Você está na página 1de 78

Desafios Epistemológicos e Políticos da Filosofia na Escola Básica

ISSN 231 7-1 332


R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 -76, Jun./Jul./Ago./Set. 201 3
A Revista do NESEF Filosofia e Ensino é uma publicação quadrimestral do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Sobre o Ensino de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.
Coordenação: Ana Carolina Mallmann, Geraldo Balduíno Horn e Valéria Arias
Conselho editorial: Alejandro Cerlleti (UBA), Amaury César Moraes (FEUSP), Anita Helena Schlesener
(UFPR/UTP), Antônio Edmilson Paschoal (PUCPR), Antônio Joaquim Severino (UNINOVE), Carmen Lúcia
F. Diez (UNIPLAC), Celso Fernando Favaretto (FEUSP), Délcio Junkes (UFPR), Celso de Moraes Pinheiro
(UFPR), Celso Luiz Luidwig (UFPR), Dalton José Alves (UNIRIO), Danilo Marcondes (PUCRJ), Darcisio
Muraro (UEL), Domenico Costella (IFIL), Elisete Tomazetti (UFSM), Emmanuel José Appel (UFPR),
Euclides André Mance (IFIL), Filipe Ceppas (UFRJ), Gelson João Tesser (UFPR), Giselle Moura Schnorr
(FAFIUV), Gustavo Ruggiero (UNGS - ARG.), Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR), José Antônio Martins
(UEM), José Benedito de Almeida Júnior (UFU), J. M. de Barros Dias (UE - PT), Jorge Luiz Viesenteiner
(PUCPR), Junot Cornélio Matos (UFPE), Marcelo Senna Guimarães (Colégio Pedro II - RJ), Marcos Lorieri
(UNINOVE), Maria Cristina Theobaldo (UFMT), Mauricio Langón (IPES/ANEP - UY), Patrícia Del Nero
Velasco (UFABC), Paulo Henrique Fernandes Silveira (FEUSP), Ricardo Fabbrini (USP), Roberto de Barros
Freire (UFMT), Rodrigo Pelloso Gelamo (UNIMEP), Tânia Maria F. Braga Garcia (UFPR), Vanderlei de
Oliveira Farias (UFFS), Walter Omar Kohan (UFRJ), Zita Ana Lago Rodrigues (U. LUSÓFONA - PT).
Comitê de avaliação da edição: Alécio Donizete da Silva (UFMT), Carmen Lúcia Fornari Diez (UNIPLAC),
Darcisio Muraro (UEL), Delcio Junkes (UFPR), Domenico Costella (IFIL), Giselle Moura Schnorr (FAFIUV),
J. M. de Barros Dias (UE-PT), Junot Cornélio Matos (UFPE), Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN).
Produção gráfica e artística: Murilo Rocha
Colaboração: Coletivo de pesquisadores do NESEF/UFPR.
Apoios: Murilo Rocha - Tecnologia; Universidade Federal do Paraná - PROGRAD; Instituto de Filosofia da
Libertação – IFIL; Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná - APP – Sindicato
Versão digital: http://www.nesef.ufpr.br/revista
Capa: Arte de Murilo Rocha a partir da imagem da tela Small Pear Tree in Blossom de Vincent van Gogh.
Acervo: Van Gogh Museum. Direitos liberados para uso educacional e não comercial. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br
Como citar esta edição: REVISTA DO NESEF Filosofia e Ensino. Desafios epistemológicos e políticos da
filosofia na escola básica. Curitiba, UFPR, vol.3, nº3, p.1 -76, jun.,jul.,ago.,set., 201 3.
Informações sobre reprodução: É permitida a reprodução total ou parcial dos conteúdos deste periódico
desde que citada a fonte, conforme especificação dos editores e legislação que regula a propriedade
intelectual.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.
SISTEMA DE BIBLIOTECAS. BIBIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO
___________________________________________________________________________________________
REVISTA do NESEF / Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino de Filosofia da
UFPR; coordenação: Geraldo Beduíno Horn e Valéria Arias; produção gráfica e artística: Murilo Rocha; conselho
editorial: Alejandro Cerllete ... et al., v.3, n.3 (201 3).
Curitiba, PR : UFPR, 201 3.

Desafios epistemológicos e políticos da filosofia na escola básica


Quadrimestral
ISSN 231 7-1 332

1 . Filosofia - Estudo e ensino - Periódicos. I. Universidade Federal do Paraná. II. Horn, Geraldo Balduino. II.
Arias, Valéria. III. Mallmann, Ana Carolina; IV. Cerllete, Alejandro.
CDD 20.ed. 1 01
___________________________________________________________________________________________
Sirlei do Rocio Gdulla CRB-9ª/985
Sumário

SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................................................4

Seção I - Artigos
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio
Anita Helena Schlesener............................................................................................................ 6

Da especificidade da filosofia ao seu ensino


Antonio Edmilson Paschoal..................................................................................................... 16

O lugar do pensamento no ensino da Filosofia


Paulo Henrique Fernandes Silveira.......................................................................................... 25

O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino
Médio
Ademir Aparecido Pinhelli Mendes e Edson Teixeira de Rezende.......................................... 35

Seção II - Informativo NESEF


Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade
Geraldo Balduíno Horn............................................................................................................ 49

Seção III - Opinião


Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
Louise Cristina Vieira...............................................................................................................61

Seção IV - Resenhas
Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos. Geraldo Balduíno HORN
Naldemir Maria Mendes...........................................................................................................73

Instruções editoriais para autores.........................................................................................76

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 -76, Jun./Jul./Ago./Set. 201 3
5 Apresentação

APRESENTAÇÃO
Neste terceiro número a Revista do NESEF Filosofia e Ensino concentra-se na
reflexão acerca das várias interfaces do ensinar e aprender filosofia na escola básica.
Entende-se que o desafio histórico da educação filosófica no Brasil destinada ao
público da educação básica, não se resolve, apenas, mediante a garantia institucional da
presença da filosofia nos programas de ensino dos currículos dessa etapa formal da
escolarização. Para além do espaço curricular da filosofia, hoje garantido por lei, é preciso
considerar a face política da educação filosófica – no bojo da política educacional mais geral
–, a qual, não raro, por caminhos alheios à razão filosófica de corte emancipatório, traça
diretrizes de ensino quase sempre alinhadas com as hegemonias vigentes. Já no campo
epistemológico, ou seja, no que tange à necessária identidade entre os conteúdos da filosofia
escolar e os conhecimentos filosóficos propriamente ditos, também há muito que refletir,
debater e propor.
Nesse sentido, os textos selecionados neste número relacionam-se, cada qual a um
conjunto de aspectos do problema complexo da qualidade e da identidade da educação
filosófica na educação formal.
A Seção Artigos inicia-se com a contribuição de Anita Helena Schlesener, Ensinar
Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio. A autora
parte da clássica questão: ensinar filosofia ou ensinar a filosofar? – formulada inicialmente
por Kant, mas que ao longo do tempo, assumiu várias configurações – e, neste estudo, faz
uma reflexão acerca dos determinantes históricos que consubstanciam as “escolhas
filosóficas”. A argumentação da autora, ao mesmo tempo em que considera a especificidade
dos conhecimentos filosóficos, relaciona a problemática do ensino da filosofia ao lócus da
educação escolar, o qual, em certo sentido, pela sua extensão, alcance e contradições, é
expressão privilegiada do caráter essencialmente político e histórico da filosofia.
Antonio Edmilson Paschoal, no artigo, Da especificidade da filosofia ao seu ensino,
concentra-se em identificar e analisar os significados, do assim chamado “modo
especificamente filosófico” de pensar, organizar e reproduzir o conhecimento. Tais reflexões
remontam-se ao próprio conceito de filosofia e, considerando a filosofia em sua forma
escolar, entende o autor que o debate acerca da especificidade da filosofia, precede e
fundamenta as investigações metodológicas.
Em O lugar do pensamento no ensino da Filosofia, Paulo Henrique Fernandes
Silveira, traz um conjunto de reflexões e posições originais a partir de perguntas que há muito
tempo se colocam no horizonte do ensino da filosofia e, mais amplamente, da educação
filosófica, tais como: é possível ensinar filosofia? É possível ensinar a pensar? Para filosofar
é preciso conhecer a história da filosofia? Revisitando filosofias e posicionamentos de vários
teóricos, sobretudo de Kant e Heidegger, o autor expõe contornos do problema da autonomia
intelectual, considerando o fenômeno, crescente e observável na contemporaneidade - da

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.4-5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


Apresentação 6
recusa das pessoas em exercitar o pensamento e enfrentar as consequências resultantes desse
ato.
Finalizando a Seção, apresenta-se o trabalho dos pesquisadores e professores de
filosofia da educação básica Ademir Aparecido Pinhelli Mendes e Edson Teixeira de
Rezende, intitulado O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de
aula no Ensino Médio. Trata-se da descrição e da análise filosófica de uma ferramenta
metodológica para o ensino de filosofia a partir de aulas desenvolvidas com turmas de ensino
médio, em instituições de ensino públicas, pelos próprios autores. Neste artigo relatam os
encaminhamentos e resultados pedagógicos do trabalho utilizando o capítulo XVII d’O
Príncipe de Maquiavel.
Na Seção Informativo NESEF, Geraldo Horn apresenta, além de um painel da história
recente acerca da institucionalização da disciplina de filosofia na educação básica, análises de
documentos orientadores do currículo e registros normativos. Com o objetivo declarado de
ampliar o necessário debate político-educacional e conferir caráter mais assertivo às
proposições daí decorrentes, o texto tematiza a relação entre dois pontos fundamentais
presentes no universo dos debates e da construção da educação filosófica escolar brasileira
nos últimos anos. Um deles diz respeito à legalidade, à ocupação e à ampliação do espaço
curricular da disciplina de filosofia e o outro, cuja importância precede qualquer discurso de
natureza institucional, diz respeito à legitimidade e/ou legitimação da presença da filosofia na
educação básica.
Na Seção Opinião, o ensaio de Louise Cristina Vieira revisita as visões
estandartizadas sobre a filosofia de Nietzsche, um dos pensadores mais popularizados na
história recente. Em Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? , a autora defende que a
filosofia nietzscheana demonstra elevado vigor crítico se interpretada como indicadora da
necessidade de criação de uma perspectiva filosófica que não seja orientada, tão somente, à
negação dos dualismos e compreensões afeitas à tradição metafísica.
Por fim, na Seção Resenhas, Naldemir Maria Mendes apresenta sua leitura da obra de
Geraldo B. Horn, Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos.
Acredita-se que este conjunto de textos pautados em concepções diversas, porém que
se entrecruzam e complementam-se no horizonte problemático da elaboração e reprodução do
conhecimento filosófico, via processo educacional, fornece aos leitores subsídios importantes
para a reflexão de alguns dos pontos mais substantivos dos debates atuais sobre o ensino de
filosofia, cuja expressão mais geral, imbrica-se, para além do ensino formal, no âmbito maior
da educação filosófica, enquanto construção histórico-cultural.

Saudações filosóficas

Ana Carolina Mallmann


Valéria Arias
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.4-5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
7 Seção I - Artigos / Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio

SEÇÃO I - ARTIGOS
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino
Médio
Anita Helena Schlesener1
Resumo
Esse trabalho pretende refletir sobre o retorno da filosofia ao ensino médio. Para tanto,
faremos algumas observações a respeito da especificidade desse ensino e das dificuldades a
enfrentar ante essa especificidade. Parte-se dos escritos de Antonio Gramsci, tanto para
explicitar a importância do ensino da filosofia na formação de um pensamento coerente e
crítico quanto para levantar as suas dificuldades. Segue-se salientando a reviravolta dialética
que caracterizou o surgimento do marxismo e que, na expressão de Walter Benjamin, trata-se
de uma nova “revolução copernicana”. Finaliza-se com as diferenças entre ensinar e
questionar a partir da nova perspectiva da filosofia na sua articulação com a história.

Palavras-chave: filosofia; ensino de filosofia; marxismo; Gramsci; Benjamin.

Teaching Philosophy or instigate thinking? The Kantian challenge in the reality of high
school

Abstract
This paper aims to reflect on the return of philosophy to secondary education. It begins with
some observations regarding the specificity of this teaching and the difficulties to confront
against this specificity. We started of the writings of Antonio Gramsci as far to explain the
importance of teaching philosophy in the formation of a coherent and critical mind as to raise
their difficulties. Followed stressing the dialectical reversal that characterized the emergence
of Marxism. In a expression of Walter Benjamin, this is a new "Copernican revolution". We
ended with the differences between teaching and challenge to the new perspective of
philosophy in its relationship with history.

Keywords: philosophy; teaching philosophy; marxism; Gramsci; Benjamin.

____________________
1 Doutora em História (UFPR), Professora de Filosofia Política da UFPR (aposentada) e Professora do Mestrado
e Doutorado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Pesquisadora do NESEF/UFPR. E-mail:
anita.helena@libero.it

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 8
Introdução
O que o Saber demonstra... é que o homem só pode ser livre e satisfeito se todos
o forem ao mesmo tempo e se cada um reconhecer a liberdade e a satisfação do
outro como liberdade ... e como satisfação ... humanas (CHATELET, 1972, p.
181).

O retorno da filosofia como disciplina no ensino médio, após muitos anos de


reivindicação do movimento docente colocou um novo desafio para os professores dessa área:
a questão de como ensinar ou abordar um conhecimento produzido ao longo de mais de vinte
e cinco séculos. Parte-se aqui do pressuposto que não existe uma Filosofia, mas filosofias e
escolhemos sempre uma delas. Essa escolha depende de posicionamento político, assim como
de reconhecimento do conteúdo teórico-metodológico inserido em um contexto histórico.
Toda filosofia porta uma ontologia e uma antropologia, em torno das quais se define o
que é educação. A educação escolar, portanto, insere-se no contexto amplo da formação do
individuo em sociedade e tem um caráter social determinado pela comunidade ou pelo grupo
social do qual se faz parte e que orienta a ação e o comportamento. A partir dessas
características, a inserção da filosofia como disciplina do ensino médio tem a enfrentar os
limites do ensino escolar determinados pelos objetivos sociais e as suas próprias
especificidades, muito bem colocadas por Kant no desafio que nos instiga a escrever esse
texto.
Muitos filósofos, no curso da história da filosofia, se ocuparam da questão da
especificidade do ensino de filosofia, mas Kant conseguiu explicitar de forma primorosa o
desafio que enfrentamos enquanto professores e mostrou, de modo magistral, que existem
duas formas de apresentar e de abordar o conhecimento filosófico. Uma forma simples de
transmissão de um saber historicamente produzido e congelado em textos denominados
clássicos, principalmente por abordarem problemas recorrentes na história das culturas das
sociedades; uma forma é complexa e entende a filosofia como um pensamento em
permanente construção e que precisa ser apreendido em seu movimento de reconhecimento e
superação das contradições que caracterizam a realidade vivida. Na primeira acepção, a
filosofia se constitui num conjunto de teorias mais ou menos encadeadas e aparentemente
neutras, fruto do pensamento deste ou daquele filósofo no esforço individual de entender
elementos que o mesmo considera essenciais e merecedores de empenho reflexivo; na
segunda, a filosofia assume a sua condição de errância, na dupla acepção desse conceito: errar
significa caminhar e buscar, mas também errar e aprender com os erros superando-os. Essa
segunda acepção não distingue teoria e prática e cultiva o hábito da dúvida sem temer o
confronto com a incerteza, o absurdo e a inexistência de um ponto fixo onde ancorar-se.
Conforme Valéry a proposito de Leonardo da Vinci, filosofar é “uma atitude”, um
modo pelo qual alguém “pensa sua vida ou vive seu pensamento, numa espécie de
equivalência ou de estado reversível entre ser e conhecer” (2006, p. 243). A tarefa de Sísifo

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


9 Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio

consiste em seguir o movimento contraditório da vida, tanto na sua materialidade quanto na


nossa imaginação. O que se descobre com da Vinci, com Walter Benjamin ou com Gramsci, é
que a filosofia não se apresenta como um sistema explicativo, mas como um pensamento
aberto, histórico, inacabado e sempre recomeçado, que enfrenta o paradoxal, o ambíguo e o
contraditório, a desencadear sempre novas reflexões. Nem por isso deixa de ser um trabalho
rigoroso, um procedimento detalhado que, muitas vezes, não se conclui no curso de uma vida.
Nesse contexto, as categorias fundamentais para a compreensão do movimento real
deixam de ser apura consciência de si e o pensamento voltado sobre si mesmo, mas a
contradição e as formas que esta assume no processo de construção das condições materiais
de existência, na formação social enquanto um conjunto articulado de relações de força pelas
quais se produzem estruturas contraditórias que precisamos conhecer para superar.
A partir desses pressupostos pretendemos fazer algumas reflexões sobre a tarefa de
um professor de filosofia que, na nossa compreensão, é instigar o aluno a pensar e a apoiar-se
nos textos clássicos para fazer a leitura do seu tempo. Trata-se de acentuar que a filosofia
constitui-se do movimento do pensamento e este movimento não é unívoco, não segue uma
única senda, mas produz-se no embate de ideias, por meio do qual uma razão se configura e
se consolida como expressão da verdade em certo momento histórico. Ensinar filosofia
consiste em cativar o aluno transformando o estudo filosófico num trabalho de investigação
que procura conhecer o discurso do outro para conhecer-se a si mesmo.
Uma nova “revolução copernicana”:

O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Troia dos sonhos
(BENJAMIN, 2009, p.437).

Hegel reconheceu a atividade material que se exprime no trabalho humano e abriu


caminho para soluções revolucionárias ao pensar a contradição como motor interno dos
acontecimentos; ao apreender o homem em sua condição empírica e enquanto elemento
constitutivo de uma sociedade determinada, recolocou as bases da atividade filosófica, mas
permaneceu ainda no plano da ontologia; Hegel pretendia ser fiel à empiria, o que implicava
reconhecer a historicidade (da sociedade e do conhecimento) mas, ao mesmo tempo, manter
as bases universais e legitimadoras do discurso metafísico na ideia de Espírito Absoluto.
Como acentua Chatelet (1972, p. 189), se faz a crítica a Hegel por apresentar o problema
político efetivo em termos tais que “só pode receber uma solução ideal, uma solução do
pensamento e para o pensamento”.
Marx, na sua crítica e superação da filosofia hegeliana, procurou entender o homem a
partir de sua historicidade, em cujo movimento produz a sua vida e a aperfeiçoa por meio do
trabalho, que define a sua própria natureza como criador de si próprio, o seu modo de ser, não
só material mas também espiritual. Como acentua Chatelet (1972, p. 202) nessa dimensão
empírica que caracteriza a existência humana pode-se distinguir “o que é fundamental”
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 10
daquilo “que é histórico” (...): “é fundamental, por exemplo, que o homem é necessidade” e
que esta é determinada conforme a “ordem histórica”. É fundamental reconhecer a
materialidade da natureza humana, pela qual o homem constrói a sua vida por meio do
trabalho; é histórico que a força de trabalho seja reduzida a mercadoria e se constitua na base
do estranhamento de si e da sociedade. Nas palavras de Gramsci, é abstrato falar de um
homem genérico, da mesma forma que é abstrato reduzir o homem ao individual isolado; o
efetivamente concreto é compreendê-lo em uma determinada circunstância histórica
(GRAMSCI, 1977).
Marx explicitou precisamente essa contradição entre a busca de um universal
legitimador de um saber filosófico e a dimensão histórica do real e, a partir de sua militância
política, desenvolveu uma nova concepção de filosofia acentuando a exigência de superação
da metafisica e da reformulação interna da filosofia na sua articulação com a política e a
história. A partir dessa inversão de perspectiva conceitos como liberdade, por exemplo,
precisam ser remetidos ao contexto histórico e político: a liberdade só pode efetivar-se
quando, na prática cotidiana, depender do reconhecimento de todos que, por sua vez e ao
mesmo tempo, se realizam como homens livres (CHATELET, 1972).
O novo significado da filosofia enquanto atividade essencialmente política e histórica
foi acentuado por Marx na Tese XI contra Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o
mundo de várias maneiras tratando-se, agora, de transformá-lo” (MARX, 1974, p. 59). Para
Gramsci essa Tese não nega a filosofia, mas lhe atribui uma nova dimensão: a filosofia da
práxis “é a plena consciência das contradições, na qual o filósofo – entendido
individualmente ou como grupo social global – não só compreende as contradições, mas
coloca a si mesmo como elemento da contradição, eleva esse elemento a principio de
conhecimento e, consequentemente, de ação” (GRAMSCI, 1977, p. 114-5). Na verdade a
atividade filosófica muda de objeto e de abordagem do conhecimento: a base de sua atenção
deixa de ser o fundamento universal para fixar-se na realidade efetiva e concreta, isto é, não
mais o Ser Absoluto, mas o processo contraditório de formação da sociedade.
O que Marx evidencia nessa nova “revolução copernicana2” é que a atividade
filosófica, assim como todo conhecimento historicamente produzido, não é neutro, mas se
produz como e se traduz em poder no âmbito das lutas de classes. Com isso, o que tentou
fazer foi retirar da burguesia o privilégio de construir um pensamento homogêneo sobre a
realidade a fim de mostrar às classes trabalhadoras a necessidade política de reconhecerem-se
no movimento contraditório de construção da sociedade e de refletirem sobre suas lutas, seus
sonhos e seus projetos; de certo modo, mostrou como as classes dominantes se apropriaram
do passado cultural para consolidar seu poder e que as lutas de classes implicam enfrentar o
dominador no mesmo terreno, ou seja, elaborar uma consciência crítica e a sua própria
____________________
2 “A revolução copernicana na visão histórica é a seguinte: considerava-se como o ponto fixo ‘o ocorrido’ e
conferia-se ao presente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento desse ponto fixo Agora esta relação
deve ser invertida e o ocorrido, tornar-se a reviravolta dialética, o irromper da consciência desperta”
(BENJAMIN, 2009, p. 433 – K 1, 2)

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


11 Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio

concepção de mundo a fim de reinterpretar todo o passado cultural a partir de uma


perspectiva mais abrangente da realidade.
Essa questão torna-se fundamental, porque a fragilidade dos vencidos se determina
pelo fato de que não possuem clareza de sua própria história, porque esta não tem uma
narrativa organizada que evidencie suas práticas e interesses de classe. Uma das grandes
contribuições de Marx foi esclarecer o vínculo da filosofia (teoria) com a atividade do homem
(política), isto é, a função de um conhecimento que é gerado pela prática social com o
objetivo de aperfeiçoar ou até de transformar esta prática.
A partir desses pressupostos, pode-se ensinar filosofia? E se possível, como ensinar?
Retomamos algumas colocações de Gramsci a respeito desse assunto, observações práticas
que podem ser interessantes, visto que Gramsci sempre acentuou a importância desse
conhecimento para os trabalhadores, tanto que, na prisão, quando teve oportunidade de
propor cursos de estudo, a filosofia sempre constava de seus programas:

No ensino da filosofia dedicado não a informar historicamente o discente sobre o


desenvolvimento da filosofia passada, mas para formá-lo culturalmente, para ajudá-
lo a elaborar criticamente o próprio pensamento e assim participar de uma
comunidade ideológica e cultural, é necessário partir do que o discente já conhece,
de sua experiência filosófica (após ter demonstrado que ele tem uma tal experiência,
que ele é um ‘filosofo’ sem o saber) (GRAMSCI, 1978, p. 148).

O ponto de partida, portanto, é a pressuposição de um certo conhecimento dos


discentes a respeito de filosofia, a partir de “informações soltas e fragmentárias”, sem
qualquer preparação metodológica ou crítica, ou seja, daquilo que chamamos “senso comum”
(GRAMSCI, 1978, p. 148). Sabe-se que o senso comum se compõe do que existe de mais
variado e mesmo bizarro, como um conjunto fragmentado e incoerente de conhecimentos, ou
seja, de tudo o que o indivíduo acumula ao longo de sua vida, desde o que recebe da tradição,
da religião e da cultura popular, até o conhecimento cientifico mais avançado. Em outras
palavras, ideias e conhecimentos essenciais para a vida cotidiana (remédios, benzeduras, etc.)
que provém do passado mais remoto, transmitido de geração a geração, até o modo
consensual de entender a política, a ética e a moral, a partir do ideário mais recente das
classes dominantes. Iniciar desse ponto significa mostrar os limites e contradições que
perpassam esse conhecimento enquanto expressão de uma realidade que se esconde sob uma
aparência que se apresenta como leitura parcial, fragmentada, abstrata ou inversa, a fim de
criar as condições de um pensamento crítico. O desafio de compreender o real para além de
suas aparências significa entender que a atividade filosófica implica, além de um ato
pedagógico, uma opção política.
O caminho pedagógico é reconhecer as contradições que permeiam o social pois são
elas o campo próprio para a reflexão crítica. Criticar a própria concepção de mundo, aquela
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 12
que constitui o nosso senso comum “significa torná-la coerente e unitária elevando-a ao ponto
atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido”. Significa ainda criticar “toda a
filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou traços consolidados na filosofia
popular” (GRAMSCI, 1978, p. 1.371). A questão política expressa-se no fato que a sociedade
divide-se em classes sociais antagônicas que sustentam a “existência de governantes e
governados, dirigentes e dirigidos. Toda a ciência e a arte políticas se baseiam neste fato
primordial e irredutível” (GRAMSCI, 1977, Q 15, p. 1752) e que garantem a conotação
política de todas as relações vividas na sociedade. As classes populares, na sua condição
subordinada, assimilam sem crítica um modo de pensar que não condiz com sua realidade
social (sem se darem conta disso) por meio de mecanismos de divulgação e afirmação de um
pensamento homogêneo e hegemônico.
Desconstruir esse processo e gerar novas bases de reflexão se torna, para o professor
de filosofia, um desafio semelhante ao de Sísifo, com a sua carga cotidiana: torna-se
necessário não apenas “‘pensar’ com maior rigor lógico, com maior coerência, com maior
espírito de sistema do que os outros homens, mas também conhecer toda a historia do
pensamento”, tanto da sua origem quanto do seu desenvolvimento, das condições históricas
de produção dos problemas, da sua recorrência e das suas possíveis soluções (GRANSCI,
1977, p. 1342-3). Nesse contexto, a aprendizagem filosófica consiste em compreender o
particular articulado a uma “base histórica que contenha as premissas materiais” que
possibilitem alcançar o que se esconde por trás das aparências e elaborar um pensamento
crítico no qual “dedução e indução sejam combinadas”, pressupostos metodológicos que não
podem ser abandonados, mas articulados com a nova perspectiva dialética (GRAMSCI, 1977,
P. 34), a fim de compreender a história em seu movimento e em suas contradições.
A leitura do texto clássico e a adequação do discurso: a tradutibilidade.

“A educação profunda consiste em desfazer-se da educação primitiva” (VALERY,


2006, p. 35).

Retomamos agora o desafio kantiano: ensinar filosofia ou instigar a pensar? De que


modo resolver essa questão no contexto da escola brasileira em suas condições atuais?
Evidentemente a luta pelo retorno da disciplina ao ensino médio sempre teve como objetivo a
segunda alternativa do desafio proposto. Tanto que as defesas de não retorno da disciplina
argumentavam que ela nunca exerceu efetivamente essa função no tempo em que era
ensinada. Esse argumento era rebatido com outro, que acentuava que sempre é tempo de
começar: “provar que uma boa iniciativa não tem como pressuposto necessário uma fé
transcendente, mas pode ser explicada exaustivamente pela humanidade histórica dos
indivíduos”, é uma abordagem que coloca a possibilidade de mudar a vida (GRAMSCI, 1975,
p. 117).
A grande contribuição da filosofia em seu retorno ao ensino médio nas escolas
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
13 Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio

brasileiras estaria, dessa perspectiva, em dar aos discentes as condições necessárias para a
formação de um pensamento crítico e autônomo, a fim de compreender a realidade e as
contradições nas quais estão inseridos para contribuir para mudanças sociais relevantes. A
questão central que se passou a enfrentar a partir da efetiva inserção da filosofia foi a de
como realizar esse trabalho.
O impulso germinador de um pensamento não está na sua capacidade de oferecer
respostas, mas sim na sua força problematizadora e crítica capaz de despertar a reflexão.
Embora seja mais fácil ancorar nas certezas apresentadas por um conhecimento instituído é
necessário seguir a senda árdua e árida do questionamento, trilhar os becos, as escarpas, os
desvios à margem do método e da medida reconhecidos. Porque o saber não se apresenta
como algo consolidado e a verdade ora se mostra, ora se esconde e não cessa de se reinventar
naquilo que Walter Benjamin denominou o bailado das ideias (BENJAMIN, 1985).
Um dos pontos dos quais os professores, em geral, não abrem mão, é do uso dos
textos clássicos como mediadores da aprendizagem. E então novas dificuldades se
apresentam: primeiro, em relação à leitura do texto e, segundo à sua compreensão pelos
discentes.
Da primeira perspectiva vale a pena salientar que, no movimento de leitura, a fim de
compreender as polêmicas que marcaram uma época, precisamos evidenciar discursos
bipolares, como luz e sombra, visível e invisível, aparência que esconde uma essência,
superfície e abismo, verso e reverso que se complementam, métodos que se contrapõe e se
embatem, a fim de podermos formar uma nova configuração da história. É como se o
pensamento de uma época se constituísse sempre por ao menos duas leituras da realidade:
uma que se expressa em um discurso claro, explícito, e outra que se produz como discurso
oculto, paralelo e velado, mas não menos importante.
Da segunda perspectiva, tem-se que considerar que a linguagem dos adolescentes tem
uma significação própria a partir da inserção dos novos instrumentos tecnológicos de
comunicação, tanto pela assimilação de códigos quanto pela significação mais vinculada ao
imediato cotidiano. A propósito desse assunto, retoma-se aqui a questão da tradutibilidade,
que perpassa os escritos de Gramsci e, talvez, possa nos ajudar a buscar soluções.
Traduzir tem várias significações: pode ser transpor de uma língua para outra, o que
implica muitas vezes trair, porque significa sempre interpretar a partir de um contexto
linguístico diverso. Gramsci acentua que “nenhuma tradução é ‘perfeita’ em todos os
particulares, ainda que importantes (mas qual língua é exatamente traduzível em uma outra?
Qual palavra singular encontra tradução exata em outra língua?) e isso não é no ‘fundo’,
essencial” (GRAMSCI, 1977, p. 1470). Importante é que se reconheçam relações, porque a
cultura se produz com a colaboração de todos e se renova a cada nova leitura.
Um significado mais amplo abordado por Gramsci é a tradução entre duas culturas,
que se aplicaria ao caso de nossa leitura dos textos clássicos: “a criação de uma nova cultura
integral” precisaria produzir-se com “as características de massa da Reforma protestante e do
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 14
Iluminismo francês, bem como as características clássicas da cultura grega e do
Renascimento italiano”, ou seja, uma cultura que “sintetize Massimilian Robespierre e
Emmanuel Kant, a política e a filosofia em uma unidade dialética intrínseca a um grupo
social” internacional (GRAMSCI, 1977, p. 1233). Traduzir implica, portanto, estabelecer
relações e articular teoria e prática de modo orgânico, trabalho que só pode ser realizado pela
filosofia da praxis.
Dessa perspectiva, Gramsci retoma Marx para acentuar que existe uma equivalência
entre a política francesa e a filosofia clássica alemã que, de resto, já encontramos na literatura
de Heinrich Heine que, ironicamente, declara:(...) “confesso sinceramente que vocês,
franceses, são moderados e dóceis em relação a nós alemães. Puderam no máximo matar um
rei que já havia perdido a cabeça antes que vocês o decapitassem”. Kant “(...) tomou o céu de
assalto” e “destruiu os fundamentos de prova da existência de Deus” (HEINE, 1991, p. 89 e
97).
Essa reflexão é retomada por Gramsci, recuperando da leitura de Carducci que
escreveu: “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”. E Gramsci
esclarece: “Carducci encontrou o tema em Heinrich Heine”, mas Croce encontrou um
longínquo indício dessa formulação em Hegel que, nas Lições sobre a História da Filosofia,
afirma que as filosofias de Kant, Fichte e Schelling apresentam a revolução em forma de
pensamento, traduzidas por Marx em A Sagrada Família na afirmação de que a classe
trabalhadora é herdeira da filosofia alemã (GRAMSCI, 1978, p. 83).
A essas formas de tradutibilidade que evidenciam a relação entre teoria e prática
acrescenta-se a de traduzir um texto clássico, em geral, de uma filosofia que pretende explicar
o mundo por meio de conceitos universais, para um adolescente de ensino médio habituado
com os novos códigos de comunicação criados pelas novas tecnologias informática e
midiática. É como se tivéssemos que passar da linguagem geométrica para a linguagem
algébrica, da expressão oral e escrita para a imagética; não que não seja possível, tanto que se
têm exemplos na história do pensamento de relações interessantes entre filosofia e arte,
filosofia e ciência. Porém, cada área precisa de categorias estruturais específicas sem as quais
não consegue comunicar o conhecimento produzido e a filosofia apresenta-se como um
trabalho reflexivo de produção escrita com parâmetros de argumentação particulares, ou seja,
procura “constituir um saber inteiramente exprimível e transmissível pela linguagem”
(VALERY, 1998, p. 219).
Os textos clássicos mantêm os limites de uma filosofia voltada para uma visão
universal e trazem conceitos muito distantes da realidade do adolescente do ensino médio.
Apresentar esses textos e torná-los interessantes evidenciando a interlocução do autor com
seu tempo cuja fecundidade se esclarece no diverso e contraditório implica fazer a “tradução”
sem perder o conteúdo e a problemática que eles abordam. Traduzir o conteúdo de um tempo
distante significa tanto atualizar o discurso quanto reinterpretar o passado para buscar seus
sinais no presente, bem como evidenciar paradigmas; cada corrente filosófica tem um
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
15 Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio

conteúdo teórico-metodológico específico que determina o significado dos conceitos, ou seja,


parte de paradigmas que precisam ser explicitados para não se correr o risco de fazer uma
leitura superficial ou anacrônica. Desse modo, temos graus ou níveis de interação com o
texto, que aprofundamos a cada nova leitura.
A fase da qual se parte e para a qual se deve retornar é a realidade do aluno, ou seja,
os limites colocados pela diversidade de linguagens e a realidade sócio-política ou histórica
na qual estamos inseridos. Por isso, entendemos que a observação de Gramsci de que
devemos considerar a formação do senso comum para elevá-lo a uma consciência filosófica
poderia ser o ponto de partida. A apresentação do texto clássico poderia ser contextualizada
em uma primeira leitura, seguida de outra que tentaria explicitar paradigmas e conceitos.
Uma terceira leitura poderia evidenciar relações entre filosofia, política e história,
explicitando os elos entre teoria e prática no texto do autor. Somente então pensamos que
teríamos condições de retornar ao momento do aluno, para problematizar a realidade
circundante.
Cabe lembrar que “o real não é translúcido, não se revela ao puro olhar do
investigador”, como fazem acreditar as tendências pós-modernas; “a transparência implica no
ocultamento. Quando um vidro está perfeitamente limpo você não o vê, mas vê através dele a
translucidez” (DIAS, 2007, p. 35). Assim também precisamos mergulhar na aparência para
buscar o que nela se esconde, sem esquecer que as palavras são como cavernas que se
concretizam no jogo de luzes e sombras.
Como num jogo de xadrez ou como na composição de um mosaico, o que nos cabe é
recuperar a capacidade de admirar-se, de se interrogar mesmo que pareça óbvio, desvelar o
avesso escondido na trama histórica entendendo que o poder, nas várias formas que assume
na sociedade (Estado, Razão, Progresso), “distorce a visão dos céus impondo seus pesados
telescópios sobre certas áreas, de modo que sua importância se amplia, obstruindo outras de
forma avassaladora, que ficam completamente invisíveis” (BUCK-MORSS, 2000, p. 51).
Mostrar que outras leituras são possíveis é o que torna atraente a atividade filosófica.

Conclusão

Não abordamos aqui as condições precárias da escola pública, há muitos anos


abandonada à sua sorte pelos políticos de plantão, que parecem se ocupar de tudo, menos da
educação. Tudo se passa como se a desigualdade social fosse algo natural, disfarçado no
discurso de direitos iguais de acesso, de gestão democrática, discurso que acaba por enredar
professores que imaginam que a escola, na sociedade capitalista, ainda possibilite alguma
forma de emancipação.
As reflexões que fizemos não visam desanimar os professores de filosofia, mas
pretendem servir para ter clareza dos limites de sua atividade e das possibilidades que a
reflexão filosófica oferece. Por mais que os limites sejam grandes, vale a pena ver a
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 16
transformação quando ela acontece e, geralmente, alguma gratificação recebemos porque o
conhecimento modifica, cria hábitos de disciplina e laços que podem gerar uma nova
sociabilidade.
Superar as determinações colocadas pelos próprios limites do ensino nas
circunstancias atuais para desvelar o conjunto articulado da formação social em seu
movimento contraditório tendo como apoio o texto filosófico é o grande desafio do ensino da
filosofia da perspectiva que aqui chamamos de nova “revolução copernicana”.

Submetido em 27 de fevereiro de 2013.


Aprovado para publicação em 26 de junho de 2013.

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2009.
______. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo, Brasiliense, l985. BUCK-
MORSS, S., Walter Benjamin: entre moda acadêmica e avant-garde. In: Crítica
Marxista n. 10, 2000.
CHATELET, François. Logos e praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
DIAS, Edmundo Fernandes. Compreender o real, demonstrar sua inteligibilidade.
In: SCHLESENER, A. H. E PANSARDI, M. V. (Orgs.) Políticas Públicas e Gestão da
Educação. Curitiba: UTP. 2007, p. 33-46.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Cárcere. Torino : Einaudi, 1977.
______. Scritti Giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975.
______. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 1978.
HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São
Paulo: Iluminuras, 1991.
MARX, Karl. Teses contra Feuerbach. In: Pensadores, São Paulo: Abril Cultural,
1974.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores
Associados, 2010.
SCHLESENER, Anita Helena. A escola de Leonardo: política e educação nos escritos
de Gramsci. Brasilia: LiberLivro, 2009.
VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. São Paulo: Editora 34,
2006.
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.6-1 5, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
17 Da especificidade da filosofia ao seu ensino

Da especificidade da filosofia ao seu ensino


Antonio Edmilson Paschoal3

Resumo
Este artigo reúne algumas considerações sobre a primeira das “habilidades e
competências” esperadas de um formando de filosofia no Brasil, segundo as “Diretrizes
curriculares para os cursos de Filosofia”, a saber, a “capacitação para um modo
especificamente filosófico de formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos
do conhecimento”. O objetivo é demarcar significados da expressão “modo especificamente
filosófico” que permitam iniciar uma reflexão sobre metodologias do ensino de filosofia. A
hipótese que norteia este trabalho é que na filosofia existe uma imbricação necessária entre
conteúdo e método, e não apenas porque nela o conteúdo é o método em movimento, mas
porque ela mesma pode ser entendida como um método, na medida justamente em que se
configura como um modo específico de apresentar problemas e soluções.

Palavras-chave: filosofia; ensino da filosofia; metodologia do ensino da filosofia.

From the specificity of the Philosophy to her teaching

Abstract
This article presents some considerations about the first of the “skills and competencies”
expected of a student of philosophy in Brazil, according to the “Curriculum guidelines for
courses in Philosophy”, namely, the “capacity for a way specifically philosophical to
formulate and propose solutions to problems in different fields of knowledge”. The goal is to
demarcate meanings of the term “specifically philosophical mode” that permits to begin a
discussion of methodologies aimed at his production and transmission. The hypothesis that
guides this works that there is necessary an overlap between content and method, and not just
because the content in the philosophy is the method in movement, but because she herself can
be understood as a method, as precisely as she configures itself as a specific mode of
presenting problems and solutions.

Keywords: philosophy; teacher of philosophy; methodology of teaching philosophy.

____________________
3 Doutor em Filosofia (UNICAMP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR,
pesquisador do CNPq. E mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Da especificidade da filosofia ao seu ensino 18
A filosofia é a ciência objetiva da verdade, é a ciência da sua necessidade: é o
conhecer por conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião da outra. (...)
quem tiver estudado e compreendido uma filosofia, contanto que seja filosofia,
por isso mesmo, compreendeu a filosofia.

G. W. FR. Hegel4

Considerações iniciais

Se a pergunta o que é a física ou o que é a matemática não é um problema físico ou


matemático e tampouco um tema a ser considerado na formulação dos conteúdos e
metodologias das disciplinas de física e de matemática, no caso da filosofia ela é central para
a sua elaboração como disciplina. De fato, a resposta, ou tentativa de resposta à questão “o
que é a filosofia?” não apenas é um dos conteúdos a serem abordados na disciplina de
filosofia, como fornece os parâmetros para o estabelecimento de uma metodologia de
trabalho com ela. Balizando-a tanto do ponto de vista da compreensão daquele modo próprio
de apreender o mundo, quanto no que diz respeito à transmissão desse modo, o que se faz
observando-se os diferentes contornos que ele assumiu na história5 , ou seja, do legado que
produziu.
Central, portanto, nos debates sobre o tema da sua produção e transmissão, a questão
“o que é a filosofia? ” reaparece a cada vez que se tematiza o ensino da filosofia, como se
pode verificar nas “Diretrizes curriculares para os cursos de graduação em filosofia”6,
tomadas aqui como ponto de partida para esta reflexão. Nesse documento a “especificidade”
da filosofia é colocada em relevo como a primeira das “habilidades e competências”
esperadas de um profissional da educação formado num curso de filosofia no Brasil, a
“capacitação [do formando] para um modo especificamente filosófico de formular e propor
soluções a problemas, nos diversos campos do conhecimento”. Nesse documento, porém,
visto tratar-se de uma diretriz e não de um debate filosófico, não se encontra uma definição
para aquele modo peculiar de formular questões e soluções.
Com outros contornos, essa questão aparece também em um documento ulterior da
área, nas Orientações curriculares nacionais para o ensino de filosofia no ensino médio. Dessa
vez, além da pergunta pela especificidade da filosofia, são apontadas também algumas pistas
para a solução do problema. Primeiro, o documento chama a atenção para caráter polissêmico
do termo “filosofia”, tendo em vista a pluralidade de respostas que a pergunta “o que é a
____________________
4HEGEL, 1989, p 98 e 99.
5 Em última instância, do ponto de vista de quem aprende a filosofia, aprende-se a filosofar justamente
observando o modo como os filósofos construíram seus argumentos e arquitetaram seus edifícios filosóficos.
(PASCHOAL, 2008).
6 Parecer do CNE/CES 492/2001. Documento formulado pelos professores Oswaldo Giacoia Junior, Álvaro Valls
e Nelson Gomes.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
19 Da especificidade da filosofia ao seu ensino

filosofia” já recebeu, além de chamar a atenção para o fato de que as respostas aparentemente
universais situam-se em campos particulares, precisando ser compreendidas no contexto das
tramas que conferem sentido a elas. Segundo, ele reitera a ideia de que, diferentemente do
que se verifica em outras ciências, a pergunta pelo “o que é a filosofia” (p. 21) é uma
pergunta filosófica, donde se segue que respondê-la já é uma forma de filosofar. Terceiro,
postula que é possível, mesmo considerando a ambiguidade das respostas à pergunta o que é a
filosofia, demarcar ainda que provisoriamente, a sua peculiaridade, o que pode ser feito
observando-se “alguns procedimentos característicos do filosofar” (p. 22). Nesse sentido,
destaca, por exemplo, o “sopesar conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-
comuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem
mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio” (p. 22).
Tendo como ponto de partida essas pistas, que parecem ressaltar a relação entre os
procedimentos do filosofar e a questão do conhecimento, é possível caracterizar a filosofia,
provisoriamente, como a arte de quebrar a naturalidade com que normalmente são utilizadas
as palavras e os conceitos. Um modo de reflexão que não se restringe aos objetos do
conhecimento, mas busca compreender o próprio ato de conhecer. Porquanto, ela seria uma
ciência que não se limita à indagação por verdades particulares, mas por inquirir sobre os pré-
requisitos do modo humano de conhecer e também sobre os critérios, as condições do
conhecimento e, acima de tudo, sobre os jogos de poder que permitem a determinadas
proposições gozarem do privilégio de serem reconhecidas como verdadeiras em determinados
momentos.
Se, contudo, essas considerações iniciais permitem delinear alguns contornos da
especificidade da filosofia, outros traços sobre ela devem ser considerados ainda para o
embasamento de nossa hipótese de trabalho. Isto porque, segundo ela,o reconhecimento do
modo específico com que a filosofia apresenta problemas e soluções é um fator
imprescindível para a sua compreensão, num sentido amplo, como um método em particular,
visto que ela mesma corresponde a um modo específico de formular questões, propor e
debater teses.
Para incluir novos traços naquele delineamento da especificidade da filosofia,
tomaremos como ponto de partida algumas observações sobre Tales de Mileto, buscando
apontar o que fez aquele pensador receber, pela primeira vez na história, a denominação de
filósofo. Passaremos, a seguir, da ideia geral de filósofo e de filosofia para o texto filosófico,
visto que a filosofia não seria apenas intuição e doxografia, mas também “explicitação e
discurso” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 140) e encerramos mostrando como o estudo da
filosofia, respeitadas essas premissas metodológicas, é também um modo de se produzir
filosofia.

O filósofo Tales de Mileto

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Da especificidade da filosofia ao seu ensino 20
Um dos primeiros a colocar a questão acerca da diferenciação entre a filosofia e as
outras ciências tendo Tales de Mileto como referência é Aristóteles. No início da Metafísica,
ao apresentar as peculiaridades que distinguem a filosofia em relação às demais ciências,
Aristóteles remonta aos primeiros filósofos, nos quais identifica a preocupação, típica da
filosofia, com a “causa primeira” (Metafísica, I, 3, 983 24. ARISTÓTELES, 2005, p. 15) ou,
em termos análogos, afirma que eles especulam sobre “os princípios primeiros e as causas”
(Metafísica, I, 2, 982b 9-10. ARISTÓTELES, 2005, p. 11). Ou seja, a filosofia desde seu
movimento inicial, quando coloca em discussão “aquilo de que todos os seres são
constituídos e aquilo de que originalmente derivam e aquilo que por último se dissolvem”, ela
já estaria se ocupando com o seu objeto mais peculiar: “o elemento e princípio dos seres, na
medida em que é uma realidade que permanece sempre mesmo na mudança de suas afecções”
(Metafísica I, 3, 983b 10-14. ARISTÓTELES, 2005, p. 15). Diferentemente, portanto, das
outras ciências, a filosofia buscaria o “porque” (Metafísica I, 1, 981a 29. ARISTÓTELES,
2005, p. 5) das coisas que estuda e ocupar-se-ia de um objeto de caráter universal e não
prático no sentido de responder a necessidades imediatas além de apresentar um caráter
universal e não prático de seu objeto. Nesse sentido, ela atenderia diretamente à natureza do
homem que “tende ao saber” (Metafísica, I, 1, 980a 18. ARISTÓTELES, 2005, p. 3)
respondendo da forma mais elevada ao seu encantamento diante do mundo.
A estratégia de Aristóteles, de recorrer aos pré-socráticos e em especial Tales de
Mileto para resposta à pergunta pela especificidade da filosofia, é compartilhada por vários
outros filósofos no futuro. Entre eles, retomamos Hegel e Nietzsche, que do interior de suas
filosofias destacam outros traços importantes no sentido de referendar o pensador de Mileto
como o primeiro filósofo.
Segundo Hegel, a filosofia começa porque através da proposição de Tales “de que a
água é o absoluto ou, como dizem os antigos, o princípio” se tem pela primeira vez a
“consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si” (HEGEL,
1973, p. 15). Tales seria, portanto, o primeiro pensador a se ocupar de um princípio que é
universal porque estaria “ao mesmo tempo, em relação com o singular, com a aparição [e]
com a existência do mundo” (HEGEL, 1973, p. 15). Tal princípio universal que, segundo o
professor de Berlim, permaneceria sempre independentemente da existência singular e
passageira, seria, justamente por esse caráter, o objeto peculiar e exclusivo da investigação
filosófica. Hegel, contudo, apesar de reconhecer em Tales aquilo que caracteriza o modo
próprio da filosofia de compreender o mundo, critica o pensador jônico afirmando que a
“falha” de seu pensamento consistiria no fato de “a água também ser uma coisa singular”
(HEGEL, 1973, p. 16) e, portanto, ineficaz para expressar a ideia de um princípio universal
que, para Hegel, é um principio espiritual.
Por sua vez, em seu curso sobre os filósofos pré-socráticos, sintetizado, em 1873, num
pequeno livrinho que manteve inédito, Nietzsche afirma que, de fato, “a filosofia parece
começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
21 Da especificidade da filosofia ao seu ensino

coisas”. (NIETZSCHE, 1973, p. 16). Segundo o jovem professor de filologia clássica da


Universidade de Basel, essa ideia merece a nossa atenção por três motivos: “em primeiro
lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar
porque o faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas
em estado de crisália, está contido o pensamento ‘tudo é um’” (NIETZSCHE, 1973, p. 16).
Analisando ainda cada um desses três pontos, o professor acrescenta:
A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os
religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo (sic) mostra
como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o
primeiro filósofo grego (NIETZSCHE, 1973, p. 16).

De fato, a hipótese formulada por Tales com o material precário que dispunha a partir
de suas observações da natureza é falsa, especialmente se for considerada do ponto de vista
das ciências que temos hoje. Mais ainda, tal hipótese, segundo Nietzsche, empreende uma
“monstruosa generalização”. Porém, mais importante do que isso tudo seria o fato de a
proposição “tudo é um” do pensador jônico exprimir um “postulado metafísico, uma intuição
mística” (NIETZSCHE, 1973, p. 16). Os limites de Tales não estariam, portanto, relacionados
ao alcance metafísico de sua proposição, mas à linguagem que ele recorre para explicitá-la,
visto ter lançado mão de uma “transposição metafórica” em que o objeto de conhecimento é
exposto por meio de uma linguagem estranha ele e que se constitui, por fim, num “um meio
raquítico” e “totalmente infiel” (NIETZSCHE, 1973, p. 18).
Neste ponto, além de ampliar as pistas tomadas em nossas considerações iniciais,
com um desdobramento de nossa questão inicial acerca da especificidade da filosofia que
passa a ressaltar a sua vocação para buscar os princípios últimos e os porquês, tem-se também
a enunciação de outro aspecto do problema, o da explicitação da filosofia. Uma preocupação
que se apresenta, num primeiro momento, a partir do limite imposto àquela intuição inicial
pela linguagem e, em seguida, quando se passa a considerar o próprio discurso filosófico
como um fenômeno do qual também se pergunta pelas causas primeiras. Tal preocupação,
com a construção do discurso filosófico, vale dizer, com o tema do texto filosófico como
explicitação e conteúdo da filosofia, algo que ganhará grande importância numa ciência que
se configurará numa tradição escrita, é o segundo ponto que merece destaque quando se
analisa o modo peculiar da filosofia de formular questões e apresentar soluções a problemas.

A filosofia que se transmite

Do mesmo modo como a filosofia se pergunta pelas causas últimas do que existe
também ao apresentar-se como um discurso ela deve dar conta dos seus motivos últimos e da
coerência que faz dela um sistema ordenado e não um caos. Nesse sentido, considerando-se a
filosofia como um fenômeno e tomando-a a partir da ótica de sua construção, cabe mencionar

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Da especificidade da filosofia ao seu ensino 22
a metáfora que a associa a um projeto arquitetônico. Uma metáfora que é utilizada, entre
outros, por Descartes, na terceira parte das suas Meditações (DESCARTES, 2001, p. 27), por
Kant, em especial no capítulo intitulado “A arquitetônica da razão” de sua Crítica da razão
Pura (CRP B 860-879 / KANT, 2008, p. 657-669), e por Schopenhauer no prefácio à primeira
edição de O mundo como vontade e representação (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19). Uma
metáfora ressaltada também por Victor Goldschmid tem seu ensaio sobre metodologias
voltadas à leitura de sistemas filosóficos. Para o filósofo francês nascido na Alemanha, a
filosofia seria “explicitação e discurso” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 140), na medida em que
se constrói como um conjunto de teses articuladas por razões e dispostas em um “tempo
lógico” a ser identificado e acompanhado pelo leitor de tal modo que ele poderia, por fim,
recolocar em movimento aquele sistema como um músico que executa uma partitura.
A proposição de Goldschmidt, independentemente, neste momento, do alcance de um
debate sobre tais metodologias, nos interessa por recolocar a questão básica e fundadora do
debate filosófico. De que ele tem por pressuposto o reconhecimento das razões últimas da
filosofia que se quer avaliar para refutar ou não. Razões que se encontram no texto filosófico
e não em alguma experiência vivida pelo autor e inacessível ao leitor. Assim, o exercício da
filosofia, passaria a considerar não apenas um modo de ver o mundo, mas também a sua
vocação para o debate de ideias, a explicitação dessas ideias em um texto logicamente
ordenado e também o leitor em seu encontro com o texto.
Portanto, além de explicitar um modo de ver o mundo, o texto filosófico consiste num
exercício argumentativo peculiar que ao modo de uma construção arquitetônica é deixado
para a posteridade como modelo daquele modo de formular questões e solucionar problemas
como é próprio à filosofia. Esse material se coloca para o seu leitor, em especial para um
estudante, ao mesmo tempo como a transcrição de uma tese, sobre o mundo, por exemplo,
mas também por seu caráter próprio, como uma argumentação que não só busca razões, mas
se fundamenta em razões.
Dessa forma, mover-se pelos meandros de tais textos, decodificá-los e interpretá-los
se torna o meio pelo qual se chegaria ao aprendizado daquilo que seria chamado de filosofar.
(PASCHOAL, 2008) Motivo pelo qual, é possível concordar com Hegel, (1989) que ao se
aprender um filósofo tem-se as condições mínimas indispensáveis para se aprender a
filosofar, visto que mais importante do que o conteúdo aprendido é a apreensão daquele modo
próprio de olhar para o mundo, de apresentar teses e questionar que permite a um pensador
ser chamado de filósofo.

Considerações finais

Os pontos apresentados até aqui fornecem elementos suficientes para qualificar a


hipótese de que na filosofia há uma imbricação necessária entre conteúdo e método, entre um
modo de pensar e uma transmissão que não é apenas dos resultados de uma investigação, mas
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
23 Da especificidade da filosofia ao seu ensino

de um modo próprio de formular e responder questões. O que torna a discussão sobre a


especificidade da filosofia um aspecto que não ponto pode ser desconsiderado num debate
sobre metodologia(s) de trabalho com a filosofia. Em especial em sala de aula, quando aquela
concepção mais ampla de metodologia tende a ganhar contornos de procedimentos orientados
para o ensino, esse aspecto não pode ser negligenciado, sob pena de se discutir meios de
apreensão de conteúdos e não da própria prática do filosofar. Lembrando que o retorno da
filosofia ao ensino médio, responde a uma demanda por uma contribuição que não seria dada
por outras ciências, vale dizer, o que inclui certamente os conteúdos próprios da filosofia, sua
dogmática, mas em especial pela possibilidade de o jovem daquela fase do ensino ter acesso
ao seu modo próprio de formular questões, debater e redigir ideias.
Assim, para além de uma compreensão da metodologia como a busca por meios que
tornariam a filosofia mais atraente e apetecível em sala de aula, possivelmente convertendo-a
no que ela não é, interessa tomá-la, naquele ambiente, como a possibilidade de experimentar,
naquele estágio de formação, o modo filosófico de perguntar pelo sentido do mundo, da
existência e da escrita. Resultando em procedimentos que levem os alunos a inquirir pelas
causas últimas das coisas numa época em que, por exemplo, não basta saber como funciona
um sistema econômico, é necessário perguntar pelo por quê? Por que esse e não outro? Outro
não seria possível também? Talvez até melhor? Por que essa moral e não outra? Etc.
Especialmente para essa fase de formação do jovem, o modo propriamente filosófico
de apresentar questões que se desprende do texto filosófico, não se encerra na leitura do texto
de registro filosófico. Antes, pensado como um “método” esse modo especifico de questionar
permite a leitura de textos de outros registros, os não filosóficos. Mais ainda, permite a leitura
de registros não textuais, como se tem nos exemplos trabalhados por Foucault e denominados
por ele de “domínios não discursivos” (FOUCAULT, 1987, p. 186) como é o caso da prisão,
da escola, além dos acontecimentos políticos, que são espaços plenos de significados e
passivos de serem lidos.
Assim, tendo em vista a filosofia enquanto disciplina, é possível afirmar que é como
uma metodologia que ela se torna um fator interessante na formação dos jovens. Tanto como
uma metodologia de trabalho que se pratica em sala de aula, nas atividades de leitura e
reflexão, quanto fora dela, quando esse modo específico deve se correlacionar não só com os
diversos campos do conhecimento, mas também com os diferentes ambientes de autuação dos
jovens. Ambientes em que o homem não busca o saber apenas por sua utilidade prática, como
diz o filósofo (Metafísica, II, 982b 21-22), mas tendo em vista o saber, ou finalidades como a
própria construção de sua individualidade. Ora, nesse sentido, ele necessita da filosofia, vale
dizer, daquela lentidão que se traduz em “não reagir de imediato a um estímulo”, em ser
“capaz de prorrogar a decisão”7, numa certa lentidão que corresponde, segundo Nietzsche, o
____________________
7 CI, O que falta aos alemães, 6. Analisamos com mais vagar essa proposição num texto intitulado “A arte de ler
nuances” (PASCHOAL, 2012), no qual apresento um aprofundamento da questão da metodologia de leitura de
textos filosóficos tendo em vista em especial a filosofia de Nietzsche.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Da especificidade da filosofia ao seu ensino 24
primeiro motivo pelo qual necessitamos de educadores.

Submetido em 01 de abril de 2013.


Aprovado para publicação em 25 de julho de 2013.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. do grego e comentários de Giovanni Reale. Ed.


Brasileira de Marcos Macionilo, Marcelo Perinee Maurélio Barbosa. 2ª ed. São Paulo:
Ed. Loyola, 2005.

Brasil. MEC. Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. PCN do


Ensino Médio; PCN+ do Ensino Médio. Disponível em:
http://www.ciadaescola.com.br/downloads/procurar.asp?categoria=161 Acessado em 12
de julho de 2007.

Brasil. MEC. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer


CNE/CES n° 492/2001 , aprovado em 3 de abril de 2001. Diretrizes Curriculares
Nacionais dos cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação
Social, Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 9 de julho de 2001.

DESCARTES, R. O discurso do método. Trad. Maria Ermantina Galvão. 2ª ed., 3ª


tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1987.

GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas


filosóficos. In: A religião de Platão, 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970,
p. 139-147.

HEGEL, G. W. FR. Introdução à história da filosofia. Trad. de Orlando Vitorino,


Henrique Cláudio de Lima Vaz, Antonio Pinto de Carvalho. 4ª ed. São Paulo: Nova
Cultural (Col. Os pensadores), 1989, p. 80-158.

HEGEL, G. W. FR. Preleções sobre a História da Filosofia. Trad. Ernildo Stein. In:
SOUZA, J. C. de (Org.). São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1973, p. 15-16

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
25 Da especificidade da filosofia ao seu ensino

KANT, I. Crítica da razão pura. 6ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2008.

NIETZSCHE, Fr. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Rubens R. Torres
Filho. In: SOUZA, J. C. de (Org.). São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores),
1973, p. 16-18.

NIETZSCHE, Fr. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

PASCHOAL, A. E. Da utilidade da filosofia para a vida. In: AZEREDO, V. D.


Nietzsche – filosofia e educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2008, p. 155-168.

PASCHOAL, A. E. A arte de ler nuances. In: AZEREDO, V. D.& SILVA JR, I.


Nietzsche e a interpretação. Curitiba: CRV, São Paulo: Humanitas, 2012, p. 71-80.

SHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair


Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 26
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia
Paulo Henrique Fernandes Silveira 8

Resumo
É possível ensinar Filosofia? É possível ensinar a pensar? Para filosofar é preciso
conhecer a história da Filosofia? Quais as condições para o exercício do pensamento num
curso de Filosofia? Para Immanuel Kant, não basta conhecer os pensamentos dos grandes
filósofos para aprender a filosofar. A Filosofia exige a ousadia e a maturidade intelectual de
quem reconhece a necessidade de pensar por conta própria. Para Martin Heidegger, vivemos
uma época na qual as pessoas se dedicam a muitas atividades, mas pensam pouco. Mesmo
nas universidades e nas escolas, os estudantes não parecem dispostos a enfrentar experiências
e acontecimentos que inspirem novos pensamentos. O propósito deste artigo é investigar, a
partir das reflexões de Kant e de Heidegger, bem como das análises de outros filósofos e
pedagogos que tratam do tema, o lugar do pensamento no ensino da filosofia.

Palavras-chave: pensamento; história da filosofia; ensino; autodidatismo; experiência.

The place of thinking in the teaching of Philosophy

Abstract
Would it be possible to teach Philosophy? Would it be possible to teach how to think?
In order to philosophize, does one have to know about the history of Philosophy? Which are
the proper conditions to the exercise of thought in a Philosophy courses? As Immanuel Kant
states, knowing the greatest philosophers’ ideas does not suffice for one to learn how to
philosophize. Philosophy demands audacity as well as intellectual maturity from those who
acknowledge the necessity of thinking on their own. For Martin Heidegger, these are times in
which people dedicate themselves to a great deal of activities, being the process of thinking
scarce. Even in university and school contexts, learners don’t seem to be willing to face
experiences and events which would inspire new thinking. This paper aims at investigating
the place of thinking in the teaching of Philosophy. Such investigation will be based on
Kant’s and Heidegger’s reflections as well as contributions from other scholars in the field of
Philosophy and Pedagogy.

Key words: thinking; history of philosophy; teaching; autodidacticism; experience.

____________________
8 Doutor em Filosofia (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail:
paulohenrique.silveira@bol.com.br

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


27 O lugar do pensamento no ensino da Filosofia

Uma palavra, uma melodia, uma história, uma linha, chaves no vento para que
minha mente fuja.
Versos de Bob Dylan

Pelas mais diversas e díspares razões, uma tese apresentada nas últimas páginas
da Crítica da razão pura, o mais célebre livro de Immanuel Kant, influencia a didática
de inúmeros filósofos e pedagogos: não se pode aprender filosofia, “apenas se pode,
no máximo, aprender a filosofar” (Kant, 2001, p. 660). Ao contrário de certas ciências que
podem ser aprendidas e ensinadas, não há um saber filosófico aceito por todos. Talvez, indaga
Kant, nunca encontremos respostas necessárias e universais para as questões fundamentais da
filosofia, mais especificamente: “O que posso saber?; O que devo fazer?; O que me é lícito
esperar?; O que é o homem?” (2003, p. 42).
De qualquer modo, argumenta Kant, nada nos impede de formular novas respostas
que se somem ou se sobreponham às que foram levantadas pelos outros autores: “Todo
pensador filosófico constrói, por assim dizer, sua própria obra sobre os destroços de uma obra
alheia; mas jamais se erigiu uma que tenha sido estável em todas suas partes” (Ibidem, p. 42).
Um professor que queira ensinar seu aluno a filosofar “não deve ensinar pensamentos, mas a
pensar; não deve carregá-lo, mas guiá-lo, se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si
próprio” (Kant, 2003, p. 174). Para filosofar, é preciso inventar; quem se finca nos
pensamentos dos outros, na melhor das hipóteses, sabe imitar (Kant, 2001, p. 660). Num certo
sentido, mesmo conhecendo de cor e salteado as teses e os conceitos dos filósofos, muitos
eruditos não sabem pensar.
Os homens que não fazem uso do seu entendimento sem a direção de um tutor são
culpados por sua minoridade. Segundo Kant, a preguiça e a covardia são responsáveis pela
falta de autonomia: “Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor
espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha
dieta, etc., então não preciso me esforçar” (Kant, 1985, p. 100). Como crianças que não foram
encorajadas a andar sozinhas, tais pessoas não ousam pensar por conta própria (Ibidem, p.
102).
Sendo uma área do conhecimento cuja investigação parece ser interminável,
a filosofia autoriza e exige a criação de novos conceitos; porém, Kant aconselha a leitura
atenta dos textos clássicos, que mais não seja, para que o aluno exercite sua argumentação:
“quem quer aprender a filosofar tem o direito de considerar todos os sistemas da filosofia tão-
somente como uma história do uso da razão e como objetos do exercício de seu talento
filosófico” (Kant, 2003, p. 43).

Pensar na história da filosofia

Nas últimas décadas, na iminência da filosofia conquistar mais espaço no currículo


das escolas brasileiras, ocorreram nas universidades inúmeros debates a respeito da
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 28
importância e da especificidade dessa disciplina. As ideias de Kant sobre o ensino da filosofia
tiveram destaque nessas discussões
À primeira vista, essas ideias apontam para uma dificuldade didática, uma vez que
não cabe ao professor de filosofia ensinar pensamentos, mas ensinar a pensar. Num texto
seminal dos anos cinquenta, Jean Maugüé, um dos missionários franceses que contribuíram
para a estruturação do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, reconhece
que um curso de filosofia deve ensinar os alunos a filosofar, e, justamente por essa razão,
“não pode apresentar-se como um conjunto de conhecimentos objetivamente transmissível”
(1954, p. 226) 9. Para que isso seja possível, complementa Maugüé (Ibidem, p. 229), o
professor precisa oferecer uma cultura vasta e precisa e um bom conhecimento da história da
filosofia. Como destaca Paulo Arantes, a posição de Maugüé sobre o ensino envolvia um
imperativo técnico: não se aprende filosofia sem conhecer bem os clássicos, e dans le texte
(1994, p. 72). Não obstante, pelos relatos de Antonio Candido, que foi aluno de Maugüé,
ficamos sabendo que o seu compromisso com a leitura dos clássicos não o inibia de refletir
em suas aulas sobre “as paixões, os namoros, os problemas de família, o noticiário dos
jornais, os problemas sociais, a política” (citado por Arantes, 1994, p. 65). Além disso, “não
é corajosamente filósofo senão aquele que cedo ou tarde expressa seu pensamento acerca das
questões atuais” (Maugüé, 1954, p. 228).
Há muitas maneiras de abordar a história da filosofia. Provavelmente, não ensinaria a
pensar um curso que a apresentasse como uma mera “sucessão linear de fatos e de teorias a
serem memorizadas mecanicamente pelos educandos” (Silveira, 2007, p. 144). Segundo
Mario Porta, essa maneira de trabalhar com a história da filosofia é irrelevante e cumpre, na
melhor das hipóteses, uma função informativa (2011, p. 144). Por outro lado, um curso pode
perpassar a história da filosofia com o intuito de compreender os problemas e analisar as
soluções oferecidas pelos autores clássicos. Nas palavras de Franklin Leopoldo e Silva: “Em
filosofia não há aquisição propriamente dita, mas apenas a familiaridade progressiva com
certa ordem do pensar que é a ordem da inteligibilidade” (1993, p. 802). Investigando o
repertório de questões, de argumentos e de conceitos da história da filosofia, um curso torna
possível “o trânsito da pseudo-segurança da linguagem cotidiana e do pensamento de senso
comum à verdadeira segurança do discurso criticamente fundamentado” (Ibidem, p. 802). É
temeroso interpretar ao pé da letra o adágio “não se aprende filosofia”, como nas outras
disciplinas que fazem parte do currículo do ensino médio, num curso de filosofia: “há o que
aprender, há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas, há, sobretudo, uma
terminologia específica a ser devidamente assimilada” (Silva, 1992, 163).
____________________
9 Certamente, não aprenderá a filosofar e a pensar por conta própria o aluno que simplesmente repetir os
conteúdos transmitidos pelos livros ou pelos professores. Todavia, como analisa Leandro de Lajonquière, pode-
se compreender a transmissão, seja no ensino ou na psicanálise, não como o deslocamento de um vírus, mas
como uma maneira de adquirir aquilo que nos foi doado: “Freud gostava de lembrar: ‘deves adquirir aquilo que
herdas’. Isto é, o não iniciado nada recebe sem se implicar” (2011, p. 861).

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


29 O lugar do pensamento no ensino da Filosofia

Por mais original que possa ser um pensamento, não há como ignorar a importância
da história da filosofia: “toda filosofia depende, em certo sentido, das que a precederam, uma
vez que as reposições dos problemas e as transfigurações dos conceitos se fazem em relação a
um determinado contexto de tradição, e nenhuma filosofia é inseparável de uma polêmica
implícita que o filósofo mantém com os antecedentes, com os contemporâneos e até consigo
próprio” (Silva, 1986, p. 155).
O que ocorre em muitas pesquisas filosóficas também pode pautar o ensino da
filosofia nos colégios: um trabalho de reconstrução dos problemas e dos conceitos
da história da filosofia. Em suas análises sobre o tema, Porta distingue a reconstrução racional
da histórica. A primeira visa destacar os aspectos lógicos de um argumento, de uma tese ou de
um sistema filosófico. A segunda procura restituir o contexto de debate e de investigação no
qual um pensamento foi elaborado. Esse trabalho de reconstrução nos permite perceber com
clareza os antigos problemas e nos abre a possibilidade de elaborar novos problemas (Porta,
2011, p. 146). Como defendem Sílvio Gallo e Walter Kohan, o diálogo com a história da
filosofia pode se dar como: “uma forma de desvio, de pensar o novo repensando o já dado e
pensado” (2001, p. 194).
Não pensam por conta própria aqueles que se prendem às ideias do passado, todavia,
como bem ressalva Ronai Rocha: “aqueles que desconhecem o passado podem se ver
condenados a repeti-lo” (2000, p. 164). Ao invés de negar a autonomia do pensamento, um
professor que tenha a história da filosofia como referencial pode procurar “naquilo que foi
pensado o que nos faz pensar” (Silva, 1993, p. 803). Sem dúvida, há muita coisa importante
para se ensinar num curso de filosofia: problemas, teses, conceitos que podem ajudar o aluno
a escapar da imediaticidade da opinião e fazer com que ele identifique “como sendo seu este
outro que é a cultura” (Horn, 2009, p. 75).

Pensar sobre o pensamento

Por melhores que sejam as diretrizes de um curso de filosofia, vivemos num momento
propício para o pensamento? É isso o que os alunos procuram nas escolas? Numa série de
textos dos anos cinquenta, Martin Heidegger analisa essas questões e afirma em tom de
lamento: “há vários séculos o homem vem agindo demais e pensando de menos” (2004, p. 4).
Mesmo entre aqueles que se interessam pela filosofia, na maior parte dos casos, há uma
disposição para estudar os pressupostos dos grandes pensadores10, mas não para aprender a
pensar. A preocupação constante dessas pessoas com a filosofia cria-lhes, tão somente, a
ilusão de que estão sempre pensando (Ibidem, p. 5).
Ao analisar duas célebres frases sobre a origem e o significado da filosofia, a saber, a
____________________
10Para Rodrigo Gelamo, o ensino da filosofia precisa realizar um trabalho de problematização e de resistência
aos pressupostos da própria filosofia (2008, p.172). Questionando esses pressupostos, talvez encontremos outros
caminhos para o pensamento.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 30
de Platão: “é verdadeiramente de um filósofo esta paixão – o espanto; pois não há outra
origem imperante da filosofia que este”, do Teeteto, 155d, e a de Aristóteles: “pelo espanto os
homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar”, da
Metafísica, 982b, Heidegger percebe no espanto (thaumázein) uma paixão (páthos) que
propicia a reflexão filosófica (2006, p. 30) 11 . Na essência do pensamento filosófico há uma
experiência passional na qual o indivíduo é convocado a reagir à realidade que o cerca. Para
vivermos essa experiência, precisamos aprender a esperar sem criar esperanças ou
expectativas, “pois o estar em expectativa já se prende a uma representação e ao seu objeto
representado” (Heidegger, 2001, p. 43).
Um aprendiz de carpinteiro aprende a fazer armários, camas e coisas semelhantes, a
lidar com vários instrumentos e com as mais diversas madeiras, mas também aprende a se
familiarizar com pessoas desconhecidas que um dia utilizarão suas obras. Por analogia,
recomenda Heidegger, um professor de filosofia precisa ensinar seu aluno a aprender a pensar
sobre o que ainda possa lhe ocorrer: “o mestre autêntico, de fato, não ensina outra coisa senão
a aprender” (2004, p. 15).
Essas ideias de Heidegger influenciam toda uma geração de filósofos do século vinte.
Pautados por suas análises sobre os significados do pensamento e da filosofia, Cornelius
Castoriadis, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e Gilles Deleuze trazem outros
elementos para interpretação do adágio de Kant. Para esses autores, a autonomia do
pensamento pressupõe o autodidatismo daquele que aprendeu a pensar por conta própria. Não
se trata do autodidatismo de um self-made man que não pôde frequentar uma escola, mas do
autodidatismo de quem decide tornar-se mestre de si mesmo. Sendo assim, de maneira
alguma um curso de filosofia pode censurar o aluno que não se satisfaz em repetir os
pensamentos do seu mestre ou dos grandes autores.
A filosofia tem um compromisso, afirma Castoriadis, com a totalidade do pensável;
não apenas com a totalidade do que já foi pensado, mas com a totalidade do que ainda há para
pensar (1999, p. 17). O aluno que deseja pensar por conta própria precisa investigar o que
permanece impensado. Segundo Derrida, “o mestre é somente um mediador que deve apagar-
se” (1986, p. 16). O lugar do mestre precisa permanecer vago para que o aluno ouse ocupá-lo,
para que ele ouse aprender consigo mesmo, para que ele ouse tornar-se seu próprio mestre.
Por outro lado, ser autodidata, explica Lyotard, não significa que não aprendemos nada dos
outros, mas “que não aprendemos nada deles, se eles não nos ensinam a desaprender” (1986,
p. 35). A reflexão filosófica precisa incitar “a desestabilização das evidências recebidas,
inclusive e, sobretudo, as filosóficas” (Castoriadis, 1999, p. 27). Retomando a possibilidade
do espanto, pontua Deleuze, repetimos indefinidamente a experiência do pensamento: “como
se o pensamento só pudesse começar, e sempre recomeçar” (2006, p. 193). O ensino da
____________________
11 Sobre esse tema, escreve Maria Aranha: “O ensino da Filosofia supõe um compromisso com a vida, para que
se possa recuperar, em um mundo por demais pragmático, o que os gregos já chamavam de capacidade de
admirar-se, ou seja, do espanto diante do óbvio, do corriqueiro, das certezas sedimentadas” (2001, p. 118).

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


31 O lugar do pensamento no ensino da Filosofia

Filosofia não implica, somente, na aprendizagem de certos conteúdos, mas na transformação


do homem a partir do questionamento da experiência e da elaboração de novos conceitos.
Para aventurar-se no universo do que ainda há para pensar, argumenta Lílian do Valle, o aluno
precisa estar disposto a criar a si mesmo “como alguém que jamais se foi e que antes nunca
existiu” (2009, p. 476).
Todavia, esse autodidatismo não pode ser transmitido ou ensinado. Ainda que o
mestre seja um autodidata, se ele se colocar como um exemplo a ser imitado ou se ele tentar
determinar a pessoa que seu aluno deve se tornar, certamente, ele não lhe ensinará a pensar e
a aprender por conta própria. Nesses termos, como defende Sigmund Freud, a educação é
uma profissão impossível (1991, p. 249) 12. A posição do professor, reconhece Marilena
Chauí, é muito arriscada: “ele está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do
lugar do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos” (1980, p. 40).
Pensando no autodidatismo do aluno, o mestre precisa fazer um “esforço cotidiano para que o
seu lugar permaneça vazio” (Ibidem, p. 39). É importante, sugere Marcelo Pereira, que o
mestre ative o desejo de saber do aluno mostrando-lhe o seu próprio desejo de saber (2008, p.
200).

Pensar na sala de aula

A par dessas análises e reflexões, pode-se vislumbrar uma perspectiva sobre a


especificidade da filosofia no âmbito das outras disciplinas e áreas do conhecimento e propor
uma postura didática frente às possibilidades do seu ensino. Como a história, a matemática e
outras disciplinas, ao longo de séculos de uma intensa produção, a filosofia construiu teorias
que interpretam as mais diversas facetas da experiência humana. Por certo, o aprendizado
desses conteúdos é importante para a formação intelectual e cultural de qualquer aluno, seja
no ensino médio ou na Universidade. Os conceitos, as estruturas lógico-argumentativas e os
estilos de pensamento dos filósofos nos auxiliam na compreensão da natureza, da política e
do homem e abrem uma alternativa de diálogo com as artes e as ciências. Além disso, uma
leitura filosófica que desdobre os pressupostos e os subentendidos de um texto (Favaretto,
1995, p. 81), promove um exercício de pensamento e desenvolve técnicas de interpretação da
linguagem.
Desde a criação da democracia na Grécia, a filosofia se apresenta, principalmente,
como uma força interrogante (Silva, 1993, p. 799). Ao contrário dos filodoxos, daqueles que
se iludem com as aparências e com as opiniões, os filósofos questionam quase tudo o que
veem e o que escutam. Para exercer essa função, analisa Celso Favaretto, é fundamental que o
professor trabalhe em sala de aula com determinados dispositivos de pensamento:
____________________
12 Para Rinaldo Voltolini, a afirmação de Freud de que a educação é uma profissão impossível não aponta para
um fim “inexequível”, mas para um fim “inalcançável” (2011, p. 25). Pelo menos um dos fins da educação, a
autonomia do pensamento, está sempre por se alcançar.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 32
“elaboração conceitual, procedimentos argumentativos e problematização” (2008, p. 12).
Apresentando diferentes interpretações para os textos; interrogando os fundamentos das teses
e das ideias; avaliando o alcance e a universalidade dos conceitos; e analisando a coerência e
a relação entre os argumentos, um curso de filosofia instiga a elaboração de links que podem
aproximar uma época de outra época, uma causa de uma manifestação, um livro de outro
livro, uma situação de um sentimento, uma imagem de um pensamento, uma palavra de uma
coisa, uma música de um autor, uma pessoa de outra pessoa.
Em muitos casos, as respostas dos filósofos do passado para certos problemas
perderam a atualidade, mas algumas das suas questões podem ser recolocadas ao indagarmos
sobre nossa realidade; por exemplo, ainda faz sentido problematizarmos, seguindo os passos
de Platão, a respeito das dificuldades pelas quais os estudantes passam no processo de
formação, e é pertinente interrogarmos, com Rousseau, sobre a origem da desigualdade entre
os homens. Nesses tempos em que “a ‘maioridade’ intelectual, social e moral dos usos de
nossas vidas, prometida pelo Iluminismo, cede à autonomização da economia com respeito ao
controle humano” (Matos, 2000, p. 13), o estudo e o debate sobre algumas questões
filosóficas podem abrir espaço nas salas de aula para o pensamento e a emancipação. Numa
das mais enigmáticas ideias da filosofia, Parmênides afirma que “ser e pensar são a mesma
coisa”. Arrisquemos uma interpretação: assim como a filosofia, enquanto atividade que cria
pensamentos, está sempre por se fazer, o homem, enquanto ser, está sempre por se refazer.
Um curso de filosofia pode promover situações que levem alunos e professores a
pensar na sala de aula: construindo experiências nas quais as pessoas se vejam afetadas por
aquilo que escutam, leem e discutem (Larrosa, 2006, p. 90); abrindo espaço para os mais
inusitados encontros com livros, ideias, imagens, sons e pessoas (Deleuze, 1998, p. 8); e
gerando acontecimentos de resistência aos clichês e ao ritmo frenético das nossas atividades
diárias (Fabbrini, 2005, p. 24) 13 . O pensamento demanda uma disponibilidade, nos ensina
Paulo Freire: “disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a discordar,
disponibilidade à vida e a seus contratempos” (2013, p. 131). É difícil para qualquer professor
de filosofia ensinar a si mesmo e a seus alunos a pensar, mas sua sala de aula pode estar
disponível para essas experiências, encontros e acontecimentos.
Uma palavra, uma melodia, uma história, uma linha; talvez, atentos e apaixonados
pelos detalhes da experiência e livres das amarras da opinião, professor e alunos de um curso
de filosofia possam transformar a sala de aula num lugar diferente, num lugar onde se cultive
o prazer de pensar.

Submetido em 22 de maio de 2013.


Aprovado para publicação em 06 de agosto de 2013.
____________________
13 Nessa mesma linha de interpretação, acrescenta Walter Kohan: “Suspeitamos que se o pensar é um encontro,
ensinar a pensar tem a ver com propiciar esse encontro, com preparar as condições de sua irrupção” (2003, p.
234).

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


33 O lugar do pensamento no ensino da Filosofia

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria. Filosofia no ensino médio: relato de uma experiência. In: KOHAN,
W.; GALLO, S. (orgs). Filosofia no ensino médio. Petrópolis: Vozes, 2000.

ARANTES, Paulo. Um departamento francês de ultramar: estudos sobre a formação


da cultura filosófica uspiana (uma experiência nos anos 60). São Paulo: Paz e Terra,
1994.

CASTORIADIS, Cornelius. Feito e a ser feito: as encruzilhas do labirinto V. Tradução


de Lílian do Valle. Santa Teresa: DP&A, 1999.

CHAUI, Marilena. Educação e ideologia. In: Educação & Sociedade, Campinas, 2 (5),
p. 24-40, 1980.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

______; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Escuta, 1998.

DERRIDA, Jacques. Les antinomies de la discipline philosophique: lettre préface. In:


______ et al. La grève des philosophes: école et philosophie. Paris: Osiris, 1986.

FABBRINI, Ricardo. O ensino de filosofia: a leitura e o acontecimento. In:


Trans/Form/Ação, Marília, 28 (1), p. 7-28, 2005.

FAVARETTO, Celso. Notas sobre o ensino de filosofia. In. MUCHAIL, S. (org).


Filosofia e seu ensino. São Paulo: EDUC, 1995.

______ Prefácio (Ensino de filosofia e currículo). In. ROCHA, R. Ensino de filosofia e


currículo. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREUD, Sigmund. Análisis terminable e interminable. In: Obras completas, vol. 23.
Buenos Aires: Amorrortu, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

GELAMO, Rodrigo. Pensar sem pressupostos: condição para problematizar o ensino da


R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 34
filosofia. In: Pro-posições, 19, 3 (57), Campinas, p. 161-174, 2008.

HEIDEGGER, Martin. Que é isto – filosofia? Identidade e diferença. Tradução de


Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Duas Cidades, 2006.

______Serenidade. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa:


Instituto Piaget, 2001.

______ What is called thinking? Tradução de J. Glenn Gray. Nova Iorque: Perennial
Library, 2004.

HORN, Geraldo. Ensinar filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos. Ijuí: Unijuí,


2009.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

______ Lógica. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 2003.

______Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes.


Petrópolis: Vozes, 1985.

KOHAN, Walter. Infância. Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

______; GALLO, Sílvio. Crítica de alguns lugares-comuns ao se pensar a filosofia no


Ensino Médio. In: KOHAN, W.; GALLO, S. (orgs). Filosofia no ensino médio.
Petrópolis: Vozes, 2001.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. A mestria da palavra e a formação de professores.


In: Educação & Realidade, Porto Alegre, 36 (3), p. 849-865, set/dez, 2011.

LARROSA, Jorge. Sobre la experiencia. In. Aloma: revista de psicologia, ciències de


l’educació i de l’esport, Barcelona, 19, p. 87-112, 2006.

LYOTARD, Jean-François. Le cours philosophique. In: ________ et al. La grève des


philosophes: école et philosophie. Paris: Osiris, 1986.

MATOS, Olgária. A arte do bem-viver: cidadania, amizade. In: KOHAN, W.; LEAL,
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
35 O lugar do pensamento no ensino da Filosofia

B.;

RIBEIRO, Á. (orgs). Filosofia na escola pública. Petrópolis: Vozes, 2000.

MAUGÜÉ, Jean. O ensino de filosofia: suas diretrizes. In: Kriterion, Belo Horizonte,
29-30, p. 224-234, 1954.

PEREIRA, Marcelo. A impostura do mestre. Belo Horizonte: Argumentum, 2008.

PORTA, Mario. Filosofia e história da filosofia: uma reflexão sobre as relações de texto
e contexto. In: Cognitio-Estudos: revista eletrônica de filosofia, 8 (2), p. 141-148,
2011.

ROCHA, Ronai. Filosofia como educação de adultos. In: In: KOHAN, W.; GALLO, S
(orgs). Filosofia no ensino médio. Petrópolis: Vozes, 2000.

SILVA, Franklin Leopoldo e. Currículo e formação: o ensino da filosofia. In: Síntese


nova fase, Belo Horizonte, 20 (63), p. 797-806, 1993.

______ História da filosofia: centro ou referencial. In: NIELSEN NETO, H. (org). O


ensino de filosofia no 2º Grau. São Paulo: Sofia editora SEAF, 1986.

______ Por que a Filosofia no segundo grau. In: Revista Estudos Avançados, São
Paulo, 6 (14), p. 157-166, 1992.

SILVEIRA, Renê. Teses sobre o ensino de filosofia no nível médio. In: _______;
GOTTO, R. (orgs). Filosofia no ensino médio: temas, problemas e propostas. São
Paulo: Loyola, 2007.

VALLE, Lílian do. Educação impossível. In: Educação, Santa Maria, 34 (3), p. 473-
486, 2009.

VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.25-34, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 36
O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino
Médio
Ademir Aparecido Pinhelli Mendes14
Edson Teixeira de Rezende15

Resumo
O artigo apresenta os resultados de uma investigação de abordagem qualitativa realizada a
partir de uma experiência de aprendizagem filosófica desenvolvida com estudantes do 3º ano
do Ensino Médio em duas Escolas Públicas do Estado do Paraná. Parte da seguinte
problemática: em que medida o uso do mapa conceitual pode ser utilizado como ferramenta
pedagógica para a leitura, análise e compreensão de textos filosóficos no Ensino Médio? A
investigação mostra estratégias e possibilidades do uso do mapa em sala e os impactos que
ocorrem na aprendizagem filosófica dos estudantes. As cartas e os mapas conceituais
produzidos pelos educandos sobre o tema política - a partir do capítulo XVII d’O Príncipe de
Maquiavel -, mostram tanto a presença de elementos da vida cotidiana como apropriações
conceituais e reflexões evidenciando a aprendizagem filosófica.

Palavras-chave: filosofia; aprendizagem; mapa conceitual; mediação didática.

The use of concept maps for reading philosophical texts in high school classes

Abstract
This article presents the results of an investigation by conducting a qualitative research from
philosophical learning experience developed with students of third year of High School in
two public schools in the State of Paraná. The main issue is: to what extent the use of the
concept map can be used as a pedagogical tool for reading, analysis and understanding
philosophical texts in High School? The investigation shows strategies and possibilities of the
use of the map in classroom and the impacts that occur on philosophical learning by the
students. The letters and concept maps produced by the students on the topic Politics – from
chapter XVII of The Prince by Machiavelli – show either the presence of elements of
everyday life and conceptual appropriations and reflections evidencing philosophical
learning.

Keywords: philosophy; Learning; concept map; didactic mediation.

____________________
14Mestre em Educação (UFPR). Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação do Paraná. E-mail:
pinhellimendes@hotmail.com
15 Mestre em Educação (UFPR). Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação do Paraná. E-mail:
etrezende@ig.com.br

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


37 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

Introdução

A Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, alterou o Art. 36 da LDB nº 9394/96 e tornou


obrigatórias a oferta da Filosofia e da Sociologia no Ensino Médio, inaugurando uma nova
etapa na discussão sobre o lugar da filosofia no currículo escolar. O propósito deste texto é
contribuir com essa discussão ao explicitar os resultados de uma pesquisa-ação realizada no
âmbito do ensino da filosofia com estudantes da 3ª série de Ensino Médio. Ao utilizar o Mapa
Conceitual como mediação pedagógica para a leitura de textos filosóficos e estudo dos
conceitos de Filosofia Política, presentes no capítulo XVII da obra O Príncipe de Maquiavel,
analisamos o processo de aprendizagem significativa no ensino da filosofia no ensino médio.
O percurso realizado nessa pesquisa mostra que o ensino da Filosofia com educandos
do Ensino Médio, na perspectiva de uma educação emancipadora, necessita apropriar-se de
metodologias que lhes assegurem as condições de “aprendizagem” dos conceitos filosóficos,
como condição para a reflexão da existência e reconhecimento do ser no mundo. Entendemos
a aprendizagem como sendo o processo pelo qual os educandos investigam e se apropriam
dos conceitos filosóficos ressignificando-se para compreender sua vida cotidiana. Utilizando-
se do recurso de intervenção didática para a produção de mapas conceituais e aprendizagem
significativa, proposto por Ausbel (1982), os educandos estudaram o conteúdo da Filosofia
Política com um recorte no capítulo XVII do Príncipe de Maquiavel. O mapa conceitual é
uma expressão gráfica do conhecimento realizada por meio de proposições relacionadas entre
si. Os mapas conceituais produzidos pelos educandos permitem observar elementos da vida
cotidiana presentes nas proposições por eles elaboradas.
Para análise teórica dos materiais empíricos produzidos na pesquisa-ação,
apropriamo-nos de autores reconhecidos no campo das pesquisas no ensino de Filosofia no
Ensino Médio e que nos oferecem coerência epistemológica com os objetivos da pesquisa. De
Horn (2008) emprestamos o conceito de mediação praxiológica dos conteúdos, que se
constitui no conjunto de elementos didáticos do qual fazem parte o conteúdo selecionado, as
estratégias de ensino e avaliação, o texto clássico, as novas tecnologias educacionais, o plano
de aula, a concepção de filosofia e seu ensino do professor, etc. Severino (2008), ao tratar a
importância da Filosofia na formação do adolescente do Ensino Médio, chama atenção para
da mediação pedagógica no processo de ensino e aprendizagem da Filosofia. O que, de
alguma forma, indica alguns princípios da didática da Filosofia, caracterizada pela
historicidade do conhecimento filosófico, pela experiência coletiva do filosofar, pelo rigor
metodológico, pelo processo de pesquisa como mediação para construção do pensar, expresso
na oralidade e na escrita.
Apropriamo-nos do conceito de vida cotidiana de Agnes Heller (1989), para a qual, “a
vida cotidiana é a vida de todo homem” ao “mesmo tempo particular e genérico” e utilizando
o mapa conceitual no ensino da filosofia, intencionamos que os educandos problematizem
questões da Filosofia Política presentes no seu cotidiano, em seu aspecto micro e macro

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 38
econômico, partindo da referência da obra O Príncipe de Maquiavel. Os resultados da
pesquisa são ainda preliminares e a eles chegamos ao analisar as proposições iniciais,
produzidas pelos educandos, comparando com as proposições produzidas por eles após o
processo de estudo e discussão do texto de Maquiavel, sistematizado nos mapas conceituais.
Tais resultados nos permitem afirmar a possibilidade da aprendizagem filosófica, desde que
atendidas algumas exigências das mediações praxiológicas e pedagógicas para o ensino da
Filosofia.

Mediação praxiológica e a didática da filosofia

Partindo do pressuposto contido no documento das Diretrizes Orientadoras do Ensino


de Filosofia do Estado do Paraná16, ao estabelecer que uma das especificidades da Filosofia
como disciplina escolar é realizar o trabalho pedagógico com os conceitos filosóficos e,
considerando que o processo de aprendizagem ocorre mediado praxiológicamente17, nos
interessou investigar e analisar o processo pelo qual os estudantes do ensino médio aprendem
por meio do trabalho com conceitos filosóficos, de forma sistemática e orientada em sala de
aula de Filosofia.
Na tentativa de dar uma resposta plausível ao problema do ensino da Filosofia, Horn
(2008) criou o conceito de mediação praxiológica para indicar a necessidade de empregar
uma metodologia específica para o ensino da Filosofia como saber escolar a ser ensinado.
Trata-se, na verdade, de enfatizar a necessidade de repensar o saber a ser ensinado
na perspectiva da invenção de um espaço curricular próprio e da indicação de uma
perspectiva de organização do saber filosófico para o Ensino Médio; de apontar
para a prática de ensinar Filosofia no que se refere à relação entre o conteúdo, os
objetivos e a maneira com se ensina (HORN, 2008, p. 181).

Por mediação praxiológica, Horn (2002) compreende o que se constitui como


conjunto de mediações didáticas da qual fazem parte o conteúdo selecionado, as estratégias
de ensino e avaliação, o texto clássico, as novas tecnologias educacionais, o plano de aula, a
concepção de filosofia e seu ensino, que o docente acumula durante seu processo de formação
e atuação profissional, etc. Estes instrumentos se constituem como mediação praxiológica,
uma vez que não são utilizadas aleatoriamente, mas suas escolhas decorrem da prática social
do professor e de como ele compreende a própria natureza do processo educacional, da
própria filosofia e seu ensino.

Severino (2008), ao tratar da importância da Filosofia na formação do adolescente do


____________________
16 Documento destinado a orientar os professores de Filosofia do ensino médio das escolas públicas
estaduais do Estado do Paraná na elaboração da Proposta Pedagógica Curricular.
17 Conceito criado Horn (2002) para analisar como o professor de Filosofia organiza o currículo escolar da
disciplina de Filosofia no Ensino Médio.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


39 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

ensino médio, chama atenção para a importância da mediação pedagógica no processo de


ensino e aprendizagem da Filosofia. O que, de alguma forma, indica alguns princípios da
didática da Filosofia, caracterizada pela historicidade do conhecimento filosófico, pela
experiência coletiva do filosofar, pelo rigor metodológico, pelo processo de pesquisa como
mediação para construção do pensar, dito e escrito. O conjunto de mediações pedagógicas,
compreendidas aqui como praxiológicas, constituem uma didática específica do ensino da
filosofia, uma vez que surge da prática social do professor, que faz suas escolhas teórico-
metodológicas tendo em vista uma intencionalidade.
A didática pode ser entendida com a práxis pedagógica do professor, mas, também,
como sendo uma disciplina da pedagogia. Segundo Libâneo (2005, p. 143), a didática como
disciplina apresenta distinções e adjetivos, dependendo da intencionalidade e finalidade do
objeto de ensino e aprendizagem, sendo possível falar em didática fundamental, didática
crítico-social, didática histórico-social, etc. Isso nos leva a pensar numa didática específica
para cada disciplina, uma vez que cada área de conhecimento tem especificidades quanto ao
conteúdo a ser ensinado, o que exige abordagens pedagógicas diferenciadas.
Para Wuench (2007, p.84), reivindicar uma didática da Filosofia é falar em pedagogia
filosófica, o modo pelo qual somos apresentados às filosofias e aos filósofos, em que somos,
em alguma medida, convidados a filosofar com eles. A dimensão pedagógica da Filosofia
indica que existem certos modos de transmissão, já condicionados pela própria formação, ou
pela profissionalização da Filosofia. Para além dos procedimentos metodológicos, o
aprendizado da Filosofia supõe uma relação pedagógica entre mestre-discípulo. Embora,
talvez, nunca tenha existido um mestre da Filosofia, aquela figura do filósofo culturalmente
completo, o aprendizado da Filosofia supõe o discipulado, cujo mestre filósofo é o pedagogo
a conduzir o discípulo pelo questionamento como caminho, pela procura como método e pela
Filosofia como resposta. Em síntese, de acordo com a autora, “a Didática da Filosofia se
constitui, como um campo de investigação das questões relacionadas com o ensino e a
aprendizagem filosóficas, e com a divulgação, os usos e aplicações da Filosofia em outros
contextos” (Idem, p. 86).
A Didática da Filosofia seria constituída de uma parte técnica que exige do professor o
domínio do conteúdo, dos métodos e técnicas de ensino da Filosofia e também uma parte
existencial, que envolve a relação pedagógica professor-aluno, mestre-discípulo, como
condição para filosofar.

Pesquisa-ação e o ensino de filosofia

Para compreender o processo de ensino e aprendizagem da Filosofia no ensino médio,


precisamos ir à escola, à sala de aula e investigar as complexas relações que ocorrem entre os
próprios sujeitos do processo de ensino e aprendizagem e, entre os sujeitos e a cultura, as
estruturas, etc. É neste contexto que buscamos a resposta para a insistente questão: como
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 40
ensinar Filosofia no ensino médio?
Em busca de uma metodologia para o ensino da filosofia que, ao mesmo tempo
fugisse às iniciativas já bem conhecidas pelos manuais didáticos, não engessasse o processo
de ensino e aprendizagem e levasse ao risco de tornar não filosófico o ensino da filosofia,
demos início a um processo de investigação que se constitui como pesquisa-ação.
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa participante engajada, em oposição à
pesquisa tradicional, que é considerada como “independente”, “não-reativa” e
“objetiva”. Como o próprio nome já diz, a pesquisa-ação procura unir a pesquisa à
ação ou prática, isto é, desenvolver o conhecimento e a compreensão como parte da
prática. É, portanto, uma maneira de se fazer pesquisa em situações em que também
se é uma pessoa da prática e se deseja melhorar a compreensão desta. (ENGEL,
2000, p. 181).

A escolha desta perspectiva metodológica está diretamente ligada à natureza do objeto


investigado: aprendizagem de conteúdos/conceitos filosóficos a partir da prática/exercícios
dirigidos realizados pelos estudantes com os professores de modo participativo e interativo,
ambos na condição de sujeitos da aprendizagem e pesquisadores da sua própria ação
epistêmica. O acompanhamento e diálogo dos professores com os estudantes durante a leitura
do texto de Maquiavel, a discussão e a elaboração de mapas conceituais permitiu coletar
dados empíricos para uma análise mais acurada dos efeitos na aprendizagem do uso do mapa
como ferramenta para compreensão do texto filosófico. Por vezes, foi necessário
redimensionar o plano de trabalho inicialmente delineado. Portanto, a opção assumida
decorreu da própria ação docente dos pesquisadores, que compreendem sua ação em sala de
aula como prática problematizadora, ao procurar assumir um posicionamento profissional
investigativo do processo de ensino e aprendizagem da filosofia no ensino médio.
O objetivo específico da pesquisa foi realizar um processo de intervenção em sala de
aula ao propor aos estudantes a utilização do Mapa Conceitual como uma mediação
pedagógica, proposta por Novak (1981) para realizar o processo de ensino e avaliação
qualitativa da aprendizagem filosófica com os alunos da disciplina de Filosofia no Ensino
Médio.
[...] o mapa conceitual possibilita a representação gráfica do processo de
aprendizagem dos conceitos. O mapa conceitual é uma estrutura esquemática para
representar um conjunto de conceitos imersos numa rede de proposições. Ele é
considerado como um estruturador do conhecimento, na medida em que permite
mostrar como o conhecimento sobre determinado assunto está organizado na
estrutura cognitiva de seu autor, que assim pode visualizar e analisar a sua
profundidade e a extensão. Ele pode ser entendido como uma representação visual
utilizada para partilhar significados, pois explicita como o autor entende as relações
entre os conceitos enunciados. O mapa conceitual se apoia fortemente na teoria da
aprendizagem significativa de David Ausubel, que menciona que o ser humano
organiza o seu conhecimento através de uma hierarquização dos conceitos.
(TAVARES, 2007, p. X).

Espera-se que, por meio do uso desta mediação pedagógica, os alunos produzam
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
41 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

evidências empíricas e teóricas, possibilitando aos pesquisadores a análise do processo de


ensino e aprendizagem em Filosofia. Para isso, foi realizada uma experiência de ensino com
educandos da 3ª série do ensino médio18. Os alunos estudaram o conteúdo da Filosofia
Política, com um recorte no capítulo XVII d’O Príncipe de Maquiavel. Utilizando-se do
recurso de intervenção didática para a produção de mapas conceituais e aprendizagem,
significativa, proposto por Ausubel (1982).
Os objetivos estabelecidos para a realização da atividade pedagógica foram: a)
representar por meio do mapa conceitual os principais conceitos presente no capítulo XVII do
Príncipe, escrito por Maquiavel; b) compreender o texto clássico de filosofia utilizando o
mapa conceitual como instrumento metodológico para a leitura e compreensão dos conceitos
filosóficos; c) compreender os conceitos de política, poder e características do governante em
Nicolau Maquiavel; d) analisar os conceitos do florentino com elementos da micro política à
macro política atual.
O trabalho com o texto clássico de filosofia exige uso de mediações didático-
pedagógicas, a fim de que ocorra uma aprendizagem significativa dos conceitos filosóficos.
Entendemos que o uso do mapa conceitual permite que o texto seja lido, compreendido e
apropriado pelos alunos do ensino médio. Para Moreira (2010, p. 77), os mapas conceituais
constituem uma estratégia facilitadora da aprendizagem significativa e da conceitualização. O
trabalho com esta técnica permite focar a aprendizagem de conceitos, mas, para isso, é
importante que sejam construídos colaborativamente pelos alunos sob a mediação do
professor. É no processo de construção coletiva que os alunos poderão discutir a relevância
dos conceitos que devem ser incluídos no mapa e como devem ser ordenados. Neste processo,
devem discutir também quais termos de ligação são relevantes para realizar a conexão dos
conceitos.
O processo de leitura do texto filosófico, por meio da produção e discussão dos mapas
conceituais, tanto no plano individual como no coletivo, mediado pelo trabalho docente,
constitui-se na produção de materiais empíricos, a partir dos quais é possível avaliar
qualitativamente o processo de ensino e aprendizagem, por meio do qual os alunos se
apropriam e ressignificam os conceitos filosóficos. Neste processo, os alunos começam a
perceber que os conceitos são elementos importantes na construção do conhecimento
filosófico. Assim, os materiais produzidos são tomados como um conjunto de documentos
que acabam por constituir um dossiê do processo de aprendizagem.
Compreendemos que o dossiê de aprendizagem filosófica é um instrumento que
facilita a coleta e organização das produções escritas pelos estudantes. Sua finalidade é
possibilitar a análise do processo de aprendizagem, identificando avanços e dificuldades. É
uma coletânea das atividades produzidas pelos estudantes, ao longo de um determinado
período de tempo, a fim possibilitar a análise ampla e detalhada dos diferentes momentos e
____________________
18 A pesquisa foi realizada em duas escolas públicas de ensino médio localizadas em Curitiba e Região
Metropolitana.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 42
elementos do seu processo de aprendizagem.

Ambiente de aprendizagem filosófica significativa


Partindo da tese Aristotélica, segundo a qual o “homem é naturalmente um animal
político destinado a viver em sociedade” (Aristóteles, 2001, p. 15), problematizamos que
somos seres políticos e indagamos: que características identificam o ser humano como tal? E,
como a macro política se incorpora nas características do sujeito político?
Na perspectiva de investigarmos essas indagações, um autor como Nicolau
Maquiavel, auxilia a provocar uma reflexão com os educandos já que quando indagados sobre
o que é a política, geralmente identificam “corrupção, mentiras, busca por status, interesses
próprios, dentre outros conceitos depreciativos” como sendo conceitos centrais para explicar
a política.
Esses elementos são evidenciados em sala de aula por meio do mapa conceitual,
ferramenta que se utiliza de conceitos. Aqui, tomamos o cuidado com o apontamento de
Aristóteles (2005, p. 39), “as coisas têm apenas um nome em comum e a definição de
essência correspondente ao nome é diferente”.
Aristóteles ressalta a importância do cuidado com o conceito para expressar a ideia
“coisa”, o elemento e, quando relacionados entre si, os conceitos devem apresentar sentenças
que são “afirmativas ou negativas, tem de ser verdadeiras ou falsas” (ibidem, p. 42). Essas
são reconhecidas quando “dotada de significação, sendo que esta ou aquela sua parte, pode ter
um significado particular de alguma coisa, ou seja, que é enunciado” (ibidem, p. 84). O que
faz com que essa sentença possa ser reconhecida como proposição? São “as que encerram
verdade ou falsidade em si mesma” (idem).
O primeiro momento do trabalho de pesquisa teve início com a exibição aos alunos de
vídeos tutoriais, demonstrando o processo de construção de mapas conceituais com o objetivo
de aprender como podem ser construídos. Por isso, foram exibidos dois vídeos: o primeiro
demonstrando como realizar a instalação do Programa Cmap Tools19. O segundo
demonstrando o processo de construção do mesmo no Programa Cmap Tools20.
Como forma de exercitar a construção de mapas conceituais, os alunos identificaram
10 conceitos para explicar o que é política e construir um mapa conceitual, utilizando os
conceitos identificados. Após produzir o mapa conceitual, os alunos produziram um texto
com no mínimo dez linhas, explicando os conceitos utilizados no mapa conceitual e
explicitando sua compreensão sobre a política. Em seguida, os textos foram lidos e discutidos
em sala sob a mediação do professor.
O segundo momento da metodologia, utilizada para realização da pesquisa, consistiu-
se na exibição de documentário21 sobre Nicolau Maquiavel ressaltando aspectos da vida e
____________________
19 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=mLrsGegB43I
20Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zdmwlnSEa2M
21 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=LUDOnaqziLo

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


43 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

elementos teóricos da sua filosofia.


No terceiro momento da pesquisa, os alunos realizaram a leitura do capítulo XVII do
Príncipe de Maquiavel, selecionando os conceitos sobre os quais o autor organiza seu
pensamento político. Em seguida, cada aluno elaborou um mapa conceitual com os conceitos
selecionados.
Após esta atividade cada aluno escreveu uma carta (mínimo 10 linhas) a um amigo da
sala, a ser enviada juntamente com o mapa conceitual, explicando os conceitos utilizados. Em
seguida responderam à carta recebida, comentando o seu conteúdo e os conceitos utilizados
na construção do mapa conceitual. Na resposta poderiam concordar ou discordar, ou ainda,
pedir esclarecimentos referentes aos conceitos de Maquiavel utilizados no mapa conceitual e
na carta. O encerramento da atividade se deu com a leitura das cartas e suas respectivas
respostas e considerações do professor sobre os conceitos utilizados na construção dos mapas
conceituais sobre o que os alunos compreendiam por política e as novas compreensões
decorrentes do estudo do capítulo XVII do Príncipe de Maquiavel.
No aspecto avaliativo, utilizamos a produção dos alunos – mapas e cartas - a fim de
avaliar capacidade de argumentação. A avaliação ocorreu tendo como critério a compreensão
dos conceitos filosóficos presentes no texto, possibilitando avançar metodologicamente na
mobilização, problematização e investigação do conceito.

Análise da produção dos alunos

A vida cotidiana, conceito compreendido a partir de Agnes Heller (2008), pressupõe o


ser humano na sua individualidade enquanto totalidade (sentimentos, ideias,
intelectualidade...), esse ser é incompleto. Todavia, “o homem da cotidianidade é atuante e
fruidor, ativo e receptivo, mas não tem nem tempo, nem possibilidade de se absorver
inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguça-los em toda sua
intensidade” (HELLER, 2008.p.31).
A vida cotidiana no ser humano é dinâmica e diversa, pois consideram as relações
socioeconômicas, o tempo e espaço do homem para a sua significação da realidade e
constituição da sua individualidade e personalidade, visto que:
O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do homem
significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É
adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade. (ibidem. p.33)

Esse aspecto ajuda a entender que o jovem que está aprendendo filosofia no ensino
médio apresenta elementos sentimentais, ideias, paixões movidas também pela sociedade e
cultura, que se encontram envolvidas. Quando, numa situação problema, ele pode se utilizar
desse arcabouço para constituir uma perspectiva que resolva ou redirecione o problema,

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 44
sabendo que a perspectiva filosófica não consiste no senso comum, mas, o pensar, pode
apropriar-se desses elementos, bem como do pensamento realizado pelos filósofos para
permitir ao indivíduo ferramentas conceituais para entender, analisar e agir numa conjuntura
atual.
O professor de filosofia, quando reconhece o cotidiano do educando, abre a
possibilidade de reconhecer o sujeito da aprendizagem, como elemento ativo do processo,
fazendo com que a suas indagações não fiquem no senso comum, mas avancem no sentido de
pensar de maneira rigorosa as problemáticas que envolvem seu ser no mundo.
Em que medida o uso de mapas conceituais, como técnica de mediação praxiológica
para a leitura de textos filosóficos, poderia ser considerada também um mediação didática
para o ensino da filosofia no nível médio?
Buscaremos evidenciar, por meio das produções dos alunos, os dois momentos
fundamentais da pesquisa. Um que parte dos conhecimentos prévios dos alunos acerca de sua
compreensão sobre o que é política, para, em seguida, analisar a compreensão dos alunos
após a leitura do capítulo XVII d’O Príncipe, de Maquiavel.
Vamos à análise de dois mapas construídos pelos alunos, dentre os que compõem o
“dossiê de aprendizagem” da turma, no qual alguns desses conceitos são representados:
Mapa 1:

Mapa 2:

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


45 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

Foram produzidos 23 mapas pelos estudantes a partir dos dez conceitos prévios por
eles selecionados. A análise dos mapas conceituais evidencia que os conceitos utilizados
pelos alunos para conceituar política podem ser resultantes de estudos realizados durante seu
processo de escolarização, da influência da mídia ou do seu cotidiano vivido, onde o tema
surge aleatoriamente, mas está presente. Para efeitos de análise, os conceitos foram
categorizados em três grupos distintos: “organização da sociedade”, “ética e política” e
“política negativa”.
Os conceitos que associam a política com a categoria “organização da sociedade” são
os seguintes: aprovação de leis, câmara dos deputados, eleições, presidente, governadores,
vereadores, sociedade, direito, dever, povo, representação, ideias, parlamentares, partidos,
legislação, comandar, poder, economia, mundo, educação, ditadura, liderança, melhorias,
país, eleições, participação, voto, campanhas, eleitores, democracia, debate, comunismo,
administrar, autoridade, população, impostos, benefícios, estudo, informação.
Os conceitos que associam a política com a categoria “ética e política” são os
seguintes: progresso, desenvolvimento, censo crítico, responsabilidade, autonomia, reflexão,
honestidade, valores, harmonia, bem, mal, qualidade de vida, moral, escolhas, julgamento,
dilemas, determinação, justiça.
Os conceitos que associam a política com a categoria “política negativa” são os
seguintes: roubo, prisão, laranjas, dinheiro, corrupção, problemas, mensalão, decepção,
escândalos, injustiças, mentiras, interesses, desigualdades, exclusão, aquecimento global,
morte, guerra.
Após produzir os mapas conceituais sobre os conceitos que elegeram para definir
política, os alunos escreveram um texto dissertando sobre os conceitos que utilizam no mapa
e explicitarem as relações conceituais. Os textos selecionados evidenciam a categorização
acima, nos quais estão evidenciados alguns conhecimentos prévios trazidos pelos alunos,
como, por exemplo, a necessidade da ética na política e os constantes escândalos envolvendo
políticos eleitos.
A política começa de fato quando um candidato se candidata a qualquer cargo dentro
da política. Os políticos vão disputar nossos votos mostrando suas propostas, e
promessas, que sempre visam melhorias para a população ou município. Quando o
candidato consegue se eleger ele, na maioria dos casos vai tentar cumprir com os
principais elementos que compõe a política. (Jefferson – 3º ano)

Depois de ter conquistado a confiança da população o então eleito busca propostas,


também busca soluções. Também é seu papel exigir os direitos das pessoas e
exercendo a cidadania, buscando a solução de todos os problemas. Como em todos
os lugares do mundo, na política, sempre haverá os corruptos, que são a minoria,
assim, gerando a famosa corrupção, levando a população a criar um preconceito a
tudo relacionado a política. A corrupção existe, mas não são todos os políticos que a
exercem , devemos parar com esse tipo de preconceito. (Melissa – 3º ano).

Ao pensar o processo de “aprender significativamente implica atribuir significados e


estes têm sempre componentes pessoais. Aprendizagem sem atribuição de significados
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 46
pessoais, sem relação com o conhecimento preexistente, é mecânica, não significativa.”
(MOREIRA, 1997, p.5). Percebemos como o processo relacional do conhecimento
estruturado graficamente no mapa conceitual é compartilhado, compreendido e analisado no
coletivo da sala de aula, tendo como elemento inicial uma indagação que se reporta a
elementos da realidade no caso O que é política? Por utilizar-se de elementos do cotidiano, é
importante a explanação para o coletivo e sua indagação sobre os conceitos para apurar o
entendimento, sair do senso comum e entender de maneira rigorosa o sentido do conceito.
A partir da mediação feita pelo professor com a exibição do vídeo e comentários da
obra O Príncipe, de Maquiavel, os estudantes reelaboraram os mapas conceituais,
apresentados a seguir.
Mapa 01:

Cara amiga Pâmela.


Após ler atentamente o capítulo VXII da obra de Maquiavel devo apresentar-lhe as
minhas singelas conclusões. A problemática de Maquiavel era: como chegar ao
poder? Como exercê-lo? Como conservá-lo? Para isso ele parte de sua doutrina
realista, onde a política constitui uma ciência autônoma e independente de qualquer
sistema ético ou religioso. Príncipe não era necessariamente uma pessoa imoral ou
cruel, mas visava, sobretudo, os interesses do Estado, não importando como
alcançaria esses interesses. Ele, também deveria observar e estar atento às pessoas
ao seu redor e seus súditos, sendo astuto (como a raposa) e agressivo (como o leão).
Na política a aparência é tão importante quanto a substância: assim é preciso ser
simulador e dissimulador, afinal os homens são tão ingênuos e sujeitos às
necessidades do momento que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe
enganar. Portanto, Maquiavel expressa a preocupação exclusiva com a eficácia do
poder político, com a competência do governante em exercer o poder, lançando mão
de todos os meios a seu alcance. Para se obter os fins desejados não importando os
meios utilizados.
Atenciosamente, Josane.
Querida amiga Josane
A princípio de suas conclusões pude observar que Maquiavel dizia que o príncipe
poderia combater com a força e a lei, que ele poderia ser agressivo ou não, que as
pessoas tinham o direito de ser independente. Que a política vai atrás da realidade
para ver as necessidades e os interesses que o Estado tem de impor. Maquiavel se
preocupa com o poder político, para conseguir seus objetivos desejados sem se
preocupar com o que se utilizou.
Atenciosamente. Pâmela.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


47 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

A filosofia, quando reconhece o cotidiano do educando, permite reconhecer o sujeito


da aprendizagem como elemento ativo do processo, fazendo com que suas indagações não
fiquem no senso comum, mas que ele possa pensar de maneira rigorosa sobre as
problemáticas que envolvem este ser no mundo. Como apresenta Horn sobre a mediação
praxiológica, para a filosofia no universo do ensino médio onde o,
Filosofar com o cotidiano do aluno a partir da música, dos jornais, das poesias,
enfim com o universo cultural do jovem, não significa abandonar nem perder de
vista o texto filosófico – acadêmico -, mas ao contrário, por estas estratégias
introduzi-lo conscientemente como referência para a reflexão filosófica. Não é
necessário partir do texto filosófico, mas é preciso – de um jeito ou de outro –
chegar a ele. (HORN. 2009.p.97)

Percebemos que, após o trabalho com o capítulo XVII do Príncipe de Maquiavel, e a


explanação dos mapas conceituais realizadas pelos alunos do texto, bem como as indagações
feitas pelo coletivo na sala de aula, permitiram uma superação da visão inicial de política e
das qualidades necessárias para o exercício do poder.

Conclusão

O ensino da filosofia no ensino médio pode utilizar vários instrumentos para mobilizar
os alunos para esse processo. Segundo Obiols (2002. p.127), é fundamental que a aula de
filosofia tenha como ponto de partida da vida cotidiana do educador, de sua prática social,
respeitando o educando e compartilhando com este de seu interesse, fazendo com que os
questionamentos produzam uma investigação significativa e não mecânica. A investigação
por meio dos textos e da reflexão filosófica ao longo da sua tradição, leva ao questionamento
e ao interesse investigativo oriundo da vida cotidiana.
Quando, mediados praxiológicamente pelo professor, os alunos elegem e defendem os
conceitos e as ligações presentes no mapa aprendem que o conhecimento é dinâmico e o
questionamento dos colegas não desmerece o trabalho realizado, e, sim, permite aos
interlocutores aprofundar ou demonstrar o elemento que, por alguma condição, estava
implícito e que a sua explicitação traga beneficio para o entendimento do ponto abordado.
Na medida em que os alunos utilizarem mapas conceituais para integrar, reconciliar
e diferenciar conceitos, na medida em que usarem essa técnica para analisar artigos,
textos capítulos de livros, romances, experimentos de laboratório, e outros materiais
educativos do currículo, eles estarão usando o mapeamento conceitual como um
recurso de aprendizagem. (MOREIRA, 2010, p.17)

A aprendizagem significativa pensada por David Ausubel pressupõe que o


conhecimento para ser significativo deve se ligar a um conhecimento prévio, buscar uma
âncora (saber tácito ou científico anteriormente adquirido) para que o novo conhecimento não

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio 48
seja meramente memorizado, para ser reproduzido num processo avaliativo e depois
esquecido.
As análises iniciais desta pesquisa demonstram a importância da intencionalidade no
processo de aprendizagem e que o conhecimento a ser apreendido deve ser significativo para
o sujeito. As mediações da aprendizagem que contribuem para a realização deste processo são
importantes. O mapa conceitual pode ser significativo no processo do filosofar com
educandos do ensino médio, especialmente no que tange a representação gráfica do
conhecimento possibilitando a investigação e análise individual e coletiva do problema
filosófico como condição desenvolver o pensamento rigoroso, fazendo com que o processo
do conhecimento possa ocorrer de maneira significativa ao educando.

Submetido em 18 de abril de 2013.


Aprovado para publicação em 25 de julho de 2013.

REFERENCIAS

ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira chaves. São Paulo: Escala, [s.d.].

_____. Órganon: Categorias, Da interpretação, Analíticos anteriores, Analíticos


posteriores. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2005

ENGEL, I. G. Pesquisa-ação. Educar em Revista. Curitiba, n. 16, p. 181-191. 2000.


Editora da UFPR

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro


Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

HORN, Geraldo Balduíno. Por uma mediação praxilógica do saber filosófico em sala de
aula. In: Maria Auxiliadora Schmitd; Tania Maria Garcia Braga; Geraldo Balduino
Horn. (Org.). Diálogos e perspectivas de investigação. Ijúí: UNIJUÍ, 2008, v. 01, p.
179-195.

HORN, Geraldo Balduíno. Por uma mediação praxiológica do saber filosófico no


ensino médio: analise e proposição a partir da experiência paranaense. São Paulo:
FEUSP, 2002.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? 8ª ed. São Paulo: Cortez,
2005.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


49 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Os Pensadores. Vol. 06. São Paulo: Nova


Cultural, 1996.
MOREIRA, M. A. Mapas conceituais e aprendizagem significativa. São Paulo:
Centauro, 2010.

NOVAK, J. D. Uma teoria da educação. São Paulo: Pioneira, 1981.

OBIOLS, Guillermo. Uma Introdução ao ensino da Filosofia. Trad. Sílvio Gallo. Ijuí:
Unijuí, 2002.

SAVIANI, Nereida. Saber Escolar, currículo e didática: problemas da unidade


conteúdo/método no processo pedagógico. 4ª ed. Campinas: Autores Associados, 2003.

TAVARES, Romero. Construindo mapas conceituais. Ciências & Cognição; Ano 04,
Vol. 12. 2007, pp. 72-85. Disponível em: www.cienciasecognicao.org

WUENSCH, A.M. Por uma Didática da Filosofia. In: SARDI, Sérgio Augusto; SOUZA,
D. G.; CARBONARA, Vanderlei. (Org.). Filosofia e Sociedade: Perspectiva para o
Ensino da Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2007.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


Seção II - Informativo NESEF / Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 50
SEÇÃO II - INFORMATIVO NESEF
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade
Geraldo Balduíno Horn22

Considerando o debate nacional acerca das diretrizes e orientações do ensino de


Filosofia, inclusive de sua inclusão nos vestibulares de muitas universidades públicas e
particulares e no ENEM, pretende-se, nesse informativo, apresentar algumas reflexões sobre
o sentido e o lugar da disciplina de Filosofia no currículo do Ensino Médio, bem como
formas e possibilidades de organização dos conteúdos filosóficos nas matrizes curriculares.
A partir de 2008, com a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio como
disciplina obrigatória em todas as séries, um novo desafio impõe-se para todos os professores
e gestores das escolas: como consolidá-la como matéria escolar? A resposta a essa indagação
passa necessariamente pelo entendimento de outra questão que as pesquisas ainda não
responderam satisfatoriamente: até que ponto pode-se, hoje, afirmar que, apesar da
universalização da Filosofia como componente curricular, da construção de orientações
nacionais e de diretrizes específicas e da distribuição de livros didáticos por meio do
programa PNLD/MEC para as escolas públicas, ela se encontra, de fato, em todas as escolas
como Filosofia, com conteúdo e método próprio?
O percurso assumido para exposição e análise da problemática mencionada considera,
basicamente, dois momentos. O primeiro aponta para os aspectos contextuais e legais que
estabelecem um sentido e “lugar” para a Filosofia como componente curricular. O segundo
apresenta algumas considerações críticas em relação ao tratamento dado à Filosofia,
principalmente no que se refere à seleção dos conteúdos filosóficos, pelos documentos
oficiais: Parâmetros Curriculares de Filosofia (PCNs, 1999), Parâmetros Curriculares de
Filosofia (PCN +EM, 2002) e Orientações Curriculares de Filosofia (OCNs , 2006).
O artigo mostra que a conquista da inserção da Filosofia no currículo do Ensino por
meio da Lei nº 11.684/2008 que altera o artigo 36 da LDB 9394/96, tornando-a uma
disciplina obrigatória, foi um importante passo como ponto de partida para sua legalidade e
sua inclusão no currículo. No entanto, seu reconhecimento – como ponto de chegada -, está
longe de ser concretizado efetivamente. Ou seja, sua legitimação como prática filosófica
ainda precisa ser conquistada. Sua identidade, enquanto disciplina curricular, depende da
construção e da constituição de um “código disciplinar” autônomo que só a própria prática e a
experiência do pensar filosófico, a partir do modus operandi da Filosofia serão capazes de
instalar e consolidar. Essa é a tarefa de todos nós, professores, que atuamos de alguma forma
com o ensino de Filosofia.
____________________
22 Doutor em Educação (USP). Professor do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Coordenador
do NESEF/UFPR. E-mail: gbalduino@ufpr.br

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


51 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

O Ensino da Filosofia no contexto da atual política educacional: presença e ausência

Há uma forte tendência entre aqueles que defendem a presença da Filosofia nos
currículos da Educação Básica, principalmente no Ensino Médio, de assumirem uma defesa
contundente apoiados no argumento, por vezes, com caráter alvissareiro, quando não, com
um teor justiceiro, por conta de sua exclusão dos bancos escolares pela Ditadura Militar. Não
se trata de uma questão de justiça nem de uma simples disputa por espaço curricular ou de
que sua presença no currículo possui uma função missionária de salvaguardar valores e ideias
da tradição filosófica. Evitar qualquer perspectiva saudosista não só é salutar como
fundamental para definir os rumos, pós 2008, da inserção e da efetiva presença da Filosofia
no Ensino Médio.
Trata-se, sim, da defesa de uma questão de política educacional pública e de
resistência a certos modelos de organização curricular que, por razões ideológicas e de
natureza política, visam a uma formação eminentemente técnica voltada para a preparação de
mão de obra com vistas tão somente ao mercado de trabalho. Ao contrário daquilo que alguns
teóricos afirmam de que a Filosofia nunca esteve antes no currículo na condição de disciplina
obrigatória, é preciso dizer que ela foi, sim, componente obrigatório do currículo em nossa
história mais recente. Foi com a Reforma Capanema, em 1942, que ela se tornou obrigatória
para os estudantes da 2ª e 3ª séries do curso Clássico e para a 3ª série do curso Científico.
Esses cursos correspondiam ao atual Ensino Médio. Com a LDB nº 4.024/61 a Filosofia
passou a fazer parte do currículo como disciplina complementar sob responsabilidade do
Conselho Estadual de Educação de cada estado. Sua exclusão definitiva acontece com a
aprovação da LDB nº 5.692/71 que tornou a formação de nível médio técnica e com caráter
de terminalidade compulsória. (CARTOLANO, 1985).
Uma vez superada, ao menos do ponto de vista da concepção, a tendência de uma
formação eminentemente técnica, voltada ao mercado do trabalho, resultante da “qualificação
para o trabalho” da LDB 5692/71, a Lei Complementar 7.044/82 aponta para uma formação,
ainda que de natureza técnica, com característica propedêutica. No lugar de “qualificação
para o trabalho” propõe “preparação para o trabalho” procurando amenizar o caráter
pragmático da qualificação compulsória. Pretende-se, ao retomar esse contexto, chamar a
atenção para um aspecto pouco enfatizado quando se analisa a presença da Filosofia como
componente curricular: de qual formação estamos falando? De qual concepção de Ensino
Médio partimos? Para onde a formação do Ensino Médio deve conduzir? Enfim, sem pensar
nessas questões, no mínimo, o debate sobre a inserção da Filosofia na matriz curricular fica
comprometido. Afinal, o que significa ensinar Filosofia para adolescentes e jovens na etapa
final da Educação Básica? Não quer dizer que a resposta a essas questões seja uma tarefa
exclusiva da Filosofia, mas que essas questões são de grande relevância também para a
Filosofia e ela não pode deixar de respondê-las.
Considerando tratar-se de uma problemática ainda pouco presente de modo efetivo
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 52
nas reflexões e no debate público acerca da presença da Filosofia na escola; considerando
também o fato de que o campo legislativo, bem como as diretrizes e orientações curriculares,
quando se referem à Filosofia, desconsideram e não estabelecem textualmente qualquer
relação entre o sentido de ensinar Filosofia e a finalidade da formação do estudante na etapa
final da Educação Básica; considerando ainda o descompasso entre a universalização da
Filosofia em todas as séries do Ensino Médio e a necessidade de se encontrar caminhos para
legitimá-la como disciplina escolar, é que nos colocamos o desafio de pensar e repensar o
“lugar” da Filosofia no currículo como ainda o “não lugar”, ou seja, como sendo ainda um
espaço em constante tensão e construção. É disso que se trata aqui.
Para melhor situar essa problemática, tomemos como referência o Parecer do
Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica nº 05/2011 que trata das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, publicado no Diário Oficial da União
(DOU) de 24/01/2012, Seção 1, página 10. Esse Parecer, além de fazer uma releitura e
incorporar praticamente todos os documentos produzidos período pós LDB/96 até a presente
data, concebe e dá origem à Resolução nº 02, de 30 de janeiro de 2012, que define as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O Parecer, ao mesmo tempo
incorpora, supera e avança conceitualmente em relação à compreensão de Educação Básica
recuperando um sentido que se encontrava presente no primeiro texto de projeto de LDB
pensado e apoiado por um grande grupo de educadores filiados a uma perspectiva
epistemológica de natureza crítica, dentre eles Dermeval Saviani e Jamil Cury. O conceito de
Educação Básica é apoiado em dois argumentos que consideramos centrais: um tomado de
empréstimo de Saviani e o outro de Cury. O primeiro afirma que
a educação integral do homem, a qual deve cobrir todo o período da Educação
Básica que vai do nascimento, com as creches, passa pela Educação Infantil, o
Ensino Fundamental e se completa com a conclusão do Ensino Médio por volta dos
dezessete anos, é uma educação de caráter desinteressado que, além do
conhecimento da natureza e da cultura envolve as formas estéticas, a apreciação das
coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de
relacionar-se com elas. (SAVIANI, in. Parecer 5/2012).

Já o segundo argumento complementa esse quando sustenta que[...] do ponto de vista


legal, o Ensino Médio não é nem porta para a Educação Superior nem chave para o mercado
de trabalho, embora seja requisito tanto para a graduação superior quanto para a
profissionalização técnica (CURY, in. Parecer 5/2001).
Saviani defende que a Educação Básica inicia com a creche e vai até o Ensino Médio,
sendo este, ao mesmo tempo, parte integrante e etapa final desse nível de ensino. Aponta
também, inspirado na concepção gramsciana, para um ensino com caráter fortemente cultural
e, portanto, desinteressado em sentido de ter que atender unicamente os interesses e as
necessidades do mercado de trabalho. Na mesma linha de compreensão, Cury mostra a
importância de conceber o Ensino Médio não como unicamente a porta de acesso ao Ensino

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


53 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

Superior e nem a preparação para o mundo do trabalho, mas um ensino capaz de


instrumentalizar técnico-cientificamente para que o jovem possa enfrentar a produção de sua
existência na sociedade capitalista contemporânea.
Pensar a Filosofia como ensino implica, necessariamente, levar em conta o problema
da natureza e da finalidade da Educação Básica. Não cabe evidentemente à Filosofia a
responsabilidade de levar a cabo esse debate, mas considerá-lo como um dos elementos de
preocupação de suas reflexões no espaço escolar com seus pares tendo em vista o processo de
construção do currículo e do projeto pedagógico da escola. Certamente a Filosofia tem muito
a contribuir. Construir uma concepção e prática educacional que leve em conta pari passu as
dimensões: intelectual, afetiva, física, estética, política, profissional é também e, sobretudo, a
defesa do projeto filosófico na escola.
A realização plena dessas dimensões perde seu sentido se não for pensada de modo
universal, ou seja, para todos os adolescentes/jovens em idade escolar. Muito nos
preocupamos, com razão, em relação à excelência acadêmica e filosófica, sem a qual não
seria possível sequer sustentar essa crítica, pois é impossível pensar o ensino e a
aprendizagem sem método, rigor e tradição teórica e cultural. Por vezes, no entanto, nos
esquecemos de perguntar quantos são de fato os sujeitos dessa preocupação. Normalmente
não paramos para pensar sobre o porquê de tantos jovens, em idade de frequentar o Ensino
Médio, não se encontram nos bancos escolares? Por que eles estão fora das salas de aula?
Filosofia para quem e para quantos? Que filosofia e para quê? A filosofia não deveria
também se colocar a questão crucial que Marx se colocara e que é retomada por Mészáros a
respeito de dois conceitos fundamentais que deveriam ser enfrentados pela sociedade e por
que não transformados em um problema filosófico de primeira ordem: “a universalização da
educação e a universalização do trabalho como atividade humana autorrealizadora”
(MÉSZÁROS, 2005, p.65). Não se pode falar em sociedade democrática, livre, humana,
emancipada, sem que se alcance a universalização não só do acesso à educação e ao trabalho,
mas de que tanto a educação como o trabalho possam constituir-se em plena realização
histórica e social, enquanto práxis educativa, social, cultural e política.

Por uma organização curricular dos conteúdos filosóficos no Ensino Médio

A história mais recente da luta pela inclusão da Filosofia no currículo do Ensino


Médio já é de conhecimento de todos. Vários projetos de lei pós LDB/96 tramitaram no
Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas de alguns estados propondo a inclusão da
Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias da matriz curricular, particularmente
no Ensino Médio. Por exemplo, a Assembleia Legislativa do Paraná, aprovou, em 2006, o
projeto de lei do deputado Ângelo Vanhoni que continha esse teor. Tanto é que na passagem
de 2008 para 2009 a Filosofia já fazia parte da matriz curricular de praticamente todas as
escolas da rede pública paranaense. Na esfera nacional, o primeiro projeto que tramitou foi de
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 54
autoria do deputado Pe. Roque Ziemermmann, elaborado em 1997, um ano depois que a LDB
entrou em vigor. Em 2001, embora aprovado pelo Congresso Nacional, esse projeto foi
vetado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Somente em junho
de 2008, após longos anos de luta, foi aprovado pelo Congresso e assinado pelo Vice-
Presidente da República, José Alencar, o Projeto de Lei 11.686/2008 que altera o artigo 36,
inciso III da LDB 9394/96, torna a Filosofia e a Sociologia componentes obrigatórios da base
comum do currículo.
Uma rápida retrospectiva se faz necessária para contextualizar e precisar a tensão
entre os primeiros passos da efetivação da Filosofia como disciplina escolar considerando a
LDB/96 como marco de referência, uma vez que ela sinaliza que os estudantes do Ensino
Médio, ao término dessa etapa de formação, deverão ter conhecimentos filosóficos e
sociológicos consolidados em sua formação. Interessa-nos entender, inicialmente, o sentido e
o lugar que os documentos oficiais dão à Filosofia como disciplina curricular. Para essa
análise tomaremos como referência os seguintes documentos: PCNEM (1999), PCN+EM
(2002), OCNEM (2006), Matriz de Referência do ENEM, o Parecer 05/2011 e as Diretrizes
Curriculares para o Ensino Médio publicadas em janeiro de 2012 por meio da Resolução nº
02 de 30/01/2012.
A questão central a ser observada nos documentos que foram produzidos pelo
Ministério da Educação desde a promulgação da última LDB, tendo em vista a construção de
parâmetros e diretrizes curriculares para a Filosofia no Ensino Médio, tem a ver com três
dimensões que consideramos fundamentais para compreender o processo de consolidação da
Filosofia enquanto disciplina curricular, a saber: a) a concepção de Filosofia e seu método de
ensino; b) a seleção de conteúdos; e, c) a avaliação da aprendizagem. Considerando o intento
a que nos propusemos nesse artigo, nos limitaremos a traçar algumas considerações gerais
evidenciando aspectos comuns e divergentes entre os documentos tomando, no entanto, como
recorte e preocupação central aspectos relacionados, principalmente, a letra “b” – a seleção de
conteúdos.
Sobre o que os documentos entendem por Filosofia não há divergências acentuadas,
ao contrário, os sentidos e concepções são complementares. Afirmam que a especificidade da
Filosofia está em natureza reflexiva e conceitual e de que há filosofias e não uma filosofia.
Mostram também que é sua função desenvolver as capacidades de análise, de interpretação,
de reconstrução racional, de crítica e, sobretudo, de apresentar os conteúdos filosóficos de
modo contextualizado e problematizado. Mais do que ensinar conteúdos do acervo da
História da Filosofia em que o aluno é levado pura e simplesmente a memorizar ou
reconstruir, trata-se de mobilizar a cognição para desenvolver competências e habilidades
específicas. Até aí estamos de acordo. Entre treinar a razão para memorizar datas, nomes e
conceitos filosóficos ou possibilitar a mobilização da cognição para resolução de problemas
de natureza filosófica, sem dúvida, ficamos com a segunda alternativa. Em relação à
concepção de Filosofia e sua natureza como forma de conhecimento, não há muita
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
55 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

divergência entre aqueles que pensam a Filosofia e seu ensino. Pode-se afirmar que já se
estabeleceu certo consenso.
O problema começa quando se examina o que os documentos entendem por
competências e habilidades em Filosofia: ler textos filosóficos de modo significativo e ler, de
modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi
apropriado de modo reflexivo; debater posicionamentos de modo argumentativo; articular
conhecimentos filosóficos com as outras áreas do conhecimento (interdisciplinaridade);
contextualizar conhecimentos filosóficos (PCNs, 1999; PCN+EM, 2002; OCNs, 2006). Essas
habilidades estão presentes no primeiro documento e encontram-se repetidas nos dois
subsequentes.
A ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades, consideradas pelos
documentos, como específicas da aprendizagem filosófica, parece-nos um problema não só
pedagógico, mas também de ordem filosófica. Por quê? Primeiro porque a leitura, a
interpretação, a escrita e a articulação entre os conhecimentos têm a ver com os objetivos
didático-pedagógicos do processo de escolarização dos sujeitos e a função da escola como um
todo, não podendo ficar sob a responsabilidade de uma disciplina especificamente. Segundo,
esse entendimento, levado às últimas consequências, pode facilmente recair na prática da
exegese textual, estruturalismo textual tipicamente acadêmico, como finalidade última do
ensino de Filosofia, o que, no nosso entendimento, trata-se de um equívoco de compreensão
dos sentidos, finalidades e do cumprimento da função epistemológica e social da Filosofia
como componente curricular e, por conseguinte, de formação cultural dos adolescentes e
jovens que frequentam a escola. Uma coisa é o modo como se ensina e se aprende noções,
conceitos e problemas filosóficos num curso de graduação em Filosofia, outra coisa bem
diferente é o modo como se ensina Filosofia no Ensino Médio, os instrumentos e meios
utilizados que possibilitam a aprendizagem filosófica, a experiência do pensar filosófico dos
adolescentes e jovens quando entram em contato com o universo conceitual do estatuto da
História da Filosofia. Em terceiro lugar, não nos parece que, no caso da Filosofia, se consiga
efetivar a intenção que subjaz à indicação presente, tanto nos Parâmetros Curriculares (1999 e
2002) como nas Orientações Curriculares (2006), de trabalhar como o horizonte das
competências e habilidades, que é justamente a ideia de “mobilizar a cognição” diante de
problemas e dificuldades que o sujeito da aprendizagem enfrenta na produção de sua
existência na sociedade na qual se encontra inserido. Ou seja, de que forma a Filosofia, por
meio da leitura de textos filosóficos ou não, lidos de modo filosófico, contribui, efetivamente,
para desenvolver a capacidade de o indivíduo “ler o mundo” que o cerca e solucionar os
problemas concretos que necessita enfrentar todos os dias? Não se trata de desconsiderar a
importância da leitura, da escrita e da interpretação como necessárias para o exercício
filosófico. Isso seria, simplesmente, uma aberração e um total desconhecimento do modus
operandi da Filosofia. O problema está em considerar essas competências e habilidades como
ponto de chegada e não no ponto de partida do conhecimento filosófico. Trata-se antes de um
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 56
ponto de partida. Atribuir simplesmente um sentido filosófico à leitura é o mesmo que atribuir
conhecimento a um procedimento hermenêutico, a um modo de interpretar e compreender um
fenômeno. O aprendizado filosófico, nesse caso, se limita à aprendizagem de uma
metodologia específica. Um quarto aspecto a ser considerado, refere-se ao fato de que as
referidas competências e habilidades, ao contrário do que os documentos afirmam, não
apontam para o que seria específico da Filosofia e nem estabelecem uma diferenciação em
relação às outras disciplinas. O tratamento dado à Filosofia por meio das competências e
habilidades ainda preserva, em boa medida, o mito de que a Filosofia não precisa definir o
seu “lugar”, é um saber transversal que perpassa todos os demais saberes e, por essa razão,
prescinde de um “código disciplinar”. É bem verdade que ela possui um caráter universal,
principalmente pelo fato de não ter um objeto específico como acontece com as disciplinas de
natureza científica, mas isso não quer dizer que não possua um acervo de questões, uma
terminologia própria e um método específico, que lhe dê uma identidade como disciplina
curricular. Sem que se considere tais fatores não há sentido defendê-la ou mantê-la como
disciplina da base comum do currículo.
Ao lado da questão das competências e habilidades que, no caso da Filosofia, da
forma como é traduzida nos documentos, mais confunde que esclarece, há outro aspecto que
necessita de uma análise mais acurada: trata-se da seleção ou definição dos conteúdos
curriculares de Filosofia que possam servir de referência para a elaboração de diretrizes
específicas das Secretarias de Estado e dos projetos pedagógicos de cada escola, bem como o
planejamento das aulas de Filosofia pelo professor responsável em ministrá-las. Essa é uma
questão polêmica do atual debate sobre o tema. As proposições e defesas perpassam
diferentes concepções e correntes filosófico-pedagógicas. É possível identificar ao menos três
distintas compreensões, quais sejam: a) posição mais radical que defende a definição de
temas/conteúdos mínimos a partir da História da Filosofia; b) posicionamentos ultraliberal e
pós-moderno em defesa de uma total liberdade de organização dos conteúdos, deixando a
definição sob a responsabilidade de cada professor/a; e, c) entendimento de que é necessário
definir alguns critérios mínimos que possam servir de referência para a organização curricular
em todo o território nacional. O terceiro entendimento, por diversas razões, parece-nos mais
adequado e plausível. Mais adiante será retomado e defendido.
Essas concepções, de certa forma, também se encontram presentes nos documentos
mencionados. Os PCNs de Filosofia (1999) assumem a posição “b”, na medida em que não
apresentam nem critérios, nem indicam conteúdos mínimos para organização curricular. Já os
PCN + EM (2002) e as OCNs (2006) situam-se mais no item “a” uma vez que apresentam
conteúdos de referência para a organização dos conteúdos. Os PCN + EM (2002) apontam
para seis grandes eixos temáticos subdivididos em temas específicos. Conteúdos estruturantes
baseados em temas-problemas produzidos ao longo da História da Filosofia: 1) Autonomia e
liberdade; 2) As formas da alienação moral; 3) Ética e política; 4) Filosofia, mito e senso
comum; 5) Filosofia, ciência e tecnocracia; 6) Filosofia e estética. As OCNs (2006) vão mais
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
57 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

longe: apresentam 30 (trinta) temas retirados do estatuto filosófico desde o nascimento da


Filosofia até os tempos atuais: “1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de
Filosofia; 2) Validade e verdade; proposição e argumento; 3) Falácias não formais;
reconhecimento de argumentos; conteúdo e forma; 4) Quadro de oposições entre proposições
categóricas; inferências imediatas em contexto categórico; conteúdo existencial e proposições
categóricas; 5) Tabelas de verdade; cálculo proposicional; 6) Filosofia pré-socrática; uno e
múltiplo; movimento e realidade; 7) Teoria das ideias em Platão; conhecimento e opinião;
aparência e realidade; 8) A política antiga; a República de Platão; a Política de Aristóteles; 9)
A ética antiga; Platão, Aristóteles e filósofos helenistas; 10) Conceitos centrais da metafísica
aristotélica; a teoria da ciência aristotélica; 11) Verdade, justificação e ceticismo; 12) O
problema dos universais; os transcendentais; 13) Tempo e eternidade; conhecimento humano
e conhecimento divino; 14) Teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino; 15) A
teoria das virtudes no período medieval; 16) Provas da existência de Deus; argumentos
ontológico, cosmológico, teleológico; 17) Teoria do conhecimento nos modernos; verdade e
evidência; ideias; causalidade; indução; método; 18) Vontade divina e liberdade humana; 19)
Teorias do sujeito na filosofia moderna; 20) O contratualismo; 21) Razão e entendimento;
razão e sensibilidade; intuição e conceito; 22) Éticas do dever; fundamentações da moral;
autonomia do sujeito; 23) Idealismo alemão; filosofias da história; 24) Razão e vontade; o
belo e o sublime na Filosofia alemã; 25) Crítica à metafísica na contemporaneidade;
Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger; 26) Fenomenologia; existencialismo; 27) Filosofia
analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Círculo de Viena; 28) Marxismo e Escola de
Frankfurt; 29) Epistemologias contemporâneas; Filosofia da ciência; o problema da
demarcação entre ciência e metafísica; 30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault;
Deleuze.” (OCNs, 2006).
Duas considerações acerca das propostas de conteúdos apresentados nos documentos
de 2002 e 2006. A primeira diz respeito ao caráter propositivo dos documentos uma vez que
indicam temas e conteúdos de referência para a organização curricular. Particularmente,
consideramos um avanço em relação aos PCNs de 1999. Ao contrário do entendimento de
muitos, pensamos que não há problema na definição de temas-problemas filosóficos em
documentos oficiais como as Orientações e Diretrizes Curriculares e a Matriz de Referência
do ENEM, desde que acompanhados por alguns critérios amplamente debatidos e aprovados
nas instâncias governamentais responsáveis pela implementação de políticas públicas, como é
o caso, hoje, do INEP. Isso falta nos dois documentos. Sem uma referência oficial em termos
nacionais, ficamos à mercê dos conteúdos pautados pelos regionalismos estaduais por meio
das Secretarias de Educação e dos exames vestibulares das instituições de Ensino Superior.
Tem-se observado por meio de relatos de estudantes e professores de Filosofia do Ensino
Médio um profundo descontentamento em relação às formas de avaliação, seja dos
vestibulares, seja da prova ENEM. Os conteúdos, textos e contextos filosóficos objeto das
aulas no Ensino Médio não coincidem com o que é cobrado nas questões do vestibular ou nos
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 58
itens do ENEM.
A segunda consideração está relacionada com a proposta de conteúdos apresentada
pelas OCNs (2006). Trata-se de uma simples relação temas/conteúdos sem uma justificação a
partir de critérios ou de uma concepção orientadora dessa seleção de conteúdos, conforme
mencionado anteriormente. Privilegia-se apenas alguns sistemas filosóficos como Filosofia
Alemã, Filosofia Francesa, em detrimento de outros. Como se não existisse filosofia na
América Latina, na África, na Ásia, no Brasil, na Argentina... O mesmo ocorre com as
temáticas e os períodos históricos. Além disso, indica-se o estudo somente de alguns filósofos
como, por exemplo, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Nietzsche, Wittgenstein,
Heidegger, Russel, Frege, Foucault e Deleuze. E os demais? Como se chegou a essas
indicações?
Sobre esse problema é preciso evitar a polarização dessas duas tendências: a) deixar a
seleção dos conteúdos por conta do professor ou da definição de cada escola; b) estabelecer
temas/conteúdos sem critérios de seleção. Outra possibilidade, sem cair em posições extremas
e parciais que em última instância atendem a interesses de uma ou outra vertente filosófica - a
depender de quem elabora as diretrizes, orientações ou propostas curriculares -, seria
estabelecer alguns critérios para a organização do conteúdo curricular de Filosofia, a saber: a)
a temporalidade do conhecimento filosófico, seu contexto histórico – os períodos históricos
desde o nascimento da Filosofia; b) os grandes temas-problemas da existência humana que
constituem a matéria-prima da Filosofia ao longo de sua história, problemas que foram
recolocados pelos filósofos em diferentes tempos, sociedades e culturas; c) seleção de textos
filosóficos que contemplem tanto os períodos históricos como os temas-problemas neles
tratados; d) a contraposição de diferentes teses e autores frente ao problema filosófico eleito.
Desta forma, os conteúdos seriam selecionados considerando o período histórico, os
problemas filosóficos, os textos e possíveis contraposições.
Apenas como ilustração, poder-se-ia tomar como referência um problema da filosofia
política do período moderno, como, por exemplo, “a política é distinta da moral?”, para
confrontar distintas visões sobre o tema apresentadas por dois filósofos: Thomas More e
Maquiavel. O primeiro defenderá que a política e a moral são indissociáveis na medida em
que a política deve obedecer a critérios morais, enquanto que o segundo argumentará que a
política é uma coisa e a moral é outra, ou seja, a política possui caráter pragmático, persegue
o que é útil e pouco se importa com valores morais. Para análise e problematização do tema,
além de diferentes materiais e recursos didáticos, os textos ou excertos de Utopia (Thomas
More) e do O Príncipe (Maquiavel), dos respectivos filósofos poderiam servir de referência
para explorar o problema filosófico em questão. Assim, pode-se proceder contrapondo
Rousseau e Nietzsche com o problema: “os homens são iguais”; os personagens Górgias e
Sócrates por meio dos diálogos de Platão acerca do problema da existência da verdade.
Górgias dirá que a verdade existe, sim, e Sócrates colocará a verdade em dúvida. E assim por
diante.
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
59 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

Conclusão

Considerando a análise realizada até aqui, mais do que conclusões taxativas ou


claramente propositivas, apontarei ainda para alguns elementos relacionados à problemática
da passagem da legalidade à legitimidade caracterizada, em função de sua própria natureza,
por uma contínua tensão entre negação e afirmação, entre o que deve ser e o que pode ser de
fato considerado e reconhecido como plausível do ponto de vista das condições necessárias
ao exercício da prática filosófica. Entendimento que passa pelas condições objetivas de
trabalho como quantidade de horas de trabalho em sala e tempo para preparar aulas e corrigir
trabalhos, salário digno da ocupação que exerce, entre outras. Passa também pelas condições
subjetivas de como é compreendido e aceito socialmente o trabalho do professor, de como se
dá o reconhecimento de sua função educativa e social enquanto agente responsável pela
formação de crianças, jovens e adultos, de como avalia o resultado de seu trabalho à luz
daquilo que é comumente denominado de excelência acadêmica. Esses fatores influenciam
sobremaneira a práxis do professor. A seguir, apresentamos duas proposições-síntese que
podem contribuir para pensar em alternativas e repensar caminhos acerca da inserção
curricular da Filosofia no Ensino Médio, principalmente, da relação ao eixo - organização
curricular, conhecimento filosófico e método:

1) Sobre a critica à lógica conteudista em oposição à pedagogia das competências: é


necessário recolocar o sentido e o lugar dado a essa contraposição. Em relação à “pedagogia
das competências” talvez fosse o caso de perguntar, antes de tudo, se é possível avaliar
habilidades e competências de conhecimento em sentido estrito, ainda mais quando se trata de
uma ocupação específica em que alguém é responsável por ensinar e o outro por aprender
algo? O que significa trabalhar com a noção de habilidades e competências quando se lida
com algo imaterial, impalpável como é o caso de todo o conhecimento em geral, e em
especial, do conhecimento filosófico? Como avaliar habilidades em Filosofia? Como afirmar
que o estudante possui habilidade de problematização, conceituação, raciocínio lógico sem
relacionar essa noção a um conteúdo ou entendimento específico do filósofo X ou Y ou do
sistema filosófico Z. As noções de habilidades e competências reproduzem as relações de
produção existentes e a lógica que reina absoluta e hegemonicamente na sociedade capitalista
administrada e reprodutivista como modelo social, político e econômico. A apropriação de um
objeto de conhecimento, de natureza essencialmente imaterial, não permite ser avaliado por
meio de habilidades e competências não porque o conhecimento não é passível de avaliação
ou porque não pode ser considerado uma atividade produtiva-humano-social. Não, não se
trata disso. Trata-se, antes, do modo como concebemos o conhecimento como bem público
histórica e socialmente construído ao longo da história da humanidade, portanto, como
processo e conquista de um direito público subjetivo, e não como produto que se encontra na
prateleira do “supermercado escolar” que necessita ser vendido de uma ou outra forma. Assim
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 60
entendido, pode-se dizer que a crítica feita à lógica conteudista em contraposição à pedagogia
das competências é uma falsa dicotomia. Não obstante, associar conteudismo à
memorização/repetição e apontar o modelo da aprendizagem por habilidades e competências
como forma para neutralizar o modelo “tradicional” não garante a superação do problema da
aprendizagem significativa como alguns autores apregoam. Aprender é um ato subjetivo e
objetivo ao mesmo tempo. O ato de aprender depende de um conjunto de fatores que estão
diretamente ligados aos processos culturais e materiais responsáveis pela produção da
existência dos sujeitos no cotidiano.

2) A organização dos conteúdos no currículo: os estudos que tratam da organização dos


conteúdos curriculares de Filosofia apresentam diversas sugestões de como selecioná-los. Há
uma forte tendência de opor perspectivas como a História da Filosofia e temas filosóficos;
filosofia do cotidiano, temas filosóficos e métodos/procedimentos; ou eixos como: o
histórico, o temático e o problemático. Sugestões de classificação que merecem aqui uma
consideração crítica, principalmente pelo fato de não adotarem uma distinção conceitual de
modo rigoroso. Em certa medida, essas categorizações tornaram-se lugar-comum nas análises
acerca da organização dos conteúdos da disciplina de Filosofia no Ensino Médio. Na tentativa
de distinguir em diferentes eixos, faz-se uma crítica ao modo de organização histórico-
temático e se indica o problemático como sendo mais adequado porque incorpora os
anteriores. Toma em sentido diverso, distinto e até mesmo excludente o que, rigorosamente,
constitui apenas diferentes faces de um mesmo núcleo comum: o histórico pode ser temático
e o temático pode ser tanto problemático como pode ser histórico. Não há possibilidade de se
ensinar Filosofia tomando sua história como referência ou os temas centrais que a constituem,
sem considerar que o núcleo central da conceituação filosófica é sempre fundamentado a
partir de um problema presente na existência humana. Ou seja, o conhecimento filosófico,
por sua própria natureza, será sempre, hitórico-temático-problemático. Talvez seja possível
falar que os conteúdos podem ser dispostos ou organizados curricularmente de modo que
sigam uma linha do tempo da história da Filosofia (antigo, medieval, moderno e
contemporâneo) ou afirmar que é possível indicar importantes temas tratados pelos filósofos
como o conhecimento, a liberdade, a prova da existência de Deus, a linguagem e tantos
outros, mas, ainda assim, são temáticas presentes na história da Filosofia e não podem ser
examinadas sem os contextos específicos e o modo como cada filósofo as problematizou.
Qualquer tentativa de separar ou definir o histórico, o temático e o problemático como modo
de organização de conteúdo, é, no mínimo, uma posição parcial e não corresponde àquilo que
acontece no universo do ensino de Filosofia. O sentido, o lugar que a Filosofia ocupa no
currículo do Ensino Médio é de natureza muito mais complexa e possui uma riqueza que as
conclusões das pesquisas, em geral um tanto apressadas, não conseguem diagnosticar e
indicar com algum grau de clareza e entendimento. Contrapor essas formas de organização de
conteúdo é o mesmo que contrapor o que constitui essencialmente a Filosofia, a sua
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
61 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade

identidade. É disso que se trata aqui. A Filosofia como conhecimento, uma vez que não possui
um objeto específico, se institui e só pode existir a partir de um problema que é, de alguma
forma, situado historicamente e se compreende um tema/objeto da Filosofia. Por exemplo, o
tema da liberdade é um tema-problema que foi tratado e analisado no período clássico por
Aristóteles de modo substantivamente diferente, se comparado com a compreensão
contemporânea realizada por Sartre. As implicações históricas são imprescindíveis para
problematizar o tema uma vez que se trata de outra sociedade, porque são outros valores. O
que não quer dizer que não é possível encontrar pontos comuns e mesmo entendimentos
passíveis de universalização. Assim sendo, todo conteúdo filosófico será sempre histórico,
temático e cunhado a partir de um problema relacionado à existência humana. Aliás, esse
caráter problematizador tem mais a ver com o campo metodológico, com o caráter
pedagógico – da mediação dos conteúdos do que, propriamente, com a seleção e organização
curricular dos conteúdos filosóficos. Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que, de fato, não há
ensino ou prática pedagógica filosófica sem o caráter essencialmente problematizador que dá
origem e identidade ao conceito filosófico. O método filosófico é, em si, essencialmente
problematizador. Sob essa dimensão estamos plenamente em acordo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 9.394. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário


Oficial da União, ano CXXXIV, n. 248,23/12/96.

______. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais de


Filosofia. (PCNs). Brasília: MEC/SEB, 1999.

______. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais de


Filosofia (PCM+EM). Brasília: MEC/SEB, 2002

______. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares Nacionais de


Filosofia (OCNs). Brasília: MEC/SEB, 1999.

CARTOLANO, M. T. P. Filosofia no ensino de 2º Grau. São Paulo: Cortez, 1985.

MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


Seção III - Opinião / Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 62
SEÇÃO III – OPINIÃO
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
Louise Cristina Vieira23

A filosofia sob a ‘força do martelar’ representa em Nietzsche, o percurso de uma


crítica à tradição metafísica que se estende desde a noção platônica de mundo até a
modernidade, na qual o sujeito ganha lugar relevante nas investigações sobre o conhecimento
lógico explicativo do mundo, que é concebido como uma multiplicidade, que aparece “para o
sujeito” e “nele”.
No percurso da crítica Nietzsche afirma que conceitos foram utilizados pela tradição
metafísica, com o intuito de garantir o desvelamento de um mundo teorizável, e por isso,
determinações como espírito, alma, consciência, significam antes um caminho pra
desvalorizar os aspectos da vida ligados a corporeidade do homem e do mundo.
Durante a modernidade na história da filosofia, Descartes foi o representante de
grande renome dessa corrente; através das noções res cogitans e res extensa, a filosofia
mergulha na perscrutação cujos pólos ob-postos são o sujeito (como um eu) e o mundo (como
um objeto apenas), tal oposição é dada pela incongruência dessas instâncias.
Nesse caminho, o modo de dizer o que é o homem se atrela às necessidades
metafísicas do conhecimento, o corpo – como parte do mundo, isto é, res extensa, se torna
empecilho na tarefa do conhecimento. A res cogitans, tomada como alma, espírito significa o
próprio sujeito, e um princípio metafísico como esse é tomado por verdadeiro e melhor
princípio na busca pelos conhecimentos sobre do mundo.
A tarefa do conhecimento é engajada sob o pressuposto de que esta razão de cunho
teórico é instrumento dado à tarefa de retirar o Véu de Maya (o véu da ilusão) existente na
mundanidade. A busca lógico racional deve encontrar verdades inquestionáveis sobre o
mundo real, assim, toda essa filosofia é pensada sob o fio condutor de um critério de verdade,
a saber – a correspondência conveniente entre o teórico-racional e as percepções do homem
no mundo.
Concomitante à tarefa crítica, em que o desmonte dos pressupostos modernos é dado
como diagnóstico de decadência do homem, Nietzsche apresenta uma nova perspectiva a
relação do homem com o mundo, que não dá continuidade aos pólos ob-postos definida pela
filosofia moderna; o filósofo, como que devolve o homem a si próprio e aponta no esquecido
mundo, o corpo, a corporeidade, posição que oferece ao filosofar um novo horizonte e arroga
uma nova compreensão das noções de homem e mundo.
Sob a perspectiva do corpo lugar da multiplicidade, Nietzsche não somente evidencia
o caráter insuficiente das concepções filosóficas modernas, mas empreende a perspectiva
crítica como arma criadora, num movimento de destruição e criação.
____________________
23 Graduada em Filosofia (UEM). E-mail: louise.vieira@bol.com.br.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
63 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

Em O Nascimento da Tragédia de 1872, sob os signos do apolíneo como harmonia,


criação e do dionisíaco como desmedida, destruição, Nietzsche elogia a arte grega que tem a
abertura necessária para falar da vida sem engessá-la em conceitos ou verdades definitivas,
apontando também o caminho de seu filosofar. De forma ampla as noções de criação e
destruição persistem na obra nietzschiana, visto serem considerados movimentos naturais à
reflexão filosófica, de modo que em sua própria filosofia o golpe de martelo não se constitui
uma finalidade em si mesma, mas atua como instrumento para surgir aquilo que ainda não foi
vislumbrado24.
A ultrapassagem nietzschiana das noções metafísicas tradicionais aparece sob um
princípio diverso daquele que fora alvo de suas críticas – o mundo não é tomado como algo
que deve ser descoberto em sua perspectiva absoluta ou seu pólo verdadeiro; ao contrário, sob
o fio condutor da corporeidade, percebemos que nossa vida é possível através do jogo da
multiplicidade.
Nietzsche instaura o corpo como figura máxima a ser considerado na tarefa filosófica
de dar sentido a este mundo, ele é considerado o lugar donde derivam todas as possibilidades.
“Assim atravessa o corpo a sua história, lutando e elevando-se. O espírito, que é para o
corpo? É arauto das suas lutas e vitórias, seu escudo e seu eco.” (NIETZSCHE, 1977, PP. 88-
9.) Se outrora o supremo valor fora a res cogitans, o espírito e o que mais se caracterizasse
como além-do-mundo, agora, a vida, corpo e mundo são o supremo valor.
Nessa nova perspectiva filosófica, o corpo não é considerado uma substância com
determinações absolutas, nem uma unidade da qual se possa determinar uma “natureza
humana”; corpo é concebido como organismo, que se constitui a partir da hierarquia de um
conjunto de impulsos, que lutam por se impor e ter mais potência25 .
Concebendo o corpo como relação hierárquica de forças, em que as partes
hierarquizadas sob o signo de funções derivadas dessa luta por domínio, a dinâmica dos
impulsos permite que, embora haja uma hierarquia constituída pela imposição do mais forte
sobre o mais fraco, isto não determine que o um impulso dominante se perpetue como tal.
Noções como alma, espírito ou consciência, são entendidas como um nome de
qualquer coisa no corpo26, e este é posto como instância decisiva para as compreensões que
fazemos do que seja o mundo, que compreendido como multiplicidade, não evoca as figuras
metafísicas estabilizadoras e unificantes supostamente necessárias para o conhecimento. A
compreensão da vida em geral é vista à luz da dinâmica da multiplicidade, que em Nietzsche
é____________________
dita através da doutrina da Vontade à Potência27.
24Cf. ONATE, 2003, P.15.
25 Cf. FREZZATTI, 2004.
26 Cf. NIETZSCHE, 1977, P.51 e NIETZSCHE, 2004, PP. 72-4.
27 Optamos pela tradução de Wille Zur Macht por Vontade à Potencia, originalmente utilizada pelo Prof. Dr.
Alberto Onate, e conforme esclarece – existem dois empregos nietzschianos para a expressão Wille Zur Macht,
no primeiro o termo é atribuído ao vigor dos quanta dinâmicos, assim deve ser compreendida sempre no plural,
no segundo “ela expressa a estrutura compartilhada de atuação daqueles quanta, equivalendo, nessa acepção, a
um exercício interpretativo que se propõe outorgar sentido ao conjunto da efetividade. (ONATE, 2003, P.293)
Assim, tomamos o regime imperante da Vontade como o que está sempre voltado para a Potencia.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 64
Vontade à Potência é a tese que busca explicar nossa vida instintiva como a
elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade28. No embate por mais potência, o
organismo enfrentaria quaisquer barreiras para crescer e ampliar seu domínio, assim como a
dominação, incorporação e assimilação de elementos.
Segundo a dinâmica da Vontade à Potencia, um corpo interpreta o “mundo exterior”
com desígnio ou tendência a expandir suas forças, elege o que lhe proporciona o maior
quantum 29 de potência, incorpora, assume o mais fraco como função de si, luta para dominar
o mundo circundante. “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o
seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente vontade de poder e nada mais.” (NIETZSCHE,
2003, P.43)
Para o filósofo alemão, Vida é jogo de forças, sendo o corpo uma relação de impulsos
que combatem entre si por dominação e o mundo em sua dinâmica natural, também é dito
como o jogo de forças – Vontade à Potência. No §36 de Além de Bem e Mal, 1885-6, lemos:
“o mundo é visto de dentro, e definido conforme as relações e os graus de força do
organismo.” Sob esse aspecto o ato de interpretar, filosofar, etc., também seriam formas de
domínio.
Essa nova concepção filosófica aponta o corpo como lugar da determinação de
sentido, donde nossas interpretações de mundo derivam. Nietzsche se posiciona como um
“cético criador, interpretante”, pois não acredita que seja um “instinto do conhecimento” o pai
da filosofia, mas algo diverso, que apenas se utilizou desse instinto, como instrumento30.
A teoria da Vontade à Potência devolve o homem ao solo de suas estratificações. A
partir da compreensão de corpo como multiplicidade de impulsos, hierarquia, jogo de forças,
é pertinente dar relevo ao questionamento nietzschiano a respeito do próprio processo
consciente, já que, segundo os parâmetros do filósofo, este emerge do jogo dinâmico vital.
Em O Crepúsculo dos Ídolos, 1889, Nietzsche escreve:
Outra tomava-se a transformação, a mudança, o vir-a-ser em geral como prova da
aparência, como sinal de que algo tinha se apresentado que necessariamente nos
conduzia ao erro. Hoje, ao contrário, vemos até que ponto o fato de o preconceito da
razão nos obriga a fixar a unidade, a duração, a substancia, a causa [...].
(NIETZSCHE, 2000, P.28)

Se na história da filosofia (entenda-se metafísica) desde Platão, houve uma separação


entre aparência e realidade, fundamento e fundado, culminando na filosofia moderna com a
trajetória cartesiana e a caracterização do humano como sujeito/coisa pensante, em oposição à
coisa extensa, pensamento versus corporeidade, então devemos de fato questionar se há de
fato oposições em absoluto, por mais que estas sejam populares, ou ainda, se estas “não serão
apenas avaliações superficiais, perspectivas provisórias, projetadas mais do fundo de um
____________________
28 Cf.NIETZSCHE, 2003, P.43.
29 Uma curiosidade é que na física esse conceito representa a quantidade de energia que um elétron emite ou
absorve ao saltar de uma órbita estacionária para outra.
30Cf. NIETZSCHE, 2003, P.13.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
65 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

recanto [...].” (NIETZSCHE, 2003, P.10)


O pensador considera que a trajetória cartesiana de chegada ao cogito fora uma dentre
as tantas necessárias dissimulações do entendimento para que o mundo viesse a ser
apreensível teórico-racionalmente. A ideia cartesiana de um sujeito/res cogitans que
permanecia na segurança de uma conquista racional perde sentido frente à interpretação de
mundo nietzschiana, que em seu cume, pretende denunciar os subterfúgios da criação de
conceitos.
Nietzsche evidencia que não é um sujeito que pensa os pensamentos, mas os
pensamentos que sendo resíduos da relação interna dos instintos, e com intuito de aumentar
sua esfera de atuação, inventam para si o soberano, unificador e coordenador31 , chamado Eu.
É outorgada uma dimensão de maior profundidade à consideração de nossos instintos, pois ao
plano de fundo de nosso sagaz entendimento e suas ficções reguladoras jazem os “fluxos e
refluxos do dinamismo vital presente em cada formação humana de domínio,” (ONATE,
2003, p.17)
De modo geral, a filosofia sempre se ocupou da perspectiva de seu criador, mas não
houve um momento que se refletisse acerca de suas condições de desenvolvimento, na
filosofia de Nietzsche a busca pela origem dos conceitos é conhecida como procedimento
genealógico, e é esse o sentido tomado para pensar a relação entre a filosofia como busca da
verdade e a humanidade do homem.
O homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em
rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a
máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo (NIETZSCHE,
2005, p.54)

A necessidade de um tratado de paz, e convivência, trouxe consigo o primeiro impulso


à verdade, e seguindo essa tendência os homens tratam as palavras, como o desígnio de um
fixo, que deve ser uniforme e obrigatoriamente válido; desta regra para a linguagem temos
enfim, as primeiras leis da verdade. Contudo, “dividimos as coisas por gêneros, designamos a
árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias!”
(NIETZSCHE, 2005, p.55)
A crítica nietzschiana não poupa nem o mais convencional dos instrumentos teóricos,
a linguagem. Esta constitui o modo como o homem crê saber algo das coisas mesmas, mas
essa verdade criada não se verifica, pois originariamente a linguagem é metáfora de um
mundo em que tudo é devir.
A gramática é criação humana e em certa medida, arte de dissimulação do vir-a-ser.
Na medida em que nos acostumamos a crer em conceitos e nomes de coisas como eternas
verdades, deixamos à margem a dimensão metafórica da linguagem mesma. Seguindo a
crença nas verdades encontradas, conduzimos nossa compreensão de tudo segundo a
____________________
30Cf. ONATE, 2003, P.17

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 66
permanência e fixidez das palavras.
Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a outra, é certo que o
conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais,
por um esquecer-se do que é um distintivo, e desperta então a representação, como
se na natureza, além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’(...). (NIETZSCHE,
2005, P.56)

As formulações lógicas impelem ao esquecimento que unifica as coisas dadas, a


caráter de necessidade e, distanciam a verdade da linguagem como metáfora para o mundo.
Os pressupostos lógicos impressos à linguagem do conhecimento indicam, também, o
sentido da história da metafísica para seus criadores – a tendência à racionalidade fez da
história dos homens ciência datada em conceito e levou à formulação de verdades fechadas,
um percurso entre o passado e o futuro, uma busca incessante32, que revela por si o lema da
historicidade filosófica – “Fiat veritas, pereat vita.”33 .
Nietzsche aponta que o sentido histórico, quando prepondera irrefreadamente extirpa
o futuro, mas ressalta que, assim como tudo o que é orgânico não necessita somente de luz,
mas também de escuridão, analogamente todo agir requer esquecimento. Podemos pensar em
um homem que não tivesse essa força de esquecer, condenado a ver em tudo um vir-a-ser...
“Tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo
desmanchar em pontos móveis e se perde nesse rio do vir-a-ser.” (NIETZSCHE, 2005, p.280)
Para o pensador, nosso fazer histórico será sempre melhor se, ao invés de investir em
tornar estável o movimento inerente à vida, cultivarmos a história em função dos fins da vida,
considerando o caráter fundamentalmente dinâmico desta.
E a desconsideração do particular e do efetivo que possibilita conceituar, determinar
formas fixas; a natureza, porém, não conhece conceitos, formas ou espécies, mas somente um
‘X’, para nós, inacessível e indefinível34, indicando que é tempo de investir contra os
descaminhos do sentido histórico irrefreado, o gosto excessivo pelo processo, em detrimento
da vida.
O filósofo diagnostica que ao tornar fixa a linguagem, o homem determina o seu ‘agir
como ser racional’ através de abstrações, e por auto-engano (orgulhosamente), transforma
todas as suas impressões e intuições em conceitos; acreditando que há algo assim de
definitivo no mundo efetivo, atrela aos conceitos o sentido de suas ações e de sua própria
vida.
A tentativa dos filósofos de dizer o mundo na linguagem do conhecimento e da
verdade gera uma tensão de duplo aspecto – primeiro, um exagero de sentido histórico, que
aprisiona tudo no passado e no futuro; e, por conseguinte, a tendência de fixar as coisas
desistoricizando-as.
____________________
32 Cf. NIETZSCHE, 2005, P.254.
33 Haja a verdade, pereça a vida. (NIETZSCHE, 2005, P.277).
34Cf. NIETZSCHE, 2005, P.56.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
67 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos? [...]


Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni35 ,
construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. (NIETZSCHE, 2000,
p.25)

Para Nietzsche os conceitos de base da tradição metafísica foram construídos a partir


de retalhos ou de ‘mumificações’, e como ficção reguladora da realidade, são utilizados para
satisfazer uma necessidade teórico-racional. Em linhas gerais, afirma-se que a vontade de
tornar racionalizável e passível de comunicação o conteúdo das percepções é o que
impulsiona as empreitadas para fixar dualidades absolutas: corpo-alma, sujeito-objeto,
homem-mundo.
Criamos a linguagem e passamos a crer fielmente nela, ignorando seu estatuto de
instrumento metafórico – “[...] e, assim, precisamente o filósofo é o mais fácil de ser induzido
em erro sobre a natureza do conhecer.” (NIETZSCHE, 2004, p.221). A determinação de
dualismos segue somente os moldes da linguagem, desistoricizando o caráter criador na
atividade do conhecimento, que em seu próprio fazer, segue preceitos lógicos que unificam
conceitualmente, segundo as necessidades da razão36.
Penetrando no solo donde emerge o sujeito metafísico, Nietzsche aponta uma
tendência que teria engendrado a produção da história da filosofia – a vontade de verdade –
como constante tentativa de regular o fenômeno do real, que, nunca visto, encarado ou levado
a sério, conduziu a filosofia ao crepúsculo de sua tarefa.
Entre a Primavera e o Outono de 1881, o filósofo escreve:
Na medida em que o mundo se mostra como calculável e mensurável, e, portanto,
como confiável, ele adquire dignidade perante nós. Outrora o mundo imprevisível
(do espírito) tinha dignidade e provocava mais temor. No entanto, vemos o poder
eterno num lugar totalmente diferente. Nossa percepção em relação ao mundo gira
em torno do pessimismo do intelecto. (NIETZSCHE, 2005, P.108)

Para o filósofo alemão, devemos pensar o desenvolvimento da filosofia atrelado


sempre a essa tendência, da qual os exemplos modernos fundamentais são Descartes e a
preocupação em suprimir as fontes do erro, Kant, com a crítica da razão culminando na
dualidade entre coisa em si e fenômeno. Esse mundo, “assim supõem eles, é que seria o
mundo verdade, em relação ao qual o nosso mundo cognoscível seria um mero engano.”
(NIETZSCHE, 2002, P.91)
O mesmo acontece com Schopenhauer e sua Vontade de Vida sendo a própria coisa
em si, porém Schopenhauer foi uma das maiores influências da filosofia de Nietzsche.
Encontramos o fio condutor das assertivas lançadas contra a tradição metafísica quando
____________________
35 Do ponto de vista do eterno.
36 Faz jus apreciarmos a seguinte passagem nesse contexto: “A ‘razão’ na linguagem: oh! Que velha matrona
enganadora! Eu temo que não venhamos a nos ver livres de Deus porque ainda acreditamos na gramática...”
(NIETZSCHE, 2000, P.29)

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 68
consideramos sua tese da dinâmica da Vontade à Potência, mas é justamente a partir da
filosofia schopenhaueriana com sua terminologia Vontade – Wille. A crítica à noção de
Vontade serviria de alavanca para a construção da interpretação acerca do tema.
Schopenhauer parte da tese kantiana, especialmente da noção de fenômeno
(naturalmente oposto à coisa em si), assim, postula que o mundo não é mais que
representação; esta por sua vez, conta com dois polos inseparáveis: de um lado o objeto,
constituído a partir do especo e tempo, de outro, a consciência subjetiva acerca do mundo,
sem a qual este não existiria como tal.
Segundo Schopenhauer, ao tomar consciência de si, o homem se compreende como
um ser movido por aspirações e paixões, estas constituem a unidade da Vontade,
compreendida como o princípio norteador da vida humana. Voltando o olhar para a natureza,
concebe que esta mesma Vontade está presente em todos os entes, figurando como
fundamento de todo e qualquer movimento. Assim, a Vontade corresponderia à coisa em si;
ela é o substrato último de toda realidade, assumindo o caráter de fundamento Uno, eterno e
imutável.
Para Schopenhauer, a Vontade não se manifesta como um princípio racional, mas é
impulso cego, que leva todo ente a desejar sua preservação; é também a causa de todo o
sofrimento, porque lança os entes em uma perpétua cadeia de aspirações, condicionando-os
ao sofrimento de permanecer sendo algo que jamais consegue completar-se.
A consciência humana seria uma mera superfície, tendendo a encobrir a
irracionalidade inerente à Vontade e conferindo causalidade a seus atos e ao próprio mundo;
contudo, através da experiência dos sentidos o homem teria acesso a essa Vontade de Vida,
inerente a todas as coisas e chegaria à compreensão de que a vida é dor e sofrimento.
Insatisfeito com as conceituações e concepções do filósofo pessimista, Nietzsche o
acusa de apenas ter feito o que os outros filósofos já costumavam fazer, tomar um preconceito
popular e exacerbá-lo37.
Para Schopenhauer, a Vontade como coisa em si é o substrato da realidade, causa do
mundo; os moldes de seu pensamento dão continuidade aos dualismos comuns na história da
filosofia – ele ainda postulou uma verdade por detrás de todo acontecimento e de toda ação.
Contraposta a essa visão, Nietzsche trabalha com a ideia de que ainda que não
conhecêssemos nada de real, ao estilo de ‘essências’, além de nosso mundo de desejos e
anseios, isto, por si mesmo, deveria ser encarado como sintoma; em A Genealogia da Moral,
1887, aponta – “Não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do
devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.” (NIETZSCHE, 2004,
P.36)
Nietzsche denuncia que essa vontade tomada como fundamento, só tem unidade,
compreensibilidade, segundo os parâmetros conceituais filosóficos, que estão sempre a fins
da vontade de verdade, da necessidade de fixar conceitos que por si mesmos descrevam
____________________
37 Cf. NIETZSCHE, 2003, P.23-4.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
69 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

homem e mundo. “O povo duplica a ação, na verdade, quando vê o corisco relampejar, isto é
a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito.”
(NIETZSCHE, 2004, P.36)
Dado o caráter do entendimento, viciamo-nos em predicar todo acontecimento
segundo a lei da causalidade, concebemos todo acontecimento como decorrente de uma causa
(outro acontecimento) que faz o acontecimento ser efeito, que é sempre causa de outro
efeito...
Mesmo influenciado por um filósofo metafísico tal qual Schopenhauer, a
autenticidade do pensamento em Nietzsche aflora elementos que o distinguem da tradição
filosófica; contudo suas críticas ganham maior relevância quando pensadas à luz da dinâmica
da Vontade à Potência.
A expressão Vontade à Potência (Wille Zur Macht) é mencionada pela primeira vez na
obra Assim Falou Zaratustra, 1883 – “Sobre cada povo está suspenso um quadro de bens. É o
quadro, se vê, das suas vitórias sobre si mesmo; é a voz de sua Vontade de Poder“38
(NIETZSCHE, 1977, p.74)
O referido discurso conta uma das histórias de Zaratustra, que após conhecer muitos
povos, percebeu a diferença do que cada um deles valorava como bem e mal. Deste modo o
filósofo aponta para o diálogo de Zaratustra – esses valores foram postulados segundo as
próprias lutas e superações de um povo, de modo que seus valores apareciam como sintomas
das forças que os levavam a valorar o bem e o mal.
No mesmo discurso encontramos ainda – “Na verdade os homens se deram a si
próprios todo bem e todo mal. [...] Não o receberam, não o encontraram, não lhes caiu como
uma voz do céu.” (NIETZSCHE, Ibid.) Nietzsche desloca a ação avaliativa para fora dos
âmbitos comumente dados, segundo a sua filosofia, o avaliar, o querer dos homens, não lhes
foi dado de nenhum modo externo.
A característica da Vontade à Potência é que existe impulsos numa dinâmica de jogo e
luta buscando ampliar seu campo de ação; juntemos a isto o proclame do caráter ‘terreno’ de
sua efetivação. Adicione aos fatos a seguinte passagem: – “Povos suspenderam outrora sobre
si uma tábua de bens. O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos
essas tábuas...” (NIETZSCHE, 1977, P.75)
No discurso em que pela primeira vez a expressão Vontade à Potência é utilizada,
deparamo-nos com um contexto em que esta aparece vinculada a duas tendências – o amor
que quer dominar e o amor que quer obedecer. Sendo Nietzsche um ferrenho crítico dos
dualismos na filosofia, qual seria o sentido deste par de opostos?
Em Dos Mil e Um Fitos, Nietzsche apresenta o conceito de Vontade à Potência como
decisivo no sentido das avaliações/valorações... Para as ações do homem. Questionamos
então, – de que modo “o amor que quer dominar e obedecer” se relaciona à carga do
____________________
38 O termo Wille Zur Macht possui diversas traduções entre as edições brasileiras e portuguesas. Nossa opção
encontra-se justificada na nota quatro.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 70
conceito? Que significa dizer que essas formas de amor “criaram juntas as tábuas de valor”?
O que Nietzsche está dizendo através da palavra amor?
Considerando o estilo metafórico em que o filósofo habita – que sentido se pode dar à
palavra amor? Encontramos um indicativo na seguinte passagem de A Gaia Ciência, (1982) –
Das coisas que chamamos de amor: “Nosso amor ao próximo, não é ele uma ânsia por nova
propriedade?” (NIETZSCHE, 2004, P.65) Por outro lado, os dicionários nos dizem que o
amor é sentimento que induz a aproximar, sentimento intenso de atração, e de modo mais
geral, o amor é força expressa como disposição afetiva.
Podemos então dizer que as disposições afetivas – obedecer e comandar – criam
juntas as tábuas de valor; mas permanece a busca – em que disposições como ‘obedecer’ e
‘comandar’ se ligam a Vontade à Potência?
Voltamos então ao discurso, para vislumbrar a estrofe onde a expressão acontece:
“Sobre cada povo está suspenso um quadro de bens, é o quadro, se vê, de suas vitórias sobre
si mesmo; é a voz de sua Vontade de Poder.” Nietzsche também aponta para “vitórias sobre si
mesmo”; e novamente questionamos – de que modo atribuímos vitória? A partir de que se dá
alguma vitória? Vitória é aquilo que obtemos através de uma disputa, um embate ou uma
luta.
Partindo das respostas de nossos questionamos, podemos enfim oferecer uma
interpretação ao texto nietzschiano – as vitórias sobre si mesmo são vitórias da disputa entre
afetos de comando e subordinação, forças que combatem buscando a imposição de sua
própria perspectiva, e como força, constituem e se movimentam de tal maneira, que
“significam” a Vontade à Potência. Em Genealogia da Moral (2009), o filósofo expressa:

Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar,
um querer-vencer, um querer subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos,
é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum
de força equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade – melhor,
nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer atuar [...].
(NIETZSCHE, 2004, P.36)

No percurso das obras nietzschianas podemos perceber a ocupação em derrubar as


estruturas fundamentais da metafísica tradicional; a crítica ao pensamento cartesiano, que
opõe os âmbitos das res cogitans x res extensa, para determinar o sujeito como fundamento.
Opõe-se a Schopenhauer, criticando a posição da Vontade como ‘coisa em si’ kantiana e
oposta ao mundo como representação. Entretanto, suas críticas parecem ganhar um
significado construtivo quando atrelamos a elas o horizonte de pensamento da Vontade à
Potência.
Nietzsche retoma o sentido e significado do corpo, e atenta à multiplicidade que o
compõe, avaliando que os vários tipos humanos são formados pela associação de impulsos
que em cada homem prevalece. Para ele esta formação pulsional mesma é que se impõe,

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
71 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

dominando, ordenando e colocando a seu serviço as outras forças impulsivas ali presentes39.
A luta, jogo, relação entre os impulsos é inerente à formação corpórea, e é o fio
condutor que impele o homem às suas decisões, escolhendo entre útil e inútil, entre o bem e o
mal, segundo a estrutura constituída na dinâmica de seus impulsos mais primitivos; assim as
valorações humanas atuam como meios de expressão, como sintoma de decadência ou
aumento de potência.
Segundo essa filosofia o próprio ato de interpretar seria expressão de uma força que
busca a imposição de sua própria perspectiva.
A vontade voltada para o poder interpreta: na formação de um órgão trata-se de uma
interpretação: delimita, determina graus, diferenças de poder. Meras diferenças de
poder ainda não poderiam perceber a si mesmas como tais: é preciso haver aí um
algo-que-quer-crescer, o qual interpreta todo e qualquer outro-que-quer-crescer
segundo o seu valor. Iguais nisso – Interpretação é ela mesma, na verdade, um meio
de se apoderar de algo. O processo orgânico pressupõe permanente interpretar.
(NIETZSCHE, 2002, P.159).

Se refletirmos no significado da palavra interpretar, relembraremos que ela não


significa somente “fazer a interpretação de”, mas antes, “tomar (alguma coisa) em
determinado sentido”. O filósofo considera que tudo o que sobrevém ao corpo, desde a
nutrição até os pensamentos e emoções, é assentado pela relação estertorante entre as
múltiplas manifestações instintuais da Vontade à Potência que nele se realizam.
Retomando o discurso Dos Mil e Um Fitos, podemos considerar que o amor que quer
dominar pode ser compreendido com a própria Vontade à Potência, como afeto de comando,
como dinâmica pluriforme de impulsos. E apesar da aparente oposição entre o afeto de
comando e o de submissão, ‘o amor que quer obedecer’ também pode ser compreendido
nessa dinâmica.
Em um de seus fragmentos tardios Nietzsche aponta – “os esgotados querem
descanso, relaxamento, paz, quietura [...]” (NIETZSCHE, 2002, P.100). A luta, o jogo, a
relação dinâmica entre impulsos, provocam cansaço e esgotamento, até o ponto em que haja
incapacidade de resistir, sequela de um estímulo exagerado. Na luta de impulsos por mais
potência alguns são enfraquecidos, de modo que no ápice do cansaço, o amor que quer
comandar é já o que quer obedecer, e “o agrado que ainda é sentido em pleno estado de
esgotamento é o adormecer.” (Ibid.)
No jogo da Vontade à Potência não existem êmulos definidos e somente no processo
(e como um produto metafórico) se pode falar de um instinto ou de uma orientação instintual
oposta à outra40. Esse jogo dinâmico de impulsos que tendem ao crescimento de potência não
se resume a colocar o corpo, o humano, como centro de ramificações, mas excede este
espaço: “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme seu caráter
____________________
39 Cf. ONATE, 2000, P.74.
40Cf. ONATE, 2000, P.81.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 72
inteligível – seria justamente ‘vontade de poder’ e, nada mais.” (NIETZSCHE, 2003, P.43)
Ao alargar o campo de ação de tais impulsos beligerantes o filósofo afirma que nossa
compreensão de mundo, o que podemos perceber no mundo é o caráter fundamentalmente
dinâmico deste. Diferente das “oposições verdadeiras” tais como encontramos no conceito de
Vontade em Schopenhauer, a Vontade à Potência não é um fundamento que emana impulsos
ou um estado de causa ou efeito, mas é a expressão da própria dinâmica de impulsos como
pluralidade inumerável em que o ritmo é de mudança contínua, incorporando ou eliminando,
mas sempre desfigurando seus componentes.
A proposta nietzschiana pode nos parecer estranha porque tradicionalmente
encaramos o mundo sob a luz e lógica da causalidade, não somente pelo hábito da crença,
mas por nossa viciada
[...] incapacidade de conseguirmos interpretar um acontecimento de outro modo que
não seja como um acontecer a partir de intencionalidades. É a fé no vivente e
pensante côo o único agente atuante – na vontade, na intencionalidade -, de que
todo acontecer seja um agir, de que todo agir pressuponha um agente atuante; é a
crença no ‘sujeito’. (NIETZSCHE, 2002, P.156)

Quando Nietzsche afirma que nossa interpretação do acontecer é sempre derivada de


uma compreensão em que o sujeito é posto na base, retomamos o caminho que incide sobre a
crença demasiada dos homens nos poderes da razão e os dualismos dela derivados; para o
pensador, não existe um ser por detrás do fazer, do atuar, do devir, a idéia de um agente é uma
ficção acrescentada à ação.
Se o mundo é também essa dinâmica, a assertiva ‘a ação é tudo’ nos encaminha à
compreensão de que homem e mundo estão para a mesma Vontade à Potência, e nesse
movimento se correlacionam; não há ‘O mundo’, nem ‘O homem’.
Não havendo entre ambos uma cisão que possa determinar a absolutização, o polo
ontológico da questão do conhecimento pede um novo cuidado – de não reduzir todos os
‘fatos’ e ‘coisas’ numa linguagem meramente lógica, que imprime em seus ditos o tônus da
verdade uma. O problema do fazer filosófico surge agora como um problema de linguagem –
há linguagem para Vontade à Potência?

Submetido em 14 de julho de 2013.


Aprovado para publicação em 15 de agosto de 2013.

REFERÊNCIAS

FREZZATTI, W. A Superação da dualidade cultura/biologia na filosofia de Nietzsche.


In Revista Tempo da Ciência (11) 22:115-135; 2º semestre 2004 – Unioeste.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
73 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?

NIETZSCHE, F.W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. Ed.;
tradução: Paulo César de Souza. São Paulo – SP: Companhia das Letras. 2003;

_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução: Mario
da Silva. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasiliense, 1977.

_____. O crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o martelo. 2. Ed.; Tradução:
Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2000.

_____. Fragmentos finais; - Seleção, tradução e prefácio de Flavio R. Kothe. Brasília:


Editora Universitária de Brasília; São Paulo: Impressa Oficial do Estado, 2002.

_____. A Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.

_____. Nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Tradução: J Guinsburg.


São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003.

_____. Sabedoria para depois de amanhã. Tradução: Karina Jannini. São Pauo, SP:
Martins Fontes, 2005.

ONATE, A.M. Entre Eu e Si: ou a questão do humano na filosofia de Nietzsche. Rio


de Janeiro, RJ: 7 Letras, 2003.

_____. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem


metafísica. São Paulo, SP: Discurso Editorial; IJUI, RS: Ed. UNIJUI, 2000.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Seção IV - Resenhas / Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos 74
SEÇÃO IV – RESENHAS
HORN, G. B. Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos. Ijuí: Unijuí, 2009.

Naldemir Maria Mendes41

A presente obra analisa os elementos fundamentais que constituem e legitimam a


disciplina de Filosofia na Educação Básica, tendo como objetivo demonstrar a
imprescindibilidade da presença dos conteúdos filosóficos na formação cultural do aluno
brasileiro, notadamente no Ensino Médio.
O autor procura mostrar que a contribuição da Filosofia é fundamental para garantir
uma formação integral, ressaltando a incumbência humanista da educação. Reafirmando o
papel da educação para além do preparo epistêmico e técnico, e tomando como referência o
saber filosófico, o texto contribui para nossa compreensão do papel pedagógico
imprescindível da filosofia.
O alcance pedagógico do ensino de filosofia na escola básica apresentado por Horn,
relaciona-se de forma fundamental com a formação cultural, entendida sob um sentido
abrangente: concebida como a própria humanização do homem.
Nesse sentido, a formação cultural envolve todas as dimensões do conhecimento
humano organizado, entendendo que a escolarização só faz sentido na medida em que
constrói condições para que os sujeitos possam resolver problemas reais. A tarefa do ensino
de filosofia é efetivamente contribuir para que os sujeitos, por meio da razão, possam não só
conhecer o mundo, mas construí-lo e modificá-lo.
A obra organiza-se a partir de uma breve retomada da trajetória histórica da presença
da filosofia como disciplina no currículo, enfatizando o caráter ideológico que por vezes ela
assume na estrutura formal da educação brasileira. Esse resgate explicita o processo histórico
de constituição da filosofia como uma disciplina curricular, denotando a inconstância de sua
presença e a diversidade dos projetos de formação a ela vinculados. Devido a essa
inconstância e de sua condição por vezes facultativa nas escolas de ensino médio, a filosofia
sempre enfrentou problemas em relação à construção de sua identidade, de seu papel e,
consequentemente, com a elaboração dos conteúdos programáticos, que pudessem lhe
oferecer certa homogeneidade.
Na parte final desse primeiro capítulo, o autor retoma as condições mais atuais da
inserção da filosofia o currículo considerando os diferentes movimentos que sustentaram um
forte debate em torno da importância da disciplina no currículo de Ensino Médio.
Para Horn, a imprescindibilidade da filosofia está na tarefa de mostrar aos jovens o
sentido de sua existência concreta, utilizando os conhecimentos filosóficos para articular a
existência subjetiva com as condições objetivas da existência. E é assim que a filosofia se
____________________
41 Mestre em Educação(UFPR). E-mail: nmendes@positivo.com.br.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.73-75, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


75 Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos

torna formativa, na medida em que ela permite ao jovem dar-se conta do lugar que ocupa na
realidade histórica do mundo. E na sequência de sua obra, por meio da problematização das
diferentes abordagens sobre a filosofia e seu papel formativo, o autor nos conduz a
compreensão de que nenhuma ação humana se realiza fora de um contexto social, o homem
não existe como indivíduo isolado. Todo seu agir se dá na trama de relações sociais, na
construção coletiva e na condução conjunta da existência concreta dos homens. Daí a
dimensão político-social do agir e do existir humanos, que torna necessário para todos o
desenvolvimento de uma sensibilidade valorativa ao mesmo tempo em que é epistemológica.
No aspecto mais significativo da obra, Horn apresenta a organização do saber
filosófico em sala de aula problematizando as possibilidades de estruturação e organização do
conteúdo disciplinar a partir de grandes temas ou da história da filosofia. Na sequência do
capítulo o autor nos apresenta as três principais tendências manifestas nas práticas docentes
em relação à organização do conteúdo filosófico, explicitando as vantagens e problemas de
cada perspectiva:
1. A primeira possibilidade apresenta o ensino de filosofia a partir da História da
Filosofia, centrando a organização do conteúdo na ordem histórica do
desenvolvimento dos sistemas filosóficos;
2. A segunda possibilidade apresenta o ensino de filosofia por temas tendo a História
da Filosofia como referência, pois o professor contextualiza a temática desenvolvida
sem submeter e nenhum tipo de critério cronológico, epistemológico ou de sistemas;
3. A terceira possibilidade apresenta a organização do conteúdo filosófico em temas
centrados no cotidiano do aluno, sem preocupação, por parte do professor, de
estabelece relações com os grandes sistemas filosóficos e os autores clássicos da
Filosofia.

Após discutir as possibilidades de organizar o conhecimento filosófico o autor nos


conduz a um Diálogo (Im)Pertinente com Kant e Hegel, com o intuito de incitar uma reflexão
sobre a conhecida cisão: ensinar a Filosofia ou ensinar a Filosofar. Horn nos apresenta uma
visão nova imbricada na intencionalidade da Filosofia no Ensino Médio atual, procurando
mostrar de que forma, por meio do ensino da Filosofia, pode-se contribuir para a
ressignificação da experiência do aluno, instigando seu posicionamento e intervenção no
meio social e, possibilitando-lhe a constituição de uma visão crítica sobre a realidade,
segundo o autor:
O foco mais adequado para vislumbrar essa discussão, atualmente, parece apontar
para uma reflexão sobre os objetivos e anseios do processo de ensino-aprendizagem
da Filosofia no Ensino Médio atual. Que tipo de competência esperamos dos alunos
desse nível de ensino, e quais as melhores formas de tratar os conteúdos filosóficos,
ou a Filosofia, para que esses objetivos sejam obtidos? Qual a tarefa, afinal, da
Filosofia na escola? (HORN, 2009, p.79)

Aprofundando a visão critica sobre o ensino de filosofia e o papel formador essencial


R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.73-75, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos 76
que realiza no Ensino Médio, somos convidados a refletir sobre a dimensão política da
formação filosófica tendo como debatedores as proposições frankfurtianas e as práticas de
ensino de filosofia acompanhadas pelo autor. Nos capítulos finais estrutura-se uma reflexão
sobre as especificidades do ensino de Filosofia, sua relação com o currículo formal, a
formação dos professores e a ressignificação da experiência filosófica do aluno.
Nos anexos do livro, o autor faz a memória dos documentos, cartas e moções
redigidas em prol do ensino de filosofia nos últimos anos. São 15 documentos elaborados
entre 1988 até 2008, que registram as diversas iniciativas ocorridas no Brasil no sentido de
tornar viva a presença da filosofia nos diversos âmbitos da sociedade e, de modo especial, no
ambiente escolar.
Gostaríamos, finalmente, de considerar que este livro de Geraldo Balduíno Horn é um
riquíssimo material de formação continuada para o professor de filosofia, tanto para os que
estão familiarizados com as discussões aqui suscitadas, como para aqueles que só agora
ingressam na árdua e contagiante tarefa do ensino da Filosofia. As reflexões e considerações
deste livro são um reforço indispensável para ressignificar a prática pedagógica dos
professores e estudantes de Filosofia, considerando que o conhecimento filosófico é uma
ferramenta, que possibilita explicitar o que somos, o que nos faz humanos, as nossas
condições concretas de existência.

Submetido em 05 de junho de 2013.


Aprovado para publicação em 07 de agosto de 2013.

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.73-75, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3


77 Instruções editoriais para autores

INSTRUÇÕES EDITORIAIS PARA AUTORES


Para realizar a submissão de um artigo para a Revista do NESEF - Filosofia e Ensino você
deve utilizar o sistema eletrônico de submissão disponibilizado no seguinte endereço:
http://www.nesef.ufpr.br/revista/enviar-artigo.php

Antes de realizar a submissão de seu artigo leia atentamente as regras para submissão de
artigos disponíveis no endereço:
http://www.nesef.ufpr.br/revista/paginas.php?conteudo=regras-para-submissao

R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.76, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3

Você também pode gostar