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Pizzinato, A. (2010). Psicologia da Liberação. Em J. C. Sarriera & E. T. Saforcada.

Introdução à Psicologia Comunitária (pp. 113-138). Porto Alegre: Sulina.


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PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Adolfo Pizzinato

Histórico

As raízes, ou antecedentes históricos da Psicologia da Libertação,

apesar de genuinamente latino-americanos, não são originários da psicologia, pelo

menos não da psicologia acadêmica oficial. As duas principais teorias presentes na

constituição dos pressupostos básicos da Psicologia da Libertação são a Educação

Popular de Paulo Freire no Brasil e a Sociologia Crítica, ou Militante de Fals Borda

na Colômbia (Montero, 2000). Estas teorias possuem em comum uma prática

transformadora, e seus aplicadores se definem como agentes de mudança social ao

invés de uma posição absolutista, de detentores de poder e saber. Estas definições

implicam uma mudança não apenas no papel dos psicólogos (assistentes sociais,

educadores, profissionais da área da saúde...), mas também na forma de ver todas

as pessoas envolvidas.

A Libertação nestas perspectivas, começa desde uma concepção que

reconhece a liberdade do outro, que deixa de ser um sujeito “sujeitado”, para ocupar

um lugar de igualdade, ativo enquanto ator social fundamental; proprietário de

habilidades e conhecimentos específicos, de uma índole particular (Montero, 2000).

Além do reconhecimento dos saberes populares e grupais, estas matrizes teórico-

epistemológicas da Psicologia da Libertação, possuem ainda alguns aspectos em


comum, fundamentais para o entendimento da perspectiva psicossocial da

Psicologia da Libertação:

• Geração de uma práxis libertadora;

• Centrada na transformação social;

• Ação transformadora sobre a realidade;

• Redefinição do papel dos pesquisadores e interventores sociais e


definição das pessoas e grupos interessados como atores sociais;

• Relação dialógica entre agentes externos e agentes internos da


mudança social;

• Valorização do saber popular;

• Desideologização;

• Conscientização;

• Autocontrole por parte das pessoas e grupos interessados;

• Compromisso;

• Uso de formas participativas de pesquisa-ação;

• Recuperação crítica da história.

Figura 1: Pontos convergentes da educação popular e da sociologia crítica na psicologia da


libertação. Montero, M. (2000), p.12.

Assim como outras teorias no âmbito da psicologia, além destas raízes

advindas de outras áreas do conhecimento, a Psicologia da Libertação possui uma

figura pioneira: Ignácio Martín-Baró. Nascido em 1942, em Valladolid, Espanha.

Entrou na Companhia de Jesus em 1959 e no mesmo ano transferiu-se para El

Salvador, onde continuou seus estudos no noviciado. Iniciou seus estudos na área

das ciências sociais na Universidad Católica de Quito, formando em filosofia na

Universidad Javeriana de Bogotá em 1964.

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O marxismo e a psicanálise seriam posteriormente duas fontes que nutririam

seu currículo intelectual antes de chegar à Psicologia da Libertação; a essa

Psicologia Social que tem seu fundamento epistemológico no realismo crítico.

Martín-Baró em sua tese de licenciatura em Filosofia e Letras, defendida na

Pontifícia Universidad Javierana (Colômbia) possui um claro sabor existencialista,

Sufrir y ser. Entretanto, já em seu primeiro capítulo aborda o tema do “hedonismo

freudiano”, sendo Viktor Frankl seu principal protagonista. Esta tese havia sido

precedida por outros dos trabalhos: “Complejo o cultura? Una crítica antroplógica a

la obra de Tótem y Tabú de Sigmund Freud de acuerdo con los descubrimientos de

Malinowski”, e “Nietzsche y Freud”, ambos realizados em 1963 e não publicados. E

é assim que o existencialismo, a psicanálise e o marxismo se convertem nos pilares

sobre os que publica seu primeiro livro, Psicodiagnóstico de América Latina (Blanco,

20001).

A influência dinâmica se foi diluindo dando espaço a uma postura claramente

instalada no materialismo histórico. Visto em perspectiva, era lógica esta evolução,

desde uma epistemologia preferentemente individualista, como é a que predomina

na Psicanálise, (receosa das realidades objetivas e separada das condições

materiais em que se desenvolve a vida das pessoas) à que Martín-Baró seria muito

difícil seguir, depois do advento, da cada vez mais influente Teologia da Libertação,

verdadeiro motor intelectual da teoria de Martín-Baró.

Regressou a El Salvador em 1966, donde tornou a sair para aperfeiçoar seus

estudos de teologia em Frankfurt e Louvaine. Voltou a El Salvador, onde graduou-se

em psicologia e começou a lecionar na área. Em 1977 obteve o mestrado em

ciências sociais pela University of Chicago e o doutorado, na mesma universidade,

no ano de 1979, na área de psicologia social. Depois disto, voltou a El Salvador,

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onde dedicou-se à atividades acadêmicas, direção de institutos de pesquisa em

opinião pública, fundação e edição de revistas na área de psicologia (Blanco, 2001).

A vida de Ignácio Martín-Baró pode ser descrita brevemente dizendo que foi

escritor, professor, universitário e padre. Seus primeiros artigos apareceram em

1966. Publicou onze livros e uma ampla lista de artigos, científicos e culturais, em

diversas revistas latino-americanas e norte-americanas (Blanco, 2001).

Martín-Baró insistiu em que a psicologia devesse enfrentar os problemas

nacionais e que deveria ser desenvolvida desde as condições sociais e as

aspirações históricas das maiorias populares. Depois de muitos anos aplicando

suas idéias de emancipação e conscientização popular comprometida em suas

atividade profissional, Ignácio Martín Baró foi assassinado em 1989. Embora as

idéias de Martín-Baró tenham encontrado um solo muito profícuo em vários pontos

da América Latina, as repercussões de sua obra, sua vida e sua morte, atingiram a

psicologia e demais ciências humanas em vários lugares do mundo (Blanco, 2001).

Chomsky (1998) utiliza-se da própria história do assassinato de Martín-Baró

em plena guerra civil salvadorenha para reforçar um das principais idéias que

permeia a Psicologia da Libertação: a questão do terrorismo (muito em voga no

momento atual aliás). A temorização da população, através de ações sistemáticas

levadas a cabo por aquelas que deveriam ser as próprias forças maiores de

segurança pública e comunitária (polícia, exército, o Estado...), marcam claramente

o terrorismo de Estado (Chomsky, 1998).

Tanto no caso específico do assassinato de um renomado pensador e

cientista, quanto no extermínio anônimo de trabalhadores rurais, menores em

situação de rua, detentos em presídios, minorias étnicas, o terrorismo de Estado,

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pode configurar-se como uma das partes centrais de um projeto sócio-político

imposto pelos governos (formais ou de fato), com objetivo de satisfazer as

necessidades de grupos privilegiados (Chomsky, 1998).

Embora estas considerações, possam parecer atrozes nos dias de hoje, em

nossa sociedade (excetuando-se talvez a questão no Oriente Médio, onde tanto os

Estados formais, quanto os grupos de guerrilha lançam mão do terrorismo para a

consecução ou manutenção de seus interesses), já forma tidas como práticas muito

“salutares” no tratamento de indígenas e escravos, por exemplo, como promulgava o

presidente norte-americano John Quincy Adams (séc. XIX) (Chomsky, 1998).

No caso específico de El Salvador, a campanha maciça de terrorismo político

iniciou-se no início dos anos 1980 e conduzida sob os auspícios e incentivos dos

Estados Unidos, segundo aponta Chomsky (1998). Mesmo com a chegada da

“democracia” no país em 1984, as coisas pouco mudaram nesse sentido, deixando à

população salvadorenha apenas duas opções: unir-se à guerrilha ou submeter-se à

opressão estatal. Martín-Baró foi dos que optaram por uma terceira via, muitas

vezes tida como utópica. Seguiu suas atividades religiosas e acadêmicas, ruma a

uma maior conscientização e libertação populares, mesmo que assim estivesse

declarando uma “guerra branca” à perseguição e opressão do regime político

salvadorenho. Embora sua causa permaneça viva e em multiplicação, sua batalha

pessoal foi encerrada prematuramente com seu assassinato por membros do

exército salvadorenho, em novembro de 1989.

Fundamentos

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Toda a obra psicológica, na concepção da psicologia da libertação, responde

a uma historicidade específica, além da dialética do “quem” executa e é o público

alvo; e do “desde onde” esta pratica emerge (Blanco, 1993). As bases da prática da

psicologia da libertação na América Latina são científicas e religiosas. Tentam

abranger os novos conhecimentos produzidos pela psicologia latino-americana à

partir do início da década de 1970, além do incremento da forma da prática dos

profissionais da psicologia, influenciada pelas bases práticas postuladas pela

Teologia da Libertação, que emergiam na época como uma nova forma da Igreja

Católica interagir e assistir seus fiéis (Blanco, 1993). Estas novas práticas,

vinculadas às comunidades de base e, à novas formas de evangelização, vinculadas

à conscientização e mobilização frente à opressão social vivida na América Latina

da época. Além disso, o conceito de uma prática psicológica sócio-historicamente

demarcada e pessoalmente motivada, orienta-se em relação a seu período histórico

em determinado local. Conforme aponta Blanco (1993), se um teórico como Marx,

tivesse nascido na Idade Média, provavelmente seria um grande teólogo, ao invés

de um pensador político. São as marcas dos tempos em que cada um vive, que se

transmitem. Se tratam, na verdade, de processos, naturalmente dialéticos, nos quais

entram em jogo de relações, de intercâmbio, interdependência e confrontação

permanente uma pessoa concreta (o quem) e o prolixo e multifacetado ambiente que

está em sua volta (o desde onde) (Blanco, 1993).

A Teologia da Libertação tem suas origens formais nas as Conferências do

Episcopado Latino-americano em Medellín, em 1968, e em Puebla em 1979, que

marcaram um rumo definitivo em boa parte do clero latino-americano, e seus ecos

não deixaram de ser ouvidos pelo grupo de jesuítas em El Salvador (Blanco, 2001).

A experiência humana e cristã, da situação de opressão e indignidade em que

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viviam (e ainda vivem) os povos latino-americanos, abre as portas a uma

“indignação ética” frente a pobreza e miséria coletivas. Os textos de Medellín iniciam

com um diagnóstico sombrio da realidade latino-americana: “Existen muchos

estudios sobre la situación del hombre latinoamericano. En todos ellos se describe la

miseria que margina a grandes grupos humanos. Esa miseria, como hecho colectivo,

es una injusticia que clama al cielo” (CELAM, 1977, p. 25). À partir deste encontro

em Medellín, a Igreja engajada na América Latina (e, principalmente através de sua

nova Teologia), pôs-se à clamar por uma mudança radical nas estruturas latino-

americanas, que naquele momento precisavam, como hoje, passar por uma maior

eqüidade na distribuição da riqueza, para facilitar o acesso aos bens da cultura e da

saúde, para propiciar a criação de mecanismos de participação política, para pôr

limite à violência institucionalizada, para reduzir as abismais desigualdades entre

ricos e pobres e entre poderosos explorados. Uma situação tal que “exige

transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras” (CELAM,

1977, p. 37). A descrição que a Conferência de Puebla nos deixou, deveria incluir-se

no prólogo de todos os manuais de Psicologia Social publicados na América Latina.

É nesse clima de indignação que surge o movimento da Teologia da Libertação, um

dois pilares do que viria ser a Psicologia da Libertação enquanto campo teórico-

prático (Blanco, 2001).

Neste sentido, emergem na prática da psicologia latino-americana novas

configurações: a opção preferencial de alguns grupos de profissionais pelos pobres

e pela experiência comunitária intrinsecamente solidária, frente ao “elegante”

distanciamento social do individualismo intimista (Blanco, 1993).

Epistemologia

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Embora o tema da liberdade e da libertação de indivíduos e grupos humanos

seja tão antigo quanto a própria noção de humanidade, as idéias sobre a submissão

e a opressão não são tão consolidadas, ainda mais na realidade latino-americana

(Montero, 2000).

A corrente principal do planteamento de formas libertadoras, de consciência e

de emancipação social nas ciências sociais, de um modo geral, foi a teoria Marxista

e seus derivativos (especialmente a escola Marxista Húngara e a Escola de

Frankfurt) (Montero, 2000). Entretanto, embora os construtos marxistas tenham

exercido muita influência na psicologia social latino-americana, a Psicologia da

Libertação supõe uma ontologia, uma epistemologia, uma metodologia, uma posição

ética e uma posição política próprias.

A medida em que se avança no estudo da obra de Martín-Baró, depara-se

com o matiz ideológico, que paulatinamente vai tornando-se uma matriz conceptual

de primeira ordem, que regerá a atividade prática. Tanto a que se move dentro de

uma dimensão estritamente de campo, como aquela que se debate nos limites da

teoria e da pesquisa psicossocial (de necessidades de uma comunidade, por

exemplo). Em ambas, o objetivo da libertação deverá aparecer como uma luz

inequivocamente própria e, o que todavia é mais importante com significados

similares ou idênticos (Blanco, 1993).

Outra pedra angular da epistemologia e da prática da libertação, é mais uma

vez, a questão da historicidade. Segundo Blanco (1993), as conseqüências de uma

ação ou conceitualização marcadas pela historicidade são (em perspectiva, ou

potencial):

• Produção sócio-histórica do conhecimento;

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• Crítica à assepsia;

• Rechaço à verdades absolutas e muito menos “naturais”;

• Negação de leis e princípios psicossociais universalmente


válidos;

• Denúncia da forte carga ideológica favorecedora de interesses


criados.

Principais Conceitos: Libertação

Por libertação, no atual contexto latino-americano, entendemos a

emancipação daqueles grupos sociais que sofrem opressão e carência, daquelas

maiorias populares (populares no sentido demográfico, populacional) marginalizadas

dos meios e modos para satisfazer dignamente as necessidades, tanto básicas

quanto complementárias e, para desenvolver suas potencialidades, para se

autodeterminar (Montero, 2000). Essa libertação, também abarca os grupos

opressores, a respeito de sua própria alienação e dependência de concepções

socialmente negativas.

Nesta perspectiva, a libertação não pode ser encarada como algo natural, um

momento, dom ou dádiva que se extingue ou demarca por um ato. Se trata de um

movimento contínuo, de uma série de processos (Montero, 2000).

Modelo de Sujeito e Modelo de Sociedade

O modelo de sujeito que à Psicologia Social lhe resulta mais pertinente, nos

proporcionam o estudo de três dos autores clássicos mais mencionados nas mais

diferentes tradições: Vygotsky, Lewin e Mead (Blanco, 1998). Se trata de um sujeito

ativo frente ao meio, dotado de uma infinita potencialidade para usar ferramentas de

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natureza material e sobretudo simbólica para relacionar-se com o meio que o rodeia,

especialmente com os congêneres de sua mesma espécie, que construi sua

subjetividade a partir de, e dentro de um meio material, e sobretudo sociocultural

que vai sofrendo modificações no transcurso do devir histórico, graças, entre outras

razões, a sua capacidade para modificá-lo, e que é capaz de buscar uma solução

racional aos problemas que o afligem. Um dos mais firmes supostos da teoria sócio-

histórica de Vygotsky, por exemplo, passa pela consideração de que o

comportamento, a psique e a consciência estão dotadas de uma especificidade que

possui duas características muito singulares: a) se tratam de processos

intrinsecamente atados à herança histórica que compartimos socialmente e que nos

dotaram de instrumentos de relação e comunicação que atuam como mediadores

entre o nível puramente orgânico e o desenvolvimento dos processos psíquicos

superiores; b) frente à adaptação passiva própria dos animais inferiores (por estarem

presos à sua biologia), e que caracterizou ao modelo comportamentalista, o do ser

humano é um comportamento submetido a um contínuo desenvolvimento, evolução

e mudanças, protagonizados pela capacidade do sujeito de atuar frente a meio que

o rodeia (Blanco, 2001). Por conseguinte, o modelo de homem e de sociedade da

Psicologia da Libertação está em sintonia com essas tradições, que mesmo de

forma aparentemente híbrida, conseguem construir pressupostos relativamente

consensuais e em sintonia com as idéias apregoadas por e para a Psicologia da

Libertação.

Identidade e Caracterologia Culturalmente Construídas.

Se pensarmos que uma variada gama de predições caracterológicas podem

ser feitas com bases em crenças e estereótipos que podem advir de processos de

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intercâmbio cultural e social, vale a pena considerar alguns aspectos nessa direção.

A medida em que se atribui um estilo ou um tipo de comportamento à alguém, se

faz, pelo menos implicitamente, uma antecipação da forma como essa pessoa

reagiria (Martín-Baró, 1996).

Nisso reside, inclusive, as formas de falar, posto que já levam em si a marca

do interlocutor e a impressão que se têm do mesmo, seja ele quem for. Em outras

palavras, Martín-Baró (1996) postulou que se inclui o outro em um esquema

caracterial (subconsciente na maior parte das vezes) que determina a modalidade e

o tom de nossa linguagem. Dentro das perspectivas propostas por Martín-Baró, não

seria possível pensar neste esquema caracterial implícito como o determinante

fundamental do comportamento social humano, mas não há dúvidas de que pode

ser um fator importante no que diz respeito à conduta.

Entretanto esse esquema caracterial, embora fortemente embasado pelos

valores de uma dada comunidade, pode ser mudado. Se pensarmos em um sistema

educacional, inserido em uma sociedade com práticas absolutamente excludentes

como a brasileira, fica fácil pensar nos problemas que qualquer criança “diferente”

poderá enfrentar na escola. Essa diferença, seja ela intelectual, física ou étnico-

cultural pode ser facilmente um fator inibidor da socialização se não houver uma

preocupação social com a inclusão. Além dessa perspectiva, pode-se considerar as

formas perversas de inclusões sociais possíveis em nossa cultura. Uma destas

formas, pode ser a própria negação das diferenças e necessidades particulares de

pessoas ou grupos, em nome de uma falsa igualdade. Pode-se observar o uso

ideológico deste discurso em nossa cultura, em situações como a discussão de

direitos educacionais diferenciados para pessoas de grupos étnicos específicos,

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historicamente excluídos e marginalizados, em um país que nega as diferenciações

e preconceitos étnicos.

A inclusão social, por sua vez, nem sempre faz sentido em uma sociedade,

pois é um construto fortemente embasado em valores, muitas vezes incompatíveis

com algumas formas de encarar a sociedade, tais como a capitalista, por exemplo.

Nesse tipo de sociedade, claramente de inspiração liberal, as individualidades

levadas a extremos, podem ser fatores de exclusão social, tanto quanto em

sociedades absolutamente coletivistas, onde o “diferente” pode ser visto como

perigoso.

Mas ao aproximar-se de questões que podem envolver algum tipo de

diferença cultural, pensar se existe algum esquema caracterológico universal pode

ser audacioso, ou no mínimo perigoso, conforme a leitura ética que se faça do

evento. Martín-Baró (1996) propôs esta questão. Se existem estruturas “naturais” de

caráter e, portanto, se seria possível estabelecer alguns caracteres básicos,

universais à espécie humana, qualquer que fosse a circunstância? Entretanto ao

invés de debater-se em questões metafísicas mais abstratas, Martín-Baró (1996)

propõe uma questão mais conectada a uma concepção funcional ou pragmática.

Não seria tão importante afirmar que é necessário uma nova caracterologia para

cada grupo social específico, senão aplicar inteligentemente em cada ambiente e em

cada meio algumas das caracterologias já existentes.

Mas a proposta de Martín-Baró (1996) não se limita apenas em uma

“aplicação inteligente” (ou adaptação, se usada em meios menos persecutórios do

que o que nos encontramos aqui) de dada caracterologia. Atrás disso, pode estar

implicada uma verdadeira ociosidade intelectual e, no fundo um conformismo

acomodatício, ou ainda falta de ousadia na criação de novas propostas embasadas

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em metodologias consistentes de pesquisa em ciências humanas. Toda a questão

da existência (ou não) de uma série de determinantes psicossociais concretos (como

os econômicos, históricos ou culturais, mesmo que possam ser interpretados como

muito positivos por uma série de teóricos), que na realidade transformam

radicalmente a coerência interna de qualquer sistema caracterológico e suas

estruturas de significação, está relacionada à natureza da realidade onde a teoria

nasceu (Martín-Baró, 1996).

Nesse sentido, Martín-Baró (1996) postula que aquele que faz ciência sem

“cons-ciência” de sua situacionalidade e de sua situação (quem e de onde fala),

compromete sua ciência, subconscientemente à limitação da situacionalidade e aos

interesses subjacentes à situação. No fundo, além do trocadilho, o autor propõe uma

crítica ao realismo e ao idealismo exacerbados. Não avaliar que possam existir

valores e postulados éticos subjacentes à pesquisa é tão ingênuo quanto afirmar

que em tudo há uma lógica “oculta” incompreensível.

Além destas questões epistemológicas, para o estudo de alguma

caracterologia, algumas questões conceituais mais práticas precisam ser

consideradas. Um dos exemplos propostos por Martín-Baró (1996), é a das

constantes psico-ideológicas da sociedade. No que diz respeito à família, por

exemplo, a concepção de que se alguém transmite a seus filhos a estrutura familiar

da sociedade latino-americana, transmite uma estrutura que seria fortemente

marcada pela imaturidade emocional e a conseguinte insegurança psíquica.

Imaturidade e insegurança que configuram um padrão de dependência emocional.

Dessa configuração emerge a necessária mitificação racionalizadora (ideológica)

das figuras paternas na maioria das famílias latino-americanas. Estas mitificações

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seriam presentes nas figuras da “santa mãezinha” e do “pai irresponsável” (Martín-

Baró, 1996).

Já no que diz respeito à escola, talvez a segunda estrutura social mais

influente (de forma direta) no desenvolvimento social infantil (depois da família) tem

seus efeitos bastante discutidos na literatura (Martín-Baró, 1996). Sua estrutura

bancária, vertical e seletiva foi relatada por muitos autores, sobretudo os vinculados

à educação. Entretanto, para o entendimento da competência social, e sua relação

com os processos educacionais formais, a questão da competitividade e da

verticalidade autoritária talvez sejam os pontos mais interessantes à serem estudos

por um psicólogo, como sugere Martín-Baró (1996). Segundo o autor, no que diz

respeito à competitividade, a escola ensina a criança à considerar aos demais como

rivais, a aspirar o triunfo próprio como a única meta desejável, o que na realidade

implica a “derrota” dos outros. Segundo Martín-Baró (1996) a competência escolar

desejada infunde o individualismo intenso nos alunos, como norma e critério nas

atitudes perante o contexto social.

Além disso, a verticalidade autoritária, que se traduz pela bancariedade

memorística (onde o que pode caracterizar mais uma criança é o lugar em que ela

ocupa nas filas e colunas da sala de aula), a imposição dogmática e a seletividade

vertical em função de variáveis estritamente ligadas à origem sócio-econômica do

aluno, impõe a este uma passividade. Esta passividade, segundo Martín-Baró

(1996), unida muitas vezes a certo fatalismo pré-determinista e a-histórico. Dessa

conjunção advém certos mitos sociais, como o do “homem de sucesso” e da

superioridade intelectual (e muitas vezes até natural) de certas classes sociais, que

surgem, logicamente da formação escolar.

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O Fatalismo enquanto Identidade Social

Algo é fatal, quando é entendido como inevitável, ou como algo desagradável,

infeliz. A compreensão fatalista da existência (de um modo geral), que se atribui a

amplos setores da população latino-americana pode entender-se como uma atitude

básica, como uma maneira de situar-se frente à própria vida, como uma matriz de

atitudes (Martín-Baró, 1996). Dada tal configuração, o fatalismo põe em evidência

uma relação de sentido muito peculiar que as pessoas estabelecem consigo

mesmas e com os fatos de sua existência, que se traduzirá em comportamentos de

conformismo e resignação frente a circunstâncias de qualquer natureza, inclusive ás

mais negativas.

De acordo com Blanco (1993), as origens do fatalismo, dentro da perspectiva

da psicologia da libertação pressupõem que:

• Seja um traço presente em determinados coletivos;

• Uma atitude própria de pessoas pobre e, em grande parte


responsável pela própria pobreza dessa pessoa;

• Uma vez adquirido pela cultura, se reproduz sempre por uma


autonomia funcional;

• Reflexo psicológico de uma condição social exploradora


associado à aprendizagem da opressão histórica;

• Modelo de relação interpessoal com o meio: social ➔


dependência; econômico ➔ exploração e político ➔ opressão;

• Interiorização da dominação social e suporte ideológico da


manutenção da ordem social com esquema comportamental de docilidade,
conformismo e submissão.

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São todas questões pertinentes à investigação, ainda mais se pensarmos que

o fatalismo pode ser entendido sob um vértice triplo: cognitivo, afetivo e

comportamental. As principais idéias (dentro da dimensão cognitiva) comuns à

atitude fatalista são:

1. “A vida está pré-definida”. Uma forte crença no destino e na pré-

determinação de tudo o que ocorre na vida, mesmo de uma forma bem mítica.

2. “A própria ação não pode mudar este destino fatal”. A vida das pessoas

está controlada por forças superiores, mais poderosas, que desestimulam qualquer

atitude.

3. “Um Deus distante e todo poderoso decide o destino de cada pessoa”.

Um marco de referência predominantemente religioso nos povos latino-americanos

que decide tudo.

Já dentro da dimensão afetiva emergem três principais afetos na composição

da atitude fatalista:

1. Resignação frente ao próprio destino.

2. Não se deixar afetar nem emocionar pelos sucessos da vida (Como os

acontecimentos são pré-determinados e inevitáveis, se deve aceitar tudo, com

resignação, seja bom ou ruim – passividade).

3. Aceitação do sofrimento causado (se nasce para sofrer, é o destino de

cada um).

Na esfera comportamental, existem três fortes tendências presentes na

caracterização do fatalismo latino-americano:

1. Conformismo e submissão.

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2. Tendência a não fazer esforços, à passividade.

3. Presentismo, sem memória do passado nem planificação do futuro.

À partir dessa caracterização, extraída da obra de Martín-Baró (1996), em que

ele concebe uma “síndrome” fatalista que, na verdade, começa a desenhar uma

imagem estereotipada que acaba sendo atribuída aos latino-americanos,

transcendendo as dimensões nacionais e grupais, sem com isso significar que esta

imagem seja apenas manejada pelos países da Europa ou da América do norte.

Esta imagem constitui um esquema referencial incorporado ás mesmas dimensões

do pensamento cultural nos países da América latina. O latino-americano

preguiçoso, indolente, inconstante, irresponsável, brincalhão e religioso. Dessa

matriz estereotípica, como sugere Martín-Baró (1996), advém diversos tipos

derivativos: o oligarca (cosmopolita e derrotador), o “filho de papai” ou parente de

algum ditador, o militar golpista (meio populista e meio gorila – subornável em tudo,

menos em seu machismo visceral e de princípio), o indígena descuidado, preguiçoso

e simplista (de aparência obsequiosamente submissa, mas dobrado, rancoroso e

vingativo), por exemplo.

Segundo Martín-Baró (1996) ainda é importante distinguir o fatalismo

enquanto atitude frente a vida das pessoas, do fatalismo enquanto estereótipo social

que se aplica aos latino-americanos (mesmo que seja aplicado pelos próprios latino-

americanos). Isto significa que se deve avaliar se o fatalismo corresponde a uma

atitude real dos latino-americanos ou se é melhor entendido enquanto uma

caracterização que se lhes atribui e, deste modo, possui um impacto sobre sua

existência, mesmo não correspondendo a seus comportamentos reais.

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Já a obra de Martín-Baró, além de genuinamente latino-americana traz alguns

elementos novos à psicologia. O primeiro deles é o fato de termos uma teoria

consistente e latino-americana. E isso á muito importante para o entendimento da

questão proposta. Não seria plausível, por exemplo, simplesmente transpor um

modelo de compreensão ou da avaliação da competência social infantil desenvolvido

nos USA ou em algum país europeu. Existem como bem aponta Martín-Baró,

elementos caracterológicos próprios da e na identidade latino-americana, desde

antes do nascimento destas crianças.

Conscientização

A conscientização, também denominada desideologização dentro do campo

teórico da psicologia da libertação (principalmente quando referida a um nível

cognoscitivo) é um conceito chave. Blanco (1993), aponta as principais

características deste conceito na obra de Martín-Baró:

• Processo dialético: entrelaçamento dos âmbitos sociais e

pessoais;

• Processo de decodificação: fazer consciente a práxis

humano/humano e humano/natureza;

• Novo saber da realidade circundante;

• Recupera-se a memória histórica;

• Desmascara-se o universo simbólico.

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Prática Psicológica

De acordo com as proposições de Martín-Baró (1988), em se considerando a

situação sócio-política dos países dos países latino-americanos e, o papel que os

psicólogos desses países deveriam cumprir, emergem três principais bases de

atuação:

1. Propiciar uma forma de buscar a verdade desde as massas populares:

Esta proposição baseia-se na proposta da Teologia da Libertação (na voz dos

oprimidos, na voz das massas populares é de onde se pode ouvir a voz de Deus)

(Martín-Baró, 1988). A incorporação real e política das massas populares oprimidas

e, principalmente seus saberes e necessidades, pela psicologia (um dos pontos

chave da teoria), foi assinalado por Martín-Baró (1988) enquanto necessidades de:

• Potencializar as virtudes populares;

• O estudo dos “grupos com história” – organizações populares que


deviam ser estudadas em sua realidade, em seu caráter histórico e em seus
aspectos qualitativos, em função de três dimensões essenciais: sua identidade; seu
poder e sua atividade (Martín-Baró, 1988, pp. 6-7).

• O estudo sistemático das formas de consciência popular, a respeito


das quais, propunha a exploração das novas formas de consciência;

• Desideologizar o sentido comum e a experiência cotidiana, conscientes


de que em ambas manifestações convivem lado a lado as concepções errôneas e as
confusões, assim como as críticas e as inovações.

2. A criação de uma nova práxis psicológica para transformar as pessoas

e as comunidades, reconhecendo suas Potencialidades negadas. (Essa temática

ressurge na obra de Martín-Baró, quando conceitua o fatalismo enquanto identidade

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cognitiva latino-americana). Enquanto forma de criação de uma práxis libertadora

para a psicologia, Martín-Baró (1988), propõe:

• Desenvolver formas de controle por parte dos grupos oprimidos em


relação a sua própria vida;

• A desaleinação social e pessoal;

• Superar o fatalismo existencial;

• Estudar o problema do poder.

3. Desfocalizar as preocupações de cientificidade e de status da produção

psicológica latino-americana e dedicar-se mais aos problemas urgentes das maiorias

oprimidas do continente. Isso requer um comprometimento profundo e total com um

povo, com uma sociedade e, com uma concepção de fazer ciência desde uma

psicologia que se auto-referenciava enquanto política, social e libertadora. Enquanto

papel ativo da psicologia, Martín-Baró (1988) assinala três tarefas principais:

• Dedicar-se aos problemas urgentes que assolam as sociedade latino-


americanas. Isso significa separar-se dos problemas derivados de livros e revistas
científicas e atacar de frente aqueles que afetam as pessoas de verdade.

• Fomentar a recuperação da memória histórica nas maiorias oprimidas,


o qual contribuirá para a desalienação e para a desideologização.

• Os psicólogos devem comprometer-se com a transformação social que


liberte os oprimidos das condições que os oprimem.

Ainda no âmbito da prática psicológica concebida dentro desta teoria, a

promoção da atividade dos grupos oprimidos, incorporando-os à ações

transformadoras ocupa lugar central. Estas ações transformadoras não poderão ser

levadas a cabo sem a participação ativa e incorporada das maiorias. Esta atividade

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da população, assim como a atividade profissional do psicólogo, devem ser encaras

como práticas políticas (Montero, 2000).

• Essa atividade deve centrar-se em práticas libertadoras;

• A prática psicológica deve dedicar-se ao fortalecimento (empowerment)


dos grupos desfavorecidos, a fim de que possam reclamar seus direitos e defender
seus interesses de forma não assistencializada (Montero, 2000);

• Revitalizar as práticas comunitárias;

• Conscientização a fim de compreender como se geram as formas de


consentimento tácito às práticas sociais opressoras e, o conformismo que leva a
aceitação das hegemonias (Montero, 2000);

• Denunciar a injustiça social;

• Fomentar formas de resistência organizada e de luta contra os modelos


dominantes e opressores de ciência, de saúde mental, de orientação sexual, de
relações de gênero, de linguagem, etc. (Montero, 2000);

• Promover o controle de sua situação de vida nos grupos oprimidos.

De La Corte (2000), recolhendo várias idéias e materiais, denominou as seis

trajetórias intelectuais de Martín-Baró: a) aglomeramentos e problemas de

habitação, que seriam precisamente o objeto de sua tese doutoral defendida na

Universidade de Chicago; b) machismo, mulher e família; c) fatalismo, como um dos

construtos teóricos centrais em toda a obra de Martín-Baró, como está amplamente

demostrado nos três primeiros capítulos da Psicología de la liberación (Martín-Baró,

1998); d) Violência e guerra, um assunto de sombria atualidade nestes momentos;

e) religião e conduta política; e f) opinião pública.

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Referências Bibliográficas:

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obra de Ignácio Martín-Baró. Comportamiento, 2, 35-60.

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In: Blanco Abarca, A. (ed.): Psicología de la liberación. (343-356). Madrid: Trotta.

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(ed.): Psicología de la liberación. (9-38). Madrid: Trotta.

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(ed.): Psicología de la liberación. (39-130). Madrid: Trotta.

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San Salvador: UCA Editores.

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Ciudad de México: Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa.

Blanco, A. (1996). Vygostki, Lewin y Mead: los fundamentos clásicos de la


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Psicología social actual.Madrid: Fundación Infancia y Aprendizaje.

De La Corte, L. (2000). La Psicología de ignacio Martín-Baró como Psicología social


crítica. Una presentación de su obra. Revista de Psicología General y Aplicada,
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CELAM (Conferéncia Episcopal Latino Americana) (1977): Medellín. Los textos de


Medellín y el proceso de cambio en América Latina. San Salvador: UCA Editores.

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