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Natal, 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Reitor Editor
José Ivonildo do Rêgo Helton Rubiano de Macedo
Vice-Reitora
Supervisão editorial
Ângela Maria Paiva Cruz
Alva Medeiros da Costa
Diretor da EDUFRN
Herculano Ricardo Campos Supervisão gráfica
Conselho Editoral Francisco Guilherme de Santana
Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Revisão
Ana Luiza Medeiros Os autores
Humberto Hermenegildo de Araújo Editoração eletrônica
John Andrew Fossa Erinaldo Silva de Sousa
Herculano Ricardo Campos Pré-impressão
Mônica Maria Fernandes Oliveira Marcus Vinícius Devito Martines
Tânia Cristina Meira Garcia Capa
Técia Maria de Oliveira Maranhão Edson Lima
Virgínia Maria Dantas de Araújo Ilustração da capa
Willian Eufrásio Nunes Pereira Luiz Carlos Jafelice
CDD 520
RN/UF/BCZM 2010/27 CDU 52:37
Apresentação, 11
Agradecimentos, 17
Capítulo 1 – Saberes de Astronomia do 1º ao 3º Ano do Ensino Fundamental
numa Perspectiva de Letramento e Inclusão, 19
Maria Luciene de Souza Lima Freitas
1 Introdução, 19
1.1 Por um ensino de Astronomia Vivencial, 22
1.2 Ensino de Astronomia e letramento, 28
1.3 Ensino de Astronomia e afetividade no processo de
ensino-aprendizagem, 35
1.4 Ensino da Astronomia e inclusão, 38
2 O professor também dita moda, 43
2.1 A aprendizagem e suas relações inconscientes motivacionais, 43
2.1.1 O professor é o exemplo, 45
2.1.2 O aprendiz que surpreendeu o seu mestre, 48
3 Eu vivo sempre no mundo da lua, 49
3.1 A montagem dos calendários lunares, 49
3.2 O Dia-Noite das Crianças, 50
3.3 Trabalhando o astro solar, 51
3.3.1 O teatro de sombras, 53
3.3.2 As medições da sombra, 54
3.4 A música e a montagem de coreografias relacionadas ao tema estudado, 56
3.5 Salpique de tinta, 58
3.6 Visita ao planetário itinerante da UFRN, 64
3.7 Visita à Barreira do Inferno, 65
3.8 Representação dos planetas em escala, 66
3.9 As origens celestes das festas juninas através de fantoches, 67
4 A vida é um jogo: propostas para trabalhar a astronomia, 69
4.1 Oficinas lunares, 69
4.1.1 Breve histórico, 69
4.1.2 Desenvolvimento das oficinas lunares, 70
4.2 Trilha da lua, 75
4.3 Reestruturação da trilha da lua após a sua primeira execução, 81
5 Considerações finais, 83
Referências, 86
Capítulo 2 – Uma Abordagem Humanística para o Ensino de Astronomia
no Nível Médio, 89
Gilvana Benevides Costa Fernandes
1 Pensando em educação, 89
2 Inteligências múltiplas e holismo no ensino de astronomia no nível
médio, 95
2.1 As inteligências múltiplas, 95
2.2 O ensino holista, 99
2.3 Repensando a astronomia no ensino médio, 104
3 Novas atividades diante de uma nova educação, 108
3.1 Uma proposta para o ensino médio, 108
3.2 As atividades, 109
3.2.1 Representações do universo, 109
3.2.2 Constelações de tinta em papel, 114
3.2.3 Aprendendo com os índios, 117
3.2.4 Aprendendo com a ciência, 118
3.2.5 Representação teatral sobre a origem do universo, 118
3.2.6 Resgatando o microcosmo e o macrocosmo no ser humano, 120
3.2.7 Zoom Cósmico, 124
3.2.8 A dança indígena tupi-guarani do IEAOUŸ, 126
4 Conclusão e comentários gerais, 129
Referências, 132
Apêndice: Resumos dos temas relacionados à origem do universo, 133
Anexo A: Educação? Educações: aprender com os índios, 139
Anexo B: A origem do universo, 142
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Este livro faz parte das Coletâneas em Ensino de Ciências e Matemática:
relatos de pesquisa e material didático, organizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (PPGECNM)
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), através do
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). A produção sistemática de dissertações de mestrado sob minha
orientação que praticaram o que denomino abordagem antropológica, aliada
à oportunidade desta publicação, nos levou a elaborar um livro que reunisse
essas contribuições.
O que consta deste texto, contudo – é importante enfatizar –, não são
receitas a serem seguidas passo a passo – embora os conteúdos e sugestões
apresentados possam servir como orientação inicial em muitas circunstân-
cias, desde que encarados com um espírito reflexivo e autônomo. O que espe-
ramos, acima de tudo, é que vocês, atuais ou futuras professoras ou professores,
invistam em vivenciar, pesquisar e desenvolver ainda mais a presente abordagem.
Esta, por sua própria natureza, é aberta e incentiva a constante criação para si-
tuações específicas.
Quem for implementar sugestões apresentadas neste livro, deve ana-
lisar previamente, com carinho e atenção, quais são as necessidades – primá-
rias e secundárias, imediatas e a longo prazo, afetivas e cognitivas, materiais
e espirituais, concretas e abstratas, entre outras –, de seus alunos e da comu-
nidade onde vivem. A partir dessa análise, então, deve construir e aplicar sua
versão da abordagem aqui exposta – quem a desenvolver e quiser socializá-
la, ou trocar ideias, poderá fazê-lo também pela página: http://www.lapefa.
ufrn.br/intercultural. Mesmo incorporando-se um processo coparticipativo,
atento e dinâmico de ação, porém, a proposta não estará acabada; ela sempre
comportará transformações ulteriores.
A nosso ver, o que faz falta, com urgência, no mundo, são pessoas com
competência emocional (e não apenas intelectual) de perceber e pensar o
todo sistemicamente (mas não centradas em uma racionalidade única) e de
responder às necessidades atuais e futuras desde uma perspectiva biocêntrica
ou ecocêntrica (e não antropocêntrica, como estamos habituados a fazer).
Nossa prática tem mostrado que a abordagem aqui proposta tem gran-
de plasticidade e potencial educacional transformador e pode oferecer sig-
nificativo enriquecimento às práticas didático-pedagógicas e à formação do
tipo de cidadão de que tanto se carece.
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Os Capítulos e a Opção pela Linha do Livro
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alista, logo em seguida formatado em conceitos articulados com consistên-
cia estrutural mínima, há risco de darmos passos inconsequentes – embora
não inevitavelmente isto vá ocorrer, bem entendido. Por outro lado – talvez
pela falta de incentivo e exemplos efetivos de criatividade –, a tendência é os
embasamentos teóricos servirem antes como amarras e formatação rígida e
padronizada de ação. Isto limita os resultados, tolhe criação e variabilidade,
risco e incerteza, arejamento e leveza, que necessariamente estão presentes
nas ações humanas, por mais responsáveis que elas sejam. Por isto, alocamos
a fundamentação no último capítulo – que, como verá quem o ler, embasa,
mas de modo relativo. Em suma: ela existe, mesmo que de inspiração essen-
cialmente heurística, mas se refaz, revê e reconstrói em cada movimento de
aplicação das ideias na prática, que é o que mais nos preocupa. É uma aborda-
gem, enfim, que prioriza o fenomenológico, o qualitativo, o humano nas suas
dimensões existenciais que, apesar de vitais para nosso equilíbrio e saúde,
são subvalorizadas pela cultura ocidental predominante, que se deixa seduzir
pelo cientificismo, em particular nos últimos séculos.
Há muitas maneiras de transformar essa abordagem em prática peda-
gógica concreta. Um dos principais objetivos deste livro é explicitar atividades
e planejamentos de aulas – como disse, todos experimentados em situações
escolares reais – que permitam aplicar essa abordagem com prazer e êxito.
Os três primeiros capítulos são diferentes visões construídas como
desdobramentos da ideia exposta no último capítulo. Assim, os quatro capí-
tulos se inter-relacionam. Contudo, eles são independentes uns dos outros e
autoconsistentes nas respectivas propostas. Não há uma ordem para o livro
ser lido; dependerá das necessidades ou interesses de cada pessoa.
Cabe aqui o seguinte esclarecimento: outros ex-orientandos meus de
mestrado também defenderam dissertações junto ao PPGECNM naquele
período, e eles fazem importantes contribuições à área de educação em as-
tronomia. São eles: Geneci Cavalcanti Moura de Medeiros, Alex Sander Barros
Queiroz e Antonio Araújo Sobrinho. Fica aqui a referência a seus relevantes
trabalhos. Suas dissertações também estão disponíveis no endereço do Pro-
grama, indicado acima1.
1 Alex Sander Barros Queiroz, em particular, participou do I Colóquio Abrindo Trilhas para os Saberes
(2008), promovido pela Secretaria de Educação do Governo do Estado do Ceará, e foi premiado com
a publicação de sua dissertação na forma de livro: Propostas e Discussões para o Ensino de Astronomia
do 1º ao 5º Ano do Nível Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos. Fortaleza: SEDUC, 2009.
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Seus trabalhos, porém, não foram incluídos neste livro. Isto se deveu
não só às limitações de espaço e de recursos, mas principalmente à opção que
fiz para a linha mestra do livro. Dentre meus seis ex-orientandos de mestrado
em ensino de astronomia, até o momento, apenas as coautoras do presente
volume de fato se aprofundaram na presente proposta e exercitaram de modo
consistente a abordagem humanística associada – provavelmente por moti-
vos idiossincráticos de cada uma.
De minha avaliação sobre o que existe publicado em ensino de astro-
nomia e educação ambiental, constato que não existe praticamente nada na
linha de trabalho que aqui apresentamos2.
Assim, por um lado, carecemos de publicações acessíveis que versem
sobre abordagens de fato humanísticas para o ensino de astronomia e a edu-
cação ambiental. Por outro lado, se queremos promover um diálogo salutar
na área de educação científica e desta com áreas de humanidades e artes, é
muito importante que o tipo de visão aqui defendida seja amplamente dis-
seminado. Essa visão está muito ausente ainda, tanto nos cursos de formação
de professores, como nos livros didáticos, nas publicações e na mídia de um
modo geral – ao passo que não faltam publicações, divulgações e ênfases para
abordagens que reforçam o caráter técnico-cientificista convencional.
Trazendo-se a presente abordagem a público, visa-se também incen-
tivar um processo dialético nas conversações entre população, educadores,
cientistas e jornalistas que contribua para diversificar o leque de fundamen-
tos filosóficos e possibilidades de intervenções didático-pedagógicas, além
de incitar um aumento no nível das discussões e da área como um todo.
Portanto, devido à carência de publicações nessa linha de trabalho, à
importância de que a mesma seja difundida e às peculiaridades das disserta-
ções daquelas autoras, optei por elaborarmos um livro cujo perfil e teor abri-
gassem naturalmente seus trabalhos.
Luiz Carlos Jafelice
Rio Grande do Norte
Lua crescente em um inverno sertanejo nordestino de 2010.
2 A não ser os trabalhos que nós mesmos temos publicado, os quais, porém, além de serem, com fre-
quência, mais técnicos, estão em atas de congressos ou outros veículos não facilmente disponíveis
aos professores e público em geral. Mesmo assim, para quem tiver interesse, vários desses trabalhos
constam das bibliografias citadas nos capítulos deste livro.
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AGRADECIMENTOS
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Astronomia no Ensino Fundamental
Capítulo 1
Saberes de Astronomia do 1º ao 3º Ano do Ensino
Fundamental numa Perspectiva de Letramento e Inclusão
1 INTRODUÇÃO
Este capítulo se propõe a discutir metodologias e atividades didático-
pedagógicas para o ensino de Astronomia do 1º ao 3º ano do Nível Funda-
mental, numa perspectiva de letramento e inclusão. As propostas apresenta-
das foram desenvolvidas em uma turma da Escola Estadual Alceu Amoroso
Lima, Zona Norte de Natal (RN), com crianças a partir dos seis anos de ida-
de, dentre as quais duas portadoras de necessidades especiais.
Essa pesquisa visou demonstrar que é possível desenvolver com essas
crianças os conteúdos de Astronomia, enquanto elas participam do processo
de letramento e inclusão. Com isto, buscou-se oferecer uma contribuição te-
órico-prática para que os Parâmetros Currriculares Nacionais (PCN) sejam
revistos nesse ponto e incluam os referidos conteúdos no ensino fundamen-
tal, inclusive já a partir do 1º ciclo desse nível de ensino.
Para a realização desta pesquisa foi inicialmente proposta uma Astro-
nomia Vivencial. Posteriormente diversas oficinas foram realizadas (argila,
rasgadura, papel crepon, massa de modelar, cartolina e gastro-lúnica). Todas
as atividades propostas estavam baseadas na conjunção de conteúdos, o que
caracterizou a interdisciplinaridade.
Através da abordagem que adotamos e das práticas que propusemos,
constatamos que tanto as crianças ditas normais, como as portadoras de
necessidades especiais, ao mesmo tempo em que se apropriaram do nosso
código de escrita, desenvolveram e incorporaram naturalmente uma relação
cotidiana próxima com as coisas do céu, aprenderam muitas informações so-
bre estas, além de construírem conteúdos atitudinais, procedimentais e con-
ceituais.
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1 Este capítulo resume conteúdos, reflexões e práticas expostos anteriormente nos trabalhos de Lima e
Jafelice (2004; 2005a; 2005b) e Lima (2006) – este último também disponível através do sítio: http://
www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações
(2002-2007)”], aos quais remetemos os leitores interessados em maiores detalhamentos.
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Astronomia no Ensino Fundamental
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Figura 1 – Comparações feitas pelas crianças entre o ciclo de “vida” da lua e o do homem (exemplo)
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2 Isto é, a lua na realização de seu movimento aparente (de leste para oeste), devido à ilusão perceptiva
causada pelo movimento real de rotação da Terra em torno de si mesma (de oeste para leste), o qual
não percebemos.
3 Pois, como mencionado, as aulas dessa turma eram pela manhã e, no horário daquela observação, o
sol ainda não havia cruzado o meridiano local.
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Astronomia no Ensino Fundamental
Sendo assim, trazer essa diversidade textual que existe fora da sala de
aula para a escola é essencial para estabelecer para a criança que a leitura e a
escrita têm uma função social.
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LUA MAL-HUMORADA
Autor: João Victor
4 As idades mencionadas são sempre as das crianças na época da realização das respectivas atividades
citadas.
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Astronomia no Ensino Fundamental
nelas curiosidades que as fazem transpor do seu mundo real para o imaginá-
rio, já que este tem sua fonte, pelo menos em parte, naquele.
Durante a leitura do livro “Uma viagem à lua” (FRANÇA e FRANÇA,
2001), por exemplo, as crianças ficaram atentas e participaram dando respos-
tas às indagações que a professora ia fazendo ao ler o texto, do tipo:
Professora: “Será possível morarmos em Marte?”.
João Victor (7 anos): “Não, pois lá não tem o mesmo ar que respira-
mos aqui”.
Professora: “As pessoas podem mudar de cor?” (se forem para Marte).
Judson (6 anos): “Não, pois a pessoa daqui é a mesma de lá”.
Diante destes relatos, percebe-se que durante o processo de alfabeti-
zação o “ouvir histórias”, como afirma Grossi (1990, p. 85), é, por excelência,
forjador de imagens mentais que se representam através de desenhos, cria-se
uma história com isto, fecha-se um ciclo por onde se dá a aquisição da leitura-
escrita.
Para Silva (1991), o ato crítico de ler aparece como uma constelação
de atos da consciência do leitor, que são acionados durante o encontro signi-
ficativo desse leitor com a mensagem escrita.
Os desenhos a seguir (Figura 4), das releituras das crianças do livro
Noite de Cão (LIMA, 1996), nos mostram o encontro prazeroso delas ao re-
tornar ao texto.
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Astronomia no Ensino Fundamental
Ferreiro (2003, p. 39) diz que “não é necessário dar aula de Física na
pré-escola, mas é preciso dar oportunidades para que se descubram algumas
propriedades físicas elementares”. Concordamos literalmente com este posi-
cionamento, porque muitas vezes as crianças das classes menos favorecidas
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
sino fundamental com crianças a partir dos seis anos de idade, pudemos per-
ceber que as crianças envolvem-se com entusiasmo nas atividades propostas
em sala de aula, porque estão envolvidas afetivamente com a professora. Isto
faz com que as mesmas percebam que a educadora transmite e elabora com
elas aquilo que gosta e acredita no que faz. Esta foi e é a receita para qualquer
educador que quer ser bem-sucedido na disciplina ou série em que leciona.
A questão da afetividade também implica num olhar clínico que todo
professor precisa ter. Mesmo não sendo um especialista na área, ele deverá
ser capaz de identificar, no dia a dia, quando uma criança apresenta algum
comportamento dito “anormal” ou que é “problemático”. Neste caso, antes
de encaminhá-la para alguma instituição para atendimento especializado, é
preciso que investiguemos as causas daquele comportamento, pois só assim
estaremos contribuindo para que seja diagnosticada de fato a dificuldade es-
pecífica dessa criança.
Figura 5 – João Pedro fazendo uma pseudoleitura de sua poesia para a turma (Foto: Fátima Lopes)
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Astronomia no Ensino Fundamental
alguma medida para reverter esse quadro de exclusão deveria ser tomada. O
aluno foi, então, encaminhado à minha turma, que trabalharia os saberes de
Astronomia.
Após dois anos de trabalho pudemos observar os avanços na apren-
dizagem do citado aluno dentro de suas limitações e possibilidades. Hoje, o
mesmo já demonstra avanço tanto no nível de sua escrita como em relação a
suas habilidades de leitura.
A Figura 5 mostra João Pedro fazendo uma pseudoleitura de sua poe-
sia, inspirada na lua. Essa poesia foi criada por ele mesmo e redigida na lousa
pela professora.
Vale a pena ressaltar também que a sua integração com os demais co-
legas melhorou consideravelmente, já que antes de ingressar nesse projeto ele
ficava mais fora da sala de aula do que dentro. Atualmente, vê-lo mais partici-
pativo na sala de aula realça e reflete os progressos alcançados.
Em relação ao seu aprendizado das coisas do céu, esse aluno já sabe
que a lua é formada por crateras e que tem quatro fases (nova, crescente, cheia
e minguante). E é importante ressaltar que o primeiro conhecimento é de
caráter essencialmente informacional – embora o aluno tenha enriquecido
tal conhecimento na prática, após ter visto a lua várias vezes através do te-
lescópio do Departamento de Física da UFRN –, ao passo que o segundo
conhecimento, além de também ser informacional, ele foi construído inicial
e previamente em bases puramente vivenciais, através da procura, observação,
desenho e acompanhamento sistemáticos diários da lua.
Desta mesma forma, João Pedro identifica algumas constelações no
céu (Cruzeiro do Sul e Escorpião) quando visíveis. Ele também localiza os
pontos cardeais de acordo com o nascer e o pôr do sol. E ele compreende
porque o sol é importante para nós e os demais seres vivos.
Percebemos que quando a criança sente-se confiante em si e na pro-
fessora, que a estimula e respeita, e entre as quais se cultivou e se desenvolveu
uma afetividade, estes fatores favorecem a elevação da autoestima da criança
e o seu aprendizado.
Vejamos outro exemplo que podemos mencionar sobre o quanto a
afetividade e a qualidade que um trabalho com as preocupações e cuidados
que levantamos aqui são capazes de motivar e conquistar nos alunos, a ponto
de levá-los a terem prazer e alegria na escola em que estudam. É o caso dos
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(em sua versão “lua cheia”; jogo que trazia aqueles conteúdos de modo lúdico
e prazeroso).
O exemplo do aluno Edvaldo Lima, que estudava na citada escola e
era portador de necessidades especiais (referidas como DM, isto é, apresen-
tava uma deficiência mental), explicita claramente que essa inclusão, tanto
dos conteúdos de Astronomia como de crianças portadoras de necessidades
especiais, é possível e viável em termos de ganhos culturais, sociais e pedagó-
gicos.
No dia 07/04/03 o referido aluno veio de cabelo cortado para a sala
de aula, pois no jogo trilha da lua havia uma pergunta a ser pesquisada junto
aos familiares: se era bom ou não cortar os cabelos na lua cheia. Este fato foi o
início de uma evidência – que foi confirmada no período de 2004 a 2005 na
E. E. Alceu Amoroso Lima, onde eu tinha em sala de aula dois alunos porta-
dores de necessidades especiais –, de que podemos incluir todas as crianças
no encontro com as coisas do céu desde o início do 1º ano do ensino funda-
mental numa perspectiva de letramento e inclusão.
Não se deve entender inclusão apenas em seu sentido habitual, confor-
me já enfatizamos anteriormente (vide também comentários que já citamos
de SASSAKI, 1997). Segundo Mantoan (2004), há dois tipos de movimen-
tos inclusivos. A teoria do meio menos restrito possível preconiza a inserção
do aluno com deficiência, mas condiciona as suas possibilidades de corres-
ponder às expectativas e exigências de um ambiente considerado regular. Já
a teoria do meio mais favorável possível diz que as diferenças são a mola que
impulsiona os educadores, os pais, as crianças e a sociedade em geral a muda-
rem comportamentos, ideias, procedimentos, em busca de uma educação de
qualidade para todos.
Em nosso caso, a segunda perspectiva, como já explicitamos antes,
vem validar a minha ação já realizada em nossa sala de aula, onde valorizamos
os diferentes e as diferenças, já que consideramos o ser humano como um
todo.
A experiência tem mostrado que é possível fazer-se uso de práticas
vivenciais inclusivas através dos conteúdos de Astronomia com as crianças
portadoras de necessidades especiais, ou não. Acreditamos que incluindo-as
logo cedo nessas práticas, segundo a perspectiva e orientação que propomos,
as crianças verão as coisas do céu como parte integrante do nosso meio am-
biente, em vez de considerarem-nas como sendo só a natureza, isto é, em vez
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5 O título deste capítulo veio à tona quando discuti, em uma conversa informal, com minha amiga de
mestrado, a psicóloga Luziânia Ângelli Lins de Medeiros, a quem agradeço por ter compartilhado
dessa ideia comigo e ter revisado o texto desta seção.
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Percebemos também que esses sonhos das crianças não são deva-
neios, já que apresentam começo, meio e fim. Poderíamos caracterizá-los
como sonhos criativos.
Assim, na subseção 3.5 (Salpique de tinta) veremos exemplos mostran-
do a incorporação das relações céu-terra por parte dos alunos em suas vidas,
em seus cotidianos. Os exemplos da presente seção complementam aqueles,
de certa forma, e ressaltam como as reestruturações mentais estimuladas pelo
enfoque que propomos mobiliza toda a psique das crianças e ocorrem tam-
bém no nível inconsciente, interferindo positivamente inclusive na criativida-
de das mesmas, como se esperaria de um processo de aprendizagem efetivo.
Os sonhos do Maxwell Jonathan, escritos por ele mesmo e reprodu-
zidos abaixo, são outros exemplos nesse sentido. Esses sonhos evidenciam
ainda mais esse caráter sensibilizador dessa Astronomia Cultural e Vivencial,
a qual estamos propondo para as séries iniciais do ensino fundamental, real-
çando que ela se torna um dos elementos importantes que toca e mexe com
a psique humana.
1º sonho de Maxwell: “Ontem no dia 20/03/06 eu sonhei que estava
de manhã o sol estava no céu e as estrelas estavam no céu com o sol. E eu
fiquei com vontade de desenhar o céu”. (Vide Figura 6.)
2º sonho de Maxwell: “No dia 18/04/06 eu sonhei que a lua estava
com um monte de cores e parecia real”. (Vide Figura 6.)
Portanto, podemos concluir que quando as crianças estão envolvidas
afetivamente com seu professor(a) e motivadas em suas aprendizagens, elas
extrapolam as vias de conhecimento para além das habituais.
2.1.1 O professor é o exemplo
Otte (1993, p. 133) afirma que “não são as ações, ordens e palavras
isoladas do professor que são decisivas; importante sobretudo é o espírito e
a credibilidade que ele irradia”. O professor é o bom exemplo “quando aquilo
que ele ensina é uma motivação para ele próprio, quando ele ‘acredita’ e está
convencido do significado e da importância para si do conhecimento que
proporciona” (OTTE, 1993, p. 133). Neste caso fica evidente que o educador
é aquela pessoa que é capaz de imprimir a sua marca pessoal naquilo que faz
e que de certa forma vai refletir a maneira como ele vê o mundo. Logo, a sua
prática não é neutra.
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Diante das respostas do seu amigo ele resolveu ensinar qual era a
constelação de Escorpião no céu, como também mostrou o planeta Marte,
que estava visível a olho nu.
Essa atitude de comportamento revela um sentimento, um costume
que nossos antepassados tinham de transmitir uns para os outros o que des-
cobriam e aprendiam para que não morresse sua cultura ou ficasse esquecida
pelo tempo. Portanto, é esse resgate cultural que queremos reativar e recupe-
rar, a princípio, com as crianças: a ideia de que as coisas do céu fazem parte da
outra metade do nosso Meio Ambiente.
6 Esta prática está exposta em maiores detalhes no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar,
Vênus, sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.
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dida, na verdade, é usada até hoje, quando se trata de nos orientarmos com
relação às distâncias aparentes relativas entre os astros em geral. Contudo,
nunca havíamos ensinado, nem sequer comentado, essa informação com as
crianças.
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Figura7 – Crianças e convidados para o 5º Dia-Noite das Crianças: observando o céu através
do telescópio... (Foto: M. T. S. Alves)
Figura 8 – ... e participando de uma atividade recreativa com a professora de educação física,
no 1º Dia-Noite das Crianças (Foto: L. C. Jafelice)
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Figura 11 – Outros trabalhos de medições de sombras ao sol, agora usando-se o gnômon habitual
(um pedaço de pau, reto, disposto na vertical, sobre uma superfície horizontal) (exemplo)
Percebemos atualmente que muitos gêneros musicais não são mais tra-
balhados nas escolas, porque muitos professores dizem que seus alunos(as)
não gostam destas músicas fora de moda. De fato, os educandos continuarão
dizendo isto, caso não seja feito um trabalho de conscientização e valorização
de outros gêneros e ritmos musicais.
Sabemos que por trás das músicas há todo um fetichismo que mascara
esse lado de mercadoria que ela assume. Com isto, “o indivíduo já não con-
segue subtrair-se do jugo da opinião pública, tampouco pode decidir com
liberdade quanto ao que lhe é apresentado” (ADORNO, 1997, p. 66).
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Figura 12 – Crianças apresentando a coreografia da música “O dia em que o Sol declarou o seu amor
pela Terra”, de Jorge Benjor, no 5º Dia-Noite das Crianças (Foto: L. C. Jafelice)
7 Esta atividade foi idealizada pelo professor Luiz Carlos Jafelice, inicialmente para o desenvolvimento
de um trabalho de pesquisa sobre constelações a ser realizado por estudantes do 2o ano do 1o ciclo
do Nível Fundamental (antiga 2a série do primário) da turma da professora Zilda e de sua assistente
Eleide, da Casa Escola, em Natal, RN, no primeiro semestre de 1995. Esse trabalho foi feito naquela
época e culminou com a produção de um belo livro por aquela turma, muito rico em informações e
atividades interdisciplinares, ao qual eles intitularam “Das Constelações Zodiacais às Constelações
Indígenas”. Além da aplicação dessa prática que apresentamos aqui, na subsubseção 3.2.2 (Constelações
de tinta em papel) do capítulo 2 há outro exemplo, ali envolvendo adultos.
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Figura 13 – O que significa a ligação de pontos do “céu” para as crianças? Aqui, um exemplo
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8 Que nessa data, felizmente, estavam em condições muito favoráveis de serem observados, para sorte
dos estudantes e pais presentes, que puderam ter acesso a algo raro, em termos observacionais, para o
público em geral e puderam ter uma experiência e um enriquecimento cultural bastante importantes.
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Assim, nesse exemplo, envolvendo João Pedro, vemos que aquele seu
aprendizado foi fruto de uma ampla vivência de contato com o céu de fato.
Se você só aprendeu a reconhecer a constelação de escorpião inteira a partir
de uma figura e até é capaz de reconhecê-la ao vê-la nascer, quando está “com
a cabeça para cima”, provavelmente se perderá ou se atrapalhará quando ela
estiver no meio do céu, pois ela estará muito diferente, e mais ainda quando
ela estiver se pondo, e parecer estar “de cabeça para baixo”.
Como podemos constatar, portanto, através de diversos exemplos, vá-
rios destes elementos constitutivos envolvendo o conhecimento de coisas do
céu, elementos bastante complexos e sofisticados, já estão incorporados por
vários dos estudantes dessa turma.
Aqui convém abrir um parêntese para enfatizar algo muito importante.
Esses resultados foram obtidos apesar de os estudantes estarem em uma faixa
etária em que, segundo as orientações dos PCN para o 1º e 2º ciclos, As-
tronomia não é contemplada, muito menos segundo a forma, profundidade
e conteúdos com que a abordamos. O sucesso pedagógico dessa experiên-
cia, contudo, reforça a limitação daquelas orientações com respeito à abor-
dagem desses assuntos e mostra que elas estão equivocadas e precisam de
revisão, pelo menos nesse ponto. Aquelas orientações se amparam, em parte,
na concepção de etapas cognitivas – segundo a qual uma criança nessa faixa
etária não teria estrutura cognitiva para o desenvolvimento do pensamento
abstrato, envolvendo espacialidade etc. Isto porque se está pensando na abor-
dagem desses assuntos desde uma perspectiva heliocêntrica. Nossa prática
mostra que há muitas outras componentes envolvidas e a serem contempla-
das no ensino, em particular no de Astronomia. A presente experiência for-
nece exemplos bastante concretos e contundentes de que essas crianças têm
plenas condições – cognitivas e psicológicas – de serem bem-sucedidas no
processo de aprendizagem inclusive de conteúdos de Astronomia, além do
desenvolvimento de muitas outras habilidades e competências. Esperamos,
com esses resultados, contribuir para a reivindicação de que os PCN sejam
revistos nesse ponto.
Retomemos nossa exposição. Ainda no sentido dos resultados que
estávamos relatando, no mês de junho de 2006, a aluna Lígia me chamou a
atenção de que na moeda de 25 centavos havia o Cruzeiro do Sul gravado.
De fato, fui ver, e depois fui conferir em moedas de outros valores, e percebi
que essa constelação, muito relevante para nós, habitantes do hemisfério sul,
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Astronomia no Ensino Fundamental
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
e hora, para encontrar a lua, muitas vezes não sabem que ela aparece
com freqüência durante o dia, nem têm segurança sobre como é o
formato da parte iluminada da lua em cada fase. Na verdade, a intimi-
dade e a incorporação cotidiana que a grande maioria desses alunos
naturalmente desenvolveram, não só com a lua, mas com algumas
constelações, ritmos e coisas do céu, em geral, já é muito grande e
muito maior que a dos adultos, mesmo de adultos cultos, com curso
superior completo ( JAFELICE, 2006).
Estes são alguns dos vários exemplos que observei de que as crianças
dessa turma foram incorporando naturalmente em seu dia a dia as relações
céu-terra, que trabalhei com elas ao longo desses três anos de atividades se-
gundo o enfoque que propomos.
Vemos que o trabalho que essas crianças desenvolveram interferiu di-
retamente na construção de sua forma de ver as coisas. É um trabalho que
contribuiu para que elas integrassem, de modo espontâneo, novos elementos,
inter-relações e possibilidades à sua leitura de mundo.
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Astronomia no Ensino Fundamental
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Astronomia no Ensino Fundamental
Figura 15 – Oficina com argila para representar os planetas do sistema solar em escala
(Foto: L. C. Jafelice)
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
Dentro desse contexto, o grande desafio seria levar para a sala de aula
o texto sobre as origens celestes das festas juninas do professor Luiz Carlos
Jafelice ( JAFELICE, 2002), por se tratar de um conteúdo que precisa ser re-
cuperado e desfetichisado.
Para isto, tive a ideia de transformar o conteúdo básico daquele texto
em uma atividade com fantoches. Criei, assim, a partir do mesmo, os per-
sonagens e seus diálogos, onde estes exploram elementos fundamentais en-
volvendo a gênese daquela festividade – tão importante, principalmente em
nosso estado e região. Esses elementos, embora completamente associados a
fenômenos celestes, na verdade, são desconhecidos dos próprios praticantes
veteranos. Isto se deve ao fato de essa festa ser sempre abordada, em nossa
cultura e, consequentemente, nas escolas, pelo viés religioso-cristão, sem que
questões básicas do folclore e da origem daquela comemoração sejam discu-
tidas e aprofundadas, como nos aponta, por exemplo, Cascudo (1985; 1998).
Essa atividade se revelou muito instrutiva, além de divertida e gratificante9.
O professor é como se fosse um maestro que precisa saber orquestrar
cada recurso didático-pedagógico de acordo com o conteúdo que ele quer
trabalhar, para que seus alunos se apropriem do mesmo adequadamente no
ritmo, no passo, natural para eles e para que o processo todo seja sempre pra-
zeroso também.
Observamos, durante a execução do teatro de bonecos, que este re-
curso pode atender a vários objetivos pedagógicos, que não apenas o de en-
caminhar e trabalhar informações e conteúdos específicos. Em particular, por
exemplo, ele contribui para uma formação mais integral da pessoa, pois é um
recurso que também “[...] educa a audição. Ensina a criança a prestar atenção
ao mundo sonoro, a ouvir com interesse o que os outros falam, a perceber a
beleza da música e do ritmo” (FERREIRA; SOUZA, 1998, p. 13).
9 Está além do escopo deste capítulo explicitarmos essa prática. A mesma está exposta em detalhe em
Lima (2006, p. 71-73), em particular no Apêndice I (p. 139-143) dessa dissertação, onde consta o
roteiro completo do referido teatro de fantoches, com todos os diálogos dos personagens envolvidos.
Os interessados nesta atividade devem consultar esse material, disponível também através do sítio:
http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Disser-
tações (2002-2007)”].
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Astronomia no Ensino Fundamental
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
Oficina 2: balões.
Duração: dois dias consecutivos, destinando-se 1 hora para o primeiro dia e
30 minutos para o outro dia.
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Astronomia no Ensino Fundamental
Objetivo: trabalhar, através de uma analogia, como seria o solo da lua e suas
crateras.
Material necessário: balões de encher, cola, papel higiênico, pincéis, tinta
branca, cinza e gliter (Figura 16).
Procedimento:
1º) divide-se a turma em grupos de 4 pessoas, ou a critério do professor;
2º) entrega-se um balão para ser enchido pelo grupo; depois, aquele é amar-
rado com um barbante e passa-se cola no balão com um pincel. Recomenda-
se colocar um pouco de água na cola para diluí-la melhor;
3º) depois de o balão ter sido pincelado de cola, este vai sendo enrolado, com
uma primeira camada de papel higiênico, depois passa-se novamente cola e
acrescenta-se outra camada de papel higiênico. Se necessário coloca-se uma
terceira camada de papel;
4º) após se ter enrolado totalmente a bola assim formada, pegam-se pedaços
de papel higiênico, enrolam-se várias tiras e passa-se na cola; depois, mol-
dam-se essas tiras em forma de círculos, que são colocados sobre a bola para
representarem as crateras da lua;
5º) no dia seguinte, após a secagem do material, pega-se e corta-se o bico da
bola, para retirar o balão; e
6º) por fim, pinta-se a bola com tinta branca e, após esta secar um pouco,
pode-se passar uma tinta cinza ou dourada e salpicar-se com gliter.
Oficina 3: lixa.
Duração: aproximadamente 25 a 30 minutos.
Objetivo: trabalhar as fases da lua através do desenho delas na lixa, bem
como nos diferentes tipos de textura de outros materiais (tecido, algodão, pa-
pel etc.) e a socialização de conhecimentos entre as crianças.
Material necessário: lixas e coleções de giz ou lápis de cera (Figura 17).
Procedimento: distribui-se uma lixa inteira para cada criança e pede-se que
as crianças desenhem as fases da lua nas suas lixas.
Oficina 4: argila.
Duração: aproximadamente 30 minutos.
Objetivo: trabalhar as fases da lua através da modelagem com argila, a co-
ordenação viso-motora, a socialização, a cooperação mútua e o desenvolvi-
mento de um sentimento de que somos seres pensantes capazes de transfor-
marmos as coisas através do nosso trabalho e dedicação, em particular as que
consideramos relevantes para nós.
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
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Astronomia no Ensino Fundamental
Figura 16 – Oficina com balões, cola e papel higiênico (Foto: Fátima Lopes)
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
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Astronomia no Ensino Fundamental
A trilha da lua foi criada a partir de uma inquietação da minha parte após
a elaboração do pré-projeto de mestrado na área de Ensino de Astronomia.
Fiquei a pensar que há certos conteúdos que precisam ser transmi-
tidos às crianças, pois são conhecimentos acumulados historicamente pela
humanidade. Sendo assim, precisam ser transmitidos, porque não há como
interiorizá-lo pela construção, é algo que já está dado, é arbitrário. Pensando
nisto, achei que seria mais viável e prazeroso se pudéssemos, quando possí-
vel, utilizar “jogos”, porque através deles as crianças sentem-se estimuladas e
aprendem de forma mais ativa, interagindo com as outras crianças e com o
adulto, como também as incita para a leitura, porque descobrir regras e poder
jogar é um bom motivo para tentar interpretar a escrita.
Ora, ao criar-se o jogo trilha da lua, criou-se um excelente recurso di-
dático de dinâmica de grupo que possibilita o favorecimento do prazer pela
aprendizagem.
Segundo a revista Mundo Jovem (EQUIPE DA CASA DA JUVEN-
TUDE PE. BURNIE, 2001),
Dynamis é uma palavra grega que significa força, energia, ação.
Quando Kurt Lewim utilizou essa expressão e começou a pesquisar
os grupos, seu objetivo era o de ensinar às pessoas comportamentos
novos e decisão em grupo, em substituição ao método tradicional de
transmissão de conhecimento.
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
Quem a batizou?
No dia 28/04/03 conversei com as crianças10 sobre a necessidade de
escolhermos um nome para o “jogo” que, em princípio, chamei trilha da lua
(porque já havíamos começado a jogar esse jogo dia 05/04/03). Eles suge-
riram os seguintes nomes: Trilha da lua, Trilha do céu, Trilha do céu e das
estrelas.
Foi colocado em votação e eles escolheram a Trilha da lua, pois, se-
gundo a defesa que a aluna Brenda fez por este nome, nós tínhamos estudado
até então sobre as coisas da lua.
10 Nessa data me refiro, portanto, a crianças da Escola Municipal Professora Zuleide Fernandes e não a
meus alunos dos últimos três anos na Escola Estadual Alceu Amoroso Lima.
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Astronomia no Ensino Fundamental
Figura 20 – O jogo trilha da lua, nas versões lua cheia e crescente (Foto: L. C. Jafelice)
1º: antes de mais nada, a professora tem de conhecer os níveis de escrita dos
alunos para agrupá-los (vide especificações abaixo de como fazer isto);
2º: cada dupla irá tirar par ou ímpar para saber o caminho que vão seguir
na trilha; há dois caminhos: o da ciência e o dos mitos (que originalmente
havíamos chamado de caminho dos cientistas e caminho dos mitos) (vide
quadro a seguir);
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
• Você sabia o que é a Lua para os • Você sabia o que é a Lua para os
cientistas? povos Pataxós?
Resposta: Ela é um satélite natural da Resposta: É uma índia velha e eles a
chamam de Angohó.
Terra. Avance uma casa.
Avance uma casa.
• Os cientistas falaram que na Lua a • Em noites de lua cheia os Pataxós
gente parece mais leve, anda mais dançam em roda para celebrar a Lua.
devagar, flutua! Mostre como é Pare e dance com seus colegas como os
brincar e andar na Lua. Depois índios Pataxó!
avance duas casas.
• Uns dizem que a Lua pode ter surgido • Nas noites de lua cheia os índios mais
da colisão de outro planeta com a velhos contam... Descubra com sua
Terra há bilhões de anos. Represente professora o que eles contam e fique
com seus colegas como é essa colisão, uma vez sem jogar.
e avance uma casa.
• Como você chegou até a Lua? Uns • Já os índios Suruí chamam a Lua
vieram de foguete a jato, outros de Gatikat. Compartilhe com seus
colegas essa informação. Avance
usaram a magia, o pensamento. E
duas casas.
você? Agora fique uma vez sem jogar.
• Que sorte! Você caiu em um buraco,
crateras, a vida é cheia delas. Levante- • Você tropeçou e caiu em uma cratera;
se e jogue outra vez! a vida é cheia delas. Levante e jogue
• Você já viu a Lua de dia? Como ela mais uma vez!
estava? Fique uma vez sem jogar e • Os índios Suruí dizem que o Sol e a
preste atenção também nas coisas do Lua são irmãos que ficam deslizando
céu, de noite e de dia... pelo céu. Agora fique uma vez sem
jogar.
• Segundo os cientistas, a Lua faz dois
movimentos, rotação e translação. • Os mais velhos dizem que é bom
Peça à professora para representar, cortar os cabelos na lua cheia.
com a ajuda dos colegas, estes dois Pergunte aos seus pais, em casa,
movimentos, e avance uma casa. o que eles acham disso e traga a
resposta para sua turma.
• Você sabia que a Lua sofreu e sofre Avance uma casa.
ataques de meteoritos em sua
superfície e que é por isto que há • Você já viu a Lua hoje? Como ela
muitas crateras nela? estava?
Conte para seus amigos e aprecie essas Conte para seus amigos e aprecie essas
inúmeras crateras da Lua para voltar inúmeras crateras da Lua para voltar
para a Terra.
para a Terra.
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Astronomia no Ensino Fundamental
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
É bom lembrar ainda que Edivaldo é uma criança muito inquieta e não
se concentra por muito tempo nas tarefas propostas em sala de aula, mas no
dia em que brincamos na trilha da lua ele quis participar logo na 1ª rodada.
Ele aprendeu tanto o conteúdo trabalhado na trilha que na segunda-feira, dia
07/04/03, veio de cabelo cortado, pois havia no jogo uma atividade de pes-
quisar se era bom cortar os cabelos na lua cheia.
Brendo Lee de 7 anos, também na segunda-feira, dia 07/04/03, logo
no início da aula disse:
“Tia! Eu perguntei à minha mãe e ela disse que era bom cortar o cabelo na
lua cheia”.
Eu perguntei, então, mesmo imaginando qual seria a resposta: “qual o
motivo?”, e ele disse:
“É bom porque cresce os cabelos”.
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Astronomia no Ensino Fundamental
11 No sentido habitual, da competitividade, que estimula uns ficarem contra os outros na luta para se
vencer. A existência do vencedor necessariamente implica que haja perdedores. Atividades que valo-
rizem estes resultados fomentam mentalidades e comportamentos nos quais a exclusão é tida como
inevitável e até saudável. Isto, sem dúvida, não é verdadeiro. Então, visando um mundo mais justo,
os educadores precisam buscar atividades e formas que incentivem a cooperação e a colaboração e
trabalhar estes valores com dedicação junto a seus alunos.
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
12 As adivinhas lunares são perguntas relacionadas àquele astro, que foram colocadas em cartões de
cartolina. Está além do escopo deste capítulo explicitarmos esta prática. No Apêndice F (p. 129)
de Lima (2006) constam as (oito) perguntas utilizadas na referida prática, para onde remetemos os
interessados na mesma.
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Astronomia no Ensino Fundamental
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Maria Luciene de Souza Lima Freitas
Ora, as coisas do céu, por estarem presentes no nosso dia a dia, possi-
bilitam-nos fazermos comparações e aprender de fato que somos harmoniza-
dos por ritmos cósmicos, por assim dizer.
Por outro lado, a abordagem que adotamos proporcionou a inclusão
de todas as crianças portadoras de necessidades especiais, ou não, e propiciou
que elas vivenciassem e descobrissem por si mesmas, ou através das relações
de trocas entre elas, muitos conhecimentos considerados específicos da área
de Astronomia, como, por exemplo: o fato de que a lua aparece também de
dia, durante muitos dias do mês; que ela muda sua aparência segundo um
padrão cíclico, isto é, que se repete regularmente – o que faz com que ela sirva
para medirmos e organizarmos o tempo (calendários lunares) com precisão;
que ela é um satélite natural da Terra; que ela tem crateras em seu solo; que os
planetas parecem estrelas, visualmente, mas são muito diferentes das estrelas,
em suas constituições e movimentos no céu; que há agrupamentos de estre-
las que nossa cultura denominou de uma certa maneira e como identificar
alguns deles no céu; como usar o Sol para descobrir as direções cardeais e
para medir o tempo: a origem do relógio solar; como identificar os pontos
cardeais a partir de onde os astros nascem e se põem, além da conscientiza-
ção do movimento aparente de todos os astros no céu; entre muitos outros
conhecimentos que destacamos neste capítulo.
Portanto, este trabalho mostra13 que é possível – além de vantajoso
dos pontos de vista pedagógico e da formação integral do ser humano, sob
vários aspectos – se trabalhar os conteúdos de Astronomia nas séries iniciais,
enquanto as crianças vão se apropriando do nosso sistema de escrita, que é
alfabético. Para isto, é preciso trazer para a sala de aula a diversidade textual
que existe fora. Com isto, o professor precisa ensinar, além do conhecimento
sobre as letras, a linguagem que se usa para escrever os diferentes gêneros.
Um outro aspecto que podemos mencionar, a partir das entrevistas
com as crianças que participavam desta pesquisa, é que quando as crianças
entram na escola elas já trazem conhecimentos a respeito da utilidade e im-
portância dos astros do céu em nossas vidas, em consequência de suas ex-
periências cotidianas e de natural imersão na cultura. Portanto, compete a
nós, professores, enriquecermos esses conhecimentos para que as crianças
13 As conclusões básicas deste trabalho, aqui mencionadas em parte, são justificadas também em função
de outras análises, mais técnicas e aprofundadas, envolvendo questionários aplicados aos alunos e
gráficos dos seus níveis de escrita, elaborados ao longo desses anos. Os interessados nessas análises
devem consultar Lima (2006).
84
Astronomia no Ensino Fundamental
85
Maria Luciene de Souza Lima Freitas
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86
Astronomia no Ensino Fundamental
87
Astronomia no Ensino Médio
Capítulo 2
Uma Abordagem Humanística
para o Ensino de Astronomia no Nível Médio
1 PENSANDO EM EDUCAÇÃO
Na atual sociedade multifacetada, complexa e desigual, as informa-
ções recebidas através da mídia são, na maioria das vezes, mais interessantes,
rápidas e coloridas que as apresentadas na Escola. Deve-se, pois, refletir sobre
o novo papel da Escola e da Educação diante dessa sociedade, para aquela
não se tornar uma mera reprodutora de informações monolíticas do passado,
mas que vise construir uma prática educacional apta a capacitar os estudantes
com habilidades, valores e uma verdadeira atitude que os permitam empre-
ender uma aprendizagem contínua, permanente e útil. Nas palavras de Pozo
e Crespo (1998, p. 28, tradução nossa),
[...] não se trata de que a educação proporcione aos alunos conhe-
cimentos como se fossem verdades acabadas, senão que os ajude a
construir seu próprio ponto de vista, sua verdade particular a partir
de tantas verdades parciais.
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Gilvana Benevides Costa Fernandes
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Astronomia no Ensino Médio
Deve-se ter claros dois pontos: primeiro, que esse nosso discurso não
questiona a perspectiva de se formar os estudantes para o ingresso nas insti-
tuições de ensino superior; ao contrário, como educadores, devemos incenti-
var os estudantes que almejem a continuação de seus estudos, pois o impor-
tante é a realização profissional, seja ou não através de um ensino superior. A
presente crítica se destina à forma que acaba por incentivar a competição e o
individualismo, enfocando-se um demasiado acúmulo de conteúdos especí-
ficos, principalmente dos últimos anos de formação, na maioria das institui-
ções, em detrimento de um trabalho crítico e participativo.
A atitude de competição nas escolas, porém, entre outras coisas, está
encobrindo a omissão quanto à real necessidade política de melhorar o aces-
so às universidades, e não só isso, de melhorar o próprio ensino superior, ter
mais universidades, mais docentes, mais investimentos nos aspectos físicos
e operacionais para que se atenda um maior número de pessoas. Não deve
caber à Escola o papel de selecionar aqueles que irão ou não, através dos su-
cessos e insucessos de cada um, concorrer ao ensino superior. Frente ao tipo
de ensino não crítico praticado e que, muitas vezes, só exige a capacidade
de memorização dos estudantes, só restarão aqueles estudantes que têm esse
perfil, ou que têm uma obrigação ou mesmo uma ligação com esse tipo de
capacidade, enquanto a maioria, que não tem ou que não desenvolve essa ca-
racterística, passa simplesmente pela escola, ficando com um escasso conhe-
cimento, acompanhado, muitas vezes, por uma sensação de fracasso diante de
tantas informações não compreendidas.
Pelas considerações de Pozo e Crespo (1998, p. 38, tradução nossa),
[n]os lamentamos de que os alunos são passivos, mas apenas lhes
deixamos espaços de participação autônoma; de que não têm sen-
sibilidade para os problemas sociais, científicos e tecnológicos que
os rodeiam, mas a ciência é ensinada como uma realidade própria,
um conjunto de conhecimentos formais que constituem uma torre
de cristal isolada do ruído mundano. Nos lamentamos de que se li-
mitam a repetir como papagaios o que nós dizemos, mas não valo-
rizamos suas próprias idéias ou as consideramos como ‘erros con-
ceituais’. Embora muitos professores não o desejem, através de sua
conduta em sala estão transmitindo atitudes das que muitas vezes o
aluno se contagia, por isso é conveniente controlar melhor quê mo-
delos lhes estamos oferecendo.
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Gilvana Benevides Costa Fernandes
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Astronomia no Ensino Médio
Tabela 1*
– Aprender ciências consiste em repetir da melhor forma possível o que explica o
professor em aula.
– Para fazer ciências é melhor não tentar encontrar tuas próprias respostas senão
aceitar o que diz o professor e o livro texto, já que está baseado no conhecimento
científico.
– O conhecimento científico é muito útil para trabalhar em laboratório, para
investigar e inventar coisas novas, mas não serve para nada na vida cotidiana.
– A ciência nos proporciona um conhecimento verdadeiro e aceito por todos.
– Quando sobre um mesmo fato há duas teorias, e que uma delas é falsa: a ciência
acabará demonstrando qual delas é a verdadeira.
– O conhecimento científico é sempre neutro e objetivo.
– Os cientistas são pessoas muito inteligentes, mas um tanto estranhas, que vivem
trancadas em seus laboratórios.
– O conhecimento científico está na origem de todos os descobrimentos tecno-
lógicos e acabará por substituir a todas as outras formas de saber.
– O conhecimento científico traz consigo sempre uma melhora na forma de vida
das pessoas.
* Fonte: Pozo e Crespo (1998), p. 21, tradução nossa.
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Gilvana Benevides Costa Fernandes
uma vez que é vista como autossuficiente, feita por pessoas com capacidades
quase excepcionais e construída unicamente de acertos. “Essa perda de sen-
tido do conhecimento científico não só limita sua utilidade ou aplicabilidade
por parte dos alunos, senão também seu interesse ou relevância” (POZO;
CRESPO, 1998, p. 21, tradução nossa).
Assim, frente a esse complexo quadro, é salutar pensar na educação
como um processo capaz de recuperar a saúde emocional, psicológica, social
e ambiental dos indivíduos na sociedade moderna, que é tão carente de ritu-
ais simbólicos de passagens os quais inserem os jovens na responsabilidade e
no convívio de sua comunidade. Neste sentido,
[a]s preocupações contemporâneas, em muitos países industrializa-
dos, de que as crianças (e principalmente os adolescentes) não pos-
suem um senso claro de direção e propósito na vida podem estar re-
lacionadas à falta de um papel claramente definido para as crianças e
adolescentes na sociedade contemporânea. Em muitas culturas, ritos
de passagem – atos ou eventos específicos que marcam a transição de
um estágio para outro da vida – servem para salientar a importância
das conquistas na infância e na adolescência e favorecem a indicação
do papel ou lugar da criança na sociedade (HUTCHISON, 2000,
p. 82).
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Astronomia no Ensino Médio
1 Para aplicações dessa teoria em sala de aula, vide, e.g., Armstrong (2001).
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Gilvana Benevides Costa Fernandes
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Astronomia no Ensino Médio
preciso disso?”, tão comum na sala de aula e que reflete a distância entre o
que se aprende na escola e o que se usa na vida. É necessário que o professor
perceba que incluir outras inteligências não implica em falta de controle da
turma ou de domínio de conteúdo. É importante também o diálogo entre
o professor, a escola e os pais, para que a metodologia empregada não seja
confundida com falta de objetividade. As aulas têm momentos de exposição
de conteúdo, da maneira tradicional que conhecemos, mas há também que
se criar uma cultura onde seja possível, através de atividades lúdicas e cria-
tivas, trabalhar de modo amplo e integrado o conhecimento do programa.
Isto porque, para alguns estudantes, momentos de reflexão e de vivência in-
trapessoais, cinestésica, etc. são mais que importantes, são essenciais para a
aprendizagem.
Dessa forma, é inevitável que questionemos a respeito da cultura do
vestibular, que se tornou o eixo norteador no ensino médio. E não estamos
falando aqui em qualidade, no sentido em que muitas vezes a escola tem mui-
ta “qualidade” no oferecimento de recursos para que o aluno consiga a apro-
vação no vestibular. Referimo-nos à ideologia, bem como aos reais valores
que motivam as escolas e que encontramos na grande maioria delas. Esses
valores são, na verdade, os comandos da nossa sociedade de consumo, que
se baseiam no materialismo e no individualismo como quase única forma de
existência possível. Tais valores são agressivos quanto à utilização dos recur-
sos da natureza, os quais, por outro lado e reforçando a mentalidade mencio-
nada, apesar de explorados em grande quantidade, não são distribuídos de
forma justa entre os indivíduos. Assim, os defensores desses valores, mesmo
percebendo a gravidade da crise ambiental, apostam sempre na possibilidade
de construção de uma solução tecnológica para tal crise, pois são valores que
se apoiam no positivismo e no cientificismo, pressupondo (paradoxalmente
sem prova científica disto) que esta visão de mundo nos levará sempre para
um estágio mais evoluído de sociedade e que nos salvará desse quadro de
destruição da natureza.
Essa ideologia impede que se perceba que devemos criar e incentivar
outros hábitos e outros comportamentos mais eficazes para cuidar da nature-
za. Os valores como respeito, responsabilidade ou cooperação são mascara-
dos pelo excesso de competição, que é fortemente estimulada nestes últimos
anos de educação para os jovens. Dessa forma, o combate de um ensino volta-
do para o vestibular é o combate de hábitos e comportamentos materialistas,
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2 Nossas primeiras incursões na criação, experimentação e análise de práticas diferenciadas para o re-
ferido ensino, segundo a abordagem aqui proposta, estão registradas, em parte, em Costa e Jafelice
(2001; 2003). Aquelas práticas foram bastante diversificadas e aprofundadas e sua consolidação está
exposta em Costa (2005), também disponível através do sítio: http://www.posgraduacao.ufrn.br/
ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”]. Neste capí-
tulo sintetizamos exemplos e reflexões essenciais daquela exposição, visando deixá-la mais objetiva e
útil, sem perder sua autoconsistência.
3 Esse foi um curso realizado dentro do projeto “Educação em Ciências através de Observatórios Vir-
tuais” – da Fundação Vitae, São Paulo/SP. Elaboramos e implementamos uma série de atividades e
vivências para esse curso, as quais explicitamos neste capítulo.
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teóricos e que eles não são verdades absolutas, mas afirmações temporárias
baseadas em dados, em experimentos e também em intuição pessoal do pes-
quisador, que podem ser substituídos frente a outros fatos e dados e suas in-
terpretações. Quando um modelo é aceito pela comunidade, ele de fato ex-
plica muitas coisas, fecha pontos de teorias que estavam em abertos, prevê
outras situações de aplicação da teoria etc, mas, sobretudo, mexe em quase
todos (ou talvez todos) os nossos paradigmas sociais: artístico, emocional,
político, científico, econômico e religioso de nossa sociedade. Dessa forma,
não existem ganhos sem perdas nas substituições dos modelos. Contudo, a
ideologia positivista que temos – isto é, que apesar de sua eventual superação
no campo das discussões filosóficas, ainda atua fortemente em nossa cultu-
ra: mentalidade, currículos, cursos, posicionamentos, escolhas e valores – faz
com que pensemos que toda substituição e “evolução” são benéficas, o que é
verdadeiramente questionado na abordagem que propomos.
A questão de se a substituição de modelos sempre traz melhorias,
pode ser também analisada nas aulas de astronomia. Refletir sobre o fato de
que a tecnologia, a medicina, a fabricação de roupas e calçados e a produção
de comida avançam é uma realidade, mas também é fato que não acabamos
com doenças relativamente simples como a dengue, nem acabamos com a
fome e a miséria em muitas cidades brasileiras ou na África, por exemplo,
assim como também é uma realidade que os supostos avanços não chegam
para todos no mundo. Também é fato que presenciamos, estarrecidos, cenas
de violência que nos chegam pela mídia, que de tão chocantes perdem a na-
cionalidade, “aqui” ou “lá” são definições que parecem pouco importar nesses
tempos de globalização de economias. Assim, que tipos de melhorias estão
sendo considerados? Para quem essas melhorias têm sido benéficas? Essas e
várias outras questões desse teor podem ser trabalhadas, inclusive, dentro dos
Temas Transversais: Ética e Trabalho e Consumo.
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3.2 As atividades4
3.2.1 Representações do universo
A primeira atividade quer constatar a hipótese de que a sociedade
ocidental moderna atual conseguiu de forma eficiente tirar o ser humano da
concepção do universo. Assim, apoiada no fato de os estudantes poderem
representar suas concepções espontâneas ou alternativas a esse respeito através
de um desenho, partiu-se para a eventual verificação daquela hipótese através
de uma atividade que consiste em entregar uma folha de papel ofício e lápis
de cor aos alunos e pedir para que eles representem o universo5. Como
resultado, obtivemos desenhos de estrelas, galáxias, planetas, satélites e, até
mesmo, naves espaciais.
4 Os interessados em discussões mais aprofundadas destas atividades, assim como da proposta deste
capítulo como um todo – incluindo fundamentações, conexões e críticas em relação aos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e aos PCN do Ensino Médio (PCNEM), em particular o alerta de que
por se apoiarem na filosofia progressista, os PCNEM ainda não completam a formação do indivíduo, já
que se ausentam frente às necessidades espirituais do ser humano – devem consultar Costa (2005).
5 Essa prática foi idealizada por Luiz Carlos Jafelice, e tem sido utilizada e divulgada por ele em cursos
de astronomia, desde 1994. Maiores comentários sobre a mesma podem ser encontrados em Jafelice
(2004). Ela está exposta mais em detalhe no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras, expressões cultu-
rais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro. Tal prática também foi reproduzida como uma atividade
na disciplina de História da Ciência, no mestrado profissionalizante, ministrada por Gilvan Luiz Bor-
ba, Arlete de Jesus Brito e Luiz Seixas das Neves junto ao PPGECNM/UFRN, em 2002.
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6 Esta atividade foi idealizada por Luiz Carlos Jafelice, inicialmente para o desenvolvimento de um
trabalho de pesquisa sobre constelações a ser realizado por estudantes do 2o ano do 1o ciclo do Nível
Fundamental da turma da professora Zilda e de sua assistente Eleide, da Casa Escola, em Natal, RN,
no primeiro semestre de 1995. Esse trabalho culminou com a produção de um belo livro por aquela
turma, muito rico em informações e atividades interdisciplinares, ao qual eles intitularam “Das Cons-
telações Zodiacais às Constelações Indígenas”. Além da aplicação dessa prática que apresentamos
aqui, na seção 3.5 (Salpique de tinta) do capítulo 1 há outro exemplo, ali envolvendo crianças.
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7 O conjunto das três Marias não é uma constelação, mas está em uma constelação. Elas representam o
cinturão do caçador Órion – que é uma das oitenta e oito constelações oficiais em nossa cultura. Mas
as pessoas, também por questões culturais – neste caso, de cunho cristão –, conhecem muito mais o
conjunto das três Marias – e o identificam a uma constelação – e não Órion, da qual aquele conjunto
faz parte, na nossa convenção cultural.
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8 O texto referente a esta atividade está integralmente reproduzido no anexo A deste capítulo.
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9 Atualmente redefinidos para se restringirem a oito planetas; na época do curso eles ainda eram nove.
10 Para esta atividade utilizamos os diapositivos organizados pela Sociedade Astronômica Brasileira
(SAB).
11 As fontes de onde cada um desses textos foi extraído constam do anexo B deste capítulo, onde tam-
bém os quatro textos utilizados estão integralmente reproduzidos.
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12 Os textos referentes a esta atividade estão integralmente reproduzidos no apêndice deste capítulo.
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15 Já há algumas décadas, contudo, vem se questionando sobre o método científico ser realmente um
processo isento de fatores subjetivos – pessoais, emocionais e ideológicos do pesquisador. Uma leitu-
ra interessante neste sentido é, e.g., o livro de Alves (2000), e muitas das referências lá citadas sobre o
referido questionamento.
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16 Esse filme também é trabalhado desde uma perspectiva bastante semelhante à nossa, embora com
outra ênfase, por Luziânia Ângelli Lins de Medeiros, conforme ela expõe no capítulo 3 deste livro.
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17 Embora, para quem está habituado a circular por esses assuntos, as cenas mostradas pareçam eviden-
tes, nem sempre é isto o que ocorre para plateias novatas nos mesmos. É fundamental ouvir o que elas
têm a dizer.
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A prática é bastante simples de ser executada, uma vez que a parte mais
difícil foi encaminhada por nós, educadores. E o mais difícil é vencer a nossa
resistência pessoal, interna, a mudanças, ao novo, em mexer em coisas (corpo
e sons nesse caso) de uma forma que não estamos habituados para uma práti-
ca de ciências em sala de aula. O mais comum é que internamente rejeitemos
a experiência por medo de fazer um “papelão” na frente dos nossos alunos,
de eles acharem que há coisas que não dominamos (e dominamos tudo?), da
saída do controle racional e de envolver elementos em que os alunos podem
ser tão bons ou até melhores que nós, afinal um ou outro aluno pode ser mais
afinado ou ritmado. A quase igualdade entre os indivíduos na atividade pode
ser perturbadora para alguns professores, cujo estilo esteja mais fechado em
um ensino tradicional, uma vez que, nesta prática, o professor apenas condu-
zirá a vivência, atuando como mediador ou facilitador.
Outra intenção da atividade é deixar bastante clara a concepção que o
povo tupi-guarani tem a respeito do céu. Uma concepção diferente da nossa,
porque não separa o indivíduo do universo, o que contribuiu para que esse
povo tivesse uma relação mais harmônica com a natureza. Ou seja, deve-se
deixar claro aos alunos que é outra forma de ver as relações e que devemos –
nós e os alunos – nos esforçar para não tratá-la como uma forma inferior de
conhecimento só porque difere da nossa – uma vez que este comportamento
é uma prática comum da nossa cultura, pois a cultura “dominante” tem uma
necessidade de inferiorizar as outras. Deve-se, assim, pedir para eles se libe-
rarem aos poucos dos conceitos ou preconceitos formados e tentarem verda-
deiramente vivenciar a prática.
Será comum nessa situação que surjam expressões com um tom
depreciativo, como: “isso é coisa de índio”, por parte dos nossos alunos; isso
porque eles estão muitos viciados na crítica vazia, infundada, ou na crítica pela
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tronomia – e foi isto que nos motivou para a escolha desse tema –, pois elas
nos cobram respostas às muitas perguntas feitas pelos estudantes, como, por
exemplo: O que aquela estrela lá longe pode dizer aqui, sobre a Terra, sobre
mim? Qual a relação, a proporção, entre esse mundo de fora e esse mundo de
dentro que carregamos? – e, sobretudo, – Qual é o caminho que conecta esse
microcosmo e esse macrocosmo?
Assim, é quase inevitável reconhecer que o ensino médio nas escolas
deve ser mais do que essa maratona de acúmulo de saberes para a seleção
das universidades – saberes, na grande maioria dos casos, apenas técnicos,
descontextualizados de um sentido existencial mais profundo, desumanizados,
enfim; saberes que não valorizam nem favorecem a construção de uma
sabedoria de vida, mas, ao contrário, reforçam a mentalidade utilitarista,
imediatista e inconsequente que ajuda a exaurir o planeta de um modo mais
eficiente.
E aí está o desafio: mudar ou ao menos iniciar uma mudança na con-
cepção de ensino dentro da nossa sociedade. Visão essa que já está muito vi-
ciada em produzir competidores, ao invés de indivíduos que se preocupam e
agem unidos frente aos problemas que realmente importam, como a poluição
dos rios ou a violência no bairro, por exemplo.
O porquê do ensino nas escolas não falar sobre o que realmente im-
porta para a vida e para a preservação desta sobre a Terra é um profundo mis-
tério que já se sente incomodar por baixo de tantas e tantas equações, mui-
tas sem sentido e longe de se referirem a problemas reais, que são resolvidas
compulsivamente nas aulas de física no ensino médio e que deixam a maioria
dos alunos tão enfadados e sem motivação para o estudo de física.
Se a escola disponibiliza várias disciplinas, é necessário que, ou é es-
perado que, em algum momento ela integre esses conteúdos. Se soubermos
sobre as várias portas de capacidades cognitivas que nós e nossos alunos dis-
pomos, podemos tentar bater em outra porta que não seja a da razão, trazen-
do o aluno para uma vivência transpessoal e ainda assim com um foco no
conteúdo.
O presente capítulo é para mexer com os educadores e instigar-nos
a sermos esses abridores de novas portas, curiosos para saber o que existe
atrás delas e adentrar por esses novos caminhos que nos levam a aprender e
a ensinar usando intuição, música, jogos, brincadeira, teatro e tantos outros
recursos também no ensino médio.
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REFERÊNCIAS
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Céu dos Índios Tembé. 2. ed. rev. Belém: Planetário do Pará/UEPA, 2000. Série
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2005. 100f. (Também disponível
em: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras
Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”).]
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HUTCHISON, David. Educação Ecológica: idéias sobre a consciência ambiental.
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POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. Aprender y Enseñar Ciencia: del conocimiento
cotidiano al conocimiento científico. Madrid: Morata, 1998.
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A.1 Mitos
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A.2 Pré-socráticos
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Astronomia no Ensino Médio
A.3 Timeu
Timeu é o personagem do livro que recebe seu nome; é um matemá-
tico e astrônomo seguidor da filosofia de Pitágoras. É Timeu quem descreve
as concepções sobre a origem e o desenvolvimento do universo nessa obra
escrita pelo filosófico Platão, que a apresenta como um “mito filosófico”. Pro-
põe que o universo foi criado por um deus que estaria fora do tempo e que o
faz a partir de um projeto para que a obra fosse a mais perfeita possível. Ele
cria o universo a partir de uma desordem, a qual ele organizará.
Dos estudos astronômicos da época surge a ideia de que a forma es-
férica seria a mais perfeita, que a Terra era redonda, estava no centro de tudo
e em sua volta estariam os planetas e as estrelas, menores que a ela, presos a
superfícies esféricas transparentes – denominadas “orbes” – que giravam em
torno de um centro que coincidia com aquele da Terra.
O referido mito filosófico incorpora todos esses elementos em suas
explicações. Seguindo a tradição de Pitágoras, Timeu assume que tudo foi
planejado de acordo com leis matemáticas e existiriam apenas quatro subs-
tâncias naturais (cada uma associada a uma figura geométrica tridimensional
típica): fogo (tetraedro), terra (cubo), ar (octaedro) e água (icosaedro).
Características marcantes do mito filosófico cosmogônico do Timeu:
O universo é criado por um ser divino ou artesão que o faz total-
mente autossuficiente e perfeito.
O criador ou artesão do universo lhe deu um movimento circular
em torno do seu próprio centro por ser esse um movimento perfeito.
O tempo surgiu simultaneamente com o universo.
A doutrina pitagórica, da qual Platão era herdeiro intelectual, in-
cluía a crença de que o princípio unificador do universo era dado
por proporções numéricas, na qual a harmonia musical seria sua
expressão máxima.
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A.4 Bíblia
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A.5 Descartes
A teoria cosmogônica de Descartes, que aparece na obra Princípios da
Filosofia, foi bem moderna para a sua época e explicou vários dos fenôme-
nos observados através da proposta dos vórtices, oferecendo esclarecimentos
compreensíveis em seu tempo. Porém, as explicações de muitos dos fenôme-
nos observados, como o movimento da Terra em torno do Sol, da Lua em tor-
no da Terra, das manchas solares, estavam baseadas nas teorias de Copérnico
e de Galileu, que iam de encontro ao que a igreja pregava. Essa perspectiva fez
com que Descartes resolvesse não publicar sua teoria, que só foi conhecida
depois de sua morte.
Sua teoria se destaca por tentar explicar a origem do universo, enquan-
to que as posteriores se concentraram em temas mais específicos: o desenvol-
vimento da Terra, ou o desenvolvimento dos astros, ou algum outro ponto.
Mas, no final do século XVII, a física passa por uma reformulação que exigia
que as teorias permitissem fazer cálculos e previsões quantitativas, e o mais
grave defeito da teoria de Descartes foi o de não ter uma base matemática
e, sim, uma base qualitativa, recebendo, assim, duras críticas do físico Isaac
Newton.
Características marcantes da teoria cosmogônica de Descartes:
O papel de Deus é limitado, ocorrendo apenas no começo, crian-
do a matéria inicial, que preenche todo o espaço, quebrando-a e
colocando-a em movimento. O resto do processo ocorre por leis
naturais, sem intervenção divina.
Através do movimento e sucessiva quebra das partes da matéria
inicial sólida, surgem três elementos:
a) O terceiro elemento, que seria constituído de partículas
sólidas maiores associadas ao solo;
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de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens,
trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e
desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de gera-
ções em gerações, a necessidade da existência de sua ordem.
Por isso mesmo – e os índios sabiam – a educação do colonizador,
que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente le-
galidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação
do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante
dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, den-
tro de sua cultura.
Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação
é um dos meios de que os homens lançam mão para criarem guerreiros ou
burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda
a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e
legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de cren-
ças e de ideias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de
símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades.
E esta é a sua força.
No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome
de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na ver-
dade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e
ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação – nas
suas agências, suas práticas e nas ideias que ela professa – interesses políticos
impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta
é a sua fraqueza.
Aqui e ali será preciso voltar a estas ideias, e elas podem ser como um
roteiro daqui para frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na
ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se
diz para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma
coisa melhor, de acordo com imagens que se tem de uns e de outros: “...e deles
faremos homens”. Mas na prática a mesma educação que ensina pode desedu-
car, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa fazer, ou do que
inventa que pode fazer: “...eles eram, portanto, totalmente inúteis”.
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20 Textos utilizados na atividade exposta na subsubseção 3.2.5 (Representação teatral sobre a origem do
universo).
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Então não havia nem o ser nem o não-ser; não havia o domínio do ar
nem o céu além dele. O que estava recoberto? Onde? Em que receptáculo?
Existia um abismo de águas profundas?
Então não havia morte, nem havia imortalidade, nem havia distinção
entre o dia e a noite. Aquele Um respirava sem vento, por si próprio. Nada
diferente dele; o que além dele?
Havia trevas ocultas em trevas, tudo isso era um ondular indistinto.
Aquilo existia envolto no vazio; pelo poder do seu ardor, aquilo cresceu e
se manifestou. Nele surgiu primeiramente o desejo, a semente primordial da
mente.
A união do ser ao não-ser foi descoberta pelos sábios, que refletiram
sobre o que contemplaram em seus corações. O raio se estendeu através de-
les. O que estava embaixo e o que estava em cima? Havia inseminadores, ha-
via poderes, autonomia embaixo e energia além.
Quem realmente sabe, quem poderia dizer de onde brotou, de onde
provém esta criação? Os deus são posteriores à sua criação, se ela foi feita ou
não o foi, ele que a observa do mais alto dos céus, ele realmente o sabe, ou
talvez nem ele o saiba.
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4 Concepções científicas.
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Como esse ponto teria dado origem ao atual universo? Para os cos-
mologistas, por algum motivo, esse “ovo cósmico” explodira em uma enorme
nuvem de poeira cósmica, que teria originado todo o universo. A expansão
universal hoje verificada pelos astrônomos ainda seria consequência dessa
explosão inicial, mais conhecida como big bang (grande explosão, em inglês),
que teria ocorrido há 15 ou 20 bilhões de anos. As teorias mais recentes di-
zem que a Via Láctea está se dirigindo para o centro do grupo local que se
desloca para o aglomerado de galáxias na constelação de Virgem. Todo esse
conjunto corre em direção ao chamado “Grande Atrator”, uma superconcen-
tração de galáxias além da região da constelação de Centauro.
No entanto, o big bang não é a única explicação para a origem do uni-
verso, é apenas a mais aceita no momento. Alguns astrônomos defendem a
ideia de um universo estacionário ou de criação contínua. Segundo essa te-
oria, o universo foi, é e será sempre o mesmo. Nunca teria havido a explosão
de um ovo cósmico, e o universo não se expandiria. Apenas se criariam novas
fontes de energia nos espaços deixados por essas galáxias e nelas outras galá-
xias surgiriam, mantendo-se ainda a mesma densidade média de matéria do
universo como um todo.
Já os defensores do universo oscilante acreditam que esse nosso uni-
verso tenha mesmo se formado a partir de um big bang ocorrido há 20 bi-
lhões de anos. Também acham que ele deverá se expandir, com as galáxias
se afastando uma das outras até que se tornará impossível detectá-las com
qualquer tipo de instrumento.
Quando ocorrer essa expansão máxima do universo, daqui a trilhões
de anos, a atração gravitacional superará a força do big bang e as galáxias
afastadas começarão de novo a aproximar-se, em velocidade crescente. Final-
mente, todas as galáxias se amassariam umas contras as outras, numa imensa
implosão denominada big crunch (grande amassamento). Depois, um novo
big bang originaria outro universo. E assim sucessivamente. Isso caracteriza-
ria um universo oscilante entre expansões e contrações sucessivas e infinitas.
Atualmente, estaríamos numa fase de expansão do universo, que teve início
com o big bang.
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Cosmoeducação
Capítulo 3
Cosmoeducação:
uma abordagem transdisciplinar
no ensino de astronomia
1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo1 apresentamos uma proposta transdisciplinar para o
ensino de astronomia que reúne práticas sistemáticas de observações do céu
e exercícios da psicologia transpessoal vivenciadas no contexto escolar com
professores do ensino fundamental.
O objetivo dessa proposta é que os educadores tenham experiências
que favoreçam o conhecimento sobre as dimensões do universo, sensibili-
zando-os para que ampliem sua visão de mundo e estimulando-os a discutir
e vivenciar com seus alunos conteúdos de astronomia. Esta proposta cosmo-
educativa é uma iniciativa de inspiração claramente transdisciplinar, uma vez
que transcende as fronteiras disciplinares em questão, visando o desenvol-
vimento integral do ser humano. É importante destacar que tal iniciativa é
pioneira ao propor a aplicação dessa conjunção teórico-vivencial de caráter
psicocognitivo no contexto educacional. Neste sentido ainda há muito a ser
desenvolvido e implementado nesta linha de trabalho.
Consideramos que grande parte da pertinência deste trabalho vem da
constatação de que há uma enorme carência em educação de iniciativas que
propiciem aos professores oportunidades de autoconhecimento e autotrans-
formação, que servirão de base para as mudanças a serem experimentadas em
sala de aula.
1 Este capítulo resume conteúdos, reflexões e práticas expostos anteriormente nos trabalhos de
Medeiros e Jafelice (2003; 2004a; 2004b) e Medeiros (2006) – este último também disponível
através do sítio: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras
Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”] –, aos quais remetemos os leitores interessados em
maiores detalhamentos.
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Cosmoeducação
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2 Esta discussão é feita, em maior profundidade, na subseção 2.3 (Antropologia; cronobiologia; cultura,
natureza, cultura) e no apêndice 2 (O céu na organização da vida humana ao longo da história da
humanidade) do capítulo 4 deste livro.
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Cosmoeducação
Nesse sentido, tal crise descrita por Capra (c1996) deriva da maneira
que vemos a nós mesmos e a realidade à nossa volta, a qual, consequentemen-
te, determina a maneira como agimos em relação a outros seres humanos, à
biosfera e ao universo. Segundo citação do livro Meio Ambiente e Saúde – Te-
mas Transversais, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do 1o e 2o
Ciclos do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 22, grifo nosso):
[...] a questão ambiental representa quase uma síntese dos impasses
que o atual modelo de civilização acarreta. Consideram que aquilo a
que se assiste, no final do século XX, não é só uma crise ambiental,
mas uma crise civilizatória. E que a superação dos problemas exigirá
mudanças profundas na concepção de mundo, de natureza, de poder,
de bem-estar, tendo por base novos valores individuais e sociais. Faz
parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o homem não
é o centro da natureza.
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3 Imagem tridimensional, também chamada de holograma, onde cada parte reflete o todo da figura.
Segundo Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 34), “o holograma é uma imagem física, concebida por
Gabor, que, diferentemente das imagens fotográficas e fílmicas comuns, é projetado ao espaço em três
dimensões, produzindo uma assombrosa sensação de relevo e cor. O objeto holografado encontra-
se restituído, em sua imagem, com uma fidelidade notável. [...] Como afirma Pinson, cada ponto
do objeto holografado é ‘memorizado’ por todo o holograma, e cada ponto do holograma contém a
presença do objeto em sua totalidade ou quase. Desse modo a ruptura da imagem holográfica não de-
termina imagens mutiladas, mas imagens completas, que se tornam cada vez menos precisas à medida
que se multiplicam. O holograma demonstra, portanto, a realidade física de um tipo assombroso de
organização, na qual o todo está na parte que está no todo, e na qual a parte poderia ser mais ou menos
apta a recriar o todo”.
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História / visão de
mundo Moderna Antimoderna Pós-moderna
educacional
Relação com a
comunidade e com Exploradora Tradicional Reflexiva / interativa
o mundo natural
Desenvolvimento
Visão do tempo Evolutiva Cíclica / estática
temporal
Essencialista
Visão do espaço Pluralista Orgânica / interativa
orgânica
Biocêntrica
Orgânica
(isto é, rede orgânica
Metáfora básica Mecanicista antropológica
da vida),
(corpo humano)
“o círculo da vida”
Superficial /
Visão do conflito Perversão / anarquia Criativa
amenizadora
Características
educacionais Progressista Tradicional Emergente
contemporâneas
* Fonte: O’Sullivan (2004, p. 86).
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3.3.1.1 Cosmoeducação
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4 Minicurso com carga horária de 6 horas, ministrado por professores do Instituto Nacional de Pesqui-
sas Espaciais (INPE), durante a 50ª Reunião Anual da SBPC, realizada em Natal (RN), de 12 a 17 de
julho de 1998, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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5 Vide também Jafelice (2002, 2004, 2008), onde essas discussões são mais aprofundadas.
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9 Vide, em particular, o quadro Reflexões adicionais: exemplos específicos para educação em astronomia e
ambiental, na subseção 3.4 (Educação convencional versus Educação antropológica) do capítulo 4 deste
livro, onde são comparadas a educação astronômica habitual e a antropológica em questão.
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4 A PROPOSTA NA PRÁTICA
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10 Os resultados das experiências com esse primeiro grupo foram muito gratificantes e esclarecedores.
Contudo, pela ênfase que optamos dar a este capítulo e espaço disponível, não vamos expor essas
experiências preliminares, que incluem, entre outras, a Expressão Corporal/Sonora do Eclipse Lunar
Interiorizado ou a interação entre Som e Respiração, por exemplo. Os interessados, porém, encontrarão
esses resultados e discussões associadas na seção 4.2 (Primeiras Experimentações) de Medeiros (2006,
p. 48-61).
11 Antigo 1º e 2º ciclos desse nível de ensino, os quais, por sua vez, abarcavam apenas os quatro primei-
ros anos da escolaridade básica formal, cuja classificação mais antiga ainda os denominavam 1ª a 4ª
séries.
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12 Vide no capítulo 1 deste livro relatos aprofundados de Maria Luciene de Souza Lima Freitas – pro-
fessora dessa escola, na época – sobre a referida iniciativa pedagógica que ela empreendeu com uma
turma de crianças de lá.
13 Na época do curso, a denominação oficial da faixa de escolaridade referida ainda era a de “ciclos”.
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Este exercício foi adotado no início do curso e teve como objetivo pro-
piciar ao participante um clima favorável à introspecção e ao contato com sua
motivação mais profunda para estar participando do curso. Estar consciente
da motivação mais profunda pode dar ao participante mais poder de ação na
direção do que ele necessita obter do curso e favorecer que ele tire o maior
proveito do mesmo. Esta prática, claro, pode e deve ser aplicada no dia a dia,
para nos dar mais consciência sobre o que nos move a tomar as atitudes que
tomamos, servindo, assim, como uma ferramenta para o autoconhecimento.
Inicialmente foi sugerido que os participantes buscassem um local na
sala e acomodassem seu corpo numa posição confortável (neste caso se aco-
modaram em carteiras dispostas na sala) e, de olhos fechados, concentrassem
a atenção no movimento fisiológico da respiração, a fim de “aterrissarem” no
momento presente. À medida que se concentram na respiração, esta tende a
se tornar mais longa, ou seja, desde o abdômen, e, portanto, tende a promover
um estado de relaxamento, facilitando o contato com o corpo. Em seguida
foi sugerido que cada um se perguntasse sobre “o que está me motivando a
participar deste curso” e ficasse atento às inúmeras respostas que pudessem
emergir à consciência, e, então, continuasse a ecoar esta pergunta no interior
de si mesmo, a fim de obter a resposta mais profunda, ou aquela que esta-
va mais latente. Ao identificarem a motivação mais profunda, pediu-se para
observarem se havia alguma associação desta com alguma parte do corpo.
Com isto, estava-se estimulando o conhecimento de si mesmo ao se integrar
mente e corpo, uma vez que o nosso pensamento emite uma “vibração” que
reverbera no corpo.
Segundo a filosofia do budismo tibetano: “O efeito de nossas ações
depende inteiramente da intenção ou motivação que está por trás delas, e não
da sua magnitude” (RINPOCHE, 1999, p. 130).
14 Está além do escopo deste capítulo analisar esses comentários. Isto é feito na seção 5.1 (Cosmologia
Prévia dos Sujeitos) de Medeiros (2006, p. 88-94), para onde remetemos os interessados em aprofun-
dar as discussões sobre esse tema em particular.
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4.1.4 Autobiografia
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15 Segundo Jafelice (2006b): “Isto reforça a hipótese de Jafelice (2004, p. 39), de que aspectos culturais
envolvendo um deus criador, responsável pelo início e evolução de tudo que existe, predispõem forte-
mente as pessoas dessas culturas, do ponto de vista psicológico, a identificarem a teoria cosmológica
da grande explosão como sendo a expressão da verdade ontológica sobre a cosmogênese, em vez de
aquela ser vista como é, isto é, apenas como uma teoria científica, resultado da construção humana de
um conhecimento limitado às informações a que se teve acesso até o momento e passíveis de serem
apreendidas e trabalhadas segundo a racionalidade científica atual e limitado às possibilidades cogni-
tivas humanas. Tal conhecimento não deve ser visto como sendo de caráter teleológico; ele não está,
necessariamente, se aproximando de A Verdade (se é que esta existe e é acessível e compreensível), e
é, pela própria forma de construção, transitório.”
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16 Agora, o correto seria “assim como os outros sete planetas”, pois, após meados de agosto de 2006, a
União Astronômica Internacional decidiu, em Assembleia, reclassificar Plutão para a recém-criada ca-
tegoria de planeta-anão. Porém, na época da referida prática, o sistema solar ainda tinha, oficialmente,
nove planetas.
17 Esse filme também é trabalhado desde uma perspectiva bastante semelhante à nossa, embora com
outra ênfase, por Gilvana Benevides Costa Fernandes, conforme ela expõe no capítulo 2 deste livro.
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Este filme, apesar de ser relativamente antigo18, ainda pode ser con-
siderado um pertinente recurso didático-pedagógico para ilustrar a comple-
xidade dos universos em que vivemos. Em particular no que concerne aos
constituintes físicos dos mesmos, bem como para ilustrar as relações entre o
micro e o macrocosmo tendo como referencial a escala humana, que, em nos-
so caso, serve de ponto de transição entre essas duas dimensões de grandeza.
Para efeitos didáticos, seguindo procedimento e orientações que Ja-
felice tem aplicado ao trabalhar com esse filme, é recomendado que este seja
visto pelo menos duas vezes. A primeira vez – sem nenhuma interferência,
nem comentário prévio, do professor –, deve permitir que os estudantes apre-
ciem e sintam sobre o que se trata o conteúdo do vídeo a partir de suas pró-
prias perspectivas, níveis de informação e concepções até aquele instante. Em
um segundo momento desta prática, abre-se a discussão, estimulando os par-
ticipantes a compartilharem o que sentiram e entenderam sobre o filme. No
terceiro momento, o filme é exibido novamente. Desta vez, o professor deve
fazer pausas em alguns pontos, para enfatizar as relações entre micro e macro-
cosmo, bem como prestar esclarecimentos sobre os elementos versados no
filme, seja de ordem cosmológica, fisiológica ou subatômica, e atualizar ou
complementar informações, que conhecimentos mais recentes aceitos exigi-
riam, corrigindo ou modificando o que está sendo mostrado no filme. No
quarto e último momento da prática, retoma-se a discussão sobre o que foi
sentido e entendido do filme, até que ponto ele interfere e transforma visões
de mundo que os participantes tinham antes dessa prática e como esse filme
poderia, eventualmente, ser aproveitado em sala de aula.
No caso desta nossa prática, o filme contribuiu para enriquecer e agre-
gar valores às experiências vivenciadas pelos participantes, especialmente nas
práticas que envolveram som, respiração e exercício de imaginação, cujo ob-
jetivo comum foi o de promover um paralelo entre o microcosmo pessoal, o
que está “dentro”, e o macrocosmo, todo o “resto”.
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19 É importante ressaltar que todos os cuidados em relação à observação do Sol foram muito enfatizados
junto aos alunos. Foi particularmente destacado o grande perigo que significa a observação direta do
Sol, seja a olho nu ou, pior ainda, através de qualquer instrumento óptico de aumento. Insistiu-se tam-
bém para que tais cuidados e recomendações fossem trabalhados com as crianças, alunos daqueles
nossos alunos, e com quaisquer pessoas com quem eles tivessem contato. Também se acentuou que
mesmo usando filtro de soldador adequado, não se deve olhar o Sol ininterruptamente por mais do
que uns cinco ou dez segundos, no máximo. Nestes casos, deve-se intercalar observação com descan-
so da vista (pelo menos o dobro do tempo daquela), em um total de até quatro a cinco olhadas. Estes
são cuidados com a saúde, que precisam ser devidamente abordados pelos professores.
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20 Esta prática está exposta e comentada em maiores detalhes no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras,
expressões culturais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro.
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tudo o que existe”, e escreve este texto entre aspas na lousa. Por se tratar de
uma prática inusitada, normalmente gera inquietação por parte da turma e,
eventualmente, surgem questionamentos sobre o que quer dizer esta ativi-
dade. Convém que, neste momento, o professor se abstenha das explicações
complementares e simplesmente repita o comando e a frase que escreveu no
quadro, estimulando o aluno a lidar com o inesperado e expressar aquilo que
lhe ocorrer em seu imaginário. É importante dispensar a identificação de au-
toria do desenho, a fim de deixar o autor mais livre para expressar-se, já que
este tema normalmente ativa regiões psíquicas ancestrais, desconhecidas do
próprio autor, podendo causar algum desconforto na exposição à crítica e
julgamento dos colegas mais racionais.
Após todos terem concluído esta parte da atividade, os desenhos
sobre o início de tudo que existe são recolhidos e se distribui uma segun-
da folha para cada um, e pede-se que desenhem “o céu”. Utiliza-se o mesmo
procedimento anterior, de escrevermos este tema na lousa e de nos abster-
mos de maiores comentários (por exemplo, se é para desenhar céu diurno
ou noturno, visto desde onde, céu religioso, astronômico ou meteorológico
etc.). Enquanto os participantes executam este último desenho, os desenhos
anteriores são dispostos sobre uma mesa grande (ou, na ausência de tal mesa,
eles podem ser dispostos no chão mesmo). Após concluírem o desenho sobre
o céu, eles devem entregá-lo e se dirigirem ao local de exposição, para obser-
varem as diversas representações do início de tudo o que existe. Ao redor dos
desenhos, cada participante está livre para se expressar; por exemplo, se sentir
vontade de compartilhar com o grupo o que inspirou o seu desenho, ele tem
algum tempo para fazê-lo.
Observamos que os participantes demonstraram maior familiarida-
de – e declarada facilidade bem maior em realizar seus desenhos – com o
tema do céu do que com o das origens. (Isto tem sido o usual de ocorrer nesta
prática, independentemente do público envolvido.)
A partir das representações pictóricas deste grupo, identificamos
alguns padrões que se repetiram e que foram agrupados nas categorias21 de-
21 É válido ressaltar que as categorias mencionadas foram criadas, originalmente, a partir de centenas
de exemplos oriundos das aplicações dessa prática que o Prof. Luiz Carlos Jafelice fez, com os mais
diversos grupos, durante muitos anos. Nesse nosso grupo, em particular, temos uma representativida-
de relativamente pequena daquelas categorias, devido às peculiaridades inerentes a ele. Dentro deste
contexto, então, as ilustrações que mostramos aqui foram as que melhor se aproximaram das referidas
categorias.
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22 Esta prática também está exposta e comentada em maiores detalhes no apêndice 5 (Origens: imagens,
palavras, expressões culturais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro.
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23 Tal atividade está exposta em detalhe no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus,
sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.
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termos que o historiador das religiões Mircea Eliade nos ensina sobre a rela-
ção ancestral que vem sendo tecida e enriquecida entre esse astro e nós, dos
pontos de vista simbólico e psicológico. No texto didático “A Lua e a Mística
Lunar” ( JAFELICE 2001b, a partir de excertos de Tratado de História das
Religiões, de Mircea Eliade, São Paulo: Martins Fontes, 1993), essa questão é
evidenciada na seguinte citação:
O homem reconheceu-se na “vida” da Lua, não somente porque
sua própria vida tinha um fim, como a de todos os organismos, mas
sobretudo porque ela tornava válida, graças à “lua nova”, a sua sede
de regeneração, as suas esperanças de renascimento (ELIADE, 1993
apud JAFELICE, 2001b, p. 2).
24 Também para esta tarefa vide maiores comentários no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo
lunar, Vênus, sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.
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A lua minguante não é boa para o nascimento das aves e animais, pois
não há força; a lua crescente é a lua do nascimento, é muito boa; a lua
nova e a cheia é lua de muita força.
25 Para uma exposição sobre essa prática, vide o apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa) do capítulo 4
deste livro, e para uma aplicação da mesma com crianças do 1º ao 5º ano (nível fundamental), vide o
capítulo 1 deste livro, em particular as seções e subseções 1.1, 1.2, 2.1.2, 3.1, 4.1.1 e 5 do mesmo.
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26 Embora tal deslocamento seja notável em único intervalo de tempo entre o nascer e o respectivo
ocaso da Lua, para quem já está mais acostumado a acompanhar esse astro e refinou seu poder de
observação.
27 Como salienta Jafelice (2006b): “O Rio Grande do Norte, em particular Natal, onde o curso acon-
teceu, tem latitudes em torno de 5º Sul. Isto significa que os alunos desse curso vivem em locais
relativamente próximos à linha do equador. Por isto, a inclinação da haste do guarda-chuva é quase
horizontal (ou seja, seria horizontal se estivéssemos em um local exatamente sobre a linha do equa-
dor). Portanto, a inclinação da haste do guarda-chuva aberto (sempre com aquela orientada na dire-
ção Sul-Norte e com o cabo do guarda-chuva no sentido Norte e a ponta do guarda-chuva apontando
para o pólo celeste Sul) precisa ser devidamente levada em conta e adaptada a cada latitude onde esta
prática for realizada. Isto deve ser feito porque tal haste deverá sempre ter uma direção paralela ao
eixo de rotação da Terra, uma vez que a ‘abóbada’ representada pela tela do guarda-chuva simulará
o movimento aparente que observamos no céu diariamente, o qual é conseqüência do movimento
real da Terra em torno de si mesma. Por isto é fundamental garantir, o melhor possível, o paralelismo
entre a haste daquele e o eixo desta, pois é a Terra girando de Oeste para Leste (movimento este que
não sentimos, não percebemos, diretamente) que nos dará a impressão de a abóbada celeste girar de
Leste para Oeste (e, portanto, do ‘giro’ dos astros que ‘estão incrustados’ naquela abóbada, ‘nascendo’
no lado Leste e ‘se pondo’ no lado Oeste).”
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28 Além disto, claro, é preciso que as condições meteorológicas contribuam. Este fator está fora de nosso
controle organizacional. Mesmo assim, porém, podem-se minimizar as condições desfavoráveis. Para
tal, é preciso conhecer o calendário anual de chuvas da região onde a aula de campo se dará e escolher
datas mais convenientes, planejando aulas de campo em épocas sem chuvas, nem céu nublado. Con-
vém, ainda neste sentido, marcarem-se aulas envolvendo pelo menos duas noites de observação, para
se aumentar a chance de se ter pelo menos uma noite com céu propício para as finalidades pretendi-
das. Outros cuidados, relacionados à fase da Lua, são comentados no texto.
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tados pela imagem daquele céu isento da poluição luminosa, tão comum nos
centros urbanos. Outro ponto comum entre os professores foi o estado de
paz que descreviam ao compartilhar a experiência de desfrutar aquele céu.
Mais uma vez me ocorreu na lembrança de um trecho de Bachelard (2001,
p. 184):
O céu estrelado é o mais lento dos móbeis naturais. Na ordem da len-
tidão, é o primeiro móbil. Essa lentidão confere um caráter suave e
tranqüilo. É o objeto de uma adesão inconsciente que pode dar uma
impressão singular, uma impressão de leveza aérea total.
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Figura 9 – Observação do céu com telescópio em Santana do Matos/RN (Foto: Fátima Lopes)
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Por fim, pedimos para que a pessoa entre em contato com a experiên-
cia mais importante vivenciada por ela durante este período e reviva essa ex-
periência. Ao abrir os olhos e retornar ao estado de vigília física, lhe serão da-
das algumas questões para serem respondidas em seguida, tais como: “Qual a
experiência mais importante que você vivenciou durante este período? Que
implicações práticas isto teve na sua vida em geral (por exemplo, na interação
com familiares) e, em especial, na sua atuação em sala de aula com os alunos?
Dê exemplos reais.” Estas questões foram respondidas por escrito e, depois,
compartilhadas com o grande grupo.
As autoavaliações gerais e particulares, e as discussões desencadeadas
nessa etapa final, encerraram formalmente o curso.
5 RESULTADOS E CONCLUSÃO
Notamos que a atitude de observar as coisas do céu praticada pelos
professores ao longo do curso foi uma constante dentre os relatos dos mes-
mos. Consideramos o desenvolvimento deste hábito de extrema importân-
cia para esta proposta cosmoeducativa, uma vez que o primeiro passo para
reintegrarmos algo em nossas vidas é perceber a sua existência. Assim, o fato
de esses professores terem citado a inclusão da prática de observação do céu
como mudança efetiva em suas vidas é interpretado por nós como condição
inicial do processo de reintegração cósmica.
Portanto, de acordo com as autoavaliações dos professores participan-
tes, ficou evidente a ocorrência de mudanças conceituais e existenciais em
relação à visão de mundo anterior ao curso.
Quando questionados sobre os elementos, conteúdos e/ou práticas
que facilitaram tal mudança, a origem do universo foi citada em vários relatos
como tendo sido um tema gerador de reflexões e questionamentos, enquan-
to outros mencionaram os exercícios propostos pela psicologia transpessoal,
conforme exemplificados nos relatos abaixo:
As práticas da psicologia transpessoal, que me possibilitaram ver
o quanto precisamos fazer com que nossos alunos agucem as suas
percepções através dos sentidos.
A origem do universo.
As observações e reflexões sobre como tudo começou.
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29 Este, em particular, é um dos motivos pelo qual o Prof. Luiz Carlos Jafelice inicia e desenvolve sua
intervenção na disciplina de astronomia, para o Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, atra-
vés de atividades de (re)estabelecimento do contato dos alunos com as coisas do céu que permitam
“dar tempo ao tempo, pois este é um elemento constituinte primordial dessa área do conhecimento”
( Jafelice 2006b; vide discussões e aprofundamentos dessa estratégia pedagógica em Jafelice 2002,
2004, 2005a, 2006a e, em parte, também no apêndice 1 do capítulo 4 deste livro).
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ções com outras disciplinas, com o meio ambiente, com outras culturas, entre
outras inter-relações que estimulam o pensamento crítico dos professores e
que, portanto, demandam mais tempo. Sendo assim, para um trabalho futuro
em formação de professores com o presente enfoque cosmoeducativo, preci-
saremos ampliar a carga horária, a fim de propiciar um maior espaço-tempo
de aprendizagem.
Por fim, quanto à experiência mais significativa vivenciada durante o
curso, foi unânime aquela associada às práticas de observação do céu, sejam
da Lua, do Sol ou de constelações. Isso demonstra o quanto redescobrir o
céu diurno e noturno é importante para ampliar a noção de meio ambiente
e promover potenciais mudanças na visão de mundo. Seguem abaixo relatos
dos alunos sobre a experiência mais importante vivenciada durante o período
desse curso, conforme escritos por eles próprios na última aula do mesmo:
A experiência mais importante para mim foi a observação da lua.
Essa vivência foi algo novo para mim. Depois disso passei a levar as
crianças para observar a mudança da fase da lua.
A experiência mais marcante entre muitas que tivemos e vivencia-
mos neste curso foi a observação do sol naquela aula anterior a esta,
pois foi maravilhoso vê-lo. Após este dia comentei com meus alu-
nos do 1° ciclo (2ª fase) sobre a beleza do sol, afinal, já havíamos
trabalhado sobre a sua formação e importância dele para todos os
seres vivos. Como Ana Lígia e Pedro Ivan (meus alunos) também
tinham visto o sol através do vidro de soldador chamei-os para dar
relatos sobre aquele espetáculo, porém como desde o início quando
começamos o trabalho de observar sombras através da medição de
um pau, adverti-os para que não olhassem diretamente para ele,
pois assim como Galileu morreu cego de tanto observar as manchas
do sol eles poderiam ter problemas de visão caso tentassem fazê-lo.
A experiência mais importante que vivenciei foi as observações fei-
tas com a lua. Com ela tirei dúvidas e compreendi que: a lua cami-
nha, transforma-se, ilumina, orienta e modifica alguns momentos
da vida dos seres que habitam o universo.
Na vivência foi possível descobrir a importância de observarmos o
céu e as coisas que fazem parte deste universo, com mais satisfação
e aprendizagem.
Em geral, as observações vieram lembrar que é importante passar-
mos a valorizar o universo e passar também esses momentos de des-
cobertas para meus familiares e alunos.
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30 Insistimos que trabalhar os temas astronômicos segundo uma abordagem desse teor é essencial
para que o mencionado potencial transformador dos mesmos e das atividades associadas possam
se realizar em cada um dos envolvidos. Aqueles temas costumam exercer fascínio nas pessoas
independentemente de qualquer outra estratégia. Mas eles costumam também ser abordados desde
uma perspectiva que visa basicamente causar maravilhamento, sem preocupação nem estratégias
adequadas para que ocorra integração dos mesmos no indivíduo, do ponto de vista psicológico, nem
ampliação da visão de mundo, em termos perceptivos e culturais. Às vezes aqueles temas são tratados
de maneira até apelativa, abusando-se das belas imagens associadas à astronomia – conforme, por
exemplo, críticas feitas em Jafelice (2002; 2004) enfatizam (cf. capítulo 4 deste livro). Assim, não são
os “temas astronômicos” por si mesmos, pela atração que exercem, que causam o tipo de mudança de
concepção que consideramos importante promover. A forma com que são abordados e trabalhados é
que pode fazer a diferença.
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REFERÊNCIAS
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Apêndice A
Aula 01
Redação
Tema: “O que significa o universo para mim”.
(Note: não é uma pergunta; é uma afirmação).
Questionário:
Instrução: o questionário deve ser passado na forma de ditado, uma questão
por vez. Ou anotar a questão na lousa e após todos responderem passar para
a seguinte.
1) O que significa o céu para você?
2) Como você se sente quando olha para o céu?
3) O que lhe chama mais atenção no céu?
4) Com que frequência você costuma olhar para o céu?
5) Quais as relações que você percebe entre o céu e a terra?
6) Quais as relações que você percebe entre tudo o que existe no
cosmo?
7) Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê e/ou
como?
8) Qual o lugar ou o papel do ser humano no universo?
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Anexo A
31 Esse foi o tempo em que quase se completou uma lunação, isto é, foi o tempo entre o dia em que os
alunos começaram a acompanhar a Lua no céu sistematicamente e o momento da discussão na data
mais próxima a se completar uma lunação. [Lunação é período que a Lua leva para repetir consecu-
tivamente uma dada fase – isto é, do primeiro dia em que ela se apresenta como lua cheia (ou nova,
crescente, minguante) até o último dia antes de ela se apresentar de novo como lua cheia (ou, respec-
tivamente, nova, crescente, minguante), intervalo de tempo esse que é de, aproximadamente, 29,5
dias.] Como as discussões eram feitas nos dias de aula e, no nosso caso, os encontros eram semanais,
tivemos cerca de 28 dias para coletar e trabalhar os relatos aqui reproduzidos.
32 A título de esclarecimento, o referido texto e as informações contidas no mesmo foram atualizados
pelo Prof. Jafelice em 2006. Contudo, o texto a partir do qual compusemos este anexo foi aquele de
Jafelice (2003b).
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2. No decorrer dos dias ela começa a nascer mais tarde; ou seja, sua
posição no céu muda, para um dado horário, de um dia para o outro,
e notamos que ela se desloca de oeste para leste com o passar dos
dias;
33 Aqui ele está ligeiramente modificado em relação à versão entregue no curso. Isto ocorreu, porém,
apenas para corrigir alguns erros de digitação e estender as explanações, visando deixar o texto ainda
mais claro e didático.
209
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros
é preciso ter claro que tal movimento real, apesar de menos acentua-
do, está acontecendo, praticamente no seu ritmo próprio inalterado,
o tempo todo, ininterruptamente;
7. A Lua muda de posição numa única noite; isso diz respeito à “in-
clinação” de suas “pontinhas” iluminadas ou das suas manchas. En-
quanto ela percorre o céu, do nascente para o poente, a posição re-
lativa entre suas partes iluminada e escura muda, uma começa “em
cima” da outra e termina “embaixo”;
10. O desenho que vemos na Lua muda ao longo de uma mesma noite,
devido à parte iluminada que muda de inclinação. Porém, as man-
chas da Lua continuam as mesmas de dia para dia; isto é, a face da
Lua que está voltada para nós, na Terra, é sempre a mesma; isto é,
muda a fração dessa face que podemos enxergar, porque parte dessa
face não fica iluminada, mas conforme a Lua vai ficando cheia, dá
para ver todas as manchas dessa face da Lua, e são sempre as mesmas
o mês todo;
11. A forma dela está decrescendo de cima para baixo. Em que fase ela
está quando isso acontece? Enquanto você ainda não está habitua-
do aos ciclos lunares, só dá para saber a fase quando você a observa
pelo menos dois dias consecutivos, ou próximos um do outro; aí é
possível comparar as partes iluminadas dos dois dias e concluir se tal
210
Cosmoeducação
13. A Lua aparece, e bastante, durante o dia (isto é, aparece durante mui-
tos dias e grande parte do dia claro ao longo de um mês, apesar de ser
considerada o astro da noite ou a rainha da noite);
14. Ela não aparece no céu pelo menos uns três dias por mês; isto ocorre
porque ela fica muito próxima do Sol no céu (isto é, ela parece estar
perto deste astro, embora, objetiva ou fisicamente falando ela está
muito distante dele) e o brilho do Sol ofusca nossa visão da Lua;
16. A Lua tem infinitas faces, embora tenha sido definida pelos gregos a
existência de quatro fases – com um esperado intento, é de se supor,
de melhor organizar as referidas mudanças de sua aparência no tem-
po; contudo, é só observá-la todos dias para se descobrir que ela está
mudando a todo o momento!
211
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros
212
Abordagem Antropológica
Capítulo 4
Abordagem Antropológica:
educação ambiental e astronômica desde
uma perspectiva intercultural
1 BREVE HISTÓRICO
213
Luiz Carlos Jafelice
1 Logo mais – ainda em 2010, espero –, a grande maioria desses trabalhos estará disponível no sítio da
internet http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural, associado a palavras-chaves como: educação inter-
cultural, astronomia cultural, educação ambiental cultural, abordagem antropológica, etnoastrono-
mia, abordagem humanística em educação e na formação de professores, conhecimentos tradicionais,
vivências em educação ambiental e astronômica etc.
214
Abordagem Antropológica
2 Grande parte do conteúdo deste capítulo foi extraída, adaptada ou ampliada de notas de aula – que
fui redigindo a partir de 1994 e, em 1997, concentrei na apostila Notas de Astronomia para professores
de pré-escola ao 2o. Grau – e, em maior medida, dos textos que elaborei: a) para a disciplina Astrono-
mia, do Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, de 2001 a 2006; b) para o Curso de Ensino
Médio, Modalidade Normal, para Educadores de Áreas de Reforma Agrária do Estado do Rio Grande do
Norte, em novembro de 2005; e c) para o Curso de Capacitação Cultura, Meio Ambiente e Astronomia:
conhecimentos tradicionais e etnoastronomia para professores dos níveis fundamental e médio, ministrado
em Carnaúba dos Dantas (RN), entre 2007 e 2008. Este último curso fez parte de um projeto sobre
etnoastronomia e conhecimentos tradicionais que coordenei junto ao CNPq (maiores detalhes em
JAFELICE, 2010a e 2010b).
215
Luiz Carlos Jafelice
3 Apesar de saber que esses dois termos – transdisciplinar e holístico – têm diferenças conceituais in-
trínsecas. Contudo, da forma como os concebo, eles são mais passíveis de serem irmanados – ou
encaminhados, na prática pedagógica, de modo sinérgico – do que se atropelarem mutuamente. A
possibilidade de assemelhar esses dois significados sem prejuízo algum – conceitual, operacional ou
outro – deverá ficar clara ao longo deste capítulo.
216
Abordagem Antropológica
4 Este enfoque nada tem a ver com uma proposta que já esteve bastante em voga no ensino de ciên-
cias, que consiste em supostamente levar os alunos a redescobrir “leis” ou proposições científicas
obtidas historicamente nas áreas de física, química, biologia etc. Essa vertente, além de ter limitações
de concepção sobre o processo de aprendizagem, acata o realismo, o universalismo e a presumida
superioridade epistemológica da ciência e pressupõe determinismo na construção de significados,
que claramente não corresponde ao que se observa quando seres humanos de distintas culturas – e
às vezes de uma mesma cultura – estão engajados em vivências e naquela construção. Aqui, a ênfase é
nas múltiplas componentes subjetivas associadas ao processo vivencial que pode levar aos descobri-
mentos que nos são significativos desde a perspectiva e o espírito desta abordagem.
5 Seguindo, mais ou menos, a seguinte linha de raciocínio: qualquer prática que ousar se antecipar a
uma fundamentação teórica que a justifique e ampare é inconsequente e irresponsável e dela não
poderá sair coisa boa ou, se sair, será acidental e não servirá para subsidiar nada de mais valioso na
produção do conhecimento. Na minha visão, essa linha reflete limitações e vícios do pensamento
acadêmico contemporâneo que precisam ser superados. Conforme explicado na Apresentação, este
livro espera contribuir também nesta direção, ao propor uma estrutura que subverte a ordem estabe-
lecida. Com efeito, embora seja evidente que há algo na presente proposta que possa ser caracterizado
como pressuposto ou suporte teórico, optei por apresentar antes as práticas e resultados e ao final
alguns pensamentos reflexivos fundamentadores daquelas, em princípio. Em parte eles o são. Mas, as
próprias práticas criadas, no fundo, são conformadoras de aspectos teóricos inéditos, que nortearão
outras intervenções inovadoras que, por sua vez, reformularão a teoria, o pensamento e a ação, e assim
por diante. E não é verdade que sempre – nem nas práticas mais bem-sucedidas – tenha sido um bem
alicerçado fundamento teórico que as inspirou. No presente caso, a teoria maior – se é que existe tal
pretensiosa entidade cognitiva – a explicar ou justificar os êxitos nos níveis pedagógico e humano que
temos alcançado ao concretizar esta proposta pode ser outra, eventualmente bem distinta daquela
que, em um misto de organização intelectual a posteriori, ingenuidade e esperança de serventia, com-
ponho e discorro neste capítulo. Ou seja, as práticas aqui sugeridas são mais duradouras e confiáveis;
as teorizações oferecidas são mais relativas e transitórias.
217
Luiz Carlos Jafelice
6 Notem que aqueles desenhos e explicações das fases da Lua costumam ser incompreensíveis para os
próprios professores. Por isto, eles se sentem muito inseguros para ensinar aquele conteúdo, apesar de
serem obrigados a fazê-lo.
7 Pelo menos em um primeiro momento e inclusive para aspectos conceituais importantes. Nossa prá-
tica mostra que não apenas elementos do fenômeno das fases lunares veem à tona com a observação
direta. Também conteúdos mais sofisticados, como, por exemplo, a observação do movimento real
da Lua no céu (de oeste para leste), entre outros, podem ser vivenciados e trabalhados logo após
alguns dias de acompanhamento sistemático daquele astro. Maiores comentários e esclarecimentos
sobre estes pontos constam do apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus, sentimentos
e conhecimentos populares) deste capítulo e do anexo A (Descobertas sobre a Lua) do capítulo 3 deste
livro e referência lá citada.
8 A prática demonstra que as dificuldades cognitivas relativas à espacialidade não são superadas mesmo
recorrendo-se a tecnologias da informação e comunicação – como, por exemplo, uso de internet,
visualizações em 3D, animações etc. Pode-se – e deve-se – usar também tais recursos, é claro. O que
chamo a atenção, aqui, no que concerne aos conceitos associados ao presente exemplo, é que esses
recursos não resolvem nem contornam o problema central de aprendizagem associado àquelas difi-
culdades e a tais conceitos.
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Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
9 Esse parágrafo e os quatro seguintes provêm de condensação e adaptação de Jafelice (2008a, p. 288-
289).
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Abordagem Antropológica
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Abordagem Antropológica
10 Um efeito muito positivo do projeto do CNPq antes citado foi a criação da Associação de Educação
e Cultura Carnaubense (EDUCAR), aos 25 de agosto de 2007. Os sócios honorários fundadores fo-
ram 8 dos conhecedores tradicionais envolvidos no projeto até então. No início do mesmo, propus
a criação de uma associação que abraçasse o objetivo integrador daquele, mas não sabíamos se ela se
concretizaria. Uma associação desse teor é ótima para esse tipo de iniciativa. Um projeto tem vigência
curta e muitas vezes, como no nosso caso, vem de fora; uma associação pode perdurar indefinidamen-
te e é comandada por quem vive no local – o que é essencial. [A EDUCAR tem sido presidida, desde
sua fundação até o momento (meados de junho de 2010), por Aldomário José da Silva.] Se isto puder
se realizar na comunidade onde vocês lecionam, será contribuição importante para amparar suas ini-
ciativas de incluir conhecedores e conhecimentos tradicionais na educação formal. (Vide JAFELICE,
2010a e b.)
11 O conteúdo desta subseção foi condensado e adaptado de Jafelice (2009a).
223
Luiz Carlos Jafelice
224
Abordagem Antropológica
12 Nesta subseção estão implícitos muitos pressupostos e informações. Eles fazem parte do caminho
pelo qual fui me aproximando e criando minha forma de abordar a astronomia desde uma perspectiva
cultural, holística e transdisciplinar. Para não sobrecarregar aqui com notas de rodapé decidi concentrá-
los no apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3). A escrita lá é mais
técnica. A rigor, esse apêndice não precisa ser lido para que se possa desfrutar e entender esta subse-
ção. Contudo, a leitura prévia do mesmo ajudaria a situar melhor as exposições aqui, assim como em
outros trechos deste capítulo.
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Luiz Carlos Jafelice
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Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
13 Essa teoria não tem interpretação tão uniforme entre biólogos quanto seu ensino e divulgação dão a
entender (LEITE, 2007; JABLONKA e LAMB, 2010). Embora ainda prevaleça fortemente na teoria
da seleção natural (atualmente conhecida como teoria neodarwinista) a concepção baseada no gene,
resultados das últimas décadas, de várias frentes de pesquisa, em particular em biologia molecular,
indicam que tal concepção é muito incompleta e inadequada. Os novos dados apontam “que todos os
organismos têm pelo menos dois sistemas de hereditariedade [genético e epigenético (i.e., células que
transmitem características às células-filhas de modo não relacionado ao DNA)]. Além disto, muitos
animais transmitem informações uns para os outros por meios comportamentais [...] [implicando
em um] terceiro sistema de hereditariedade. E nós, seres humanos, temos um quarto, porque uma
herança baseada em símbolos, a linguagem em particular, desempenha um papel importante na nossa
evolução. [...] Quando se levam em conta todos os quatro sistemas de herança e as interações en-
tre eles, surge uma visão muito diferente do darwinismo” ( JABLONKA e LAMB, 2010, p.14). Essa
interpretação mais recente e complexa daquela teoria é apresentada em detalhe, com iluminações
distintas que se somam, e.g., por Leite (2007) – segundo os olhares sociológico e filosófico – e por
Jablonka e Lamb (2010) – desde as perspectivas biológica e evolutiva. Conquanto para nossos fins
genéricos, nas referências que faço a mecanismos cronobiológicos, os princípios básicos daquela te-
oria (tradicionalmente de cunho genético, conforme resumido, e.g., por GOULD, 2001, p. 191-192)
são suficientes, essa nova interpretação deixa nossos argumentos ainda mais sugestivos e autoconsis-
tentes, em especial no que toca a contribuição da dimensão simbólico-cultural – em particular nas
ricas dinâmicas e urdiduras contextuais envolvendo inter-relações vida-ambiente-céu-terra-vida – no
processo seletivo que nos caracterizou enquanto espécie.
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Abordagem Antropológica
menor que a duração do dia [isto é, ao longo deste completam-se duas marés
altas e duas baixas; ou melhor: o intervalo de tempo entre duas marés altas
(ou baixas) consecutivas é (pouco) menor que 12 horas]. Os câmbios sazo-
nais (devido às estações do ano), por sua vez, de origem solar, impunham a
sobreposição de uma terceira (ou quarta, no caso dos organismos costeiros)
modulação rítmica ao desenvolvimento dos organismos. Esta última era uma
modulação de outro teor. Ela envolvia outras componentes e dinâmicas am-
bientais (como variação na duração do claro do dia em relação ao escuro e
variação da insolação, umidade do ar, temperatura, correntes marítimas e dos
ventos etc.) e era bem mais espaçada no tempo em comparação com as duas
(ou três) anteriores, também com consequências nas dinâmicas e ajustes eco-
lógicos dos novos cenários ambientais que começavam a se formar no planeta
e a se tornar mais complexos. Submetida a esses múltiplos ritmos ambientais
concorrentes (aos quais se conciliaram os respectivos ritmos biológicos) –
dos ciclos de dias-noites, marés, lunações e estações – a vida surge e se diver-
sifica no planeta.
O sucesso das espécies já existentes, em se manterem como tais, e o
das novas espécies, em se adaptarem a essa polirritmia de caráter celeste, mas
com evidentes e importantes implicações terrestres, foi decisivo nas explosões
de espécies e na proliferação da vida nas suas várias formas, ao longo dos bi-
lhões de anos em que esta existe na Terra. Isto se aplica desde as mais simples
formas de vida até as mais complexas e, em particular, a humana.
Sim, convém insistir que também a espécie humana nasce, enquanto
espécie, regida por essa orquestração polirrítmica de origem celeste. E nossa
espécie foi bem-sucedida – isto é, do ponto de vista da teoria da seleção na-
tural e até o momento, e não em um sentido absoluto, de superioridade, nem
de permanência garantida no planeta. Esse sucesso só se deu porque a espécie
humana conseguiu se adaptar também a esta exigência ambiental.
O que importa destacar aqui é que a referida “exigência ambiental”,
cujo caráter e atributos são celestes, vai desempenhar papel essencial no sur-
gimento e desenvolvimento das culturas humanas e da incrível diversidade e
riqueza destas ao longo da história da humanidade.
Com efeito, elementos constitutivos dos pensamentos simbólico, ana-
lógico e intuitivo humanos – essenciais para nosso sucesso como espécie –
são em grande parte estimulados e desenvolvidos através da relação com “as
coisas do céu”, como, por exemplo, concepções religiosas de toda ordem e de
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Luiz Carlos Jafelice
230
Abordagem Antropológica
14 Isto é, da fêmea daquela “nossa espécie”, supondo que esta também tivesse desembocado (através do
processo de seleção natural) na reprodução sexuada como a conhecemos.
15 Quer dizer, nessas reflexões conjecturais, nos referimos a dia, mês, ano [se ou quando houver sentido
definir de modo inequívoco esse(s) tipo(s) de regularidade rítmica], naquele outro planeta, onde “nós
tivéssemos” surgido – isto é, onde os seres daquela “espécie ‘assemelhada’ a ‘nós’” tivesse evolutiva-
mente surgido.
231
Luiz Carlos Jafelice
16 Há certas formas de vida para as quais as mudanças cíclicas que nos interessam são, em princípio, irre-
levantes, como, por exemplo, aquelas encontradas próximas a fossas oceânicas tectonicamente ativas,
onde a luz solar está ausente (e.g., MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 21). No presente texto, por
razões óbvias, estamos interessados em nos concentrar na linha ancestral do ser humano. Assim, na
discussão acima nos referimos aos nossos antepassados, isto é, aos seres pertencentes a espécies que,
em conexão seletiva ininterrupta (especiação) desde a primeira forma de vida no planeta, desembo-
caram na nossa espécie.
17 Insistimos: aqui não estamos discutindo tudo que possa definir as imposições ambientais. Nosso foco
está em chamar a atenção para algo essencial que, em geral, não é enfatizado como deveria: as causas
“externas” (ao planeta), pois estas são as determinantes, cronobiologicamente (i.e., “astronomicamen-
te”) falando.
232
Abordagem Antropológica
18 Nesses terrenos traiçoeiros por onde estamos vagueando, há risco enorme de se incorrer em visões
naturalistas ingênuas. O perigo de se naturalizar a existência e se acreditar que tudo – inclusive em
relação ao humano, em suas múltiplas manifestações e realizações – pode ser explicado pela estreita
perspectiva da abordagem convencional das ciências naturais é muito grande. Fazer isto é um erro
muito grave. Infelizmente, é muito comum em cientistas, tanto das ciências naturais como das hu-
manas. No apêndice 1 chamo a atenção para o grande cuidado que devemos ter com isso, ainda mais
porque nesta exposição estou misturando (dialética e criticamente, espero) contribuições de ambos
os grupos dessas ciências. Neste sentido, recomendo uma descrição concisa muito instrutiva que o
antropólogo Roberto DaMatta (1987) faz do “teatro da Origem do Homem”, conforme este costuma
ser montado pelo cientificismo, com as habituais interpretações “instrumentalistas ou utilitaristas”.
Ele mostra como esse tipo de mentalidade naturalizante opera. São cinco atos: do primeiro, que co-
meça com a consideração típica dessas construções: “A natureza hostil e ameaçadora reina absoluta
[...]”, ao quinto, que conclui com o desfecho igualmente típico: “Uma vez em sociedade [...] [o]s
eventos anormais, como a coincidência, a morte, o sonho e a desgraça, leva à religião” (DAMATTA,
1987, p. 41-42; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras). Essa descrição ajuda a cons-
cientização e desconstrução desse tipo de mentalidade e interpretação, tão comuns e enganosas.
233
Luiz Carlos Jafelice
metafórica que tomo, interpretamos aquilo dizendo que há uma relação “dia-
lética” entre cultura e natureza, ou cultura e ambiente19.
Criarmos cultura foi tão essencial para nossa espécie poder existir que
tal “subproduto” vingou. Nas competições ancestrais por nichos com outras
espécies homines, a incorporação criativa (que, no caso, significa adaptativa-
mente bem-sucedida) daquele atributo parece ter feito a diferença para nossa
espécie sobrepujar as demais, que, na época, lhes eram muito assemelhadas,
principalmente no que concerne a habilidades que garantissem a sobrevivên-
cia física e a continuidade procriadora.
Enfim, cultura é, inclusive, o diferencial que usamos para nos definir-
mos enquanto humanos. Porém, ela pode ser vista também como um “recur-
so interno” de adaptação, embora não diretamente relacionada a processos
metabólicos ou intracelulares, nem redutíveis a esses, apesar de depender
deles para poder existir, é claro, pois considera-se que só seres vivos podem
ter cultura.
Vemos, do exposto nesta subseção, que o mundo dos seres vivos, como
o conhecemos, chegou ao ajuste que observamos devido a uma relação tribu-
tária para com ritmos impostos por fenômenos celestes. Os diferentes horá-
rios em que flores de espécies distintas se adaptaram para abrir – para, assim,
garantirem sua respectiva polinização por insetos –, ou em que os organismos
dos animais estão mais funcionais – fazendo com que ajustem suas buscas por
alimentos em diferentes momentos (os diferentes insetos polinizadores, por
exemplo, em respectivos diferentes horários de “suas” flores, e assim por dian-
te), ao longo das 24 horas diárias, e, então, minimizem a “competição” entre
eles pelos recursos disponíveis e/ou otimizem relações simbiônticas diversas
–, ou ainda a adaptação de diferentes espécies de animais a distintas épocas
do ano como as mais convenientes para o respectivo cio e acasalamento, entre
inúmeros outros aspectos comportamentais, cuja causa, direta ou indireta, se
deve a comandos “externos”, isto é, no caso, celestes.
Da mesma forma, também na psicologia, culturas e sociedades huma-
nas há muito mais manifestações determinadas por ritmos celestes do que se
pensaria à primeira vista. Nossa espécie tem suas organizações psicológica –
19 Assim, “dialética”, quando referida àquele tipo de relação, é grafada entre aspas e deve ser entendida
apenas em um sentido de “interdependência dinâmica complexa”, sem conotações filosófico-históri-
cas; como quando aparece, por exemplo, no Quadro Interdependências, no apêndice 1, entre outros
lugares neste capítulo.
234
Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
detalhamento e aprofundamento bem maiores (p. 7-57). O trabalho Jafelice (2002) já está disponí-
vel para acesso via internet no endereço: http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/viii/PDFs/
CO19_1.pdf. Os trabalhos Jafelice (2004; 2005b) estarão disponíveis, em princípio em breve, na
página de um projeto sobre etnoastronomia e conhecimentos tradicionais que coordenei junto ao
CNPq: http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural (vide JAFELICE, 2010b).
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Abordagem Antropológica
22 Esta tarefa é apresentada em detalhe no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus,
sentimentos e conhecimentos populares) deste capítulo.
23 Embora etimologicamente, do grego, método significa caminho para se alcançar determinado fim,
não foi, em nada, devido a este conhecimento etimológico que cheguei à minha concepção de “me-
todologia” exposta nesta subseção, pois apenas bem posteriormente tive ciência do mesmo. Assim, é
mais verdadeiro eu manter a narrativa acima.
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Luiz Carlos Jafelice
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Abordagem Antropológica
pela academia. Claramente não concordo com esta visão, amparado não só na
minha prática, como na de muitos outros que pensam e agem como eu, tanto
nas intervenções como nas pesquisas em educação – e nunca, nestes casos, o
cuidado e a responsabilidade estiveram ausentes, nem os resultados ficaram
empobrecidos, pelo contrário. Enfim, é a diversidade humana. As sugestões
deste livro convidam os leitores a experimentar e, muito importante, a des-
frutar esta abordagem.
Ainda segundo uma vertente que muitos poderiam considerar incabí-
vel em educação, ou no mínimo heterodoxa, convém explicitar outra postura
“metodológica” que imputo como muito importante de se cultivar e desen-
volver. Trata-se do improvisar, coerente, no fundo, com o lúdico, a irreverên-
cia e a humildade orientando o fazer pedagógico aqui defendido. Uma mistu-
ra responsável, mas com leveza e desembaraço, do exercício da intuição com
o da criatividade em educação, leva à improvisação – como na dança ou na
música ou na vida –, muitas vezes necessária a uma prática pedagógica bem
sucedida. Improvisação, nesta interpretação, que nada tem a ver com inventar
na hora alguma emenda ou tapa-buraco por falta de planejamento e/ou em-
basamento. Aqui, o improvisar é valorizado enquanto ágil experimentação
competente de variações cabíveis para o contexto e meta em questão, feita
por quem tem domínio das teorias e técnicas envolvidas, para otimizar o al-
cance dos prazeres e outros objetivos almejados. Improviso este, então, com
a nobreza, pertinência e necessidade, assim como a ludicidade, irreverência
e pureza, do brincar, como aquele inerente, por exemplo, ao jazz ou à arte do
movimento24, ao chorinho ou à capoeira. Estas formas todas de expressão artís-
tica, aliás, também somam inspirações – de forma e de conduta – para minhas
incursões “metodológicas” nesta abordagem.
Por fim, é pertinente destacar dois olhares de artistas sobre o assunto.
Antonio Machado, poeta espanhol (1875-1939), muito conhecido,
nos elucida nesta estrofe de Provérbios e Cantares, famoso poema seu (MA-
CHADO, 1917; tradução minha):
241
Luiz Carlos Jafelice
Minha posição está muito bem resumida por estes versos. A asserção
dessa estrofe não é passível de ser encaixotada dentro da rubrica “metodo-
logia”. Contudo, é a que melhor traduz minha própria visão e postura nos
percursos, tentativas e propostas que vou, intuitivamente, arriscando, expe-
rimentando, sentindo, revendo, modificando e assim por diante; que vou vi-
vendo, enfim. Minha proposta diz respeito a um processo, a uma construção
dialética, dialogada e inacabada, mas, insisto, sempre feita com responsabili-
dade e cuidado para com o outro.
Antunes Filho é um diretor brasileiro de teatro, com destaque nacio-
nal e internacional, autor de montagens originalíssimas e surpreendentes25.
Ele desenvolveu toda uma técnica, inédita e bastante rica e complexa, para
a formação de atores, a qual ele exercita e implementa há muitos anos junto
ao Serviço Social do Comércio (SESC), em São Paulo (SP). Ele já formou
muitos atores, vários deles conhecidos do grande público, por terem atuado
em filmes e novelas televisivas.
No documentário “O teatro segundo Antunes Filho” (do SESC-SP), a
pergunta usual lhe é feita: “qual é sua metodologia?”. Ele, após uma busca por
palavras e certa hesitação, responde algo mais ou menos na linha: “Metodolo-
gia? É difícil falar de metodologia. É difícil colocar em poucas palavras a me-
todologia que fui criando. Não criei um método pelo método.” E prossegue,
com ênfase: “Eu precisava de atores. Portanto, como os que existem estão
viciados profissionalmente em vários aspectos, eu precisava descondicioná-
los e deixá-los prontos para uma reestruturação na qual eles seriam os condu-
tores da própria estruturação, decidiriam o que queriam para si”.
25 Ao ver sua obra Nelson Rodrigues o eterno retorno, no Teatro São Pedro, em São Paulo, em 1981, fi-
nalmente comecei a entender de fato o olhar e a verve de Nelson Rodrigues, um dos maiores dra-
maturgos brasileiros de todos os tempos. A obra enfeixava quatro peças deste autor: Toda nudez será
castigada; Os sete gatinhos; Beijo no asfalto; e Álbum de família. Antunes – e o despojamento de “suas
cadeiras” – mostra um Nelson vivo e fundo. (Para maiores informações sobre parte do trabalho do
diretor, vide, e.g., GUIMARÃES, 1998.)
242
Abordagem Antropológica
Esta fala também resume muito bem aquilo que podemos entender
por “metodologia” na presente abordagem: o anseio de criar estratégias des-
construtivas, de descondicionamentos, e propiciar sugestões e suportes –
abundantes e coerentes com os objetivos pretendidos – para reestruturações
subsequentes, naturalmente efêmeras, feitas pelos próprios envolvidos em
uma dada intervenção. Esta, alumiada pelo espírito do caminhante, é, essen-
cialmente, minha proposta “metodológica”.
Sobre como tentar concretizá-la, é o que está exposto, em parte, nesta
subseção e, no geral, está espalhado ao longo de todo este capítulo. Os inte-
ressados, após leitura atenciosa, terão como extrair destas narrativas – isto
é, das orientações, fontes de inspiração, informações, breves e esporádicos
relatos autobiográficos, sugestões, fartos exemplos de atividades, cuidados e
procedimentos aqui oferecidos –, assim como de outras informações e práti-
cas exemplificadas nos capítulos precedentes, fundamentações e inspirações
sobre como criar aquelas estratégias visando aquelas reestruturações; enfim,
poderão aplicar e/ou criar em cima desta proposta sem se afastarem de seu
espírito inclusivo, transdisciplinar e integrador.
Em suma, em minha avaliação, também precisamos de atores – sociais,
políticos, educacionais, culturais, éticos etc. – que decididamente não estão
sendo formados pela universidade contemporânea. Para formá-los com as
aptidões necessárias – as quais procedem principalmente das esferas da espi-
ritualidade, solidariedade, do acolhimento das diversidades, a partir das epis-
temológicas, da corporalidade, do emocional, sentimental, afetivo, intuitivo,
simbólico, analógico – é preciso descondicioná-los e oferecer subsídios para
que eles sejam protagonistas nas reconstruções das próprias visões de mun-
do, e protagonistas preparados, inclusive, para lidarem assertivamente com o
caráter não finalista dessas reconstruções e com o aumento da responsabili-
dade social ao empreenderem-nas em si mesmos.
Há muitas formas válidas de se tentar alcançar esses objetivos. Envere-
dei por um caminho que se me “surgiu” devido à minha forma de ser e histó-
ria de vida. A leitora ou o leitor saberão escolher seus caminhos pessoais, que
podem incluir algumas das sugestões deste livro – após adaptarem-nas às suas
realidades e adequarem-nas às suas idiossincrasias – ou não. O importante, a
meu ver, é a construção e a realização de um objetivo coletivo maior, autenti-
camente includente e solidário.
243
Luiz Carlos Jafelice
26 Nesta abordagem, entende-se intercultural na acepção resumida, por exemplo, em Espina Barrio
(2005, p. 15, tradução minha): “Falamos de interculturalidade, não de globalização, nem de mul-
ticulturalidade, para deixar claro que propugnamos um espaço compartilhado de diálogo e de co-
municação que não entranhe a supremacia de umas culturas sobre outras ou uma concorrência de
muitas culturas vivendo próximas, porém isoladas em espécies de guetos subculturais”. Desde outro
enfoque, García Canclini (2005) explicita uma distinção semelhante entre interculturalidade e mul-
ticulturalidade, ao especificar que “[a]mbos os termos implicam dois modos de produção do social:
multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o
que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos” (op. cit., p. 17; grifos do au-
tor) e que a maioria da literatura sobre o assunto pensa “nos formatos de multiculturalidade existentes
nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou suas ex-colônias” (idem, p. 18). Ou seja, um entendimento do
multicultural diverso, em muitos pontos básicos, daquele que a convivência interétnica do tipo exis-
tente na América Latina e, em particular, no Brasil pede. Assim, conquanto nosso país, por exemplo,
seja multicultural em sua constituição étnica, considero que o enfoque intercultural é o pertinente e
relevante a se adotar na interpretação do social e na criação de uma educação transformadora. Além
disto, “aceitação do heterogêneo”, como García Canclini caracteriza a multiculturalidade, ainda mais
nos formatos existentes nos países citados, significa, no geral, tolerância. Quando lembramos, com
Maturana (2001, p. 38; grifo do autor), que “a palavra tolerar faz referência à negação do oculto, adia-
da por um instante” e que “[q]uando alguém diz ‘eu sou tolerante’, está dizendo na verdade: ‘Quero
lhe cortar a cabeça. Mas vou esperar.’”, fica mais nítido que simplesmente “aceitar o heterogêneo, o
diferente, o outro” – apesar de ser atitude que pode, em alguns casos, significar um relativo avanço de
postura – ainda é bastante insuficiente para dar conta das necessidades de organização e ação, social e
educacional, nos contextos de pluralidade também epistemológica que ficam cada vez mais evidentes
e em confronto no mundo atual, em especial na nossa realidade nacional. [Por isto, a exemplo de
outros autores, em vez de tolerância – designação assumidamente de exclusão –, prefiro a denomi-
nação acolhimento (do plural, das diferenças, do diverso) – almejando exercitar uma postura de in-
clusão plena.] García Canclini (2005, p. 25) sintetiza, então, “[a]dotar uma perspectiva intercultural
proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as
políticas da diferença não só como necessidade de resistir”, se bem que, como exponho em outras
partes do texto, é fundamental que também tal resistência, de caráter revisionista dos pressupostos da
modernidade, seja, além de arejada e assertiva, constantemente atualizada e exercida.
244
Abordagem Antropológica
da antropologia nos oferece. A meu ver ele deveria ser muito mais explorado
e adaptado em educação.
Tal exercício tem, no mínimo, duas consequências, ambas fundamen-
tais. Por um lado, favorece o desenvolvimento de sentimentos de solidarie-
dade, na medida em que o “outro” começa a ser visto como se fosse você
mesma(o), um ser humano, e assim aumentam as possibilidades de empatia
e de compreensão dos problemas e das soluções dos outros. Por outro lado,
esse tipo de exercício faz com que, por contraste com outras formas de se ver
o mundo e nele se estar, o sujeito comece a se conscientizar da própria forma
de ver as coisas que sua cultura lhe imprimiu e das peculiaridades, limitações
e possibilidades da mesma.
Isto é particularmente relevante quando se reconhece – como tanto
se divulga hoje em dia e se prega em diretrizes curriculares nacionais – a im-
portância e urgência em se desenvolver propostas adequadas e eficientes para
fomentar a compreensão e valorização da diversidade cultural humana – cuja
realização sincera e honesta pressupõe o entendimento e a incorporação de
uma concepção epistemológica pluralista27. Esse tipo de postura, de fato in-
clusiva em sentido amplo, é tão recomendada e, ao mesmo tempo, infeliz-
mente, tão pouco praticada. Os educadores ainda não sabem como realizar
o acolhimento do plural e do diferente, como superar xenofobias e promo-
ver integrações em um nível nunca antes exigido. Aqui, invisto nessa linha,
aplicando-a à educação ambiental, no sentido amplo do termo.
A estratégia, então, é encontrar as portas que já estão abertas em nossa
cultura e adentrar-se por elas para chegar-se ao que mais interessa, isto é, a
uma educação integral da pessoa, e não apenas sua educação científica da forma
27 É especialmente importante atentar-se para algo que se tem como ponto pacífico, mas que contém
o cerne de um equívoco e problema básicos: a pressuposição de que há uma epistemologia única
ou privilegiada (aquela ocidental, que ampara o que chamamos ciência). É preciso revermos nossa
concepção de epistemologia, para podermos acolher, de fato, a profusão de sistemas epistemológicos
humanos possíveis (se é que convém manter o uso daquela denominação, já tão viciada enquanto si-
nônimo de conhecimento científico, ao nos referirmos a sistemas humanos de conhecimento), todos
igualmente válidos e legítimos. Sem a adoção de uma autêntica concepção epistemológica pluralista,
os outros tipos de diversidade correm o risco de se transformarem em peças de museu, figuras de lin-
guagem, folclore curioso, peculiaridades humanas pitorescas etc. Em muitos sentidos fundamentais,
a diversidade epistemológica é a base para as demais diversidades humanas. Está além do escopo des-
te capítulo aprofundar esta discussão. Ela é introduzida em Jafelice (2008b) e estendida em Jafelice
(2009b; 2010a; 2010c). Para uma caracterização inicial, podemos entender diversidade epistemoló-
gica como as diferentes formas de as variadas culturas humanas verem e construírem significados para
o mundo. Portanto, acolhê-la com conhecimento de causa e veracidade é um primeiro passo rumo ao
entendimento inter-humano no planeta.
245
Luiz Carlos Jafelice
246
Abordagem Antropológica
28 A abordagem que proponho, então, fomenta uma relação dialética entre educação e antropologia. Con-
vém chamar a atenção de que também em antropologia há vertentes que seguem preceitos científicos
realistas, universalistas, positivistas – principalmente nas subáreas de antropologia física e arqueolo-
gia, mas não apenas nestas. Para tais vertentes, apesar de serem na área de antropologia, a realidade
é única assim como a forma de revelá-la, que seria através da ciência (críticas bem embasadas a uma
visão universalista em antropologia podem ser encontradas, e.g., em OVERING, 1995). A vertente
em que trabalho claramente não compactua com essa visão. Para nós, aqui, a abordagem antropoló-
gica abraçada significa a adoção de uma concepção epistemológica relativista. O que, por sua vez, se
articula melhor com uma concepção construtivista em educação. Estas concepções compõem, assim,
a perspectiva do olhar em questão. Os leitores, ao buscarem maiores informações ou complementos
com o intuito de adaptar e aplicar a presente proposta, devem ficar atentos, então, à existência dessa
diferença básica entre essas vertentes na pesquisa antropológica. Embora todas sejam em antropo-
logia, pode haver uma distância muito grande entre elas. Aqui, trabalhamos segundo uma vertente
culturalista e hermenêutica em antropologia.
29 Vide subseção 3.5 (Conhecimentos tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia), onde caracterizo
o que se entende por conhecimentos tradicionais.
247
Luiz Carlos Jafelice
30 O uso de tal calendário segundo a perspectiva desta abordagem ficará claro ao longo deste capítulo e,
mais em detalhe, no apêndice 7 (Protótipo para planejamento de aulas ambientais: calendários tradicio-
nal e científico).
31 Na verdade, por paradoxal que soe, também sua formação em ciências da natureza é enviesada e de-
ficiente por vários outros motivos, principalmente derivados da visão de mundo prevalecente. Está
além do escopo deste capítulo discutir este tipo de deficiência de formação; para tal vide Jafelice
(2008a) e referências lá citadas.
248
Abordagem Antropológica
32 Vale salientar que recentemente fiquei sabendo de outras duas avaliações do trabalho dessa professora
(além daquelas que ela apresenta no capítulo 1). A primeira se refere a quando Luciene retornou à
Escola Estadual Alceu Amoroso Lima, aos 09/10/2009 – pois nos últimos dois anos ela trabalha em
outra escola, bem distante daquela onde o projeto que descreve foi desenvolvido. Ela relata sua grande
alegria ao ouvir o depoimento da professora de matemática, que lhe disse: “aqueles alunos com quem
você desenvolveu o projeto de astronomia são ótimos, participativos, ágeis em dar respostas, críticos,
diferentes dos alunos do outro 6º ano”. A outra avaliação inesperada – feita aos 27/05/10, e neste caso
obtida dos sujeitos diretamente envolvidos com as intervenções educacionais da professora – veio
249
Luiz Carlos Jafelice
de um comentário de sua filha mais nova, Lígia (que também foi sua aluna durante aquele projeto).
Luciene ficou sabendo que nas conversas da filha, através do orkut, com ex-colegas e amigos daquela
escola, eles “dizem que ainda observam o céu e lembram-se dos Dias-Noites que tiveram”. Tais cons-
tatações, ainda mais feitas tanto por pessoa não ligada ao projeto do qual Luciene fez parte, como,
independentemente, por aquelas muito ligadas ao mesmo, e proferidas cerca de três anos após ela ter
concluído o contato com aqueles alunos, certamente reforçam as avaliações positivas do trabalho dela
e também da efetividade didático-pedagógica, em sentido amplo, da abordagem aqui proposta.
250
Abordagem Antropológica
33 Isto é ainda mais evidente se conseguirmos superar a acepção fragmentada de “meio ambiente” que
nos tem sido inculcada e construir uma visão holística de ambiente cósmico do qual a existência é
parte-e-todo, como temos argumentado nesta abordagem. Vide aprofundamentos desta discussão no
apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3).
251
Luiz Carlos Jafelice
considero muito mais pertinentes e urgentes – ainda que, pela forma em que
utilizo tal área, então, ela fique, em essência, descaracterizada e irreconhecí-
vel em comparação com a imagem mais veiculada e vendida que temos da
mesma.
Fica claro do que expus – mas mesmo assim convém ressaltar –, que a
associação que aqui faço entre astronomia e educação ambiental não está res-
trita à relação conscientizada nas últimas décadas, que contempla o problema
do ponto de vista do isolamento do planeta no espaço, finitude das reservas
naturais, fragilidade dos ecossistemas etc. Embora este olhar seja pertinente e
deva ser explorado também, ele ainda deixa escapar um ponto que a meu ver
é bem mais essencial, que é a ampliação da concepção de “meio ambiente” e
da “relação” entre seres humanos, coisas do céu e meio ambiente. Esta relação
deve transcender a mera associação com a biosfera e a interferência mútua
entre o Sol, ela e nós. É preciso desvencilhar aquela concepção e relação da
mentalidade cientificista (racionalidade cognitivo-instrumental) que foi ca-
racterizando e amoldando cada vez mais nossa visão das mesmas.
Por outro lado ainda, essa noção de meio ambiente que critico, por ser
muito mais limitada ou superficial e imediatista, é algo relativamente novo na
história da humanidade34. Durante muitas dezenas de milhares de anos, no
34 Vejam ainda Flickinger (1994) e Brügger (2004), que aprofundam a discussão sobre mudanças ne-
cessárias em educação ambiental – quanto a princípios de caráter filosófico, epistemológico e ideo-
lógico implícitos naquela – e reforçam o tipo de crítica que faço. Aquele autor (Flickinger) questiona
a abordagem científica naturalista predominante para a questão ambiental. Para aquela abordagem,
“o mundo só existe enquanto objetificado, isto é, colocado à disposição de uma racionalidade instru-
mental. O que escapa do olhar objetificador do cientista parece não existir como tema de pesquisa, já
que o instrumentário metodológico não providencia acesso nenhum a tais ‘realidades’” (FLICKIN-
GER, 1994, p. 201). Assim, ele propõe a abordagem hermenêutica “como modelo complementar
àquele da explicação causal-objetificadora das ciências naturais” (idem, p. 206) e argumenta que esta
última abordagem é capaz de viabilizar nossa saída da atual crise civilizatório-ambiental. O autor
critica o antropocentrismo nas relações com o meio ambiente, a aplicação de uma lógica temporal
típica das atividades econômico-sociais à da estrutura temporal do ambiente físico-natural e cobra
da educação ambiental a recuperação da “responsabilidade íntima do agir humano, do dia-a-dia,” para
com a referida crise. Aquela autora (Brügger), por outro lado, a partir de referenciais e argumenta-
ções distintos, porém caminhos e principalmente conclusões muito assemelhados, critica, segundo
um enfoque sociológico, a forma com que a educação ambiental tem ficado a serviço de uma visão
de mundo cientificista, fomentadora de ideologias de exclusão, e discute as sérias consequências
desse estado de coisas. Ela destaca, por exemplo, que “a cultura cientificista invalida outras formas
de saber e ao fazê-lo, se torna adestradora” (BRÜGGER, 2004, p. 87). A autora também critica a
racionalidade instrumental e o antropocentrismo presentes na visão ambiental dominante, que le-
vam à “instrumentalização ilimitada de tudo que existe [...] [e justificam], por exemplo, [...] a forma
como tratamos os animais não ameaçados de extinção. Nunca, em toda a história, uma sociedade
impôs tanto sofrimento aos animais em nome da produtividade, seja em experimentos ‘científicos’,
seja em fazendas e granjas de criação intensiva” (idem, p. 93-94). Para a autora, a superação da crise
252
Abordagem Antropológica
mencionada exigirá como etapa “imprescindível [...] a adoção de novas posturas diante da natureza
e das relações humanas, de novos comportamentos e valores. Portanto a educação ambiental crítica
deve abordar a história das possíveis relações com a natureza (e dos homens entre si) e não apenas a
‘História natural’” (idem, p. 91). [Agreguem às argumentações e sugestões desses autores aquelas da
proposta educacional biocentrada defendida por Hutchison (2000), a qual recomenda orientações
muito semelhantes.] Ambos os autores tratam questões específicas nas quais não me detenho aqui.
Minhas críticas, porém, vão na mesma direção e se somam às que eles fazem à educação ambiental
prevalecente.
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Abordagem Antropológica
Reflexões adicionais:
exemplos específicos para educação em astronomia e ambiental
* No apêndice 3 (Somos parte do universo. Só parte? Qual?) apresento uma prática e textos para se aprofun-
dar a discussão desse tipo de “dicotomia”.
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37 Está além do escopo deste capítulo nos aprofundarmos nestas discussões. Os interessados devem se
remeter a Jafelice (2010a) (vide ainda os conteúdos destes assuntos contidos nas referências Jafelice
2009a e 2010b).
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Abordagem Antropológica
38 Cuidado, então, para não cair na tentação e equívoco – frequente em trabalhos de etno e arqueoastro-
nomia assessorados por astrônomos – de querer sobrepor, traduzir, comparar “céu indígena” com o
“nosso”, ocidental.
39 Este é o projeto Educação Intercultural Transdisciplinar e Etnoastronomia: saberes tradicionais sobre o
céu e a terra para as novas gerações, junto ao CNPq, que desenvolvemos com pessoas do município
de Carnaúba dos Dantas (RN) e foi concluído em maio de 2009. No momento estou coordenando
outro projeto, que se estende até fevereiro de 2011, também junto àquele município e com apoio do
CNPq: Astronomia Cultural e Científica: difusão dos diálogos e construções possíveis e necessários. [Ade-
mais, ambos os projetos têm recebido apoio de infraestrutura – para o curso – e de alojamento – para
as equipes dos mesmos – do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carnaúba dos Dantas (RN).]
Neste segundo projeto, temos como um objetivo prioritário a produção e publicação de um livro
didático (ou, conforme o rumo, paradidático) para uso nos níveis fundamental e médio de ensino,
envolvendo conhecimentos tradicionais – sobre ambiente, céu, terra e vida – da região do Seridó em
torno do referido município. A ideia é disponibilizarmos orientações, estratégias e resultados desses
projetos através de página na internet (vide JAFELICE 2010b).
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260
Abordagem Antropológica
queles saberes.) Esses textos estão redigidos em linguagem bastante acessível e contêm reflexões que
ajudam os professores a encaminharem a mudança de mentalidade (em si mesmos e na comunidade)
necessária para empreender esse tipo de trabalho. Pretendo disponibilizar futuramente também esses
textos em Jafelice (2010b). Participamos também da Semana Pedagógica de 2010, onde pudemos
aprofundar o trabalho junto aos professores já envolvidos e ampliar a discussão e o grupo, com outros
professores que se juntaram a nós nessa iniciativa. Até agora, tudo é muito animador e gratificante.
Não é possível avaliar a perenidade das mudanças já empreendidas. Como já falei, porém, isto tudo é
uma caminhada. Portanto, é preciso ao menos dar uns primeiros passos para ela começar a acontecer,
reavaliarmos rumos, mudarmos rotas (temporárias), desfrutarmos do vivê-la. Nisto estamos.
42 Neste caso, nos exemplos mais conhecidos do público, esse costuma ser um passado de alguns milha-
res de anos. Mas em vários lugares, em particular no Brasil, ele pode, em certos sítios arqueológicos,
ser de apenas algumas centenas a um milhar de anos; em outros sítios brasileiros ele pode ser de
dezenas de milhares de anos. Nestes últimos, porém, até onde se sabe, não há indicações de atividades
de caráter arqueoastronômico.
261
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo teve a esperança de fornecer uma visão geral e alguns em-
basamentos explícitos e implícitos do que denomino abordagem antropológica
– por enquanto, almejando que esse nome antes explique do que confunda44.
Creio ter ficado claro que ela é fruto de um entrelaçamento indeslindável de
minhas idiossincrasias, história de vida, interesses, preocupações, prioridades,
visão de mundo, enfim – esta é mutável, mas, ainda assim, uma visão, com os
inevitáveis vínculos culturais presentes na sua constante reconstrução.
A proposta apresentada é alternativa ao que é corrente em educação
ambiental e astronômica e espero que sua contribuição seja relevante para as
mudanças que precisam ocorrer na educação em geral, para que a atual crise
civilizatória possa de fato levar a uma transformação crescedora para todos,
desde uma perspectiva biocentrada e pluriepistêmica.
O que foi escrito até aqui deveria ser autoconsistente e suficiente para
se compreender o caráter principalmente inclusivo da proposta – e não ape-
nas seu cunho heterodoxo, que assim soa antes devido à nossa subserviência
a um formato único de pensamento.
Contudo, creio que os leitores ganharão muito em compreensão a
respeito da referida abordagem através dos exemplos, explicações adicio-
nais – de conteúdos, filosofia ou autobiografia – nas seções de Sugestões de
leituras e Apêndices abaixo. Estes adendos, inclusive, os capacitarão melhor,
espero, a levar algo da inspiração dessa abordagem à prática, ainda que muito
modificada pela criatividade interventiva dos interessados em contribuir na
construção de um outro mundo possível, mais justo, equilibrado e solidário,
segundo uma vertente como a aqui defendida.
43 Vide em nota de rodapé mais ao final do apêndice 1 maiores esclarecimentos sobre a “pedra de raio”.
44 Ou, quem sabe, com sorte, à Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir, eu tô te confundindo pra
te esclarecer [...]” (ZÉ e MEDEIROS, 1976).
262
Abordagem Antropológica
SUGESTÕES DE LEITURAS
A lista a seguir é inicial e visa dar suporte para quem quiser aprofundar
algum dos temas específicos discutidos ou ter mais subsídios para desenvol-
ver a presente abordagem. Essa listagem não é exaustiva e demandará que os
interessados prossigam na pesquisa bibliográfica a partir de outras fontes, cita-
das nas próprias referências abaixo e em outras que encontrarem. Decidi incluir
nesta lista apenas fontes (de livros e endereços na internet) em português.
Para uma relação mais completa de fontes, é necessário consultar tam-
bém a seção Referências dos outros capítulos (pois minimizei a repetição de
fontes ali referidas, nesta lista) e a deste, assim como a seção Bibliografia adi-
cional (antes dos apêndices deste capítulo).
A subdivisão das leituras a seguir espera ser didática, mas há sobre-
posições entre elas. Algumas são de caráter interdisciplinar ou mesmo trans-
disciplinar e, portanto, não poderiam ser enquadradas totalmente em apenas
uma das categorias abaixo arroladas.
A seleção destas leituras foi bastante cuidadosa (embora talvez não tão
criteriosa quanto teria sido o ideal). Contudo, como sempre, os consulentes
não podem abrir mão de fazer o exercício crítico sobre o que lerem, cruzarem
as informações das fontes aqui citadas com outras, de outras fontes, consultar
autores, quando possível, e discutir com outros interessados o que foi colhido.
Sobre antropologia45
45 Esta área, além de vasta, abriga várias correntes. Antes que livros, conviria, para um primeiro contato
com ela, dispor-se de textos mais curtos de diversos autores. Ficaria inviável incluir isto nesta lista.
Optei por incluir três livros, mas que exigem outros estudos. A ordem em que estão apresentados é
apenas cronológica, em relação ao ano da última publicação (no Brasil) a que tive acesso. Há ainda
livros genéricos introdutórios à área que podem ser úteis (embora não incluí nenhum desses nesta
subseção; eles podem sem encontrados em qualquer boa livraria na área). Nas seções Referências e
Bibliografia adicional abaixo há outras fontes da área que auxiliarão os interessados.
263
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Sobre etnoastronomia
264
Abordagem Antropológica
Sobre arqueoastronomia
1. AVENI, Anthony. Conversando com os Planetas. São Paulo: Mercuryo,
1993.
Muito interessante e esclarecedor na questão de ajudar a enxergar o
“mesmo” céu com os olhos de outras culturas – no caso, não mais existentes.
O autor é muito conhecido na área, na qual escreveu muitos trabalhos, vários
de modo acessível também para leigos no assunto. (Infelizmente, porém, até
onde sei, este é o único traduzido para o português no Brasil.)
Sobre cronobiologia46
1. MARQUES, Nelson; MENNA-BARRETO, Luiz (Org.). Cronobiologia:
princípios e aplicações. 2. ed. rev. São Paulo: EdUSP, 1999.
46 Na seção Bibliografia adicional há outras referências sobre este assunto, em nível de divulgação cientí-
fica.
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Luiz Carlos Jafelice
47 Até onde sei, ele foi publicado pela primeira vez na Espanha no início do século XVIII, tendo chega-
do rapidamente a Portugal, onde em 1703 já foi feita a primeira edição em português (CASCUDO,
1998; no verbete “Lunário Perpétuo”). De lá, ele foi trazido ao Brasil.
48 Um belo trabalho de criação contemplando esse tipo de influência pode ser apreciado em Nóbrega
(2005).
49 Sua penetração no Nordeste foi tão grande que até hoje ele ainda é usado por algumas pessoas para
consultas e orientações relacionadas a procedimentos agronômicos, terapêuticos e outros. O exem-
plar de 1912, que cito acima, por exemplo, é um que continuava sendo usado para a previsão de inver-
266
Abordagem Antropológica
no, agrícola e outras, mais de noventa anos após sua publicação (o que não deveria nos surpreender;
afinal, ele é perpétuo!). Há pesquisadores, porém – em geral da área de folclore ou de literatura –, que
atribuem a origem das formas de pensar e de se expressar dos ditos profetas, nos sertões nordestinos,
ao Lunário. Isto não se sustenta, conforme diversos trabalhos em antropologia, além do nosso pró-
prio, já deixaram bem claro. Outras influências não ibéricas, em especial a indígena, estão fortemente
presentes naquelas formas de pensamento e expressão. Por outro lado, se a influência daquele livro
não é decisiva, como algumas interpretações alegam, é inegável que ela está presente e não pode ser
ignorada em um estudo mais aprofundado sobre o assunto, que ainda não foi realizado a contento.
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Luiz Carlos Jafelice
5. LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio. Trad. Maria Luiza
Newlands. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
Também é excelente, neste caso por expor com extrema lucidez – e
sem qualquer conexão com concepções religiosas, apesar de ser escrito por
um monge do budismo tibetano – a importância de assumirmos as mudan-
ças de perspectiva e de postura necessárias para empreendermos ações que
transformem construtivamente nosso mundo, relações e visões humanas.
Também o recomendo fortemente a professores de qualquer disciplina.
50 Atenção: os textos desta subseção, em particular, são para uma tomada de conhecimento adicional,
através da palavra. Aquilo que envolve o corpo, contudo, precisa ser – acima de tudo e independente-
mente de verbalizações ou racionalizações – vivenciado. Cuidado, portanto. Nossa cultura se entrin-
cheirou e se apequenou demais no intelecto, embotando as outras dimensões do ser, em especial a
corporal e a cinestésica. Em suma: procurem quem pode lhes ajudar a pôr tais propostas em prática e
vão improvisar, brincar e criar nessas outras dimensões.
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Abordagem Antropológica
51 Vide na seção Bibliografia adicional outras referências muito importantes e úteis sobre mitologia.
269
Luiz Carlos Jafelice
conclusões. Mas, na minha visão, seus livros são inspiradores. Esses assuntos
adquirem particular relevância quando se está envolvido com uma aborda-
gem de caráter antropológico, principalmente segundo a vertente em que a
conduzo.
270
Abordagem Antropológica
52 Quer dizer, o de 2008 (o primeiro a ser lançado) foi distribuído no final de 2007, porém o de 2009
não foi lançado – ou, se foi, não chegou a Natal (RN), pois por meses o procurei em diversos pontos
de distribuição. Ou seja, no importante quesito da garantia de regularidade (e/ou de distribuição) de
publicação, ele não é confiável como o do ON. Essa iniciativa da Scientific American Brasil é de gran-
de importância educacional. Será muito útil se sua política editorial for movida antes por este objetivo
e garantir a continuidade regular desse anuário. Se isto não puder ocorrer, ao menos o anuário do ON
terá – ainda que com algum atraso – sua presença assegurada.
271
Luiz Carlos Jafelice
3.1 http://www.zenite.nu/
É uma página bastante completa, didática e de mentalidade aberta
sobre divulgação de astronomia. Contém abordagem de temas inéditos –
como o céu da bandeira do Brasil, astronomia e futebol etc. – e conexões
para muitos outros endereços sobre astronomia na internet. É produzida por
aficionado amador em astronomia.
3.2 http://www.telescopiosnaescola.pro.br
É página do Projeto Vitae, coordenado pelo IAG/USP, sobre o uso de
telescópios robóticos para o ensino de ciências. Ela é produzida por astrôno-
mos profissionais. Contém materiais e conexões sobre astronomia, segundo
o ponto de vista científico convencional.
53 Endereços em internet caducam com frequência. Pode ser que quando este livro vier a público muitos
dos acessos aqui indicados estejam inoperantes. Quase todos os endereços de internet citados neste
capítulo trazem a indicação das respectivas datas em que foram acessados. Em caso de desatualização,
os interessados poderão encontrar os novos endereços ou substitutos pertinentes – quando existentes
– através de um uso criterioso de algum sistema de busca eletrônico.
272
Abordagem Antropológica
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54 Em princípio, todas as referências das quais sou autor ou coautor estarão integralmente disponíveis,
com o tempo, em http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural.
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toques de rabeca e canções variadas. Direção artística: Antonio Nóbrega. Produção
executiva: Rita Mistroni e Silmara Nunes. Músicos-Brincantes: Antonio Nóbrega,
Gabriel Almeida, Eugênia Nóbrega, Antonio Bombarda, Edmilson Capeluppi, Da-
niel Allain, Mario Gaiotto, Zezinho Pitoco. Manaus: Sonopress (sob encomenda e
distribuição de Trama Promoções Artísticas e sob licença de Brincante Produções
Artísticas), 2005. 1 CD. 15 faixas. 1 livreto de encarte (20p.; integrante da caixa do
CD) contendo: apresentação do autor, letras das músicas, músicos participantes de
cada gravação, fotos, ilustrações, ficha técnica e outras informações. [Há versão desse
trabalho também em DVD, com cenas do espetáculo onde foi apresentado.]
NOVELLO, Mário. Do Big Bang ao Universo Eterno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2010.
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Especiais: Terry Gilliam. Produção: John Goldstone. Roteiro e Intérpretes: Graham
Chapman; John Gleese; Terry Gilliam; Eric Idle; Terry Jones; Michael Palin. [S.l.]:
Celandine: Universal, 1983. 1 DVD (107 min), son., color. [Orig.: Monty Python’s
The meaning of life.] [Em especial, no que concerne a esta citação feita no apêndice
1, refiro-me à letra da música cantada no capítulo 15, A Galáxia (The Galaxy), no
trecho de 55min 46s a 58min 24s.]
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BIBLIOGRAFIA ADICIONAL
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tas fontes com outras, obtidas alhures, conversar com diferentes profissionais
das áreas envolvidas, esclarecer, quando possível, a escola de pensamento que
cada autor abraça, cruzar e cotejar distintas citações a uma mesma fonte, en-
fim, não abrir mão da própria avaliação de tudo a que tiverem acesso.
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São Paulo: Ediouro; Duetto, s/d. [A edição envolve artigos sobre sono e vigília. Três
deles tratam mais diretamente de conteúdos cronobiológicos: GRITTI, Ivana, em
Mecanismos do sono, p. 6-15; MORENO, Claudia R. C., FISCHER, Frida M. e RO-
TENBERG, Lúcia, em Sociedade 24 horas, p. 16-23; e LOUZADA, Fernando M., em
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LEFF, Enrique. Ecologia, Capital e Cultura: racionalidade ambiental, democracia
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Ed. FURB, 2000.
LEGAN, Lucia. A Escola Sustentável: eco-alfabetizando pelo ambiente. 2. ed. rev.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Pirenópolis, GO: Ecocentro
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APÊNDICES
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Apêndice 1
56 Olhando-o retrospectivamente, percebo que talvez ele possa ser entendido como um esclarecimento,
estendido e aprofundado, do que argumento no trabalho Jafelice (2002, p. 1), de que a psicogênese
filogenética de nossas principais concepções sobre regularidades espaço-temporais ou relações entre
fenômenos terrestres e celestes se deu enquanto nossos ancestrais estavam cocriando a espécie homo
sapiens. Só que aqui lucubro bem além.
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57 Os interessados em aprofundar esta linha de reflexões devem consultar Jafelice (2008b), em particu-
lar as seções Naturalizar para reinar e Como destruir criações culturais humanas sem piedade daquele
trabalho e as referências lá mencionadas.
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to bebendo em diversas fontes – além de ser mais divertido. Claro que fazer
isto é percorrer um campo muito minado. Todo cuidado é pouco e, honesta-
mente, não há garantia de se sair ileso. Acredito, porém, que vale o exercício e
o risco. Os leitores, entretanto, precisam avaliar por si mesmos se, ou até que
ponto, concordam com esta avaliação.
Os leitores precisam ficar atentos quando enveredo pelas digressões
da subseção 2.3. O recurso às interpretações das ciências naturais costuma
ser tentador por estas prometerem uma simplicidade na verdade inexistente
e principalmente porque tais interpretações são invisíveis. Elas estão há muito
entranhadas em nossa cultura, em nossa vida. Não as enxergamos, mesmo
quando as estamos adotando e amparando nossos julgamentos e “compreen-
sões” nelas. Atenção, portanto, para não se cair na tentação de forjar explica-
ções naturalizantes para explicar a nós e a tudo que existe pela via típica das
ciências naturais. Além deste risco, que, sozinho, já é grande e de consequên-
cias muito sérias, há várias outras dificuldades ainda em relação às quais os
leitores precisam ficar em alerta.
Assim, quando falo, naquela subseção, para imaginarmos “uma época
em que já havia vida na Terra, mas ainda não existiam seres humanos, isto é,
entre uns 4 bilhões e 1 milhão de anos atrás”, cuidado. Estou falando de esca-
las de tempo muito grandes e bem diferentes entre si58: 4 bilhões de anos atrás
é quase quando a Terra foi formada e 1 milhão de anos atrás é relativamente
muito próximo de hoje, pelo menos em termos geológicos e evolutivos. Há
4 bilhões de anos não existia vida no planeta e nem a primeira pangeia – um
supercontinente – havia se formado ainda, ao passo que há 1 milhão de anos
praticamente já existiam todas as formas de vida que conhecemos hoje (em-
bora muitas foram extintas nesse meio tempo) e a forma e disposição dos
continentes, por exemplo, já eram essencialmente as que são hoje.
Quando menciono “[n]essa época [...] já havia uma regularidade de
caráter astronômico no planeta [...] com alguma estabilidade relativa”, clara-
mente não quero implicar que tais regularidades tivessem as respectivas dura-
ções – tampouco as proporções relativas – que vogam na atualidade. O ponto,
na narração daquela viagem imaginária, é que aquelas regularidades de teor
astronômico já existiam naquela época. As respectivas durações e proporções
relativas, assim como as diferentes variações dessas ao longo do tempo geoló-
gico, é outra questão, conforme ainda retomarei neste apêndice.
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59 Vírus são mais simples que bactérias, mas dependem de células – e, portanto, da existência prévia de
seres pelo menos unicelulares – para se reproduzirem, se alimentarem ou crescerem; se acredita que
eles possam “ter se originado de ácidos nucléicos replicantes que escaparam das células”, mas preci-
sam “retornar ao tecido vivo [...] para replicação” (MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 15).
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língua como uma palavra privilegiada para o que Darwin havia denominado
‘descendência com modificação’” (idem, p. 189; grifo do autor). Nós, huma-
nos, por exemplo, não somos, em nenhum sentido biológico identificável,
superiores a nenhuma outra espécie existente ou extinta.
Neste sentido, inteligência – como a entendemos enquanto atribu-
to humano – não tem um “valor adaptativo” muito alto – pelo menos não
“tão elevado quanto o de olhos ou bioluminescência” –, senão aquela “teria
surgido em numerosas linhagens do reino animal” (conforme ocorreu com
estes outros atributos, por exemplo, várias vezes ao longo da existência da
vida na Terra, de modo independente), quando, de fato, “ocorreu apenas em
uma única entre milhões de linhagens, a estirpe hominídea” (MAYR, 2005, p.
227-228). Muitas pessoas – e, de novo, também cientistas conhecidos, como,
por exemplo, o astrônomo Carl Sagan (idem, p. 227) – confundem as coisas, e
“presumem que a seleção natural tenha estabelecido um prêmio tão alto pela
inteligência que ela seria produzida em muitos lugares no universo”, quando,
mesmo aqui na Terra – com cerca de um bilhão de espécies/possibilidades de
origem, desde o início da vida no planeta –, aquele atributo só se concretizou
em uma espécie. Em suma, “não há nada de determinista na evolução e na
produção de alta inteligência” (idem, p. 228).
Assim, no contexto da teoria da seleção natural, a designação “evolu-
ção”, quando usada, deve ser entendida como desenrolar de processos, mas
nunca confundida – como o é, muitas vezes – com progresso, como se o que
ela propõe implicasse um direcionamento rumo ao surgimento de um ser
vivo superior. Essa teoria não é teleológica. Rigorosamente falando, ela é teo-
ria de seleção natural, e não de evolução natural.
Ainda em relação a este assunto e ao tema daquela subseção, são perti-
nentes as críticas que Ernst Mayr faz a físicos e a astrônomos com respeito à
busca de vida inteligente extraterrestre (vide o capítulo Estamos sozinhos neste
vasto universo? de seu livro Biologia, Ciência Única; MAYR, 2005, p. 222-230).
Esse ornitólogo nos aconselha investir “as centenas de milhões de dólares”
gastos com expedições espaciais, como aquela para Marte para localizar even-
tuais bactérias fósseis, “na pesquisa da diversidade em rápida desaparição das
florestas úmidas tropicais da Terra” (idem, p. 226)60. Ele argumenta que os
60 Argumentos, conclusões e conselhos semelhantes também são apresentados, por exemplo, pela bi-
óloga Nurit Bensusan. Ela propõe um cenário em que “você está partindo para a Lua a fim de levar
uma vida normal e satisfatória por lá”. E, para facilitar as coisas, ela sugere supor que a atmosfera e o
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clima lá sejam semelhantes aos da Terra. Mas você precisa decidir ainda quais as espécies de animais
e plantas você precisará levar consigo para poder desfrutar e manter lá aquela “vida normal e satisfató-
ria” ansiada. “Quantas espécies seria necessário levar para garantir [todos] esses serviços [ambientais
exigidos para sustentar as necessidades vitais humanas]?” Ela destaca que “[n]ão há uma resposta
para essa pergunta”. Após mostrar a dimensão do problema e dificuldades associadas, ela pondera,
sensatamente, que “[a] essa altura é de se supor que você já tenha desistido da viagem a Lua” (BEN-
SUSAN, 2007). E notem que até aqui ela ainda nem fez a análise econômico-financeira do custo
que tal empreitada demandaria se fosse tentada (isto é, se quiséssemos substituir aqueles serviços),
o que ela faz na segunda parte de seu texto. O custo dos serviços ambientais naturais estaria na faixa
de algumas dezenas de trilhões de dólares anuais; praticamente o dobro de todo o Produto Nacional
Bruto anual global! (idem). Bem, não faltam exemplos de onde gastos envolvendo montantes incom-
paravelmente menores – mas cujas implicações socioambientais benéficas podem ser decisivas para
uma existência equânime e digna de nossa espécie, com vida de qualidade para todos em harmonia
ambiental biocentrada – precisam ser feitos com urgência. Os recursos, inclusive econômicos, são
finitos. Precisamos definir prioridades e agir em consonância.
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61 Lembrando antes, da física: período é o inverso de frequência. Aquele mede o intervalo de tempo para
a duração completa de um fenômeno cíclico e esta mede o número de ciclos desse fenômeno por
unidade de tempo (que no caso é o dia). Como na discussão em curso é a frequência que nomeia um
ritmo biológico, se um processo biológico cíclico tem, por exemplo, um período bem maior que um
dia (i.e., leva muitas horas a mais que 24 horas para se repetir), a frequência associada a ele será (bem)
menor que a diária e, portanto, o ritmo caracterizado por ela será infradiano; se o período for bem
menor que um dia, a frequência será (bem) maior que a diária e o ritmo será ultradiano.
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a nenhum tipo de “dia” (ao longo do ano), isto sempre foi assim durante o
processo seletivo de nossa espécie? Mais adiante, neste apêndice, comentarei
sugestão de pesquisadores sobre porque a existência de uma época do ano
“preferencial” para humanos acasalarem para fins reprodutivos pode ter sido
(seletivamente) vantajosa também no processo de nossa especiação.
Quando me expresso dizendo coisas como “o sucesso das espécies já
existentes, em se manterem como tais, e o das novas espécies, em se adapta-
rem”, é preciso cuidado, pois, além de conter antropomorfismos (como se as
espécies atuassem na manutenção ou adaptação por ação voluntária, preme-
ditada, visando, talvez, o alegado “sucesso”), aquela verbalização é enviesada,
por encerrar uma visão simplista da teoria da seleção natural – como se hou-
vesse descendência sem variantes ou a mutação ocorresse só devido a causas
externas aos organismos, além de ignorar o mecanismo da hereditariedade.
Aquela, portanto, é uma forma de dizer, que uso apenas como recurso narra-
tivo. Porém, fiquem atentos. As “novas espécies” não surgiram do nada, nem
chegaram prontas – com seus espécimes pioneiros completamente inéditos
– de algum lugar extraterrestre. Elas se originam a partir da variabilidade ge-
rada pela vida – a qual, portanto, já existia, e, para o que nos interessa nesta
argumentação, já existia adaptada à tal “polirritmia de origem celeste” – jun-
tamente com os ajustes seletivos naturais operantes, que já comentei ante-
riormente. Nesse contexto, as “novas espécies” apenas são selecionadas (isto
é, deixam maior fração relativa de descendentes com suas características mais
afeitas em continuar existindo naquele ambiente e ritmos) em função de me-
lhor se adaptarem (em comparação a outras variantes contemporâneas a elas)
aos respectivos ambientes cambiantes onde seus ascendentes também foram
biologicamente bem-sucedidos. Convém insistir: essa não foi adaptação por
“esforço próprio”, “mérito”, “empenho pessoal” (!), nem nada do tipo. A ex-
pressão “melhor se adaptarem” é uma forma de dizer. Na verdade, as espécies
que melhor se adaptaram puderam fazê-lo porque – é importante enfatizar o
caráter casual do motivo de elas terem alguma vantagem adaptativa – por ra-
zões fortuitas elas já operavam biologicamente em compasso mais adequado
às exigências ambientais de onde seus ascendentes habitavam62.
Mais uma vez é preciso deixar bem explícito, quando digo “esse su-
cesso só se deu porque a espécie humana conseguiu se adaptar também a
62 Para quem quiser rever ou aprofundar esses conceitos e raciocínios, recomendo, em particular, o ex-
celente livro de Gould (2001).
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esta exigência ambiental”, que esta foi uma adaptação que não dependeu de
voluntarismo, nem de inteligência ou racionalidade, por parte de um ou ou-
tro membro da espécie, nem da espécie como um todo. Dependeu, sim, de
processos seletivos operantes independentemente da existência, ou não, de
consciência ou de autoconsciência, ou de capacidade de premeditação e pla-
nejamento, ou de qualquer recurso de astúcia, comportamento privilegiado
ou suposta superioridade, nos seres onde aqueles processos atuavam. E, nun-
ca é demais insistir, ainda atuam, até hoje, embora agora mais em choque com
estilos de vida que uma fração enorme de pessoas no planeta adota. Claro
que com o surgimento da cultura, esta passou a ser outro recurso ou agente
adaptativo – como comento na subseção 2.3 –, ao que tudo indica com impli-
cações também seletivas. Contudo, evolutivamente falando, o surgimento da
cultura ocorreu apenas muito recentemente63.
Como explicito em algumas partes daquela subseção, há trechos lá que
são uma fantasia sem maiores rigores – embora, acredito, de valor reflexivo e
mesmo instrucional. Entretanto, há trechos que poderiam parecer fantasio-
sos para quem tem pouca familiaridade com as diversas áreas das ciências
naturais e humanas tratadas neste apêndice, em particular com a área de cro-
nobiologia, quando, na verdade, há muitas informações implícitas ali. Nesses
referidos trechos, apenas descrevi certos objetos e implicações dos estudos
nesta área de outra maneira. Assim, por exemplo, quando digo, em um dos
parágrafos de lá, “se nossa vida tivesse se concretizado, evolutivamente, em
um [outro planeta]”, e passo a descrever situações que envolvem “períodos
propícios à reprodução”; “propensão a variações de humor”; “duração do pe-
ríodo de gestação”; “o que nos traz paz ou infelicidade”, entre outras, estou
me referindo a fatos que a cronobiologia (principalmente, mas não apenas,
pois pelo menos a arqueologia, antropologia, psicologia cultural ou evoluti-
va – através de suas respectivas perspectivas e métodos de estudo –, também
estão bastante presentes nesses casos) tenta explicar recorrendo a processos
adaptativos, variações hormonais de ordem metabólica, frequentemente de-
63 Propostas mais recentes da teoria da seleção natural (e.g., LEITE, 2007, e JABLONKA e LAMB,
2010), na verdade questionam essa exclusão estrita (na linha em que argumento nesse parágrafo e em
outros trechos) de fatores extragenéticos daquele complexo processo adaptativo. Como comentei em
nota de rodapé na subseção 2.3, estas propostas favorecem ainda mais nossa narrativa. Porém, aqui
vamos ficar, conservadoramente, com a compreensão (ainda) clássica do tema, uma vez que o ponto
em questão (quais mecanismos seletivos estão estrita e efetivamente operantes no quadro discutido)
não é chave em nossos raciocínios.
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64 É o intervalo de tempo médio entre uma lua cheia e a lua cheia seguinte (ou entre duas luas novas
– ou quaisquer fases lunares iguais – consecutivas) e é de aproximadamente 29,53 dias. Também é
chamado de mês sinódico.
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65 Como bem destaca Nancy Tanner, em seu original trabalho sobre as origens humanas, que atribui
às fêmeas humanas ancestrais papel decisivo na transição de primatas para humanos: “Acima e além
de tal estresse nutricional físico sobre as fêmeas, foram também as mulheres primevas que tiveram a
maior responsabilidade pela sobrevivência da próxima geração” (TANNER, 1981, p. 268; tradução
minha).
66 Não é difícil imaginar como esse quadro se conclui (embora isto não é garantia alguma de que as
coisas se deram dessa forma): os parceiros estão lá, em noites de lua nova, acomodados no abrigo,
crianças e alguns outros dormindo, mas eles próprios ainda sem sono e/ou com alguma comichão,
sem lampião, sem televisão e... bem, nem é preciso retroceder dezenas de milhares de anos para se ter
uma situação desse tipo e supor como ela pode continuar. Há cem anos não era significativamente
diferente disso e mesmo hoje se encontram lugares que ainda são assim. Não se deve esquecer, po-
rém, que o quadro todo era bem mais complexo. Não se estava tão à mercê do biológico – mesmo
se/quando aquela eventual sincronização estava sendo acertada. O uso de plantas e outros recursos
contraceptivos também já começavam a estar em uso por parte das mulheres de então.
67 Olhando pelos ângulos da mitologia e da história das religiões, vê-se que a solidarização de virtudes
femininas com atributos lunares é comum em muitas culturas humanas (vide, e.g., ELIADE, 1993b).
Isto, contudo, não é uma universalidade. Para muitas culturas indígenas brasileiras, por exemplo, a
Lua é uma entidade masculina.
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68 Observação: os registros pré-históricos em que esses pesquisadores se baseiam não são mundiais, são
da Europa e da Sibéria, ou seja, regiões com latitudes ao norte relativamente elevadas, onde viveram
por muitas dezenas de milênios as hordas iniciais de nossos ancestrais mais recentes; nessas regiões,
as variações climáticas sazonais são muito notáveis, em particular com invernos muito rigorosos,
quando a escassez de alimentos e outros agravantes podem ser determinantes para a sobrevivência.
Repito: o quadro descrito acima é de conjectura visando plausibilidade. A realidade para o ajuste
gestacional temporal do homo sapiens deve ter sido bastante complexa. Por outro lado, não pode ter se
fastado tanto da situação idealizada pelos pesquisadores em questão, mesmo com a origem da espécie
tendo se dado em regiões tropicais, relativamente menos sensíveis a mudanças sazonais. Com efeito,
as pressões ambientais seletivas nos organismos em geral são enormes, independentemente da época
geológica e da localização geográfica apreciadas. Portanto, quando se analisa suas consequências no
processo de nossa especiação – ocorrido em um planeta com regularidades sazonais bem definidas
(ainda que em constante alteração na escala temporal geológica), inclusive nas grandes porções
de sua superfície habitadas por hominídeos e nas quais outras espécies de animais, em particular
de mamíferos (como já mencionei), “ajustaram” seu tempo de gestação àquelas regularidades (i.e.,
estresses) –, não é convincente atribuir nosso tempo de gestação a mera coincidência ou considerar
que justo no caso de nossa espécie ficamos imunes àquelas pressões e livres para estabelecermos
aquele tempo com independência das imposições ambientais cíclicas anuais. Seja qual for o cenário
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Outra linha de pesquisa, que reforça uma correlação direta entre o pe-
ríodo de menstruação e o das fases lunares, neste caso supostamente por ação
de teor cronobiológico associada à luz do luar, é apresentada por Kak (1996).
Ele cita:
Em um estudo com várias mulheres com inícios variáveis dos perío-
dos menstruais, a iluminação artificial do quarto de dormir da 14ª à
17ª noite seguintes ao início da menstruação resultou na regulariza-
ção do período, com a extensão do período chegando a ficar próxima
de 29,5 dias, o mês sinódico natural. Que este período é biologica-
mente significativo para a espécie humana é ainda sugerido pelo fato
de que a duração média da gravidez (da ovulação ao nascimento)
nas humanas é mais precisamente nove meses sinódicos, de 29,53
dias [cada um] [e não os “nove meses” convencionados pelo nosso
calendário civil, como se costuma dizer] (Encyclopaedia Britannica
1994, artigo sobre comportamento animal na Macropaedia, p. 761,
apud KAK 1996; tradução minha).
ocorrido, “nosso ajuste gestacional nos convenientes” ¾ de duração do ano terrestre é, no mínimo,
muito sugestivo.
69 Notem que o que causa esse atraso no nascer da Lua a cada dia é que ambos os movimentos de rota-
ção – o da Lua em torno da Terra e o desta em torno de si mesma – são no mesmo sentido (modo de
dizer, pois o plano orbital da Lua não coincide com o equatorial), de oeste para leste, e a velocidade
angular de giro da Terra é maior que a orbital da Lua [esta leva – tendo como referência as estrelas
de fundo – cerca de 27,3 dias para completar uma volta (360º) em torno da Terra, ao passo que esta
completa seu giro (360º) em torno de si mesma em 1 dia]. Da relação entre essas grandezas, decorre
que a Terra – tendo como referência, para este caso, o Sol – completa uma volta cerca de 50 minutos
antes de completá-la tendo como referência a Lua. Ou ainda: enquanto a Terra completa seu giro diá-
rio, a Lua “se afasta”, em seu deslocamento orbital, para leste. Portanto, alguém fixo sobre a superfície
terrestre verá a Lua novamente na “mesma” posição no céu, aproximadamente 50 minutos mais tarde
do que no dia anterior.
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os tais ciclos “terrestres” são vários e não guardam razão inteira entre eles70;
e mais: esses ciclos mudam e mudaram bastante nos últimos 4,5 bilhões de
anos (ou 4 bilhões, em particular, se quisermos nos restringir apenas a par-
tir da época em que, aparentemente, o ambiente terrestre começou a poder
comportar vida); e mais ainda: essas mudanças não ocorreram segundo taxas
de variabilidade regulares, nem de modo isossincrônico, considerando-se os
vários ritmos sobrepostos sob os quais os ambientes, e os organismos nestes,
existiam. Se a vida dependesse de proporcionalidade fixa entre os ritmos dos
“relógios” intracelulares e os dos astronômicos, muito provavelmente ela não
teria se desenvolvido para formas mais complexas.
Com efeito, de que serviria uma proporcionalidade fixa, ou rígida
(evolutivamente falando), em um dado momento da história do planeta? Ela
não duraria muito tempo, na escala geológica do tempo. Para esta análise, va-
mos nos concentrar apenas no ciclo mais evidente, mas também de grande
relevância seletiva: o do dia-noite. Devido a interações de maré, não só a Lua
estava mais próxima da Terra há muitas centenas de milhões de anos, mas
também o dia era mais curto e, portanto, havia mais dias por ano – isto é,
a Terra girava mais rapidamente em torno de si mesma do que o faz hoje.
Na passagem do período Siluriano para o Devoniano, por exemplo, há cerca
de 410 milhões de anos, o dia durava 21,8h e havia 400 dias por ano (WI-
KIPEDIA, 2009a) – e este ainda é um passado relativamente recente para o
planeta e mesmo para a vida neste (MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p.
18-19); em eras anteriores as diferenças (em relação a hoje) devem ter sido
mais acentuadas ainda71. Um organismo cujos processos metabólicos tives-
sem uma frequência natural de funcionamento exata (i.e., igual ou múltiplo,
ou submúltiplo, exato) para uma dada situação cíclica ambiental, não supor-
taria a mudança dos ritmos ambientais que sempre ocorreu – provavelmente
não a uma taxa constante, além de os ritmos concorrentes serem diversos e as
70 Isto é, considerando as quatro periodicidades mais notáveis que destaquei na subseção 2.3, vê-se que
o mês não é composto por um número inteiro de dias, nem o ano; tampouco o ano contém um nú-
mero inteiro de meses; e nem o intervalo entre três marés altas consecutivas coincide com a duração
de um dia. Na subseção 1.2 (Gerais) deste apêndice, logo após o Quadro Interdependências, comento
mais sobre a ausência de razão inteira entre as três primeiras durações periódicas naturais básicas
mencionadas (dia, mês e ano) e como isto não foi problema quando as culturas começam a introduzir
o calendário solar, com este se sobrepondo ao lunar, posto que a concepção que tinham de tempo – e,
portanto, de calendário – não era a nossa, ocidental, linear e histórica.
71 Mais uma vez a advertência: não é possível extrapolar-se tais diferenças para passados distantes e
concluir-se a duração do dia ou o número de dias no ano ou outras grandezas periódicas para épocas
geologicamente remotas.
320
Abordagem Antropológica
razões entre suas respectivas durações (em um dado instante geológico) não
se manterem nessa mudança. Ter a capacidade de se adaptar a ambientes em
mudança é a essência da proposta da teoria da seleção natural.
Ainda envolvendo a perspectiva dessa teoria, quando escrevo: “Ve-
mos, do exposto nesta subseção, que o mundo dos seres vivos [...] Os diferen-
tes horários em que flores de espécies distintas se adaptaram para abrir [...] e,
então, minimizem a “competição” entre eles pelos recursos disponíveis e/ou
otimizem relações simbiônticas diversas [...]”, é preciso atenção às aspas na
palavra competição – é um linguajar que se usa nesse contexto, mas é apenas
modo de dizer, embora perigoso. Por outro lado, dois parágrafos antes deste
recém citado, quando escrevo “Nas competições ancestrais por nichos com
outras espécies homines [...]”, não coloco aspas na palavra competições – ain-
da que mesmo neste caso, cujo contexto descrito envolve diretamente nossa
espécie (apesar de se referir aos primórdios desta), não é tão claro se as aspas
não se aplicariam de fato; contudo, dado o referido contexto, é mais compre-
ensível se, por ventura, as aspas não se aplicarem. Explico.
É preciso cuidado para não se projetar antropocentrismos e, no caso
extremo, posturas ideológicas, nos processos biológicos. A sociobiologia já
cometeu vários excessos por conta disto, alimentando implicitamente (e, por
isto, mais eficientemente) preconceitos que alguns biólogos e intelectuais
contrabandearam da biologia para a interpretação da própria sociedade: o
chamado darwinismo social. O conceito de competição é um deles. Pode ha-
ver competição, enquanto decisão e ato conscientes, entre humanos, mas não
nos processos de seleção natural – competição no sentido de se premeditar
ações que favoreçam a própria vitória (seja por meios lícitos ou ilícitos), se
arquitetar a derrota do outro (idem) e se interpretar (e este ponto sobressai)
que quem vencer é superior (nas várias acepções e vantagens daí advindas)
a quem perder. A sociobiologia, em si, é terreno pantanoso, de fundações
movediças. Pior ainda quando é transposta de modo ralo e tendencioso para
sociedades humanas, como muitas vezes ela é divulgada. Segundo essa leitura
– conveniente para tentar justificar a mentalidade de uma globalização regida
por leis de mercado, que penetra em todos os setores da vida social –, compe-
tição é vista e vendida como inevitável ou explicitamente vantajosa72. Como
321
Luiz Carlos Jafelice
educadores e cidadãos, precisamos, então, trazer à tona tal distorção, suas im-
plicações sociais e atuar para desconstruir suas falácias e construir uma nova
ordem, mais humana – ainda que temporária e em transformação constante,
mas cuidando de ser sempre acolhedora de diversidades e responsável, prin-
cipalmente para com o outro, incluindo o ambiente.
FELICE, 2005a) e explicita como “no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individua-
lista, ou se desaparece” (SANTOS, 2000, p. 67) ou porque “[a] competição não é nem pode ser sadia
[...] [pois ela] se constitui na negação do outro” (MATURANA, 1998, p. 13). Como explicita Milton
Santos, nas condições atuais, “instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao ca-
nibalismo, a supressão da solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável
e para o exercício da democracia” (SANTOS, 2000, p. 54). Enquanto Humberto Maturana enfatiza
que nas emoções presentes em competições esportivas, por exemplo, não há convivência sadia, pois
a vitória de um implica na derrota de outro, ou seja, “sob o discurso que valoriza a competição como
um bem social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que constitui as ações
que negam o outro” (MATURANA, 1998, p. 13). E, de modo mais contundente e direto para o que
nos interessa, ao tratar do “atual sistema de educação” (no Chile, que, neste aspecto, não se distingue
do daqui ou de outros países que aderem à mentalidade predominante), Maturana diz que com tal
sistema se “configura um projeto nacional fundado na disputa e na negação mútua, sob o convite à
livre competição [nas transações comerciais, mas imediata e inconscientemente estendido às outras
esferas da vida]” (idem, p. 14). Retomando Milton Santos, “[a] competitividade, sugerida pela produ-
ção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos
espíritos que se instala. [...] [Trata-se] de uma violência estrutural [...] [e um de seus corolários é a]
perversidade sistêmica” (Santos, 2000, p. 37). Ele esclarece: “a causa essencial da perversidade sistê-
mica é a instituição [...] da competitividade como regra absoluta, uma competitividade que escorre
sobre todo o edifício social. O outro [...] aparece como um obstáculo à realização dos fins de cada um
e deve ser removido, por isso sendo considerado uma coisa” (idem, p. 60; grifo do autor). E sintetiza:
“[n]este mundo globalizado [...] [a] competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo
comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mun-
do, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos” (idem, p. 46). Por razões desse teor
me posiciono contra olimpíadas do saber ( JAFELICE, 2005a), como, por exemplo, as olimpíadas de
matemática, de física, de astronomia etc. Claro que pode haver algum eventual benefício – localizado
e específico, atendendo a certos fins, não necessariamente os melhores para todos – na realização de
tais olimpíadas. Contudo, conforme analisado mais em detalhe em Jafelice (2005a), estou convenci-
do de “que, uma vez pesados os prós e os contras desse tipo de competição, estes ganham de longe”.
Pela visão de uma geografia-sociologia, “[e]xclusão e dívida social aparecem como se fossem algo
fixo, imutável, indeclinável, quando, como qualquer outra ordem, pode ser substituída por uma or-
dem mais humana” (SANTOS, 2000, p. 76). Pelo enfoque de uma biologia-autopoiética, “[n]ós, seres
humanos, podemos fazer qualquer coisa que imaginamos, se respeitarmos as coerências estruturais
do domínio [de existência] no qual operamos. Mas não temos que fazer tudo o que imaginamos.
Podemos escolher, e é aí que nosso comportamento como seres humanos socialmente conscien-
tes importa” (MATURANA, 2001, p. 198). Como destaca Stephen Jay Gould, a seleção natural é
darwiniana [vide ainda Jablonka e Lamb (2010)], ao passo que a mudança cultural é lamarckiana
(GOULD, 2001, p. 301-309). Podemos aprender com nossos erros e corrigir rumos que, muitas ve-
zes sem querer, com a melhor das intenções, estávamos ajudando a desencaminhar. Isto anima a es-
perança de Milton Santos, Humberto Maturana e muitos outros de nós: podemos, sim, construir um
mundo melhor, em que prevaleçam solidariedade, equidade e paz. Por isto, “nossa grande tarefa, hoje,
[enquanto educadores, intelectuais e formadores de opinião,] é a elaboração de um novo discurso,
capaz de desmitificar a competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos
espíritos” (SANTOS, 2000, p. 55). As ações coerentes com tal novo discurso, nos vários domínios da
sociedade (educacional, político, social, das relações interpessoais, jornalístico, das universidades, das
sociedades científicas e acadêmicas em geral etc.), poderão, assim, contribuir para substituir o que aí
está por algo mais humanitário.
322
Abordagem Antropológica
1.2 Gerais
73 Geertz (2001, p. 179-190; vide seção Sugestões de leituras) nos oferece um ensaio estimulante sobre
esse tema.
74 Onde adoto, neste texto, a licença metafórica de chamar de “dialética” uma relação entre cultura e
ambiente – significando, como já expliquei, uma “interdependência dinâmica complexa”.
75 Prefiro o termo estado modificado de consciência, em vez da denominação comum de estado alterado
de consciência, porque embora ambos os termos possam ser sinônimos, “alteração” carrega em nosso
idioma uma forte conotação negativa, associada a perturbação, transtorno, exagero, algo indevido,
que deve ser evitado. Bem, esta evidentemente não é a conotação que deve ser relacionada às mudan-
ças perceptivas, cognitivas e outras decorrentes do uso culturalmente inserido de plantas psicoativas,
isto é, desde uma perspectiva antropológica.
323
Luiz Carlos Jafelice
324
Abordagem Antropológica
tipo “raios X”, onde “aparecem [...] o esqueleto e os órgãos internos do ani-
mal”, se referem a “uma manifestação artística própria dos povos caçadores,
porém a ideologia religiosa de que está impregnada pertence ao xamanismo.
[...] [pois] o xamã é o único que, graças a sua visão sobrenatural, é capaz de
‘ver seu próprio esqueleto’” (ELIADE, 1999a, p. 43-44; tradução minha). Ele
diz que essa é uma experiência mística do tipo que “ainda se cultiva no budis-
mo tibetano” (idem; p. 44; idem).
Para informações mais recentes sobre relações de seres humanos com
substâncias psicoativas de um ponto de vista antropológico, recomendo o ex-
celente livro organizado por Labate e Goulart (2005)76. A vertente médica,
criminalística e do jornalismo sensacionalista referente ao tema das plantas
psicoativas – onde todas são genericamente catalogadas no departamento de
“drogas”, no setor das ilegalidades – dificulta que as pessoas possam encarar
o assunto com a perspectiva adequada, a qual, pela própria história e aplica-
ção daquele uso, é a antropologia que pode fornecer. Assim, o conteúdo do
referido livro é bastante esclarecedor por desassociar os efeitos de tais plantas
apenas das mudanças sensoriais ou busca do “barato” – como o conserva-
dorismo inculto, senão hipócrita, quer enxergar – e também por ressaltar a
possibilidade de se obter conhecimento “objetivo” sobre “o que existe”, por
uma via introspectiva e considerada – ocidentalmente – subjetiva77. Estes úl-
timos resultados é que nos são mais pertinentes e relevantes para aprofundar
e explorar na presente discussão.
Neste sentido, muitas culturas alegam ter obtido conhecimento da
ação medicinal ou outras propriedades de muitas componentes da flora e fau-
na, porque seus xamãs, quando em êxtase ou transe, foram guiados por espíri-
tos ou mestres, antropomorfizados ou não, na escolha das espécies e na forma
e época78 correta de coleta, preparo, prescrição e aplicação do produto resul-
76 A complementação e atualização dos muitos ângulos envolvendo esse importante tema – ainda den-
tro do apropriado enfoque antropológico – podem ser obtidas em outro livro muito oportuno de
Labate et al. (2008). Neste sentido, merece destaque também o livro de Sangirardi Jr. (1989), abor-
dando culturas indígenas americanas em geral e choques e entrelaçamentos com a cultura e práticas
médicas ocidentais.
77 E, portanto, para a mentalidade ocidental prevalecente, essa é considerada uma via inútil para nos
dizer algo válido (no sentido de uma concepção ontológica realista) sobre o mundo (objetivo) e, sim,
apenas sobre quem vive o processo (subjetivo). É o Ocidente, como já enfatizei antes, e a via adotada,
que acredita na possibilidade de separação entre sujeito e objeto e que a realidade do mundo só pode
ser alcançada via interação e intervenção com o concreto do mundo (ainda que na forma de energia
física).
78 Notem o ingrediente época, frequente em prescrições fornecidas pelo conhecimento tradicional, obti-
325
Luiz Carlos Jafelice
326
Abordagem Antropológica
almejado. Notem que nas situações referidas no texto acima, existe controle, digamos assim, referen-
dário a posteriori. Com efeito, pois o que um mestre de outro plano de realidade – ou a própria planta,
enquanto mestre – revelou ao xamã em transe sobre as propriedades de uma planta, por exemplo,
quando seguido na vida cotidiana por terceiros daquela cultura, mediante prescrições ditadas pelos
seus xamãs, funciona! Isto é: o uso daquele produto, daquela forma, realiza o processo de cura ou
outro específico buscado naquela consulta. O mesmo se aplica ao conhecimento obtido pelos sábios
em meditação. Esse sucesso é incompreensível e, portanto, inaceitável dentro do sistema de conheci-
mento científico; é atribuído ao acaso, à ocultação de etapa empírica não relatada, à intervenção de
fatores externos fortuitos que escaparam à percepção dos envolvidos ou a charlatanismo puro. Enfim,
análises e conclusões simplistas – ou mesmo preconceituosas – e, no fundo, nada científicas em seus
procederes. Analogamente àquela revelação de um poder medicamentoso específico de uma planta,
é possível que muito do que consideramos realidade – processos, relações etc., na acepção cotidiana,
das representações construídas a partir dos sentidos e da capacidade mental humana, isto é, no nível
perceptivo-cognitivo que enxerga e acredita na separação entre sujeito e objeto, que estes estão su-
bordinados a uma causalidade elementar etc. – possa ser acessado via aquele tipo de introspecção.
Se a interdependência cósmica é total – entendendo-se por cósmico não apenas o que no Ocidente
nos habituamos a reconhecer como tal e, sim, inclusive envolvendo níveis e domínios não passíveis
de serem compreendidos pelo arcabouço neural de que dispomos e, portanto, não passíveis de serem
explicados nem inferidos plenamente apenas do ponto de vista físico convencional –, esta hipótese
epistêmica “heterodoxa” não é tão sem sentido; é possível que ao nos voltarmos para dentro de nós
mesmos encontremos respostas para o que consideramos ordinariamente estar “fora” de nós. Neste
caso, mesmo relações – “fatos” e “conexões” – que captamos em um plano ordinário de realidade
podem ser “vistas” e “compreendidas” desde outras perspectivas – embora, muito provavelmente,
não com os mesmos significados, relações e implicações que somos capazes de reconhecer e entender
em nosso estado habitual de consciência. Isto também aproximaria muitos relatos de teor mítico de
conteúdos com significado eventualmente inclusive ontológico, em uma acepção ampla do termo.
Assim, as verdades reveladas nos estados modificados de consciência mencionados não teriam os
limites intrassubjetivos que nossa visão cientificista ortodoxa lhes atribuiria e poderiam se aplicar
tanto aos entornos autóctones e topocêntricos mais funcionais – envolvendo segredos de plantas,
pessoas e outros animais –, como, igualmente, aos contextos cosmológicos (na sua acepção física),
transcendendo a estrutura espaço-temporal conhecida. Esta possibilidade de conhecer é por demais
extravagante e estranha para nossa forma ocidental de enxergar as coisas. Contudo, é preciso manter
em mente que esta é uma forma cultural apenas, não a forma privilegiada per se quanto à acessibili-
dade e conexão com a ontologia nem quanto à compreensão da mesma. Para expressar o indizível,
as linguagens metafórica e poética, comuns nas situações narradas no texto, são o recurso disponível
para tentar-se expressar em palavras algo inefável, frequente nos relatos de experiências numinosas. A
rigor, porém, não temos como saber agora se “interdependência cósmica total” (com aquele sentido
de totalidade mais amplo e de impossibilidade de acesso completo pela via científica convencional,
esboçado acima) existe. Se não existir nada disso, sempre resta a reivindicação do direito a possibili-
dades múltiplas de construção de conhecimento significativo por seres humanos. O mais importante,
do ponto de vista da presente abordagem pedagógica, é nos empenharmos em garantir a legitimação
e a convivência harmônica de pluralidades, inclusive epistemológicas. Este último ponto é de relevân-
cia central na criação de estratégias de descondicionamento e de desconstrução do pensamento único
e na construção de uma visão de mundo mais diversamente humana e justa.
327
Luiz Carlos Jafelice
82 Vide, neste sentido, por exemplo, a discussão histórica para tentar esclarecer se os cometas eram fenô-
menos meteorológicos ou não. Prevalecia a teoria aristotélica, de que eles eram de origem terrestre. A
questão só foi esclarecida no final do século XVI, por Tycho Brahe.
328
Abordagem Antropológica
83 Isto é, em gotículas de água suspensas (que compõem as nebulosidades) na atmosfera, como as que
flutuam pelo ar após uma chuva e podem contribuir para formar o habitual arco-íris, se as condições
forem propícias.
329
Luiz Carlos Jafelice
84 Neste sentido, nem outros fatores relevantes na relação “Terra-céu”, como a distância da Terra ao Sol
– que pode permitir ou não a existência de formas complexas de vida –, ou a velocidade de rotação da
Terra em torno de si mesma – que determina a duração média (ao longo do ano) da variação claro-
escuro do dia (com todas as implicações cronobiológicas e vitais daí decorrentes) –, entre outros, não
estão contemplados no Quadro Interdependências.
330
Abordagem Antropológica
Gostaria, então, de dirigir o olhar dos leitores para onde está a novida-
de. Sugiro que leiam e releiam esse Quadro, reflitam sobre o assunto, mas não
se prendam à razão, divaguem também, livremente, com as associações que
surgirem; tentem perceber a riqueza e a complexidade das relações “céu-terra”.
Recomendo, contudo, que não se detenham aí, nem se deixem dominar pelo
aspecto científico natural que prevalece no mesmo. Eludam a conceituação
automática que surge, com aquelas associações instantâneas e pensamentos
que transmitem conhecimento (e segurança) acima de qualquer suspeita (do
tipo: agora sabemos com certeza que a Lua é o satélite natural da Terra, o Sol
é uma estrela, a estrela cadente é um meteorito em queda, inflamado pelo
atrito com a atmosfera etc.) – para não interporem uma barreira intelectual
entre vocês e o Quadro, e não olharem para ele sabendo já de tudo e vendo “os
objetos”, “os fenômenos” e “as relações” lá arrolados como sempre os viram,
velhos conhecidos, talvez em arranjo incomum, mas nada diferente disso, en-
tre outras interferências intelectivas. Evitem também o reducionismo de pen-
samentos que vemos com frequência em matérias de divulgação científica, na
linha: o “todo” está interligado, como foi “provado” pela física, astronomia,
biologia, e tudo e todos fazemos parte de uma unidade – materialmente falan-
do85. Sim, porque todas essas explanações, por mais que acenem – de longe,
é claro – com possibilidades de enlevos outros, seu aterramento umbilical à
materialidade e ao cientificismo, com suas leis universais e invioláveis (ainda
que probabilisticamente, nos casos de sistemas complexos ou quânticos), as
331
Luiz Carlos Jafelice
332
Abordagem Antropológica
86 Nas medidas de tempo, 60 segundos formam um minuto e 60 minutos formam uma hora; nas de ân-
gulos, 60 segundos (de arco) formam um minuto (de arco) e 60 minutos (de arco) formam um grau.
87 Essa “transmissão”, na verdade, tem muitos pontos em aberto ainda. Otto Neugebauer, conhecido
historiador da astronomia, que trabalhou diretamente com registros cuneiformes da astronomia ba-
bilônica, considera que “[p]ara a maioria dos historiadores modernos, o problema da transmissão
de conhecimento astronômico das escolas dos templos em Uruk e na Babilônia para homens como
Hiparco ou Apolônio permanece como a maior questão não resolvida” (NEUGEBAUER, 1983, p.
163; tradução minha [reprodução do artigo A sobrevivência de métodos babilônicos nas ciências exatas
da Antiguidade e Idade Média, de 1963; idem para este título]).
88 Onde as exceções mais notórias são as da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América.
89 Desde nossa perspectiva topocêntrica, convém relembrar mais uma vez – pois aquela é a única pela
qual podemos vivenciar os fenômenos celestes. Isto é, a regularidade (aceitável como tal para as es-
calas humanas de existência) dos movimentos da Terra etc. é vivida, por nós, enquanto regularidade
determinada pelo céu.
90 Por exemplo, Neugebauer (1983, p. 239-245; originalmente 1947) mostra que os babilônicos, em
uma fase inicial de sua astronomia (cerca de 800 a.C.), já usavam um relógio de água (clepsidra) para
medir o tempo.
333
Quadro Interdependências
334
Conexões céu-terra mais notáveis e algumas implicações nas relações natureza-cultura
CÉU MEDIAÇÃO TERRA
ENTIDADE/PROCESSO FORMA/ETAPA CONSEQUÊNCIA/IMPLICAÇÃO
Luiz Carlos Jafelice
ENTRELAÇADAS
NATUREZA CULTURA
“DIALETICAMENTE”
Ciclos Lua ⇔ Ciclos Sol/Estrelas ⇔ Ciclos planetas ⇒ Regularid. observ. (mês/ano/etc.) ⇒ Ciclos: lum./sazonali//; ⇒ Calend./Arquit./Festiv.
Dir.; med. âng./tempo; incid. lum. orient.; âng. incid. luz Sistema sexagesimal
Cometas/Meteoritos/Asteroides Composto de água (cometa) ⇒ Água na Terra Relatos míticos (?)
(incluindo ainda os eventos dos meteoros isolados e os mais Contém matéria orgânica ⇒ Origem da vida (?) Conhec. via estados
conspícuos, das chuvas de meteoros) ⇒ Contém vírus (?) ⇒ Especiação (?) ⇒ modif. de consc. (?)
Tem grande energia cinética ⇒ Destruição/Extinção Pinturas rupestres (?)
Contém ferro (meteorito; frag. aster.) Fonte de matéria-prima “Metalurgia” arcaica
⇒
Explosões de Supernovas ⇒ Produz radiação gama ⇒ Ext./Mut. T. primit. (?) Rel. mít./Impl. hist. (?)
Produz raios cósmicos ⇒ Especiação (?) Pinturas rupestres (?)
densidades, presentes principal/ disco da V. Láctea → Qto. + ⇒ anos) na incid. luz solar e na taxa de ⇒ Explosões espécies
densa a nuv., + notórios os efeitos raios cósmicos sobre a Terra (?) (?)
Precessão da Terra → Variação da direção do eixo de rot. ⇒ Alterna meses de verão (e inverno) ⇒ (?)
Terra em rel. plano eclíptica (órbita); período: 26.000 anos nos hemisf. a cada 13.000 anos
Condições Físico-Químicas (pressão; temperatura; abund. Condições físico-químicas propícias Suprimento de Matéria “lá” ≠ Matéria
química; radiação; grau de ionização) do Meio Interestelar para a síntese de moléculas moléculas necessárias “aqui”
(em particular – mas não apenas – em superfícies de grãos de ⇒ orgânicas complexas ⇒ para originar a vida (?) ⇒
poeira interestelar nas proximidades de certas estrelas) Narrativas míticas (?)
Lua Estabili// dir. eixo rot. Terra (?) ⇒ Compl. formas vida Pens. analógico e
⇒ Causa marés ⇒ Regula org. costeiros ⇒ simbólico humano →
Tem “fases” (qdo. vista da Terra) ⇒ Var. rítmica aparência sucesso da espécie.
Ciclo metônico (19 anos) ⇒ Repet. seq. fase/dia Calend. igreja catól.
Ciclo Solar → Variação na atividade solar (manifesta na Intensificação: de incidência de raios Correlação c/ eventuais Divindades celestes se
mudança do número de manchas e na produção de ⇒ cósmicos, do fenômeno das auroras ⇒ variabili// de período ⇒ manifestando (?)
tempestades magnéticas, que afetam a fotosfera, cromosfera e e da interação entre clima espacial e bem + longo (?) → Outro reforço para
coroa solares) cujo período é de 22 anos clima terrestre Glaciações (?) adoração do Sol (?)
Eclipses: da Lua e do Sol. Destacando a peculiari// notável: a Obliteração da luz do astro Do Sol: mudanças: Relatos míticos
rel. entre os tamanhos da Lua e do Sol é “compensada” pela ⇒ temporaria/ ocultado/esmaecido ⇒ comportam. animais, ⇒ Pensam. analógico
rel. inversa exata entre as distâncias desses astros à Terra → Fenômeno + marcante ainda (mas − reação das plantas Assoc. eventos histór.
possibilita a ocorrência de eclipses do Sol frequente) quando o eclipse é solar Da Lua: luminos. not. Pinturas rupestres (?)
Alinhamento de astros (planetas visíveis a olho nu na ⇒ Regularid. observáveis c/ durações ⇒ (?) ⇒ Pens. filosóf. indiano
antiguidade, Lua e Sol) e outros ciclos de teor astronômico variáveis, algumas muito longas Concep. cosmológica
Sete astros brilhantes (seis deles principal/ à noite) e errantes ⇒ Sucessão de eventos: var. lumin.; ⇒ (?) ⇒ Enredos/Divind. cel.
(mov. em rel. às estrelas de fundo) visíveis a olho nu eclipses; conjunções planetárias etc. Nomeiam dias semana
Enriquece o meio interestelar com material orgânico → Colisão de corpo celeste com a Terra Matéria Orgânica Complexa/Vida Primitiva (unicelular
eventual uso posterior em ambientes planetários outros, ou ⇐ → espalha matéria orgânica/vida ⇐ procariote) [→ Atenção: esta última linha é a única em que as
que tais, favoráveis para dar continuidade/originar a vida (?) primitiva no espaço sideral (?) implicações são, em princípio, da “terra” para o “céu”.]
Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
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Abordagem Antropológica
“ano novo”, pois um novo início se prenunciava após o “caos” e os preparativos e rituais vivenciados
nesses dias de interregno. Tudo isto, naturalmente, dentro de uma concepção cíclica do tempo (e.g.,
ELIADE, 1992a; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras). Quando esse ajuste dos
dias “a mais” não era feito anualmente, após alguns anos (5 a 7 anos, em geral) era necessário fazer-se
a inserção de um “mês” inteiro (muitas vezes com menos ou mais que 30 dias) para que os calendários
solar e lunar ficassem outra vez relativamente mais ajustados, conforme Neugebauer relata sobre o
caso babilônico no referido texto citado.
93 O que não deve ser confundido com o fato de que o calendário babilônico básico era lunar, com
“meses de vinte e nove e trinta dias mudando muito irregularmente, combinado com uma complicada
intercalação cíclica [de um mês adicional]” (NEUGEBAUER, 1983 [1942], p. 196; tradução minha).
O povo que adota um calendário com “doze meses de trinta dias cada, cinco dias adicionais ao final e
nenhuma intercalação de espécie alguma” (ibidem; idem) é o egípcio. Este calendário é o que é manti-
do provavelmente durante um dos períodos mais longos da história: criado cerca de 3.000 a.C., é ado-
tado pelos astrônomos helenísticos e usado não apenas por Ptolomeu (séc. II d.C.) na composição
do Almagesto, como por Copérnico na elaboração do Sobre as Revoluções das Esferas Celestes (séc. XVI
d.C.) (ibidem). É importante destacar que a complexidade desses conceitos calendáricos, tanto dos
egípcios como dos babilônicos, “não deve ser considerada como uma luta de dois ou três sistemas ca-
lendáricos competindo entre si no sentido moderno da palavra, mas representa a coexistência pacífica
de diferentes métodos de definir momentos de tempo e intervalos de tempo de diferentes modos em
diferentes ocasiões” (idem, p. 202; idem). A visão contemporânea, forçante de um pensamento único,
que obriga a adoção de padrões unificados – senão supostamente surgirão conflitos –, de cujo poder
a ciência atual é umas das fontes (SANTOS, 2000), como tenho enfatizado em outras partes do texto,
nos impede de reconhecer a possibilidade da convivência pacífica autêntica de pluralidades. Nessa
linha, Neugebauer considera um anacronismo a terminologia moderna que fala em “calendários luni-
solares” antigos. Ele ressalta que “alguns elementos da vida antiga [na Babilônia e em outros lugares]
eram regulados pelas estações; outros, pela Lua (e no Egito, também pelo [pelas cheias do rio] Nilo
e [pela estrela] Sotis)” (idem, p. 203; idem). Todos esses elementos mantinham sua independência e
conviviam sem objeções. Temos bastante o que recuperar e aprender daquilo. [Observação técnica:
Sotis era o nome dado pelos egípcios para a estrela Sírius, a mais brilhante do céu (e também a mais
brilhante da constelação de Cão Maior) (BOCZKO, 1984, p. 13).]
94 Notem que esse deslocamento diário do Sol (que é aparente, pois se deve ao movimento da Terra em
torno dele; mas, já insisti: nosso sentido para esses fenômenos é topocêntrico) é calculado a partir
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Luiz Carlos Jafelice
de observações noturnas referentes àquele “dia”, pois, durante o dia (isto é, durante a parte clara do
dia), o fulgor do Sol não permite que se enxerguem estrelas, muito menos aquelas que compõem a
constelação que está imediatamente por trás dele. Porém, recorrendo-se a outras estrelas de referên-
cia pertencentes (ou não, necessariamente) a uma constelação oposta no céu é possível obter-se o
resultado comentado no texto. Por exemplo, se o Sol está “sobre” a constelação de Câncer, então sua
antagônica, a de Capricórnio, poderá ser visível à noite – porém, é claro, não se depende dela para
obter o deslocamento diário do Sol em relação à constelação sobre a qual ele está; a sequência e o
distanciamento (angular) entre as constelações são conhecidos; então, qualquer constelação visível
(à noite) serve, em princípio, para se acompanhar aquele deslocamento. É verdade que em casos ex-
cepcionais, constelações inteiras podem ser vistas de dia, mas estas são situações raras (em termos da
extensão de território abrangido e da duração), que é quando ocorre um eclipse solar total. Nestes
casos, inclusive a constelação contra a qual o Sol se posiciona – e outras próximas a ela – poderá ser
visível nos minutos em que durar a totalidade (e só para quem estiver na região onde esta ocorrer).
[Observação técnica: aqui usei constelação como sinônimo de signo – por simplicidade e porque não
utilizo essas informações em detalhe nesta discussão. Contudo, as constelações zodiacais têm tama-
nhos angulares diferentes “e o Sol pode permanecer tempos diferentes em cada uma”, ao passo que
os signos zodiacais “são 12 arcos de circunferência, com 30º cada, exatamente” (BOCZKO, 1984, p.
126), e, portanto, é em relação a estes que o Sol avança cerca de 1/30 do mesmo em cada dia.]
95 A ordem das entradas no Quadro é aleatória; ela foi definida antes por necessidades de ajuste de
diagramação.
338
Abordagem Antropológica
96 Notem bem: não é o sentido de giro, objetivamente falando, que muda. Um planeta não muda seu
sentido de giro ao longo de sua existência [a não ser, talvez (teoricamente não é impossível), que uma
colisão extraordinária – ou uma série de fortes colisões em um mesmo sentido –, com direção e inten-
sidade apropriadas, mas não a ponto de destruí-lo, o atingisse]. Aquilo a que me refiro é o seguinte: se
Terra desse uma “cambalhota” dessas, por exemplo de cerca de 180º em relação à atual direção de seu
eixo de rotação, ela continuaria, como o faz agora, a girar de Oeste para Leste; porém, na representação
convencionada por nossa cultura, na qual o pólo norte “está para cima”, após aquela “cambalhota”
nosso planeta “estaria” com o pólo sul “para cima”.
339
Luiz Carlos Jafelice
97 Aqui é oportuno fazer um relato particular. Certa ocasião assisti o seminário de um astrônomo pro-
fissional no qual ele passou o tempo todo enfatizando que o produto (molecular) resultante em um
certo ambiente interestelar não poderia ter sido sintetizado aqui na Terra (devido às condições físico-
químicas aqui presentes). (É pertinente mencionar que ele tinha envolvimento também com divulga-
ção científica em astronomia.) Quando o interpelei, ao final, dizendo que, então, havia uma diferença
entre os materiais nos dois ambientes (terrestre e não-terrestre), ele foi categórico e afirmou que eram
exatamente idênticos (se referindo, é claro, aos elementos químicos e propriedades que constituíam
aquele produto). Ou seja, ele não tinha nenhuma consciência que toda sua argumentação estava pro-
vando (cientificamente!) a diferença essencial entre o que é produzido “no céu” e aquilo que pode ser
obtido “na Terra”. Não diferença nos constituintes, não na matéria, fisicamente falando, ou nas ditas
leis universais que aquela supostamente obedece, mas diferença na possibilidade de criação natural
(sem intervenção humana) e consequentes diferenças estrutural e funcional totais! Este exemplo é
típico entre cientistas; é exemplo de um olhar que se enrijece, se limita e se prende à reprodução
automática de um discurso que, se imagina, trará a iluminação da razão e será destruidor de dogmas.
340
Abordagem Antropológica
contendo, por sua vez, muitas dezenas de átomos – foram identificadas no es-
paço nas últimas décadas. Já, a hipótese da panspermia, não tem confirmação,
nem refutação, científica comprovada ainda. Assim, devido àquele respaldo
observacional, a hipótese da agregação sideral de ingredientes vitais via cor-
pos celestes torna-se mais plausível – ou mais difícil de se descartar – do que
a hipótese mais radical de que a vida como tal foi criada “lá fora”98.
Ainda na linha de hipóteses heterodoxas, Hoyle e Wikramasinghe
também fizeram trabalhos mostrando o que consideram evidências de
que os cometas podem ter tido (e continuar tendo) papel fundamental
no desencadeamento de epidemias viróticas (gripes e que tais) entre nós
(HOYLE, 1993, p. 130-137). Segundo esses autores, cometas transportam
não apenas material orgânico, mas também vírus99. Assim, os cometas,
ao adentrarem a atmosfera terrestre, ou suas caudas100, teriam sido os
responsáveis pela disseminação de muitos vírus ao longo da história do
planeta. Com isto, esses corpos celestes atuariam como agentes de mutação
Aquele astrônomo não percebia que aquilo que ele relatava com tanta insistência, em outro contex-
to ou época, referendaria exatamente uma visão de mundo aristotélica. Afinal, ele estava mostrando
evidências empíricas de que, de fato, há coisas que só podem ser naturalmente produzidas no mundo
supralunar! Portanto, mostrando que “lá” as coisas são essencialmente diferentes de “aqui”. Contudo,
ele não estava preparado para uma discussão como esta, por ter incorporado a mentalidade iluminista
e não conceber outras formas – igualmente válidas e legítimas – de se enxergar e se pensar sobre as
coisas; a redução à materialidade e fisicalismo básicos embotou suas outras potencialidades, inclusive
cognitivas, e o transformou em um ideologizador, mesmo que involuntariamente – mas cujas conse-
quências deletérias de seu discurso são praticamente as mesmas das de um ato consciente naquela
direção, ou pior ainda, pois agravadas por ele ter o status de cientista.
98 Respaldos indiretos a um eventual papel central da contribuição extraterrestre para a origem da vida
estão sendo encontrados atualmente, através do recente crescimento da pesquisa em exobiologia
(também chamada astrobiologia, área que estuda a possibilidade de existência de vida em ambientes
não terrestres). Conforme relata, por exemplo, o astrônomo Amâncio Friaça: “Os grandes depositá-
rios de gelo no Universo são os cometas e a água é o principal componente dos cometas e dos seres
vivos. Na verdade, as proporções dos elementos químicos em cometas e nos seres vivos, considerando
o hidrogênio, oxigênio, carbono e nitrogênio, são semelhantes.” (FRIAÇA, 2007). Ele prossegue des-
tacando que a proporção relativa desses elementos nos cometas e nos seres vivos é a mesma que a do
cosmo em geral, mas não é a mesma que a da crosta terrestre, a qual “apresenta um déficit de carbono
e um déficit ainda maior de nitrogênio e hidrogênio.” (idem). Ele conclui com a instigante questão:
“Seríamos então antes filhos do Cosmos do que da Terra?” (idem).
99 São uma forma de vida. Correspondem, portanto, a um nível bastante complexo de organização mo-
lecular, embora bem mais simples que as células (como as bactérias, por exemplo) (MARGULIS e
SCHWARTZ, 2001, p. 15).
100 As caudas dos cometas são partes dos mesmos, desprendidas quando da interação com o Sol. Elas po-
dem interagir com a atmosfera terrestre, mesmo que o cometa que a gera passe muito longe da Terra;
basta que o rastro deixado pela cauda cruze a órbita da Terra e esta o atravesse em seu movimento
ao redor do Sol. (Isto, de fato, é a origem das chuvas regulares de meteoros que podemos apreciar
atualmente na Terra.)
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Luiz Carlos Jafelice
342
Abordagem Antropológica
fato de sua teoria cosmológica do universo estacionário ter perdido a vez para
a da grande explosão (termo este, aliás, ironicamente cunhado pelo próprio
Hoyle), não significa que aquelas outras propostas suas não sejam científicas
e muito menos prova que elas estão enganadas. Hoyle teve reputação muito
alta na comunidade científica internacional, por mérito, por causa da qua-
lidade e rigor de suas contribuições. Para o que nos interessa aqui, muitos
dos argumentos dele nunca foram estudados a fundo desde uma perspectiva
autenticamente científica; foram antes refutados por não se adequarem às
correntes principais (canônicas) de pesquisa na época (e ainda prevalecen-
tes) – comportamento que os discursos dizem que não é próprio dos cien-
tistas, mas a prática reiteradamente comprova que é (e.g., LATOUR, 2000;
COLLINS e PINCH, 2003; FEYERABEND, 2006; 2007). A proposta pe-
dagógica apresentada neste capítulo não é afetada em nada se as ideias de
Hoyle e colaboradores procedem ou não. Como, porém, esta proposta pede
abertura e arejamento do pensamento, preferi destacar estes pontos acima,
fundamentados em estudos de caráter sociológico, ainda incomuns em edu-
cação científica ( JAFELICE, 2008a; LOPES e JAFELICE, 2009; JAFELICE,
2009b; LOPES, 2010).
Neste parágrafo divagarei. Como a proposta de correlação entre pas-
sagens de cometas e surtos epidêmicos é uma das que ainda não foi, a rigor,
estudada exaustivamente do ponto de vista científico (por outros que não os
próprios proponentes da mesma e alguns cientistas minoritários isolados),
e como, em princípio, ela poderia ter algum fundamento, isto nos estimula a
conjecturar implicações culturais evidentes e, adicionando outras evidências,
generalizar ainda mais tais implicações. Com efeito, pode ser que o medo que
as pessoas, de diferentes culturas, ao longo da história da humanidade, tive-
ram com respeito às “irregularidades” no céu – como a passagem de cometas,
queda de meteoritos, aparecimento de estrela supernova –, tivessem alguma
base inclusive factual (e não se devessem apenas a construções culturais fruto
da ignorância, a crendices ou rusticidades do poder de observação daquelas
pessoas, como querem os discursos de plantão, ainda inspirados no pensa-
mento iluminista). Afinal, mesmo do ponto de vista científico estrito, aqui
destacado também em suas vertentes não em moda, todas essas “irregulari-
dades” podem trazer algum malefício concreto. Este pode ser de dimensões
gigantescas, associado a devastações ambientais e mortes – como os casos
conhecidos de Tunguska, na Rússia, em junho de 1908, e no Brasil, na re-
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Luiz Carlos Jafelice
102 Maiores informações sobre esses eventos são fornecidas pelo astrônomo Ramiro de La Reza (DE LA
REZA, 1997) e, por exemplo, no sítio Astromanual (ASTROMANUAL, 2009).
103 Isto é, neste caso (história da astronomia) uma visão eurocentrada, polarizada pela cultura ociden-
tal, enfim. Que é, por exemplo, a apresentada por Jean-Pierre Verdet (VERDET, 1992). No capítulo
Desordem Cósmica (p. 72-97; tradução minha para o nome do capítulo) ele fornece exemplos interes-
santes de várias culturas e suas associações com cometas, meteoros, meteoritos e raios de tempesta-
des, com muitas ilustrações. Contudo, ele ainda apresenta a visão etnocentrada que critico, se prende
a uma exposição cientificista convencional, apesar de tratar de temas da cultura, e reiteradamente
tenta ser gracioso, no sentido de desmerecer os relatos ou crenças que ele comenta. Por causa desses
vieses, muitas vezes sua exposição fica parcial. Por exemplo, ele não enfatiza, como seria justo, que
muitas daquelas associações que as pessoas faziam eram, com frequência, baseadas em fatos, isto é,
em consequências observáveis diretamente por quem as fez e depois as transmitiu, nas formas oral ou
impressa.
104 É preciso manter-se a perspectiva antropológica. Cometas e “estrelas cadentes” são objetos ou fenô-
menos “celestes”. Ou seja, embora hoje sabe-se que cometas estão fora da Terra e estrelas cadentes
(meteoros) são rastros de meteoritos produzidos pelo atrito destes com a atmosfera terrestre, senso-
rialmente, em uma primeira aproximação visual quanto à forma, genericamente falando (não quanto
ao tamanho, coloração ou duração), eles são indistinguíveis um do outro. Ou ainda: desde um ponto
de vista topocêntrico elementar, ou no que se refere às possibilidades de interação e intervenção hu-
mana sobre os mesmos, ambos os fenômenos são celestes.
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Abordagem Antropológica
105 Notem: o temor histórico das pessoas a esses corpos celestes não depende de a hipótese de eles de-
sencadearem epidemias ser procedente; se proceder, ela apenas reforça a fundamentação do referido
temor.
106 Como comumente encontramos em publicações destinadas a enaltecer a ciência – mas cujas consi-
derações, tanto de caráter antropológico ou cultural, quanto sobre a natureza do conhecimento cien-
tífico, são muito pobres, para não dizer ausentes.
107 Que é o que se repete agora, na última década, na nova área chamada astrobiologia. Até há pouco, a
grande maioria dos astrônomos nunca viu com bons olhos essas ânsias por busca de vida (inteligen-
te ou não) extraterrestre (a minoria de adeptos era vista de esguelha). Agora, interessar-se por isto
revelou-se um acesso a fontes de apoio financeiro na construção de telescópios, equipamentos e sa-
télites artificiais de uso astronômico, para (também, mas não só, a) busca de “planetas com vida” (ou
“habitáveis”) – como ouvi, em confissão em palestra pública recente, de um astrônomo de destaque
na comunidade, que atua em pesquisa e também em divulgação científica em astronomia. Ele, sem
pudor, reconheceu que esse interesse recente naquele assunto era um exemplo de oportunismo. Ora,
isto está longe da imagem usualmente vendida, sobre as motivações nobres da ciência e dos cientistas,
com interesse na busca da verdade acima de tudo etc. Mais parece ato de lobby movido por interesse
econômico privado. Esta metáfora se aplica, infelizmente. O pensamento único, com sua mentalidade
economicista, sua “obsessão pelo crescimento infinito e ininterrupto”, se apossou de todos os setores
da vida social (PENTEADO, 2008). O relato acima é só mais um exemplo, mas representativo, que
realça o quão humana é a ciência, inclusive naquilo que nós temos de equivocado, de desvirtuoso e de
deplorável. Esse relato também evidencia a urgência de se incluir sociologia da ciência na formação do
cidadão.
108 Para, inadvertidamente, fomentar-se novas superstições. Na minha visão, a paranoia de corpos que
vão colidir com a Terra, reações de seitas da nova era etc., são, em grande parte, subprodutos diretos
da cientificialoidização da mída e das pessoas, insufladas por uma divulgação científica ufanista, pro-
selitista e excitadora da curiosidade superficial que Bachelard e Wittgenstein, entre outros, criticam
(como exponho na última nota de rodapé do apêndice 5). Paradoxalmente, ao se enaltecer a solução
de tudo via ciência – a qual, dos pontos de vista conceitual, filosófico e sociológico, muito poucos
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Luiz Carlos Jafelice
entendem, mesmo dentre aqueles com formação universitária em ciências (vide, e.g., MARTINS,
1999) – abrem-se os espaços para superstições de todo o tipo, agora fomentadas e ancoradas em uma
suposta terra firme científica. Nestas épocas, em que a propaganda é a alma do negócio, até esse tipo
de mentalidade, que não supera concepções elementares infundadas e ingênuas, é tolerada; afinal, ela
ajuda a manter a crença e a confiança (e os apoios financeiros!) na ciência.
109 Em outros contextos – como no da política, por exemplo – tal comportamento recebe denominações
não muito louváveis. A sociologia da ciência também explica bem esse tipo de comportamento por
parte dos cientistas.
110 Um exemplo do que Lopes (2010, p. 149) diz: “A ciência procede como se tudo o que veio antes já es-
tivesse presente no seu intento e que tudo que ela traz são coisas adicionais, para complementar [...]”.
Com relação ao texto acima, atenção ainda: não foram apenas novas evidências observacionais, frutos
de melhores telescópios, modernos recursos computacionais e equipamentos – como os argumentos
em defesa da ciência (que aproveitam para exaltar também a tecnologia) costumam levantar –, que
ocasionaram tamanha mudança de postura, nem isto significa uma ciência mais aberta e flexível. Esse
episódio só exemplifica uma situação típica na história da ciência, onde esta é reescrita de tempos em
tempos para atender suas próprias conveniências ou necessidades (KUHN, 1996; COLLINS e PIN-
CH, 2003; FEYERABEND, 2006). Um problema central continua sendo que este tipo de compor-
tamento não é trabalhado com a crítica e profundidade necessárias no ensino de ciências. Se isto não
mudar, não estaremos educando cientificamente, nem formando “cidadãos críticos e opinantes”, mas,
sim, estaremos apenas doutrinando um séquito de “prosélitos iludidos e devotos” ( JAFELICE, 2002,
p. 6; vide também, nessa linha de argumentação, JAFELICE, 2008a; LOPES e JAFELICE, 2009; JA-
FELICE, 2009b; e LOPES, 2010). Aquele comportamento, repito, não é esporádico, nem se restringe
a cientistas isolados; ele é o habitual, típico; é como a ciência real, existente, é feita (KUHN, 1996).
Como diz Latour: “[...] poucas pessoas de fora já penetraram nas atividades internas da ciência e da
tecnologia e depois saíram para explicar, a quem continua do lado de fora, de que modo tudo aquilo
funciona” (LATOUR, 2000, p. 33); e Collins e Pinch reforçam: “o que realmente acontece [no fazer
científico real] nunca foi dito fora de um pequeno círculo” (COLLINS e PINCH, 2003, p. 21).
111 Eventualmente fragmentos de asteroides. Não é relevante, para estes fins, a distinção entre esses
corpos.
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Abordagem Antropológica
112 Cf. ELIADE, 1987, p. 17-18, e referências citadas na Nota A (Meteoritos, Pedras de Raio, Primórdios da
Metalurgia), p. 145-146.
113 Ainda sobre este tema, cabe observar que são denominadas “pedras de raio” – e no Nordeste, “pedras
de corisco” – objetos que, na verdade, são artefatos líticos produzidos por culturas pré-históricas (ou
pré-descobrimento, nos casos do Brasil, Américas, Austrália etc.). Aqueles objetos de pedra, com
simetria e forma tão bem moldadas, foram atribuídos, popularmente, ao fruto da queda de um raio na
terra – portanto, resultado de uma relação entre céu e terra. Nestes casos, esta atribuição não se aplica;
naqueles discutidos antes, porém, a conexão celeste procede.
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Luiz Carlos Jafelice
114 Para referências sobre simbolismos associados ao ferro, vide Nota B (Mitologia do Ferro) em Eliade
(1987), p. 146. Há concepções cosmológicas (no sentido antropológico do termo) também associa-
das aos minerais e metais. Embora esteja além do escopo deste apêndice abordá-las, elas merecem
ao menos algum comentário: são aquelas cosmologias que “reforçam a correspondência homem-
universo [...] Daí resulta, por um lado, a ‘sexualização’ do reino vegetal e mineral e, de um modo ge-
ral, das ferramentas e dos objetos do mundo circundante. [...] [decorrendo] as múltiplas imagens do
ventre da Terra, da mina associada ao útero e dos minerais aos embriões [...]” (ELIADE, 1987, p. 27).
No capítulo 3 (O mundo sexualizado) de Eliade (idem, p. 29-35), o autor se aprofunda nos registros
históricos sobre essas concepções. Ele nos esclarece que “[q]uando falamos da ‘sexualização’ do mun-
do vegetal [...] não se trata de fenómenos reais de fertilização das plantas, mas de uma classificação
morfológica ‘qualitativa’, que é o resultado e a expressão de uma experiência de simpatia mística com
o mundo. É a ideia da Vida que, projectada no Cosmos, o ‘sexualiza’. O que está em causa não são ob-
servações [...] ‘científicas’, mas uma valorização do mundo circundante em termos de Vida, portanto
de destino antropocósmico, incluindo a sexualidade, a fecundidade, a morte e o renascimento” (idem,
p. 29). E prossegue: “[t]rata-se, portanto, de uma concepção geral da realidade cósmica em termos de
Vida, e consequentemente sexualizada, sendo a sexualidade um sinal particular de toda a realidade
viva. A partir de um certo nível cultural, o mundo inteiro, tanto o mundo ‘natural’ como o dos objetos
e ferramentas fabricados pelo homem, apresenta-se efectivamente sexualizado” (idem, p. 31; grifos
do autor). Enfim, “[c]omo seria de esperar, o simbolismo sexual e ginecológico mais transparente é
encontrado nas imagens da Terra-Mãe” (idem, p. 33). Muitas culturas ao longo da história da huma-
nidade – entre elas as culturas indígenas brasileiras – interpretam o surgimento de tudo que existe,
inclusive os seres humanos, como fruto de um casamento sagrado entre o Céu e a Terra. Este tipo de
concepção em alguns dos povos indígenas brasileiros é reapresentada para um público mais amplo,
com algumas fotos e ilustrações, por Leonardo Boff, onde vários mitos cosmogônicos (sobre a origem
das estrelas, de alguns alimentos, dos animais, das pessoas, da morte, do dia, das cores dos peixes etc.)
são recontados (BOFF, 2001). Na segunda parte do livro há informações sobre contribuições dos
indígenas ao Brasil e ao mundo, com dados sobre povos nativos, línguas e organizações indígenas
brasileiros, com comentários e exemplos sobre sua “sabedoria ancestral [e] integração sinfônica com
a natureza”, sua presença no cotidiano da casa, na culinária, na medicina e no imaginário popular,
sobre “[a] liberdade [como] a essência da vida indígena” e “[a] autoridade [enquanto] o poder com
generosidade”, dentre outros dados e discussões relevantes (idem, p. 126-159). Vejam na seção Biblio-
grafia adicional, deste capítulo, várias outras referências importantes, em particular as muitas escritas
e ilustradas pelos próprios índios, de diferentes culturas brasileiras, sobre suas cosmologias, suas mi-
tologias, visões de mundo, concepções de educação e relações com a natureza e seus diversos planos
de existência, interiores e exteriores.
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Abordagem Antropológica
115 E, portanto, o sistema solar também realiza, pois este está gravitacionalmente preso ao Sol e o segue
em seus movimentos de deslocamento pela Via Láctea.
116 Pois nuvens moleculares, em geral, e as mais densas, em particular, não estão regularmente distribuí-
das ao longo do disco galáctico, portanto tampouco ao longo do percurso oscilatório do Sol em torno
daquele.
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117 Há bilhões de anos, antes que as cianobactérias transformassem a história do planeta, aumentando
em mais de 200 vezes a concentração de oxigênio na atmosfera terrestre (e este tende a bloquear a
radiação gama), raios gama vindos do espaço podiam atingir a superfície terrestre no nível do mar
(MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 51).
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Abordagem Antropológica
118 Como seria de se esperar, uma diferença menor atende às respectivas realidades regionais: o que a
moça passa no rosto de seu visitante noturno são cinzas, na Sibéria, e é jerimum (abóbora), no Brasil.
Em algumas versões há uma diferença maior na relação de parentesco da moça com o visitante, mas
sendo sempre parentes próximos.
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119 Lembrando que naquela época a Terra não era considerada um planeta e que os astros visíveis a olho
nu que pareciam ter vida própria e tinham frequência regular nos céus eram: o Sol, a Lua e os cinco
planetas – Vênus, Júpiter, Saturno, Marte e Mercúrio. Relembrando também que estes são, enfim, os
sete astros que nomeiam os dias da semana em muitas culturas.
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Abordagem Antropológica
explosão, é o intervalo de tempo que resultaria até que “ocorresse [de novo]
uma grande conjunção (Mahà-yuga)” (ibidem). Martins diz que “[a] partir
dos dados existentes sobre movimentos dos planetas, foram feitos cálculos
que indicaram enormes durações, semelhantes às indicadas no Código de
Manu” (ibidem), e cogita ter sido esta a fonte daquela duração cosmológica.
Os trabalhos de Subhash Kak também salientam o entrelaçamento
central do céu, da terra e da vida encontrado na tradição indiana, conforme
expresso em seus textos sagrados. O autor menciona que “[o]s livros védicos
estão [escritos] em um idioma esotérico, onde as conexões entre os mundos
exterior e interior são esboçadas” (KAK 1996; tradução minha). Veda signifi-
ca conhecimento, em sânscrito, e o Rig Veda, que fala de uma ordem cósmica,
é o mais antigo dos quatro livros védicos (datado de cerca de 4.000 anos)
(idem). Kak enfatiza que “[o] sistema védico de conhecimento está baseado
nas equivalências entre estrelas [...], seres vivos [...] e a estrutura cognitiva
humana120” (idem; idem). O autor aventa a hipótese de que “a verdadeira co-
nexão entre estrelas e seres vivos estava baseada na identidade entre ritmos
biológicos básicos e períodos astronômicos” (idem; idem), e cita vários exem-
plos envolvendo estudos do tipo cronobiológico para apoiar suas reflexões.
Em outro trabalho, ele reforça que “[a] ideia central por trás do sistema védico
é a noção de conexões entre o astronômico, o terrestre e o fisiológico” (KAK
1995; tradução minha). E argumenta que a declaração de A. A. Macdonell,
estudioso dos Vedas do século XIX – “um dos fatos mais notáveis na história
da literatura [é] que um povo [...] tenha preservado seu livro sagrado sem
adicionar ou subtrair uma única palavra por 2.300 anos e isto essencialmente
através da tradição oral” (MACDONELL 1886, apud KAK 1995; tradução
minha) –, apesar de assombrosa, pode ser explicada com base na conexão
daquele texto com a astronomia. Segundo o autor, outros livros igualmente
antigos declaram “que o número de sílabas e de versos do Rig Veda estão de
acordo com um programa astronômico” (KAK 1995; idem); neste sentido,
o fato de nem uma única palavra ter sido alterada naquele texto é atribuído a
“uma tentativa de ser verdadeiro [manter-se fidedigno, verossímil] aos fatos
astronômicos observados” (idem; idem). (Salientemos que estamos falando
de registros astronômicos indianos de há mais de quatro mil anos.)
120 Surpreende a originalidade e profundidade da relação céu-terra-vida humana enxergada por aquela
cultura, que explicita a participação do céu inclusive na conformação de nossa cognição, i.e., das capa-
cidades, formas, possibilidades e limitações de nossa construção de entendimento das coisas.
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Abordagem Antropológica
mesmos períodos das datações poderão reforçar (embora ainda assim não
garantir) a procedência daquelas indicações121.
Ainda no que concerne eventuais relações entre história e mitologia, é
importante não se incorrer no erro de adotar a postura positivista e ingênua
que quer enxergar nos mitos narrativas romanceadas e criativas inventadas
pelas pessoas, por motivos funcionalistas, a partir de estímulos de fenômenos
naturais e/ou históricos. Estudos em mitologia, antropologia e psicologia já
mostraram que essa interpretação realista simplista não explica a origem e o
significado dos mitos em geral. Além disto, como cogitei anteriormente, não
temos claro o que definir como ontologia e acesso e compreensão da mesma,
e se não é possível conhecer-se o que está “fora” voltando-nos para “dentro”,
posto que essa divisão pode carecer de sentido. Por outro lado, também já
comentei, uma das formas de o ser humano viver suas múltiplas relações
com o ambiente e integrá-las em si se dá através de processos psíquicos. Ou
seja, algo que o marque de maneira especialmente forte e incomum pode ser
estímulo com implicações mais indeléveis e pedir uma reacomodação em
seu psiquismo. Assim, apesar das ponderações anteriores, cabe a questão:
como o ser humano trabalhou (e trabalha) a construção de representações
(culturalmente) autoconsistentes e significativas após ter testemunhado ou
vivido algo fenomenologicamente extraordinário? Neste sentido, é oportuna
a observação de Mircea Eliade, ao estudar a diferença entre o pensamento
mítico e o histórico122. Ele destaca que “o episódio histórico” costuma ser
“traduzido de maneira completa para uma ação mítica” (ELIADE, 1992a, p.
41; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras), desaparecendo
algumas características marcantes que nós (ocidentais modernos) considera-
ríamos factuais e surgindo outras que não reconheceríamos como tais. Este
tipo de transmutação que parece ocorrer (desde nossa perspectiva analítica
ocidental) nas inter-relações entre cultura e natureza, certamente também
121 O cotejamento das representações pictóricas daqui com aquelas feitas por outrem, de outras regiões
do planeta, sobre tais supostos cometas ou outros fenômenos não teria muito sentido, dado o matiz
cultural que caracteriza inclusive aquele tipo de representação. Como comento no texto, “o céu não
é único; há tantos céus quantas culturas humanas”. Ou seja, não é um “fenômeno celeste”, por mais
marcante que seja, que terá “objetividade” para garantir desenho “fidedigno” (?) (hiper-realista?) do
mesmo. Basta ver as representações de cometas feitas por diversas culturas ao longo da história para
ter-se uma amostra da diversidade de representações possíveis (vide algumas delas, por exemplo, em
VERDET, 1992, p. 77 a 89). A não ser que um cometa com cauda dupla excepcionalmente contras-
tante fosse representado como tal em dois lugares distintos e para ambas as ilustrações se tivessem da-
tações confiáveis e praticamente coincidentes (e ainda assim, só com essas informações, não teríamos
uma certeza garantida).
122 Contudo, vejam também, segundo outra luz, a rica visão antropológica com que Overing (1995) nos
brinda, correlacionada a esse mesmo tema.
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está presente quando o que está envolvido são os ditos fenômenos naturais
(e não apenas os históricos), como a literatura em antropologia há muito
estuda e comprova. Por isto, não devemos, ingenuamente, buscar correlações
diretas biunívocas no estilo do par “fenômenos naturais eventos míticos”,
artificialmente criado por nós, nem se deve esperar dos relatos míticos infor-
mações factuais fidedignas, no sentido que o realismo científico atribui a
este termo. Por outro lado, tampouco se deve deduzir que, se não posso fazer
nada disto, então, nada há de significativo nem de correlação factual de teor
naturalista nas narrativas míticas. Pode haver, ou não – e isto é irrelevante para
a abordagem pedagógica aqui proposta. O que importa valorizar e cultivar é
uma mentalidade que entenda que tais narrativas correspondem a uma outra
visão de mundo e, é importante enfatizar, são frutos de outra epistemologia,
muito diferente da científica, em vários aspectos constitutivos e operacionais,
contudo, igualmente válida e legítima123.
Como fiz antes (algumas páginas acima), neste parágrafo também di-
vagarei. Agora envolvendo eclipses e algumas reações populares associadas.
Por exemplo: popularmente diz-se que não se devem cruzar galinhas (ou ou-
tros animais) em época de eclipse (solar ou lunar) ou, se isto ocorrer, have-
rá consequências para a prole daí gerada (estas variam de relato para relato).
Conheço um relato, de acontecimento recente (2005 ou 2006), sobre duas
galinhas que chocavam, simultânea e respectivamente, 15 e 17 ovos durante
123 Merecem menção os trabalhos do lógico Newton da Costa sobre os Azande. Este povo da África Cen-
tral ficou conhecido quando o antropólogo E. E. Evans-Pritchard publicou na Inglaterra, em 1937, o
livro Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande (vide VIVEIROS DE CASTRO, 2005, para in-
formações sobre a tradução para o português), onde discorria em detalhe sobre o pensamento mágico
e divinatório desse povo. Na mentalidade que foi se engessando no Ocidente, magia ficou automati-
camente vista como antagônica a qualquer pensamento digno de racionalidade e de operação lógica
consistente. Como em outros exemplos, foi preciso que trabalhos em antropologia viessem favorecer
uma abertura frente àquela mentalidade. Os trabalhos de da Costa vêm reforçar esse arejamento men-
tal, ao mesmo tempo em que aprofundam a discussão. Analisando o caso desde o referencial mais
amplo das ditas lógicas paraconsistentes, este autor e colaboradores escreveram o trabalho: “Há uma
Lógica Zande?”. Eles mostram que o raciocínio zande segue uma estrutura lógica – ou melhor, como
eles dizem (em resposta à pergunta título de seu trabalho): “Sim, há muitas [lógicas azande]!” (DA
COSTA; BUENO; FRENCH, 1998 e referências lá citadas; título e trecho do trabalho traduzidos
por mim). Este é só um exemplo – mas relevante pelo novo ângulo em que a questão é estudada – a
reforçar que o pensamento humano comporta muitas outras formas legítimas de raciocínio que não
apenas aquela em que foi se afunilando a mentalidade ocidental (a da modalidade racional cognitivo-
instrumental da ciência). Como bem elucida Viveiros de Castro (2005, p. 7): “[o] propósito episte-
mológico do recurso à bruxaria como explicação de infortúnios [...] [está na] busca não de causas
eficientes, mas de razões suficientes; não uma física da causalidade objetiva, mas uma política da in-
tencionalidade subjetiva; não o fenômeno e o conceito, mas o evento e o sentido”; concluindo: “a este
livro [...] a antropologia deve uma de suas principais contribuições ao pensamento contemporâneo,
a saber, a constatação de que há muito mais bruxaria no céu e na terra do que supõe a vã burocracia
da razão”. [Nota sobre a terminologia: o povo é denominado Azande; o adjetivo, zande; e seu plural,
azande.]
356
Abordagem Antropológica
124 Neste parágrafo (e em algumas das notas associadas) os leitores precisam estar ainda mais atentos,
porque enveredo propositalmente pela linha de argumentação científico-realista ortodoxa típica;
aquela que vive do suposto fundamento ontológico – inequívoca comprovação factual obtida segundo
seu método de objetividade, que lhe garantiria conexão ontológica incontroversa e lhe permitiria
proferir veredicto fidedigno sobre qualquer alegação que julgue espúria. Senão, o caso costuma não
ser digno sequer do benefício da dúvida.
125 É fácil encontrar cientista pronto a atribuí-las à pura crendice infundada – mesmo que ele, ou ela, na
verdade, nunca tenha pesquisado cientificamente aquelas alegações, nem esteja familiarizado(a) com
nenhuma literatura científica reconhecida, acatada e não controversa, que afirme ter estudado aquelas
alegações, em particular, e concluído que elas absolutamente não procedem. Esse tipo de reação au-
tomática – pavloviana, pode-se dizer – é antes a sedimentação da mentalidade iluminista-positivista
na comunidade científica do que de fato fruto de sensatez, imparcialidade e razoabilidade. Não são
reações movidas por um saudável ceticismo. Soam como veredictos sobre tudo e todos. Quando ditos
por um(a) cientista, então, ficam acima de suspeita, infelizmente.
126 Há muitos estudos científicos a respeito comprovando isto e eu mesmo pude confirmar esses fatos
durante dois eclipses solares totais, fenômenos gloriosos aos quais tive a felicidade de presenciar, aos
03/11/1994, em Foz do Iguaçu (PR), e aos 29/03/2006, na praia de Barra de Tabatinga (RN). Nesta
ocasião eu estava junto a grupo de estudantes do Curso de Geografia, da UFRN, a quem eu lecionava
a disciplina Astronomia e os levei a essa imperdível aula de campo. Foi uma grande festa! Os efeitos
a que me refiro acima, porém, foram bem mais notáveis durante o primeiro evento, devido ao local
afastado onde eu estava – no campo, longe do burburinho da cidade e das aglomerações de pessoas e
ao mesmo tempo próximo a muitos animais e plantas diversas –, mais favorável para a observação das
referidas mudanças nos comportamentos dos animais e nas reações das plantas.
357
Luiz Carlos Jafelice
127 Presenciei outra situação desse tipo, digna de nota. Certa feita, quando viajava a trabalho em Pau
dos Ferros (RN), um taxista me relatou que havia testemunhado “uma bola de luz que vinha em sua
direção” (quando ele trabalhava com um trator perto de uma serra, por volta da meia noite). Quando
contei para colegas físicos e geofísicos, a reação, sem exceção, foi de riso ou escárnio para o que con-
sideraram imaginação fértil daquela pessoa. Ora, na época eu trabalhava com física de plasma. Sabia
da existência do chamado “relâmpago de bola”, um fenômeno cuja explicação completa ainda está
em aberto, mas cuja existência física está comprovada; é algo factual, como a ciência se sente apta a
tratar. Há vários indícios associando tal fenômeno com processos geofísicos e há registros em outras
partes do globo. Aparentemente, pela frequência com que esse tipo de relato ocorre naquela região,
ela é candidata a preencher as condições para aquela manifestação. Aquele relato, então, se encaixava
perfeitamente no de um relâmpago de bola. O que a testemunha ocular atribuía ao que viu pertence
a outro domínio, mas não havia nada de risível, nem no relato, nem no fenômeno relatado. O ponto
é: era preciso saber da existência do relâmpago de bola em física para não ridicularizar, de antemão,
aquele relato? A resposta é um sonoro não! Nem aquele, nem quaisquer outros relatos, ditos com a
honestidade com que são vividos. O que houve, por parte dos cientistas mencionados, foi limitação
de visão, formatação de pensamento. Não foi, insisto, um ceticismo de distanciamento e imparciali-
dade, positivo em ciência e em geral. Havia uma sentença previamente promulgada, mais ou menos
na linha: “fora da academia pululam crendices; portanto, qualquer relato dali deve ser encarado antes
como fantasioso ou supersticioso do que passível de conter alguma verdade ontológica”. Este com-
portamento, injustificável, mesmo em nome da suposta verdade, é habitual em muitos cientistas. Por
se comportarem como donos da verdade, contribuem, inclusive, para afastar as pessoas da ciência.
358
Abordagem Antropológica
128 Em 2009 participei de dois encontros internacionais; um, específico sobre ensino de astronomia,
e outro, sobre ensino de ciências naturais em geral. Em ambos presenciei situações praticamente
idênticas e que imputo como muito representativas e preocupantes. Nos dois casos os protagonistas
– cientistas, por formação, mas simpatizantes de causas educacionais – não eram originários, nem tra-
balhavam em instituições, do chamado terceiro mundo. Cada um, contudo, relatou suas experiências
mais recentes em países desse referido mundo, abarcando ensino e divulgação em astronomia/ciên-
cias (embora no primeiro encontro houve umas tantas apresentações que reproduziram atos como o
que vou relatar; mas me concentrarei naquele que se destacou pela explicitação das imagens e falas).
Fiquei perplexo! Parece incrível, mas tristemente foi fato: ambos os apresentadores protagonizaram
cenas em que eles – tendo projetada uma imagem dessas consideradas típicas dos países subdesen-
volvidos ou em desenvolvimento (com crianças maltrapilhas, em condições precárias de moradia,
higiene etc.), enquanto faziam a “setinha do mouse” (da projeção em datashow do respectivo tra-
balho que apresentavam) circular sobre o peito de uma dessas crianças – proferiram praticamente
as mesmas palavras, no estilo: “eles precisam de nós; precisamos fazer a ciência chegar também a
estes pequeninos...”. Um absurdo! E mais significativo ainda porque não foram relatos personalistas
e, sim, de programas oficiais de “ensino e divulgação” criados e amparados por associações científicas
profissionais e instituições acadêmicas, e porque esses foram encontros atuais, de grande e variada
participação internacional, de diferentes áreas das ciências naturais, em continentes diferentes e en-
volvendo protagonistas e plateia distintas, que não denotaram identificar nada de estranho naqueles
comportamentos e comentários, ao contrário. Incrível e deprimente. A intenção dos expositores (e
de outros que pensam e agem como eles) – é de se supor – era das melhores (embora com um mal
disfarçado emocionalismo). Todavia, a consciência mais ampla e profunda do que aquela intenção,
se concretizada a contento, implica em termos de extermínio de diversidade epistemológico-cultural
é que parece estar ausente nesses atores. Ou seja, a concepção de base é completamente equivocada,
na minha opinião. Para eles: 1) o sentido de desenvolvimento é o econômico; 2) se dá através da in-
serção (de todos os povos) na forma de a cultura ocidental ver o mundo; 3) a qual ocorre com maior
eficiência através de uma educação reprodutora do status quo; e 4) cujo ápice – aquilo que pode for-
necer os ingredientes basilares por excelência para aquela inserção e aquele tipo de desenvolvimento
– é a ciência. Se isto não é uma reprodução atualizada (nos métodos e discursos, mas não na menta-
lidade que a nutre nem nas estratégias psicológicas básicas que adota) das imposições que déspotas
e usurpadores de todos os tempos, em todas as guerras e colonizações, ou em todas as catequizações,
como as jesuíticas (para ficarmos em um exemplo mais tocante a nós e explicitamente destruidor de
outras visões de mundo), perpetraram, não sei o que é. Coisa boa, é que não será, independentemen-
te das intenções anunciadas. As armaduras e os hábitos foram substituídos pelos aventais brancos e
mudou quem alegadamente detém a verdade inquestionável. E só. O resto continua tão insensível e
aniquilador de culturas autóctones como sempre foram aquelas cruzadas para promover o “progresso
do conhecimento e da civilização” (vide citação mais completa de FEYERABEND, 2007, na nota de
rodapé seguinte). É impressionante a relutância das pessoas, mesmo letradas e cultas, em atentarem
para essa repetição travestida daqueles crimes que, em outros terrenos e contextos, elas dizem ser tão
ferozmente contra. Será que essa “cegueira” significa que elas compactuam, então, com aqueles crimes
em nome do crescimento e expansão da ciência? Será que se convenceram que a existência de excluí-
dos é inerente à condição humana e só nos resta mitigar as desigualdades inevitáveis através da impo-
sição de um pensamento único, de índole econômica e suporte científico? Será que não há uma ínfima
clareza que seja sobre o que a antropologia, em particular (mais ainda a culturalista e hermenêutica),
nos ensinou sobre o que é ser humano? Enfim, todo esse quadro é terrível e muito inquietante. Mas,
assim é como estão as coisas. Elas não são assim, nem precisam continuar evoluindo nessa direção, na
qual têm atropelado tudo que encontram pela frente. Embora dificultoso, é possível e urgentemente
necessário resistir-se e mudar-se esse estado de coisas. É com isto que espero contribuir ao criar e
aplicar esta abordagem e ao elaborar este texto para divulgá-la.
129 Por isto também me posiciono contra o que está por trás de um ano internacional da astronomia, ou
da física, da biologia etc. A despeito das boas intenções apregoadas, esse tipo de promoção, na prática,
funciona como uma investida organizada maciça da milícia científica impondo a visão de mundo
359
Luiz Carlos Jafelice
ocidental prevalecente em todas as culturas. O aviso de Feyerabend, infelizmente, continua mais atual
e preocupante que nunca (basta frequentar, ou analisar trabalhos de, encontros internacionais de edu-
cação científica – na nota de rodapé anterior comento dois exemplos desse teor): “[o] ‘progresso do
conhecimento e da civilização’ – como está sendo chamado o processo de forçar costumes e valores
ocidentais em todos os cantos do mundo – destruiu [...] maravilhosos produtos da engenhosidade
e compaixão humanas sem uma única olhadela sequer em sua direção” (FEYERABEND, 2007, no
prefácio à edição chinesa, p. 22-23) (vide também SHIVA, 2003, p. 21-83, que reforça argumentos
e soma exemplos nessa direção). E isto é humanamente inaceitável. Este tema está intimamente re-
lacionado com o ensino de ciências em países multiculturais, como é o caso do nosso. Uma verten-
te majoritária e dominante de adeptos considera que deve prevalecer a postura universalista, como
defendida, por exemplo, em Matthews (1994). Portanto, também me posiciono contra esse tipo de
mentalidade no ensino de ciências. Este capítulo aprofunda essa discussão e oferece exemplos e al-
ternativa na construção de contrarracionalidades que evitem transformar a educação científica em
mais uma eficiente divisão daquela investida, cujas consequências podem ser equivalentes às de um
genocídio.
130 Ressaltando que não são apenas – e, com frequência, nem como embasamento ou prioritariamente –
nas contribuições oriundas das ciências em que me amparo ou obtenho inspirações para as criações
ou desenvolvimentos da referida proposta. Diversas e essenciais evidências, de muitas outras fontes
– tradicionais, intuitivas, vivenciais, testemunhais etc. –, animam e orientam a presente abordagem.
E isto, tanto na origem da mesma como nas suas transformações constantes, posto que, respeitado
seu eixo de caráter holístico, espiritual, biocentrado (se for para ela não abandonar seus princípios
norteadores e não descaracterizar seus fundamentos e objetivos), ela é aberta a contribuições e reela-
borações permanentes por parte dos interessados.
360
Abordagem Antropológica
aceitas pela ciência131, temos suporte mais que abundante para evidenciar que
as coisas “aqui” estão muito longe de serem autossuficientes, nem ontem nem
hoje, e que a interconexão com as coisas de “lá” é a maior que pode existir, em
um grau e dimensões, no fundo, ainda não plenamente compreendidos, em
particular quanto às constituições e manifestações metabólicas, psicológicas
e culturais, entre outras, que julgamos tão características de nossa humana
forma de ser.
1.3 Finais
131 Ainda que a ciência jamais adote a denominação “conexões cósmicas” ao expor os resultados de seus
estudos, visto que esta lhe soa tão mística e tendenciosa. Quando falo cosmo, aqui, estou consideran-
do o termo do ponto de vista antropológico, e não físico. Naquele sentido, cosmo, ou o adjetivo cós-
mico, diz respeito à totalidade do que existe. Para as culturas em geral, cosmo significa a terra, o céu,
os diferentes planos da existência e todos os seres, coisas e relações que existem nesses níveis e entre
eles. Para ocidentais urbanos modernos com acesso à educação formal – de forte teor naturalizante
–, cosmo é tão somente o universo físico ( JAFELICE, 2002; 2004; 2009a). Isto, somado à adoção de
uma única forma de pensamento (SANTOS, 2000; a referência deste livro está na seção Sugestões de
leituras), cuja tendência é excluir o que é diferente – inclusive outras formas de se construir conhe-
cimento – e reduzir tudo à medida oferecida pela ciência canônica, a expressão “conexões cósmicas”
não apenas soa mística, mas impossível de se concretizar de modo literal, isto é, de alguma forma
transmaterial. Luziânia Ângelli Lins de Medeiros aprofunda esta discussão no capítulo 3 deste livro.
Uma limitação grave daquela visão única é que, além de separar sujeito de objeto e supor que é pos-
sível uma universalidade descritiva, ela pressupõe partes de um todo conectadas, ou conectáveis, ain-
da segundo uma temporalidade, linearidade e causalidade físicas tradicionais, ao passo que (mesmo
pensando pela vertente cientificista) outros processos sistêmicos, sinérgicos, complexos, não-lineares
e principalmente não-locais podem não só estar presentes, mas ser os derradeiros responsáveis na
conformação das espécies e da relação entre tudo o que existe no cosmo.
132 Reitero: tal leitura sociológica da ciência, infelizmente, ainda está muito ausente da área de educação
361
Luiz Carlos Jafelice
científica, com implicações muito preocupantes para a formação dos cidadãos ( JAFELICE, 2008a;
LOPES e JAFELICE, 2009; JAFELICE, 2009b; LOPES, 2010).
362
Abordagem Antropológica
363
Luiz Carlos Jafelice
133 Recomendáveis continuidades de estudos nessa direção são os livros de Paul Feyerabend (2007) e de
Bruno Latour (2000).
364
Abordagem Antropológica
365
Luiz Carlos Jafelice
Apêndice 2
134 Vide ainda detalhamentos e esclarecimentos sobre essas atividades nos apêndices 5 (Origens) e 6
(Primeiras tarefas para casa), a seguir, e em Jafelice (2004).
135 Na verdade é uma investigação prévia do grau de consciência – ou ignorância – da turma sobre as
relações céu-terra-vida que me interessam trabalhar em profundidade com eles. Ao aplicá-la, talvez
convenha você chamá-la de primeiras impressões ou algo assim (para evitar eventual ansiedade neles
pela palavra “avaliação”, com frequência usada indevidamente, para ameaçar ou punir).
366
Abordagem Antropológica
136 Em geral, antes que comecem a ler, enceno de cantor e lhes canto um trecho de Antonico (samba de
1950, de Ismael Silva), música em que me inspirei para nomear o personagem do texto: “Ô Antonico,
vou lhe pedir um favor [...]”; linda canção, aliás.
367
Luiz Carlos Jafelice
137 Alguns ficam em dúvida, e dizem 24 de junho. No Nordeste, porém, pode-se dizer que essa dúvida
quase não existe, porque praticamente todos sabem, sem sombra de dúvida, que o dia dessa comemo-
ração é 23 de junho!
368
Abordagem Antropológica
138 Vide no apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3) (e nas referências lá
citadas) especulações sobre possíveis origens para esse tipo de calendário.
139 Ou seja: muitas associações com coisas do céu para um parágrafo relativamente curto! Claro que
o criei buscando exacerbar esse tipo de associação. Mas fica clara a verossimilhança com fraseados
típicos de nosso linguajar e modo de vida, em particular onde aquelas celebrações ainda são fortes,
mesmo que aqueles termos não sejam habitualmente proferidos tão em seguida um do outro. A ideia
foi dar ênfase àquelas associações e ao fato de não termos consciência (ou termos muito pouca, em
geral por motivos equivocados) das mesmas. Sugiro que você crie outros textos que realcem as inter-
conexões céu-terra-vida que costumamos ignorar.
369
Luiz Carlos Jafelice
370
Abordagem Antropológica
140 Para distâncias menores (pelo menos se não for no meio do deserto), os acidentes topográficos, o re-
levo da paisagem, a memória do percurso, são suficientes para a orientação espacial (mesmo no meio
de floresta tropical). Contudo, para longas distâncias em terra – que os povos (ou membros de suas
comunidades) sempre empreenderam – ou para viagens ao mar em regiões onde não é mais possível
avistar a costa – mais recentes, do ponto de vista histórico –, apenas o céu pode fornecer orientação
segura e garantida.
141 Marcio D’Olne Campos, em particular, propôs e tem comentado e incentivado, em várias ocasiões, o
uso da terminologia sulear (vide, e.g., CAMPOS, 1999).
371
Luiz Carlos Jafelice
Matriz: para muitos é uma surpresa que este termo conste daquela
lista. Enquanto templo da igreja católica – assim como qualquer outro templo
de outras religiões em geral – a matriz representa um local sagrado e, portan-
to, não pode ser erigido de qualquer jeito. Tradicionalmente um templo não
pode ser construído em qualquer lugar nem com uma orientação qualquer.
Ou seja: as “coisas do céu” determinam nas primeiras sociedades hu-
manas (sejam da cultura babilônica, ou egípcia, chinesa, asteca, inca, indiana
etc.) como deve ser erigido o templo de sua religião e, por conseguinte, como
suas cidades devem ser estruturadas e organizadas espacialmente. Essas cida-
des (pelo menos as principais edificações de caráter sócio-administrativo e
nos entornos significativos para as comemorações ritualísticas das respecti-
vas culturas) são construídas, muitas vezes, a partir de uma “irradiação” cen-
tral definida pela orientação de seu templo. Orientação esta de caráter essen-
cialmente celeste.
Portanto, as “coisas do céu” estão muito presentes na arquitetura, onde
inspiram padrões às vezes presentes até hoje142, embora sua origem celeste
muitas vezes foi perdida no tempo e não tem a força e determinação que teve
algum dia.
Como essas orientações se concretizam na prática, depende de cada
caso. Para muitas culturas, a direção mais importante (para onde devemo-nos
orientar para orar ou meditar) é a do sol nascente (leste); para outras é outro
o ponto cardeal ou o ponto básico de referência (como para os muçulmanos,
cujo ponto de convergência e orientação é a localização da Caaba, na cidade
de Meca143). Seja como for, predominam associações de caráter celeste para
motivar as construções de templos e cidades na história da humanidade144.
142 Não me refiro às orientações de edifícios para atender a padrões de insolação, otimização de sombras,
correntes de ar, uso e armazenamento de energia solar etc., claramente definidas por causas celestes,
mas com motivações de teor diferente daquele aqui analisado.
143 Como já mencionei (no apêndice 1), a Caaba abriga um meteorito, uma pedra sagrada que é um
presente de origem celeste que Alá enviou a esse povo.
144 É pertinente aqui citarmos Eliade: “Nas grandes civilizações orientais – da Mesopotâmia e do Egito
à China e à Índia – o templo recebeu uma nova e importante valorização: não é somente uma imago
mundi [imagem do mundo], mas também a reprodução terrestre de um modelo transcendente. O
judaísmo herdou essa concepção paleoriental [oriental antiga] do Templo como cópia de um arqué-
tipo [um modelo exemplar primordial, de caráter divino, pelo qual as pessoas de uma dada cultura
tentam orientar seus atos e sua vida] celeste. É provável que tenhamos nessa ideia uma das últimas
interpretações que o homem religioso deu à experiência primária do espaço sagrado em oposição ao
espaço profano. [...] Lembremos o essencial do problema: se o Templo constitui uma imago mundi, é
porque o Mundo, como obra dos deuses, é sagrado. Mas a estrutura cosmológica do Templo permite
372
Abordagem Antropológica
uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica
continuamente o Mundo, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo” (ELIADE, 1992b,
p. 55-56; itálicos do autor). E prossegue: “A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo
que o Paraíso, portanto in aeternum [de modo eterno]. A cidade de Jerusalém não era senão a repro-
dução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu modelo era
incorruptível, porque não estava implicado no Tempo. [...] A basílica cristã, e mais tarde a catedral,
retoma e prolonga todos esses simbolismos. [...] na igreja bizantina [por exemplo, da cultura cristã]
‘[a]s quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo. O interior da igreja
é o Universo’ (Hans Sedlmayr, apud ELIADE, 1992b, p. 58)” (ELIADE, 1992b, p. 57-58; idem). Para
se compreender melhor essas explanações de Eliade, é fundamental se entender as concepções de es-
paço e de tempo que as sociedades humanas arcaicas tiveram, em geral independentemente umas das
outras. Para essas sociedades nem o espaço, nem o tempo, são homogêneos (vide também ELIADE,
1992a). Nós, pessoas ocidentais urbanas contemporâneas, temos tão entranhado em nós, através de
nossa cultura e formação cientificista, uma concepção de espaço e tempo como entidades homogêne-
as e lineares, que fica muito difícil entender concepções que outras culturas tiveram, e – importante
frisar – várias ainda têm, sobre isso. Aqui também cabem bons exercícios de antropologia sobre esses
conceitos e concepções. [As referências dos livros Eliade (1992a) e Eliade (1992b) estão na seção
Sugestões de leituras.]
145 Ou, segundo uma versão em Cascudo (1998; no verbete “João”; e referências lá citadas), não se deve
acordá-lo senão pode-se corromper o santo, que ficará tentado a deixar o céu e vir participar da festa
e, então, “o mundo acabará pelo fogo” (idem, p. 477).
146 “A palavra ‘pagão’ vem do latim pagus e significa aldeia” (MARTINS, 1994, p. 16). Ou seja, pagão quer
dizer aldeão. Só posteriormente essa palavra ficou estigmatizada com a conotação que a igreja católica
lhe impingiu (qual seja: a de alguém que segue uma religião que não adota o batismo). Aqui enfatizo
seu significado original, inclusive para estimular o acolhimento de uma convivência ecumênica, tão
necessário nos dias de hoje.
373
Luiz Carlos Jafelice
Aquilo que conhecemos como festa de São João é de fato uma come-
moração solsticial, portanto de caráter essencialmente celeste, originária de
quando as comunidades celebravam as colheitas, prestavam homenagens
às suas divindades, pediam que no próximo ano também houvesse fartura,
faziam suas adivinhações, principalmente as relacionadas aos possíveis casa-
mentos ou destinos amorosos dos seus habitantes (pois, já mencionei, essa
era uma festa centrada no tema da fertilidade em geral).
É importante ressaltar que era uma festividade de uma época cuja con-
cepção de tempo era cíclica. Ou seja, aquele momento da festa era de reinício;
ela era uma celebração de ano novo!147 Como destaca Martins (1994, p. 18),
“[e]mbora o povo do interior do Brasil não saiba qual a origem da festa, ela é
um ritual de repetição do nascimento do mundo”.
Porém, se, por um lado, São João não é santo festeiro e, por outro, essa
festa, em sua origem, é de verão: a) por que a associamos a esse santo?; b)
por que nos dão outra explicação para a fogueira (entre outros simbolismos)
da festa?; e c) por que a comemoramos no inverno (junho)? Basicamente
porque, apesar das muitas tentativas, a igreja católica não conseguiu eliminar
completamente essa tradição dos povos ibéricos, em particular. Para isto ela
147 Nos anos de 1999, 2000, 2002, 2008, 2009 e 2010 promovi Festivais de Solstício de Inverno, e em 2009
promovi ainda um segundo Festival, o de Equinócio de Primavera. Os três primeiros (de 1999 a 2002),
no pátio arborizado do Departamento de Física Teórica e Experimental da UFRN, em Natal (RN),
como atividade prática da disciplina de astronomia que eu lecionava na época, onde contei com a
ajuda de alunos e ex-alunos de vários cursos da UFRN nos preparativos e condução das celebrações;
os três últimos (de 2008 a 2010), na areia do rio Carnaúba, em Carnaúba dos Dantas (RN), como
prática em um curso de extensão universitária que ministrei lá, quando contei com a ajuda dos alunos
do curso e de membros da equipe do projeto que eu coordenava junto ao CNPq, do qual aquele curso
fazia parte. No Festival de Equinócio de Primavera (também em 2009), contei com a ajuda dos colegas
astrofísicos Leandro Kerber e Jules Soares e alunos do Departamento de Ciências Exatas e Tecnoló-
gicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus (BA), como parte da programação
da V Semana de Física da UESC, a qual teve por tema “Um mesmo céu... muitos olhares” [organizada
por Jules Soares (Coord.), Ana Paula Andrade, Leandro Kerber e Andréa Morégula]. Aqueles dois
colegas também participaram da organização do Festival de 2010, em Carnaúba dos Dantas, desta vez
juntamente com a colega antropóloga Flávia Cristina de Mello, também da UESC. Todos esses even-
tos foram abertos a todos os interessados. O intuito foi reviver celebrações solsticiais invernais – ou,
no segundo caso de 2009, equinociais primaveris – arcaicas de nossa cultura e muito do simbolismo
associado, recuperando conhecimentos ancestrais da relação das pessoas com os ritmos cósmicos e
práticas mítico-ritualísticas de uma era cujas concepções temporais e cosmogônicas eram cíclicas.
Foram festivais muito concorridos e desfrutados, embora nos três primeiros e no segundo de 2009
(equinocial) – é compreensível, pois realizados em ambientes específicos de ciências exatas – houve
alguns observadores casuais que estranharam muito aquilo tudo. [A título de esclarecimento: a festa
de São João está associada ao solstício de verão; então, o que promovi naquelas ocasiões, embora no
nosso calendário quase coincidissem com aquela festa, nada tinham a ver com ela; não foram um São
João (como se conhece) com a interposição de coisas incomuns ou “estranhas”; foram comemorações
de ano novo.]
374
Abordagem Antropológica
148 Pois, como essa festa pagã era das mais importantes para os povos da antiguidade, no velho mundo, era
preciso encontrar um santo que também se destacasse, cuja data de sua festa litúrgica fosse próxima
àquela do solstício de verão (que é em torno de 21 de junho no hemisfério norte; é preciso manter em
mente que para todas estas datas originais a que nos referimos aqui, nossa referência é o hemisfério
norte, pois era onde os fenômenos celestes e eventos terrestres em questão associados estavam sendo
presenciados e celebrados pelas culturas nas quais nos concentramos em relação a essa festa, quais
sejam, as culturas que influenciaram diretamente a que nos colonizou). Esse santo foi João Batista,
primo de Jesus, que nasceu aos 24 de junho do ano 2 a.C. (em contraposição a São João Evangelista, o
mais novo dos doze apóstolos de Jesus, nascido aos 27 de dezembro do ano 10 d.C.) (WIKIPEDIA,
2009c). É pertinente notar que embora os fenômenos dos solstícios sejam ambos muito importantes,
do ponto de vista simbólico o de inverno é mais significativo. Com efeito, simbolicamente, para um
ano novo, o solstício de inverno representa a passagem à fase ascendente e luminosa do ciclo anual.
Ou seja, a esperança de um futuro auspicioso. Assim, o primeiro santo João – de destaque histórico e
religioso na vida e iniciação de Jesus – está associado ao solstício de verão (junho), porém, o último
santo João – apesar de ter festa litúrgica em data próxima à do solstício de inverno (isto é, em torno
de 21 de dezembro, no hemisfério norte) – não é vinculado a este evento. Era preciso uma figura à
altura da grandeza e significado simbólico deste fenômeno. É compreensível, então, que o nascimento
de Jesus (cuja data histórica não é conhecida com precisão) tenha sido escolhido para tal associação
(mais auspiciosa). Assim, o Natal fica associado ao solstício de inverno.
149 No capítulo 1 deste livro, Maria Luciene de Souza Lima Freitas apresenta outros elementos sobre esta
discussão na subseção 3.9 (As Origens Celestes das Festas Juninas através de Fantoches) (e referências lá
citadas) e no apêndice I de sua dissertação de mestrado (vide referência completa no capítulo 1) ela
expõe em detalhe uma prática de teatro de fantoches onde aborda essas questões relativas às origens
daquelas festas.
150 No sul do país é comum as pessoas acharem que as fogueiras das festas juninas são motivadas pelo
frio; que começaram a ser feitas para aquecer as pessoas nas noites frias daquelas festas. Está claro que
não é nada disto.
151 Na verdade, toda vez que olhamos um mapa-múndi ou um globo terrestre podemos nos lembrar que
somos colonizados. Adotar a direção cardeal norte “para cima”, como quem nos colonizou fazia (e
faz), é convenção arbitrária. Os árabes e os chineses, independentemente, costumavam representar
o sul “para cima”. Antes de se amarrar a convenção que adotamos hoje, houve mapas cuja direção
cardeal colocada “para cima” foi cada uma das quatro existentes. Ao que sei, em tupi não há palavras
para as direções norte e sul, apenas para “onde o sol levanta” (que chamamos de leste) e “onde o sol se
deita” (oeste). De fato, do ponto de vista astronômico, estas são as direções relevantes, que se podem
caracterizar sem ambiguidade, seja tomando o Sol (nos equinócios, quando o dia e a noite têm mesma
duração) ou estrelas como referência; essas foram as direções tomadas para orientação básica desde
a Antiguidade, pelos egípcios e outros povos, de onde as outras duas direções cardeais são definidas.
Uma vez estabelecida a linha “leste-oeste”, a “norte-sul” é uma “contraposição” natural para humanos
em geral. [A convenção de Ptolomeu – norte “para cima” – é reintroduzida no Ocidente por volta de
1.400 d.C. Na internet há sítios onde constam mapas com o sul “para cima”, por exemplo: Flourish
(2009) e Wikipedia (2009d). Recomendo uma consulta e contemplação detida desses mapas. Além
de instrutivo, ajuda a desfazer certa visão e hábitos mentais que se pensa serem tão objetivos. Quando
um ser extraterrestre chega em nosso planeta – a bordo de sua supernave espacial, é claro – ele/ela/?
não vai estranhá-lo mesmo que, desde seu ângulo de chegada, a Terra esteja com o polo sul “para
375
Luiz Carlos Jafelice
cima”. Ele/Ela/? não tem um modelo incutido para pensar que este corresponde a algo objetivamente
verdadeiro, impensável de se mudar; não cresceu convivendo com uma única convenção (a do norte
“para cima”) como nós. Exercite pensar no sul para cima; inclusive politicamente isto é muito perti-
nente. Trabalhe também isto com seus alunos e as pessoas em geral.]
152 Cascudo (1998, no verbete “João”, e referências lá citadas; e 1995). Estes assuntos são abordados
também nos livros: Martins (1994, p. 18); Mélo (1949); Frazer (1982a; 1982b).
153 Vejam só: o que era um número “redondo” (7h50min), no sistema decimal virou uma dízima periódi-
ca!
154 Pergunto isto à classe (notem que eles não leram a explanação que faço sobre o sistema sexagesimal no
apêndice 1, nem eu trabalhei este assunto com eles antes). Dou um tempo para que de fato as pessoas
respondam ou tentem fazê-lo. Devemos evitar perguntas de retórica (do tipo em que o professor
pergunta e ele mesmo, em seguida, responde; muitos creem que desta forma estão dialogando com a
turma; é claro que não estão). Após as respostas surgirem, relembro à turma que a resposta é o sistema
de medida das horas ou dos graus (um só sistema, como mencionei no apêndice 1). Aquela pergunta,
inserida em um contexto, como aqui, já costuma ficar sem resposta. Fora de contexto, então, as pesso-
as em geral sequer a entendem. No apêndice 1 comento mais sobre a origem do sistema sexagesimal
e a da equivalência entre dia e grau.
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Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
nossos ancestrais: o dia acaba quando o Sol se põe. Depois que adotamos um
sistema fixo de divisão do dia em 24 horas, “o momento em que o dia acaba”
(i.e., aquele em que o Sol se põe) varia de dia para dia (em relação às horas
marcadas por tal sistema), para um dado lugar, ao longo do ano; padronizou-
se, então, seis da tarde como o horário médio em que o Sol se põe.
Assim, o que a grande maioria desconhece, é que não só os calendá-
rios lunares ainda têm presença muito entranhada em nossa própria cultura,
como o dia, para tais calendários, começa às seis da tarde (do que para nós
seria ainda “o dia anterior”). Como os eventos importantes de um determi-
nado dia começam, naturalmente, no início daquele dia, isto significa que
eles começam na véspera do que seria o tal dia comemorativo, segundo nosso
calendário civil (o qual é relativamente muito mais recente do que quando
as respectivas festividades foram criadas e eram celebradas ainda carregadas
dos simbolismos primordiais). Por isto, a festa de São João é comemorada na
noite do dia 23 de junho157. (Ou ainda, desde a perspectiva de um calendário
lunar: o dia solsticial de verão no hemisfério norte – que na cultura católica
virou dia da festa de São João – começa quando para nós são seis da tarde do
dia 23 de junho e acaba às seis da tarde do dia 24.)
“O dia de São João” é apenas um daqueles cuja comemoração começa
no que para nós é sua véspera. Como ressalta Eliade (1993b, p. 128): “Vestí-
completam nesse mesmo instante, no meio da noite [isto é, convencionamos que o dia começa/acaba
no instante em que Sol passa pelo meridiano inferior – que é aquela linha imaginária que divide ao
meio (na direção sul-norte) o céu de nossos antípodas (as pessoas que vivem no lugar diametralmente
oposto em relação ao nosso, no planeta); mesmo em nossa cultura (ocidental), porém, foi comum de-
finir o início do dia ao meio-dia (instante em que o Sol passa pelo meridiano superior), o que ainda é
adotado no calendário Juliano (BOCZKO, 1984, p. 159)]. Nos calendários lunares, esse instante “fim
de um dia, início do novo dia” é definido como aquele quando o Sol acabou de se pôr. Notem ainda que,
em nosso idioma, o sentido da palavra dia depende do contexto. Aqui, falamos do dia como a duração
do Dia Solar (24 horas). Mas essa palavra também é usada para indicar o intervalo de tempo em que o
ambiente ao ar livre está claro (há luminosidade solar direta ou indireta); dizemos que é “de dia”, em
contraposição ao seu tempo escuro “de noite”. Assim, um dia compreende a parte “de dia” desse dia,
mais a parte “de noite” desse mesmo dia. Nos calendários lunares, dia também significa “duração de
24 horas” – para usar nossa terminologia –; o que muda é o que se entende como sendo o instante em
que ele começa/acaba.
157 Como já mencionei, a força da tradição ancestral é mais forte no nordeste do Brasil. Aqui a festa de
São João é celebrada na noite do dia 23 de junho e a fogueira só é acesa às seis da tarde. No sudeste
e sul do país essa festa ficou mais enquadrada na convenção do calendário civil; então, comumente
ela é comemorada [ou quando ainda o era, como em São Paulo (SP), nos anos 50 do século passado,
na minha infância] no dia 24 de junho mesmo – e, escusado dizer, quando se faz fogueira, não há
nenhuma tradição dizendo quando ela pode ser acesa –, perdendo mais ainda suas conexões celestes
primordiais.
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Abordagem Antropológica
158 Embora muito mais no passado. Hoje, aquela tradição ainda tem muita força, mas apenas em certas
regiões do país, como já comentei. As festas são: Santo Antônio (12/06); S. João (24/06) e S. Pedro
(29/06).
159 Como mencionei, o solstício de inverno tem maior relevância (simbólica), em relação ao de verão.
Em ambos o Sol “para” (solstício quer dizer “sol estático”), mas no solstício de inverno ele “para” de
ir cada vez mais para o sul (para povos do hemisfério norte), isto é, o dia (a parte clara do dia) para
de encurtar – ou a noite para de ficar cada vez mais longa. Se o Sol invernal não “parasse” nesse seu
“percurso” que torna o claro do dia cada vez mais curto, as consequências – como nossos antepassa-
dos certamente antecipavam – seriam fatais para os seres vivos (ao menos para um número enorme
de espécies animais e vegetais essenciais para a sobrevivência inclusive da nossa espécie). Adviria uma
noite eterna. Este é um extremo com implicações (imediatas e perenes) mais palpáveis, evidentes e
dramáticas (quando se vive em altas latitudes) do que as de verão. Daí, talvez, um simbolismo mais
forte associado ao solstício de inverno.
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Luiz Carlos Jafelice
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Abordagem Antropológica
Apêndice 3
160 O conteúdo deste apêndice é um desdobramento e aprofundamento do que discuto na subseção II.2
(Qual é nosso lugar no universo?) de Jafelice (2002, p. 4).
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Luiz Carlos Jafelice
161 E não que a ausência dessa associação específica, nesta situação, signifique desprendimento, altruís-
mo, prioridades ambientalistas, integração cósmica, desapego.
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Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
162 E não estou me restringindo aqui às concepções de analogia entre o microcosmo e o macrocosmo,
também uma tentativa presente em nossa cultura, embora há muito descartada enquanto paralelo
aceitável de similitude.
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Abordagem Antropológica
nosso lugar no universo. Mas não apenas nosso lugar físico, como a maioria
das abordagens em ensino e divulgação de astronomia insistem! Parece que
levar a “revolução copernicana” às últimas consequências é a sagração máxi-
ma das exposições populares ou iniciantes sobre astronomia163.
Outro ponto que merece algum comentário é sobre uma consequên-
cia básica de sermos gregos demais: também somos “cientificizados” demais.
Para trabalhar isto, costumo fazer outra prática. Pergunto aos alunos: “como o
universo se originou?”. Praticamente sem exceção a resposta é: “de uma gran-
de explosão”164. Discuto, então, que esta resposta é fruto de viés ou vício cul-
tural e de escolaridade. Com efeito, a pergunta – que parece pertinente e in-
discutível – é tendenciosa, está mal formulada de saída. No caso desta prática
é claro que a tendenciosidade é proposital, mas no caso da cultura ela é invi-
sível. Quem disse que o universo teve uma origem? Ninguém enxerga a falha
daquela pergunta porque para nós, ocidentais, é inconcebível que algo nunca
tenha tido início – e como encaramos o universo como “algo”, um conjunto
de “estrelas e espaços vazios” ou de “salas” ou de “ônibus”, parece não haver
alternativa ao fato de ele ter tido um começo, nem que eu tenha que entender
que nesse “instante” original também surgiu, então, o tempo. Por isto, excluí-
mos a possibilidade, igualmente plausível, de que o universo nunca tenha tido
um início – seja pela criação natural da física ou a da religião. Hoje começam
a aparecer, mesmo no âmbito da cosmologia científica – mas de modo ainda
minoritário e heterodoxo –, propostas de que o atual universo talvez seja fru-
to transitório de um processo sem começo e sem fim165. Isto ainda envolve
proporcionalmente poucos cosmólogos e está longe de embeber a mentalida-
de popular. O ponto, aqui, é enfatizar como nós, humanos, enxergamos “tudo
que existe” – “dentro” ou “fora” de nós – pelo filtro de nossa respectiva cultu-
ra, na qual a educação tem funcionado antes como doutrinadora do olhar e
reprodutora do status quo, do que fomentadora de questionamento, revisão
163 Maiores reflexões críticas sobre o ponto de vista aqui defendido e possíveis consequências educacio-
nais podem ser encontradas em Jafelice (2002).
164 Não é preciso ressaltar que apesar da resposta dada, não há qualquer compreensão do que significa
aquela “explosão”, que de explosão, teoricamente falando, não tem nada; sem falar da teoria da in-
flação cosmológica. Aquela resposta é automática, tipo “pavloviana”, sem conhecimento de causa,
entendimento ou embasamento científico de fato. Vide maiores comentários sobre distorções da edu-
cação e divulgação científicas na última nota de rodapé do apêndice 5.
165 Neste sentido, vide recente exposição abrangente e instrutiva feita por Mário Novello, em nível de
divulgação, sobre o histórico da pesquisa em cosmologia física e sobre esse outro ponto de vista, ainda
minoritário na área (NOVELLO, 2010).
385
Luiz Carlos Jafelice
e criação de outros olhares. Como diz Aveni (1993, p. 13; a referência deste
livro está na seção Sugestões de leituras), “vemos o que somos treinados para
ver”; o que é válido tanto para fenômenos naturais como para representações
mentais e sociais que dão sentido ao nosso mundo.
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Abordagem Antropológica
Apêndice 4
166 Também abordo os conteúdos específicos habituais de astronomia, no seu devido tempo. Mesmo
para eles adoto procedimentos que exploram o uso do corpo, do concreto e tanta vivência quanto
possível. Este capítulo, porém, se concentra nos conteúdos e estratégias educacionais de teor cultural
associados àquela área. Em Jafelice (2005b) há algumas sugestões sobre encaminhamentos que pro-
ponho para trabalhar conteúdos específicos.
167 Cada Aula que explicito abaixo é de 90 minutos (ou seja: duas aulas comuns seguidas, de 45 minutos
cada uma). Pressuponho duas dessas Aulas por semana, mas isto pode ser adequado conforme as
necessidades.
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Luiz Carlos Jafelice
168 O ideal seria mais tempo. Isto é possível em um curso anual ou mais longo. Em disciplina semestral,
não.
169 Espero que a metáfora seja entendida. É óbvio que não me refiro a grosserias ou irresponsabilidades
de espécie alguma na ação pedagógica. São estilos distintos e esta comporta vários. Aqui, aludo a um de
meus estilos para provocar as desconstruções e descondicionamentos a que me referi na subseção 2.4.
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170 Vide melhor esclarecimento e exemplificação disto no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa).
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Luiz Carlos Jafelice
171 Esta prática, assim como a da composição de uma história coletiva apresentada no apêndice 5, foram
adaptações que fiz a partir de sugestões de técnicas de dinâmica de grupo que Rosa Adriana Piña
Jafelice me passou de seu trabalho em desenvolvimento organizacional e no ensino de idiomas (PIÑA
JAFELICE, 1994).
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Abordagem Antropológica
172 De Martins (1994), seis mitos ao todo: a) indígena brasileiro (nheengatu; p. 7); b) judaico-cristão
(bíblico; p. 9); c) babilônico (p. 10-11); d) filosófico grego (Teogonia, de Hesíodo; p. 22-23); e) in-
diano (do Código de Manu; p. 27-30); e f) indiano (do Rig Veda; p. 33-34). [Disponível também em:
http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/.] Na tarefa, a origem e época de cada mito não estão
especificadas e, ao final, peço: 1) Responda o que você entendeu de cada um dos seis textos acima; 2)
Quais as civilizações que você acha que compuseram cada um desses textos e em que época da histó-
ria da humanidade você acha que isto ocorreu?; e 3) Qual dessas histórias você achou a mais fácil de
entender? Qual a mais difícil? Qual a que mais gostou? (Interessa também destacar e discutir, através
desta tarefa, diferenças profundas entre concepções epistemológicas ocidentais e outras.)
173 Preparei (em 2001) duas páginas com excertos extraídos de Eliade (1993b) e notas de rodapé ex-
plicativas para esta tarefa (futuramente disponível em: http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural; vide
JAFELICE, 2010b).
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Luiz Carlos Jafelice
Aula 5
analisar e discutir o texto sobre a Lua e a mística lunar;
comparar com resultados que eles obtiveram nas entrevistas que
fizeram na primeira tarefa (em particular as da primeira atividade
da Tarefa 1; apêndice 6);
trazer depoimentos e relatos sobre eventuais correlações entre
épocas do mês e quadros psiquiátricos (fontes: estudantes de cur-
sos anteriores; psiquiatra; VINES, 2001);
problematizar história em quadrinhos de Chico Bento174 [Sousa,
1999];
primeiras discussões sobre conhecimentos tradicionais, sua ausência
na escola e na formação de professores; distorções, preconceitos e
exclusões daí resultantes; necessidade de superação dessa defici-
ência; etc. [e.g., Jafelice, 2010a] [vide também a subseção 3.5 e o
apêndice 7 deste capítulo];
desfrute e discussão do poema “O Povo Pataxó e a Lua” [Programa
de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais da Secre-
taria de Estado da Educação de Minas Gerais; buscar na internet
pelo título do poema, clicar em “ver em HTML” e ir à p. 16];
retomar a pré-avaliação e concluí-la;
174 É uma história de duas páginas onde Nhô Dito – um senhor idoso, afrodescendente e provavelmente
analfabeto – questiona a veracidade das informações sobre a ida do homem à Lua que Chico Bento
lhe traz e diz ter aprendido na escola (“a perfessora disse”). Nhô Dito faz questionamentos muito
lúcidos e pertinentes – que, inclusive, criticam a facilidade com que aceitamos informações, em geral,
e os ditos conhecimentos, em particular. Ao final, Nhô Dito – admirando uma lua cheia, na qual
aparecem, lado a lado, São Jorge, seu cavalo e o dragão, olhando com ar de preocupação e tristeza
para a Terra – se pergunta: “será qui as perfessora inda tão cum tempo di oiá pra lua i sonhá um
poco... qui nem eu?”. Essa história é ótima problematização inicial para os embates entre a educação
formal e outras possibilidades epistemológicas humanas e o risco daquela, se não for adequadamente
orientada, contribuir para exterminar conhecimentos tradicionais e favorecer, assim, os empobreci-
mentos epistemológico e cultural decorrentes. Com efeito, no penúltimo quadrinho, Chico Bento sai,
se despedindo de Nhô Dito, e diz: “vô falá ca perfessora essas coisa qui voismecê mi conto!”. E é aí
que a coisa pode ficar muito mais séria e complicada: como foi formada aquela professora/professor
na hora de reagir e contrapor a visão de mundo que convencionamos (que é, inclusive – importante
salientar –, aquela impressa no livro didático, instrumento cujo apoio ao professorado é bem maior
do que seria conveniente) com aquela proferida por uma pessoa que é portadora de pelo menos três
(idade, etnia e grau de escolaridade) das principais características de quem é discriminado no Brasil?
Um aprofundamento para este tipo de discussão e encaminhamentos condizentes constam de Jafelice
(2008b; 2010a).
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Abordagem Antropológica
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Luiz Carlos Jafelice
Aula 8
continuar exemplificando e aprofundando a discussão sobre a or-
ganização da vida pelas culturas humanas em mistura com a dis-
cussão sobre cronobiologia;
Tarefa 8, para discussão na Aula 9: a) faça um resumo, o mais
completo possível, sobre o que descobriu e aprendeu sobre a Lua
somente a partir das suas próprias observações diretas sistemáticas
desse astro seguindo as orientações passadas nas tarefas sobre o
assunto; e b) dê continuidade às tarefas anteriores.
Aula 9
aprofundar ainda mais a discussão sobre cronobiologia [apêndice
1];
distribuir o texto “Descobertas sobre a Lua”176 a cada estudante e
discutir tudo que puderam entender sobre fenômenos envolvendo
ou associados à Lua exclusivamente através de observações regula-
res sistemáticas orientadas (para quem de fato as fez, é claro);
Tarefa 9, para discussão na Aula 10: apenas continuidade das
anteriores.
175 Uma professora me contou que quando criança ela sabia a hora de ir para a escola pelo tamanho da
sombra do degrau na escada da cozinha. Um licenciando me disse que na infância pastorava as cabras
da família e (seu pai ensinou) sabia a hora de voltar quando a sombra de uma vara, em pé no chão, fos-
se do mesmo tamanho desta. É muito importante essa estratégia de você “puxar” esse tipo de assunto
relatando casos correlatos (qualquer que seja o tema que estiver tratando) que você conhece porque
vivenciou, lhe contaram, leu, viu em filme etc. (Como fiz nesta nota, por exemplo, e em outras partes
deste capítulo.) Porque isto invariavelmente favorece que pessoas do grupo comecem a se lembrar e
relatar casos que elas, parentes, vizinhos ou amigos, conhecem. É ótima ajuda para humanizar a aula,
realçar vivências e valores específicos daquele grupo e ir criando laços e uma identidade do mesmo
(da qual você passa a fazer parte, é claro). Não é apenas pedagogicamente conveniente e eficiente. É,
antes, humanamente desejável e gratificante. Claro, uma vez surgindo os relatos próprios delas – em
aula ou fora desta – é essencial dispensar a atenção merecida e socializá-los com o resto do grupo,
estimulando que outras pessoas se manifestem.
176 Observação: não componho esse texto como algo prévio, independente do que os alunos tragam,
pelo menos não para uma grande parte do mesmo. Ao contrário, em função do que trouxerem e for
sendo discutido nas aulas anteriores, vou registrando suas próprias constatações sobre a Lua (em
função do que vou pedindo para notarem associado a ela) e, daí, componho aquele texto. A qualidade
de informação – além do volume – que resulta dessa prática é impressionante, difícil de acreditar para
quem nunca a realizou. Mas é o que tem ocorrido, sem exceção. No anexo A do capítulo 3, Luziânia
Ângelli Lins de Medeiros apresenta uma versão do referido texto.
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Abordagem Antropológica
Aula 10
retomar e concluir as discussões sobre o texto “Descobertas sobre
a Lua”;
discussão sobre as mudanças do Sol de dia para dia;
apresentar as fotos dos pores-do-sol no rio Potengi, vistos da Pedra
do Rosário, em Natal (RN), durante um ano: do solstício de verão
de 2.000 ao de 2.001177;
discutir a importância dos registros topocêntricos dos nasceres e
pores-do-Sol e da Lua desde locais afetiva e/ou culturalmente sig-
nificativos para as pessoas envolvidas;
prática dos gnômons humanos; se o horário não permitir (porque
as aulas são à noite, por exemplo), passar como tarefa [vide sub-
subseção 3.3.2 (As medições da sombra) do capítulo 1];
discussão sobre as outras tarefas específicas envolvendo posição
e deslocamento dos astros e exercitação da visão e da imaginação
espaciais dos estudantes;
Tarefa 10, para discussão na Aula 11: a ser definida em função de
necessidades específicas daquele grupo e da continuidade prevista
em cada intervenção e/ou época.
177 Durante um ano fui lá, a cada 15 dias, para fotografar esse evento de um local que é significativo para
quem vive em Natal – mas cuja população carente que ali vive tem sido ignorada pelas administrações
públicas, em um descaso típico e triste deste país; também este aspecto social discuto ao abordar essas
fotos. Dentre estas, incluo, em particular, as dos dias dos três solstícios – o do verão em que iniciei o
conjunto de fotos e os do inverno e do verão seguintes – e as dos dois equinócios – o de outono e o
de primavera, intermediários. Em várias dessas ocasiões em que fui tirar essas fotos, aproveitei para
conversar com pescadores que residem nesse local e tentar aprender suas outras formas de ver, se
referir a e se relacionar com fenômenos celestes e as conexões destes com o mar e os seres que nele
habitam. Os pescadores – assim como os agricultores – têm muito a nos ensinar, em muitos sentidos.
A ideia de fazer uma tal sequência de fotos me veio de um livro de astronomia – do qual, infelizmente,
não tomei os dados bibliográficos na época em que li partes dele na biblioteca, e depois não consegui
mais localizá-lo –, em que o autor fotografou o nascer do Sol de um solstício ao seguinte (portanto,
durante seis meses) desde a porta de sua casa. Bem, fotografar o nascer do Sol, notívago como sou,
não era um projeto realista. Já, o poente... Foi o que fiz. Escolhi, então, um local significativo para a
maioria daqueles que eram, ou viriam a ser, meu público na disciplina em questão. Busquem lugares
significativos para quem vive na comunidade onde vocês lecionam, empreendam esse tipo de projeto
e depois socializem os resultados com todos. Não é preciso nenhum equipamento sofisticado para
isto. Atualmente, até com certos celulares é possível se tirar tais fotos, baixá-las em qualquer computa-
dor e exibi-las para a classe – mesmo que simplesmente da tela daquele. É preciso apenas planejamen-
to prévio e muita disciplina ao longo de toda a execução do mesmo, para levarem sempre o material
necessário em bom estado de funcionamento e estarem com antecedência razoável (em cada um dos
dias previstos para as fotos) no lugar de onde as tirarão – “o Sol” não espera se vocês se atrasarem para
as fotos, por mais justificáveis que sejam seus motivos! Porém, há relativa flexibilidade; se houver
(pequena) falha incontornável, isto não implica perda do projeto; fotos tiradas até dois dias antes ou
depois da data prevista ainda não o descaracterizam – mais que isto, é o caso de considerar o reinício
do projeto. Boas fotos e encontros!
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Abordagem Antropológica
Constelações
178 Projeção espontânea, isto é, não induzida pela professora/professor. Permitam que as pessoas tenham
contato com o céu estrelado e vejam o que lhes surgir, o que quiserem ou imaginarem ver. Mesmo
que, em uma prática de campo inicial, os alunos perguntarem se “aquela é a constelação de [escorpião,
cruzeiro do sul; órion; etc.]”, não se deve responder e, sim, estimulá-los a admirar aquele céu e ver o
que enxergam nele, se enxergam alguma forma/figura e qual(is). Como destaco em um dos progra-
mas que elaborei para o planetário itinerante da UFRN – enquanto projeto um céu estrelado (no qual
uma pessoa facilmente se perde na busca de referências ou de “imagens” e “padrões” reconhecíveis)
e pergunto quem consegue “enxergar” o caçador Órion (cujo cinturão é composto pelas três Marias)
naquele céu –: “Precisa muita imaginação pra ver o caçador aí [e, neste momento, uso o apontador
laser para delinear na abóbada do planetário o conjunto de estrelas que compõe a constelação da
Órion]. Mas imaginação é algo que nunca faltou às pessoas. Ainda bem, né?” ( JAFELICE, 1998, p.
8).
179 São estrelas que não estão gravitacionalmente ligadas (como em um aglomerado globular) nem for-
mam os chamados aglomerados estelares abertos (agrupamentos de estrelas formadas recentemente
– para as escalas de tempo astronômicas –, a partir de uma dada nuvem molecular interestelar, que
estão se afastando umas das outras por movimento próprio).
397
Luiz Carlos Jafelice
180 Aqui, respeitei a respectiva grafia dos autores para o nome desse povo, a qual difere entre Ribeiro e
Diakuru. Eu mesmo, contudo, para as outras partes do texto, uniformizo e adoto a grafia Desana, de
Diakuru.
181 Também as épocas das “estações do ano” no sertão nordestino brasileiro são marcadas por constela-
ções, como a da barca, por exemplo, como nos ensinou seu Josias da Silva, de Carnaúba dos Dantas
(RN) (SILVA, 2004). Naquela região, há apenas duas estações: o verão, quando há estiagem, e o in-
verno, quando há chuvas. Também lá há mais de um inverno, por assim dizer, intercalados por breves
períodos de estiagens, mas não recebem denominações especiais. A chuva é o elemento determinante
na caracterização dessas estações – e não os meses em que supostamente uma das estações deveria
estar ocorrendo, nem a temperatura média ambiente. Assim, se a chuva vem na época esperada, mas
para por muitos dias e retorna depois, se diz, por exemplo, que “o inverno pegou de novo”. Contu-
do, quanto à relação entre constelações e estações do ano no nordeste brasileiro, são muito poucos
os “profetas” que a conhecem ( JAFELICE, 2010a; 2010b). Aproveitando, cabe mencionar algumas
denominações regionais para “objetos” astronômicos reconhecidos pela astronomia oficial, como, por
exemplo: Setestrelo, para as Plêiades; Velho Carreiro, para a Via Láctea; Duas Nuvenzinhas (às vezes
chamadas Duas Manchinhas) do Sul, para as Nuvens de Magalhães; entre outros.
398
Abordagem Antropológica
deste brasileiro, como a da barca, a dos três Reis Magos e a das três Marias
(sendo que este último conjunto – que ocidentalmente não é reconhecido
como constelação – não é aquele que conhecemos por esse nome) etc., co-
mentadas em Jafelice (2010b).
Para este tema, em particular, merecem destaque as representações e
organizações dos Desana, pois exemplificam possibilidades de riqueza e di-
versidade de relações humanas integradas com o ambiente, no sentido amplo
deste termo, conforme aqui adotado.
Para os Desana do rio Tiquié,
as épocas de derrubada, queima e plantio das roças, no rio Tiquié,
são calculadas pelo aparecimento de [dezenove] constelações e das
chuvas concomitantes, entre as quais medeiam curtas estiagens. [...]
[àquelas chuvas] correspondem fenômenos naturais, tais como: a pi-
racema (subida de algumas espécies de peixe em desova); subida de
cardumes de peixes não em desova; maturação de saúvas, térmites,
gafanhotos e larvas de borboletas, de que os índios se alimentam em
determinadas épocas do ano; maior concentração de rãs (localizadas
pelo seu canto) e de cogumelos, também comestíveis (RIBEIRO,
1995, p. 107).
182 É muito instrutivo contrapormos essa complexidade e exuberância de organização “sazonal” de uma
cultura autóctone (aliás, no caso, brasileira), com o quadro típico no ensino do assunto “estações
do ano” nas disciplinas de ciências e geografia da nossa educação formal. Aquele antigo esquema
(mas ainda presente, aqui e ali, em livros didáticos daquelas disciplinas) das quatro estações bem
diferenciadas entre si, com suas ilustrações características (de países do hemisfério norte – de onde
aqueles esquemas são importados – de alta latitude): flores; sol; folhas caindo; neve. Quase como se es-
399
Luiz Carlos Jafelice
400
Abordagem Antropológica
caso, como falei, há apenas duas estações do ano: o inverno (quando chove) e
o verão (nas estiagens), havendo intercalações curtas desta naquela.
Notem ainda que as constelações Desana aludidas – sejam as 19 do
primeiro grupo mencionado ou as 22 do segundo grupo – são, todas elas, au-
tóctones, isto é, não guardam relação com quaisquer das 88 constelações ofi-
cializadas no Ocidente184. Além disto, aquelas constelações (de novo, sejam as
19 ou as 22) dizem respeito exclusivamente às associadas como marcadoras
das “estações do ano” – como sempre, na acepção indígena de estação. Diaku-
ru, no capítulo em que trata especificamente da “História das constelações”
do grupo Wahari Diputiro Porã, explicita: “Há várias outras constelações no
céu que não foram contempladas aqui porque elas não indicam nenhuma es-
tação do ano” (DIAKURU, 2006, p. 39).
Mesmo em uma só cultura (Desana), relativamente restrita em termos
geográficos, o calendário econômico muda de grupo para grupo. Para os De-
sana do rio Tiquié, “o ano começa em outubro. Nesse mês surgem, no poente,
quatro constelações, às quais correspondem chuvas que recebem os mesmos
ocorrer! (CIRINO FILHO, 2010). Seu Deca Marinheiro nos contou (em meados de junho de 2010)
que o cajueiro estava florando fora de época há um bom tempo já, mas sem segurar a carga (i.e., sem
manter a florada na planta – outra indicação, neste caso negativa, para o prognóstico de inverno para
o ano seguinte), e que a pinha já havia florado duas vezes neste ano (até junho de 2010) e tampouco
segurou a carga (SANTOS, 2010). Os três conjuntos de relatos acima registram comportamentos
ambientais anômalos. Estes exemplos são uma mostra evidente não só da construção das experiências
tradicionais em interação estreita com o ambiente, mas da atenção e abertura dos conhecedores para
a dinâmica e mudança deste. As transformações climáticas em nível mundial (como, por exemplo, o
fenômeno do El Niño, ou a indicação mais recente de um aquecimento global, e suas decorrências)
se manifestam localmente com alterações peculiares específicas. É importante notar que também ao
registro das alterações os conhecedores tradicionais estão sensíveis e atentos.
184 Outro exemplo neste sentido é dado na subsubseção 3.2.2 (Constelações de tinta em papel) do capítulo
2, onde são mostrados padrões enxergados em uma mesma região do céu pelos índios Tembé (no
Pará e parte do Maranhão, que veem a constelação da Ema), na cultura havaiana (que identificam
um anzol) e na nossa cultura (que herdou a imagem do escorpião). Conforme exponho em Jafelice
(1998, p. 4), “os havaianos enxergaram diferente dos sumérios, porque seu mundo e sua cultura eram
diferentes daqueles dos sumérios. [...] Se fôssemos herdeiros da cultura havaiana [que vê no céu um
símbolo de seu mito de criação: o anzol], nossas constelações seriam outras”. Como destaco na sub-
seção 2.2 (Quantos céus existem?) deste capítulo, a despeito do conjunto, disposições e brilhos rela-
tivos das estrelas etc. serem fisicamente os mesmos no céu, o céu caro ao humano, parte da vida – e,
portanto, do ambiente –, contém inúmeras outras componentes que lhe conferem significado maior.
Repetindo o que mencionei lá: “o céu não é único; há tantos céus quantas culturas humanas”. (Vejam
também JAFELICE, 2009a). E repito também a advertência que fiz na subseção 3.5 (Conhecimentos
tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia), sobre a improcedência e equívoco, cometidos com
frequência por astrônomos, “de querer sobrepor, traduzir, comparar ‘céu indígena’ com o ‘nosso’, oci-
dental”. Não é por aí, se não quisermos de fato adotar e impor nossa forma de ver o mundo como
padrão de referência para todas as outras leituras culturais no planeta.
401
Luiz Carlos Jafelice
nomes” (RIBEIRO, 1995, p. 108). Para o grupo Wahari Diputiro Porã, “o ano
começa na segunda quinzena de agosto, quando a constelação [...] [da garça]
entra no poente, ao cair da tarde. [Esta é a primeira estação, a da “enchente
da garça”]” (DIAKURU, 2006, p.18). Dentre as constelações marcadoras de
estações que são comuns a ambos os grupos, inclusive pela ordem em que
surgem, estão, por exemplo, as da “enchente da cabeça da jararaca”, “enchente
do corpo da jararaca” e “enchente dos ovos da jararaca”185.
185 Notem as denominações escolhidas para essas constelações autóctones. Como se esperaria, elas têm
que ter sentido para quem as vive e as cria. Nesses exemplos (mas não só neles), a relação íntima
daquelas nomeações com habitantes e acontecimentos do ambiente (físico e simbólico) em que
aquela cultura existe é evidente.
186 Faço isto independentemente de ser época em que a Lua esteja visível ou não. Saber que ela não está
visível também denota grande proximidade com desenrolamentos no céu. Às vezes, formulo questões
mais difíceis, como: “você viu Vênus no céu hoje?” ou “[...] Júpiter [...]?” ou “[...] as três Marias [...]?”.
Mas o intuito não é dificultar, por isto prefiro me referir à Lua, muito mais relevante nessa iniciação
de contato regular com o céu.
402
Abordagem Antropológica
exatamente despertar esse tipo de frisson; e 3) para fazer tal prática (assim
como para poder comentar sobre as tarefas envolvendo observações do céu)
eu preciso ter visto a Lua antes, naquele dia, e saber exatamente a aparência
dela – além de sua posição no céu para um dado horário e inferir como ela
estaria/estará em horários anteriores/posteriores (portanto, quem for fazer
esta prática também precisa se preparar neste sentido, é claro).
Um outro objetivo evidente desta prática é deixar explícito como per-
demos o hábito de ter contato regular com o céu. Como o arqueoastrônomo
Antony Aveni sintetiza:
Tudo o que aprendemos sobre o céu hoje é adquirido por meio da
leitura de livros [ou da visita a sítios na internet, podemos acrescen-
tar sem em nada alterar a ideia] e, ocasionalmente, da visita a um
planetário. Exceto, talvez, quando abrimos a porta à noite para colo-
car o lixo para fora [...] [ou quando estamos] no caminho para casa
e damos uma olhada para cima para ver se poderá chover amanhã,
vivemos em um mundo basicamente sem consciência da metade de es-
paço visível que está acima do nível de nossos olhos (AVENI, 1993, p.
20; ênfases minhas, que destaco em aula).
187 Pois a fração dos que viram a Lua costuma ficar na faixa dos 15%; os que sabem dizer com segurança
sua aparência e localização é menos da metade daqueles; e os que sabem sobre os outros astros são
muito mais raros ainda.
403
Luiz Carlos Jafelice
Apêndice 5
188 Este apêndice é adaptação da subseção VII.2 (Primeiro Dia de Aula: Origens) de Jafelice (2004, p. 38-
40).
189 Para quem estiver estudando este capítulo, já deveria ser claro, nesta altura, que o conteúdo do mesmo
se refere aos bastidores, por assim dizer, da abordagem pedagógica que proponho. Quem participou
de alguma intervenção minha, mas não para formação de professores, provavelmente não identifica-
rá aqui muito daquilo que vivenciou lá, enquanto estudante. Aliás, provavelmente essa pessoa não
reconheceria aquilo que, quando vivenciado na intervenção, fluiu de maneira tão simples e agradá-
vel, além de instrutiva e formativa. Aqui, pela própria finalidade do texto, explicito, discuto e explico
muitos dos truques, embasamentos, pressupostos e esperanças – sim, porque é óbvio que há também
“truques” em uma pedagogia bem-sucedida; não para enganar, mentir, converter, tirar proveito, mas
para jogar a atenção para algo, quando o que precisa ser alcançado está em outro algo, que a prática
mostra que se for abordado diretamente não atinge o objetivo (pedagógico) desejado (seria, diga-
mos, uma “prestidigitação” com finalidade pedagógica). Ademais, um fazer pedagógico eficaz requer
de quem medeia o processo a habilidade de assumir uma persona – “máscara social”, no sentido jun-
guiano, mas aqui a ser elaborada e colocada pela própria pessoa, como faz uma/um atriz/ator (posto
que lecionar também é encenar, interpretar um papel, encarnar uma personagem), de modo mais
consciente e controlável, como recurso pedagógico adicional –, adaptável e conveniente às necessi-
dades pedagógicas de cada situação em particular, como já exemplifiquei que faço, em outras partes
deste capítulo. Ser educadora/educador implica ser também maleável e múltipla(o), para melhor be-
neficiar seus alunos do momento e circunstância em questão. Não teria cabimento expor isto tudo
para quem não está, nem vai estar, envolvida(o) em incluir o que é abordado aqui em sua própria
prática pedagógica. Com efeito, para quem não vai lecionar estes temas, ter que lidar com estas outras
discussões, de fundamentos e estratégias, seria supérfluo, desvio, enfado, e há risco de ser contrapro-
ducente. Este capítulo todo é formativo (além de informativo), portanto trata dos bastidores. Espero
que eles sejam úteis para atuais ou futuros professores, pessoas envolvidas com formação de professo-
res ou com divulgação em astronomia e em questões ambientais. Esta exposição, contudo, ficou mais
densa e técnica do que imaginei. Talvez por isto relutei tantos anos em tentar organizá-la em palavras,
de modo mais completo, para terceiros. Não saiu o que eu gostaria, mas ao menos saiu um registro
geral. O texto ficou extenso e ainda acrescido de mais de duzentas notas de rodapé (!) – cuja aco-
modação mais sensata em novas subseções, por exemplo, exigiria um tempo de que não dispus; não
foi apenas questão de meu estilo narrativo, foram complementações que considerei imprescindíveis,
mas de cuja necessidade só fui me conscientizando ao longo das revisões finais, quando já era inviável
modificar o capítulo como conviria. Enfim, espero que quem se dispuser a atravessar certas agruras
desta exposição consiga sair menos confusa(o) do que entrou e com a percepção de que a aplicação
exitosa desta proposta não é, de fato, algo tão complicado (como pode parecer à primeira vista para
404
Abordagem Antropológica
alguns, ainda mais por eu não ter enxugado e suavizado a narrativa como poderia), além de ser muito
gratificante. Estou ciente que ela pode, talvez, soar heterodoxa para os padrões e valores vigentes, aos
quais nossa educação formal só faz reforçar nosso apego. Creio, porém, que quem se liberar da nossa
habitual subserviência a um formato único de pensamento, e não tiver receio de experimentar – ainda
que para isto tenha que subverter a ordem – visando sempre um trabalho responsável de inclusão e
acolhimento das diversidades e o bem de todos, não terá dificuldade em enxergar e pôr em prática o
espírito de desprendimento desta abordagem. Esta poderá, então, melhor exibir seu potencial e fluir
profícua e fecunda, sem simplismos, mas com simplicidade.
190 Nem os cumprimento, se possível. Afinal, como veremos neste apêndice, isto tudo faz parte da en-
cenação – eles não sabem que se trata de uma, mas quem precisa saber isto, no momento, é só você,
enquanto educador(a).
191 É pertinente mencionar que é frequente nesse segundo desenho aparecerem céus astronômicos, re-
ligiosos e misturados. Mas é interessante observar que mesmo em desenhos aparentemente de um
céu apenas astronômico, só com estrelas, planetas ou parte do solo na Terra, é comum aparecerem
pessoas e explicitamente expressões de afeto (mãos dadas etc.). Transparece uma concepção muito
presente: o ser humano está incluído no céu! (Ao passo que nossa cultura tem forçado sua exclusão –
e não estou fazendo alusão à expulsão bíblica do paraíso, bem entendido. Se essa exclusão (ainda) não
consegue êxito psicológico profundo maior – como indicam muitos daqueles desenhos –, ela já tem
suficiente eficácia para embotar expressões, sentimentos e pensamentos que explicitem aquela inclu-
são e inibir – em particular através de nossa educação formal, mas não apenas – vivências integradoras
daqueles elementos todos.)
192 Esta prática, assim como a do aquecimento no apêndice 4, foram adaptações que fiz a partir de suges-
tões de técnicas de dinâmica de grupo que Rosa Adriana Piña Jafelice me passou de seu trabalho em
405
Luiz Carlos Jafelice
406
Abordagem Antropológica
193 Mandala é uma figura simétrica, centrada, muito usada no Oriente para meditação. O psiquiatra suiço
Carl-Gustav Jung levou esse tipo de figura para a psicologia ocidental e a associou ao que ele cha-
mou de processo de individuação. No Brasil, em particular, a psiquiatra alagoana Nise da Silveira,
trabalhando no Rio de Janeiro, usou motivos mandálicos no tratamento de pacientes esquizofrênicos,
onde aqueles se mostraram favorecedores no processo de reintegração da personalidade nesses pa-
cientes.
194 Atenção: as considerações desse parágrafo são especulativas, embora elas tentam se fundamentar em
algum argumento. Seria interessante que algum estudo futuro, de caráter transdisciplinar, pudesse
tentar confirmá-las ou refutá-las. Seja como for, sua confirmação ou não é indiferente para a aborda-
gem proposta e, importante frisar, não pretendo fazê-las passar como se fossem constatações científi-
cas. Representam apenas um livre pensar posto público, uma troca de ideias informal.
195 Na verdade, os supostos sucessos teórico-observacionais que os cientistas alegam ter obtido, sempre
chegam ao público, sem exceção, via textos de divulgação científica – mesmo quando estes são es-
critos por cientistas da área. Não poderia ser diferente, dada a complexidade conceitual-matemática
associada à formulação e estudo científicos de tal assunto. Mas, por melhor que esses escritos sejam
redigidos e ilustrados, o público está entendendo mesmo o que está em jogo, o que está sendo propos-
to e qual a solução que se está dizendo que “explica muita coisa até o momento”? Gaston Bachelard,
questiona a tendência de se pedir ao “cientista [...] para reduzir o conhecimento científico ao conhe-
cimento usual, isto é, ao conhecimento sensível”, pois, assim, se está incorrendo em grande erro e em
nada contribuindo para que alguém entenda o que ainda não conhece, porque esse alguém terá que
estar “disposto a saber de modo diferente [...] Em suma, tratar-se-á de curiosidade ou de cultura?”.
E enfatiza: “[s]e a ‘explicação’ [de uma teoria ou resultado científico] não passa de uma redução ao
conhecimento vulgar” em nada se avança em termos epistemológicos (BACHELARD, 1951, apud
ZANETIC, 2006, p. 85). Ludwig Wittgenstein, sendo ainda mais incisivo, considera que fazer divul-
gação científica é pretender fazer com que as pessoas acreditem “que entendem algo que realmente
não entendem e satisfazer assim o que considero um dos mais baixos desejos do homem moderno, a
saber: a curiosidade superficial sobre as últimas descobertas da ciência” (WITTGENSTEIN, 1930,
apud DALL’AGNOL, 2005, p. 215). Infelizmente, porém, isto é tão alimentado nas publicações ditas
populares sobre ciência (aliás, esse quadro só se agudizou nos últimos oitenta anos). Mas, permanece
a pergunta básica: o que o público está entendendo de fato sobre o “big bang” (ou sobre os outros
modelos científicos assim difundidos)? Que embasamento e autonomia autênticos de raciocínio são
incitados naquele público? É, no melhor dos casos, ingenuidade acreditar que a “educação científica”
– da forma em que é empreendida, amparada na visão de mundo que a nutre – vá municiar os “cida-
dãos” com conceitos e instrumentos intelectuais que os capacitem a opinar com conhecimento real
de causa sobre esses assuntos tão especializados, construídos segundo a leitura científica de mundo,
407
Luiz Carlos Jafelice
que se resolveu adotar hegemonicamente (mais críticas neste sentido em JAFELICE, 2008a, LOPES
e JAFELICE, 2009, JAFELICE, 2009b, e LOPES, 2010). Ainda para explicitar a atualidade e a gravi-
dade da situação, convém relembrar: em maio de 2004, um grupo de cosmólogos – tão sérios e com-
petentes quanto os que eles acusam – lança uma carta aberta à comunidade científica. Eles criticam a
postura totalitária dos defensores do modelo cosmológico da grande explosão e afirmam que estes os
têm discriminado sistematicamente e imposto restrições às suas pesquisas pelo fato de eles não con-
cordarem com aquele modelo. Os signatários da carta denunciam que tal procedimento “reflete uma
postura mental dogmática crescente que é estranha ao espírito da livre pesquisa científica” (VÁRIOS
AUTORES, 2004; tradução minha). Ou seja: aquela teoria – que qualquer “cidadão” escolarizado
hoje vai prontamente responder que “é a que explica como o universo surgiu e evoluiu”; teoria para a
qual parece não haver escapatória, que parece expressar a ontologia derradeira sem sombra de dúvida
– têm sérios discordantes entre cientistas. (Outras críticas à hegemonia infundada desse modelo, jus-
tificativas para as mesmas e discussão de modelos alternativos, são apresentadas pelo cosmólogo bra-
sileiro Mário Novello em NOVELLO, 2010.) Notem ainda que o procedimento inaceitável criticado
naquela carta está ocorrendo dentro da própria comunidade científica. E este caso, envolvendo a área
de cosmologia, não é exceção. Situações semelhantes se repetem nas áreas de antropologia, biologia,
arqueologia, astronomia, física, química etc. (e.g., COLLINS e PINCH, 2003). Discuto mais estas
questões na subseção IV.2 (Qual a (De)Formação do Educador e do Divulgador Científicos?) de Jafelice
(2004, p. 15-21).
408
Abordagem Antropológica
Apêndice 6
196 O adjetivo populares não deve ser entendido com nenhuma conotação pejorativa, ainda comum no
ambiente escolar e social, como comento no apêndice 7. Preferi mantê-lo nesse título (em vez de
substituí-lo por tradicionais, alternativos etc. – aliás, inadequados para o caso, conforme se depreende
da terceira atividade da Tarefa 1 abaixo), porque importa ressaltar (para os estudantes lá, ao recebe-
rem e realizarem a tarefa, e no texto aqui) a necessidade de reaproximação também com essa dimen-
são (em contraste com a erudita) e porque foi o que adotei historicamente, em 1998, quando comecei
a aplicar a Tarefa 1.
409
Luiz Carlos Jafelice
197 Por isto, mesmo quando chega o momento de “dar” respostas, não as exponho diretamente, e, sim,
adoto a velha e eficiente maiêutica socrática – adaptada aos nossos tempos, com pequenas variações,
e denominada abordagem problematizadora. Então, através de sequências de perguntas e reflexões
– para que os alunos tenham sempre tempo e oportunidade para experimentar caminhos interiores
e formular testes pessoais e, desta forma, participarem mais ativamente na construção do próprio
conhecimento – vamos chegando aos esclarecimentos procurados. É frequente outros esclarecimen-
tos surgirem no percurso, pois muitas áreas são estimuladas com aquelas “provocações”. Quando o
professor consegue dominar a própria insegurança e ansiedade, aquele processo dialogado e dialético
continua sendo dos melhores, pedagogicamente falando.
198 Embora as pessoas vejam a Lua perto do horizonte oeste, logo depois que o Sol se pôs, elas acham que
a Lua pode estar minguante. Elas não têm a menor noção e não têm como saber, na verdade. Por isto,
uma resposta direta àquela pergunta não vai ajudá-las a entender, de fato, isto é, incorporadamente,
o que está ocorrendo e porque aquela “lua” não pode ser minguante. Portanto, aguardo o momento
em que aquele esclarecimento possa ser dialogado com elas – que será após elas próprias terem se
esclarecido através das observações que lhes orientei para fazerem.
410
Abordagem Antropológica
to isto for possível) tal como a estão vendo, em um pedaço de papel de 10cm
X 10cm. Com estes desenhos vamos montando o calendário lunar daquela
turma. Em uma parede longa, colo 31 números alinhados horizontalmente
– escritos também em papel daquelas dimensões (embora isto não seja essen-
cial). Então, sob cada número (que representa o dia do mês), vamos colando
o desenho daquele dia, o qual escolhemos em conjunto199. Após dois a três
meses já é possível que os alunos comecem a perceber que vai se configuran-
do um padrão de sequência de “formatos” da Lua.
Uma das ideias básicas dessa prática é estimular outras associações e
ajudar as pessoas – em geral pouco ou nada habituadas a um contato viven-
ciado com ritmos celestes – a concretizarem esses ritmos, através de um re-
gistro que reproduz as primeiras organizações na medida do tempo feitas por
praticamente todas as culturas humanas. Esta segunda tarefa também está ex-
plicitada abaixo. Nos capítulos 1 e 3 os interessados encontrarão maiores es-
pecificações sobre essa prática de montagem do calendário lunar da turma.
Na terceira aula os alunos chegam sabendo, por inspeção direta, que a
Lua não pode estar na fase minguante, isto é, que a Lua não pode estar “min-
guando”, sumindo, porque sua parte iluminada está aumentando. E eu não
precisei falar nada a respeito! Auxiliados pelas orientações dadas, eles che-
garam por si mesmos ao conhecimento que era ansiado e possível até aquele
momento200.
199 Na falta de uma parede suficientemente longa para comportar os 31 papéis em linha reta, estes podem
ser colados fazendo-se “caminhos” na parede ou em um pedaço de papel largo, como o de embrulho,
ou ainda eles podem ser colados dispondo-os em duas ou mais linhas paralelas. Por exemplo, na Fi-
gura 2 da subseção 1.1 (Por um ensino de Astronomia Vivencial) do capítulo 1 é mostrada uma foto
onde um calendário lunar foi feito sobre papel madeira (de embrulho) no qual não havia espaço para
os números serem dispostos em uma linha reta; neste caso, cada mês fica representado em um papel
madeira daqueles. A desvantagem aqui é que esta disposição não favorece que se enxergue a formação
de um “padrão lunar” após alguns meses – e esta percepção é um fruto muito importante a se buscar
com a presente prática. Às vezes, contudo, é impossível montar-se o calendário em linha reta; nestes
casos é preferível montá-lo e trabalhar-se os muitos outros elementos que eles possibilitam, do que
não montá-lo; além disto, pode haver um tipo de vantagem em montar-se o calendário em um papel
como o mostrado naquela foto: é fácil de retirá-lo da sala, se necessário (porque, por exemplo, esta é
ocupada por outros grupos que, eventualmente, podem não respeitar o trabalho feito por colegas de
outros turnos), e guardá-lo até a próxima aula. Na foto da figura 7 do capítulo 3 há uma situação de es-
colha do desenho que irá para a parede. É importante destacar que essa escolha cuida de democratizar
a inserção dos desenhos, de modo a garantir que, ao longo do tempo, cada um da turma tenha alguns
desenhos seus compondo o referido calendário, que é coletivo.
200 Claro que mais adiante, na intervenção, vou trabalhar com eles o motivo de existirem fases da Lua
para quem a vê desde a Terra. Contudo, mesmo esse trabalho, é importante destacar, será feito sempre
na base de atividades corporais e materiais instrucionais concretos – deixando por último a discussão
411
Luiz Carlos Jafelice
sobre aqueles desenhos típicos nos livros didáticos. Mas isto tudo só será feito quando os alunos
estiverem em outra etapa no aprendizado desses assuntos. Está além do escopo deste livro especificar
esse outro tipo de atividades pedagógicas. Boa parte dessas práticas, envolvendo esse outro tipo de
trabalho com conteúdos específicos de astronomia, constam de Jafelice (2005b).
201 São tarefas envolvendo atividades não-verbais e textos para trabalhar elementos de mitologia, história
da humanidade, história das religiões, cronobiologia, origem do universo etc. Em grande medida elas
são comentadas no apêndice 4 (O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados) e referências lá cita-
das; algumas daquelas tarefas e práticas estão adaptadas e desenvolvidas nos outros capítulos deste
livro.
202 Essa constatação – pode-se dizer óbvia –, de que é preciso (muito) tempo para se conhecer os rit-
mos astronômicos, não me era tão evidente, ou suas implicações não me eram de todo tão claras;
eu a concretizei devido a uma fala de Néstor Camino, durante a apresentação de um trabalho seu (o
qual, porém, enfatizava principalmente o ponto de vista cognitivo associado àquele conhecimento)
(CAMINO, 2000). Mas, minha direção e impulso de chegada a essa conscientização eram bastante
distintos dos que inspiram as abordagens técnico-cientificistas habituais na área, como expus na se-
ção 1 (Breve histórico). Por isto, e em conjunto com meus outros percursos e perspectivas, também lá
expostos, fui, então, desenvolvendo diversas associações adicionais. Notem: tempo é elemento cons-
titutivo da astronomia também pedagogicamente falando – pelo menos para uma abordagem como a
aqui proposta. Vamos, então, seguir o que esse tempo nos pede e também nos propicia. Vamos dar
tempo para as muitas (re)descobertas que precisam ser vividas, antes que quaisquer outras concei-
tuações. Por isto, a estrutura de um curso, ou conjunto de aulas, não deveria se pautar pelos textos
ou sequências de conteúdos específicos comuns em livros ou cursos de astronomia – como tenho
repetido, também aqueles serão aproveitados no seu devido tempo, mesmo assim, entretanto, desde
um enfoque muito distinto da educação formal dominante, a qual, na minha opinião, corre o risco de
perpetrar descalabros formativos. Ao passo que se cada pessoa receber orientação apropriada para ir
tendo pelo menos a noção de como ela própria experimenta as inúmeras vivências associadas a um
412
Abordagem Antropológica
“fluir temporal” desde onde este se concretiza – cultural, biológica, psicológica e historicamente –
para os seres humanos (i.e., a partir das relações entre céu, terra, ambiente e vida – interior e exterior)
e, através dos trabalhos de campo, entrevistas, exemplos de outras culturas, trocas em sala de aula, ir
percebendo como seus parentes, vizinhos, amigos, conhecedores tradicionais, colegas de turma etc.
o fazem, podemos ter alguma esperança maior – embora não certeza, é claro – de que essa pessoa
possa começar a se colocar no lugar do “outro” para entender ou aceitar outras formas de se enxergar
as “mesmas” coisas.
203 Como bem dizem os sempre inspiradores Saló e Barbuy (1977, p. 25): “primeiro conhecer o bosque,
as noites estreladas e os rios serpenteantes antes que as plantações alinhadas, os canais de irrigação e
os letreiros luminosos para que a expressão surja como linguagem sem idioma”.
413
Luiz Carlos Jafelice
204 Para a primeira aula, como, pela linha que proponho, não devo antepor explicações ou conceituações,
aproveito para fazer algumas práticas não-verbais – no caso, envolvendo desenhos e criação de histó-
ria coletiva pelo grupo – sobre concepções cosmogônicas e sobre o céu, e enceno a fase caótica, de
pré-criação do cosmo, conforme é recorrente nas cosmogonias de várias culturas. Estas práticas que
adoto nesse tipo de introito estão detalhadas no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras, expressões
culturais e psicológicas) e referências lá citadas. Em parte elas também são adaptadas e apresentadas
nos capítulos 2 e 3 deste livro.
414
Abordagem Antropológica
Sol no céu. Descubra se atualmente Vênus está como estrela d’alva, vespertina
ou não está visível.
Uma vez descoberto isto, e se ele estiver aparecendo, obser-
ve Vênus também no dia seguinte e em outros dias. (Se ele não estiver visível,
pastore o céu diariamente, nas proximidades do Sol, e passe a acompanhar
Vênus dia a dia assim que ele voltar a aparecer.)
[Comento ainda: neste segundo item, em princípio, não há nada para
você me entregar. Mas, se você expressou tal vivência de alguma forma e quer
mostrá-la a nós, traga-a.]
3. Você sabia?
Pergunte a conhecidos, pelo menos a umas duas ou três pessoas, que
não fazem parte deste curso/disciplina/intervenção, as questões abaixo (mas
sem inibir nem induzir nenhum tipo de resposta; deixe que as pessoas falem
espontaneamente sobre esses assuntos):
Qual sua relação com a Lua? (Anote as principais
respostas.)
Qual sua relação com a estrela d'alva ou com a vésper?
(Anote as principais respostas.)
Para quê servem as estrelas? (Anote as principais
respostas.)
Se você tiver alguma outra ideia, ou tipo de pergunta que
lhe ocorrer fazer, realize-a e anote-a também.
Você também deve compartilhar essas suas anotações com os colegas
na próxima aula.
[Comento também: ou seja, você deve me entregar, na próxima aula,
os resultados, por escrito, de todas as entrevistas que fez sobre os três (ou
quatro) subitens deste terceiro item.]
1. Desenhando a Lua
Esta tarefa é para ser feita todos os dias, a partir deste segundo
dia de aula, até o final desta intervenção (curso; minicurso; disciplina; etc.).
415
Luiz Carlos Jafelice
205 Por isto, leitora ou leitor, atenção para dois pontos: oriente devidamente os alunos sobre os comen-
tários que constam desse parágrafo e não misture esta tarefa com a primeira. Repetindo: passe esta
tarefa somente na segunda aula (isto é, no segundo encontro – em um outro dia – que tiver com o
grupo) e reforce que ao fazerem-na, os alunos devem fazer sempre antes a primeira tarefa – ou melhor:
os dois primeiros itens da Tarefa 1 (evidentemente sem a parte de redigirem de novo uma descrição
por escrito), que incentivam um reencontro de contemplação e imersão com as coisas do céu.
206 Vide acima, neste apêndice, maiores comentários sobre a elaboração desses calendários lunares, obje-
tivos e implicações da prática; vide também nota de rodapé associada àqueles comentários, onde dou
explicações adicionais e referências cruzadas para outras partes deste livro; vide ainda Jafelice (2004;
2005b) sobre o assunto.
416
Abordagem Antropológica
ela não apareceu nas vezes em que você a procurou ou porque estava nublado
ou chovendo, mesmo assim desenhe um pedacinho do céu, do jeito que você
o está vendo (“perto” de onde a Lua “deveria estar”), no papel, para represen-
tar o que você viu também naquele(s) dia(s) em que não pôde ver a Lua.
Aproveite esta tarefa observacional e preste atenção também em tudo
que vai mudando na Lua de dia para dia e como tais mudanças se dão confor-
me os dias passam (e, às vezes, mesmo durante um único dia, entre seu nas-
cente e seu poente). Atente para a mudança na forma, ou no aspecto, da Lua;
como tal aspecto muda; como o horário em que se vê a Lua em certa altura
no céu muda; como muda a posição da Lua em relação a um dado conjunto de
estrelas de fundo (que você escolhe como referência, a cada 2 ou 3 dias); como
mudam outros fatores relacionados à Lua (cor, brilho, tamanho, caminho que
ela descreve no céu, a “inclinação” das “pontinhas” dela e/ou de manchas nela
no céu, horários e locais em que nasce e se põe etc.) e quaisquer outras mudan-
ças que você observar com o passar do tempo.
Últimas orientações
Aproveite estas tarefas também para ir restabelecendo e incorporando
a sensação de um dos ritmos cósmicos fundamentais para quem vive na Terra
– o ritmo lunar, que contém vários sub-ritmos, na verdade.
Não se prenda à definição convencionada sobre “as quatro fases da
207
Lua” . Como destacado no item 16 do anexo A do capítulo 3, a aparência
207 Esta é outra tentativa de sistematização (reducionista) grega que herdamos. Como este tipo de con-
cepção, hoje genericamente denominada greco-cartesiana ou apenas cartesiana, veio a caracterizar o
que se entende por ciência na modernidade e estamos constantemente expostos à sua forma de ver o
mundo, achamos que aquela convenção das fases lunares não é arbitrária, é constitutiva, explica ou es-
clarece como as coisas são, quando, de fato, aquilo não tem nada de ontológico, nem na circunscrição
científica do que seja ontologia. Ou seja, a Lua não tem, objetivamente falando, quatro fases (ou qual-
quer número delas que seja); estas não fazem parte de uma propriedade da Lua; é uma aparência, algo
relativo, devido à posição de onde um observador enxerga a mudança de posicionamento da Lua em
relação à “linha” Terra-Sol que ocorre em um plano próximo a essa “linha”. Aquela convenção, então,
consiste apenas em se selecionar quatro instantes – interessantes pela geometria particular envolvida
no posicionamento relativo entre Lua, Terra e Sol (quando “observado” desde certo ponto de vista
“do espaço”, bem entendido, i.e., de fora da Terra – onde não costumamos frequentar; portanto, “vi-
são” essa dependente de imaginação espacial e abstração) – dentre infinitos outros. Foi um proceder
com inegável importância histórica e interesse intelectual ainda e sempre atual, mas que precisa ser
superado enquanto prescrição descritiva, pois não atende outras necessidades contemporâneas bási-
cas, de teor qualitativo, não cartesiano e relativista, na construção de significados. Ainda sobre aquelas
“fases”, muitas pessoas não entendem as divisões das “luas” que aparecem nos calendários. Perguntam
com frequência: “por que a lua cheia dura uma semana se a gente só enxerga ela cheia mesmo uns dois
ou três dias por mês?” (o mesmo tipo de dúvida, é claro, se aplica às outras fases). (Sem dizer que as
417
Luiz Carlos Jafelice
(da parte iluminada) da Lua muda a todo instante para nós, que a vemos da
Terra. Quer dizer, a Lua não tem apenas as quatro fixas fases, ela tem infinitas
faces; ou, se preferir, uma só, com sombreamentos e matizes ininterrupta e
ciclicamente cambiantes.
Conforme o tempo passa, os dias passam, preste atenção também em
si mesma(o) e se há alguma relação entre seus estados de espírito e as mudan-
ças que você vê que estão acontecendo com a Lua ou com o Sol ou no céu,
em geral.
Preste atenção também se você observa mudanças nas plantas e nos
animais conforme o tempo passa, em relação com as mudanças da Lua ou
outras mudanças celestes que você perceber.
Não force, nem invente, nenhuma dessas mudanças – e se notar mes-
mo alguma mudança, não se preocupe em arrumar explicações ou em querer
interpretá-la como sendo fruto de correlações causais habituais. Apenas tente
perceber se você nota, de fato, alguma dessas eventuais mudanças ou não.
Se nada notar, não se preocupe. Dê tempo ao tempo. Além disto, há muitas
formas de nos relacionarmos com o que existe. O importante, no caso, é você
continuar a se dedicar à realização das tarefas e a desfrutar o que elas lhe pro-
piciarem.
pessoas sequer têm noção de que a “lua cheia” propriamente dita, isto é, a Lua na configuração física
orbital em que ela é definida como estando “totalmente cheia”, só existe enquanto tal em um único
instante, tão fugaz e inapreensível quanto o presente! É esse o instante que os anuários astronômicos
indicam como sendo o da lua cheia – ou o respectivo instante de qualquer uma das outras “fases lu-
nares”.) Com efeito, aquele reducionismo nos induz ao engano de achar que a Lua permanece com a
aparência de “cheia” durante todo o intervalo de tempo definido para a “lua cheia” – isto é, engano que
perdura só enquanto a pessoa não se dispuser a olhar para o céu; quando o faz, ela descobre uma con-
tradição entre definição e realidade que não sabe como explicar. Recentemente tomei conhecimento
de uma discussão entre astrônomos profissionais preocupados com o fato de que em alguns sítios na
internet e livros didáticos estavam aparecendo definições para outras fases da Lua, adicionais às qua-
tro habituais. Cogitaram em oficializar um aumento no número das fases lunares sob o argumento de
que isto ajudaria a comunicação entre as pessoas e a elas identificarem em que etapa de uma lunação
a Lua se encontra em cada dia. A mim parece óbvio que não será aumentando o número das fases da
Lua (e, portanto, de denominações destas) – isto é, não será aumentando o número de vezes em que
vamos convencionar dividir e nomear a parte iluminada do disco lunar visto da Terra ao longo do ci-
clo lunar – que resolve esse tipo de coisa (embora uma mentalidade prescritivista desse tipo seja uma
tendência comum entre cientistas naturais). Ou será que se em vez de “quatro fases lunares” houvesse,
por exemplo, “oito fases” – definidas nas mesmas e únicas bases em que tais “fases” podem ser defini-
das, mas inventando-se mais quatro nomes para as novas fases –, as pessoas finalmente entenderiam
do que se trata aquele fenômeno e facilmente conseguiriam identificar no céu em qual das oito fases a
Lua está hoje? Este é mais um caso, entre inúmeros outros, em que é preciso abandonar a compulsão
científica por quantificação (além da presunção de que é ela que diz como as coisas do mundo são de
verdade) e começar a entender o fenômeno em questão (neste caso, felizmente, muitíssimo acessível)
simplesmente vivenciando-o – como comento acima –, de preferência desfrutando-o, e depois tam-
bém refletindo sobre ele, é claro, mas sem sofreguidão numérica (nem pretensão do absoluto).
418
Abordagem Antropológica
419
Luiz Carlos Jafelice
Apêndice 7
208 Lembrem-se que na visão defendida nesta abordagem, “ambiental” não se restringe a processos bio-fí-
sico-químicos que ocorrem na biosfera – e passíveis de serem plenamente compreendidos (em algum
grau ou etapa) essencialmente pela suposta objetividade da ciência convencional. Aqui, a interdepen-
dência cósmica – “para fora” do ser, da Terra e do plano físico e “para dentro” da alma, da vida interior
e de outros níveis de realidade – é pressuposta ser total. Portanto, para nós, educação ambiental lidará
também – e com ênfase particular, para tentar equilibrar o atual estado de coisas – com os necessários
descondicionamentos e reeducação da percepção, a integração das múltiplas dimensões do ser (a es-
piritual, afetiva, intuitiva, simbólica, mágica, àquelas atualmente mais valorizadas) e a construção de
uma nova visão de mundo, inclusiva e solidária desde uma perspectiva biocentrada e pluriepistemo-
lógica.
209 As informações sobre conhecimentos tradicionais que optei por explicitar na planilha correspondem,
por vários motivos, apenas a uma parte muito pequena das repassadas pelos conhecedores; servem,
porém, como breve exemplo. Conforme já mencionei na subseção 3.5 (Conhecimentos tradicionais, et-
noastronomia e arqueoastronomia), notem que os conhecedores tradicionais denominam experiências
aos sinais que leem no ambiente para fazerem seus prognósticos. Outro ponto importante a observar
é que dado o caráter holístico desse tipo de conhecimento, sua inclusão “amarrada”, “categorizada”,
em um formato de “planilha” evidentemente é uma tentativa inglória, e o resultado – embora, creio,
melhor do que não se explicitar nada daquilo – é limitado e inconcluso.
210 Quem for usar essa planilha em computador, pode adaptá-la diretamente de um dos exemplos gené-
ricos de aplicativos de agenda ou planejamento disponíveis na internet. Porém, na página de internet
que estamos elaborando ( JAFELICE, 2010b) disponibilizaremos a planilha em anexo, eventualmen-
te atualizada, para que os interessados possam copiá-la e modificar o que for necessário para sua apli-
cação. Embora, de minha experiência, o mais indicado para quem quiser experimentar esse tipo de
planificação em situação escolar real será elaborar sua planilha – seja para uso próprio ou coletivo, na
escola – em folha de cartolina, para tê-la sempre à mão.
420
Abordagem Antropológica
pessoas devem receber. Por isto, também os eventos convencionais (i.e., estu-
dados pela ciência convencional) estão incluídos.
Cuidado, porém, para não usarem a presente planilha como sugestão
para reforçar ainda mais a tendência ao pensamento dicotômico prevalecen-
te. A proposta, por trás dessa planilha, não é induzir a se pensar que haja pa-
ralelos entre os sistemas de conhecimento implícitos em cada um dos dois
calendários ou que um sistema seja redutível ao outro, nem referendado ou
referenciado pelo outro.
Atenção, então, se forem adaptar e usar essa planilha, para não confun-
direm saberes de domínios bastante distintos. Os conhecimentos tradicio-
nais são de caráter holístico e estão fundamentados em uma racionalidade
valorativa, bastante amparada em um pensamento de caráter analógico, onde
elementos factuais ganham sentido quando inseridos em uma visão de mun-
do maior, na qual a vida, o simbólico, o afetivo, são integrantes constituintes.
Os conhecimentos científicos são de caráter cartesiano e estão fundamen-
tados em uma racionalidade cognitivo-instrumental, que é factual, segundo
seu prévio recorte ontológico, e pressupõe as possibilidades de separabilida-
de completa entre sujeito e objeto e de estabelecimento de leis universais211.
Enfim, são domínios de conhecimento imiscíveis – isto é, epistemologica-
mente incomensuráveis. Não é possível reduzir um ao outro ou explicar um,
em todas as suas múltiplas instâncias, níveis e implicações de significados, a
partir do outro.
O quadro sugerido nesta planilha deveria ser montado no final de um
ano para ser usado ao longo do ano seguinte. Para isto, será necessário que vo-
cês pesquisem com antecedência e o mais extensivamente possível sobre os
conhecimentos tradicionais circulantes na região onde vocês lecionam212. Ao
211 Como bem alerta Shiva (2003, p. 25): “Além de tornar o saber local invisível ao declarar que não
existe ou não é legítimo, o sistema dominante também faz as alternativas desaparecerem apagando
ou destruindo a realidade que elas tentam representar. [...] o saber científico dominante cria uma
monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhan-
te à das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à substituição e destruição da
diversidade local”. Precisamos agir contra isto. Na esteira dessa imposição reducionista – ou como
exemplo contemporâneo representativo da mesma – estão os transgênicos e as justificativas científica
e eticamente inverossímeis – senão falaciosas e desonestas – associadas à pesquisa e disseminação
daqueles (LACEY, 2006).
212 Em Jafelice (2010b) constam orientações, esclarecimentos e exemplos para a pesquisa de caráter et-
nográfico que deve ser feita pelos professores interessados em incluir atividades envolvendo conhe-
cedores e conhecimentos tradicionais em seus planejamentos de aulas. [Esse tipo de material, infe-
lizmente, não consta de nenhuma publicação acessível, menos ainda se for para servir aos propósitos
421
Luiz Carlos Jafelice
visados por uma abordagem como a aqui sugerida. Quem quiser experimentar terá que abrir o pró-
prio caminho; não muito diferente, na verdade, do que é na vida – lembremo-nos do “caminhante”, de
Antonio Machado, que comentei na subseção 2.4 (A teoria na prática: metodologia?) (MACHADO,
1917) – ou do que acaba acontecendo quase sempre nas iniciativas precursoras.] Aqueles saberes, em
grande medida e com frequência, têm características locais – portanto, conhecer alguns deles (por “ter
morado algum tempo lá”, “ouvido falar” ou livrescamente) para a região do Alto do Rio Negro, por
exemplo, ou para a do Pantanal, ou Vale do Ribeira, ou Seridó, é importante a título de comparação
e enriquecimento dos exemplos a serem dados aos alunos, mas não servirá de quase nada para uma
atividade pedagógica que priorizará a inclusão de conhecedores e conhecimentos locais nas escolas
da região onde vocês lecionam hoje. Além disto, é preciso manter em mente que para a presente
abordagem a recuperação daqueles saberes, apesar de indispensável, é consequência de dois objeti-
vos mais fundamentais, a saber: a valorização de quem os detêm e a promoção da integração entre as
gerações. Portanto, quem for planejar com essa postura precisa colher os conhecimentos tradicionais
com quem mora na comunidade em questão e ainda os mantêm vivos na memória – e melhor ainda
se essas pessoas continuam aplicando-os em suas vidas. Vide ainda Jafelice (2010a), além dos exem-
plos de interação com Secretaria de Educação Pública para participação em Semanas Pedagógicas e
de atuação junto à mídia local (conforme comento em nota de rodapé ao final da subseção 3.5) e de
criação de associação local ou busca de apoio às ali já existentes (como digo na nota final da subseção
2.1).
213 Na seção Sugestões de leituras forneço informações detalhadas sobre como adquirir esse anuário do
ON e comento sobre um outro, publicado pela Scientific American Brasil (até onde sei, em 2007 e
em 2009 – referentes, respectivamente, às efemérides astronômicas de 2008 e de 2010), mas o qual,
em princípio (por ter finalidades comerciais), aparentemente não tem continuidade regular garantida
pela editora.
214 Ela foi preparada com base em informações fornecidas por alguns dos conhecedores tradicionais de
Carnaúba dos Dantas (RN) e outras extraídas do Anuário Astronômico escrito por Júlio Klafke para
a revista Scientific American Brasil de dezembro de 2007. Os referidos conhecedores são: Rita Emília
da Conceição Nascimento (dona Rita de patrão), Josias da Silva (seu Josias), José Cirino Filho (seu
Zé Cirino), José Ladislau dos Santos (seu Deca Marinheiro), Adalgisio Elidio Dantas (seu Adalgiso)
e Manoel Martinho de Medeiros (seu Manoel). Optei por iniciar a planilha em janeiro, porque na
cultura em que estamos imersos esse é o nosso calendário (civil) de referência para nossas atividades
formais, em particular a estruturação do ano letivo. É preciso ter em mente, porém, que aquele não
é a referência para os ciclos sazonais, reprodutivos dos animais, agrícolas etc. Quando tive a ideia de
422
Abordagem Antropológica
como já falei. É necessário, então, aprontar uma planilha dessas, o mais com-
pleta possível, para o ano inteiro, antes de se começar o ano, e incluir-se no pla-
nejamento daquele ano as atividades correspondentes a cada período ali des-
tacadas.
Isto implica, dependendo das atividades envolvidas, prever-se várias
providências, como, por exemplo: a requisição de ônibus junto à prefeitura ou
secretaria de educação do município ou estado, acertos com colegas de outras
turmas ou de outras disciplinas, cruzamento com calendários de festividades
da cidade ou da escola, eventual arrecadação de fundos para pagar transporte
ou lanches para os envolvidos, obtenção de autorizações junto aos pais das
crianças, preparação da turma para o contato com os conhecedores e para as
aulas de campo ou oficinas que estes darão, acerto prévio com os conhecedo-
res sobre qual(is) o(s) dia/local/hora bons para todos, elaboração das tarefas
ou relatórios – seus e de seus alunos – após essas atividades, posterior discus-
são para eventuais correções nas próximas atividades desse teor etc.
Minha experiência com tais atividades aponta alguns pontos-chaves
que deveriam ser cuidados e passos que conviriam ser contemplados ao
incluí-las no planejamento, a saber: 1) os professores que as encaminharão
precisam investir em refazer a própria mentalidade sobre o assunto – pois,
elaborar tal planilha, não me ocorreu, a princípio, usar a representação calendárica circular, típica em
antropologia para registrar uma particular organização sócio-cultural tradicional – onde as atividades
de subsistência, de lazer, econômicas, cerimoniais etc. de uma dada cultura, ao longo de um ciclo anu-
al, são dispostas em um círculo e agrupadas em camadas concêntricas, em que cada “circunferência”
abriga atividade de uma categoria (definida segundo critérios da sociologia ou da antropologia, ine-
vitavelmente fragmentadores e reducionistas) e uma “fatia” qualquer indica sobreposição, no tempo,
das atividades adjacentes, na direção radial, naquela “fatia”. Adotar esse tipo de representação seria
o mais natural em uma abordagem como esta, porque aquela simboliza melhor uma concepção de
tempo cíclico, comum em comunidades tradicionais e a qual também nos interessa reavivar. Con-
tudo, mesmo quando me conscientizei disto, decidi manter o formato de planilha para organizar o
planejamento proposto neste apêndice. Essa decisão se deveu porque a representação circular está
muito distante do que é habitual para os professores e mais dificultaria do que ajudaria, ainda mais
para a implementação de algo novo como o aqui proposto. Preferi, então, manter a representação
linear, usual nos planejamentos escolares (e em nossa cultura em geral, que nutre uma concepção
de tempo histórico). Assim, esse formato favorece a exequibilidade desse planejamento para as fi-
nalidades pretendidas sem comprometer o sucesso da iniciativa nem desvirtuar os fundamentos da
presente abordagem – desde que quem o desenvolver esteja alerta para não sucumbir ao pensamento
único dominante nem abandonar o espírito que inspira tal abordagem, aberto, acolhedor de plurali-
dades, transdisciplinar, como tenho reiteradamente explicitado neste capítulo. (Em todo o caso, os
mais entusiastas deveriam experimentar montar os calendários da planilha sugerida abaixo em uma
única representação circular; neste caso, é claro, abrangendo um ciclo anual completo – e não apenas
três meses como exposto no modelo sugerido. Será exercício muito elucidativo para amadurecer a
compreensão desta proposta.)
423
Luiz Carlos Jafelice
nem suas formações nem o meio social ou a cultura escolar estão habituados
a dar tal relevância ao que é pejorativamente215 denominado “conhecimento
popular”, sinônimo de senso comum, ignorância, simplicidade epistemoló-
gica; 2) uma reformulação de mentalidade nessa mesma direção precisa ser
encaminhada com os alunos – afinal, eles são frutos da mesma cultura onde
todos estamos imersos; assim, sua ignorância e consequentes preconceitos
sobre o assunto também são os mesmos que a cultura como um todo fo-
menta; porém, se bem preparados, a receptividade dos estudantes é muito
construtiva; 3) ao procurarem os conhecedores216, peçam auxílio às pessoas
da comunidade – além de saberem quem detém esse tipo de conhecimento,
elas podem lhes ajudar a contactá-los; 4) é preciso sensibilidade para chegar
aos conhecedores e dialogar com eles para que ministrem aulas de campo
ou venham conversar com suas turmas217 – pois eles passaram uma vida de
discriminação e solidão epistemológica; não estão habituados a que profes-
sores e escolas venham procurá-los para serem professores, ainda mais que
muitos deles são analfabetos; contudo, se abordados com o respeito devido,
eles são muito receptivos e generosos, além de excelentes mestres, e ficam
muito felizes com esses encontros; 5) é preciso cuidado para enxergar aquele
tipo de conhecimento desde sua perspectiva epistemológica própria – e não
como alguma etapa tosca no processo de aperfeiçoamento do conhecimento
humano que culminará com “o saber correto” obtido pela ciência (como, por
exemplo, o da meteorologia, no caso das previsões do tempo, ou o da farma-
cologia, no caso das indicações de usos de plantas medicinais etc.); este tipo
de visão é muito comum, mas representa um equívoco e presunção enormes;
6) os alunos devem ser orientados para perguntarem sobre tudo que tiverem
curiosidade e para fazerem tantas anotações (escritas e desenhadas) quanto
215 E equivocadamente assim confundidos, pois “popular”, na acepção habitualmente adotada, não é
aquela aplicável aos etnoconhecimentos ou conhecimentos tradicionais.
216 Como já mencionei, também conhecidos, às vezes, por profetas, no interior nordestino.
217 Se puderem, prefiram sempre as aulas de campo; é frequente elas serem muito mais afeitas ao estilo
dos conhecedores, além de mais ricas. Eles costumam ter naturalmente um estilo de ensino que, em
nossa terminologia, denominamos peripatético. Com efeito, certa vez, José Adenilson de Medeiros,
professor de Carnaúba dos Dantas (RN), participante de nosso projeto, em uma das aulas de campo
em que levou uma de suas turmas para ter aula com seu Zé Cirino, conhecedor de lá, contou que
seu Zé Cirino lhe disse que preferia “falar desse tipo de coisa (no caso, ensinar sobre o que sabia das
experiências de prognóstico ambiental, uso das plantas medicinais, comportamento dos animais etc.)
andando” (MEDEIROS, 2009). É preciso, então, também, que nos adaptemos aos estilos e métodos
pedagógicos dos conhecedores quando recorrermos a eles para serem professores de nossos alunos e
nossos.
424
Abordagem Antropológica
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Planilha: protótipo para planejamento de aulas ambientais: calendários tradicional e científico*
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Luiz Carlos Jafelice
* Atenção: consulte as orientações e advertências referentes à interpretação e uso desta planilha no texto deste apêndice.
AUTORES
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Luiz Carlos Jafelice
Bacharel em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo
(IFUSP), Licenciado em Física pela Faculdade de Educação da USP, Mes-
tre em Física das Partículas Elementares pelo IFUSP, Doutor em Astrofísi-
ca pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP,
Pós-doutorado em Astrofísica de Plasma no Instituto de Astronomia da Uni-
versidade de Cambridge, Inglaterra. Foi Professor de Física e Matemática
dos níveis fundamental e médio em escolas públicas e particulares da cidade
de São Paulo, Professor de Física do Centro de Ciências Exatas da Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Grupo de Pesqui-
sa “Astrofísica e Cosmologia” do Departamento de Física Teórica e Experi-
mental (DFTE) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Coordenador de projetos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente é Professor Associado junto
ao DFTE-UFRN, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências Naturais e Matemática da UFRN, Cofundador e Coeditor da Re-
vista Latino-Americana de Educação em Astronomia (RELEA) (eletrônica),
Coordenador do Grupo de Pesquisa “Ensino de Física e de Astronomia”
junto ao CNPq, Coordenador de projeto de difusão de astronomia cultural
junto ao CNPq, membro da Comissão de Ensino e Divulgação da Sociedade
Astronômica Brasileira (SAB), membro das Comissões 46 (Educação), 41
(História) e 55 (Divulgação) da União Astronômica Internacional (IAU). Há
mais de dez anos dedica-se exclusivamente à área de educação, com interes-
ses em antropologia, conhecimentos tradicionais, epistemologia, sociologia
da ciência e no desenvolvimento de abordagens pedagógicas interculturais
transdisciplinares.
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IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Oficinas Gráficas da EDUFRN
Editora da UFRN, em agosto de 2010.