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INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

CRISTIAN DA CRUZ CHIABOTTO

REFLEXÕES SOBRE O AQUILOMBAMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA


BRASILEIRA

2022
PORTO ALEGRE – RS
Ao realizar a leitura do artigo “Nem crioulo doido nem negra maluca: por um
aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, dos autores Emiliano Camargo
David e Maria Cristina Gonçalves Vicentin, deparamo-nos com um tema
negligenciado ao longo dos anos de luta antimanicomial no Brasil e América Latina.
Vemos com o Manifesto da Carta de Bauru que desde os primeiros passos dados no
movimento da RP brasileira, já se sabiam que as opressões interseccionalizadas de
gênero, raça e classe são determinantes sociais que incidem diretamente na saúde
mental e no modo com as políticas públicas neste campo são sistematizadas. No
entanto, apesar da aparente consciência de que as opressões estruturais do colonial-
capitalismo incidem sobre as políticas de saúde mental, o histórico processo de
genocídio sistemático da população negra ocupou um lugar marginal em nossas
discussões, aparecendo em pouco ou quase nenhum momento como temática central
na compreensão da manicomialização.

Dito isto, ao longo do texto se discutem as fases vivenciadas pela construção


da psiquiatria brasileira enquanto ciência médica, processo este que aqui foi tomado
por bases eugenistas. O racismo científico foi e ainda reverbera as epistemologias
sob as quais foram erguidos os saberes médicos, sendo a psiquiatria uma ferramenta
útil ao Estado brasileiro, uma vez que ao patologizar pessoas negras e indígenas
como raça inferior justificando por este viés a loucura, o modelo manicomial servia de
um grande depósito de apartheid das cidades e do projeto de branqueamento das
populações do país. Para além dos importantes dados citados no corpo do artigo e
que mostram que o lugar dos corpos negros nos manicômios como uma das
estratégias fundantes e intrincadas com o racismo estrutural e institucional brasileiro,
nos deparamos também com um pacto epistemológico de apagamento da
contribuição teórica de pensadores negros e negras, bem como um vazio crônico de
perspectivar o manicômio como produto colonial.

Nesta direção, me recordo aqui da contribuição de Fanon, importante


psiquiatra e militante martinicano que também foi apagado das construções
epistemológicas da luta antimanicomial brasileira. Fanon em “Os Condenados da
Terra” ao tecer uma genealogia do modo colonial de subjetivação e construção da
modernidade, situa o modelo manicomial não só como produto da colonização, mas
como expressão do funcionamento da lógica da colonialidade: exclusão, alienação e
segregação do povo negro e indígena, de mulheres, de LGBTs e de tantas outras
existências exploradas pelo capitalismo-colonial-moderno. A loucura em sua face
mais radical, já sabemos ser resultado de um complexo processo de determinantes
cruzados e sobrepostos, e destaco aqui a incidência do modo de subjetivação colonial
no sofrimento psíquico.

Nestes últimos anos, temos vivido no Brasil o avanço de políticas neoliberais,


conservadoras e neofascistas, concomitantemente à um retrocesso sem precedentes
no campo das políticas públicas de saúde mental. A relação destes dois campos de
força não é por acaso, o Estado necropolítico precisa da ativação do modelo
manicomial como expressão de sua ação mortificadora, racista e excludente. Os
corpos negros que são alvos destas políticas, são submetidos à um modelo de
atenção em saúde mental encarcerador, que têm no hospital psiquiátrico e nas
comunidades terapêuticas, sua centralidade. Internações involuntárias,
procedimentos invasivos, isolamento do campo familiar e social são os atuais
direcionamentos da política de saúde mental, desvelando o processo de colonialidade
do poder no campo da reforma psiquiátrica.

Ao compreendermos a colonialidade como um modo sistemático de violências


que se inaugura no processo de colonização fundante da modernidade, Maldonado-
Torres (2020) nos aponta a captura dos saberes e conhecimentos dos povos
indígenas e da diáspora africana, como uma das faces do eurocentrismo. Este modo
de reprodução de uma certa universalização do conhecimento europeu e ocidental
denominado de colonialidade do saber, consolida ao longo da história dos países
colonizados, um apagamento e esquecimento das epistemologias e
cosmopercepções dos povos da diáspora e de outros povos tradicionais que já
habitavam nosso continente. Não seria diferente neste processo de sistematização e
fundação de conhecimento – conjunto este que se conforma em um campo que
denominamos Reforma Psiquiátrica.

A colonialidade do saber no campo da saúde mental, torna-se evidente ao


bebermos de fontes europeias na estruturação dos nossos serviços de saúde mental.
Nossas referências são autores brancos e europeus, e que apesar de sua inegável
contribuição para o urgente debate da reforma psiquiátrica, estão deslocados da
realidade do povo negro brasileiro que sofre com o predatório sistema colonial-
capitalista. O que se descortina com este processo de esquecimento do debate
étnico-racial em quase 30 anos de RP no Brasil, é o que Maria Aparecida Bento (2022)
denominou de pacto narcísico da branquitude. Trabalhadores, militantes e
pesquisadores que compuseram e compõem o campo da RP brasileira, assinaram
um pacto silencioso e coletivo de este apagamento epistemológico que fala tanto do
racismo estrutural que alimenta o modelo manicomial, quanto da contribuição pioneira
de teóricos negros como o médico psiquiatra Juliano Moreira que na primeira metade
do século XX já desafiava o racismo científico da psiquiatria.

Com este cenário colocado, o que se faz necessário é a descolonização do


campo da reforma psiquiátrica brasileira, como instrumento de trabalho e de
resistência. O modelo manicomial-colonial não se expressa apenas no retorno dos
hospitais psiquiátricos à cena, mas também no pacto silencioso nos longos anos em
que a reforma psiquiátrica não cita as opressões de gênero, raça e classe. Temos
presenciado alguns movimentos de pesquisadores e trabalhadores da saúde mental
neste esforço de aquilombar a reforma psiquiátrica, e ressalto aqui a importância
deste processo ser instrumento de análise, luta e construção do modelo de atenção
psicossocial que queremos.

Referências Bibliográficas

BENTO, M.A. O pacto da branquitude. - Rio de Janeiro: Companhia das Letras,


2022.

FANON, F. Os condenados da terra. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MALDONADO-TORRES, N. Analítica da colonialidade e decolonialidade:


algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-
TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.). Decolonialidade e Pensamento
Afrodiaspórico. – 2ª ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2020

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