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29as Jornadas Clínicas da

Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio e do


Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro
Lógicas coletivas
nos tempos que correm
04 e 05.11.22
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Laço Social
O gozo, o coletivo e a identidade
Segunda leitura preparatória das 29as Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ

Por Ondina Machado

G ostaria de trabalhar um pouco mais o “alguns outros” dos quais Lacan fala
em “O tempo lógico” para levantar as implicações desse tipo de vínculo na
subjetividade de nossa época.

Tomemos como exemplo um fato recente: o teaser da refilmagem de “A


pequena sereia”. Levemente inspirado em um conto de Hans Christian Andersen,
Ariel teve a primeira versão como filme de animação em 1989 onde aparecia com
longos cabelos ruivos. O lançamento do teaser da versão atual causou uma onda
de debates quando surgiu um vídeo no qual meninas negras reagem ao
perceberem que Ariel é interpretada por uma atriz negra. Elas dizem sorrindo:
She is black! Sem entrar nas razões mercadológicas, quero apenas destacar a
reação das meninas. É impossível não sorrir junto com elas. O que as faz sorrir?
O que nos faz sorrir?

Podemos considerar que, nesse episódio, o sorriso das meninas é índice de


algo que faz laço. Elas percebem que a Ariel negra as representa por um traço
corporal: a cor da pele. Mas isso não é tudo, pois gostaria de tentar entender que
tipo de laço a imagem pode fazer e como podemos entender esse efeito.
Identidade e singularidade

Entre identidade e singularidade há uma tensão. É a essa tensão que Miller1 se


refere ao contar um episódio no qual um analisando disse que gostaria de ser um
alho porró em uma réstia de cebolas, ou seja, estar enfileirado na réstia com a sua
singularidade de alho porró. Miller diz que este é o desejo dos desejos, o desejo
de todos nós e o princípio de nossa vida em sociedade: entrarmos nela por nosso
traço de distinção. Recorto essa passagem para destacar que, mesmo havendo
esse algo em nós que é inconciliável com o Outro, quando vemos o sorriso das
meninas percebemos que a imagem toca algo desse real através de uma
identidade que se dá pelo corpo.

A tensão entre o singular e o que se faz representar pela imagem não é uma
questão somente para a psicanálise, é também para os movimentos identitários,
como veremos mais adiante.

O imaginário de 1945 e o dos anos 1970

O tempo lógico é contemporâneo ao texto “O estádio do espelho”, ele foi escrito


entre duas versões desse último, a primeira de 1936 e a que está nos Escritos que
é de 1949. Na primeira foi intitulado simplesmente como “O estádio do espelho”,
apenas na segunda recebeu o título pelo qual o conhecemos - “O estádio do
espelho como formador da função do eu”.

As concepções do imaginário extraídas de O estádio do espelho, percorrem


a produção de Lacan ao longo de seu ensino de maneiras diversas e, somente nos
anos 1970, as mudanças se tornaram mais evidentes.

O estádio do espelho mostra que ao ver seu corpo no espelho,


complementada pela indicação de que aquilo é ela, a criança tem uma “azáfana
jubilatória”2, movimenta seu corpo na direção do espelho e dá gritinhos. Lacan
ressalta que isso se deve a “transformação produzida no sujeito quando ele

1
MILLER, J.-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998, cap. I.
2
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. Escritos. RJ: Zahar, 1998, p. 97.
assume uma imagem”3 revelando-se aí um dinamismo libidinal. Guardemos
esses dois aspectos e a eles acrescentemos uma outra observação, a de que a
assunção jubilatória vem de uma imagem que tem uma “destinação alienante” 4.
Estamos como eu no espelho, mas isso não é tudo sobre nós.

Nos anos 1970, a perspectiva do imaginário muda na medida em que Lacan


já trabalha com a teoria do gozo. Nesse momento a orientação é a do corpo como
sede do gozo sem, no entanto, descartar a importância da imagem. A experiência
de gozo é singular, mas é a imagem desse corpo que traz o júbilo narcísico e,
também, uma satisfação libidinal. Talvez isso possa nos ajudar a entender que da
imagem possa se deduzir uma experiência de gozo que chega, inclusive, a alcançar
toda uma coletividade, como por exemplo, quando Miller se refere ao mal-estar
que faz o corpo de qualquer muçulmano tremer diante de uma ofensa a Maomé.5

No Tempo lógico, Lacan parece seguir as mesmas coordenadas do Estádio


do espelho, agora usando a imagem e o movimento dos outros prisioneiros -
instante de ver - para o sujeito concluir que é portador do disco branco. Aí já não
se trata da autorização de um Outro, pois a decisão foi tomada sem ele.

Em ambos os textos, o imaginário orientava as relações interpessoais, por


isso podemos pensar que o Tempo lógico é uma versão social do Estádio do
espelho. Nele Lacan propõe um tipo específico de identificação que se passa entre
os iguais sem a incidência de um líder em torno de qual se formará um grupo.
Trata-se, desta forma, de uma lógica do coletivo que contrasta com a visada
freudiana dos grupos que tinham um elemento de exceção capitaneando as
identificações. Essa lógica leva em conta que “o coletivo não é nada senão o sujeito
do individual”6.

3
LACAN, J. O estádio do espelho..., p. 97.
4
LACAN, J. O estádio do espelho..., p. 98.
5 MILLER, J.-A. “La "Common Decency" de l'Oumma”. Lacan Quotidien, Publicação Virtual da L'École de
la Cause Freudienne, n. 474.
6
LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
p.213.
Vínculo social

Parto do ponto em que Lacan diz que a cultura não se distingue da sociedade, que
ela é sempre aquela que alguém, depois de nós, nos indicará como sendo a nossa,
o nosso modo de vínculo social. Para ele, “no fim das contas, há apenas isto, o
vínculo social”7 e complementa: “é o que designo com o termo discurso”. É pelos
discursos que Lacan articula corpo e linguagem, pois inclui neles tanto os
significantes quanto o objeto, e o sujeito que irá resultar dessa articulação será
chamado, posteriormente, de falasser.

O vínculo social funciona como uma possibilidade de estabilizar a


metonímia do gozo pela presença do objeto que determina, singularmente, um
modo de satisfação próprio daquele sujeito e, assim, o destaca da massa. Não se
trata aqui de um deslizamento significante, mas de um gozo que itera.

Outro aspecto importante é que o termo vínculo já supõe que não há relação, não
há complementariedade. Se não há relação, há vínculo, um vínculo social de uns
com “alguns outros”. Um modo de alteridade que não conta mais com o Outro
fazendo a mediação entre o que é comum e o que é singular e que, por sua vez,
aponta para um descenso do sentido comum. Quando o Outro se deslocaliza, se
estratifica, o que vem nesse lugar é o social funcionando como o Nome-do-pai,
tendo “predomínio de nó”8.

Vínculo e imaginário

Miller localiza no último ensino de Lacan um descredito no simbólico por


considerá-lo inadequado9 para tratar o real. Assim, se volta ao que Miller
denominou de uma sociologia10 e, como tudo em Lacan, é uma sociologia a seu
modo. A sociologia lacaniana é a do laço social, laço entre uns e outros, não de

7
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais ainda. RJ: Zahar, 1985, p. 74.
8
LACAN, J. O seminário, livro 21: os não tolos erram/os nomes do pai. Aula 10, de 19 de março de 1975.
Inédito.
9
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. RJ: Zahar, 2014, p. 198.
10
MILLER, J.-A. 2014, p. 193.
todos, não de qualquer um, mas de “alguns outros”. Um laço que não apaga
singularidades, que leva em conta formas de gozo diversas, uma sociologia de
falasseres.

Miller comenta também que as figuras topológicas do último ensino de


Lacan promoveram o imaginário a um lugar de destaque, fazendo-o “retornar às
suas origens”11. A partir da variedade das configurações topológicas, o imaginário
se mostra capaz de conjugar gozo, contingência e corpo12 pelo deslocamento do
simbolicamente imaginário ao realmente imaginário. Talvez seja a esse
movimento que Lacan se refere em Momento de concluir quando, tentando fazer
“uma geometria do tecido, do fio, da malha” é levado a dizer que “a análise é um
fato social”13 como qualquer outro, ou seja, faz parte dessa malha que é o social.
Não seria essa uma maneira de dizer que do imaginário pode se extrair algo do
real?

O gozo e o coletivo

Como pensar o gozo já que este nada tem de coletivo? Respondo: pelo corpo. Não
a unidade do corpo, mas aquilo que o sujeito extrai da imagem, um pedaço de
corpo que pode reverberar nos “alguns outros”14. O coletivo não corresponde ao
universal, no coletivo há um movimento para incluir o mais singular em uma
comunidade desde que, para isso, se conte com os “alguns outros”. O coletivo é
contingente porque supõe um trabalho no qual algo do ideal de um paratodos
precisa ceder para que, nesse lugar, a perda de cada um possa comparecer. Essa
é a condição necessária a um coletivo, sem ela o que haveria seria o grupo.

Helena Silvestre15 fala de sua experiência no movimento de ocupação de


terras e diz que nele não se trata de perseguir um universal que dê conta de todas
as aspirações e necessidades individuais, segundo ela “essa necessidade pode vir
a se realizar, mas pode apenas coletivamente”16. Em seu relato vemos a tensão

11
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 246.
12
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan, p. 246.
13
LACAN, J. Momento de concluir. Aula 10 de 11 de abril de 1978. Inédito.
14
Bem dizer de Camila Drubscky em um encontro do Núcleo do ICP “Clínica e política do ato”.
15
SILVESTRE, H. Notas sobre a fome. SP: Expressão popular, 2021.
16
SILVESTRE, H. 2021, p. 69.
entre o individual e o coletivo, que a cada momento de sua vida aparecia de
formas diferentes em sua militância, percebendo, inclusive, que seu próprio
movimento ia contra a completude, como se seu desejo tentasse escapar do que
ela própria construía. Chega à conclusão que nem as narrativas universais nem o
projeto individualista pós-moderno servem aos mais necessitados – “nós não
queremos dizer como se deve viver, nós não sabemos explicar como é certo viver,
nós só queremos viver”17. Ela aposta na dissonância “como ponto de contato real
entre múltiplos” e que o comum “é um desenho em mutação contínua”18.

Uma outra experiência de inclusão no coletivo por uma perda aparece na


conversa do poeta Tom Grito19 na EBP-Rio. Nela, Tom valorizou sua experiência
no “O slam das minas”, um coletivo que se apresenta em lugares públicos falando
poesias e promovendo batalhas poéticas. O coletivo tem um núcleo de base, mas
sua característica é a itinerância, sendo assim, sua existência é contingente, ela se
dá nos encontros com o público. Tom reconhece que na diversidade de
experiências desse coletivo pode incluir sua transição de gênero. Considera sua
transição como um processo em curso sobre o qual não tem ideia no que vai dar.
Nomeia-se como não binário, mas diz que “não controla como é lido” pelos
outros. Levanta questões sobre o peso da responsabilidade em ser considerado de
vanguarda e do medo que muitas vezes sente por representar uma transformação
social. Diz que às vezes nega esse papel, que talvez isso seja uma autossabotagem,
porém, considera que desse modo tenta manter os pés no chão. Ele não se fecha
em um discurso identitário nem se enrijece em um sou isso, parece mais estar
buscando o isso que é.

Nos dois exemplos, vemos que o vínculo que se estabelece entre uns e
outros comporta e dá lugar a uma perda que não se resolve. O mesmo acontece
no exemplo do “bicho matador”, apresentado pela Vania Gomes. Nele, o que
aparece é a potência do coletivo como espaço para montagens singulares e
contingentes. O medo de Marina deu um lugar aos desenhos de Marcelo supondo-
lhe um saber sobre o “bicho matador”. Marcelo, por sua vez, tratou sua angústia
cifrando-a em um grunhido como escrita do nome do bicho. O que é uma análise
senão um lugar de montagens e desmontagens, de exploração de novas
identidades, de mobilização de arranjos rígidos?

17
SILVESTRE, H. 2021, p. 76
18
SILVESTRE, H. 2021, p. 76.
19
GRITO, T. Latusa com poesia. Entrevista. EBP-RJ, agosto de 2022.
O ouro dos movimentos sociais

As questões relativas à identidade são preciosas para as minorias e delicadas sob


o ponto de vista da psicanálise. Tendemos a entendê-la como um recurso egóico
que se solidifica não permitindo acesso ao singular.

Também os movimentos sociais desconfiam das políticas identitárias por


temerem que nelas se dissolvam problemas estruturais que levam à exclusão,
como, por exemplo, a desigualdade social como efeito do capitalismo. Por outro
lado, percebem que cada grupo identitário tem suas pautas específicas que podem
não fazer parte da pauta do movimento. Além disso, neles existem pessoas reais
com necessidades, sonhos e desejos individuais. Os movimentos sociais também
lidam com transversalidades que complexificam a aparente homogeneidade pela
qual esses grupos costumam ser tomamos.

Os tempos que correm promovem exclusões mortais, todas elas orientadas


pela imagem dos corpos e o espaço que ocupam no social. Mulheres, trans,
negros, indígenas, são identificados ao longe por seus corpos, suas vestimentas,
suas crenças, hábitos alimentares e até por suas festas. Todas essas manifestações
dizem respeito a um modo de gozar. É assim que a imagem do corpo também
serve à representação, como vimos no teaser da Pequena sereia. Se o significante
perdeu sua força, a identidade responde a isso com o corpo.

No espaço político são os corpos que representam os excluídos, daí a


importância da representatividade. Mas se o corpo representa não é sem a
palavra, será por ela que os corpos se incluirão no discurso da cultura dos tempos
que correm.

A prática da psicanálise é extrair do sujeito uma verdade que escapa ao eu


sou isso, é trabalhar com o dissonante. Questionar as identidades não é negar a
importância da representação social e política que os grupos identitários
promovem, é antes trabalhar com essa tensão, é extrair do retrato um enredo, da
mesma forma como já fazemos com os que se autodenominam deprimidos,
portadores da síndrome do pânico e outros.

Com nossa radical aposta no um a um, custamos a entender a força que


uma identidade possa ter como representação social e política. Essa aposta traz
uma contradição, pois, de certa forma, somos nós que desvalorizamos o singular
achando que ele se apaga quando coletivizado. Trata-se mais de fazer um trabalho
para que o singular do sujeito possa operar com o singular dos “alguns outros”.

As análises, de certa forma, se iniciam com sujeitos confinados a um


significante que exclui seu ser de gozo. Nesse sentido podemos parodiar Jacques-
Alain Miller e dizer que lidar com identidades já é o que fazemos hoje, resta saber
dizê-lo.

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29as Jornadas Clínicas da
Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio e do
Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro
Lógicas coletivas
nos tempos que correm
04 e 05.11.22

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