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O cinema aliado ao ensino de filosofia

Daiane Cristina Faust1

Se analisarmos o retrato atual da educação básica no Brasil, sobretudo das


escolas públicas, constataremos muitas deficiências, dentre elas a metodologia de
ensino adotada pela maioria das instituições. Em plena era digital nota-se um
atraso considerável no que diz respeito à inclusão de aparatos tecnológicos. Tal
atraso se deve em parte à falta de recursos financeiros, mas também à resistência
apresentada por educadores atrelados ao método tradicional de ensino, que
consiste, basicamente, em aulas expositivas, nas quais o professor se vale apenas
de giz, quadro-negro e fala.
No caso da filosofia, a situação de ensino é ainda mais delicada. Primeiro,
porque ela passou a fazer parte do currículo do ensino médio como disciplina
obrigatória há menos de cinco anos 2, tempo este que parece não ter sido suficiente
para nivelar o grau de relevância frente às demais. Segundo, porque o estudo de
filosofia pressupõe habilidades que os alunos não apresentam, tais como
capacidade de interpretação e avaliação não apenas de textos propriamente
filosóficos, mas de qualquer gênero. Terceiro, porque a carga horária semanal da
disciplina é insignificante se atentarmos para a vastidão de temas e, mais do que
isso, para a dedicação que cada assunto requer para que seja bem compreendido.
Diante desses problemas, o cinema surge como um recurso didático
poderoso na complementação do ensino. O recurso audiovisual aproxima a escola
da realidade do educando, tornando o ambiente escolar mais agradável. Se
utilizado de forma prudente e bem orientada, este recurso pode assumir, dentre
outros papéis, o de exemplificador de teorias ou problemas filosóficos; fornecedor
de conceitos passíveis de análise; estímulo no que diz respeito ao interesse por
determinada temática. Pode também criar relações de interdisciplinaridade,
aproximar a filosofia da literatura, da história, da língua portuguesa etc.

1
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência – UFRGS/Filosofia, de abril de 2010 a dezembro de 2011.

2
Lei 11.684/ de 02 de junho de 2008.

1
Segundo Nielson Ribeiro Modro, coordenador do projeto Cineducação3 da
UNIVILLE – Universidade da Região de Joinville/ SC -, “a linguagem do cinema é
uma ferramenta de auxílio didático importante ao professor, desde que ele saiba
como utilizá-la” (MODRO, 2008, p. 15 - grifo meu). Em geral, os adolescentes, que
constituem o público alvo do ensino de filosofia na educação básica, se interessam
por cinema. Nesta direção, o cinema funciona como um dispositivo sensorial de
grande valia: por meio de imagens em movimento, dos diferentes enfoques de
câmeras, dos recortes, da linguagem peculiar e da multiplicidade de cores, luzes e
sons o estudante é cativado, afetado emocionalmente. Cabe então ao professor
fornecer os subsídios necessários para que o aluno desperte para a reflexão.
Pode-se contestar até que ponto o uso do cinema na escola merece
credibilidade. Sabe-se que em muitas instituições de ensino este recurso é inserido
não com o intuito de complementar o trabalho do educador, mas para substituí-lo
em suas ausências, ou mesmo para “aliviar” o seu trabalho. Nos casos em que os
objetivos da utilização do recurso audiovisual não são explicitados para os
estudantes, ou quando fica claro que não há comprometimento por parte do
professor com o ensino-aprendizagem de sua disciplina, não há avanço intelectual.
Sem planejamento, sem atentar para a especificidade do público alvo e sem
esclarecer os propósitos envolvidos nesta metodologia, o professor, seja de
filosofia seja de qualquer outra área, jamais terá sucesso em suas atividades.
É preciso ter clareza quanto ao papel do cinema em sala de aula. Recorrer à
linguagem cinematográfica não anula o uso da linguagem tradicional da escola, isto
é, não impede que o professor faça uso de textos escritos ou de exposições orais.
Trata-se de um método auxiliar de ensino, não substituto. Em artigo publicado no
Teaching Philosophy4, J. Lenore Wright e Anne-Marie Bowery (Baylor University –
Waco/Texas) afirmam:
Há alunos capazes de assimilar as informações apenas através de uma
leitura textual ou ouvindo um discurso, mas muitos deles são mais bem
orientados visualmente. O uso de filmes torna a filosofia mais acessível a
este tipo de aluno - visual - e funciona como um gancho, um meio de
compreensão da leitura material (WRIGHT; BOWERY, 2003, p.24 -
tradução livre).

3
Confira: http://www.modro.com.br/cinema/

4
Periódico inglês de edição trimestral, dedicado exclusivamente à discussão teórica e prática de ensino e
aprendizagem da filosofia.

2
De acordo com Desidério Murcho, a leitura de um texto filosófico requer
antes de tudo a identificação do (s) problema (s), bem como as respostas que a ele
(s) se apresentam (MURCHO, 2002). O que Murcho parece defender é que o
estudo de filosofia por meio de textos clássicos deve ser precedido por um contato
introdutório com os grandes problemas da filosofia e as tentativas de resolução
apresentadas pelos filósofos. É preciso ter uma atitude crítica perante o texto, mas
para que isso seja possível o aluno deve compreender minimamente o que está em
causa, e tal compreensão depende de um contato prévio e simplificado com o
problema (MURCHO, 2002).
Ciente da dificuldade apontada acima, Julio Cabrera defende o uso do
cinema como um recurso voltado à iniciação filosófica. Ele sugere, entre outros
exemplos, uma introdução à concepção aristotélica de substância, seguida pela
crítica lockeana através da análise da personagem central dos filmes Batman I e II
(EUA, 1989, 1992), de Tim Burton. Cabrera procura chamar atenção para a
distinção entre Batman e Bruce Wayne. Cada personagem possui um conjunto de
propriedades particulares. Nesse contexto se coloca a pergunta: “como sabemos
que o Bruce Wayne é o Batman, apesar de todas as diferenças?”. Duas respostas
são apresentadas à questão. A primeira diz que é possível saber que um é o outro,
por que, apesar das propriedades se alterarem, existe algo que permanece o
mesmo no qual as propriedades se apóiam. Essa resposta recorre a uma noção de
substância tipicamente aristotélica. A segunda resposta diz que não é necessário
pressupor um substrato que sirva de base para as propriedades, basta ter presente
a noção de uma autoconsciência que reconhece como seus os atos que realiza.
Grosso modo, essa seria a explicação de Locke ao problema. Batman e Bruce
Wayne, em uma leitura lockeana, são o mesmo sujeito, pois há uma
autoconsciência que reconhece como seus os atos de um de outro. Assim, mesmo
que todas as propriedades mudem tornando-se Bruce Wayne irreconhecível como
Batman, a autoconsciência permanece igual identificando-os como o mesmo
(CABRERA, 2006).5 Este exemplo de filme parece casar perfeitamente tanto com o
interesse dos estudantes de ensino médio, quanto com o propósito do professor de
filosofia: envolve ação e humor, mas também possibilita a análise de um conceito
central na história da filosofia.
5
Colaboração de Artur Bezzi Günther.

3
Se considerarmos ainda a baixa carga horária dispensada à filosofia pelas
escolas, o cinema se mostra novamente como um aliado: por que não tornar o
dever de casa uma prática prazerosa? Eis um bom meio de otimizar o tempo: o
professor utiliza-se do espaço da aula para orientar previamente os alunos na
atividade a ser exercida, chamando a atenção para determinados aspectos
presentes no recurso audiovisual e convida-os posteriormente à discussão e/ou
produção textual. Cabe ressaltar que, mais do que um ato prazeroso, assistir a um
filme mediante a devida orientação permite o desenvolvimento da capacidade
crítica do estudante. Um filme antes visto de modo ingênuo ou desinteressado, a
partir da orientação filosófica adequada passa a ter outro significado e, ao se tornar
um hábito, a leitura crítica das imagens postas em movimento na tela se expande
para outros campos de expressão, como é o caso da escrita.
6
Incutir nos estudantes o hábito da leitura de imagens presentes nos filmes
pode ser o passo inicial para desenvolver uma melhor apropriação da linguagem
escrita. Segundo Stanley Cavell, “a leitura não é uma alternativa para ver, mas um
esforço para detalhar uma maneira de ver algo mais claramente, uma interpretação
de como as coisas são e porque elas aparecem como e na ordem que o fazem”
(CAVELL, 1976, pg. XII). Ler uma imagem fílmica significa não apenas olhar para
ela, mas sim interpretá-la, analisar o seu contexto, extrair conceitos e estabelecer
ligações entre eles. Obviamente, essa teoria se aplica a pessoas já alfabetizadas,
isto é, a estratégia de utilização das imagens cinematográficas no ensino de
filosofia pressupõe as habilidades de leitura e escrita. Nesse sentido, a
interpretação e compreensão dos conceitos nas imagens é algo que só tem a
somar à compreensão que um aluno já tem (ainda que em pouca medida) dos
conceitos nos textos filosóficos.7
Atualmente, o professor de filosofia já pode contar com uma bibliografia
especializada na relação cinema-filosofia. Em catálogo, é possível encontrar títulos
como O Cinema Pensa: Uma Introdução à Filosofia Através dos Filmes (Rocco,
2006) e De Hitchcock a Greenaway (Nankin Editorial, 2007), ambos de Julio
Cabrera; Cinefilô: as Mais Belas Questões da Filosofia no Cinema (Jorge Zahar,
6
Cabrera utiliza-se da expressão “leitura imagética” para se referir ao processo de leitura das imagens
cinematográficas. Segundo ele, a leitura deve resultar em uma “compreensão logopática”, uma vez que
envolve tanto um elemento racional, lógico (logos) quanto um elemento pático, afetivo (pathos) (CABRERA,
2006).

7
Colaboração de Márcia Luisa Tomazzoni.
4
2008), de Ollivier Pourrioul. Outra dica é a coletânea de textos da série “Filosofia
Popular”, organizada por William Irwin, professor de filosofia no King’s College
London (Englad / United Kingdom), da qual fazem parte títulos como Matrix: Bem-
Vindo ao Deserto do Real (MADRAS, 2003), Os Simpsons e a Filosofia (MADRAS,
2007), Batman e a Filosofia – O Cavaleiro das Trevas da Alma (MADRAS, 2008),
House e a Filosofia – Todo Mundo Mente (MADRAS, 2009) e Alice no País das
Maravilhas e a Filosofia – Cada Vez Mais e Mais Curioso (MADRAS, 2010).
Desde 2010, o PIBID Filosofia/UFRGS organiza e executa oficinas de
Filosofia para alunos do Ensino Médio da Escola Técnica Estadual Senador
Ernesto Dornelles, localizada na cidade de Porto Alegre, RS. Cerca de 50% das
oficinas já realizadas utilizou o cinema como recurso didático em sua abordagem.
O episódio intitulado The Tyrant 8, do seriado médico norte-americano House MD,
por exemplo, serviu para suscitar uma discussão acerca do Relativismo Moral.
Para abordar o Relativismo Epistêmico, o grupo recorreu ao episódio The Eletric
Can Opener Flutuation9, da série The Big Bang Theory. Em um debate acerca do
Relativismo Estético foi inserida a animação The Simpsons, episódio Mom and Pop
Art10. O filme The Matrix11 serviu para introduzir o Ceticismo e questões acerca do
Conhecimento.
No início deste artigo apontei três problemas presentes no quadro atual do
ensino de filosofia no país. O primeiro deles diz respeito à recente obrigatoriedade
da disciplina no ensino médio, que ainda não é compreendida como algo essencial
na construção intelectual dos estudantes. Quanto a essa questão, julgo não haver
muito que fazer. Cabe aos profissionais da área realizar seu trabalho com
comprometimento e esperar que isso inspire o amadurecimento da concepção
popular acerca da filosofia. O segundo problema refere-se à ausência de certas
habilidades por parte dos estudantes devido à deficiência na educação. Conforme
dito anteriormente, o recurso audiovisual pode funcionar como um ponto de partida
para o desenvolvimento de tais habilidades: ler e interpretar imagens em
movimento nada mais é que um exercício introdutório de leitura e compreensão
textual. O terceiro problema, que aponta para a baixa carga horária dispensada

8
4º episódio da 6ª temporada, FOX, 2009. Disponível em locadoras.
9
1º episódio da 3ª temporada, CBS, 2010. Disponível em locadoras.
10
19º episódio da 10ª temporada, FOX, 1999. Disponível em locadoras.
11
EUA, 1999. Roteiro de Andy Wachowski e Larry Wachowski. Disponível em locadoras.

5
pelas escolas ao ensino de filosofia, pode ser driblado pelo professor também
fazendo uso do cinema: o trabalho desenvolvido em sala de aula pode sutilmente
ser estendido ao cotidiano dos alunos, enriquecendo intelectualmente uma simples
ida ao cinema ou direcionando a atenção do indivíduo ao assistir um seriado da
televisão, por exemplo.

Referências:

Livros:
CABRERA, J. O Cinema Pensa: Uma Introdução à Filosofia Através dos Filmes.
Rio de Janeiro:Rocco, 2006.
CAVELL, Stanley. The World Wiewed, Reflections on the Ontology of Film. Englad:
Harvard University, 1979.
MODRO, N. R. Nas Entrelinhas do Cinema. Joinville: Univille, 2008.
MURCHO, D. A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. 1ª Ed. Lisboa: Plátano
Edições Técnicas, 2002.

Artigos:
WRIGHT, J. L; BOWERY, A.M. Socrates at the Cinema: Using Film in the
Philosophy Classroom. Teaching Philosophy, 2003. Acesso em 26 de Junho de
2011, disponível em http://www.secure.pdcnet.org/teachphil/Teaching-Philosophy.

Outros:
Lei 11.684. (2 de Junho de 2008). Acesso em 22 de Abril de 2011, disponível em
http://www.planalto.gov.br.

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