. Uma notí-
cia triste: depois de dois anos atuando no Colégio Aplicação, saímos em busca
de outra escola em 2017.16
Sou uma docente que gosta de estar entre os estudantes, mesmo que eu
tenha que encarar, por vezes, algumas teimosias ou, pior, apatias ou distra-
ções, até mesmo uma eventual indolência. E gosto, como já disse, do ambiente
escolar – e vou menos às escolas do que deveria, reconheço – mas quando em
visita, meu entusiasmo não me permite registrar suas deficiências, indigências,
má vontade ou irritação, mas reconhecer as promessas, as riquezas, os desafios
que excitam e energizam a minha subjetividade docente de licenciatura.
Procuro promover a leveza e a risada nas reuniões – será que eu consi-
go? O PIBID pode proporcionar, através da relação entre coordenador e equi-
pe, algo que dificilmente se obtém em cargos cuja gestão encontra-se eventual-
mente contaminada por ambição, inveja, intrigas e outras malícias: o estar e
atuar junto ao grupo, em regime de co-laboração, co-operação. O PIBID, na
dimensão das equipes que atuam no subprojeto, potencializa, para quem as-
sim o quiser, a horizontalidade e o diálogo; ele promove a convivência e o
respeito mútuo, onde o licenciando não é mais nem menos que o supervisor,
onde todos podem aprender e ensinar, agir e sonhar em nome de uma educa-
ção de maior qualidade. Licenciandos, supervisores, escola e universidade:
para que a receita pibidiana resulte numa deliciosa refeição, esses ingredientes
devem ser dosados de modo a respeitar cada sabor. Tais afetos e valores, infe-

16
A retirada da equipe do Col. Aplicação visa, principalmente, obedecer a uma solicitação da
CAPES para que o programa atenda prioritariamente escolas públicas cujo resultado da ava-
liação pelo cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básico – IDEB, em uma esca-
la de 0 a10, seja abaixo de 6. Em Porto Alegre, a média de avaliação das escolas federais, caso
do Aplicação, no ano de 2015, ficou entre 6,9 e 7,3, enquanto que a média do índice das
estaduais ficou, no mesmo ano, entre 3,5 e 4,9 e a das escolas municipais, entre 3,8 e 4,6. Ou
seja, a própria CAPES reconhece os benefícios do PIBID no sentido de contribuir qualitativa-
mente com a educação escolar.

152
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

lizmente, não são contabilizados em termos de carga horária ou como produ-


ção intelectual.
Tampouco uma maravilha observada amiúde, mas cujo registro só se
pode fazer num artigo como este, tendo em vista a impossibilidade de referir-
me a ela em qualquer relatório enviado à CAPES, órgão para o qual só interes-
sam registros descarnados. Trata-se de uma imagem que sempre me enterne-
ce, quando posso testemunhá-la: a entrada dos licenciandos em iniciação à
docência no interior da escola e o impacto causado por eles junto à comunida-
de escolar, em especial nos seus alunos, com cuja idade muitos quase empare-
lham. Essa singela colisão entre estudantes universitários e escolares que só o
PIBID proporciona, por si só, já valeria a continuidade do programa.
Para os escolares, em especial para os das Séries Finais e os do Ensino
Médio, os licenciandos ali “aparatados”17 são como imagens de um futuro
possível: espera-se que estes sejam aqueles em seu devir. A figura do licencian-
do, estudante universitário, é promissora, é o sonho concretizado de todos os
jovens que almejam o acesso a uma formação acadêmica. Para os pibidianos,
em especial para os que se encontram em segundo semestre, o retorno ao am-
biente colegial de onde mal acabaram de sair é um rito de passagem cujo esta-
do de iniciação à docência pode afigurar-se tão marcante quanto o de calouro
no campus acadêmico.
Como veem, o PIBID estabelece, no meu jeito de interpretá-lo, uma
relação que envolve muito mais a emoção, a poesia e a imaginação do que a
razão, a lógica e o intelecto. Por isso, preferi fazer menor uso das teorias que
normalmente me embasam, mas muito mais dos sentimentos residuais da
minha percepção e da minha memória. Será que é por isso que custamos a
encaixar nossas atividades em nossos currículos lattes? Será que é por isso que
nos apontam – sobretudo a nós, os das artes – os danosos aerosóis inseticidas?
Será o PIBID subversivo ao ponto de, ao promover um pensamento livre e
plural, provocar a ira daqueles que rejeitam o sonho de uma humanidade mais
acolhedora e solidária?
O PIBID significa, quando elevado a sua maior potência, a própria sín-
tese de um projeto de educação imaginado para constituir-se na esfera do afe-
to e do acordo mútuo, pois promove, em seu próprio sistema, a convivência e
o diálogo horizontal e coletivo entre universidade e escola, entre seus profes-

17
Tomo a liberdade de usar o verbo “aparatar”no sentido traduzido do inglês apparate, da obra
Harry Potter (feitiço que permite surgir em algum lugar após ter desaparecido em outro), um
pouco para brincar com o espírito juvenil do grupo, um pouco para referir-me ao grupo que
surge na escola aparatado (agora sim, no sentido de estar vestido com as camisetas que nos
identificam, causando um efeito de “pompa” pibidiana).

153
MASTROBERTI, P. • As moscas pibidianas na sopa da educação

sores e estudantes. Digo sem medo: somos os heróis/heroínas da educação. E


quando digo herói/heroína, trago-o num sentido que vai além daquele em que
o converteu a cultura popular, mas como monomito fundamental que resume
toda a narrativa humana em busca de uma vida vivida em sua plenitude e em
aceitação humilde, tanto dos seus limites quanto das suas capacidades de su-
peração (CAMPBELL, 1997). O Herói Pibidiano é um herói da educação,
não porque realiza milagres em escolas, salva professores exauridos ou resgata
alunos desinteressados; mas porque aceitou um convite e porque sente em si a
necessidade de realizar-se através da enação para o educar. Todo educador
pode ser um herói, mas o Herói Pibidiano emerge, voluntariamente, da som-
bra alunar [alumnus = ausente de luz] para brilhar ao protagonizar a própria
busca, colocando-se na frente de uma luta que sabemos de antemão repleta de
obstáculos e descaminhos.
Agentes heroicos disfarçados, elaboramos diligentemente nossos plane-
jamentos, emitimos relatórios com máxima competência, nos servimos de toda
a nossa base teórica e pesquisamos outras mais, quantas forem necessárias.
Secretamente, alçamos voos incompreendidos: e o voo tonto da Mosca Heroi-
ca é proposital, ele dissolve o espaço e o tempo na dimensão de um bater de
asas. Para aqueles que educam no interior das artes, os sentidos de uma mosca
são vitais – eles precedem qualquer raciocínio.
Vim aqui em nome da Arte, mas a arte de educar torna todo professor
um artista.
E é em nome da arte de educar e da educação pelas artes, esse signo que
fundamenta o ser humano em seu estar no mundo, que eu me lanço no espaço
pibidiano ou em quaisquer outros espaços onde o ato heroico de educar seja
necessário. Porque sou assim, feito Mosca.

Referências
ARTOGRAFIAS PIBIDIANAS: rotinas e experiências dos grupos pibids artes visuais da
UFRGS. Website administrado por Paula Mastroberti. Disponível em: <http://
pibidufrgsartesvisuais.weebly.com/>. Último acesso: jan. 2017.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. São Paulo: Pensamento, 1997.
COSTA, Luciano Bedin; MASTROBERTI, Paula (Orgs.). Super-herói universitário. Di-
cionário Raciocinado de Licenciaturas, Tomo V. Porto Alegre, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
São Paulo: Paz e Terra, 2011.

154
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

MASTROBERTI, Paula. O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Disponível em:
<http://pibidufrgsartesvisuais.weebly.com>. Acesso em: jan. 2016.
MEDIDA PROVISÓRIA N. 746. Site do Planalto Federal. Disponível em: <https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv746.htm>. Último aces-
so: jan. 2017.
PORTARIA 46. Site da CAPES – Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior. Disponível em: <https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legis-
lacao/15042016-Portaria-46-Regulamento-PIBID-completa.pdf>. Último acesso: jan.
2017.
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO (PEC 241/2016). Site da Câmara
de Deputados do Governo Federal do Brasil. Disponível em: <http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1468431&
filename=PEC241/2016>. Último acesso: jan. 2016.
VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. A mente corpórea: ciência
cognitiva e experiência humana. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

155
Como fazer um texto a seis mãos?
Umbelina Barreto1
Lia Regina Roveda Tassi2
Juliana Gonzalez3
Eliana Uczak4
Eduardo Turski5
Ário Gonçalves6

Tenho o privilégio de não saber quase tudo.


E isso explica
o resto.
(Caderno de Aprendiz, Manoel de Barros, 2010)

Este artigo busca dispor os diferentes percursos realizados por quatro


bolsistas do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul, do Subprojeto de Artes Visuais desenvolvido na
Escola Estadual Anne Frank. Focaliza a primeira inserção do PIBID Artes
Visuais no cotidiano da escola, envolvendo a releitura do espaço em transfor-
mações da estrutura visual do espaço de recreação e do espaço da sala de aula,
além de trazer a perspectiva de Projetos de Trabalho nas turmas em que os
bolsistas atuaram buscando as soluções de continuidade dos processos. No
texto, são apresentadas as escolhas de cada bolsista e as justificativas construí-
das a partir de suas reflexões. Para a compreensão das relações e articulações
dos percursos trilhados, a coordenação e a supervisão são colocadas como o
contexto de onde emergiram as propostas, tendo atuado como o espaço de
discussão e reflexão na definição dos rumos ou das mudanças necessárias ao

1
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156
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

conjunto como um todo. O pensamento de pesquisadores e teóricos que de-


ram o suporte necessário à reflexão e à ação introduz, ilumina e traça o desen-
volvimento do texto, riscando e arriscando a possibilidade de compreender e
poetizar o mapa gerado por um texto realizado a seis mãos.

1 Os múltiplos caminhos de um subprojeto PIBID


O que está longe de mim é preclaro ou escuro?
(Os deslimites da palavra, Manoel de Barros, 2010)

Coordenar o Subprojeto PIBID de Artes Visuais é uma função comple-


xa. As variáveis são muitas e é necessário manter a comunicação entre todas
as partes, entre as partes e o todo, além de elaborar conexões entre todos/as
os/as bolsistas envolvidos/as, tal como uma rede, em que as diversas dimen-
sões vão sendo tecidas de modo conjunto e processual. Para Morin, 1995,
complexo é aquilo que é tecido junto, e me ocorre que talvez esta função esteja
relacionada a compreensão de um espaço em que se possa voltar a “sonhar
junto”, tecer possibilidades, buscar engajamentos, inventar encantamentos ou
mesmo encontrar trilhas que possam reverter um processo educativo que tem
se colocado longe, que tem se esquecido de buscar, que já nem sonha mais
com a mudança e que tem se afastado da criação.
O componente curricular Artes no universo da Escola Básica, justamente
por ser considerado “diferente”, tem sido, com frequência, visto como um
espaço para não se fazer nada. Porém, olhando por um outro lado, pode-se ver
que é exatamente este “desfazimento” que traz a potência da transformação.
Por muitas e muitas vezes, tem-se que lutar pela permanência das artes na
educação, sem que seja compreendido como a arte traz a possibilidade de se
desenhar as experiências para que a aprendizagem aconteça e como esse dese-
nho poderá ressignificar a escolarização em uma atualidade em que, aparente-
mente, a informação está dada na mão de todos/as garantindo a “imediatez”
do desenvolvimento do aprendizado, mas que, entretanto, não é isso o que se
vê, pois o desenvolvimento do sujeito não ocorre. Com Maturana, 1990, nós
não vamos mais perguntar o que é a cognição, mas, sim, indagar em que con-
dições ela ocorre? E ainda vamos perceber que as pessoas não são iguais e que
o que você ouve do que eu digo ou entende daquilo que escrevo tem a ver com
você e não comigo, e isso transforma a educação.
A relação com os/as bolsistas pibidianos/as é múltipla, pois alguns li-
cenciandos/as escolhem movimentar-se em caminhos mais diretos envolven-
do retas, mas outros vão sempre em curvas, e ambos os movimentos devem ser
conectados e os seus planos de ação trazidos para a discussão no todo. Os

157
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

propósitos de cada um são distintos e igualmente legítimos, sendo necessário


provocar o seu desdobramento e buscar o seu lugar no todo. Para Maturana,
apud Pellanda, 2009, teórico ligado à complexidade e à autopoiesis, a educa-
ção e o educar devem ser considerados a partir da compreensão de que o futu-
ro de um organismo nunca está determinado a partir de sua origem.
Para Lia Regina Roveda Tassi, supervisora de Artes Visuais na Escola
Anne Frank, o PIBID na escola é uma troca de conhecimento que se dá entre
o/a acadêmico/a, o/a professor/a e os/as alunos/as. Afirma ela que juntos
aprendem e, principalmente, ajudam os/as pibidianos/as a ter mais seguran-
ça, pois conhecendo o dia a dia da escola e se sentindo autorizados/as a atuar,
encontram o apoio necessário para o desenvolvimento das atividades propos-
tas, as quais, por sua vez, trazem uma nova prática para o cotidiano escolar. E,
eu, como coordenadora, complementaria dizendo que essa prática poderia vir
a ser o ruído necessário para que também a escola possa se repensar.
A professora Tassi diz que os professores da escola recebem bem os
bolsistas, pois existe a troca de conhecimento e um novo aprendizado, e sali-
enta que cabe aos próprios professores manter vivo o interesse dos alunos por
questões artísticas através de intervenções pedagógicas, utilizando todas as
ferramentas que estão ao dispor para estimular a todos/as, principalmente os/
as jovens, na busca pelo conhecimento e pela cultura, fazendo-os/as partici-
pantes das mudanças. Enfim, a professora Tassi, que está também vice-direto-
ra da escola, diz que acredita que o PIBID é um pensamento de transforma-
ção, oportunizando novos saberes e olhares, não só dos/as professores/as,
mas também dos/as alunos/as envolvidos/as.
A inserção na Escola Anne Frank marcou significativamente o Subpro-
jeto de Artes Visuais, pois até 2016 só tínhamos trabalhado em duas escolas e
somente com o Ensino Médio. Com a entrada de novos/as alunos/as bolsis-
tas, cursando o segundo semestre da Licenciatura em Artes Visuais, como
coordenadora do subprojeto, eu optei por desdobrar o espaço escolar acres-
centando uma escola que ampliasse as possibilidades de atuação dos/as licen-
ciandos/as com o Ensino Fundamental para o desenvolvimento do projeto.

2 Caminhando, observando, escolhendo e realizando


Eu não sabia que as pedrinhas do rio que eu guardava
no bolso fossem de posse das rãs.
(Caderno de aprendiz, Manoel de Barros, 2010)

Ao entrar na Escola Anne Frank com o PIBID Artes Visuais, fui recebi-
da de braços abertos e, então, já me pus a caminhar, e caminhando observei os

158
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

seus espaços educativos, salas de aula, espaços de recreação, laboratórios, es-


paços administrativos, espaços de circulação e refeitório, e, nessa caminhada,
como boa coletora que sou, encontrei algumas pedrinhas que guardei em meu
bolso. Ao retornar com os/as pibidianos/as para a nossa primeira reunião na
escola, lembrei-me do ato de caminhar, de minhas observações e também de
minha coleta e solicitei que cada um fosse conhecendo a escola aos poucos e
encontrando um caminho, escolhendo uma turma em que gostaria de atuar,
pois esta atuação marcaria significativamente todo o seu processo de iniciação
à docência, e seria como um salto qualitativo, que os levaria a outro plano de
compreensão do que é ser um professor.
Foi então que compreendi Manoel de Barros, na epígrafe que usei aci-
ma, ao perceber que as pedrinhas em meu bolso não me pertenciam.
Para Lia Tassi, a professora supervisora da escola, as atividades que os/
as pibidianos/as de Artes Visuais realizaram foram um sucesso, e, a partir dos
resultados das experiências desenvolvidas na escola, é possível afirmar que “as
artes” interagindo com diferentes áreas de conhecimento, podem ser o cami-
nho para uma educação mais significativa e abrangente.
O certo é que esta interação com as diferentes áreas ainda não ocorreu
concretamente, mas a interação existiu em potência dentro de cada projeto
realizado, e é isso que poderia vir a ser percebido nesse texto, o qual enfrenta a
real possibilidade de se partir em seis, cinco ou mesmo quatro partes definidas
por distintos percursos. Entretanto, esse também é o caminho percorrido no
texto que foi realizado a seis mãos, mas constituído por um único discurso que
se volta sobre o fazer e operar de cada uma das mãos, com todas as dificulda-
des inerentes a isso. Chamo a atenção do/a leitor/a para que possa encontrar
as conexões entre os diversos cursos em movimento, percebendo os exercícios
de fazer/viver um processo de transformação e aprendizagem que acometeu a
todos os autores e, que possa fazer/viver nessa dinâmica o operar de sua pró-
pria aprendizagem.

3 Dos quatro exercícios de fazer/viver


experiências de iniciação à docência
Ou... Há histórias tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas.
(O livro sobre o nada, Manoel de Barros, 2010)

Humberto Maturana, apud Pellanda, 2009, diz que o amor é o domínio


das ações que constituem o outro como um legítimo outro e que só o amor
amplia a inteligência e a criatividade, e que, sendo assim, para que o espaço

159
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

educacional seja um espaço de ampliação, não pode haver avaliações do ser


dos estudantes, mas, sim, de seu fazer. Para Maturana,1990, o mundo surge
da dinâmica de nosso operar como seres humanos. Desse modo é que são
dispostos em curso os quatro exercícios de fazer/viver experiências de inicia-
ção à docência que foram realizados na Escola Anne Frank no segundo se-
mestre de 2016.
Iniciando com uma abordagem do campo da experiência, a pibidiana
Gonzalez nos faz coparticipantes de sua experiência, inserindo-nos em um
campo que parte de seu processo de conscientização, no qual podemos reto-
mar Paulo Freire e a Pedagogia da Autonomia, 2009, que nos traz os saberes
necessários à prática pedagógica, e que segue um curso que vai sendo recupe-
rado e reconstruído sobre a própria memória de sua ação. A sua escrita está
colocada como uma evidência de seu desenvolvimento que amplia o seu pró-
prio espaço de ação através da construção de um repertório que pode vir a ser
acessado a qualquer momento.
Gonzalez vai nos levando por percursos que mesclam o espontâneo e o
imediato, bem como a construção apropriada, refletida e ponderada, deixan-
do-nos, por vezes, atônitos/as e surpresos/as, mas, sempre fornecendo as me-
diações necessárias para que a participação em sua criação seja possível, inclu-
sive com os desvios necessários a cada novo/a leitor/a, que poderá ser um/a
professor/a, um/a futuro/a professor/a, ou uma pessoa que quer, simples-
mente, se aproximar de algum processo educativo. Em suas próprias palavras,
tal como os/as alunos/as da turma de terceiro ano em que atuou, vamos a
cada etapa sendo surpreendidos/as com algo novo, sem a perda do que já
havia sido apreendido anteriormente.
Eliane Uczak se aproxima da palavra e da visualização, construindo
percursos do olhar para provocar o reencantamento da escola. Tendo escolhi-
do movimentar-se junto a uma turma com muitas dificuldades, colocou-se ao
lado da professora, e ambas assumiram a empreitada de reencontrar a escola
perdida por uma turma de crianças que, aos poucos, se dispuseram a escutar, a
ver e a falar. Passamos do campo da experiência do/a pibidiano/a para o cam-
po de experiência da escola, onde Uczak vai levar artistas, pesquisadoras, es-
critoras e professoras para trazer os/as alunos/as para mais perto de si mes-
mos/as, para ajudá-los/as a se ouvirem, e, dessa forma, a também ouvirem o
outro, e a fruirem do seu próprio fazer e valorizarem o fazer de seu/ua colega.
A pibidiana Eliane Uczak constrói com a turma uma experiência artís-
tico-reflexiva em que, talvez, os/as alunos/as engajados/as nesse momento
filosófico, tenham incorporado essa construção de valor onde se aninha uma
aprendizagem que poderá ser vista em sua própria obra também por um outro.

160
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Afinal, Goodman (1995) confirma que as artes não devem ser tomadas menos
a sério do que as ciências como meios de descoberta, criação e alargamento de
conhecimentos, no sentido geral do progresso da compreensão. E então, com
Manoel de Barros, fica-se a pensar: E agora que fazer com esta manhã desa-
brochada a pássaros?
Da experiência da escola, volta-se para a experiência do sujeito em que
se pode vivenciar a paixão que pode nos levar pela mão ao início de um per-
curso de arte de educadora. Eduardo Turski está há mais tempo atuando como
bolsista no PIBID Artes Visuais e já realizou um projeto com alunos/as de
Ensino Médio. Também já apresentou o trabalho realizado com esses/as alu-
nos/as em dois seminários nacionais. Tendo trabalhado em um suporte de
tela, talvez ainda fosse necessário envolver-se em uma proposta em que o su-
porte fosse diretamente o muro, o muro da escola. E é isso mesmo que Turski
traz nessa experiência na Escola Anne Frank. Em ambas as escolas em que
atuou, ele apresentou para os/as alunos/as o seu processo de iniciação à arte
ocorrido ainda no seio familiar, e, mostrou como, de certa forma, é esse prin-
cípio que o fez apaixonar-se pelo graffiti. A paixão de Turski ainda é a mesma,
mas a operacionalização do graffiti vai mudando, conforme ele vai desenvol-
vendo uma linguagem artística e um caminho como arte-educador, onde a
pintura começa a ser processada em camadas e conversas entre procedimen-
tos, materiais e instrumentos, principalmente quando ele consegue ver-se como
arte-educador. É muito significativo que Turski retome os processos de auto-
organização para abordar a proposta processual de construção de um graffiti –
com características muralísticas.
É no Projeto de Trabalho de Fernando Hernandez, 2000, que Turski
verifica o diálogo entre a arte e a cultura visual, talvez realizando um caminho
inverso, ao compreender a arte e construir esta compreensão da arte através da
cultura visual que corresponde ao seu universo, pois ainda é um licenciando, e
não o inverso, como preconiza o percurso do pesquisador.
O quarto exercício de fazer/viver experiências de iniciação à docência
pode ser apontado como o terceiro exercício mais um, pois ele vem no sentido
contrário das experiências com o espaço de recreação da escola, ou seja, o
quarto pibidiano presente neste texto optou por trabalhar a ressignificação do
espaço da sala de aula, transformando-a em uma grande câmara obscura, ou
câmera escura. Mas, as semelhanças também existem, e pode-se pensar que
todos os quatro pibidianos trazem algo em comum, ou seja, realizaram exercí-
cios simultâneos de fazer/ver, uns/umas se aproximando da imaginação, ou-
tros/as da memória, outros/as da audição, outros/as da fala, enfim, todos/as
transformando a cultura da escola, ampliando o universo pedagógico que tem

161
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

por finalidade a relação do ensino-aprendizagem. Chamo ainda a atenção para


o fato de Gonzalez e Gonçalves terem utilizado em um momento do desenvol-
vimento de seu processo de trabalho o mesmo instrumento e material (carvão
acoplado em um extensor), entretanto com um sentido e significado exata-
mente oposto (o primeiro como uma dificuldade para o traçado e o segundo
como uma facilidade do traçado), em função do suporte utilizado (sobre papel
e sobre tecido) e do contexto da ação (papel colocado no chão em ambiente
claro e tecido colocado na parede em ambiente escurecido e com imagens pro-
jetadas). Isso comprova como a construção e o contexto de um projeto preci-
sam ser compreendidos como completamente significativos à experiência e
aos resultados da ação.
Por outro lado, talvez seja interessante enfatizar a diferença desse quar-
to pibidiano, Ário Pereira Gonçalves. Enquanto três pibidianos optaram por
trabalhar processos “diretos” que envolvem a percepção e a apropriação da
imagem, em que a imagem é dada e construída diretamente a partir de um
instrumento que está colocado na continuidade de nossa mão, o quarto pibidia-
no buscou outro paradigma para apropriação e visualização da imagem, fa-
zendo-nos pensar sobre um processo que deixa de ser natural para ser uma
construção, uma máquina. A câmera escura é uma máquina e não está mais
na continuidade de nossa mão, e, sim, está colocada em reciprocidade à “má-
quina de nosso corpo”, com um mecanismo que lembra a complexidade com
que operamos o mundo.
Gonçalves traz uma referência que insere outro paradigma na escola, a
Reduvolution, de Maria Acaso, 2013, com uma proposta de fazer a revolução
na educação, e que tem apontado essa mudança de paradigma pedagógico,
transformando a educação atual.

3.1 Do campo da experiência para os/as licenciandas/os


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
(Desejar ser, Manoel de Barros, 2010)

Em minha primeira experiência como pibidiana em sala de aula, eu


obtive um retorno dos alunos que foi muito significativo. Os alunos se mostra-
ram interessados e participativos, envolvendo-se totalmente nas atividades pro-
postas, e isso, que, a princípio, parece tão simples e singelo, tem me ajudado a
crescer como licencianda no curso de Artes Visuais. Uma das formas de evi-
denciar esse crescimento refere-se à escrita e à possibilidade de refletir sobre o
trabalho realizado, construindo o meu próprio repertório de futura arte-edu-
cadora.

162
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Iniciei como pibidiana de Artes Visuais sob a coordenação da Professo-


ra Umbelina Barreto e a supervisão da Professora Lia Regina Roveda Tassi,
na Escola Estadual Anne Frank. Depois de observar uma turma de sexto ano,
tive a oportunidade de observar também uma turma de terceiro ano de Ensino
Fundamental e percebi que eu estava muito inclinada a realizar um trabalho
com esses alunos menores. A professora desta turma, Juçara Oliveira da Cos-
ta, acolheu de forma muito positiva a minha proposta, pois, nesta etapa, a
escola não tem especialistas em artes para o desenvolvimento curricular.
Na tentativa de chamar a atenção dos alunos para um aspecto do imagi-
nário envolvido na criação, eu solicitei que eles realizassem um projeto artísti-
co denominado: “Meu fantástico bichinho de estimação”, no qual utilizariam
partes de desenhos de animais bem próximos e conhecidos para a construção
de um novo animal ainda desconhecido, agregando características de todos os
animais que seriam utilizados no conjunto gerado.
O trabalho iniciou com uma conversa com a turma, quando perguntei a
cada um sobre os seus animais de estimação. A partir das respostas registradas
(a conversa foi gravada e ouvida posteriormente), eu construí envelopes, como
os envelopes de figurinhas de um álbum, com desenhos bem simples realiza-
dos somente com uma linha de contorno reproduzindo as imagens desses ani-
mais, e levei um envelope para cada aluno. Cada envelope continha imagens
de todos os animais sobre os quais havíamos conversado. Entretanto, as ima-
gens completas de cada animal precisariam ser encontradas e as partes agrega-
das, pois cada uma das figurinhas no envelope só trazia partes e essas partes
ainda precisariam ser identificadas e montadas.
Essa estratégia que usei para desenvolver uma atividade gerou muita sur-
presa entre os alunos. Depois da surpresa, ao encontrarem os animais todos
recortados, patas para um lado e cauda para outro, eu solicitei que eles criassem
o seu bichinho de estimação fantástico utilizando quantas partes quisessem e da
forma que achassem mais adequada. O resultado foi realmente fantástico. Como
era de se esperar de crianças de oito anos, elas ultrapassaram um mero resultado
visual na montagem de criaturas imaginárias. A cada vez que eu parava para
escutar o que falavam enquanto produziam sua montagem, eu ficava impressio-
nada com a riqueza de detalhes e dos motivos de ser de cada um dos bichos que
estavam sendo construídos. Eles não só criavam a aparência física desses “novos
seres”, mas também todo o universo em que eles estariam inseridos, um sistema
envolvendo hábitat e modos de vida que mostrava como os/as alunos/as já têm
noções construídas e apropriadas do significado de ecologia.
A grande novidade da realização desse trabalho com as crianças foi en-
volvê-los em um processo em que, a cada etapa, elas eram surpreendidas com

163
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

algo novo sem a perda do que já havia sido apreendido. Dessa forma, na ter-
ceira etapa trabalhamos com uma coisa que muitos deles nunca tinham visto:
o cartão postal, ou o que, no universo da Arte nós podemos chamar de arte
postal, surgida nos anos 60, e que, de certa forma, antecipou as redes de rela-
ções formadas hoje pela internet. No Brasil, foi Paulo Bruscky (1949), um ar-
tista de Pernambuco, o pioneiro a trabalhar com multimídia, e, entre as mídias,
a arte postal foi uma de suas preferidas. Depois de uma breve explicação de
como iria funcionar a proposta, gerando nova incredulidade ao tomarem co-
nhecimento de que eu sabia os seus endereços e que ficaria encarregada de
enviar para cada um/a o cartão-arte-postal do seu colega, retomamos o bichi-
nho fantástico e, dessa vez, ao invés dos/as alunos/as fazerem a montagem
com cola e papel, eles/as desenhariam esse mesmo bichinho direto no cartão
postal realizando a sua própria arte postal.
A princípio, uma dificuldade de “copiar” fazendo um desenho com uma
imagem exatamente igual a das figurinhas construídas, gerou um coro de re-
clamações e descontentamento com a sua própria forma individual de dese-
nhar, em que os alunos buscavam uma reprodução idêntica à montagem reali-
zada, mesmo vendo que era um bicho fantástico e inexistente, e que, em sendo
assim, poderia ser realizado de uma forma inventiva, e não repetitiva. Depois
de me recuperar de minha própria surpresa em verificar como os limites “rea-
listas” impediam a ação de desenhar naquelas crianças, sentei-me com cada
uma e fomos encontrando formas e estratégias de ultrapassar esses limites,
quebrando as barreiras, para, enfim, desenvolver os desenhos nos cartões, os
quais puderam finalmente ser realizados de forma agradável e prazerosa.
Na continuidade do trabalho, encaminhei um futuro diálogo com o pro-
cesso de pintura mural que já estava em desenvolvimento por Turski, outro
pibidiano do grupo de Artes Visuais. Então, eu levei os/as alunos/as para fora
da sala de aula para realizarem um novo desenho a partir, novamente, da ima-
gem criada de seu bichinho de estimação. Com carvão vegetal, material tradi-
cionalmente utilizado por artistas para desenho, colocados em extensores fei-
tos de canos de PVC, ampliando a distância de seu braço e a ponta do material,
pedi que eles aumentassem seu desenho em uma folha de papel A2, refazendo
o seu bichinho fantástico. Nisso, outra barreira precisou ser quebrada. O car-
vão colocado em uma ponta de um cano estendendo o seu braço dificultava a
firmeza no traço do desenho e obrigava que todo e qualquer risco dado por
eles fosse bem mais gestual e despreocupado. Utilizei esta estratégia, pois, como
eu já havia observado que eles acabam buscando criar imagens “idênticas”,
com essa forma de propor o desenho, isso se tornava bem mais difícil. Além
do carvão disposto desse jeito não dar a precisão que os alunos procuram,

164
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

ninguém poderia sentar-se para realizar a atividade. Todos eles deveriam dese-
nhar em pé e com o papel no chão, o que para eles foi uma experiência de
desenho única.
A última etapa de trabalho referiu-se à introdução dos animais fantásti-
cos em um mural no pátio da Escola Anne Frank, realizado com ajuda do
pibidiano Eduardo Turski, em continuidade ao mural que estava sendo cons-
truído por outras turmas. Depois que os desenhos dos animais fantásticos fo-
ram transferidos para o muro, as crianças voltaram a eles com pincéis e rolos
com tintas de várias cores, transformando as suas criações e produzindo mais
desenhos para ampliar o espaço dos bichos e complementar o espaço muralís-
tico em uma composição conjunta.
Quando delineei o projeto, a minha intenção foi tirar as crianças do
entorpecimento criativo que encontrei dentro da escola. E, com o conceito de
entorpecimento, eu me refiro àquele tipo de desenho em que a imaginação e a
construção de um imaginário ficam de fora, em que não há mais inventividade
– justamente o que procurei levar para a sala de aula, ao propor uma nova
relação com animais conhecidos, relacionando a natureza e a imaginação. Com
as partes dos animais conhecidos, eles puderam misturar e criar algo inexis-
tente no mundo real, mas que ainda poderia ser narrado e contado e apropria-
do cognitivamente, sendo que o processo criativo entorpecido, para mim, é
exatamente a pura reprodução daquilo que é factível, tangível e que faz parte
do cotidiano, da repetição e do conhecimento comum. Ao por em prática com
os estudantes a ideia dos animais fantásticos compostos com imagens de par-
tes de animais conhecidos, eles exercitaram o poder da imaginação, construin-
do um novo repertório imaginário ao produzir trabalhos fantásticos, mas cheios
de histórias para contar, em um exercício espontâneo envolvendo formas de
vida, hábitats e novos contextos.

3.2 Do reencantamento da escola a partir da obra de Beatriz Milhazes


E agora
que fazer
com esta manhã desabrochada a pássaros?
(Poemas rupestres, Manoel de Barros, 2010)

Foi em uma primeira reunião na Escola Estadual Anne Frank, com a


nossa coordenadora, os/as bolsistas do PIBID Artes Visuais, e a supervisora,
professora Lia Regina Roveda Tassi, que é professora de artes nessa escola e,
atualmente, está na função de vice-diretora, em que nos foram apresentadas
algumas turmas em que poderíamos vir a atuar, que uma turma apresentada
como “problemática” chamou a minha atenção. O adjetivo “problemática”

165
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

advindo de substituição de professoras e resistência dos alunos, possibilitou


que eu me dispusesse a observar essa turma com mais cuidado e acabasse por
encontrar tanto características negativas quanto positivas, muitas delas próprias
das inquietudes da idade dos/as alunos/as. Ao lado de disputas e rivalidades,
eu observei e priorizei a vontade de aprender e crescer que traziam aqueles/as
alunos/as e a necessidade de participação constante, trazendo as suas próprias
experiências para compartilhar com o grande grupo.
A turma de quarto ano do Ensino Fundamental, tendo como professo-
ra Lisandra Boeira há aproximadamente um mês e alguns dias em substitui-
ção à professora anterior, que havia se aposentado, foi onde eu, Eliana Uczak,
realizei a minha primeira experiência significativa na escola, no sentido de
que pude atuar em um processo colaborativo e desenvolver um trabalho inte-
grado. Tive, por um lado, a reflexão junto à coordenadora e junto ao grupo de
pibidianos/as, e, por outro, o apoio da professora da turma e da supervisora
de Artes Visuais da escola. A partir disso, eu me senti à vontade para desenvol-
ver oficinas que integraram atividades com objetivos de aprendizagens cogni-
tivas, estéticas, atitudinais e comportamentais, desenvolvendo valores e sabe-
res relacionados à arte, tal como o desenho, o recorte, a pintura, bem como a
observação e a percepção. Eu procurei construir nas propostas com os alunos
a compreensão da importância da arte, e em uma referência à “Abordagem
Triangular”, de Ana Mae Barbosa, 2006, utilizei como fio condutor das aulas
a obra da artista brasileira Beatriz Milhazes (1960), natural do Rio de Janeiro,
que mistura referências do artesanato brasileiro com a Pop Art. Isso me possi-
bilitou enfatizar a importância das cores e seus efeitos no real e no imaginário
e utilizar uma série de materiais diferentes em sala de aula, mas que, ao mes-
mo tempo, eram próximos do cotidiano dos alunos, como, por exemplo: flores
reais e flores construídas de papéis coloridos, papéis de revistas, jornais e en-
cartes, que dialogavam muito bem com a obra de Milhazes.
É necessário que eu mencione ainda um procedimento que reiterei com
os alunos, pois sempre era enfatizado nas reuniões com a coordenação e os/as
colegas pibidianos/as, e que identifiquei como um repertório que eu gostaria
de sempre levar para a sala de aula em minha “mala de professora”: construir
significados do que se vai fazer ou do que se está fazendo, através de um diálo-
go reflexivo realizado no início, durante e no final de cada aula. Eu sempre
priorizei este momento, denominando-o de um “momento filosófico” e esses
momentos acabaram ocorrendo em quase todas as aulas.
O trabalho com os/as alunos/as desenvolveu-se a partir da escolha de
um tema geral que possibilitou a interdisciplinaridade entre as linguagens e as
ciências. A partir de então, foram realizadas oficinas em que optei pela ludici-

166
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

dade aliada à construção cognitiva da ação, tendo como referência o Livro da


especialidade, de Umbelina Barreto, 2006. Partiu-se de uma construção do olhar
através de um passeio sobre as imagens de algumas obras escolhidas de Milha-
zes, realizando atividades de observação, leitura e interpretação, que possibili-
taram, posteriormente, ditados desenhados em articulações coletivas, bem como
explorações da cor em composições a partir das formas de flores descobertas
na obra da artista.
Na sequência, com ferramentas da ciência inseridas na Feira de Ciências
da escola, a cor foi exploradaa partir de explosões de cores e misturas quími-
cas de pigmentos, as quais ainda remetiam visualmente às pinturas de Milha-
zes. Agora a experiência em formações espontâneas levou os/as alunos/as a
observarem os desenhos abstratos que surgiam, que foram colocados também
como um caminho para se chegar às formas de representação de flores. Enfa-
tizei o uso de pigmentos naturais e industriais, a partir de Bueno, 1998: Tintas
Naturais: uma alternativa à pintura artística, uma referência que foi utilizada
nesse diálogo com a ciência, e que se seguiu da observação de formas naturais
relacionadas ao desenho científico, mas focalizando o lado lúdico do obser-
var/brincar com as formas naturais de flores ao transportá-las para o desenho
e, depois, transferi-las para a tela.
Posteriormente, a forma foi retrabalhada com métodos simples de pin-
tura sobre plástico e transferência para o papel, em uma referência direta aos
procedimentos da artista, que faz uma pintura de transferência e vai cons-
truindo a imagem em sobreposições e em camadas de forma e cor. Com essas
articulações e propostas diferenciadas, construíram-se os saberes, havendo
percepções de dificuldades e deficiências de cada momento e de cada aluno,
individualmente. Ao dialogar com todos os envolvidos, foram surgindo refle-
xões individuais e coletivas. A busca por respostas ao final de cada aula, con-
versando sobre o que deu certo e o que não saiu como esperado, era uma boa
preparação para a sequência do trabalho. A constante reorganização do plano
de aula para se adequar às práticas e aos conceitos das Artes Visuais e às ne-
cessidades da turma do quarto ano foram cada vez mais desafiadoras e insti-
gantes, tanto para os alunos como também para mim.
O perfil problemático e difícil da turma foi se modificando e surpreen-
deu a todos. A direção e a coordenação pedagógica da escola visitaram a tur-
ma do quarto ano, incrédulas com a produtividade e o engajamento demons-
trado pela turma, conhecida como a mais agitada da escola. Os/as alunos/as
ficaram muito próximos de nós, eu ainda pibidiana, mas ali sendo vista como
professora ao lado de professoras, e, ao longo do tempo, dispunham-se cada
vez mais a participar das aulas. Tornaram possível até a prática de um amplo

167
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

diálogo com o “Momento filosófico em artes”, em que os/as alunos/as podi-


am se expressar em palavras ou gestos corporais sobre a atividade que haviam
produzido.
A partir dessa experiência artístico-reflexiva, consegui chegar com os/
as alunos/as até o resultado que possibilitou a participação em um mural ex-
terno, na quadra esportiva, realizado na escola, onde os/as alunos/as queri-
am e puderam mostrar à comunidade escolar o conjunto do trabalho produzi-
do por toda a turma do quarto ano. A referência desse trabalho realizado no
muro foi a captura do contorno do corpo e da transformação dessa forma com
o que havia sido trabalhado em aula, como flores e cores. Os alunos articula-
ram diferentes códigos, construíram significados e traçaram novos percursos
de criação, combinando diferentes elementos visuais, sem esquecer do estilo
da artista estudada, que foi utilizado como modelo inicial gerador de novos
caminhos.
Enfim, esse último trabalho, finalizado com a proposição de pintura do
muro da escola, em uma parte da quadra de esportes, dentro do PIBID Artes
em 2016, foi um desafio enorme para os/as alunos/as. Foram realizados pro-
jetos individuais, em duplas e em grupos de quatro alunos, e por último, a
turma de 23 alunos, com idades regulando em nove anos, foi dividida em dois
grandes grupos para a realização da pintura. Nesse momento, todos nós nos
superamos. O trabalho final da pintura do muro ocorreu no último dia de
aula, com a participação de todos, coordenação do PIBID, supervisão, profes-
sora da turma e também os colegas, Juliana Gonzalez e Eduardo Turski, que
auxiliaram na logística da preparação do muro e na documentação da ativida-
de, bem como na finalização da obra, gerando espaços de continuidade entre
um e outro mural.
Os/as alunos/as colaboraram entre si e seguiram as orientações confor-
me as conversas do “momento filosófico” e, depois de realizado o trabalho,
puseram-se a conversar sobre a obra, resgatando o valor de sua escola. Foi
impressionante verificar que, quando comecei as oficinas com eles, eram mui-
to competitivos e que conseguiram superar e utilizar as diferenças de forma
positiva ao construir um grande trabalho feito por toda a turma. Ao vê-los
trabalhando juntos fiquei muito emocionada, o que me faz lembrar de Maria
Marcondes Machado, que escreve “[...] que o melhor que um educador pode
fazer por uma criança é ser, ele mesmo, uma pessoa em desenvolvimento e em
processo criativo, amoroso sempre [...]” (1994). E afirmo que a amorosidade
trazida pela autora, tal como o amor trazido por Maturana, 1991, deve estar
presente, não somente na educação, mas em todas as práticas do cotidiano
que envolvam o convívio com as pessoas e as relações interculturais e sociais.

168
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

3.3 Da paixão por Graffiti ao início de um percurso como arte-educador


Passam formigas perdidas
no lado esquerdo
da casa.
(O livro de Bernardo, Manoel de Barros, 2010)

Na Escola Anne Frank, vislumbrei a possibilidade de trabalhar um pro-


cesso colaborativo na construção da arte, e, simultaneamente, mostrar a im-
portância de expressar a minha paixão pela arte. Desde criança, eu, Eduardo
Turski, desenvolvo uma linguagem em Graffiti e, quando iniciei no curso de
Licenciatura em Artes Visuais, o meu trabalho se ampliou tendo se acrescen-
tado, inclusive com a experiência como bolsista de iniciação à docência.
Como bolsista, eu já apresentei o trabalho que tenho realizado no
PIBID em dois seminários nacionais, e isso me possibilitou refletir e retomar
o que tenho feito, vendo através de novas perspectivas. Em 2016, trabalhei em
um projeto de trabalho a partir do conceito de Hernández, abrindo espaço em
um muro da Escola Anne Frank, com uma extensão de aproximadamente 10
metros, onde a cada semana organizávamos alunos de diferentes turmas com
um interesse em comum na elaboração do Graffiti. Este trabalho foi coordena-
do por mim, mas teve a colaboração de vários/as bolsistas do PIBID: Juliana
Gonzalez, Eliane Uczak, Samanta Kraemer, que auxiliaram na preparação do
muro, na organização dos alunos e também na elaboração e retomada da pin-
tura, além de se envolverem na documentação, que teve o auxílio da coorde-
nadora do Subprojeto de Artes Visuais, Professora Umbelina Barreto.
A construção do Graffiti no muro, ou do mural, como também pode ser
chamado pelas características pictóricas enfatizadas, foi proposta em diferen-
tes etapas, enfatizando o processo e evidenciando as transformações visuais
que ocorriam semanalmente. As transformações, motivadas por materiais e
procedimentos distintos, iam se sobrepondo e visavam a definição de uma
imagem que pudesse ser compartilhada entre todos, sendo reconhecida pelos
alunos que partilharam da sua criação, que, desse modo, poderiam sentir-se
parte também de sua escola, visto que esta foi transformada pela obra.
Ao propor um projeto que se desenvolveria em uma série de atividades
voltadas para a elaboração de uma obra coletiva que se complementaria com o
passar das etapas em cada semana e cujo processo seria visto e partilhado por
todos ao longo do tempo de execução, foi possível presenciar o surgimento de
uma camada complexa que ia sendo composta também por uma mistura de
ideias, pois, apesar de definir procedimentos bem determinados, os/as alu-
nos/as se reorganizavam e inseriam a sua visão sem esquecer o propósito des-

169
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

sa construção que vinha sendo elaborada por muitos indivíduos com o intuito
de gerar um trabalho final valioso e instigante ao olhar da própria comunidade
escolar.
A proposta de criação consistiu em uma trama de ideias criada de forma
coletiva, fomentando a auto-organização como um dos principais conceitos
para essa ação. Tendo iniciado na primavera, essa ideia foi a primeira que
congregou os participantes. Nas etapas de trabalho, houve momentos em que
os/as alunos/as trabalharam dobraduras para realizar formas em estêncil (mo-
delo vazado para a colocação da tinta no suporte, que fica limitada à forma
que foi recortada) para a pintura do muro. Com as tintas em spray foram utili-
zadas formas naturais, como folhas e galhos, que foram utilizados como mo-
delos a orientar e limitar o jato de tinta, dando uma forma à colocação da tinta
em spray, fazendo aparecer figuras em positivo e em negativo, ampliando o
escopo da imagem.
Em um primeiro momento, com uma base branca no muro, a proposta
apresentada para os/as alunos/as foi que iniciassem uma composição de li-
nhas gerando desenhos, e, para isso, foram usadas fitas adesivas pretas (fita
crepe) para que, de imediato, pudesse ser gerada uma visualidade com a oposi-
ção das linhas pretas sobre o muro branco, definindo um impacto visual forte.
Conforme os/as alunos/as começaram a enxergar as figuras surgidas, suas
próprias e de seus colegas, eles/as começam a se empolgar e adensar ainda
mais esse muro branco com os desenhos realizados com as fitas. Nesse mo-
mento, já é visível o processo que vai ocorrendo de auto-organização se forma-
lizando naturalmente entre todos/as os/as participantes, na qual alguns, indi-
vidualmente, compõem alguns desenhos, e entre si vão se espalhando e com-
pondo o todo, enquanto outros formam grupos e compõem figuras de modo
coletivo, e também vão se integrando nesse processo de uma organização na-
tural que flui subjetivamente e que se mostra de uma forma instigante.
Após a etapa das fitas, na sequência, na semana seguinte, os/as alunos/
as passam a compor o plano com cores suaves e aguadas, tintas fluidas feitas
com pigmento, resina acrílica e água, gerando uma visualidade que parece o
resultado de uma grande aquarela. Iniciam a composição com algumas cores,
usando rolinhos e pincéis largos e chatos. Os procedimentos são distintos, pois,
enquanto alguns alunos/as jogam as cores de forma abstrata, outros colorem os
desenhos compostos pelas fitas pretas, sem que, necessariamente, tenham sido
feitos por eles/as. Conforme as aguadas vão se misturando no muro, novos tons
surgem, e o mural vai se transformando de forma constante. O muro então se
tornava um grande arco-íris com cores em sobreposição, mas todas cores dei-
xando ver o desenho anterior pela transparência do material utilizado.

170
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

A proposta de trazer a referência da estação que chegava na época em


que aconteceu a realização do mural, a primavera, é que levou à utilização de
folhas naturais de árvores como moldes vazados para que a pintura feita por
cima gerasse texturas naturais advindas das formas de folhas de algumas plan-
tas e árvores. As folhas, além de gerar uma visualidade efêmera, pois seriam
retiradas posteriormente, liberaram alguns aromas próprios de cada espécie de
folhas que ali constavam e, posteriormente, ao serem retiradas deixaram ver as
texturas visuais que haviam sido criadas. Foi nesse momento que a aplicação
da tinta foi feita com o spray, iniciando aí uma experimentação e apropriação
da técnica do spray por parte dos alunos que se interessaram e realizaram suas
intervenções. Após a retirada das folhas de árvores, era perceptível como as
texturas demonstravam, de forma sutil, as formas geométricas e orgânicas que
os formatos de folhas propiciaram para o conjunto de camadas que o mural
vinha recebendo. Essa construção por camadas também vai mostrando como
o plano se forma, com pequenas sutilezas, e vai surgindo um amplo espaço
imaginário que explicita uma certa perspectiva de profundidade, como um
cenário constituído de muitas cores, formas e texturas.
Nessa nova etapa, então, é a vez dos alunos apreciarem o traçado do
spray, de forma que possam experienciar livremente essa ferramenta que não é
de fácil manuseio. Entre tentativas e experimentos, vão surgindo caligrafias,
símbolos, figuras abstratas e visualidades que fazem parte do repertório criati-
vo individual de cada um que está ali a intervir no muro. Em meio ao excesso
de figurações, os alunos vão interagindo e tentando compor junto ao todo
com traços de spray. Em alguns momentos, houve dificuldades na integração
das intervenções entre si, na qual algumas figuras entravam em conflito. En-
tão, aos poucos, as formas foram se encaixando, de forma sutil, natural e cola-
borativa. Com o passar das semanas, a cada transformação, entre conflitos e
resoluções, o muralismo foi tomando forma e contemplando a participação de
cada um que ali depositou sua contribuição artística a partir de seu repertório
de referências e de culturas distintas, sem perder a unidade, que era sempre
resgatada pelo grupo de pibidianos envolvidos.
No decorrer do processo, os alunos passaram a se perceber enquanto
parte desta ação, gerando, assim, um sentimento de pertença em relação à
escola, pois ali se viam representados. Conforme o painel foi tomando forma,
os alunos passavam a compreender o crescimento da densidade da pintura e
da quantidade de signos e elementos que são significativos para eles. Passaram
a contemplar o que ia sendo criado e foram vislumbrando e apreciando a che-
gada ao resultado final dessa composição, criada por diversas mãos, que aca-
bava por gerar uma enorme trama de cores, texturas, figuras e ideias.

171
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

No final do processo, com um olhar mesclado entre contemplação e


cognição, percebendo o que ali se mostrava, tentei compreender e analisar a
composição como um todo e também fiz uma participação, realizando inter-
venções em que tentei fazer toda a forma dialogar, dissolvendo alguns confli-
tos visuais, e, assim, proporcionando certo reequilíbrio nas cores, nas formas e
nos espaços.
Por fim, é importante acrescentar que a experiência foi positiva para
todos/as, pibidianos/as e alunos/as da escola, que gostaram muito de ter par-
ticipado, tendo demonstrado interesse do início ao fim, desde a preparação do
muro, com a pintura do fundo branco, estando muito presentes durante todo o
decorrer do processo. Nessa experiência, nós pudemos perceber o desejo dos/
as alunos/as de contribuir para a melhoria do cotidiano da escola, e como esse
cotidiano mais vivo, criativo e humano ou desagradável, repetitivo e negativo
é fruto de nosso próprio empenho e engajamento, e que talvez eu possa ter, de
alguma maneira, transmitido aos/as alunos/as a minha paixão pelo graffiti e
pela arte e o quanto isso melhora o meu dia a dia.

3.4 Da sala de aula como um espaço performado de aprendizagem e


convivência
Tudo que não invento é falso.
(O livro sobre o nada, Manoel de Barros, 2010)

O projeto que eu, Ário Gonçalves, realizei na Escola Anne Frank den-
tro da proposta do PIBID Artes Visuais chama-se “A câmera escura na esco-
la”, a sala de aula como um espaço performado de aprendizagem e convivên-
cia, e foi desenvolvido com uma turma de sexto ano, durante o segundo se-
mestre de 2016. A escola está localizada em um bairro de classe média de
Porto Alegre, mas, apesar da localização centralizada, atende também mora-
dores da periferia da cidade. A faixa etária dos alunos da turma em que atuei
tinha uma variação dos 11 aos 14 anos de idade.
O trabalho que desenvolvi consistiu em transformar a sala de aula em
uma grande câmera escura, ressignificando o espaço da própria sala ao trazer
para o seu interior imagens externas à escola. Nessa sala de aula transforma-
da, os alunos foram solicitados a fazer um desenho coletivo sobre um suporte
colocado na parede. O desenho foi definido pela captura de uma imagem exte-
rior à sala de aula e que estava projetada no suporte. A projeção se dava atra-
vés da entrada de luz por um orifício feito em grandes banners colocados nas
janelas vedando a entrada da luz externa. O tamanho e a posição do orifício
precisaram ser calculados para que a imagem externa se projetasse nas paredes
e no teto da sala, possibilitando o reconhecimento das figuras ali definidas.

172
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

A câmera escura, ou câmera de orifício utilizada como conceito no de-


senvolvimento desse projeto, é um objeto simples, tratando-se de uma caixa
vedada à luz, com um pequeno orifício que permite a passagem da luz por um
dos lados projetando, na parede oposta a ele, a imagem externa frontal ao
orifício. Foi justamente nessa parede oposta ao orifício que foi fixado o supor-
te onde os/as alunos/as fizeram seu desenho coletivo. Para desenhar, os/as
alunos/as utilizaram carvão acoplado em uma extensão que os afastava do
suporte para que pudessem reconhecer a imagem.
Inicialmente, os/as alunos/as foram colocados em contato com uma
câmera escura portátil, possibilitando a compreensão do seu funcionamento.
Ao mesmo tempo foi apresentado a eles um breve histórico dessa tecnologia.
Ainda nesse primeiro momento, os/as alunos/as tiveram acesso a artistas
contemporâneos que utilizam esse conceito nos seus trabalhos, para que se fa-
miliarizassem com as formas de visualização propostas. Utilizando a câmera
escura portátil sob a luz do sol, os/as alunos/as realizaram, individualmente,
pequenos desenhos a grafite, de aproximadamente 20 x 30cm, reproduzindo a
imagem de seus colegas. O trabalho foi feito em duplas, em que um desenhava
e o outro posava frente à câmera escura portátil.
No segundo momento, a sala de aula foi transformada em uma grande
câmera escura, seguindo o modelo da casa-câmera de alguns artistas, buscan-
do realizar um trabalho com o coletivo de alunos. A turma foi dividida em
dois grupos para a realização do desenho, sendo que cada grupo realizou a
atividade sem ver o que o outro grupo havia feito. De forma espontânea, na
hora da divisão dos grupos, os/as alunos/as se dividiram por idade, ficando
um grupo composto com os/as mais velhos/as e outro contendo somente os/
as alunos/as mais novos/as.
A experiência vivida com a construção de uma câmera escura na sala é
visual, entretanto, envolve a imersão sensorial, pois os alunos se encontram
dentro da imagem. O desenvolvimento cognitivo dos alunos ocorre quando
reconhecem as imagens e compreendem a sua origem, verificando como elas
se formam no interior de uma câmera fotográfica e, por reciprocidade, tam-
bém em nosso cérebro.
Um dos resultados obtidos com a realização deste trabalho foi a ressig-
nificação dos espaços e da nossa maneira de ver o mundo. Voltou-se a ver o
que, aparentemente, já não se via por estar sempre disponível, ou seja, a ima-
gem externa que foi projetada dentro da sala, foi ressignificada ao se propor
uma nova forma de ver. No primeiro momento, quando os alunos realizaram
o desenho a grafite, já ocorreu um certo estranhamento, pois a imagem vista
através do orifício se apresenta invertida e de cabeça para baixo. Vendo que os

173
BARRETO, U. et al. • Como fazer um texto a seis mãos?

pés e a cabeça estavam no lugar errado, os/asalunos/as pediam para que a


caixa fosse virada, com a esperança de que os membros voltassem ao seu lugar
de origem. No interior da sala-câmera, a escola se transforma. Reflete as ima-
gens das crianças na pracinha do lado de fora, e, aparentemente, as crianças
correm pelo teto. Também é possível pisar nas copas das árvores, trazendo-nos
outra realidade. O azul do céu é percebido depois de algum tempo, bem como
as demais cores. Nesse espaço assim transformado, a passagem do tempo é
sentida mais lentamente, entretanto, o tempo-movimento visto projetado na
parede é mais rápido e frenético.
Em todo o processo de percepção, há uma sensação de tranquilidade
quebrada pela ansiedade causada pelo desconhecimento inicial das formas
projetadas. Imagem e som se separam. Lá fora alguém grita de um lado, mas
dentro da sala a sua imagem está do outro lado. Com o início do desenho,
verifiquei que os bastões de carvão riscam o tecido aceleradamente da mesma
maneira que o primeiro grupo se movimentava no interior da sala. Já no se-
gundo grupo, o grupo dos/as alunos/as mais velhos/as, os bastões são movi-
mentados mais ordenadamente, mesmo sabendo que as formas riscadas são
manchas que ganharão forma só depois de saírem da sala.
Na sequência do trabalho, foi proposta uma continuidade dos desenhos
a carvão realizados no interior da sala-câmera, em que os/as alunos/as foram
convidados/as a usar tinta acrílica branca, na tentativa de tornar mais reco-
nhecível ou visível ou identificável o que haviam feito. Retiraram linhas que
poderiam estar em excesso, e então, finalmente, retrabalharam novamente co-
locando cor em sua obra e finalizando-a.
A pesquisadora que fui buscar para me ajudar a fazer uma reflexão sobre o
projeto da câmera escura na escola foi Maria Acaso. A pesquisadora e professora
propõe uma revolução na educação, que ela chama de Reduvolution (2013), trans-
formando as pedagogias tradicionais. De certo modo, eu verifiquei que o projeto
guarda alguma semelhança com o princípio das instalações performadas de Ma-
ria Acaso, que busca tornar significativo o espaço da escola. Para finalizar é
importante dizer ainda que o trabalho gerou muitos diálogos entre os alunos e
novas curiosidades que foram sendo apreciadas e respondidas, inclusive, com a
articulação e algumas apropriações advindas de outras áreas do conhecimento.

4 Enfim, ou por fim

Convoca-se a todos/as pibidianos/as, professores/as e alunos/as, da


universidade e da escola básica a uma reflexão final sobre o papel da arte na
escola ou, mais significativamente, da função da arte no processo de escolari-

174
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

zação em relação aos demais componentes curriculares, ou, ainda, no proces-


so de desenvolvimento humano constituindo o conjunto de nosso conheci-
mento. É acrescentada aqui a afirmação de Goodman, 1995, sobre a arte como
indispensável à aquisição de conhecimentos pela expansão de nosso conheci-
mento sobre o mundo através da construção de novos modelos de realidade.
E como os novos paradigmas do conhecimento e o conhecimento com-
plexo, e as mudanças na forma de apreender têm afetado ou transformado as
formas de fazer/viver a educação? Frente a isso, Maturana nos remete à circu-
laridade educador/educando, dizendo que o educador e o educando apren-
dem e se transformam no ato educativo e que, se não houver essas transforma-
ções, então não ocorreu processo educativo nem construção de conhecimento.
Então, será que a arte na escola é só uma conversa fiada e não entendida
e jogada fora, como um “parangolé”? Será que a arte tem servido somente
para os/as alunos/as fazerem exercícios de bola ao cesto com bolinhas de
papel elaboradas com os exercícios gráficos descartáveis, que não significam
nada para educador/educando realizados em papéis removidos imediatamen-
te para descarte? Ou a arte na escola é uma conversa séria, mas que se guarda
no bolso e se usa somente quando temos um problema a resolver, entretanto,
sem nunca sabermos bem de onde é que saiu esta conversa?

Referências
ACASO, Maria. Reduvolution. Barcelona, Espanha: Paidós, 2013.
BARBOSA, Ana Mae. Arte/Educação contemporânea. São Paulo: Cortês, 2006.
BARRETO, Umbelina Maria Duarte. Canções de cantar e contar: Livro da especialidade:
Artes Visuais. Porto Alegre: CAEF da UFRGS, 2006.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2010.
BUENO, Maria Luciana Busato. Tintas naturais: uma alternativa à pintura artística.
2. ed. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2009.
GOODMAN, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: ASA, 1995.
HERNANDEZ, Fernando. Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. Por-
to Alegre: ARTMED, 2000.
MATURANA, Humberto. El árbol del conocimiento. Santiago: Universitária, 1990.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Portugal: Instituto Piaget, 1995.
PELLANDA, Nize Maria Campos. Maturana & a Educação. Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2009.

175
Ressonâncias do aprender
em uma prática docente
no ensino da Geometria...
Lisete Regina Bampi1
Letícia Diello2

Eu tenho a medida que designo – e este é o esplen-


dor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito
mais a medida que não consigo designar. A
realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo
como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do
buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia,
e que instantaneamente reconheço.
(Lispector, 1964)

Da metodologia
Dizem que aprender não ocupa lugar. Bem sei que
ocupa tempo. Mas tempo bem empregado costuma
dar juros, e os juros vêm em forma de tempo.
(Lispector, 2006)

Comecei com uma questão e, com ela, gostaria de fazer uma outra, de
ordem mais geral: como mostrar, concretamente, ressonâncias do aprender
(DELEUZE, 2003) em conexão com uma empiria? Parece-me que esta ques-
tão se conecta com o nosso grande desafio enquanto educadores que querem
realizar pesquisas empíricas em educação, especialmente, inspiradas no pen-
samento de Gilles Deleuze. Aqui que se encontra (a meu ver) a principal difi-
culdade dos trabalhos inspirados em Deleuze e, particularmente, no aprender
enquanto tradução de signos.

1
Professora do Departamento de Ensino e Currículo. Coordenadora do Subprojeto Matemáti-
ca. E-mail: lisete.bampi@ufrgs.br.
2
Bolsista do Subprojeto Matemática, atuando na Escola Estadual Anne Frank. E-mail:
leticiadiello@gmail.com.

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Dar conta das abstrações que Deleuze realiza com a literatura, a pintu-
ra, a música, o cinema, a matemática, entre outros saberes (dados para os
outros), em conexão com uma empiria, não é coisa que se resolveria sem uma
intensa alegria. Distinguindo os signos sensíveis dos demais, surge uma espé-
cie de sentimento de obrigação. A conexão exige um trabalho de criação como
gênese do ato de pensar no próprio pensamento que surgirá nos encontros
com os signos: necessidade de procurar o sentimento do signo (DELEUZE,
2003).
Neste capítulo, vislumbramos certo estilo ignorante (RANCIÉRE, 2007).
Queremos nos tornar poetas, ao mesmo tempo, superficiais e profundos (BAM-
PI; CAMARGO, 2016b). O aprender, desde então, pode manifestar-se na vi-
vacidade do mundo, onde a explicação como tradução de signos torna-se “exemplo
didático de criação”, revelando-se em práticas de iniciação (BAMPI; CAMAR-
GO, 2016c). Nossas experiências com a docência, e as de outros docentes,
estão contidas naquilo que fazemos na escola contemporânea. A pergunta Que
fazer? instalou-se no início das nossas experiências: já visando a um fim? (BAM-
PI; CAMARGO, 2016c). Ora, quando pensamos na tradução de signos como
método, temos todo o direito de perguntar como fazer? enquanto metodologia que
pode surgir no dia dia. E esse como fazer? tem, também, o objetivo de desenvol-
ver sentidos e decifrar signos do aprender, tornando-se meio (CAMARGO;
BAMPI, 2013).
Não se trata de arquivar dados sobre educação, guardando em um espa-
ço a memória de uma dada instituição, ou da identidade da sociedade ou de
uma realidade estudada, até então. Tampouco, estou respondendo à intrigan-
te pergunta “como ensinar tudo a todos?”, formulada por Comênio em sua
Didática Magna (1957), muito antes dela incomodar tantos profissionais da edu-
cação, preocupados com a referida questão. Trata-se de pensar no aprender como
um acontecimento que não se contenta com uma associação de ideias, nem
com uma grande caixa de conhecimentos (DELEUZE, 2011; BAMPI; TELI-
CHEVESKY, 2012).
Talvez possamos recriar os signos da vida real naquilo que aprendemos
e ensinamos, dentro e fora da sala de aula, em qualquer instituição onde circu-
lam conhecimentos. Afinal, o que é mais convincente do que os fatos da vida
real? Meu objetivo principal, neste texto, consiste em reconhecer a produtivi-
dade das práticas que saltam do cotidiano em meio aos dados necessários à
vida real. E, por sua vez, o criador, o decifrador de hieróglifos (pode ser um
professor), uma aluna, um profissional, um homem sensível preocupado com
a educação do filho (ou da filha), dentre outros, que se preocupam gentilmen-
te com pequenos gestos que podem render muito mais, funcionará como o

177
BAMPI, L. R.; DIELLO, L. • Rossonâncias do aprender em uma prática docente no ensino de Geometria..

ciumento, ou seja, tornando-se um intérprete divino, vigiando o signo pelo


qual a verdade se trai. Não há metodologia posta de antemão, se falamos em
metodologia, falamos a posteriori: a inteligência é boa quando vem depois (DE-
LEUZE, 2003). E somente isso.
Quando se trata de decifração de signos, rompe-se com a cadeia de asso-
ciação, causando efeitos difíceis de domar no mundo da representação: “já
não há homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz
um no outro” (DELEUZE; GUATTARI, p. 8), ligando seres humanos, ani-
mais, minerais, entre outros mundos que emitem sinais. Processos produtores
que tornam possível fazer aquilo que Deleuze, como um homem sensível, arris-
ca-se a não fazê-lo: percebendo as essências implicadas nas coisas (mais ou me-
nos) como quem vê aqueles pequenos pedaços de papel do jogo japonês, desdo-
brando-se na água, estirando-se ou explicando-se, ao formar flores, casas e per-
sonagens, realiza abstrações (às vezes com associações, regadas de reflexões).
Com isso, parece-me que uma empiria (do ponto de vista de uma tradu-
ção de signos), quando existe, não pode ser tratada a partir de relações que
causam efeitos, de comparações com o já acontecido, em que analisamos uma
dada realidade para relacioná-la a uma dada teoria. Assim, a tarefa do aprendiz
tradutor consistiria em compreender por que “alguém é `recebido´ em determi-
nado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mun-
dos e quem são os seus legisladores e seus papas” (DELEUZE, 2003, p. 5).
Porém, como enxergar no aprendizado de alguém essa arte de tecer mundos?3
Como fazer ressoar experiências distintas por um vínculo sonoro de uma
aliança de palavras? São os signos do amor que concretamente fazem ressoar a
verdade, fazendo com que ela se revele (traindo-se a si mesma). A inteligência,
forçada pelo signo amoroso, sofre uma coação que não a deixa livre para esco-
lher: essa coação é a da sensibilidade, a do próprio signo no nível de cada amor
(DELEUZE, 2003). Cada palavra, funcionando como um sinal que o ser ama-
do emite, torna-se mentira de outro, conduzindo-nos à busca da verdade. Po-
rém, como expressar essa experiência, desviando-se de um relato ou de uma
história a ser contada?
No processo de tradução de signos, graças à arte, em vez de contemplar-
mos um só mundo (o nosso), podemos enxergá-lo multiplicando-se e, assim,
dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem (PROUST,
1995). Analogamente, o que se obtém para o ensino da matemática escolar? O
que o processo tradução guarda com o texto de partida (pode ser o relato de

3
Esta questão foi desenvolvida em uma comunicação apresentada no VIII CIFE – VIII COLÓ-
QUIO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO (BAMPI et al., 2016a).

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

uma prática docente) consiste numa relação de invenção, onde todo o conteúdo
é perdido (como se nunca tivesse sido possuído), restando-nos a obra como tra-
dução, decifração de signos. Ou seja, a arte faz com que o nosso mundo se
desdobre no outro de todos os mundos, é o mesmo mundo, mas com outros
signos. O aprender, assim como a experiência, torna-se demasiadamente trans-
gressor para relatá-lo. O pensamento com palavras tem cores outras, tornam-se
imagens, como acontece nos sonhos (LISPECTOR, 2006; BAMPI; TELICHE-
VESKY, 2012).
Larrosa (2011), quando questionado sobre uma formação de professo-
res que aproxime o par experiência/sentido, sugere uma leitura do Kamasutra,
ou A arte de amar de Ovídio, livros que lê como sendo sobre viagens. Ele suge-
re, com eles, refletir sobre o que significa ensinar a outros a amar, ou a viajar.
E, com as reflexões originadas desse ato, sacar conclusões sobre o que signifi-
ca ensinar os outros a ensinar, ou a deixar aprender, ou viver, quando o ensi-
nar deixar de ser somente uma técnica ou uma prática, mas, também, uma
experiência. Não que a experiência prescinda de técnicas (mesmo que isto não
se torne um caso, neste momento).
Enfim, Larrosa (2011) traduz tais obras como relatos de uma iniciação:
esta é a minha experiência... eu fiz assim... se ela te servir de algo, faz a tua
própria experiência. De uma experiência, podemos extrair seu surpreendente
pluralismo e dar vivacidade, por exemplo, a um relato de atividades desenvol-
vidas em um programa de iniciação à docência. O relato pode ser pensado
como um “texto-imagem” a ser recriado com os signos do próprio aprendiza-
do (BAMPI; TELICHEVESKY, 2012). Afinal, uma experiência pode surgir
com o tocar, o pôr a mão, o apalpar, conduzindo-nos a criar caminhos, onde
podemos nos encontrar com os signos da arte de amar, por exemplo, no ensi-
no da geometria (ou observando uma fotografia).
Aqui não é necessário que tenha havido uma experiência real, mas uma
exaustiva demonstração de força (alegria ou vontade de viver) (BAMPI; TE-
LICHEVESKY, 2012). Entregando-nos a ela, talvez possamos reconhecê-la
deveras. Neste momento fecundo, diversos caminhos se abrem, permitindo a
inteligência surgir em toda a sua vivacidade, nunca mostrando toda a sua for-
ça. Porém, deixando-se dobrar (ad infinitun) em meio à velocidade de um apren-
der que pode surgir em uma oportunidade: num tempo oportuno, em que a
verdade tem uma relação essencial com a novidade (BAMPI; CAMARGO,
2016c). Avançar lentamente, tateando, é a única possibilidade em que a dor de
um aprofundamento lateja como num ferimento.
É como se algo estivesse em curso e tivéssemos que permanecer firmes
sem saber do que se trata: mas o que acontecerá na próxima aula? Conteúdos,

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BAMPI, L. R.; DIELLO, L. • Rossonâncias do aprender em uma prática docente no ensino de Geometria..

exercícios, exemplos, explicações, ilustrações. Há mais. E, também, há me-


nos. E, também, há muito. O muito pode tornar-se pesado, até cansar (BAM-
PI; CAMARGO, 2016b). Acompanhe-nos, agora, neste processo, em que o
relatar rendeu algo mais, ainda que menos em nosso pensamento, em que per-
der tempo tornou-se o nosso mais eficiente procedimento. Aprendemos atra-
vessando as ruas, na fila do supermercado, nos estacionamentos, no shopping
(olhando as vitrines coloridas...), do lado direito (ou na rua direita), naqueles
lugares onde se perde tempo...

Do relato
A linguagem é o meu esforço humano. Por
destino tenho que ir buscar e por destino volto com as
mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só
me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem.
(Lispector, 1964)

Este relato já não é o mesmo relato das atividades que foram desenvol-
vidas pelos bolsistas do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
à Docência), Subprojeto Matemática, na Escola Estadual Anne Frank, duran-
te os anos de 2015 e 2016, com uma turma de oitavo ano. No entanto, mesmo
sempre sendo um novo relato, com outro foco, ainda é quase a mesma: a expe-
riência, ainda não foi esgotada e, num cansaço interior, se “reconstrói a cada
dizer, a cada palavra que insiste em ser escrita, num aprender que se renova e
sempre tem algo a dizer, ainda que indizível” (BAMPI et al., 2014).
No ano de 2015, participaram do projeto vinte e dois alunos, e dezesse-
te em 2016. Cada um desses trinta e nove alunos desenvolveu, durante sua
vida escolar, diferentes formas de aprender. Como deixaríamos de lado muitas
outras formas tão importantes quanto as elencadas nos currículos escolares?
Foi com essa afirmação que o projeto elaborado pelos bolsistas focalizou-se
em quatro recursos para ensinar um mesmo conteúdo, ou seja, a matemática
escolar a ser ensinada seria viabilizada por meio de quatro oficinas, quais se-
jam: a) matemática no cotidiano, que foi desenvolvida com exemplos que repre-
sentam uma dada realidade, abordando diversas formas em que a matemática
escolar se apresenta nas vivências dos estudantes; b) jogos, que utilizou dife-
rentes jogos, lúdicos ou não, para apresentar os conteúdos matemáticos; c)
resolução de problemas, que permitiu aos alunos perceberem situações em que a
matemática foi utilizada na solução de problemas; d) mídias, que utilizou dife-
rentes recursos tecnológicos (softwares, aplicativos, filmes, fotos, dentre outros).

180
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

Os bolsistas tinham, também, como objetivo secundário que os alunos


percebessem o próprio aprendizado. Para tanto, ao final de cada uma das ofi-
cinas, perguntavam aos alunos em qual delas aprenderam mais e, ainda, de
qual oficina eles mais gostaram. As respostas para as duas perguntas foram,
na maioria das vezes, bem distintas. Ao longo do ano, notaram um grande
desenvolvimento, por parte dos alunos, no que se refere à percepção do pró-
prio aprendizado. Os alunos passaram a identificar-se mais com uma metodo-
logia do que com outra e, assim, passaram a perceber suas potencialidades de
acordo com o desenvolvimento das aulas. Ao mesmo tempo, a professora su-
pervisora da escola solicitou que trabalhassem no projeto conceitos da geome-
tria, uma vez que suas turmas, durante as suas aulas, nunca haviam entrado
em contato com conceitos geométricos. Assim, o projeto foi reformulado, ou
seja, a ênfase que era em Diferentes Recursos para o Ensino passou para os Dife-
rentes Recursos para o Ensino da Geometria.
A partir daí, passamos a estabelecer quais seriam os conteúdos desen-
volvidos pelo projeto durante o ano escolar. Em conjunto com a professora
supervisora, os conteúdos das oficinas ficaram definidos como: figuras geo-
métricas planas, área e perímetro de figuras planas, ângulos de figuras planas,
figuras geométricas espaciais e volume dos sólidos geométricos. A ideia, en-
tão, consistia em apresentar aos alunos cada um desses conteúdos a partir dos
quatro temas escolhidos em forma de oficinas semanais. Cada conteúdo, en-
tão, seria finalizado em um mês de aula, durante quatro encontros de dois
períodos. A ordem das oficinas não seria (e não foi) sempre a mesma, cabendo
aos bolsistas de iniciação decidirem como e em que ordem cada conteúdo
seria abordado.
Ao longo dos encontros, fomos notando um crescente interesse da tur-
ma pela nossa proposta. Percebemos que se construiu certa relação de cumpli-
cidade entre bolsistas e alunos, tornando o projeto ainda mais divertido para
todos os envolvidos. Os conceitos de área e perímetro, entretanto, foram os
que geraram mais comoção entre os alunos. Na primeira oficina, tratamos de
um conteúdo completamente novo para a turma. Para os bolsistas, foi uma
proposta completamente diferente do que já haviam experimentado. A pro-
posta foi apresentada como um jogo não lúdico em que cada grupo ficaria
responsável por preencher uma ficha produzida pelos professores. A ficha di-
recionava cada um dos quatro grupos em que a turma foi dividida para um
local diferente da escola. Munidos de uma trena, canetas e um papelão qua-
drado de 1m x 1m, os alunos deveriam responder as perguntas contidas na
ficha-atividade. A primeira pergunta relacionava-se ao ato de cercar a região
onde o grupo se encontrava na escola. Assim, com a trena, deveriam medir o

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BAMPI, L. R.; DIELLO, L. • Rossonâncias do aprender em uma prática docente no ensino de Geometria..

local, assemelhando-o com uma figura geométrica já vista no conteúdo an-


terior e, desde então, estabelecer uma quantidade de material em metros ne-
cessária para cercar o local.
A partir dessa atividade, muitos alunos tiveram seu primeiro contato
com uma trena, tendo de estabelecer estratégias para medição com o instru-
mento. Após isso, os alunos deveriam, em grupo, desenvolver uma estratégia
para descobrir quantos quadrados de papelão caberiam no chão do local onde
estavam. A única regra do jogo era que eles não poderiam cobrir todo local
com o quadrado, sendo instruídos, assim, a designar um padrão e utilizá-lo o
mínimo possível. Assim, cada grupo desenvolveu uma estratégia para desco-
brir a área, embora eles ainda não soubessem do termo, do local onde esta-
vam. A utilização do quadrado de papelão de 1mx1m foi, sem dúvida, o me-
lhor material usado na atividade.
Os alunos, a partir disso, passaram a, de fato, visualizar a representa-
ção do m² e não somente a contentar-se em escutar explicações sobre essa
unidade de medida de área. Ao final da atividade, todos os grupos retornaram
à sala de aula, sendo convidados a problematizar as diferenças entre formas de
medição. E, assim, com a ajuda dos bolsistas, formalizamos os conceitos de
área e perímetro e suas diferenças.
No segundo encontro, desenvolvemos a oficina de resolução de proble-
mas. Solicitamos aos alunos que fechassem os olhos e imaginassem a casa de
seus sonhos: como seriam os cômodos? De que forma seriam os móveis? E a
pintura? E, assim, apresentamos a seguinte situação: cada um dos alunos rece-
beu como herança de um tio-avô distante um terreno de 14mx20m. Como
último desejo do seu distante parente, cada um deles deveria construir a casa
de seus sonhos, com algumas exigências pela herança. A casa deverá ter, no
máximo, 120m², com no mínimo um banheiro, uma cozinha, uma sala e um
quarto. Além disso, o condomínio não permite construções de mais de um
andar. E mais uma surpresa: cada um de vocês tem um orçamento de R$
300.000,00 para gastar com a construção da Casa dos Sonhos.
Durante o primeiro encontro, cada aluno teve que fazer a planta-baixa
de sua casa. Nessa oficina, foram desenvolvidas noções de escala, relações de
medidas e visualização espacial. Muitos alunos não tinham noção do quanto
significava um metro em uma construção. Além disso, as medidas da casa
estavam restritas à exigência da casa ter, no máximo, 120m². Assim, cada cô-
modo da casa teve sua área calculada, bem como a área total da casa. Diferen-
tes estratégias para o cálculo de área foram utilizadas. Notamos certa tendên-
cia dos alunos em preencher as figuras com quadrados de 1mx1m, tendo rela-
ção com a oficina anterior.

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Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

A construção das plantas-baixas nas folhas de papel levou mais tempo


do que prevíamos e, por isso, trabalhamos durante duas semanas em sua fina-
lização. Na terceira semana, foi desenvolvida a oficina de mídias. No laborató-
rio de informática, utilizando o software gratuito Sweet Home 3D, cada um dos
alunos ficou responsável por transferir sua planta-baixa para o programa de
arquitetura disponibilizado nos computadores. Durante a oficina, eles tinham
a responsabilidade de escolher os revestimentos da casa, bem como janelas,
portas e todos os acabamentos. A escala usada no papel (cada dois centíme-
tros no papel correspondia a um metro de construção) deveria ser respeitada,
bem como as restrições de área. Com o software, foi inserida uma nova infor-
mação e dimensão na planta: a visualização da casa em 3D. Desde então, os
alunos passaram a ter uma nova percepção da casa: espaços pequenos, espa-
ços grandes, mudanças de planos, etc..
Não esquecendo o orçamento de R$300.000,00, todos os alunos tive-
ram que fazer pesquisa de preço de material e mão-de-obra, além de fazer um
levantamento de gasto parcial por cômodo. E, assim, foi construída a quarta
oficina sobre o conteúdo de área e perímetro: matemática no cotidiano. Por meio
da pesquisa de materiais e mão de obra, os alunos passaram a relacionar a área
e o perímetro de cada cômodo a algo físico e palpável. Quanto maior a área de
um cômodo, mais dinheiro se gastava com a instalação do piso (cobrada por
m²) e com caixas de porcelanato que deveriam ser compradas.
Ao final das quatro oficinas, ao serem questionados sobre qual encon-
tro foi mais legal e em qual deles aprenderam mais, as respostas foram diversas.
Mas a turma toda foi unânime no ponto em que se referia ao sucesso do proje-
to. Em todos os encontros seguintes, os alunos questionavam os bolsistas se
um dia continuariam trabalhando em suas plantas. No final do ano, durante a
oficina de matemática no cotidiano com o conteúdo de geometria espacial, os
alunos retomaram o projeto da planta e construíram um protótipo de suas
casas em forma de maquete. Assim, estabeleceram uma relação espacial física,
e não apenas virtual, com a visualização plana a partir da confecção das pare-
des, móveis e decoração.
O projeto, como um todo, foi amplamente aceito nas turmas em que foi
desenvolvido. Os alunos responderam de forma surpreendentemente positiva
a cada proposta de oficina, interagindo com os colegas e com os professores, a
fim de “tirar dúvidas”. É muito importante ressaltar que o aceite do convite, no
início do ano, foi fundamental para que uma cumplicidade existisse entre bolsis-
tas e alunos, possibilitando ao projeto exercer sua potencialidade. Da mesma
forma, quando aceitamos um convite, inspiramo-nos e “começamos a falar de
sua escrita enquanto um movimento de nosso aprender” (BAMPI et al., 2014).

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BAMPI, L. R.; DIELLO, L. • Rossonâncias do aprender em uma prática docente no ensino de Geometria..

Da palavra... Conclusão

Recuso-me a dar provas. Mas se alguém insistir muito


em “porquês”, digo: a mentira nasce em quem a cria e passa
a fazer existirem novas mentiras de novas verdades.
Uma palavra é a mentira de outra.
(Lispector, 1974)

Assim como a palavra “explicação” instiga-me, desde a investigação que


perpassa esta conclusão, deixo indícios para refletirmos sobre o processo de
tradução de signos em conexão com o relato em questão. Seguindo critérios
de uma busca em exaustão, observo que o itálico está sendo usado nesta conclu-
são para indicar o lugar da tradução, bem no meio da didática que vem tecendo
os fios das nossas práticas em educação (BAMPI; CAMARGO, 2016c). A
palavra transmissão, como uma espécie de ligação, possibilita que esta expres-
são pedagógica privilegie em um ato comum o ensinar e o aprender como
aquisição do conhecimento através de uma bagagem (pode ser cultural, por
exemplo). Recorrendo a paradoxos que envolvem este movimento artístico
“paradoxos de aprender e ensinar” (KOHAN, 2009), podemos chegar à tão
almejada criação, em que este ato torna-se tão necessário como àquele que liga
o aprender e o acontecimento.
Neste instante oportuno, pôr o itálico na transmissão, significa “dar e re-
ceber” (LARROSA, 2001), ou seja, tomar a palavra (dada pelos outros) e fazê-
la funcionar entre saberes pelos quais poderes circulam, em que o aprender
pode surgir, precisamente. Por isso, a explicação torna-se força, prolongando-se
e escapando de relações que causam efeitos identitários, embora necessários
ao aprender-acontecimento (DELEUZE, 2003). Como professores, queremos
tornar-nos claros, fazer-nos entender pelos alunos. Ao ensinar um novo con-
teúdo, no caso, relacionado ao ensino da geometria, apresentamos problemas
(novos?) com os quais o conhecimento até então adquirido é insuficiente à sua
resolução (CAMARGO, 2011).
O que se faz, no geral, é explicar esse problema através do conteúdo mate-
mático que queremos ensinar. Entendemos, a partir disso, que a explicação
é algo essencial e inerente ao conhecimento, quase como um sinônimo. O que
fazemos, em geral, seria explicar como esse dado problema pode ser resolvi-
do através de determinado saber matemático. E esse saber, por sua vez, é o
algo que queremos ensinar (CAMARGO, 2011, p.11).

A má explicação do professor resultaria, então, em um mau aprendizado?


Ora, essa perspectiva responsabiliza o professor pelo processo ensino-aprendi-

184
Iniciação à docência: espaços, conexões e processos no PIBID/UFRGS

zagem4 em sua totalidade, cabendo ao professor transmitir seu conhecimento


da melhor forma. Torna-se, assim, um grande desafio entender e perceber que
o professor não é (e não deve ser) o centro do processo de aprendizado. É
importante notar que existe aprendizado sem explicação, como contraexem-
plo dessa falsa sinonimação entre aprendizado e explicação, em outra produ-
ção, construímos uma legítima resposta-de-questão (encontra-se em revisão): pa-
ciência, então!
Mas, então, como se dá o aprendizado sem a explicação? Novos recur-
sos devem ser abraçados para que essa pergunta seja possível de ser respondi-
da? As metodologias que conhecemos como formas da explicação, podem fun-
cionar como ferramentas do aprender (BAMPI; CAMARGO, 2016b). A res-
posta que encontramos ao desenvolvermos o projeto Diferentes Recursos para o
Ensino da Geometria através do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID) foi a de seguir vários caminhos, atentos às experiências com-
partilhadas entre professores e bolsistas. As experiências criam modos singu-
lares que podem derrubar “obstáculos disciplinares ou, com eles, inventar algo
no momento de exercitar o pensamento nas salas de aula, ou em um processo
de aprendizado (pode ser em cima de um tablado). Algo a florescer entre os
espaços ainda não cultivados de ensinar e aprender” (BAMPI et al., 2014).
Espaços a percorrer em meio às brechas que nossas ações podem dar a conhe-
cer em meio às intervenções no cotidiano, repleto de realizações. As nossas
intervenções, por exemplo, quando dizemos a um adolescente te liga, podem
trazê-lo ao presente. Quem é que sabe como é que alguém aprende a tornar-se
inteligente?

Referências
BAMPI, Lisete; TELICHEVESKY, Miriam. A estudante e a professora fugitiva... Um
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leitura. Zetetiké, Campinas, v. 21, n. 40, p. 120-125, jul./dez. 2013.

4
Interessa-me, aqui, observar uma relação com o paradoxo implícito que a “explicação” (RAN-
CIÈRE, 2007) desenvolve: o da subdivisão ao infinito sempre passado-futuro e jamais presente
(DELEUZE, 2011, p. 78). No contexto desta associação, ela funciona como o hífen necessário
às formas da expressão ensino-aprendizagem, criando uma espécie de ponte que pode ofuscar
“o que acontece no meio” (CAMARGO; BAMPI, 2013).

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