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Lembrar a psicanálise*

ebp.org.br/correio_express/2020/05/08/lembrar-a-psicanalise/

Por Gil Caroz


Se houvesse somente o inconsciente e o sintoma; se não houvesse o falasser e o sinthoma; se a
metáfora do sintoma fosse apenas “o envelope formal do acontecimento de corpo” [1]; aí, sim,
poderíamos imaginar sessões analíticas realizadas unicamente por Skype, Zoom ou WhatsApp. Nesse
caso, a psicanálise participaria plenamente da semblantização do mundo e cessaria de “fazer o
paciente esquecer de que se trata apenas de palavras” [2]. É a ignorância das elaborações de Lacan
que faz pensar que basta falar para que haja tratamento analítico, pouco importando a presença dos
corpos.

A pequena experiência de trocas, por meio de comunicações à distância com analisantes, que
acumulamos nos últimos dias, o confirma. Essas conversas são frequentemente bem necessárias. Elas
mantêm o laço, lembram que havia outrora um aperto de mãos, que o corpo do analisante chegava à
sessão para ser deixado em suspensão a fim de que o sujeito, despojado da rotina da sua realidade,
pudesse se transformar, na medida do possível [3], em puro emissor de palavras.

Essas sessões virtuais permitem, eventualmente, confiar ao analista um sonho, um lapso, um ato
falho, a exacerbação de um sintoma, e, ao analista, cabe responder por uma interpretação que faça
sentido. Isso não impede que essas operações sejam da ordem de uma “elucubração de saber sobre um
real” [4].

Uma vez que admitimos que o real e o gozo são o resultado de um encontro entre o significante e o
corpo falante [5], somos levados a constatar que a presença é indispensável para tocar o real. Como
ressalta Jacques-Alain Miller [6], se o corpo é posto no divã para ser colocado entre parênteses e se
ausentar como imagem, é justamente essa ausência correlata ao princípio da abstinência que torna
presente o real da não-relação sexual. Além disso, o corpo deve certamente estar presente para que a
interpretação fora do sentido possa tocá-lo. Muitos analisantes se lembram de alguns gestos de seus
analistas que produziram neles algum acontecimento de corpo, que transformaram profundamente
suas vidas, que extraíram um pedaço de gozo e tiveram um efeito real. Os mesmos gestos feitos diante
de uma câmera e transmitidos por Skype ou Zoom, teriam simplesmente um efeito cômico. É porque o
gozo, na medida em que é encavilhado no corpo, não pode ser extraído por contumácia.

Isso não impede que, nesse caso, uma dialética seja visada. Se a psicanalise não tem standards, ela tem
verdadeiramente princípios [7]. A presença dos corpos do analisante e do analista na sessão analítica
pode ser considerada como um de seus princípios. Ora, aderir inteiramente aos nossos princípios é
transformá-los em standards. Nesse período de confinamento, em que a possibilidade de encontro dos
corpos é praticamente reduzida a zero, não somente por ser interdita, mas também por ser impossível
que ela se dê sem riscos, o uso dos meios de comunicação à distância parece ser indicado em alguns
casos, com a condição de que tenhamos uma ideia do que fazemos.

Uma prática de consultas através desses meios, em um CPCT, por exemplo, não fere o princípio da
presença necessário ao tratamento analítico, pois não consideramos que uma conversa telefônica seja
um tratamento. Apoiamo-nos, antes, sobre um princípio forjado por J.-A Miller: “não há
contraindicações ao encontro com o psicanalista” [8]. Em outras palavras, se o tratamento analítico é
contraindicado em alguns casos, o encontro com um psicanalista não o é, necessariamente.
Parafraseando esse princípio, digamos que em momentos particulares não há contraindicação a uma
troca entre um analista e seus analisantes através dos meios de comunicação à distância.

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Éric Laurent propõe “servir-se do Skype com a condição de prescindir dele” [9]. Essa proposição faz
eco com o uso do Nome-do-pai que Lacan propõe após o desvalorizar e o tornar puro semblante:
prescindir do Nome-do-pai com a condição de nos servirmos dele [10]. Skype e outros meios de
comunicação à distância, sinthomas da cultura de nosso tempo, podem ser considerados como uma
ponte construída sobre a não-relação sexual, com a condição de que se possa, em seguida, prescindir
dela, ou seja, com a condição de que uma presença se torne possível em outro momento. A conversa
por Skype não equivale ao encontro presencial, ela é a sua evocação; se ela não pode ser considerada
como uma sessão analítica, ela pode se inscrever como um lembrete de um encontro possível [11].

Esse lembrete da presença toma sentido se considerarmos que, em psicanálise, o tempo do sujeito é
lógico, e não objetivo. Como enfatiza J.-A. Miller, o tempo lógico desmente o valor de simples
evidência que é dado à sucessão no tempo objetivo. É uma “temporalidade singular que o esquema
retroativo de Lacan comporta […], uma reeleição das relações do anterior e do posterior” [12].

Podemos, portanto, considerar que uma chamada telefônica constitui uma evocação de uma presença
que teve lugar no passado ou que terá lugar, eventualmente, no futuro.

Não sabemos quanto tempo vai durar a catástrofe e as medidas de confinamento que dela decorrem.
De todo modo, a crise dura no tempo, um tempo que é objetivo, e é aí que parece haver interesse em
introduzir a temporalidade subjetiva e lógica contra a temporalidade objetiva e sucessiva. Daí a
importância da noção de lembrança: lembrar a presença, sem querer fazer equivaler o lembrete com a
própria coisa. As incidências, nesse caso, são clínicas, mas também políticas. Trata-se de garantir que
a psicanálise não seja esquecida.

Tradução: Yolanda Vilela


*Publicado originalmente em “L’Hebdo-Blog” e gentilmente cedido pelo autor para a Correio Express.

Notas
[1] Miller J.-A. “O Inconsciente e o corpo falante”. Disponível em:
http://www.congressoamp2016.com/uploads/abeaf2fa1ca41710e5a2eeb1fbc9c4035d1ecd6e.pdf
[2] Lacan J. A direção do tratamento. In:Escritos. Rio de Janeiro, 1998, p. 592.
[3] Miller J.-A. « Le divan. XXIe siècle. Demain la mondialisation des divans ? Vers le corps portable», entretien,
Libération, 3 juillet 1999, disponible sur internet. Disponível em: https://www.liberation.fr/cahier-
special/1999/07/03/le-divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable-par-jacques-
alain-m_278498
[4] Miller J.-A. “O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP”. Disponível em:
https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?
intTipoPagina=4&intPublicacion=38&intEdicion=13&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2493&intIdiomaArticulo=9
[5] Cf. Miller J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”, op. cit. Disponível em:
http://www.congressoamp2016.com/uploads/abeaf2fa1ca41710e5a2eeb1fbc9c4035d1ecd6e.pdf
[6] Miller J.-A. « Le divan. XXIe siècle… », op. cit. Disponível em: https://www.liberation.fr/cahier-
special/1999/07/03/le-divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable-par-jacques-
alain-m_278498
[7] Cf. « La pratique lacanienne de la psychanalyse : sans standards mais pas sans principes », Ive congrès de l’AMP
à Comandatuba, 2004, inédit.
[8] Miller J.-A., « Les contre-indications au traitement psychanalytique », Mental, n°5, juillet 1998, p. 16.
[9] Laurent É., « Jouir d’internet », entretien, La Cause du désir, n°97, novembre 2017, p. 18.
[10] Cf. Lacan J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 207, p. 132.
[11] Cf. Proposition faite par Éric Laurent lors d’un débat à l’Assemblée générale de la NLS il y a douze ans.
[12] Ibid.

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