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Laço Social
O gozo, o coletivo e a identidade
Segunda leitura preparatória das 29as Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ
G ostaria de trabalhar um pouco mais o “alguns outros” dos quais Lacan fala
em “O tempo lógico” para levantar as implicações desse tipo de vínculo na
subjetividade de nossa época.
A tensão entre o singular e o que se faz representar pela imagem não é uma
questão somente para a psicanálise, é também para os movimentos identitários,
como veremos mais adiante.
1
MILLER, J.-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998, cap. I.
2
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. Escritos. RJ: Zahar, 1998, p. 97.
assume uma imagem”3 revelando-se aí um dinamismo libidinal. Guardemos
esses dois aspectos e a eles acrescentemos uma outra observação, a de que a
assunção jubilatória vem de uma imagem que tem uma “destinação alienante” 4.
Estamos como eu no espelho, mas isso não é tudo sobre nós.
3
LACAN, J. O estádio do espelho..., p. 97.
4
LACAN, J. O estádio do espelho..., p. 98.
5 MILLER, J.-A. “La "Common Decency" de l'Oumma”. Lacan Quotidien, Publicação Virtual da L'École de
la Cause Freudienne, n. 474.
6
LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
p.213.
Vínculo social
Parto do ponto em que Lacan diz que a cultura não se distingue da sociedade, que
ela é sempre aquela que alguém, depois de nós, nos indicará como sendo a nossa,
o nosso modo de vínculo social. Para ele, “no fim das contas, há apenas isto, o
vínculo social”7 e complementa: “é o que designo com o termo discurso”. É pelos
discursos que Lacan articula corpo e linguagem, pois inclui neles tanto os
significantes quanto o objeto, e o sujeito que irá resultar dessa articulação será
chamado, posteriormente, de falasser.
Outro aspecto importante é que o termo vínculo já supõe que não há relação, não
há complementariedade. Se não há relação, há vínculo, um vínculo social de uns
com “alguns outros”. Um modo de alteridade que não conta mais com o Outro
fazendo a mediação entre o que é comum e o que é singular e que, por sua vez,
aponta para um descenso do sentido comum. Quando o Outro se deslocaliza, se
estratifica, o que vem nesse lugar é o social funcionando como o Nome-do-pai,
tendo “predomínio de nó”8.
Vínculo e imaginário
7
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais ainda. RJ: Zahar, 1985, p. 74.
8
LACAN, J. O seminário, livro 21: os não tolos erram/os nomes do pai. Aula 10, de 19 de março de 1975.
Inédito.
9
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. RJ: Zahar, 2014, p. 198.
10
MILLER, J.-A. 2014, p. 193.
todos, não de qualquer um, mas de “alguns outros”. Um laço que não apaga
singularidades, que leva em conta formas de gozo diversas, uma sociologia de
falasseres.
O gozo e o coletivo
Como pensar o gozo já que este nada tem de coletivo? Respondo: pelo corpo. Não
a unidade do corpo, mas aquilo que o sujeito extrai da imagem, um pedaço de
corpo que pode reverberar nos “alguns outros”14. O coletivo não corresponde ao
universal, no coletivo há um movimento para incluir o mais singular em uma
comunidade desde que, para isso, se conte com os “alguns outros”. O coletivo é
contingente porque supõe um trabalho no qual algo do ideal de um paratodos
precisa ceder para que, nesse lugar, a perda de cada um possa comparecer. Essa
é a condição necessária a um coletivo, sem ela o que haveria seria o grupo.
11
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 246.
12
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan, p. 246.
13
LACAN, J. Momento de concluir. Aula 10 de 11 de abril de 1978. Inédito.
14
Bem dizer de Camila Drubscky em um encontro do Núcleo do ICP “Clínica e política do ato”.
15
SILVESTRE, H. Notas sobre a fome. SP: Expressão popular, 2021.
16
SILVESTRE, H. 2021, p. 69.
entre o individual e o coletivo, que a cada momento de sua vida aparecia de
formas diferentes em sua militância, percebendo, inclusive, que seu próprio
movimento ia contra a completude, como se seu desejo tentasse escapar do que
ela própria construía. Chega à conclusão que nem as narrativas universais nem o
projeto individualista pós-moderno servem aos mais necessitados – “nós não
queremos dizer como se deve viver, nós não sabemos explicar como é certo viver,
nós só queremos viver”17. Ela aposta na dissonância “como ponto de contato real
entre múltiplos” e que o comum “é um desenho em mutação contínua”18.
Nos dois exemplos, vemos que o vínculo que se estabelece entre uns e
outros comporta e dá lugar a uma perda que não se resolve. O mesmo acontece
no exemplo do “bicho matador”, apresentado pela Vania Gomes. Nele, o que
aparece é a potência do coletivo como espaço para montagens singulares e
contingentes. O medo de Marina deu um lugar aos desenhos de Marcelo supondo-
lhe um saber sobre o “bicho matador”. Marcelo, por sua vez, tratou sua angústia
cifrando-a em um grunhido como escrita do nome do bicho. O que é uma análise
senão um lugar de montagens e desmontagens, de exploração de novas
identidades, de mobilização de arranjos rígidos?
17
SILVESTRE, H. 2021, p. 76
18
SILVESTRE, H. 2021, p. 76.
19
GRITO, T. Latusa com poesia. Entrevista. EBP-RJ, agosto de 2022.
O ouro dos movimentos sociais
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29as Jornadas Clínicas da
Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio e do
Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro
Lógicas coletivas
nos tempos que correm
04 e 05.11.22