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Disciplina: Psicologia,

Ciência e Profissão

Aula 1/ 2º semestre 2022


Prof.ª Juliana Fagundes

Meu percurso
Graduação em Psicologia (2007)
Universidade da Amazônia, UNAMA

Especialização em Psicologia Clínica (2010)


Centro de Estudos Psicanalíticos, CEP

Especialiação em Psicanálise (2015)


Instituto Sedes Sapientiae

Mestrado em Literatura e Crítica Literária (2019)


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP
Entre ela e os objetos havia alguma coisa mas quando
agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois
espiava - mesmo tomando cuidado para que nada
escapasse - só encontrava a própria mão, rósea e
desapontada. Sim, eu sei, o ar, o ar! Mas não adiantava,
não explicava. Esse era um de seus segredos. Nunca se
permitiria contar, mesmo a papai, que não conseguia
pegar a coisa (...). (LISPECTOR, 1998, pp. 15-16)
Com isso, quero lhes dizer que é assim mesmo, vai
sempre ter algo que vai escapar, e que isso,
justamente, precisa ser acolhido.

Eu diria que é com
isso que trabalhamos: é esta

dimensão que gostaria
de lhes apresentar desde já: a do inconsciente, que
nos abre para o campo do desejo e das surpresas.
Quero que este espaço seja de
troca e aprendizado, e que
possamos construir uma relação
de confiança e respeito mútuo.
O começo de uma análise

Interessante pensar nos caminhos que


percorremos para rumar ao começo. E o que é o
começo? pergunto-me em silêncio, e respondo
que, talvez, a gente inicie o que a gente chama
de começo já pelo meio. E esse antes é o que Quando começa a minha relação com a
psicanálise? A questão não era para mim.
escapa (também) e é aquilo que move o desejo
Era o fio por onde eu conduziria este
de cada um. O entre, um entre movente,
texto, mas algo atravessa, desaloja,
digamos, constante, contínuo, não sequencial. tropeça. Quando criança, às vezes, eu
Plural e atemporal. Um eterno devir. ficava na salinha de espera do consultório
da analista de minha mãe enquanto

ela
era atendida. Faz tempo que essa
memória não vinha. Mas veio. É assim
mesmo;
e lembro quando, ainda adolescente, no tempo de escola, eu
frequentava a biblioteca para estudar psicanálise, e me deparei com
alguma coisa que me dizia que existia algo para além daquilo
reconhecido conscientemente. Lembro do susto que eu levei e de uma
espécie de sensação de desnudamento de saber que algo em mim
pudesse se passar sem o meu conhecimento prévio. Apesar da
perplexidade com a qual reagi à descoberta, algo me fisgou
enormemente, embora só-depois eu reconhecesse o tamanho do valor
que isso viria a ter na minha vida, por meio da experiência de análise
pessoal e dos atendimentos clínicos, junto às supervisões e aos meus
estudos que, paralelamente, seguiriam na minha formação psicanalítica.
Chegado a esse ponto, desdobro a pergunta de antes para:
Quando cabe procurar um psicanalista?
Nestes mais de 13 anos de experiência na psicanálise,
atendendo em consultório (e em clínicas e hospitais
psiquiátricos), muitos são os caminhos que fazem um
sujeito chegar ao meu encontro: ter alguma questão
que o acossa; para se conhecer melhor; casos também
encaminhados por terceiros. Mas, por mais diversos
que pareçam, são sempre um só motivo: o sofrimento.
E, o que se trata nunca é a doença mas o sujeito que faz
da doença um sintoma que chamamos analítico.

E O QUE VEM A SER ESSE


SINTOMA ANALÍTICO?
Conforme escreve Maurano (2003, p. 30), no seu livro,
intitulado Para que serve a psicanálise?, “[é] qualquer
sintoma que seja tomado pelo sujeito como fonte de
questionamento de si mesmo. É isso que faz com que
um sintoma seja analisável”. É claro que, como também
nos aponta, não se trata de qualquer questionamento,
mas um questionamento dirigido ao saber inconsciente,
saber a que o analista tem que dar suporte, “[u]m
questionamento dirigido pela aposta de que existe, em
alguma esfera do meu psiquismo, um saber que age em
mim”, por meio de uma outra lógica que não aquela que
eu reconheço de modo consciente.
O que vai delimitar o campo de
intervenção do analista não é,
diz-nos a autora, a natureza do
sofrimento, mas o modo de
relação do sujeito com o seu
sofrimento, seja ele qual for. "[V]ocê pode perceber que seu
sintoma não diz respeito a um
estresse qualquer, mas apareceu
num dado momento especial de
sua vida e a partir de certos fatores
que escapam à sua possibilidade
de apreensão consciente",
Assim sendo, para além de eliminá-lo, você exemplifica Maurano (2003, p. 35).
pode querer também saber o que ele pode
informar sobre o seu próprio
funcionamento, a maneira que você vive a
vida, de como tem se conduzido.
Caso tenha essa perspectiva, um psicanalista pode ser o
profissional mais indicado para ajudá-lo. O
deslanchamento do chamado processo vai depender de
uma retificação subjetiva que o sujeito faz de sua própria
posição da qual se queixa (MAURANO, 2003).
De acordo com Nasio (1999), Freud não utiliza essa expressão, que aliás Lacan tirou
de Ida Macalpine. Ele encontrou em um dos seus textos sobre a transferência, a ideia
de “retificação”, à qual ele acrescentou “subjetiva”. Nasio comenta ainda que, embora
Freud não tenha empregado exatamente essas palavras, não deixou de ter a intuição
do seu significado ao escrever que, “a partir do momento em que os médicos
reconheceram claramente a importância do estado psíquico na cura, tiveram a idéia
de não deixar mais ao doente o cuidado de decidir o grau da sua disponibilidade
psíquica, mas, pelo contrário, arrancar-lhe o estado psíquico favorável, graças a meios
apropriados” (FREUD, 1890, p. 12 apud NASIO, 2003, p.162, grifos do autor). É com
essa tentativa que, nas palavras de Freud, o tratamento psíquico moderno tem seu
início.
Relativamente ao termo “arrancar ao paciente”,
Nasio (1999, p. 162) entende ser o que Lacan
formula de “retificação subjetiva”. Quando o
paciente, nas primeiras entrevistas, em geral na
primeira, expõe o seu sofrimento, o faz muitas
vezes de maneira alusiva: “‘Sinto-me mal comigo
mesmo’, ‘Estou deprimido’, ‘Não estou bem’,
‘Estou agressivo’ etc.” O autor comenta que
depende de nossa maneira de escutá-lo, de
nossa forma de intervenção ou de fazer
perguntas, para que ele comece a perceber um
outro jeito de viver o seu sofrimento, uma
maneira diferente de manifestar a sua demanda
de cura e para que se inicie de outra forma, mais
vigorosamente, a transferência futura.
“[…] partam à procura do sujeito do
inconsciente! Partam à procura de todos os
atos sintomáticos nos quais o sujeito é
ultrapassado pelo seu ato”, conclama Nasio
aos analistas, e complementa: “Mesmo que
se trate de pacientes que não esperam
nada de ninguém, resta uma chance, por
tênue que seja, de poder suscitar uma
surpresa”.
O autor (1999, p. 163) fala de fazer trabalhar a demanda
daquele que sofre, proceder à retificação da sua posição
subjetiva em relação à sua demanda, o que consiste em
uma “colocação em palavras dos momentos e experiências
nos quais o paciente é ultrapassado pelo seu ato".

Agora, é claro que isso não significa uma busca


exasperada por uma informação, porque “não se trata
de uma manifestação do desejo de saber e ainda menos
de um interrogatório policial”.
Alguns analistas aprenderam que não se deve fazer
perguntas nem falar nas primeiras entrevistas; outros
até dizem que o analista não tem que intervir nos
primeiros meses de tratamento, escreve Nasio. Assim
como o autor contesta essa posição, o importante, para
mim, é acolher aquele que chega ao consultório, escutá-
lo e “aproveitar a oportunidade de acentuar as linhas de
fenda que são apenas vislumbradas no relato da
demanda inicial” (NASIO, 1999, p. 164).
Voltando com Maurano (2003), lemos que esse tempo inicial é
para avaliar se há um trabalho possível a ser feito ali, se é o
momento de empreendê-lo, e se tanto o analista quanto o
candidato à análise estão dispostos. A suposição diagnóstica
levantada pelo analista nas entrevistas preliminares será
fundamental para que ele possa avaliar suas formas possíveis
de intervenção, afirma a autora, que nos conta ainda que, no
que diz respeito às estratégias de tratamento, será ainda
preciso que se averigue as possibilidades do que chamamos de
“histericização” do sujeito que, resumidamente, podemos
entender como a maneira do sujeito engajar-se na transferência
com o analista para que, através do manejo dessa transferência
sejam traçados os rumos da direção do tratamento.
No encontro com o analista, é preciso que aquele
que se queixa escute algo que o instigue a um
trabalho de investigação, de escuta da própria
fala, de intriga quanto a si mesmo – efeito que PODE SER TAMBÉM QUE AO FAZÊ-LO,
coloca o analista em ação. ELE NÃO QUEIRA MEXER NISSO E
INTERROMPA O PROCESSO, BUSCANDO
UM RECURSO APAZIGUADOR, ALGO
QUE NÃO SOLICITE DELE TRABALHO
PESSOAL ALGUM (MAURANO, 2003).
Aliás, não é à toa que Freud propôs o termo analisando, e Lacan, analisante, para dimensionar ainda
mais a forma ativa e dinâmica dessa empreitada, como lembra a autora. No trabalho analítico,

escutamos o sintoma apresentado pelo sujeito (insônia, gagueira, fobia etc.), como uma via de
expressão, a melhor solução que o sujeito encontrou diante de um conflito, melhor do que aquilo
que veio, de certo modo, encobrir, ainda que produza dor e que seus efeitos sejam difíceis
(MAURANO, 2003).

A que será que se destina?

Dolto (2004, p. 10-11) a respeito do livro de Mannoni, intitulado A


primeira entrevista em psicanálise, apresenta-nos a especificidade do
psicanalista, qual seja, a escuta. Através dela que será possível que o
discurso do analisante se modifique, encontre um sentido novo aos seus
ouvidos.
Acompanhemos um pouco mais o seu pensamento: “O psicanalista não dá
razão nem a retira; sem emitir juízo, escuta […]”. Dolto nos diz que “o que
importa não são os sintomas aparentemente positivos ou negativos em si
mesmo, não é a satisfação ou a angústia [por exemplo] dos pais […] diante
de uma criança pela qual se sentem responsáveis”, mas o sentido
fundamental da sua dinâmica apresentada
e “as possibilidades de futuro
que, para esse sujeito, o presente prepara, preserva ou compromete”.
O efeito revelador,
nas palavras de Dolto
(2004, p. 12), o
analista obtém pela
sua escuta atenta e Por meio do discurso que ele escuta, “a sua sensibilidade receptiva
permite-lhe entender em vários níveis o sentido emocional subjacente
pela sua não resposta
ao discurso do paciente”, e mais sutilmente do que podem fazer
direta ao pedido feito aqueles que não foram psicanalisados.
de agir para fazer
calar o sintoma ou
para acalmar a É fundamental que, nessa escuta, o psicanalista esteja aberto ao novo,
angústia. o que faz, muitas vezes, esse momento de entrevistas ser em si
mesmo fundante para o sujeito que busca ajuda, mesmo que decida
por não dar continuidade ao tratamento.
Para finalizar, ainda que sem concluir, tenho em mãos um texto de
Alonso (2011, p. 105) que se propõe a pensar a escuta psicanalítica.
Para a autora: “A escuta adquire um lugar central na psicanálise por
ser uma coisa de palavras, ditas ou silenciosas. Palavras que
enganam, mas que abrem um acesso à significação”.
Mais adiante, a psicanalista, no tópico “O que escuta o analista”,
escreve que não pensamos a linguagem como um instrumento de
comunicação, ainda que ela não deixe de ser também.
Porém, como nos diz, Freud ao introduzir o conceito de inconsciente
traz algo a mais: situa a fala – como já explicitado antes – em outro
lugar, ou seja, aquele que fala, ao fazê-lo, diz mais do que pretendia.

Gosto de como Alonso (2011, p. 108) nos diz a respeito da instauração da situação
analítica: produz um “desfraldar da palavra” ao propor a regra fundamental da livre
associação e o seu reverso, a atenção flutuante.

Vale seguir com as palavras da psicanalista: “No seio da associação livre vai-se produzindo
um deslocamento da imagem, do fato como fixo.

Este se vai incluindo em múltiplas imagens caleidoscópicas, cujas combinações se


multiplicam”, e exemplifica: “O ritmo, a cadência, a intensidade maior de alguns fonemas, a
excitação explícita no gaguejar de uma palavra, o sentido duvidoso de uma frase mal
construída […]”, tudo isso vai, enfim, dando tonalidades diferentes “àquelas figuras que
não passam desapercebidas à escuta sutil da atenção flutuante” – e, por meio dessa fala
que tropeça, o sujeito tem a possibilidade de se escutar e dar outros destinos mais
possíveis ao seu sofrimento.
Muitas são as formas de pensar questões tão
importantes na psicanálise – como no caso das
entrevistas preliminares abordadas aqui –, mas só
fazem sentido quando não são levadas à
dogmatização, pois ainda que toda teoria seja
importante para pensar a clínica, não há teoria mais
válida senão aquela construída pelo sujeito em
análise sobre a sua própria história, é essa e com
essa que devemos trabalhar, é a que vale.
Lugar de palavra
A caracterização da psicologia
Continua...
(o aluno deve finalizar a leitura do capítulo 1)
(BOCK, A; FURTADO, O; TEIXEIRA,M, 2001)
Referências
ALONSO, Silvia Leonor. O tempo, a escuta, o feminino: reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011

.BOCK, A.; FURTADO, O; TEIXEIRA,M. Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. Disponível
em: https://petpedufba.files.wordpress.com/2016/02/bock_psicologias-umaintroduc3a7c3a3o-p.pdf.
Acesso em: 03.09.21.

DOLTO, Françoise. “Prefácio”. In: MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.

JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, vol 3: a prática
analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

NASIO, Juan-David. Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

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