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1 . Filosofia - Estudo e ensino - Periódicos. I. Universidade Federal do Paraná. II. Horn, Geraldo Balduino. II.
Arias, Valéria. III. Mallmann, Ana Carolina; IV. Cerllete, Alejandro.
CDD 20.ed. 1 01
___________________________________________________________________________________________
Sirlei do Rocio Gdulla CRB-9ª/985
Sumário
SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................................................4
Seção I - Artigos
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio
Anita Helena Schlesener............................................................................................................ 6
O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino
Médio
Ademir Aparecido Pinhelli Mendes e Edson Teixeira de Rezende.......................................... 35
Seção IV - Resenhas
Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos. Geraldo Balduíno HORN
Naldemir Maria Mendes...........................................................................................................73
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 -76, Jun./Jul./Ago./Set. 201 3
5 Apresentação
APRESENTAÇÃO
Neste terceiro número a Revista do NESEF Filosofia e Ensino concentra-se na
reflexão acerca das várias interfaces do ensinar e aprender filosofia na escola básica.
Entende-se que o desafio histórico da educação filosófica no Brasil destinada ao
público da educação básica, não se resolve, apenas, mediante a garantia institucional da
presença da filosofia nos programas de ensino dos currículos dessa etapa formal da
escolarização. Para além do espaço curricular da filosofia, hoje garantido por lei, é preciso
considerar a face política da educação filosófica – no bojo da política educacional mais geral
–, a qual, não raro, por caminhos alheios à razão filosófica de corte emancipatório, traça
diretrizes de ensino quase sempre alinhadas com as hegemonias vigentes. Já no campo
epistemológico, ou seja, no que tange à necessária identidade entre os conteúdos da filosofia
escolar e os conhecimentos filosóficos propriamente ditos, também há muito que refletir,
debater e propor.
Nesse sentido, os textos selecionados neste número relacionam-se, cada qual a um
conjunto de aspectos do problema complexo da qualidade e da identidade da educação
filosófica na educação formal.
A Seção Artigos inicia-se com a contribuição de Anita Helena Schlesener, Ensinar
Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio. A autora
parte da clássica questão: ensinar filosofia ou ensinar a filosofar? – formulada inicialmente
por Kant, mas que ao longo do tempo, assumiu várias configurações – e, neste estudo, faz
uma reflexão acerca dos determinantes históricos que consubstanciam as “escolhas
filosóficas”. A argumentação da autora, ao mesmo tempo em que considera a especificidade
dos conhecimentos filosóficos, relaciona a problemática do ensino da filosofia ao lócus da
educação escolar, o qual, em certo sentido, pela sua extensão, alcance e contradições, é
expressão privilegiada do caráter essencialmente político e histórico da filosofia.
Antonio Edmilson Paschoal, no artigo, Da especificidade da filosofia ao seu ensino,
concentra-se em identificar e analisar os significados, do assim chamado “modo
especificamente filosófico” de pensar, organizar e reproduzir o conhecimento. Tais reflexões
remontam-se ao próprio conceito de filosofia e, considerando a filosofia em sua forma
escolar, entende o autor que o debate acerca da especificidade da filosofia, precede e
fundamenta as investigações metodológicas.
Em O lugar do pensamento no ensino da Filosofia, Paulo Henrique Fernandes
Silveira, traz um conjunto de reflexões e posições originais a partir de perguntas que há muito
tempo se colocam no horizonte do ensino da filosofia e, mais amplamente, da educação
filosófica, tais como: é possível ensinar filosofia? É possível ensinar a pensar? Para filosofar
é preciso conhecer a história da filosofia? Revisitando filosofias e posicionamentos de vários
teóricos, sobretudo de Kant e Heidegger, o autor expõe contornos do problema da autonomia
intelectual, considerando o fenômeno, crescente e observável na contemporaneidade - da
Saudações filosóficas
SEÇÃO I - ARTIGOS
Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino
Médio
Anita Helena Schlesener1
Resumo
Esse trabalho pretende refletir sobre o retorno da filosofia ao ensino médio. Para tanto,
faremos algumas observações a respeito da especificidade desse ensino e das dificuldades a
enfrentar ante essa especificidade. Parte-se dos escritos de Antonio Gramsci, tanto para
explicitar a importância do ensino da filosofia na formação de um pensamento coerente e
crítico quanto para levantar as suas dificuldades. Segue-se salientando a reviravolta dialética
que caracterizou o surgimento do marxismo e que, na expressão de Walter Benjamin, trata-se
de uma nova “revolução copernicana”. Finaliza-se com as diferenças entre ensinar e
questionar a partir da nova perspectiva da filosofia na sua articulação com a história.
Teaching Philosophy or instigate thinking? The Kantian challenge in the reality of high
school
Abstract
This paper aims to reflect on the return of philosophy to secondary education. It begins with
some observations regarding the specificity of this teaching and the difficulties to confront
against this specificity. We started of the writings of Antonio Gramsci as far to explain the
importance of teaching philosophy in the formation of a coherent and critical mind as to raise
their difficulties. Followed stressing the dialectical reversal that characterized the emergence
of Marxism. In a expression of Walter Benjamin, this is a new "Copernican revolution". We
ended with the differences between teaching and challenge to the new perspective of
philosophy in its relationship with history.
____________________
1 Doutora em História (UFPR), Professora de Filosofia Política da UFPR (aposentada) e Professora do Mestrado
e Doutorado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Pesquisadora do NESEF/UFPR. E-mail:
anita.helena@libero.it
O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Troia dos sonhos
(BENJAMIN, 2009, p.437).
brasileiras estaria, dessa perspectiva, em dar aos discentes as condições necessárias para a
formação de um pensamento crítico e autônomo, a fim de compreender a realidade e as
contradições nas quais estão inseridos para contribuir para mudanças sociais relevantes. A
questão central que se passou a enfrentar a partir da efetiva inserção da filosofia foi a de
como realizar esse trabalho.
O impulso germinador de um pensamento não está na sua capacidade de oferecer
respostas, mas sim na sua força problematizadora e crítica capaz de despertar a reflexão.
Embora seja mais fácil ancorar nas certezas apresentadas por um conhecimento instituído é
necessário seguir a senda árdua e árida do questionamento, trilhar os becos, as escarpas, os
desvios à margem do método e da medida reconhecidos. Porque o saber não se apresenta
como algo consolidado e a verdade ora se mostra, ora se esconde e não cessa de se reinventar
naquilo que Walter Benjamin denominou o bailado das ideias (BENJAMIN, 1985).
Um dos pontos dos quais os professores, em geral, não abrem mão, é do uso dos
textos clássicos como mediadores da aprendizagem. E então novas dificuldades se
apresentam: primeiro, em relação à leitura do texto e, segundo à sua compreensão pelos
discentes.
Da primeira perspectiva vale a pena salientar que, no movimento de leitura, a fim de
compreender as polêmicas que marcaram uma época, precisamos evidenciar discursos
bipolares, como luz e sombra, visível e invisível, aparência que esconde uma essência,
superfície e abismo, verso e reverso que se complementam, métodos que se contrapõe e se
embatem, a fim de podermos formar uma nova configuração da história. É como se o
pensamento de uma época se constituísse sempre por ao menos duas leituras da realidade:
uma que se expressa em um discurso claro, explícito, e outra que se produz como discurso
oculto, paralelo e velado, mas não menos importante.
Da segunda perspectiva, tem-se que considerar que a linguagem dos adolescentes tem
uma significação própria a partir da inserção dos novos instrumentos tecnológicos de
comunicação, tanto pela assimilação de códigos quanto pela significação mais vinculada ao
imediato cotidiano. A propósito desse assunto, retoma-se aqui a questão da tradutibilidade,
que perpassa os escritos de Gramsci e, talvez, possa nos ajudar a buscar soluções.
Traduzir tem várias significações: pode ser transpor de uma língua para outra, o que
implica muitas vezes trair, porque significa sempre interpretar a partir de um contexto
linguístico diverso. Gramsci acentua que “nenhuma tradução é ‘perfeita’ em todos os
particulares, ainda que importantes (mas qual língua é exatamente traduzível em uma outra?
Qual palavra singular encontra tradução exata em outra língua?) e isso não é no ‘fundo’,
essencial” (GRAMSCI, 1977, p. 1470). Importante é que se reconheçam relações, porque a
cultura se produz com a colaboração de todos e se renova a cada nova leitura.
Um significado mais amplo abordado por Gramsci é a tradução entre duas culturas,
que se aplicaria ao caso de nossa leitura dos textos clássicos: “a criação de uma nova cultura
integral” precisaria produzir-se com “as características de massa da Reforma protestante e do
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Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio 14
Iluminismo francês, bem como as características clássicas da cultura grega e do
Renascimento italiano”, ou seja, uma cultura que “sintetize Massimilian Robespierre e
Emmanuel Kant, a política e a filosofia em uma unidade dialética intrínseca a um grupo
social” internacional (GRAMSCI, 1977, p. 1233). Traduzir implica, portanto, estabelecer
relações e articular teoria e prática de modo orgânico, trabalho que só pode ser realizado pela
filosofia da praxis.
Dessa perspectiva, Gramsci retoma Marx para acentuar que existe uma equivalência
entre a política francesa e a filosofia clássica alemã que, de resto, já encontramos na literatura
de Heinrich Heine que, ironicamente, declara:(...) “confesso sinceramente que vocês,
franceses, são moderados e dóceis em relação a nós alemães. Puderam no máximo matar um
rei que já havia perdido a cabeça antes que vocês o decapitassem”. Kant “(...) tomou o céu de
assalto” e “destruiu os fundamentos de prova da existência de Deus” (HEINE, 1991, p. 89 e
97).
Essa reflexão é retomada por Gramsci, recuperando da leitura de Carducci que
escreveu: “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”. E Gramsci
esclarece: “Carducci encontrou o tema em Heinrich Heine”, mas Croce encontrou um
longínquo indício dessa formulação em Hegel que, nas Lições sobre a História da Filosofia,
afirma que as filosofias de Kant, Fichte e Schelling apresentam a revolução em forma de
pensamento, traduzidas por Marx em A Sagrada Família na afirmação de que a classe
trabalhadora é herdeira da filosofia alemã (GRAMSCI, 1978, p. 83).
A essas formas de tradutibilidade que evidenciam a relação entre teoria e prática
acrescenta-se a de traduzir um texto clássico, em geral, de uma filosofia que pretende explicar
o mundo por meio de conceitos universais, para um adolescente de ensino médio habituado
com os novos códigos de comunicação criados pelas novas tecnologias informática e
midiática. É como se tivéssemos que passar da linguagem geométrica para a linguagem
algébrica, da expressão oral e escrita para a imagética; não que não seja possível, tanto que se
têm exemplos na história do pensamento de relações interessantes entre filosofia e arte,
filosofia e ciência. Porém, cada área precisa de categorias estruturais específicas sem as quais
não consegue comunicar o conhecimento produzido e a filosofia apresenta-se como um
trabalho reflexivo de produção escrita com parâmetros de argumentação particulares, ou seja,
procura “constituir um saber inteiramente exprimível e transmissível pela linguagem”
(VALERY, 1998, p. 219).
Os textos clássicos mantêm os limites de uma filosofia voltada para uma visão
universal e trazem conceitos muito distantes da realidade do adolescente do ensino médio.
Apresentar esses textos e torná-los interessantes evidenciando a interlocução do autor com
seu tempo cuja fecundidade se esclarece no diverso e contraditório implica fazer a “tradução”
sem perder o conteúdo e a problemática que eles abordam. Traduzir o conteúdo de um tempo
distante significa tanto atualizar o discurso quanto reinterpretar o passado para buscar seus
sinais no presente, bem como evidenciar paradigmas; cada corrente filosófica tem um
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15 Ensinar Filosofia ou instigar a pensar? O desafio kantiano na realidade do Ensino Médio
Conclusão
REFERÊNCIAS
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______. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo, Brasiliense, l985. BUCK-
MORSS, S., Walter Benjamin: entre moda acadêmica e avant-garde. In: Crítica
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CHATELET, François. Logos e praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
DIAS, Edmundo Fernandes. Compreender o real, demonstrar sua inteligibilidade.
In: SCHLESENER, A. H. E PANSARDI, M. V. (Orgs.) Políticas Públicas e Gestão da
Educação. Curitiba: UTP. 2007, p. 33-46.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Cárcere. Torino : Einaudi, 1977.
______. Scritti Giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975.
______. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 1978.
HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São
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SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores
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SCHLESENER, Anita Helena. A escola de Leonardo: política e educação nos escritos
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VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. São Paulo: Editora 34,
2006.
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17 Da especificidade da filosofia ao seu ensino
Resumo
Este artigo reúne algumas considerações sobre a primeira das “habilidades e
competências” esperadas de um formando de filosofia no Brasil, segundo as “Diretrizes
curriculares para os cursos de Filosofia”, a saber, a “capacitação para um modo
especificamente filosófico de formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos
do conhecimento”. O objetivo é demarcar significados da expressão “modo especificamente
filosófico” que permitam iniciar uma reflexão sobre metodologias do ensino de filosofia. A
hipótese que norteia este trabalho é que na filosofia existe uma imbricação necessária entre
conteúdo e método, e não apenas porque nela o conteúdo é o método em movimento, mas
porque ela mesma pode ser entendida como um método, na medida justamente em que se
configura como um modo específico de apresentar problemas e soluções.
Abstract
This article presents some considerations about the first of the “skills and competencies”
expected of a student of philosophy in Brazil, according to the “Curriculum guidelines for
courses in Philosophy”, namely, the “capacity for a way specifically philosophical to
formulate and propose solutions to problems in different fields of knowledge”. The goal is to
demarcate meanings of the term “specifically philosophical mode” that permits to begin a
discussion of methodologies aimed at his production and transmission. The hypothesis that
guides this works that there is necessary an overlap between content and method, and not just
because the content in the philosophy is the method in movement, but because she herself can
be understood as a method, as precisely as she configures itself as a specific mode of
presenting problems and solutions.
____________________
3 Doutor em Filosofia (UNICAMP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR,
pesquisador do CNPq. E mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br
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Da especificidade da filosofia ao seu ensino 18
A filosofia é a ciência objetiva da verdade, é a ciência da sua necessidade: é o
conhecer por conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião da outra. (...)
quem tiver estudado e compreendido uma filosofia, contanto que seja filosofia,
por isso mesmo, compreendeu a filosofia.
G. W. FR. Hegel4
Considerações iniciais
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19 Da especificidade da filosofia ao seu ensino
filosofia” já recebeu, além de chamar a atenção para o fato de que as respostas aparentemente
universais situam-se em campos particulares, precisando ser compreendidas no contexto das
tramas que conferem sentido a elas. Segundo, ele reitera a ideia de que, diferentemente do
que se verifica em outras ciências, a pergunta pelo “o que é a filosofia” (p. 21) é uma
pergunta filosófica, donde se segue que respondê-la já é uma forma de filosofar. Terceiro,
postula que é possível, mesmo considerando a ambiguidade das respostas à pergunta o que é a
filosofia, demarcar ainda que provisoriamente, a sua peculiaridade, o que pode ser feito
observando-se “alguns procedimentos característicos do filosofar” (p. 22). Nesse sentido,
destaca, por exemplo, o “sopesar conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-
comuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem
mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio” (p. 22).
Tendo como ponto de partida essas pistas, que parecem ressaltar a relação entre os
procedimentos do filosofar e a questão do conhecimento, é possível caracterizar a filosofia,
provisoriamente, como a arte de quebrar a naturalidade com que normalmente são utilizadas
as palavras e os conceitos. Um modo de reflexão que não se restringe aos objetos do
conhecimento, mas busca compreender o próprio ato de conhecer. Porquanto, ela seria uma
ciência que não se limita à indagação por verdades particulares, mas por inquirir sobre os pré-
requisitos do modo humano de conhecer e também sobre os critérios, as condições do
conhecimento e, acima de tudo, sobre os jogos de poder que permitem a determinadas
proposições gozarem do privilégio de serem reconhecidas como verdadeiras em determinados
momentos.
Se, contudo, essas considerações iniciais permitem delinear alguns contornos da
especificidade da filosofia, outros traços sobre ela devem ser considerados ainda para o
embasamento de nossa hipótese de trabalho. Isto porque, segundo ela,o reconhecimento do
modo específico com que a filosofia apresenta problemas e soluções é um fator
imprescindível para a sua compreensão, num sentido amplo, como um método em particular,
visto que ela mesma corresponde a um modo específico de formular questões, propor e
debater teses.
Para incluir novos traços naquele delineamento da especificidade da filosofia,
tomaremos como ponto de partida algumas observações sobre Tales de Mileto, buscando
apontar o que fez aquele pensador receber, pela primeira vez na história, a denominação de
filósofo. Passaremos, a seguir, da ideia geral de filósofo e de filosofia para o texto filosófico,
visto que a filosofia não seria apenas intuição e doxografia, mas também “explicitação e
discurso” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 140) e encerramos mostrando como o estudo da
filosofia, respeitadas essas premissas metodológicas, é também um modo de se produzir
filosofia.
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Da especificidade da filosofia ao seu ensino 20
Um dos primeiros a colocar a questão acerca da diferenciação entre a filosofia e as
outras ciências tendo Tales de Mileto como referência é Aristóteles. No início da Metafísica,
ao apresentar as peculiaridades que distinguem a filosofia em relação às demais ciências,
Aristóteles remonta aos primeiros filósofos, nos quais identifica a preocupação, típica da
filosofia, com a “causa primeira” (Metafísica, I, 3, 983 24. ARISTÓTELES, 2005, p. 15) ou,
em termos análogos, afirma que eles especulam sobre “os princípios primeiros e as causas”
(Metafísica, I, 2, 982b 9-10. ARISTÓTELES, 2005, p. 11). Ou seja, a filosofia desde seu
movimento inicial, quando coloca em discussão “aquilo de que todos os seres são
constituídos e aquilo de que originalmente derivam e aquilo que por último se dissolvem”, ela
já estaria se ocupando com o seu objeto mais peculiar: “o elemento e princípio dos seres, na
medida em que é uma realidade que permanece sempre mesmo na mudança de suas afecções”
(Metafísica I, 3, 983b 10-14. ARISTÓTELES, 2005, p. 15). Diferentemente, portanto, das
outras ciências, a filosofia buscaria o “porque” (Metafísica I, 1, 981a 29. ARISTÓTELES,
2005, p. 5) das coisas que estuda e ocupar-se-ia de um objeto de caráter universal e não
prático no sentido de responder a necessidades imediatas além de apresentar um caráter
universal e não prático de seu objeto. Nesse sentido, ela atenderia diretamente à natureza do
homem que “tende ao saber” (Metafísica, I, 1, 980a 18. ARISTÓTELES, 2005, p. 3)
respondendo da forma mais elevada ao seu encantamento diante do mundo.
A estratégia de Aristóteles, de recorrer aos pré-socráticos e em especial Tales de
Mileto para resposta à pergunta pela especificidade da filosofia, é compartilhada por vários
outros filósofos no futuro. Entre eles, retomamos Hegel e Nietzsche, que do interior de suas
filosofias destacam outros traços importantes no sentido de referendar o pensador de Mileto
como o primeiro filósofo.
Segundo Hegel, a filosofia começa porque através da proposição de Tales “de que a
água é o absoluto ou, como dizem os antigos, o princípio” se tem pela primeira vez a
“consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si” (HEGEL,
1973, p. 15). Tales seria, portanto, o primeiro pensador a se ocupar de um princípio que é
universal porque estaria “ao mesmo tempo, em relação com o singular, com a aparição [e]
com a existência do mundo” (HEGEL, 1973, p. 15). Tal princípio universal que, segundo o
professor de Berlim, permaneceria sempre independentemente da existência singular e
passageira, seria, justamente por esse caráter, o objeto peculiar e exclusivo da investigação
filosófica. Hegel, contudo, apesar de reconhecer em Tales aquilo que caracteriza o modo
próprio da filosofia de compreender o mundo, critica o pensador jônico afirmando que a
“falha” de seu pensamento consistiria no fato de “a água também ser uma coisa singular”
(HEGEL, 1973, p. 16) e, portanto, ineficaz para expressar a ideia de um princípio universal
que, para Hegel, é um principio espiritual.
Por sua vez, em seu curso sobre os filósofos pré-socráticos, sintetizado, em 1873, num
pequeno livrinho que manteve inédito, Nietzsche afirma que, de fato, “a filosofia parece
começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as
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21 Da especificidade da filosofia ao seu ensino
De fato, a hipótese formulada por Tales com o material precário que dispunha a partir
de suas observações da natureza é falsa, especialmente se for considerada do ponto de vista
das ciências que temos hoje. Mais ainda, tal hipótese, segundo Nietzsche, empreende uma
“monstruosa generalização”. Porém, mais importante do que isso tudo seria o fato de a
proposição “tudo é um” do pensador jônico exprimir um “postulado metafísico, uma intuição
mística” (NIETZSCHE, 1973, p. 16). Os limites de Tales não estariam, portanto, relacionados
ao alcance metafísico de sua proposição, mas à linguagem que ele recorre para explicitá-la,
visto ter lançado mão de uma “transposição metafórica” em que o objeto de conhecimento é
exposto por meio de uma linguagem estranha ele e que se constitui, por fim, num “um meio
raquítico” e “totalmente infiel” (NIETZSCHE, 1973, p. 18).
Neste ponto, além de ampliar as pistas tomadas em nossas considerações iniciais,
com um desdobramento de nossa questão inicial acerca da especificidade da filosofia que
passa a ressaltar a sua vocação para buscar os princípios últimos e os porquês, tem-se também
a enunciação de outro aspecto do problema, o da explicitação da filosofia. Uma preocupação
que se apresenta, num primeiro momento, a partir do limite imposto àquela intuição inicial
pela linguagem e, em seguida, quando se passa a considerar o próprio discurso filosófico
como um fenômeno do qual também se pergunta pelas causas primeiras. Tal preocupação,
com a construção do discurso filosófico, vale dizer, com o tema do texto filosófico como
explicitação e conteúdo da filosofia, algo que ganhará grande importância numa ciência que
se configurará numa tradição escrita, é o segundo ponto que merece destaque quando se
analisa o modo peculiar da filosofia de formular questões e apresentar soluções a problemas.
Do mesmo modo como a filosofia se pergunta pelas causas últimas do que existe
também ao apresentar-se como um discurso ela deve dar conta dos seus motivos últimos e da
coerência que faz dela um sistema ordenado e não um caos. Nesse sentido, considerando-se a
filosofia como um fenômeno e tomando-a a partir da ótica de sua construção, cabe mencionar
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Da especificidade da filosofia ao seu ensino 22
a metáfora que a associa a um projeto arquitetônico. Uma metáfora que é utilizada, entre
outros, por Descartes, na terceira parte das suas Meditações (DESCARTES, 2001, p. 27), por
Kant, em especial no capítulo intitulado “A arquitetônica da razão” de sua Crítica da razão
Pura (CRP B 860-879 / KANT, 2008, p. 657-669), e por Schopenhauer no prefácio à primeira
edição de O mundo como vontade e representação (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19). Uma
metáfora ressaltada também por Victor Goldschmid tem seu ensaio sobre metodologias
voltadas à leitura de sistemas filosóficos. Para o filósofo francês nascido na Alemanha, a
filosofia seria “explicitação e discurso” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 140), na medida em que
se constrói como um conjunto de teses articuladas por razões e dispostas em um “tempo
lógico” a ser identificado e acompanhado pelo leitor de tal modo que ele poderia, por fim,
recolocar em movimento aquele sistema como um músico que executa uma partitura.
A proposição de Goldschmidt, independentemente, neste momento, do alcance de um
debate sobre tais metodologias, nos interessa por recolocar a questão básica e fundadora do
debate filosófico. De que ele tem por pressuposto o reconhecimento das razões últimas da
filosofia que se quer avaliar para refutar ou não. Razões que se encontram no texto filosófico
e não em alguma experiência vivida pelo autor e inacessível ao leitor. Assim, o exercício da
filosofia, passaria a considerar não apenas um modo de ver o mundo, mas também a sua
vocação para o debate de ideias, a explicitação dessas ideias em um texto logicamente
ordenado e também o leitor em seu encontro com o texto.
Portanto, além de explicitar um modo de ver o mundo, o texto filosófico consiste num
exercício argumentativo peculiar que ao modo de uma construção arquitetônica é deixado
para a posteridade como modelo daquele modo de formular questões e solucionar problemas
como é próprio à filosofia. Esse material se coloca para o seu leitor, em especial para um
estudante, ao mesmo tempo como a transcrição de uma tese, sobre o mundo, por exemplo,
mas também por seu caráter próprio, como uma argumentação que não só busca razões, mas
se fundamenta em razões.
Dessa forma, mover-se pelos meandros de tais textos, decodificá-los e interpretá-los
se torna o meio pelo qual se chegaria ao aprendizado daquilo que seria chamado de filosofar.
(PASCHOAL, 2008) Motivo pelo qual, é possível concordar com Hegel, (1989) que ao se
aprender um filósofo tem-se as condições mínimas indispensáveis para se aprender a
filosofar, visto que mais importante do que o conteúdo aprendido é a apreensão daquele modo
próprio de olhar para o mundo, de apresentar teses e questionar que permite a um pensador
ser chamado de filósofo.
Considerações finais
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Da especificidade da filosofia ao seu ensino 24
primeiro motivo pelo qual necessitamos de educadores.
REFERÊNCIAS
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Janeiro: Forense Universitária, 1987.
HEGEL, G. W. FR. Preleções sobre a História da Filosofia. Trad. Ernildo Stein. In:
SOUZA, J. C. de (Org.). São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1973, p. 15-16
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
25 Da especificidade da filosofia ao seu ensino
KANT, I. Crítica da razão pura. 6ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2008.
NIETZSCHE, Fr. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Rubens R. Torres
Filho. In: SOUZA, J. C. de (Org.). São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores),
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NIETZSCHE, Fr. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.1 6-24, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia 26
O lugar do pensamento no ensino da Filosofia
Paulo Henrique Fernandes Silveira 8
Resumo
É possível ensinar Filosofia? É possível ensinar a pensar? Para filosofar é preciso
conhecer a história da Filosofia? Quais as condições para o exercício do pensamento num
curso de Filosofia? Para Immanuel Kant, não basta conhecer os pensamentos dos grandes
filósofos para aprender a filosofar. A Filosofia exige a ousadia e a maturidade intelectual de
quem reconhece a necessidade de pensar por conta própria. Para Martin Heidegger, vivemos
uma época na qual as pessoas se dedicam a muitas atividades, mas pensam pouco. Mesmo
nas universidades e nas escolas, os estudantes não parecem dispostos a enfrentar experiências
e acontecimentos que inspirem novos pensamentos. O propósito deste artigo é investigar, a
partir das reflexões de Kant e de Heidegger, bem como das análises de outros filósofos e
pedagogos que tratam do tema, o lugar do pensamento no ensino da filosofia.
Abstract
Would it be possible to teach Philosophy? Would it be possible to teach how to think?
In order to philosophize, does one have to know about the history of Philosophy? Which are
the proper conditions to the exercise of thought in a Philosophy courses? As Immanuel Kant
states, knowing the greatest philosophers’ ideas does not suffice for one to learn how to
philosophize. Philosophy demands audacity as well as intellectual maturity from those who
acknowledge the necessity of thinking on their own. For Martin Heidegger, these are times in
which people dedicate themselves to a great deal of activities, being the process of thinking
scarce. Even in university and school contexts, learners don’t seem to be willing to face
experiences and events which would inspire new thinking. This paper aims at investigating
the place of thinking in the teaching of Philosophy. Such investigation will be based on
Kant’s and Heidegger’s reflections as well as contributions from other scholars in the field of
Philosophy and Pedagogy.
____________________
8 Doutor em Filosofia (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail:
paulohenrique.silveira@bol.com.br
Uma palavra, uma melodia, uma história, uma linha, chaves no vento para que
minha mente fuja.
Versos de Bob Dylan
Pelas mais diversas e díspares razões, uma tese apresentada nas últimas páginas
da Crítica da razão pura, o mais célebre livro de Immanuel Kant, influencia a didática
de inúmeros filósofos e pedagogos: não se pode aprender filosofia, “apenas se pode,
no máximo, aprender a filosofar” (Kant, 2001, p. 660). Ao contrário de certas ciências que
podem ser aprendidas e ensinadas, não há um saber filosófico aceito por todos. Talvez, indaga
Kant, nunca encontremos respostas necessárias e universais para as questões fundamentais da
filosofia, mais especificamente: “O que posso saber?; O que devo fazer?; O que me é lícito
esperar?; O que é o homem?” (2003, p. 42).
De qualquer modo, argumenta Kant, nada nos impede de formular novas respostas
que se somem ou se sobreponham às que foram levantadas pelos outros autores: “Todo
pensador filosófico constrói, por assim dizer, sua própria obra sobre os destroços de uma obra
alheia; mas jamais se erigiu uma que tenha sido estável em todas suas partes” (Ibidem, p. 42).
Um professor que queira ensinar seu aluno a filosofar “não deve ensinar pensamentos, mas a
pensar; não deve carregá-lo, mas guiá-lo, se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si
próprio” (Kant, 2003, p. 174). Para filosofar, é preciso inventar; quem se finca nos
pensamentos dos outros, na melhor das hipóteses, sabe imitar (Kant, 2001, p. 660). Num certo
sentido, mesmo conhecendo de cor e salteado as teses e os conceitos dos filósofos, muitos
eruditos não sabem pensar.
Os homens que não fazem uso do seu entendimento sem a direção de um tutor são
culpados por sua minoridade. Segundo Kant, a preguiça e a covardia são responsáveis pela
falta de autonomia: “Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor
espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha
dieta, etc., então não preciso me esforçar” (Kant, 1985, p. 100). Como crianças que não foram
encorajadas a andar sozinhas, tais pessoas não ousam pensar por conta própria (Ibidem, p.
102).
Sendo uma área do conhecimento cuja investigação parece ser interminável,
a filosofia autoriza e exige a criação de novos conceitos; porém, Kant aconselha a leitura
atenta dos textos clássicos, que mais não seja, para que o aluno exercite sua argumentação:
“quem quer aprender a filosofar tem o direito de considerar todos os sistemas da filosofia tão-
somente como uma história do uso da razão e como objetos do exercício de seu talento
filosófico” (Kant, 2003, p. 43).
Por mais original que possa ser um pensamento, não há como ignorar a importância
da história da filosofia: “toda filosofia depende, em certo sentido, das que a precederam, uma
vez que as reposições dos problemas e as transfigurações dos conceitos se fazem em relação a
um determinado contexto de tradição, e nenhuma filosofia é inseparável de uma polêmica
implícita que o filósofo mantém com os antecedentes, com os contemporâneos e até consigo
próprio” (Silva, 1986, p. 155).
O que ocorre em muitas pesquisas filosóficas também pode pautar o ensino da
filosofia nos colégios: um trabalho de reconstrução dos problemas e dos conceitos
da história da filosofia. Em suas análises sobre o tema, Porta distingue a reconstrução racional
da histórica. A primeira visa destacar os aspectos lógicos de um argumento, de uma tese ou de
um sistema filosófico. A segunda procura restituir o contexto de debate e de investigação no
qual um pensamento foi elaborado. Esse trabalho de reconstrução nos permite perceber com
clareza os antigos problemas e nos abre a possibilidade de elaborar novos problemas (Porta,
2011, p. 146). Como defendem Sílvio Gallo e Walter Kohan, o diálogo com a história da
filosofia pode se dar como: “uma forma de desvio, de pensar o novo repensando o já dado e
pensado” (2001, p. 194).
Não pensam por conta própria aqueles que se prendem às ideias do passado, todavia,
como bem ressalva Ronai Rocha: “aqueles que desconhecem o passado podem se ver
condenados a repeti-lo” (2000, p. 164). Ao invés de negar a autonomia do pensamento, um
professor que tenha a história da filosofia como referencial pode procurar “naquilo que foi
pensado o que nos faz pensar” (Silva, 1993, p. 803). Sem dúvida, há muita coisa importante
para se ensinar num curso de filosofia: problemas, teses, conceitos que podem ajudar o aluno
a escapar da imediaticidade da opinião e fazer com que ele identifique “como sendo seu este
outro que é a cultura” (Horn, 2009, p. 75).
Por melhores que sejam as diretrizes de um curso de filosofia, vivemos num momento
propício para o pensamento? É isso o que os alunos procuram nas escolas? Numa série de
textos dos anos cinquenta, Martin Heidegger analisa essas questões e afirma em tom de
lamento: “há vários séculos o homem vem agindo demais e pensando de menos” (2004, p. 4).
Mesmo entre aqueles que se interessam pela filosofia, na maior parte dos casos, há uma
disposição para estudar os pressupostos dos grandes pensadores10, mas não para aprender a
pensar. A preocupação constante dessas pessoas com a filosofia cria-lhes, tão somente, a
ilusão de que estão sempre pensando (Ibidem, p. 5).
Ao analisar duas célebres frases sobre a origem e o significado da filosofia, a saber, a
____________________
10Para Rodrigo Gelamo, o ensino da filosofia precisa realizar um trabalho de problematização e de resistência
aos pressupostos da própria filosofia (2008, p.172). Questionando esses pressupostos, talvez encontremos outros
caminhos para o pensamento.
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VALLE, Lílian do. Educação impossível. In: Educação, Santa Maria, 34 (3), p. 473-
486, 2009.
Resumo
O artigo apresenta os resultados de uma investigação de abordagem qualitativa realizada a
partir de uma experiência de aprendizagem filosófica desenvolvida com estudantes do 3º ano
do Ensino Médio em duas Escolas Públicas do Estado do Paraná. Parte da seguinte
problemática: em que medida o uso do mapa conceitual pode ser utilizado como ferramenta
pedagógica para a leitura, análise e compreensão de textos filosóficos no Ensino Médio? A
investigação mostra estratégias e possibilidades do uso do mapa em sala e os impactos que
ocorrem na aprendizagem filosófica dos estudantes. As cartas e os mapas conceituais
produzidos pelos educandos sobre o tema política - a partir do capítulo XVII d’O Príncipe de
Maquiavel -, mostram tanto a presença de elementos da vida cotidiana como apropriações
conceituais e reflexões evidenciando a aprendizagem filosófica.
The use of concept maps for reading philosophical texts in high school classes
Abstract
This article presents the results of an investigation by conducting a qualitative research from
philosophical learning experience developed with students of third year of High School in
two public schools in the State of Paraná. The main issue is: to what extent the use of the
concept map can be used as a pedagogical tool for reading, analysis and understanding
philosophical texts in High School? The investigation shows strategies and possibilities of the
use of the map in classroom and the impacts that occur on philosophical learning by the
students. The letters and concept maps produced by the students on the topic Politics – from
chapter XVII of The Prince by Machiavelli – show either the presence of elements of
everyday life and conceptual appropriations and reflections evidencing philosophical
learning.
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14Mestre em Educação (UFPR). Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação do Paraná. E-mail:
pinhellimendes@hotmail.com
15 Mestre em Educação (UFPR). Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação do Paraná. E-mail:
etrezende@ig.com.br
Introdução
Espera-se que, por meio do uso desta mediação pedagógica, os alunos produzam
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.35-48, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
41 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio
Esse aspecto ajuda a entender que o jovem que está aprendendo filosofia no ensino
médio apresenta elementos sentimentais, ideias, paixões movidas também pela sociedade e
cultura, que se encontram envolvidas. Quando, numa situação problema, ele pode se utilizar
desse arcabouço para constituir uma perspectiva que resolva ou redirecione o problema,
Mapa 2:
Foram produzidos 23 mapas pelos estudantes a partir dos dez conceitos prévios por
eles selecionados. A análise dos mapas conceituais evidencia que os conceitos utilizados
pelos alunos para conceituar política podem ser resultantes de estudos realizados durante seu
processo de escolarização, da influência da mídia ou do seu cotidiano vivido, onde o tema
surge aleatoriamente, mas está presente. Para efeitos de análise, os conceitos foram
categorizados em três grupos distintos: “organização da sociedade”, “ética e política” e
“política negativa”.
Os conceitos que associam a política com a categoria “organização da sociedade” são
os seguintes: aprovação de leis, câmara dos deputados, eleições, presidente, governadores,
vereadores, sociedade, direito, dever, povo, representação, ideias, parlamentares, partidos,
legislação, comandar, poder, economia, mundo, educação, ditadura, liderança, melhorias,
país, eleições, participação, voto, campanhas, eleitores, democracia, debate, comunismo,
administrar, autoridade, população, impostos, benefícios, estudo, informação.
Os conceitos que associam a política com a categoria “ética e política” são os
seguintes: progresso, desenvolvimento, censo crítico, responsabilidade, autonomia, reflexão,
honestidade, valores, harmonia, bem, mal, qualidade de vida, moral, escolhas, julgamento,
dilemas, determinação, justiça.
Os conceitos que associam a política com a categoria “política negativa” são os
seguintes: roubo, prisão, laranjas, dinheiro, corrupção, problemas, mensalão, decepção,
escândalos, injustiças, mentiras, interesses, desigualdades, exclusão, aquecimento global,
morte, guerra.
Após produzir os mapas conceituais sobre os conceitos que elegeram para definir
política, os alunos escreveram um texto dissertando sobre os conceitos que utilizam no mapa
e explicitarem as relações conceituais. Os textos selecionados evidenciam a categorização
acima, nos quais estão evidenciados alguns conhecimentos prévios trazidos pelos alunos,
como, por exemplo, a necessidade da ética na política e os constantes escândalos envolvendo
políticos eleitos.
A política começa de fato quando um candidato se candidata a qualquer cargo dentro
da política. Os políticos vão disputar nossos votos mostrando suas propostas, e
promessas, que sempre visam melhorias para a população ou município. Quando o
candidato consegue se eleger ele, na maioria dos casos vai tentar cumprir com os
principais elementos que compõe a política. (Jefferson – 3º ano)
Conclusão
O ensino da filosofia no ensino médio pode utilizar vários instrumentos para mobilizar
os alunos para esse processo. Segundo Obiols (2002. p.127), é fundamental que a aula de
filosofia tenha como ponto de partida da vida cotidiana do educador, de sua prática social,
respeitando o educando e compartilhando com este de seu interesse, fazendo com que os
questionamentos produzam uma investigação significativa e não mecânica. A investigação
por meio dos textos e da reflexão filosófica ao longo da sua tradição, leva ao questionamento
e ao interesse investigativo oriundo da vida cotidiana.
Quando, mediados praxiológicamente pelo professor, os alunos elegem e defendem os
conceitos e as ligações presentes no mapa aprendem que o conhecimento é dinâmico e o
questionamento dos colegas não desmerece o trabalho realizado, e, sim, permite aos
interlocutores aprofundar ou demonstrar o elemento que, por alguma condição, estava
implícito e que a sua explicitação traga beneficio para o entendimento do ponto abordado.
Na medida em que os alunos utilizarem mapas conceituais para integrar, reconciliar
e diferenciar conceitos, na medida em que usarem essa técnica para analisar artigos,
textos capítulos de livros, romances, experimentos de laboratório, e outros materiais
educativos do currículo, eles estarão usando o mapeamento conceitual como um
recurso de aprendizagem. (MOREIRA, 2010, p.17)
REFERENCIAS
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira chaves. São Paulo: Escala, [s.d.].
HORN, Geraldo Balduíno. Por uma mediação praxilógica do saber filosófico em sala de
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2005.
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WUENSCH, A.M. Por uma Didática da Filosofia. In: SARDI, Sérgio Augusto; SOUZA,
D. G.; CARBONARA, Vanderlei. (Org.). Filosofia e Sociedade: Perspectiva para o
Ensino da Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2007.
Há uma forte tendência entre aqueles que defendem a presença da Filosofia nos
currículos da Educação Básica, principalmente no Ensino Médio, de assumirem uma defesa
contundente apoiados no argumento, por vezes, com caráter alvissareiro, quando não, com
um teor justiceiro, por conta de sua exclusão dos bancos escolares pela Ditadura Militar. Não
se trata de uma questão de justiça nem de uma simples disputa por espaço curricular ou de
que sua presença no currículo possui uma função missionária de salvaguardar valores e ideias
da tradição filosófica. Evitar qualquer perspectiva saudosista não só é salutar como
fundamental para definir os rumos, pós 2008, da inserção e da efetiva presença da Filosofia
no Ensino Médio.
Trata-se, sim, da defesa de uma questão de política educacional pública e de
resistência a certos modelos de organização curricular que, por razões ideológicas e de
natureza política, visam a uma formação eminentemente técnica voltada para a preparação de
mão de obra com vistas tão somente ao mercado de trabalho. Ao contrário daquilo que alguns
teóricos afirmam de que a Filosofia nunca esteve antes no currículo na condição de disciplina
obrigatória, é preciso dizer que ela foi, sim, componente obrigatório do currículo em nossa
história mais recente. Foi com a Reforma Capanema, em 1942, que ela se tornou obrigatória
para os estudantes da 2ª e 3ª séries do curso Clássico e para a 3ª série do curso Científico.
Esses cursos correspondiam ao atual Ensino Médio. Com a LDB nº 4.024/61 a Filosofia
passou a fazer parte do currículo como disciplina complementar sob responsabilidade do
Conselho Estadual de Educação de cada estado. Sua exclusão definitiva acontece com a
aprovação da LDB nº 5.692/71 que tornou a formação de nível médio técnica e com caráter
de terminalidade compulsória. (CARTOLANO, 1985).
Uma vez superada, ao menos do ponto de vista da concepção, a tendência de uma
formação eminentemente técnica, voltada ao mercado do trabalho, resultante da “qualificação
para o trabalho” da LDB 5692/71, a Lei Complementar 7.044/82 aponta para uma formação,
ainda que de natureza técnica, com característica propedêutica. No lugar de “qualificação
para o trabalho” propõe “preparação para o trabalho” procurando amenizar o caráter
pragmático da qualificação compulsória. Pretende-se, ao retomar esse contexto, chamar a
atenção para um aspecto pouco enfatizado quando se analisa a presença da Filosofia como
componente curricular: de qual formação estamos falando? De qual concepção de Ensino
Médio partimos? Para onde a formação do Ensino Médio deve conduzir? Enfim, sem pensar
nessas questões, no mínimo, o debate sobre a inserção da Filosofia na matriz curricular fica
comprometido. Afinal, o que significa ensinar Filosofia para adolescentes e jovens na etapa
final da Educação Básica? Não quer dizer que a resposta a essas questões seja uma tarefa
exclusiva da Filosofia, mas que essas questões são de grande relevância também para a
Filosofia e ela não pode deixar de respondê-las.
Considerando tratar-se de uma problemática ainda pouco presente de modo efetivo
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 52
nas reflexões e no debate público acerca da presença da Filosofia na escola; considerando
também o fato de que o campo legislativo, bem como as diretrizes e orientações curriculares,
quando se referem à Filosofia, desconsideram e não estabelecem textualmente qualquer
relação entre o sentido de ensinar Filosofia e a finalidade da formação do estudante na etapa
final da Educação Básica; considerando ainda o descompasso entre a universalização da
Filosofia em todas as séries do Ensino Médio e a necessidade de se encontrar caminhos para
legitimá-la como disciplina escolar, é que nos colocamos o desafio de pensar e repensar o
“lugar” da Filosofia no currículo como ainda o “não lugar”, ou seja, como sendo ainda um
espaço em constante tensão e construção. É disso que se trata aqui.
Para melhor situar essa problemática, tomemos como referência o Parecer do
Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica nº 05/2011 que trata das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, publicado no Diário Oficial da União
(DOU) de 24/01/2012, Seção 1, página 10. Esse Parecer, além de fazer uma releitura e
incorporar praticamente todos os documentos produzidos período pós LDB/96 até a presente
data, concebe e dá origem à Resolução nº 02, de 30 de janeiro de 2012, que define as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O Parecer, ao mesmo tempo
incorpora, supera e avança conceitualmente em relação à compreensão de Educação Básica
recuperando um sentido que se encontrava presente no primeiro texto de projeto de LDB
pensado e apoiado por um grande grupo de educadores filiados a uma perspectiva
epistemológica de natureza crítica, dentre eles Dermeval Saviani e Jamil Cury. O conceito de
Educação Básica é apoiado em dois argumentos que consideramos centrais: um tomado de
empréstimo de Saviani e o outro de Cury. O primeiro afirma que
a educação integral do homem, a qual deve cobrir todo o período da Educação
Básica que vai do nascimento, com as creches, passa pela Educação Infantil, o
Ensino Fundamental e se completa com a conclusão do Ensino Médio por volta dos
dezessete anos, é uma educação de caráter desinteressado que, além do
conhecimento da natureza e da cultura envolve as formas estéticas, a apreciação das
coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de
relacionar-se com elas. (SAVIANI, in. Parecer 5/2012).
divergência entre aqueles que pensam a Filosofia e seu ensino. Pode-se afirmar que já se
estabeleceu certo consenso.
O problema começa quando se examina o que os documentos entendem por
competências e habilidades em Filosofia: ler textos filosóficos de modo significativo e ler, de
modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi
apropriado de modo reflexivo; debater posicionamentos de modo argumentativo; articular
conhecimentos filosóficos com as outras áreas do conhecimento (interdisciplinaridade);
contextualizar conhecimentos filosóficos (PCNs, 1999; PCN+EM, 2002; OCNs, 2006). Essas
habilidades estão presentes no primeiro documento e encontram-se repetidas nos dois
subsequentes.
A ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades, consideradas pelos
documentos, como específicas da aprendizagem filosófica, parece-nos um problema não só
pedagógico, mas também de ordem filosófica. Por quê? Primeiro porque a leitura, a
interpretação, a escrita e a articulação entre os conhecimentos têm a ver com os objetivos
didático-pedagógicos do processo de escolarização dos sujeitos e a função da escola como um
todo, não podendo ficar sob a responsabilidade de uma disciplina especificamente. Segundo,
esse entendimento, levado às últimas consequências, pode facilmente recair na prática da
exegese textual, estruturalismo textual tipicamente acadêmico, como finalidade última do
ensino de Filosofia, o que, no nosso entendimento, trata-se de um equívoco de compreensão
dos sentidos, finalidades e do cumprimento da função epistemológica e social da Filosofia
como componente curricular e, por conseguinte, de formação cultural dos adolescentes e
jovens que frequentam a escola. Uma coisa é o modo como se ensina e se aprende noções,
conceitos e problemas filosóficos num curso de graduação em Filosofia, outra coisa bem
diferente é o modo como se ensina Filosofia no Ensino Médio, os instrumentos e meios
utilizados que possibilitam a aprendizagem filosófica, a experiência do pensar filosófico dos
adolescentes e jovens quando entram em contato com o universo conceitual do estatuto da
História da Filosofia. Em terceiro lugar, não nos parece que, no caso da Filosofia, se consiga
efetivar a intenção que subjaz à indicação presente, tanto nos Parâmetros Curriculares (1999 e
2002) como nas Orientações Curriculares (2006), de trabalhar como o horizonte das
competências e habilidades, que é justamente a ideia de “mobilizar a cognição” diante de
problemas e dificuldades que o sujeito da aprendizagem enfrenta na produção de sua
existência na sociedade na qual se encontra inserido. Ou seja, de que forma a Filosofia, por
meio da leitura de textos filosóficos ou não, lidos de modo filosófico, contribui, efetivamente,
para desenvolver a capacidade de o indivíduo “ler o mundo” que o cerca e solucionar os
problemas concretos que necessita enfrentar todos os dias? Não se trata de desconsiderar a
importância da leitura, da escrita e da interpretação como necessárias para o exercício
filosófico. Isso seria, simplesmente, uma aberração e um total desconhecimento do modus
operandi da Filosofia. O problema está em considerar essas competências e habilidades como
ponto de chegada e não no ponto de partida do conhecimento filosófico. Trata-se antes de um
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade 56
ponto de partida. Atribuir simplesmente um sentido filosófico à leitura é o mesmo que atribuir
conhecimento a um procedimento hermenêutico, a um modo de interpretar e compreender um
fenômeno. O aprendizado filosófico, nesse caso, se limita à aprendizagem de uma
metodologia específica. Um quarto aspecto a ser considerado, refere-se ao fato de que as
referidas competências e habilidades, ao contrário do que os documentos afirmam, não
apontam para o que seria específico da Filosofia e nem estabelecem uma diferenciação em
relação às outras disciplinas. O tratamento dado à Filosofia por meio das competências e
habilidades ainda preserva, em boa medida, o mito de que a Filosofia não precisa definir o
seu “lugar”, é um saber transversal que perpassa todos os demais saberes e, por essa razão,
prescinde de um “código disciplinar”. É bem verdade que ela possui um caráter universal,
principalmente pelo fato de não ter um objeto específico como acontece com as disciplinas de
natureza científica, mas isso não quer dizer que não possua um acervo de questões, uma
terminologia própria e um método específico, que lhe dê uma identidade como disciplina
curricular. Sem que se considere tais fatores não há sentido defendê-la ou mantê-la como
disciplina da base comum do currículo.
Ao lado da questão das competências e habilidades que, no caso da Filosofia, da
forma como é traduzida nos documentos, mais confunde que esclarece, há outro aspecto que
necessita de uma análise mais acurada: trata-se da seleção ou definição dos conteúdos
curriculares de Filosofia que possam servir de referência para a elaboração de diretrizes
específicas das Secretarias de Estado e dos projetos pedagógicos de cada escola, bem como o
planejamento das aulas de Filosofia pelo professor responsável em ministrá-las. Essa é uma
questão polêmica do atual debate sobre o tema. As proposições e defesas perpassam
diferentes concepções e correntes filosófico-pedagógicas. É possível identificar ao menos três
distintas compreensões, quais sejam: a) posição mais radical que defende a definição de
temas/conteúdos mínimos a partir da História da Filosofia; b) posicionamentos ultraliberal e
pós-moderno em defesa de uma total liberdade de organização dos conteúdos, deixando a
definição sob a responsabilidade de cada professor/a; e, c) entendimento de que é necessário
definir alguns critérios mínimos que possam servir de referência para a organização curricular
em todo o território nacional. O terceiro entendimento, por diversas razões, parece-nos mais
adequado e plausível. Mais adiante será retomado e defendido.
Essas concepções, de certa forma, também se encontram presentes nos documentos
mencionados. Os PCNs de Filosofia (1999) assumem a posição “b”, na medida em que não
apresentam nem critérios, nem indicam conteúdos mínimos para organização curricular. Já os
PCN + EM (2002) e as OCNs (2006) situam-se mais no item “a” uma vez que apresentam
conteúdos de referência para a organização dos conteúdos. Os PCN + EM (2002) apontam
para seis grandes eixos temáticos subdivididos em temas específicos. Conteúdos estruturantes
baseados em temas-problemas produzidos ao longo da História da Filosofia: 1) Autonomia e
liberdade; 2) As formas da alienação moral; 3) Ética e política; 4) Filosofia, mito e senso
comum; 5) Filosofia, ciência e tecnocracia; 6) Filosofia e estética. As OCNs (2006) vão mais
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.49-60, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
57 Filosofia, ensino e currículo: da legalidade à legitimidade
Conclusão
identidade. É disso que se trata aqui. A Filosofia como conhecimento, uma vez que não possui
um objeto específico, se institui e só pode existir a partir de um problema que é, de alguma
forma, situado historicamente e se compreende um tema/objeto da Filosofia. Por exemplo, o
tema da liberdade é um tema-problema que foi tratado e analisado no período clássico por
Aristóteles de modo substantivamente diferente, se comparado com a compreensão
contemporânea realizada por Sartre. As implicações históricas são imprescindíveis para
problematizar o tema uma vez que se trata de outra sociedade, porque são outros valores. O
que não quer dizer que não é possível encontrar pontos comuns e mesmo entendimentos
passíveis de universalização. Assim sendo, todo conteúdo filosófico será sempre histórico,
temático e cunhado a partir de um problema relacionado à existência humana. Aliás, esse
caráter problematizador tem mais a ver com o campo metodológico, com o caráter
pedagógico – da mediação dos conteúdos do que, propriamente, com a seleção e organização
curricular dos conteúdos filosóficos. Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que, de fato, não há
ensino ou prática pedagógica filosófica sem o caráter essencialmente problematizador que dá
origem e identidade ao conceito filosófico. O método filosófico é, em si, essencialmente
problematizador. Sob essa dimensão estamos plenamente em acordo.
REFERÊNCIAS
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
63 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 64
Vontade à Potência é a tese que busca explicar nossa vida instintiva como a
elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade28. No embate por mais potência, o
organismo enfrentaria quaisquer barreiras para crescer e ampliar seu domínio, assim como a
dominação, incorporação e assimilação de elementos.
Segundo a dinâmica da Vontade à Potencia, um corpo interpreta o “mundo exterior”
com desígnio ou tendência a expandir suas forças, elege o que lhe proporciona o maior
quantum 29 de potência, incorpora, assume o mais fraco como função de si, luta para dominar
o mundo circundante. “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o
seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente vontade de poder e nada mais.” (NIETZSCHE,
2003, P.43)
Para o filósofo alemão, Vida é jogo de forças, sendo o corpo uma relação de impulsos
que combatem entre si por dominação e o mundo em sua dinâmica natural, também é dito
como o jogo de forças – Vontade à Potência. No §36 de Além de Bem e Mal, 1885-6, lemos:
“o mundo é visto de dentro, e definido conforme as relações e os graus de força do
organismo.” Sob esse aspecto o ato de interpretar, filosofar, etc., também seriam formas de
domínio.
Essa nova concepção filosófica aponta o corpo como lugar da determinação de
sentido, donde nossas interpretações de mundo derivam. Nietzsche se posiciona como um
“cético criador, interpretante”, pois não acredita que seja um “instinto do conhecimento” o pai
da filosofia, mas algo diverso, que apenas se utilizou desse instinto, como instrumento30.
A teoria da Vontade à Potência devolve o homem ao solo de suas estratificações. A
partir da compreensão de corpo como multiplicidade de impulsos, hierarquia, jogo de forças,
é pertinente dar relevo ao questionamento nietzschiano a respeito do próprio processo
consciente, já que, segundo os parâmetros do filósofo, este emerge do jogo dinâmico vital.
Em O Crepúsculo dos Ídolos, 1889, Nietzsche escreve:
Outra tomava-se a transformação, a mudança, o vir-a-ser em geral como prova da
aparência, como sinal de que algo tinha se apresentado que necessariamente nos
conduzia ao erro. Hoje, ao contrário, vemos até que ponto o fato de o preconceito da
razão nos obriga a fixar a unidade, a duração, a substancia, a causa [...].
(NIETZSCHE, 2000, P.28)
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
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Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 66
permanência e fixidez das palavras.
Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a outra, é certo que o
conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais,
por um esquecer-se do que é um distintivo, e desperta então a representação, como
se na natureza, além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’(...). (NIETZSCHE,
2005, P.56)
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Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 68
consideramos sua tese da dinâmica da Vontade à Potência, mas é justamente a partir da
filosofia schopenhaueriana com sua terminologia Vontade – Wille. A crítica à noção de
Vontade serviria de alavanca para a construção da interpretação acerca do tema.
Schopenhauer parte da tese kantiana, especialmente da noção de fenômeno
(naturalmente oposto à coisa em si), assim, postula que o mundo não é mais que
representação; esta por sua vez, conta com dois polos inseparáveis: de um lado o objeto,
constituído a partir do especo e tempo, de outro, a consciência subjetiva acerca do mundo,
sem a qual este não existiria como tal.
Segundo Schopenhauer, ao tomar consciência de si, o homem se compreende como
um ser movido por aspirações e paixões, estas constituem a unidade da Vontade,
compreendida como o princípio norteador da vida humana. Voltando o olhar para a natureza,
concebe que esta mesma Vontade está presente em todos os entes, figurando como
fundamento de todo e qualquer movimento. Assim, a Vontade corresponderia à coisa em si;
ela é o substrato último de toda realidade, assumindo o caráter de fundamento Uno, eterno e
imutável.
Para Schopenhauer, a Vontade não se manifesta como um princípio racional, mas é
impulso cego, que leva todo ente a desejar sua preservação; é também a causa de todo o
sofrimento, porque lança os entes em uma perpétua cadeia de aspirações, condicionando-os
ao sofrimento de permanecer sendo algo que jamais consegue completar-se.
A consciência humana seria uma mera superfície, tendendo a encobrir a
irracionalidade inerente à Vontade e conferindo causalidade a seus atos e ao próprio mundo;
contudo, através da experiência dos sentidos o homem teria acesso a essa Vontade de Vida,
inerente a todas as coisas e chegaria à compreensão de que a vida é dor e sofrimento.
Insatisfeito com as conceituações e concepções do filósofo pessimista, Nietzsche o
acusa de apenas ter feito o que os outros filósofos já costumavam fazer, tomar um preconceito
popular e exacerbá-lo37.
Para Schopenhauer, a Vontade como coisa em si é o substrato da realidade, causa do
mundo; os moldes de seu pensamento dão continuidade aos dualismos comuns na história da
filosofia – ele ainda postulou uma verdade por detrás de todo acontecimento e de toda ação.
Contraposta a essa visão, Nietzsche trabalha com a ideia de que ainda que não
conhecêssemos nada de real, ao estilo de ‘essências’, além de nosso mundo de desejos e
anseios, isto, por si mesmo, deveria ser encarado como sintoma; em A Genealogia da Moral,
1887, aponta – “Não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do
devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.” (NIETZSCHE, 2004,
P.36)
Nietzsche denuncia que essa vontade tomada como fundamento, só tem unidade,
compreensibilidade, segundo os parâmetros conceituais filosóficos, que estão sempre a fins
da vontade de verdade, da necessidade de fixar conceitos que por si mesmos descrevam
____________________
37 Cf. NIETZSCHE, 2003, P.23-4.
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69 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
homem e mundo. “O povo duplica a ação, na verdade, quando vê o corisco relampejar, isto é
a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito.”
(NIETZSCHE, 2004, P.36)
Dado o caráter do entendimento, viciamo-nos em predicar todo acontecimento
segundo a lei da causalidade, concebemos todo acontecimento como decorrente de uma causa
(outro acontecimento) que faz o acontecimento ser efeito, que é sempre causa de outro
efeito...
Mesmo influenciado por um filósofo metafísico tal qual Schopenhauer, a
autenticidade do pensamento em Nietzsche aflora elementos que o distinguem da tradição
filosófica; contudo suas críticas ganham maior relevância quando pensadas à luz da dinâmica
da Vontade à Potência.
A expressão Vontade à Potência (Wille Zur Macht) é mencionada pela primeira vez na
obra Assim Falou Zaratustra, 1883 – “Sobre cada povo está suspenso um quadro de bens. É o
quadro, se vê, das suas vitórias sobre si mesmo; é a voz de sua Vontade de Poder“38
(NIETZSCHE, 1977, p.74)
O referido discurso conta uma das histórias de Zaratustra, que após conhecer muitos
povos, percebeu a diferença do que cada um deles valorava como bem e mal. Deste modo o
filósofo aponta para o diálogo de Zaratustra – esses valores foram postulados segundo as
próprias lutas e superações de um povo, de modo que seus valores apareciam como sintomas
das forças que os levavam a valorar o bem e o mal.
No mesmo discurso encontramos ainda – “Na verdade os homens se deram a si
próprios todo bem e todo mal. [...] Não o receberam, não o encontraram, não lhes caiu como
uma voz do céu.” (NIETZSCHE, Ibid.) Nietzsche desloca a ação avaliativa para fora dos
âmbitos comumente dados, segundo a sua filosofia, o avaliar, o querer dos homens, não lhes
foi dado de nenhum modo externo.
A característica da Vontade à Potência é que existe impulsos numa dinâmica de jogo e
luta buscando ampliar seu campo de ação; juntemos a isto o proclame do caráter ‘terreno’ de
sua efetivação. Adicione aos fatos a seguinte passagem: – “Povos suspenderam outrora sobre
si uma tábua de bens. O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos
essas tábuas...” (NIETZSCHE, 1977, P.75)
No discurso em que pela primeira vez a expressão Vontade à Potência é utilizada,
deparamo-nos com um contexto em que esta aparece vinculada a duas tendências – o amor
que quer dominar e o amor que quer obedecer. Sendo Nietzsche um ferrenho crítico dos
dualismos na filosofia, qual seria o sentido deste par de opostos?
Em Dos Mil e Um Fitos, Nietzsche apresenta o conceito de Vontade à Potência como
decisivo no sentido das avaliações/valorações... Para as ações do homem. Questionamos
então, – de que modo “o amor que quer dominar e obedecer” se relaciona à carga do
____________________
38 O termo Wille Zur Macht possui diversas traduções entre as edições brasileiras e portuguesas. Nossa opção
encontra-se justificada na nota quatro.
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Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 70
conceito? Que significa dizer que essas formas de amor “criaram juntas as tábuas de valor”?
O que Nietzsche está dizendo através da palavra amor?
Considerando o estilo metafórico em que o filósofo habita – que sentido se pode dar à
palavra amor? Encontramos um indicativo na seguinte passagem de A Gaia Ciência, (1982) –
Das coisas que chamamos de amor: “Nosso amor ao próximo, não é ele uma ânsia por nova
propriedade?” (NIETZSCHE, 2004, P.65) Por outro lado, os dicionários nos dizem que o
amor é sentimento que induz a aproximar, sentimento intenso de atração, e de modo mais
geral, o amor é força expressa como disposição afetiva.
Podemos então dizer que as disposições afetivas – obedecer e comandar – criam
juntas as tábuas de valor; mas permanece a busca – em que disposições como ‘obedecer’ e
‘comandar’ se ligam a Vontade à Potência?
Voltamos então ao discurso, para vislumbrar a estrofe onde a expressão acontece:
“Sobre cada povo está suspenso um quadro de bens, é o quadro, se vê, de suas vitórias sobre
si mesmo; é a voz de sua Vontade de Poder.” Nietzsche também aponta para “vitórias sobre si
mesmo”; e novamente questionamos – de que modo atribuímos vitória? A partir de que se dá
alguma vitória? Vitória é aquilo que obtemos através de uma disputa, um embate ou uma
luta.
Partindo das respostas de nossos questionamos, podemos enfim oferecer uma
interpretação ao texto nietzschiano – as vitórias sobre si mesmo são vitórias da disputa entre
afetos de comando e subordinação, forças que combatem buscando a imposição de sua
própria perspectiva, e como força, constituem e se movimentam de tal maneira, que
“significam” a Vontade à Potência. Em Genealogia da Moral (2009), o filósofo expressa:
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar,
um querer-vencer, um querer subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos,
é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum
de força equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade – melhor,
nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer atuar [...].
(NIETZSCHE, 2004, P.36)
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71 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
dominando, ordenando e colocando a seu serviço as outras forças impulsivas ali presentes39.
A luta, jogo, relação entre os impulsos é inerente à formação corpórea, e é o fio
condutor que impele o homem às suas decisões, escolhendo entre útil e inútil, entre o bem e o
mal, segundo a estrutura constituída na dinâmica de seus impulsos mais primitivos; assim as
valorações humanas atuam como meios de expressão, como sintoma de decadência ou
aumento de potência.
Segundo essa filosofia o próprio ato de interpretar seria expressão de uma força que
busca a imposição de sua própria perspectiva.
A vontade voltada para o poder interpreta: na formação de um órgão trata-se de uma
interpretação: delimita, determina graus, diferenças de poder. Meras diferenças de
poder ainda não poderiam perceber a si mesmas como tais: é preciso haver aí um
algo-que-quer-crescer, o qual interpreta todo e qualquer outro-que-quer-crescer
segundo o seu valor. Iguais nisso – Interpretação é ela mesma, na verdade, um meio
de se apoderar de algo. O processo orgânico pressupõe permanente interpretar.
(NIETZSCHE, 2002, P.159).
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Para onde conduz o Martelo de Nietzsche? 72
inteligível – seria justamente ‘vontade de poder’ e, nada mais.” (NIETZSCHE, 2003, P.43)
Ao alargar o campo de ação de tais impulsos beligerantes o filósofo afirma que nossa
compreensão de mundo, o que podemos perceber no mundo é o caráter fundamentalmente
dinâmico deste. Diferente das “oposições verdadeiras” tais como encontramos no conceito de
Vontade em Schopenhauer, a Vontade à Potência não é um fundamento que emana impulsos
ou um estado de causa ou efeito, mas é a expressão da própria dinâmica de impulsos como
pluralidade inumerável em que o ritmo é de mudança contínua, incorporando ou eliminando,
mas sempre desfigurando seus componentes.
A proposta nietzschiana pode nos parecer estranha porque tradicionalmente
encaramos o mundo sob a luz e lógica da causalidade, não somente pelo hábito da crença,
mas por nossa viciada
[...] incapacidade de conseguirmos interpretar um acontecimento de outro modo que
não seja como um acontecer a partir de intencionalidades. É a fé no vivente e
pensante côo o único agente atuante – na vontade, na intencionalidade -, de que
todo acontecer seja um agir, de que todo agir pressuponha um agente atuante; é a
crença no ‘sujeito’. (NIETZSCHE, 2002, P.156)
REFERÊNCIAS
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
73 Para onde conduz o Martelo de Nietzsche?
NIETZSCHE, F.W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. Ed.;
tradução: Paulo César de Souza. São Paulo – SP: Companhia das Letras. 2003;
_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução: Mario
da Silva. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasiliense, 1977.
_____. O crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o martelo. 2. Ed.; Tradução:
Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2000.
_____. A Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.
_____. Sabedoria para depois de amanhã. Tradução: Karina Jannini. São Pauo, SP:
Martins Fontes, 2005.
R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.3, n.3, p.61 -72, Jun/Jul./Ago./Set. 201 3
Seção IV - Resenhas / Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos 74
SEÇÃO IV – RESENHAS
HORN, G. B. Ensinar Filosofia: pressupostos teóricos e metodológicos. Ijuí: Unijuí, 2009.
torna formativa, na medida em que ela permite ao jovem dar-se conta do lugar que ocupa na
realidade histórica do mundo. E na sequência de sua obra, por meio da problematização das
diferentes abordagens sobre a filosofia e seu papel formativo, o autor nos conduz a
compreensão de que nenhuma ação humana se realiza fora de um contexto social, o homem
não existe como indivíduo isolado. Todo seu agir se dá na trama de relações sociais, na
construção coletiva e na condução conjunta da existência concreta dos homens. Daí a
dimensão político-social do agir e do existir humanos, que torna necessário para todos o
desenvolvimento de uma sensibilidade valorativa ao mesmo tempo em que é epistemológica.
No aspecto mais significativo da obra, Horn apresenta a organização do saber
filosófico em sala de aula problematizando as possibilidades de estruturação e organização do
conteúdo disciplinar a partir de grandes temas ou da história da filosofia. Na sequência do
capítulo o autor nos apresenta as três principais tendências manifestas nas práticas docentes
em relação à organização do conteúdo filosófico, explicitando as vantagens e problemas de
cada perspectiva:
1. A primeira possibilidade apresenta o ensino de filosofia a partir da História da
Filosofia, centrando a organização do conteúdo na ordem histórica do
desenvolvimento dos sistemas filosóficos;
2. A segunda possibilidade apresenta o ensino de filosofia por temas tendo a História
da Filosofia como referência, pois o professor contextualiza a temática desenvolvida
sem submeter e nenhum tipo de critério cronológico, epistemológico ou de sistemas;
3. A terceira possibilidade apresenta a organização do conteúdo filosófico em temas
centrados no cotidiano do aluno, sem preocupação, por parte do professor, de
estabelece relações com os grandes sistemas filosóficos e os autores clássicos da
Filosofia.
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