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DOI: 10.1590/1413-81232022277.

18332021 2531

Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação

ARTIGO ARTICLE
e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula

Trend towards institutional stability: regulation, training,


and provision of doctors in Brazil during the Lula government

Hêider Aurélio Pinto (https://orcid.org/0000-0002-8346-1480) 1


Soraya Maria Vargas Côrtes (https://orcid.org/0000-0003-2502-2364) 2

Abstract This article aims to analyse the char- Resumo O objetivo do artigo é analisar as ca-
acteristics of the regulation, training and supply racterísticas da política de regulação, formação e
policies of medical doctors in Brazil, during Lula provimento de médicos no Brasil durante os go-
government (2003-2010), as well as the process vernos Lula (2003-2010) e o processo de disputa
of dispute about a policy change proposed by se- em torno de sua mudança defendida pelos diri-
nior officers of the Ministry of Health, who were gentes do Ministério da Saúde, integrantes do
members of the Health Reform movement. This is movimento sanitário. Trata-se de um estudo de
a case study that used process tracing as a meth- caso que utilizou o process tracing como estra-
odological strategy and, as sources, documents tégia metodológica e, como fontes, documentos e
and interviews. We used the theoretical resourc- entrevistas. Utilizaram-se os recursos teóricos dos
es offered by studies on political process and the estudos sobre processo político e a teoria da mu-
theory of gradual institutional change. The main dança institucional gradual. Os principais resul-
findings are the understanding of institutional ar- tados são a compreensão do arranjo institucional
rangements in this policy, and the identification relacionado à política e a identificação de atores
of individual and collective actors who acted to individuais e coletivos que atuaram para sua con-
change the policy. Three political-institutional servação ou mudança. Constataram-se três restri-
restrictions to change were found: the opposition ções político-institucionais à mudança: a oposição
of the Liberal Medicine advocates Community, da comunidade de política “medicina-liberal”, que
which exerted a political influence on the area, exercia influência sobre a política, a falta de apoio
the lack of support or resistance to change from ou resistência do Ministério da Educação às mu-
the Ministry of Education and the government danças propostas e a decisão do núcleo do gover-
1
Departamento de
Medicina Preventiva e nucleus decision not to carry out proposals that, no de não levar adiante propostas que, ao mesmo
Social, Universidade Federal at the same time, had to be approved by the Legis- tempo, tivessem que ser aprovadas no Legislativo
da Bahia. Praça XV de lative and had the opposition of the Liberal Med- e contassem com a oposição da “comunidade” da
novembro s/n, Largo do
Terreiro de Jesus. 40026- icine advocates Community. A balance tending to medicina-liberal. Predominou um equilíbrio que
010 Salvador BA Brasil. reproduce the status quo and the current institu- tendeu à reprodução do status quo e do arranjo
heiderpinto.saude@ tional arrangement prevailed, despite the imple- institucional vigente, apesar de ter havido altera-
gmail.com
2
Programa de Pós- mentation of incremental policy changes. ções incrementais na política.
Graduação em Sociologia, Key words Human resources in health, Medical Palavras-chave Recursos humanos em saúde,
Universidade Federal do Rio education, Public policy Educação médica, Política pública
Grande do Sul. Porto Alegre
RS Brasil.
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Pinto HA, Côrtes SMV

Introdução titucionais vigentes como prejudiciais ao bom


funcionamento do SUS. Pleiteavam que a ques-
O artigo tem por objetivo analisar as caracterís- tão das insuficiências na oferta e formação médi-
ticas da política de regulação, formação e provi- cas passasse a receber atenção do governo federal,
mento de médicos durante os governos Lula – sendo reconhecida como uma questão de política
2003 a 2010, bem como o processo de disputa em (issue) a ser incluída na agenda governamental.
torno de proposta de mudança defendida pela Integrantes da direção do Ministério da Saú-
comunidade política do movimento sanitário de (MS) durante o Governo Lula entendiam que
(CP-M Sanitário), que não veio a ocorrer. Uma as insuficiências na oferta e formação médicas
mudança nessa política que considerasse tal pro- limitavam a ampliação do acesso e a melhoria da
posta, como a promovida pelo Programa Mais qualidade dos serviços do SUS9. Ao longo do pe-
Médicos (PMM), só se concretizou em 2013, no ríodo, propuseram alteração nas regras da regu-
governo seguinte. O argumento que desenvolve- lação profissional com vistas a aumentar a quan-
mos no artigo é o de que, apesar das insuficiên- tidade, melhorar a distribuição e prover médicos
cias na oferta e formação médicas para atender às nas áreas com maior necessidade. Defendiam,
necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e além disso, reorientação da formação médica em
das demandas crescentes de gestores municipais função das necessidades do SUS, que se mostrava
por médicos, atores coletivos em situação vanta- insatisfatória5,9,11,12.
josa com a política então vigente mobilizaram os O artigo oferece uma resposta a esse aparen-
recursos de que dispunham para impedir a con- te paradoxo: o objetivo dos dirigentes do MS de
cretização da proposta de mudança. inserir a questão na agenda do governo e de for-
A questão das insuficiências na oferta e for- mular e implementar políticas para resolvê-la e
mação médicas em relação às necessidades dos o fato de que isso não ocorreu. A literatura tem
sistemas de saúde é um tema presente na lite- abordado a política de regulação, formação e pro-
ratura nacional e internacional e nas discussões vimento de médicos no Brasil, porém os estudos
governamentais no Brasil desde o fim dos anos focalizam a descrição e a análise de problemas na
19601,2. Na primeira década deste século, durante, área3,4, cada solução apresentada ao debate públi-
portanto, os dois mandatos do presidente Lula, co12 ou o conjunto das ações do governo federal
tais insuficiências constituíam-se em uma ques- no período11. Neste estudo, indaga-se por que a
tão objetiva relacionada à profissão médica. A questão não foi incluída na agenda governamen-
taxa de médicos por mil habitantes no Brasil em tal de modo a produzir uma mudança abrangen-
2000 era de apenas 1,7. A percepção pública de te, focando as disputas em torno da alteração ou
agravamento dessas insuficiências foi intensifica- manutenção da política. O que impediu a altera-
da pelo crescimento da participação do macros- ção na política de regulação, formação e provi-
setor saúde na economia, resultando na expansão mento de médicos, apesar dos esforços de mu-
dos postos de trabalho médico sem o crescimento dança de atores individuais e coletivos? As seções
proporcional das vagas de graduação em medici- seguintes tratam, respectivamente, dos métodos
na3,4. O número de médicos graduados na década utilizados no estudo, dos resultados encontrados
foi equivalente a apenas 69% dos novos postos de e da discussão desses resultados à luz do referen-
trabalho criados. A medicina foi a única profissão cial teórico empregado.
de saúde a aumentar, no período, a relação can-
didato/vaga, a remuneração média e a emprega-
bilidade3. Tanto as vagas de graduação quanto as Métodos
de residência médica estavam concentradas nas
cidades maiores e mais ricas, bem como nas regi- O presente estudo de caso utilizou como estra-
ões Sudeste e Sul3,5. tégia metodológica da pesquisa o process tracing,
Nesse cenário, atores individuais e coletivos que usualmente examina trajetórias históricas,
em posição vantajosa na estrutura institucional documentos, transcrições de entrevistas e outras
que tratava das políticas de regulação, formação e fontes para verificar se possíveis explicações de-
provimento de médicos – particularmente aque- rivadas de teorias são válidas ou devem ser mo-
les que representavam os interesses da profissão dificadas ou refinadas considerando as diversas
médica5-9 – resistiam à mudança. Outros – como variáveis intervenientes em um caso, objetivando
gestores do SUS e integrantes da CP-M Sanitá- identificar cadeias e mecanismos causais13. Con-
rio10 – defendiam, elaboravam e difundiam pro- sideramos que as “cadeias e mecanismos causais”
postas de mudança, interpretando as regras ins- são construtos teóricos elaborados pelos pesqui-
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sadores, que focalizam dimensões da realidade documentos de instituições estatais), documen-
apontadas pelas teorias como passíveis de influir tos de organizações da sociedade civil, tanto das
ou determinar um evento ou um fenômeno, entidades médicas quanto daquelas da “Reforma
sendo aplicadas à empiria com o objetivo de for- Sanitária”, bem como discursos publicados na
mular teorias de médio alcance que expliquem o mídia e meios próprios de comunicação, sejam
evento ou fenômeno. das entidades médicas e da Reforma, ou de re-
Não houve alteração significativa na política presentantes do Governo. A análise bibliográfica
de regulação, formação e provimento de médicos buscou apoiar o estudo na resposta das questões e
no Brasil durante o governo Lula, apesar de diri- hipóteses de pesquisa e na compreensão dos pro-
gentes situados em postos de decisão no MS con- cessos analisados, abrangendo um período mais
siderarem a política vigente insuficiente às neces- amplo, a partir do início da segunda metade do
sidades do SUS. Na busca de uma explicação para século XX, quando se ampliou no país o debate
esse fato, dirigimos o olhar para três dimensões sobre a formação de recursos humanos em saú-
explicativas e para a caracterização do processo de1,9, até 2010. Foram analisados trabalhos acerca
em análise. (1) A primeira dimensão é formada das principais ações e programas do período, a
pelos atores individuais e coletivos e seus inte- respeito do tema recursos humanos em saúde e
resses e ideias, que agiam nos dois subsistemas, posições das organizações da profissão médica.
se posicionando na disputa e problematizando a As entrevistas semiestruturadas foram rea-
política vigente com vistas à sua permanência ou lizadas com 19 informantes-chave que tiveram
transformação. (2) A segunda é composta pelo participação na formulação governamental das
arcabouço institucional vigente nos subsistemas políticas de regulação, formação e provimento
de saúde e de educação superior, formado por no período de 2003 a 2018, cujas características
um conjunto de regras legais e administrativas. estão apresentadas no Quadro 2. Entre eles, 12
(3) A terceira se refere a padrões institucionali- ocuparam posições com poder de decisão no
zados, “tradicionais” de relação entre decisores período focalizado neste artigo, de 2003 a 2010.
governamentais e atores societais. No respectivo Utilizaram-se técnicas de análise de conteúdo14
processo político em análise, todos esses fatores e de análise crítica de discurso político15 para
se encadearam em momentos e espaços de de- tratar as entrevistas, combinando tanto catego-
cisão, formando a trajetória da política nos dois rias analíticas, como atores, ideais, instituições,
subsistemas no período, identificando as tenta- questões, problemas e soluções, quanto premis-
tivas de alterações que tiveram ou não sucesso, sas discursivas15, tais como objetivos, valores,
como pode ser visto no Quadro 1. preocupações, circunstâncias, cursos de ação
A análise documental compreendeu o perío- e consequências. A pesquisa que deu origem a
do do governo Lula, de 2003 a 2010. Priorizou este artigo foi realizada para a defesa de uma tese
a normatização oficial de ações da política de de doutorado em Programa de Pós-Graduação
regulação, de formação e de provimento médi- em Políticas Públicas, aprovada no CEP-UFRB
cos (leis, decretos, portarias, resoluções e outros (n°05760818.9.1001.0056).

Quadro 1. Estratégia de reunião de evidências no estudo.


Dimensão e processo em Elementos analisados Fontes
análise
(1) Arcabouço institucional Regras legais e Legislação, outros documentos oficiais,
administrativas literatura e entrevistas com dirigentes
(2) Atores individuais e Posições, objetivos, ideias, Literatura, documentos diversos (como matérias
coletivos propostas e atuações em meios de comunicação, resoluções de órgãos
da sociedade civil ou do Estado) e entrevistas
com dirigentes
(3) Padrões Relações “tradicionais” entre Literatura, publicações de meios de
institucionalizados de relação decisores e atores societais comunicação e entrevistas com dirigentes
entre governo e sociedade
(4) Trajetória do processo Mudanças na legislação, Literatura, legislação, documentos oficiais e
normas e programas entrevistas com dirigentes
Fonte: Autores
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Pinto HA, Côrtes SMV

Quadro 2. Entrevistados.
Posição 2003-2010 2011-2013 2013-2018
Primeiro escalão do Executivo Federal 5 4 2
Escalões intermediários e integrantes da burocracia do Executivo Federal 4 6 4
Dirigentes de entidades de representação das secretarias estaduais e 3 3 2
municipais de saúde
Parlamentares da Câmara e Senado - 2 3
OPAS 1 - 1
Totais por período 13* 15* 12*
*
No total foram 19 pessoas entrevistadas, porém algumas delas ocuparam diferentes posições em mais de um período, havendo
aquelas que atuaram em posições distintas nos três períodos.

Fonte: Autores, adaptado de Pinto (2021).

A análise empreendida utiliza principalmen- tinuamente apoio político, fazer com que os res-
te os recursos teóricos oferecidos pelos estudos ponsáveis pela aplicação das regras as cumpram e
sobre processo político (public policy process)16-18 resolver ativamente, a seu favor, as ambiguidades
e a teoria da mudança institucional gradual institucionais. Com isso, a “conformidade” (com-
(TMIG)19. O primeiro conjunto de estudos for- pliance) – entendida como efetivo cumprimento
neceu os instrumentos analíticos para que en- e subordinação às regras – é uma variável crucial
fatizássemos as relações sociais entre organiza- para a análise da estabilidade e da mudança insti-
ções e atores, individuais e coletivos, societais e tucional. Na TMIG, a mudança se torna possível
governamentais, caracterizando seus interesses, quando se rompem os equilíbrios vigentes, o que
suas ideias e ações. Atores individuais e coletivos pode ser desencadeado por dispositivos distintos
laçam mão, frequentemente, de análises de polí- e acontecer devido a fatores externos e/ou inter-
ticas públicas que se constituem em ferramentas nos ao arranjo institucional, dependendo das
retóricas usadas para caracterizar um problema características do processo em análise. Para os
que pode vir a ser objeto de políticas, uma vez autores, as características do contexto político e
que ingresse na agenda governamental16-18. Por do arranjo institucional influenciam quais estra-
isso, a caracterização de um problema de polí- tégias de mudanças têm maior ou menor chance
tica pública é tanto um julgamento normativo de êxito. Em contextos com forte poder de veto às
quanto o estabelecimento da existência objetiva mudanças e baixa discricionariedade, a estratégia
de uma questão ou fato. Nesse sentido, os estu- mais exitosa seria a de “mudança em camadas”,
dos contemporâneos sobre processo político go- em que se evita entrar em conflito com os atores
vernamental compõem um quadro analítico que mais bem posicionados no arranjo institucional
permite ressaltar o papel de atores estatais e so- vigente e opta-se por criar novas regras sem alte-
cietais, individuais e coletivos, com suas ideias, na rar significativamente as anteriores. A discricio-
formação da agenda governamental, em contex- nariedade é entendida como o grau de liberdade
tos em que regras, concebidas como instituições, com o qual o ator pode aplicar as regras confor-
balizam as possibilidades de definição de proble- me seus objetivos. Se o poder de veto à mudança
mas de políticas públicas e suas soluções. pretendida é mais fraco, terá mais chance de êxito
A TMIG19 concebe as instituições sobretudo a estratégia denominada “deslocamento”, quando
como instrumentos distributivos carregados de há mobilização ativa contra as regras vigentes,
implicações de poder, e que por isso são reple- buscando substituí-las por novas.
tas de tensões. As regras institucionais têm efei- Este estudo examina dois subsistemas de po-
tos desiguais para a alocação de recursos, dessa líticas públicas, os de saúde e de educação supe-
forma, atores em posições dominantes, no am- rior. Os subsistemas são considerados como es-
biente institucional ou societal, podem conseguir truturas de poder estratificadas que distribuem
projetar instituições que correspondam às suas recursos políticos e materiais desiguais, embora
preferências para que mantenham ou melhorem também sejam arenas de embate entre os indi-
sua condição privilegiada e realizem seus objeti- víduos e os grupos que defendem diferentes so-
vos. Contudo, para garantir a estabilidade de um luções para problemas de políticas públicas20. Ao
arranjo institucional, é necessário mobilizar con- mesmo tempo, são unidades setoriais de nível
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mesossocial de produção de políticas públicas de formação, regulação e provimento de médi-
que apresentam autonomia relativa em relação cos fossem decididas sobretudo no âmbito do
ao macro sistema político, tendo dinâmicas, re- subsistema saúde, considerando as necessidades
gras e arranjos institucionais próprios21. A TMIG do SUS. Durante o governo Lula, compunham
permitiu que analisássemos as regras e os arran- o primeiro escalão do MS figuras icônicas des-
jos institucionais nos dois subsistemas para veri- sa comunidade de política, como Sérgio Arou-
ficar se e de que modo atores em posições vanta- ca, Gastão Wagner, Maria Jaeger, Saraiva Felipe
josas usaram tais regras para impedir mudança e Francisco Campos. Eles lideravam um grupo
na política de formação e provimento de médicos expressivo de integrantes da administração supe-
no Brasil durante os governos Lula, apesar das rior do MS que demonstrava forte sentimento
pressões para que isso ocorresse. de pertença e defendia os valores da comunidade.
Os estudos sobre processo político auxi- Foi identificada também a atuação de duas
liam para que os atores individuais e os coleti- outras comunidades políticas, tendo em vista a
vos sejam analisados, com seus interesses e suas ação coordenada de seus membros e o fato de
crenças, que agem em subsistemas de políticas compartilharem valores e visão sobre os resulta-
públicas. Empreendedores de políticas são ato- dos desejáveis na política em foco nesse estudo
res individuais chave que criam ou aproveitam e na política nacional de saúde: as comunidades
oportunidades e meios para colocar problemas e de política de defesa da regulação pelo merca-
soluções que defendem em evidência, e também do (CP-R Mercado) e defesa da medicina libe-
buscam viabilizar um processo político favorável ral (CP-M Liberal)9. A primeira era composta
para a decisão de entrada do problema e da solu- por representantes de organizações do comple-
ção na agenda institucional22. Eles exercem lide- xo médico-industrial-financeiro da saúde e de
rança e produzem coordenação em comunidades instituições de ensino superior (IES) privadas,
de política, que podem ser entendidas como gru- bem como por seus apoiadores, tais como parla-
pos mais ou menos coesos de atores individuais e mentares, servidores e dirigentes vinculados aos
coletivos, com diferentes posições institucionais poderes Legislativo e Executivo. Defendia que o
(Estado, mercado, organizações da sociedade ci- mercado regulasse a distribuição, a remunera-
vil) e relações entre si, que compartilham obje- ção, o escopo de práticas, a oferta e o conteúdo
tivos e ideias acerca de quais devem ser os resul- da formação dos profissionais de saúde. A CP-M
tados de políticas setoriais, atuando de maneira Liberal era liderada por dirigentes das entidades
coordenada para afetar processos decisórios e médicas. Membros desta comunidade represen-
tornar os seus posicionamentos predominantes tavam a categoria médica em fóruns consultivos
no governo23. Neste estudo foram especialmente e decisórios ministeriais, particularmente nas
analisados os objetivos, as ideias e as ações dos áreas de saúde e educação. Também a integra-
empreendedores de política e das comunidades vam parlamentares, gestores de serviços de saúde
de política que agiram para promover a mudança e de instituições de formação. A CP-M Liberal
enquanto outros procuraram mantê-la ou alterá defendia a manutenção do status quo caracteri-
-la minimamente. zado pela autorregulação profissional da medi-
cina, concebida predominantemente como uma
profissão liberal. Advogava, ainda, o monopólio
Resultados da profissão sobre as práticas de saúde de maior
valor simbólico e econômico, a livre escolha dos
A análise da literatura, dos documentos e das médicos quanto à atuação, bem como a imposi-
entrevistas permitiu a identificação de empreen- ção, pelas entidades médicas, de condicionantes
dedores de política que lideravam três comuni- extramercado, visando ao controle de preços da
dades de política e que buscaram influir na área força de trabalho e dos serviços médicos9.
de regulação, formação e provimento de médicos O arranjo institucional responsável pelas de-
com vistas a manter ou alterar a política vigen- cisões acerca das políticas de regulação, forma-
te. Uma delas era a CP-M Sanitário10, compos- ção e provimento médicos envolvia o Congresso
ta por acadêmicos, gestores e trabalhadores de Nacional (CN), o Mistério da Educação (MEC),
saúde, principalmente no âmbito do SUS, líderes o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o MS.
de entidades sindicais, profissionais e de outras O exercício profissional no Brasil tem forte pre-
organizações da sociedade civil da área de saú- sença do Estado, em um modelo de relações de
de. A CP-M Sanitário defendia os princípios da trabalho de origens corporativas24. As profissões,
Reforma Sanitária e do SUS, e que as políticas entre elas a médica, são regulamentadas por lei
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Pinto HA, Côrtes SMV

federal aprovada pelo CN. O MEC é responsável identificada aos movimentos sindical e sociais,
pelas decisões relacionadas à formação em nível que caracterizava o grupo anterior (entrevistas
de graduação e pós-graduação, inclusive a resi- [E] 3, 9, 12, 13 e 17).
dência médica, definindo, entre outros aspectos, Três frentes institucionais eram vistas pe-
as competências que devem ter os egressos dos los empreendedores das propostas de mudança
cursos. Outro indicativo da presença estatal é a como fundamentais para alterar a política de
necessidade de que profissões regulamentadas regulação, formação e provimento de médicos:
tenham conselhos profissionais, criados por lei o CN, o núcleo de governo, marcadamente o pre-
– CFM na Medicina –, que devem ser dirigidos sidente, seu entorno e a Casa Civil, e principal-
por pessoas eleitas pelos membros da própria mente o MEC (entrevistas 3, 9 e 13). As possibili-
profissão. Esses conselhos são responsáveis pela dades de alterações no arcabouço legal não eram
regulamentação infralegal e pela fiscalização do promissoras. No CN, muitos parlamentares eram
exercício profissional. Parte importante da defi- médicos e identificados com as ideias defendidas
nição de competências e titulação de especialistas pela CP-M Liberal. Na legislatura 2003-2007, dos
não é regulada pelo MEC, pois é feita pelas so- 626 deputados titulares e suplentes que assumi-
ciedades de especialidades médicas e reconhecida ram o mandato, 71 eram médicos, o que corres-
pelo CFM. O MS, por sua vez, opina sobre mu- ponde a 11,3%. No Senado eram 8 em 119, o que
danças na legislação que trata das profissões de representava 6,7% do total26. Apesar de alguns
saúde em tramitação no CN e participa de fóruns desses médicos integrarem a CP-M Sanitário,
de discussão no MEC que decidem a respeito da como Jandira Feghali, dr. Rosinha e Saraiva Fe-
formação médica. Sua influência nas políticas em lipe, a maioria era mais sensível às demandas da
análise é relativamente pequena se comparada ao CP-M Liberal. Os membros desta comunidade,
observado em outros países com sistemas públi- fossem eles parlamentares ou representantes das
cos de saúde abrangentes, como Reino Unido, entidades médicas, exerciam poder de veto a pro-
Canadá e Espanha5-8,11,25. postas de mudança na legislação vigente sobre
Durante o governo Lula, a maioria dos inte- regulação, formação e provimento médicos dis-
grantes do primeiro escalão do MS pertenciam à cutidas no CN9. Além disso, havia uma tendência
CP-M Sanitário9. Sua intenção era implementar de o CN ser conservador ao tratar de mudanças
políticas de acordo com os princípios e as pro- nas regras das profissões já regulamentadas (E 3,
postas que defendiam. Uma das áreas a serem 6, 9, 12, 13, 15 e 18).
mudadas era a que se referia à política de regula- Dadas as dificuldades no CN, os empreende-
ção, formação e provimento de médicos. As mu- dores da mudança, em especial os dirigentes da
danças propostas visavam, sobretudo, aumentar SGTES, direcionaram seus maiores esforços para
o poder do MS na área, estabelecendo que as reduzir o papel do MEC na área e ampliar a influ-
necessidades do SUS deveriam ser o principal ência do MS na formação médica, considerando
critério de decisão sobre a política a ser adotada. as necessidades do SUS. O MEC, além de decidir
O centro de produção e de coordenação da ação sobre a formação, regulava a residência médica
na defesa dessas propostas estava na Secretaria de por meio da Comissão Nacional de Residência
Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SG- Médica (CNRM), cuja maioria dos membros
TES), do MS, criada em 2003 (Decreto nº 4.726). era representante de entidades médicas (Decre-
A SGTES foi comandada, desde sua criação até to nº 91.346/1985). Entre os nove integrantes da
julho de 2005, por Maria Luísa Jaeger, responsá- CNRM, quatro representavam o governo federal
vel, junto com o grupo que ocupou os cargos de e cinco, entidades médicas – CFM, Associação
direção superior da secretaria no período, pela Médica Brasileira, Federação Nacional dos Médi-
sua estruturação. A SGTES e os integrantes do cos, Associação Nacional dos Médicos Residen-
grupo eram membros da CP-M Sanitário e po- tes e Associação Brasileira de Educação Médica.
dem ser considerados como empreendedores da Além disso, o MEC constituia comissões de espe-
proposta de mudança nas políticas da área. Com cialistas, consultivas e ad hoc, que examinavam e
a troca de ministro da Saúde em julho de 2005, opinavam sobre temas relacionados à formação
quando Humberto Costa, do PT, foi substituído de profissionais. Quanto à formação dos médi-
por Saraiva Felipe, do MDB, Francisco Campos cos, o MEC costumava consultar essas comissões
assumiu a direção da SGTES e parte da equipe e esses órgãos do próprio Ministério, como o an-
diretiva da SGTES foi trocada. O novo secretário tigo Departamento de Hospitais Universitários.
e sua equipe também integravam a CP-M Sani- Não era apenas a ação de integrantes da CP-M
tário, porém tinham uma filiação societal menos Liberal junto à CNRM, ao Conselho Nacional
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de Educação e à direção do MEC que poderiam busca por vincular formação médica às necessida-
impor obstáculos à mudança, havia um modo des do SUS, era uma interferência na autonomia
institucionalizado, histórico, de relação entre a do MEC [...] nós não conseguimos avançar, pela
categoria médica e o MEC, além de respeito ao força da corporação e pela posição do MEC (E 9).
poder simbólico do saber médico acerca de suas Entre 2003 e 2010, os empreendedores da mu-
práticas, que também dificultava a aceitação de dança na política que estavam na direção do MS
propostas de mudança (E 3, 5, 9 e 12). Predomi- apresentaram diversas propostas de alteração no
nava uma visão de que na medicina, por ser uma modo como se organizava a regulação, a forma-
formação profissional, eram as entidades médi- ção e o provimento de médicos no país9. Além da
cas que deveriam, em diálogo com as IES, orien- tentativa frustrada de transferir para o MS a atri-
tar a formação9. buição de ordenar a formação em saúde, desta-
Dirigentes da SGTES direcionaram sua ação camos aqui quatro delas, tendo em vista o envol-
principalmente para alterar os papeis do MEC e vimento do núcleo de governo e, na maioria dos
do MS na formação de profissionais de saúde. O casos, do CN no processo decisório que conduziu
ministro da Educação, Cristovam Buarque, e o à sua implementação ou insucesso: (1) serviço ci-
núcleo do governo, em 2003, se mostravam dis- vil obrigatório, (2) acordos internacionais sobre
postos a transferir, do MEC para o MS, o poder diplomas médicos, (3) Revalida e (4) alteração da
de decisão sobre a formação dos profissionais Lei do Fundo de Financiamento do Estudante do
de saúde. A CNRM e as instâncias do MEC que Ensino Superior (Fies). A proposta de implantar
tratavam da área seriam deslocadas para o MS. no país o serviço civil obrigatório consistia em
A troca de ministro, em janeiro de 2004, quando tornar compulório aos médicos recém graduados
Tarso Genro assumiu o MEC, estancou o proces- a prestação de serviços remunerados aos SUS, em
so. Conforme um dirigente da SGTES à época regiões subatendidas, por um período determi-
afirmou: Chegou-se a montar uma [normatiza- nado. Sua implementação dependia de aprovação
ção] que ia ser assinada [...] passando tudo para de lei federal. A celebração de acordos internacio-
a gente. [...] Vinha tudo, CNRM, vinham todas as nais tinha por objetivo o reconhecimento mútuo
direções [áreas do MEC responsáveis pela formação entre países de diplomas de médicos formados e
em saúde]. Ele topou. [...] Mas aí Lula o demitiu também dependia de aprovação do CN, no caso,
(E 13). do Senado. A alteração no Fies previa a concessão
Alertada da possibilidade de transferência de moratória e abatimento da dívida de médicos
do poder de decisão sobre a política para o MS, que usaram o Fies e que optassem pela atuação
onde perderia sua posição privilegiada no pro- na Estratégia de Saúde da Família em áreas suba-
cesso decisório, a CP-M Liberal reagiu. As fortes tendidas ou que fizessem residência médica em
reações da CP-M Liberal, combinadas à posição especialidades consideradas prioritárias pelo MS.
da nova direção do MEC, que reproduzia a com- A alteração também dependia de aprovação do
preensão hegemônica no subsistema educação de CN. A criação do Revalida, denominação usual
que a regulação deveria ser exercida pelo MEC do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas
e não pelo MS ou pelo SUS, obrigou os repre- Médicos Expedidos por Instituição de Educação
sentantes do MS a recuar da tentativa de exercer Superior Estrangeira, dependia unicamente de
maior influência na área9. Paralelamente, a CP-M decisão do MEC9.
Liberal continuou, daí em diante, a exercer poder As propostas do serviço civil obrigatório e
de veto sobre “visões estatistas” que procuravam de celebração de acordos internacionais de reco-
restringir a autorregulação profissional ou que nhecimento mútuo de diplomas médicos foram
visassem alterar suas posições privilegiadas na discutidas com o núcleo do governo durante os
estrutura institucional, garantidas pela manuten- anos de 2003 e 2004. Assim como ocorrera com
ção do arcabouço institucional vigente. O trecho a transferência de atribuições de formação em
da entrevista de um dirigente do MS expressa saúde do MEC para o MS, foram recusadas. Em
essa situação: comum, as três negativas tinham a posição fron-
As corporações médicas eram muito fortes, elas talmente contrária da CP-M Liberal e a falta de
controlavam o aparelho formador, elas tinham um apoio ou resistência do MEC. Porém, o serviço
peso muito grande no Conselho Nacional de Edu- civil obrigatório e os acordos internacionais de-
cação, elas comandavam a formação no âmbito da pendiam adicionalmente de aprovação no CN,
residência médica. E elas se contrapuseram a isso o que tornava a sua defesa mais custosa para o
[a tentativa de mudança]. Ao mesmo tempo, os mi- governo, ainda mais com a clara oposição da
nistros [do MEC] [...] entenderam que essa nossa CP-M Liberal. Não havia disposição do núcleo
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Pinto HA, Côrtes SMV

de governo em fazer esse enfrentamento, pois ratória, além de limitar a expansão do mercado
avaliava-se que deslocar a questão para a arena privado de ensino superior, restringia o cresci-
de disputa do Legislativo traria desgaste político mento da oferta de médicos, que interessava ao
maior do que o ganho setorial da medida (E 12, mercado privado de saúde por conter o aumento
13 e17). O trecho de entrevista de dirigente do dos custos da força de trabalho médica9.
MS durante o governo Lula revela a presença do Ao final do segundo mandato do governo
efeito restritivo que a oposição da CP-M Liberal Lula, em 2010, foi aprovada pelo núcleo de go-
exercia sobre as decisões do núcleo do governo, verno a única proposta na área em análise que
bem como a escolha de propostas de alteração na contava com forte oposição da CP-M Liberal, o
política que não provocassem essa oposição. Revalida. O presidente Lula sensibilizou-se ao
[Fizemos] a avaliação de todas as coisas que já tema do reconhecimento dos diplomas dos mé-
tinham sido feitas no MS que envolviam formação dicos brasileiros formados no exterior desde o
e provimento, [...] quais iniciativas a gente achava primeiro ano do mandato, contudo, a proposta
que eram mais negociáveis com as entidades médi- de acordos bilaterais para reconhecimento mú-
cas. [...] A gente foi avaliando essas possibilidades tuo de diplomas não conseguiu progredir. No úl-
que não tinham um enfrentamento drástico (E 17). timo ano de seu governo, ele exigiu uma solução
Esse cenário levou o MS, a partir de 2005, a se ao MEC e ao MS. Estes propuseram uma na qual
acomodar a essas limitações do contexto político não foi necessário enfrentar o desgaste de trami-
-institucional e levar adiante apenas proposições tar no CN, que dialogou com a ideia de “meri-
que tivessem apoio do MEC e da CP-M Liberal. tocracia” defendida pela CP-M Liberal, por ser
Um dirigente do primeiro escalão do MS, em en- concedido apenas àqueles que fossem aprovados
trevista, utiliza de uma metáfora para caracterizar no exame, e que promoveu apenas uma alteração
a situação: É aquela história do círculo de giz que incremental e que pouco modificava o arranjo
você traça e o peru se sente preso ali dentro. [...] institucional vigente, pois as IES seguiram com a
Você não sai fora do círculo. [...] Todas as ações [que atribuição de validar os diplomas e podiam optar
fizemos] se colocam ainda dentro do círculo (E 3). por aderir ou não ao novo exame nacional (E 3,
Os empreendedores vinculados à CP-M Sa- 9, 12 e 13).
nitário, que dirigiam o MS, avaliavam que havia
acentuada inadequação na formação e insufici-
ência na oferta de médicos às necessidades do Discussão
SUS. Para eles, isso limitaria, no médio prazo,
a consecução de alguns objetivos do governo, As abordagens neoinstitucionalistas do processo
como a melhoria da qualidade da atenção e a ex- político ajudam a compreender como estruturas
pansão dos serviços de saúde. Durante esse pe- político-institucionais dão oportunidades ou
ríodo, o problema foi parcialmente contornado restringem a ação de atores individuais e coleti-
com medidas como a oferta de cursos diversos a vos que, mesmo no topo das hierarquias sociais,
profissionais que já atuavam no SUS, custeados são levados a adotar atitudes que contribuam
pela SGTES, e o aumento dos repasses federais, com resultados diferentes de seus objetivos e de
tais como no Piso de Atenção Básica, que amplia- suas ideias23. Entre elas, destacamos a TMIG19
vam a capacidade de os municípios recrutarem que possibilitou que analisássemos as caracterís-
médicos no mercado de trabalho (E 1, 9 e 17). ticas dessas estruturas, a atuação e as estratégias
Por um lado, a CP-M Liberal foi capaz de vetar de atores nelas bem posicionados que consegui-
mudanças que alterassem o arranjo institucional ram impedir mudanças na política de regulação,
que lhe favorecia, por outro, as CP-M Sanitário, formação e provimento de médicos no período
em particular seus membros na direção do MS e analisado que fossem além de alterações incre-
CP-R Mercado, conseguiram impedir o sucesso mentais. Três restrições político-institucionais
de propostas defendidas pela CP-M Liberal. Em foram identificadas como as mais importantes
2009, o governo paralisou no CN o projeto de para a relativa estabilidade da política: 1) a forte
lei do “Ato Médico”, que ampliava os atos consi- oposição de alguma das três comunidades de po-
derados exclusivos dos médicos, reputado como líticas com maior influência no processo; 2) a fal-
prejudicial ao SUS pela CP-M Sanitário. Outro ta de apoio ou resistência do MEC às mudanças
exemplo foi a oposição manifesta ao governo da propostas; e 3) a decisão do núcleo do governo de
CP-R Mercado, que impediu que a proposta das não levar adiante propostas que, ao mesmo tem-
entidades médicas de moratória na abertura de po, tivessem que ser aprovadas no CN e contas-
novos cursos de medicina tivesse sucesso. A mo- sem com a oposição de uma dessas comunidades.
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O núcleo do governo avaliava que deslocar a are- médicos que ingressaram no processo político
na de disputa para o CN nesta situação apresen- no período de 2003 a 2010 e as posições das três
tava um potencial de desgaste político maior do comunidades de política e da direção do MEC,
que o provável ganho setorial da medida. indicando se havia necessidade de mudança legal,
A primeira estratégia tentada pelos empreen- se foi implementada e quando o foi ou quando
dedores da mudança, que dirigiam o MS e eram saiu da agenda de debates do governo.
vinculados à CP-M Sanitário, foi a de “desloca- A única solução que não contou com a opo-
mento”19, ao tentarem mudar o arranjo institu- sição de nenhuma das comunidades de política
cional para ampliar o papel do MS no processo de e nem da direção do MEC foi a mudança da Lei
decisão sobre a política. O insucesso da tentativa, do Fies, que teve o acordo do núcleo do governo
a manutenção do status quo, tendo em vista a for- para que fosse votada no CN. A única proposta
te resistência da CP-M Liberal e a “conformidade” que conseguiu ser implementada mesmo tendo
da direção do MEC às regras e às tradições que a oposição de uma comunidade, no caso a CP-M
atribuíam às entidades médicas e às IES poder Liberal, foi o Revalida, contudo, sua implemen-
discricionário perante a política impulsionou tação dependia unicamante do MEC, não sendo
uma mudança de estratégia na direção do MS, em necessária a aprovação do CN. Além disso, o pre-
sua maioria integrantes da CP-M Sanitário. sidente Lula a defendia, o que foi decisivo para
Em especial a partir de 2005, considerando as que o MEC não resistisse à medida, mesmo com
limitações do contexto político-institucional, os a contrariedade da CP-M Liberal. O poder de
dirigentes do MS optaram por desenvolver uma agenda do presidente é reconhecido na literatura
estratégia de “mudança em camadas”19, na qual como importante fator de mudança institucio-
apenas davam seguimento às propostas em que nal em subsistemas setoriais, especialmente no
havia acordo com o MEC, respeito ao limites da- Brasil27. À exceção do Revalida, só prosperou o
dos pela CP-M Liberal e que não alteravam pro- que foi “tolerado” pelas três comunidades e pela
fundamente o status quo. Por outro lado, a opo- direção do MEC.
sição do MS ou da CP-R Mercado impedia que Assim, de 2003 a 2010, não foi alterado o ar-
medidas defendidas pela CP-M Liberal fossem ranjo institucional em análise nem foi implemen-
aceitas pelo núcleo de governo, como o projeto tada mudança na regulação do trabalho médico
de lei do Ato Médico e da moratória de abertura ou na política de provimento, pois a mudança da
de novos cursos de medicina. No Quadro 3 são Lei do Fies foi apenas um estímulo para a atuação
apresentadas as principais propostas de mudança de médicos em áreas subatendidas, e o Revalida,
na política de regulação, formação e provimento embora pudesse ampliar a quantidade de médi-

Quadro 3. Principais propostas de mudança, legais ou administrativas, na política: posições das comunidades de política, da
direção do MEC – 2003/2010.
Posições Necessi- Ano da
Com. dade de implementação
Com. Com. Imple-
Propostas de mudança regulação Direção aprovação ou da decisão
mov. medicina mentado
pelo do MEC no Con- de não
sanitário liberal
mercado gresso implementar
Serviço civil obrigatório A favor Contra Neutra Neutra Sim Não 2004
Acordos internacionais de A favor Contra Neutra Neutra Sim Não 2004
reconhecimento mútuo de
diplomas médicos
SUS com a atribuição de ordenar A favor Contra Neutra Contra Não Não 2004
a formação de recursos humanos
em saúde
Moratória na abertura de cursos Neutra A favor Contra Contra Não Não 2005
de medicina
Ato médico Contra A favor Neutra Neutra Sim Não 2009
Fies A favor Neutra A favor A favor Sim Sim 2010
Revalida A favor Contra Neutra A favor Não Sim 2010
Fonte: Autores.
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Pinto HA, Côrtes SMV

cos no mercado de trabalho, o que não ocorreu9, que, em outro contexto, veio a mudar a política
não foi articulado a instrumentos de provimento de formação, regulação e provimento de médi-
a áreas com necessidade identificadas pelo MS. cos no país, mesmo sofrendo forte oposição da
Foram implementadas medidas incrementais de comunidade de medicina liberal. Assim, não há
menor impacto que tentaram alterar o perfil da possibilidade de explicar como o PMM foi possí-
formação médica, mas sem mudar o equilíbrio vel sem analisar, nesse período, o agravamento do
institucional vigente na área e sem fazer uso de problema da insuficiência de médicos, a falta de
instrumentos de política existentes para regular o uma política que o enfrentasse, a trajetória dessa
sistema federal de ensino superior. política caracterizada por tentativas de avanço e
Ainda assim, foram constituídos legados, de vetos, os aprendizados posteriores com essas
ideacionais e institucionais, decisivos para a for- experiências e tentativas, bem como os recursos
mulação, viabilização e implementação do Pro- que as mesmas legaram à decisão, à formulação e
grama Mais Médicos (PMM), três anos depois, à implementação do PMM9.

Colaboradores

O autor e a autora participaram de todas as eta-


pas de construção do trabalho, a saber: a concep-
ção e o delineamento ou a análise e interpretação
dos dados, redação do artigo e aprovação da ver-
são a ser publicada.
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