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Resumo para vídeo - ABRASCO

DOS DECRETOS ÀS NOTAS DE REPÚDIO: CARTOGRAFANDO OS EFEITOS DAS


“NOVAS” POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL E DE DROGAS

Introdução e Objetivo
Diante de um cenário de incertezas e retrocessos nos campos das Políticas de Saúde
Mental e sobre Álcool e outras Drogas, numa arena constituída por disputas e
explícitos interesses econômicos, políticos e ideológicos, justifica-se social e
academicamente a realização de uma pesquisa sobre os efeitos dessas “novas”
políticas. Assistimos as disputas por modelos de atenção e recursos públicos, cujo
movimento de remanicomialização da Política Nacional de Saúde Mental está inscrito
no desmonte geral do SUS, seguindo tendências neoliberais baseadas no trinômio
austeridade-privatização-desregulamentação, acentuadas pela crise econômica e
avanço de movimentos conservadores aos espaços de poder. As conquistas até então
alcançadas pelos movimentos sociais, especialmente pelo Movimento Nacional da
Luta Antimanicomial e Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, parecem pouco
sólidas diante dessa conjuntura política e econômica, que cria ainda mais obstáculos à
lógica do cuidado em rede, territorial, comunitário, intersetorial e pautado na Redução
de Danos. Tendo como objetivo geral acompanhar os efeitos das novas políticas de
saúde mental e sobre drogas, especialmente no contexto do município de Porto
Alegre/RS, propomos uma pesquisa-intervenção cartográfica. Ao propor o
acompanhamento dos efeitos das novas políticas de saúde mental e sobre drogas,
estamos, de alguma forma, propondo o acompanhamento das forças instituintes nesse
campo de significativos retrocessos, forças que fazem funcionar outros registros de
atuar, de pensar, que burlam a homogeneização do pensamento. Nesse trabalho,
especificamente, buscamos cartografar pistas e problematizar os retrocessos e as
resistências provocadas pelas publicações de portarias, notas técnicas e resoluções
no campo da saúde mental e das políticas sobre drogas.
Metodologia
Numa proposta de pesquisa-intervenção cartográfica, entendemos que a pesquisa-
intervenção se coloca como uma escolha teórico-metodológica e também ético-
política, uma vez essa convoca as forças instituintes pela desnaturalização
permanente dos objetos que pretendemos conhecer, pela implicação dos
pesquisadores e pelas contingências que acompanham as situações e seus efeitos. A
cartografia, enquanto um método da pesquisa-intervenção, é entendida como um
método de aproximação da subjetividade, concebida em sua dimensão processual – o
sujeito é, ao mesmo tempo, produto e processo de produção constante. Ao longo de
toda a pesquisa-intervenção prevemos a realização de uma pesquisa documental,
focada em portarias, resoluções, notas técnicas e de repúdio.
No movimento de rastreio e mapeamento de documentos referentes às novas políticas
de saúde mental e sobre drogas, propomos o método de análise documental e a
pesquisa bibliográfica como estratégias de pesquisa-intervenção. A pesquisa
documental tem como proposta a produção de novos conhecimentos, criando novas
formas de compreender os fenômenos através do amplo exame de diversos materiais
ainda não analisados ou que serão reinterpretados (KRIPKA; SCHELLER; BONOTTO,
2015). Flick (2009), ao destacar que o pesquisador deve entender os documentos
como meios de comunicação, indica a importância de se analisar quem os produziu,
quais suas finalidades, para quem foram construídos e a intencionalidade de suas
elaborações. Devem ser entendidos, portanto, como uma forma de contextualização
da informação e do conhecimento de um determinado campo ou território, sendo
analisados como “dispositivos comunicativos metodologicamente desenvolvidos na
produção de versões sobre eventos” (FLICK, 2009, p. 234).
No caso desta pesquisa, buscamos construir um corpus significativo de documentos
referentes às novas políticas de saúde mental e sobre drogas, sendo, dessa forma,
importante considerar que os documentos fazem referência a outros documentos
(intertextualidade). Essa observação de Flick (2009) é importante porque precisamos
observar as conexões entre os documentos na análise, buscando problematizar o
modo como documentam e constroem esse território das novas políticas.
Partindo do decreto que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras
drogas, em 2010, encontramos 98 documentos relativos às políticas mencionadas,
num conjunto aparentemente caótico de portarias, resoluções e notas ministeriais,
decretos presidenciais e uma série de notas de repúdio e manifestações de diferentes
associações profissionais e civis. Cada um desses documentos está nos conduzindo,
num movimento rizomático, aos efeitos provocados pelos mesmos, num caminho
repleto de encontros com outros documentos.
Resultados
Ao serem dispostos e inicialmente organizados em um mapa conceitual, com o auxílio
da plataforma mindmeister, os 98 documentos foram mapeados a partir de 8 eixos: o
Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas; Rede de Atenção
Psicossocial; Alterações na Rede de Atenção Psicossocial; Política de Drogas;
Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas
Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas; Controle Social; Dispositivos de Gestão;
e Cooperação entre Administração Públicas e as Organizações da Sociedade Civil.
Além destes eixos, mapeamos documentos sobre o Serviço de avaliação e
acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental
em conflito com a Lei, aparentemente desvinculados dos demais documentos; e
políticas e leis que afetam a Reforma Psiquiátrica Brasileira e constituem uma base de
problematização para os demais documentos – Lei de Desvinculação das Receitas
União (1994), Emenda Constitucional 95 (que limita por 20 anos os gastos públicos) e
a Emenda Constitucional nº 86, que altera os artigos 165, 166 e 198 da Constituição
Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que
especifica.
Conforme destacam Guimarães e Rosa (2019), o período de 2010-2019 é fundamental
para a reflexão sobre os ataques e os rumos da Reforma Psiquiátrica brasileira. A
começar pelo Decreto 7.179 de 2010, que instituiu o Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, cujos princípios foram reafirmados pela
Nota Técnica do Ministério da Saúde n.11/2019. O mapeamento dos documentos
torna ainda mais evidentes as relações que se retroalimentam entre o Plano Integrado
de 2010, a proposta da Nova Política de 2019 e as alterações na RAPS, por exemplo.
Num movimento de sobrevoo e pouso, característicos da atenção de um cartógrafo
(KASTRUP, 2008), percebemos possíveis relações entre regulamentações das
Políticas sobre Drogas e Saúde Mental com documentos que alteram as parcerias
público-privadas, dispositivos de gestão e de controle social.
Para citar um exemplo, a Cooperação entre Administração Pública e as Organizações
da Sociedade Civil, regida pela Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, associa-se e dá
respaldo à criação do Comitê para consolidação da regulação e parcerias com as
comunidades terapêuticas (Portaria n° 3.449 de 25 de outubro de 2018) e à
Organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios
(Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019), com a criação do Ministério da
Cidadania, que passa a receber investimentos da Política de Drogas, publicar editais
com significativos recursos destinados às organizações da sociedade civil e celebrar
contratos com comunidades terapêuticas. Nessa complexa relação entre os
documentos, acrescentam-se os Decretos nº 9.759, de 11 de abril de 2019
(participação social em órgãos colegiados) e o nº 9.926, de 2019, que dispõe sobre
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, ambos enfraquecendo a participação
social e, consequentemente, diminuindo o controle social nos contratos e parcerias
público-privadas.
Diante desses inúmeros desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira, urge destacarmos
os movimentos de resistência, aqui representados por inúmeras notas de repúdio e
recomendações. Entidades e órgãos como o Conselho Nacional de Saúde, Conselho
Nacional de Direitos Humanos, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Associação
Brasileira de Saúde Mental, Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma
Psiquiátrica e Luta Antimanicomial, Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e
Conselhos Federais de Psicologia, Serviço Social, Enfermagem e Terapia Ocupacional
vêm se posicionando criticamente frente aos retrocessos, em especial, colocando-se
em oposição aos documentos publicados pelo Conselho Federal de Medicina e
Associação Brasileira de Psiquiatria.
Considerações Finais
Os documentos cartografados até então nos sinalizam movimentos que precisam ser
acompanhados. Quais efeitos são sentidos no cotidiano dos serviços a partir dessas
políticas? Que com-posições vêm sendo construídas diante dos desmontes no campo
da saúde mental? Entendemos que, junto aos retrocessos, precisamos também nos
mover com os movimentos de resistência e invenção de novas formas de fazer política
e cuidado em liberdade.

Referências
FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009.
GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde
mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista.
O Social em Questão, Ano XXII, n. 44, p. 111-138, 2019.
KASTRUP, V. O método da cartografia e os quatro níveis da pesquisa-intervenção In:
CASTRO, L. R. de; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e
juventude. Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008, p. 465-489.
KRIPKA, R. M. L.; SCHELLER, M.; BONOTTO, D. L. Pesquisa Documental na
pesquisa qualitativa: conceitos e caracterização. Revista de Investigaciones UNAD, v.
14, n. 2, p. 55-73, 2015.

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