Você está na página 1de 431

Astronomia, Educação e Cultura

Abordagens transdisciplinares para os vários níveis de ensino


Luiz Carlos Jafelice
(Organizador)
Maria Luciene de Souza Lima Freitas
Gilvana Benevides Costa Fernandes
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Astronomia, Educação e Cultura


Abordagens transdisciplinares para os vários níveis de ensino

Natal, 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Reitor Editor
José Ivonildo do Rêgo Helton Rubiano de Macedo
Vice-Reitora
Supervisão editorial
Ângela Maria Paiva Cruz
Alva Medeiros da Costa
Diretor da EDUFRN
Herculano Ricardo Campos Supervisão gráfica
Conselho Editoral Francisco Guilherme de Santana
Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Revisão
Ana Luiza Medeiros Os autores
Humberto Hermenegildo de Araújo Editoração eletrônica
John Andrew Fossa Erinaldo Silva de Sousa
Herculano Ricardo Campos Pré-impressão
Mônica Maria Fernandes Oliveira Marcus Vinícius Devito Martines
Tânia Cristina Meira Garcia Capa
Técia Maria de Oliveira Maranhão Edson Lima
Virgínia Maria Dantas de Araújo Ilustração da capa
Willian Eufrásio Nunes Pereira Luiz Carlos Jafelice

Divisão de Serviços Técnicos


Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede

Astronomia, educação e cultura: abordagens transdisciplinares para os vários


níveis de ensino / Luiz Carlos Jafelice (Org.). – Natal, RN: EDUFRN –
Editora da UFRN, 2010.
430 p.
ISBN: 978-85-7273-604-6
Este livro faz parte das “Coletâneas em Ensino de Ciências e Matemática:
relatos de pesquisa e material didático”, organizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.
1. Astronomia cultural – Estudo e ensino. 2. Educação intercultural.
3. Educação ambiental. 4. Professores – Formação. I. Jafelice, Luiz Carlos.

CDD 520
RN/UF/BCZM 2010/27 CDU 52:37

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Campus Universitário, s/n – Lagoa Nova – 59.078-970 – Natal/RN – Brasil
e-mail: edufrn@editora.ufrn.br – www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3215-3236 – Fax: 84 3215-3206
Ao meu Deus, que por mim tudo executa. Ao meu pai e à minha mãe que
contribuíram para a minha formação. Às minhas filhas, Juliana e Ana Lígia,
ao meu esposo Alberto. Em especial à amiga Fátima Lopes e a todos que
contribuíram nos “Dias-Noites” realizados na E. E. Alceu Amoroso Lima.
A Sandra Maia, que tanto me apoiou nos momentos difíceis.
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

A meu pai, Manoel Oliveira Costa, pela jornada trilhada juntos


(in memoriam).
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Para Camila e Marina, minhas filhas,


Rosi, mãe delas, e
Patrícia, minha companheira.
Luiz Carlos Jafelice

Que este livro seja para o benefício de todos.


Os autores
Sumário

Apresentação, 11
Agradecimentos, 17
Capítulo 1 – Saberes de Astronomia do 1º ao 3º Ano do Ensino Fundamental
numa Perspectiva de Letramento e Inclusão, 19
Maria Luciene de Souza Lima Freitas
1 Introdução, 19
1.1 Por um ensino de Astronomia Vivencial, 22
1.2 Ensino de Astronomia e letramento, 28
1.3 Ensino de Astronomia e afetividade no processo de
ensino-aprendizagem, 35
1.4 Ensino da Astronomia e inclusão, 38
2 O professor também dita moda, 43
2.1 A aprendizagem e suas relações inconscientes motivacionais, 43
2.1.1 O professor é o exemplo, 45
2.1.2 O aprendiz que surpreendeu o seu mestre, 48
3 Eu vivo sempre no mundo da lua, 49
3.1 A montagem dos calendários lunares, 49
3.2 O Dia-Noite das Crianças, 50
3.3 Trabalhando o astro solar, 51
3.3.1 O teatro de sombras, 53
3.3.2 As medições da sombra, 54
3.4 A música e a montagem de coreografias relacionadas ao tema estudado, 56
3.5 Salpique de tinta, 58
3.6 Visita ao planetário itinerante da UFRN, 64
3.7 Visita à Barreira do Inferno, 65
3.8 Representação dos planetas em escala, 66
3.9 As origens celestes das festas juninas através de fantoches, 67
4 A vida é um jogo: propostas para trabalhar a astronomia, 69
4.1 Oficinas lunares, 69
4.1.1 Breve histórico, 69
4.1.2 Desenvolvimento das oficinas lunares, 70
4.2 Trilha da lua, 75
4.3 Reestruturação da trilha da lua após a sua primeira execução, 81
5 Considerações finais, 83
Referências, 86
Capítulo 2 – Uma Abordagem Humanística para o Ensino de Astronomia
no Nível Médio, 89
Gilvana Benevides Costa Fernandes
1 Pensando em educação, 89
2 Inteligências múltiplas e holismo no ensino de astronomia no nível
médio, 95
2.1 As inteligências múltiplas, 95
2.2 O ensino holista, 99
2.3 Repensando a astronomia no ensino médio, 104
3 Novas atividades diante de uma nova educação, 108
3.1 Uma proposta para o ensino médio, 108
3.2 As atividades, 109
3.2.1 Representações do universo, 109
3.2.2 Constelações de tinta em papel, 114
3.2.3 Aprendendo com os índios, 117
3.2.4 Aprendendo com a ciência, 118
3.2.5 Representação teatral sobre a origem do universo, 118
3.2.6 Resgatando o microcosmo e o macrocosmo no ser humano, 120
3.2.7 Zoom Cósmico, 124
3.2.8 A dança indígena tupi-guarani do IEAOUŸ, 126
4 Conclusão e comentários gerais, 129
Referências, 132
Apêndice: Resumos dos temas relacionados à origem do universo, 133
Anexo A: Educação? Educações: aprender com os índios, 139
Anexo B: A origem do universo, 142

Capítulo 3 – Cosmoeducação: uma abordagem transdisciplinar no ensino de


astronomia, 147
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros
1 Introdução, 147
2 Um olhar sobre o problema da separação entre o ser humano
e o cosmo, 149
2.1 Crise conceitual e fragmentação, 151
2.2 Paradigmas e modelos de realidade, 152
2.2.1 Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo, 154
2.3 Visões em educação, 155
3 Cultivando a unidade ser humano-cosmo, 159
3.1 Breve histórico da psicologia transpessoal, 159
3.2 Definição de psicologia transpessoal, 160
3.3 Estados de consciência, 161
3.3.1 Consciência cósmica, 161
3.3.1.1 Cosmoeducação, 162
3.4 Primeiras associações entre psicologia transpessoal e astronomia, 162
3.5 O potencial autotransformador da astronomia, 164
3.5.1 Abordagem antropológica no ensino de astronomia, 165
3.6 Hipótese de trabalho, 167
3.7 Os pilares da transdisciplinaridade, 168
4 A proposta na prática, 170
4.1 Curso de extensão: “Laboratório em Cosmoeducação” , 171
4.1.1 Identificando a cosmologia prévia do sujeito, 173
4.1.2 Motivação mais profunda, 174
4.1.3 Exercício de imaginação, 175
4.1.4 Autobiografia, 176
4.1.5 No topo do planeta Terra, 178
4.1.6 Filme zoom cósmico, 179
4.1.7 Dinâmica de observação, 181
4.1.8 Observando o Sol, 182
4.1.9 Representação pictórica das origens e do céu, 184
4.1.10 Texto coletivo, 187
4.1.11 Ache a Lua no céu, 188
4.1.12 Montagem do calendário lunar, 180
4.1.13 Representando a abóbada celeste com um guarda-chuva, 192
4.1.14 Aula de campo, 194
4.1.15 Retrospectiva do curso, 197
5 Resultados e conclusão, 198
5.1 Comentários finais, 201
Referências, 204
Apêndice A: Questionário inicial aplicado na 1ª aula do curso de
extensão – Laboratório em Cosmoeducação, 207
Anexo A: Descobertas sobre a Lua, 208

Capítulo 4 – Abordagem Antropológica: educação ambiental e astronômica


desde uma perspectiva intercultural, 213
Luiz Carlos Jafelice
1 Breve histórico, 213
2 Reflexões iniciais, pressupostos, digressões, 216
2.1 Vivência; transdisciplinaridade; astronomia e um olhar
antropológico, 216
2.2 Quantos céus existem?, 223
2.3 Antropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultura, 225
2.4 A teoria na prática: metodologia?, 235
3 Abordagem antropológica, meio ambiente e astronomia cultural, 244
3.1 Por que abordagem antropológica?, 244
3.2 Por que astronomia cultural?, 248
3.3 Por que coisas do céu e meio ambiente?, 250
3.4 Educação convencional versus Educação antropológica, 253
3.5 Conhecimentos tradicionais, etnoastronomia e
arqueoastronomia, 256
4. Considerações finais, 262
Sugestões de leituras, 263
Referências, 273
Bibliografia adicional, 282
Apêndices, 301
Apêndice 1: Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da
subseção 2.3, 303
Apêndice 2: O céu na organização da vida humana ao longo da história
da humanidade, 366
Apêndice 3: Somos parte do universo. Só parte? Qual?, 381
Apêndice 4: O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados, 387
Apêndice 5: Origens: imagens, palavras, expressões culturais e
psicológicas, 3404
Apêndice 6: Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus, sentimentos
e conhecimentos populares, 409
Apêndice 7: Protótipo para planejamento de aulas ambientais:
calendários tradicional e científico, 420
Autores, 427
APRESENTAÇÃO

Este livro propõe uma abordagem humanística para a educação am-


biental e exemplifica sua aplicação na prática escolar real. O enfoque é de
concepção biocentrada e pluriepistêmica e a ênfase é no vivenciar. O ensino
de astronomia é usado como ponto de partida e de articulação para ques-
tões ambientais mais amplas. Os principais objetivos deste volume são pro-
por visões de mundo e práticas pedagógicas alternativas às prevalecentes e
subsidiar os interessados em aplicar o enfoque proposto. Para tal, é oferecida
uma abundância de exemplos de atividades e estratégias pedagógicas que fo-
ram efetivamente aplicadas no contexto escolar nos diversos níveis de ensino.
Também são apresentadas fundamentação e reflexões teóricas que apoiaram
e inspiraram aquelas ações. O grande incentivo da nossa proposta, porém,
é no cultivo da intuição e da criatividade e no desenvolvimento de práticas
vivenciais que propiciem o autoconhecimento.
O livro se destina a professores dos níveis fundamental – polivalentes
(1º ao 5º ano) e de geografia ou ciências (6º ao 9º ano) –, médio – de geogra-
fia, física, química ou biologia – e superior – professores formadores dos cur-
sos de pedagogia e de licenciaturas em geografia, física, química e biologia.
Além disto, outros profissionais em educação – coordenadores pedagógicos,
assessores em secretarias de educação públicas e educadores em geral – e em
áreas correlatas – jornalistas e cientistas envolvidos em divulgação científica –
também podem se beneficiar dos conteúdos e discussões aqui apresentados.
O enfoque transdisciplinar adotado naturalmente supera a compartimenta-
ção habitual do saber e estimula múltiplas perspectivas e possibilidades de
atuação formadora.
O texto é composto de quatro capítulos, cada um escrito por um au-
tor. Por coerência com o espírito da proposta – de acolhimento do plural –,
respeitou-se o estilo de escrita e exposição de cada autor. Cuidou-se, porém,
para que o todo fosse o mais orgânico e harmonioso possível. São diferentes
olhares que se somam para elucidar o que significa praticar uma educação
ambiental humanística segundo um sentimento transdisciplinar de matiz
antropológico, partindo-se de elementos habitualmente reservados à área de
astronomia.

11
Este livro faz parte das Coletâneas em Ensino de Ciências e Matemática:
relatos de pesquisa e material didático, organizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (PPGECNM)
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), através do
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). A produção sistemática de dissertações de mestrado sob minha
orientação que praticaram o que denomino abordagem antropológica, aliada
à oportunidade desta publicação, nos levou a elaborar um livro que reunisse
essas contribuições.
O que consta deste texto, contudo – é importante enfatizar –, não são
receitas a serem seguidas passo a passo – embora os conteúdos e sugestões
apresentados possam servir como orientação inicial em muitas circunstân-
cias, desde que encarados com um espírito reflexivo e autônomo. O que espe-
ramos, acima de tudo, é que vocês, atuais ou futuras professoras ou professores,
invistam em vivenciar, pesquisar e desenvolver ainda mais a presente abordagem.
Esta, por sua própria natureza, é aberta e incentiva a constante criação para si-
tuações específicas.
Quem for implementar sugestões apresentadas neste livro, deve ana-
lisar previamente, com carinho e atenção, quais são as necessidades – primá-
rias e secundárias, imediatas e a longo prazo, afetivas e cognitivas, materiais
e espirituais, concretas e abstratas, entre outras –, de seus alunos e da comu-
nidade onde vivem. A partir dessa análise, então, deve construir e aplicar sua
versão da abordagem aqui exposta – quem a desenvolver e quiser socializá-
la, ou trocar ideias, poderá fazê-lo também pela página: http://www.lapefa.
ufrn.br/intercultural. Mesmo incorporando-se um processo coparticipativo,
atento e dinâmico de ação, porém, a proposta não estará acabada; ela sempre
comportará transformações ulteriores.
A nosso ver, o que faz falta, com urgência, no mundo, são pessoas com
competência emocional (e não apenas intelectual) de perceber e pensar o
todo sistemicamente (mas não centradas em uma racionalidade única) e de
responder às necessidades atuais e futuras desde uma perspectiva biocêntrica
ou ecocêntrica (e não antropocêntrica, como estamos habituados a fazer).
Nossa prática tem mostrado que a abordagem aqui proposta tem gran-
de plasticidade e potencial educacional transformador e pode oferecer sig-
nificativo enriquecimento às práticas didático-pedagógicas e à formação do
tipo de cidadão de que tanto se carece.

12
Os Capítulos e a Opção pela Linha do Livro

Um exemplo da abertura e estímulo à criatividade que esta proposta


oferece pode ser apreciado, em parte, neste livro. Com efeito, as autoras dos
três primeiros capítulos nos mostram as aplicações que cada uma construiu
e experimentou da proposta geral, apresentada no último capítulo – o qual
também explicita algumas outras aplicações. As professoras coautoras apli-
caram a referida abordagem para públicos muito diferentes, envolvendo
planejamentos e atividades bastante diferenciados e com estilos próprios
distintos.
Maria Luciene de Souza Lima Freitas (capítulo 1) aplica a abordagem
diretamente com crianças, desde o início do primeiro ano do nível funda-
mental. Gilvana Benevides Costa Fernandes (capítulo 2) exercita a proposta
para a formação de professores de várias disciplinas do nível médio de ensino.
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros (capítulo 3) adota o enfoque com licencian-
dos em geografia e para a formação de professores do nível fundamental de
ensino. E eu mesmo (capítulo 4) tenho aplicado a abordagem com estudantes
de todos os níveis de escolaridade – da educação pré-escolar à pós-gradua-
ção –, com o público em geral e na formação de professores.
As coautoras deste livro são mestres em ensino de ciências naturais, na
especialidade de educação em astronomia segundo o enfoque humanista aqui
defendido. As três fizeram seus cursos de graduação na UFRN e defenderam
suas dissertações de mestrado junto ao PPGECNM entre 2005 e 2006. Estas
podem ser acessadas na página do Programa: http://www.posgraduacao.ufrn.
br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações
(2002-2007)”].
Neste livro, as autoras se preocuparam em concentrar seus respectivos
trabalhos para oferecer aos leitores propostas concisas e objetivas em lingua-
gem clara e direta, mas sem perderem as autoconsistências de seus trabalhos
originais. Com isto, espera-se que a abordagem e as práticas que elas criaram
e implementaram possam ser acessíveis e úteis aos interessados em recriá-las
e experimentá-las em seus próprios contextos de atuação.
O objetivo do último capítulo é expor a filosofia geral e alguns princí-
pios que fundamentam e norteiam a abordagem que proponho. Em um texto
que seguisse a norma estabelecida, ele seria o capítulo inicial. Na formação
acadêmica há forte tendência em se supervalorizar os ditos referenciais teó-
ricos. A observação mostra ao menos duas faces da verdade. Com efeito, sem
uma fundamentação teórica, isto é, sem um prévio pressuposto de cunho ide-

13
alista, logo em seguida formatado em conceitos articulados com consistên-
cia estrutural mínima, há risco de darmos passos inconsequentes – embora
não inevitavelmente isto vá ocorrer, bem entendido. Por outro lado – talvez
pela falta de incentivo e exemplos efetivos de criatividade –, a tendência é os
embasamentos teóricos servirem antes como amarras e formatação rígida e
padronizada de ação. Isto limita os resultados, tolhe criação e variabilidade,
risco e incerteza, arejamento e leveza, que necessariamente estão presentes
nas ações humanas, por mais responsáveis que elas sejam. Por isto, alocamos
a fundamentação no último capítulo – que, como verá quem o ler, embasa,
mas de modo relativo. Em suma: ela existe, mesmo que de inspiração essen-
cialmente heurística, mas se refaz, revê e reconstrói em cada movimento de
aplicação das ideias na prática, que é o que mais nos preocupa. É uma aborda-
gem, enfim, que prioriza o fenomenológico, o qualitativo, o humano nas suas
dimensões existenciais que, apesar de vitais para nosso equilíbrio e saúde,
são subvalorizadas pela cultura ocidental predominante, que se deixa seduzir
pelo cientificismo, em particular nos últimos séculos.
Há muitas maneiras de transformar essa abordagem em prática peda-
gógica concreta. Um dos principais objetivos deste livro é explicitar atividades
e planejamentos de aulas – como disse, todos experimentados em situações
escolares reais – que permitam aplicar essa abordagem com prazer e êxito.
Os três primeiros capítulos são diferentes visões construídas como
desdobramentos da ideia exposta no último capítulo. Assim, os quatro capí-
tulos se inter-relacionam. Contudo, eles são independentes uns dos outros e
autoconsistentes nas respectivas propostas. Não há uma ordem para o livro
ser lido; dependerá das necessidades ou interesses de cada pessoa.
Cabe aqui o seguinte esclarecimento: outros ex-orientandos meus de
mestrado também defenderam dissertações junto ao PPGECNM naquele
período, e eles fazem importantes contribuições à área de educação em as-
tronomia. São eles: Geneci Cavalcanti Moura de Medeiros, Alex Sander Barros
Queiroz e Antonio Araújo Sobrinho. Fica aqui a referência a seus relevantes
trabalhos. Suas dissertações também estão disponíveis no endereço do Pro-
grama, indicado acima1.

1 Alex Sander Barros Queiroz, em particular, participou do I Colóquio Abrindo Trilhas para os Saberes
(2008), promovido pela Secretaria de Educação do Governo do Estado do Ceará, e foi premiado com
a publicação de sua dissertação na forma de livro: Propostas e Discussões para o Ensino de Astronomia
do 1º ao 5º Ano do Nível Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos. Fortaleza: SEDUC, 2009.

14
Seus trabalhos, porém, não foram incluídos neste livro. Isto se deveu
não só às limitações de espaço e de recursos, mas principalmente à opção que
fiz para a linha mestra do livro. Dentre meus seis ex-orientandos de mestrado
em ensino de astronomia, até o momento, apenas as coautoras do presente
volume de fato se aprofundaram na presente proposta e exercitaram de modo
consistente a abordagem humanística associada – provavelmente por moti-
vos idiossincráticos de cada uma.
De minha avaliação sobre o que existe publicado em ensino de astro-
nomia e educação ambiental, constato que não existe praticamente nada na
linha de trabalho que aqui apresentamos2.
Assim, por um lado, carecemos de publicações acessíveis que versem
sobre abordagens de fato humanísticas para o ensino de astronomia e a edu-
cação ambiental. Por outro lado, se queremos promover um diálogo salutar
na área de educação científica e desta com áreas de humanidades e artes, é
muito importante que o tipo de visão aqui defendida seja amplamente dis-
seminado. Essa visão está muito ausente ainda, tanto nos cursos de formação
de professores, como nos livros didáticos, nas publicações e na mídia de um
modo geral – ao passo que não faltam publicações, divulgações e ênfases para
abordagens que reforçam o caráter técnico-cientificista convencional.
Trazendo-se a presente abordagem a público, visa-se também incen-
tivar um processo dialético nas conversações entre população, educadores,
cientistas e jornalistas que contribua para diversificar o leque de fundamen-
tos filosóficos e possibilidades de intervenções didático-pedagógicas, além
de incitar um aumento no nível das discussões e da área como um todo.
Portanto, devido à carência de publicações nessa linha de trabalho, à
importância de que a mesma seja difundida e às peculiaridades das disserta-
ções daquelas autoras, optei por elaborarmos um livro cujo perfil e teor abri-
gassem naturalmente seus trabalhos.
Luiz Carlos Jafelice
Rio Grande do Norte
Lua crescente em um inverno sertanejo nordestino de 2010.

2 A não ser os trabalhos que nós mesmos temos publicado, os quais, porém, além de serem, com fre-
quência, mais técnicos, estão em atas de congressos ou outros veículos não facilmente disponíveis
aos professores e público em geral. Mesmo assim, para quem tiver interesse, vários desses trabalhos
constam das bibliografias citadas nos capítulos deste livro.

15
AGRADECIMENTOS

O reconhecimento dos autores deste livro é devido a muitas pessoas.


Em particular, estudantes – na qualidade de: alunos nas diversas intervenções
educacionais que empreendemos; orientandos de iniciação científica e de
mestrado; instrutores do planetário itinerante da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN); professores em formação continuada; e seus
próprios alunos –, membros das equipes dos projetos de que participamos, con-
hecedores tradicionais – que têm compartilhado conosco informações e vivên-
cias valiosíssimas sobre as coisas do céu, da terra e da vida, muitas das quais
não estão escritas em nenhum lugar ainda –, público em geral, nas palestras,
atividades coletivas de observação do céu e celebrações de festivais solsticiais
e equinociais, além de familiares, amigos e colegas, que têm nos acompanhado
nesse percurso, construção e descobertas tão prazerosos. A todos eles, nossa
imensa gratidão.
O organizador, em particular, agradece à UFRN – Departamento de
Física Teórica e Experimental, Centro de Ciências Exatas e da Terra, Pro-
grama de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática, Pró-
Reitoria de Pesquisa, Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pró-Reitoria de Exten-
são –, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e
ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelos
diversos auxílios e apoios para a realização de várias das iniciativas, cursos,
viagens de campo, publicações, participações em congressos e projetos que
tem implementado há muitos anos, e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Carnaúba dos Dantas (RN), pelo apoio de infraestrutura para o curso para
professores que ministrou naquele município e de alojamento para as equipes
dos projetos que tem desenvolvido lá.

17
Astronomia no Ensino Fundamental

Capítulo 1
Saberes de Astronomia do 1º ao 3º Ano do Ensino
Fundamental numa Perspectiva de Letramento e Inclusão

Maria Luciene de Souza Lima Freitas

1 INTRODUÇÃO
Este capítulo se propõe a discutir metodologias e atividades didático-
pedagógicas para o ensino de Astronomia do 1º ao 3º ano do Nível Funda-
mental, numa perspectiva de letramento e inclusão. As propostas apresenta-
das foram desenvolvidas em uma turma da Escola Estadual Alceu Amoroso
Lima, Zona Norte de Natal (RN), com crianças a partir dos seis anos de ida-
de, dentre as quais duas portadoras de necessidades especiais.
Essa pesquisa visou demonstrar que é possível desenvolver com essas
crianças os conteúdos de Astronomia, enquanto elas participam do processo
de letramento e inclusão. Com isto, buscou-se oferecer uma contribuição te-
órico-prática para que os Parâmetros Currriculares Nacionais (PCN) sejam
revistos nesse ponto e incluam os referidos conteúdos no ensino fundamen-
tal, inclusive já a partir do 1º ciclo desse nível de ensino.
Para a realização desta pesquisa foi inicialmente proposta uma Astro-
nomia Vivencial. Posteriormente diversas oficinas foram realizadas (argila,
rasgadura, papel crepon, massa de modelar, cartolina e gastro-lúnica). Todas
as atividades propostas estavam baseadas na conjunção de conteúdos, o que
caracterizou a interdisciplinaridade.
Através da abordagem que adotamos e das práticas que propusemos,
constatamos que tanto as crianças ditas normais, como as portadoras de
necessidades especiais, ao mesmo tempo em que se apropriaram do nosso
código de escrita, desenvolveram e incorporaram naturalmente uma relação
cotidiana próxima com as coisas do céu, aprenderam muitas informações so-
bre estas, além de construírem conteúdos atitudinais, procedimentais e con-
ceituais.

19
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

O trabalho fundamentou-se num ensino de Astronomia baseado em


uma abordagem antropológica (cujo teor é naturalmente holístico) numa
perspectiva de letramento e inclusão, por acreditarmos que para enfrentar a
conjuntura atual de crises (política, social, cultural, ambiental, educacional
etc.), consequência do sistema capitalista selvagem em que vivemos, precisa-
mos propor um ensino mais humanizador e integrador do que materializador
e fragmentador. Com isto não queremos dizer que a educação se constituiria
em uma alavanca de transformação – embora certamente tenha sua contri-
buição também nesse sentido –, porém em um mecanismo de integração e
humanização do ser social.
Sabemos que a Astronomia é uma ciência que estuda o universo, os
objetos que o constituem e as relações entre estes. Por outro lado, é uma dis-
ciplina que apresenta um caráter transdisciplinar, pois possibilita-nos cruzá-
la com outras áreas do conhecimento. Afinal, como enfatiza Jafelice (2006),
“não podemos nos esquecer de um ponto primordial: não estamos fora do
universo; nós também o constituímos, fazemos parte dele, tanto quanto a Lua
ou o Sol, por exemplo”.
Partimos do princípio holístico por compartilharmos com seus pres-
supostos básicos de que “todos os fenômenos na natureza são vistos como
interligados em um universo interdependente. Esta interdependência está ba-
seada em uma reciprocidade dentro e entre os mundos natural, físico e cultu-
ral que permeiam nossas vidas e toda comunidade biótica” (HUTCHISON,
2000, p. 59).
Já a vertente antropológica abraçada por nós se dá devido a elementos
culturais que envolvem representações simbólicas criadas e vividas por seres
humanos. Neste caso, a mesma permite recuperarmos esse senso vivencial
do homem com a natureza, já que nos dias atuais é grande o distanciamento
entre o macrocosmo e o microcosmo. É como diz Hutchison (2000, p. 11):
“Nossos antepassados mais remotos viviam em meio às estrelas. Os afazeres
humanos eram coordenados com o movimento do céu e com a seqüência das
estações, com a aurora e com o crepúsculo, com o ir e vir dos animais em suas
jornadas migratórias”.
A perspectiva do letramento e da inclusão englobados neste trabalho
se dá porque esses dois elementos nos permitem resgatar o verdadeiro papel
da escola, democratizar o saber e incluir todas as crianças portadoras de ne-
cessidades especiais ou não no processo de letramento que, segundo Soares

20
Astronomia no Ensino Fundamental

(2001, p. 36), “é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e


variadas práticas de leitura e escrita”.
Por inclusão entenda-se não apenas o seu sentido habitual, de atender
alguma criança portadora de necessidade especial, mas, sim, como diz Sas-
saki (1997):
[...] como o caminho ideal para se construir uma sociedade para to-
dos e que por ela lutam para que possamos - juntos na diversidade
humana - cumprir nossos deveres de cidadania e nos beneficiar dos
direitos civis-políticos, econômicos, sociais, culturais e de desenvol-
vimento.
A educação inclusiva teve como ponto de partida do cotidiano: o
coletivo, a escola e a classe comum, onde todos os alunos com neces-
sidades educacionais especiais ou não, precisam aprender, ter acesso
ao conhecimento, à cultura e progredir no aspecto pessoal e social.

Neste contexto compreendemos que a aquisição do conhecimento


pela criança não se dá pelo depósito de conteúdos, mas através das interações
entre o objeto do conhecimento e o indivíduo. Neste caso, o professor exerce
um papel fundamental de mediar essa relação. Segundo a concepção constru-
tivista, o professor tem a responsabilidade de auxiliar, com a sua intervenção,
o estabelecimento de relações entre o conhecimento prévio dos alunos e o
novo material de aprendizagem. Para isto, é preciso pensar estratégias peda-
gógicas que levem os alunos a entrar em conflito cognitivo, o que fazemos, em
nosso caso, envolvendo principalmente conteúdos de Astronomia Cultural.
É importante lembrar também que em nosso trabalho o erro assume
uma conotação positiva, no sentido de que ele possibilitará acertos futuros.
Pretendemos desmistificar também que a Ciência é feita apenas de acertos.
Além disto, trabalhamos segundo a perspectiva de que ela não é a única ins-
tância detentora da verdade e do conhecimento.
Nesta perspectiva, como orienta Jafelice (2006):
Os saberes tradicionais, tanto os populares como os autóctones,
adquirem relevância especial no processo de ensino. Os primeiros,
em particular, podem ser proveitosamente contemplados e incluídos
no processo através do contato direto que é estimulado das crianças
com os conhecimentos dos seus pais, parentes e vizinhos sobre coi-
sas do céu e da relação entre céu e terra. Isto completa e ajuda a refor-
çar um laço entre escola, famílias e comunidade, que é fundamental
que exista e seja cultivado.

21
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Assim, ainda sobre a forma que o erro é encarado em nossa aborda-


gem, aquilo que às vezes chamamos de erros nas escritas das crianças, nada
mais são do que suas hipóteses de escrita.
Portanto, neste capitulo1 você é convidada(o) a pensar em novas pos-
sibilidades de levar as coisas do céu para as crianças das séries iniciais do en-
sino fundamental de forma lúdica e prazerosa, enquanto elas se apropriam da
leitura e da escrita.

1.1 Por um ensino de Astronomia Vivencial

O trabalho que encaminhamos nesses três anos de práticas com crian-


ças ditas normais ou não, a partir dos seis anos de idade, evidenciou que a
vivência é o método eficaz para a internalização dos conteúdos de Astrono-
mia, já que esta requer uma atividade abstrativa e reflexiva que só a vivên-
cia adequadamente orientada pode possibilitar. À medida que a criança vai
compreendendo os fenômenos celestes, correlacionados também ao nosso
meio ambiente, ela é capaz de arguir questões básicas e elaborar conclusões
lógicas.
Vejamos abaixo um relato que evidencia como as crianças chegaram à
compreensão do ciclo da vida a partir do trabalho que desenvolvemos com
temas e subtemas relacionados à vida em geral, de animais e vegetais, parale-
lamente à construção dos calendários lunares [vide subseção 3.1 (A monta-
gem dos calendários lunares)].
No dia 22/09/04, ao retomarmos a tarefa de casa do dia anterior, os
alunos disseram que a lua estava crescente e surgiram estas indagações:
“A lua não finda não, tia?” – perguntou Daiane. E prosseguiu: “Quando ela
morre vai pra onde?”
“Ela vai pro espaço e volta nova, crescente, cheia e minguante e morre de
novo...”, disse João Victor.
Perguntei a elas se a vida da lua era parecida com a da gente, então elas
responderam:
“A vida da lua não é parecida com a nossa, porque a gente morre e não volta
de novo”.

1 Este capítulo resume conteúdos, reflexões e práticas expostos anteriormente nos trabalhos de Lima e
Jafelice (2004; 2005a; 2005b) e Lima (2006) – este último também disponível através do sítio: http://
www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações
(2002-2007)”], aos quais remetemos os leitores interessados em maiores detalhamentos.

22
Astronomia no Ensino Fundamental

Estas conclusões, a que eles chegaram, se deram através de conversas.


Estas possibilitaram a ampliação e superação do senso comum para o cien-
tífico e cabe a nós professores subsidiarmos esta ruptura. Vale salientar que
estas conversas originaram-se de uma atividade permanente que consiste em,
após as leituras compartilhadas, retomarmos a tarefa de casa de observar o
céu e desenhar a lua todos os dias (quando esta não está visível, as crianças
desenham o que estiver visível na parte do céu representada – por exemplo:
estrelas; nuvens e estrelas; chuva).
Como explicita Jafelice (2006), “vale destacar também a surpreenden-
te ‘coincidência’ entre esses relatos espontâneos das crianças e as concepções
presentes na história das crenças humanas”. E prossegue: “de fato, o conhe-
cido historiador das religiões, Mircea Eliade, explicita no capítulo ‘A Lua e
a Mística Lunar’, de seu livro ‘Tratado de História das Religiões’ (ELIADE
1993, p. 127-130), o seguinte:”
O Sol permanece sempre igual, sem qualquer espécie de “devir”. A
Lua, em contrapartida, é um astro que cresce, decresce e desaparece,
um astro cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nasci-
mento e da morte. Como o homem, a Lua tem uma “história” paté-
tica, porque a sua decrepitude, como a daquele, termina na morte.
Durante três noites o céu estrelado fica sem Lua. Mas esta “morte”
é seguida de um renascimento: a lua “nova”. O desaparecimento da
Lua na obscuridade da “morte”, nunca é definitivo. [...]
Este eterno retorno às suas formas iniciais, esta periodicidade
sem fim fazem com que a Lua seja, por excelência, o astro dos
ritmos da vida. Não é, pois, de surpreender que ela controle todos
os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico: águas, chuva,
vegetação, fertilidade. As fases da Lua revelaram ao homem o tempo
concreto, distinto do tempo astronômico, que só posteriormente foi
descoberto. [...]
O “espírito primitivo”, tendo penetrado as “virtudes” da Lua, estabe-
lece relações de simpatia ou de equivalência entre estas séries de fe-
nômenos. As sínteses mentais que a revelação do ritmo lunar tornou
possível fazem corresponder e unificam realidades heterogêneas; as
suas simetrias de estrutura ou as suas analogias de funcionamento
não teriam podido ser descobertas se o homem “primitivo” não ti-
vesse intuitivamente percebido a lei da variação periódica do astro,
como o fez muito cedo. [...]
A vegetação, por exemplo, implica as idéias de morte e de renasci-
mento, de luz e de obscuridade (consideradas como zonas cósmi-
cas), de fecundidade e de opulência, etc. [todas naturalmente asso-
ciadas à Lua através do pensamento analógico] [...]

23
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

As “virtudes” da Lua deixam-se descobrir não por meio de uma série


de esforços de análise, mas por intuição; ela revela-se cada vez mais
totalmente. As analogias criadas na consciência arcaica são orques-
tradas com a ajuda de símbolos: por exemplo, a Lua aparece e de-
saparece; o caracol mostra e esconde os cornos; o urso desaparece
e reaparece; [...]
O homem reconheceu-se na “vida” da Lua, não somente porque sua
própria vida tinha um fim, como a de todos os organismos, mas so-
bretudo porque ela tornava válidas, graças à “lua nova”, a sua sede de
regeneração, as suas esperanças de “renascimento”.

Jafelice (2006) conclui, realçando:


É notável como esses sentimentos ancestrais estão presentes e intac-
tos nas pessoas de hoje, de modo mais evidente ainda nas crianças, e
como eles podem ser trazidos naturalmente à tona quando a relação
educacional é conduzida de maneira adequada e sensível aos ricos e
complexos processos envolvidos na aventura de se estar no mundo,
de se adaptar a ele e de se desenvolver a autoconsciência enquanto
ser vivo, parte do todo.

A Figura 1 evidencia claramente essa compreensão das crianças a res-


peito dos ciclos da lua e dos seres humanos. É importante notar que essa figu-
ra foi desenhada, enquanto montávamos o calendário lunar em 2004, após as
crianças terem vivenciado esse ciclo ininterrupto da lua.

Figura 1 – Comparações feitas pelas crianças entre o ciclo de “vida” da lua e o do homem (exemplo)

24
Astronomia no Ensino Fundamental

Com estas descobertas das crianças percebemos que às vezes elas


aprendem fazendo comparações com aprendizagens que lhes foram signifi-
cativas. Logo, o princípio da assimilação e da acomodação de certas experi-
ências e conhecimentos implica que estes vão incorporando-se às estruturas
de pensamento da criança.
Por esses vários motivos, defendemos também essa Astronomia Vi-
vencial desde o primeiro ano do ensino fundamental, porque as evidências de
nossa prática demonstram que esses conteúdos integrados às demais discipli-
nas possibilitam o desenvolvimento dos conteúdos conceituais, atitudinais e
procedimentais.
Segundo os PCN:
[...] os conteúdos conceituais referem-se à construção ativa das ca-
pacidades intelectuais para operar com símbolos, idéias, imagens e
representações que permitem organizar a realidade. A aprendizagem
de conceitos se dá por aproximações sucessivas. Para aprender sobre
digestão, subtração ou qualquer outro objeto de conhecimento, o
aluno precisa adquirir informações, vivenciar situações em que esses
conceitos estejam em jogo, para poder construir generalizações par-
ciais que, ao longo de suas experiências, possibilitarão atingir concei-
tualizações cada vez mais abrangentes (BRASIL, 1997, p. 74).

Já os conteúdos procedimentais “expressam um saber fazer, que en-


volve tomar decisões e realizar uma série de ações, de forma ordenada e não
aleatória, para atingir uma meta” (BRASIL, 1997, p. 75). Por exemplo, ao tra-
balhar o desenho de observação, o professor terá uma ótima oportunidade
para discutir os detalhes com seus alunos.
De acordo com os PCN (BRASIL, 1997) os conteúdos atitudinais
permeiam todo o conhecimento escolar. A escola é um contexto socializador,
gerador de atitudes relativas ao conhecimento, ao professor, aos colegas, às
disciplinas, às tarefas e à sociedade. Ensinar e aprender atitudes requer um
posicionamento claro e consciente sobre o que e como se ensina na escola.
Por outro lado, de acordo com os PCN:
[...] em Ciências Naturais é relevante o desenvolvimento de posturas
e valores pertinentes às relações entre os seres humanos, o conheci-
mento e o ambiente. O desenvolvimento desses valores envolve mui-
tos aspectos da vida social, como a cultura e o sistema produtivo, as
relações entre o homem e a natureza (BRASIL, 1997, p. 76).

25
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Em relação aos conteúdos conceituais, isto pode ser observado por


meio dos vários relatos orais feitos pelas crianças enquanto íamos montan-
do os calendários lunares. Por exemplo: João Pedro disse que “viu São Jorge
matando o dragão na lua”; Alice dos Anjos disse que “seu pai falou que era
também São Jorge na lua”; João Victor disse que “João Pedro não tinha visto
São Jorge, mas sim as crateras”; nesta hora Lidiane e Andressa concordaram
com João Victor, porém Andressa completou dizendo que eram “as crateras
se juntando”.
A montagem desses calendários lunares também possibilitou a com-
preensão desse ciclo claro-escuro, que o sol e a lua nos proporcionam. O re-
lato a seguir também evidencia esse fato. No dia 27 de julho de 2005, quando
iniciamos a aula e alguns alunos disseram que viram a lua pela manhã, ao
virem para a escola, e ela estava minguante, aproveitamos para que todos a
víssemos e fomos para o pátio da escola.
Maxwell, então, falou:
“Tia, a lua e sol parecem brincar de cão e gato”.
Ele falou isto porque viu a lua “indo” para o lado oeste2 e o sol estava
no lado leste3.
Enquanto desenvolvíamos as várias oficinas lunares com as crianças
(vide seção 4.1 para maiores detalhes), percebemos também que estávamos
desenvolvendo conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais, já que,
uma vez de posse de alguns desses elementos, elas teriam que pensar nas fases
da lua e “confeccioná-las” (i.e., representá-las concretamente, no nível mate-
rial). Isto requer uma série de ações não aleatórias, bem como relações de
trocas de conhecimentos entre as crianças e ajuda mútua.
Já os conteúdos procedimentais pretenderam ser vistos por meio dos
vários desenhos de observação mais representativos do céu, escolhidos de-
mocraticamente através de votação, já que todos os dias eles recebiam um
papel de aproximadamente 10 cm x 10 cm e tinham como tarefa de casa de-
senhar o céu do jeito que o viam, em particular no lugar onde a lua estava (no
caso de ela estar visível), com a finalidade de montarmos os vários calendá-
rios lunares; o que fizemos de maio a novembro de 2004 (vide Figura 2).

2 Isto é, a lua na realização de seu movimento aparente (de leste para oeste), devido à ilusão perceptiva
causada pelo movimento real de rotação da Terra em torno de si mesma (de oeste para leste), o qual
não percebemos.
3 Pois, como mencionado, as aulas dessa turma eram pela manhã e, no horário daquela observação, o
sol ainda não havia cruzado o meridiano local.

26
Astronomia no Ensino Fundamental

No dia 24/08/04, ao retomarmos a tarefa de casa do dia anterior,


quando as crianças disseram que a lua estava crescente, havia muitas nuvens e
poucas estrelas no céu. Como o desenho escolhido nesse dia foi o de Ruffles,
por ser o mais representativo, convidamos o mesmo para contar o segredo de
tanto esmero. Ele falou assim:
“Eu me sento num banquinho e fico só desenhando”.

Figura 2 – A montagem dos calendários lunares, 2004 (exemplo) (Foto: L. C. Jafelice)

Percebe-se, através deste relato, que o aluno está se apropriando, por


intermédio de suas observações, o máximo possível do real.
Em relação aos conteúdos atitudinais, podemos observar claramente
a recuperação de valores e práticas já esquecidas e adormecidas pelo tempo.
Com esta atividade de observarmos o céu todas as noites estávamos estabe-
lecendo o resgate de uma memória ancestral nestas crianças, que ainda estão
na segunda infância.
Um outro argumento a favor desta Astronomia Vivencial deve-se ao
fato de ela desenvolver uma visão integradora das humanidades e da ciência,
ao invés de uma abordagem tradicional que separa ciência exata daquela das
humanidades. Aliás, por isto, com tanta frequência, a ciência em geral, cujo
modelo ainda se ampara fortemente nos vieses epistemológico, ontológico

27
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

e metodológico das ciências exatas, é proclamada sem máculas e como o


único caminho verdadeiro para se obter o conhecimento reconhecido como
válido.
O relato a seguir mostra que as crianças, quando envolvidas num am-
biente que é permeado pelas relações dialógicas, discussões e reflexões diá-
rias trazidas através das várias leituras compartilhadas, ou não, que traziam
no bojo as questões de Astronomia, possibilitaram desenvolver um senso
questionador em relação às coisas do céu.
No dia 03/05/05 o aluno Maxwell Jonathan perguntou:
“Tia, se o sol é uma bola de fogo então um dia ela vai se apagar?”.
Então a professora respondeu:
“Os cientistas dizem que daqui a bilhões de anos ela vai se apagar, mas quem
vai garantir isto?”.
O aluno Arthur Bernard’s acrescentou:
“É tia, os cientistas dizem, mas pode ser verdade como pode ser mentira”.

1.2 Ensino de Astronomia e letramento

Ao longo destes três anos de trabalho o nosso maior desafio, ao intro-


duzirmos os conteúdos de Astronomia com crianças a partir dos seis anos de
idade, foi fazer acontecer o processo de letramento, já que sabemos que as
crianças das classes menos favorecidas não têm um ambiente alfabetizador tal
qual o das classes mais privilegiadas.
E o que vem a ser o “letramento”? Segundo os Parâmetros Curricula-
res Nacionais (1997 apud ABREU, 2000, p. 8):
Letramento, aqui, é entendido enquanto produto da participação em
práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecno-
lógico. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las
significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades especí-
ficas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento
de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de
letramento, pois nelas é impossível não participar de alguma forma,
de alguma dessas práticas.

É bom frisar que a nossa abordagem optou por encaminhar o proces-


so de alfabetização pelo viés do letramento por acreditarmos que a simples
decodificação e memorização de símbolos linguísticos em sons e letras levam

28
Astronomia no Ensino Fundamental

ao empobrecimento do aprendizado da nossa língua. Com isto, porém, não


queremos menosprezar o papel da memória.
Em virtude da postura que adotamos, estabelecemos uma rotina para
a sala de aula, a saber:
• Acolhida das crianças;
• Leitura compartilhada;
• Retomada do dever de casa de observar o céu e desenhar a lua, quando
visível (ou apenas desenhar o céu, quando esta não está visível);
• Lanche;
• Continuação, ou não, de atividades introduzidas com a retomada do dever
de casa;
• Agenda.
Ora, o estabelecimento de uma rotina é fundamental para a criança,
porque permite a ela incorporá-la, podendo antecipar o que irá acontecer em
seguida, proporcionando assim uma sensação de segurança e tranquilidade.
Após a acolhida, habitualmente fomos introduzindo uma diversidade
textual, a qual trazia no bojo, ou não, temas relacionados à Astronomia, para
que as crianças se familiarizassem com a linguagem que se usa para escrever
cada gênero.
Mas o que entendemos por “gênero”? Segundo os Parâmetros Curri-
culares Nacionais (1997 apud ABREU, 2000, p. 9):
Todo texto se organiza dentro de um gênero. Os vários gêneros
existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de
enunciados [...]. Podemos ainda afirmar que a noção de gênero se
refere a “famílias” de textos que compartilham algumas característi-
cas comuns [...].
Os gêneros são determinados historicamente. As intenções comuni-
cativas [...] geram usos sociais que determinam os gêneros, os quais
dão forma aos textos. É por isso que, quando um texto começa com
“era uma vez”, ninguém duvida que esteja diante de um conto, por-
que todos conhecem esse gênero. Diante da expressão “senhoras e
senhores”, a expectativa é ouvir um pronunciamento público ou uma
apresentação de espetáculo, pois sabe-se que nesses gêneros o texto,
inequivocamente, tem essa fórmula inicial. Do mesmo modo, pode-
mos reconhecer outros gêneros como: cartas, reportagens, poemas,
textos informativos, anúncios, etc.

Sendo assim, trazer essa diversidade textual que existe fora da sala de
aula para a escola é essencial para estabelecer para a criança que a leitura e a
escrita têm uma função social.

29
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Vale salientar que, com estas atividades permanentes de leituras, con-


seguimos despertar o “eu” poético das crianças tendo como inspiração as
coisas do céu. Isto se deu não só enquanto elas se apropriavam deste tipo de
discurso linguístico, ao mesmo tempo em que avançavam em suas hipóteses
de escrita, mas também enquanto compreendiam o nosso sistema de escrita
alfabético de forma prazerosa e significativa. A poesia a seguir, do aluno João
Victor (6 anos4), exemplifica bem esta questão (Figura 3).

LUA MAL-HUMORADA
Autor: João Victor

Mais que lua é essa![?]


Que ela cresce e não espera pela gente
Ela fica gorda
Que Lua [é] essa que fica minguante[?]
Não espera pela gent[e]
E que lua mal humorada
Nem espera pela gente
Oh! Lua mal humorada[!]
Ela vai ficando na velhice
Ela chega devagar no primeiro ponto
Morrer [Morre]

Figura 3 – Livro de Poesias 2004/2005 (excerto)

Segundo Jolibert (1994), “a poesia é a descoberta do mundo, desco-


berta de si, e de outrem, contribuindo assim para explorar o real e o imagi-
nário e ela pode assumir uma função de socialização e afirmação da pessoa
como tal”.
As atividades de releitura de livros realizadas em sala de aula, cujos tí-
tulos estavam relacionados com as coisas do céu, possibilitaram-me averiguar
que também os conteúdos da Astronomia fascinam as crianças e despertam

4 As idades mencionadas são sempre as das crianças na época da realização das respectivas atividades
citadas.

30
Astronomia no Ensino Fundamental

nelas curiosidades que as fazem transpor do seu mundo real para o imaginá-
rio, já que este tem sua fonte, pelo menos em parte, naquele.
Durante a leitura do livro “Uma viagem à lua” (FRANÇA e FRANÇA,
2001), por exemplo, as crianças ficaram atentas e participaram dando respos-
tas às indagações que a professora ia fazendo ao ler o texto, do tipo:
Professora: “Será possível morarmos em Marte?”.
João Victor (7 anos): “Não, pois lá não tem o mesmo ar que respira-
mos aqui”.
Professora: “As pessoas podem mudar de cor?” (se forem para Marte).
Judson (6 anos): “Não, pois a pessoa daqui é a mesma de lá”.
Diante destes relatos, percebe-se que durante o processo de alfabeti-
zação o “ouvir histórias”, como afirma Grossi (1990, p. 85), é, por excelência,
forjador de imagens mentais que se representam através de desenhos, cria-se
uma história com isto, fecha-se um ciclo por onde se dá a aquisição da leitura-
escrita.
Para Silva (1991), o ato crítico de ler aparece como uma constelação
de atos da consciência do leitor, que são acionados durante o encontro signi-
ficativo desse leitor com a mensagem escrita.
Os desenhos a seguir (Figura 4), das releituras das crianças do livro
Noite de Cão (LIMA, 1996), nos mostram o encontro prazeroso delas ao re-
tornar ao texto.

Figura 4 – Atividade de releitura de um livro relacionado ao tema (exemplos)


(Noite de Cão; LIMA, 1996)

31
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Já a atividade permanente de retomada do dever de casa de observar


o céu e desenhar a lua (quando esta está visível ou apenas o céu quando ela
não está visível), enriqueceu muito a nossa prática de sala de aula, pois as boas
conversas que travamos possibilitaram um crescimento amplo de integração
global nas crianças, já que conseguimos desenvolver os conteúdos conceitu-
ais, atitudinais e procedimentais enquanto íamos montando os calendários
lunares.
O desenvolvimento destes conteúdos se evidenciou também, por
exemplo, no fato de todos os dias – ao iniciarmos o dever de casa de observar
o céu e desenhar a lua – contarmos quantas crianças viram a lua, quantas não
viram, e discutirmos como estava o formato da lua nesse dia em comparação
ao do dia anterior. Com isto estávamos introduzindo a relação de número,
quantidade e forma, bem como a noção de aumentar e de diminuir, já que
discutíamos se a lua, na fase nova, estava aumentando ou diminuindo sua par-
te iluminada.
No dia 20 de julho de 2004, ao retomarmos o dever de casa de obser-
var o céu, vivemos a seguinte situação: conforme constatado por quem viu a
lua na tarefa do dia anterior, a lua estava nova (“fininha”, disseram as crianças)
e havia muitas estrelas e poucas nuvens no céu. Ao todo, 7 meninas e 6 meni-
nos, como também a professora, viram a lua. Com isso, Ruffles acrescentou:
“Foram 14 pessoas que viram a lua no total!”.
Ao retomarmos o dever de casa de observar o céu do dia 08 de outu-
bro de 2004, João Pedro disse que viu a lua cheia sete vezes quando estava lá
na casa de sua avó, no interior.
Estes relatos explicitam alguns exemplos de desenvolvimento de con-
teúdos conceituais e procedimentais – ao observarem e desenharem a lua
e avaliarem sua forma e a variação diária desta –, e atitudinais – expressos
através do resgate cultural dos saberes e posturas que nossos antepassados
tinham em relação às coisas do céu.
É bom lembrar que, após as boas conversas onde dialogávamos e dis-
cutíamos sobre como estava o céu na noite anterior, a professora pesquisado-
ra assumia a função de escriba, pois íamos construindo coletivamente o texto
para aquela observação do dia anterior. Aí, aproveitávamos para trabalharmos
as questões gramaticais e ortográficas mediante as dificuldades que a turma ia
apresentando em suas escritas.

32
Astronomia no Ensino Fundamental

Vale salientar ainda que os conteúdos de matemática também foram


inseridos aproveitando-se essa retomada do dever de casa de observar o céu,
pois mediante certas observações introduzimos os números ordinais e cardi-
nais, antecessor e sucessor, os símbolos de maior, menor, igual e diferente, o
quadro de valor do lugar, situações, problemas, curva aberta e fechada, círcu-
lo, unidade de comprimento (metro) e seus submúltiplos.
Durante esta atividade permanente de observar o céu, e em paralelo
com as diversas leituras que fizemos, discutimos algumas questões ambien-
tais, como, por exemplo a possibilidade de escassez de água em nosso pla-
neta, os desmatamentos constantes e suas consequências para o nosso meio
ambiente, a influência das coisas do céu relacionadas com os nossos afazeres
diários, como determinantes das marés e indicadores para as boas colheitas.
Não poderíamos deixar de explicitar que trabalhamos, concomitan-
temente à atividade mencionada anteriormente, a questão do respeito pela
pluralidade cultural.
É bom ressaltar também que propusemos algumas atividades mime-
ografadas segundo modelos apresentados da didática da alfabetização de
Grossi (1990). Pois, de acordo com os níveis de escrita das crianças, íamos
propondo atividades para que as crianças fossem pensando sobre o que essas
letras representam e apresentando situações desafiadoras que as faziam avan-
çar em suas hipóteses de escrita.
É importante ressaltar ainda que para nós o “erro” assumiu uma co-
notação diferente daquela da abordagem tradicional, ou seja, para nós ele se
constituiu em um elemento possibilitador de acertos futuros. Sendo assim, é
como diz Ferreiro (2003, p. 82-83):
Em uma visão construtivista o que interessa é a lógica do erro: trata-
se às vezes de idéias que não são erradas em si mesmas, mas aparecem
como errôneas porque são sobre generalizadas, sendo pertinentes
apenas em alguns casos, ou de idéias que necessitam ser diferencia-
das ou coordenadas, ou, às vezes que geram conflitos, que por sua
vez desempenham papel de primeira importância na evolução. Al-
guns desses conflitos entendemos muito bem; esperamos entender
melhor outros em um futuro não muito distante.

Ferreiro (2003, p. 39) diz que “não é necessário dar aula de Física na
pré-escola, mas é preciso dar oportunidades para que se descubram algumas
propriedades físicas elementares”. Concordamos literalmente com este posi-
cionamento, porque muitas vezes as crianças das classes menos favorecidas

33
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

não concluem nem o ensino fundamental. Neste caso, é preciso aproveitar


cada oportunidade que vai surgindo na sala de aula para discussão e/ou escla-
recimento, pois, provavelmente, eles não terão outra chance em suas vidas.
Neste sentido, podemos citar como exemplo o caso da aluna Débo-
ra Cristina, que no ano de 2004 fazia parte da turma em que nós encami-
nhávamos esta proposta diferenciada de trabalho. Logo depois ela evadiu-se
da escola e em 2005 regressou, só que desta vez ela ficou em outra turma e,
portanto, mesmo ainda fazendo parte do processo de escolarização, não teve
mais a oportunidade de vivenciar aquele trabalho e as descobertas e aprendi-
zagens associadas.
Com efeito, no dia 03/03/04 – isto é, enquanto Débora ainda era mi-
nha aluna – ao trabalharmos o conceito de ser vivo, levantamos alguns ques-
tionamentos, tais como: o ser vivo ocupa lugar no espaço?; ele tem corpo?
Fizemos com que cada criança tomasse a si por referência, para poder então
incluir outros corpos.
Questionei junto às crianças o porquê de os corpos caírem para baixo
e não o contrário. Soltei, então, uma revista, depois um giz. Após as suas ob-
servações e conclusões expliquei que isto sempre vai acontecer com os cor-
pos, por causa de um peso, o peso de cada objeto, que os puxa para baixo.
No dia 15/03/05 – quando, após seu regresso, a aluna Débora Cristi-
na já não era mais minha aluna –, durante o recreio, ela entrou na sala em que
leciono e lhe perguntei:
“Débora, você se lembra o que acontece com o livro quando eu o solto de
certa altura?”.
Ela respondeu:
“Ah tia, ele cai”.
Indaguei, então:
“Por que, Débora?”.
E ela respondeu:
“Por causa do peso que puxa ele para baixo, tia”.
De fato, a partir do momento em que a professora percebe que os con-
teúdos não necessariamente precisam ser hierarquizados, isto é, que estamos
preparando os nossos alunos para a vida desde já, e não apenas para quando
se tornarem adultos, então ela passa a trabalhar os conteúdos de acordo com
a necessidade da turma, adequando-os ao nível desta para aquela etapa. Desta

34
Astronomia no Ensino Fundamental

forma estaremos de fato garantindo e cumprindo o verdadeiro papel da esco-


la, ou seja, permutando conhecimentos e desenvolvendo conteúdos de forma
cooperativa, que tenham sentido e significado para a vida das pessoas.
Concluímos também, com este trabalho, que é preciso tirar as morda-
ças dos nossos alunos, já que, em uma escola que se diz democrática é preciso
instaurar uma relação dialógica para que se garanta a voz e a vez de todos
neste processo de alfabetização.
É como explicita Ferreiro (2003, p. 51):
[...] o que sabemos é que os professores que se atrevem a dar a palavra
às crianças e a escutá-las descobrem rapidamente que seu próprio
trabalho se torna mais interessante (e inclusive mais divertido),
embora seja mais difícil porque os obriga continuamente a pensar.

Portanto, após estes três anos de trabalho, que se constituiram em


grande desafio para a pesquisadora, vemos que as crianças, já a partir dos seis
anos de idade, através de seus questionamentos surpreendentes, assemelha-
ram-se a um cientista na busca incessante da compreensão de fenômenos que
têm sentido e significado para elas. Paralelamente, foram construindo um
senso de integridade cósmica e de responsabilidade em cuidar e preservar
o nosso meio ambiente, enquanto foram compreendendo o funcionamento
do nosso sistema de escrita e vivenciando essa Astronomia que tem estreita
relação com o cotidiano.

1.3 Ensino de Astronomia e afetividade no processo de ensino-


aprendizagem

A palavra afetividade, segundo o dicionário Aurélio, significa “quali-


dade ou caráter de afetivo” (cf. FERREIRA, 2001, p. 20). Sabemos que afe-
tividade é fundamental em qualquer relacionamento, pois ela é quem “me-
lhora os espíritos” e impulsiona os ânimos daqueles que estão em desânimo,
desalento, ou que foram marginalizados por não se adequarem a um padrão
estabelecido como normal por esta sociedade.
Em se tratando de um trabalho com crianças portadoras de necessida-
des especiais, ou não, a afetividade foi fundamental para que se estabelecesse
um elo de confiança e respeito mútuo entre a professora e os alunos.
Durantes estes três anos em que desenvolvemos este trabalho diferen-
ciado, incluindo os conteúdos de Astronomia logo nas séries iniciais do en-

35
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

sino fundamental com crianças a partir dos seis anos de idade, pudemos per-
ceber que as crianças envolvem-se com entusiasmo nas atividades propostas
em sala de aula, porque estão envolvidas afetivamente com a professora. Isto
faz com que as mesmas percebam que a educadora transmite e elabora com
elas aquilo que gosta e acredita no que faz. Esta foi e é a receita para qualquer
educador que quer ser bem-sucedido na disciplina ou série em que leciona.
A questão da afetividade também implica num olhar clínico que todo
professor precisa ter. Mesmo não sendo um especialista na área, ele deverá
ser capaz de identificar, no dia a dia, quando uma criança apresenta algum
comportamento dito “anormal” ou que é “problemático”. Neste caso, antes
de encaminhá-la para alguma instituição para atendimento especializado, é
preciso que investiguemos as causas daquele comportamento, pois só assim
estaremos contribuindo para que seja diagnosticada de fato a dificuldade es-
pecífica dessa criança.

Figura 5 – João Pedro fazendo uma pseudoleitura de sua poesia para a turma (Foto: Fátima Lopes)

Vejamos o caso do aluno João Pedro que, no ano de 2003, ao ingressar


na escola em uma turma de 1ª fase do 1º ciclo, foi marginalizado pela profes-
sora de então e demais colegas, por apresentar um comportamento conside-
rado “anormal” pelo padrão instituído. Muitas vezes ele era visto fora da sala
de aula, com a mochila nas costas, no horário da aula. Tal fato inquietou-me:

36
Astronomia no Ensino Fundamental

alguma medida para reverter esse quadro de exclusão deveria ser tomada. O
aluno foi, então, encaminhado à minha turma, que trabalharia os saberes de
Astronomia.
Após dois anos de trabalho pudemos observar os avanços na apren-
dizagem do citado aluno dentro de suas limitações e possibilidades. Hoje, o
mesmo já demonstra avanço tanto no nível de sua escrita como em relação a
suas habilidades de leitura.
A Figura 5 mostra João Pedro fazendo uma pseudoleitura de sua poe-
sia, inspirada na lua. Essa poesia foi criada por ele mesmo e redigida na lousa
pela professora.
Vale a pena ressaltar também que a sua integração com os demais co-
legas melhorou consideravelmente, já que antes de ingressar nesse projeto ele
ficava mais fora da sala de aula do que dentro. Atualmente, vê-lo mais partici-
pativo na sala de aula realça e reflete os progressos alcançados.
Em relação ao seu aprendizado das coisas do céu, esse aluno já sabe
que a lua é formada por crateras e que tem quatro fases (nova, crescente, cheia
e minguante). E é importante ressaltar que o primeiro conhecimento é de
caráter essencialmente informacional – embora o aluno tenha enriquecido
tal conhecimento na prática, após ter visto a lua várias vezes através do te-
lescópio do Departamento de Física da UFRN –, ao passo que o segundo
conhecimento, além de também ser informacional, ele foi construído inicial
e previamente em bases puramente vivenciais, através da procura, observação,
desenho e acompanhamento sistemáticos diários da lua.
Desta mesma forma, João Pedro identifica algumas constelações no
céu (Cruzeiro do Sul e Escorpião) quando visíveis. Ele também localiza os
pontos cardeais de acordo com o nascer e o pôr do sol. E ele compreende
porque o sol é importante para nós e os demais seres vivos.
Percebemos que quando a criança sente-se confiante em si e na pro-
fessora, que a estimula e respeita, e entre as quais se cultivou e se desenvolveu
uma afetividade, estes fatores favorecem a elevação da autoestima da criança
e o seu aprendizado.
Vejamos outro exemplo que podemos mencionar sobre o quanto a
afetividade e a qualidade que um trabalho com as preocupações e cuidados
que levantamos aqui são capazes de motivar e conquistar nos alunos, a ponto
de levá-los a terem prazer e alegria na escola em que estudam. É o caso dos

37
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

irmãos Ruffles, de 10 anos, e Mateus Santos, de 8 anos, ambos fora de faixa


para o primeiro ano de escolaridade, quando ingressaram na escola no início
do 2º semestre de 2004. A mãe deles fez, na época, o seguinte comentário:
Professora, esses meus filhos são rudes. São um pouco nervosos.
São como bichos do mato. Lá em casa todos têm dificuldades para
aprender. A senhora tenha um pouco de paciência com eles. Eles não
se davam nas escolas que estudavam lá em Parnamirim. O pai deles
ia sendo preso, pois o Mateus lá em Parnamirim não queria entrar na
sala de aula, aí o pai baixou o pau nele, mas não teve jeito.

Hoje, após quase dois anos de trabalho, a professora pesquisadora


pode diagnosticar, bem como seus pais, que houve avanços de ambos os ir-
mãos, tanto no nível de suas escritas como nas habilidades de leitura, sem
falarmos no relacionamento amigável e respeitoso entre eles e a professora.
É bom lembrar que atualmente esses dois irmãos são assíduos às aulas
e fazem a maior confusão com seu pai, pois quando a lua está indo de cheia
para minguante eles só querem dormir após observar e desenhar a lua (que,
nesta fase, nasce cada dia mais tarde da noite).  
Estes dois exemplos são suficientes para mostrar o quanto os conteú-
dos da Astronomia, associados de modo natural e integrado às demais disci-
plinas, são capazes de “tocar” a sensibilidade das pessoas.
Vale frisar que a Astronomia é uma disciplina que tem esse caráter
sensibilizador, já que as marcas dos nossos antepassados estão presentes em
nós, embora estejam de forma latente, e que o despertar delas gera toda essa
gama de sentimentos poéticos, intelectuais, espirituais e emocionais. Pode-
mos constatar também, a partir desses exemplos, que essa reconexão do ser
humano com o céu, com o cosmo, traz um certo enriquecimento maior do
ser, já que desperta certos processos psíquicos que contribuem para o melho-
ramento do ser humano.
1.4 Ensino da Astronomia e inclusão

Desde o ano de 2003, quando eu ainda lecionava na Escola Municipal


Professora Zuleide Fernandes, também na Zona Norte de Natal (RN), ficou
evidente que as crianças ditas normais, ou não, são capazes de serem incluí-
das e atraídas para os conteúdos de Astronomia quando estes são tratados de
forma lúdica e prazerosa, já que eles têm grande influência em nossas vidas.
Isto ocorreu quando colocamos em prática, pela 1ª vez, o jogo trilha da lua

38
Astronomia no Ensino Fundamental

(em sua versão “lua cheia”; jogo que trazia aqueles conteúdos de modo lúdico
e prazeroso).
O exemplo do aluno Edvaldo Lima, que estudava na citada escola e
era portador de necessidades especiais (referidas como DM, isto é, apresen-
tava uma deficiência mental), explicita claramente que essa inclusão, tanto
dos conteúdos de Astronomia como de crianças portadoras de necessidades
especiais, é possível e viável em termos de ganhos culturais, sociais e pedagó-
gicos.
No dia 07/04/03 o referido aluno veio de cabelo cortado para a sala
de aula, pois no jogo trilha da lua havia uma pergunta a ser pesquisada junto
aos familiares: se era bom ou não cortar os cabelos na lua cheia. Este fato foi o
início de uma evidência – que foi confirmada no período de 2004 a 2005 na
E. E. Alceu Amoroso Lima, onde eu tinha em sala de aula dois alunos porta-
dores de necessidades especiais –, de que podemos incluir todas as crianças
no encontro com as coisas do céu desde o início do 1º ano do ensino funda-
mental numa perspectiva de letramento e inclusão.
Não se deve entender inclusão apenas em seu sentido habitual, confor-
me já enfatizamos anteriormente (vide também comentários que já citamos
de SASSAKI, 1997). Segundo Mantoan (2004), há dois tipos de movimen-
tos inclusivos. A teoria do meio menos restrito possível preconiza a inserção
do aluno com deficiência, mas condiciona as suas possibilidades de corres-
ponder às expectativas e exigências de um ambiente considerado regular. Já
a teoria do meio mais favorável possível diz que as diferenças são a mola que
impulsiona os educadores, os pais, as crianças e a sociedade em geral a muda-
rem comportamentos, ideias, procedimentos, em busca de uma educação de
qualidade para todos.
Em nosso caso, a segunda perspectiva, como já explicitamos antes,
vem validar a minha ação já realizada em nossa sala de aula, onde valorizamos
os diferentes e as diferenças, já que consideramos o ser humano como um
todo.
A experiência tem mostrado que é possível fazer-se uso de práticas
vivenciais inclusivas através dos conteúdos de Astronomia com as crianças
portadoras de necessidades especiais, ou não. Acreditamos que incluindo-as
logo cedo nessas práticas, segundo a perspectiva e orientação que propomos,
as crianças verão as coisas do céu como parte integrante do nosso meio am-
biente, em vez de considerarem-nas como sendo só a natureza, isto é, em vez

39
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

de conceberem só aquilo que há na Terra como componente do ambiente,


conforme a visão convencionada na cultura ocidental. Desta forma elas irão
compreendendo que todos os elementos do universo estão conectados e há
uma interdependência entre eles.
Segundo Mantoan (2003, p. 61):
As escolas que reconhecem e valorizam as diferenças têm projetos
inclusivos de educação e o ensino que ministram difere radicalmente
do proposto para atender às especificidades dos educandos que não
conseguem acompanhar seus colegas de turma, por problemas que
vão desde as deficiências até outras dificuldades de natureza relacio-
nal, motivacional ou cultural dos alunos.

Desta forma, essa autora propõe a superação deste sistema educacio-


nal tradicional que deixa à margem aqueles que não conseguem se moldar a
esse modelo, o qual exclui e que muitas vezes ignora a presença ou a ausência
daqueles que apresentam um comportamento “anormal” ao padrão do aluno
ideal. Assim, os alunos com necessidades especiais são tratados, em alguns
casos, como se estivessem em uma missa, apenas de corpo presente, já que a
postura da professora é indiferente ao fato de eles estarem na turma ou não.
Como já relatamos, o fato que aconteceu com o aluno João Pedro (na
E. E. Alceu Amoroso Lima, quando ele lá ingressou em 2003), é um exemplo
do que estamos discutindo. Por apresentar uma “conduta típica”, João Pedro
era marginalizado pela professora e demais colegas. Assim como ele chegava
na sala de aula, com a bolsa nas costas, voltava para casa do mesmo jeito. E,
como mencionei, quase sempre ele ficava fora de sala de aula, ou porque saía
ou, quando não, porque era expulso pela sua professora anterior. Eu ouvia
sempre a professora de João Pedro dizer que ele era doido e que a estava dei-
xando doida também, devido ao fato de ser muito inquieto e ficar mexendo
com um e com outro, além de outros comportamentos que ela considerava
anormais.
Na década de 90 do século passado, a Secretaria de Educação Especial
do MEC adotou a definição “condutas típicas”, considerando-as como mani-
festações do comportamento de pessoas com síndromes e quadro psicológi-
co, neurológico ou psiquiátrico que promovam atrasos no desenvolvimento e
prejuízos no relacionamento social.
Os alunos com condutas típicas podem apresentar as seguintes carac-
terísticas:

40
Astronomia no Ensino Fundamental

• Neurose: são alterações emocionais, excessivas e não usuais às situações da


vida cotidiana.
• Psicoses: psicopatia, ideia fixa, obsessão.
Por outro lado, os tipos mais comumente encontrados na escola são:
explosivo (atitudes destrutivas, resiste às regras, age impulsivamente); hipe-
rativo (pouco tempo de concentração); ansioso e imaturo (agitado e descui-
dado).
Segundo Rohde e Benczik (1999), a criança é considerada hiperativa
quando apresenta uma série de sintomas, dentre os quais:
a. ficar remexendo as mãos e os pés quando sentada;
b. não parar sentada por muito tempo;
c. pular, correr excessivamente em situações inadequadas, ou
apresentar uma sensação interna de inquietude;
d. apresentar-se muito barulhenta para jogar ou divertir-se;
e. ser muito agitada todo o tempo;
f. falar demais;
g. responder a perguntas antes de serem terminadas;
h. ter dificuldade de esperar sua vez;
i. intrometer-se em conversa e jogos dos outros.
Já o transtorno de déficit de atenção, problema de saúde mental,
apresenta três características: desatenção, agitação (ou hiperatividade) e a
impulsividade.
A Constituição Federal de 1988 é clara quanto à questão da discrimi-
nação de qualquer pessoa, pois ela elegeu como “fundamentos da república
a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. II e III), e como um
dos seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discrimi-
nação (art. 3º inc. IV)” (BRASIL, 1988, p. 2).
Acreditamos que só a legalização da inclusão de crianças portadoras
de algum tipo de deficiência na escola não garantirá a inclusão social de fato,
pois dependerá também do apoio dos pais, da direção da escola, da equipe
técnica e em especial do professor, já que é este que conduzirá o processo de
ensino-aprendizagem dessas crianças. Portanto, é preciso nos despirmos de
certos preconceitos e irmos à luta, para enfrentarmos esse desafio de ensi-
narmos também alunos portadores de necessidades especiais. Contudo, pela

41
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

conjuntura atual, devemos buscar alternativas que tragam resultados em sala


de aula, pois só a nossa força de vontade e de solidariedade atreladas a um
ensino mais humanizador possibilitará que estas e as outras crianças deem
saltos qualitativos e quantitativos com o tempo.
O sucesso da inclusão de crianças portadoras de necessidades espe-
ciais nas escolas públicas passa também por uma questão de compreensão,
por parte dos professores, de que em qualquer “relação” precisamos, antes de
tudo, saber conviver com as diferenças do outro, pois onde não há compre-
ensão o amor cessa.
Um outro fator fundamental que precisa ser incorporado na área de
cada professor, para que a inclusão se efetive na prática, é o exercício cons-
tante de se colocar no lugar do outro, pois quando sentimos na pele o que o
outro sente, tomamos uma atitude mais humana frente aos nossos valores,
seja o outro convencionado como sendo “normal” ou não. Afinal, a escola só
será democrática quando garantir o acesso, a permanência e o envolvimento
dessas crianças em práticas efetivas no seio da mesma.
A nossa prática tem mostrado que essa abordagem de uma Astrono-
mia Vivencial, desde o começo das séries iniciais do ensino fundamental, nos
possibilita engajar tanto as crianças consideradas normais como as conside-
radas especiais em práticas didático-pedagógicas que as fazem desenvolver os
conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais.
Com isto, não queremos endeusar a disciplina específica de Astrono-
mia. Queremos apenas ressaltar o seu forte potencial, principalmente quan-
do aliada às demais disciplinas e utilizando-se uma metodologia unificada,
mais ainda se esta incorporar estratégias de inspiração antropológica trans-
disciplinar, como pudemos aplicar e constatar na prática.
Portanto, no momento atual, em que nosso sistema educacional passa
por uma crise, na qual precisamos de um novo modelo de ensino, torna-se
premente e importante construirmos métodos que nos possibilitem de fato
trilhar por caminhos que permitam reconectar, recuperar, reorientar, reali-
mentar o homem por um desejo mais forte do que o ter, pois a essência da
vida nada mais é do que se sentir um ser integrante e participante deste tão
grande universo.

42
Astronomia no Ensino Fundamental

2 O PROFESSOR TAMBÉM DITA MODA5


2.1 A aprendizagem e suas relações inconscientes motivacionais

No entender de Edwards (1973, p. 158) “é impossível uma definição


precisa e abrangente de um termo tão amplamente usado quanto a aprendi-
zagem”.
Braghirolli et al. (1998) nos diz:
a verdade é que a ciência não foi capaz de responder a uma pergunta
bastante simples: o que acontece no cérebro de uma pessoa quando
ela aprende alguma coisa? Supõe-se que deve haver uma modifica-
ção no sistema nervoso, cuja natureza não foi esclarecida.

Sendo assim, como não é possível observá-la diretamente, a aprendi-


zagem é constatada indiretamente, através de seus efeitos sobre o comporta-
mento.
Osborne (2001) menciona que o termo “inconsciente” é empregado
de várias maneiras por Freud. Essa palavra pode ser utilizada num sentido
descritivo, para caracterizar aqueles conteúdos que não se encontram na
consciência, como também num sentido dinâmico. Este caso, segundo
ele, não representa uma qualidade, em particular, de estado mental, mas a
função.
Segundo Osborne (2001), num artigo publicado por Freud em 1914,
ele apresentou uma “primeira topografia” da mente. Ela seria formada por
três sistemas: o inconsciente (Ics), o preconsciente (Pcs) e o sistema percep-
ção-consciência (CS). O sistema Ics engloba os conteúdos recalcados pelos
processos de recalque primário (o princípio de prazer) ou de recalque secun-
dário (tem a ver com a realidade).
O recalque ocorre na fronteira entre os sistemas Ics e Pcs (CS). Estes
por sua vez devem ser entendidos como um sistema de forças que entram
em conflito umas com as outras. No entanto, para o mecanismo de recalque
ficar compreensível é preciso recorrer à noção de catexia. Ela se refere a uma
quantidade determinada de energia psíquica que se prende a uma ideia ou um

5 O título deste capítulo veio à tona quando discuti, em uma conversa informal, com minha amiga de
mestrado, a psicóloga Luziânia Ângelli Lins de Medeiros, a quem agradeço por ter compartilhado
dessa ideia comigo e ter revisado o texto desta seção.

43
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

grupo de ideias. Vale salientar que no recalque secundário, ao mesmo tempo


em que a ideia é repelida do Pcs, ela é atraída pelo inconsciente (Ics).
Vejamos agora os relatos dos alunos Maxwell Jonathan e Isabelle que
nos mostram o quanto eles estão motivados, a ponto de transmitirem seus
sentimentos de desejos para o nível inconsciente de suas mentes.
No dia 22/09/05, Maxwell Jonathan, ao chegar à sala de aula, contou-
me um sonho que teve na noite anterior. Segundo ele, estava deitado em cima
do carro do seu pai, fechou os olhos e quando abriu viu que estava flutuando
até a Constelação de Escorpião, para a estrela mais vermelha. O sonho termi-
nou aí porque o seu pai o acordou para vir à escola.
Já com a aluna Isabelle, no dia 24/10/05, o sonho se deu da seguinte
maneira:
“Eu sonhei que a gente estava lá na lua. Foi tão legal. A gente voou, voou, voou
na lua”.
Os dois relatos acima demonstram que as crianças estão transportan-
do para o inconsciente um aprendizado que teve todo um significado para
elas, podemos dizer que elas estão motivadas de tal forma que canalizaram
um desejo consciente para o inconsciente.
Segundo Braghirolli et al. (1998, p. 90) podemos dizer que uma pes-
soa apresenta um comportamento motivado quando ela desprende certa
quantidade de energia relativamente forte dirigida para um objeto ou meta.
Podemos notar que os conteúdos de Astronomia estão assumindo
também um caráter subjetivo e interno, já que as crianças estão levando suas
aprendizagens para além da imaginação consciente.
É importante registrar um outro relato do dia 27/09/05 do aluno Ma-
xwell Jonathan, seis dias após o relato de seu sonho sobre a Constelação de
Escorpião:
“Tia, eu gostaria de saber mais sobre a estrela bem vermelha de Escorpião”. Ele
se referia a Antares, a estrela mais brilhante da Constelação de Escorpião.
A partir deste relato compreende-se que as experiências do incons-
ciente estão retroalimentando e estimulando a busca pelo conhecimento
consciente. Ora, é como diz Hutchison (2000, p. 94), “a busca da criança por
uma cosmologia funcional do universo é inerentemente uma busca por signi-
ficado e propósito no mundo”.

44
Astronomia no Ensino Fundamental

Percebemos também que esses sonhos das crianças não são deva-
neios, já que apresentam começo, meio e fim. Poderíamos caracterizá-los
como sonhos criativos.
Assim, na subseção 3.5 (Salpique de tinta) veremos exemplos mostran-
do a incorporação das relações céu-terra por parte dos alunos em suas vidas,
em seus cotidianos. Os exemplos da presente seção complementam aqueles,
de certa forma, e ressaltam como as reestruturações mentais estimuladas pelo
enfoque que propomos mobiliza toda a psique das crianças e ocorrem tam-
bém no nível inconsciente, interferindo positivamente inclusive na criativida-
de das mesmas, como se esperaria de um processo de aprendizagem efetivo.
Os sonhos do Maxwell Jonathan, escritos por ele mesmo e reprodu-
zidos abaixo, são outros exemplos nesse sentido. Esses sonhos evidenciam
ainda mais esse caráter sensibilizador dessa Astronomia Cultural e Vivencial,
a qual estamos propondo para as séries iniciais do ensino fundamental, real-
çando que ela se torna um dos elementos importantes que toca e mexe com
a psique humana.
1º sonho de Maxwell: “Ontem no dia 20/03/06 eu sonhei que estava
de manhã o sol estava no céu e as estrelas estavam no céu com o sol. E eu
fiquei com vontade de desenhar o céu”. (Vide Figura 6.)
2º sonho de Maxwell: “No dia 18/04/06 eu sonhei que a lua estava
com um monte de cores e parecia real”. (Vide Figura 6.)
Portanto, podemos concluir que quando as crianças estão envolvidas
afetivamente com seu professor(a) e motivadas em suas aprendizagens, elas
extrapolam as vias de conhecimento para além das habituais.
2.1.1 O professor é o exemplo
Otte (1993, p. 133) afirma que “não são as ações, ordens e palavras
isoladas do professor que são decisivas; importante sobretudo é o espírito e
a credibilidade que ele irradia”. O professor é o bom exemplo “quando aquilo
que ele ensina é uma motivação para ele próprio, quando ele ‘acredita’ e está
convencido do significado e da importância para si do conhecimento que
proporciona” (OTTE, 1993, p. 133). Neste caso fica evidente que o educador
é aquela pessoa que é capaz de imprimir a sua marca pessoal naquilo que faz
e que de certa forma vai refletir a maneira como ele vê o mundo. Logo, a sua
prática não é neutra.

45
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Figura 6 – Os sonhos de Maxwell

Durante estes dois anos de convivência com a turma, pude perceber


que tanto as crianças ditas normais quanto as portadoras de necessidades es-
peciais percebem ou fazem uma leitura da feição, do brilho do olhar do pro-
fessor ao ministrar a sua aula. Vejamos dois relatos abaixo que exemplificam
esta afirmação.
A aluna Luana Mousinho da Silva, portadora de necessidades espe-
ciais, no dia 27/05/04, trouxe-me de presente, em um envelope confecciona-
do por ela, uma estrela de emborrachado amarelo. Fiquei surpresa e feliz com
o presente, pois essa atitude reflete a imagem do trabalho que a professora
encaminha na sala de aula de trazer os conteúdos de uma Astronomia Viven-
cial de forma lúdica e prazerosa, como também nos mostra que a criança tem

46
Astronomia no Ensino Fundamental

a capacidade de perceber, através de uma leitura fisionômica do educador,


aquilo que ele gosta e faz com carinho, amor, dedicação, compromisso e ética
profissional.
O aluno Maxwell Jonathan, no dia 01/12/05, antes de começar a aula,
às 7h, trouxe-me um presente e falou:
“Tia é pra você este presente, são as estrelas do céu. Fui eu mesmo que fiz esta
pulseira para você”.
Ora, os dois exemplos acima relatados deixam claro que ambas as
crianças, por estarem bem afetivamente com a professora, captaram aquilo
que ela gosta de fazer e de olhar, isto é, para o céu.
Segundo Otte (1993), o professor, no que diz respeito ao seu papel e à
sua função social no contexto do sistema educacional geral, exerce uma ação
direta tanto sobre os pais quanto sobre os alunos. Por trabalhar com ideias, o
professor é capaz de influenciar positivamente ou negativamente a vida das
pessoas, pois ele pode ser comparado a um maestro de uma grande sinfonia
que rege vidas, direcionando-as, em parte, para aquilo que acredita ser rele-
vante para elas. Os exemplos mencionados anteriormente, de Maxwell Jona-
than e Luana Mousinho, e o exemplo a seguir, da senhora Dona Lídia Viana
de Oliveira, mãe de dois alunos daquela minha turma, evidenciam esse poder
que o professor tem no campo ideológico.
O relato abaixo, em particular, ainda demonstra que os pais também se
envolvem tanto afetivamente com a professora como no processo de ensino-
aprendizagem de seus filhos, quando eles percebem o diferencial na prática
pedagógica do professor.
Eis o relato de D. Lídia Viana de Oliveira:
Eu fui domingo a um aniversário e ao chegar lá lembrei-me de você
[Luciene], porque logo na entrada da festa tinha um painel de estre-
las tão lindo que parecia que era o céu de verdade. Acho que pode-
mos fazer um desses para o 4º Dia-Noite das Crianças. Vou procurar
saber com a dona da festa que materiais precisaremos usar.

Portanto, o professor se constitui num bom exemplo quando ele mes-


mo faz e vive aquilo que diz. Desta forma, o seu fazer-agir reflete transparen-
temente sem haver necessidade de ele estar proclamando para seus alunos
aquilo que ele gosta ou acredita.

47
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

2.1.2 O aprendiz que surpreendeu o seu mestre


O ensino de Astronomia nessa perspectiva vivencial permite de-
senvolver na criança um sentimento de integração dos elementos do céu à
nossa vida diária. Por exemplo, as crianças que vivenciaram a montagem do
calendário lunar e a prática do Salpique de Tinta no decorrer do processo
de ensino-aprendizagem, perceberam que, através das coisas do céu, apren-
demos várias coisas. Vejamos o relato de Maxwell Jonathan, ocorrido no dia
04/11/05, ao conversarmos sobre o que Everton Renan falou sobre o dever
de casa de observar o céu:
“Eu não fiz o dever de casa, porque eu não sou um cientista.”
Então Maxwell Jonathan falou:
“Ele pensa que é só dever de matemática e português que faz a gente apren-
der, a observação do céu faz aprender ainda mais”.
Ao ouvir este relato percebemos que este aluno foi capaz de enxergar
que os conteúdos de Astronomia possibilitam-nos uma aprendizagem mais
global e integradora do ser neste imenso cosmo.
Este relato surpreendeu-nos por refletir um senso socializador de um
conhecimento que foi apropriado com convicção. O mesmo ocorre – de
modo mais explícito e específico – no relato abaixo. Ele nos mostra o quanto
o modelo de uma Astronomia Vivencial traz segurança no aprendizado vi-
venciado pela criança e isto a faz sentir-se motivada para compartilhar essa
experiência com o seu próximo.
Antes de iniciar a rotina da sala de aula, um aluno veio até mim e me
contou o que se passou na noite do dia 03/11/05 entre ele e seus amigos.
Segundo seu relato, ele lançou à Joice (13 anos), que estava na 5ª série, a se-
guinte pergunta:
“Joice, você sabe o que é o Cinturão de Órion?”.
Ela respondeu:
“Não sei”.
Ele fez a mesma pergunta ao seu amigo Erivan (9 anos) que estudava
na 3ª série e a resposta foi a mesma:
“Não sei”.
Indagou ao Erivan se ele já tinha visto a constelação de Escorpião e
resposta foi a seguinte:
“Nem sei como é!”.

48
Astronomia no Ensino Fundamental

Diante das respostas do seu amigo ele resolveu ensinar qual era a
constelação de Escorpião no céu, como também mostrou o planeta Marte,
que estava visível a olho nu.
Essa atitude de comportamento revela um sentimento, um costume
que nossos antepassados tinham de transmitir uns para os outros o que des-
cobriam e aprendiam para que não morresse sua cultura ou ficasse esquecida
pelo tempo. Portanto, é esse resgate cultural que queremos reativar e recupe-
rar, a princípio, com as crianças: a ideia de que as coisas do céu fazem parte da
outra metade do nosso Meio Ambiente.

3 EU VIVO SEMPRE NO MUNDO DA LUA


3.1 A montagem dos calendários lunares6

A montagem dos vários calendários lunares durante os anos de 2004 e


2006 possibilitou perceber que estava havendo crescimento conceitual, pro-
cedimental e atitudinal na vida dessas crianças.
Em relação aos conteúdos conceituais, isto pôde ser observado através
dos vários relatos orais feitos pelas crianças enquanto íamos montando esses
calendários. Por exemplo, conforme já relatamos anteriormente: João Pedro
disse que “viu São Jorge matando o dragão na lua”; Alice dos Anjos disse que
“seu pai falou que era também São Jorge na lua”; João Victor disse que “João
Pedro não tinha visto São Jorge, mas sim as crateras”; nesta hora Lidiane e
Andressa concordaram com João Victor, porém Andressa completou dizen-
do que eram “as crateras se juntando”.
Não poderíamos deixar de registrar que as crianças arranjaram um jei-
to de realizar a medida de quanto falta para a Lua estar cheia, isto é, de quanto
falta para a Lua estar totalmente cheia quando ela está indo da fase quarto
crescente para a cheia ou da fase cheia para a quarto minguante: Maxwell,
Ellen, Judson e outros disseram que a lua do dia 24/11/04 estava quase cheia
porque faltava um dedo para ficar cheia.
Percebemos, portanto, por parte das crianças, um procedimento im-
portante: a utilização espontânea, ou a recriação independente, de uma me-
dida arcaica de tamanhos ou distâncias aparentes no céu. Essa forma de me-

6 Esta prática está exposta em maiores detalhes no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar,
Vênus, sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.

49
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

dida, na verdade, é usada até hoje, quando se trata de nos orientarmos com
relação às distâncias aparentes relativas entre os astros em geral. Contudo,
nunca havíamos ensinado, nem sequer comentado, essa informação com as
crianças.

3.2 O Dia-Noite das Crianças

Esta atividade do Dia-Noite das Crianças surgiu a partir da leitura do


livro Uma Viagem à Lua (FRANÇA e FRANÇA, 2001). É parte da nossa
rotina de sala de aula ler diferentes gêneros literários. Este livro despertou e
aguçou nas crianças o desejo de observar o céu com o telescópio, tal como o
Pingo de Sol e Lua faziam.
A escolha do nome “Dia-Noite das Crianças”, da Escola Estadual Al-
ceu Amoroso Lima, surgiu após as crianças terem sugerido vários nomes, a
saber: A noite mais bonita, A noite mais importante, Noite das crianças, Noite do
pijama, 1º dia noite, A noite da lua, A noite do céu e A noite das estrelas. Após
essa aula, levei essas sugestões ao conhecimento do professor Luiz Carlos Ja-
felice e ele me sugeriu que fizesse a junção da ideia de Maxwell (1º dia-noite)
– o qual disse ter proposto este nome porque eles chegariam na escola de dia,
passariam a noite lá e sairiam de dia, no dia seguinte – com a de Andressa
Januário (a noite das crianças).
De fato, este tipo de atividade destina-se à observação do céu noturno
e diurno, pois as crianças vêm para a escola no fim da tarde, começo da noite,
a partir das 19h, e só retornam às suas casas às 7h do dia seguinte.
Convém destacar que passar a noite na escola é muito comum em
escolas privadas, embora esses encontros, em geral, não sejam organizados
para aproveitar e desenvolver também atividades relacionadas à Astronomia
e, sim, apenas como elemento de socialização do grupo. Esse tipo de evento é
chamado, normalmente, de “noite do pijama”.
Contudo, até onde temos conhecimento, esta é a primeira vez que um
evento desse tipo é realizado em uma escola pública de Natal e, em particu-
lar, tendo Astronomia como tema motivador e diretriz do mesmo. Em outras
tentativas de realizar-se um evento desse teor, conforme pudemos constatar
durante nossa experiência docente em outras escolas públicas, sempre pre-
senciamos muita resistência, a ponto do mesmo nunca ocorrer. É frequente

50
Astronomia no Ensino Fundamental

serem levantadas toda espécie de dificuldades visando impedir, na prática,


que tal evento ocorra – da falta de apoio dos pais, ao desinteresse da direção
e dos professores da escola, à falta de cultura naquela população para uma
atividade como aquela, à eventual falta de segurança do bairro, entre outros
vários empecilhos, a maioria de caráter discriminador e excludente.
Em nossa intervenção, por outro lado, destacamos que o sucesso de
nosso “Dia-Noite” junto às crianças e aos seus pais, inclusive contaminando
positivamente um ou outro professor da escola, é absoluto. Realizamos esse
evento uma vez por semestre, desde o primeiro semestre das crianças na esco-
la (ou seja: desde seu 1º ano do ensino fundamental), sempre ao final de cada
semestre. Portanto, foram seis dias-noites ao longo desses três anos.
De nossa iniciativa constatamos, portanto, que um evento como esse
não apenas é perfeitamente viável de ser realizado em uma escola pública, em
particular quando a direção e alguns professores da mesma apoiam tal inicia-
tiva, como ele tem grande implicação na formação e socialização das crianças
e nos processos de letramento e de inclusão, além de levar à ampliação da
integração escola-comunidade e, em nosso caso, representar uma fonte de
motivação e estímulo adicionais muito grandes no aprendizado também de
conteúdos específicos de Astronomia.
Vale salientar que durante esse evento as crianças participam de uma
série de atividades lúdico-pedagógicas – observações do céu a olho nu e atra-
vés de telescópio, oficinas, sessões de cinema, leitura de textos ou declamação
de poesias (sarau poético) que as próprias crianças criaram, apresentações de
músicas e coreografias referentes ao tema céu-terra, etc. – que trazem no bojo
assuntos de Astronomia. Essas atividades são apresentadas aos pais, também
como um retorno do trabalho que seus filhos têm realizado na escola e de
seus envolvimentos e crescimentos na escola.
Como dissemos, ao longo destes três anos – 2004 a 2006 – realizamos
seis encontros cultural-educacionais de observação do céu, os quais foram
avaliados pelas crianças de forma bastante positiva (Figuras 7 e 8).

3.3 Trabalhando o astro solar

Introduzimos, a princípio, informações sobre o nosso astro-rei através


das leituras compartilhadas que fazíamos após a rotina de acolhimento da
turma. Destas, surgiram as boas conversas que possibilitaram às crianças o

51
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Figura7 – Crianças e convidados para o 5º Dia-Noite das Crianças: observando o céu através
do telescópio... (Foto: M. T. S. Alves)

Figura 8 – ... e participando de uma atividade recreativa com a professora de educação física,
no 1º Dia-Noite das Crianças (Foto: L. C. Jafelice)

52
Astronomia no Ensino Fundamental

acesso e a compreensão sobre o porquê de o sol ser importante para nós e


para os demais seres vivos.
Vale destacar que ao trabalharmos também com os educandos, enfa-
tizamos que eles são como sóis que poderiam irradiar energia tanto positiva
(alegria, amor, carinho, compreensão...), como negativa (ódio, rancor, ressen-
timento, inveja...). Vimos também que temos energia e a obtemos através da
comida que comemos diariamente. Já os carros obtêm energia através dos
combustíveis (álcool, gasolina, óleo diesel). Toda essa energia, tanto é ne-
cessária à vida quanto ao funcionamento das máquinas, e tal energia, em sua
origem, depende, em última instância, do sol para poder existir. Esse ciclo
energético, além de fundamental para ser trabalhado com as crianças, exige
uma abordagem interdisciplinar para ser adequadamente discutido.
Chamamos também a atenção para o fato de que não podemos olhar
diretamente para o sol, pois poderíamos ficar cegos. Destacamos o exemplo
do que ocorreu com Galileu, no século XVII. De tanto ele ficar observando
o sol – a ponto de descobrir que este tinha máculas, as chamadas “manchas
solares” – ele terminou sua vida cego.

3.3.1 O teatro de sombras


O teatro de sombras, apresentado pela turma no 3º Dia-Noite das
Crianças (Figura 9), no dia 22/06/05 à noite, na Escola Estadual Alceu Amo-
roso Lima, foi consequência de todo um trabalho realizado em sala de aula
quando estudávamos o sol e ficamos sabendo, através de um texto pesqui-
sado por mim na Internet, que o teatro de sombras é uma arte muito antiga,
originária da China e que se espalhou pelos países da Europa.
Conforme dizia a lenda, no ano de 121 o imperador Wu Ti, da dinas-
tia dos Han, desesperado com a morte de sua bailarina favorita, ordenou ao
mago da corte que a trouxesse de volta do Reino das Sombras, caso contrário
seria decapitado. O mago usou a sua imaginação e através de uma pele de pei-
xe macia e transparente, confeccionou a silhueta de uma bailarina.
Quando tudo estava pronto, o mago ordenou que no jardim do palácio
fosse armada uma cortina branca contra a luz do sol e que esta deixasse trans-
parecer essa luz. Houve uma apresentação para o imperador e sua corte. Esta
apresentação foi acompanhada do som de uma flauta que “fez surgir a sombra
de uma bailarina movimentando-se com leveza e graciosidade”.

53
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Este tipo de teatro ainda é pouco conhecido no Brasil. É uma atividade


muito divertida, que estimula a criatividade da criança. Enquanto trabalháva-
mos sobre o sol, um novo desafio foi se delineando: encontrar uma música
relacionada ao tema para trabalharmos juntos. Numa noite de inspiração, a
resposta veio. Optei pela música “Clarear”, do grupo Roupa Nova.
No 4º Dia-Noite apresentamos, através do teatro de sombras, várias
músicas trabalhadas em sala de aula e que, em si, traziam conteúdos de Astro-
nomia, a saber:
• “Banho de lua”, interpretada por Silvinha, nos anos 70;
• “Norte, sul, leste, oeste”, de cantor desconhecido;
• “Clarear”, do Roupa Nova;
• “O lindo balão azul”, interpretado pelo grupo Balão Mágico.

Figura 9 – As crianças apresentado o teatro de sombras no 3º Dia-Noite das Crianças


(Foto: L. C. Jafelice)

3.3.2 As medições da sombra


O trabalho de medição da projeção da sombra de um objeto ao sol
se deu através de um pau e de gnômons humanos, objetivando descobrir os
pontos cardeais (norte, sul, leste e oeste) reais da escola, para posteriormente
montarmos a Rosa-dos-Ventos no pátio da mesma.

54
Astronomia no Ensino Fundamental

Figura 10 – Trabalhos das crianças sobre as medidas das sombras ao


sol através de gnômons humanos (exemplo)

Com esse trabalho das medições das sombras ao sol, introduzimos


as principais medidas de comprimento (m, dm, cm), como também aprovei-
tamos para fazer a leitura e a escrita dessas medições, além de nos possibilitar
resolver a operação de adição, fazendo-se uso do quadro-valor do lugar (uni-
dades, dezenas).
Vimos também o conceito de maior e de menor para a sombra, os
números ordinais, já que falávamos em 1ª medição, 2ª medição, e assim por
diante (Figura 10).
Durantes as observações, as crianças descobriram por si mesmas
que, para ter sombra é preciso ter luz (Figura 11). Vejamos o que o relato do
dia 14/04/05, de Alice do Anjos, diz: “Na primeira medição não havia som-
bra, por que não havia luz”.
Com esta atividade evidenciamos que os conteúdos de Astronomia
possibilitam a integração com outras disciplinas, desde que o professor tenha
claro esta possibilidade e articule ações consoantes com a exploração peda-
gógica da mesma.

55
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Figura 11 – Outros trabalhos de medições de sombras ao sol, agora usando-se o gnômon habitual
(um pedaço de pau, reto, disposto na vertical, sobre uma superfície horizontal) (exemplo)

3.4 A música e a montagem de coreografias relacionadas


ao tema estudado

O trabalho com a música é importante porque a mesma:


se constitui em uma manifestação do instinto humano e a instância
própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas,
ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da
lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas
formas do instinto humano (ADORNO, 1997, p. 65).

Percebemos atualmente que muitos gêneros musicais não são mais tra-
balhados nas escolas, porque muitos professores dizem que seus alunos(as)
não gostam destas músicas fora de moda. De fato, os educandos continuarão
dizendo isto, caso não seja feito um trabalho de conscientização e valorização
de outros gêneros e ritmos musicais.
Sabemos que por trás das músicas há todo um fetichismo que mascara
esse lado de mercadoria que ela assume. Com isto, “o indivíduo já não con-
segue subtrair-se do jugo da opinião pública, tampouco pode decidir com
liberdade quanto ao que lhe é apresentado” (ADORNO, 1997, p. 66).

56
Astronomia no Ensino Fundamental

Segundo Jeandot (1997), de acordo com a ideia de Wagner, a música


é “a linguagem do coração humano”. Esse conceito traz a ideia de ritmo, que é
o elemento básico das manifestações da vida e também um princípio funda-
mental na música.
As atividades desenvolvidas em sala de aula durante esses três anos
(2004 a 2006), envolvendo o trabalho com letras de músicas relacionadas
às coisas do céu e à montagem de coreografias juntamente com as crianças,
objetivaram desenvolver na criança a sua sensibilidade no ouvir, para tomar
consciência daquilo que se captou através do ouvido, bem como desenvolver
a expressão corporal delas e também revalorizarmos os gêneros musicais
(Figura 12).
Durante as apresentações do 2º Dia-Noite das Crianças, em particular
nas coreografias de algumas músicas, como, por exemplo, Banho de Lua,
dos anos 60 do século passado, pudemos observar que este rock não foi
do agrado apenas daquela geração, pois fez muito sucesso com a classe,
mostrando que é possível também recuperar e manter uma certa cultura
musical internacional e transgeracional, desde que se encaminhem práticas
contextualizadas e envolventes. É importante ainda registrar que das outras
duas músicas coreografadas para aquele Dia-Noite, uma delas era A Lua
(cantada pelo grupo MPB 4). Percebemos pelos rostos alegres e pelas suas
expressões corporais, que as crianças de hoje “não gostam” de certos gêneros
musicais, em particular de Música Popular Brasileira – como se ouve dizer
com frequência por aí –, principalmente porque elas não são expostas a eles.
Uma outra música trabalhada com eles e que também fez bastante su-
cesso foi Olha o Lobisomem, da apresentadora de programa infantil Eliane,
a qual rendeu-nos uma linda apresentação no 4º Dia-Noite das Crianças, no
dia 17/12/05, onde as mesmas, por trás de suas máscaras de lobo, mostraram
para os seus pais que a lenda do homem que se transforma em lobo nas noites
de lua cheia tem haver com as coisas do céu, e que essa lenda faz parte do
folclore brasileiro.
Portanto, esse trabalho com músicas e montagem de coreografias é
fundamental para estimular na criança diferentes tipos de linguagens (musi-
cal, falada, gestual...), de acordo com cada cultura e época. Neste caso, com-
pete ao educador enriquecer o repertório musical,
planejar atividades que envolvam músicas de diferentes povos,
de diferentes épocas, de diferentes formas, de diferentes compo-

57
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

sitores, etc. Seu trabalho deverá ser criativo, despertando a


motivação na criança, imaginando novas possibilidades de apren-
dizado e facilitando as atividades dos alunos, quando solicitado
( JEANDOT, 1997, p. 20-21).

Figura 12 – Crianças apresentando a coreografia da música “O dia em que o Sol declarou o seu amor
pela Terra”, de Jorge Benjor, no 5º Dia-Noite das Crianças (Foto: L. C. Jafelice)

3.5 Salpique de tinta

A atividade do Salpique de tinta7 foi realizada no dia 05/08/05 com


crianças do 1º ciclo (2ª fase) do ensino fundamental. Essa atividade tinha por
objetivo evidenciar que o céu é um reflexo de projeção cultural para quem o
vê, pois as pessoas projetam no céu aquilo que é significativo para ela e/ou
para sua cultura.

7 Esta atividade foi idealizada pelo professor Luiz Carlos Jafelice, inicialmente para o desenvolvimento
de um trabalho de pesquisa sobre constelações a ser realizado por estudantes do 2o ano do 1o ciclo
do Nível Fundamental (antiga 2a série do primário) da turma da professora Zilda e de sua assistente
Eleide, da Casa Escola, em Natal, RN, no primeiro semestre de 1995. Esse trabalho foi feito naquela
época e culminou com a produção de um belo livro por aquela turma, muito rico em informações e
atividades interdisciplinares, ao qual eles intitularam “Das Constelações Zodiacais às Constelações
Indígenas”. Além da aplicação dessa prática que apresentamos aqui, na subsubseção 3.2.2 (Constelações
de tinta em papel) do capítulo 2 há outro exemplo, ali envolvendo adultos.

58
Astronomia no Ensino Fundamental

A princípio peguei uma cartolina e salpiquei tinta nela, na presença


das crianças. Feito isto, disse a elas para que fizéssemos de conta que eu havia
criado um “pedaço do céu” e, logo em seguida, pedi que elas desenhassem
aqueles pontinhos na folha de papel, da maneira que cada um estava enxer-
gando. Passados uns 15 minutos foi esclarecido para as crianças que iríamos
brincar de ligar pontinhos. Solicitamos que fossem observando as figuras, ou
desenhos, que formaram e escrevessem os respectivos nomes das figuras.
Após nomearem as figuras, todas as folhas foram recolhidas e fomos
mostrando para as crianças as suas criações, socializando estas coletivamente
no grupo. Como já era de se esperar, os desenhos expressavam o que de fato
é peculiar, significativo e faz parte do dia a dia da criança (Figura 13). Eis as
“constelações” formadas pelas crianças: máquina de fralda, triângulo, cachor-
ro, pipa, monte, laço, carro espacial, L e Y.

Figura 13 – O que significa a ligação de pontos do “céu” para as crianças? Aqui, um exemplo

Posteriormente à socialização dos desenhos, foi explicado às crian-


ças que os povos do passado também observaram o céu e também ligaram
pontinhos formando suas constelações. Sendo assim, as constelações são pro-
jeções culturais para quem as vê.

59
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Um bom exemplo disto é o da constelação que conhecemos como


Escorpião. Ela foi associada a esse animal pela cultura mesopotâmica e, poste-
riormente, elaborada pela cultura grega, pois para eles há uma história do
caçador Órion que matava por maldade; para castigá-lo o curandeiro Ofiúco
colocou um escorpião para persegui-lo. Grande parte do mesmo conjunto de
estrelas dessa constelação, porém, foi associada a um anzol pela cultura havaiana.
Para estes foi seu deus que, usando um anzol, puxou do fundo do mar as terras
que compõem o arquipélago onde vivem. Já para os índios Tembé, no Pará (e
parte do Maranhão), outra porção desse mesmo grupo de estrelas faz parte da
constelação da Ema, que é a maior ave da Amazônia e ela anuncia fortuna.
Aproveitamos este assunto de constelações para introduzir a noção
de substantivo coletivo e o nome das outras constelações zodiacais. Fizemos
um texto coletivo sobre este assunto e o lemos. Explicitamos para as crianças
que a diversidade de nomes que se dá às constelações é porque há diferentes
povos e cada um tem a sua cultura e sua forma de ver, entender e de estar no
mundo.
Mostramos também uma figura do Cruzeiro do Sul e falamos que para
os índios Tembé ela tem o nome de Winar Komy.
Vale salientar que essa prática do Salpique de Tinta foi desenvolvida
após as crianças terem observado o céu e após algumas pistas terem sido da-
das por mim, para que elas descobrissem algumas constelações quando estas
estavam visíveis (Cruzeiro do Sul, Escorpião, Órion, Touro) e o aglomerado
das Plêiades.
O depoimento abaixo mostra-nos que, de fato, as crianças já conse-
guem identificar no céu algumas constelações quando visíveis. Vejamos o
relato do dia 27/10/05.
O aluno Ruffles veio à escola aproximadamente às 18h, pois ele sabia
que eu estava à noite na mesma e por morar perto dela resolveu vir para ver-
mos juntos o céu.
No pátio, Ruffles mostrou-me Vênus, que é um planeta, porém, para
os índios Tembé, é uma estrela. Bem próxima de Vênus estava a constelação
de Escorpião.
Então ele disse:
“Vou esperar mais tarde para desenhar Marte no leste, Vênus e Escorpião no
oeste”.

60
Astronomia no Ensino Fundamental

Ao sair da escola, observei ao longe que ele conversava com o porteiro,


David Ferreira Santos, e apontava para o céu. Acredito que estivesse mostran-
do Vênus e a constelação de Escorpião que estava a oeste.
No dia 04/11/05 fui perguntar ao David o que Ruffles falou para ele,
então David fez o seguinte relato:
Bem, eu estava lá fora no portão olhando o céu e encontrei uma
estrela que brilhava muito forte. Quando Ruffles veio até mim, eu
perguntei a ele: Você sabe qual é aquela estrela? Ele respondeu que
aquela estrela é um planeta, chamado Vênus, e perto dele estava a
constelação de Escorpião.

No dia 11/07/06, durante a realização do 5º Dia-Noite das Crianças,


na parte da programação em que fazemos a observação noturna do céu atra-
vés do telescópio, o aluno João Pedro, enquanto esperava na fila sua vez de
observar Júpiter e as luas galileanas8, apontou para o céu e, com muita natura-
lidade, disse: “olha, o Escorpião”. De fato, naquele momento, no alto do céu,
entre algumas nuvens esparsas, era visível a constelação de Escorpião.
Porém, merece ênfase que ela “era visível” para quem sabia para onde
olhar e o que enxergar, isto é, para quem soubesse como identificá-la, pois
haviam nuvens cobrindo partes do céu e da própria constelação no momento
em que o aluno fez seu comentário. É necessário um conhecimento vivencial
bem consolidado para se poder falar, com a segurança com que João Pedro
falou, que lá estava “o Escorpião”.
É importante destacar, com Jafelice (2006), que:
não basta apenas conhecer a forma de uma constelação em uma dada
posição para se poder reconhecê-la no céu, menos ainda se ela estiver
parcialmente encoberta, podendo ter partes características ocultas
da observação direta (obrigando com que a visão de gestalt atue).
Além disto, é preciso saber a época do ano e os horários em que dará
para enxergá-la e em que região e/ou altura no céu. E mais ainda: é
preciso também saber lidar com a delicada questão envolvendo for-
mas e rotações, pois a posição da constelação (de qualquer conste-
lação) muda no céu, entre seu nascer e seu poente, pois o conjunto
de estrelas que a compõe está “fixo” na abóbada celeste e “gira” com
esta, de leste para oeste (devido ao movimento real de rotação da
Terra em torno de si mesma, de oeste para leste).

8 Que nessa data, felizmente, estavam em condições muito favoráveis de serem observados, para sorte
dos estudantes e pais presentes, que puderam ter acesso a algo raro, em termos observacionais, para o
público em geral e puderam ter uma experiência e um enriquecimento cultural bastante importantes.

61
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Assim, nesse exemplo, envolvendo João Pedro, vemos que aquele seu
aprendizado foi fruto de uma ampla vivência de contato com o céu de fato.
Se você só aprendeu a reconhecer a constelação de escorpião inteira a partir
de uma figura e até é capaz de reconhecê-la ao vê-la nascer, quando está “com
a cabeça para cima”, provavelmente se perderá ou se atrapalhará quando ela
estiver no meio do céu, pois ela estará muito diferente, e mais ainda quando
ela estiver se pondo, e parecer estar “de cabeça para baixo”.
Como podemos constatar, portanto, através de diversos exemplos, vá-
rios destes elementos constitutivos envolvendo o conhecimento de coisas do
céu, elementos bastante complexos e sofisticados, já estão incorporados por
vários dos estudantes dessa turma.
Aqui convém abrir um parêntese para enfatizar algo muito importante.
Esses resultados foram obtidos apesar de os estudantes estarem em uma faixa
etária em que, segundo as orientações dos PCN para o 1º e 2º ciclos, As-
tronomia não é contemplada, muito menos segundo a forma, profundidade
e conteúdos com que a abordamos. O sucesso pedagógico dessa experiên-
cia, contudo, reforça a limitação daquelas orientações com respeito à abor-
dagem desses assuntos e mostra que elas estão equivocadas e precisam de
revisão, pelo menos nesse ponto. Aquelas orientações se amparam, em parte,
na concepção de etapas cognitivas – segundo a qual uma criança nessa faixa
etária não teria estrutura cognitiva para o desenvolvimento do pensamento
abstrato, envolvendo espacialidade etc. Isto porque se está pensando na abor-
dagem desses assuntos desde uma perspectiva heliocêntrica. Nossa prática
mostra que há muitas outras componentes envolvidas e a serem contempla-
das no ensino, em particular no de Astronomia. A presente experiência for-
nece exemplos bastante concretos e contundentes de que essas crianças têm
plenas condições – cognitivas e psicológicas – de serem bem-sucedidas no
processo de aprendizagem inclusive de conteúdos de Astronomia, além do
desenvolvimento de muitas outras habilidades e competências. Esperamos,
com esses resultados, contribuir para a reivindicação de que os PCN sejam
revistos nesse ponto.
Retomemos nossa exposição. Ainda no sentido dos resultados que
estávamos relatando, no mês de junho de 2006, a aluna Lígia me chamou a
atenção de que na moeda de 25 centavos havia o Cruzeiro do Sul gravado.
De fato, fui ver, e depois fui conferir em moedas de outros valores, e percebi
que essa constelação, muito relevante para nós, habitantes do hemisfério sul,

62
Astronomia no Ensino Fundamental

estava estampada nas nossas moedas brasileiras. Provavelmente a maioria dos


adultos não tem, como eu não tinha, consciência disso.
Outro exemplo nessa direção, agora envolvendo a lua, mas que apro-
veito incluir aqui por ir no mesmo sentido de argumentação que estou de-
senvolvendo neste trecho, foi o que me relatou o professor Luiz Carlos Ja-
felice, durante a realização do 2º Dia-Noite – portanto ainda relativamente
no começo de nosso trabalho com esses alunos. Ele estava conversando com
meu marido no pátio da escola. Minha filha mais velha e João Pedro estavam
presentes na conversa. Meu marido trabalhou na marinha mercante e tem
algum conhecimento, embora indireto, da relação que os pescadores costu-
mam estabelecer entre fases da lua e a maior ou menor abundância de peixes.
Meu marido relatava isto, que havia ouvido falar muitas vezes, e, enquanto
contava, disse: “eles [os pescadores] diziam que na lua que vem depois da
lua cheia... como é mesmo que chama essa lua?”, João Pedro, espontânea e
imediatamente disse: “minguante”.
O professor Jafelice já havia conversado com esse aluno anteriormente
e o fez novamente após esse episódio. Ficou claro que João Pedro não sabia
apenas intelectualmente, ou por simples memorização, qual “a lua que vem
depois da lua cheia”. Ele sabia (sabe) vivencialmente. Conforme o professor
constatou, esse aluno
sabe a aparência dessa lua no céu, o horário em que ela está visível, o
que acontece com o formato de sua parte iluminada antes, durante e
depois dessa fase. Enfim, ele sabe o básico observacional sobre as fa-
ses da lua, que só pôde ter sido construído por ele pela via vivencial,
aos poucos, dia após dia de acompanhamento sistemático da lua,
durante alguns meses – como inevitavelmente tem que ser em as-
tronomia, em geral, se nossos objetivos pedagógicos vão muito além
da habitual mera transmissão de informações técnicas e intelectuais
sobre o assunto ( JAFELICE, 2006).

O professor ainda reforça:


Aquele aluno, como praticamente todos os outros alunos dessa tur-
ma, sabe bem mais sobre as fases da lua (em particular, mas não ape-
nas) que seu marido, Luciene, que foi marinheiro. De fato, do que
tenho interrogado e comparado, eles sabem mais que a maioria dos
adultos, que costumam dizer em qual fase a lua está, ou a ordem das
fases lunares, só depois de olharem no calendário. E mesmo assim es-
ses adultos nada sabem sobre os horários de visibilidade de cada lua,
não sabem para onde olhar, no céu, em cada dia, para um dado lugar

63
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

e hora, para encontrar a lua, muitas vezes não sabem que ela aparece
com freqüência durante o dia, nem têm segurança sobre como é o
formato da parte iluminada da lua em cada fase. Na verdade, a intimi-
dade e a incorporação cotidiana que a grande maioria desses alunos
naturalmente desenvolveram, não só com a lua, mas com algumas
constelações, ritmos e coisas do céu, em geral, já é muito grande e
muito maior que a dos adultos, mesmo de adultos cultos, com curso
superior completo ( JAFELICE, 2006).

Estes são alguns dos vários exemplos que observei de que as crianças
dessa turma foram incorporando naturalmente em seu dia a dia as relações
céu-terra, que trabalhei com elas ao longo desses três anos de atividades se-
gundo o enfoque que propomos.
Vemos que o trabalho que essas crianças desenvolveram interferiu di-
retamente na construção de sua forma de ver as coisas. É um trabalho que
contribuiu para que elas integrassem, de modo espontâneo, novos elementos,
inter-relações e possibilidades à sua leitura de mundo.

3.6 Visita ao planetário itinerante da UFRN

A visita ao planetário itinerante da UFRN aconteceu no dia 09/11/05,


com início às 15h. Essa atividade foi a culminância do trabalho sobre as cons-
telações que desenvolvemos na observação do céu e em sala de aula com as
crianças. Lá, vimos o histórico de onde surgiram as nossas 12 constelações
zodiacais (Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Libra, Escorpião,
Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes), bem como os seus respectivos de-
senhos esquemáticos na abóbada celeste.
Como já era de se esperar, as crianças chegaram à escola bem antes
do horário combinado. Ao chegarmos na universidade, na sala onde estava
o planetário, a festa foi completa: uns, ao entrarem tiveram medo do escuro
(Daiane, Fernanda, Wisliane), porém, depois entraram na folia dos outros e
a cada vez que o instrutor Milton Thiago mudava o cilindro de projeção das
estrelas, eram palmas e mais palmas para aquele show das estrelas fixas na
abóbada celeste. Algumas mães também acompanharam o passeio.
No dia seguinte retornamos à pauta do dia conversando sobre a visita
ao planetário. Logo depois, eles escreveram e/ou desenharam (Figura 14)
sobre o que mais tinham gostado no passeio e fizeram um pequeno texto co-
letivo onde aproveitamos para trabalhar alguns conteúdos.

64
Astronomia no Ensino Fundamental

Figura 14 – Exemplo de atividade após visita ao planetário itinerante da UFRN

3.7 Visita à Barreira do Inferno

Esta atividade aconteceu no dia 29/11/05, tendo sido iniciada às


07h30min. A visita tinha o propósito de conhecermos o local, porque iríamos
posteriormente fazer uma oficina de jipes lunares e foguetes espaciais para
as crianças brincarem no jogo trilha da lua. Algumas mães acompanharam o
passeio.
Ouvi muitos comentários das mães sobre as inquietações das crianças
antes da visita: muitos acordaram cedo demais, outros deram trabalho para
dormir, ansiosos pelo passeio. Isso pôde ser verificado, por exemplo, pelo de-
poimento da mãe de Janaína Alexandre:
“Ei, Luciene, quase que não dormi ontem, pois Janaína demorou a dormir.
Ela acabou dormindo na cama com a gente”.
Ao chegarmos à Barreira do Inferno, foi aquela euforia. Por motivos de
manutenção da parte elétrica do auditório, não pudemos visitá-lo. Com isto,
deixamos de ver uma exposição de fotos que contava a história da Barreira do
Inferno, sessão de vídeo e uma simulação de lançamentos de foguetes. Entre-

65
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

tanto, isto não tirou o brilho do passeio. Fomos conduzidos ao mirante e ao


local onde acontecem os lançamentos dos foguetes. Lá os alunos receberam
as devidas explicações do guia.
No dia seguinte, ao retornarmos à rotina da sala de aula, conversamos
sobre esse passeio e fizemos um texto coletivo.

3.8 Representação dos planetas em escala

A atividade foi realizada no dia 09/11/05, uma vez que as crianças


já tinham ouvido muitas informações sobre alguns planetas do nosso siste-
ma solar, através das várias leituras compartilhadas que trouxemos para sala
de aula em jornais, livros, internet e revistas. E mais: no 3ª Dia-Noite (dia
22/06/05, às 23h) também já havíamos tido a oportunidade de ver direta-
mente o próprio planeta Júpiter e três de suas quatro luas galileanas, através
do telescópio do Departamento de Física da UFRN (que sempre tem sido
levado à escola, nesses eventos). Felizmente, pudemos repetir esse feito no
5º Dia-Noite (dia 11/07/06, também por volta das 23h), com a vantagem
adicional de que desta vez pudemos ver as quatro luas galileanas! As crianças
viram também através do telescópio (no 3º Dia-Noite) Vênus e Marte; além
disto conversamos muito sobre o nosso planeta Terra, trazendo informações
sobre ele e discutindo os problemas que o afligem.
No início dividimos a sala em grupos e distribuímos uma folha que
continha os planetas em escalas, conforme obtido em Canalle (1995). De-
pois explicamos que cada grupo deveria ir moldando com argila cada planeta
de acordo com cada desenho apresentado na respectiva figura.
Após a explicação, todos os grupos receberam pedaços de argila e co-
meçaram a modelar. Na aula seguinte, após os planetas terem secado, foi a vez
da pintura, que foi livre (Figura 15) – embora tenha levado para a aula, como
referência (algo que já havia feito antes), figuras com os planetas conforme
são vistos (ou seja, com as cores com que são vistos) através de grandes te-
lescópios.
Ao término desta aula fizemos um pequeno texto coletivo sobre esta
oficina e discutimos mais algumas questões, que foram aprofundadas com as
crianças posteriormente, em 2006.

66
Astronomia no Ensino Fundamental

Figura 15 – Oficina com argila para representar os planetas do sistema solar em escala
(Foto: L. C. Jafelice)

3.9 As origens celestes das festas juninas através de fantoches

Sabemos que a forma como ensinamos ou pensamos reflete um pou-


co – ou muito, dependendo do caso e do assunto –, da educação que recebe-
mos anteriormente, já que nenhuma prática é neutra.
Diante de um contexto de crise educacional em que o modelo vigente
não corresponde à realidade na qual estamos inseridos, ou seja, uma realida-
de onde o domínio científico e tecnológico reina soberanamente nesta socie-
dade capitalista, a vida cotidiana clama pela compreensão desta ciência.
As escolas públicas, de um modo geral, ainda não dispõem de alguns
recursos tecnológicos que viabilizem um leque maior de informação, prazer,
lazer e entretenimento para os educadores (nem para os alunos, evidente-
mente).
Por outro lado, em meio a tanta tecnologia, o professor precisa criar e
recriar recursos didáticos de acordo com aquele conteúdo que ele considera
relevante para ele e seus alunos, para que a criança trabalhe esse conteúdo da
melhor maneira possível.

67
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Dentro desse contexto, o grande desafio seria levar para a sala de aula
o texto sobre as origens celestes das festas juninas do professor Luiz Carlos
Jafelice ( JAFELICE, 2002), por se tratar de um conteúdo que precisa ser re-
cuperado e desfetichisado.
Para isto, tive a ideia de transformar o conteúdo básico daquele texto
em uma atividade com fantoches. Criei, assim, a partir do mesmo, os per-
sonagens e seus diálogos, onde estes exploram elementos fundamentais en-
volvendo a gênese daquela festividade – tão importante, principalmente em
nosso estado e região. Esses elementos, embora completamente associados a
fenômenos celestes, na verdade, são desconhecidos dos próprios praticantes
veteranos. Isto se deve ao fato de essa festa ser sempre abordada, em nossa
cultura e, consequentemente, nas escolas, pelo viés religioso-cristão, sem que
questões básicas do folclore e da origem daquela comemoração sejam discu-
tidas e aprofundadas, como nos aponta, por exemplo, Cascudo (1985; 1998).
Essa atividade se revelou muito instrutiva, além de divertida e gratificante9.
O professor é como se fosse um maestro que precisa saber orquestrar
cada recurso didático-pedagógico de acordo com o conteúdo que ele quer
trabalhar, para que seus alunos se apropriem do mesmo adequadamente no
ritmo, no passo, natural para eles e para que o processo todo seja sempre pra-
zeroso também.
Observamos, durante a execução do teatro de bonecos, que este re-
curso pode atender a vários objetivos pedagógicos, que não apenas o de en-
caminhar e trabalhar informações e conteúdos específicos. Em particular, por
exemplo, ele contribui para uma formação mais integral da pessoa, pois é um
recurso que também “[...] educa a audição. Ensina a criança a prestar atenção
ao mundo sonoro, a ouvir com interesse o que os outros falam, a perceber a
beleza da música e do ritmo” (FERREIRA; SOUZA, 1998, p. 13).

9 Está além do escopo deste capítulo explicitarmos essa prática. A mesma está exposta em detalhe em
Lima (2006, p. 71-73), em particular no Apêndice I (p. 139-143) dessa dissertação, onde consta o
roteiro completo do referido teatro de fantoches, com todos os diálogos dos personagens envolvidos.
Os interessados nesta atividade devem consultar esse material, disponível também através do sítio:
http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Disser-
tações (2002-2007)”].

68
Astronomia no Ensino Fundamental

4 A VIDA É UM JOGO: PROPOSTAS PARA TRABALHAR A


ASTRONOMIA

4.1 Oficinas lunares


4.1.1 Breve histórico

Chamamos de oficinas lunares as várias atividades desenvolvidas na E.


E. Alceu Amoroso Lima (Natal/RN), entre 2004 e 2006, com uma turma que
acompanhamos do 1º ao 3º ano, envolvendo (inicialmente) crianças a partir
dos seis anos de idade. Os materiais usados nessas oficinas foram dos mais
diversos, por exemplo: argila, massa de modelar, bolinhas de papel crepom,
lixa, balões, papel higiênico, cola e biscoitos, estes no caso particular da ofici-
na gastro-lúnica.
O objetivo das oficinas lunares foi o de concretizar um conhecimento
sobre as fases da lua, que as crianças já vinham vivenciando no seu dia a dia
por meio da observação da lua no céu e da montagem de um calendário lunar
em sala de aula, conforme já comentamos antes.
É sabido que a compreensão de certos conteúdos da Astronomia pre-
cisam ser vivenciados na prática para que tenham sentido e significação na
vida, já que ela é regida por ciclos basicamente cósmicos. Em consequência
deste fato, devemos resgatar com nossos alunos uma reconexão com o cosmo,
como ocorria naturalmente com os nossos ancestrais mais remotos. De fato,
eles mantinham um relacionamento maior e integrado com as coisas do céu,
pois este estava diretamente relacionado com os seus afazeres diários (plan-
tar, colher, caçar, procriar etc.).
É bom lembrar que todas as práticas nessas oficinas também tiveram
por princípio proporcionar o desenvolvimento dos conteúdos atitudinais, pro-
cedimentais e conceituais. Em relação aos atitudinais procuramos desenvolver
entre as crianças o respeito ao outro e às outras culturas, o espírito de solida-
riedade e cooperação mútua. Os conteúdos das diversas disciplinas podem
desenvolver estas atitudes, porém o diferencial está na postura e concepção
que o professor tenha acerca do que seja o mundo, quais conteúdos ensinar,
como fazê-lo, como ele entende a relação professor-aluno. Enfim, o professor
é o bom exemplo para intuir e intervir naquilo que ele acredita ser relevante
para a formação integral do ser humano.

69
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Já em relação aos conteúdos procedimentais, que se referem ao saber fa-


zer pela criança, nós os desenvolvemos enquanto montávamos os calendários
lunares dia a dia e quando, por exemplo, elas observavam o céu e pedíamos,
que, de posse de um pedaço de argila ou de um biscoito, transformassem es-
tas coisas em representações das fases da lua. Daí a importância de tais práti-
cas no desenvolvimento também do pensar e do refletir no seu fazer diário.
Os conteúdos conceituais se referem à capacidade da criança de pensar
e operar com símbolos, ideias e imagens para construir os seus próprios
conceitos. Trabalhamos tais conteúdos também enquanto montávamos os
calendários lunares, através das boas conversas, bem como com o desenvol-
vimento da coordenação viso-motora e da noção dos ritmos e ciclos dos
astros e da vida.
Portanto, após a realização das oficinas mencionadas, concluímos,
mais uma vez, que podemos trabalhar conteúdos de Astronomia nas séries
iniciais do ensino fundamental. Na verdade, é importante enfatizar, podemos
trabalhá-los desde o início do primeiro ano do ensino fundamental, como nossa
experiência tem claramente demonstrado, bem como desenvolver a capa-
cidade imaginativa das crianças, uma vez que esta está latente nelas, como
também o está a noção de que somos corresponsáveis na construção de um
mundo mais justo, uma vez que a essência da vida é o ser humano.

4.1.2 Desenvolvimento das oficinas lunares

Oficina 1: massa de modelar.


Duração: 30 minutos.
Objetivo: trabalhar a coordenação viso-motora, a criatividade e a troca de
informações entre as crianças através da modelagem de massas.
Material necessário: caixas de massa de modelar.
Procedimento: entregamos pedaços de massa de modelar para as crianças
e pedimos que elas as transformem em “fases da lua” (ou seja, em represen-
tações concretas que reproduzam as formas que nossa cultura convencionou
designar como tal ou qual fase da lua).

Oficina 2: balões.
Duração: dois dias consecutivos, destinando-se 1 hora para o primeiro dia e
30 minutos para o outro dia.

70
Astronomia no Ensino Fundamental

Objetivo: trabalhar, através de uma analogia, como seria o solo da lua e suas
crateras.
Material necessário: balões de encher, cola, papel higiênico, pincéis, tinta
branca, cinza e gliter (Figura 16).
Procedimento:
1º) divide-se a turma em grupos de 4 pessoas, ou a critério do professor;
2º) entrega-se um balão para ser enchido pelo grupo; depois, aquele é amar-
rado com um barbante e passa-se cola no balão com um pincel. Recomenda-
se colocar um pouco de água na cola para diluí-la melhor;
3º) depois de o balão ter sido pincelado de cola, este vai sendo enrolado, com
uma primeira camada de papel higiênico, depois passa-se novamente cola e
acrescenta-se outra camada de papel higiênico. Se necessário coloca-se uma
terceira camada de papel;
4º) após se ter enrolado totalmente a bola assim formada, pegam-se pedaços
de papel higiênico, enrolam-se várias tiras e passa-se na cola; depois, mol-
dam-se essas tiras em forma de círculos, que são colocados sobre a bola para
representarem as crateras da lua;
5º) no dia seguinte, após a secagem do material, pega-se e corta-se o bico da
bola, para retirar o balão; e
6º) por fim, pinta-se a bola com tinta branca e, após esta secar um pouco,
pode-se passar uma tinta cinza ou dourada e salpicar-se com gliter.

Oficina 3: lixa.
Duração: aproximadamente 25 a 30 minutos.
Objetivo: trabalhar as fases da lua através do desenho delas na lixa, bem
como nos diferentes tipos de textura de outros materiais (tecido, algodão, pa-
pel etc.) e a socialização de conhecimentos entre as crianças.
Material necessário: lixas e coleções de giz ou lápis de cera (Figura 17).
Procedimento: distribui-se uma lixa inteira para cada criança e pede-se que
as crianças desenhem as fases da lua nas suas lixas.
Oficina 4: argila.
Duração: aproximadamente 30 minutos.
Objetivo: trabalhar as fases da lua através da modelagem com argila, a co-
ordenação viso-motora, a socialização, a cooperação mútua e o desenvolvi-
mento de um sentimento de que somos seres pensantes capazes de transfor-
marmos as coisas através do nosso trabalho e dedicação, em particular as que
consideramos relevantes para nós.

71
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Material necessário: 2 kg de argila, tinta guache e pincéis (Figura 18).


Procedimento: entregam-se pedaços de argila aos grupos e pede-se para que
confeccionem as “fases da lua”.
Oficina 5: rasgadura de papel.
Duração: aproximadamente de 25 a 30 minutos.
Objetivo: confeccionar as “fases da lua” a partir do ato individual e criativo
de transformar as folhas de revistas, através do rasgar, para criar com suas pró-
prias mãos as representações de tais fases, visando desenvolver nas crianças
a compreensão de que o homem, ao longo do seu processo histórico, veio
criando e transformando as coisas e que todos nós temos essa capacidade
transformadora de imaginar e criar.
Material necessário: revistas, cola e folhas de ofício.
Procedimento:
1º) explica-se para as crianças que elas terão a oportunidade de criar com as
suas mãos as formas que costumam representar as fases da lua; depois, cada
uma receberá uma revista e, fazendo-se uso apenas das mãos, começa-se a
atividade;
2º) depois entrega-se uma folha de papel ofício e cola para que elas montem
as “fases da lua”; e
3º) pode-se concluir esta oficina com a criação de um texto coletivo sobre,
por exemplo, as transformações do ser humano ao longo da história da hu-
manidade.
Oficina 6: gastro-lúnica.
(O nome desta oficina foi sugerido por mim, que trabalhei, a princípio, o sig-
nificado da palavra gastro; depois, disse aos alunos que a oficina de biscoito
iria chamar-se gastro-lúnica, porque iríamos trabalhar as fases da lua e, pos-
teriormente, comê-las! Notemos que esta oficina também poderia ser cha-
mada, fazendo-se um trocadilho de palavras, de oficina Gastronômica, ou
mesmo Gastronômica.)
Duração: aproximadamente 30 minutos.
Objetivo: trabalhar os hábitos de higiene que devemos ter ao comermos e
conversarmos sobre a capacidade do homem de transformar as coisas a partir
do momento em que ele reflete e age sobre elas, pois aí está a essência do fazer
pedagógico, ou seja, propiciar às crianças instâncias nas quais elas tenham
liberdade e sejam estimuladas a exercitar sua criatividade e possam perceber
que são capazes de criar, tal como um artista ou um cientista.

72
Astronomia no Ensino Fundamental

Material necessário: biscoitos de formato redondo, recheados ou não (Fi-


gura 19).
Procedimento:
1º) uma conversa informal sobre o objetivo da oficina gastro-lúnica;
2º) pede-se que as crianças lavem as mãos;
3º) entrega-se um prato a cada criança;
4º) em seguida distribui-se um biscoito a cada criança e pede-se que ela o
transforme em uma “lua nova”, “crescente”, “cheia” e “minguante”; e
5º) ao término dos comandos nem precisamos mandá-los comer, pois essas
“fases da lua” estão pra lá de apetitosas!

Figura 16 – Oficina com balões, cola e papel higiênico (Foto: Fátima Lopes)

Figura 17 – Oficina com lixas (Foto L. C. Jafelice)

73
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Figura 18 – Oficina com argila (Foto: L. C. Jafelice)

Figura 19 – Oficina gastro-lúnica (Foto: M. L. S. Lima Freitas)

74
Astronomia no Ensino Fundamental

4.2 Trilha da lua

A trilha da lua foi criada a partir de uma inquietação da minha parte após
a elaboração do pré-projeto de mestrado na área de Ensino de Astronomia.
Fiquei a pensar que há certos conteúdos que precisam ser transmi-
tidos às crianças, pois são conhecimentos acumulados historicamente pela
humanidade. Sendo assim, precisam ser transmitidos, porque não há como
interiorizá-lo pela construção, é algo que já está dado, é arbitrário. Pensando
nisto, achei que seria mais viável e prazeroso se pudéssemos, quando possí-
vel, utilizar “jogos”, porque através deles as crianças sentem-se estimuladas e
aprendem de forma mais ativa, interagindo com as outras crianças e com o
adulto, como também as incita para a leitura, porque descobrir regras e poder
jogar é um bom motivo para tentar interpretar a escrita.
Ora, ao criar-se o jogo trilha da lua, criou-se um excelente recurso di-
dático de dinâmica de grupo que possibilita o favorecimento do prazer pela
aprendizagem.
Segundo a revista Mundo Jovem (EQUIPE DA CASA DA JUVEN-
TUDE PE. BURNIE, 2001),
Dynamis é uma palavra grega que significa força, energia, ação.
Quando Kurt Lewim utilizou essa expressão e começou a pesquisar
os grupos, seu objetivo era o de ensinar às pessoas comportamentos
novos e decisão em grupo, em substituição ao método tradicional de
transmissão de conhecimento.

Dinâmica de grupo é uma técnica que significa colocar um grupo de


pessoas em movimento através de jogos, brincadeiras e exercícios, quando
são vivenciadas situações simuladas proporcionando sensações da vida real,
nas quais os participantes poderão agir com autenticidade, buscando a cons-
trução do grande pilar da educação: os conceitos, procedimentos e atitudes;
só assim poderemos contribuir para o “[...] desenvolvimento amplo, harmô-
nico e equilibrado dos alunos” (BRASIL, 1997, p. 77).
Vale salientar que este jogo foi desenvolvido com crianças a partir do
1º ano, desde a nossa primeira experiência em 2003 na Escola Municipal Pro-
fessora Zuleide Fernandes e durante os anos de 2004 a 2006 na Escola Esta-
dual Alceu Amoroso Lima. Ele nos mostra a sua efetividade no sentido de o
mesmo possibilitar uma aprendizagem prazerosa e contribuir também para o
desenvolvimento dos conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais na
vida das mesmas.

75
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Quem a batizou?
No dia 28/04/03 conversei com as crianças10 sobre a necessidade de
escolhermos um nome para o “jogo” que, em princípio, chamei trilha da lua
(porque já havíamos começado a jogar esse jogo dia 05/04/03). Eles suge-
riram os seguintes nomes: Trilha da lua, Trilha do céu, Trilha do céu e das
estrelas.
Foi colocado em votação e eles escolheram a Trilha da lua, pois, se-
gundo a defesa que a aluna Brenda fez por este nome, nós tínhamos estudado
até então sobre as coisas da lua.

Objetivos pedagógicos da trilha da lua:


• possibilitar a interação entre as crianças, através das boas “parcerias”;
• desenvolver o pensamento lógico-matemático;
• desenvolver o espírito de cooperação;
• aprender os conteúdos de Astronomia de forma lúdica;
• trabalhar o “erro” na perspectiva da construção de acertos futuros;
• desenvolver o gosto pela leitura e a oralidade;
• estimular a expressão corporal;
• despertar a curiosidade científica;
• desenvolver o respeito por diferentes visões de mundo, respeito por outras
culturas, trabalhar a pluralidade cultural.

De que consta a trilha da lua

A trilha da lua (material/componentes):


• grande círculo em forma de uma lua cheia (ou uma “fatia” em forma de
lua crescente, na versão alternativa do jogo), com casas numeradas – como
mostra a Figura 20;
• cubos feitos de cartolina;
• jipe lunar (feito com os alunos); e
• foguete espacial (feito com os alunos).

10 Nessa data me refiro, portanto, a crianças da Escola Municipal Professora Zuleide Fernandes e não a
meus alunos dos últimos três anos na Escola Estadual Alceu Amoroso Lima.

76
Astronomia no Ensino Fundamental

Figura 20 – O jogo trilha da lua, nas versões lua cheia e crescente (Foto: L. C. Jafelice)

Comandos da trilha da lua:

1º: antes de mais nada, a professora tem de conhecer os níveis de escrita dos
alunos para agrupá-los (vide especificações abaixo de como fazer isto);
2º: cada dupla irá tirar par ou ímpar para saber o caminho que vão seguir
na trilha; há dois caminhos: o da ciência e o dos mitos (que originalmente
havíamos chamado de caminho dos cientistas e caminho dos mitos) (vide
quadro a seguir);

77
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

CAMINHO DA CIÊNCIA CAMINHO DOS MITOS

• Você sabia o que é a Lua para os • Você sabia o que é a Lua para os
cientistas? povos Pataxós?
Resposta: Ela é um satélite natural da Resposta: É uma índia velha e eles a
chamam de Angohó.
Terra. Avance uma casa.
Avance uma casa.
• Os cientistas falaram que na Lua a • Em noites de lua cheia os Pataxós
gente parece mais leve, anda mais dançam em roda para celebrar a Lua.
devagar, flutua! Mostre como é Pare e dance com seus colegas como os
brincar e andar na Lua. Depois índios Pataxó!
avance duas casas.
• Uns dizem que a Lua pode ter surgido • Nas noites de lua cheia os índios mais
da colisão de outro planeta com a velhos contam... Descubra com sua
Terra há bilhões de anos. Represente professora o que eles contam e fique
com seus colegas como é essa colisão, uma vez sem jogar.
e avance uma casa.
• Como você chegou até a Lua? Uns • Já os índios Suruí chamam a Lua
vieram de foguete a jato, outros de Gatikat. Compartilhe com seus
colegas essa informação. Avance
usaram a magia, o pensamento. E
duas casas.
você? Agora fique uma vez sem jogar.
• Que sorte! Você caiu em um buraco,
crateras, a vida é cheia delas. Levante- • Você tropeçou e caiu em uma cratera;
se e jogue outra vez! a vida é cheia delas. Levante e jogue
• Você já viu a Lua de dia? Como ela mais uma vez!
estava? Fique uma vez sem jogar e • Os índios Suruí dizem que o Sol e a
preste atenção também nas coisas do Lua são irmãos que ficam deslizando
céu, de noite e de dia... pelo céu. Agora fique uma vez sem
jogar.
• Segundo os cientistas, a Lua faz dois
movimentos, rotação e translação. • Os mais velhos dizem que é bom
Peça à professora para representar, cortar os cabelos na lua cheia.
com a ajuda dos colegas, estes dois Pergunte aos seus pais, em casa,
movimentos, e avance uma casa. o que eles acham disso e traga a
resposta para sua turma.
• Você sabia que a Lua sofreu e sofre Avance uma casa.
ataques de meteoritos em sua
superfície e que é por isto que há • Você já viu a Lua hoje? Como ela
muitas crateras nela? estava?
Conte para seus amigos e aprecie essas Conte para seus amigos e aprecie essas
inúmeras crateras da Lua para voltar inúmeras crateras da Lua para voltar
para a Terra.
para a Terra.

78
Astronomia no Ensino Fundamental

3º: surgem os “ganhadores” do jogo quando todos conseguem chegar à plata-


forma de desembarque de volta à Terra.

A trilha da lua na prática


A trilha da lua foi posta em prática, pela primeira vez, no dia 05/04/03,
em uma turma de 1ª série – 2ª fase, da Escola Municipal Professora Zuleide
Fernandes. Ela foi um sucesso entre as crianças, pois elas ficaram entusiasma-
das para brincarem.
A princípio foram feitas as duplas (de acordo com o nível de escrita
delas), a saber:
• Um aluno no nível de escrita alfabética com outro silábico; e
• Um aluno no nível de escrita alfabética com outro pré-silábico.
Durante e após a execução da trilha pude observar que ela corres-
ponde aos objetivos propostos anteriormente, que foram os de possibilitar
às crianças lerem, interagirem umas com as outras, socializarem os conhe-
cimentos aprendidos de Astronomia, desenvolverem o pensamento lógico-
matemático, despertarem a curiosidade científica, desenvolverem o respeito
por outras culturas e, acima de tudo, desenvolverem o espírito de cooperação
e aprenderem de forma lúdica.
Após a trilha fiz alguns questionamentos às crianças sobre o que elas
tinham aprendido e elas disseram:
“Aprendi muitas coisas sobre a Lua” (Rita de Cássia, 7 anos).
“Jogo legal! Quero jogar mais, aprendi a ler e a somar” (Brenda, 7 anos).
Perguntei: “Como é a Lua?” e Guilherme prontamente respondeu:
“É cheia de buracos, crateras, não é tia?”.
“Como os índios Suruí a chamavam?”, perguntei, e Brenda respon-
deu:
“É aquele nome esquisito que não me lembro agora!”.
Vale salientar ainda que eles gostavam de dançar como os índios Pata-
xós em noite de lua cheia. Além disto, este tipo de atividade, de modo ines-
perado, prendeu a atenção de Edivaldo (7 anos), uma criança que tem “ne-
cessidades especiais”. Segundo sua mãe, ele toma remédio controlado porque
tem convulsões. Ele entrou no jogo com seu colega Brendo Lee e participou
ativamente com os outros. A Figura 21 ilustra algo desse envolvimento.

79
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Figura 21 – A compreensão do aluno Edivaldo sobre o jogo trilha da lua

É bom lembrar ainda que Edivaldo é uma criança muito inquieta e não
se concentra por muito tempo nas tarefas propostas em sala de aula, mas no
dia em que brincamos na trilha da lua ele quis participar logo na 1ª rodada.
Ele aprendeu tanto o conteúdo trabalhado na trilha que na segunda-feira, dia
07/04/03, veio de cabelo cortado, pois havia no jogo uma atividade de pes-
quisar se era bom cortar os cabelos na lua cheia.
Brendo Lee de 7 anos, também na segunda-feira, dia 07/04/03, logo
no início da aula disse:
“Tia! Eu perguntei à minha mãe e ela disse que era bom cortar o cabelo na
lua cheia”.
Eu perguntei, então, mesmo imaginando qual seria a resposta: “qual o
motivo?”, e ele disse:
“É bom porque cresce os cabelos”.

80
Astronomia no Ensino Fundamental

Em outro momento, quando eles estavam jogando, pude observar que


alguns, a princípio, compreenderam que neste jogo não há ganhadores11, por-
que Rita de Cássia (7 anos) e sua amiga Ana Marta (7 anos), por não terem
chegado à plataforma de embarque junto ao Brendo e ao Edivaldo, não fica-
ram com o sentimento de perdedoras. Rita de Cássia enfatizou:
“Vocês não ganharam nada ainda, pois só ganham quando todos chegarem à
plataforma de embarque de volta à Terra”.

4.3 Reestruturação da trilha da lua após a sua primeira execução

No dia 12/05/03 eu, o aluno Alex Sander Queiroz, na época no


Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e de Matemática
da UFRN, e o Prof. Luiz Carlos Jafelice nos reunimos para avaliarmos e
buscarmos novas estratégias para a trilha da lua.
Alex deu a ideia de fazermos com as crianças o jipe lunar, que é o carro
mais caro do mundo. Jafelice sugeriu que fizéssemos uma produção coletiva
destes jipes lunares, para que cada criança fosse responsável por uma parte
dele (fazer rodas, montar o corpo, montar o carro, pintar, etc.) e no final este
produto seria coletivo. Também combinamos que cada criança iria ganhar
três jipes lunares, a saber, um para ela quando fosse jogar, outro para ela dar a
seu colega e outro para ela dar ao(s) seu(s) responsável(eis).
Vale salientar que fizemos coletivamente também os foguetes espa-
ciais. Após as duas oficinas (jipe lunar e foguete espacial) colocamos em prá-
tica na sala de aula o jogo da trilha da lua.
No dia 19/11/03 concluiu-se toda a oficina lunar, com a pintura dos
foguetes. Logo após, fizeram uma atividade de escrita dirigida com estes
questionamentos:
• Quais os nomes das duas oficinas realizadas?
• Quais os materiais utilizados?
• Onde iremos utilizar os objetos feitos nestas oficinas?
• Quais os nomes dos professores oficineiros?

11 No sentido habitual, da competitividade, que estimula uns ficarem contra os outros na luta para se
vencer. A existência do vencedor necessariamente implica que haja perdedores. Atividades que valo-
rizem estes resultados fomentam mentalidades e comportamentos nos quais a exclusão é tida como
inevitável e até saudável. Isto, sem dúvida, não é verdadeiro. Então, visando um mundo mais justo,
os educadores precisam buscar atividades e formas que incentivem a cooperação e a colaboração e
trabalhar estes valores com dedicação junto a seus alunos.

81
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

No dia 04/12/03 os alunos, após terem confeccionado o jipe lunar e o


foguete espacial, brincaram na trilha da lua. Cada um recebeu seu jipe lunar e
um foguete espacial. Cada dupla escolheu o caminho que ia seguir.
Durante a observação nos grupos pude notar o entusiasmo e alegria
deles em participar de tal tipo de atividade. Após terem chegado à plataforma
de embarque foi a vez de cada grupo responder as adivinhas lunares12 e
todos ficaram atentos a cada pergunta dos grupos. Houve a participação
e o envolvimento de todos nesta etapa da atividade, para responderem as
adivinhas. Este momento foi genial para mim, pois as crianças liam com
prazer e em voz alta. Já era de se esperar, pois as coisas da lua fascinam adultos
e crianças.
Algo que me chamou muito a atenção foi a participação de Dênis (8
anos), que no início do ano não lia e sua escrita encontrava-se no nível silá-
bico, sem valor sonoro. Naquele momento, vê-lo pedir para ler os comandos
da trilha, foi maravilhoso, pois ficou visível que se pode afirmar que os con-
teúdos da Astronomia também incentivam e despertam para o ato de ler e
escrever no processo da alfabetização.
Já na turma da professora Iranilde, turma de 2ª série, o jogo da trilha
da lua foi posto em prática com seus alunos no dia 04/12/03. Primeiro expli-
quei como se jogava e disse para eles que os jipes lunares e foguetes que eles
iriam receber foram feitos pelos alunos da prof ª. Luciene em uma produção
coletiva. Depois, pela circunstância do momento, achei melhor convidar os
alunos da minha turma para serem os monitores de cada grupo da turma de
Iranilde.
Cada monitor ficou em um grupo e eles ensinaram direitinho aos seus
colegas. Porém, nesta turma e na minha, pude observar que os comandos
muito longos às vezes dificultavam as suas leituras, já que eles ainda não leem
fluentemente; mesmo assim eu os incentivava a ler.
Na turma da prof ª Iranilde pedi que eles escrevessem sobre o que
acharam da trilha da lua.

12 As adivinhas lunares são perguntas relacionadas àquele astro, que foram colocadas em cartões de
cartolina. Está além do escopo deste capítulo explicitarmos esta prática. No Apêndice F (p. 129)
de Lima (2006) constam as (oito) perguntas utilizadas na referida prática, para onde remetemos os
interessados na mesma.

82
Astronomia no Ensino Fundamental

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos as várias atividades realizadas durante os três anos de


trabalho (2004 a 2006), já mencionadas ao longo deste trabalho, vimos que
a metodologia utilizada possibilitou às crianças se desenvolverem e se apro-
priarem dos conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais, respeitan-
do-se os ritmos e níveis de cada uma.
Vale salientar que esse método vivencial através dos conteúdos de
Astronomia enriqueceu, e muito, o processo de alfabetização na perspectiva
de letramento e inclusão, porque propiciou às crianças atividades que tiveram
sentido e significado para elas ao escreverem. Como, por exemplo, podemos
citar a retomada do dever de casa de observar e desenhar a lua, quando
visível.
É bom ressaltar também que esta atividade de retomada do dever
de casa diariamente colaborou para travarmos “boas conversas” a respeito
de suas observações do céu, fazendo com que as crianças desenvolvessem
a cada dia a oralidade e a criatividade a respeito dos diversos conteúdos
que trabalhavámos conjuntamente, enquanto introduzíamos os saberes de
Astronomia.
Outros resultados educacionais que podemos dizer que alcançamos
com este trabalho, ao longo desses três anos, foi a diminuição da evasão nas
séries iniciais, uma vez que a rotina implementada em sala de aula era bastante
dinâmica e diversificada, pois procurávamos trazer a cada dia algo inusitado
para eles.
É bom lembrar que ao trazermos a diversidade de textos linguísticos e
o jogo trilha da lua, conseguimos desenvolver um sentimento de respeito pela
cultura de outros povos. A escrita de Maxwell é um bom exemplo de que ele
percebeu, quando brincava na trilha da lua, que este astro pode ser denomi-
nado de diferentes formas, dependendo da cultura que o nomeia. Vejamos:
“Eu aprendi na trilha que a lua não tem só um nome”.
Podemos citar também que ao trabalharmos os conteúdos de Astro-
nomia, paralelamente desenvolvemos alguns conteúdos específicos de ciên-
cias naturais em geral, como, por exemplo: o ciclo de vida dos seres vivos; a
questão do ar; força e peso; energia e a fotossíntese.

83
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

Ora, as coisas do céu, por estarem presentes no nosso dia a dia, possi-
bilitam-nos fazermos comparações e aprender de fato que somos harmoniza-
dos por ritmos cósmicos, por assim dizer.
Por outro lado, a abordagem que adotamos proporcionou a inclusão
de todas as crianças portadoras de necessidades especiais, ou não, e propiciou
que elas vivenciassem e descobrissem por si mesmas, ou através das relações
de trocas entre elas, muitos conhecimentos considerados específicos da área
de Astronomia, como, por exemplo: o fato de que a lua aparece também de
dia, durante muitos dias do mês; que ela muda sua aparência segundo um
padrão cíclico, isto é, que se repete regularmente – o que faz com que ela sirva
para medirmos e organizarmos o tempo (calendários lunares) com precisão;
que ela é um satélite natural da Terra; que ela tem crateras em seu solo; que os
planetas parecem estrelas, visualmente, mas são muito diferentes das estrelas,
em suas constituições e movimentos no céu; que há agrupamentos de estre-
las que nossa cultura denominou de uma certa maneira e como identificar
alguns deles no céu; como usar o Sol para descobrir as direções cardeais e
para medir o tempo: a origem do relógio solar; como identificar os pontos
cardeais a partir de onde os astros nascem e se põem, além da conscientiza-
ção do movimento aparente de todos os astros no céu; entre muitos outros
conhecimentos que destacamos neste capítulo.
Portanto, este trabalho mostra13 que é possível – além de vantajoso
dos pontos de vista pedagógico e da formação integral do ser humano, sob
vários aspectos – se trabalhar os conteúdos de Astronomia nas séries iniciais,
enquanto as crianças vão se apropriando do nosso sistema de escrita, que é
alfabético. Para isto, é preciso trazer para a sala de aula a diversidade textual
que existe fora. Com isto, o professor precisa ensinar, além do conhecimento
sobre as letras, a linguagem que se usa para escrever os diferentes gêneros.
Um outro aspecto que podemos mencionar, a partir das entrevistas
com as crianças que participavam desta pesquisa, é que quando as crianças
entram na escola elas já trazem conhecimentos a respeito da utilidade e im-
portância dos astros do céu em nossas vidas, em consequência de suas ex-
periências cotidianas e de natural imersão na cultura. Portanto, compete a
nós, professores, enriquecermos esses conhecimentos para que as crianças

13 As conclusões básicas deste trabalho, aqui mencionadas em parte, são justificadas também em função
de outras análises, mais técnicas e aprofundadas, envolvendo questionários aplicados aos alunos e
gráficos dos seus níveis de escrita, elaborados ao longo desses anos. Os interessados nessas análises
devem consultar Lima (2006).

84
Astronomia no Ensino Fundamental

avancem do senso comum para o científico, com o cuidado de não se perder,


contudo, a magia, a beleza, o encanto que o mundo tanto nos revela e oferece
de modo inesgotável.
Ao analisarmos os desenhos feitos por essas crianças, relativos ao que
elas pensavam sobre como foi o começo (a origem) de tudo que existe, obser-
vamos diversas respostas (desenhos), que expressam a diversidade cultural
trazida para a sala de aula.
Sendo assim, essa Astronomia Vivencial que propusemos proporcio-
nou ganhos pedagógicos que irão refletir na formação integral deste ser que
está em desenvolvimento, bem como possibilitará a formação de um ser mais
humano do que materialista, já que o que nos importa não é o ter, mas ser
humano.
Em síntese, podemos dizer que a Astronomia Vivencial que propuse-
mos às crianças possibilitou-lhes um encontro com as coisas do céu, enquan-
to vivenciaram os diversos usos da leitura e da escrita, já que nossa pesquisa
seguiu a trilha do letramento e da inclusão.
Por outro lado, a nossa prática de sala de aula demonstrou que é pos-
sível trabalhar logo cedo conteúdos de Astronomia relacionados às demais
disciplinas, buscando-se sempre que possível a transdisciplinaridade.
Com este trabalho, evidenciamos uma possibilidade de resgatar-se o
elo que ficou perdido entre nós e os nossos antepassados em relação às coisas
do céu, enquanto um elemento também integrador do nosso Meio Ambiente.
Clarificamos também que os Parâmetros Curriculares Nacionais podem – e
devem! – privilegiar os conteúdos de Astronomia, apesar da sua complexida-
de, nas séries iniciais do ensino fundamental, desde que estes sejam trabalha-
dos de modo a adquirirem significado e sentido para os educandos.
Acreditamos que uma proposta como essa só terá sentido e sucesso
se o professor acreditar na possibilidade de a criança estar sempre receptiva e
aberta às inovações que surgem no seu dia a dia. Afinal, muitas vezes somos
nós, professores, que relutamos em aceitar as mudanças. Isto reforça nossa
crença de que, com a mentalidade adequada e postura assertiva, é possível
encaminhar uma proposta como esta, nesse nível de ensino.
E mais: mostra que é possível trabalhar conteúdos de Astronomia des-
de o início do primeiro ano do ensino fundamental, tanto com crianças ditas
“normais”, como com aquelas que têm “alguma deficiência”, com grande van-
tagem dos pontos de vista pedagógico e formativo do ser humano.

85
Maria Luciene de Souza Lima Freitas

REFERÊNCIAS
ABREU, Ana Rosa et al. Alfabetização: livro do professor. Brasília: FUNDESCOLA/
SEF-MEC, 2000.
ADORNO, Theodoro W. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os
Pensadores).
BRAGHIROLLI, Elaine Maria et al. Psicologia geral – 9. ed. rev. e atual. Porto
Alegre: Vozes, 1998.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil:
(emendas constitucionais ns. 1 a 48 devidamente incorporadas). 3. ed. rev. e ampl.
Barueri, São Paulo: Manoli, 2006.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação Fundamen-
tal. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares
nacionais. 1ª a 4ª séries. Brasília: MEC/SEF, 1997. v 1.
______. Parâmetros Curriculares Nacionais: ciências naturais. Brasília: MEC/
SEF, 1997. v. 4.
CANALLE, João Batista Garcia. Oficina de Astronomia. Rio de Janeiro: UERJ,
1995. Material aplicado.
CASALESE, Mauro. Betty Atômica. Distribuído por: Warner Home Vídeo. [EUA]:
Vídeo, 2005. 1. Vídeo cassete (95min.), DVD, Som, Color.
CASCUDO, Luis da C. Adivinhas de São João. In: ______. Superstição no Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1985. p 147/156.
______. JOÃO. In: ______. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998.
EDWARDS, David C. Manual de psicologia geral . São Paulo: Cultrix, 1973.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
EQUIPE DA CASA DA JUVENTUDE DE PE. BURNIE. Juventude: dinâmicas de
grupo. Revista Mundo Jovem, Porto Alegre, ano 39, n. 313, p. 20 fev. 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. In: Mineaurélio século XXI escolar. 4.
ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 20.
FERREIRA, Idalina Ladeira; SOUZA, Sara P. Caldas. Fantoche e cia. São Paulo:
Scipione, 1998. (Coleção Pensamento e Ação no Magistério).
FERREIRO, Emília. Com todas as letras. Tradução de Maria Zilda da Cunha Lopes;
retradução e cotejo de textos Sandra Trabuco Valenzuela. 11. ed. São Paulo: Cortez,
2003.
FRANÇA, Eliardo; FRANÇA, Mary. Uma viagem a lua. São Paulo: Ática, 2001.
GROSSI, Esther Pilar. Didática da alfabetização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
3v.

86
Astronomia no Ensino Fundamental

HUTCHISON, David. Educação ecológica: idéias sobre educação ambiental.


Tradução de Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 2000.
JAFELICE, Luiz Carlos. As origens celestes da festa de São João. Texto de apoio
para curso de treinamento de professores em serviço. Natal: UFRN - Depto. de
Física, 2002. 5p.
______. Comunicação particular. 2006.
JEANDOT, Nicole. Explorando o universo da música. São Paulo: Scipione, 1997.
JOLIBERT, Josette (Coord.). Formando crianças produtoras de texto. Tradução
Walkiria M. F. , Bruno Magne. Porto Alegre: Artmed, 1994.
LIMA, Graça. Noite de cão. São Paulo: Paulinas, 1996.(Coleção que história é
essa?).
LIMA, Maria Luciene S. e JAFELICE, Luiz C. Astronomia no ensino fundamental:
despertando para o letramento. VIII Encontro Brasileiro para o Ensino de
Astronomia. Atas. Oral. São Paulo: PUC-SP, 2004. (13 páginas) em impressão.
______. Astronomia, letramento e inclusão no ensino fundamental. 57ª Reunião
Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Atas. Painel. Fortaleza:
SBPC, 2005a. (1 página).
______. Astronomia no ensino fundamental: letramento e inclusão. In: XXXI
Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira, 2005, São Pedro, SP.
Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira. São Paulo: IAG/USP, 2005b.
______. Saberes de Astronomia no 1º e 2º ano do ensino fundamental numa
perspectiva de letramento e inclusão. Dissertação (Mestrado em Centro de
Ciências Exatas e da Terra). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2006.
140f. [Também disponível em: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm (nesta
página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”).]
MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer?
São Paulo: Moderna, 2003.
______. Inclusão ou o direito de ser diferente na escola. Construir Notícias. Recife,
ano 3; n. 16, p. 12, maio/junho. 2004.
OSBORNE, Richard. Freud para principiantes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
OTTE, Michel. O formal, o social e o subjetivo: uma introdução à filosofia e à
didática da matemática. Tradução de Raul Fernando Neto. São Paulo: Editora da
UNESP, 1993.
ROHDE, Luis Augusto; BENCZIK, Edyleine B. P. Transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade: o que é? Como ajudar? Porto Alegre: Artmed, 1999.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de
Janeiro: WVA, 1997.
SILVA, Ezequiel Teodoro da. Leitura na escola e na biblioteca. 3. ed. Campinas:
Papirus, 1991.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.

87
Astronomia no Ensino Médio

Capítulo 2
Uma Abordagem Humanística
para o Ensino de Astronomia no Nível Médio

Gilvana Benevides Costa Fernandes

1 PENSANDO EM EDUCAÇÃO
Na atual sociedade multifacetada, complexa e desigual, as informa-
ções recebidas através da mídia são, na maioria das vezes, mais interessantes,
rápidas e coloridas que as apresentadas na Escola. Deve-se, pois, refletir sobre
o novo papel da Escola e da Educação diante dessa sociedade, para aquela
não se tornar uma mera reprodutora de informações monolíticas do passado,
mas que vise construir uma prática educacional apta a capacitar os estudantes
com habilidades, valores e uma verdadeira atitude que os permitam empre-
ender uma aprendizagem contínua, permanente e útil. Nas palavras de Pozo
e Crespo (1998, p. 28, tradução nossa),
[...] não se trata de que a educação proporcione aos alunos conhe-
cimentos como se fossem verdades acabadas, senão que os ajude a
construir seu próprio ponto de vista, sua verdade particular a partir
de tantas verdades parciais.

Para a Escola ser a construtora de atitudes, valores e comportamentos


sociais significativos nos jovens, ela deve assumir novos objetivos, entre eles,
o de ensinar formas eficientes que levem os estudantes a aprender a aprender
continuamente em diferentes situações da vida. Torná-los bons leitores do
contexto social, político e cultural que os abraça deve ser uma das principais
metas daquela instituição.
Em uma sociedade onde os conhecimentos e as demandas formati-
vas mudam com tanta rapidez, é essencial que os futuros cidadãos
sejam aprendizes eficazes e flexíveis, que tenham procedimentos e
capacidades de aprendizagem que lhes permitam adaptar-se a essas
novas demandas (POZO; CRESPO, 1998, p. 52, tradução nossa).

89
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Diante dessa nova exigência, o educador deve aprender a agregar ao


já tão trabalhado conteúdo verbal, procedimentos e atitudes que sirvam de
ferramentas úteis no processo de aprendizado que ocorre nas mais variadas
situações. Se a Escola deve habituar o aluno a construir um conhecimento
que o ajude a entender a sua realidade, é natural que ela traga essa realidade
para dentro de sua estrutura, contextualizando o conhecimento com as situa-
ções motivadoras do cotidiano.
Apesar da concordância entre os educadores da necessidade de um
ensino mais crítico, questionador, com um maior compromisso social e eco-
lógico, isso ainda é distante da realidade escolar, principalmente no ensino
médio. A mais frequente justificativa dos professores é o fato de terem que
cumprir um extenso programa de conteúdos para atender às exigências das
Escolas, que visam, em sua expressiva maioria, o resultado em números de
aprovação nos concursos de ingresso no Ensino Superior.
Porém, se fosse apenas se deparar com o extenso programa o que im-
pede uma educação mais formadora e permanente, a solução mais sensata
seria se ater aos conceitos essenciais e imprescindíveis em cada disciplina.
Logo, percebe-se que não é apenas o fato do extenso conteúdo que contribui
para o ensino informativo e seletivo nas escolas, mas as próprias caracterís-
ticas da sociedade que se infiltram e perpassam os valores e atitudes dessa
instituição.
Sentimentos e comportamentos de competição e de individualismo,
por exemplo, tão marcantes na sociedade, encontram-se de forma latente no
contexto escolar, na forma competitiva e seletiva com que se recompensa
mais o indivíduo do que o trabalho e o esforço coletivo. Ou seja, os valores
e as atitudes das escolas estão mais voltados à seleção e à competição do que
a uma formação cidadã. São, sem dúvida, desses “pequenos detalhes” que se
constroem a educação, não tanto unicamente pelo que se diz, mas da lógica e
coerência do que foi dito e de quem o diz.
Esse modelo, ou aprendizagem por imitação, é, com freqüência,
um processo de aprendizagem mais implícito que explícito em que
muitas vezes nem o professor nem o aluno se dão conta de que essa
aprendizagem está tendo lugar. Por isto é especialmente importante
que os professores tomem consciência e façam explícitas não somen-
te as atitudes que desejam em seus alunos, senão também as que,
muitas vezes de forma inconsciente, eles manifestam através de suas
condutas (POZO; CRESPO, 1998, p. 38, tradução nossa).

90
Astronomia no Ensino Médio

Deve-se ter claros dois pontos: primeiro, que esse nosso discurso não
questiona a perspectiva de se formar os estudantes para o ingresso nas insti-
tuições de ensino superior; ao contrário, como educadores, devemos incenti-
var os estudantes que almejem a continuação de seus estudos, pois o impor-
tante é a realização profissional, seja ou não através de um ensino superior. A
presente crítica se destina à forma que acaba por incentivar a competição e o
individualismo, enfocando-se um demasiado acúmulo de conteúdos especí-
ficos, principalmente dos últimos anos de formação, na maioria das institui-
ções, em detrimento de um trabalho crítico e participativo.
A atitude de competição nas escolas, porém, entre outras coisas, está
encobrindo a omissão quanto à real necessidade política de melhorar o aces-
so às universidades, e não só isso, de melhorar o próprio ensino superior, ter
mais universidades, mais docentes, mais investimentos nos aspectos físicos
e operacionais para que se atenda um maior número de pessoas. Não deve
caber à Escola o papel de selecionar aqueles que irão ou não, através dos su-
cessos e insucessos de cada um, concorrer ao ensino superior. Frente ao tipo
de ensino não crítico praticado e que, muitas vezes, só exige a capacidade
de memorização dos estudantes, só restarão aqueles estudantes que têm esse
perfil, ou que têm uma obrigação ou mesmo uma ligação com esse tipo de
capacidade, enquanto a maioria, que não tem ou que não desenvolve essa ca-
racterística, passa simplesmente pela escola, ficando com um escasso conhe-
cimento, acompanhado, muitas vezes, por uma sensação de fracasso diante de
tantas informações não compreendidas.
Pelas considerações de Pozo e Crespo (1998, p. 38, tradução nossa),
[n]os lamentamos de que os alunos são passivos, mas apenas lhes
deixamos espaços de participação autônoma; de que não têm sen-
sibilidade para os problemas sociais, científicos e tecnológicos que
os rodeiam, mas a ciência é ensinada como uma realidade própria,
um conjunto de conhecimentos formais que constituem uma torre
de cristal isolada do ruído mundano. Nos lamentamos de que se li-
mitam a repetir como papagaios o que nós dizemos, mas não valo-
rizamos suas próprias idéias ou as consideramos como ‘erros con-
ceituais’. Embora muitos professores não o desejem, através de sua
conduta em sala estão transmitindo atitudes das que muitas vezes o
aluno se contagia, por isso é conveniente controlar melhor quê mo-
delos lhes estamos oferecendo.

É importante que a Escola ganhe espaço para educar para a cidadania,


para a liberdade e para o sentimento de ecologia, pois não se educa unica-
mente para atender a uma sociedade, mas, sobretudo, para transformá-la.

91
Gilvana Benevides Costa Fernandes

O segundo ponto que se deve ter claro diz respeito à valorização da


sociedade ao ter. Essa sociedade compreende o indivíduo apenas pelo que ele
tem materialmente, não se importando, muitas vezes, como tais recursos são
adquiridos. No livro Medo da Vida, o psicólogo Alexander Lowen faz comen-
tários pertinentes sobre a formação do homem moderno na sociedade atual,
segundo as hipóteses de Erich Fromm. Lowen nos diz que “[s]omente na
medida em que desativarmos o modo ter, quer dizer, não-ser – isso é, parar de
buscar a segurança e a identidade aferrando-nos ao que temos – é que pode
emergir o modo ser” (FROMM, 1976, apud LOWEN, 1986, p. 96).
De acordo com Fromm, os dois termos – ser e ter – representam duas
atitudes diametralmente opostas perante a vida. O modo ter baseia-se em re-
lacionamentos possessivos.
Este modo desenvolveu-se a partir da propriedade privada, do poder
e do lucro, dependendo desses fatores. Seu foco incide sobre o indi-
víduo ao invés de sobre a comunidade. O modo ser, por outro lado,
fundamenta-se no amar, no dar, e em relacionamentos compartilha-
dos. Nesse modo ser, a pessoa encontra sua responsabilidade para
com a comunidade (FROMM, 1976, apud LOWEN, 1986, p. 96).

Lowen complementa e faz também o seguinte prognóstico sobre o


homem moderno:
Será destino do homem moderno, ser neurótico, ter medo da vida?
Sim, é a minha resposta, se por homem moderno definirmos o mem-
bro de uma cultura cujos valores predominantes sejam o poder e o
progresso. Uma vez que são estes os valores que assinalam a cultura
ocidental do século vinte, decorre que toda pessoa criada na mesma
é neurótica (LOWEN, 1986, p. 12).

Essas características são bem expressivas na forma exploratória e des-


respeitosa da utilização da natureza, onde se produz e se extrai, muitas ve-
zes, além do necessário para a sociedade. Essa atitude pode estar baseada na
crença de uma ciência, e de sua tecnologia, que tudo pode fazer diante de
alguma catástrofe ou emergência. De acordo com Hutchison (2000), existe
uma fé na capacidade infinita da criatividade humana, na engenhosidade e
na inovação tecnológica para a superação de todos os potenciais obstáculos
que poderiam surgir de uma mudança ambiental drástica. Infelizmente não
é bem assim. Inúmeros acontecimentos naturais ao longo da história já testa-
ram a fragilidade dessa teoria, dessa visão de mundo, apesar de continuar se
perpetuando na Escola essas concepções espontâneas sobre ciência, cientista

92
Astronomia no Ensino Médio

e tecnologia, persistindo uma ideia de que a ciência é uma verdade acabada,


sempre certa e que são os cientistas pessoas bastante exóticas, tendo capaci-
dades quase excepcionais e especiais. Encontra-se na tabela abaixo, de Pozo
e Crespo (1998), um diagnóstico de como os estudantes se põem diante da
ciência, uma vez que ela é ensinada dessa forma.
“Algumas atitudes e crenças inadequadas mantidas pelos alunos com
respeito à natureza da ciência e sua aprendizagem” (POZO; CRESPO, 1998,
p. 21, tradução nossa):

Tabela 1*
– Aprender ciências consiste em repetir da melhor forma possível o que explica o
professor em aula.
– Para fazer ciências é melhor não tentar encontrar tuas próprias respostas senão
aceitar o que diz o professor e o livro texto, já que está baseado no conhecimento
científico.
– O conhecimento científico é muito útil para trabalhar em laboratório, para
investigar e inventar coisas novas, mas não serve para nada na vida cotidiana.
– A ciência nos proporciona um conhecimento verdadeiro e aceito por todos.
– Quando sobre um mesmo fato há duas teorias, e que uma delas é falsa: a ciência
acabará demonstrando qual delas é a verdadeira.
– O conhecimento científico é sempre neutro e objetivo.
– Os cientistas são pessoas muito inteligentes, mas um tanto estranhas, que vivem
trancadas em seus laboratórios.
– O conhecimento científico está na origem de todos os descobrimentos tecno-
lógicos e acabará por substituir a todas as outras formas de saber.
– O conhecimento científico traz consigo sempre uma melhora na forma de vida
das pessoas.
* Fonte: Pozo e Crespo (1998), p. 21, tradução nossa.

Essas atitudes e crenças inadequadas trazem pelo menos duas conse-


quências. A primeira é não olhar a fragilidade do planeta, a crise ecológica e
ambiental gerada pelos excessos, ora do consumo das reservas naturais, ora
dos resíduos nela depositados, uma vez que há uma supervalorização das ca-
pacidades da ciência para, como expresso anteriormente, tirar-nos de situa-
ções mais complicadas. Dessa forma, o sentimento ecológico distancia-se de
sua real necessidade e alheia as pessoas de um compromisso ou necessidade
de preservação ambiental, que poderia dar sentido norteador para jovens
estudantes. Outra consequência é desestimular o próprio estudo da ciência,

93
Gilvana Benevides Costa Fernandes

uma vez que é vista como autossuficiente, feita por pessoas com capacidades
quase excepcionais e construída unicamente de acertos. “Essa perda de sen-
tido do conhecimento científico não só limita sua utilidade ou aplicabilidade
por parte dos alunos, senão também seu interesse ou relevância” (POZO;
CRESPO, 1998, p. 21, tradução nossa).
Assim, frente a esse complexo quadro, é salutar pensar na educação
como um processo capaz de recuperar a saúde emocional, psicológica, social
e ambiental dos indivíduos na sociedade moderna, que é tão carente de ritu-
ais simbólicos de passagens os quais inserem os jovens na responsabilidade e
no convívio de sua comunidade. Neste sentido,
[a]s preocupações contemporâneas, em muitos países industrializa-
dos, de que as crianças (e principalmente os adolescentes) não pos-
suem um senso claro de direção e propósito na vida podem estar re-
lacionadas à falta de um papel claramente definido para as crianças e
adolescentes na sociedade contemporânea. Em muitas culturas, ritos
de passagem – atos ou eventos específicos que marcam a transição de
um estágio para outro da vida – servem para salientar a importância
das conquistas na infância e na adolescência e favorecem a indicação
do papel ou lugar da criança na sociedade (HUTCHISON, 2000,
p. 82).

Entendendo a educação como um processo social que capacita qua-


lidades nos envolvidos, é pertinente perguntarmo-nos que qualidades são
essas frente à sociedade atual que temos. Para tanto, é necessário compreen-
dermos a Escola como a maior instituição social responsável pela educação
da nossa sociedade, uma vez que pelo menos o Ensino Fundamental nela é
obrigatório em nosso país, o que faz com que grande parcela da população
passe por essa instituição.
Devemos também entender a Escola e a sua ligação com a sociedade
que ela atende, pois no decorrer da história deparamo-nos com alguns mode-
los de escola e suas filosofias, ora conservadora tradicional, ora responsável
por uma formação técnica para atender a demanda do mercado que cada vez
mais se “mecanizava”, ora preocupada com o resgate e, sobretudo, com a pro-
moção das capacidades de aprender do ser humano pelo construtivismo.
A Escola e a sociedade travam um diálogo e escrevem um texto que
é interpretado pelo professor. Para que este não seja isento do seu papel, ele
deve ter claros os objetivos que visa alcançar e desenvolver as estratégias

94
Astronomia no Ensino Médio

pedagógicas para alcançá-los junto ao alunado. Objetivos que devem incluir,


além dos conceitos e informações de uma determinada disciplina e dos
valores de conduta social, a atual necessidade de se desenvolver o aprender
a aprender continuamente. De outra forma, não é possível pensar em Escola
sem perceber a sociedade em que ela se insere, como também ainda não é
possível pensar na educação de uma sociedade que não utilize a Escola como
um mecanismo de formalização dos saberes desenvolvidos ao longo da
história.

2 INTELIGÊNCIAS MULTIPLAS E HOLISMO NO ENSINO


DE ASTRONOMIA NO NÍVEL MÉDIO
2.1 As inteligências múltiplas

Em 1979 a Fundação Bernard Van Leer, grupo filantrópico holandês,


convidou o norte-americano Howard Gardner para investigar o potencial
humano. Esses estudos levaram à criação do Projeto Zero de Harvard, que
serviu como apoio institucional para a teoria das Inteligências Múltiplas. Essa
teoria reconhece o ser humano como provido de oito diferentes inteligências
que promovem a interação do indivíduo com o conhecimento e com a socie-
dade que o cerca. As inteligências são capacidades cognitivas e foram clas-
sificadas em: Linguística, Lógico-Matemática, Corporal-Cinestésica, Musi-
cal, Interpessoal, Espacial, Intrapessoal e Naturalista. Além dessas, estuda-se
ainda uma possível nona inteligência, que seria a Existencial. Cada indivíduo
tem todas as inteligências, as quais se apresentam em diferentes proporções,
logo, uma pessoa pode ter mais facilidade para aprender usando mais algumas
delas do que outras.
O reconhecimento dessas várias inteligências como necessárias para o
aprendizado, faz com que tenhamos, como educadores, de perceber a plura-
lidade que existe em uma sala de aula e na preparação de atividades docentes
das mais variadas formas possíveis para que se possa atingir o maior número
de estudantes1. Tradicionalmente, a escola se apoia nas inteligências linguís-
tica e lógico-matemática para desenvolver todas as diferentes disciplinas, seja
biologia, artes, matemática, física, literatura, etc. Se o indivíduo possui outras

1 Para aplicações dessa teoria em sala de aula, vide, e.g., Armstrong (2001).

95
Gilvana Benevides Costa Fernandes

inteligências que também o permitem aprender, é importante que o profes-


sor reconheça que nem todos os alunos vão aprender apenas pela exposição
linguística do conteúdo, mesmo que esteja falando em bom português e que
esteja na disciplina de Língua Portuguesa! Além das inteligências linguística
e lógica-matemática que, sem dúvida, são válidas e que utilizamos para to-
das as disciplinas, o professor deve procurar ou criar atividades didáticas que
possam incluir algumas das outras inteligências. Assim, o uso de outras inte-
ligências pode favorecer a aprendizagem nos alunos que não possuem essas
duas inteligências mais exploradas como prioritárias, apesar de poderem ser
desenvolvidas.
Ao perceber que a forma tradicional de ensino apoia-se quase exclusi-
vamente apenas nas duas primeiras inteligências destacadas, isso permite-nos
refletir sobre o “fracasso” escolar dos estudantes como sendo consequência,
em parte, do ensino e da persistência no uso dessas inteligências, que muitas
vezes o aluno pode não dominar ou ter dificuldade em atingi-las. Portanto,
exceto nos casos de patologias que podem acarretar uma real dificuldade de
aprendizado do aluno, devemos evitar rotular de bons ou maus os estudantes
antes de se ensinar o conteúdo com base em mais de uma ou duas inteligências.
Isso não significa repetir uma aula de oito ou nove maneiras diferentes,
mas, por exemplo, trabalhar os conteúdos do bimestre com atividades que
contemplem o maior número de inteligências possíveis. É com base na teo-
ria das inteligências múltiplas que podemos também reinterpretar os “maus”
comportamentos dos estudantes, que tanto nos afeta enquanto professores,
tais como: a distração, a conversa, os desenhos, as brincadeiras paralelas, etc.
Tais comportamentos não necessariamente expressam falta de motivação
pessoal deles para os estudos ou para as aulas, mas são essencialmente um in-
dicativo de que em nossa prática docente poderíamos contemplar momentos
para a utilização de inteligências como a intrapessoal, interpessoal, corporal-
cinestésica, ou outras – habitualmente menos, ou nada, exploradas –, pois
elas podem ser usadas como ferramentas úteis para também se trabalhar o
conteúdo disciplinar específico exigido pelo programa.
Para um efetivo ensino que leve em conta as inteligências múltiplas,
é preciso, entre outras coisas, que se mude a concepção de aulas no ensino
médio. Atualmente, as aulas estão excessivamente voltadas para o conteúdo e
quase não há momentos de reflexão sobre valores da sociedade. Isso, muitas
vezes, é traduzido pelos estudantes na sua recorrente pergunta: “para que eu

96
Astronomia no Ensino Médio

preciso disso?”, tão comum na sala de aula e que reflete a distância entre o
que se aprende na escola e o que se usa na vida. É necessário que o professor
perceba que incluir outras inteligências não implica em falta de controle da
turma ou de domínio de conteúdo. É importante também o diálogo entre
o professor, a escola e os pais, para que a metodologia empregada não seja
confundida com falta de objetividade. As aulas têm momentos de exposição
de conteúdo, da maneira tradicional que conhecemos, mas há também que
se criar uma cultura onde seja possível, através de atividades lúdicas e cria-
tivas, trabalhar de modo amplo e integrado o conhecimento do programa.
Isto porque, para alguns estudantes, momentos de reflexão e de vivência in-
trapessoais, cinestésica, etc. são mais que importantes, são essenciais para a
aprendizagem.
Dessa forma, é inevitável que questionemos a respeito da cultura do
vestibular, que se tornou o eixo norteador no ensino médio. E não estamos
falando aqui em qualidade, no sentido em que muitas vezes a escola tem mui-
ta “qualidade” no oferecimento de recursos para que o aluno consiga a apro-
vação no vestibular. Referimo-nos à ideologia, bem como aos reais valores
que motivam as escolas e que encontramos na grande maioria delas. Esses
valores são, na verdade, os comandos da nossa sociedade de consumo, que
se baseiam no materialismo e no individualismo como quase única forma de
existência possível. Tais valores são agressivos quanto à utilização dos recur-
sos da natureza, os quais, por outro lado e reforçando a mentalidade mencio-
nada, apesar de explorados em grande quantidade, não são distribuídos de
forma justa entre os indivíduos. Assim, os defensores desses valores, mesmo
percebendo a gravidade da crise ambiental, apostam sempre na possibilidade
de construção de uma solução tecnológica para tal crise, pois são valores que
se apoiam no positivismo e no cientificismo, pressupondo (paradoxalmente
sem prova científica disto) que esta visão de mundo nos levará sempre para
um estágio mais evoluído de sociedade e que nos salvará desse quadro de
destruição da natureza.
Essa ideologia impede que se perceba que devemos criar e incentivar
outros hábitos e outros comportamentos mais eficazes para cuidar da nature-
za. Os valores como respeito, responsabilidade ou cooperação são mascara-
dos pelo excesso de competição, que é fortemente estimulada nestes últimos
anos de educação para os jovens. Dessa forma, o combate de um ensino volta-
do para o vestibular é o combate de hábitos e comportamentos materialistas,

97
Gilvana Benevides Costa Fernandes

individualistas e competitivos que estão cada vez mais arraigados em nossa


sociedade atual, embora de modo inconsciente pela maioria, bem como o
alerta para uma forma mais eficiente de preservar a natureza.
É necessário também perceber que há bastante a ser feito para se che-
gar a um ensino que use outros aspectos das inteligências, pois estamos imer-
sos em uma série de estruturas estabelecidas e viciadas que devemos quebrar.
De fato, não faltam dificuldades para se trabalhar com as inteligências múlti-
plas no ensino médio, seja porque os professores não receberam e, sobretudo,
não vivenciaram em sua formação acadêmica aulas com o objetivo de utilizar
a pluralidade das inteligências nas suas práticas pedagógicas, seja pelo fato de
os educadores não receberem o devido reconhecimento financeiro pelo seu
trabalho em nosso país, seja porque mudar as estratégias de ensino implica
também um investimento de tempo e uma reacomodação da prática peda-
gógica e da avaliação, seja pela comodidade de se permanecer com o mesmo
estilo de aula, seja por se creditar na falta irreversível do interesse e da mo-
tivação dos estudantes, seja pelo medo da perda de controle sobre o grupo
de alunos, seja mesmo por não se refletir sobre a propagação e reforço dos
valores de competição e individualismo no ensino médio etc.
Todos esses elementos que destacamos compõem parte da nossa re-
alidade docente que encontramos à nossa frente, a qual não se deve utilizar
como desculpa para se evitar acrescentar elementos diferentes dos que o pro-
fessor já utiliza em suas aulas para melhorar a compreensão da turma sobre
um determinado assunto. Afinal, como membro da sociedade e mais ainda
como educador, o professor não pode se excluir do compromisso social que
a profissão exige. Ao contrário, esse quadro só evidencia a urgência de as-
sumirmos o nosso papel como educadores para combater a propagação de
uma visão deturpada em nossa sociedade. Se se quer uma postura diferente
dos governantes frente à categoria dos professores, seja na hora da formação
acadêmica seja na hora da remuneração mais justa, deve-se procurar manei-
ras mais eficientes de se reivindicar e pedir esses e outros direitos, e não ser o
professor mais um elemento a contribuir para a deterioração da educação e,
consequentemente, da sociedade. Assim, não se deve descontar nos alunos as
dificuldades pessoais ou mesmo da profissão que se vem passando no Brasil.
Esse quadro nos leva à inevitável conclusão de que precisamos de um
novo modelo de ensino nas escolas e, principalmente, um novo modelo de
Educação. Um modelo que contribua para a reflexão dos valores consumis-

98
Astronomia no Ensino Médio

tas, individualistas, competitivos e materialistas que se tem na sociedade atu-


al e que faz com que se trate a natureza ora como um grande almoxarifado de
recursos, ora como depósito de detritos. É necessário que se perceba as sutis
relações entre as partes que compõem o todo social e ambiental e que não
se irá longe enquanto se mantiver um comportamento fragmentador diante
de problemas complexos. Qualquer assunto que for ensinado aos estudantes
deve ser percebido como uma oportunidade de alertá-los para o seu compor-
tamento no mundo e de promover uma real educação de respeito, cooperação
e preservação da cultura e da natureza. É importante perceber que a saúde do
indivíduo é a saúde do planeta e que temas aparentemente distantes possuem
uma relação maior e mais significativa entre si. No caso deste capítulo, falar
em ensino de astronomia e não falar sobre história, sociedade, preservação da
natureza ou conhecimento científico seria tratar superficialmente um tema
que por si só é importante para o ser humano: a nossa origem.

2.2 O ensino holista

Identificamos o projeto com uma abordagem holística para a educa-


ção, mas primeiramente é necessário definir um conceito para holismo, pois
comumente essa palavra ou é mal interpretada, ficando como simples sinô-
nimo de união de duas ou mais disciplinas senão duas habilidades (escrita e
linguagem, por exemplo, na disciplina de Língua Portuguesa) ou é rotulada
de esotérica e mística e, se útil, é apenas para uns poucos iniciados. Qualquer
uma dessas definições leva-nos para a perda do seu caráter maior, a de uma
filosofia que salienta a busca de significado e de finalidade nos mundos físico
e cultural que circundam os estudantes. O pesquisador David Hutchison nos
evidencia, entre outras coisas, que
[o]s proponentes holísticos enunciam uma abordagem multiface-
tada em relação ao ‘saber’, que incorpora uma variedade de tipos
de consciência (por exemplo, intuitiva, cinestésica e espiritual). A
posição holística aborda diretamente o papel do mito, das histórias
e da tradição na formação da identidade e da manutenção de uma
noção de significado e finalidade durante a vida (HUTCHISON,
2000, p. 59).

Portanto, devemos verificar com profundidade e sem preconceitos as


propostas para uma Educação baseada na filosofia holística, como promove-
dora de elos e de sentidos mais profundos da existência humana em substitui-
ção à Educação fragmentária competitiva que temos na maioria das escolas.

99
Gilvana Benevides Costa Fernandes

A visão holística da Educação surgiu como proposta diante das ques-


tões ecológicas deixadas em aberto pelas filosofias tecnocrata e progressista.
A primeira delas, a filosofia tecnocrata, aparece frente às urgências da socie-
dade do século XIX e XX e visa adequar o currículo escolar às necessidades
do comércio e da indústria. Essa filosofia vê a natureza ora como um grande
reservatório, ou almoxarifado, de recursos ilimitados para a nossa sociedade,
ora como um grande depósito de lixo e detritos que essa sociedade produz e,
por mais que esteja ciente da grave crise ecológica que o mundo passa, acre-
dita na capacidade infinita de se produzir tecnologia para tirar-nos dessa crise
– em algum dia indeterminado no futuro, sempre pressupondo também que
haverá tempo para isto, antes que processos mais drásticos e danosos se ins-
talem definitivamente.
Essa filosofia tecnocrata fundamenta um ensino que não reflete sobre
a necessidade de mudar de modo significativo nosso estilo de vida consumis-
ta ou nossa relação predatória para com a natureza, e que tampouco vê que
essa tecnologia degrada de maneira irreversível o meio ambiente. Essa visão
desnudou a natureza dos seus aspectos sagrados da Mãe Terra, provedora de
alimentos e proteção, e substituiu por uma visão deturpada, a de fornecedora
de recursos a serem utilizados e explorados para fins econômicos, o que levou
a uma má utilização dos seus recursos. Ao retirar os aspectos do sagrado da
terra, a cultura ocidental permitiu a exploração e o estabelecimento do siste-
ma econômico capitalista. Afinal, somente a ausência de um sentimento mais
profundo de respeito para com a natureza garantiu a viabilização da explora-
ção agressiva desta nos últimos três séculos, no mínimo.
Os enfoques materialista, racionalista e utilitário da natureza, gerados
pelo advento da Era Moderna, são passados sem um filtro crítico pela filosofia
tecnocrata. Destacamos três pontos em relação aos quais os educadores de-
vem estar atentos, para que não reproduzamos ou perpetuemos essas visões
em sala de aula para os estudantes, e possamos promover uma compreensão
que vá além da soma das partes. Esses pontos seriam:

1. A ideia de tempo e progresso:


A ideia de que caminhamos sempre para um estágio de desenvolvi-
mento maior e melhor do que o que se tem antes reforça uma visão
de que criaremos uma tecnologia para enfrentar a crise ecológica
que vivemos, e nos faz esquecer que ela própria causa desequilíbrios

100
Astronomia no Ensino Médio

entre as sociedades e que durante milhares de anos as culturas hu-


manas, inclusive as que engendraram a ocidental ora dominante, não
necessitaram dessa tecnologia.
2. Reducionismo, fragmentação e compartimentação:
O pressuposto de que o mundo será mais bem compreendido através
de suas partes, teve origem na revolução científica dos séculos XVII
e XVIII e resultou na visão mecanicista do mundo, por se apoiar na
experimentação científica de Bacon e na concepção newtoniana-
cartesiana da realidade. O reducionista pretende estabelecer poucas
leis para explicar a maioria dos fenômenos, mas é pouco aplicável
em situações complexas. A fragmentação separa as partes do todo
para entendê-las localmente, mas perde o entendimento de que o
todo é diferente, e em geral muito maior, do que a soma das partes,
ignorando as relações. A compartimentação classifica as partes do
todo e ao invés de integrar, coloca-as em categorias diferentes; assim,
vemos diferenças entre ser humano e natureza e é isso que nos leva
a separarmo-nos dela. Essa visão também nos leva a soluções frag-
mentadas diante de questões complexas.
3. Natureza como sendo um recurso explorável:
Esta concepção afasta-nos de uma relação mais equilibrada e nos
coloca diante da crise ambiental e ecológica iminente.

Estes três pontos – que funcionam como um atrativo, em geral atuan-


do no nível inconsciente nas pessoas e, o que é mais delicado, nos educado-
res – se prestam a perpetuar um estado de coisas. Longe de expressarem uma
inevitabilidade de como as coisas são no mundo, eles agem como preceitos
que espelham uma visão de mundo – estilo de vida, mentalidade e padrão de
consumo – que se quer preservar, literalmente a qualquer custo.
Dessa forma, é salutar refletir sobre o alerta de que
[o] mundo industrializado, contudo, não pode fugir para sempre das
conseqüências da degradação ambiental. Eventualmente, à medida
que os efeitos da crise ecológica intensificam-se, os desequilíbrios de
poder entre nações industrializadas e nações em desenvolvimento
provavelmente não serão suficientes para proteger sequer os cida-
dãos mais ricos dos conflitos sociais vividos agora pelos países em
desenvolvimento (HUTCHISON, 2000, p. 133).

E com isso reconhecer as limitações desse ensino tecnocrático, pois a


Educação pode promover a participação dos indivíduos em uma sociedade

101
Gilvana Benevides Costa Fernandes

democrática ao passo que o ensino tecnocrata nos impulsiona para a indús-


tria e o comércio, onde devemos maximizar os lucros e minimizar as contri-
buições para o bem público.
Como reação diante da natureza autoritária e antidemocrática da es-
colarização da educação tradicional tecnocrata, sobretudo em relação ao es-
casso papel social que a educação pública pode exercer para um maior esforço
à vida democrática e comunitária nas sociedades, surgiu no final do século
XIX, sob liderança do educador Jonh Dewey e tendo seu ápice nas décadas
de 20 e 30 do século passado, a filosofia progressista. Essa filosofia se apoia na
ideia de que o conhecimento de mundo é construído através das questões
que os indivíduos se colocam para conhecer esse mundo.
Dessa forma, a Educação se centra no estudante e na sua forma cog-
nitiva de interpretar o mundo a sua volta. Assim, o papel do professor não é
o de apresentar conteúdos e sim de proporcionar, facilitar, o maior número
de experiências e provocações para que os estudantes despertem suas per-
guntas e seja o professor, novamente, que oriente caminhos para se buscar as
respostas.
As críticas feitas à filosofia progressista são em relação aos aspectos
sociais e ambientais que afligem a nossa sociedade, pois o experimentalis-
mo, ferramenta dessa filosofia, tem também fundamento em características
de uma sociedade que valoriza excessivamente o conhecimento científico. O
próprio termo progressista se apoia em uma fé no progresso econômico para
o aumento da qualidade de vida e solução dos problemas graves da socieda-
de. Essa filosofia também não critica a sociedade consumista que leva a um
desgaste da natureza, logo, não alerta quanto à necessidade de mudança para
novos hábitos mais saudáveis. Atualmente, essa filosofia tem sido usada quase
como técnica didática pela filosofia tecnocrata.
A fé experimentalista junto com a filosofia progressista talvez não se-
jam suficientes para sairmos da crise educacional, que é também uma crise
ambiental. Há pontos problemáticos como o do currículo ser ou não um re-
flexo dos problemas sociais e políticos do momento ou se eles deveriam ser
função da necessidade da criança. A adoção do experimentalismo científico
no tratamento do mundo pode vir a desvalorizar conhecimentos que utilizam
outras inteligências e de sociedades que não se enquadram nesse sistema –
tidas como atrasadas –, como, neste caso, na verdade, vemos ocorrer com fre-
quência. Quando, o que se passa, no fundo, é que essas sociedades constroem

102
Astronomia no Ensino Médio

seus conhecimentos com base em outras epistemologias, tão válidas quanto a


científica, embora incomensuráveis com esta.
Essas outras sociedades também representam uma ameaça para a pos-
tura do experimentalismo científico, por sustentarem (e com êxito) outras
formas de existência no planeta, em geral bem mais equilibradas que a nossa.
Isto conflita com a visão de mundo (universalista, única) que o Ocidente quer
impor a todas as culturas. Assim, há uma hostilidade para com culturas não
científicas, rotuladas de atrasadas ou primitivas, com um sentido inequivoca-
mente pejorativo associado, de discriminação e exclusão, o que leva ao des-
merecimento de toda a criação de cultura humana não científica e à exaltação
do método científico. Não queremos com isso desvalorizar os méritos que o
conhecimento científico trouxe para a nossa sociedade, mas colocá-lo frente
a outros conhecimentos tão importantes quanto, mas que, por serem muitas
vezes inverificáveis com as ferramentas da ciência atual, são inferiorizados.
Pelo que foi dito anteriormente, as filosofias tecnocrata e progressista,
apesar de terem abordagens diferentes quanto à metodologia de ensino e à
aprendizagem, têm em comum a não crítica dos aspectos consumistas da nos-
sa sociedade. Logo, promovem o conhecimento sem a preocupação de uma
visão maior de preservação e de novos hábitos sociais. E também:
Ao invés de simplesmente preservar tradições de vida que têm re-
produzido as mesmas condições econômicas do passado, as escolas,
segundo os proponentes de ambas as visões [tecnocrata e progres-
sista], exercem um papel essencial em termos de introduzirem a pro-
messa de uma nova era (HUTCHISON, 2000, p. 16).

É importante salientar que uma atitude consumista não se evidencia


no simples ato de comprar, mas na maneira que se utilizam os recursos da na-
tureza e mesmo no comportamento de ficar sujeito a todo tipo de sentimen-
to, o que não é interessante, pois existem comportamentos que não visam a
um compromisso social maior.
A importância de adotarmos uma filosofia holística é a de realmente
entendermos que somos responsáveis pela natureza, que a astronomia pode
nos levar a esse contato – desde que abordada com a perspectiva principal de
conscientização e concepção ambiental integradora que aqui defendemos – e
que esse é um canal privilegiado para introduzirmos questões sobre valores e
responsabilidade sociais.

103
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Devemos perceber a grande importância das sociedades nativas em


resolver o que realmente é de valor para essa vida.
O holismo, enquanto uma tradição ecologicamente positiva, foca o
indivíduo e seu desenvolvimento pessoal e espiritual, e
[u]ma abordagem verdadeiramente holística do ensino e da aprendi-
zagem não abandona o foco tecnocrático sobre habilidades básicas,
nem ignora o envolvimento do educador progressista com o desen-
volvimento social de cada criança. Ao contrário, aspectos significati-
vos das filosofias tanto tecnocrata como progressista são integrados
em uma visão holística de educação (HUTCHISON, 2000, p. 67).

A educação holística valoriza aspectos como a intuição, a metáfora,


a narrativa e a espiritualidade para promover a aprendizagem. A intuição se
passa, entre outros momentos, quando o estudante está imerso em um tra-
balho criativo. O processo metafórico é aquele que estabelece pontes entre
conceitos aparentemente diferentes, descobrindo novas relações. A narrativa
serve, entre outras coisas, para socializar as construções de conhecimento fei-
tas pelos estudantes.
Por fim, a espiritualidade é apresentada sem dogmas, e sim como for-
ma de interpretar a realidade. Além dessa necessidade de se mencionar os
aspectos espirituais e de não simplesmente ignorá-los, como se faz normal-
mente em uma abordagem tecnocrata, a abordagem holística promove o de-
senvolvimento das outras inteligências que nos compõem segundo a teoria
das Inteligências Múltiplas.
Dentro da tradição holística, existe um reconhecimento de que todos
os fenômenos existem interligados uns aos outros e não podem ser comple-
tamente entendidos, exceto em relação uns com os outros. Dessa forma, é
difícil não perceber que a saúde e bem-estar do ser humano estão intrinseca-
mente relacionados à saúde do planeta e dependem dela, que precisam estar
ligados também às nossas experiências sagradas, enraizadas dentro de uma
cosmologia biocêntrica, em vez de antropocêntrica.

2.3 Repensando a astronomia no ensino médio

Em consonância com o que foi exposto, o presente capítulo vem


discutir alguns elementos importantes que, espera-se, possam contribuir para
a formação de indivíduos mais integrados consigo mesmos e com a comu-
nidade e o ambiente que os cercam. Para isso, desenvolvemos atividades

104
Astronomia no Ensino Médio

didáticas2 para o ensino de astronomia no nível médio que usam as “deixas”


sugeridas por questões filosóficas do tipo: “Quem somos?” “Como surgiram
os seres humanos?” “Qual nosso papel na vida?” “Como tudo surgiu?” “O
universo acabará?” etc., para introduzir conceitos que vão além da simples
utilização das Leis de Kepler e da Lei da Gravitação Universal. Aquelas são
questões importantes que os estudantes trazem consigo e que não só devem
ser tratadas em sala de aula, mas também ser usadas para discutir noções de
respeito às diferenças entre as culturas, da percepção do conhecimento sobre
astronomia como resultado de uma produção mítica, filosófica e científica do
pensamento humano e de perceber o céu como uma representação simbólica
cultural.
Para isso, ministrei um conjunto de aulas em um curso de capacita-
ção para professores de várias disciplinas do ensino médio na Escola Estadual
Professor Francisco Ivo Cavalcanti, Natal/RN3, em 2004, onde o enfoque era
o de abrir caminhos para a utilização de outras inteligências que não exclu-
sivamente a lógico-matemática, já tão repisada no ensino tradicional. Assim,
ao propormos àqueles professores que representassem a origem do universo
através de desenhos, ao discutirmos com eles um texto que refletisse sobre
como outras culturas encaram essa questão, ao fazermos com que aqueles
professores vivenciassem experiências teatrais, entre outras práticas, quise-
mos trabalhar outros níveis do ser humano, que muito contribuem para a
aprendizagem e formação, mas que infelizmente não encontram espaço den-
tro do ensino de ciências nas escolas.
Com tal proceder, acredita-se que se pode estabelecer um elo entre o
conteúdo de astronomia com as questões mais existenciais que carregamos.
Neste sentido, é importante perceber-se também que responder a essas ques-
tões sobre origem do universo, do mundo, da vida etc., é um elemento moti-
vador para que os alunos estudem astronomia:

2 Nossas primeiras incursões na criação, experimentação e análise de práticas diferenciadas para o re-
ferido ensino, segundo a abordagem aqui proposta, estão registradas, em parte, em Costa e Jafelice
(2001; 2003). Aquelas práticas foram bastante diversificadas e aprofundadas e sua consolidação está
exposta em Costa (2005), também disponível através do sítio: http://www.posgraduacao.ufrn.br/
ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”]. Neste capí-
tulo sintetizamos exemplos e reflexões essenciais daquela exposição, visando deixá-la mais objetiva e
útil, sem perder sua autoconsistência.
3 Esse foi um curso realizado dentro do projeto “Educação em Ciências através de Observatórios Vir-
tuais” – da Fundação Vitae, São Paulo/SP. Elaboramos e implementamos uma série de atividades e
vivências para esse curso, as quais explicitamos neste capítulo.

105
Gilvana Benevides Costa Fernandes

[q]uando contada sob uma perspectiva narrativa, de um modo par-


ticipativo que evoque a inteligência criativa da criança [estudante],
essa história [da origem do universo] não apenas tem o potencial para
engajar a imaginação, mas também pode satisfazer uma necessidade
interna da criança de descobrir seu próprio crescimento pessoal e
seu desenvolvimento para ser uma extensão da história do universo.
Durante o mais mágico e eloqüente dos momentos, talvez durante
um período de intensa atividade criativa ou um momento calmo de
reflexão, as histórias do próprio indivíduo e do universo podem ser
ligadas intrinsecamente em um único drama contínuo que abrange
as origens comuns de cada um (HUTCHISON, 2000, p. 154).

Vendo que o ensino de astronomia tem uma grande receptividade pe-


los estudantes em relação a essas questões existenciais, podem-se trabalhar
vários assuntos correlacionados, como o de história da ciência, as visões mi-
tológicas e filosóficas sobre a origem da criação, fazê-los refletir, entre outras
coisas, sobre o que é ciência e quais as consequências dessa ciência na socie-
dade, além de buscar desenvolver o respeito a outras formas de expressões
culturais.
Na apresentação dos modelos geocêntrico e heliocêntrico, por exem-
plo, o professor deve ter o cuidado de perceber cada um deles como a produ-
ção intelectual da época em que surgiram. Logo, se deve evitar a ideia positi-
vista de que sempre progredimos para um estágio melhor do que o anterior
ou ter clareza sobre o que se pode chamar de “melhor” diante de tantas desi-
gualdades e injustiças sociais. Devemos destacar que o modelo geocêntrico
era um bom modelo científico e que foi substituído pelo heliocêntrico pelo
fato de já não explicar com tanta eficiência os fenômenos observados e me-
didos na época. Mas ele, o modelo geocêntrico, surge da nossa experiência
direta com o céu, afinal, para nós – que vivemos na Terra – é o Sol e as estrelas
que se movem no céu, com o passar das horas (os astros, na verdade, é que
nos permitiram, historicamente, construir essa noção de medição de tempo).
Nós, contudo, não sentimos a Terra se mexer de nenhuma forma (quanto aos
movimentos habitualmente referidos como de rotação e de translação). Há
muitos pesquisadores que afirmam que essa mudança envolvendo o centro
do sistema solar mexeu com o centro do ser humano; este já não é a dimen-
são, a referência, de todas as coisas que o cercam.
Naquelas aulas, demos uma atenção especial ao tratamento das con-
cepções de universo, pois normalmente se relaciona sua criação ora com
aspectos científicos ora com aspectos divinos. Longe de ser um indicativo

106
Astronomia no Ensino Médio

de que os alunos não entenderam as explicações sobre a teoria científica do


Big Bang nas séries anteriores, as Representações do universo (realizadas na
atividade 1) mais evidenciam a necessidade da explicação espiritual e como
ela caminha em paralelo com os conhecimentos científicos. Na verdade,
identificamos a utilização desses dois aspectos para o conceito do universo,
ou seja, o aluno se utiliza tanto do aspecto religioso quanto do aspecto
científico dependendo da pergunta a ser respondida. Se lhe é perguntado
“como o universo surgiu?”, muitos dos estudantes irão associar o modelo
científico do Big Bang para explicar a maneira da construção do universo. Mas
se lhe é perguntado “por que o universo surgiu?”, os estudantes recorrem às
explicações do tipo “Deus quis”.
O ensino de astronomia – quando implementado segundo uma abor-
dagem que prioriza um olhar humanista – nos possibilita discutir questões
profundas, necessárias e urgentes para uma melhoria da nossa sociedade e
[o] critério para dar-se valor à história do universo não está unicamen-
te em sua “correção” ou “incorreção”, julgadas sob uma perspectiva
ocidental, por exemplo, mas no grau em que dá a uma comunidade
uma visão funcional e ecologicamente sustentável do relacionamen-
to humano com outros seres humanos e com a comunidade da Terra
como um todo (HUTCHISON, 2000, p. 152).

Outro ponto que podemos deixar claro quando ensinamos astronomia


para os estudantes é o fato de a ciência ser construída em torno de modelos. Os
modelos não nos dão a verdade sobre a natureza. Algumas pessoas acreditam,
ou esperam, que eles sejam aproximações daquela verdade, porém, tampouco
isto pode ser provado que é assim de fato. Os modelos são, enfim, constru-
ções (humanas), representações. É uma resposta positiva da natureza frente a
uma pergunta do pesquisador, mas não lhe é permitido saber se a pergunta foi
bem elaborada nem se a resposta é uma cópia fiel da natureza. Ou ainda:
Os dados jamais estão livres da teoria, nem são ‘objetivos’ em si mes-
mos, mas constituem resultados do processo de interpretação social
do investigador. Tradicionalmente, fala-se sobre os dados como a pro-
va máxima da objetividade das teorias. Essa posição está baseada em
algumas suposições básicas e veladas na cultura dos cientistas, já que
presume a independência do objeto da investigação em relação ao in-
vestigador (VALSINER, 1987, apud HUTCHISON, 2000, p. 75).

Devemos deixar claro para os estudantes que o conhecimento sis-


tematizado, como o que é produzido nas várias ciências, lida com modelos

107
Gilvana Benevides Costa Fernandes

teóricos e que eles não são verdades absolutas, mas afirmações temporárias
baseadas em dados, em experimentos e também em intuição pessoal do pes-
quisador, que podem ser substituídos frente a outros fatos e dados e suas in-
terpretações. Quando um modelo é aceito pela comunidade, ele de fato ex-
plica muitas coisas, fecha pontos de teorias que estavam em abertos, prevê
outras situações de aplicação da teoria etc, mas, sobretudo, mexe em quase
todos (ou talvez todos) os nossos paradigmas sociais: artístico, emocional,
político, científico, econômico e religioso de nossa sociedade. Dessa forma,
não existem ganhos sem perdas nas substituições dos modelos. Contudo, a
ideologia positivista que temos – isto é, que apesar de sua eventual superação
no campo das discussões filosóficas, ainda atua fortemente em nossa cultu-
ra: mentalidade, currículos, cursos, posicionamentos, escolhas e valores – faz
com que pensemos que toda substituição e “evolução” são benéficas, o que é
verdadeiramente questionado na abordagem que propomos.
A questão de se a substituição de modelos sempre traz melhorias,
pode ser também analisada nas aulas de astronomia. Refletir sobre o fato de
que a tecnologia, a medicina, a fabricação de roupas e calçados e a produção
de comida avançam é uma realidade, mas também é fato que não acabamos
com doenças relativamente simples como a dengue, nem acabamos com a
fome e a miséria em muitas cidades brasileiras ou na África, por exemplo,
assim como também é uma realidade que os supostos avanços não chegam
para todos no mundo. Também é fato que presenciamos, estarrecidos, cenas
de violência que nos chegam pela mídia, que de tão chocantes perdem a na-
cionalidade, “aqui” ou “lá” são definições que parecem pouco importar nesses
tempos de globalização de economias. Assim, que tipos de melhorias estão
sendo considerados? Para quem essas melhorias têm sido benéficas? Essas e
várias outras questões desse teor podem ser trabalhadas, inclusive, dentro dos
Temas Transversais: Ética e Trabalho e Consumo.

3 NOVAS ATIVIDADES DIANTE DE UMA NOVA EDUCAÇÃO


3.1 Uma proposta para o ensino médio

Há algum tempo vem se questionando sobre o modelo e o papel da


Escola na sociedade atual, em grande parte por se perceber que existe um
certo descompasso entre o que se aprende na Escola e o que, de fato, a vida
real exige como conhecimento e informação. Na atual sociedade multifaceta-
da, complexa e desigual, as informações que recebemos pelas mídias são, na

108
Astronomia no Ensino Médio

maioria das vezes, mais interessantes, rápidas e coloridas do que as apresen-


tadas na Escola. Assim, devemos refletir sobre o papel da Escola como mera
reprodutora de informações monolíticas e perceber a urgência para que ela
se torne construtora de atitudes, valores e comportamentos sociais significa-
tivos nos jovens.
Dessa forma, a Escola deve assumir novos objetivos, entre eles o de en-
sinar formas que levem efetivamente o aluno a se tornar um leitor eficiente do
contexto social, político e cultural que o cerca. Vista desta maneira, a prática
docente é mais do que se atingir um conteúdo, mas capacitar o estudante com
habilidades, valores e uma verdadeira atitude que o permita desenvolver uma
capacidade de aprender a aprender que permaneça por toda a vida. Ou seja, o
educador deve aprender a agregar ao conteúdo verbal, procedimentos e atitu-
des que sirvam de ferramentas para os estudantes, para que eles possam utili-
zá-las no seu processo de aprendizagem, socialização e transformação social,
principalmente para aqueles que não irão seguir os estudos em uma formação
acadêmica – o que corresponde à enorme maioria da população brasileira.

3.2 As atividades4
3.2.1 Representações do universo
A primeira atividade quer constatar a hipótese de que a sociedade
ocidental moderna atual conseguiu de forma eficiente tirar o ser humano da
concepção do universo. Assim, apoiada no fato de os estudantes poderem
representar suas concepções espontâneas ou alternativas a esse respeito através
de um desenho, partiu-se para a eventual verificação daquela hipótese através
de uma atividade que consiste em entregar uma folha de papel ofício e lápis
de cor aos alunos e pedir para que eles representem o universo5. Como
resultado, obtivemos desenhos de estrelas, galáxias, planetas, satélites e, até
mesmo, naves espaciais.

4 Os interessados em discussões mais aprofundadas destas atividades, assim como da proposta deste
capítulo como um todo – incluindo fundamentações, conexões e críticas em relação aos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e aos PCN do Ensino Médio (PCNEM), em particular o alerta de que
por se apoiarem na filosofia progressista, os PCNEM ainda não completam a formação do indivíduo, já
que se ausentam frente às necessidades espirituais do ser humano – devem consultar Costa (2005).
5 Essa prática foi idealizada por Luiz Carlos Jafelice, e tem sido utilizada e divulgada por ele em cursos
de astronomia, desde 1994. Maiores comentários sobre a mesma podem ser encontrados em Jafelice
(2004). Ela está exposta mais em detalhe no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras, expressões cultu-
rais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro. Tal prática também foi reproduzida como uma atividade
na disciplina de História da Ciência, no mestrado profissionalizante, ministrada por Gilvan Luiz Bor-
ba, Arlete de Jesus Brito e Luiz Seixas das Neves junto ao PPGECNM/UFRN, em 2002.

109
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Da análise desse material chegou-se aos seguintes pontos básicos, que


devem ser tratados em sala de aula para que o aluno possa:
1. Perceber a sua forma intuitiva de ver o universo;
2. Alertar-se quanto à ausência de elementos humanos nos desenhos
(embora haja exceções);
3. Evidenciar para si mesmo que o universo foi associado ao Sistema
Solar;
4. Refletir se durante todo o processo histórico do ser humano houve
sempre essa concepção de diferenciar entre o universo e as pessoas;
5. Ver que alguns estudantes usaram uma interpretação religiosa, do
Gênese, e outros a concepção científica, do “Big Bang”, para repre-
sentar a mesma origem do universo;
6. Resgatar um sentimento mais integrador entre ele e o universo.

Esses, entre outros, são pontos fundamentais para a formação de in-


divíduos mais conscientes quanto à sua relação com o que está à sua volta,
seja com amigos, com a família, com a comunidade, com o meio ambiente
etc. Assim, essa atividade tem como objetivo despertar nos estudantes esses
temas, para envolvê-los nas demais atividades e discussões no decorrer do
curso. Logo, não se apresentarão conceitos e definições, apenas se evidencia-
rá quais concepções e ideias eles têm sobre o tema do universo.
Depois de terem desenhado, expõem-se os trabalhos para a turma,
para que todos vejam as demais produções. Em seguida, começa-se a fazer
questionamentos sobre os desenhos e o que o aluno quis representar com
essa ou com aquela figura na atividade. Esse processo dá conta do ponto bási-
co 1, e por fim verbalizar o que eles fizeram nos desenhos. O ponto básico 2 é
tratado com o questionamento direto sobre por que eles, ou a maioria deles,
não incluíram o ser humano nas representações, e, na sequência, evidenciar
o fato de que eles, ou a maioria, associaram o universo ao Sistema Solar –
ponto básico 3 (vide na Figura 1 um exemplo deste tipo de associação, de um
desenho feito por um dos professores-alunos na oficina que conduzimos em
nosso curso junto à Escola Estadual Francisco Ivo Cavalcanti).
Instaurado o conflito cognitivo, pergunta-se, então, como se deveria
conceituar o universo. Esse conceito deve partir, no máximo possível, deles.

110
Astronomia no Ensino Médio

Por fim, o professor mostra imagens de pessoas, de bichos, de galáxias etc.


para se construir a noção de que a palavra “universo” tem um conceito amplo,
que incluiu tudo o que se conhece. Aqui, deve-se deixar claro que será preciso
ampliar a noção de universo, que habitualmente traz a ideia de ser algo que
está apenas “fora” das pessoas (como as estrelas, as galáxias etc.), e perceber-
se que essa palavra também incluiu o “aqui”, o ser humano, os bichos, etc.,
logo, inclui o “dentro” de nós também.

Figura 1 – Exemplo de possível limitação do universo ao sistema solar, desenhado na oficina

Na sequência, trabalha-se o ponto básico 4, perguntando-se claramente


o que eles sabem ou o que acham sobre se a visão a respeito do universo tem
sido a mesma ou se mudou com o tempo. Alguns vão dizer que constelação
sempre esteve associada à palavra universo. O que é importante é que o pro-
fessor mostre que em algumas culturas o elo entre o ser humano e universo
não estava desfeito, ao contrário, havia toda uma cultura que os fazia conver-
girem. A atual diferença de concepção em nossa cultura ocidental surgiu com
a Idade Moderna e se intensificou com o pensamento científico, que buscou
sempre classificar e compartimentar as partes. Outras concepções autóctones
de universo, como nas indígenas, por exemplo, encontram-se inúmeros ritu-
ais que associam o homem ao cosmo.

111
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Outro fato interessante é o do ponto básico 5, o de perceber-se que


em alguns desenhos os estudantes, ao representarem a origem do universo,
ou partem para uma forma religiosa do Gênese ou partem para uma forma
científica do “Big Bang” (vide nas Figuras 2 e 3 um exemplo de cada um
desses tipos de representações, de desenhos feitos pelos professores-alunos
na referida oficina). Deve-se fazer com que os estudantes percebam que se
depararam com dois modelos diferentes que querem explicar a mesma coisa.
E agora, qual escolher? Deve-se também dar um tempo após uma pergunta
para que cada um possa se relacionar com o próprio conflito cognitivo e
refletir sobre ele.

Figura 2 – Exemplo de modelo científico do universo, desenhado na oficina

Apesar de delicado e polêmico, esse assunto pode e deve ser tratado


em sala de aula, desde que o professor perceba as diferenças entre o que o
conhecimento científico oferece e o que o conhecimento espiritual oferece
e, sobretudo, assuma sua função educadora e não eleja um lado. O conheci-
mento espiritual acerca da “origem do mundo” está vinculado às primeiras
respostas dos seres humanos ao questionamento de como tudo surgiu e não
cabe ao professor moralizar ao repudiar essa resposta. Ela deve ser separada
claramente do modelo científico, respeitando-se os campos de ações e signi-
ficações de cada uma.
Novamente ressalta-se que não é possível eleger um ou outro modelo,
pois, apesar de serem explicações para o mesmo questionamento, cada uma
tem seus métodos de investigação e construção, diferentes um do outro, e,
principalmente, cada uma responde a uma necessidade psicológica e emo-
cional do ser humano. Pode-se apenas esclarecer o quanto cada um pretende
contribuir para a compreensão do ser humano a respeito do surgimento do
universo, das limitações inerentes a esse tipo de indagação e que nossas ne-

112
Astronomia no Ensino Médio

cessidades como seres humanos não são inteiramente contempladas no ensi-


no tradicional das escolas.

Figura 3 – Exemplo de modelo religioso do universo, desenhado na oficina

É inquestionável a necessidade de se trazer as opiniões científica e es-


piritual para o contexto escolar, não para que se torne mais um tema polêmico
na escola, mas para que se evidencie que elas têm recursos diferentes e que vi-
sam chegar ao mesmo lugar: uma explicação sobre a origem do universo. Perce-
ber essa diferença nos remete ao respeito que devemos ter ao ouvir opiniões
diferentes das nossas e, principalmente, refletir sobre as implicações desses
diferentes pontos de vista na construção da nossa sociedade. Como quere-
mos deixar claro em nosso trabalho, não estamos preocupados apenas com os
conteúdos, mas também com as atitudes e os valores nos estudantes.
O ponto básico 6, pela pesquisa feita na disciplina de História da Ciên-
cia, onde se pôde comparar os modelos da origem do universo por estudantes
dos vários níveis (fundamental, médio e superior), foi interessante notar a
persistência de algumas informações, que, quando aprendidas nos primeiros
anos de nossas formações escolares, podem continuar sem retoques durante
toda a vida. Isso revela a importância de ensinarmos ciências, de um modo
geral, pensando na formação científica para um cidadão que não pretende

113
Gilvana Benevides Costa Fernandes

necessariamente desenvolver ciência. Logo, a grande responsabilidade de se


despertar, através da ciência aprendida na escola, valores importantes e fun-
damentais para a vida das pessoas em nossa sociedade, para que esse conheci-
mento possa desenvolver um sentido mais profundo e amplo de significados
com a vida.
Por fim, é feito o convite para que nos próximos encontros eles – i.e.,
os estudantes que estão vivenciando esse tipo de abordagem – tentem se li-
bertar um pouco de possíveis preconceitos, para que possam usufruir ativi-
dades futuras que querem aproximar, integrar na pessoa, os elementos que
foram soltos pelo ensino fragmentador e reconstruir a palavra “universo”. Es-
sas atividades serão principalmente as das subsubseções: 3.2.5 Representação
teatral a respeito da origem do universo; e 3.2.8 A dança indígena tupi-guarani
do IEAOUŸ.

3.2.2 Constelações de tinta em papel


O objetivo dessa prática6 é evidenciar que o céu é um reflexo da cons-
trução cultural e social do homem, sendo uma tapeçaria de informações im-
portantes para uma dada cultura. É uma atividade simples de ser executada
onde, novamente, entregou-se uma folha de papel ofício e tintas coloridas
guaches, água e pincéis para salpicar tinta no papel. Segue, então, a orientação
para que após o salpique as pessoas tentem identificar padrões, figuras, dese-
nhos formados pela tinta jogada aleatoriamente. Esse recurso é semelhante a
quando uma determinada comunidade olha para o céu e “liga os pontinhos”,
formando, no céu, as figuras que têm significado para ela e que formam “as
suas constelações”.
Essa atividade evidencia que a pessoa, quando levada a se expressar
espontaneamente, em sua inteligência interpessoal, identifica desenhos que,
de alguma maneira, estão relacionadas ao seu conhecimento de mundo dado
pela cultura e que tem um tom de importância emocional. Por exemplo, alu-
nos com formações superiores, que veem nos pontos aleatórios a formação da

6 Esta atividade foi idealizada por Luiz Carlos Jafelice, inicialmente para o desenvolvimento de um
trabalho de pesquisa sobre constelações a ser realizado por estudantes do 2o ano do 1o ciclo do Nível
Fundamental da turma da professora Zilda e de sua assistente Eleide, da Casa Escola, em Natal, RN,
no primeiro semestre de 1995. Esse trabalho culminou com a produção de um belo livro por aquela
turma, muito rico em informações e atividades interdisciplinares, ao qual eles intitularam “Das Cons-
telações Zodiacais às Constelações Indígenas”. Além da aplicação dessa prática que apresentamos
aqui, na seção 3.5 (Salpique de tinta) do capítulo 1 há outro exemplo, ali envolvendo crianças.

114
Astronomia no Ensino Médio

constelação do filho ou da filha, alunos do ensino fundamental que enxergam


bolas, carrinhos e bonecas, demonstram que, além de compartilharem desses
elementos com a cultura, destacam o que lhes é mais importante, uma vez
que um mesmo desenho pode ser visto por outras pessoas e receber interpre-
tações diferentes. (Na Figura 4 há um exemplo com “constelações pessoais”
vistas por um dos professores-alunos na oficina.)

Figura 4 – Exemplo de projeções de constelações pessoais, desenhado na oficina

Após a atividade realizada, os desenhos são expostos, juntamente


com a interpretação de quais “estrelas” ou “constelações” cada um vê em
seu próprio desenho. Em seguida, mostrou-se para os alunos – através de
fotografias em transparências – um mesmo conjunto de estrelas que chamou
a atenção de diferentes povos e que recebeu diversos nomes (significações),
dependendo das concepções culturais de cada povo.
Um dos exemplos é o da constelação que conhecemos como Escor-
pião. Ela foi associada a esse animal pela cultura grega, pois para eles há uma
história do caçador Órion que começou a matar por maldade; para castigá-lo

115
Gilvana Benevides Costa Fernandes

o curandeiro Ofiúco colocou um escorpião para persegui-lo. Essa estória se


encontra no céu para lembrar aos membros da comunidade que aqueles que
não caçam apenas por necessidade são castigados. Parte desse mesmo con-
junto de estrelas foi associada a um anzol pela cultura havaiana. Para eles foi
o seu deus que, usando um anzol, puxou do fundo do mar as terras que com-
põem aquele arquipélago. Logo, está no céu esse importante anzol – pois está
associado à própria existência desse povo. Por outro lado ainda, outra parte
desse mesmo grupo de estrelas ajuda a compor a constelação da Ema para
os povos Tembé (dos estados do Pará e Maranhão), a qual tem importância
para identificar o período das chuvas. Essas representações estão ilustradas
nas Figuras 5, 6 e 7.

Figuras 5, 6 e 7 – Constelações de Escorpião (cultura ocidental; aqui em duas representações) e da Ema


(cultura Tembé) – a constelação do Anzol (cultura havaiana) corresponde à “cauda do escorpião”
(Fontes: Bretones, 1995, e Corrêa; Magalhães; Mascarenhas, 2000)

Ressalta-se que a comparação feita entre as constelações das diferentes


culturas não tem como objetivo eleger a melhor representação, mas mostrar
que o céu, conforme visto por pessoas de uma dada cultura, contém natural-
mente representações da mesma. Com tal atividade, tenta-se também eviden-
ciar e respeitar as diferenças naturais de visões de mundo que cada cultura
pode ter sobre um mesmo tema: o céu, no caso. Nessa atividade, apesar de o
estudante não precisar nomear as constelações conhecidas no céu (segundo o
que se convencionou em nossa cultura, ocidental), dependendo da sua faixa
etária e de seu conhecimento sobre elas ele nomeará sequências de pontos
com os nomes das constelações conhecidas; por exemplo, muitas vezes três
pontos em sequência são chamados de três Marias7.

7 O conjunto das três Marias não é uma constelação, mas está em uma constelação. Elas representam o
cinturão do caçador Órion – que é uma das oitenta e oito constelações oficiais em nossa cultura. Mas
as pessoas, também por questões culturais – neste caso, de cunho cristão –, conhecem muito mais o
conjunto das três Marias – e o identificam a uma constelação – e não Órion, da qual aquele conjunto
faz parte, na nossa convenção cultural.

116
Astronomia no Ensino Médio

3.2.3 Aprendendo com os índios8


Por considerar que o estudante no ensino médio deve ter em sua for-
mação escolar situações envolvendo vivências de diferentes tipos e pelo fato
de o texto “Educação? Educações: Aprender com os Índios”, do livro O Que é
Educação? (BRANDÃO, 1983), ser particularmente interessante, por expres-
sar que o sentido da educação é elaborado pela sua utilidade em uma deter-
minada cultura e que pode atender a necessidades diferentes, ele foi escolhi-
do para uma de nossas atividades. Esse texto é muito feliz ao explicitar que a
educação é tanto uma causa em si, como também um produto do contexto
histórico e social do homem em sua cultura. Dessa forma, tal texto mostra, no
fragmento da carta dos índios contida nele, que a educação do “outro” pode
nos parecer diferente.
Outro fato importante é que a análise de uma cultura e o julgamen-
to associado são, em geral, carregados de valores da própria cultura que está
julgando. De fato, se forem usados como medida do “progresso” de uma so-
ciedade seu nível de conhecimento científico e sua produção tecnológica (da
forma que estes quesitos são definidos na sociedade moderna), as culturas
indígenas possivelmente serão vistas e tratadas como atrasadas e se desconsi-
derará todo um conhecimento profundo que foge à visão da ciência positivis-
ta, da qual a atual sociedade de consumo está impregnada; devendo-se juntar
ainda a isso a característica da sociedade moderna de ressaltar seus valores à
custa da desvalorização, e muitas vezes ridicularização, dos outros.
Pretende-se com o trabalho desse texto que o aluno perceba que a
educação é uma construção social, e, logo, que nem todas as culturas têm o
mesmo sentido de educação que a nossa, e, principalmente, que esse fato não
a inferioriza de modo algum, apenas a diferencia. O texto é tratado dentro
de uma perspectiva de promover um momento de discussão, onde os alunos
possam expressar ideias e argumentos, bem como ouvir e analisar outras opi-
niões para exercitarem o respeito ao outro.
É bem possível que o texto tenha um melhor proveito para professores,
uma vez que as aulas e as atividades, apesar de pensadas para alunos de ensino
médio, foram também vivenciadas, como já explicitado, por professores, em
nosso curso junto à Escola Estadual Francisco Ivo Cavalcanti, onde pudemos
articular com eles questões mais complexas de educação propriamente dita.
Para os alunos de ensino médio, o principal objetivo é fazer o paralelo entre

8 O texto referente a esta atividade está integralmente reproduzido no anexo A deste capítulo.

117
Gilvana Benevides Costa Fernandes

diferentes formas de educação e as diferentes formas de conhecimento ou


“ciências”.

3.2.4 Aprendendo com a ciência

Essa atividade permite discorrer sobre o modelo científico da gran-


de explosão (“Big Bang”), sobre a evolução estrelar, bem como dizer que os
elementos químicos conhecidos aqui na Terra foram gerados dentro de es-
trelas.
Na primeira atividade, que é representar o universo, são comuns de-
senhos do Sistema Solar. O que pode indicar que os estudantes julgam que o
universo é, na verdade, constituído apenas do Sol e de seus nove planetas9, ou
seja, não muito longe de uma visão aristotélica.
Dessa forma, a motivação central da exposição dos diapositivos10 (sli-
des) é fazer com que os estudantes componham uma imagem ampliada do
universo, constituída de galáxias, que por sua vez são constituídas de inúme-
ras estrelas, que podem ou não formar sistemas planetários.

3.2.5 Representação teatral sobre a origem do universo

Essa prática visa estimular que os alunos se expressem em suas várias


inteligências: interpessoal, intrapessoal, cinestésico-corporal, musical etc.
para contarem a história da origem do universo. Como a preocupação é
sempre mostrar que existem diferentes formas de ver o universo através dos
tempos e das culturas humanas, sempre recebendo diferentes explicações,
algumas mais próximas do intuitivo e outras da razão, sem que nenhuma
seja superior à outra, sendo apenas visões diferentes, seleciona-se, para essa
prática, quatro textos distantes no espaço e no tempo, mas que falam sobre o
mesmo tema: a origem do universo. Esses textos11 são: um bíblico: Gênese;
um científico: “Big Bang”; um indígena: do povo Dessâna – que habita entre
o rio Tiquié e Papuri, no noroeste do Amazonas; e outro filosófico indiano:
“Nasadasiyasukta”, do Rig Veda.

9 Atualmente redefinidos para se restringirem a oito planetas; na época do curso eles ainda eram nove.
10 Para esta atividade utilizamos os diapositivos organizados pela Sociedade Astronômica Brasileira
(SAB).
11 As fontes de onde cada um desses textos foi extraído constam do anexo B deste capítulo, onde tam-
bém os quatro textos utilizados estão integralmente reproduzidos.

118
Astronomia no Ensino Médio

Com a turma separada em grupos de três a, no máximo, cinco estu-


dantes (dependendo se a turma é grande), os textos são distribuídos e pede-
se que eles os representem teatralmente (ou seja, não há problema em uma
turma grande se dois grupos diferentes pegam o mesmo texto, já que a forma
de se expressarem será diferente). A proposta de que eles possam se expressar
não só verbalmente, mas sobretudo usando as outras linguagens do corpo,
evidencia a grande dificuldade para a maioria dos alunos em se expressarem
dessa forma. Assim, damos um tempo de dez minutos para que eles organi-
zem as ideias, em seguida começam as apresentações. Cabe, nesse momento,
ao professor, garantir pelo menos uma apresentação de cada texto, uma vez
que o professor pode estar com pouca flexibilidade no seu cumprimento do
calendário escolar (i.e., sobrecarregado de conteúdos exigidos em um pra-
zo exíguo para abordá-los), mas mesmo assim perceber a importância de se
discutir o tema; neste caso, as outras apresentações podem ser deixadas para
uma outra oportunidade; porém, deve-se tentar encaixar nesse dia os alunos
que gostariam de se apresentar.
Depois de os grupos se apresentarem, inicia-se o questionamento so-
bre o que os textos tratavam e deixa-se que os estudantes se expressem. Aqui,
apresentamos alguns questionamentos que o professor pode seguir para me-
lhor utilizar esta atividade, bem como o que se espera que os alunos verbali-
zem ou alcancem com as explicações posteriores do professor:
Pergunta (P): Do que os textos tratavam?
Resposta (i.e., uma espécie de resposta-síntese, esperada ao final da contri-
buição de várias respostas, construída de modo dialogado com os alunos)
(R): Da origem do universo.
P: O que acham de ter várias interpretações a respeito do mesmo tema?
R: Importante, uma vez que as interpretações são construções de acordo com um
momento histórico e social de cada época.
P: Qual dos textos representa melhor a origem do universo?
R: Todos. Novamente: porque os textos são construções socioculturais de uma
época. Logo, não é possível que se eleja um em particular sem ter a consciência do
processo histórico-cultural em que ele foi criado.
Em seguida, o professor explicará que as diferentes interpretações são
conhecidas na ciência como modelos. Os modelos são as elaborações de uma
teoria, que tenta explicar um dado fenômeno na natureza. Segundo a acepção

119
Gilvana Benevides Costa Fernandes

sócio-construtivista aqui priorizada (mas não na das ciências naturais orto-


doxas), modelos são construções que dependem da cultura.
O professor, com frequência, passa para os alunos que os modelos são
feitos com tal rigor que não cabe o acaso ou a interferência do sentimento
de quem produz a ciência. Porém, devemos ter claro que esses elementos
entram na elaboração ou escolha de um modelo. O modelo, muitas vezes, é
aceito desde um nível mais inconsciente, como que retomando e ressonando
com os nossos arquétipos míticos.
Nessa atividade, o estudante se depara com diferentes modelos que
explicam o mesmo fenômeno: a origem do universo. Esse fato evidencia a
temporalidade dos modelos, aceitos até que surjam outros que os substitu-
am, que expliquem não só os mesmos pontos que os modelos anteriores, mas
também os pontos que estavam em aberto e ainda lancem luz para novas pes-
quisas. O fato de termos, no decorrer da história, vários modelos propostos
pelos homens para explicar a origem do universo, indica as mudanças nas
concepções culturais e históricas que perpassam a sociedade. Dessa forma,
a substituição de modelos deve ser levada à escola como um processo natu-
ral, da construção da própria ciência, e que traz consequências importantes,
lançando novos paradigmas sociais, filosóficos, religiosos e de ética, entre
outros.
A escolha das quatro diferentes visões sobre a origem do universo –
religiosa cristã, científica, filosófica dos indianos e de índios brasileiros – foi
feita para que se permitisse contrapô-las. O professor deve ter o cuidado de
evitar a perpetuação da imagem da ciência como acabada ou como um con-
junto de pressupostos e procedimentos que sabe exatamente onde vai chegar
através das pesquisas. Essa é uma ideia que não contempla o real fazer cientí-
fico, além de exagerar os feitos da tecnologia que, sem crítica, é um discurso
e uma prática que se ausentam frente à crise ecológica, agravada pela escolha
dessa própria tecnologia, bem como diante das desigualdades que ela, mes-
mo podendo, não resolve.

3.2.6 Resgatando o microcosmo e o macrocosmo no ser humano12


Será que ainda há como integrar a mente, o corpo e a natureza nos
estudantes, sobretudo do ensino médio, para que um pensamento ecológico
flua? Será que se pode fazer essa integração usando o ensino de ciências e, em

12 Os textos referentes a esta atividade estão integralmente reproduzidos no apêndice deste capítulo.

120
Astronomia no Ensino Médio

particular, o ensino de astronomia? Esta atividade visa refletir sobre a atu-


al fragmentação que distancia o homem da natureza e propõe uma abertura
para esse resgate ao evidenciar momentos na história da humanidade onde
um pensamento mais integrado esteve presente.
Com a atividade anterior e um pouco mais de leitura sobre as visões
lá representadas – e, para isto, recomendamos fortemente o livro13 do profes-
sor Roberto de Andrade Martins – o professor percebe que no Pensamento
Mitológico existia uma proximidade entre a origem do universo e a origem
do próprio ser humano. Dessa forma, um deus ou alguns deuses, partindo
do seu Querer constroem uma obra que culmina com a criação do próprio
homem. E o ser humano recebe dos deuses, através de sonhos, por exemplo,
o conhecimento sobre as plantas, animais, estações do ano etc., para poder
viver sobre esse mundo, que foi criado divinamente, sendo seu papel recriar,
através de rituais (que são vivências autênticas do Mito de Criação do Univer-
so), o mundo, sempre que necessário.
A concepção existente é a de que tudo – objetos, fenômenos, senti-
mentos, processos, pensamentos, sonhos, ações – é sagrado. É comum que
esses rituais ocorram no solstício de inverno, que é o momento mais agudo
dessa época do ano, quando a natureza pode começar a se renovar, quando
já se pode esperar mais confiante pelos indícios do princípio da primavera.
Logo, é também característica dos mitos terem um tempo cíclico, capaz de re-
tornar às origens e reverter o processo de desgaste natural, recriando o mun-
do-universo exatamente como foi feito pelos deuses da primeira vez. Assim,
tais rituais têm o poder de restaurar o mundo – i.e., tudo que existe, segundo
essa visão una da existência – à sua perfeição primordial.
Ao contrário do Pensamento Mitológico, que é comum nas culturas
primitivas14, o Pensamento Filosófico surgiu muito particularmente no
mundo antigo na Grécia e na Índia. Neste Pensamento, foram imaginados
alguns modelos de Mundo nos quais não houvesse a necessidade de um deus
criador. Assim, em um deles o mundo é criado com base no elemento Água

13 Também disponível no sítio do autor: http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/.


14 Usa-se aqui o mesmo termo empregado pelo historiador das religiões Mircea Eliade, no sentido de
“original”, “primordial”, “dos primeiros tempos”, portanto sem qualquer conotação de inferiorização
ou discriminação – cf., e.g., Eliade (2000), e também outros livros desse autor (como, e.g., os referidos
nos capítulos 1 e 4 do presente livro).

121
Gilvana Benevides Costa Fernandes

(Tales de Mileto), em outro modelo é criado pelos elementos: Terra, Fogo,


Água e Ar (Empédocles) e no modelo atomístico é feito por partículas eternas
e imutáveis, chamadas átomos, que se movem em um espaço vazio.
Dessa forma, com a ausência de um deus criador, não existe mais a ne-
cessidade (nem a possibilidade!) de se recriar o mundo através de rituais, não
existe mais uma relação direta entre o ser humano e o universo, podendo-se
concluir que o Pensamento Filosófico – principalmente o atomismo – trouxe
ao ser humano um afastamento da natureza. O professor Roberto Martins
associa a concepção materialista grega do espaço vazio, com um vazio de sen-
tido no ser humano. Ele nos esclarece:
O homem está liberto dos mitos e do medo, mas perdeu também
a possibilidade de sentir-se como parte do universo vivo, bom, sá-
bio. Perdeu os rituais, não pode mais ultrapassar o tempo e reviver o
princípio de tudo. O atomismo deu ao homem o vazio – em vários
sentidos (MARTINS, 1994, p. 49).

Talvez essa ausência de sentido tenha feito o homem medieval, ao es-


tudar sobre a filosofia grega do passado (período conhecido na história como
Renascimento), inicialmente se voltar ao pensamento platônico, pois o filó-
sofo grego Platão valorizava o mundo espiritual. Santo Agostinho foi o maior
estudioso dessa corrente.
É também no Renascimento que são retomados os estudos em alqui-
mia, astronomia e magia. Igualmente associado à filosofia de Platão, o neopla-
tonismo tem como uma das ideias mais importantes a concepção do homem
ser o universo em miniatura, ou seja, um “microcosmo”, comparado com o
grande universo em seu entorno, “o macrocosmo”. É nesse período que se
encontra referência simbólica entre o macrocosmo e o microcosmo em, por
exemplo, O sábio (1509), de Charles de Bovelles, e nas obras de Paracelso
(que foi médico, alquimista e escritor).
Ele [o sábio] não se ausenta de si mesmo, ele não se abandona, só
ele pode se recolher a si próprio, ele se torna constantemente o seu
próprio espelho; ele se abraça a si mesmo, ele se volta para si, cir-
cularmente... Ele mora ao mesmo tempo no mundo sensível e no
mundo intelectual. Pelo seu corpo, é verdade, ele vive sobre a Terra,
como as feras, mas por seu espírito, que se abre aos céus, ele percorre
caminhos celestes (MARTINS, 1994, p. 70).

Porém, já no final do Renascimento, a filosofia de Aristóteles adquire


grande importância através dos estudos de Santo Tomás de Aquino. O pensa-

122
Astronomia no Ensino Médio

mento aristotélico se torna influente no pensamento europeu e irá subsidiar


o Pensamento Científico, que surge junto com a Idade Moderna. O Pensa-
mento Científico tem sua máxima expressão através do método científico15, e
o conhecimento passa a ser algo que pode ser observado, medido e avaliado
segundo critérios supostamente objetivos.
Analisando a atual forma de ensino-aprendizagem, fica evidente que,
de todas as nossas heranças gregas, é bastante presente a valorização da razão.
Nessa racionalização, é comum fragmentar-se e classificar-se o conhecimento
para (suposta) melhor compreensão da natureza. O risco desse processo, que
também é levado para as escolas, é o de não haver momentos para perceber as
relações maiores existentes entre as partes e o todo, ficando o conhecimento,
em vários momentos, muito específico, restrito e desconectado do resto.
Com o desenvolvimento da criança nas séries escolares esse processo fica
mais evidente, uma vez que as brincadeiras, os jogos e tantas outras atividades
lúdicas e corporais que tanto auxiliam na aprendizagem vão se rareando e sendo
substituídos, cada vez mais exclusivamente, por uma supervalorização do
exercício da memória, do racional e do acúmulo de conteúdos específicos.
Ao exemplificar-se, com a história da humanidade, como o conheci-
mento foi se desenvolvendo, desde a concepção mitológica até a científica, é
possível despertar nos estudantes a abertura para perceberem que a obtenção
do conhecimento é um processo que pode ser construído de diferentes ma-
neiras e que tenta atender necessidades intelectuais, afetivas e psicológicas de
um determinado momento histórico e de uma certa cultura.
Com o desejo de criar essa abertura, julgamos ser um bom exemplo
a cultura indígena brasileira, por sua proximidade na relação macrocosmo e
microcosmo ao desenvolver sua cosmogonia relacionando-a com a própria
astronomia. Assim, estão presentes no primeiro plano em importância, tanto
grupal como individual, elementos físicos – como o Sol, a Lua e as estrelas –
e sua relação direta com elementos simbólicos – como deuses criadores ou
seres de qualidade divina participantes da criação do universo.
As culturas indígenas brasileiras constituem também uma referência
essencial, em um sentido muito amplo, pois se percebe a forte tradição oral,

15 Já há algumas décadas, contudo, vem se questionando sobre o método científico ser realmente um
processo isento de fatores subjetivos – pessoais, emocionais e ideológicos do pesquisador. Uma leitu-
ra interessante neste sentido é, e.g., o livro de Alves (2000), e muitas das referências lá citadas sobre o
referido questionamento.

123
Gilvana Benevides Costa Fernandes

a música e a dança como elementos importantes, que conectavam o ser à


natureza, uma vez que para essas culturas o questionamento de quem se é e
do porquê da vida não as afastam da natureza, do cosmo, ao contrário, ligam-
nas a ele.
Ao destacarmos o pensamento indígena de integração, também visa-
mos ao resgate, à valorização dessa cultura que, apesar de termos inegavel-
mente suas influências, ainda se constata a existência de muitos preconceitos
em relação a ela. Visamos ainda, com tal resgate, promover o respeito às dife-
renças culturais. Além disso, tal procedimento também nos permite perceber
e recuperar o aspecto simbólico vital de que o ser humano é a representação
em miniatura de universo, o macrocosmo e o microcosmo unificados.
Essa atividade serve ainda para questionar e preparar, desarmar, os
alunos para as atividades seguintes, quando se “dançará” para se afinar o ser-
som do corpo com o universo, segundo a tradição dos Tubuguaçu.
Deve-se destacar, aqui, que não foi objetivo deste capítulo se expor
um estudo detalhado de como um determinado grupo étnico indígena educa
seu povo, ou mesmo as relações mais profundas que permanecem em seu
contado com o céu, pois se julgou que isto foge, nesse momento, do nosso
foco, que é propor atividades possíveis para o ensino de astronomia no nível
médio. Logo, fica aqui registrada a ideia, apesar de sujeita a uma análise crítica
mais minuciosa posteriormente. O ponto é que essas sociedades nativas –
mais “primitivas”, no sentido de mais próximas, íntimas e íntegras em relação
às “origens” ou aos “primórdios” – fornecem um modelo para o resgate da
interação e integração do indivíduo com o cosmo. Recuperar e adaptar esse
modelo na nossa sociedade, onde e quando possível, implicaria um retorno,
que há muito já se faz necessário, à valorização vivencial do simbólico e do
mitológico.

3.2.7 Zoom Cósmico

O filme16 “Zoom Cósmico” é um curta-metragem, com cerca de oito


minutos de duração. É uma produção canadense, da década de 70 do século
passado, que parte da imagem de um menino remando em um lago. A “câma-
ra” vai se afastando cada vez mais, para mostrar o Sistema Solar e além, até

16 Esse filme também é trabalhado desde uma perspectiva bastante semelhante à nossa, embora com
outra ênfase, por Luziânia Ângelli Lins de Medeiros, conforme ela expõe no capítulo 3 deste livro.

124
Astronomia no Ensino Médio

quando chega na escala de conjuntos de galáxias e faz a “viagem” de volta, até


atingir a escala do menino novamente; daí inicia-se a viagem para dentro das
células, chegando aos átomos, até a escala de um “próton”, para novamente re-
tornar à escala do menino. Apesar de desatualizado em algumas informações
quanto à estrutura do universo em grande escala (superaglomerados de galá-
xias, “paredes” e “vazios” etc.) e aos constituintes últimos da matéria (quarks,
léptons etc.) – da maneira que esses elementos das dimensões cosmológicas
e subatômicas são aceitos pela maioria dos cientistas hoje – o filme é bastante
interessante e pode ser usado como material didático e recurso pedagógico
muito úteis em diversas aulas que queiram trabalhar conceitos de ordens de
grandeza, proporções, escalas, Sistema Solar, galáxias e mesmo a estrutura
da matéria, células, moléculas, núcleo atômico, e fazendo ainda uma conve-
niente comparação com a escala humana – de certa maneira “intermediária”
daquelas duas escalas extremas, a qual, na verdade, é a única que conhecemos
do ponto de vista vivencial e que, com frequência, usamos como referência
em nosso entendimento do mundo.
No presente contexto de atividades, esse curta-metragem é trabalhado
como uma forma de analisar as relações entre o macro e o microcosmo –
agora principalmente segundo uma perspectiva física –, sendo, assim, uma
sequência natural da aula anterior, quando se viu certas imagens de teor as-
tronômico ou astrofísico e se discutiu algumas teorias astrofísicas e de cos-
mologia física.
Convém, para finalidades didáticas, passar o filme duas vezes: na pri-
meira, sem pausas ou comentários, para que os estudantes “sintam” sobre o
que o filme trata. Após esta exibição, promove-se a discussão, perguntando-se
inicialmente a eles o que sentiram e sobre o que o filme tratava, para avaliar-
se o que cada um entendeu do que o filme mostrou17. Na segunda exibição,
o professor para o filme em alguns pontos, ora para ressaltar a relação entre
o macrocosmo e o microcosmo – entre os quais se encontra o ser humano,
como o elemento de ligação, pertinente a esses dois “universos” –, ora para
complementar ou atualizar (segundo as convenções e conhecimentos aceitos
hoje) algumas informações a respeito da estrutura do universo em grande
escala, da composição biofísica do corpo humano e da estrutura da matéria.

17 Embora, para quem está habituado a circular por esses assuntos, as cenas mostradas pareçam eviden-
tes, nem sempre é isto o que ocorre para plateias novatas nos mesmos. É fundamental ouvir o que elas
têm a dizer.

125
Gilvana Benevides Costa Fernandes

3.2.8 A dança indígena tupi-guarani do IEAOUŸ


Esta certamente é a prática mais intimista dentre todas as que propomos
para o ensino de astronomia, principalmente porque ela não traz um conhecimento
científico propriamente dito, como muitas vezes somos acostumados a trabalhar
no ensino médio (quantitativo e limitado, por exemplo, nas leis de Kepler e de
Newton). Ela é uma vivência coletiva entre o professor e os alunos. A inspiração
dela se justifica pela concepção que o povo tupi-guarani (que também forma a
nossa cultura) tem a respeito da origem dos seres humanos, como descendentes
de astros como a Lua e o Sol, e este é o gancho com a astronomia. Como
algumas culturas, e essa em particular, não diferenciaram o indivíduo do cosmo
e desenvolveram técnicas para que esses elementos expressassem sua íntima
sintonia através de danças e falas sagradas – além de essa concepção gerar
naturalmente um equilíbrio e responsabilidade maior para com a natureza –,
esta atividade se mostra muito apropriada para nossos objetivos de resgate e
reintegração, conforme já mencionamos várias vezes.
Outra contribuição que essa prática propicia está relacionada ao en-
volvimento do corpo no processo de ensino. Como também enfatizamos em
outros momentos, a parte racional na nossa cultura é extremamente valori-
zada em detrimento das outras habilidades que o ser humano tem. Não esta-
mos sugerindo uma desvalorização da razão, mas uma supervalorização dos
sentidos – visamos incentivar uma busca de um equilíbrio necessário, enfim,
pelo bem da saúde, nossa, dos outros seres, das relações, do planeta. Assim,
estamos chamando a atenção de que, embora os sentidos sejam partes cons-
titutivas vitais do humano, eles não estão sendo usados para contribuírem
no processo de aprendizagem dos estudantes, pois não há práticas em nossas
escolas, sobretudo no nível médio, que permitam que os sentidos contribuam
nesse processo como podem e devem.
Para que alguns conceitos inspiradores básicos fossem melhor enten-
didos, achou-se por bem reproduzir algumas das concepções do corpo-som
do ser e o ser de cada tom encontradas no livro A Terra dos Mil Povos, de Kaká
Werá Jecupé (1998, p. 24):
Os povos indígenas brasileiros, mais precisamente os Tupinambá e
os Tupy-Guarani, descendem de ancestrais chamados pelos antigos
de Tubuguaçu [...] Os Tubuguaçu entendem o espírito como música,
uma fala sagrada (nêe-porã) que se expressa no corpo; e este por sua
vez é flauta, veículo por onde flui o canto que expressa o Avá, que é a

126
Astronomia no Ensino Médio

Figura 8 – Dança Jeroky (Foto: Antônio Araújo Sobrinho, 2003)

porção-luz que sustenta o corpo-ser, que, para os ancestrais é o fogo


sagrado que move os guerreiros, dando-lhes vitalidade, capacidade
criativa e realizadora.
Por isso fez-se o Jeroky, a dança, com o fim de afinar todos os espíri-
tos pequenos do ser. Para que cante sua música no ritmo do coração
da mãe Terra, que dança no ritmo do coração do Pai Sol, [...]
Compreendendo o ser como um tu-py, um som-de-pé, os antigos
afinavam o espírito a partir dos tons essenciais do ser, tons que
participam de todos os seres. Os tons essenciais que formam o
espírito são o que a civilização reconhece como vogal.
Cada vogal [...]
Ÿ: Soa como um “u” gutural e é o tom do angá-mirim raiz; vibra o
padrão terra do ser. Sua morada é na base da coluna. É o tom da
vitalidade física, da concretização, da segurança, da determinação.
Bater o pé direito no chão e liberar esse som é o ato guerreiro de
estar firme sobre o caminho.
U: É o tom do angá-mirim água e vibra nessa direção. Sua morada é
o umbigo. É o tom da vitalidade emocional. Quando ele está no seu
fluxo natural, manifesta o bem-estar emocional e estimula a criativi-
dade. Quando o corpo está preso, dançá-lo solta as más águas.
O: Vibra o tom do angá-mirim fogo e mora no plexo. Os antigos pajés
chamavam-no Kuracymirim, ou seja, pequeno sol do ser. Sua vibra-
ção irradia o ayvu e dançá-lo pode purificá-lo.

127
Gilvana Benevides Costa Fernandes

A: Vibra o tom do angá-mirim ar e mora no coração. Essa vibração


faz a união do céu com a terra, ou seja, das partes internas e externas
do ser. Seu tom vibra os sentimentos.
E: Vibra na altura da garganta. Ali faz sua morada. É a própria expres-
são da alma atuando na forma da palavra. Essa região é responsável
pela liberdade da alma. É a nêe-porã, a fala sagrada do ser.
I: Este tom mora na gruta sagrada do ser, que se localiza no fundo
da cabeça, na direção de entre os olhos. Ele estabelece ligação com o
sétimo tom, que é o silêncio. Favorece a intuição quando dançado.

A prática é bastante simples de ser executada, uma vez que a parte mais
difícil foi encaminhada por nós, educadores. E o mais difícil é vencer a nossa
resistência pessoal, interna, a mudanças, ao novo, em mexer em coisas (corpo
e sons nesse caso) de uma forma que não estamos habituados para uma práti-
ca de ciências em sala de aula. O mais comum é que internamente rejeitemos
a experiência por medo de fazer um “papelão” na frente dos nossos alunos,
de eles acharem que há coisas que não dominamos (e dominamos tudo?), da
saída do controle racional e de envolver elementos em que os alunos podem
ser tão bons ou até melhores que nós, afinal um ou outro aluno pode ser mais
afinado ou ritmado. A quase igualdade entre os indivíduos na atividade pode
ser perturbadora para alguns professores, cujo estilo esteja mais fechado em
um ensino tradicional, uma vez que, nesta prática, o professor apenas condu-
zirá a vivência, atuando como mediador ou facilitador.
Outra intenção da atividade é deixar bastante clara a concepção que o
povo tupi-guarani tem a respeito do céu. Uma concepção diferente da nossa,
porque não separa o indivíduo do universo, o que contribuiu para que esse
povo tivesse uma relação mais harmônica com a natureza. Ou seja, deve-se
deixar claro aos alunos que é outra forma de ver as relações e que devemos –
nós e os alunos – nos esforçar para não tratá-la como uma forma inferior de
conhecimento só porque difere da nossa – uma vez que este comportamento
é uma prática comum da nossa cultura, pois a cultura “dominante” tem uma
necessidade de inferiorizar as outras. Deve-se, assim, pedir para eles se libe-
rarem aos poucos dos conceitos ou preconceitos formados e tentarem verda-
deiramente vivenciar a prática.
Será comum nessa situação que surjam expressões com um tom
depreciativo, como: “isso é coisa de índio”, por parte dos nossos alunos; isso
porque eles estão muitos viciados na crítica vazia, infundada, ou na crítica pela

128
Astronomia no Ensino Médio

crítica, sem o exercício da reflexão. Na verdade, já convivi com professores


que também fazem críticas baseadas simplesmente no senso comum e
não em um processo de reflexão, por mais que nossa profissão exija nossa
vigília intelectual quanto ao risco da reprodução de possíveis preconceitos
que perpassam a nossa sociedade. A saída mais saudável quando surgirem
comentários nesse nível é de sempre pedir para que cedam um pouco, que
não sejam tão críticos e que se permitam fazer essa prática. Nunca é demais
lembrá-los que as culturas indígenas sobreviveram durante milhares de anos –
em um grau de harmonia social e com o ambiente, e de sucesso enquanto
comunidades, habitualmente bem maiores que o da nossa sociedade – sem a
utilização da tecnologia como a conhecemos, proveniente da ciência e que a
nós parece tão fundamental para a vida.
A atividade consiste na explicação de como a cultura tupi-guarani vê
a ligação entre o indivíduo e o cosmo, de como ela utiliza os sons das vogais
(do angá-mirim) e do silêncio para “afinar” o corpo com o cosmo. Então, se
propõe para que todos ali “se afinem com o cosmo”. Assim, em pé, os alunos
e o professor dão as mãos e formam um círculo (vide Figura 8) e começam a
sonorizar o I E A O U Ÿ, nesta ordem, como um mantra, sempre batendo pé
direito ao repetir o som Ÿ, que indica o ato guerreiro de se estar firme sobre
o caminho.

4 CONCLUSÃO E COMENTÁRIOS GERAIS


Este capítulo versou sobre a elaboração de atividades de astronomia
para o ensino médio que tiveram como finalidade maior a (re)integração do
indivíduo com o cosmo. Para isso recorremos à história da ciência – que, em
vários aspectos, também é a história do próprio ser humano – e, com especial
ênfase, a concepções de universo de diferentes culturas, por isto designamos
tal abordagem como antropológica. Aqui, ambas as vertentes – histórica e
antropológica – se somam em nosso esforço para alcançarmos o objetivo (re)
integrador pretendido. Escolhemos deliberadamente algumas culturas em di-
ferentes épocas e em diferentes lugares do planeta, por um lado, para propor
a conexão entre o indivíduo e o cosmo – conexão essa que é cada vez mais
urgente em nossa sociedade moderna atual – e, por outro lado, também para
evidenciar que nem todas as culturas desenvolveram esse distanciamento en-
tre ambos, o que é presente em nossa sociedade.

129
Gilvana Benevides Costa Fernandes

As culturas escolhidas têm uma referência direta com a nossa forma-


ção e visão de mundo, e diante delas, no desenvolvimento de nossas práticas,
sempre nos perguntávamos a mesma coisa: como essa cultura vê o universo?
Além disto, também partimos do conceito prévio que nossos estudantes tra-
zem consigo sobre esse assunto. Dessa forma, escolhemos a concepção reli-
giosa de Origem de Universo através do Gênese (bíblico), a concepção cien-
tífica através do modelo do “Big Bang” (a “grande explosão”), uma concepção
filosófica através de um texto indiano (o “Nasadasiyasukta” do Rig Veda) e
também uma concepção mítica do povo Dessâna (do noroeste do Amazo-
nas), para contextualizar e estimular a percepção da mobilidade, da fluidez
na construção e a projeção dos aspectos humanos para o entendimento do
universo. Assim, longe de fazer uma leitura que induza uma ideia de disputa
ou de eleição entre os textos – pois na verdade criticamos e combatemos tal
postura –, nosso olhar foi o de trabalhar esses diferentes enfoques de forma
a contribuir para o sentimento de respeito frente a opiniões tão diferentes e
para a apreciação das riquezas contidas naquelas diversas visões de mundo.
O que guiou nossa metodologia foi a interpretação do ser humano
como sendo uma composição de várias inteligências, em diferentes propor-
ções, e a abordagem antropológica, de caráter holístico – que aqui denomi-
namos mais genericamente por abordagem humanística –, para a educação.
Assim, as bases teóricas da metodologia adotada foram essencialmente o
conceito das Inteligências Múltiplas, propostas por Gardner – cf., e.g., Arms-
trong (2001) – e o reconhecimento da necessidade de uma educação integra-
dora que entende o cultural como constitutivo do humano, nas suas diversas
autoctonias, e enxerga que o todo pode ser muito mais que a mera soma das
partes, pois envolve também, no mínimo, as múltiplas conexões entre estas
– e este cenário se constata com frequência enorme na área de educação –,
conforme exposto em maior detalhe, e.g., em Jafelice (2004). Dessa maneira,
o aluno é considerado com um ser dotado de muitas capacidades e são elas
que proporcionam outros caminhos para a construção do conhecimento, a
qual não precisa se dar unicamente pela via racional, já tão valorizada nas pe-
dagogias habitualmente praticadas.
Dessa forma, devemos perceber que o ensino de física deve se esten-
der para todos os lados, ter outro alcance. Ele deve ir além do seu objetivo –
muitas vezes tomado como único – de despertar a pessoa para a curiosidade
científica; ele deve ajudar a integrar o ser humano com suas questões pessoais
e que dão sentido às nossas vidas em muitos aspectos. Essas questões, com
frequência, tomam espaço quando falamos sobre o universo no ensino de as-

130
Astronomia no Ensino Médio

tronomia – e foi isto que nos motivou para a escolha desse tema –, pois elas
nos cobram respostas às muitas perguntas feitas pelos estudantes, como, por
exemplo: O que aquela estrela lá longe pode dizer aqui, sobre a Terra, sobre
mim? Qual a relação, a proporção, entre esse mundo de fora e esse mundo de
dentro que carregamos? – e, sobretudo, – Qual é o caminho que conecta esse
microcosmo e esse macrocosmo?
Assim, é quase inevitável reconhecer que o ensino médio nas escolas
deve ser mais do que essa maratona de acúmulo de saberes para a seleção
das universidades – saberes, na grande maioria dos casos, apenas técnicos,
descontextualizados de um sentido existencial mais profundo, desumanizados,
enfim; saberes que não valorizam nem favorecem a construção de uma
sabedoria de vida, mas, ao contrário, reforçam a mentalidade utilitarista,
imediatista e inconsequente que ajuda a exaurir o planeta de um modo mais
eficiente.
E aí está o desafio: mudar ou ao menos iniciar uma mudança na con-
cepção de ensino dentro da nossa sociedade. Visão essa que já está muito vi-
ciada em produzir competidores, ao invés de indivíduos que se preocupam e
agem unidos frente aos problemas que realmente importam, como a poluição
dos rios ou a violência no bairro, por exemplo.
O porquê do ensino nas escolas não falar sobre o que realmente im-
porta para a vida e para a preservação desta sobre a Terra é um profundo mis-
tério que já se sente incomodar por baixo de tantas e tantas equações, mui-
tas sem sentido e longe de se referirem a problemas reais, que são resolvidas
compulsivamente nas aulas de física no ensino médio e que deixam a maioria
dos alunos tão enfadados e sem motivação para o estudo de física.
Se a escola disponibiliza várias disciplinas, é necessário que, ou é es-
perado que, em algum momento ela integre esses conteúdos. Se soubermos
sobre as várias portas de capacidades cognitivas que nós e nossos alunos dis-
pomos, podemos tentar bater em outra porta que não seja a da razão, trazen-
do o aluno para uma vivência transpessoal e ainda assim com um foco no
conteúdo.
O presente capítulo é para mexer com os educadores e instigar-nos
a sermos esses abridores de novas portas, curiosos para saber o que existe
atrás delas e adentrar por esses novos caminhos que nos levam a aprender e
a ensinar usando intuição, música, jogos, brincadeira, teatro e tantos outros
recursos também no ensino médio.

131
Gilvana Benevides Costa Fernandes

REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo:
Loyola, 2000.
ARMSTRONG, T. Inteligências Múltiplas na Sala de Aula. 2. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
BRANDÃO, C. R. O Que é Educação? São Paulo: Brasiliense, 1983. Coleção Pri-
meiros Passos.
BRETONES, P. S. Os segredos do Universo. 4. ed. São Paulo: Atual, 1995.
CORRÊA, Ivânia N.; MAGALHÃES JR., Lázaro; MASCARENHAS, Regina. O
Céu dos Índios Tembé. 2. ed. rev. Belém: Planetário do Pará/UEPA, 2000. Série
Etnoastronomia.
COSTA, Gilvana B. Uma Abordagem Humanística para o Ensino de Astronomia
no Ensino Médio. Dissertação (Mestrado em Centro de Ciências Exatas e da Terra).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2005. 100f. (Também disponível
em: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras
Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”).]
COSTA, Gilvana B.; JAFELICE, Luiz C. Ensino e Divulgação de Astronomia no Rio
Grande do Norte. In: XIV Simpósio Nacional de Ensino de Física, 2001, Natal.
Sociedade Brasileira de Física, painel.
______. Um Enfoque Antropológico para o Ensino de Astronomia no Nível Médio.
In: XXIX Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira, 2003, São Pedro,
SP. Sociedade Astronômica Brasileira, 2003. Boletim, painel. São Paulo: IAG/USP,
2003. v. 23, p. 72-72.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000. Coleção Debates.
HUTCHISON, David. Educação Ecológica: idéias sobre a consciência ambiental.
Porto Alegre: Artmed, 2000.
JAFELICE, Luiz C. Educação Holística, Consciência Ambiental e Astronomia Cul-
tural. In: CARDOSO, Walmir Thomazi (Ed.). VIII encontro brasileiro para o en-
sino de astronomia. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004.
(Conferência de encerramento. As Atas desse encontro não foram publicadas.)
JECUPÉ, K. W. A Terra dos Mil Povos: história indígena do Brasil contada por um
índio. São Paulo: Peirópolis, 1998.
LOWEN, Alexander. Medo da Vida: caminhos da realização pessoal pela vitória so-
bre o medo. 5. ed. São Paulo: Summus, 1986.
MARTINS, R. de A. O Universo: teorias sobre sua origem e evolução. 3. ed. São
Paulo: Moderna, 1994. (Esgotado na editora, porém disponível no sítio do autor:
http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/.)
POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. Aprender y Enseñar Ciencia: del conocimiento
cotidiano al conocimiento científico. Madrid: Morata, 1998.

132
Astronomia no Ensino Médio

Apêndice: Resumos dos temas relacionados à origem do universo18

A.1 Mitos

Os mitos cosmogônicos foram respostas aos questionamentos do tipo:


Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Como surgiu o mundo e
o universo? Praticamente todos os povos antigos responderam essas questões
primordiais lançando mão de todo um simbolismo que agora, pela distância,
é de difícil interpretação, pois a existência e o significado do mito devem ser
sempre vistos dentro da cultura que o criou.
Muitos elementos simbólicos dos mitos aparecem em culturas que es-
tiveram distantes temporalmente ou espacialmente. O psicólogo Carl Jung
propõe uma explicação, de que o ser humano possui uma espécie de memória
da raça humana, herdada pelas pessoas ao nascerem, chamada de inconsciente
coletivo, que se manifesta através de sonhos, apresentando imagens impesso-
ais e estranhas, que a própria pessoa não consegue associar com nada conhe-
cido, sendo uma espécie de depósito de imagens e símbolos comum a todos
os seres humanos.
A origem da palavra mito é grega, e significa fábula. No século XXI,
o significado antropológico da palavra, segundo o dicionário “Aurélio”, é o de
uma
narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em ge-
ração e considerada verdadeira ou autêntica dentro de um grupo,
tendo gerado a forma de um relato sobre a origem de determinado
fenômeno, instituição, etc., e pelo qual se formula uma explicação da
ordem natural e social e de aspectos da condição humana.

Algumas características marcantes nos modelos cosmogônicos dos


mitos são:
 Explica a origem do universo a partir de um deus ou de vários deu-
ses primordiais, que tem o desejo de construir e sobretudo organi-
zar o universo.

18 Textos referentes à prática exposta na subsubseção 3.2.6 (Resgatando o microcosmo e o macrocosmo


no ser humano), para serem utilizados por professores em geral. Estes textos foram produzidos
inicialmente para um trabalho que fiz para a disciplina de História da Ciência, do PPGECNM/
UFRN, em 2002, e foram levados à prática em uma das oficinas do conjunto de aulas que ministrei
no curso para professores de várias disciplinas do ensino médio junto à Escola Estadual Francisco Ivo
Cavalcanti, em 2004. A principal fonte para a produção destes textos foi o livro de Martins (1994).

133
Gilvana Benevides Costa Fernandes

 Há sempre um elemento que esse deus molda ou separa, que pode


ser: águas (doce e salgada), dia e noite, trevas e escuridão e caos
(como elemento, não confusão).
 O tempo primitivo, tempo que o deus criou o universo, é o mais
perfeito dos tempos e com o passar das estações há o desgaste da
natureza; logo, tem-se a necessidade de se voltar ao tempo da per-
feição através dos rituais, que é a repetição exata do que o deus fez
nos primórdios. Portanto, o tempo é cíclico.
 O espaço não é homogêneo. Existem lugares mais especiais e má-
gicos que outros.
 Em alguns mitos, o universo é eterno e, para outros, ele sofre pro-
cessos de criação e destruição em certos e certos períodos.

A.2 Pré-socráticos

Costuma-se dividir a filosofia grega em dois períodos: antes e depois


de Sócrates. Os filósofos do período anterior são chamados pré-socráticos
e existem poucos registros de suas obras. Uma das características desses
filósofos é que eles ensinavam que todas as coisas se originavam de uma única
matéria primordial que seria “princípio”, uma substância que continuava
sempre a existir, mas mudava suas qualidades, sendo a fonte original de todas
as coisas que existem e na qual elas finalmente se decompõem.
Para cada filosofo existia um elemento primordial. Destacando-se
alguns filósofos, temos Tales de Mileto, que afirmava que esse elemento
primordial seria a água e tudo seria alteração da água, em diversos graus. Para
Anaximandro, a origem de todas as coisas era a partir do “Apeiron”, que seria
uma substância única da qual poderia se obter os opostos. É dessa substância
que se forma o mundo, sem a intervenção de deuses ou seres sobrenaturais.
A Terra, para ele, é um cilindro com base três vezes maior que a altura, e
teria surgido pela separação do quente do frio; a parte fria originou a Terra
e a quente, o Sol. O mundo habitado estaria em uma das superfícies planas
do cilindro e essa superfície estaria no centro de tudo, por isso ficava em
equilíbrio. Para Anaxímenes, o universo resultaria das transformações do ar;
da sua rarefação surgia o fogo, da sua condensação, o vento, a nuvem, a água
e, por último, a rocha.
Características marcantes dos modelos cosmogônicos dos pré-
socráticos:
 Não utilizavam deuses para explicar a origem do universo, ou seja,
queriam explicar tal origem racionalmente.

134
Astronomia no Ensino Médio

 O universo surgia a partir de um ou de vários elementos primor-


diais.
 Surge nesse conjunto de filósofos a ideia de átomo e vazio como
formadores da matéria.
 Para os atomistas, no início havia apenas uma mistura de todos
os elementos (cada um caracterizado por uma forma geométrica
específica), uma desordem que com o tempo culminaria em uma
junção das diferentes figuras geométricas, às quais estavam asso-
ciados aos elementos: fogo, terra, ar e água.

A.3 Timeu
Timeu é o personagem do livro que recebe seu nome; é um matemá-
tico e astrônomo seguidor da filosofia de Pitágoras. É Timeu quem descreve
as concepções sobre a origem e o desenvolvimento do universo nessa obra
escrita pelo filosófico Platão, que a apresenta como um “mito filosófico”. Pro-
põe que o universo foi criado por um deus que estaria fora do tempo e que o
faz a partir de um projeto para que a obra fosse a mais perfeita possível. Ele
cria o universo a partir de uma desordem, a qual ele organizará.
Dos estudos astronômicos da época surge a ideia de que a forma es-
férica seria a mais perfeita, que a Terra era redonda, estava no centro de tudo
e em sua volta estariam os planetas e as estrelas, menores que a ela, presos a
superfícies esféricas transparentes – denominadas “orbes” – que giravam em
torno de um centro que coincidia com aquele da Terra.
O referido mito filosófico incorpora todos esses elementos em suas
explicações. Seguindo a tradição de Pitágoras, Timeu assume que tudo foi
planejado de acordo com leis matemáticas e existiriam apenas quatro subs-
tâncias naturais (cada uma associada a uma figura geométrica tridimensional
típica): fogo (tetraedro), terra (cubo), ar (octaedro) e água (icosaedro).
Características marcantes do mito filosófico cosmogônico do Timeu:
 O universo é criado por um ser divino ou artesão que o faz total-
mente autossuficiente e perfeito.
 O criador ou artesão do universo lhe deu um movimento circular
em torno do seu próprio centro por ser esse um movimento perfeito.
 O tempo surgiu simultaneamente com o universo.
 A doutrina pitagórica, da qual Platão era herdeiro intelectual, in-
cluía a crença de que o princípio unificador do universo era dado
por proporções numéricas, na qual a harmonia musical seria sua
expressão máxima.

135
Gilvana Benevides Costa Fernandes

 Os elementos primordiais – terra, fogo, água e ar – que constituem


o universo estão associados a figuras geométricas tridimensionais,
podendo um elemento sofrer transformações e originar um outro.
É o caso, por exemplo, da água (icosaedro) que pode originar va-
por, que seria formado por duas partículas de ar (octaedro) e uma
de fogo (tetraedro).

A.4 Bíblia

A criação do universo é descrita no primeiro livro, chamado Gênesis,


e pode ser dividida em duas tríades. Na primeira, são criados a luz, o céu, as
águas, a terra (a parte seca) e os vegetais. Na segunda tríade são criados os
luzeiros (o Sol, a Lua e as estrelas), as aves, os peixes, os animais e os seres
humanos, havendo assim um complemento do que é criado no segundo dia
com o do primeiro.
Destaca-se, na história, duas importantes interpretações do Gênesis: a
dada por Philon e a por Santo Agostinho, descritas abaixo:
1. A interpretação do Gênesis pelo filósofo judeu de Alexandria (Século I
da era cristã), Philon, era de que os seis dias da criação seria um exemplo
de perfeição, pois podem ser representados por: 1 x 2 x 3 ou ainda 1 + 2
+ 3, sendo que o número dois é par e o três é impar, o dois é feminino e
o três é masculino. Philon interpretou o primeiro dia do Gênesis supon-
do que Deus, no início, constituiu o universo apenas mentalmente e só
depois o seu projeto o materializou. Esse projeto teria sete elementos: o
céu, a terra, o ar, o espaço vazio, a água, o espírito vital e a luz.
2. Na interpretação de Santo Agostinho, as criaturas foram tiradas do nada
em um só momento. Algumas apareceram logo na sua forma perfeita,
como o firmamento, os astros, a alma dos homens e os anjos, outras sugi-
ram na Terra sob forma incompleta, mas dotadas de virtudes intrínsecas
evolutivas. Ele nega que Deus teria construído o céu e a terra como um
artesão, que toma um material e o modela, pois se assim o fosse o mundo
seria perfeito uma vez que no início a única coisa que existia era a perfei-
ção de Deus. Como todo o material é mutável, deve ter sido criado. Deus
criou o mundo pela palavra, que é eterna e representa a sua sabedoria e
seu poder. Agostinho desenvolve a concepção de que Deus está fora do
tempo.

136
Astronomia no Ensino Médio

Algumas características marcantes da Bíblia para explicar o universo são:


 A existência de apenas uma divindade que cria todas as coisas.
 O Deus ordenando e estabelecendo "leis da natureza", como a de
que os animais e os homens devem se multiplicar.
 O Deus está fora do tempo, ou o tempo surge junto com o univer-
so.
 A palavra de Deus é eterna e de profunda sabedoria, logo, ao criar
os seres e objetos ele vai nomeando-os.

A.5 Descartes
A teoria cosmogônica de Descartes, que aparece na obra Princípios da
Filosofia, foi bem moderna para a sua época e explicou vários dos fenôme-
nos observados através da proposta dos vórtices, oferecendo esclarecimentos
compreensíveis em seu tempo. Porém, as explicações de muitos dos fenôme-
nos observados, como o movimento da Terra em torno do Sol, da Lua em tor-
no da Terra, das manchas solares, estavam baseadas nas teorias de Copérnico
e de Galileu, que iam de encontro ao que a igreja pregava. Essa perspectiva fez
com que Descartes resolvesse não publicar sua teoria, que só foi conhecida
depois de sua morte.
Sua teoria se destaca por tentar explicar a origem do universo, enquan-
to que as posteriores se concentraram em temas mais específicos: o desenvol-
vimento da Terra, ou o desenvolvimento dos astros, ou algum outro ponto.
Mas, no final do século XVII, a física passa por uma reformulação que exigia
que as teorias permitissem fazer cálculos e previsões quantitativas, e o mais
grave defeito da teoria de Descartes foi o de não ter uma base matemática
e, sim, uma base qualitativa, recebendo, assim, duras críticas do físico Isaac
Newton.
Características marcantes da teoria cosmogônica de Descartes:
 O papel de Deus é limitado, ocorrendo apenas no começo, crian-
do a matéria inicial, que preenche todo o espaço, quebrando-a e
colocando-a em movimento. O resto do processo ocorre por leis
naturais, sem intervenção divina.
 Através do movimento e sucessiva quebra das partes da matéria
inicial sólida, surgem três elementos:
a) O terceiro elemento, que seria constituído de partículas
sólidas maiores associadas ao solo;

137
Gilvana Benevides Costa Fernandes

b) O segundo elemento seria de partículas esféricas com o


movimento fluido, como o da água; e
c) O primeiro elemento seria de partículas ainda menores
e associadas ao fogo.
 O primeiro elemento (fogo), com movimento rápido, se encon-
traria no centro de um vórtice e daria origem a uma estrela. O se-
gundo elemento, com seu movimento fluido típico, fica distribuí-
do ao redor da estrela. O terceiro elemento poderia ser capturado
pela estrela e cobri-la e apagá-la um pouco ou totalmente, o que
daria origem às manchas solares ou aos planetas, que acabariam
sendo capturados por um outro turbilhão vizinho e, se algum de-
les ficasse passando de um turbilhão para outro, seria um cometa.
 O sistema solar é composto por mais de dez turbilhões próximos
uns dos outros e de diferentes tamanhos. A Lua teria sido uma es-
trela pequena que se esfriou e foi capturada pelo vórtice da Terra
quando esta ainda era uma estrela. Depois, a Terra se esfriou e foi
capturada pelo vórtice do Sol.

A.6 Big Bang

Teoria proposta em 1947 por George Gamow, que supôs o início do


universo com densidade enorme, a uma altíssima temperatura. Essa matéria
inicial conteria partículas, como nêutrons ou prótons, e radiação gama de alta
energia.
Características marcantes do modelo do Big Bang (Grande Explo-
são):
 Não existe nenhum ser divino que cria o universo.
 Concentração de energia e densidade em uma única região, cha-
mada de “átomo primordial”.
 O tempo é linear e surge junto com o espaço.
 Depois de um centésimo de segundo do início da expansão, o
universo tem 10 bilhões de kelvin; esta temperatura favoreceu
a união de prótons com nêutrons, dando origem à formação de
núcleos de hidrogênio pesado e hélio.
 À medida que o universo se expande, sua temperatura vai de-
caindo e isso favorece o surgimento de partículas mais pesadas.

138
Astronomia no Ensino Médio

Anexo A: Educação? Educações: aprender com os índios19

Transcrito de: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (1983).

Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem mi-


nha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água – carece de
espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente
aprende.
João Guimarães Rosa / Grande Sertão: Veredas.

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola,


de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela:
para aprender, para ensinar, para aprender – e – ensinar. Para saber, para fazer,
para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com educação.
Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos por isso
sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos
invade a vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios
uma vez escreveram?
Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram
um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas
e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos so-
lenes como aqueles, logo depois de seus governantes mandarem cartas para
os índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos,
os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conheci-
da porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de
divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:
“...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores querem o
bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são
sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes
das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber
que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.
...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do
Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltaram
para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e
incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o
veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa lín-
gua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam

19 Texto utilizado na atividade exposta na subsubseção 3.2.3 (Aprendendo com os índios).

139
Gilvana Benevides Costa Fernandes

como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos


extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possa-
mos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres
senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes
ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens”.

De tudo que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões


mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma úni-
ca nem um único modelo de educação: a escola não é o único lugar onde ela
acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática
e o professor profissional não é o seu único praticante.
Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas socie-
dades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em so-
ciedades camponesas, em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou
aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas
sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e
sobre as pessoas.
Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe
em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que sub-
metem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais
de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em
todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do apren-
der; primeiro sem classe de alunos, sem livros e sem professores especialistas;
mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos.
A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das manei-
ras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como
crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela
pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber
e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os
homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A educação é, com outras, uma fração do modo de vida dos grupos
sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura,
em sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas
reproduzam entre todos que ensinam – e – aprendem, o saber que atravessa
as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os
segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer
povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um

140
Astronomia no Ensino Médio

de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens,
trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e
desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de gera-
ções em gerações, a necessidade da existência de sua ordem.
Por isso mesmo – e os índios sabiam – a educação do colonizador,
que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente le-
galidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação
do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante
dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, den-
tro de sua cultura.
Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação
é um dos meios de que os homens lançam mão para criarem guerreiros ou
burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda
a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e
legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de cren-
ças e de ideias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de
símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades.
E esta é a sua força.
No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome
de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na ver-
dade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e
ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação – nas
suas agências, suas práticas e nas ideias que ela professa – interesses políticos
impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta
é a sua fraqueza.
Aqui e ali será preciso voltar a estas ideias, e elas podem ser como um
roteiro daqui para frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na
ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se
diz para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma
coisa melhor, de acordo com imagens que se tem de uns e de outros: “...e deles
faremos homens”. Mas na prática a mesma educação que ensina pode desedu-
car, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa fazer, ou do que
inventa que pode fazer: “...eles eram, portanto, totalmente inúteis”.

141
Gilvana Benevides Costa Fernandes

Anexo B: A origem do universo20

1 Segundo o povo Dessâna, que habita entre os rios Tiquié e Papuri,


no noroeste do Amazonas.

Transcrito de: JECUPÉ, K. W. (1998).

No princípio o mundo não existia. As trevas cobriam tudo. Enquanto


não havia nada, apareceu a mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio das
trevas. Ela apareceu sustentando-se sobre o seu banco de quartzo branco. En-
quanto aparecia, ela cobriu-se com enfeites e fez como um quarto. Esse quar-
to chamava-se ‘Uhtaboho taribu’, o quarto de quartzo branco. Ela chamava-se
Yebá Burô, a ‘Avó do Mundo’ ou ‘Avó da Terra’.
[...]
Havia coisas misteriosas para ela criar por si mesma. Havia seis coisas
misteriosas: um banco de quartzo branco, uma forquilha para segurar o ci-
garro, uma cuia de ipadu, o suporte dessa cuia de ipadu, uma cuia de farinha
de tapioca e o suporte dessa cuia. Sobre essas coisas misteriosas é que ela se
transformou por si mesma. Por isso ela se chama a ‘Não Criada’.
Foi ela que pensou o futuro do mundo, sobre os futuros seres. Depois
de ter aparecido, ela começou a pensar como deveria ser o mundo. No seu
quarto de quartzo branco, ela comeu ipadu, fumou o cigarro e se pôs a pensar
como deveria ser o mundo.
Enquanto ela pensava no quarto de quartzo branco, começou a se le-
vantar algo, como se fosse um balão, e em cima dele apareceu uma espécie de
torre. Isso aconteceu com o seu pensamento. O balão, enquanto se levantava,
envolveu a escuridão, de maneira que esta ficou dentro daquele. O balão era o
mundo. Não havia ainda luz. Tendo feito isso ela chamou o balão, Umukowií,
‘Maloca do Universo’.
Ela o chamou como se fosse uma grande maloca. Este é o nome mais
mencionado nas cerimônias até hoje.

20 Textos utilizados na atividade exposta na subsubseção 3.2.5 (Representação teatral sobre a origem do
universo).

142
Astronomia no Ensino Médio

2 Concepção indiana antiga no Rig Veda.

Transcrito de: MARTINS, R. de A. (1994, p. 33-34).

Então não havia nem o ser nem o não-ser; não havia o domínio do ar
nem o céu além dele. O que estava recoberto? Onde? Em que receptáculo?
Existia um abismo de águas profundas?
Então não havia morte, nem havia imortalidade, nem havia distinção
entre o dia e a noite. Aquele Um respirava sem vento, por si próprio. Nada
diferente dele; o que além dele?
Havia trevas ocultas em trevas, tudo isso era um ondular indistinto.
Aquilo existia envolto no vazio; pelo poder do seu ardor, aquilo cresceu e
se manifestou. Nele surgiu primeiramente o desejo, a semente primordial da
mente.
A união do ser ao não-ser foi descoberta pelos sábios, que refletiram
sobre o que contemplaram em seus corações. O raio se estendeu através de-
les. O que estava embaixo e o que estava em cima? Havia inseminadores, ha-
via poderes, autonomia embaixo e energia além.
Quem realmente sabe, quem poderia dizer de onde brotou, de onde
provém esta criação? Os deus são posteriores à sua criação, se ela foi feita ou
não o foi, ele que a observa do mais alto dos céus, ele realmente o sabe, ou
talvez nem ele o saiba.

3 Concepção judaica na Bíblia.

Transcrito de: MARTINS, R. de A. (1994, p. 9).

No princípio, Deus criou o céu e a Terra.


E a Terra era uniforme e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo; e
o espírito de Deus se movia sobre as águas.
E Deus disse: “Que seja feita a luz”. E a luz se fez.
E Deus viu que a luz era boa. E separou a luz das trevas.
Chamou a luz de Dia, e as trevas de Noite. E fez-se a tarde do dia um.
E disse também Deus: “Seja feito o firmamento em meio às águas, e
divida as águas das águas”.

143
Gilvana Benevides Costa Fernandes

E Deus fez o firmamento, dividindo as águas que estavam sob o firma-


mento e as que estavam sobre o firmamento. E isso se fez assim.
E Deus deu ao firmamento o nome de Céu. E fez-se a tarde e a manhã
do segundo dia.
Deus disse: “Reúnam-se as águas que estão sob o céu, em um lugar, e
que apareça o seco”. E isso se fez assim.
E Deus chamou o seco de Terra e denominou a reunião das águas de
Mar. E Deus viu que era bom.
E disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e que ele
presida os peixes dos mares, as feras de toda terra, e todos os répteis que se
movem na terra”.
E Deus criou o homem à sua imagem; pela imagem de Deus o criou;
criou o macho e a fêmea.
E Deus os abençoou, e disse: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a ter-
ra, e sujeitai e dominai os peixes dos mares, e os pássaros dos céus, e sobre
todos os animais que se movem sobre a terra”.
No sétimo dia Deus terminou a obra que havia feito; e repousou no
sétimo dia, de todas as obras que produziu.

4 Concepções científicas.

Transcrito de: BRETONES, Paulo (1995).


Antes da década de 20, a maior preocupação dos cosmologistas não
era descobrir a origem do universo, mas simplesmente observar seus elemen-
tos e descobrir como se comportavam. Alguns desses estudiosos perceberam
que galáxias mais ou menos “próximas” se mantinham juntas devido à atração
da gravidade. Mas as mais distantes se afastavam em velocidade proporcional
à distância existente entre elas e as outras. Em 1929, Hubble descobriu que a
velocidade de afastamento das galáxias é maior quanto maior for a distância
entre elas. Ou seja, isso significava que o universo estava em expansão.
Tal descoberta deixou os astrônomos em polvorosa. Afinal, se o uni-
verso estava se expandindo, amanhã ele seria maior do que hoje e assim por
diante. Isso poderia querer dizer, por outro lado, que, se voltássemos cada vez
mais no passado, ele seria progressivamente menor. E, por fim, poderia estar
reduzido a um “ponto” de matéria muito densa e concentrada.

144
Astronomia no Ensino Médio

Como esse ponto teria dado origem ao atual universo? Para os cos-
mologistas, por algum motivo, esse “ovo cósmico” explodira em uma enorme
nuvem de poeira cósmica, que teria originado todo o universo. A expansão
universal hoje verificada pelos astrônomos ainda seria consequência dessa
explosão inicial, mais conhecida como big bang (grande explosão, em inglês),
que teria ocorrido há 15 ou 20 bilhões de anos. As teorias mais recentes di-
zem que a Via Láctea está se dirigindo para o centro do grupo local que se
desloca para o aglomerado de galáxias na constelação de Virgem. Todo esse
conjunto corre em direção ao chamado “Grande Atrator”, uma superconcen-
tração de galáxias além da região da constelação de Centauro.
No entanto, o big bang não é a única explicação para a origem do uni-
verso, é apenas a mais aceita no momento. Alguns astrônomos defendem a
ideia de um universo estacionário ou de criação contínua. Segundo essa te-
oria, o universo foi, é e será sempre o mesmo. Nunca teria havido a explosão
de um ovo cósmico, e o universo não se expandiria. Apenas se criariam novas
fontes de energia nos espaços deixados por essas galáxias e nelas outras galá-
xias surgiriam, mantendo-se ainda a mesma densidade média de matéria do
universo como um todo.
Já os defensores do universo oscilante acreditam que esse nosso uni-
verso tenha mesmo se formado a partir de um big bang ocorrido há 20 bi-
lhões de anos. Também acham que ele deverá se expandir, com as galáxias
se afastando uma das outras até que se tornará impossível detectá-las com
qualquer tipo de instrumento.
Quando ocorrer essa expansão máxima do universo, daqui a trilhões
de anos, a atração gravitacional superará a força do big bang e as galáxias
afastadas começarão de novo a aproximar-se, em velocidade crescente. Final-
mente, todas as galáxias se amassariam umas contras as outras, numa imensa
implosão denominada big crunch (grande amassamento). Depois, um novo
big bang originaria outro universo. E assim sucessivamente. Isso caracteriza-
ria um universo oscilante entre expansões e contrações sucessivas e infinitas.
Atualmente, estaríamos numa fase de expansão do universo, que teve início
com o big bang.

145
Cosmoeducação

Capítulo 3
Cosmoeducação:
uma abordagem transdisciplinar
no ensino de astronomia

Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo1 apresentamos uma proposta transdisciplinar para o
ensino de astronomia que reúne práticas sistemáticas de observações do céu
e exercícios da psicologia transpessoal vivenciadas no contexto escolar com
professores do ensino fundamental.
O objetivo dessa proposta é que os educadores tenham experiências
que favoreçam o conhecimento sobre as dimensões do universo, sensibili-
zando-os para que ampliem sua visão de mundo e estimulando-os a discutir
e vivenciar com seus alunos conteúdos de astronomia. Esta proposta cosmo-
educativa é uma iniciativa de inspiração claramente transdisciplinar, uma vez
que transcende as fronteiras disciplinares em questão, visando o desenvol-
vimento integral do ser humano. É importante destacar que tal iniciativa é
pioneira ao propor a aplicação dessa conjunção teórico-vivencial de caráter
psicocognitivo no contexto educacional. Neste sentido ainda há muito a ser
desenvolvido e implementado nesta linha de trabalho.
Consideramos que grande parte da pertinência deste trabalho vem da
constatação de que há uma enorme carência em educação de iniciativas que
propiciem aos professores oportunidades de autoconhecimento e autotrans-
formação, que servirão de base para as mudanças a serem experimentadas em
sala de aula.

1 Este capítulo resume conteúdos, reflexões e práticas expostos anteriormente nos trabalhos de
Medeiros e Jafelice (2003; 2004a; 2004b) e Medeiros (2006) – este último também disponível
através do sítio: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm [nesta página, clicar em “Outras
Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”] –, aos quais remetemos os leitores interessados em
maiores detalhamentos.

147
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Esta proposta educacional visa diminuir a fenda existente entre co-


nhecimento científico e experiência humana, no sentido de propiciar ao edu-
cador, em primeiro lugar, a vivência da unidade ser humano-cosmo, como
também estimular a ocorrência de potenciais mudanças na concepção de
universo dos sujeitos envolvidos. Tal proposta é realizada tendo em vista o
desenvolvimento de uma cidadania fundamentada em valores ético-morais
mais universalistas, ao mesmo tempo em que compatíveis com a existência
plural das culturas.
Inicialmente apresentamos o problema da separação entre o ser hu-
mano e o cosmo, cultivada há alguns séculos na cultura ocidental, e suas
consequências nos dias atuais, especialmente no que diz respeito à crise
ambiental sem precedentes que vivemos. Abordamos os atuais paradigmas
científicos e respectivas concepções de realidade, bem como os níveis de
percepção do sujeito segundo a fenomenologia. Apresentamos algumas
visões educacionais propostas por O’Sullivan (2004) e discutimos o impor-
tante papel que a educação tem a desempenhar no cenário global, rumo a
uma mudança de mentalidade em direção ao humano e à solidariedade, que
comporte um efetivo acolhimento das diversidades, inclusive culturais, que
tanto se faz necessário.
Em seguida apontamos uma proposta de superação para a crise de
fragmentação decorrente da visão dualista herdada do paradigma newto-
niano-cartesiano. Tal proposta se fundamenta na interface entre a psicologia
transpessoal e o ensino de astronomia. Definimos a psicologia transpessoal,
bem como seu objeto de estudo e a cartografia da consciência.
Refletimos sobre o potencial autotransformador da astronomia quan-
do tratada segundo uma abordagem antropológica, de caráter naturalmente
holístico. Apresentamos nossa hipótese de trabalho na qual defendemos que
a astronomia é uma porta cultural através da qual o homem moderno (re)
estabelece suas relações com o céu, podendo readquirir, através da mesma, o
hábito do contato com as coisas do céu, redescobrindo-o. Explicitamos tam-
bém as bases da abordagem transdisciplinar utilizada na realização da nossa
proposta.
Apresentamos o percurso metodológico trilhado por nós, o qual foi
sendo definido a partir da estratégia que adotamos, bem como os instrumen-
tos utilizados e a proposta na prática.

148
Cosmoeducação

Finalmente, comentamos os resultados de nossa prática com base na


análise dos discursos – tanto orais quanto escritos e simbólicos (desenhos,
mandalas, comunicação não verbal) – dos professores participantes, assim
como destacamos as conclusões obtidas a partir dessa análise.
Observamos que os conteúdos abordados em astronomia causam
uma forte repercussão na psique humana, possivelmente, por um lado, por
tais conteúdos apresentarem dimensões que extrapolam a nossa imaginação
e, por outro lado, por nos remeterem a um passado longínquo (ancestralida-
de) e mesmo à nossa própria origem, contida na origem do universo.
De um modo geral, concluímos que os resultados reforçaram o pres-
suposto de que temas de astronomia, se trabalhados segundo abordagem ho-
lístico-antropológica e, em particular, relacionados com exercícios e técnicas
da psicologia transpessoal, funcionam como uma porta cultural e acadêmica
que contribui para a percepção da unidade existencial entre o ser humano e o
cosmo, favorecendo mudanças na visão de mundo dos educadores.

2 UM OLHAR SOBRE O PROBLEMA DA SEPARAÇÃO


ENTRE O SER HUMANO E O COSMO
O século XX se caracterizou por grandes contrastes no que se refere
à relação do ser humano com o meio ambiente em que vive. À medida que
se foi adquirindo conhecimento acerca do universo, se foi, por outro lado,
perdendo a intimidade com o mesmo. No caminho epistemológico que foi
sendo consagrado como privilegiado em nossa cultura, portanto, um aumen-
to de conhecimento implica, de modo quase inevitável, em um afastamento
de possíveis integrações do conhecedor com o que vai sendo conhecido.
Assim, atualmente, a pesquisa espacial, por exemplo, vem realizando
avanços sem precedentes na história da astronomia, no entanto a maioria das
pessoas perdeu o contato com o céu. Ao contrário de nossos ancestrais, que
tinham um contato direto e vivencial com as coisas do céu, o ser humano oci-
dental moderno, especialmente habitante de grandes centros urbanos, tem
excluído metade do espaço de sua vida. Segundo o arqueoastrônomo Aveni
(1993, p. 20):
Tudo o que aprendemos sobre o céu hoje é adquirido por meio de
livros e, ocasionalmente, da visita a um planetário. Exceto, talvez,
quando abrimos a porta à noite para colocar o lixo para fora ou

149
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

quando saímos do carro no caminho para casa e damos uma olhada


para cima para ver se poderá chover amanhã, vivemos em um mundo
basicamente sem consciência da metade de espaço visível que está
acima do nível de nossos olhos.

O trecho acima ilustra o quanto nos distanciamos da experiência direta


com o ambiente circundante que inclui as coisas do céu, bem como torna ex-
plícita a enorme fenda existente entre conhecimento científico e experiência
humana. Segundo Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 31), “A não ser que
nos posicionemos para além dessas oposições, o abismo entre a ciência e a
experiência em nossa sociedade irá aumentar. [...] A experiência e a compre-
ensão científica são como duas pernas sem as quais não podemos caminhar”.
Os avanços tecnológicos aeroespaciais nos permitem viajar fisicamen-
te além da órbita planetária e, no entanto, a maior parte das pessoas está des-
conectada de uma instância existencial – a celeste –, que não só representa a
outra metade do meio ambiente físico, mas que reflete em nosso imaginário
uma estrutura de unidade, constância e harmonia precisas, devido às repeti-
ções diárias e sazonais regulares dos ciclos realizados pelos corpos celestes.
É relevante destacar, seguindo Jafelice (2006a), que ao longo da
história da humanidade, especialmente em seus primórdios, o céu inspirou
fortemente a organização de estruturas espaciais, temporais e socioculturais
em nossos antepassados mais distantes2, como, por exemplo, as orientações
de caráter celeste para a elaboração de calendários lunares, arquiteturas de
templos, rituais e festejos de equinócios e solstícios ou, mais recentemente, a
realização das grandes navegações. “A relação do céu com a terra constituiu a
nossa forma de estar no mundo enquanto espécie animal e, portanto, o céu está
constitutivamente em nós” (JAFELICE, 2006a; grifo do autor e nosso).
Segundo Jafelice (2003a, p.1):
astronomia e autoconhecimento na história antiga da humanidade
estão indissociáveis e caminham paralelos. Essa relação sempre esteve
presente pela vertente da forma que o ser humano existe no planeta:
em estreita relação com o ambiente que o cerca. Esse ambiente, por
sua vez, mantém estreita conexão com o céu, pois este determina, em
última instância, o que ocorre com aquele. Portanto, a conexão entre
céu (astronomia), terra (meio ambiente) e seres humanos (parte do
todo) é direta e clara.

2 Esta discussão é feita, em maior profundidade, na subseção 2.3 (Antropologia; cronobiologia; cultura,
natureza, cultura) e no apêndice 2 (O céu na organização da vida humana ao longo da história da
humanidade) do capítulo 4 deste livro.

150
Cosmoeducação

2.1 Crise conceitual e fragmentação

A condição de distanciamento do ser humano moderno do ambiente


em que vive, incluindo a natureza, o céu, os outros seres e suas inter-relações,
tem causado graves problemas de ordens diversas, com sérias implicações
para o equilíbrio pessoal e planetário. Vivemos um momento de crise gene-
ralizada, especialmente devido aos desequilíbrios ambientais e culturais, pro-
vocada por um modo fragmentado e reducionista de perceber a nós mesmos
e ao mundo.
Segundo Capra (c1996, p.23, grifo nosso), físico e ecologista, no seu
livro Teia da vida:
Defrontamos-nos com toda uma série de problemas globais que es-
tão danificando a biosfera e a vida humana de uma forma alarmante,
e que pode se tornar irreversível. [...] Tais problemas não podem ser
entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa
que estão interligados e são interdependentes. Por exemplo, somen-
te será possível estabilizar a população quando a pobreza for redu-
zida em âmbito mundial. A extinção de espécies animais e vegetais
numa escala massiva continuará enquanto o Hemisfério Meridional
estiver sob o fardo de enormes dívidas.[...] Esses problemas refletem
diferentes facetas de uma única crise: a crise de percepção.

Nesse sentido, tal crise descrita por Capra (c1996) deriva da maneira
que vemos a nós mesmos e a realidade à nossa volta, a qual, consequentemen-
te, determina a maneira como agimos em relação a outros seres humanos, à
biosfera e ao universo. Segundo citação do livro Meio Ambiente e Saúde – Te-
mas Transversais, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do 1o e 2o
Ciclos do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 22, grifo nosso):
[...] a questão ambiental representa quase uma síntese dos impasses
que o atual modelo de civilização acarreta. Consideram que aquilo a
que se assiste, no final do século XX, não é só uma crise ambiental,
mas uma crise civilizatória. E que a superação dos problemas exigirá
mudanças profundas na concepção de mundo, de natureza, de poder,
de bem-estar, tendo por base novos valores individuais e sociais. Faz
parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o homem não
é o centro da natureza.

A partir das citações acima e seguindo o pensamento de Matthews


(1994), é possível inferir que essa série de problemas humanos e ambientais
necessita de uma compreensão científica mais ampla, da qual ainda estamos

151
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

muito carentes, uma vez que a prática educacional, especialmente a educação


em ciência no Ocidente, também está fortemente caracterizada pela fragmen-
tação.
É importante destacar, contudo, que tal compreensão científica ne-
cessária, além de mais ampla, precisa ainda ser construída com base em um
outro paradigma. Com efeito, o atual paradigma científico ainda tem como
características marcantes o reducionismo, a fragmentação e a reivindicação
de superioridade epistemológica. Estas características são, no mínimo, con-
traproducentes na busca de soluções sistêmicas em contextos envolvendo di-
versidades de várias ordens, que, além de respeitadas, precisam ser considera-
das na referida busca. Neste sentido, convém manter em mente que o fato de
a educação científica também estar fortemente marcada pela fragmentação é,
em grande parte, consequência de aquela tentar reproduzir a compartimenta-
ção ainda constitutiva do paradigma científico prevalecente.

2.2 Paradigmas e modelos de realidade

Um paradigma científico consiste num sistema de referências cons-


tituído de concepções, valores, técnicas, etc. compartilhado por uma dada
comunidade científica e utilizado pela mesma para definir e lidar com pro-
blemas.
De acordo com Matos (1992), atualmente pode-se observar no mun-
do ocidental científico a presença de duas realidades básicas originadas a par-
tir de dois paradigmas científicos distintos: a realidade cartesiana-newtoniana
e a realidade da física moderna.
O paradigma cartesiano, o qual vem modelando a sociedade moderna
ocidental há mais de três séculos, teve início com a chamada revolução cien-
tífica caracterizada por descobertas em física, astronomia e matemática no
final do século XVI e início do século XVII, associadas principalmente aos
nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. A denominação
deste paradigma como cartesiano-newtoniano é devido à forte influência do
pensamento conceitual de Descartes (cartesiano), cujo todo pode ser enten-
dido através da análise das pequenas partes que o compõem, mais tarde coro-
ado com a mecânica de Newton (newtoniana).
Podemos dizer que algumas palavras-chaves que caracterizam o
paradigma mecanicista são: racionalismo, reducionismo e linearidade. Tal

152
Cosmoeducação

paradigma se edifica a partir do princípio da separação entre mente e matéria,


e concebe o mundo como sendo formado por objetos cuja existência é
independente da consciência humana. Segundo essa visão de mundo, o
universo é formado por um conjunto de objetos mais ou menos separados
entre si, ou visto como um sistema mecânico onde o ser humano é percebido
como uma máquina ou uma parte elementar isolada, onde a vida em socie-
dade é baseada na crença de que o progresso material ilimitado pode ser
obtido pelo desenvolvimento econômico e tecnológico (científico).
A realidade da física moderna, onde esta é fundamentada em concei-
tos da teoria quântica e da teoria da relatividade, vai de encontro à realidade
descrita pela mecânica de Newton. Segundo Toben e Wolf (1982), a teoria
quântica aponta para uma conexidade, de acordo com a qual as observações
efetuadas sobre um objeto de fato afetam os resultados observados, pois o ato
de observação afeta o estado quântico do próprio objeto observado, interfe-
rindo na dinâmica futura do mesmo, isto é, afetando-o mesmo quando não
haja mais entre ambos qualquer tipo de contato físico conhecido. Segundo
Heisenberg (1971 apud CAPRA, c1996, p. 41-42), um dos fundadores da
teoria quântica: “O mundo aparece assim como um complicado tecido de
eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam, se sobrepõem ou
se combinam e, por meio disso, determinam a textura do todo”.
Segundo este paradigma, o universo consiste numa teia dinâmica onde
tudo está interligado com tudo, onde não existe separação entre o sujeito e o
objeto, sendo o ser humano parte integrante deste todo, refletindo em si mes-
mo o macrocosmo, tal qual uma holografia3.
Dois termos que a nosso ver sintetizam estas realidades fundamenta-
das nesses dois paradigmas – cartesiano-newtoniano e da física moderna –,
são, respectivamente: Dualismo e Unidade.

3 Imagem tridimensional, também chamada de holograma, onde cada parte reflete o todo da figura.
Segundo Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 34), “o holograma é uma imagem física, concebida por
Gabor, que, diferentemente das imagens fotográficas e fílmicas comuns, é projetado ao espaço em três
dimensões, produzindo uma assombrosa sensação de relevo e cor. O objeto holografado encontra-
se restituído, em sua imagem, com uma fidelidade notável. [...] Como afirma Pinson, cada ponto
do objeto holografado é ‘memorizado’ por todo o holograma, e cada ponto do holograma contém a
presença do objeto em sua totalidade ou quase. Desse modo a ruptura da imagem holográfica não de-
termina imagens mutiladas, mas imagens completas, que se tornam cada vez menos precisas à medida
que se multiplicam. O holograma demonstra, portanto, a realidade física de um tipo assombroso de
organização, na qual o todo está na parte que está no todo, e na qual a parte poderia ser mais ou menos
apta a recriar o todo”.

153
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

2.2.1 Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo


O foco do nosso trabalho é a concepção de mundo dos sujeitos en-
volvidos, a qual determina a forma de estes lidarem com o universo em que
vivem. Com a finalidade de entender como o sujeito constrói a concepção de
mundo, utilizaremos como referência a abordagem fenomenológica.
Como explica Bertolucci (1991), a realidade, segundo a fenomenolo-
gia, é uma experiência do sujeito, o qual é ativo em sua percepção, mesmo que
inconscientemente. De acordo com esta abordagem, a realidade percebida
depende da atividade da consciência, a qual consiste no princípio fundamen-
tal que produz significado do mundo, estando vinculada a algumas variáveis
como, por exemplo, o condicionamento social, a cultura, os estímulos do
meio ambiente, a idade.
Enquanto, em oposição a esta proposta, o naturalismo advoga que
as coisas externas existem tais como são vistas e o sujeito capta a realidade
sensorialmente, através dos estímulos que lhes chegam aos sentidos, a feno-
menologia argumenta que o indivíduo tem, em cada momento vivido, uma
“posição” afetiva, imaginária, perceptiva ou cognitiva, que é a origem do sen-
tido que capta do mundo.
Dessa forma, perceber muda de acordo com o estado de consciência
e, portanto, as realidades existem de acordo com estes estados de consciência
que o sujeito experiencia num dado momento. Em suma, deverão existir tantas
realidades quantos forem os estados de consciência vivenciados pelo sujeito
perceptivo. Portanto, não é possível explorar a realidade sem explorar a nós
mesmos, tanto por sermos como por criarmos a realidade que exploramos.
De acordo com Matos, o que nos faz ficar na 1ª realidade descrita pelo
paradigma cartesiano – e perceber uma separação entre nós e tudo o mais que
existe – são nossos exteroceptores ou nossos cinco sentidos. Assim, passamos
a vida toda tentando segurar as coisas, imprimindo aquela forma na memó-
ria sem perceber a transformação (MATOS, 1996). Ainda segundo Matos
(1992), se olharmos para um sólido edifício, possivelmente iremos experien-
ciar esta construção como algo imutável, sem pensar que aqueles materiais
não estavam ali há quinhentos anos atrás ou que não estarão, quinhentos anos
à frente. Raramente pensamos que todos aqueles materiais compostos de
moléculas e átomos estão em movimento e transformação constante. Perce-
ber este nível de atuação, ou pelo menos conscientizar-se deste estado, exige

154
Cosmoeducação

o exercício da observação em profundidade, a qual requer uma mudança na


forma de estar no mundo.
Portanto, num estado de consciência usual ou ordinária de vigília, não
somos capazes de perceber a “conexidade” proposta pela mecânica quântica,
mas, sim, aptos a ver o universo num contexto de separação proposto pelo pa-
radigma newtoniano-cartesiano. Isto também se deve ao condicionamento –
de teor cultural – de pelo menos três séculos de inculcação quanto à forma de
perceber a realidade segundo as premissas do paradigma dualista.
No entanto, pesquisas de vanguarda na área da psique humana no Oci-
dente, desde o final da década de 60 do século passado, exploram os estados
modificados de consciência, diferentes da vigília, que transcendem o concei-
to de identidade individual e permitem ao sujeito vivenciar a interconexão
descrita pela física quântica, ou pelo menos um tipo de interconexão que,
quando expressa em palavras, se assemelha muito a algumas verbalizações
da interconexão oriunda da abordagem quântica. Neste movimento de ex-
pansão da percepção de si mesmo, o ser humano pode se sentir um só com o
universo, experienciando sua identidade cósmica e despertando em si valores
éticos como responsabilidade universal, solidariedade e fraternidade.
Como disse o poeta William Blake: “se as portas da percepção fossem
purificadas, tudo apareceria ao homem tal como é, infinito”.

2.3 Visões em educação

No âmbito do sistema educacional, o paradigma mecanicista se ex-


pressa através de propostas educacionais modernistas que atuam no sentido
de alimentar os interesses mercadológicos do sistema industrial, reforçando
valores individualistas, materialistas e competitivos, que, por sua vez, contri-
buem para um distanciamento de si mesmo, do outro, da natureza e do uni-
verso. Em seu livro Aprendizagem Transformadora, O’Sullivan (2004) assume
a existência de três visões em educação: uma progressista, de acordo com o
paradigma mecanicista newtoniano-cartesiano, outra tradicional e uma ter-
ceira emergente e biocêntrica. O quadro seguinte ilustra e especifica mais em
detalhe cada uma dessas visões.

155
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Quadro 1* – Visões educacionais

Características \ Tecnozoico- Ecozoico-


Orgânico-conservador
Visão progressista transformador

História / visão de
mundo Moderna Antimoderna Pós-moderna
educacional
Relação com a
comunidade e com Exploradora Tradicional Reflexiva / interativa
o mundo natural
Desenvolvimento
Visão do tempo Evolutiva Cíclica / estática
temporal
Essencialista
Visão do espaço Pluralista Orgânica / interativa
orgânica
Biocêntrica
Orgânica
(isto é, rede orgânica
Metáfora básica Mecanicista antropológica
da vida),
(corpo humano)
“o círculo da vida”
Superficial /
Visão do conflito Perversão / anarquia Criativa
amenizadora
Características
educacionais Progressista Tradicional Emergente
contemporâneas
* Fonte: O’Sullivan (2004, p. 86).

O sistema educacional ainda se encontra fortemente caracterizado


pela visão tecnozoico-progressista, cujos valores de natureza egocêntrica e
fragmentada têm contribuído, em grande escala, para promover a crise am-
biental que vai se agravando e pondo em risco o sistema de vida da Terra, dei-
xando o planeta – portanto cada um de nós também – num estado emergen-
cial de alerta. De acordo com O’Sullivan (2004, p. 26), “a tarefa educacional
essencial de nosso tempo é fazer a opção em favor de um hábitat planetário
sustentável para seres vivos interdependentes, além e contra o apelo disfun-
cional do mercado competitivo global”.
Neste sentido, reconhecemos o importante papel que a educação tem
a desempenhar no cenário global, como agente transformador, fomentando a
quebra de paradigmas e o desenvolvimento de valores elevados compartilhá-
veis, especialmente no que diz respeito a uma relação mutuamente benéfica
entre os seres humanos, o planeta e o cosmo, visando a construção de uma
sociedade menos progressista e mais evoluída.

156
Cosmoeducação

De acordo com Vajpeyi (1995), a proposta de qualquer sistema edu-


cacional é, de alguma forma, promover o desenvolvimento integral do indi-
víduo, contextualizando o aprendizado, para que esclareça o aluno sobre si
mesmo e as relações com o meio ambiente que o cerca. Neste ponto, o atual
sistema educacional tem falhado em grande escala, especialmente no que diz
respeito à relação com o meio ambiente natural que o cerca. Ao contrário
disso, a educação tem, até certo ponto, ignorado o impacto desta forma pre-
dadora do ser humano em relação à natureza em prol de servir a uma visão
global baseada no comércio e no progresso econômico. Esta visão modernis-
ta em educação, voltada para atender as necessidades industriais, funciona
mais como problema que solução para a crise ambiental que põe em risco a
vida do planeta. Diante disso, são necessárias profundas mudanças no sistema
educacional para que os educadores se posicionem de modo mais assertivo
frente aos graves problemas ambientais dos dias atuais. Vide também, nestas
mesmas linhas de argumentação e discussão, Hutchison (2000).
Como exemplos do terror que nos cerca em escala planetária, pode-
mos citar o aquecimento global (efeito estufa; envolvendo as mudanças cli-
máticas), o buraco na camada de ozônio, o lixo tóxico, as chuvas ácidas, a
poluição do ar, a escassez de água potável à medida que a demanda aumenta
acima do ritmo da reposição, a redução das florestas tropicais, a extinção de
várias espécies, entre outros assombros que exige de nós uma resposta ur-
gente no sentido de reparar a relação do ser humano com o planeta. Segundo
O’Sullivan (2004, p. 48), “o desafio educacional é saber como atingir um ní-
vel constante de conscientização em relação a esses problemas e mantê-lo em
primeiro plano em nossa percepção cultural”.
Essa tarefa não será fácil uma vez que não fomos educados para ter
consciência planetária. Neste sentido, O’Sullivan (2004) propõe uma educa-
ção planetária transformadora, para a qual sinaliza a necessidade de um grau
de alfabetização mais ampla, a qual denominou “alfabetização terrestre” ou
“alfabetização ecológica”.
Segundo Morin (2002, p. 75-76) “a união planetária é a exigência ra-
cional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a
consciência e um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à nossa
terra, considerada como primeira e última pátria”. Ainda de acordo com Mo-
rin (2002, p. 76-77):

157
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

[...] todos os humanos, desde o século XX, vivem os mesmos pro-


blemas fundamentais de vida e de morte e estão unidos na mesma
comunidade de destino planetário.
Por isso é necessário aprender a ‘estar aqui’ no planeta. Aprender a
estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comun-
gar; é o que se aprende somente nas – e por meio de – culturas sin-
gulares. Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comu-
nicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer
a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemo-nos dedicar não
só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender. Devemos
inscrever em nós:
 a consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversida-
de;
 a consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos
os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera): reconhecer nos-
sa união consubstancial com a biosfera conduz ao abandono do
sonho prometéico do domínio do universo para nutrir a aspira-
ção de convivibilidade sobre a Terra;
 a consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solida-
riedade para com os filhos da Terra;
 a consciência espiritual da condição humana que decorre do exercí-
cio complexo do pensamento e que nos permite, ao mesmo tem-
po, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-
nos mutuamente.
É necessário ensinar não mais a opor o universal às pátrias, mas a
unir concentricamente as pátrias – familiares, regionais, nacionais
européias – e a integrá-las no universo concreto da pátria terrestre.

Entendo que neste tipo de alfabetização ecológica e planetária se faz


necessário cultivar aspectos humanos altamente desconsiderados pela edu-
cação formal, voltada para a produtividade, que são a contemplação, a imagi-
nação e a subjetividade. Considero que estes elementos são essenciais para o
conhecimento e o autoconhecimento, bem como para o desenvolvimento de
uma relação mais integrada com o planeta e com o universo.
Enquanto educadores preocupados com o desenvolvimento integral
do ser humano e suas relações com o ambiente em que está inserido, incluin-
do-se neste o céu, como também com o desenvolvimento de uma sociedade
sustentável, buscamos refletir neste trabalho sobre soluções para superar essa
fragmentação e propiciar condições para que os professores possam promo-
ver potenciais mudanças na concepção de mundo e, consequentemente, na
prática pedagógica, através de ações no âmbito da educação, segundo um en-
foque transdisciplinar.

158
Cosmoeducação

3 CULTIVANDO A UNIDADE SER HUMANO-COSMO


A necessidade de recuperar uma relação holística com o universo, e de
vivenciar mais a unidade, a harmonia e suas implicações na vida diária, atra-
vés de uma mudança na nossa concepção de mundo e de nós mesmos, parece
ser imprescindível, uma vez que os problemas globais apontados exigem de
nós uma visão sistêmica da realidade, onde todas as coisas estão integradas,
formando uma teia interativa e complexa. Neste contexto, o paradigma me-
canicista se revela insuficiente para cultivar uma visão mais integrada da rea-
lidade, sendo, pois, emergencial adotar-se um novo paradigma que comporte
tais anseios.
Neste sentido, recorremos a uma abordagem transdisciplinar em edu-
cação, ou seja, um enfoque que, segundo Nicolescu (2001), comportasse na-
turalmente a transgressão das fronteiras entre as disciplinas, que, no presente
caso, trata-se de astronomia e de psicologia transpessoal, com o objetivo de
criar uma sequência experimental a partir da interface entre essas duas áreas
do conhecimento, visando, por assim dizer, o cultivo existencial da unidade
entre o ser humano e o cosmo. Portanto, consideramos útil, para fins didá-
ticos de entendimento do caminho que percorremos, definirmos de forma
breve a psicologia transpessoal e a astronomia enquanto áreas do saber.

3.1 Breve histórico da psicologia transpessoal

No final da década de 60 do século passado, como desdobramento da


psicologia humanista, surge, nos EUA, uma abordagem em psicologia que
visa explorar as dimensões transcendentes da natureza humana e seu poten-
cial de autorrealização, a qual se denominou psicologia transpessoal, termo
preconizado por Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicólogo suíço, nascido no
século XIX e atuante até meados do século XX. Considerada a quarta força
em psicologia, a transpessoal surge como resposta ao materialismo científico
e avança preocupando-se com a humanidade do homem, a busca do sentido
da vida e da existência.
É importante ressaltar que estas linhas psicológicas, humanista e
transpessoal, com raízes no existencialismo e na fenomenologia, surgiram em
meio ao contexto cultural do movimento pós-guerra nos EUA, onde o sonho
materialista começava a ser questionado e buscavam-se novas formas de se

159
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

estar no mundo. O desejo de paz e harmonia se revelava na disseminação de


práticas orientais, como yoga, zen-budismo, diferentes tipos de meditação,
nas experiências com drogas psicodélicas, na sensibilidade por questões am-
bientais ecológicas.

3.2 Definição de psicologia transpessoal

Matos (1992, p. 9), resume da seguinte maneira o percurso e o signi-


ficado da psicologia transpessoal, desde suas formas originais no Oriente até
sua formalização no Ocidente:
A psicologia transpessoal que oficialmente foi fundada na primavera
de 1969 com a publicação da primeira revista científica, the journal
of transpersonal psychology, na Califórnia, já existia em parâmetros
científicos diferentes dos nossos atuais há vários milênios. Há mais
de 5 mil anos atrás já se praticava a psicologia transpessoal na Índia,
há 4 mil anos atrás no antigo Egito e há mais de 10 mil anos no Tibet
de uma forma bastante complexa e sofisticada. No entanto, desde os
primórdios do homem, num contexto xamanístico, se tem praticado
esta forma de Psicologia que estuda o indivíduo per si, o indivíduo
como um ser cósmico.

Pode-se observar, a partir deste trecho, o aspecto transcultural presen-


te nesta abordagem psicológica, visto que a experiência de transcendência é
comum ao ser humano desde os primórdios da civilização, sendo indepen-
dente da cultura, da etnia, da localização geográfica e temporal e tendo des-
pertado o interesse de vários povos em diferentes contextos.
O termo transpessoal vem do latim: trans significa além de, e pessoal
que é da pessoa. Portanto, diz respeito ao que está além do pessoal, que extra-
pola a noção do eu ou os limites do ego.
A psicologia transpessoal estuda o ser humano em sua totalidade, con-
templando os aspectos individuais, sociais, culturais, ecológicos e cósmicos.
Este último aspecto é inovador e diferencial, pois inclui o céu e o universo
como sendo parte integrante do meio ambiente, ampliando-o para o infinito.
Uma vez que tudo está interconectado, o ser humano também
está conectado com tudo que existe, inclusive com o cosmo, sendo parte
integrante deste e em última análise pode ser considerado o próprio universo,
legitimando a associação entre microcosmo e macrocosmo, onde cada
microparte integrante do universo reflete o macro em níveis diferentes de
complexidade.

160
Cosmoeducação

3.3 Estados de consciência

A psicologia transpessoal tem como objeto de estudo os estados de


consciência, incluindo aqueles invulgares ou modificados. Como vimos na
seção anterior, os estados de consciência delineiam a percepção de diferentes
níveis de realidade e são considerados manifestações da psique humana.
Segundo Saldanha (1997), Charles Tart, pioneiro na conceituação de
estados de consciência, os define como padrões generalizados de funciona-
mento psicológico. “É um sistema constituído por subsistemas e subestrutu-
ras, onde determinada quantidade de energia, sob a forma de atenção, man-
tém determinado estado de consciência ou provoca ruptura desse sistema,
passando, então, o experienciador, para outro sistema ou estado de consciên-
cia” (SALDANHA, 1997, p. 52).
De acordo com esta abordagem transpessoal, a experiência humana
apresenta-se dentro de um vastíssimo espectro de possibilidades. Para uma
maior compreensão dessa dinâmica, faz-se necessário um mapeamento das
regiões do inconsciente, a fim de hierarquizar e ordenar esses diferentes ní-
veis. Nas palavras de Bertolucci (1991, p. 19), “se ficarmos apenas ‘no interior’
da vivência subjetiva, cairemos em um excesso de relativismo e na ausência
de um ponto de vista que permita uma correta avaliação das diversas formas
de consciência”.
Utilizando diferentes terminologias, autores consideram de uma for-
ma geral três domínios conscienciais: o autobiográfico, que se refere às expe-
riências desde o nascimento até o momento presente da história de vida do
sujeito; o perinatal, que corresponde às experiências vivenciadas no período
intrauterino; e o transpessoal, que engloba todas as experiências que se dife-
renciam e transcendem os domínios anteriores.

3.3.1 Consciência cósmica

Dentro deste espectro dos estados de consciência estudados pela psi-


cologia transpessoal, identificamos o estado da consciência cósmica e suas
implicações na relação ser humano-cosmo como elemento de interseção com
os conteúdos de astronomia, a serem adaptados e inseridos na formação de
professores, como um poderoso agente de possíveis mudanças na visão de
mundo e de valores dos educadores em questão.

161
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

O termo consciência cósmica traduz uma experiência onde o sujeito vi-


vencia um senso de profunda unidade com o universo, percebendo-se como
parte indissociável do mesmo. Observando os relatos de quem já vivenciou
esta experiência, constata-se um enorme potencial autotransformador no
que diz respeito aos princípios e valores pessoais.

3.3.1.1 Cosmoeducação

Entende-se por cosmoeducação o desenvolvimento vivencial da uni-


dade ser humano-cosmo. Este conceito foi proposto pelo psicólogo trans-
pessoal Weil (1989, p. 72), a partir da hipótese de que “a dissolução do ego
através da ampliação do campo dos níveis de realidade, da desidentificação
dos diferentes planos experienciais e do controle dos diferentes degraus da
consciência, é o caminho para a consciência cósmica”. Ou seja, para vivenciar
esta realidade de total integração com o cosmo é necessário uma ampliação
da consciência para níveis elevados que transcendem a dualidade espaço-
tempo.
Desde o primeiro momento em que me deparei com o termo cosmoe-
ducação me senti estimulada a criar algum programa educacional que propi-
ciasse o desenvolvimento da relação entre o ser humano e o cosmos.

3.4 Primeiras associações entre psicologia transpessoal e astronomia

Nos PCN do 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental em Ciências Na-


turais, Eixo Temático: terra e universo, encontramos um trecho que traduz
nossa ideia inicial (BRASIL, 1999, p. 41):
Compreender o universo, projetando-se para além do horizonte ter-
restre, para dimensões maiores de espaço e de tempo, pode nos dar
novo significado aos limites do nosso planeta, de nossa existência no
cosmos, ao passo que, paradoxalmente, as várias transformações que
aqui ocorrem e as relações entre os vários componentes do ambiente
terrestre podem nos dar dimensão da nossa enorme responsabilida-
de pela biosfera.

Aqui, se propõe uma ampliação da visão de mundo numa perspectiva


cósmica. Entendemos que quando o nosso referencial é ampliado, quando
ele deixa de estar alojado e centrado em nosso “umbigo”, nosso bairro, nossa
cidade, país, continente, planeta, galáxia, etc., há uma tendência a minimi-

162
Cosmoeducação

zarmos as diferenças, os preconceitos, e a desenvolvermos uma atitude mais


universalista e solidária. Consequentemente, tomamos consciência que não
só estamos influenciando o nosso lar, o nosso trabalho, mas todo o planeta e
todo o universo. Ou também, se recorrermos a uma leitura mediada por con-
ceitos de física moderna atualmente aceitos para uma modelização de muitos
aspectos fundamentais da realidade, podemos interpretar que tudo está inter-
ligado de acordo com a realidade energética proposta pela física quântica.
O conteúdo desse trecho retirado dos PCN teve ressonância com al-
gumas ideias que haviam me ocorrido há alguns anos, quando participei de
um minicurso em cosmologia chamado O universo em que vivemos4. Durante
aquele curso, foram abordados temas como nascimento das estrelas, galáxias,
buracos negros, origem do universo, tempo de vida do sol, entre outros. A es-
cala das grandezas e dimensões macrocósmicas proporcionou uma expansão
da visão de universo, antes limitada por uma perspectiva desde a Terra.
A partir de então, percebi o potencial de tais conteúdos de astrono-
mia em proporcionar uma ampliação da visão de mundo, de meio ambiente
e da consequente responsabilidade pessoal frente aos problemas globais, na
medida em que a pessoa se percebe de modo mais integrado no universo.
Nessa ocasião, apareceram para mim as primeiras associações entre psicolo-
gia transpessoal e astronomia, bem como a curiosidade em investigar a inter-
face entre estas duas áreas do conhecimento e aplicá-la em educação, visando
potenciais mudanças na visão de mundo dos educadores e consequentes mu-
danças de valores.
À medida que começamos a relacionar temas de astronomia com
vivências de psicologia transpessoal e a vivenciá-las com os alunos, natural-
mente esta prática foi remetida para o termo cosmoeducação. Esta palavra
traduz bastante a nossa proposta de que através do conhecimento do cosmo
(via astronomia) e da percepção de que fazemos parte deste (via psicologia
transpessoal), é possível desenvolver o senso cosmológico, que, em última
instância, nos faz sentir um só com o universo.

4 Minicurso com carga horária de 6 horas, ministrado por professores do Instituto Nacional de Pesqui-
sas Espaciais (INPE), durante a 50ª Reunião Anual da SBPC, realizada em Natal (RN), de 12 a 17 de
julho de 1998, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

163
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

3.5 O potencial autotransformador da astronomia


Astronomia constitui uma subárea da física, que trata da posição, mo-
vimentos, constituição e evolução dos astros. Em outras palavras, estuda as
coisas do céu do ponto de vista exclusivamente científico, isto é, de sua cons-
tituição material-energética quantitativamente falando, conforme o conheci-
mento construído através da ciência (ocidental) foi se caracterizando. Através
desta área do saber colhemos informações sobre as dimensões e propriedades
físicas do universo conhecido e tentamos inferir previsões sobre sua parte
desconhecida. A tentativa de compreendermos estes conteúdos exige de nós
uma capacidade de abstração que normalmente nos transporta para domí-
nios incomuns de nossa imaginação, promovendo, quase que por via de regra,
uma ampliação da consciência. Neste sentido, é possível perceber o potencial
da astronomia enquanto porta cultural acadêmica para o despertar de uma
identidade cósmica.
Contudo, como destaca Jafelice (2006b)5:
Essa “porta de entrada” não pode ser adequadamente explorada, por
quem defende uma perspectiva de educação integral do ser huma-
no, se a abordagem ao estudo da astronomia continuar restrita aos
seus aspectos técnico-científico formais, como habitualmente é feito
em cursos, disciplinas e materiais de ensino e de divulgação de as-
tronomia existentes. Nestas abordagens convencionais, não há, por
um lado, uma discussão crítica sobre o significado do conhecimento
científico, nem há, por outro lado, uma ampliação de interpretações
que incorpore possibilidades não racionais significativas para nós,
humanos, de nos relacionarmos com os conteúdos daquela área do
saber, possibilidades de caráter fortemente integrador em termos psí-
quicos, cognitivos, culturais e sociais. Estas são possibilidades de teor
simbólico-representacional, aceitas como constitutivas do humano
em outras áreas do conhecimento, como em psicologia, sociologia,
antropologia, por exemplo, mas normalmente excluídas, enquanto
aporte válido à construção do conhecimento relevante, nas áreas de
ciências exatas e biológicas. A compartimentação do saber que foi se
estabelecendo em nossa cultura e as implicações para o pensamen-
to daí decorrentes – tanto aquelas de ordem organizativa e estrutu-
radora, como as de ordem enviesadora e limitante –, precisam ser
revisadas com urgência e determinação. E a área de educação, desde
que também se submeta a tal revisão paradigmática e metodológi-
ca, é particularmente sensível e estratégica nesse empreendimento
revisionista e na transformação dessa revisão em ações inovadoras

5 Vide também Jafelice (2002, 2004, 2008), onde essas discussões são mais aprofundadas.

164
Cosmoeducação

e crescedoras para os sujeitos envolvidos. A reaproximação e um di-


álogo frutificador entre as culturas humanística e científica precisam
ser, em parte, restaurados e, em parte, recriados em nossa cultura,
pois constituem etapas fundamentais a colaborar na solução da crise
civilizatória que vivemos.

Desde os primórdios da história da humanidade pode-se observar que


as coisas do céu despertavam a curiosidade e o fascínio do ser humano6. Con-
sideramos que a chave deste processo está na capacidade do ser humano de
vivenciar tais conteúdos de forma integral, não só através da intelectualidade
supervalorizada pela educação atual, mas através das sensações, intuições e
subjetividade próprias da construção do saber. De acordo com esta forma de
pensar, supomos que os conteúdos de astronomia trabalhados apenas do pon-
to de vista tradicional (no sentido mais conservador e limitador deste termo),
de modo a valorizar somente o acúmulo de informações, dados matemáticos
e tecnicidades em geral, não propiciam condições favoráveis para potenciais
mudanças na visão de mundo do sujeito em questão – ou, ao menos, não as
que consideramos serem as mais importantes e necessárias de se fomentar.
Por mais fascinante e envolvente que seja um conhecimento, isso não
garante que ele, por si só, seja transformador. A forma como esse saber será
vivenciado é que proporcionará, ou não, mudanças – em uma direção ou em
outra – no modo de o educando perceber o mundo.

3.5.1 Abordagem antropológica no ensino de astronomia


As sementes desse trabalho transdisciplinar encontraram solo fértil na
iniciativa humanística que o Prof. Luiz Carlos Jafelice vem desenvolvendo ao
longo de mais de uma década de atuação docente em ensino de astronomia,
onde ele tem lecionado esta disciplina sob uma ótica antropológica, holística
e cultural7. Enfim, como ele mesmo explicita:
Uma ótica transdisciplinar, tanto pela forma de abordar, re-significar
e encaminhar os conteúdos ditos específicos das muitas áreas parti-
cipantes, quanto pela perspectiva pós-moderna com que as questões

6 Para uma leitura evolutiva desses comportamentos e um aprofundamento na discussão sobre a


eventual associação entre atributos característicos humanos e fenômenos tipicamente celestes (i.e.,
vivenciados desde uma perspectiva terrestre), vide, em particular, a subseção 2.3 (Antropologia; crono-
biologia; cultura, natureza, cultura) no capítulo 4 deste livro.
7 No capítulo 4 deste livro constam maiores fundamentações, reflexões e aprofundamentos sobre a
denominada abordagem antropológica, para onde remetemos os leitores interessados.

165
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

de método, de referenciais teóricos e de práxis são encaradas e rede-


finidas, para atender à educação integral de ordem maior almejada
( JAFELICE, 2006b).

De acordo com essa abordagem, a astronomia é um excitante e pro-


vocador instrumento através do qual o indivíduo pode desenvolver a obser-
vação do céu, buscando reconectar-se com este, ampliando a noção de meio
ambiente e eventualmente modificando sua visão de si mesmo e do mundo ao
seu redor. Nessa abordagem o foco é o desenvolvimento humano integral.
Explicitando mais ainda este ponto básico, Jafelice (2006b) resume:
O foco não é apenas a construção (ou ‘aquisição’, como se costuma
pressupor nas abordagens convencionais) de conhecimentos especí-
ficos em astronomia, desde as perspectivas disciplinar e tecnocrata-
progressista convencionais. Da forma que entendemos uma aborda-
gem antropológica holística, a astronomia, embora continua tendo
uma importância e interesse em si mesma, é uma desculpa, pode-se
dizer – por ser biológica e historicamente relevante ao humano e
trazer muitas vantagens dos pontos de vista psicológico, cognitivo e
cultural associadas a isto – para ser usada como estímulo e incentivo
àquilo que, de fato, mais carecemos atualmente, que são o sentir, o
pensar e o agir solidários, cooperativos, éticos, desde uma cosmovi-
são biocêntrica e sistêmica, decorrentes do aprofundamento de um
processo comprometido de autoconhecimento.

Segundo, por exemplo, Jafelice (2005a), a abordagem antropológica


se justifica devido aos
elementos culturais e, portanto, educacionais permearem nosso ima-
ginário através de representações simbólicas criadas e vividas por
nós enquanto seres humanos [...] essa abordagem [...] [investe] na
recuperação vivencial da relação humana com o ambiente, com as
outras culturas humanas e com o cosmo. Portanto, de tal enfoque
pode-se extrair substância, contextura e inspiração para práticas edu-
cacionais diversas ( JAFELICE, 2005a, p. 64)8.

Outro ponto fundamental desta abordagem, para o desenvolvimento


de nossa proposta, é “[f]azer o exercício de tentar se colocar no lugar do ou-
tro e, até onde possível, ver o mundo” segundo a perspectiva do outro ( JAFE-
LICE, 2002, p. 9). Nota-se que este aspecto é extremamente necessário, por
um lado, para o desenvolvimento de uma genuína solidariedade, uma vez que
ao se colocar no lugar do outro o sujeito sai do seu ego, se reconhece no outro,
e cria possibilidades de empatia e de sensibilização, e, por outro lado, para

8 Vide também Jafelice (2001a).

166
Cosmoeducação

promover a conscientização da existência de múltiplas formas de entender e


se relacionar com o ambiente ao redor, seja na mesma cultura ou em culturas
diferentes (vide, neste sentido, JAFELICE, 2002, p. 9-10).
Essa abordagem comporta também naturalmente elementos sobre
o meio ambiente, por entender que a própria origem e desenvolvimento de
nossa forma de ser e pensar enquanto espécie foi definida pela relação dos
seres humanos com o ambiente, ao longo da história da humanidade. Aqui,
entenda-se por meio ambiente tudo que compõe o céu e a Terra, lembrando
que esta última é regida por ritmos e ciclos astronômicos e portanto, de
origem celeste.
Então, ao longo da disciplina de astronomia, segundo essa abordagem,
o desafio é reintegrar essas questões, ligadas a essa outra metade do espaço,
e descobrir como que poderíamos recuperar isso de modo reintegrador em
nossas vidas9.
A perspectiva aqui é dupla: primeiro recuperar o contato com as coi-
sas do céu pelo simples enriquecimento de cada um enquanto pes-
soa, enquanto ser humano, e, depois, como instrumentalização de
cada um como educador, que lecionará tais assuntos ( JAFELICE,
2006a).

3.6 Hipótese de trabalho


Em consonância com o que temos argumentado, pensamos na hipó-
tese de que conteúdos de astronomia, quando trabalhados segundo um enfo-
que antropológico do caráter acima exposto, e associados com práticas da psi-
cologia transpessoal, podem vir a ser um eficiente veículo cultural-acadêmico
capaz de proporcionar uma expansão de consciência e promover mudanças
na concepção de mundo dos sujeitos em questão, mudanças essas que se fa-
zem necessárias para que a existência de uma vida mais solidária, justa e eco-
logicamente equilibrada comece a prevalecer no planeta.
O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida
é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existên-
cia, com gratidão pelo presente da vida, e com humildade conside-
rando o lugar que ocupa o ser humano na natureza. Necessitamos
com urgência de uma visão de valores básicos para proporcionar um

9 Vide, em particular, o quadro Reflexões adicionais: exemplos específicos para educação em astronomia e
ambiental, na subseção 3.4 (Educação convencional versus Educação antropológica) do capítulo 4 deste
livro, onde são comparadas a educação astronômica habitual e a antropológica em questão.

167
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

fundamento ético à emergente comunidade mundial (Carta da Ter-


ra, 2004, p. 40).

Para testar a hipótese proposta foi elaborada uma sequência experi-


mental fundamentada na abordagem transdisciplinar, que teve como mote
gerador temas de astronomia associados a vivências de psicologia transpes-
soal adaptadas para o contexto educacional de formação de professores dos
primeiros ciclos do ensino fundamental.

3.7 Os pilares da transdisciplinaridade

Como afirma Barbosa (2005, p. 361):


A atitude transdisciplinar precisa ser entendida como abertura para
perceber o novo na educação, disposição para a mudança de para-
digma epistemológico, compreensão do movimento que propõe a
incerteza, articulação dos saberes e aceitação de que a transdiscipli-
naridade possibilita a compreensão do mundo presente.

Para alcançar esta compreensão do mundo presente, o caminho ou


método transdisciplinar, trilhado por um número significativo de pesquisa-
dores em diversos países, se ergue a partir de três pilares, sendo estes: a com-
plexidade, os níveis de realidade e a lógica da inclusão.
A complexidade compreende a interdependência entre todas as coisas
e fenômenos dos universos físicos, sociais, culturais, constituindo uma teia
multidimensional de relações onde nada está isolado. Neste sentido, a com-
plexidade exalta a riqueza de elementos contidos na diversidade, indo de en-
contro ao empobrecimento da visão humana limitada pela ilusão da fragmen-
tação e pela ênfase na racionalidade (em particular na limitante racionalidade
cientificista dominante). Segundo Barbosa (2005, p. 363), “a educação trans-
disciplinar possibilita desenvolver uma pedagogia da incerteza que propõe
condições para o educando buscar soluções para problemas concretos apre-
sentados pela existência”. Nesta perspectiva o educando aprende a aprender.
Os níveis de realidade, já discutidos anteriormente, na subsubseção
2.2.1 (Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo), são entendidos
aqui de forma semelhante, admitindo-se a existência de diferentes níveis de
realidade correspondentes aos diferentes níveis de percepção; estes últimos,
por sua vez, são determinados pela posição em que se encontra o sujeito-
observador e seu repertório cultural como um todo. Assim sendo, “a gestão

168
Cosmoeducação

educacional transdisciplinar possibilita ao educador perceber a vida da escola


de diversos pontos e notar que o que se vê de um ponto do espaço da escola
pode ser visto de outra maneira de outro ponto” (BARBOSA, 2005, p. 365).
O terceiro pilar que sustenta a metodologia transdisciplinar é a lógica
da inclusão, a qual defende a valorização do conhecimento prévio do edu-
cando através de suas vivências e de sua cultura. Esta visão vai de encontro
à lógica da educação positivista, onde o que mais interessa é o professor e as
informações que ele “tem que” passar para o aluno e depois avaliá-lo para ver
o quanto o aluno é capaz de reproduzir daquilo que lhe foi passado.
De acordo com a lógica da inclusão, o ponto de partida é a valorização
do educando, de sua interioridade. Para perceber a interioridade do aluno é
preciso que o educador esteja fazendo esse caminho de reconhecimento e va-
lorização da sua própria subjetividade. Só assim desenvolverá a sensibilidade
para perceber os movimentos mais sutis da subjetividade do aluno. Esta per-
cepção mais sutil, que vai além da superfície dos fatos e nos permite ver em
profundidade, pode ser vivenciada através da prática reflexiva e meditativa, a
qual ainda não é comum no meio educacional.
Neste sentido, estamos diante de uma necessidade de mudança na for-
ma de entender o processo educacional e a quem ele atende. Se, enquanto
educadores, estamos preocupados com o desenvolvimento integral do ser
humano e, consequentemente, com a construção de uma sociedade mais
equânime, parece ser mais lógico nos voltarmos para nós mesmos num mo-
vimento de redescobrirmos nossa própria subjetividade, valorizá-la a fim de
estimular essa descoberta pessoal no nosso aluno. Dessa forma, mudamos o
foco da ação educacional para o estudante em sua complexidade existencial.
Segundo Barbosa (2005, p. 367-368),
A percepção da interioridade do sujeito é um aprendizado de medi-
tação. O professor que medita consegue alcançar o sentimento dos
seus alunos além da exterioridade que apresentam.[...] Na nossa prá-
tica educacional não estamos acostumados a exercícios de reflexão
que desperte a subjetividade meditativa.

Esta colocação do autor é bastante pertinente a nosso ver e presente ao


longo das práticas que realizamos com nossos sujeitos, pois entendemos que
a vivência meditativa geralmente nos permite elevar o nosso estado de cons-
ciência, ampliar nossas percepções e ver em profundidade as inter-relações
das coisas e fatos que nos cercam.

169
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Nesse processo de aprofundar nossas percepções nos deparamos com


as faculdades de ver o invisível que permeia o imaginário dos sujeitos e de ou-
vir o meio ambiente além do audível. Faculdades estas tão importantes para
criar empatia com nossos alunos e nos tornarmos um só com estes.
Para ilustrar, reproduzimos aqui uma lenda chinesa citada em Barbosa
(2005, p. 368).
Na antiga China um certo príncipe procurou o mestre para aprender
a relacionar-se com outras pessoas. O mestre deu-lhe um exercício
que o príncipe deveria ir à floresta para ouvir os sons que ali se mani-
festavam. O príncipe dirigiu-se à floresta e por um ano ficou ouvindo
os sons. Voltou ao mestre e disse: “Mestre pude ouvir o canto dos
cucos, o roçar das folhas, o alvoroço dos beija-flores, a brisa batendo
suavemente na grama, o zumbido das abelhas e o barulho do vento
cortando os céus”. Quando terminou a explicação o mestre man-
dou-o de volta à floresta para ouvir tudo o mais que fosse possível.
Foram longos dias e noites que o príncipe esteve sozinho na floresta,
ouvindo, ouvindo. Mas não conseguiu distinguir nada de novo. Cer-
ta manhã, sentado entre as árvores da floresta começou a distinguir
sons vagos, diferentes de tudo que já tinha ouvido e sem pressa pas-
sou horas e horas ouvindo pacientemente. Quando retornou ao tem-
plo, o mestre lhe perguntou o que mais ele tinha conseguido ouvir e
então o príncipe disse: “quando prestei mais atenção, pude ouvir o
inaudível – o som das flores se abrindo, do sol aquecendo a terra e da
grama bebendo o orvalho da manhã”. O mestre acenou com a cabeça
em sinal de aprovação.

4 A PROPOSTA NA PRÁTICA

Iniciamos as experimentações com estudantes da disciplina de astro-


nomia, do Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN. Elaboramos al-
gumas vivências associando conteúdos de astronomia, que estavam sendo
trabalhados na disciplina, como, por exemplo, eclipse lunar, relações entre ser
humano e cosmo e origem do universo, com exercícios de psicologia trans-
pessoal, com o objetivo de despertar outros sensores cognitivos que possam
apreender de um modo sensível a inter-relação entre tudo o que existe. Este
foi nosso primeiro grupo real de indivíduos, para avaliar a pertinência da
proposta concebida e corrigir pontos falhos detectados. Esta escolha se deu
principalmente devido à facilidade de acesso a esse grupo e porque ele esta-
va vivenciando exatamente aspectos fundamentais para nosso trabalho, que

170
Cosmoeducação

envolve, em particular, o tratamento de temas de astronomia segundo uma


abordagem antropológica, no contexto da formação de professores10.
Após o tratamento dos primeiros dados coletados a partir deste pri-
meiro grupo, construímos uma sequência experimental que, a nosso ver,
pudesse atender aos objetivos propostos. Essa sequência foi vivenciada com
professores do 1º ao 5º ano do ensino fundamental11 de uma Escola Estadual
localizada na zona Norte de Natal através de um curso de extensão universi-
tária. A escolha do universo de nossa pesquisa se justifica devido a esses pro-
fessores lecionarem todas as disciplinas para a mesma turma (muitas vezes
chamados professores polivalentes), apresentando uma maior possibilidade
de interconectar conteúdos, bem como ir além deles, atuando numa perspec-
tiva interdisciplinar e transdisciplinar.
Pretendíamos responder às duas questões básicas seguintes:
1. É possível que os educadores ampliem sua visão de universo a partir
de temas de astronomia aliados às práticas de psicologia transpesso-
al?
2. Quais temas astronômicos e vivências psicológicas são mais favorá-
veis para promover a ampliação da visão de universo pretendida?

4.1 Curso de extensão: “Laboratório em Cosmoeducação”

A partir das primeiras experiências com estudantes de licenciatura


em geografia elaboramos o curso de extensão denominado Laboratório em
Cosmoeducação. O curso se destinou a professores do 1° ao 5º ano do ensino
fundamental. A escolha deste público alvo se justifica por entendermos que o
professor polivalente tem maiores probabilidades de acompanhar a evolução
dos alunos nas diversas áreas do seu desenvolvimento integral.
O plano inicial foi o de oferecer este curso nas dependências da UFRN,
e ele foi divulgado em diversas escolas públicas, especialmente no entorno

10 Os resultados das experiências com esse primeiro grupo foram muito gratificantes e esclarecedores.
Contudo, pela ênfase que optamos dar a este capítulo e espaço disponível, não vamos expor essas
experiências preliminares, que incluem, entre outras, a Expressão Corporal/Sonora do Eclipse Lunar
Interiorizado ou a interação entre Som e Respiração, por exemplo. Os interessados, porém, encontrarão
esses resultados e discussões associadas na seção 4.2 (Primeiras Experimentações) de Medeiros (2006,
p. 48-61).
11 Antigo 1º e 2º ciclos desse nível de ensino, os quais, por sua vez, abarcavam apenas os quatro primei-
ros anos da escolaridade básica formal, cuja classificação mais antiga ainda os denominavam 1ª a 4ª
séries.

171
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

desta universidade. Porém, encontramos extrema dificuldade por parte dos


educadores de participarem efetivamente, devido à incompatibilidade de ho-
rários. Depois de mais de uma tentativa frustrada, decidimos por eleger uma
escola interessada em realizar o curso nas suas dependências.
A Escola Estadual Alceu Amoroso Lima, localizada em Nova Natal,
na zona Norte da cidade, apresentava iniciativa pedagógica transdisciplinar
envolvendo astronomia12, o que facilitou o contato inicial com a diretoria da
escola. A proposta foi bem acolhida pela equipe pedagógica e de docentes,
que se mostraram interessados em experimentar novas práticas. Nos foi aber-
to um espaço para participar da semana pedagógica, onde propusemos uma
vivência e apresentamos, em linhas gerais, a ementa do curso de extensão,
intitulado: Laboratório em cosmoeducação para professores de 1° e 2° ciclos do
nível fundamental13.
O curso se realizou nas dependências da própria escola, de 04 de mar-
ço a 18 de junho de 2005, e contou com a participação de 15 professores do
1° ao 5º ano do ensino fundamental. A carga horária foi de 40 horas, compre-
endendo dezesseis encontros semanais, mais aulas de campo. Tratou-se de
uma proposta vivencial-teórica, que teve como mote gerador temas de astro-
nomia, com a finalidade de refletir e ampliar a concepção de mundo dos pro-
fessores e os valores vinculados a esta, como também observar a influência
dessa visão pessoal na prática pedagógica dos mesmos.
Dentre os objetivos propostos, destacaram-se: promover e valorizar a
vivência pessoal do professor; refletir sobre a concepção de mundo adotada
e a prática educacional no nível fundamental; propor exercícios vivenciais
que pudessem facilitar uma ampliação desta concepção de mundo; discutir a
aplicação dos conteúdos relativos ao eixo temático “Terra e universo” na dis-
ciplina de ciências, bem como em outras disciplinas; elaborar práticas educa-
cionais inéditas visando o desenvolvimento de uma atuação pedagógica mais
integrada e integradora; favorecer e estimular o autoconhecimento.
Buscamos, através de exercícios de relaxamento, meditação, sons au-
tóctones, expressão corporal, imaginação ativa, pinturas de mandalas pesso-
ais, redescoberta do céu diurno e noturno, entre outras práticas, sensibilizar

12 Vide no capítulo 1 deste livro relatos aprofundados de Maria Luciene de Souza Lima Freitas – pro-
fessora dessa escola, na época – sobre a referida iniciativa pedagógica que ela empreendeu com uma
turma de crianças de lá.
13 Na época do curso, a denominação oficial da faixa de escolaridade referida ainda era a de “ciclos”.

172
Cosmoeducação

o participante a entrar em contato consigo mesmo, identificar sua concepção


de mundo e refletir de forma crítica sobre suas percepções e realidades. A
seguir descrevemos tais práticas.
É importante fazer a ressalva de que os educadores interessados em
aplicar tais vivências com seus respectivos alunos, devem investir numa for-
mação plural, buscando obter suas próprias experiências coletivas e indivi-
duais no campo do autoconhecimento. Desta forma, eles estarão melhor
preparados para lidar com os conteúdos emergentes de outro ser humano e
encaminhar as práticas e discussões com o máximo de discernimento, ponde-
ração e cuidado constantes, respeitando sempre os limites dos envolvidos.

4.1.1 Identificando a cosmologia prévia do sujeito


O primeiro encontro teve como objetivo identificar a cosmologia pré-
via do sujeito, participante do curso, incluindo aspectos relativos a: 1. Con-
cepção de universo (mundo); 2. Concepção de origem, ou não, desse univer-
so; e 3. Concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe
no universo.
Para isso foi sugerido que, no primeiro momento, cada participante
discorresse sobre a afirmação: “O que significa o universo para mim”. Em se-
guida, aplicou-se um questionário aberto com as seguintes perguntas: 1) O
que significa o céu para você?; 2) Como você se sente quando olha para o
céu?; 3) O que lhe chama mais atenção no céu?; 4) Com que frequência você
costuma olhar para o céu?; 5) Quais as relações que você percebe entre o
céu e a terra?; 6) Quais as relações que você percebe entre tudo o que existe
no cosmo?; 7) Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê
e/ou como?; 8) Qual o lugar ou o papel do ser humano no universo? (Vide
apêndice A.)
Tais questões foram enunciadas uma por vez, que era quando cada
participante tomava conhecimento da referida questão, só passando para a
seguinte quando a anterior tivesse sido respondida por todos. Com este pro-
cedimento visamos evitar que, ou pelo menos minimizar a possibilidade de
que, a pessoa se armasse, ou se prevenisse, em função da sequência de per-
guntas futuras (i.e., as que tivesse pela frente e pudesse ler com antecedência)
e/ou do conjunto de perguntas como um todo, e respondesse uma pergunta
tentando atender supostas expectativas da professora-facilitadora ou do que
seria “mais certo” ou “mais conveniente” se responder.

173
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

No segundo momento foi aberto um espaço para eventuais comentá-


rios sobre as questões propostas e/ou a redação14.

4.1.2 Motivação mais profunda

Este exercício foi adotado no início do curso e teve como objetivo pro-
piciar ao participante um clima favorável à introspecção e ao contato com sua
motivação mais profunda para estar participando do curso. Estar consciente
da motivação mais profunda pode dar ao participante mais poder de ação na
direção do que ele necessita obter do curso e favorecer que ele tire o maior
proveito do mesmo. Esta prática, claro, pode e deve ser aplicada no dia a dia,
para nos dar mais consciência sobre o que nos move a tomar as atitudes que
tomamos, servindo, assim, como uma ferramenta para o autoconhecimento.
Inicialmente foi sugerido que os participantes buscassem um local na
sala e acomodassem seu corpo numa posição confortável (neste caso se aco-
modaram em carteiras dispostas na sala) e, de olhos fechados, concentrassem
a atenção no movimento fisiológico da respiração, a fim de “aterrissarem” no
momento presente. À medida que se concentram na respiração, esta tende a
se tornar mais longa, ou seja, desde o abdômen, e, portanto, tende a promover
um estado de relaxamento, facilitando o contato com o corpo. Em seguida
foi sugerido que cada um se perguntasse sobre “o que está me motivando a
participar deste curso” e ficasse atento às inúmeras respostas que pudessem
emergir à consciência, e, então, continuasse a ecoar esta pergunta no interior
de si mesmo, a fim de obter a resposta mais profunda, ou aquela que esta-
va mais latente. Ao identificarem a motivação mais profunda, pediu-se para
observarem se havia alguma associação desta com alguma parte do corpo.
Com isto, estava-se estimulando o conhecimento de si mesmo ao se integrar
mente e corpo, uma vez que o nosso pensamento emite uma “vibração” que
reverbera no corpo.
Segundo a filosofia do budismo tibetano: “O efeito de nossas ações
depende inteiramente da intenção ou motivação que está por trás delas, e não
da sua magnitude” (RINPOCHE, 1999, p. 130).

14 Está além do escopo deste capítulo analisar esses comentários. Isto é feito na seção 5.1 (Cosmologia
Prévia dos Sujeitos) de Medeiros (2006, p. 88-94), para onde remetemos os interessados em aprofun-
dar as discussões sobre esse tema em particular.

174
Cosmoeducação

4.1.3 Exercício de imaginação


Esta prática costuma ser realizada de preferência de olhos fechados. A
facilitadora deu um comando aos participantes para que buscassem um esta-
do de relaxamento corporal a partir da respiração e se conscientizassem das
partes do corpo que estivessem em contato com a superfície, das sensações
de temperatura, dos cheiros e odores, dos sons do ambiente, buscando des-
ta forma ampliar as percepções através dos sentidos físicos. Em seguida, a
facilitadora tocou um instrumento tibetano (Figura 1) produzindo um som
mântrico e facilitando um estado de centração cognitiva nos participantes.
Após alguns instantes de repetição deste som, este cessa e foi sugerido que
a pessoa lembrasse de um momento em que parou para contemplar o céu,
se era dia ou noite e o que chamou mais atenção. Em seguida, foi proposto
que a pessoa se imaginasse revivendo aquela experiência e observasse como
se sentia enquanto contemplava o céu. Depois, ao abrir os olhos, a pessoa
encontrou, à sua frente, uma folha A4 e giz pastel, para que expressasse a sua
vivência através de um desenho livre.

Figura 1 – Instrumento tibetano citado na(s) prática(s) (Foto: L. A. L. de Medeiros)

175
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Esta vivência foi aplicada no início do curso, com o objetivo de trazer à


tona experiências pessoais de contato com o céu e os sentimentos agregados,
bem como sensibilizar os participantes para a temática a ser vivenciada ao
longo do curso.
Seguem comentários pessoais compartilhados pelos participantes
após esta vivência:
Quando você começou a produzir o som então ali foi como se eu fosse
entrando num túnel, como se eu fosse com o som. Foi indo e quando você
disse para observar o céu que é uma coisa que eu me identifico muito aí
melhorou ainda mais e veio para mim a época, que foi o que coloquei no
desenho, que eu era criança e vivia no interior, em Jandaíra. Eu sou de
João Câmara e ia passar férias lá, pois minhas primas iam para lá. E foi
lá que eu descobri o céu.
Desenhei o círculo porque para mim foi um seguimento, simbolizando o
grupo fechado, a união do grupo. E ao mesmo tempo quando nós fecha-
mos os olhos tudo para mim foi uma experiência que levou à oportuni-
dade de emoções interiores e que no final quando abri os olhos foi uma
sensação de paz.

4.1.4 Autobiografia

Esta prática consistiu no participante escrever sobre si mesmo, relatan-


do as experiências mais relevantes que compõem a sua história de vida e que
o faz único em sua individualidade. O objetivo foi de facilitar ao participante
um entendimento sobre si mesmo através de uma autorreflexão acerca da sua
história de vida.
Antes de iniciar a autobiografia propriamente dita, foi proposto um
exercício de imaginação, realizado, de preferência, com os olhos fechados, em
que a pessoa deveria lembrar de quando era criança e observar como perce-
bia o mundo naquela idade e o que sentia. Este exercício visou sensibilizar a
pessoa para as memórias anteriores, facilitando a emergência da história de
vida, bem como possibilitar maior empatia com o seu aluno, que está criança
agora.
Após o exercício foi sugerido um roteiro de perguntas para estimu-
lar que as lembranças antigas da infância viessem à tona e facilitar o registro
da autobiografia. Exemplo de questões mencionadas: Como aprendi a ver o
mundo e com quem aprendi? Onde passei a infância? Como foi a vivência
familiar? Como foi a relação com a vizinhança? Como foi o período escolar?

176
Cosmoeducação

O que acontecia de mais interessante na cidade? O que acontecia de mais in-


teressante na escola? Qual a experiência mais importante vivenciada até hoje
(seja onde ou quando for)?, entre outras.
A autobiografia também contribuiu para perceber o perfil do professor
com o qual estávamos trabalhando. Neste caso, a maioria viveu, durante a in-
fância, em municípios no interior do estado, tendo, muitos deles, experimen-
tado a palmatória, como ferramenta punitiva para promoção do saber, o que,
geralmente, em vez disto promoveu dificuldades de aprendizagem e repres-
são do espírito criativo. Em todas as histórias, a família e a escola influencia-
ram consideravelmente a forma de ver e de se relacionar com o mundo. Isso
pode fazer refletir, enquanto educadores hoje, como estamos influenciando
na construção da visão de mundo do nosso aluno. Esta reflexão traz em si,
para aqueles com certa sensibilidade de se perceber no lugar do outro, maior
responsabilidade quanto às suas atitudes para com os alunos.
Percebemos que a religião cristã está bastante presente na maneira
como percebem o mundo ao seu redor, especialmente no que diz respeito à
origem do universo15, como indicam, por exemplo, os relatos a seguir:
[...] meus pais falavam que o mundo era coberto pelas águas e não
havia dia; tudo era trevas e que o espírito de Deus andava sobre as
águas.
Comecei a compreender o mundo através da religião [...] quando
pequena meus pais me levavam para as novenas, espécie de reuniões
religiosas da igreja católica feitas nas casas no interior.
Aprendi desde criança ouvindo os mais velhos que Deus criou o uni-
verso, hoje sei que há várias teorias que explicam o seu surgimento.

É interessante notar nas autobiografias, que cerca de 20 a 30 anos


atrás, a poluição luminosa ainda não era predominante, mesmo nos centros

15 Segundo Jafelice (2006b): “Isto reforça a hipótese de Jafelice (2004, p. 39), de que aspectos culturais
envolvendo um deus criador, responsável pelo início e evolução de tudo que existe, predispõem forte-
mente as pessoas dessas culturas, do ponto de vista psicológico, a identificarem a teoria cosmológica
da grande explosão como sendo a expressão da verdade ontológica sobre a cosmogênese, em vez de
aquela ser vista como é, isto é, apenas como uma teoria científica, resultado da construção humana de
um conhecimento limitado às informações a que se teve acesso até o momento e passíveis de serem
apreendidas e trabalhadas segundo a racionalidade científica atual e limitado às possibilidades cogni-
tivas humanas. Tal conhecimento não deve ser visto como sendo de caráter teleológico; ele não está,
necessariamente, se aproximando de A Verdade (se é que esta existe e é acessível e compreensível), e
é, pela própria forma de construção, transitório.”

177
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

urbanos, e os astros celestes tinham uma maior participação e influência no


cotidiano das pessoas, como ilustra o relato abaixo:
[...]quando criança morávamos em um bairro de Natal hoje conheci-
do como Lagoa Nova, mas que anteriormente só havia mato e algu-
mas casinhas e por isto tínhamos poucos vizinhos. Minha mãe só nos
deixava brincar em frente de casa nas noites de lua cheia.

4.1.5 No topo do planeta Terra


A ideia de que somos egos isolados, existindo no universo e separada-
mente deste, nos mantém no nível dualístico da realidade. Esta vivência teve
como objetivo expandir a nossa percepção, partindo da escala do microcos-
mo pessoal para o macrocosmo, no sentido de despertar a cosmicidade de
nós mesmos.
Inicialmente foi dado o comando para que a pessoa colocasse o corpo
numa posição confortável, de preferência de olhos fechados, e mantivesse a
coluna ereta, enquanto se conscientizava da sua respiração. Como já descrito
anteriormente, a prática psicoterápica em psicologia transpessoal tem reve-
lado que à medida que mantemos a atenção repousando sobre a respiração,
esta tende a se tornar naturalmente mais profunda, ou seja, desde o abdômen,
e, portanto, tende a promover um estado de relaxamento.
A partir desse estado de relaxamento, foi sugerido que a pessoa expan-
disse a sua consciência para a sala de aula e se conscientizasse daquele espaço,
incluindo os sons do lugar. Em seguida, sugeriu-se que ela fosse mais além e
tomasse consciência da escola, do bairro. Naquele caso, estávamos num bair-
ro localizado na zona Norte de Natal, então foi dado o comando para que os
alunos ampliassem a consciência para o rio Potengi, divisa com a zona Sul da
cidade, até que expandissem a consciência para a cidade Natal e daí para o
estado do Rio Grande do Norte, e suas fronteiras, como os estados da Paraíba
ao sul, Ceará a oeste e oceano atlântico a leste e a norte, e expandissem suas
percepções em todas as direções. Visualizassem o Brasil, a América Latina, as
Américas Central e do Norte, os continentes africano e europeu, depois Ásia
e Oceania.
Este esforço circular em perceber o globo visou à tomada de consci-
ência de que se está no topo do planeta Terra. Foi se estimulando a pessoa
a integrar a percepção de que se está no topo do planeta Terra, na costa do
Brasil, na cidade de Natal e no corpo simultaneamente. Foi sugerido para que

178
Cosmoeducação

a pessoa relaxasse mais ainda e se conscientizasse de que a Terra está girando


em torno do Sol, assim como os outros oito planetas16 do sistema solar, e daí,
então, expandisse a consciência para a Via Láctea, uma ilha de estrelas no uni-
verso, contendo da ordem de cem bilhões de estrelas. Neste contínuo de am-
pliar a consciência, pediu-se para que a pessoa relaxasse mais ainda e buscasse
expandir a consciência para todo o universo e sentir que estava consciente do
corpo e do universo, do qual também era uma parte, ao mesmo tempo.

4.1.6 Filme zoom cósmico


Esse filme17 é de produção canadense, da década de 70 do século pas-
sado, do tipo curta-metragem, com 8 minutos de duração, que ilustra as rela-
ções de grandezas e escalas entre o macrocosmo e o microcosmo.
O filme tem início numa imagem de um menino remando um pe-
queno barco num lago, levando consigo seu cachorro – ao fundo ouve-se o
badalar dos sinos de uma igreja. A imagem é congelada (e o som ambiente
cessa, sendo substituído por músicas compostas especialmente para o filme)
e, então, as lentes começam a se distanciar mais e mais, até que o lago passa a
ser um ponto azul no mapa geográfico. O foco das lentes se amplia mais ainda
e passamos a ver a Terra viajando ao redor do Sol, bem como outros planetas,
a Via Láctea e além da Galáxia. Ao chegar nas escalas galácticas, as lentes per-
correm o caminho de volta, agora em um ritmo mais acelerado, até focalizar
a imagem inicial do menino remando no lago. Agora, as lentes vão se apro-
ximando cada vez mais, e a pele do menino, sendo picada por um mosquito,
passa a ser vista como uma imensa superfície. Entramos, então, no mundo
dos tecidos orgânicos e das células, dos átomos e até a escala subatômica de
um próton, ou seja, no universo de menor escala, para depois retornar, tam-
bém em ritmo acelerado, ao ponto de referência, que é o menino remando no
lago. A imagem volta ter movimento e som ambiente, com o cachorro latindo,
os sinos badalando ao longe, os remos revolvendo a água, e o menino prosse-
gue remando, até, logo em seguida, finalizar o filme.

16 Agora, o correto seria “assim como os outros sete planetas”, pois, após meados de agosto de 2006, a
União Astronômica Internacional decidiu, em Assembleia, reclassificar Plutão para a recém-criada ca-
tegoria de planeta-anão. Porém, na época da referida prática, o sistema solar ainda tinha, oficialmente,
nove planetas.
17 Esse filme também é trabalhado desde uma perspectiva bastante semelhante à nossa, embora com
outra ênfase, por Gilvana Benevides Costa Fernandes, conforme ela expõe no capítulo 2 deste livro.

179
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Este filme, apesar de ser relativamente antigo18, ainda pode ser con-
siderado um pertinente recurso didático-pedagógico para ilustrar a comple-
xidade dos universos em que vivemos. Em particular no que concerne aos
constituintes físicos dos mesmos, bem como para ilustrar as relações entre o
micro e o macrocosmo tendo como referencial a escala humana, que, em nos-
so caso, serve de ponto de transição entre essas duas dimensões de grandeza.
Para efeitos didáticos, seguindo procedimento e orientações que Ja-
felice tem aplicado ao trabalhar com esse filme, é recomendado que este seja
visto pelo menos duas vezes. A primeira vez – sem nenhuma interferência,
nem comentário prévio, do professor –, deve permitir que os estudantes apre-
ciem e sintam sobre o que se trata o conteúdo do vídeo a partir de suas pró-
prias perspectivas, níveis de informação e concepções até aquele instante. Em
um segundo momento desta prática, abre-se a discussão, estimulando os par-
ticipantes a compartilharem o que sentiram e entenderam sobre o filme. No
terceiro momento, o filme é exibido novamente. Desta vez, o professor deve
fazer pausas em alguns pontos, para enfatizar as relações entre micro e macro-
cosmo, bem como prestar esclarecimentos sobre os elementos versados no
filme, seja de ordem cosmológica, fisiológica ou subatômica, e atualizar ou
complementar informações, que conhecimentos mais recentes aceitos exigi-
riam, corrigindo ou modificando o que está sendo mostrado no filme. No
quarto e último momento da prática, retoma-se a discussão sobre o que foi
sentido e entendido do filme, até que ponto ele interfere e transforma visões
de mundo que os participantes tinham antes dessa prática e como esse filme
poderia, eventualmente, ser aproveitado em sala de aula.
No caso desta nossa prática, o filme contribuiu para enriquecer e agre-
gar valores às experiências vivenciadas pelos participantes, especialmente nas
práticas que envolveram som, respiração e exercício de imaginação, cujo ob-
jetivo comum foi o de promover um paralelo entre o microcosmo pessoal, o
que está “dentro”, e o macrocosmo, todo o “resto”.

18 E, portanto, necessitar de atualizações quanto à estrutura e constituição do universo em escala cos-


mológica (com a inclusão de componentes como: matéria escura, “vazios”, quasares etc.; além do
prosseguimento do afastamento da Terra em escalas maiores, para incluir aglomerados, superaglome-
rados e, eventualmente, supersuperaglomerados de galáxias), como também quanto aos constituin-
tes e domínios da matéria nas dimensões subatômicas (com o prosseguimento da aproximação até
escalas que incluíssem quarks, léptons etc.), da forma que tais constituintes, estruturas e domínios
são conhecidos hoje, segundo as evidências observacionais, experimentais e modelos teóricos mais
aceitos pela comunidade científica.

180
Cosmoeducação

4.1.7 Dinâmica de observação

Esta é uma prática de aquecimento adaptada e aplicada por Jafelice há


vários anos, vide sua sistematização mais recente em Jafelice (2005b). Ela é
feita em pares de pessoas e trata-se de contato visual mútuo entre a dupla, com
uma pessoa disposta frente à outra (Figura 2). A tarefa se subdividiu em três
momentos. Inicialmente as pessoas caminharam pela sala, cumprimentando-
se uns aos outros e, só através do olhar, escolheram seu par. Em seguida, os
parceiros da dupla se posicionaram um de frente para o outro e tiveram um
minuto para se olharem mutuamente, buscando obter uma percepção global
e detalhada do outro. Após esse tempo, ambos viraram as costas para o outro
e realizaram três mudanças em sua aparência. Ao fazê-las, a pessoa levantava
o braço para que o facilitador, no caso o professor, soubesse que já havia rea-
lizado tais mudanças, mas a pessoa devia permanecer de costas, aguardando
o comando para se virar outra vez. Após o comando do professor, as duplas –
todas ao mesmo tempo – se observaram outra vez, descobriram as mudanças
e foram descrevendo o que estava diferente do visual anterior. Após todos
terem descoberto, as duplas voltaram ao visual do início, se observaram entre
si novamente e, mais uma vez, se deram às costas, a fim de realizar outras

Figura 2 – Dinâmica de observação (Foto: L. A. L. de Medeiros)

181
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

três mudanças, diferentes daquelas feitas anteriormente. De novo repetiu-se


o mesmo procedimento de esperar o comando do professor para se virar e en-
tão observar o outro no intuito de identificar as novas mudanças feitas. Ainda
poderíamos repetir o processo uma terceira vez e, é claro, iria se tornando
cada vez mais difícil achar o que mudar na aparência; por outro lado, iria se
aguçando mais e mais a observação, o poder de discernimento, a atenção para
os detalhes sem perder de vista o todo.
Esta prática tem como objetivos propiciar a descontração e integração
do grupo, bem como conscientizar os alunos sobre o processo de observação
criteriosa, especialmente em relação às coisas do céu ( JAFELICE, 2005b).
Em astronomia, a observação deve ser continuada e sistemática, não basta a
pessoa olhar uma vez, só quando lembrar. Quando você olha o céu, visando
estabelecer uma relação duradoura, de troca e também de construção de um
conhecimento sobre o mesmo, sobre seus objetos, fenômenos, regularidades
e excepcionalidades, precisa olhá-lo de uma certa maneira, com atenção, bus-
cando uma certa relação, uma certa correlação. Este exercício ajuda na edu-
cação desse olhar atento do todo e das partes ao mesmo tempo; ele estimula
exatamente esta observação de permanências e mudanças, quer dizer, o que
se manteve e o que se alterou, em relação a algo (um todo) que se está conhe-
cendo em seu processo dinâmico.
Em geral, estamos “correndo” tanto que não vemos as coisas – em-
bora, muitas vezes, até olhamos para elas. Para perceber os passos dos astros
no céu, em particular, precisamos acompanhá-los dia após dia ou noite após
noite e fazer isto com uma atenção específica. Então, este exercício pode ser
diretamente associado à observação dos astros, ao acompanhamento siste-
mático do que é que muda no céu, quando e como, de um dia para outro.
Neste sentido, é válido enfatizar a importância do tempo e do espaço para
vivenciarmos os ritmos e ciclos cósmicos.

4.1.8 Observando o Sol

A maior atração do nosso céu, da perspectiva topocêntrica (isto é,


desde o ponto de vista do lugar em que estamos, na superfície terrestre), é o
Sol, o nosso astro rei. Ele é a estrela mais importante para nós, habitantes deste
planeta. Esta prática, de simples observação do Sol, que tem como condição

182
Cosmoeducação

minimamente indispensável19 o uso de um vidro de soldador n° 14 (ou


maior) (Figura 3), objetivou propiciar contato com essa estrela, literalmente
vital para nós. Esta oportunidade foi vivenciada pelos professores como algo
inusitado e que despertou grande encantamento.

Figura 3 – Observação do Sol pelas crianças (com vidro de soldador no 14)


(Foto: L. A. L. de Medeiros)

Do ponto de vista simbólico, o Sol representa, em diversas culturas


humanas primeiras, um grande poder proveniente do céu, que ilumina a tudo
e a todos na Terra, algo de caráter divino que merece nossa reverência, posto
que ele é fonte de vida. A luz representa o aspecto transcendente, transpessoal,
que atua em múltiplas direções, dimensões e sem diferenciações. Durante este
contato breve, através do vidro de soldador, ficaram evidenciados elementos
arquetípicos na reação generalizada de entusiasmo profundo. As professoras
expressaram uma estonteante alegria, como se tivessem estreitado as relações
com algo tão além, com algo, de certa forma, até aquele instante, tão inacessível

19 É importante ressaltar que todos os cuidados em relação à observação do Sol foram muito enfatizados
junto aos alunos. Foi particularmente destacado o grande perigo que significa a observação direta do
Sol, seja a olho nu ou, pior ainda, através de qualquer instrumento óptico de aumento. Insistiu-se tam-
bém para que tais cuidados e recomendações fossem trabalhados com as crianças, alunos daqueles
nossos alunos, e com quaisquer pessoas com quem eles tivessem contato. Também se acentuou que
mesmo usando filtro de soldador adequado, não se deve olhar o Sol ininterruptamente por mais do
que uns cinco ou dez segundos, no máximo. Nestes casos, deve-se intercalar observação com descan-
so da vista (pelo menos o dobro do tempo daquela), em um total de até quatro a cinco olhadas. Estes
são cuidados com a saúde, que precisam ser devidamente abordados pelos professores.

183
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

a um contato visual mais direto e “próximo”, que me fez lembrar um trecho do


livro O Ar e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, de Bachelard
(2001, p. 187), que diz: “[...] a contemplação é tão naturalmente uma
confidência, que tudo o que olhamos com olhar apaixonado, na aflição ou no
desejo, nos devolve um olhar íntimo, um olhar de compaixão ou de amor”.
Esta cumplicidade parece ter ocorrido entre os observadores e o Sol,
que naquele instante íntimo, propiciado graças ao vidro de soldador, inter-
mediador protetor, perceberam que a estrela veio até cada um. O sentimento
relatado após a observação era de unânime alegria. Esta experiência vem se
somar a outras que vivenciamos neste curso, levando-nos a constatar a influ-
ência benéfica da contemplação das coisas do céu no estado de consciência
dos humanos, no sentido de trazer e estimular harmonia e vitalidade.

Observação sobre os próximos itens: as atividades descritas em


4.1.9, 4.1.10, 4.1.11, 4.1.12 e 4.1.13, foram extraídas da abordagem antropoló-
gica com que o Prof. Luiz Carlos Jafelice ministrou a disciplina de astronomia,
para o Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, de 2001 a 2006, e tem
empreendido em outras intervenções em cursos e palestras e nas orientações
de estudantes sobre o assunto, e foram aqui adaptadas para o contexto do
curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação. Para maiores fundamen-
tações, informações e orientações sobre a referida abordagem, vide Jafelice
(2002; 2003a; 2004) e, em particular, Jafelice (2005a; 2006a) e o capítulo 4
deste livro.

4.1.9 Representação pictórica das origens e do céu20


Esta atividade vem sendo praticada no primeiro dia de aula da disci-
plina de astronomia e de cursos deste assunto ministrados pelo Prof. Luiz
Carlos Jafelice segundo uma abordagem antropológica. Neste laboratório em
cosmoeducação ela foi realizada nas primeiras aulas, como parte do processo
de identificar a cosmologia pessoal.
A prática consiste, inicialmente, em distribuir uma folha de papel A4
em branco para cada participante e disponibilizar, no centro da sala, giz de
cera, lápis de cor e canetas hidracor de cores variadas. Após a distribuição
do material, o professor solicita que os participantes desenhem “o início de

20 Esta prática está exposta e comentada em maiores detalhes no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras,
expressões culturais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro.

184
Cosmoeducação

tudo o que existe”, e escreve este texto entre aspas na lousa. Por se tratar de
uma prática inusitada, normalmente gera inquietação por parte da turma e,
eventualmente, surgem questionamentos sobre o que quer dizer esta ativi-
dade. Convém que, neste momento, o professor se abstenha das explicações
complementares e simplesmente repita o comando e a frase que escreveu no
quadro, estimulando o aluno a lidar com o inesperado e expressar aquilo que
lhe ocorrer em seu imaginário. É importante dispensar a identificação de au-
toria do desenho, a fim de deixar o autor mais livre para expressar-se, já que
este tema normalmente ativa regiões psíquicas ancestrais, desconhecidas do
próprio autor, podendo causar algum desconforto na exposição à crítica e
julgamento dos colegas mais racionais.
Após todos terem concluído esta parte da atividade, os desenhos
sobre o início de tudo que existe são recolhidos e se distribui uma segun-
da folha para cada um, e pede-se que desenhem “o céu”. Utiliza-se o mesmo
procedimento anterior, de escrevermos este tema na lousa e de nos abster-
mos de maiores comentários (por exemplo, se é para desenhar céu diurno
ou noturno, visto desde onde, céu religioso, astronômico ou meteorológico
etc.). Enquanto os participantes executam este último desenho, os desenhos
anteriores são dispostos sobre uma mesa grande (ou, na ausência de tal mesa,
eles podem ser dispostos no chão mesmo). Após concluírem o desenho sobre
o céu, eles devem entregá-lo e se dirigirem ao local de exposição, para obser-
varem as diversas representações do início de tudo o que existe. Ao redor dos
desenhos, cada participante está livre para se expressar; por exemplo, se sentir
vontade de compartilhar com o grupo o que inspirou o seu desenho, ele tem
algum tempo para fazê-lo.
Observamos que os participantes demonstraram maior familiarida-
de – e declarada facilidade bem maior em realizar seus desenhos – com o
tema do céu do que com o das origens. (Isto tem sido o usual de ocorrer nesta
prática, independentemente do público envolvido.)
A partir das representações pictóricas deste grupo, identificamos
alguns padrões que se repetiram e que foram agrupados nas categorias21 de-

21 É válido ressaltar que as categorias mencionadas foram criadas, originalmente, a partir de centenas
de exemplos oriundos das aplicações dessa prática que o Prof. Luiz Carlos Jafelice fez, com os mais
diversos grupos, durante muitos anos. Nesse nosso grupo, em particular, temos uma representativida-
de relativamente pequena daquelas categorias, devido às peculiaridades inerentes a ele. Dentro deste
contexto, então, as ilustrações que mostramos aqui foram as que melhor se aproximaram das referidas
categorias.

185
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

finidas como “mandálicas”; “forças opostas”; “intervenção divina explícita”;


“figuras circulares”; onde a segunda e terceira categorias foram confirmadas a
partir dos relatos dos respectivos autores, posteriormente (Figuras 4, 5 e 6).

Figura 4 – Exemplo de modelo mandálico Figura 5 – Exemplo de modelo de forças


para as origens opostas para as origens

Figura 6 – Exemplo de modelo de intervenção divina para as origens

186
Cosmoeducação

4.1.10 Texto coletivo22

No sentido de construir uma história coletiva própria do grupo em


questão, adotamos esta prática, que consiste na elaboração grupal de um
texto baseado no tema do primeiro desenho: “o início de tudo o que existe”.
Inicialmente o grupo define o tamanho que terá a história, tendo ao menos
três opções de espaços demarcados na lousa. Definido o tamanho, são enun-
ciadas as regras para a construção da história, que consistem basicamente em
falar um por vez para o professor e não haver comunicação entre os alunos
participantes; uma última regra que é importante enfatizar é que ninguém
deve corrigir ninguém. O professor vai escrevendo na lousa aquilo que for
sendo dito, obedecendo a ordem de quem for falando, ficando com ouvido
atento para não deixar a contribuição de ninguém de fora (pois muitas vezes
vários lhe dizem coisas ao mesmo tempo), até preencher o espaço acordado
anteriormente para o tamanho da história – podem ser ditadas para o pro-
fessor palavras isoladas ou frases inteiras; ainda é possível que frases sejam
“redigidas” através da contribuição de vários alunos; mas, seja o que for que
vier, o professor copia fielmente, sem julgar nem modificar; o professor deve-
rá pontuar o texto, enquanto copia o que lhe é ditado, como e quando julgar
necessário para dar sentido ao mesmo.
Ao concluir o texto, deve-se decidir, em grupo, se este terá um título
ou não, ainda sem que eles falem entre si. Se a maioria decidir (por votação
simples, levantando o braço) que o texto terá um título, então, seguindo pro-
cedimento semelhante ao da composição da história, eles vão sugerindo al-
guns nomes (até completar a altura da lousa, para delimitar um espaço que
garanta que não surjam nem títulos de menos, nem demais), os quais o pro-
fessor escreve na lousa para serem votados. O título mais votado dará nome
à história desse grupo.
Uma vez concluídas essas etapas, o processo é concluído com todos
lendo juntos, em voz alta, o título e a história que fizeram. (É comum haver
palmas ou um certo alvoroço animado após tal conclusão. Essa prática favo-
rece também uma certa irmanação do grupo.) Em seguida, todos copiam da
lousa o resultado daquela criação coletiva deles.

22 Esta prática também está exposta e comentada em maiores detalhes no apêndice 5 (Origens: imagens,
palavras, expressões culturais e psicológicas) do capítulo 4 deste livro.

187
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

O resultado é surpreendente. Apesar de o texto ser composto sem


que os redatores do mesmo possam conversar entre si, o texto final apresenta
coerência interna e espelha um posicionamento do grupo, como um todo,
com respeito àquele tema. Controvérsias ou ambiguidades, que expressam
heterogeneidades naturais nos grupos, ficam nuamente expostas – por exem-
plo: costumam estar presentes nesse tipo de texto tanto concepções religio-
sas, que materialistas não aceitam, como concepções materialistas, com as
quais religiosos não compactuam. Tal texto grupal reflete nitidamente carac-
terísticas culturais dos membros do grupo e representa como eles de fato, en-
quanto coletividade, encaram o tema das origens, com todas as contradições,
desconhecimentos, complexidades e incertezas associadas àquelas.

4.1.11 Ache a Lua no céu23


Esta atividade é sugerida, como tarefa para casa, no primeiro dia de
aula, para ser cobrada na segunda aula, e tem como um objetivo principal
que a pessoa retome o contato com as coisas do céu. Este exercício inicial
consiste em achar a Lua no céu, desfrutar dessa visão sem expectativas, nem
pressa, nem pensamentos dispersivos em paralelo, e, em seguida, imaginar-se
um habitante nativo do Brasil de 510 anos atrás (isto é, habitante de antes do
descobrimento; por isto mudará “o número de anos atrás” em que ele terá
que se imaginar, dependendo de quando – do ano em que – essa tarefa for
passada); e, ao final, escrever um relato sobre essa vivência pessoal para com-
partilhar com os colegas.
Por que começar o contato com as coisas do céu através da Lua? Por
ser este astro mais familiar? Por estar mais próximo da Terra? Por ser dos mais
notáveis à noite? Por sofrer mudanças que exemplificam os ciclos e ritmos
cósmicos? Todas as questões acima podem justificar o fato de se eleger a Lua
como foco de nosso olhar para o céu, em particular como foco inicial de um
exercício de recontato com as coisas do céu. Contudo, talvez o motivo mais
significativo esteja na correspondência analógica que nós, humanos, constru-
ímos entre nós e a Lua, especialmente por esta apresentar um ciclo de nasci-
mento, esplendor e morte a cada mês.
O fato de esse astro ressurgir no céu, reiniciando um novo ciclo
mensalmente, inspira no ser humano a esperança da vida após a morte e
estimula o gosto por dimensões desconhecidas da psique humana. É nestes

23 Tal atividade está exposta em detalhe no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus,
sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.

188
Cosmoeducação

termos que o historiador das religiões Mircea Eliade nos ensina sobre a rela-
ção ancestral que vem sendo tecida e enriquecida entre esse astro e nós, dos
pontos de vista simbólico e psicológico. No texto didático “A Lua e a Mística
Lunar” ( JAFELICE 2001b, a partir de excertos de Tratado de História das
Religiões, de Mircea Eliade, São Paulo: Martins Fontes, 1993), essa questão é
evidenciada na seguinte citação:
O homem reconheceu-se na “vida” da Lua, não somente porque
sua própria vida tinha um fim, como a de todos os organismos, mas
sobretudo porque ela tornava válida, graças à “lua nova”, a sua sede
de regeneração, as suas esperanças de renascimento (ELIADE, 1993
apud JAFELICE, 2001b, p. 2).

Diante dessa relação tão significativa entre a Lua e nós, humanos,


aquela pode ser um valioso elo entre nós e as coisas do céu. A exemplo disso,
segue um relato feito por uma aluna do curso, durante a última aula:
A experiência mais importante que vivenciei foi as observações feitas com
a Lua. Com ela tirei dúvidas e compreendi que a Lua caminha, transfor-
ma-se, ilumina, orienta e modifica alguns momentos da vida dos seres que
habitam o universo.

Uma segunda etapa desta tarefa24 é entrevistar pessoas do nosso conví-


vio, perguntando-lhes qual a sua relação com a Lua; qual sua relação com a es-
trela d’alva; e ainda, para que servem as estrelas. Estas questões têm o objetivo
de trazer à tona reflexões, informações e conscientizações sobre a relação do
ser humano com as coisas do céu segundo o filtro ou o viés de nossa cultura.
No geral, se constata com este exercício o quanto a maioria das pesso-
as está distante das coisas do céu e, para muitas delas, o quanto essas questões
são do domínio do absurdo, causando, em alguns casos, inclusive constrangi-
mento para o próprio entrevistador. Por outro lado, em um extremo oposto,
algumas poucas respostas podem nos surpreender em relação ao quanto este
tipo de conhecimento ainda está presente na vida de algumas pessoas. Como,
por exemplo, nos relatos de um senhor, de aproximadamente 75 anos de ida-
de, entrevistado por uma das alunas:
A estrela D’alva é uma estrela grande e muito bonita. Ela passa seis meses
nascendo no norte e seis meses nascendo no sul. Ela aparece antes do sol
se pôr ou antes do sol nascer. Quando o sol nasce ela está bem mais alta
que o sol.

24 Também para esta tarefa vide maiores comentários no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo
lunar, Vênus, sentimentos e conhecimentos populares) do capítulo 4 deste livro.

189
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

A lua minguante não é boa para o nascimento das aves e animais, pois
não há força; a lua crescente é a lua do nascimento, é muito boa; a lua
nova e a cheia é lua de muita força.

As informações dadas pelo senhor entrevistado, quanto à estrela d’alva,


são claramente frutos da vivência de observação sistemática das coisas do
céu, mesmo que elas não correspondam aos ciclos astronômicos precisos de
Vênus, conforme se conhece cientificamente. Notemos que para se constatar
que um astro muda de posição a cada seis meses é preciso observá-lo pelo me-
nos durante 1 ano e, para se ter alguma segurança de que isto é algo regular, é
preciso continuar observando-o pelo menos por alguns anos, e, ao que tudo
indica, esse senhor o fez. Claro que existem as tradições orais, que suprimem
a necessidade de experiência pessoal direta de observação sistemática para se
chegar a essas informações. No caso desse senhor, porém, pelo seu relato, elas
foram obtidas por iniciativa e constância de acompanhamento dele.
As informações sobre a Lua, os astros e as coisas do céu, em geral, en-
volvem conhecimentos populares que merecem o nosso respeito, além de se-
rem de grande importância do ponto de vista antropológico. Tais informações
vêm sendo tema recorrente de pesquisa científica há algumas décadas. Para
trabalhos envolvendo conhecimentos autóctones e populares sobre o céu no
Rio Grande do Norte, ver Romero et al. (2004) e Jafelice et al. (2004) – vide
também a seção 3.5 (Conhecimentos tradicionais, etnoastronomia e arqueoas-
tronomia) no capítulo 4 deste livro. Esses assuntos têm fomentado discussões
na comunidade científica, em particular ao ressaltar a frequente arrogância
do saber acadêmico e o quanto a maioria das pessoas está bitolada ao modo
cientificista de enxergar as coisas, promovendo muitas vezes alienação e acri-
ticidade, ou seja, exatamente o oposto do que o discurso da cientificidade diz
almejar e promover.

4.1.12 Montagem do calendário lunar25

A Lua é o instrumento de medida universal. [...] O tempo controlado


e medido por meio das fases da Lua é, como dizíamos, um tempo
“vivo”. Refere-se sempre a uma realidade biocósmica, a chuva ou as
marés, as sementeiras ou o ciclo menstrual (ELIADE, 1993 apud
JAFELICE, 2001b, p. 2).

25 Para uma exposição sobre essa prática, vide o apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa) do capítulo 4
deste livro, e para uma aplicação da mesma com crianças do 1º ao 5º ano (nível fundamental), vide o
capítulo 1 deste livro, em particular as seções e subseções 1.1, 1.2, 2.1.2, 3.1, 4.1.1 e 5 do mesmo.

190
Cosmoeducação

Os primeiros calendários que se tem conhecimento são de origem lu-


nar. A presente prática visa montar o calendário lunar desse grupo, a partir
dos desenhos diários da Lua feitos pelos participantes (Figura 7).
Desenhar a Lua diariamente, ou mesmo parte do céu, quando não dá
para ver a Lua, é tarefa complementar do exercício anterior – de achar a Lua
no céu e curtir esta visão. Nesta segunda tarefa, cada um deve desenhar a Lua,
da forma que a enxerga no céu, em um pedaço de papel quadrado de 10cm X
10cm. No verso, deve anotar a data, horário e direção em que olhava quando
fez o desenho. Notemos que, neste caso, estaremos utilizando o pensamento
analítico.
Aqui, a observação detalhada do que está mudando na Lua, de como
está mudando ao longo dos dias, tanto na própria aparência da Lua quanto na
posição desta em relação a um conjunto de estrelas, ou mesmo o que muda
na Lua numa mesma noite, são aspectos muito importantes para entrarmos
na intimidade desse astro, aprendermos a encontrá-lo no céu e a acompanhar
os tipos, formas e ritmos das mudanças pelas quais passa, partilhando de uma
cumplicidade com o cosmo. Após pelo menos um ciclo de observação da Lua
(portanto, cerca de um mês), registramos, juntos, as descobertas feitas por
cada um e reunimos as informações num único documento (ver anexo A).

Figura 7 – Montagem do calendário lunar (Foto: Fátima Lopes)

191
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

4.1.13 Representando a abóbada celeste com um guarda-chuva


Os saberes de astronomia exigem do aluno uma capacidade de
abstração, de pensamento espacial e de se colocar no lugar do outro (neste
caso, espacialmente falando), na tentativa de compreender os movimentos
cósmicos, numa escala de grandezas infinitamente maior do que a conhecida
por nós aqui, no planeta. Para tanto, incluímos algumas práticas vivenciais no
sentido de tornar possível, ou pelo menos de favorecer, a elaboração desses
saberes através de associações com elementos já acessíveis ao cotidiano do
aluno.
Esta prática de representar a abóbada celeste através de um guarda-
chuva (Figura 8) tem o objetivo de demonstrar a movimentação diária
aparente da Lua no céu, bem como de concretizar o movimento real deste
astro medido pelo seu deslocamento em relação a um grupo específico de
estrelas, ao fundo, deslocamento este perceptível principalmente de um dia
para o outro26.
Neste caso, recortamos (em cartolina amarela) e colamos na parte in-
terna do guarda-chuva (de tecido preto) figuras da lua em sua fase crescente
e figuras de estrelas dispostas em conjunto. Após o professor ter identifica-
do os pontos cardeais na sala onde a aula está acontecendo, ele posiciona a
haste central do guarda-chuva na direção Sul-Norte (com a ponta do mesmo
indicando o Sul), de modo que parte da tela do guarda-chuva aberto fique
oculta, por trás de uma mesa, a fim de reproduzir (na parte que fica acima do
nível da mesa) a porção da abóbada celeste que é vista por nós da perspecti-
va topocêntrica em que nos encontramos27. Nesta prática, o tampo da mesa

26 Embora tal deslocamento seja notável em único intervalo de tempo entre o nascer e o respectivo
ocaso da Lua, para quem já está mais acostumado a acompanhar esse astro e refinou seu poder de
observação.
27 Como salienta Jafelice (2006b): “O Rio Grande do Norte, em particular Natal, onde o curso acon-
teceu, tem latitudes em torno de 5º Sul. Isto significa que os alunos desse curso vivem em locais
relativamente próximos à linha do equador. Por isto, a inclinação da haste do guarda-chuva é quase
horizontal (ou seja, seria horizontal se estivéssemos em um local exatamente sobre a linha do equa-
dor). Portanto, a inclinação da haste do guarda-chuva aberto (sempre com aquela orientada na dire-
ção Sul-Norte e com o cabo do guarda-chuva no sentido Norte e a ponta do guarda-chuva apontando
para o pólo celeste Sul) precisa ser devidamente levada em conta e adaptada a cada latitude onde esta
prática for realizada. Isto deve ser feito porque tal haste deverá sempre ter uma direção paralela ao
eixo de rotação da Terra, uma vez que a ‘abóbada’ representada pela tela do guarda-chuva simulará
o movimento aparente que observamos no céu diariamente, o qual é conseqüência do movimento
real da Terra em torno de si mesma. Por isto é fundamental garantir, o melhor possível, o paralelismo
entre a haste daquele e o eixo desta, pois é a Terra girando de Oeste para Leste (movimento este que
não sentimos, não percebemos, diretamente) que nos dará a impressão de a abóbada celeste girar de
Leste para Oeste (e, portanto, do ‘giro’ dos astros que ‘estão incrustados’ naquela abóbada, ‘nascendo’
no lado Leste e ‘se pondo’ no lado Oeste).”

192
Cosmoeducação

representa o plano horizontal, acima do qual a parte visível da tela do guarda-


chuva representa, neste caso, uma parte da abóbada celeste que é visível do
lugar onde estamos quando olhamos para o Sul. Aqui, especificamente, esta
prática serviu como analogia para demonstrar, de modo um pouco mais con-
creto e acessível, o movimento real da Lua com o passar dos dias, orientando
e facilitando a observação do céu noturno e da Lua.

Figura 8 – Guarda-chuva representando a abóbada celeste (Foto: Fátima Lopes)

O relato a seguir, de uma das alunas do curso, sobre esta prática, é


ilustrativo da pertinência pedagógica da mesma, para o objetivo que aquela
almeja:
No início das aulas achei difícil entender as fases da Lua e o caminho
que ela faz no céu, até chegar a aula em que a professora utilizou um
guarda-chuva e a figura da Lua.

193
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

4.1.14 Aula de campo


Indispensável e enriquecedora, a aula de campo realizada fora da lumi-
nosidade da cidade representa uma oportunidade de grandes revelações para
aqueles que a vivenciam. O contato com o céu noturno requer baixa lumino-
sidade (isto é, um local com a menor poluição luminosa possível), para que
se tenha um céu de melhor qualidade para a observação, bem como silêncio
e tempo para se contemplar28.
Realizamos nossa aula de campo no sítio Mineiro, distrito de Santana
do Matos, no estado do Rio Grande do Norte, a aproximadamente 290 km
de Natal. A Lua estava em sua fase nova, condição ideal para se observar
o céu noturno – pois significa uma fonte de luminosidade relativamente
intensa (neste caso, de origem celeste) a menos; a luz da Lua interfere na
visibilidade, se o objetivo for a observação de estrelas, planetas e objetos de
céu profundo.
Depois de uma longa viagem, chegamos ao sítio ao anoitecer. Após
nos instalarmos no sítio, nos reunimos ao ar livre para dar início às atividades
práticas de observação. No primeiro momento sugerimos a cada participante
simplesmente desfrutar a visão do céu noturno, sem a poluição luminosa dos
centros urbanos, e curtir este momento, sem se preocupar em achar algo já
conhecido ou que tenha ouvido falar. Durante este momento o professor-
facilitador deve orientar as pessoas para que evitem qualquer expectativa e se
permitam atribuir significados próprios ao que estão vendo.
Sugerimos, nesse momento, que a pessoa busque permanecer num es-
tado de passividade alerta, onde ela se predisponha àquela experiência sem
expectativas, porém, ao mesmo tempo, que fique atenta ao que está aconte-
cendo com ela, em termos de associação de ideias, sentimentos, sensações e
percepções. Após certo tempo nos reunimos outra vez para compartilhar o
que cada um vivenciou e percebeu.
O estado de admiração e êxtase quanto àquele céu estrelado foi uma
constante entre as primeiras afirmações de nossos professores-alunos, encan-

28 Além disto, claro, é preciso que as condições meteorológicas contribuam. Este fator está fora de nosso
controle organizacional. Mesmo assim, porém, podem-se minimizar as condições desfavoráveis. Para
tal, é preciso conhecer o calendário anual de chuvas da região onde a aula de campo se dará e escolher
datas mais convenientes, planejando aulas de campo em épocas sem chuvas, nem céu nublado. Con-
vém, ainda neste sentido, marcarem-se aulas envolvendo pelo menos duas noites de observação, para
se aumentar a chance de se ter pelo menos uma noite com céu propício para as finalidades pretendi-
das. Outros cuidados, relacionados à fase da Lua, são comentados no texto.

194
Cosmoeducação

tados pela imagem daquele céu isento da poluição luminosa, tão comum nos
centros urbanos. Outro ponto comum entre os professores foi o estado de
paz que descreviam ao compartilhar a experiência de desfrutar aquele céu.
Mais uma vez me ocorreu na lembrança de um trecho de Bachelard (2001,
p. 184):
O céu estrelado é o mais lento dos móbeis naturais. Na ordem da len-
tidão, é o primeiro móbil. Essa lentidão confere um caráter suave e
tranqüilo. É o objeto de uma adesão inconsciente que pode dar uma
impressão singular, uma impressão de leveza aérea total.

Aqui é importante trazer à tona o fato de que o céu, no sentido físico, é


um só. Porém, este mesmo céu pode parecer diferente para diferentes pessoas
da mesma cultura e pode parecer mais diferente ainda para pessoas de cultu-
ras diferentes; para maiores reflexões e aprofundamentos sobre estes pontos,
vide Jafelice (2005c) e, em particular, a subseção 2.2 (Quantos céus existem?)
no capítulo 4 deste livro. Se fizermos uma viagem imaginária para a Babilônia
de há 4.000 anos, encontraremos o início de uma estruturação acerca do céu.
Aquele “mesmo céu” (fisicamente falando) também estava sendo visto e in-
terpretado pelas civilizações pré-colombianas e pelos índios brasileiros, por
exemplo, entre outras culturas. Pode-se dizer que esses diferentes povos, dian-
te do mesmo céu, quer dizer, da mesma influência ambiental física, enxerga-
ram significados diferentes, conforme a sua cultura. Nossa cultura ocidental
herdou muito da visão do céu originalmente dos babilônios, à qual se agre-
garam as influências e modificações posteriores dos gregos. Em um segundo
momento dessa prática, então, convidamos os participantes a identificarem
algumas coisas que fazem parte desta cultura – a qual, afinal, como dissemos,
é a nossa, e da qual também devemos nos conscientizar no maior número de
aspectos e níveis possível. Assim, sugerimos que achassem o Cruzeiro do Sul
e, a partir deste, o pólo sul celeste; Alfa e Beta de Centauro; a constelação de
Escorpião; entre outros astros celestes mais notáveis que estivessem visíveis,
como Júpiter estava, naquela época, por exemplo.
Após nos deleitarmos um bom tempo com o prazer de ligar mental-
mente as estrelas no céu, para obter uma figura que é significativa para nossa
cultura, partimos para a observação do céu através do telescópio (Figura
9). Este terceiro momento também é estimulante para todos, uma vez
que desperta outros aspectos, como a curiosidade e a expectativa de se
tornar mais próximo de um astro e, quem sabe, poder desvendar algum

195
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

segredo longínquo. Muitas vezes, contudo, o telescópio tem frustrado tais


expectativas, uma vez que as imagens que visualizamos através de seus
espelhos e lentes não correspondem àquilo imaginado, não indo muito
além, principalmente no caso de estrelas, daquilo a que já temos acesso a
partir da visão a olho nu.
Com este grupo, observamos a estrela mais próxima da Terra (depois
do Sol): a alpha centauri (como é tecnicamente chamada a estrela Alfa de
Centauro, a estrela mais brilhante da constelação de Centauro, que fica pró-
xima e em torno da constelação do Cruzeiro do Sul). Essa estrela está a 4,4
anos-luz de distância da Terra. Neste caso, em particular, sim, foi possível ter
algum resultado surpreendente, diferente do que notamos a olho nu. Com
efeito, à vista desarmada, Alfa de Centauro parece uma estrela única, como
as outras que enxergamos normalmente no céu, embora das mais brilhantes;
com o telescópio pudemos observar que se trata de um sistema estelar forma-
do por duas estrelas (quer dizer, na verdade formado por três estrelas, confor-
me explicamos para os alunos, porém, isto só é observável com telescópios
muito grandes; o nosso nos permitiu apenas enxergá-la como uma estrela du-
pla; mas isto já causou um grande impacto nos alunos). Depois observamos
Júpiter e suas luas galileanas.

Figura 9 – Observação do céu com telescópio em Santana do Matos/RN (Foto: Fátima Lopes)

196
Cosmoeducação

Como última atividade dessa noite, voltamos a observar, em silêncio,


o céu noturno a olho nu, numa atitude contemplativa. Foram dados os
comandos de escolher algum astro ou conjunto de astros delimitado; fixar
o olhar no(s) astro(s) escolhido(s); buscar estabelecer uma relação íntima
com o(s) mesmo(s); registrar internamente qualquer percepção, ou ideia, ou
sentimento, que surgisse; ampliar ao máximo essa relação com o cosmo e,
ainda em silêncio, recolher-se ao leito, neste caso a rede, e dormir impregnado
das imagens e das sensações provocadas por esta vivência. No dia seguinte,
na ocasião do café da manhã, comentamos sobre a qualidade do sono e a
ocorrência, se rememorada, de algum sonho. Aqui expressamos a valorização
de funções imaginárias e subjetivas próprias do sonhar. Segue outra citação
retirada de Bachelard (2001, p. 201), que traduz a relação do sonho e sua
função cosmogônica:
O sonho é a cosmogonia de uma noite. Todas as noites o sonhador
recomeça o mundo. Todo ser que sabe desprender-se das preocupa-
ções do dia, que sabe dar ao seu devaneio todos os poderes da soli-
dão, devolve ao devaneio sua função cosmogônica.

4.1.15 Retrospectiva do curso

Aqui o participante é estimulado a relembrar a sua própria jornada


no curso e tem como objetivos propiciar a autoavaliação e integrar as experi-
ências vividas no curso à sua vida pessoal, comunitária, social e pedagógica
(neste caso). Este momento é realizado de preferência de olhos fechados e o
professor vai citando as atividades que foram propostas desde o primeiro dia
até o momento atual, enfatizando práticas vivenciadas, conteúdos aprendi-
dos, trocas de experiência, aula de campo etc. Nesta retrospectiva é impor-
tante incluir tarefas de casa, momentos de insights, vivências com parentes e
amigos relacionadas ao céu, que foram relevantes para a pessoa e vivenciados
fora da sala de aula. Este aspecto é muito importante do ponto de vista da
aprendizagem significativa, uma vez que boa parte do aprendizado se dá fora
da sala de aula, no dia a dia, onde o sujeito associa o conteúdo trabalhado no
curso (isto é, em uma situação de ensino formal qualquer) com sua vivência
diária. Consideramos importante sugerir tarefas de casa estimulantes, que fa-
cilitem que o aluno experiencie o aprendizado como algo contínuo, ininter-
rupto e integrado com suas experiências cotidianas.

197
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Por fim, pedimos para que a pessoa entre em contato com a experiên-
cia mais importante vivenciada por ela durante este período e reviva essa ex-
periência. Ao abrir os olhos e retornar ao estado de vigília física, lhe serão da-
das algumas questões para serem respondidas em seguida, tais como: “Qual a
experiência mais importante que você vivenciou durante este período? Que
implicações práticas isto teve na sua vida em geral (por exemplo, na interação
com familiares) e, em especial, na sua atuação em sala de aula com os alunos?
Dê exemplos reais.” Estas questões foram respondidas por escrito e, depois,
compartilhadas com o grande grupo.
As autoavaliações gerais e particulares, e as discussões desencadeadas
nessa etapa final, encerraram formalmente o curso.

5 RESULTADOS E CONCLUSÃO
Notamos que a atitude de observar as coisas do céu praticada pelos
professores ao longo do curso foi uma constante dentre os relatos dos mes-
mos. Consideramos o desenvolvimento deste hábito de extrema importân-
cia para esta proposta cosmoeducativa, uma vez que o primeiro passo para
reintegrarmos algo em nossas vidas é perceber a sua existência. Assim, o fato
de esses professores terem citado a inclusão da prática de observação do céu
como mudança efetiva em suas vidas é interpretado por nós como condição
inicial do processo de reintegração cósmica.
Portanto, de acordo com as autoavaliações dos professores participan-
tes, ficou evidente a ocorrência de mudanças conceituais e existenciais em
relação à visão de mundo anterior ao curso.
Quando questionados sobre os elementos, conteúdos e/ou práticas
que facilitaram tal mudança, a origem do universo foi citada em vários relatos
como tendo sido um tema gerador de reflexões e questionamentos, enquan-
to outros mencionaram os exercícios propostos pela psicologia transpessoal,
conforme exemplificados nos relatos abaixo:
As práticas da psicologia transpessoal, que me possibilitaram ver
o quanto precisamos fazer com que nossos alunos agucem as suas
percepções através dos sentidos.
A origem do universo.
As observações e reflexões sobre como tudo começou.

198
Cosmoeducação

As oficinas de gravuras da representação do universo.


As dinâmicas dos momentos de reflexão e observação do interior e
exterior.
O filme zoom cósmico.
A prática envolvendo a respiração.
Estes relatos demonstram o quanto o tema das origens incita a curiosi-
dade humana e propicia reflexões e potenciais mudanças na forma de encarar
o ainda não desvendado mistério da origem do universo, o qual inclui a nossa
própria origem enquanto seres humanos.
O reconhecimento explícito da importância das práticas em psicolo-
gia transpessoal por uma fração significativa dos participantes (40%) reforça
a pertinência desse tipo de iniciativa, que valoriza e estimula o autoconheci-
mento, a subjetividade e a intuição.
Quando questionados sobre se o curso influenciou na sua prática pe-
dagógica e como, todos admitiram que o curso influenciou especialmente
dando subsídios teórico-práticos para trabalhar com o(a) aluno(a) a observa-
ção das coisas do céu. Uma das professoras acrescentou que: “o curso influen-
ciou no sentido de desenvolver e trabalhar com meus alunos e buscar por essa
autoconsciência de si neste cosmos e de outros corpos”.
Os professores participantes do curso citaram como pontos positivos
do mesmo a forma de trazer os conteúdos da astronomia sempre fazendo a
relação entre teoria e prática, proporcionando assim uma maior possibilidade
de aplicação prática daqueles, bem como a criação do hábito da observação
e investigação científica na prática pedagógica e no dia a dia. Como pontos
negativos, os participantes foram unânimes em apontar o aspecto do pou-
co tempo das aulas e do curso, e sugeriram o aumento da carga horária para
maior aprofundamento dos conteúdos trabalhados e das vivências experi-
mentadas.
De fato, o tempo é fator essencial para o desenvolvimento e conso-
lidação dos conhecimentos sobre as coisas do céu29. Além disso, os temas
propostos pela astronomia favorecem diversas discussões envolvendo rela-

29 Este, em particular, é um dos motivos pelo qual o Prof. Luiz Carlos Jafelice inicia e desenvolve sua
intervenção na disciplina de astronomia, para o Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, atra-
vés de atividades de (re)estabelecimento do contato dos alunos com as coisas do céu que permitam
“dar tempo ao tempo, pois este é um elemento constituinte primordial dessa área do conhecimento”
( Jafelice 2006b; vide discussões e aprofundamentos dessa estratégia pedagógica em Jafelice 2002,
2004, 2005a, 2006a e, em parte, também no apêndice 1 do capítulo 4 deste livro).

199
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

ções com outras disciplinas, com o meio ambiente, com outras culturas, entre
outras inter-relações que estimulam o pensamento crítico dos professores e
que, portanto, demandam mais tempo. Sendo assim, para um trabalho futuro
em formação de professores com o presente enfoque cosmoeducativo, preci-
saremos ampliar a carga horária, a fim de propiciar um maior espaço-tempo
de aprendizagem.
Por fim, quanto à experiência mais significativa vivenciada durante o
curso, foi unânime aquela associada às práticas de observação do céu, sejam
da Lua, do Sol ou de constelações. Isso demonstra o quanto redescobrir o
céu diurno e noturno é importante para ampliar a noção de meio ambiente
e promover potenciais mudanças na visão de mundo. Seguem abaixo relatos
dos alunos sobre a experiência mais importante vivenciada durante o período
desse curso, conforme escritos por eles próprios na última aula do mesmo:
A experiência mais importante para mim foi a observação da lua.
Essa vivência foi algo novo para mim. Depois disso passei a levar as
crianças para observar a mudança da fase da lua.
A experiência mais marcante entre muitas que tivemos e vivencia-
mos neste curso foi a observação do sol naquela aula anterior a esta,
pois foi maravilhoso vê-lo. Após este dia comentei com meus alu-
nos do 1° ciclo (2ª fase) sobre a beleza do sol, afinal, já havíamos
trabalhado sobre a sua formação e importância dele para todos os
seres vivos. Como Ana Lígia e Pedro Ivan (meus alunos) também
tinham visto o sol através do vidro de soldador chamei-os para dar
relatos sobre aquele espetáculo, porém como desde o início quando
começamos o trabalho de observar sombras através da medição de
um pau, adverti-os para que não olhassem diretamente para ele,
pois assim como Galileu morreu cego de tanto observar as manchas
do sol eles poderiam ter problemas de visão caso tentassem fazê-lo.
A experiência mais importante que vivenciei foi as observações fei-
tas com a lua. Com ela tirei dúvidas e compreendi que: a lua cami-
nha, transforma-se, ilumina, orienta e modifica alguns momentos
da vida dos seres que habitam o universo.
Na vivência foi possível descobrir a importância de observarmos o
céu e as coisas que fazem parte deste universo, com mais satisfação
e aprendizagem.
Em geral, as observações vieram lembrar que é importante passar-
mos a valorizar o universo e passar também esses momentos de des-
cobertas para meus familiares e alunos.

200
Cosmoeducação

Com os familiares envolvi os mesmos a dar mais importância ao


universo através das observações feitas comigo.
Na sala de aula, despertei os alunos para o contato com o céu e o
que eles notavam que nele existe.
A experiência mais importante foi a observação da lua.
Passei a ver a lua com mais importância, pois antes não tinha essa
visão de que a lua é tão importante para nós.
Uma grande dificuldade que tive foi de observar a estrela Dalva,
pois em momento algum consegui vê-la.
Durante o período do curso a experiência mais importante para
mim foi na aula 14 quando fomos olhar o sol. Como é belo. Olhan-
do-o senti vontade de chegar mais perto do mesmo. Pensei que se
Deus é luz, o sol é o olho de Deus. Levei aos alunos a prática de
relaxamento, de olhos fechados sair da sala de aula e ir ao ambiente
familiar pensando coisas boas para os familiares.
A experiência mais importante foi na aula de campo no dia 04/06,
pois eu nunca tinha visto um céu tão estrelado como naquela noite.
Naquele momento eu não tinha conseguido achar escorpião, mas
ao retornarmos da aula após as orientações dadas, eu consegui
identificar no céu o escorpião tão falado e isso me deixou bastante
realizada, pois se todas as minhas colegas tinham identificado o es-
corpião eu também iria conseguir.

5.1 Comentários finais


Ao longo deste trabalho buscamos explorar a interface psicologia/as-
tronomia através de vivências da psicologia transpessoal com base em temas
astronômicos trabalhados segundo uma abordagem antropológica30 e avaliar
as consequências das mesmas nos processos de autoconhecimento, consciên-

30 Insistimos que trabalhar os temas astronômicos segundo uma abordagem desse teor é essencial
para que o mencionado potencial transformador dos mesmos e das atividades associadas possam
se realizar em cada um dos envolvidos. Aqueles temas costumam exercer fascínio nas pessoas
independentemente de qualquer outra estratégia. Mas eles costumam também ser abordados desde
uma perspectiva que visa basicamente causar maravilhamento, sem preocupação nem estratégias
adequadas para que ocorra integração dos mesmos no indivíduo, do ponto de vista psicológico, nem
ampliação da visão de mundo, em termos perceptivos e culturais. Às vezes aqueles temas são tratados
de maneira até apelativa, abusando-se das belas imagens associadas à astronomia – conforme, por
exemplo, críticas feitas em Jafelice (2002; 2004) enfatizam (cf. capítulo 4 deste livro). Assim, não são
os “temas astronômicos” por si mesmos, pela atração que exercem, que causam o tipo de mudança de
concepção que consideramos importante promover. A forma com que são abordados e trabalhados é
que pode fazer a diferença.

201
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

cia ambiental e aprendizagem de conteúdos de astronomia. Como disse Jafe-


lice (2005a), “todas essas tarefas [...] [visam] recuperar, de modo vivencial,
uma inter-relação maior e plena entre todos os seres vivos e as coisas da Terra,
do céu e do cosmo inteiro”.
O processo nos tem revelado o quanto a prática de “olhar o céu”, no
sentido de reincluí-lo na vida diária, provoca um processo de expansão da
consciência e reintegração do eu em um patamar de inter-relação ambiental
mais amplo. O propósito deste trabalho foi estimular tal processo, intensificá-
lo, por assim dizer, e analisar as implicações desse tipo de intervenção nas
vidas dos sujeitos que passam por tal experiência.
A nossa hipótese de que astronomia, desde que abordada segundo um
enfoque antropológico ou humanístico, pode servir como uma porta cultural
muito estratégica e conveniente, através da qual o ser humano moderno (re)
estabelece suas relações com o céu, podendo readquirir, através daquela, o
hábito do contato com as coisas do céu, redescobrindo-o, reintegrando-o em
sua vida e ampliando sua consciência ambiental, tem se apresentado, a partir
da análise dos resultados que obtivemos, bastante pertinente.
Na prática, os exercícios que propusemos – de relaxamento, medita-
ção, sons autóctones, expressão corporal, imaginação ativa, pinturas de man-
dalas pessoais, redescoberta do céu diurno e noturno, por exemplo –, efetiva-
mente contribuíram para se acessar dimensões adormecidas em nós devido
ao excesso da razão cartesiana e do condicionamento à vigília física ordinária
a partir dos cinco sentidos físicos.
O estado de consciência usual do dia a dia, que normalmente expe-
rienciamos, não nos permite ter uma visão mais integrada entre o que existe
“fora” de nós e nós mesmos e, frequentemente, nos percebemos como estan-
do dissociados dos eventos que ocorrem na natureza e no cosmo.
A partir de nossas intervenções e reflexões, observamos que esta emer-
gente aliança entre a astronomia e a psicologia transpessoal vem se revelando
para nós, experimentadores, como uma eficiente ferramenta para expandir a
percepção, não só nos níveis conceitual e intelectual, mas principalmente nos
níveis vivencial e transcendente.
Vimos, ao longo da aplicação prática desta proposta cosmoeducativa,
que os conteúdos abordados em astronomia têm grande repercussão na psi-
que humana. Como já mencionamos, isto se dá, possivelmente, por um lado,
pelo caráter inacessível de muitos daqueles conteúdos à nossa manipulação
e imaginação e, por outro lado, pela própria identificação do céu com aspec-

202
Cosmoeducação

tos ancestrais, que remetem, inclusive, à nossa própria origem. A psicologia


transpessoal aproveita este impacto como uma predisposição para a pessoa
transcender seus limites conceituais, para entregar-se ao movimento de trans-
formação contínua do universo e descobrir sua identidade cósmica e infini-
ta. A vivência destes dois elementos – cosmicidade e infinitude – apresenta
influência positiva no estado de equilíbrio psicológico do indivíduo, facili-
tando, a nosso ver, uma convivência mais harmoniosa com o meio ambiente
(terra e céu) e com os demais seres existentes.
À medida que esse estado de consciência expandida vai sendo cada
vez mais vivenciado pelos professores e alunos é possível que ocorra uma mu-
dança profunda de valores, capaz de levar ao desenvolvimento de uma ética
cósmica baseada na responsabilidade universal, que se inicia pelo desejo de
incorruptibilidade pessoal, instância onde começamos a superar nossas pró-
prias incoerências e a nos melhorarmos enquanto humanos. Daí a importân-
cia de se cultivar a valorização e a vivência do autoconhecimento e da auto-
transformação na prática educacional aqui proposta, para sermos capazes de
superar o empobrecimento do humano, causado pela fragmentação com ên-
fase no racional, e exercer a atitude transdisciplinar de compreender o mundo
presente – nas suas totalidades, porções, inter-relações, simplicidades, com-
plexidades, imanências, transcendências, verbalizáveis, indizíveis – e de nele
atuar de modo solidário, compassivo, construtivo, harmônico e inclusivo.
Dessa forma, podemos vir a legitimar o pensamento de Vajpeyi
(1995), de que a proposta de qualquer sistema educacional é, de alguma for-
ma, promover o desenvolvimento integral do indivíduo, contextualizando o
aprendizado, para que esclareça o aluno sobre si mesmo e as relações com o
meio ambiente que o cerca. Neste trabalho incluímos o céu como parte do
ambiente.
Concluímos que a aplicação da proposta transdisciplinar que deno-
minamos de cosmoeducação contribuiu para a recuperação do contato dos
professores envolvidos com as coisas do céu, bem como para o processo de
expansão do estado de consciência dos mesmos, e promoveu potenciais mu-
danças na concepção de mundo dos professores. Tais mudanças, portanto,
refletem-se diretamente nas suas vidas (conforme reforçado, inclusive, pelos
relatos colhidos), implicando em mudanças também em suas práticas peda-
gógicas – em particular um de nossos objetivos principais no curso. E com
isto completa-se, assim, um grande circuito, aberto, que cresce, em espiral,
possibilitando a inclusão e o benefício dos muitos alunos, atuais e futuros,
desses professores, nesse processo transformador de consciências e ações.

203
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

REFERÊNCIAS
AVENI, A. Conversando com os planetas. São Paulo: Mercuryo, 1993.
BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
BARBOSA, D. A atitude transdisciplinar na educação escolar. In: FRIAÇA, Amâncio
et al. (Org.). Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: TRIOM, 2005. p.
361-377.
BERTOLUCCI, E. Psicologia do sagrado: psicoterapia transpessoal. São Paulo:
Agora,1991.
BRASIL. Ministério da educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais – 1º e 2º ciclo. Brasília: MEC/SEF, 1997.
______. Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências Naturais - 3º e 4º ciclo.
Brasília: MEC/SEF, 1999.
CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São
Paulo: Cultrix, c1996.
CARTA da Terra. In: Documentos pela paz. Foz do Iguaçu: UDC, 2004. p. 37-49.
HUTCHISON, D. Educação ecológica: idéias sobre consciência ambiental. Porto
Alegre: Artmed, 2000.
JAFELICE, L. C. Teaching astronomy from an anthropological perspective. In: In-
ternational Conference on Teaching Astronomy, 6., 2000, Vila Nova i la Geltrú.
Proceedings... Barcelona: Ros, Rosa, 2001a.
______. A lua e a mística lunar. Natal: UFRN – Depto. de Física, 2001b. Texto de
apoio para a disciplina Astronomia, ministrada no Curso de Licenciatura em Geogra-
fia da UFRN. 2p.
______. Nós e os céus: um enfoque antropológico para o ensino de astronomia. In:
VIII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física, 2002, Águas de Lindóia. Atas...
São Paulo: Vianna, Deise M. et al., Sociedade Brasileira de Física, 2002. 20p. 1 CD-
ROM. [Também disponível em: http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/
viii/PDFs/CO19_1.pdf.]
______. Holistic anthropological approach to astronomy teaching. In: XXVIII
Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira, 2002, Florianópolis. Atas...
São Paulo: Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira, v. 22, n. 1, p. 64, 2002.
______. Astronomia e autoconhecimento na história. Natal: UFRN – Depto. de
Física, 2003a. Texto de apoio para a disciplina Astronomia, ministrada no Curso de
Licenciatura em Geografia da UFRN. 2p.
______. Descobertas sobre a lua. Natal: UFRN – Depto. de Física, 2003b. Texto
de apoio para a disciplina Astronomia, ministrada no Curso de Licenciatura em
Geografia da UFRN. 3p.

204
Cosmoeducação

______. Educação holística, consciência ambiental e astronomia cultural. In: CAR-


DOSO, Walmir Thomazi (Ed.). VIII Encontro Brasileiro para o Ensino de Astro-
nomia, São Paulo. Atas... São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2004. 45p. (Conferência de encerramento. As Atas desse encontro não foram publi-
cadas.)
______. Astronomia no 1º e 2º ciclos do ensino fundamental. Natal: UFRN –
Depto. de Física, 2005a. Material para o Curso de Ensino Médio Modalidade Normal
para Educadores de Áreas de Reforma Agrária do Estado do Rio Grande do Norte.
65p.
______. Exemplo de aquecimento. Natal: UFRN – Depto. de Física, 2005b. Tex-
to de apoio para a disciplina Astronomia, ministrada no Curso de Licenciatura em
Geografia da UFRN. 1p.
______. O céu, a terra, a realidade. Natal: UFRN – Depto. de Física, 2005c. Texto
de apoio para a disciplina Astronomia, ministrada no Curso de Licenciatura em
Geografia da UFRN. 2p.
______. Anotações das aulas de L. C. Jafelice na disciplina Astronomia, para licen-
ciandos em Geografia, na UFRN, no primeiro semestre de 2006. 2006a.
______. Comunicação particular. 2006b.
______. Educação científica, pós-modernidade e transdisciplinaridade. In: MAR-
TINS, Roberto de A. et al. (Ed.). Filosofia e História da Ciência no Cone Sul.
Seleção de trabalhos do 5º Encontro. Campinas: Associação de Filosofia e História
da Ciência do Cone Sul, 2008, p. 285-293.
JAFELICE, Luiz C.; et al. The sky in the indigenous oral tradition in the Rio
Grande do Norte state, Brazil. In: 8th Congress on Scientific Knowledge and
Cultural Diversity, 2004, Barcelona. Forum Universal de las Culturas 2004 – Public
Communication of Science and Technology. Barcelona: 2004.
MATOS, L. Caderno de debates plural. Belo Horizonte: Homo Sapiens, 1992.
______. Informação verbal obtida durante aula do Curso de Especialização em Psi-
cologia e Psicoterapia Transpessoal, no Módulo IV: Percepção e Realidade, ministra-
do por L. Matos, em setembro de 1996, em Recife (PE), 1996.
MATTHEWS, M.R. History, philosophy, and science teaching. New York:
Routledge; London: Routledge, 1994.
MEDEIROS, L. A. L. Cosmoeducação: uma abordagem transdisciplinar no ensino
de astronomia. Dissertação (Mestrado em Centro de Ciências Exatas e da Terra).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2006. 113f. [Também disponível
em: http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm (nesta página, clicar em “Outras
Opções” e em “Dissertações (2002-2007)”).]

205
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

MEDEIROS, L. A. L.; JAFELICE, L. C. Cosmoeducação: uma proposta para o


ensino de astronomia. In: Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira,
29., 2003, São Pedro. Atas... São Paulo: Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira,
v. 32, p. 76, 2003.
______. Cosmoeducation: The emerging alliance of astronomy teaching and
transpersonal psychology. In: 8th Congress on Scientific Knowledge and Cultural
Diversity, 2004a, Barcelona. Atas... Barcelona: Forum Universal de las Culturas,
2004. Disponível em: http://www.pcst2004.org. Acesso em: 28 jun. 2004.
______. Cosmoeducação: uma proposta para o ensino de astronomia. In: CAR-
DOSO, Walmir Thomazi (Ed.). VIII Encontro Brasileiro para o Ensino de Astro-
nomia, São Paulo. Atas... São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2004. 5p. (As Atas desse encontro não foram publicadas.)
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de
Catarina Eleonora F. da Silva, Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,
2002.
MORIN, E.; CIURANA, E. R.; MOTTA, R. D. Educar na era planetária: o
pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana.
Tradução de Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,
2003.
NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Coleção Trans. 2001.
120p.
O’SULLIVAN, E. Aprendizagem transformadora: uma visão educacional para o
século XXI. Tradução de Dinah A. de Azevedo. São Paulo: Cortez, 2004.
RINPOCHE, S. O livro tibetano do viver e do morrer. Tradução de Luiz Carlos
Lisboa. São Paulo: Talento: Palas Athena, 1999.
ROMERO, W.; et al. Conhecimentos populares do céu no Rio Grande do Norte.
In: XXX Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira, 2004, São Pedro,
Atas... São Paulo: Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira, v. 24, p. 75-76,
2004.
SALDANHA, V. A psicoterapia transpessoal. Campinas: Editora Komedi, 1997.
TOBEN, B.; WOLF, F. A. Espaço, tempo e além. São Paulo: Cultrix, 1982.
VAJPEYI, B. Z. M. In: Dalai Lama XIV. Dialogues on universal responsibility &
education. India: Library of Tibetan Works and Archives, 1995.
VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. A mente incorporada: ciências cog-
nitivas e experiência humana. Tradução de Maria Rita Secco Hofmeister. Porto Ale-
gre: Artmed, 2003.
WEIL, P. A consciência cósmica: introdução à psicologia transpessoal. Petrópolis:
Vozes, 1989.

206
Cosmoeducação

Apêndice A

Questionário inicial aplicado na 1ª aula do curso de extensão


Laboratório em Cosmoeducação

Aula 01
Redação
Tema: “O que significa o universo para mim”.
(Note: não é uma pergunta; é uma afirmação).

Questionário:
Instrução: o questionário deve ser passado na forma de ditado, uma questão
por vez. Ou anotar a questão na lousa e após todos responderem passar para
a seguinte.
1) O que significa o céu para você?
2) Como você se sente quando olha para o céu?
3) O que lhe chama mais atenção no céu?
4) Com que frequência você costuma olhar para o céu?
5) Quais as relações que você percebe entre o céu e a terra?
6) Quais as relações que você percebe entre tudo o que existe no
cosmo?
7) Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê e/ou
como?
8) Qual o lugar ou o papel do ser humano no universo?

207
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

Anexo A

Descobertas sobre a Lua

A seguir, verbalizações dos participantes quanto às suas descobertas


sobre a Lua feitas durante o curso de extensão Laboratório em Cosmoeduca-
ção – descobertas essas, é importante frisar, feitas por eles apenas através de
suas próprias observações diretas, sistemáticas e diárias da Lua durante cerca
de 28 dias, isto é, durante quase um ciclo lunar31; durante esse intervalo de
tempo não houve nenhuma intervenção expositiva ou explicação da facili-
tadora sobre essas questões, as quais foram descobertas independentemente
pelos alunos:
1. A Lua caminha no céu de leste para oeste numa única noite;
2. No decorrer dos dias ela começa a nascer mais tarde;
3. A parte iluminada vai crescendo e depois diminuindo ao longo do
ciclo;
4. A Lua muda de posição numa única noite;
5. A Lua muda de cor: um dia está mais amarelada, noutro mais bran-
ca;
6. A forma dela está decrescendo de cima para baixo;
7. O desenho que vemos na Lua muda ao longo de uma mesma noite;
8. De um dia para outro a posição da Lua mudou em relação a um
grupo de estrelas.
Como parte do trabalho feito com os professores, para análise e ela-
boração formal dessas descobertas, partimos das verbalizações acima e uti-
lizamos algumas outras informações sobre o assunto retiradas do texto Des-
cobertas sobre a lua, de Jafelice (2003b)32. Desse trabalho, elaboramos um

31 Esse foi o tempo em que quase se completou uma lunação, isto é, foi o tempo entre o dia em que os
alunos começaram a acompanhar a Lua no céu sistematicamente e o momento da discussão na data
mais próxima a se completar uma lunação. [Lunação é período que a Lua leva para repetir consecu-
tivamente uma dada fase – isto é, do primeiro dia em que ela se apresenta como lua cheia (ou nova,
crescente, minguante) até o último dia antes de ela se apresentar de novo como lua cheia (ou, respec-
tivamente, nova, crescente, minguante), intervalo de tempo esse que é de, aproximadamente, 29,5
dias.] Como as discussões eram feitas nos dias de aula e, no nosso caso, os encontros eram semanais,
tivemos cerca de 28 dias para coletar e trabalhar os relatos aqui reproduzidos.
32 A título de esclarecimento, o referido texto e as informações contidas no mesmo foram atualizados
pelo Prof. Jafelice em 2006. Contudo, o texto a partir do qual compusemos este anexo foi aquele de
Jafelice (2003b).

208
Cosmoeducação

documento sistematizando e resumindo as principais descobertas que eles


fizeram sobre a Lua e, além diso, incluindo informações adicionais importan-
tes sobre o tema, que não haviam vindo à tona ainda. Cada participante do
curso recebeu uma cópia desse documento33, o qual achei importante e útil
incluir aqui:

1. A Lua caminha no céu de leste para oeste numa única noite;

2. No decorrer dos dias ela começa a nascer mais tarde; ou seja, sua
posição no céu muda, para um dado horário, de um dia para o outro,
e notamos que ela se desloca de oeste para leste com o passar dos
dias;

3. Este deslocamento contínuo da Lua de oeste para leste pode ser


comprovado se tomarmos como referência um grupo de estrelas
qualquer próximo a ela; de um dia para outro a posição da Lua muda
em relação a este grupo de estrelas; pode-se perceber que ela vai se
afastando um bom tanto de distância desse conjunto em direção ao
leste de dia para dia; e para notar isto não é preciso olhar a Lua sem-
pre no mesmo horário; basta memorizar sua posição relativa ao con-
junto de estrelas, pois se constatará que a Lua se afastou para o leste
em relação ao conjunto de estrelas;

4. O movimento de leste para oeste é semelhante ao de todos os as-


tros (como o Sol, as estrelas, os planetas, os cometas etc.). Pode-se
dizer que este movimento é aparente; uma vez que todos os astros
o realizam. Na verdade é a Terra que está executando o movimento
real, que é de oeste para leste, porém não sentimos esse movimento,
então parece que são os astros que estão se movimentando de leste
para oeste;

5. O movimento aparente da Lua, de leste para oeste, entre seu nascer


e seu ocaso, é bem mais notável que seu movimento real, de oeste
para leste, que, em geral, só percebemos entre um dia e outro; porém

33 Aqui ele está ligeiramente modificado em relação à versão entregue no curso. Isto ocorreu, porém,
apenas para corrigir alguns erros de digitação e estender as explanações, visando deixar o texto ainda
mais claro e didático.

209
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

é preciso ter claro que tal movimento real, apesar de menos acentua-
do, está acontecendo, praticamente no seu ritmo próprio inalterado,
o tempo todo, ininterruptamente;

6. A parte iluminada vai crescendo e depois diminuindo ao longo do


ciclo; ou seja, a parte iluminada muda o tempo todo;

7. A Lua muda de posição numa única noite; isso diz respeito à “in-
clinação” de suas “pontinhas” iluminadas ou das suas manchas. En-
quanto ela percorre o céu, do nascente para o poente, a posição re-
lativa entre suas partes iluminada e escura muda, uma começa “em
cima” da outra e termina “embaixo”;

8. Observa-se mudança de cor: “um dia está mais amarelada, noutro


mais branca”. A Lua muda de coloração de dia para dia, ou mesmo
durante um mesmo dia, dependendo do momento em que a vemos
em seu caminho no céu. Isso se deve às camadas da atmosfera terres-
tre através das quais enxergamos aquele astro (e todos os outros, é
claro);

9. Às vezes se forma uma roda luminosa, um arco bem circular, em vol-


ta dela, com ela bem no centro; este fenômeno é conhecido popular-
mente como “bolandeira” (ele é um arco-íris da Lua);

10. O desenho que vemos na Lua muda ao longo de uma mesma noite,
devido à parte iluminada que muda de inclinação. Porém, as man-
chas da Lua continuam as mesmas de dia para dia; isto é, a face da
Lua que está voltada para nós, na Terra, é sempre a mesma; isto é,
muda a fração dessa face que podemos enxergar, porque parte dessa
face não fica iluminada, mas conforme a Lua vai ficando cheia, dá
para ver todas as manchas dessa face da Lua, e são sempre as mesmas
o mês todo;

11. A forma dela está decrescendo de cima para baixo. Em que fase ela
está quando isso acontece? Enquanto você ainda não está habitua-
do aos ciclos lunares, só dá para saber a fase quando você a observa
pelo menos dois dias consecutivos, ou próximos um do outro; aí é
possível comparar as partes iluminadas dos dois dias e concluir se tal

210
Cosmoeducação

parte está aumentando – e, portanto, a Lua está na fase crescente, ou


indo de nova para crescente, ou de crescente para cheia – ou está di-
minuindo – e, portanto, ela está na fase minguante, ou indo de cheia
para minguante ou de minguante para nova;

12. Quando a parte iluminada da Lua está aumentando, nós a enxerga-


mos pela tarde e na primeira metade da noite do mesmo dia (isto é,
a parte da noite entre 18hs e meia-noite, cada dia em uma “altura”
diferente, para um mesmo horário de observação); quando sua parte
iluminada está diminuindo, nós a enxergamos na segunda metade da
noite (isto é, a parte da noite entre meia-noite e 6h, também cada dia
em uma altura diferente, para um mesmo horário de observação) e
pela manhã seguinte;

13. A Lua aparece, e bastante, durante o dia (isto é, aparece durante mui-
tos dias e grande parte do dia claro ao longo de um mês, apesar de ser
considerada o astro da noite ou a rainha da noite);

14. Ela não aparece no céu pelo menos uns três dias por mês; isto ocorre
porque ela fica muito próxima do Sol no céu (isto é, ela parece estar
perto deste astro, embora, objetiva ou fisicamente falando ela está
muito distante dele) e o brilho do Sol ofusca nossa visão da Lua;

15. Os formatos da Lua nas fases crescente e minguante são parecidos,


mas são invertidos, em relação à direção oeste, por exemplo, e além
disto tais luas aparecem no céu, para uma dada altura, em horários
diferentes. Durante a parte inicial da noite a fase crescente se asse-
melha à letra “C” e, umas três semanas depois, durante a parte final
da noite, mais ou menos à mesma “altura” em que a Lua crescente foi
vista antes, a fase minguante se assemelha à “barriga” da letra “D”,
em ambas as situações conosco nos posicionando de frente para o
norte enquanto buscamos e olhamos a Lua no céu;

16. A Lua tem infinitas faces, embora tenha sido definida pelos gregos a
existência de quatro fases – com um esperado intento, é de se supor,
de melhor organizar as referidas mudanças de sua aparência no tem-
po; contudo, é só observá-la todos dias para se descobrir que ela está
mudando a todo o momento!

211
Luziânia Ângelli Lins de Medeiros

ATENÇÃO: Que estes conhecimentos mais objetivos sirvam para aprofun-


dar a sua relação com a Lua, sem, entretanto, deixar de lado a subjetividade
e as boas sensações que a contemplação desse astro pode promover no seu
interior e irradiar para o meio externo.
O que falta descobrir sobre a Lua ainda? Muita coisa. Continue
observando-a!

212
Abordagem Antropológica

Capítulo 4
Abordagem Antropológica:
educação ambiental e astronômica desde
uma perspectiva intercultural

Luiz Carlos Jafelice

1 BREVE HISTÓRICO

Tenho adotado uma abordagem humanística para o ensino de astro-


nomia desde o início de 1994. A princípio mais grosseira, com o tempo mais
apurada, mas sempre essencialmente intuitiva.
Logo nos primeiros anos aquela abordagem foi se revelando parte de
uma visão de educação ambiental mais ampla. Esta desenvolvia uma perspec-
tiva holística de ambiente que, além de abarcar também sua dimensão cós-
mica interdependente, enfatizava um olhar biocentrado, de substrato episte-
mológico pluralista, e ressaltava o cultural enquanto ingrediente constitutivo
fundamental de nossas concepções e representações ambientalistas.
O embrião das ideias associadas à proposta educacional em questão,
na verdade, provinha de muitos anos antes. A novidade foi que naquele ano,
graças ao convite do conselho gestor da Escola Municipal Djalma Maranhão
(EMDM), do bairro de Felipe Camarão II, em Natal, tive a feliz oportunida-
de de poder experimentar, em uma situação escolar concreta, várias concep-
ções e intervenções diferenciadas que germinavam em minha mente desde
há muito. Ali fui acolhido por um grupo de professores preocupados com
o ser humano, a igualdade, a justiça social, o respeito à diversidade, e que se
atreviam a exercitar uma autêntica gestão democrática – com todas as dificul-
dades presentes nesse agir, ainda mais em uma escola pública muito marcada,
pelo menos na época, por clientelismo e fisiologismo intensos.
Aquele ambiente humano, da EMDM, de mentalidade aberta e inclu-
siva, era um meio ideal para eu pôr em prática o tipo de vivência que conside-
rava mais urgente e relevante em educação e, em particular, naquele período,

213
Luiz Carlos Jafelice

no ensino de astronomia segundo uma perspectiva cultural e ambiental. Com


aquele grupo de professores e seus alunos pude realizar as práticas que imagi-
nava e crescer com as surpresas que surgiam no percurso. O retorno que me
davam contribuiu para me orientar nos erros e acertos daquela iniciativa e me
estimular na criação de novas vivências.
Depois dessa experiência – e em paralelo a ela –, várias outras ocorre-
ram – em diferentes escolas, lugares do país, níveis de escolaridade dos alu-
nos, formação profissional do público-alvo e níveis de ensino, do pré-escolar
à pós-graduação –, inclusive culminando com meu retorno à EMDM, entre
2001 e 2003, em um novo projeto e com outros experimentos conjuntos. Me-
rece destaque nessa experimentação e aprofundamento da proposta, muitas
práticas e reflexões com estudantes do Curso de Licenciatura em Geografia
da UFRN, através da disciplina Astronomia. Propus que esta disciplina fosse
criada para completar a formação dos professores de geografia em conteúdos
de astronomia. O colegiado do Curso aceitou a proposta. Enquanto a lecio-
nei, de 2001 a 2006, cuidei de que ela tivesse um programa adequado ao perfil
daquele estudante e às necessidades daquele futuro professor; um programa
que enfatizasse principalmente o aspecto cultural associado à astronomia, e
não apenas os aspectos técnico-científicos, como ela costuma ser ensinada.
Isso tudo me permitiu enxergar melhor de que se tratava minha pro-
posta, o que acontecia quando aquelas ideias se concretizavam na prática –
etapa esta decisiva nos processos de ensino e de aprendizagem – e avançar
no aprimoramento da iniciativa. Foram contatos e trocas que contribuíram
muito para meus processos introspectivos e exteriorizações várias – o ama-
durecimento de minha inspiração inicial, a criação de novas perspectivas e a
compreensão da proposta e de suas inúmeras potencialidades e implicações.
Nesses dezesseis anos, aquela minha aproximação heurística do as-
sunto foi crescendo, maturando e diversificando-se. Nesse meio tempo,
principalmente de 1995 em diante, apresentei minha visão sobre ensino de
astronomia em congressos, no país e no exterior, e produzi trabalhos onde os
fundamentos da mesma foram sendo melhor elaborados1.

1 Logo mais – ainda em 2010, espero –, a grande maioria desses trabalhos estará disponível no sítio da
internet http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural, associado a palavras-chaves como: educação inter-
cultural, astronomia cultural, educação ambiental cultural, abordagem antropológica, etnoastrono-
mia, abordagem humanística em educação e na formação de professores, conhecimentos tradicionais,
vivências em educação ambiental e astronômica etc.

214
Abordagem Antropológica

Em 2000 comecei a chamar esse enfoque de abordagem antropológica.


Logo depois o chamei de abordagem antropológica holística. Nesse meio tem-
po fui mudando esta denominação em várias ocasiões. Já a chamei de abor-
dagem antropológica transdisciplinar. Atualmente prefiro designá-la, de novo,
apenas abordagem antropológica – suficiente por conter as diferenciais postu-
ras holística e transdisciplinar. Essa inconstância de denominações se deve à
esperança de completeza e clareza e à constatação recorrente da impossibili-
dade de se enclausurar procedimentos vivenciais abertos, envolvendo criação
e experimentação constantes – como os que caracterizam tal abordagem –,
em categorizações e nomenclaturas, sempre pobres, redutoras e insuficientes.
Portanto, a denominação aqui prevalecente representa só um tosco arrodeio
de designação, antes com finalidades pragmáticas de registrar a proposta por
escrito de modo conciso e ajudar, talvez, a esclarecer do que se trata com re-
lativa autoconsistência. [Vide ainda subseção 3.1 (Por que abordagem antro-
pológica?).]
As primeiras exposições mais formalizadas dos princípios da presen-
te abordagem constam de Jafelice (2000; 2001). Em Jafelice (2002; 2004)
encontram-se sínteses da abordagem e referências de outros trabalhos. Ainda
nestes trabalhos, e também em Jafelice (2005b; 2008a; 2008b; 2009a; 2010a;
2010b), aprofundo aspectos ou conteúdos específicos da filosofia e assuntos
em questão. Neste livro, devido a limitações de espaço e ao escopo escolhido,
circunscrevo-me a alguns domínios e exemplos daquela abordagem. Eventu-
ais interessados em outros aprofundamentos, reflexões e exemplos da mes-
ma, os encontrarão naqueles trabalhos e em outros lá citados.
O que importa enfatizar é que este capítulo2 é completo e autoconsisten-
te para os educadores que almejam um embasamento essencial mínimo que
os capacite para a aplicação, adaptação e criação em cima desta abordagem –
ou inspirações para outras criações suas – para as necessidades específicas de
seus alunos e da comunidade onde atuam.

2 Grande parte do conteúdo deste capítulo foi extraída, adaptada ou ampliada de notas de aula – que
fui redigindo a partir de 1994 e, em 1997, concentrei na apostila Notas de Astronomia para professores
de pré-escola ao 2o. Grau – e, em maior medida, dos textos que elaborei: a) para a disciplina Astrono-
mia, do Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, de 2001 a 2006; b) para o Curso de Ensino
Médio, Modalidade Normal, para Educadores de Áreas de Reforma Agrária do Estado do Rio Grande do
Norte, em novembro de 2005; e c) para o Curso de Capacitação Cultura, Meio Ambiente e Astronomia:
conhecimentos tradicionais e etnoastronomia para professores dos níveis fundamental e médio, ministrado
em Carnaúba dos Dantas (RN), entre 2007 e 2008. Este último curso fez parte de um projeto sobre
etnoastronomia e conhecimentos tradicionais que coordenei junto ao CNPq (maiores detalhes em
JAFELICE, 2010a e 2010b).

215
Luiz Carlos Jafelice

Incluí ainda sete apêndices, visando organizar o material, que é vulto-


so e diversificado, e facilitar a consulta, leitura e aplicação da proposta. Visei
com eles também fornecer orientações pedagógicas práticas específicas. Estas
estão presentes nos apêndices 2 a 7. O apêndice 1 é, creio, a única parte mais
técnica de todo este capítulo – e, por isto, talvez a de leitura mais trabalhosa;
decidi, então, separá-la do corpo do mesmo –, onde apresento fundamenta-
ções mais em detalhe. Estas são necessárias, mas espero que também sejam
úteis. Os seis últimos apêndices fornecem complementações da exposição da
abordagem que proponho e roteiros de orientações diretas para várias ativi-
dades segundo o espírito da proposta.
Ao final deste capítulo apresento uma lista de sugestões de leituras
para auxiliar no aprofundamento e diversificação da proposta. Acrescentei
ainda uma bibliografia adicional que pode ser proveitosa. Ao final de cada um
dos três capítulos antecedentes também há referências úteis para um maior
envolvimento com a visão educacional aqui defendida.

2 REFLEXÕES INICIAIS, PRESSUPOSTOS, DIGRESSÕES


2.1 Vivência; transdisciplinaridade; astronomia e um olhar antropológico

A intervenção educacional que tenho desenvolvido e aplicado nesses


anos todos conjuga uma perspectiva antropológica e uma abordagem trans-
disciplinar problematizadora – a qual, muitas vezes, também chamei de abor-
dagem holística3, como já mencionei. Na subseção 3.1 (Por que abordagem
antropológica?) explicito-a de modo mais completo e ao final daquela subse-
ção forneço uma possível caracterização concisa desta abordagem.
Um elemento constituinte essencial da presente proposta está na ênfa-
se à vivência. Assim, do ponto de vista pedagógico, aspectos cognitivo-analíti-
co-reflexivos – envolvendo distribuição e leitura ou produção de textos com
os alunos, análises, conceituações etc. – só são contemplados, em geral, após
os alunos terem vivenciado – isto é, feito e sentido no corpo, na prática – os

3 Apesar de saber que esses dois termos – transdisciplinar e holístico – têm diferenças conceituais in-
trínsecas. Contudo, da forma como os concebo, eles são mais passíveis de serem irmanados – ou
encaminhados, na prática pedagógica, de modo sinérgico – do que se atropelarem mutuamente. A
possibilidade de assemelhar esses dois significados sem prejuízo algum – conceitual, operacional ou
outro – deverá ficar clara ao longo deste capítulo.

216
Abordagem Antropológica

fenômenos ou processos que nos interessa tratar naquela circunstância e te-


nham, em grande parte, descoberto por si mesmos a maioria das associações e
informações que são possíveis de serem obtidas vivencialmente4. Desta forma,
na estrutura do tipo de intervenção proposto, às conceituações ou racionali-
zações – se ou quando necessárias, e às quais também fazemos proposições
originais de interpretação e incorporação, como discutido neste livro – é rele-
gado um momento posterior (que continua comportando vivências, é claro),
quando o pensamento intelectual pode ser arejado, aliviado e enriquecido em
sua elaboração a partir do que foi sentido e intuído nas vivências.
Notem que mesmo se vocês, ao lerem o parágrafo anterior, concorda-
rem ou acharem que a proposta procede, a tendência geral não é agir dessa
forma. Prevalece nos cursos de formação de professores e em nossa cultura
escolar uma mentalidade que valoriza a atuação em sentido inverso: primeiro
um bom embasamento teórico-conceitual, depois a prática e a experimenta-
ção5. É provável que isto se dê principalmente porque o corpo, assim como
as componentes anímicas e oníricas do ser, costumam estar excluídos do pro-
cesso de formação dos professores e, por consequência, do de seus alunos.

4 Este enfoque nada tem a ver com uma proposta que já esteve bastante em voga no ensino de ciên-
cias, que consiste em supostamente levar os alunos a redescobrir “leis” ou proposições científicas
obtidas historicamente nas áreas de física, química, biologia etc. Essa vertente, além de ter limitações
de concepção sobre o processo de aprendizagem, acata o realismo, o universalismo e a presumida
superioridade epistemológica da ciência e pressupõe determinismo na construção de significados,
que claramente não corresponde ao que se observa quando seres humanos de distintas culturas – e
às vezes de uma mesma cultura – estão engajados em vivências e naquela construção. Aqui, a ênfase é
nas múltiplas componentes subjetivas associadas ao processo vivencial que pode levar aos descobri-
mentos que nos são significativos desde a perspectiva e o espírito desta abordagem.
5 Seguindo, mais ou menos, a seguinte linha de raciocínio: qualquer prática que ousar se antecipar a
uma fundamentação teórica que a justifique e ampare é inconsequente e irresponsável e dela não
poderá sair coisa boa ou, se sair, será acidental e não servirá para subsidiar nada de mais valioso na
produção do conhecimento. Na minha visão, essa linha reflete limitações e vícios do pensamento
acadêmico contemporâneo que precisam ser superados. Conforme explicado na Apresentação, este
livro espera contribuir também nesta direção, ao propor uma estrutura que subverte a ordem estabe-
lecida. Com efeito, embora seja evidente que há algo na presente proposta que possa ser caracterizado
como pressuposto ou suporte teórico, optei por apresentar antes as práticas e resultados e ao final
alguns pensamentos reflexivos fundamentadores daquelas, em princípio. Em parte eles o são. Mas, as
próprias práticas criadas, no fundo, são conformadoras de aspectos teóricos inéditos, que nortearão
outras intervenções inovadoras que, por sua vez, reformularão a teoria, o pensamento e a ação, e assim
por diante. E não é verdade que sempre – nem nas práticas mais bem-sucedidas – tenha sido um bem
alicerçado fundamento teórico que as inspirou. No presente caso, a teoria maior – se é que existe tal
pretensiosa entidade cognitiva – a explicar ou justificar os êxitos nos níveis pedagógico e humano que
temos alcançado ao concretizar esta proposta pode ser outra, eventualmente bem distinta daquela
que, em um misto de organização intelectual a posteriori, ingenuidade e esperança de serventia, com-
ponho e discorro neste capítulo. Ou seja, as práticas aqui sugeridas são mais duradouras e confiáveis;
as teorizações oferecidas são mais relativas e transitórias.

217
Luiz Carlos Jafelice

O caminho aqui adotado e valorizado é, em grande medida, o oposto desse


prevalecente.
Por exemplo, o habitual é “ensinar-se” as fases da Lua, com aquelas ver-
balizações e desenhos bem “conhecidos”, e, com frequência, sem nem sequer
se olhar para o céu! Ora, aquele procedimento, além de incompreensível para
o aluno6 e, portanto, pedagogicamente ineficaz, é completamente dispensá-
vel7. Aqueles “recursos” pedagógicos exigem um grau de abstração e capaci-
dade de visualização espacial incomuns para a maioria das pessoas8.
Com efeito, fases da Lua – e muitos outros conteúdos e fenômenos
classificados como astronômicos – estão diretamente acessíveis em qualquer
lugar em que você esteja, basta sair – da sala de aula, de casa, do apartamen-
to – e procurar no céu! Se não estiver chovendo ou nublado e o horário não
for inconveniente, você encontrará a Lua sem grande dificuldade. Se não for
um bom momento, é só insistir em outras ocasiões. Nem nas grandes cidades
demorará muito para você encontrar a Lua no céu e poder acompanhar suas
evoluções, flertes e transformações.
Olhar para o céu é democrático, gratuito, prazeroso e, inclusive, ins-
trutivo. Nossa experiência mostra que os envolvidos nessa vivência, quando
bem orientados por seus professores, podem chegar, por si mesmos, a conclu-
sões a respeito de muito mais coisas do que quem nunca praticou isto pensa
que é possível. Os professores – se adequadamente preparados para tal – ar-
rematam, em um segundo momento, os aspectos conceituais que não podem
resultar apenas da observação direta.

6 Notem que aqueles desenhos e explicações das fases da Lua costumam ser incompreensíveis para os
próprios professores. Por isto, eles se sentem muito inseguros para ensinar aquele conteúdo, apesar de
serem obrigados a fazê-lo.
7 Pelo menos em um primeiro momento e inclusive para aspectos conceituais importantes. Nossa prá-
tica mostra que não apenas elementos do fenômeno das fases lunares veem à tona com a observação
direta. Também conteúdos mais sofisticados, como, por exemplo, a observação do movimento real
da Lua no céu (de oeste para leste), entre outros, podem ser vivenciados e trabalhados logo após
alguns dias de acompanhamento sistemático daquele astro. Maiores comentários e esclarecimentos
sobre estes pontos constam do apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus, sentimentos
e conhecimentos populares) deste capítulo e do anexo A (Descobertas sobre a Lua) do capítulo 3 deste
livro e referência lá citada.
8 A prática demonstra que as dificuldades cognitivas relativas à espacialidade não são superadas mesmo
recorrendo-se a tecnologias da informação e comunicação – como, por exemplo, uso de internet,
visualizações em 3D, animações etc. Pode-se – e deve-se – usar também tais recursos, é claro. O que
chamo a atenção, aqui, no que concerne aos conceitos associados ao presente exemplo, é que esses
recursos não resolvem nem contornam o problema central de aprendizagem associado àquelas difi-
culdades e a tais conceitos.

218
Abordagem Antropológica

Por isto, minhas sugestões aqui são sempre no sentido de se começar


propondo atividades que levem as pessoas a vivenciarem as coisas do céu, da
terra, do ambiente, da vida. Como condensado em Jafelice (2002), esta abor-
dagem propõe constantemente:
[...] um trabalho não-verbal, não-racional. É um trabalho de resta-
belecimento de contato com o céu e, mais delicado, de contato mais
íntimo consigo mesmo. É uma atividade corporal, de fruição e des-
coberta. É um trabalho essencial e primeiro, feito antes de se agregar
qualquer conteúdo específico habitual [ou racionalizações] ou ins-
trumentos que mediarão suas observações. Esse tipo de abordagem
está muito bem resumido no inspirador trabalho de Saló e Barbuy
(1977): “primeiro conhecer o bosque, as noites estreladas e os rios ser-
penteantes antes que as plantações alinhadas, os canais de irrigação e os
letreiros luminosos para que a expressão surja como linguagem sem idio-
ma. [...] antes de aprender o idioma, antes do significado das palavras e
antes das leis gramaticais, a linguagem criada, com sons, formas, cores e
gestos, permite a comunicação total, direta, profunda e exata” ( JAFELI-
CE, 2002, p. 12-13).

Em outras palavras, minhas sugestões visam incentivar a criação de


estratégias pedagógicas que propiciem vivências, antes de incitar as pessoas a
pensarem conceitualmente ou refletirem sobre os conteúdos – sentimentais,
cognitivos, afetivos, intuitivos etc. – oriundos das vivências. Estes devem ser
trabalhados, em um segundo momento, visando sua integração nos sujeitos,
dos pontos de vista pedagógico, epistemológico e psicológico. No capítulo 3
deste livro, Luziânia Ângelli Lins de Medeiros nos apresenta um aprofunda-
mento das inter-relações entre a aplicação desta abordagem e o estímulo de
conteúdos de caráter psíquico associados e como encaminhá-los no contexto
escolar.
Em suma, a organização intelectual do pensamento, as reflexões ana-
líticas, o engajamento em um processo de conceituação, também são ativida-
des que devem ocorrer durante o processo formativo como um todo, é claro.
Contudo, estas últimas habilidades – segundo a abordagem aqui proposta –
são estimuladas e aprofundadas apenas em uma segunda instância da intera-
ção pedagógica e, mesmo assim, sempre amparadas, temperadas e orientadas
pelos frutos que afloraram das vivências associadas.
O pensamento transdisciplinar propõe uma necessária transgressão
das fronteiras que se convencionou estabelecer entre as disciplinas – neste
sentido, a proposta é bastante distinta das modalidades também circulantes,

219
Luiz Carlos Jafelice

denominadas de pluri, multi ou interdisciplinaridade9. Segundo Basarab Ni-


colescu, tal transgressão se faz necessária “sobretudo no campo do ensino”
(NICOLESCU, 1999, p. 11) e, por sua própria natureza, “a transdisciplina-
ridade age em nome de uma visão: a do equilíbrio necessário entre a interio-
ridade e a exterioridade do ser humano, e esta visão pertence a um nível de
Realidade diferente daquele do mundo atual” (idem, p. 122).
Segundo Roberto Crema, a ideia é desenvolver “uma proposta trans-
disciplinar que vise, em última instância, um conhecimento reconectado à
dimensão amorosa”, que possibilite “uma atitude de solidariedade frente ao
bem comum”, e “para isso é fundamental a integração e sinergia entre a via
quantitativa e a qualitativa, razão e coração, ciência e mística, Ocidente e
Oriente, análise e síntese” (CREMA, 1993, p. 142-143).
Quando destaco meu enfoque, em particular, como transdisciplinar é
para explicitar tanto a forma de abordar, ressignificar e encaminhar os conte-
údos ditos específicos das muitas áreas convencionais participantes nas inter-
venções que tenho empreendido, quanto pela perspectiva pós-moderna com
que as questões de método, de referenciais teóricos e de práxis são encaradas
e redefinidas, para atender à educação integral de ordem maior almejada.
A abordagem transdisciplinar, genericamente falando, propõe, assim,
o abandono do modelo predominante de pensamento – que valoriza prati-
camente apenas a racionalidade cognitivo-instrumental –, e, ao mesmo tem-
po, promove a revalorização de padrões de pensamento mítico-simbólicos,
a convivência com a incerteza inerente ao conhecimento, a reintegração da
espiritualidade enquanto dimensão existencial. Esta abordagem pode, por-
tanto, fornecer uma perspectiva mais adequada e criativa na sobrelevação dos
condicionantes que herdamos da modernidade e na condução de uma educa-
ção mais humanizadora, acolhedora das diversidades culturais e epistemoló-
gicas e colaboradora na integração das culturas humanística e científica.
Fica evidente, do breve resumo acima, como alguns dos princípios
básicos do pensamento transdisciplinar soam estranhos à habitual formação
que os professores recebem – mais ainda se forem professores de ciências – e,
portanto, o grau de resistência que a tentativa de uma reforma educacional,
necessária, que contemple tal pensamento na prática, enfrenta.

9 Esse parágrafo e os quatro seguintes provêm de condensação e adaptação de Jafelice (2008a, p. 288-
289).

220
Abordagem Antropológica

Embora o como fundamentar cursos de formação de professores em


uma proposta transdisciplinar seja algo ainda em aberto, esta nos oferece
orientações filosóficas e práticas adequadas para empreender-se as mudanças
exigidas na formação e atuação profissional do professor contemporâneo, in-
dependentemente de sua especialidade.
Creio estar claro, nesta altura do texto, que na presente abordagem não
é a astronomia (ou a antropologia, biologia, psicologia, história, arte, geogra-
fia, matemática, química, mitologia, física etc.), enquanto área específica do
conhecimento, o mais importante. O que importa são as pessoas – por serem
o que são, além de transformantes/transformadas do/pelo planeta –, o am-
biental – do ponto de vista sistêmico, pelas vidas que abriga e relações simbi-
ônticas gerais que propicia – e os aspectos culturais e sociais envolvidos – pelas
representações e significações que permitem que construamos e reconstrua-
mos sem fim.
Astronomia, aqui – nas ocasiões em que é destacada de um todo fe-
cundo sem contornos bem definidos –, é um artifício. Ela é usada como uma
conveniente “porta de entrada” para o tratamento de questões que considero
muito mais relevantes. Aquela “área do conhecimento” tem uma adequação
histórico-cultural e um caráter intrinsecamente transdisciplinar que a favore-
ce para aquele uso.
Dito de outra forma, o olhar antropológico, como o concebo e pratico,
implica que embora a astronomia tenha uma importância e interesse em si
mesma, do meu ponto de vista sua relevância se manifesta antes pela eventual
leitura interpretativa adicional que ela pode oferecer para elementos impor-
tantes à vida como a conhecemos – e não pelo que costuma ser enfatizado e
enaltecido sobre tal área. Com efeito, se aquilo que comumente se associa à
astronomia for abordado segundo um olhar do tipo aqui proposto, sobres-
saem inúmeros elementos valiosos – biológica, cultural e historicamente –
à vida no planeta e, em especial, ao humano que podem ser contemplados
desde uma perspectiva cósmica integradora. Isto pode trazer muitas vanta-
gens dos pontos de vista psicológico, cognitivo e cultural, e, por decorrên-
cia, também dos pontos de vista pedagógico e axiológico. No apêndice 1, em
particular, esse tipo de olhar é lançado e explorado em relação à astronomia
convencional.
Na presente abordagem, viso transformar essas virtuais vantagens
em estímulo e incentivo àquilo que, de fato, na minha visão, mais carecemos

221
Luiz Carlos Jafelice

atualmente, que são o sentir, o pensar e o agir solidários, cooperativos,


éticos – desde uma cosmovisão biocêntrica e sistêmica, que dialoga com as
diversidades, em particular a epistemológica, base das demais –, decorrentes
do aprofundamento de um processo comprometido de autoconhecimento.
A transformação daqueles potenciais benefícios em motivação para
estas formas de ser encontra terreno adequado para vicejar através da educa-
ção. Temos, assim, uma educação ladeada pela cultura – que lhe confere rumo,
substância, base e significado – e pela astronomia – que lhe dá o mote em vá-
rios contextos, ambientais e outros, relevantes (desde que esta seja trabalhada
segundo um enfoque holístico, bem entendido, e não o técnico-cientificista
que a caracteriza habitualmente). Daí a sugestão do título principal deste li-
vro.
Em outras palavras, recorrer à “astronomia” enquanto caminho de en-
trada para intervenções educacionais específicas – como o faço muitas vezes,
mas não sempre –, é uma desculpa, pode-se dizer, para tratar do que conside-
ro necessitar de maior atenção, a saber: o cultural, o espiritual e o ambiental.
O cultural, entendido como atributo humano criador de significados,
de caráter intrinsecamente cosmológico (no sentido antropológico do termo)
e pluriepistêmico. O espiritual, entendido enquanto integrante constitutivo
do cultural e que, se libertado dos grilhões ideológicos e institucionais que
o marcam em várias culturas, representa um impulso incitador de aprimora-
mentos humanos nos campos emocionais, afetivos, cognitivos, intelectuais e
éticos. O ambiental, entendido em sua dimensão cósmica interdependente e
biocentrada (e não antropocentrada, nem referendada pelo discurso da racio-
nalidade cognitivo-instrumental, como é costumeiro).
Um ponto central dessa abordagem, portanto, é o incentivo à coope-
ração e à solidariedade entre as pessoas. A escola é uma esfera de ação e etapa
chaves nesse processo, mas não as únicas. Só com a inclusão e a participação
da comunidade é que o contexto se completa e a prática atinge seu objetivo
principal. Comunidade, porém, não são apenas as pessoas, mas igualmente
todos os seres vivos, ambientes e as relações das mais diversas que existem e
nos são importantes onde moramos.
Assim, através das atividades educacionais, almejamos interagir não
apenas com os alunos, mas com seus pais, parentes, amigos, vizinhos em ge-
ral, com a região onde essas pessoas vivem e com as relações que elas man-
têm entre si e com os animais, vegetação, rios, lagoas, mar, serras, ambiente,

222
Abordagem Antropológica

território, astros. Em suma, através dessas atividades almejamos interagir, se


possível, com toda a comunidade, entendida nessa acepção ampla.
Mas esse não é um interagir apenas dos pontos de vista habituais – en-
volvendo reuniões de pais e mestres, promoção de festividades ou feiras de
ciência e cultura na escola ou até mesmo visitas às casas dos pais dos alunos.
Interagir, na acepção aqui mencionada, implica envolver-se de fato, compar-
tilhar sonhos e esperanças, discutir problemas comuns e buscas conjuntas
de solução, inclusive abrangendo atuação política, é claro; enfim, participar
dos anseios e construções dos membros da comunidade e trocar com eles
também seus próprios anseios, dificuldades e projetos enquanto pessoas e
facilitadores/professores10.

2.2 Quantos céus existem?11

A diretriz do enfoque apresentado neste texto se fundamenta nas rela-


ções do ser humano com “as coisas do céu” ao longo da história da humanida-
de e em como tal relação se dá hoje em dia nas mais diversas culturas.
Quando dizemos isto, porém, é preciso ter claro que nas tradições cul-
turais existentes, do passado e do presente, as “coisas do céu” são inseparáveis,
ou contemplam de modo simultâneo, intrínseco, constitutivo, as “coisas da
terra”, “do ambiente”, “da vida”.
Assim, não se trata de operar o recorte e redução que estamos habitu-
ados quando pensamos sobre “as coisas do céu”. Neste texto, sempre que nos
referirmos às coisas do céu, o fazemos desde uma perspectiva antropológica,
portanto holística, segundo a qual o céu, a terra, a vida – e seus vários ingre-
dientes, sabores, princípios, atributos, personagens e personificações – con-
formam um todo harmônico indissociável.

10 Um efeito muito positivo do projeto do CNPq antes citado foi a criação da Associação de Educação
e Cultura Carnaubense (EDUCAR), aos 25 de agosto de 2007. Os sócios honorários fundadores fo-
ram 8 dos conhecedores tradicionais envolvidos no projeto até então. No início do mesmo, propus
a criação de uma associação que abraçasse o objetivo integrador daquele, mas não sabíamos se ela se
concretizaria. Uma associação desse teor é ótima para esse tipo de iniciativa. Um projeto tem vigência
curta e muitas vezes, como no nosso caso, vem de fora; uma associação pode perdurar indefinidamen-
te e é comandada por quem vive no local – o que é essencial. [A EDUCAR tem sido presidida, desde
sua fundação até o momento (meados de junho de 2010), por Aldomário José da Silva.] Se isto puder
se realizar na comunidade onde vocês lecionam, será contribuição importante para amparar suas ini-
ciativas de incluir conhecedores e conhecimentos tradicionais na educação formal. (Vide JAFELICE,
2010a e b.)
11 O conteúdo desta subseção foi condensado e adaptado de Jafelice (2009a).

223
Luiz Carlos Jafelice

Nossa cultura (ocidental) restringiu a noção de céu. Por isto a astro-


nomia, como a conhecemos hoje em dia, parte do pressuposto de que o céu
é um só e a forma que existe para conhecê-lo é uma só. Porém, o contato com
as pessoas de diferentes culturas e épocas, inclusive a atual, mostra que isto
não é verdade.
A abordagem holística parte do pressuposto de que tudo que existe
está interligado, em inúmeros sentidos, conformando um todo impossível de
ser compreendido a partir da análise e soma das “partes” – estas, aliás, sempre
são definidas como “partes” segundo critérios inevitavelmente arbitrários e
limitados. Portanto, temos que desfazer aquele vício de vermos as coisas “da
natureza”, “do universo”, e exercitar um olhar unificador, reintegrador, cós-
mico. Tal busca pede recuperações e vivências mais humanistas das noções
de cultura, sentimentos e valores, do que a astronomia, pelo caminho que
escolheu, pode nos oferecer.
O enfoque da astronomia implica a opção da cultura ocidental por
uma forma de enxergar as coisas, uma forma que acredita que é possível sepa-
rar sujeito de objeto – e, portanto, estudar este de modo independente daquele
– e que existem leis (físicas) universais. Essa forma “astronômica” de olhar
para “o céu” descarta qualquer outra abordagem de caráter cultural, simbóli-
co; ela enxerga fenômenos e objetos celestes baseada em um tipo de recorte
que outras culturas, em geral, não têm.
Desde o ponto de vista aqui adotado, não há separação entre céu e
terra. O céu é aqui – em nossos corpos, sonhos, no mundo em que vivemos,
no cosmo em nós e nós nele. Mesmo estas palavras, porém, convém chamar
a atenção, as quais anseiam superar limitações da linguagem falada, nos
amarram, e se mostram inadequadas para expressarmos uma unidade holística
intuída.
Já enfatizamos: nossa cultura nos induz a pensar que o céu é um só. As
evidências, porém, registradas em abundância por pesquisas em antropolo-
gia, nos mostram que aquilo não é verdade.
O céu não é único; há tantos céus quantas culturas humanas – assim
como há tantas Terras, visões de mundo, da natureza, das pessoas etc. Todos
igualmente válidos e legítimos.
É esse céu, caro ao humano, participante da vida, integrante do am-
biente, norteador de nosso entendimento do mundo e de nós mesmos, que
precisamos recuperar e reintegrar de modo significativo em nossas vidas,

224
Abordagem Antropológica

em nossas comunidades e nas sociedades contemporâneas. O céu, portan-


to, precisa ser conhecido a partir da perspectiva – cultural e simbólica – dos
envolvidos, e deve ser entendido como algo que continua vivo, integrado e
representativo para as pessoas.

2.3 Antropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultura12

Na acepção antropologicamente relevante, que nos é tão cara, o “céu”


está aqui, agora, em cada cultura, em cada um de nós, membros da mesma.
Essa dimensão antropológica, contudo, está ausente nas abordagens de ensi-
no ou de divulgação de astronomia habituais.
Aquilo que a abordagem convencional separou e chamou de “céu” foi
o que determinou – ao longo da história da vida na Terra e de nossa espécie,
em particular –, nossa própria forma de ser – biológica, psicológica e simbo-
licamente falando –, muito mais do que é possível compreender quando se
analisa o assunto desde o estrito enfoque científico ortodoxo prevalecente.
Paradoxalmente, porém, como comentaremos brevemente nesta subseção,
mesmo esse enfoque ortodoxo, reducionista e naturalizante, pode contribuir
para formarmos uma visão mais ampla de nós mesmos – apenas devemos
usá-lo com parcimônia e cuidado.
Dizer que “foi o céu que determinou nossa própria forma de ser”, não
implica em pressupor que “o céu” seja superior a, ou mais importante que,
“a terra”, nem que aquilo foi assim por efeito de algum agente teleológico,
de caráter transcendente, ou alguma motivação metafísica. Isto se desenvol-
veu dessa forma porque no todo que existe, inevitavelmente integrado, são as
“coisas” que nossa fragmentadora visão tenta encaixar na classe das “coisas
celestes” que provocam e modulam – ao longo do tempo, na fisiologia e nos
estímulos psíquicos de caráter analógico – ciclos e padrões ambientais nas
“coisas” (formas de vida e ambientes) que aquela mesma visão quer enxergar
como “coisas terrestres”.

12 Nesta subseção estão implícitos muitos pressupostos e informações. Eles fazem parte do caminho
pelo qual fui me aproximando e criando minha forma de abordar a astronomia desde uma perspectiva
cultural, holística e transdisciplinar. Para não sobrecarregar aqui com notas de rodapé decidi concentrá-
los no apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3). A escrita lá é mais
técnica. A rigor, esse apêndice não precisa ser lido para que se possa desfrutar e entender esta subse-
ção. Contudo, a leitura prévia do mesmo ajudaria a situar melhor as exposições aqui, assim como em
outros trechos deste capítulo.

225
Luiz Carlos Jafelice

Em outras palavras, ciclos e padrões decisivos em direcionar-nos para


aquilo em que nos tornamos (na Terra) são provenientes de processos exte-
riores (do céu). Os elementos ambientais impositivos – no que concerne a
pulsares temporais regulares e a processos daí oriundos, a eles atrelados ou
deles dependentes –, provêm de uma parte do ambiente, a qual hoje seccio-
namos daquele todo e denominamos “céu”. Essa parte, por outro lado, sempre
nos foi inacessível, impossível de sofrer nossa interferência física direta – con-
forme foi sendo constatado ao longo do processo em que nossa espécie foi se
tornando consciente e autoconsciente.
A constatação dessa impossibilidade de interferência física direta,
contudo, não nos fez, enquanto espécie – a não ser em nossa presente cul-
tura ocidental urbana dominante –, considerar que o céu fosse separado e
independente da terra. Afinal, bastava sentirmos e observarmos com atenção
e ficava evidente que o que acontecia “aqui” era “comandado”, em grande me-
dida, pelo que provinha de “lá”. E isto continua sendo assim! Nossas preces
e relações com o divino – o qual, aparentemente, desde há muito associa-
mos àqueles aspectos impossíveis de sofrerem nossa intervenção física direta,
portanto sobre-humanos –, completavam, na visão de mundo que as diversas
culturas humanas foram construindo, o circuito comunicacional entre nós –
o “aqui” – e esses outros níveis, entidades e forças – o “lá”.
Através de nossos rituais e representações simbólicas diversas – que
todas as culturas humanas souberam construir muito bem para seu sucesso
enquanto tal – garantimos a manutenção de um diálogo profícuo entre “aqui”
e “lá”, “nós” e “eles” – mesmo quando “eles” estavam bem “aqui”, conosco e
em nós, como ocorre e sentimos com frequência. Deste modo, o todo sempre
ficou preservado, coerente e provedor de sentido para a existência do que co-
nhecemos – lembrando que nossa espécie é a de seres de sentido; é isto o que
nos mantém; e somos nós que inventamos o sentido, sempre que necessário.
Aliás, como neste texto, agora, por exemplo.
Em nossa cultura, há muito tempo perdemos aquela consciência do
todo. Não será de se estranhar se essa perda – e o distanciamento que ela
provoca intra e intersubjetivamente e entre nós e o ambiente – for mais um
elemento importante a nos levar à crise civilizatória que vivemos hoje.
A cronobiologia é uma ciência que estuda a relação entre variações
ambientais temporais e processos adaptativos de organismos vivos associa-
dos àquelas. Esses processos envolvem mecanismos fisiológicos que per-
mitem ajustes da regulação interna do fluir temporal em cada organismo,

226
Abordagem Antropológica

constituindo os chamados “relógios biológicos”. Portanto, inclusive pela via


científica convencional (redutora) pode-se buscar conexões, esquecidas mas
latentes, entre céu, terra e vida, no anseio de tentarmos compreender relações
entre seres humanos e ambiente, de um modo geral.
Façamos uma brevíssima viagem imaginária, desde a origem da vida
na Terra até hoje. Retrocedamos até uma época em que não havia vida na
Terra, há uns 4 bilhões de anos. Nessa época (e mesmo antes dela) já havia
uma regularidade de caráter astronômico no planeta, pois este já girava em
torno de si mesmo e em torno do Sol com alguma estabilidade relativa. O
ambiente ainda era hostil à vida, mas ele já dançava, digamos, em um ritmo
estabelecido cosmicamente.
Avancemos, agora, para um período em que já havia vida na Terra, mas
ainda não existiam seres humanos, isto é, entre uns 4 bilhões e 1 milhão de
anos atrás.
A regularidade rítmica mencionada prosseguiu – ainda que com va-
riações em uma escala de tempo geológica – e todos os organismos foram se
originando sendo orquestrados por esse pulsar, que hoje denominaríamos
como sendo de caráter astronômico – leia-se: celeste. Assim, o primeiro ser
vivo surgiu, se adaptou e viveu, direta ou indiretamente, sob uma alternância
claro-escuro, por exemplo (para ficarmos apenas em uma das regularidades
rítmicas celestes mais notáveis), conforme os dias e as noites se sucediam.
O quadro todo, com respeito a regularidades rítmicas, porém, era (e
ainda o é!) mais complexo ainda. Adicionados a esse latejar claro-escuro di-
ário, estavam outros palpitares, como aquele associado às fases lunares ou
aquele relacionado às estações do ano, por exemplo, entre outros. E nenhum
desses ritmos é oriundo de processos tectônicos ou intrínsecos autônomos
do planeta. Foi em meio a essa polirritmia, não originada do seio da Terra –
mas, sim, comandada por “objetos”, “processos”, de fora desta –, que todos
os tipos de seres vivos existentes se originaram – nos vários reinos em que
são divididos. Portanto, inclusive nossos ancestrais mais remotos vieram à
luz sob um palpitar ambiental desse teor não terrestre. E nós mesmos, é claro,
passamos a existir sob o pulsar de ritmos cósmicos.
Esse pulsar sempre marcou os seres vivos neste planeta, e nós ainda
carregamos as marcas que o ambiente foi deixando em nossos antepassados,
conforme nossa espécie ia se definindo enquanto tal. Nossa educação não

227
Luiz Carlos Jafelice

tem estimulado a percepção e a conscientização dessas marcas, mas elas, ape-


sar de embotadas, continuam vivas e atuantes em nós!
A conscientização dessas marcas e de suas implicações corporais, men-
tais, emocionais, anímicas e simbólicas em nós, é o que almejamos estimular
e exercitar vivencialmente através da presente abordagem.
Prossigamos em nossa ligeira viagem especulativa pela história da vida
na Terra, conforme a vemos pela janela da cronobiologia – portanto, segundo
a perspectiva da teoria da seleção natural13. Restringimo-nos, nessa retros-
pectiva de fantasia, só a quatro regularidades, ou alternâncias, mais notáveis:
dia-noite, marés, fases da Lua e estações do ano.
Assim, ao longo daquela história, além das evidentes e frequentes al-
ternâncias dia-noite, também estavam atuando de modo simultâneo as mu-
danças regulares trazidas pela Lua, as quais se manifestavam em uma alter-
nância modulada de claro-escuro gradativo – enquanto se ia de uma lua cheia,
para uma lua nova, para a lua cheia seguinte e assim por diante –, operando
agora no regime noturno (quanto ao aspecto mais notável referente à lumino-
sidade) e se completando somente após muitos dias, com as implicações daí
decorrentes. Havia ainda os efeitos (principalmente) lunares na produção do
fenômeno das marés, neste caso repercutindo predominantemente (embora
não apenas) em organismos habitantes de regiões costeiras e com “período”

13 Essa teoria não tem interpretação tão uniforme entre biólogos quanto seu ensino e divulgação dão a
entender (LEITE, 2007; JABLONKA e LAMB, 2010). Embora ainda prevaleça fortemente na teoria
da seleção natural (atualmente conhecida como teoria neodarwinista) a concepção baseada no gene,
resultados das últimas décadas, de várias frentes de pesquisa, em particular em biologia molecular,
indicam que tal concepção é muito incompleta e inadequada. Os novos dados apontam “que todos os
organismos têm pelo menos dois sistemas de hereditariedade [genético e epigenético (i.e., células que
transmitem características às células-filhas de modo não relacionado ao DNA)]. Além disto, muitos
animais transmitem informações uns para os outros por meios comportamentais [...] [implicando
em um] terceiro sistema de hereditariedade. E nós, seres humanos, temos um quarto, porque uma
herança baseada em símbolos, a linguagem em particular, desempenha um papel importante na nossa
evolução. [...] Quando se levam em conta todos os quatro sistemas de herança e as interações en-
tre eles, surge uma visão muito diferente do darwinismo” ( JABLONKA e LAMB, 2010, p.14). Essa
interpretação mais recente e complexa daquela teoria é apresentada em detalhe, com iluminações
distintas que se somam, e.g., por Leite (2007) – segundo os olhares sociológico e filosófico – e por
Jablonka e Lamb (2010) – desde as perspectivas biológica e evolutiva. Conquanto para nossos fins
genéricos, nas referências que faço a mecanismos cronobiológicos, os princípios básicos daquela te-
oria (tradicionalmente de cunho genético, conforme resumido, e.g., por GOULD, 2001, p. 191-192)
são suficientes, essa nova interpretação deixa nossos argumentos ainda mais sugestivos e autoconsis-
tentes, em especial no que toca a contribuição da dimensão simbólico-cultural – em particular nas
ricas dinâmicas e urdiduras contextuais envolvendo inter-relações vida-ambiente-céu-terra-vida – no
processo seletivo que nos caracterizou enquanto espécie.

228
Abordagem Antropológica

menor que a duração do dia [isto é, ao longo deste completam-se duas marés
altas e duas baixas; ou melhor: o intervalo de tempo entre duas marés altas
(ou baixas) consecutivas é (pouco) menor que 12 horas]. Os câmbios sazo-
nais (devido às estações do ano), por sua vez, de origem solar, impunham a
sobreposição de uma terceira (ou quarta, no caso dos organismos costeiros)
modulação rítmica ao desenvolvimento dos organismos. Esta última era uma
modulação de outro teor. Ela envolvia outras componentes e dinâmicas am-
bientais (como variação na duração do claro do dia em relação ao escuro e
variação da insolação, umidade do ar, temperatura, correntes marítimas e dos
ventos etc.) e era bem mais espaçada no tempo em comparação com as duas
(ou três) anteriores, também com consequências nas dinâmicas e ajustes eco-
lógicos dos novos cenários ambientais que começavam a se formar no planeta
e a se tornar mais complexos. Submetida a esses múltiplos ritmos ambientais
concorrentes (aos quais se conciliaram os respectivos ritmos biológicos) –
dos ciclos de dias-noites, marés, lunações e estações – a vida surge e se diver-
sifica no planeta.
O sucesso das espécies já existentes, em se manterem como tais, e o
das novas espécies, em se adaptarem a essa polirritmia de caráter celeste, mas
com evidentes e importantes implicações terrestres, foi decisivo nas explosões
de espécies e na proliferação da vida nas suas várias formas, ao longo dos bi-
lhões de anos em que esta existe na Terra. Isto se aplica desde as mais simples
formas de vida até as mais complexas e, em particular, a humana.
Sim, convém insistir que também a espécie humana nasce, enquanto
espécie, regida por essa orquestração polirrítmica de origem celeste. E nossa
espécie foi bem-sucedida – isto é, do ponto de vista da teoria da seleção na-
tural e até o momento, e não em um sentido absoluto, de superioridade, nem
de permanência garantida no planeta. Esse sucesso só se deu porque a espécie
humana conseguiu se adaptar também a esta exigência ambiental.
O que importa destacar aqui é que a referida “exigência ambiental”,
cujo caráter e atributos são celestes, vai desempenhar papel essencial no sur-
gimento e desenvolvimento das culturas humanas e da incrível diversidade e
riqueza destas ao longo da história da humanidade.
Com efeito, elementos constitutivos dos pensamentos simbólico, ana-
lógico e intuitivo humanos – essenciais para nosso sucesso como espécie –
são em grande parte estimulados e desenvolvidos através da relação com “as
coisas do céu”, como, por exemplo, concepções religiosas de toda ordem e de

229
Luiz Carlos Jafelice

existência de vida após a morte, de relação entre o microcosmo e o macrocos-


mo, na descoberta de medicamentos naturais e procedimentos de saúde etc.
(vide, e.g., os trabalhos de Mircea Eliade e referências lá citadas).
É importante notar que aqueles estímulos ambientais que determina-
ram condições de contorno decisivas para o estabelecimento de processos de
sincronização de nossos relógios internos (biológicos) aos relógios externos
(celestes), continuam atuantes e comandando uma série de nossas sensações,
ações e reações hoje. Aquilo tudo, no nível do organismo (em termos de me-
canismos fisiológicos e biológicos que possibilitam aquela sincronização),
foi sendo selecionado como um elemento de suporte a mais para garantir o
êxito adaptativo das espécies aos seus meios; e, no nosso caso (homo sapiens),
aquele sucesso já foi atingido há várias dezenas de milhares de anos. Isto po-
deria levar ao pensamento utilitário, simplista, de que, então, hoje, tão distan-
tes que estamos daquele contexto, onde aqueles processos de sincronização
fizeram a diferença, aparentemente poderíamos prescindir de alguns, ou de
muitos, daqueles processos e atributos. Claramente não é possível abando-
narmos essa herança evolutiva. Aqueles estímulos ambientais e os processos
metabólicos associados continuam definindo muitos de nossos humores,
ideias e impulsos, embora, na maioria das vezes, não estejamos conscientes
das suas profundas conexões cósmicas, por assim dizer – e apesar de insistir-
mos em impor ritmos e estilos de vida que conflitam com aqueles processos;
o que nos leva à elaboração constante de expedientes para tentarmos lidar
bem com as consequências biopsicossociais decorrentes daquela nossa pró-
pria (social e pessoalmente falando) imposição.
Querermos dormir à noite, ficarmos mais felizes em um dia de sol,
termos receio do escuro, termos vontade de sair para passear em noites de lua
cheia, ficarmos deprimidos em dias cinzentos e um sem-número de nossas
reações e comportamentos não são como são porque “assim são as coisas”, de
um ponto de vista objetivo e absoluto. Como, em geral, não estamos habitu-
ados a ver as coisas desse ângulo, vou tentar favorecer a compreensão desse
ponto através de um exercício de imaginação, mas com implicações muito
reais e concretas.
Imaginem que uma espécie “assemelhada” ao tipo que nós dizemos
que somos (autoconscientes, sensíveis, inteligentes, emotivos, racionais etc.)
pudesse surgir – também após um longo período evolutivo – em um plane-
ta de um outro sistema planetário. Por exemplo, como seríamos se fôssemos

230
Abordagem Antropológica

“nós” que tivéssemos surgido a partir da vida originada em um planeta com


três sóis e duas luas? E se isso tivesse ocorrido em outro planeta, com dois
sóis e nenhuma lua? E assim por diante, em outras combinações de astros que
vocês poderão querer imaginar.
Se nossa vida tivesse se concretizado, evolutivamente, em um daque-
les ambientes, naqueles outros planetas, como seriam, por exemplo, nossas
concepções sobre o que acontece depois da morte? Quais seriam nossos
períodos propícios à reprodução? Teríamos plantas sagradas? Se sim, o que
determinaria a época em que seus poderes seriam potencializados? Quando
estaríamos mais propensos às variações daquilo que chamamos humor? Qual
seria a duração do período de gestação daquela nossa espécie? Acharíamos
bonito um céu azul? Nossas representações sociais e da realidade tenderiam
a ser dicotômicas? Se não houvesse noite, como seria nossa relação com o
escuro ou qual seria nossa principal metáfora para a ignorância? Quais am-
bientes nos trariam uma maior sensação de paz e felicidade e em quais nos
sentiríamos mais desconfortáveis ou ameaçados?
Podemos cogitar ainda várias outras consequências sobre nossa “for-
ma de ser”, caso tivéssemos evoluído em algum daqueles outros ambientes.
Por exemplo, como nossas concepções simbólicas, analógicas e representa-
ções sociais seriam afetadas se fôssemos de um planeta sem eclipses solares
– ou se houvesse vários totais por ano, ou um todo mês, ou se a região afetada
pela totalidade do(s) eclipse(s) abrangesse fração significativa daquele nosso
planeta? E os períodos férteis de nossas “mulheres”14 – que, aqui na Terra, tal-
vez possam, evolutivamente falando, guardar relação com o ciclo lunar –, se-
riam “estabilizados” em um planeta sem lua ou com mais de uma lua? Se sim,
como? E se mesmo quando houvesse (se houvesse) noite escura e lua (ou
luas), esta(s), quando visível à noite, não fizesse diferença significativa quan-
to à luminosidade, a ponto de não estimular e favorecer as noites de caçadas,
nem as comemorações de luaus? E se coincidências astrais extraordinárias só
se dessem após períodos muito longos em comparação à duração de nossos
dias ou de nossos anos15? Etc.

14 Isto é, da fêmea daquela “nossa espécie”, supondo que esta também tivesse desembocado (através do
processo de seleção natural) na reprodução sexuada como a conhecemos.
15 Quer dizer, nessas reflexões conjecturais, nos referimos a dia, mês, ano [se ou quando houver sentido
definir de modo inequívoco esse(s) tipo(s) de regularidade rítmica], naquele outro planeta, onde “nós
tivéssemos” surgido – isto é, onde os seres daquela “espécie ‘assemelhada’ a ‘nós’” tivesse evolutiva-
mente surgido.

231
Luiz Carlos Jafelice

Como vemos – das comparações e inferências que se pode imaginar


mesmo a partir das poucas questões feitas nos últimos parágrafos –, nós nos
tornamos quem somos (isto é, como somos) porque nossa história biológica
de vida se deu neste planeta, mas não apenas “planeta” enquanto geologia ou
lugar passível de abrigar vida. Em outras palavras, um dos principais requisi-
tos para nos tornamos quem somos – segundo o recorte aqui analisado e no
que concerne às reações fisiológicas convenientes e eficientes para uma ade-
quação ao ambiente, em particular à dinâmica das mudanças cíclicas deste no
tempo – foi o fato de todos os nossos antepassados, desde a primeira forma
de vida na Terra, terem se ajustado, através da seleção natural, para poderem
ser em cada respectivo tipo de ambiente; ambientes esses nos quais aquela
polirritmia de origem extraterrestre inevitavelmente atuava16.
O ponto, para o que nos interessa destacar aqui, é que, no que se refere
a fenômenos cíclicos decisivos, esses ambientes, praticamente sem exceção,
não foram, nem são, autorregidos, no sentido estrito, geológico, do termo,
pelo contrário. São “imposições externas” aos ambientes17 que os governam
quanto àquelas ciclicidades, isto é, são condições provindas da “parte” celeste
que conforma o ambiente como um todo – ambiente, aqui, entendido em
uma acepção ampla, cósmica, que ele constitutivamente possui, embora não
costuma ser assim encarado, como já bem enfatizei. E aquelas “ciclicidades”,
por sua vez – aliás, com seus respectivos períodos variando durante a
existência do planeta –, impõem condições seletivas que se traduzem em
especificidades, isto é, em características típicas de cada espécie, e que em nós
(na nossa espécie), não saberíamos reconhecer, à primeira vista, como sendo
decorrência daquelas ciclicidades, apesar de, em grande e decisiva parte, o
serem.

16 Há certas formas de vida para as quais as mudanças cíclicas que nos interessam são, em princípio, irre-
levantes, como, por exemplo, aquelas encontradas próximas a fossas oceânicas tectonicamente ativas,
onde a luz solar está ausente (e.g., MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 21). No presente texto, por
razões óbvias, estamos interessados em nos concentrar na linha ancestral do ser humano. Assim, na
discussão acima nos referimos aos nossos antepassados, isto é, aos seres pertencentes a espécies que,
em conexão seletiva ininterrupta (especiação) desde a primeira forma de vida no planeta, desembo-
caram na nossa espécie.
17 Insistimos: aqui não estamos discutindo tudo que possa definir as imposições ambientais. Nosso foco
está em chamar a atenção para algo essencial que, em geral, não é enfatizado como deveria: as causas
“externas” (ao planeta), pois estas são as determinantes, cronobiologicamente (i.e., “astronomicamen-
te”) falando.

232
Abordagem Antropológica

São, em suma, “imposições” de caráter celeste que forjam e moldam va-


riabilidades temporais determinantes nos ambientes em que os organismos
vão surgindo e vivendo, e estes têm que dispor de recursos internos para se
adaptarem, se for para darem certo enquanto espécie.
Os “recursos internos” básicos nos organismos vivos em geral, se tra-
duzem em processos fisiológicos ou, em um nível mais fundamental, em me-
canismos intracelulares, os quais não operam nas frequências que o fazem de
modo aleatório nem compulsivo. Esses mecanismos dependem de “coman-
dos” externos, ambientais, para se ajustarem e atuarem com as regularidades
(ritmos) com que atuam – e, assim, servirem, seletivamente falando, para
que os respectivos organismos onde atuam tenham, no nível macroscópico,
as respostas rítmicas metabólicas apropriadas para serem bem-sucedidos en-
quanto (respectivas) espécies. É algo semelhante a um relógio, que depende
de alguma coisa externa, independente, autônoma, que aja sobre ele e o colo-
que na hora certa, quando ele tender a se atrasar ou a se adiantar.
No caso de nossa espécie, contudo, outros “recursos internos”, aparen-
temente oriundos de processos subprodutos do fato de termos um cérebro
maior, começaram a operar. São aqueles recursos associados à possibilidade
de formação de configurações ou padrões sinápticos que nos capacitaram
para criar representações, linguagens, pensamentos analógicos, que nos habi-
litaram, enfim, para criar cultura. Esta, para nós, funciona como um poderoso
“recurso interno” – apesar de operar no coletivo ou depender deste para tal –,
que decididamente colaborou para nos adaptarmos e darmos certo enquanto
espécie18. Do ponto de vista antropológico aqui abraçado, e com a liberdade

18 Nesses terrenos traiçoeiros por onde estamos vagueando, há risco enorme de se incorrer em visões
naturalistas ingênuas. O perigo de se naturalizar a existência e se acreditar que tudo – inclusive em
relação ao humano, em suas múltiplas manifestações e realizações – pode ser explicado pela estreita
perspectiva da abordagem convencional das ciências naturais é muito grande. Fazer isto é um erro
muito grave. Infelizmente, é muito comum em cientistas, tanto das ciências naturais como das hu-
manas. No apêndice 1 chamo a atenção para o grande cuidado que devemos ter com isso, ainda mais
porque nesta exposição estou misturando (dialética e criticamente, espero) contribuições de ambos
os grupos dessas ciências. Neste sentido, recomendo uma descrição concisa muito instrutiva que o
antropólogo Roberto DaMatta (1987) faz do “teatro da Origem do Homem”, conforme este costuma
ser montado pelo cientificismo, com as habituais interpretações “instrumentalistas ou utilitaristas”.
Ele mostra como esse tipo de mentalidade naturalizante opera. São cinco atos: do primeiro, que co-
meça com a consideração típica dessas construções: “A natureza hostil e ameaçadora reina absoluta
[...]”, ao quinto, que conclui com o desfecho igualmente típico: “Uma vez em sociedade [...] [o]s
eventos anormais, como a coincidência, a morte, o sonho e a desgraça, leva à religião” (DAMATTA,
1987, p. 41-42; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras). Essa descrição ajuda a cons-
cientização e desconstrução desse tipo de mentalidade e interpretação, tão comuns e enganosas.

233
Luiz Carlos Jafelice

metafórica que tomo, interpretamos aquilo dizendo que há uma relação “dia-
lética” entre cultura e natureza, ou cultura e ambiente19.
Criarmos cultura foi tão essencial para nossa espécie poder existir que
tal “subproduto” vingou. Nas competições ancestrais por nichos com outras
espécies homines, a incorporação criativa (que, no caso, significa adaptativa-
mente bem-sucedida) daquele atributo parece ter feito a diferença para nossa
espécie sobrepujar as demais, que, na época, lhes eram muito assemelhadas,
principalmente no que concerne a habilidades que garantissem a sobrevivên-
cia física e a continuidade procriadora.
Enfim, cultura é, inclusive, o diferencial que usamos para nos definir-
mos enquanto humanos. Porém, ela pode ser vista também como um “recur-
so interno” de adaptação, embora não diretamente relacionada a processos
metabólicos ou intracelulares, nem redutíveis a esses, apesar de depender
deles para poder existir, é claro, pois considera-se que só seres vivos podem
ter cultura.
Vemos, do exposto nesta subseção, que o mundo dos seres vivos, como
o conhecemos, chegou ao ajuste que observamos devido a uma relação tribu-
tária para com ritmos impostos por fenômenos celestes. Os diferentes horá-
rios em que flores de espécies distintas se adaptaram para abrir – para, assim,
garantirem sua respectiva polinização por insetos –, ou em que os organismos
dos animais estão mais funcionais – fazendo com que ajustem suas buscas por
alimentos em diferentes momentos (os diferentes insetos polinizadores, por
exemplo, em respectivos diferentes horários de “suas” flores, e assim por dian-
te), ao longo das 24 horas diárias, e, então, minimizem a “competição” entre
eles pelos recursos disponíveis e/ou otimizem relações simbiônticas diversas
–, ou ainda a adaptação de diferentes espécies de animais a distintas épocas
do ano como as mais convenientes para o respectivo cio e acasalamento, entre
inúmeros outros aspectos comportamentais, cuja causa, direta ou indireta, se
deve a comandos “externos”, isto é, no caso, celestes.
Da mesma forma, também na psicologia, culturas e sociedades huma-
nas há muito mais manifestações determinadas por ritmos celestes do que se
pensaria à primeira vista. Nossa espécie tem suas organizações psicológica –

19 Assim, “dialética”, quando referida àquele tipo de relação, é grafada entre aspas e deve ser entendida
apenas em um sentido de “interdependência dinâmica complexa”, sem conotações filosófico-históri-
cas; como quando aparece, por exemplo, no Quadro Interdependências, no apêndice 1, entre outros
lugares neste capítulo.

234
Abordagem Antropológica

estados de ânimo, humores, crenças –, cultural e social – celebrações de rituais,


festividades, arquiteturas de monumentos e urbana –, espacial – orientação,
norteamento, confecção de mapas – e temporal – elaboração de calendários,
mudanças sazonais, medidas do tempo – comandadas, em grande parte e em
aspectos centrais, por fenômenos celestes20.
Em suma, a relação entre céu e terra conformou nossa forma de ser e
de estar no mundo enquanto espécie animal. Aquilo que nossa cultura oci-
dental foi fragmentando e confinou no departamento dos acontecimentos
“celestes”, na verdade está tão em nós quanto algo pode estar, não só do pon-
to de vista simbólico e psicológico, mas também fisiológico e metabólico. É
apropriado dizer que o céu está constitutivamente em nós.
É como se uma relação harmônica ambiente-vida-céu-terra estivesse
inscrita nos seres e nichos existentes e também em nossos corpos, mentes e
processos representacionais. Na prática, isto nos trouxe vantagens, como a de
sabermos, conjunta e antecipadamente, o que vai acontecer, ambientalmen-
te falando, em cada momento e época. Essa coparticipação nessas múltiplas
“respirações” cósmicas simultâneas, uniu todos que vivem na Terra, entre si,
com ela e com o céu.
Um dos objetivos desta abordagem é criar estratégias de intervenção
para favorecer que muitos desses elementos aflorem à consciência e sejam
integrados nos indivíduos. Eles explicitam a simplicidade, delicadeza e fragili-
dade do viver. Estamos convencidos de que essa conscientização é ingredien-
te essencial e poderoso estímulo para incentivar a solidariedade e a compai-
xão segundo uma perspectiva biocentrada e pluriepistêmica ampla.

2.4 A teoria na prática: metodologia?

Nesta subseção, reproduzo algumas das orientações constantes em


Jafelice (2002; 2004; 2005b)21. Com isto, viso dar a este capítulo autocon-

20 No apêndice 2 (O céu na organização da vida humana ao longo da história da humanidade) apresento


sugestões de práticas, fundamentações e maiores discussões para se encaminhar as relações dessas
organizações humanas com “coisas do céu” como uma atividade pedagógica.
21 Em Jafelice (2002) consta muito do básico referente à presente abordagem, o qual é complementado,
em boa parte, nos trabalhos Jafelice (2004; 2005b). Não tenho espaço aqui para reproduzir de modo
minucioso as orientações e sugestões presentes nesses trabalhos. Nos três há uma seção que aborda
o tema desta subseção. Em Jafelice (2002) há a subseção III.3. A Teoria na Prática: como fazer? (p.
10-16), em Jafelice (2004) há a seção VII. Na Prática: alguns princípios e exemplos (p. 37-43) e em
Jafelice (2005b) há a seção VII, também com este último título, embora ali o tema é desenvolvido em

235
Luiz Carlos Jafelice

sistência e completeza mínimas, como já anunciei, e espero também dar uma


ideia da filosofia básica daquelas orientações. Além disto, complemento esta
subseção com outras reflexões que considero oportunas e pertinentes. Ou-
tras sugestões de práticas e procedimentos estão discutidas em minúcia nos
apêndices 2 a 7 deste capítulo e nos capítulos anteriores deste livro.
Convém, de saída, enfatizar dois pontos. O primeiro é que embora as
várias sugestões de atividades apresentadas neste livro possam ter algum in-
teresse ou efetividade por si mesmas, elas ficam vazias se apartadas dos prin-
cípios e contextos maiores que as inspiram e que caracterizam a abordagem
proposta. Por isto, seria mais proveitoso não seccioná-las e isolá-las do todo.
Em função dessa visão ampla, inclusive, é que recomendamos que inúmeras
outras práticas sejam criadas, para que elas guardem coerência e consonância
com os objetivos principais da abordagem. Com tal espírito, é importante ir
buscando exemplos que evidenciem como nossa cultura (assim como qual-
quer outra) está profundamente entretecida e configurada – em detalhes e
no todo, nas partes e no padrão geral, no manifesto e no oculto – para dar um
sentido à existência integrado com o ambiente (céu-terra-vida). O segundo
ponto diz respeito à minha presente tentativa de organizar as experiências,
tentativas, erros, acertos e verbalizações de muitos anos, de um modo coeren-
te e compreensível em relativamente poucas páginas. O mais provável é que
haja vários deslizes nesta exposição, inevitáveis quando se busca a revisão e
reformulação da própria mentalidade, ainda mais em um processo reconhe-
cidamente sem fim. Espero que, no balanço geral, prevaleçam os ganhos po-
tenciais oriundos da aplicação de uma proposta na linha aqui argumentada e
exemplificada.
Feitas estas ressalvas, incluo aqui, então, as orientações seguintes. Por
exemplo, de Jafelice (2002):
Muitas práticas antigas ou atuais (mas não-urbanas) podem ser
desenvolvidas com os alunos (claro que se adaptando o trabalho
conforme a faixa etária e o perfil do grupo envolvido), como, por
exemplo, modelar utensílios em argila, encenar rituais de passagem
ou de iniciação, fazer uma fogueira, preparar comidas, pintar o cor-

detalhamento e aprofundamento bem maiores (p. 7-57). O trabalho Jafelice (2002) já está disponí-
vel para acesso via internet no endereço: http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/viii/PDFs/
CO19_1.pdf. Os trabalhos Jafelice (2004; 2005b) estarão disponíveis, em princípio em breve, na
página de um projeto sobre etnoastronomia e conhecimentos tradicionais que coordenei junto ao
CNPq: http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural (vide JAFELICE, 2010b).

236
Abordagem Antropológica

po, tocar instrumentos, cantar, dançar, montar (ao longo de vários


meses) calendários lunares, etc., além de ouvir músicas étnicas, apre-
ciar nasceres e pôres-de-Sol, promover Luaus para comemorar a Lua
Cheia, trabalhar com elementos oníricos que surjam nos sonhos das
pessoas do grupo, representar pictoricamente sentimentos, sensa-
ções, sua relação com o cosmos, com as origens, etc. ( JAFELICE,
2002, p. 14).
[...] seria condição necessária, embora não suficiente, que quem fos-
se trabalhar com a linha aqui proposta, tivesse (ou fosse cuidando
de ter) uma formação que incluísse cursos ou estudos independen-
tes sobre as mais variadas áreas, em particular aquelas consideradas
mais distantes da área acadêmica principal da pessoa. Ou seja, para
alguém que visa se formar em área de educação em astronomia [ou
ambiental], por exemplo, que, paralelamente à formação acadêmica
tradicional, a pessoa invista em diversos outros cursos ou estudos,
principalmente vivenciais e não simplesmente teóricos, envolven-
do atividades corporais (dança, de diferentes estilos, capoeira, ioga,
sensibilização, tai chi chuan, meditação, etc.), artísticas (música, tea-
tro, pintura, poesia, cinema, escultura, etc.) e de formação em áreas
científicas outras (antropologia, mitologia, psicologia, arqueologia,
biologia, geografia, lingüística, etc.), além das áreas de história, filo-
sofia e sociologia da ciência, já contempladas (isto é, mais facilmente
aceitas pela academia) em uma formação mais moderna ( JAFELI-
CE, 2002, p. 15).

Ou ainda, de Jafelice (2004):


[...] [um] curso [ou disciplina ou intervenção educacional qualquer,
na linha em que proponho, mesmo que originalmente visando o
tratamento de conteúdos de astronomia] não é estruturado a partir
dos conteúdos de astronomia e sim a partir do calendário astronômico
referente ao período em que aquele vai acontecer. [Os conteúdos é
que são ajeitados posteriormente, conforme conveniência de ade-
quação àquele calendário. Por isto, o número de assuntos e a ordem
dos mesmos nem sempre será a mesma de uma intervenção para a
outra.] Assim, fases da lua, solstícios, equinócios, eclipses, chuvas
de meteoritos, trânsitos, ocultações, passagem de cometa, etc. [pre-
vistos para aquele período], é que vão dar as pistas sobre como será
mais conveniente montar o curso [disciplina; intervenção] em um
determinado semestre ou em outro.
Tudo isto sempre é feito, convém frisar, segundo o enfoque antropoló-
gico que consideramos importante adotar. Ou seja, não são as efemé-
rides, friamente falando, que vão determinar a estruturação do curso,
mas sim os aspectos culturais e humanos a elas associados é que nos
interessa trazer à tona, enfatizar e explorar durante os cursos [disci-
plinas; intervenções]. As efemérides dão o mote organizacional no

237
Luiz Carlos Jafelice

tempo (em que for durar o curso), mas o tratamento educacional


em aula, envolvendo cada uma delas, é feito totalmente segundo um
enfoque humanista ([...] de caráter antropológico e holístico) ( JA-
FELICE, 2004, p. 37).
Uma lua cheia pede a comemoração de um luau [com instrumentos
musicais, comidas, bebidas, danças, histórias do folclore etc.; puro
fruir; idem para as outras atividades; conteúdos específicos de astro-
nomia e de educação ambiental formais vão se misturando também,
claro, mas ao sabor de outros ritmos, cores e estímulos], um sols-
tício [pede] a celebração de um festival, uma chuva de meteoritos
uma reunião longe da cidade, um eclipse um ritual apropriado, um
trânsito a reconstituição de um episódio histórico, um cometa as ex-
plicações autóctones e as pinturas rupestres, e assim por diante [...]
( JAFELICE, 2004, p. 37-38).

Ou também, de Jafelice (2005b):


Um de nossos principais objetivos nesta abordagem é propiciar si-
tuações para que sejam vivenciados os ciclos astronômicos [i.e., de
origem celeste], já que eles são fundamentais para nós, enquanto es-
pécie. Ora, estes estão conosco o tempo todo, embora nossa educa-
ção não nos habilite a reconhecê-los corporalmente. Mas estamos
impregnados de relógios biológicos, todos eles fundamentados em
ciclos de caráter astronômico. [...]
Porém, como podemos, nos dias de hoje, nas nossas vidas tão cor-
ridas, principalmente se vivemos em meios urbanos, “recuperar e
vivenciar ciclos astronômicos”? É simples: vivenciando-os. Não é
gracejo, nem jogo de palavras. [...] A vivência, pura e simples, é es-
quecida. Quando ela aparece, é em momentos posteriores do curso,
quando os estudantes “já adquiriram uma boa base teórica”, que os
permita entender (i.e., racionalmente, não corporal e integradamen-
te) o que está ocorrendo, e mesmo assim tal “vivência” é proposta
segundo o mesmo viés exteriorizado e distanciado, artificializado, de
nossa cultura ocidental, que perdeu o contato com o corpo e não
sabe como incluí-lo de modo natural nas ações pedagógicas [...].
Depois do ciclo diurno, o primeiro que segue (inclusive implicando
em marcas filogenéticas em nós, nos outros animais e nas plantas)
é o ciclo lunar. Portanto, é preciso que nossos alunos vivenciem tal
ciclo.
Em nosso procedimento pedagógico típico [aqui, me refiro especi-
ficamente ao meu procedimento], nunca expomos sobre as fases da
Lua, nem respondemos perguntas sobre isto (mesmo em se tratando
de estudantes adultos) antes que eles as vivenciem. Adulto, na ida-
de, não significa capacidade de vivência integrada e superação dos
condicionamentos impostos (no corpo e na forma de pensar) pela
cultura na qual ele/ela foi criado. “Falar sobre”, “explicar as”, fases da
Lua é algo que aciona zonas do cérebro associadas à razão, ao pen-

238
Abordagem Antropológica

samento espacial e conceitual. Estas não são as zonas que queremos


excitar no momento, pelo menos não no momento inicial (que em
geral dura pelo menos um mês, isto é, um ciclo lunar inteiro!). O que
queremos é que o ciclo lunar seja vivido. Então as orientações têm
que ser consoantes com tal intenção, e não deturpadas por palavrea-
dos e racionalizações. Por isto a primeira tarefa que passamos inclui
três itens, um deles especificamente para começar a trabalhar o ciclo
lunar22 ( JAFELICE, 2005b, p. 8).
[...] Destacamos [...] que é fundamental a identificação do que é
relevante para o grupo de pessoas envolvido (para os alunos, a co-
munidade, a cidade) e, a partir desses elementos, começar a explorar
assuntos de caráter [ambiental,] astronômico e outros direta ou in-
diretamente correlacionados.
Por exemplo: tirando fotos regulares do pôr-do-Sol [até se completar
pelo menos um ano] de pontos que sejam marcantes para as pessoas
de uma dada localidade (a começar de suas próprias casas, é claro);
usando [o próprio corpo de uma pessoa em pé como gnômon hu-
mano,] prédios, estátuas, grandes coqueiros meio isolados ou outros
marcos para a introdução de um relógio solar; apreciando a Lua de
uma praça de namorados, mesmo que hoje em dia esta seja bastante
iluminada; levando os alunos para apreciar os comportamentos dos
animais em certos locais, em diferentes horários do dia e em dife-
rentes momentos do mês e do ano; analisando a planta da cidade
ou o mapa da região rural onde vivem e aproveitando orientações
cardeais (ou correlacionadas a estas) para associar astronomia e ar-
quitetura, ambas tão inter-relacionadas na história da humanidade,
em diversas culturas, inclusive indígenas brasileiras, e não apenas
na cultura ocidental do velho mundo; e inúmeros outros exemplos
nessa linha. Explore, crie e pratique nestes sentidos também ( JAFE-
LICE, 2005b, p. 16).

Apesar de eu sugerir procedimentos específicos, como os exemplifica-


dos acima e alhures, neste capítulo, embora muitas vezes genéricos e subje-
tivos, outras vezes mais particulares e objetivos, cabem ainda, contudo, nes-
ta subseção, algumas palavras de esclarecimento e de advertência quanto às
questões metodológicas e à minha posição frente a elas.
Metodologia costuma significar uma determinada forma de se fazer
algo para se atingir um objetivo específico23. Quase sempre há mais de um

22 Esta tarefa é apresentada em detalhe no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa: ciclo lunar, Vênus,
sentimentos e conhecimentos populares) deste capítulo.
23 Embora etimologicamente, do grego, método significa caminho para se alcançar determinado fim,
não foi, em nada, devido a este conhecimento etimológico que cheguei à minha concepção de “me-
todologia” exposta nesta subseção, pois apenas bem posteriormente tive ciência do mesmo. Assim, é
mais verdadeiro eu manter a narrativa acima.

239
Luiz Carlos Jafelice

caminho para se fazer isso, embora ainda é frequente o predomínio de uma


concepção monometodológica. O modo como o termo metodologia tem sido
interpretado pela academia é perigoso e não se aplica a esta proposta (aliás,
em muitos casos vemos se instalar uma completa perda de foco e proporções;
as posturas se convertem em metodolatria). Perigoso, por ser limitado, limita-
dor e traiçoeiro, pois indica que há uma estrutura procedimental organizada
segura onde não há, nem deve haver.
Dada a filosofia transdisciplinar da presente abordagem, que consi-
dera erro e incerteza como inerentes ao processo sem fim de construção do
conhecimento, não se deve entender metodologia como tem sido a tendência
muitas vezes, a saber: a de associar metodologia à adoção de um conjunto de
regras e procedimentos preestabelecidos e relativamente inflexíveis, suposta-
mente bem fundamentados teoricamente, na esperança de se empreender o
“observar, pensar e fazer corretos”, para livrar o espírito humano das ilusões a
que ele é propenso. Essa esperança é, em si, uma ilusão, inclusive nos modelos
históricos exemplares de ciência – como a física e outras ciências naturais.
Assim, uma perspectiva multirreferencial e plurimetodológica é mais
afeita ao teor desta abordagem. Mesmo segundo tal perspectiva, “método”
(na acepção de procedimentos) deve sempre ser entendido como possibili-
dades estratégicas para se lançar mão ao longo do percurso, como alternativas
abertas no processo de construção de significados durante a pesquisa, a práti-
ca e as interações entre todos os participantes. Nesta abordagem, “metodolo-
gia” deve ser entendida como um caminho – criado a cada passo, mas não para
formar sulco ou ser necessariamente reproduzido – e um ensaio – espaço de
tentativas e explorações sem fim.
É claro que, como lidamos com pessoas e seres vivos, queremos e de-
vemos ser o mais responsáveis possível. Isto não implica, porém, seguir um
método engessado e que mais favorece a reprodução ou o tolhimento e não
a busca e a criação.
Algumas pessoas se sentem naturalmente confortáveis – ou até esti-
muladas – frente a uma situação como a aqui defendida, que é bastante aber-
ta, indefinida, flexível. Outras se sentem perdidas, inseguras ou ameaçadas.
Estas tendem a argumentar que procedendo como o aqui proposto se esta-
rá correndo riscos desnecessários, ameaçando comprometer os resultados
e agindo com irresponsabilidade, e que o recomendável seria agirmos com
cautela e adotarmos procedimentos padronizados, testados e referendados

240
Abordagem Antropológica

pela academia. Claramente não concordo com esta visão, amparado não só na
minha prática, como na de muitos outros que pensam e agem como eu, tanto
nas intervenções como nas pesquisas em educação – e nunca, nestes casos, o
cuidado e a responsabilidade estiveram ausentes, nem os resultados ficaram
empobrecidos, pelo contrário. Enfim, é a diversidade humana. As sugestões
deste livro convidam os leitores a experimentar e, muito importante, a des-
frutar esta abordagem.
Ainda segundo uma vertente que muitos poderiam considerar incabí-
vel em educação, ou no mínimo heterodoxa, convém explicitar outra postura
“metodológica” que imputo como muito importante de se cultivar e desen-
volver. Trata-se do improvisar, coerente, no fundo, com o lúdico, a irreverên-
cia e a humildade orientando o fazer pedagógico aqui defendido. Uma mistu-
ra responsável, mas com leveza e desembaraço, do exercício da intuição com
o da criatividade em educação, leva à improvisação – como na dança ou na
música ou na vida –, muitas vezes necessária a uma prática pedagógica bem
sucedida. Improvisação, nesta interpretação, que nada tem a ver com inventar
na hora alguma emenda ou tapa-buraco por falta de planejamento e/ou em-
basamento. Aqui, o improvisar é valorizado enquanto ágil experimentação
competente de variações cabíveis para o contexto e meta em questão, feita
por quem tem domínio das teorias e técnicas envolvidas, para otimizar o al-
cance dos prazeres e outros objetivos almejados. Improviso este, então, com
a nobreza, pertinência e necessidade, assim como a ludicidade, irreverência
e pureza, do brincar, como aquele inerente, por exemplo, ao jazz ou à arte do
movimento24, ao chorinho ou à capoeira. Estas formas todas de expressão artís-
tica, aliás, também somam inspirações – de forma e de conduta – para minhas
incursões “metodológicas” nesta abordagem.
Por fim, é pertinente destacar dois olhares de artistas sobre o assunto.
Antonio Machado, poeta espanhol (1875-1939), muito conhecido,
nos elucida nesta estrofe de Provérbios e Cantares, famoso poema seu (MA-
CHADO, 1917; tradução minha):

Caminhante, são tuas pegadas


o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.

24 Vide subseção sobre a arte do movimento na seção Sugestões de leituras.

241
Luiz Carlos Jafelice

Ao andar se faz caminho


e ao se voltar a vista para trás
se vê a trilha que nunca
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
senão esteiras no mar.

Minha posição está muito bem resumida por estes versos. A asserção
dessa estrofe não é passível de ser encaixotada dentro da rubrica “metodo-
logia”. Contudo, é a que melhor traduz minha própria visão e postura nos
percursos, tentativas e propostas que vou, intuitivamente, arriscando, expe-
rimentando, sentindo, revendo, modificando e assim por diante; que vou vi-
vendo, enfim. Minha proposta diz respeito a um processo, a uma construção
dialética, dialogada e inacabada, mas, insisto, sempre feita com responsabili-
dade e cuidado para com o outro.
Antunes Filho é um diretor brasileiro de teatro, com destaque nacio-
nal e internacional, autor de montagens originalíssimas e surpreendentes25.
Ele desenvolveu toda uma técnica, inédita e bastante rica e complexa, para
a formação de atores, a qual ele exercita e implementa há muitos anos junto
ao Serviço Social do Comércio (SESC), em São Paulo (SP). Ele já formou
muitos atores, vários deles conhecidos do grande público, por terem atuado
em filmes e novelas televisivas.
No documentário “O teatro segundo Antunes Filho” (do SESC-SP), a
pergunta usual lhe é feita: “qual é sua metodologia?”. Ele, após uma busca por
palavras e certa hesitação, responde algo mais ou menos na linha: “Metodolo-
gia? É difícil falar de metodologia. É difícil colocar em poucas palavras a me-
todologia que fui criando. Não criei um método pelo método.” E prossegue,
com ênfase: “Eu precisava de atores. Portanto, como os que existem estão
viciados profissionalmente em vários aspectos, eu precisava descondicioná-
los e deixá-los prontos para uma reestruturação na qual eles seriam os condu-
tores da própria estruturação, decidiriam o que queriam para si”.

25 Ao ver sua obra Nelson Rodrigues o eterno retorno, no Teatro São Pedro, em São Paulo, em 1981, fi-
nalmente comecei a entender de fato o olhar e a verve de Nelson Rodrigues, um dos maiores dra-
maturgos brasileiros de todos os tempos. A obra enfeixava quatro peças deste autor: Toda nudez será
castigada; Os sete gatinhos; Beijo no asfalto; e Álbum de família. Antunes – e o despojamento de “suas
cadeiras” – mostra um Nelson vivo e fundo. (Para maiores informações sobre parte do trabalho do
diretor, vide, e.g., GUIMARÃES, 1998.)

242
Abordagem Antropológica

Esta fala também resume muito bem aquilo que podemos entender
por “metodologia” na presente abordagem: o anseio de criar estratégias des-
construtivas, de descondicionamentos, e propiciar sugestões e suportes –
abundantes e coerentes com os objetivos pretendidos – para reestruturações
subsequentes, naturalmente efêmeras, feitas pelos próprios envolvidos em
uma dada intervenção. Esta, alumiada pelo espírito do caminhante, é, essen-
cialmente, minha proposta “metodológica”.
Sobre como tentar concretizá-la, é o que está exposto, em parte, nesta
subseção e, no geral, está espalhado ao longo de todo este capítulo. Os inte-
ressados, após leitura atenciosa, terão como extrair destas narrativas – isto
é, das orientações, fontes de inspiração, informações, breves e esporádicos
relatos autobiográficos, sugestões, fartos exemplos de atividades, cuidados e
procedimentos aqui oferecidos –, assim como de outras informações e práti-
cas exemplificadas nos capítulos precedentes, fundamentações e inspirações
sobre como criar aquelas estratégias visando aquelas reestruturações; enfim,
poderão aplicar e/ou criar em cima desta proposta sem se afastarem de seu
espírito inclusivo, transdisciplinar e integrador.
Em suma, em minha avaliação, também precisamos de atores – sociais,
políticos, educacionais, culturais, éticos etc. – que decididamente não estão
sendo formados pela universidade contemporânea. Para formá-los com as
aptidões necessárias – as quais procedem principalmente das esferas da espi-
ritualidade, solidariedade, do acolhimento das diversidades, a partir das epis-
temológicas, da corporalidade, do emocional, sentimental, afetivo, intuitivo,
simbólico, analógico – é preciso descondicioná-los e oferecer subsídios para
que eles sejam protagonistas nas reconstruções das próprias visões de mun-
do, e protagonistas preparados, inclusive, para lidarem assertivamente com o
caráter não finalista dessas reconstruções e com o aumento da responsabili-
dade social ao empreenderem-nas em si mesmos.
Há muitas formas válidas de se tentar alcançar esses objetivos. Envere-
dei por um caminho que se me “surgiu” devido à minha forma de ser e histó-
ria de vida. A leitora ou o leitor saberão escolher seus caminhos pessoais, que
podem incluir algumas das sugestões deste livro – após adaptarem-nas às suas
realidades e adequarem-nas às suas idiossincrasias – ou não. O importante, a
meu ver, é a construção e a realização de um objetivo coletivo maior, autenti-
camente includente e solidário.

243
Luiz Carlos Jafelice

3 ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA, MEIO AMBIENTE E


ASTRONOMIA CULTURAL
3.1 Por que abordagem antropológica?

Porque todos os elementos culturais – e, portanto, educacionais – im-


portantes envolvem representações simbólicas criadas e vividas por seres hu-
manos. Além disto, essa abordagem é a que naturalmente atende fundamen-
tos da filosofia adotada, qual seja: investir na recuperação vivencial da relação
humana com o ambiente, com as outras culturas humanas e com o cosmo.
Portanto, de tal enfoque pode-se extrair substância, contextura e inspiração
para práticas educacionais diversas. Seu caráter é intercultural26.
Fazer o exercício de tentar se colocar no lugar do outro e, até onde pos-
sível, ver o mundo como ele o vê é um dos poderosos recursos que o método

26 Nesta abordagem, entende-se intercultural na acepção resumida, por exemplo, em Espina Barrio
(2005, p. 15, tradução minha): “Falamos de interculturalidade, não de globalização, nem de mul-
ticulturalidade, para deixar claro que propugnamos um espaço compartilhado de diálogo e de co-
municação que não entranhe a supremacia de umas culturas sobre outras ou uma concorrência de
muitas culturas vivendo próximas, porém isoladas em espécies de guetos subculturais”. Desde outro
enfoque, García Canclini (2005) explicita uma distinção semelhante entre interculturalidade e mul-
ticulturalidade, ao especificar que “[a]mbos os termos implicam dois modos de produção do social:
multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o
que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos” (op. cit., p. 17; grifos do au-
tor) e que a maioria da literatura sobre o assunto pensa “nos formatos de multiculturalidade existentes
nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou suas ex-colônias” (idem, p. 18). Ou seja, um entendimento do
multicultural diverso, em muitos pontos básicos, daquele que a convivência interétnica do tipo exis-
tente na América Latina e, em particular, no Brasil pede. Assim, conquanto nosso país, por exemplo,
seja multicultural em sua constituição étnica, considero que o enfoque intercultural é o pertinente e
relevante a se adotar na interpretação do social e na criação de uma educação transformadora. Além
disto, “aceitação do heterogêneo”, como García Canclini caracteriza a multiculturalidade, ainda mais
nos formatos existentes nos países citados, significa, no geral, tolerância. Quando lembramos, com
Maturana (2001, p. 38; grifo do autor), que “a palavra tolerar faz referência à negação do oculto, adia-
da por um instante” e que “[q]uando alguém diz ‘eu sou tolerante’, está dizendo na verdade: ‘Quero
lhe cortar a cabeça. Mas vou esperar.’”, fica mais nítido que simplesmente “aceitar o heterogêneo, o
diferente, o outro” – apesar de ser atitude que pode, em alguns casos, significar um relativo avanço de
postura – ainda é bastante insuficiente para dar conta das necessidades de organização e ação, social e
educacional, nos contextos de pluralidade também epistemológica que ficam cada vez mais evidentes
e em confronto no mundo atual, em especial na nossa realidade nacional. [Por isto, a exemplo de
outros autores, em vez de tolerância – designação assumidamente de exclusão –, prefiro a denomi-
nação acolhimento (do plural, das diferenças, do diverso) – almejando exercitar uma postura de in-
clusão plena.] García Canclini (2005, p. 25) sintetiza, então, “[a]dotar uma perspectiva intercultural
proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as
políticas da diferença não só como necessidade de resistir”, se bem que, como exponho em outras
partes do texto, é fundamental que também tal resistência, de caráter revisionista dos pressupostos da
modernidade, seja, além de arejada e assertiva, constantemente atualizada e exercida.

244
Abordagem Antropológica

da antropologia nos oferece. A meu ver ele deveria ser muito mais explorado
e adaptado em educação.
Tal exercício tem, no mínimo, duas consequências, ambas fundamen-
tais. Por um lado, favorece o desenvolvimento de sentimentos de solidarie-
dade, na medida em que o “outro” começa a ser visto como se fosse você
mesma(o), um ser humano, e assim aumentam as possibilidades de empatia
e de compreensão dos problemas e das soluções dos outros. Por outro lado,
esse tipo de exercício faz com que, por contraste com outras formas de se ver
o mundo e nele se estar, o sujeito comece a se conscientizar da própria forma
de ver as coisas que sua cultura lhe imprimiu e das peculiaridades, limitações
e possibilidades da mesma.
Isto é particularmente relevante quando se reconhece – como tanto
se divulga hoje em dia e se prega em diretrizes curriculares nacionais – a im-
portância e urgência em se desenvolver propostas adequadas e eficientes para
fomentar a compreensão e valorização da diversidade cultural humana – cuja
realização sincera e honesta pressupõe o entendimento e a incorporação de
uma concepção epistemológica pluralista27. Esse tipo de postura, de fato in-
clusiva em sentido amplo, é tão recomendada e, ao mesmo tempo, infeliz-
mente, tão pouco praticada. Os educadores ainda não sabem como realizar
o acolhimento do plural e do diferente, como superar xenofobias e promo-
ver integrações em um nível nunca antes exigido. Aqui, invisto nessa linha,
aplicando-a à educação ambiental, no sentido amplo do termo.
A estratégia, então, é encontrar as portas que já estão abertas em nossa
cultura e adentrar-se por elas para chegar-se ao que mais interessa, isto é, a
uma educação integral da pessoa, e não apenas sua educação científica da forma

27 É especialmente importante atentar-se para algo que se tem como ponto pacífico, mas que contém
o cerne de um equívoco e problema básicos: a pressuposição de que há uma epistemologia única
ou privilegiada (aquela ocidental, que ampara o que chamamos ciência). É preciso revermos nossa
concepção de epistemologia, para podermos acolher, de fato, a profusão de sistemas epistemológicos
humanos possíveis (se é que convém manter o uso daquela denominação, já tão viciada enquanto si-
nônimo de conhecimento científico, ao nos referirmos a sistemas humanos de conhecimento), todos
igualmente válidos e legítimos. Sem a adoção de uma autêntica concepção epistemológica pluralista,
os outros tipos de diversidade correm o risco de se transformarem em peças de museu, figuras de lin-
guagem, folclore curioso, peculiaridades humanas pitorescas etc. Em muitos sentidos fundamentais,
a diversidade epistemológica é a base para as demais diversidades humanas. Está além do escopo des-
te capítulo aprofundar esta discussão. Ela é introduzida em Jafelice (2008b) e estendida em Jafelice
(2009b; 2010a; 2010c). Para uma caracterização inicial, podemos entender diversidade epistemoló-
gica como as diferentes formas de as variadas culturas humanas verem e construírem significados para
o mundo. Portanto, acolhê-la com conhecimento de causa e veracidade é um primeiro passo rumo ao
entendimento inter-humano no planeta.

245
Luiz Carlos Jafelice

convencionalmente entendida, separada de outras educações e valores, tanto


humanísticos como espirituais.
A pessoa precisa ser cidadã, mas antes e mais que isto, ela precisa as-
sumir plenamente sua humanidade, a qual transcende simplesmente poder
usufruir seus direitos e exercer seus deveres cidadãos. A pessoa precisa ser
integrante consciente e ativa de uma totalidade ambiental, comunitária e cós-
mica, que é muito maior do que a restrita apenas à esfera da cidadania, no
sentido habitual do termo. E ela precisa atuar para acolher as pluralidades e
colaborar na integração harmoniosa de todos os seres naquela totalidade.
Algumas daquelas portas ou pontes de entrada disponíveis na nossa
cultura são aquelas que podem ser acessadas, por exemplo, através de: co-
nhecimentos tradicionais, etnoastronomia, arqueoastronomia, astronomia
cultural, história das crenças religiosas, mitologia comparada, psicologia,
simbologia, entre outras. Portanto, por elas adentramos na vivência e estudo
de uma astronomia que se vê como parte de um todo dinâmico muito maior.
Na seção 1 (Breve histórico) já expliquei que o acréscimo dos adjetivos
holístico e/ou transdisciplinar é redundante para caracterizar a presente
abordagem. Convém aprofundar um pouco aqueles comentários. Um dos
aspectos poderosos de um enfoque antropológico é sua transdisciplinaridade
potencial, intrínseca ou constitutiva. Por outro lado, após alguns anos de
aprofundamento em trabalhos de campo de teor antropológico, reconheço
o grau de redundância do adjetivo holístico em nosso caso. Nas culturas
tradicionais, “o céu” (“a terra”, “a vida” etc.) não está apenas no céu (como
ocidentalmente entendido). A dança em um “verão”, o veneno da aranha,
o preparo de seu antídoto, de medicamentos, a coleta de fibras de plantas
usadas na construção de moradias ou utensílios cotidianos, o preparo e uso
de plantas de ritual, de alimentos, o corte da madeira para se fazer a armação
de um telhado, um móvel ou uma cerca, a realização de rituais, festividades,
as épocas de colheita, caça, pesca, acasalamento, trocas entre comunidades,
guerras etc., todos esses atos, organizações culturais, representações sociais –
que nossa visão ocidental convencional fragmenta em “partes” e categoriza
– contêm, todos e cada um deles, o todo – isto é, contêm as relações com o
ambiente da vida, o qual inclui constitutivamente também o que chamamos
céu (nos sentidos astronômico e meteorológico), assim como o mundo dos
espíritos e os outros planos da existência. Portanto, desde uma perspectiva
antropológica, a indissociabilidade do que é vital – em todos os níveis e

246
Abordagem Antropológica

graus envolvidos – é de caráter intrinsecamente holístico. Uma abordagem


antropológica como a que proponho – abarcando esses dois tipos de olhares
(holístico e transdisciplinar) e práticas associadas –, assim como qualquer
outro tipo de estudo antropológico que seja, infelizmente, costumam
estar ausentes dos cursos de formação, ou de atualização pedagógica, dos
professores.
Neste capítulo e neste livro fornecemos subsídios para se iniciar uma
ação educacional holística, ou transdisciplinar, ampla (na área e/ou nível de
formação que for) através da vereda inicialmente astronômica de orientação
antropológica28. Nos relatos deste livro, essa ação foi exercitada e desenvolvida
para uma educação ambiental e astronômica. Contudo, fica claro, do exposto,
a natureza acolhedora e integradora de diversidades da abordagem proposta
e que sua adoção é profícua para o tratamento pedagógico de praticamente
qualquer área em educação. Resta aos interessados experimentarem-na nos
distintos contextos e áreas.
Em suma, tentarei, neste parágrafo, dar uma definição sucinta dessa
abordagem. O que costumo denominar abordagem antropológica pode ser ca-
racterizada como uma abordagem educacional problematizadora intercultural,
holística e transdisciplinar, de concepção epistemológica pluralista. Na prática,
essa abordagem envolve uma intervenção educacional na qual a contextuali-
zação e a problematização dos conteúdos específicos envolvidos – de educa-
ção ambiental, astronomia, biologia, botânica, antropologia, ecologia, psico-
logia etc. – são feitas a partir de conhecimentos tradicionais29 ou de aportes

28 A abordagem que proponho, então, fomenta uma relação dialética entre educação e antropologia. Con-
vém chamar a atenção de que também em antropologia há vertentes que seguem preceitos científicos
realistas, universalistas, positivistas – principalmente nas subáreas de antropologia física e arqueolo-
gia, mas não apenas nestas. Para tais vertentes, apesar de serem na área de antropologia, a realidade
é única assim como a forma de revelá-la, que seria através da ciência (críticas bem embasadas a uma
visão universalista em antropologia podem ser encontradas, e.g., em OVERING, 1995). A vertente
em que trabalho claramente não compactua com essa visão. Para nós, aqui, a abordagem antropoló-
gica abraçada significa a adoção de uma concepção epistemológica relativista. O que, por sua vez, se
articula melhor com uma concepção construtivista em educação. Estas concepções compõem, assim,
a perspectiva do olhar em questão. Os leitores, ao buscarem maiores informações ou complementos
com o intuito de adaptar e aplicar a presente proposta, devem ficar atentos, então, à existência dessa
diferença básica entre essas vertentes na pesquisa antropológica. Embora todas sejam em antropo-
logia, pode haver uma distância muito grande entre elas. Aqui, trabalhamos segundo uma vertente
culturalista e hermenêutica em antropologia.
29 Vide subseção 3.5 (Conhecimentos tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia), onde caracterizo
o que se entende por conhecimentos tradicionais.

247
Luiz Carlos Jafelice

culturais e do calendário astronômico do período30 em que aquela interven-


ção ocorre, com ênfase na recuperação vivencial da relação humana com o
ambiente e consigo mesma (tanto intersubjetiva como intrassubjetivamente)
– com todos os matizes culturais e de realidade local que aqueles conheci-
mentos e aportes trazem naturalmente consigo. Como esta proposta estimula
ainda descondicionamentos e cuida de reestruturações pessoais subsequen-
tes, aquele tipo de vivência desencadeia processos de autoconhecimento, como
almejamos. Por isto, esta abordagem demanda também atenção especial e
constante para com esses processos e a oferta de variados recursos para que
as implicações de um autoconhecer-se enriquecido sejam psicologicamente
integradas com êxito pelas pessoas participantes nas referidas vivências.

3.2 Por que astronomia cultural?

A denominação astronomia cultural seria redundante há poucos sé-


culos, quando o termo cultura ainda englobava literatura, música, lógica, fi-
losofia/ciências naturais, matemática e religião. Do século XIX em diante,
contudo, já não é mais assim, e o fosso entre as duas culturas, humanística e
científica, foi aumentando e se aprofundando cada vez mais.
Isto tem consequências sérias em nossa sociedade. Para o professor
de ciências, em particular, esse fosso leva a graves distorções e lacunas, pois
ele não recebe a formação adequada em ciências humanas e artes que neces-
sitaria para seu competente desempenho profissional31. A cultura dominante
compartimenta os saberes e amolda os discursos convenientemente.
É importante explicitarmos que o significado do termo humanístico na
presente linha de trabalho é o mais amplo possível, e não apenas o significado
secular que foi se instalando (e enrijecendo) ao longo de vários séculos, no
qual aspectos místicos, espirituais e religiosos autênticos não são reconhe-
cidos como válidos, verdadeiros ou dignos de atenção séria e erudita. Para
mim são exatamente tais aspectos que podem trazer o elemento diferencial

30 O uso de tal calendário segundo a perspectiva desta abordagem ficará claro ao longo deste capítulo e,
mais em detalhe, no apêndice 7 (Protótipo para planejamento de aulas ambientais: calendários tradicio-
nal e científico).
31 Na verdade, por paradoxal que soe, também sua formação em ciências da natureza é enviesada e de-
ficiente por vários outros motivos, principalmente derivados da visão de mundo prevalecente. Está
além do escopo deste capítulo discutir este tipo de deficiência de formação; para tal vide Jafelice
(2008a) e referências lá citadas.

248
Abordagem Antropológica

faltante, crucial na recuperação de uma relação integrada com o todo, em um


sentido plural e abrangente.
As ideias que as pessoas em geral têm sobre o que é astronomia (ou
qualquer outro assunto) são preconcebidas, impressas por sua cultura. E a
nossa se tornou uma cultura cientificista, que compartimenta e exclui o ser
humano do assunto, e quando o inclui o faz com o viés exteriorizado e tecni-
cista com que faz tudo, não sendo bem-sucedida em tal inclusão.
Hoje, se se quer abordar astronomia – ou melhor, uma relação autên-
tica com “os céus” – desde uma perspectiva antropológica, que englobe ele-
mentos que desde sempre estiveram naturalmente contemplados pelo que
se entendia por astronomia – como conteúdos típicos de história, filosofia,
religião etc. –, então convém deixar claro que se está interessado em astrono-
mia cultural.
É importante, neste sentido, que desenvolvamos vivências para um
apropriado encaminhamento dos temas em sala de aula. Os assuntos e dis-
cussões ligados a coisas do céu, por sua própria natureza, envolvem e, por-
tanto, ativam, quando oferecidos, várias áreas do psiquismo humano como
um todo, como aqueles domínios associados ao afeto, sentimento, emoção,
espírito – e não apenas aquelas relacionadas à cognição propriamente dita,
que são as reconhecidas e estimuladas no ensino convencional, em particular
as restritas às inteligências lógico-matemática e linguística.
No caso do ensino do 1º ao 5º ano do nível fundamental, as crianças
precisam receber uma formação muito mais ampla, eclética e integrada do
que apenas aprender a ler e a escrever – naquele sentido tradicional do termo
“alfabetização”. A abordagem que visa o letramento já representa um avanço
neste sentido, constitui um objetivo maior. Maria Luciene de Souza Lima
Freitas, conforme ela expõe no capítulo 1, aplica a presente proposta com
seus alunos, desde o início do 1º ano do ensino fundamental, segundo uma
perspectiva de letramento e inclusão, em uma iniciativa inédita e com frutos
muito significativos32.

32 Vale salientar que recentemente fiquei sabendo de outras duas avaliações do trabalho dessa professora
(além daquelas que ela apresenta no capítulo 1). A primeira se refere a quando Luciene retornou à
Escola Estadual Alceu Amoroso Lima, aos 09/10/2009 – pois nos últimos dois anos ela trabalha em
outra escola, bem distante daquela onde o projeto que descreve foi desenvolvido. Ela relata sua grande
alegria ao ouvir o depoimento da professora de matemática, que lhe disse: “aqueles alunos com quem
você desenvolveu o projeto de astronomia são ótimos, participativos, ágeis em dar respostas, críticos,
diferentes dos alunos do outro 6º ano”. A outra avaliação inesperada – feita aos 27/05/10, e neste caso
obtida dos sujeitos diretamente envolvidos com as intervenções educacionais da professora – veio

249
Luiz Carlos Jafelice

A formação do ser humano para uma convivência responsável e har-


mônica centrada no ambiente – e não só nos seres humanos (na verdade
naqueles em posição de poder e pertencentes às elites, econômica, religiosa,
intelectual etc.), como tem prevalecido há vários séculos –, constitui um ob-
jetivo ainda maior e mais importante (do que a mera alfabetização). Este é
um dos principais desafios a ser enfrentado em educação nos dias atuais, em
particular na educação dos primeiros cinco anos do nível fundamental, seja
em escolas na zona rural ou na urbana.

3.3 Por que coisas do céu e meio ambiente?

A relação dos seres humanos com o ambiente, ao longo da história


da humanidade, é o que vai definir a própria origem e desenvolvimento de
nossa forma de ser, sentir e pensar enquanto espécie – conforme já expus
na subseção 2.3 (Antropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultura) e ex-
ponho em maior profundidade ainda no apêndice 1 (Subsídios e pressupostos
para orientar a leitura da subseção 2.3). Mas, em geral, não temos nenhuma
consciência disto.
Por exemplo, a grande maioria ignora que o ambiente natural é regido
por ritmos e ciclos definidos, todos eles, essencialmente por fenômenos de
caráter celeste (que nossa cultura denomina de astronômico) – e/ou ignora o
que isto implicou e implica para nós, e em nós, enquanto seres vivos.
Da germinação de sementes e reprodução dos animais, a mudanças
climáticas, migração de animais, comportamentos de presas, predadores
e humanos ou épocas propícias para procriação humana – lembrando que
para agrupamentos vivendo em condições marginais, como nossos ancestrais
mais diretos viveram durante centenas de milhares de anos, há uma época
preferencial para se ter filho (no apêndice 1 aprofundo este ponto) –, além de
um sem-número de outras situações fundamentais para o sucesso da vida no
planeta, são, todas elas, definidas e orquestradas por ritmos cósmicos.

de um comentário de sua filha mais nova, Lígia (que também foi sua aluna durante aquele projeto).
Luciene ficou sabendo que nas conversas da filha, através do orkut, com ex-colegas e amigos daquela
escola, eles “dizem que ainda observam o céu e lembram-se dos Dias-Noites que tiveram”. Tais cons-
tatações, ainda mais feitas tanto por pessoa não ligada ao projeto do qual Luciene fez parte, como,
independentemente, por aquelas muito ligadas ao mesmo, e proferidas cerca de três anos após ela ter
concluído o contato com aqueles alunos, certamente reforçam as avaliações positivas do trabalho dela
e também da efetividade didático-pedagógica, em sentido amplo, da abordagem aqui proposta.

250
Abordagem Antropológica

Em outras palavras, o céu é componente vital na própria gênese do mundo


como o conhecemos, subjetivamente falando, inclusive. Embora aqui eu este-
ja me referindo a relações físico-ambientais, entre os vários integrantes do
mundo, é claro que analogias de caráter mítico, como as presentes nas cosmo-
gonias religiosas em geral, interpretam do mesmo modo, no plano simbólico,
a essência e a relevância das relações entre o céu e a terra e a subsequente
origem de tudo que existe no mundo, inclusive nós. Por isto é tão natural para
o ser humano considerar que tudo que existe tem um caráter sagrado e que,
portanto, deve ser respeitado enquanto tal. Afinal, logo ficou evidente, para
nossos ancestrais, que aquilo que se mostra mais caro e importante à vida está
associado ao céu, isto é, é fruto da intervenção direta do céu, tanto na origem
como no estabelecimento das leis (comportamentos) a serem seguidas pelo
que aqui (na terra) existe – para continuarmos vivos e vivermos melhor.
Portanto, a relação entre as coisas do céu e meio ambiente é a maior que pode
33
existir : é uma relação que vai ser determinante na própria formação do mundo
como o conhecemos, na relativa estabilização de nossa representação (da mate-
rialidade) do mesmo e na conformação de nossa espécie enquanto tal!
Mas, na prática, este fato e as implicações anímicas e psíquicas dele de-
correntes, como a conformação de nosso imaginário, sistemas de representa-
ções simbólicas e vivências espirituais, não são propriamente compreendidos
hoje em dia pela grande maioria daqueles envolvidos com o ensino e a divul-
gação de astronomia. Estes têm estado preocupados, quase que única e exclu-
sivamente, em mostrar como a astronomia é científica, maravilhosa, útil no
dia a dia, divertida, incrível, e, por isto, eles têm contribuído, mais ou menos
conscientemente, para reforçar a ideologia do pensamento único dominante.
Sem falar que essas abordagens costumam, com frequência, envolver apenas
aspectos cosméticos da área e/ou ser só um show de imagens. Astronomia
pode ser aquilo tudo também, porém, para o que me interessa enfatizar na
presente abordagem, ela é muito diferente do que a tintura dessa fachada foi
nos impingindo que ela é. E é nessa diferença de olhar e interpretação que
reside o que de melhor podemos extrair ao usarmos essa clássica área do co-
nhecimento como desculpa, ou porta de entrada, para tratar questões que

33 Isto é ainda mais evidente se conseguirmos superar a acepção fragmentada de “meio ambiente” que
nos tem sido inculcada e construir uma visão holística de ambiente cósmico do qual a existência é
parte-e-todo, como temos argumentado nesta abordagem. Vide aprofundamentos desta discussão no
apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3).

251
Luiz Carlos Jafelice

considero muito mais pertinentes e urgentes – ainda que, pela forma em que
utilizo tal área, então, ela fique, em essência, descaracterizada e irreconhecí-
vel em comparação com a imagem mais veiculada e vendida que temos da
mesma.
Fica claro do que expus – mas mesmo assim convém ressaltar –, que a
associação que aqui faço entre astronomia e educação ambiental não está res-
trita à relação conscientizada nas últimas décadas, que contempla o problema
do ponto de vista do isolamento do planeta no espaço, finitude das reservas
naturais, fragilidade dos ecossistemas etc. Embora este olhar seja pertinente e
deva ser explorado também, ele ainda deixa escapar um ponto que a meu ver
é bem mais essencial, que é a ampliação da concepção de “meio ambiente” e
da “relação” entre seres humanos, coisas do céu e meio ambiente. Esta relação
deve transcender a mera associação com a biosfera e a interferência mútua
entre o Sol, ela e nós. É preciso desvencilhar aquela concepção e relação da
mentalidade cientificista (racionalidade cognitivo-instrumental) que foi ca-
racterizando e amoldando cada vez mais nossa visão das mesmas.
Por outro lado ainda, essa noção de meio ambiente que critico, por ser
muito mais limitada ou superficial e imediatista, é algo relativamente novo na
história da humanidade34. Durante muitas dezenas de milhares de anos, no

34 Vejam ainda Flickinger (1994) e Brügger (2004), que aprofundam a discussão sobre mudanças ne-
cessárias em educação ambiental – quanto a princípios de caráter filosófico, epistemológico e ideo-
lógico implícitos naquela – e reforçam o tipo de crítica que faço. Aquele autor (Flickinger) questiona
a abordagem científica naturalista predominante para a questão ambiental. Para aquela abordagem,
“o mundo só existe enquanto objetificado, isto é, colocado à disposição de uma racionalidade instru-
mental. O que escapa do olhar objetificador do cientista parece não existir como tema de pesquisa, já
que o instrumentário metodológico não providencia acesso nenhum a tais ‘realidades’” (FLICKIN-
GER, 1994, p. 201). Assim, ele propõe a abordagem hermenêutica “como modelo complementar
àquele da explicação causal-objetificadora das ciências naturais” (idem, p. 206) e argumenta que esta
última abordagem é capaz de viabilizar nossa saída da atual crise civilizatório-ambiental. O autor
critica o antropocentrismo nas relações com o meio ambiente, a aplicação de uma lógica temporal
típica das atividades econômico-sociais à da estrutura temporal do ambiente físico-natural e cobra
da educação ambiental a recuperação da “responsabilidade íntima do agir humano, do dia-a-dia,” para
com a referida crise. Aquela autora (Brügger), por outro lado, a partir de referenciais e argumenta-
ções distintos, porém caminhos e principalmente conclusões muito assemelhados, critica, segundo
um enfoque sociológico, a forma com que a educação ambiental tem ficado a serviço de uma visão
de mundo cientificista, fomentadora de ideologias de exclusão, e discute as sérias consequências
desse estado de coisas. Ela destaca, por exemplo, que “a cultura cientificista invalida outras formas
de saber e ao fazê-lo, se torna adestradora” (BRÜGGER, 2004, p. 87). A autora também critica a
racionalidade instrumental e o antropocentrismo presentes na visão ambiental dominante, que le-
vam à “instrumentalização ilimitada de tudo que existe [...] [e justificam], por exemplo, [...] a forma
como tratamos os animais não ameaçados de extinção. Nunca, em toda a história, uma sociedade
impôs tanto sofrimento aos animais em nome da produtividade, seja em experimentos ‘científicos’,
seja em fazendas e granjas de criação intensiva” (idem, p. 93-94). Para a autora, a superação da crise

252
Abordagem Antropológica

mínimo, o ser humano sempre se considerou parte do todo. O meio ambiente


“ancestral”, digamos, sempre foi o cosmo inteiro. Esta concepção, antes de
ser anacrônica ou obsoleta, continua viva dentro de nós. Se nos dignarmos,
sem medo, a chamá-la para uma reintegração conscientizada em nós mesmos,
todos ganharemos muito, humanamente falando, com isso.
É necessário, portanto, estimular a conscientização do ser humano
como um ser cósmico e aprofundar as possibilidades e implicações de uma
relação verdadeiramente holística.
Por outro lado, esta relação obrigatoriamente significa lidar-se com o
autoconhecimento. Isto, porém, não costuma ter o destaque que merece nas
abordagens meramente ecológicas planetárias de preocupação com o meio
ambiente. Nessas abordagens parece ocorrer um paradoxo: ao mesmo tempo
em que ainda traem um posicionamento antropocentrado (em vez de bio-
centrado), este fica no nível superficial das materialidades e pragmaticidades,
mas não adentra nas profundas e inevitáveis questões de autoconhecimento e
de espiritualidade presentes quando se trazem esses temas à luz.
Por isto, faz-se urgente buscar-se outros discursos, outras práticas e
contextos, onde uma relação cósmica possa, de fato, ser desenvolvida e vi-
venciada pelos sujeitos e a qual provenha de uma inspiração biocêntrica, se-
não cosmocêntrica, amparada por uma concepção epistemológica pluralista.
Através da abordagem antropológica nos dedicamos a investigar e experimen-
tar ações coerentes com estes princípios e reflexões.

3.4 Educação convencional versus Educação antropológica

As tabelas a seguir resumem, de maneira não exaustiva, uma primeira


comparação entre o que habitualmente existe na educação científica atual e o
que proponho como mais adequado e proveitoso, do ponto de vista humano,
para os envolvidos.

mencionada exigirá como etapa “imprescindível [...] a adoção de novas posturas diante da natureza
e das relações humanas, de novos comportamentos e valores. Portanto a educação ambiental crítica
deve abordar a história das possíveis relações com a natureza (e dos homens entre si) e não apenas a
‘História natural’” (idem, p. 91). [Agreguem às argumentações e sugestões desses autores aquelas da
proposta educacional biocentrada defendida por Hutchison (2000), a qual recomenda orientações
muito semelhantes.] Ambos os autores tratam questões específicas nas quais não me detenho aqui.
Minhas críticas, porém, vão na mesma direção e se somam às que eles fazem à educação ambiental
prevalecente.

253
Luiz Carlos Jafelice

Abordagem convencional X Abordagem que propomos:


quem se pretende formar e para quê?

Educação científica habitual Educação científica holística

 cidadão “crítico” no sentido de  cidadão crítico e com compe-


ser capaz de responder a um mundo tência emocional (e não apenas
moderno fundamentado na ciência intelectual) de perceber e pensar o
e na tecnologia, segundo uma visão todo sistemicamente e responder às
convencional de especializações e expectativas contemporâneas desde
amparada na racionalidade cogniti- uma perspectiva ecológica e pela
vo-instrumental adoção de outras racionalidades
próprias do humano

 está implícita sua formação para  pressupõe outro modelo de glo-


inserção no mundo como ele está balização, de valores associados –
(por exemplo, com uma globaliza- incluindo a não aceitação de exclu-
ção regida por leis de mercado e os sões como uma inevitabilidade e o
valores e exclusões inevitáveis daí acolhimento de diversidades, entre
decorrentes) outros – e de consequente inserção
do cidadão no mundo

 ciência separada das humani-  visão integradora das artes, hu-


dades manidades e ciências naturais

 visa educar basicamente a razão  atributos não racionais precisam


ser educados tanto quanto, ou mais,
que a razão (não para desequilibrar
para o outro lado, mas para compen-
sar o grande desequilíbrio atual)

 ciência é apresentada (mais ou  reconhece como válidas outras


menos implicitamente) como o formas de construção de conheci-
caminho para se obter o conheci- mento que não apenas a científica
mento válido convencional

254
Abordagem Antropológica

Reflexões adicionais:
exemplos específicos para educação em astronomia e ambiental

Educação astronômica habitual Educação astronômica antropológica

 a imagem pela imagem, vazia;  ênfase no que há de significativo


apelo visual (profusão de imagens por trás dos processos e projeções
que seduzem, mas, no fundo, nada psicológicos (humanos) associados
acrescentam) àquelas imagens
 enfatiza nosso lugar no universo  estimula a percepção do lugar do
(fisicamente falando) universo em nós (simbolicamente
falando*)
 bordão recorrente: o jovem não se  cuidado para com o fato de que
interessa por ciência o natural é o ser humano procurar
sentido maior em tudo em que se
envolve
 a abóbada celeste é esférica; etc.,  o céu não é único; há tantos céus
etc., etc. quantas culturas humanas
 astrologia: grande bobagem e  astrologia: pensamento analó-
perigo; exemplo do mal pensar; ramo gico, essencial para nosso êxito
equivocado das origens históricas da como espécie e relevante até
astronomia hoje para construirmos sentidos;
unidade cósmica; ricos conteúdos
simbólicos e processos psíquicos
envolvidos
 alquimia: idem (química)  alquimia: idem
 aquilo que contribuiu direta ou  aquilo que não contribuiu dire-
indiretamente para a moderna astro- tamente para a moderna astrono-
nomia ocidental serve, caso contrário mia ocidental é mais um exemplo
é pitoresco ou curiosidade para quem da diversidade de formas culturais,
tem tempo para perder ou se distrair epistemologias e possibilidades cri-
com essas coisas ativas humanas fundamentais

* No apêndice 3 (Somos parte do universo. Só parte? Qual?) apresento uma prática e textos para se aprofun-
dar a discussão desse tipo de “dicotomia”.

255
Luiz Carlos Jafelice

Cabe aqui um relato referente à entrada “a abóbada celeste é esféri-


ca”, desta tabela. Fiz, em mais de uma ocasião, a experiência de – estando
em um local alto, com vista privilegiada do céu e do horizonte (deste, em
quase 360º), em noite limpa e longe de luzes e poluição – esvaziar a mente
de expectativas e olhar para o alto do céu e ao redor. Não vi abóbada esférica
alguma. O que vi nessas ocasiões, em um segundo momento, quando me per-
miti conceituar o visto, foi algo levemente abaulado no alto, cuja curvatura se
acentuava rapidamente ao chegar nas bordas do horizonte, se unindo à terra
quase verticalmente35. Isto é, só quem nunca olhou para o céu em condições
adequadas (inclusive em termos do horizonte à volta visível, como o do alto
de um monte, e da postura mental), ou quem sempre olhou para ele com uma
ideia preconcebida, induzida por crença irrestrita naquilo que ouviu ou leu
sobre astronomia, “vê” a abóbada esférica. O ditado “crer para ver” se aplica
muito bem neste caso. O círculo – a esfera – é símbolo de perfeição, do céu,
do Sol, em muitas culturas, inclusive na grega antiga, cujo legado à astrono-
mia é determinante. Abóbada celeste esférica é modelo. Não é o que se enxer-
ga espontaneamente nem aqui, que dizer nas outras culturas do planeta. [Um
dos locais onde fiz essa experiência foi no “mirante do canto”, em Martins
(RN). Lindo!]

3.5 Conhecimentos tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia

Adoto a denominação comum em antropologia: conhecimentos tradi-


cionais – também denominados etnoconhecimentos ou conhecimentos autóc-
tones – são aqueles construídos ao longo de muitas gerações, dentro de um
determinado contexto cultural e ambiental, transmitidos de geração para ge-
ração pela tradição oral.
Eles também estão em constante transformação36. Do ponto de vis-
ta epistemológico, esse tipo de conhecimento é de caráter holístico. Assim,
quando falamos “etnoconhecimentos ou conhecimentos tradicionais sobre
o ambiente”, queremos dizer também sobre o ambiente, mas não apenas isto.

35 Semelhante, na verdade, à concepção de algumas culturas autóctones, conforme constatei posterior-


mente.
36 Vejam um exemplo neste sentido, que comento em uma nota de rodapé na subseção Constelações
do apêndice 4 (O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados), mostrando como os conhecedores
tradicionais identificam no ambiente, através das suas chamadas experiências, as mudanças climáticas
globais mais recentes.

256
Abordagem Antropológica

O recorte que especifica “isto é do ambiente”, “isto é da astronomia”, “isto é


da terra”, “isto é da planta” e assim por diante, é tipicamente nosso, da cultura
ocidental, da ciência. Esse recorte não existe na tradição, na qual conhecimen-
tos sobre o ambiente incluem questões sobre a terra, as plantas, os animais,
as águas, o céu meteorológico e o clima, mas incluem igualmente, com natu-
ralidade, o céu astronômico, o encantado, as narrativas entrelaçadas diversas,
o medicinal, o (auto)biográfico, o sistêmico e a vida em geral, nos seus múlti-
plos aspectos, conexões e desdobramentos. Da mesma forma, as concepções
de espaço e de tempo são muito diversificadas e distintas das nossas.
Outra característica marcante dos conhecimentos tradicionais – e que
realça ainda mais o contraste entre suas organizações epistemológicas e visões
de mundo associadas com a adotada por nossa cultura ocidental nos últimos
séculos – é o fato de eles comportarem constitutivamente a possibilidade de
incompleteza (no sentido de admitirem em sua gênese e desenvolvimento
que não têm acesso irrestrito ou privilegiado à ontologia – e, portanto, não
têm controle sobre a natureza –, como pressuposto pela cultura cientificista).
O conhecimento tradicional, sem arrogância nem conflitos intrínsecos – lógi-
cos, semânticos, axiológicos ou da ordem que for –, admite sua limitação ine-
vitável – sem por isto tornar-se inoperante, ineficiente, imobilizado, descartá-
vel, de segunda categoria etc. Nossa epistemologia ocidental foi se afastando
desse tipo de concepção quanto mais fomos aderindo ao formato monoe-
pistêmico e redutor prevalecente. Um exemplo emblemático neste sentido é
dado pelo chefe índio xavante Tsuptó Brupréwn Wairi (da aldeia Etéñitépa,
da área indígena Pimentel Barbosa, no Mato Grosso), quando ele tem que se
defrontar e se posicionar em relação a doenças como diabetes e tuberculose,
que não existiam entre eles antes da chegada dos brancos. Na tentativa de se
examinar se é possível resolver o problema dessas doenças com o auxílio da
nossa (ocidental) ciência, Tsuptó opina: “Bem, eu acho que essas coisas [as
doenças] devem ser estudadas em maior profundidade, de modo que, se so-
luções para essas coisas que estão acontecendo puderem ser encontradas, elas
serão” (LEITE, 2003; colchetes do autor). Como bem destaca Marcelo Leite,
nessa importante matéria: “Note que não há fé cega na ciência, pois o chefe
de Etéñitépa admite que haja coisas impossíveis de solucionar. Algo em que
a maioria dos cientistas convencionais não acredita, pois são prisioneiros de
uma noção de tempo em que o futuro sempre esteve sob controle do homem”
(idem). (Essa é mais uma lição de humildade e sabedoria que uma cultura
tradicional nos dá.)

257
Luiz Carlos Jafelice

Ademais, os conhecimentos tradicionais são muito complexos, congre-


gando muitas componentes, além das cognitivas, como estamos habituados a
reconhecer como pertinentes ao “conhecimento” merecedor desta denomina-
ção. Aquele tipo de conhecimento opera outra racionalidade, a qual também
inclui componentes afetivos, valorativos, analógicos, emocionais, intuitivos,
morais etc. (e.g., OVERING, 1995; vide também JAFELICE, 2008b). É im-
portante lembrar que há muitas possibilidades de se construir conhecimento
e que os sistemas de conhecimento são incomensuráveis, isto é, não se pode
medir, avaliar, reduzir o conhecimento construído em um sistema por aque-
le elaborado em outro sistema. Assim, as epistemologias tradicionais não se
reduzem à de base cognitivo-instrumental, que a ciência adota e julga ser a
superior. Os conhecimentos tradicionais são epistemologicamente válidos e
não precisam da aprovação da ciência para serem considerados legítimos37.
Esse tipo de conhecimento, portanto, não deve ser olhado desde a
perspectiva da ciência convencional, senão há o grande risco de ele ser consi-
derado ingênuo, apenas empírico, equivocado, algo que pessoas sem instru-
ção acreditam, entre outras falácias que a visão cientificista lhe imputa (e, por
paradoxal ou significativo que seja, o faz, com frequência, mesmo sem motivo
comprovado segundo seus próprios critérios, que ela diz tanto prezar).
Em resumo, os conhecimentos tradicionais são frutos de uma gran-
de sensibilidade, observação sistemática e epistemologia muito complexa e
envolvem profundos saberes sobre as relações dos seres vivos com o meio
ambiente, usos em práticas de saúde e de subsistência e oferecem uma visão
de mundo muito diferente da nossa, ocidental.
Portanto, temos muito a aprender com a educação indígena. Ela é outra
fonte muito rica de inspiração – eu diria, inclusive, que é a mais rica, nessa
direção – para uma abordagem antropológica, com importantes lições a dar
também para a educação de não índios. Os interessados na presente proposta
encontrarão naquela área abundantes exemplos envolvendo outras formas de
relação com o ambiente e entre as pessoas – formas muito mais integradas
e integradoras, em comparação com o que a educação não indígena preva-
lecente nos oferece nesse setor. Gilvana Benevides Costa Fernandes discute
um pouco mais esses pontos no capítulo 2 e apresenta alguns exemplos de

37 Está além do escopo deste capítulo nos aprofundarmos nestas discussões. Os interessados devem se
remeter a Jafelice (2010a) (vide ainda os conteúdos destes assuntos contidos nas referências Jafelice
2009a e 2010b).

258
Abordagem Antropológica

aplicação de contribuições de culturas indígenas brasileiras na educação con-


vencional, envolvendo, em particular, concepções cosmogônicas e relações
entre o microcosmo e o macrocosmo. Vejam ainda, na seção Bibliografia adi-
cional, do presente capítulo, referências úteis envolvendo exemplos de expe-
riências em educação indígena no Brasil.
Etnoastronomia implica o estudo de todo e qualquer conhecimento que
as pessoas possuem envolvendo coisas do céu e suas inúmeras conexões com
o mundo e a vida, pelo simples fato de serem pessoas e viverem naturalmente
imersas em uma dada cultura. Etnoastronomia, segundo a visão aqui defendi-
da, tem muito a ver com antropologia e praticamente nada a ver com astrono-
mia38 (relembrem os comentários na subseção 2.2).
Nesse sentido, antropológico, essa área do conhecimento também tem
muito a oferecer para a presente proposta, pois nos ajuda a tentar entender
como o outro enxerga e se relaciona com o mundo, isto é, a tentar entender
as formas com que seres humanos de outras culturas se relacionam entre si
e com o que existe – nesse processo, nos conscientizamos de nossa própria
forma.
Etnoastronomia é, então, um recorte, ou subconjunto, de um corpo de
conhecimentos maior, que é o que mais nos interessa recuperar e aplicar de
modo vivencial nesta abordagem, que são os conhecimentos tradicionais. Em
um dos projetos recentes que coordenei39 ( JAFELICE, 2010b), experimen-
tamos e aprofundamos mais a presente proposta e avançamos ao colocarmos
crianças e jovens em contato direto com conhecedores tradicionais. Aqueles
conhecimentos correm o perigo de serem perdidos para sempre ( JAFELICE,

38 Cuidado, então, para não cair na tentação e equívoco – frequente em trabalhos de etno e arqueoastro-
nomia assessorados por astrônomos – de querer sobrepor, traduzir, comparar “céu indígena” com o
“nosso”, ocidental.
39 Este é o projeto Educação Intercultural Transdisciplinar e Etnoastronomia: saberes tradicionais sobre o
céu e a terra para as novas gerações, junto ao CNPq, que desenvolvemos com pessoas do município
de Carnaúba dos Dantas (RN) e foi concluído em maio de 2009. No momento estou coordenando
outro projeto, que se estende até fevereiro de 2011, também junto àquele município e com apoio do
CNPq: Astronomia Cultural e Científica: difusão dos diálogos e construções possíveis e necessários. [Ade-
mais, ambos os projetos têm recebido apoio de infraestrutura – para o curso – e de alojamento – para
as equipes dos mesmos – do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carnaúba dos Dantas (RN).]
Neste segundo projeto, temos como um objetivo prioritário a produção e publicação de um livro
didático (ou, conforme o rumo, paradidático) para uso nos níveis fundamental e médio de ensino,
envolvendo conhecimentos tradicionais – sobre ambiente, céu, terra e vida – da região do Seridó em
torno do referido município. A ideia é disponibilizarmos orientações, estratégias e resultados desses
projetos através de página na internet (vide JAFELICE 2010b).

259
Luiz Carlos Jafelice

2010a). Vários conhecedores tradicionais40 têm sido nossos mestres, sempre


sábios e generosos nos ensinamentos que nos dão. Vocês também podem pro-
curar os conhecedores que ainda existem nas comunidades onde lecionam,
nas famílias de seus alunos ou em suas próprias famílias, e planejar estratégias
para trazer – conhecedores e conhecimentos tradicionais em geral – para as
suas escolas e aulas41. Será contribuição muito importante para a formação de

40 São considerados conhecedores tradicionais – às vezes chamados profetas, no interior nordestino – às


pessoas mais idosas que são reconhecidas na comunidade como tendo autoridade epistemológica
e vivencial nos conhecimentos tradicionais e que ainda os utilizam em seu dia a dia (no caso, por
viverem da agricultura; em regiões litorâneas esses conhecedores costumam estar entre os pescado-
res). Em nossas pesquisas no estado do Rio Grande do Norte não encontramos nenhum conhecedor
tradicional com menos de 65 anos de idade. A geração que detêm etnoconhecimentos é cada vez mais
velha. É preciso incluir – e logo! – gerações mais novas.
41 Neste sentido, tivemos significativo avanço recentemente, graças ao apoio da Secretaria de Educação
Municipal de Carnaúba dos Dantas (RN), o qual pode servir de exemplo. Em fevereiro de 2009 pude-
mos participar da Semana Pedagógica – que desta vez reuniu professores das redes públicas estadual
e municipal – e colaborar na elaboração do planejamento anual. Naquela ocasião achávamos melhor,
por precaução, fixar ao menos algumas datas, para ter uma maior garantia de que a inclusão dos co-
nhecimentos tradicionais no planejamento anual se concretizasse, de fato, na prática. Então, foram fi-
xadas quatro semanas de aulas de campo, distribuídas ao longo do ano letivo, a serem ministradas por
conhecedores tradicionais da região para todos os níveis de ensino – da educação infantil ao ensino
médio. Cada semana foi escolhida, de preferência, antes de datas marcantes para prognósticos mete-
orológicos (os professores, por pertencerem à cultura local, sabem quais são essas datas), para que os
alunos possam ser preparados (pelos conhecedores), com antecedência, para também começarem
a ler o ambiente segundo uma outra perspectiva. A receptividade do professorado foi das melho-
res. Agora, passado um ano daquele momento, podemos avaliar que aquela intervenção foi bastante
bem-sucedida. Os resultados têm sido muito animadores. Cerca de doze professores se juntaram ao
projeto, isto é, iniciaram aquelas aulas de campo e as incorporaram com naturalidade em suas ativida-
des didáticas. Eles perceberam, porém, que a especificação de “certas semanas” onde aquela inclusão
ocorreria não corresponde ao melhor proceder na prática. Eles concluíram que o natural é permear
todo o ano letivo com o apoio dos saberes tradicionais. Ao longo de 2009, nos encontramos em torno
de uma vez por mês com eles, para troca de experiências, reavaliação do processo, sugestão de novas
etapas etc. As iniciativas autônomas por parte deles têm sido das mais variadas, acrescentando ou-
tros conhecedores, não previstos inicialmente, agregando outros professores que se convenceram da
importância da proposta e incluindo outros temas a serem trabalhados pelos mestres conhecedores.
Temos testemunhado resultados dos mais surpreendentes, tocantes e belos. Este exemplo, embora
ainda isolado, serve de estímulo para mostrar que é possível, sim – apesar do ineditismo da iniciativa
e das dificuldades inerentes à mentalidade prevalecente, que não é educada para atentar e valorizar
esse tipo de conhecimento –, se avançar e chegar-se ao nível do planejamento anual. E mais: não
apenas é desejável, como é possível incluir-se os conhecimentos tradicionais no currículo escolar for-
mal. Vocês também podem pesquisar sobre conhecedores e conhecimentos tradicionais circulantes
na região onde lecionam e procurar as secretarias de educação e solicitar apoio para suas iniciativas
na direção aqui apontada. Vejam ainda no apêndice 7 outras orientações para o encaminhamento de
aulas ambientais guiadas principalmente com base em aportes dos conhecimentos tradicionais. Em
nossa participação no referido planejamento anual, conduzi com os professores a oficina Pedagogia
dos Saberes da Tradição. Uma das práticas envolveu um trabalho em grupo com base em um conjunto
de textos que tenho escrito para a coluna Nossos tesouros “quase” perdidos, que assino no Jornal Car-
naúba Notícias. (Esta via, aliás, através dos meios de comunicação dos locais onde vocês lecionam, é
outra forma de informar e conscientizar as pessoas de lá sobre a importância de se valorizar os conhe-
cedores tradicionais, de se recuperar aquele tipo de conhecimento, de obter apoio delas para esse seu
trabalho e de se incluir novas gerações na valorização dos conhecedores e incorporação vivencial da-

260
Abordagem Antropológica

seus alunos e para tentar reverter o quadro de empobrecimentos epistemoló-


gico e histórico-cultural que o desaparecimento desse tipo de conhecimento
significará para a humanidade.
Arqueoastronomia também é uma área que pode ser convenientemente
explorada no contexto da presente abordagem. Aquela é uma área que busca
evidências materiais que indiquem realizações humanas do passado42 even-
tualmente inspiradas em fenômenos celestes. Exemplos neste sentido são as
buscas de correlações entre as coisas do céu e construções, disposições de
pedras, de sepultamentos, de restos de assentamentos, registros rupestres em
pinturas e incisões na rocha.
O que importa, desde a perspectiva desta abordagem, é que onde mo-
ramos agora, foi ocupado por outros povos, no passado distante. Esses povos
podem ser nossos ancestrais ou podem não ter relação direta nenhuma co-
nosco. Seja como for, só o fato de eles terem vivido onde hoje vivemos, onde
seus alunos, em particular, vivem, já nos torna próximos e com bastante coisa
em comum para despertar nossa curiosidade: como será que eles viviam an-
tigamente neste lugar?; como eles se relacionavam com o ambiente e como
o que chamamos coisas do céu entravam nessas relações?; com que grau de
confiabilidade podemos saber sobre isso?; se formos explorar, o que pode-
mos descobrir – e/ou conjecturar – sobre aquilo? Etc.
Busquem se há exemplos de registros, informações de lugares de “po-
der”, ou “magia” especial, antigos no município onde vocês lecionam ou na
região próxima. São registros muitas vezes conhecidos como “letreiros” – em
geral pedras com desenhos e inscrições rupestres de antes do descobrimento
do Brasil –, cemitérios (indígenas) antigos, etc. Às vezes há, na localidade,
quem tenha encontrado adornos corporais de ossos ou conchas, utensílios
de pedra para caça (como ponta de flecha ou de lança) ou de uso cotidiano

queles saberes.) Esses textos estão redigidos em linguagem bastante acessível e contêm reflexões que
ajudam os professores a encaminharem a mudança de mentalidade (em si mesmos e na comunidade)
necessária para empreender esse tipo de trabalho. Pretendo disponibilizar futuramente também esses
textos em Jafelice (2010b). Participamos também da Semana Pedagógica de 2010, onde pudemos
aprofundar o trabalho junto aos professores já envolvidos e ampliar a discussão e o grupo, com outros
professores que se juntaram a nós nessa iniciativa. Até agora, tudo é muito animador e gratificante.
Não é possível avaliar a perenidade das mudanças já empreendidas. Como já falei, porém, isto tudo é
uma caminhada. Portanto, é preciso ao menos dar uns primeiros passos para ela começar a acontecer,
reavaliarmos rumos, mudarmos rotas (temporárias), desfrutarmos do vivê-la. Nisto estamos.
42 Neste caso, nos exemplos mais conhecidos do público, esse costuma ser um passado de alguns milha-
res de anos. Mas em vários lugares, em particular no Brasil, ele pode, em certos sítios arqueológicos,
ser de apenas algumas centenas a um milhar de anos; em outros sítios brasileiros ele pode ser de
dezenas de milhares de anos. Nestes últimos, porém, até onde se sabe, não há indicações de atividades
de caráter arqueoastronômico.

261
Luiz Carlos Jafelice

(como lâmina de machado ou pilão ou almofariz), ou uma “pedra de raio”43


etc. Todas essas informações enriquecem, motivam e contextualizam muitos
conteúdos específicos, não só de história e geografia, mas inclusive de educa-
ção ambiental segundo o enfoque e ênfase aqui propostos.
Enfim, nesta subseção apenas exemplifiquei, muito brevemente, algu-
mas outras fontes de inspirações para a criação de práticas educacionais trans-
disciplinares de matiz antropológico. Os interessados saberão multiplicá-las,
além de buscar e criar muitas outras mais. Todo o nosso apoio!

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo teve a esperança de fornecer uma visão geral e alguns em-
basamentos explícitos e implícitos do que denomino abordagem antropológica
– por enquanto, almejando que esse nome antes explique do que confunda44.
Creio ter ficado claro que ela é fruto de um entrelaçamento indeslindável de
minhas idiossincrasias, história de vida, interesses, preocupações, prioridades,
visão de mundo, enfim – esta é mutável, mas, ainda assim, uma visão, com os
inevitáveis vínculos culturais presentes na sua constante reconstrução.
A proposta apresentada é alternativa ao que é corrente em educação
ambiental e astronômica e espero que sua contribuição seja relevante para as
mudanças que precisam ocorrer na educação em geral, para que a atual crise
civilizatória possa de fato levar a uma transformação crescedora para todos,
desde uma perspectiva biocentrada e pluriepistêmica.
O que foi escrito até aqui deveria ser autoconsistente e suficiente para
se compreender o caráter principalmente inclusivo da proposta – e não ape-
nas seu cunho heterodoxo, que assim soa antes devido à nossa subserviência
a um formato único de pensamento.
Contudo, creio que os leitores ganharão muito em compreensão a
respeito da referida abordagem através dos exemplos, explicações adicio-
nais – de conteúdos, filosofia ou autobiografia – nas seções de Sugestões de
leituras e Apêndices abaixo. Estes adendos, inclusive, os capacitarão melhor,
espero, a levar algo da inspiração dessa abordagem à prática, ainda que muito
modificada pela criatividade interventiva dos interessados em contribuir na
construção de um outro mundo possível, mais justo, equilibrado e solidário,
segundo uma vertente como a aqui defendida.

43 Vide em nota de rodapé mais ao final do apêndice 1 maiores esclarecimentos sobre a “pedra de raio”.
44 Ou, quem sabe, com sorte, à Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir, eu tô te confundindo pra
te esclarecer [...]” (ZÉ e MEDEIROS, 1976).

262
Abordagem Antropológica

SUGESTÕES DE LEITURAS

A lista a seguir é inicial e visa dar suporte para quem quiser aprofundar
algum dos temas específicos discutidos ou ter mais subsídios para desenvol-
ver a presente abordagem. Essa listagem não é exaustiva e demandará que os
interessados prossigam na pesquisa bibliográfica a partir de outras fontes, cita-
das nas próprias referências abaixo e em outras que encontrarem. Decidi incluir
nesta lista apenas fontes (de livros e endereços na internet) em português.
Para uma relação mais completa de fontes, é necessário consultar tam-
bém a seção Referências dos outros capítulos (pois minimizei a repetição de
fontes ali referidas, nesta lista) e a deste, assim como a seção Bibliografia adi-
cional (antes dos apêndices deste capítulo).
A subdivisão das leituras a seguir espera ser didática, mas há sobre-
posições entre elas. Algumas são de caráter interdisciplinar ou mesmo trans-
disciplinar e, portanto, não poderiam ser enquadradas totalmente em apenas
uma das categorias abaixo arroladas.
A seleção destas leituras foi bastante cuidadosa (embora talvez não tão
criteriosa quanto teria sido o ideal). Contudo, como sempre, os consulentes
não podem abrir mão de fazer o exercício crítico sobre o que lerem, cruzarem
as informações das fontes aqui citadas com outras, de outras fontes, consultar
autores, quando possível, e discutir com outros interessados o que foi colhido.

Sobre antropologia45

Os três livros desta subseção trazem ensaios aprofundados sobre essa


área de pesquisa, sua polifonia de escolas, embates metodológicos, evolução
histórica, situação atual e vistas futuras. Cada um, claro, segundo os olhares
de seus respectivos autores para a disciplina, que, no conjunto, esclarecem
muito sobre a mesma.

45 Esta área, além de vasta, abriga várias correntes. Antes que livros, conviria, para um primeiro contato
com ela, dispor-se de textos mais curtos de diversos autores. Ficaria inviável incluir isto nesta lista.
Optei por incluir três livros, mas que exigem outros estudos. A ordem em que estão apresentados é
apenas cronológica, em relação ao ano da última publicação (no Brasil) a que tive acesso. Há ainda
livros genéricos introdutórios à área que podem ser úteis (embora não incluí nenhum desses nesta
subseção; eles podem sem encontrados em qualquer boa livraria na área). Nas seções Referências e
Bibliografia adicional abaixo há outras fontes da área que auxiliarão os interessados.

263
Luiz Carlos Jafelice

1. DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia


social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
Ele apresenta o que, a seu ver, “constitui o coração ou [...] a alma, da
[...] Antropologia Social [ou Cultural]”, onde não cabem anseios de “armaze-
nar [...] certezas absolutas”.

2. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. 2.


ed. rev. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Ed. UNESP, 2000.
Ele reflete sobre a “produção do conhecimento antropológico” e pre-
tende socializar a experiência desse tipo de pesquisa com estudantes.

3. GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia. Trad. Vera Ribeiro.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Este autor é um dos mais conhecidos representantes da escola herme-
nêutica em antropologia. Aqui, ele entabula reflexões dialéticas entre antro-
pologia e filosofia muito profícuas para um entendimento de parte significa-
tiva da pesquisa contemporânea na área.

Sobre etnoastronomia

1. Ivânia N. Corrêa, Lázaro Magalhães Jr., Regina Mascarenhas. O Céu dos


Índios Tembé. 2. ed. rev. Belém: Planetário do Pará/UEPA, 2000.
Ótimo aporte de contribuições indígenas brasileiras sobre uma outra
visão do “mesmo” céu que nossa cultura conhece, aqui enxergado segundo a
perspectiva dos Tembé.

2. Priscila Faulhaber (Coord.). Magüta Arü Inü: jogo de memória; pensa-


mento Magüta. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2003. 1 CD-ROM.
Belo, diversificado e instrutivo trabalho que destaca a relação dos Ti-
cuna com o céu. Muito útil também em salas de aula, para aproximar alunos
não índios da cosmovisão Ticuna.

3. Flávia P. Lima. Observações e Descrições Astronômicas de Indígenas


Brasileiros: a visão dos missionários, colonizadores, viajantes e naturalistas.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 2004.
Um trabalho aprofundado sobre nossa herança etnoastronômica cul-
tural brasileira, que recupera uma série de estudos e levantamentos feitos nos
últimos séculos sobre o assunto.

264
Abordagem Antropológica

4. Germano B. Afonso. As Constelações Indígenas Brasileiras. Portal: Te-


lescópios na Escola. Disponível em: http://www.telescopiosnaescola.pro.br/
indigenas.pdf.
Contém exemplos e digressões, em nível de divulgação científica, so-
bre certas visões das estrelas segundo algumas culturas brasileiras.

5. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL. Edição especial no. 12. Etnoastro-


nomia: como os mais diferentes povos observavam e interpretavam a mo-
vimentação dos astros para orientar seus rituais e organizar as atividades
agrícolas. Ed. Giovana Girardi. São Paulo: Duetto Editorial, s/d. (Maiores
informações em: http://www.sciam.com.br.)
Contém um apanhado dessa área de estudos, em nível de divulgação,
por diversos autores, com exemplos de várias culturas no mundo, em particu-
lar algumas brasileiras.

Sobre arqueoastronomia
1. AVENI, Anthony. Conversando com os Planetas. São Paulo: Mercuryo,
1993.
Muito interessante e esclarecedor na questão de ajudar a enxergar o
“mesmo” céu com os olhos de outras culturas – no caso, não mais existentes.
O autor é muito conhecido na área, na qual escreveu muitos trabalhos, vários
de modo acessível também para leigos no assunto. (Infelizmente, porém, até
onde sei, este é o único traduzido para o português no Brasil.)

2. JALLES, Cíntia; IMAZIO, Maura. Olhando o Céu da Pré-História:


registros arqueoastronômicos no Brasil. Rio de Janeiro: MAST, 2004.
Trabalho pioneiro na divulgação de estudos de caráter arqueoastro-
nômico associados a culturas indígenas brasileiras (de épocas pré-descobri-
mento) – embora ele traga também textos sobre etnoastronomia. Contém
artigos de vários autores e muitas ilustrações de incisões e pinturas rupestres
eventualmente relacionadas a, ou inspiradas por, acontecimentos celestes.

Sobre cronobiologia46
1. MARQUES, Nelson; MENNA-BARRETO, Luiz (Org.). Cronobiologia:
princípios e aplicações. 2. ed. rev. São Paulo: EdUSP, 1999.

46 Na seção Bibliografia adicional há outras referências sobre este assunto, em nível de divulgação cientí-
fica.

265
Luiz Carlos Jafelice

É o primeiro livro sobre o tema escrito no Brasil. É bastante técnico


em sua maior parte, mas contém pelo menos um par de capítulos de visão
geral sobre o assunto e muitas informações relevantes e esclarecedoras sobre
o mesmo, relativas ao que se conhecia até 1999.

2. JANSEN, José Manoel et al. (Org.). Medicina da Noite: da cronobiologia


à prática clínica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007.
É publicação bem mais recente, fruto, em parte, de ações pioneiras do
grupo que redigiu o livro anterior. Aqui, os autores pesquisam e aplicam os
resultados na área de medicina. Também é texto bastante técnico, mas con-
tém igualmente pelo menos uns dois capítulos bastante esclarecedores sobre
os mecanismos básicos envolvidos nos processos cronobiológicos. Há mui-
tos pontos em aberto na área. Este livro atualiza o que se conhece até 2007.

Sobre o Lunário Perpétuo

CORTEZ, Jeronymo. Lunario Perpetuo: prognostico geral e particular para


todos os reinos e provincias. Trad. Antonio da Silva Brito. Lisboa: Antonio
Maria Pereira Livraria Editora, 1912. [Há edição recente, a qual mantém a
autoria de Jeronymo Cortez, bastante modificada em relação à citada, a saber:
Lunário e Prognóstico Perpétuo. Atualizado e remodelado, incluindo lista
bibliográfica dos Papas, por João Arrepia. Porto: Lello Editores, 2004.]
O Lunário Perpétuo é um livro sobre conhecimentos astronômicos,
astrológicos, religiosos, meteorológicos, agrícolas, veterinários, medicinais,
filosóficos, entre outros47. Sua influência na tradição oral, imaginário e cul-
tura popular no nordeste brasileiro é incontestável, embora heterogênea e
complexa em muitos aspectos48. Ao se lidar com conhecimentos tradicionais
sobre coisas do céu, do ambiente e da vida, em particular nessa região do país,
há que se ter em mente, então, que o Lunário pode estar por trás de uma ou de
outra expressão daqueles saberes49. Assim, informem-se também se na região

47 Até onde sei, ele foi publicado pela primeira vez na Espanha no início do século XVIII, tendo chega-
do rapidamente a Portugal, onde em 1703 já foi feita a primeira edição em português (CASCUDO,
1998; no verbete “Lunário Perpétuo”). De lá, ele foi trazido ao Brasil.
48 Um belo trabalho de criação contemplando esse tipo de influência pode ser apreciado em Nóbrega
(2005).
49 Sua penetração no Nordeste foi tão grande que até hoje ele ainda é usado por algumas pessoas para
consultas e orientações relacionadas a procedimentos agronômicos, terapêuticos e outros. O exem-
plar de 1912, que cito acima, por exemplo, é um que continuava sendo usado para a previsão de inver-

266
Abordagem Antropológica

onde lecionam há quem tenha o Lunário e, se houver, é importante conversar


com essa pessoa, saber como ele chegou até ela, se ela o usa, como e quando
etc. Incluam seus alunos nessas buscas, conversas e histórias.

Sobre fundamentos e orientações para uma pedagogia


humanista ampla
1. SALÓ, Julia; BARBUY, Santiago. Terra, Água, Ar, Fogo: para uma ofici-
na-escola inicial. Trad. Equipe da ECE. São Paulo: Editora Cultura Espiritual
(ECE), 1977.
É um livro excelente, dos mais inspiradores, na minha opinião. Embo-
ra escrito para trabalhos com crianças em idade pré-escolar, seus fundamen-
tos, exemplos e reflexões se aplicam, com vantagens, para uma pedagogia do
sensível e do que é caro ao humano e precisa ser recuperado e reintegrado à
vida, independentemente das faixas etárias dos envolvidos.

2. SCHLÖGL, Emerli. Expansão Criativa: por uma pedagogia da auto-


descoberta. Petrópolis: Vozes, 2000.
Outro trabalho sensível, muito rico em exemplos, práticas e reflexões,
que auxiliam os professores a levarem para as salas de aula uma abordagem
pedagógica que inclui a dimensão da religiosidade segundo uma visão ecu-
mênica e cuida do espírito e do corpo com igual atenção.

3. ASSMANN, Hugo. Metáforas Novas para Reencantar a Educação: epis-


temologia e didática. 3. ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2001.
Também um trabalho de acolhimento das múltiplas dimensões da
existência humana, que cuida da corporeidade, assim como da espirituali-
dade e da intelectualidade, e reflete sobre formas de se reinseri-las de modo
integrado na educação atual.

no, agrícola e outras, mais de noventa anos após sua publicação (o que não deveria nos surpreender;
afinal, ele é perpétuo!). Há pesquisadores, porém – em geral da área de folclore ou de literatura –, que
atribuem a origem das formas de pensar e de se expressar dos ditos profetas, nos sertões nordestinos,
ao Lunário. Isto não se sustenta, conforme diversos trabalhos em antropologia, além do nosso pró-
prio, já deixaram bem claro. Outras influências não ibéricas, em especial a indígena, estão fortemente
presentes naquelas formas de pensamento e expressão. Por outro lado, se a influência daquele livro
não é decisiva, como algumas interpretações alegam, é inegável que ela está presente e não pode ser
ignorada em um estudo mais aprofundado sobre o assunto, que ainda não foi realizado a contento.

267
Luiz Carlos Jafelice

4. BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São


Paulo: Edições Loyola, 2000. [A 50ª edição, de junho/2008, está revista e
ampliada.]
É excelente texto para ajudar na reflexão sobre preconceitos pratica-
dos sem consciência – e, muitas vezes, com a melhor das intenções – e cujos
malefícios são diversos e devastadores na formação dos alunos e para a trans-
formação da sociedade rumo à justiça e solidariedade. Recomendo-o forte-
mente aos professores, independentemente das disciplinas específicas que
lecionem.

5. LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio. Trad. Maria Luiza
Newlands. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
Também é excelente, neste caso por expor com extrema lucidez – e
sem qualquer conexão com concepções religiosas, apesar de ser escrito por
um monge do budismo tibetano – a importância de assumirmos as mudan-
ças de perspectiva e de postura necessárias para empreendermos ações que
transformem construtivamente nosso mundo, relações e visões humanas.
Também o recomendo fortemente a professores de qualquer disciplina.

6. SANTOS, Milton. Por uma Outra Globalização: do pensamento único à


consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Como os dois anteriores, é excelente. E, também independentemen-
te das disciplinas que os professores lecionem, ele tem muito a contribuir
para quem quer entender o beco estreito, provavelmente sem saída, em que
a civilização ocidental se encurralou. Também o recomendo fortemente. Ele
estimula reflexões e fornece subsídios para nossa criação de contrarracionali-
dades que nos ajudem a valorizar o local, a solidariedade e o espírito.

Sobre a arte do movimento, percepção e conscientização corporais50


1. LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. Org. Lisa Ullmann. Trad.
Anna Maria Barros De Vecchi; Maria Sílvia Mourão Netto. 2. ed. São Paulo:
Summus, 1978.

50 Atenção: os textos desta subseção, em particular, são para uma tomada de conhecimento adicional,
através da palavra. Aquilo que envolve o corpo, contudo, precisa ser – acima de tudo e independente-
mente de verbalizações ou racionalizações – vivenciado. Cuidado, portanto. Nossa cultura se entrin-
cheirou e se apequenou demais no intelecto, embotando as outras dimensões do ser, em especial a
corporal e a cinestésica. Em suma: procurem quem pode lhes ajudar a pôr tais propostas em prática e
vão improvisar, brincar e criar nessas outras dimensões.

268
Abordagem Antropológica

O autor versa sobre expressividade e autoconhecimento humanos re-


alizados através dos movimentos. Ele criou uma proposta única para a recu-
peração dos movimentos naturais pelas pessoas, à qual denominou arte do
movimento. Esta foi trazida ao Brasil por Maria Duschenes (São Paulo, SP), há
mais de 40 anos. Laban dá orientações preciosas para nossa conscientização
corporal e cinestésica e enriquecimento de nosso repertório de movimentos,
sem nunca perder de vista o prazer de brincarmos com criações expressivas
corporais.

2. ALEXANDER, Gerda. Eutonia: um caminho para a percepção corporal.


Trad. José Luis Mora Fuentes. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Este é outro texto básico sobre autodescoberta pelo movimento, com-
binado com técnicas diversas (modelagem, pintura etc.) que levam a des-
condicionamentos e reformulação da autoimagem. Como a autora expressa,
“a eutonia propõe uma busca, adaptada ao mundo ocidental, para ajudar o
homem de nosso tempo a alcançar uma consciência mais profunda de sua
realidade corporal e espiritual, como uma verdadeira unidade” (p. 9). Esta
proposta foi trazida ao Brasil por Patrícia Stokoe (de Buenos Aires, Argenti-
na), há cerca de 35 anos.

Sobre história das religiões e mitologia51


1. ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno: cosmo e história. Trad. José
A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992a.
2. ______. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Trad. Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.
3. ______. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva,
2000.
4. ______. Tratado de História das Religiões. Trad. Fernando Tomaz e
Natália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1993a.
Esse autor nos mostra de modo agudo, com muita clareza e abundân-
cia de exemplos, o significado da religiosidade e dos mitos enquanto cons-
tituintes essenciais de nossa espécie. Desses livros, o autor considera que o
Mito do Eterno Retorno é o que mais resume pontos básicos de suas reflexões e

51 Vide na seção Bibliografia adicional outras referências muito importantes e úteis sobre mitologia.

269
Luiz Carlos Jafelice

conclusões. Mas, na minha visão, seus livros são inspiradores. Esses assuntos
adquirem particular relevância quando se está envolvido com uma aborda-
gem de caráter antropológico, principalmente segundo a vertente em que a
conduzo.

5. CAMPBELL, Joseph. A Imagem Mítica. Trad. Maria Kenney; Gilbert E.


Adams. Campinas: Papiro, 1994.
Neste livro o autor nos leva a um belo e elucidativo passeio
iconográfico – mas também comentado – ao imaginário mitológico-onírico
de diversas culturas.

6. BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos. Trad. Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2003.
Aqui, temos um trabalho de clipagem que congrega textos de diversos
autores sobre o assunto e a reprodução de mitos de várias culturas, apresenta-
dos em nível de divulgação. O autor também discute as várias interpretações
dadas, por pesquisadores de diferentes áreas, para tentar explicar semelhan-
ças notáveis que se observa entre mitos de culturas distintas.

Sobre a Revista Latino-Americana de Educação em Astronomia


(RELEA)

A RELEA é a única publicação especializada em educação em astro-


nomia na América Latina. Ela contém artigos voltados principalmente para
professores e divulgadores em geral e para pesquisadores no ensino dos
conteúdos daquela área e traz avanços e sugestões de aplicações na mesma.
Essa revista foi criada e é editada por Paulo S. Bretones, Jorge E. Horvath e eu.
Disponível em: http://www.relea.ufscar.br. Acesso em: 21 fev. 2010.

Sobre fontes de informações sobre astronomia

Decidi não incluir nesta subseção (com exceção de um livro) referên-


cias que façam tratamentos técnico-científicos convencionais, uma vez que
esses são facilmente localizáveis por aí.

1 Anuários astronômicos (manuais com informações sobre fenômenos de


interesse geral):

270
Abordagem Antropológica

1.1 Anuário do Observatório Nacional (ON):


É editado anualmente pelo Observatório Nacional. Pode ser compra-
do pelo correio a preço de custo. Em geral ele está disponível somente no
início do ano, infelizmente. Compras:
Por correio Por email Por telefone/fax
Biblioteca do Observatório marcomed@on.br 0xx21 - 3504 9156
Nacional (falar c/ Sr. Marcomede Nunes) 0xx21 - 2589 8972
Rua General José Cristino, 77 josina@on.br
São Cristóvão (falar c/ Sra. Josina Nascimento)
20921-400, Rio de Janeiro, RJ

Para outras consultas e eventual necessidade de atualização das infor-


mações acima, a página do Observatório Nacional é: http://www.on.br.

1.2 Anuário da revista Scientific American Brasil:


É publicado por essa revista e pode ser comprado em bancas de jor-
nais (embora às vezes ela só é encontrada nas bancas maiores). Para quem
não está familiarizado com termos e conceitos de astronomia, ele é muito
mais acessível, esclarecedor e útil do que o anuário do ON. Além disto, ele
tem uma grande vantagem adicional: é lançado no final do ano anterior52. Isto
é muito importante para quem for planejar aulas de campo, atividades e inter-
venções com apoio em fenômenos celestes. Quem tem escrito esse anuário é
o astrônomo Júlio Klafke e o formato é voltado para o grande público.

2 Livros com conteúdos específicos em geral:

2.1 BOCZKO, Roberto. Conceitos de Astronomia. São Paulo: Edgard


Blücher, 1984.
É o mais completo e, na minha opinião, o melhor texto sobre os as-
pectos conceituais fundamentais dessa área do conhecimento. É bastante in-
formativo e muito didático, embora, no geral, muito técnico. É voltado para
quem tem interesse específico em astronomia, segundo o ponto de vista cien-
tífico convencional.

52 Quer dizer, o de 2008 (o primeiro a ser lançado) foi distribuído no final de 2007, porém o de 2009
não foi lançado – ou, se foi, não chegou a Natal (RN), pois por meses o procurei em diversos pontos
de distribuição. Ou seja, no importante quesito da garantia de regularidade (e/ou de distribuição) de
publicação, ele não é confiável como o do ON. Essa iniciativa da Scientific American Brasil é de gran-
de importância educacional. Será muito útil se sua política editorial for movida antes por este objetivo
e garantir a continuidade regular desse anuário. Se isto não puder ocorrer, ao menos o anuário do ON
terá – ainda que com algum atraso – sua presença assegurada.

271
Luiz Carlos Jafelice

2.2 CANIATO, Rodolpho. O Céu. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.


Contém práticas e um enfoque muito interessante para abordar o
ensino de alguns conteúdos específicos de astronomia. Infelizmente, porém,
está fora de catálogo. Fica a referência, para dar o crédito e, quem sabe, para
vocês encontrarem-no em algum sebo por aí.

2.3 MARTINS, Roberto de A. O Universo: teorias sobre sua origem e evolu-


ção. 3. ed. São Paulo: Moderna, 1994.
É o melhor texto sobre cosmologia em nível paradidático, conse-
guindo conjugar, como nenhum outro, áreas tão distintas quanto concepções
míticas, filosóficas e científicas associadas a esse tema. Infelizmente, porém,
ele também está fora de catálogo. Neste caso, contudo, felizmente, ele pode
ser encontrado no sítio do grupo de pesquisa coordenado pelo autor: http://
www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/.

3 Endereços53 na internet (incluí apenas dois endereços, como ponto de par-


tida, e de páginas em português; estes, em particular, foram acessados em: 21
fev. 2010):

3.1 http://www.zenite.nu/
É uma página bastante completa, didática e de mentalidade aberta
sobre divulgação de astronomia. Contém abordagem de temas inéditos –
como o céu da bandeira do Brasil, astronomia e futebol etc. – e conexões
para muitos outros endereços sobre astronomia na internet. É produzida por
aficionado amador em astronomia.

3.2 http://www.telescopiosnaescola.pro.br
É página do Projeto Vitae, coordenado pelo IAG/USP, sobre o uso de
telescópios robóticos para o ensino de ciências. Ela é produzida por astrôno-
mos profissionais. Contém materiais e conexões sobre astronomia, segundo
o ponto de vista científico convencional.

53 Endereços em internet caducam com frequência. Pode ser que quando este livro vier a público muitos
dos acessos aqui indicados estejam inoperantes. Quase todos os endereços de internet citados neste
capítulo trazem a indicação das respectivas datas em que foram acessados. Em caso de desatualização,
os interessados poderão encontrar os novos endereços ou substitutos pertinentes – quando existentes
– através de um uso criterioso de algum sistema de busca eletrônico.

272
Abordagem Antropológica

REFERÊNCIAS
ASTROMANUAL. Crateras de Meteoritos no Brasil: cratera Curuçá. Disponível
em: http://rgregio.astrodatabase.net/crater_curuca.htm. Acesso em: 20 fev. 2009.
AVENI, Anthony. Stairways to the Stars: skywatching in three great ancient cultu-
res. Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1997, p. 46-52.
BENSUSAN, Nurit. O que Levar para a Lua? In: RICARDO, Beto; CAMPANILI,
Maura (Ed.). Almanaque Brasil Socioambiental (2008). São Paulo: Instituto So-
cioambiental, 2007. p. 460.
BOFF, Leonardo. O Casamento entre o Céu e a Terra: contos dos povos indígenas
do Brasil. Ilustr. Pata Macedo e Adriana Miranda. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.
BRÜGGER, Paula. Educação ou Adestramento Ambiental? 3. ed. Chapecó: Ar-
gos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.
CAMINO, Néstor et al. Space and time from an astronomical conception: watching
the Moon and the night sky. In: ROS, Rosa M. (Org. e Ed.). 6th International Con-
ference on Teaching Astronomy. Vilanova i la Geltrú: Universitat Politècnica de
Catalunya, 2000.
CAMPOS, Marcio D’Olne. SULear vs NORTEar: representações e apropriações
do espaço entre emoção, empiria e ideologia. Documenta, VI, n. 8, Programa de
Mestrado e Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social &
(EICOS)/Cátedra UNESCO de Desenvolvimento Durável/UFRJ, Rio de Janeiro,
1999, p. 41-70. [Também disponível no endereço: http://www.sulear.com.br/tex-
to03.pdf. Acesso em: 28 mar. 2009. Vide ainda seu Projeto SULearIUM no endereço:
http://www.sulear.com.br. Acesso em: 28 mar. 2009.]
CASCUDO, Luis C. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro,
1998.
______. Adivinhas de São João. In: ______. Superstição no Brasil. Belo Horizon-
te: Editora Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1985. p. 147-156.
CIRINO FILHO, José. Comunicação particular. 2007.
______. Comunicação particular. 2010.
CLUBE, S. V. M.; NAPIER, W. M. Galactic Dark Matter and Terrestrial Periodi-
cities. Q. J. R. astr. Soc. 37: 617-642, 1996.
COLLINS, Harry; PINCH, Trevor. O Golem: o que você deveria saber sobre ciên-
cia. Trad. Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.
CREMA, Roberto. Além das disciplinas: reflexões sobre transdisciplinaridade geral.
In: WEIL, Pierre; D’AMBROSIO, Ubiratan; CREMA, Roberto. Rumo à nova trans-
disciplinaridade: sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Summus, 1993. p.
125-173.

273
Luiz Carlos Jafelice

DA COSTA, Newton; BUENO, Otávio; FRENCH, Steven. Is there a Zande Logic?


History and Philosophy of Logic 19: 41-54, 1998.
DALL’AGNOL, Darlei. Ética e Linguagem: uma introdução ao Tractatus de Witt-
genstein. 3. ed. Florianópolis: EdUFSC; São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2005.
DE LA REZA, Ramiro. O Evento do Curuçá: bólidos caem no Amazonas. In: com-
ciencia.br. O Homem no Espaço: conhecimento e incerteza. Disponível em: http://
www.comciencia.br/reportagens/espaco/espc17.htm. Acesso em: 28 mar. 2009.
DIAKURU (Américo Castro Fernandes) (Narr.); KISIBI (Durvalino Moura Fer-
nandes) (Intérpr.). Bueri Kãdiri Maririye: os ensinamentos que não se esquecem.
São Gabriel da Cachoeira: FOIRN; Santo Antônio: UNIRT, 2006. (Coleção Narra-
dores Indígenas do Rio Negro; v. 8.)
DIAMOND, Jared. Alone in a Crowded Universe. In: ______. The Rise and Fall of
the Third Chimpanzee. Londres: Vintage, 1992. Cap. 12, p. 184-195.
DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. Trad. Carlos Eugênio Marcon-
des de Moura. São Paulo: EdUSP, 2007.
ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Trad. Carlos Pessoa. Lisboa: Relógio
d’Água, 1987.
______. A Lua e a Mística Lunar. In: ______. Tratado de História das Religiões.
Trad. Fernando Tomaz e Natália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Cap. IV,
p. 127-152. 1993b.
______. En el Principio... Comportamiento Mágico-Religioso de los Paleantrópi-
dos. In: ______. Trad. Jesús Valiente Malla. Historia de las Creencias y las Ideas
Religiosas: de la Edad de Piedra a los Misterios de Eleusis. Barcelona: Paidós, 1999
– 3v. Vol. I, Cap. I, p. 26-54. 1999a. [Há recente tradução brasileira dessa obra: Histó-
ria das Crenças e das Ideias Religiosas, volume I: da idade da pedra aos mistérios de
Elêusis. Trad. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.]
______. La Revolución de Mayores Consecuencias: el descubrimiento de la agri-
cultura – mesolítico y neolítico. Idem. Vol. I, Cap. II, p. 55-87. 1999b.
ESPINA BARRIO, Angel-B. (Ed.). Conocimiento Local, Comunicación e Inter-
culturalidad. Antropología en Castilla y León e Iberoamérica, IX. Recife: Massan-
gana; Salamanca: Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla y León,
2005.
FEYERABEND, Paul. A Conquista da Abundância: uma história da abstração ver-
sus a riqueza do ser. Trad. Cecilia Prada e Marcelo Rouanet. São Leopoldo: Ed. Uni-
sinos, 2006.
______. Contra o Método. Trad. Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Ed. UNESP,
2007.

274
Abordagem Antropológica

FLICKINGER, Hans-Georg. O Ambiente Epistemológico da Educação Ambien-


tal. Educação & Realidade 19(2): 197-207, jul./dez.,1994.
FLOURISH. Upside Down Map. Disponível em: http://flourish.org/upsidedown-
map/. Acesso em: 10 mar. 2009.
FRAZER, James G. As festas dos fogos da Europa. In: ______. O Ramo de Ouro.
Edição de texto da Versão Ilustrada: Mary Douglas. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Ja-
neiro: Editora Guanabara Koogan, 1982. Parte 7: Balder, o belo, p. 214-223. 1982a.
______. A interpretação das festas dos fogos. Idem, p. 224-225. 1982b.
FRIAÇA, Amâncio C. S. A Vida no Universo. In: RICARDO, Beto; CAMPANILI,
Maura (Ed.). Almanaque Brasil Socioambiental (2008). São Paulo: Instituto So-
cioambiental, 2007. p. 30-31.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Diferentes, Desiguais e Desconectados: mapas da
interculturalidade. Trad. Luiz S. Henriques. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
GOLOMBEK, Diego; CARDINALI, Daniel; AGUILAR-ROBLERO, Raul. Meca-
nismos de Temporização em Vertebrados. In: MARQUES, Nelson; MENNA-BAR-
RETO, Luiz (Org.). Cronobiologia: princípios e aplicações. 2. ed. rev. São Paulo:
EdUSP, 1999. p. 137-161.
GOULD, Stephen J. Time’s Arrow, Time’s Cycle: myth and metaphor in the disco-
very of geological time. Londres: Penguin Books, 1990.
______. Lance de Dados: a idéia de evolução de Platão a Darwin. Trad. Sergio Mo-
raes Rego. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GUIMARÃES, Carmelinda. Antunes Filho: um renovador do teatro brasileiro.
Campinas: EdUnicamp, 1998.
HOYLE, Fred. O Universo Inteligente. Trad. Conceição Jardim e Eduardo Noguei-
ra. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
HUTCHISON, David. Educação ecológica: idéias sobre consciência ambiental.
Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 2000.
IFRAH, Georges. História Universal dos Algarismos. Trad. Alberto Muñoz e Ana
Beatriz Katinsky. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
JABLONKA, Eva; LAMB, Marion J. Evolução em Quatro Dimensões: DNA, com-
portamento e a história da vida. Trad. Claudio Angelo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
JAFELICE, Luiz Carlos54. Reconhecendo o Céu Noturno: programa no. 1 para o
planetário itinerante da UFRN. Natal: UFRN – Depto. de Física, 1998. 11p.

54 Em princípio, todas as referências das quais sou autor ou coautor estarão integralmente disponíveis,
com o tempo, em http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural.

275
Luiz Carlos Jafelice

______. Teaching astronomy from an anthropological perspective. In: ROS, Rosa


M. (Org. e Ed.). 6th International Conference on Teaching Astronomy. Vilanova
i la Geltrú: Universitat Politècnica de Catalunya, 2000.

______. Ensinando Astronomia segundo uma Perspectiva Antropológica. In:


XXVII Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira. Boletim da
Sociedade Astronômica Brasileira. São Paulo: SAB-IAG/USP, 2001. p. 60.

______. Nós e os céus: um enfoque antropológico para o ensino de astronomia.


In: VIANNA, Deise M. et al. (Ed.). VIII encontro de pesquisadores em ensino
de física. São Paulo: Sociedade Brasileira de Física, 2002. [Também disponível em:
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/viii/PDFs/CO19_1.pdf (acesso em:
06 nov. 2008).]

______. Educação holística, consciência ambiental e astronomia cultural. In: CAR-


DOSO, Walmir Thomazi (Ed.). VIII encontro brasileiro para o ensino de astro-
nomia. São Paulo: PUC/SP, 2004. (Conferência de encerramento. As Atas desse
encontro não foram publicadas.)

______. Não, às olimpíadas de astronomia. Sim, a iniciativas puramente cooperati-


vas. In: MARTIN, Vera A. F. (Ed.). XXXI reunião anual da sociedade astronômica
brasileira. Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira, 25 (1), p. 89. São Paulo:
Sociedade Astronômica Brasileira, 2005. 2005a.

______. Astronomia no 1º e 2º ciclos do ensino fundamental. Natal: UFRN,


Depto. de Física, 2005. Texto mimeografado para o Curso de Ensino Médio Mo-
dalidade Normal para Educadores de Áreas de Reforma Agrária do Estado do Rio
Grande do Norte. 65p. 2005b.

______. Educação científica, pós-modernidade e transdisciplinaridade. In: MAR-


TINS, Roberto de Andrade; SILVA, Cibelle Celestino; FERREIRA, Juliana Mes-
quita Hidalgo; MARTINS, Lílian Al-Chueyr Pereira (Ed.). Filosofia e história da
ciência no Cone Sul. Seleção de trabalhos do 5º Encontro. Campinas: Associação
de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), 2008. p. 285-293. 2008a.

______. Hermenêutica e epistemologia nos conhecimentos tradicionais e na histó-


ria da ciência. In: PASSEGGI, Maria da Conceição F. B. S. (Coord.). III Congresso
Internacional sobre Pesquisa (Auto)Biográfica. Sessão Temática. Natal, 2008.
[Também disponível em: http://127.0.0.1:4001/obras_autor.php?id=5692222
(acesso em: 12 jul. 2009).] 2008b.

______. Etnoastronomia: quantos céus existem? Ciência Sempre 12: 26-31, 2009.
Revista da FAPERN, Ano 5, abril/junho 2009. Natal: FAPERN, 2009. 2009a.

276
Abordagem Antropológica

______. Science (teaching) is not neutral. Which side do we choose to support?


Enseñanza de las Ciencias. Número Extra. VIII Congreso Internacional sobre In-
vestigación en Didáctica de las Ciencias. Barcelona, 2009, p. 3141-3145. Também
disponível em: http://ice.uab.cat/congresos2009/eprints/cd_congres/propostes_
htm/propostes/art-3141-3145.html. 2009b.
______. Etnoconhecimentos: por que incluir crianças e jovens? Educação inter-
cultural e integração intergeracional em Carnaúba dos Dantas. In: MAIA, Isaura A.
S. R.; MACEDO, Helder A. M. de (Org.). Seminário Ciência do Povo: saberes e
fazeres: práticas produtivas tradicionais. Mesa Redonda. Natal: FAPERN, 2010. No
prelo. 2010a.
______. (Coord.). Educação Intercultural Transdisciplinar e Etnoastronomia:
saberes tradicionais sobre o céu e a terra para as novas gerações. Projeto CNPq/
UFRN, 2010. http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural55 (página em construção; lan-
çamento previsto: ainda em 2010). 2010b.
______. Ethnoastronomy: a fancy subject or a non-Western epistemological bre-
akthrough? In: CORBETT, Ian F. (Ed.). Highlights of Astronomy. Vol. 15. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2010. [Proceedings of the Special Session SpS4:
Astronomy Education between Past and Future, XXVII General Assembly of the In-
ternational Astronomical Union, Rio de Janeiro, 2009.] No prelo. 2010c.
JANSEN, José Manoel et al. Cronobiologia e seus Mecanismos. In: JANSEN, José
Manoel et al. (Org.). Medicina da Noite: da cronobiologia à prática clínica. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 47-69.
KAK, Subhash C. The Astronomy of the Age of Geometric Altars. Q. J. R. astr. Soc.
36: 385-395, 1995.
______. Knowledge of Planets in the Third Millennium BC. Q. J. R. astr. Soc. 37:
709-715, 1996.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna
Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1996.
LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lucia (Org.). O Uso Ritual das
Plantas de Poder. Campinas: Mercado das Letras, 2005.
LABATE, Beatriz Caiuby et al. (Org.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salva-
dor: EDUFBA, 2008.
LACEY, Hugh. A Controvérsia sobre os Transgênicos: questões científicas e éti-
cas. Trad. Pablo Mariconda. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.
LANGDON, Jean. A Cultura Siona e a Experiência Alucinógena. In: VIDAL, Lux
(Org.). Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. 2. ed. São Paulo: Stu-
dio Nobel: FAPESP: EdUSP, 2000. p. 67-87.

55 LAPEFA é a sigla para Laboratório de Pesquisa em Ensino de Física e de Astronomia.

277
Luiz Carlos Jafelice

LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros socieda-


de afora. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.
LEITE, Marcelo. Futuros Xavantes. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, Caderno
Mais!, Seção Ciência em Dia, 21/12/03, p. 18. 2003. [Incluído em publicação re-
cente, no livro: LEITE, Marcelo. Ciência: use com cuidado. Campinas: EdUnicamp,
2008, p. 228-231.]
______. Promessas do Genoma. São Paulo: Ed. UNESP, 2007.
LOPES, Francisco Adaécio Dias. Educação Científica no Contexto Pós-Ontológi-
co: por uma concepção plural de conhecimento e educação. Dissertação (Mestrado
em Centro de Ciências Exatas e da Terra). Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. 2010. 242f. [Também disponível em: http://www.posgraduacao.ufrn.br/pp-
gecnm (nesta página, clicar em “Ensino” e em “Dissertações/Teses”).]
LOPES, Francisco Adaécio Dias; JAFELICE, Luiz Carlos. Educação Científica no
Contexto Pós-Ontológico: um novo ensino de ciências para uma nova imagem da
ciência. In: FERRACIOLI, Laércio (Coord.). XVIII Simpósio Nacional de Ensino
de Física. São Paulo: Sociedade Brasileira de Física, 2009. Disponível em: http://
www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/snef/xviii/sys/resumos/T0420-1.pdf. Acesso em:
01 abr. 2009.
MACHADO, Antonio. Proverbios y Cantares. Estrofe XXIX. [1917]. Disponível
em: http://www.geocities.com/Athens/Delphi/5205/machado.htm. Acesso em:
06 nov. 2008.
MARGULIS, Lynn; SCHWARTZ, Karlene V. Cinco Reinos: um guia ilustrado dos
filos da vida na Terra. Trad. Cecília Bueno; Colab. Lena Geise. 3. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2001.
MARQUES, Mirian D.; GOLOMBEK, Diego; MORENO, Cláudia. Adaptação
Temporal. In: MARQUES, Nelson; MENNA-BARRETO, Luiz (Org.). Cronobio-
logia: princípios e aplicações. 2. ed. rev. São Paulo: EdUSP, 1999. p. 45-84.
MARTINS, Roberto de A. O Que é Ciência, do Ponto de Vista da Epistemolo-
gia?. Cadernos de Metodologia e Técnica de Pesquisa: revista anual de metodologia
de pesquisa. n. 9, Número Especial – Questões Epistemológicas. Maringá: UEM,
1999.
MATTHEWS, Michael R. Multicultural Science Education. In: ______. Science
Teaching: the role of history and philosophy of science. New York: Routledge, 1994.
Cap. 9, p. 179-198, com notas nas páginas 230-232.
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política.
Trad. José Fernando C. Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
______. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Org. e Trad. Cristina Magro; Victor
Paredes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

278
Abordagem Antropológica

MAYR, Ernst. Biologia, Ciência Única: reflexões sobre a autonomia de uma disci-
plina científica. Trad. Marcelo Leite. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
MEDEIROS, José Adenilson de. Comunicação particular. 2009.
MÉLO, Veríssimo de. Superstições de São João. Natal: Pequenas Edições “Bando”,
1949 [republicado por Sebo Vermelho (Natal), 2002].
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Trad. Lucia P. de
Souza. 5. ed. São Paulo: TRIOM, 1999.
NEUGEBAUER, Otto. Astronomy and History: selected essays. Nova Iorque:
Springer-Verlag, 1983.
NÓBREGA, Antonio. Lunário Perpétuo: grande florilégio brasileiro de romances,
toques de rabeca e canções variadas. Direção artística: Antonio Nóbrega. Produção
executiva: Rita Mistroni e Silmara Nunes. Músicos-Brincantes: Antonio Nóbrega,
Gabriel Almeida, Eugênia Nóbrega, Antonio Bombarda, Edmilson Capeluppi, Da-
niel Allain, Mario Gaiotto, Zezinho Pitoco. Manaus: Sonopress (sob encomenda e
distribuição de Trama Promoções Artísticas e sob licença de Brincante Produções
Artísticas), 2005. 1 CD. 15 faixas. 1 livreto de encarte (20p.; integrante da caixa do
CD) contendo: apresentação do autor, letras das músicas, músicos participantes de
cada gravação, fotos, ilustrações, ficha técnica e outras informações. [Há versão desse
trabalho também em DVD, com cenas do espetáculo onde foi apresentado.]
NOVELLO, Mário. Do Big Bang ao Universo Eterno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2010.
OVERING, Joanna. O mito como história: um problema de tempo, realidade e ou-
tras questões. MANA 1(1): 107-140, 1995.
PENTEADO, Hugo. Ecoeconomia: uma nova abordagem. 2. ed. São Paulo: Lazuli,
2008.
PIÑA JAFELICE, Rosa Adriana. Comunicação particular. 1994.
PYTHON, Monty. O Sentido da Vida. Direção: Terry Jones. Animação e Sequências
Especiais: Terry Gilliam. Produção: John Goldstone. Roteiro e Intérpretes: Graham
Chapman; John Gleese; Terry Gilliam; Eric Idle; Terry Jones; Michael Palin. [S.l.]:
Celandine: Universal, 1983. 1 DVD (107 min), son., color. [Orig.: Monty Python’s
The meaning of life.] [Em especial, no que concerne a esta citação feita no apêndice
1, refiro-me à letra da música cantada no capítulo 15, A Galáxia (The Galaxy), no
trecho de 55min 46s a 58min 24s.]
RIBEIRO, Berta G. Os Índios das Águas Pretas: modo de produção e equipamento
produtivo. São Paulo: Companhia das Letras: EdUSP, 1995.
______. A Mitologia Pictórica dos Desâna. In: VIDAL, Lux (Org.). Grafismo In-
dígena: estudos de antropologia estética. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP:
EdUSP, 2000. p. 34-52.

279
Luiz Carlos Jafelice

SANGIRARDI JR. O Índio e as Plantas Alucinógenas: um estudo impressionante


sobre as drogas e seus efeitos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989.
SANTOS, José Ladislau dos. Comunicação particular. 2010.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversidade e da bio-
tecnologia. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia, 2003.
SILVA, Josias da. Comunicação particular. 2004.
______. Comunicação particular. 2007.
SOUSA, Mauricio de. Chico Bento. São Paulo: Globo, 1999. Revista Chico Bento,
n. 314, p. 24-25, jan. 1999.
SPUDIS, Paul D. The Moon. In: BEATTY, J. Kelly; PETERSEN, Carolyn Collins;
CHAIKIN, Andrew (Ed.). The new solar system. 4. ed. rev. Cambridge (United
States): Sky Publishing Corporation; Cambridge (United Kingdom): Cambridge
University Press, 1999. p. 125-140.
TANNER, Nancy Makepeace. On Becoming Human. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1981.
TAYLOR, Timothy. The Prehistory of Sex: four million years of human sexual cul-
ture. Londres: Fourth Estate, 1996.
VÁRIOS AUTORES. An Open Letter to the Scientific Community. New
Scientist, 22 May 2004. [Também disponível em: www.cosmologystatement.org.
Acesso em: 24 mar. 2009. Fiz uma tradução desse texto que uso em disciplinas de
história e filosofia da ciência, na graduação e pós-graduação. Essa tradução deverá
estar disponível em: http://www. lapefa.ufrn.br/intercultural.]
VERDET, Jean-Pierre. The Sky: order and chaos. Londres: Thames and Hudson,
1992.
VINES, Gail. Blame it on the Moon. New Scientist, 23 June 2001, 36-39.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Nota do Tradutor. In: EVANS-PRITCHARD,
E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Trad. Eduardo Viveiros de Cas-
tro. Originalmente: 1937. Edição resumida por Eva Gillies; publicada em 1976 pela
Oxford University Press. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
WENKE, Robert J. Patterns in Prehistory: humankind’s first three million years. 3.
ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 1990.
WIKIPEDIA. Earth. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Earth#Axial_
tild_and_seasons. Acesso em: 30 jan. 2009. 2009a.
______. Extinction. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Extinction_
event. Acesso em: 20 fev. 2009. 2009b.

280
Abordagem Antropológica

______. São João. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/São_João. Acesso


em: 08 mar. 2009. 2009c.
______. Reversed Map. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Reversed_
map. Acesso em: 10 mar. 2009. 2009d.
ZANETIC, João. Evolução dos Conceitos da Física: 1ª parte: alguns tópicos de
“filosofia” da ciência. Notas de Aula. São Paulo: IFUSP, 2006.
ZÉ, Tom; MEDEIROS, Elton. Tô. In: ZÉ, Tom. Estudando o Samba (Álbum, LP).
Produção: Heraldo do Monte. Arranjos: José Briamonte. Músicos: Heraldo, Edson,
Dirceu, Cláudio, Natal, Osvaldinho, Vicente Barreto, Téo da Cuíca, Branca de Neve.
Vozes: Eloá, Vera, Sidney, Roberto. Vocais: Pessoal de Santana: Santana, Osório, Vil-
ma, Carlos, Celso, Vagner, Puruca (ou Pituca). Arregimentação e Discurso: Rosário.
[S.l.]: Continental, 1976. 1 LP. [Relançado internacionalmente no formato de CD
em 1990. Em particular, a música Tô, cujo trecho foi citado no texto, também é exe-
cutada no filme Fabricando Tom Zé (dirigido por Decio Matos Jr., 2005), disponível
em DVD.]

281
Luiz Carlos Jafelice

BIBLIOGRAFIA ADICIONAL

Nesta seção, incluí referências não citadas, mas úteis ou implícitas em


alguns trechos deste capítulo. Sugiro vocês lerem todas as entradas da lista
abaixo e se esforçarem para obter as que mais lhes interessarem no momento.
A profusão de áreas e autores indicados – às vezes com posturas antagônicas
uns em relação aos outros, inclusive em relação àquilo que defendo aqui –
evidencia que, se são fontes com que tomei contato, com maior ou menor
grau de envolvimento, nem todas recomendo integralmente sem restrições.
Há casos e casos. Porém, creio ser salutar para todos o contato com uma am-
pla diversidade também de pontos de vista.
Quando comecei a fazer a seleção de referências para esta seção eu
visava compor uma lista não muito extensa. Não consegui. Meus receios eram
que o excesso na dosagem matasse os pacientes e a mistura de fontes essen-
ciais com secundárias os desnorteassem e dispersassem. Todos estes perigos
persistem na relação a seguir. Ademais, a lista permanece incompleta em mui-
tos aspectos, não só porque deixei de fora quase o mesmo tanto do que incluí,
mas porque as possibilidades são vastas demais. Quis compartilhar com os
leitores fontes habituais e outras incomuns, embora relevantes para a presen-
te proposta; mais ainda para aqueles que não tiveram formação original em
antropologia, mas gostariam de experimentar, na prática, misturas diversas
das ciências e de outros sistemas de conhecimento.
Conclusão: esta lista ficou tão longa que corre o risco de ser inoperan-
te. Mesmo assim vou mantê-la; ela pode servir, aqui e ali, para alguns leitores,
espero. Optei por misturar fontes introdutórias com outras aprofundadas,
para auxiliar diferentes tipos de interessados. Além disto, há sugestões abaixo
que são antes para oferecer alguma abundância de fontes alternativas para o
desenvolvimento de uma abordagem como a aqui proposta, do que por qual-
quer outro motivo. Essas fontes – entre outras – também têm contribuído na
construção sempre em processo de minha visão das coisas, conquanto suas
respectivas importâncias para o mesmo sejam relativas – em parte porque a
via intelectiva, predominantemente estimulada no caso das fontes de textos,
é apenas uma dentre várias outras presentes naquele processo e com frequên-
cia ela não é a mais relevante e muito menos decisiva para o mesmo.
Como aqui não há espaço para comentar as indicações a seguir, insisto
na advertência óbvia: os leitores precisam estar sempre atentos, comparar es-

282
Abordagem Antropológica

tas fontes com outras, obtidas alhures, conversar com diferentes profissionais
das áreas envolvidas, esclarecer, quando possível, a escola de pensamento que
cada autor abraça, cruzar e cotejar distintas citações a uma mesma fonte, en-
fim, não abrir mão da própria avaliação de tudo a que tiverem acesso.

A EPOPÉIA de Gilgamesh (anônimo). Trad. Carlos Daudt de Oliveira (feita a partir


da versão inglesa estabelecida por N. K. Sandars). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
A HISTÓRIA das coisas. Direção: Louis Fox. Roteiro e apresentação: Annie Leonard.
Produção: Free Range Studios; Erica Priggen. Produção executiva: Christopher
Herrera, Tides Foundation, Funders Workgroup for Sustainable Production and
Consumption. Animação: Ruben DeLuna. Edição: Braclan Murray. [S.l.]: Free
Range Studios, [2007?]. Vídeo (21min 17s), son., color. [Maiores informações em:
http://www.storyofstuff.com. Há versão brasileira, dublada em português, realizada
pela comunidade Permacultura (Orkut-BR), obtenível pela internet.]
ABDOUNUR, Oscar J. Matemática e Música: o pensamento analógico na constru-
ção de significados. São Paulo: Escrituras, 1999. (Série Ensaios Transversais.)
ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, Saberes Científicos, Saberes
da Tradição. São Paulo: Livraria da Física, 2010.
ARMSTRONG, Karen. O Islã. Trad. Anna O. de B. Barreto. Rio de Janeiro: Objeti-
va, 2001.
ARMSTRONG, Thomas. Inteligências Múltiplas na Sala de Aula. Trad. Maria
Adriana Veríssimo Veronese. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.
ASSUNÇÃO, Luiz. O Reino dos Mestres: a tradição da jurema na umbanda nordes-
tina. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
ARTE Baniwa: cestaria de arumã. Colaboradores Baniwa: André Fernando et al. Texto:
Beto Ricardo. 2. ed. rev. São Gabriel da Cachoeira: FOIRN; São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2000.
AZEVEDO, Regina Lúcia Tarquínio Albuquerque de. Concepção de Universo na
Perspectiva dos Pescadores. Monografia (Especialização em Centro de Ciências
Exatas e da Terra). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2000. 92f.
AZEVEDO, Thales de. Ciclo da Vida: ritos e ritmos. São Paulo: Ática, 1987.
BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro?: um convite à pesquisa. São Paulo: Pa-
rábola, 2001.
______. A Norma Oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Pará-
bola, 2003.
BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico: contribuição para
uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos S. Abreu. Rio de Janeiro: Con-
traponto, 1996.

283
Luiz Carlos Jafelice

BARBER, Benjamin R. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza


adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
BARROS, Edir Pina de. Os Filhos do Sol: história e cosmologia na organização
social de um Povo Karib: os Kurâ-Bakairi. São Paulo: EdUSP, 2003.
BASTIDE, Roger. O Sagrado Selvagem – e outros ensaios. Trad. Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BAYARU, Tõrãmũ (Wenceslau Sampaio Galvão); YE ÑI, Guahari (Raimundo Castro
Galvão) (Narrs.). Livro dos Antigos Desana – Guahari Diputiro Porã. São Miguel
da Cachoeira: FOIRN: Comunidade do Pato no Médio Rio Papuri: ONIMRP, 2004.
(Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro; v. 7.)
BEHE, Michael J. A Caixa Preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da
evolução. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BERLINSKI, David. Segredos do Céu: astrologia e a arte da previsão. Trad. Helena
Londres. São Paulo: Globo, 2005.
BIEDERMANN, Hans. Dicionário Ilustrado de Símbolos. Trad. Glória Paschoal
de Camargo. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1993.
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Trad. e Org. Celso Castro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
BOSI, Alfredo. Ideologia e Contraideologia: temas e variações. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2010.
BOURDIEU, Pierre. Os Usos Sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do
campo científico. Trad. Denice Barbara Catani. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.
BREARLEY, Michael. Inteligência Emocional na Sala de Aula: estratégias de
aprendizado criativo para alunos entre 11 e 18 anos de idade. Trad. Getúlio Elias
Schanoski Júnior. São Paulo: Madras, 2004.
BRESNER, Lisa. Os Dez Sóis que se Apaixonaram pelas Doze Luas. Trad. Eduar-
do Brandão. Ilustr. Frédérick Mansot. Caligr. Kiang Fei. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Trad. Leila S. Mendes. São Leopoldo: Ed.
Unisinos, 2003.
______. Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Trad.
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho (Org.). Moitará I: o simbolismo nas culturas
indígenas brasileiras. São Paulo: Paulus, 2006.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. Trad. Carmen Fischer. São Paulo: Palas
Athena, 1992 (v. 1: Mitologia primitiva); 1994 (v. 2: Mitologia oriental). [Obra em
quatro volumes.]

284
Abordagem Antropológica

______. Mitologia na Vida Moderna: ensaios selecionados de Joseph Campbell.


Trad. Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2002.
CAMPBELL, Lida; CAMPBELL, Bruce; DICKINSON, Dee Dickinson. Ensino e
Aprendizagem por Meio das Inteligências Múltiplas. Trad. Magda França Lopes.
2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.
CAMPOS HERRERO, Joaquín. Inteligência Emocional: suas capacidades mais
humanas. Trad. Francisco Maurício. São Paulo: Paulus, 2002.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. 3. ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
CARVALHO, Edgard de Assis. Enigmas da Cultura. São Paulo: Cortez, 2003.
CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Fra-
zer. Trad. Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CASTRO HENRIQUES, Miguel (Org. e Trad.). O Sopro das Vozes: textos de ín-
dios americanos. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
CAVALLI-SFORZA, Luca; CAVALLI-SFORZA, Francesco. Quem Somos? His-
tória da diversidade humana. Trad. Laura Cardellini B. de Oliveira. São Paulo: Ed.
UNESP, 2002.
CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, Povos e Línguas. Trad. Carlos Afonso
Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CAVIGNAC, Julie A. Um Mundo Encantado: memória e oralidade como patrimô-
nio imaterial. Natal, 2005. Mimeografado.
______. A Literatura de Cordel no Nordeste Brasileiro. Da história escrita ao
relato oral. Natal: Ed. UFRN, 2005.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (dir.). Dictionnaire des Symboles:
mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Realização: Ma-
rian Berlewi. Paris: Ed. Seghers; Ed. Jupiter, 1973 (v. 1: A a Che; v. 2: Che a G); 1974
(v. 3: H a Pie; v. 4: Pie a Z).
CINEASTAS indígenas: um outro olhar. Kit: 5 DVDs, son., color.; e 1 livreto Cine-
astas Indígenas: um outro olhar – Guia para Professores e Alunos (ARAUJO, Ana C. Z.
de; CARVALHO, Ernesto I. de; CARELLI, Vincent R.), com informações sobre os
povos, fontes para pesquisa e temas para discussão em aula, além de fotos, informa-
ções sobre os filmes e respectivas fichas técnicas. Cada DVD foi realizado por um dos
seguintes povos (na ordem de numeração dos DVDs e com a primeira data da respec-
tiva produção): Kuikuro (2004); Panará (2005); Huni Kuĩ (2006); Xavante (1999);
e Ashaninka (2000). Direção: Coletivo de Cinema dos respectivos povos. Produção:
Vídeo nas Aldeias em parceria com várias associações e entidades, indígenas e não in-
dígenas. Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2010. [No lançamento, este kit foi oferecido para
distribuição gratuita em 3.000 escolas do ensino médio que se comprometessem a

285
Luiz Carlos Jafelice

utilizá-lo em sala de aula. Talvez remanescentes da edição inicial, ou de alguma reedi-


ção, ainda estejam disponíveis para tal distribuição; os interessados devem contactar:
videonasaldeias@videonasaldeias.org.br. Senão, os DVDs que compõem o kit estão
à venda em grandes livrarias nacionais, com acesso inclusive pela internet, e o Guia
para Professores e Alunos está disponível no formato digital (em PDF) no endereço:
www.videonasaldeias.org.br/forum.]
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência: pesquisas de antropologia política.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
______. A Fala Sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani. Trad. Nícia
Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1990.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século
XX. Org. José Reginaldo Santos Gonçalves. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
COSTA, Maria Heloisa Fénelon. O Mundo dos Mehináku e Suas Representações
Visuais. Brasília: EdUnB, 1988.
COSTA E SILVA, Alberto da (Org.). Lendas do Índio Brasileiro. Rio de Janeiro:
Ediouro, s.d.
DASCAL, Marcelo. Compreendendo outras culturas. In: ______. Interpretação e
Compreensão. Trad. Marcia Heloisa Lima da Rocha. São Leopoldo: Ed. Unisinos,
2006. Cap. 21, p. 494-512.
DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S.; et al. O Planejamento da Pesquisa
Qualitativa: teorias e abordagens. Trad. Sandra Regina Netz. Porto Alegre: Artmed,
2006.
DE ROTA, Stanislas Klossowski. Alquimia: a arte secreta. Trad. Luso-Espanhola de
Traduções e Serviços. Madrid: Ediciones del Prado, 1996. [Distribuidor no Brasil:
Fernando Chinaglia Distribuidora, Rio de Janeiro.]
DIAKURU (Américo Castro Fernandes) (Narr.); KISIBI (Dorvalino Moura Fer-
nandes) (Intérpr.). A Mitologia Sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. Cucu-
ra do Igarapé Cucura; São Gabriel da Cachoeira: UNIRT/FOIRN, 1996. (Coleção
Narradores Indígenas do Rio Negro; v. 2.)
DUPAS, Gilberto. O Mito do Progresso; ou progresso como ideologia. São Paulo:
Ed. UNESP, 2006.
DURAND, Gilbert As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à
arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Multidisciplinaridades e Heurística. In: BARBOSA, Joaquim G. (Coord.)
Multirreferencialidade nas Ciências e na Educação. São Carlos: Ed. UFSCar,
1998. p. 85-97.
______. Campos do Imaginário. Seleção de textos: Danièle Chauvin. Trad. Maria
João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.

286
Abordagem Antropológica

______. Ciencia del Hombre y Tradición: el nuevo espíritu antropológico. Trad.


Agustín López e María Tabuyo (alhures grafado María Tobajas). Barcelona: Paidós,
1999.
ELIADE, Mircea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. Trad. Beatriz
Perrone-Moisés e Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ENCONTRO com Milton Santos ou: o mundo global visto do lado de cá. Direção:
Silvio Tendler. Produção: CALIBAN Produções Cinematográficas. Roteiro e Texto:
Cláudio Bojunga; Silvio Tendler; André Alvarenga; Miguel Lindenberg; Ecatherina
Brasileiro; Daniel Tendler. Consultoria: Ana Clara Torres Ribeiro; Carlos Walter
Porto-Gonçalves; Manoel Lemes da Silva Neto. Narrações: Beth Goulart; Fernanda
Montenegro; Matheus Nachtergaele; Milton Gonçalves; Osmar Prado. Rio de
Janeiro: CALIBAN, 2006. 1 DVD (1h 29min 18 s), son., color. [Prêmio de Melhor
Filme pelo Júri Popular do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2006. Este
documentário foi realizado com base em entrevista com o geógrafo e intelectual
brasileiro Milton Santos, feita poucos meses antes de seu falecimento. A título de
elucidação temática, a capa do DVD traz ainda a epígrafe: Uma proposta libertária
para estes dias tumultuados. Maiores informações sobre o entrevistado, o diretor
e o filme podem ser obtidas, e.g., a partir do sítio: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Encontro_com_Milton_Santos.]

EQUIPO DE ESPECIALISTAS AGRÓNOMOS DVE. El Calendario Lunar para


el Agricultor. Barcelona: Editorial De Vecchi, 1998.

ESPINA BARRIO, Angel-B. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Massanga-


na, 2005.
EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer. Trad. Ana M. Goldberger Coelho. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2002.
FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
______. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo:
EdUSP, 2001.
FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo Movimento. Trad. Daisy A. C. Souza.
São Paulo: Summus, 1977.
FERNANDES, Clóves Mariano et al. Ngiã Nüna Tadaugü i Torü Naãne [Vamos
cuidar da nossa terra]. Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües. Org.
Deborah Lima. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006.
FERNANDES, Jorgeana Helena Bastos et al. Vida de Colono: como viviam e traba-
lhavam os antigos colonos da cafeicultura trajanense. Rio de Janeiro: Instituto Tra-
balho e Cidadania, 2008. [Em associação a este projeto, vide também o livro abaixo
citado: Linhares (2008).]

287
Luiz Carlos Jafelice

FERNANDES, Marcionila; GUERRA, Lemuel (Org.). Contra-Discurso do De-


senvolvimento Sustentável. 2. ed. rev. Belém: Associação de Universidades Amazô-
nicas, Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, 2006.
FERRIGNO, José Carlos. Co-Educação entre Gerações. Petrópolis: Vozes; São
Paulo: SESC (SP), 2003.
FILIPPONE, Maria A. et al. A Scuola di Luna. Cesena: Macro Edizioni, 1998.
FISCHMAN, Fernando; HARTMANN, Luciana (Org.). Donos da Palavra: auto-
ria, performance e experiência em narrativas orais na América do Sul. Santa Maria:
Ed. UFSM, 2007.
FLICK, Uwe. Uma Introdução à Pesquisa Qualitativa. Trad. Sandra Netz. 2. ed.
Porto Alegre: Bookman, 2004.
FLÓRIA, Cristina; FERNANDES, Ricardo M. (Org.). Tradição e Resistência: en-
contro de povos indígenas. São Paulo: SESC (SP), 2008. [Edição bilíngue: português
/inglês. Acompanha 1 mapa das terras indígenas no Brasil e 1 DVD com imagens
registradas por cinegrafistas indígenas.]
FRANCHETTO, Bruna; LEITE, Yonne. Origens da Linguagem. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
FRANZ, Marie-Louise von. Alquimia: introdução ao simbolismo e à psicologia.
Trad. Álvaro Cabral. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
FRAZER, James G. Balder the Beautiful: the fire-festivals of europe and the doctri-
ne of the external soul. Londres: MacMillan; Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1966.
2 volumes.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 2000.
FUNARI, Pedro P.; NOELLI, Francisco S. Pré-História do Brasil. São Paulo: Con-
texto, 2002.
GARCÉS, Claudia L. L. (Org.). Proteção aos Conhecimentos dos Povos Indíge-
nas e das Sociedades Tradicionais da Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio
Goeldi, 2007.
GASPAR, Madu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
______. A Arte Rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
______. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Trad. Vera
Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. Obras e Vidas: o antropólogo como autor. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Ja-
neiro: Ed. UFRJ, 2005.

288
Abordagem Antropológica

GHIRALDELLI JR., Paulo. Filosofia da Educação e Ensino: perspectivas neoprag-


máticas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.
______. Didática e Teorias Educacionais. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
GLASERSFELD, Ernest von. Reconstructing the Concept of Knowledge. Archi-
ves of Psychologie 53: 91-101, 1985.
______. Distinguishing the Observer: an attempt at interpreting Maturana. Dis-
ponível em: http://www.oikos.org/vonobserv.htm. Acesso em: 25 jan. 2010.
______. The Incommensurability of Scientific and Poetic Knowledge. Tradução
expandida da Conferência proferida no International Congress on Science, Mysti-
cism, Poetry, and Consciousness. Lisboa: Instituto Piaget, abril de 1994. Disponí-
vel em: http://www.oikos.org/vGknowl.htm. Acesso em: 25 jan. 2010.
GONÇALVES, Marco Antonio. O Mundo Inacabado: ação e criação em uma cos-
mologia amazônica: etnografia pirahã. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.
GOULD, Stephen J. Pervasive Influence. In: ______. Ontogeny and Phylogeny.
Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1977. Cap. 5, p. 115-
166.
______. Ever since Darwin: reflections in natural history. Nova Iorque: W. W.
Norton & Company, 1977. [Há edição em português (Brasil): Darwin e os grandes
enigmas da vida. Ed. Martins Fontes.]
______. The Panda’s Thumb: more reflections in natural history. Nova Iorque:
W. W. Norton & Company, 1980. [Idem: O polegar do panda. Ed. WMF Martins
Fontes.]
______. Hen’s Teeth and Horse’s Toes: further reflections in natural history. Nova
Iorque: W. W. Norton & Company, 1983. [Idem: Os dentes da galinha. Ed. Paz e
Terra.]
______. O Milênio em Questão: um guia racionalista para uma contagem precisa-
mente arbitrária. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GRUBER, Jussara G. (Org.). O Livro das Árvores. Benjamin Constant: Organiza-
ção Geral dos Professores Ticuna Bilíngües, 1997.
GUGLIELMO, Antonio Roberto. A Pré-História: uma abordagem ecológica. São
Paulo: Brasiliense, 1991.
HADDAD, Sérgio (Org.). Banco Mundial, OMC e FMI: o impacto nas políticas
educacionais. São Paulo: Cortez, 2008.
HALLPIKE, Christopher R. Fundamentos del Pensamiento Primitivo. Trad. Fe-
derico Patán. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

289
Luiz Carlos Jafelice

HERMANN, Nadja. Hermenêutica e Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.


HISTÓRIAS Tuyuka de rir e de assustar: histórias contadas por pais e crianças da
AEITU. Org. e Trad. João Bosco Azevedo Resende Tuyuka e Flora Dias Cabalzar.
São Paulo: Instituto Socioambiental; São Miguel da Cachoeira: FOIRN: Associação
Escola Indígena Utapinopona Tuyuka, 2004.
I Ching: o livro das mutações. Trad. Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa
Pinto. São Paulo: Pensamento, 1987. [Da tradução original para o alemão pelo sinó-
logo Richard Wilhelm, em 1956.]
I Ching: edição completa. Trad. Cássia Maria Nasser. São Paulo: Martins Fontes,
2007. [Da tradução original para o inglês pelo mestre taoísta Alfred Huang, em
1998.]
ILHA das flores. Argumento, roteiro e direção: Jorge Furtado. Curta metragem. Por-
to Alegre: Casa de Cinema, 1986. Vídeo (13 min 10s), son., color.
ÍNDIOS no Brasil. Direção: Vincent Carelli. Roteiro: Henri Gervaiseau, Tutu Nunes
e Vincent Carelli. Produção: Vídeo nas Aldeias. Apresentação e Entrevistas: Ailton
Krenak. [S.l.]: TV Escola, 2000. 2 DVDs (183 min), son., color.
ITANI, Alice. Festas e Calendários. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.
JAFELICE, Luiz Carlos et al. Arqueoastronomia no Nordeste do Brasil, Represen-
tação Simbólica e Implicações Cognitivas. In: XXX Reunião Anual da Sociedade
Astronômica Brasileira, 2004, São Pedro, SP. Boletim da Sociedade Astronômica
Brasileira. São Paulo: SAB-IAG/USP, 2004. v. 24, n. 1, 80.
JECUPÉ, Kaka Werá. A Terra dos Mil Povos: história indígena brasileira contada
por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998. (Série Educação para a Paz.)
______. Tupã Tenondé: a criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a
tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001.
JUNG, Carl G. O Eu e o Inconsciente. Trad. Dora Ferreira da Silva. 12. ed. Petró-
polis: Vozes, 1987.
______. Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu. Trad. Elva Bornemann
Abramowitz. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
______. O Desenvolvimento da Personalidade. Trad. Frei Valdemar do Amaral.
São Paulo: Círculo do Livro, 1996.
______. Sincronicidade: um princípio de conexões acausais. Trad. Pe. Dom Ma-
teus Ramalho Rocha. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
KANÁTYO; PONIOHOM; PATAXÓ, Jassanã. Cada Dia é Uma História. Ilustr.
crianças Pataxó. Brasília: MEC; SEF, 2001.

290
Abordagem Antropológica

KITHÃULU, René. Irakisu: o menino criador. Ilustr. do autor e das crianças Nam-
bikwara. São Paulo: Peirópolis, 2002. (Coleção memórias ancestrais: povo Nambi-
kwara.)
KLEIN, Richard G.; EDGAR, Blake. O Despertar da Cultura: a polêmica teoria
sobre a origem da criatividade humana. Trad. Ana L. V. Andrade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005.
KOSS, Monika von. Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna
dança das polaridades. São Paulo: Escrituras, 2000.
LACEY, Hugh. Can the threads of fact and value be disentangled? In: MARTINS,
Roberto de Andrade et al. (Ed.). Filosofia e história da ciência no Cone Sul. Se-
leção de trabalhos do 5º Encontro. Campinas: Associação de Filosofia e História da
Ciência do Cone Sul (AFHIC), 2008. p. 5-16. 2008.
______. Valores e Atividade Científica 1. Trad. Marcos B. de Oliveira, Eduardo
S. O. Barra, Carlos E. O. Miranda. 2. ed. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae
Studia; Editora 34, 2008.
LAMA, Dalai. Para Além dos Dogmas. Trad. Armando Pereira da Silva. Lisboa: Ins-
tituto Piaget, 1998.
______. Transformando a Mente: ensinamentos sobre como gerar compaixão.
Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. O Universo em um Átomo: o encontro da ciência com a espiritualidade.
Trad. Vera de Paula Assis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
LANGDON, E. Jean Matteson (Org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas.
Florianópolis: EdUFSC, 1996.
LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. 12. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999.
LEAL, Gláucia (Ed.). Mente e Cérebro. Edição especial no. 13: anatomia do sono.
São Paulo: Ediouro; Duetto, s/d. [A edição envolve artigos sobre sono e vigília. Três
deles tratam mais diretamente de conteúdos cronobiológicos: GRITTI, Ivana, em
Mecanismos do sono, p. 6-15; MORENO, Claudia R. C., FISCHER, Frida M. e RO-
TENBERG, Lúcia, em Sociedade 24 horas, p. 16-23; e LOUZADA, Fernando M., em
Atrasados e sonolentos, p. 46-53. Maiores informações: www.mentecerebro.com.br.]
LEFF, Enrique. Ecologia, Capital e Cultura: racionalidade ambiental, democracia
participativa e desenvolvimento sustentável. Trad. Jorge Esteves da Silva. Blumenau:
Ed. FURB, 2000.
LEGAN, Lucia. A Escola Sustentável: eco-alfabetizando pelo ambiente. 2. ed. rev.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Pirenópolis, GO: Ecocentro
IPEC, 2007.

291
Luiz Carlos Jafelice

LENT, Roberto. Cem Bilhões de Neurônios: conceitos fundamentais de neuroci-


ência. São Paulo: Atheneu, 2005.
LEROI-GOURHAN, André. As Religiões da Pré-História. Trad. Maria Inês de
Franca Sousa Ferro. Lisboa: Edições 70, 1998.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campi-
nas: Papirus, 1989.
______. Mito e Significado. Trad. António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70,
2000.
______. Mitológicas. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify,
2004 (v. 1: O cru e o cozido; v. 2: Do mel às cinzas); 2006 (v. 3: A origem dos modos
à mesa). [Obra em quatro volumes.]
LIMA, André; BENSUSAN, Nurit (Org.). Quem Cala Consente?: subsídios para a
proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003.
(Série documentos do ISA; v. 8.)
LIMA, Tânia Stolze. Um Peixe Olhou para Mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São
Paulo: Ed. UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NuTI, 2005.
LINHARES, Elizabeth Ferreira (Coord.). Saberes do Cotidiano: uma experiên-
cia de pesquisa, ensino e registro patrimonial. Rio de Janeiro: Instituto Trabalho e
Cidadania, 2008. [Em associação a este projeto, vide também o livro acima citado:
Fernandes (2008).]
LUCENA, Neilton S. F. et al. O Céu na Tradição Oral Indígena no Rio Grande do
Norte. In: XXX Reunião Anual da Sociedade Astronômica Brasileira, 2004, São
Pedro, SP. Boletim da Sociedade Astronômica Brasileira. São Paulo: SAB-IAG/USP,
2004. v. 24, n. 1, 81.
LURIA, A. R.; VYGOTSKY, L. S. Ape, Primitive Man, and Child: essays in the
history of behavior. Hertfordshire: Harvester Wheatsheaf, 1992.
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de (Org.). Ritmos, Sons, Gostos e Tons do
Patrimônio Imaterial de Carnaúba dos Dantas. Caicó: Netograf, 2005.
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Patrimônio Arqueológico em Carnaú-
ba dos Dantas: pesquisas realizadas entre 1924 e 2005. Mossoró: Fundação Vingt-
Un Rosado, 2009.
MACIEL, Alba Costa; CARDOSO, Neuseli (Org.). Cura, Sabor e Magia nos Quin-
tais da Ilha Grande. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
MAFFESOLI, Michel. Mediações Simbólicas: a imagem como vínculo social. In:
MARTINS, Francisco M.; SILVA, Juremir M. (Org.). Para Navegar no Século
XXI: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina; Edipucrs,
2003. p. 37-48.

292
Abordagem Antropológica

______. Elogio da Razão Sensível. Trad. Albert C. M. Stuckenbruck. Petrópolis:


Vozes, 1998.
MAIA, Moisés (Akîto); MAIA, Tiago (Ki’mâro) (Narrs.). Ĩsã Yẽkisimia Masîke’:
o conhecimento dos nossos antepassados: uma narrativa Oyé. Colab. Manuel Maia
(Akîto), Guilherme Maia (Doê), Laureano Maia (Akîto). Intérpr. Arlindo Maia
(Ye’pârã). Iauaretê: COIDI; São Miguel da Cachoeira: FOIRN, 2004. (Coleção Nar-
radores Indígenas do Rio Negro; v. 6.)
MALDONADO, Simone Carneiro. Mestres & Mares: espaço e indivisão na pesca
marítima. São Paulo: Annablume, 1993.
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Trad. Maria Georgina Segu-
rado. Lisboa: Edições 70, 1988.
MARQUES, Mirian D. et al. Ritmos da Vida. Ciência Hoje 58 (10): 42-49, 1989.
MARSHALL, Peter H. A Astrologia no Mundo: uma visão histórica para entender
melhor a personalidade humana. Trad. Angela Machado. Rio de Janeiro: Nova Era,
2006.
MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. 3. ed. Recife: EdUFPE,
1999.
MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornelia; NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). O
Imaginário e o Poético nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2005.
MARTINS, Roberto de A. A Situação Epistemológica da Epistemologia. Revista
de Ciências Humanas, v. 3, n. 5, p. 85-110, 1984.
______. O Papel dos Valores na Filosofia da Ciência. Pré-impresso, 2001.
______. Intrinsic Values in Science. Pré-impresso, 2001.
______. La Naturaleza de la Pseudociência: algunas consideraciones sobre el es-
túdio de fenómenos inexistentes. Pré-impresso, 2001.
______. A Crítica de Hegel à Filosofia da Índia. In: TINÔCO, Carlos Alberto. As
Upanishads do Yoga. São Paulo: Madras, 2005. p. 209-259.
MATHIAS, Fernando; DE NOVION, Henry (Org.). As Encruzilhadas das Mo-
dernidades: debates sobre biodiversidade, tecnociência e cultura. São Paulo: Insti-
tuto Socioambiental, 2006. (Série documentos do ISA; v. 9.)
MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade. Org. C. Magro; M. Gracia-
no; N. Vaz. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: as
bases biológicas da compreensão humana. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin.
São Paulo: Palas Athena, 2001.

293
Luiz Carlos Jafelice

MATURANA, Humberto; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar: funda-


mentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. Trad. Humberto Ma-
riotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MILLER, Francisca de S. Pescando e Coletando sob Nossos Astros-Guias. In: MAIA,
Isaura A. S. R.; MACEDO, Helder A. M. de (Org.). Seminário Ciência do Povo:
saberes e fazeres: práticas produtivas tradicionais. Mesa Redonda. Natal: FAPERN,
2010. No prelo.
MINDLIN, Betty. O Primeiro Homem e Outros Mitos dos Índios Brasileiros.
Ilustr. Luana Geiger. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
MINDLIN, Betty e Narradores Suruí. Vozes da Origem: estórias sem escrita: narra-
tivas dos índios Suruí de Rondônia. São Paulo: Iamá; São Paulo: Ática, 1996.
MIRANDA, Danilo S. de (Org.). Memória e Cultura: a importância da memória na
formação cultural humana. São Paulo: SESC (SP), 2007.
MITHEN, Steven. A Pré-História da Mente: uma busca das origens da arte, da reli-
gião e da ciência. Trad. Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. São Paulo: Ed. UNESP,
2002.
MONGELLI, Lênia M. (Coord.). Trivium e Quadrivium: as artes liberais na idade
média. Cotia, SP: Íbis, 1999.
MONTAGNER, Delvair. A Morada das Almas: representações das doenças e das
terapêuticas entre os Marúbo. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1996.
MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Trad. Fernando de Castro Ferro. São Paulo:
Círculo do Livro, 1984.
______. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Trad. Catarina Ele-
onora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.
______. Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da universidade e
do ensino fundamental. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Natal: Editora da UFRN,
2000.
MORIN, E.; CIURANA, E.-R.; MOTTA, R.D. Educar na Era Planetária: o pensa-
mento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. Trad.
Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2003.
MUNDURUKU, Daniel. Histórias de Índio. Ilustr. Laurabeatriz. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1996.
______. Coisas de Índio. São Paulo: Callis, 2000.
ÑAHURI (Miguel Azevedo); KUMARÕ (Antenor Nascimento Azevedo) (Narrs.).
Dahsea Hausirõ Porã ukũshe wiophesase merã bueri turi: mitologia sagrada dos
Tukano Hausirõ Porã. Org., apres. e rev. Aloisio Cabalzar. São José I: UNIRT: São
Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 2003. (Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro;
v. 5.)

294
Abordagem Antropológica

NARRATIVAS tradicionais Sakurabiat – Sakurabiat mayãp ebõ. Narr. Elias Pasaká


Sakyrabiar, Mercedes Guaratira Sakyrabiar, Pedro Artur Sakyrabiar e Vicência Fer-
reira Sakyrabiar. Trad. Elias Pasaká Sakyrabiar, Manoel Ferreira Sakyrabiar, Moacir
Sakyrabiar, Olimpio Ferreira Sakyrabiar, Pedro Artur Sakyrabiar e Rosalina Guaratira
Sakyrabiar. Org. Ana Vilacy Galucio. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006.
[Edição bilíngue: português/sakurabiat. Acompanha 1 CD.]
NEVES, Walter A. Antropologia Ecológica: um olhar materialista sobre as socieda-
des humanas. São Paulo: Cortez, 1996.
NICOLESCU, Basarab. Transdisciplinarity: Past, Present and Future. Conferên-
cia Internacional de Transdisciplinaridade. Atas. Vitória: 2005. Pré-impresso. 40p.
______. Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso.
In: COLL, Agustí N. et al. (Eds.) Educação e Transdisciplinaridade II. São Paulo:
TRIOM, 2002. p. 45-70.
OLIVEIRA, Adélia E. de; HAMÚ, Denise (Org.). Ciência Kayapó: alternativas
contra a destruição. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1992. [Edição bilíngue:
português/inglês.]
O POVO brasileiro. Idealização e Direção: Isa G. Ferraz. Roteiro: Isa G. Ferraz e Mar-
cos P. A. Risério. Produção executiva: Zita Carvalhosa. Pesquisa de arquivo: Stella
Grisotti (Coord.). Narração: Matheus Nachtergaele. São Paulo: Versátil Home Ví-
deo: Paulus, 2000. 2 DVDs (260 min), son., color. [Baseado no livro homônimo de
Darcy Ribeiro.]
ORGANIZAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS DO ACRE. Shenipabu
Miyui: história dos antigos. Ilustr. Kaxinawá (vários). 2. ed. Belo Horizonte: EdU-
FMG, 2000.
O’SULLIVAN, Edmund. Aprendizagem Transformadora: uma visão educacional
para o século XXI. Trad. Dinah A. Azevedo. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire,
2004.
OVERING, Joanna. Elogio do Cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma
comunidade amazônica. MANA 5(1): 81-107, 1999.
PÃRÕKUMU, Umusĩ (Firmiano Arantes Lana) (Narr.); KẼHÍRI, Tõrãmũ (Luiz Go-
mes Lana) (Intérpr.). Antes o Mundo Não Existia: mitologia dos antigos Desana-
Kẽhíripõrã. Desenhos Luiz e Feliciano Lana. 2. ed. São João Batista do Rio Tiquié:
UNIRT; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 1995. (Coleção Narradores Indígenas
do Rio Negro; v. 1.)
PEIRANO, Mariza. A Teoria Vivida: e outros ensaios de antropologia. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 2006.
PENTEADO, Hugo. Entrevista da Semana: “o meio ambiente ainda não se tornou
um assunto indispensável na mídia”. Entrevistador: Eduardo Neco. Entrevista para
Portal Imprensa. Disponível em: http://portalimprensa.com.br/portal/entrevista_
da_semana/2009/01/13/imprensa25387.shtml. Publicado: 13/01/2009. Acesso
em: 31 mar. 2009.

295
Luiz Carlos Jafelice

PERALTA, Cleusa Helena Guaita. Transdisciplinaridade e Confluências em Artes,


Filosofia e Educação Básica: da subjetividade criadora à criação das realidades. In:
CORRÊA, Ayrton Dutra (Org.). Ensino de Artes: múltiplos olhares. Ijuí: Ed. Uni-
juí, 2004. p. 275-318.
PEREIRA, Edithe. Arte Rupestre na Amazônia – Pará. Belém: Museu Paraense
Emílio Goeldi; São Paulo: Ed. UNESP, 2003.
PIAGET, Jean; GARCIA, Rolando. Psicogénese e História das Ciências. Trad. Ma-
ria Fernanda de Moura Rebelo Jesuíno (a partir da edição francesa Psychogenèse et
Histoire des Sciences, publicada por Flammarion, Paris, 1983). Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1987.
PORTOCARRERO, Vera (Org.). Filosofia, História e Sociologia das Ciências:
abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994.
PÓVOAS, Ruy do Carmo. Da Porteira para Fora: mundo de preto em terra de bran-
co. Ihéus: Editus, 2007.
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: EdUnB, 1992.
______. “A Couve-Flor e a Ostra”: reflexões sobre o Encontro de Etnomusicologia
realizado na UFMG. Ciência Hoje 29 (174): 54-57, 2001. [Incluído no livro: TUG-
NY, Rosângela P. de; QUEIROZ, Ruben C. de (Org.). Músicas Africanas e Indígenas
no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 333-340. Acompanham 2 CDs.]
______. O Brasil antes dos Brasileiros: a pré-história de nosso país. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 2006.
QUEIROZ, Marcos S. Saúde e Doença: um enfoque antropológico. Bauru: EDUSC,
2003.
RANDOM, M. O Pensamento Transdisciplinar e o Real. Trad. Lucia Pereira de
Souza. São Paulo: TRIOM, 2000.
REIS, José Alberione dos. Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do
Planalto Meridional. Caxias do Sul: EDUCS, 2002.
REVISTA USP. São Paulo: USP, CCS, N. 1 (mar./mai. 1989); Trimestral N. 22
(1994). Dossiê Magia, N. 31 (setembro/novembro 1996).
______. Dossiê Surgimento do Homem na América, N. 34 (junho/agosto
1997).
______. Arqueologia Brasileira I, N. 44 (dezembro/fevereiro 1999-2000).
______. Arqueologia Brasileira II, N. 44 (dezembro/fevereiro 1999-2000).
RIBEIRO, Berta G. O Índio na História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Global, 1997.
RIBEIRO, Loredana. As Figurações de “Corpos Celestes” do Norte de Minas:
manifestação da “tradição astronômica”? In: PROUS, André; RIBEIRO, Loredana

296
Abordagem Antropológica

(Org.). Arqueologia do Alto Médio São Francisco. Arquivos do Museu de História


Natural. Vols. XVII/XVIII. Tomo I: Região de Montalvânia. Belo Horizonte: Arq.
Mus. Hist. Nat. UFMG, 1996/7. p. 495-523.
RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Org.). Povos Indígenas no Brasil 2001/2005.
São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. [Traz abundantes informações através de
depoimentos de líderes indígenas, artigos sobre legislação, política indígena, educa-
ção indígena, terras indígenas etc., com quadros e tabelas e farta ilustração com ma-
pas e fotos.]
RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Ed.). Almanaque Brasil Socioambiental
(2008). São Paulo: Instituto Socioambiental, 2007.
RINPOCHE, Sogyal. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. Trad. Luiz Carlos
Lisboa. São Paulo: Talento: Palas Athena, 1999.
RIOS, Kênia Sousa. O Tempo por Escrito: sobre lunários e almanaques. In: DE
CARVALHO, Gilmar (Org.) Bonito pra Chover: ensaios sobre a cultura cearense.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. p. 79-89.
RURI’O, Lucas; DE BIASE, Helena S. Daró Idzô’Uhu Watsu’u – A História da Al-
deia Abelhinha. São Paulo: Master Book, 2000.
SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Trad. Sérgio Tadeu de Niemayer La-
marão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 4. ed.
São Paulo: Graal, 1989.
______. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. São Paulo: Cortez,
2004.
______. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Vol.
1: Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradig-
mática. São Paulo: Cortez, 2005.
______. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emanci-
patória da universidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Coleção questões de nossa
época; v. 120.)
______. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias
do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS FILHO, José C. Universidade, Modernidade e Pós-Modernidade. In: SAN-
TOS FILHO, José C.; MORAES, Silvia E. (Org.). Escola e Universidade na Pós-
Modernidade. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2000. p. 15-60.
SANTOS, Milton. O País Distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. Organi-
zação, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro; ensaio de Carlos Walter Porto
Gonçalves. São Paulo: Publifolha, 2002.

297
Luiz Carlos Jafelice

SAHTOURIS, Elisabet. A Dança da Terra: sistemas vivos em evolução: uma nova


visão da biologia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos,
1998.
SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL. Edição especial no. 10. Arqueologia: cultura
e mistérios dos povos antigos. Ed. Laura Knapp. São Paulo: Duetto Editorial, s/d.
(Maiores informações em: http://www.sciam.com.br.)
______. Edição especial no. 17. Evolução: como nos tornamos humanos: a evolu-
ção da inteligência. Ed. Ana Claudia Ferrari. São Paulo: Duetto Editorial, s/d. (Maio-
res informações em: http://www.sciam.com.br.)
SCHOR, Juliet B. Nascidos para Comprar: uma leitura essencial para orientarmos
nossas crianças na era do consumismo. Trad. Eloisa Helena de Souza Cabral. São
Paulo: Gente, 2009.
SELLIER, Marie. A África, Meu Pequeno Chaka... Ilustr. Marion Lesage. Trad.
Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2006.
SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em Primeiro Lugar: a ética do
desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Trad. Bernardo Ajzemberg,
Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC,
1999.
SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e Multiculturalismo. Ijuí: Ed. Unijuí,
2003.
SILVA, Francisco Lucas da. A Natureza me Disse. Organização: Maria da Concei-
ção de Almeida e Paula Vanina Cencig. Natal: Flecha do Tempo, 2007.
SILVESTRIN, Ricardo. Pequenas Observações sobre a Vida em Outros Planetas.
Ilustr. Mariana Massarani. São Paulo: Salamandra, 2004.
SNOW, C. P. As Duas Culturas e uma Segunda Leitura: uma versão ampliada das
Duas Culturas e a Revolução Científica. Trad. Geraldo Gerson de Souza e Renato de
Azevedo Rezende Neto. São Paulo: EdUSP, 1995.
SOUSA FILHO, Alípio. Por uma Teoria Construcionista Crítica. Bagoas: estudos
gays - gêneros e sexualidades 1(1): 27-59, 2007. [Também disponível em: http://www.
cchla.ufrn.br/bagoas/v01n01art02_sfilho.pdf (acesso em: 28 jul. 2010).]
STADTLER, Hulda H. C. A Antropologia dos Fenômenos Numinosos. Maceió:
EDUFAL, 2000.
TENÓRIO, Maria Cristina (Org.). Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ, 1999.
TIGNANELLI, Horacio L. Astronomía en Liliput: talleres de introducción a las
ciencias del espacio. Buenos Aires: Colihue, 1997.

298
Abordagem Antropológica

______. Sobre o Ensino da Astronomia no Ensino Fundamental. In: WEISS-


MANN, Hilda (Org.). Didática das Ciências Naturais: contribuições e reflexões.
Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 57-89.
TRAGTENBERG, Maurício. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. 3. ed. São
Paulo: Ed. UNESP, 2004. (Coleção Maurício Tragtenberg; v. 1.)
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Trad. Paulo
G. H. da Rocha Pinto (Trad. capítulos I, III e IV e Rev. Téc. Arno Vogel). Niterói: Ed.
UFF, 2005.
VARELA, F. J., THOMPSON, E., ROSCH, E. A Mente Incorporada: ciências cog-
nitivas e experiência humana. Trad. Maria Rita Secco Hofmeister. Porto Alegre: Art-
med, 2003.
VELHICES: reflexões contemporâneas. São Paulo: SESC (SP): PUC (SP), 2006.
VIDAL, Lux (Org.). Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. 2. ed. São
Paulo: Studio Nobel: FAPESP: EdUSP, 2000.
VILLAS BOAS, Orlando; VILLAS BOAS, Cláudio. Xingu: os índios, seus mitos.
São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
WALKER, Christopher (Ed.). Astronomy before the Telescope. Londres: British
Museum Press, 1996.
WALLACE, Robert A. Sociobiologia: o fator genético. Trad. Aydano Arruda. São
Paulo: IBRASA, 1985.
WAXEMBERG, Jorge. Da Mística e dos Estados de Consciência. Trad. Equipe da
ECE. 3. ed. São Paulo: Editora Cultura Espiritual (ECE), 1980.
YUS, Rafael. Educação Integral: uma educação holística para o século XXI. Trad.
Daisy Vaz de Moraes. Porto Alegre: Artmed, 2002.

299
APÊNDICES
Abordagem Antropológica

Apêndice 1

Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3


(Antropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultura)
1.1 Específicos

Na subseção 2.3 desenvolvo um quadro importante para o entendi-


mento de uma das ideias básicas que apoiam a abordagem proposta neste
capítulo. Essa ideia conjuga interpretações das ciências humanas e das ciências
naturais. Uma tal visão demanda informações e explanações com as quais as
pessoas não costumam estar familiarizadas. Tentando contornar, em parte,
essas lacunas, redigi uma primeira versão deste capítulo onde aquela subse-
ção estava repleta de notas explicativas de rodapé. Logo esse expediente se
revelou inviável. Passou a ser comum parágrafo – mesmo curto – contendo
de cinco a seis notas de rodapé! A esperança de didatismo estava se esvaindo.
Oxalá a criação deste apêndice56 resolva esse encaminhamento! Aqui haverá
parágrafos com mais de uma nota de rodapé, porém, além de não serem tão
frequentes, não é tão grave, pois este apêndice tem formatação necessaria-
mente mais técnica do que o corpo do capítulo como um todo, para poder
dar conta de certos embasamentos ou inspirações utilizados. O que está aqui
exposto deve, em princípio, suprir os principais ingredientes para os leitores
acompanharem as conjecturas desenvolvidas naquela subseção. Se ainda fal-
tarem informações, os interessados as complementarão a partir das referên-
cias citadas ou de outras fontes que encontrarem.
É importante se ter claro, contudo, que os fundamentos e pressupostos
apresentados neste apêndice não se referem à abordagem proposta no capítulo
como um todo – embora em parte também sim, é claro –, mas essencialmente
aos conteúdos da subseção 2.3. Assim, todas as trocas, suportes e estímulos
oriundos das artes e da corporeidade, inerentes à abordagem, estão ausentes
deste apêndice. Merecem menção as ausências do uso de músicas autócto-
nes diversas, representações pictográficas mandálicas, corporais e outras de
várias culturas e a notável proposta de Rudolf Laban para a chamada arte do

56 Olhando-o retrospectivamente, percebo que talvez ele possa ser entendido como um esclarecimento,
estendido e aprofundado, do que argumento no trabalho Jafelice (2002, p. 1), de que a psicogênese
filogenética de nossas principais concepções sobre regularidades espaço-temporais ou relações entre
fenômenos terrestres e celestes se deu enquanto nossos ancestrais estavam cocriando a espécie homo
sapiens. Só que aqui lucubro bem além.

303
Luiz Carlos Jafelice

movimento (LABAN, 1978; a referência deste livro está na seção Sugestões de


leituras), entre outras práticas e técnicas que tive a oportunidade de praticar
e aplicar e que estão naturalmente incorporadas à implementação da refe-
rida abordagem. São apoios centrais para estimular o autoconhecimento, a
expressão de afetos e sentimentos, a criatividade e a intuição, a sensibilidade
e a percepção, outros estados de consciência, a integração das relações intra
e intersubjetivas etc. Com isto esclarecido, retomemos, então, o foco deste
apêndice.
Naquela subseção entrelaço, como mencionei, visões das ciências natu-
rais e das ciências humanas. Isto não costuma ser feito da forma lá desenhada.
A fenda que foi se abrindo nos últimos séculos entre as culturas humanística
e científica transformou-se em um abismo. Isto fez com que ambos os lados
acirrassem suas posições. O aparente êxito das ciências exatas – que embasam
as modernas tecnologias e forjam um estilo de vida ocidental, exportado, ali-
ás, para o resto do planeta –, fizeram alguns pensadores em ciências humanas
reféns da mentalidade fortemente redutora, universalista e quantitativa das
exatas. Mas este último enfoque é inadequado para lidar com os objetos (su-
jeitos, na verdade!) de estudo em humanas. O “sucesso” da visão de mundo
proposta pelas ciências da natureza ajudou a se insinuarem interpretações na-
turalizantes – isto é, tentativas de se explicar fenômenos humanos, culturais
ou sociais em função de supostas determinações físicas, químicas, biológicas
e que tais, ou mesmo (tomando aquelas ciências como modelo epistemológi-
co e metodológico) tentativas de se criar categorias para o social e o humano
que, em princípio, emulassem aqueles determinantes supostamente ontoló-
gicos e universais também nas humanas. Isto tem levado a absurdos gritantes
e se mostrado um caminho infrutífero. Aqui, fica esta advertência inicial, que
retomarei abaixo algumas vezes57.
Agora, aparentemente indo em direção contrária ao exposto acima,
vou argumentar que podemos nos beneficiar também de interpretações das
ciências naturais para conformar um entendimento maior, desde diferentes
perspectivas, dos fenômenos e processos que trato na subseção 2.3. A con-
tradição, contudo, é aparente. O procedimento reflete apenas minha visão, de
que é possível somar (dialética e criticamente) e ampliar nosso conhecimen-

57 Os interessados em aprofundar esta linha de reflexões devem consultar Jafelice (2008b), em particu-
lar as seções Naturalizar para reinar e Como destruir criações culturais humanas sem piedade daquele
trabalho e as referências lá mencionadas.

304
Abordagem Antropológica

to bebendo em diversas fontes – além de ser mais divertido. Claro que fazer
isto é percorrer um campo muito minado. Todo cuidado é pouco e, honesta-
mente, não há garantia de se sair ileso. Acredito, porém, que vale o exercício e
o risco. Os leitores, entretanto, precisam avaliar por si mesmos se, ou até que
ponto, concordam com esta avaliação.
Os leitores precisam ficar atentos quando enveredo pelas digressões
da subseção 2.3. O recurso às interpretações das ciências naturais costuma
ser tentador por estas prometerem uma simplicidade na verdade inexistente
e principalmente porque tais interpretações são invisíveis. Elas estão há muito
entranhadas em nossa cultura, em nossa vida. Não as enxergamos, mesmo
quando as estamos adotando e amparando nossos julgamentos e “compreen-
sões” nelas. Atenção, portanto, para não se cair na tentação de forjar explica-
ções naturalizantes para explicar a nós e a tudo que existe pela via típica das
ciências naturais. Além deste risco, que, sozinho, já é grande e de consequên-
cias muito sérias, há várias outras dificuldades ainda em relação às quais os
leitores precisam ficar em alerta.
Assim, quando falo, naquela subseção, para imaginarmos “uma época
em que já havia vida na Terra, mas ainda não existiam seres humanos, isto é,
entre uns 4 bilhões e 1 milhão de anos atrás”, cuidado. Estou falando de esca-
las de tempo muito grandes e bem diferentes entre si58: 4 bilhões de anos atrás
é quase quando a Terra foi formada e 1 milhão de anos atrás é relativamente
muito próximo de hoje, pelo menos em termos geológicos e evolutivos. Há
4 bilhões de anos não existia vida no planeta e nem a primeira pangeia – um
supercontinente – havia se formado ainda, ao passo que há 1 milhão de anos
praticamente já existiam todas as formas de vida que conhecemos hoje (em-
bora muitas foram extintas nesse meio tempo) e a forma e disposição dos
continentes, por exemplo, já eram essencialmente as que são hoje.
Quando menciono “[n]essa época [...] já havia uma regularidade de
caráter astronômico no planeta [...] com alguma estabilidade relativa”, clara-
mente não quero implicar que tais regularidades tivessem as respectivas dura-
ções – tampouco as proporções relativas – que vogam na atualidade. O ponto,
na narração daquela viagem imaginária, é que aquelas regularidades de teor
astronômico já existiam naquela época. As respectivas durações e proporções
relativas, assim como as diferentes variações dessas ao longo do tempo geoló-
gico, é outra questão, conforme ainda retomarei neste apêndice.

58 As quais não conseguimos de fato introjetar, como destaca Gould (1990).

305
Luiz Carlos Jafelice

Quando exponho “o primeiro ser vivo surgiu, se adaptou e viveu, dire-


ta ou indiretamente, sob uma alternância claro-escuro [...], conforme os dias
e as noites se sucediam”, há muita informação por trás disso.
Com efeito, dizer “o primeiro ser vivo surgiu” é um modo genérico de
falar. Aquele comentário e o raciocínio associado se aplicam à primeira forma
de vida – de onde toda a vida na Terra se originou (e.g., MAYR, 2005, p. 225)
– seja ela pouco complexa – constituída de um agrupamento molecular mais
simples que a célula – ou algo mais complexo – como uma bactéria (ou seja,
um ser vivo unicelular, cuja célula não tem núcleo)59.
Quando digo que o primeiro ser vivo “se adaptou e viveu”, quero dizer
que ele foi bem-sucedido do ponto de vista da teoria da seleção natural, isto
é, reproduziu-se e deixou descendentes com algumas características suas, em
particular (para a discussão em questão) seus mesmos recursos adaptativos
àquele determinado ambiente local em mudança (vide, e.g., GOULD, 2001,
p. 191-192; ou interpretações mais recentes e complexas dessa teoria – ainda
mais propícias para nossa discussão –, e.g., em LEITE, 2007, e JABLONKA
e LAMB, 2010).
Aproveitemos aqui para tentar desfazer uma confusão bastante fre-
quente, inclusive entre cientistas – em particular os que não são da área de
ciências biológicas, como exemplificarei abaixo (o que contribui para desfa-
zer a imagem – muito equivocada, por sinal – que as pessoas costumam ter
do cientista, como sendo alguém que sabe muito sobre praticamente tudo;
o cientista é uma pessoa comum inclusive – mas não apenas – quanto à sua
limitação conceitual em outra área, mesmo científica, que não seja a de sua
especialização).
Às vezes o termo “evolução” ainda aparece associado à teoria da se-
leção natural com a acepção de “progresso”. Contudo, “[a] teoria básica da
seleção natural”, como bem explicita, e.g., Gould (2001, p. 188), “não declara
nada sobre o progresso geral, e não possui nenhum mecanismo através do
qual se possa esperar um avanço generalizado”. É uma racionalização da cul-
tura ocidental (idem, p. 188-189) que força a colocação de “o progresso no
centro da teoria evolutiva” (idem, p. 189). O termo “evolução entrou na nossa

59 Vírus são mais simples que bactérias, mas dependem de células – e, portanto, da existência prévia de
seres pelo menos unicelulares – para se reproduzirem, se alimentarem ou crescerem; se acredita que
eles possam “ter se originado de ácidos nucléicos replicantes que escaparam das células”, mas preci-
sam “retornar ao tecido vivo [...] para replicação” (MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 15).

306
Abordagem Antropológica

língua como uma palavra privilegiada para o que Darwin havia denominado
‘descendência com modificação’” (idem, p. 189; grifo do autor). Nós, huma-
nos, por exemplo, não somos, em nenhum sentido biológico identificável,
superiores a nenhuma outra espécie existente ou extinta.
Neste sentido, inteligência – como a entendemos enquanto atribu-
to humano – não tem um “valor adaptativo” muito alto – pelo menos não
“tão elevado quanto o de olhos ou bioluminescência” –, senão aquela “teria
surgido em numerosas linhagens do reino animal” (conforme ocorreu com
estes outros atributos, por exemplo, várias vezes ao longo da existência da
vida na Terra, de modo independente), quando, de fato, “ocorreu apenas em
uma única entre milhões de linhagens, a estirpe hominídea” (MAYR, 2005, p.
227-228). Muitas pessoas – e, de novo, também cientistas conhecidos, como,
por exemplo, o astrônomo Carl Sagan (idem, p. 227) – confundem as coisas, e
“presumem que a seleção natural tenha estabelecido um prêmio tão alto pela
inteligência que ela seria produzida em muitos lugares no universo”, quando,
mesmo aqui na Terra – com cerca de um bilhão de espécies/possibilidades de
origem, desde o início da vida no planeta –, aquele atributo só se concretizou
em uma espécie. Em suma, “não há nada de determinista na evolução e na
produção de alta inteligência” (idem, p. 228).
Assim, no contexto da teoria da seleção natural, a designação “evolu-
ção”, quando usada, deve ser entendida como desenrolar de processos, mas
nunca confundida – como o é, muitas vezes – com progresso, como se o que
ela propõe implicasse um direcionamento rumo ao surgimento de um ser
vivo superior. Essa teoria não é teleológica. Rigorosamente falando, ela é teo-
ria de seleção natural, e não de evolução natural.
Ainda em relação a este assunto e ao tema daquela subseção, são perti-
nentes as críticas que Ernst Mayr faz a físicos e a astrônomos com respeito à
busca de vida inteligente extraterrestre (vide o capítulo Estamos sozinhos neste
vasto universo? de seu livro Biologia, Ciência Única; MAYR, 2005, p. 222-230).
Esse ornitólogo nos aconselha investir “as centenas de milhões de dólares”
gastos com expedições espaciais, como aquela para Marte para localizar even-
tuais bactérias fósseis, “na pesquisa da diversidade em rápida desaparição das
florestas úmidas tropicais da Terra” (idem, p. 226)60. Ele argumenta que os

60 Argumentos, conclusões e conselhos semelhantes também são apresentados, por exemplo, pela bi-
óloga Nurit Bensusan. Ela propõe um cenário em que “você está partindo para a Lua a fim de levar
uma vida normal e satisfatória por lá”. E, para facilitar as coisas, ela sugere supor que a atmosfera e o

307
Luiz Carlos Jafelice

astrônomos e físicos envolvidos nesse tipo de programa estão partindo de


um pressuposto muito equivocado e que este equívoco se deve a eles não en-
tenderem a teoria da seleção natural. Mayr cita exemplos para mostrar que
aqueles cientistas, desses programas, confundem existência de vida com a de
civilizações eletrônicas, porque pensam que a seleção natural é determinista.
Segundo ele, talvez raciocinem assim porque “[o] pensamento determinista
é bem comum em suas ciências, nas quais as leis cumprem uma importante
função” (idem, p. 226). Ele acha que “[a]s especulações dos biólogos são mais
modestas” (idem, p. 222). Como consequência dessa ignorância e vício de
pensamento, aqueles cientistas presumem que se a vida surgisse (fosse onde
fosse) “ela acabaria por levar ao surgimento da inteligência” (idem, p. 227).
Esta conclusão não pode ser inferida da proposta e implicações daquela te-
oria (vide também DIAMOND, 1992). Mayr diz ainda, com humor, que a
“improbabilidade” de se conseguir estabelecer comunicação com seres ex-
traterrestres é “de proporções astronômicas”. Também com humor, agora a
exemplo de Monty Python – grupo humorista britânico da década de 80 do
século passado, em seu filme O Sentido da Vida (PYTHON, 1983) – Ernst
Mayr conjectura se, na verdade, em vez de programas de busca por inteli-
gência extraterrestre, “não deveríamos organizar uma busca por inteligência
terrestre” (idem, p. 226; grifo do autor).
Outro esclarecimento precisa ser feito, ainda em relação àquele pará-
grafo, na parte onde digo: “o primeiro ser vivo surgiu, se adaptou e viveu [...]
sob uma alternância claro-escuro [...] conforme os dias e as noites se suce-
diam”. Ainda não é claro, em cronobiologia, como as regulações entre me-
tabolismos, adequações de comportamentos e variações ambientais se ins-

clima lá sejam semelhantes aos da Terra. Mas você precisa decidir ainda quais as espécies de animais
e plantas você precisará levar consigo para poder desfrutar e manter lá aquela “vida normal e satisfató-
ria” ansiada. “Quantas espécies seria necessário levar para garantir [todos] esses serviços [ambientais
exigidos para sustentar as necessidades vitais humanas]?” Ela destaca que “[n]ão há uma resposta
para essa pergunta”. Após mostrar a dimensão do problema e dificuldades associadas, ela pondera,
sensatamente, que “[a] essa altura é de se supor que você já tenha desistido da viagem a Lua” (BEN-
SUSAN, 2007). E notem que até aqui ela ainda nem fez a análise econômico-financeira do custo
que tal empreitada demandaria se fosse tentada (isto é, se quiséssemos substituir aqueles serviços),
o que ela faz na segunda parte de seu texto. O custo dos serviços ambientais naturais estaria na faixa
de algumas dezenas de trilhões de dólares anuais; praticamente o dobro de todo o Produto Nacional
Bruto anual global! (idem). Bem, não faltam exemplos de onde gastos envolvendo montantes incom-
paravelmente menores – mas cujas implicações socioambientais benéficas podem ser decisivas para
uma existência equânime e digna de nossa espécie, com vida de qualidade para todos em harmonia
ambiental biocentrada – precisam ser feitos com urgência. Os recursos, inclusive econômicos, são
finitos. Precisamos definir prioridades e agir em consonância.

308
Abordagem Antropológica

crevem nos organismos vivos, passando a constituir mecanismos integrantes


dos processos vitais daqueles. O fato, observado, é que os organismos estão
adaptados não só para captarem oscilações ambientais cíclicas de calor ou
luz – em geral envolvendo ciclos com diferentes períodos sobrepostos e mui-
tas vezes ciclos com períodos longos – e reagirem convenientemente, como
também para se anteciparem às respectivas mudanças ambientais associadas
(nosso corpo, por exemplo, se prepara para o anoitecer bem antes que tenha
anoitecido). Como isto ocorre e como se deu ao longo da evolução não está
bem estabelecido.
Tudo indica que há “relógios biológicos”, intrínsecos aos organismos e
independentes de estímulos ambientais, que, contudo, podem ser “ajustados”
em função desses estímulos. Como explicar esses fenômenos? Há duas
vertentes principais em cronobiologia: uma argumenta que “as variações
espaciais e temporais que ocorreram na Terra mesmo antes do aparecimento
da vida [...] [ficaram] inscritas na matéria orgânica não viva, da qual se originou
a vida e mesmo na matéria inorgânica” ( JANSEN et al., 2007, p. 50). Segundo
esta explicação, “[a] vida primitiva, ao aparecer, já possuiria características
fundamentais, relacionadas a essas variações e a ciclos temporais” (ibidem).
Outra corrente se ampara em argumentos típicos da teoria da seleção
natural – de descendência com modificação, hereditariedade e adaptação a
ambientes locais em mudança – e diz que “[s]eres vivos que apresentassem
determinadas características com mudanças temporais de comportamento
ou metabolismo seriam mais aptos e sobreviveriam, transmitindo suas
características aos descendentes” (ibidem). Esses autores dizem que essa
discussão ainda está em aberto, pois, apesar de estudos genéticos reforçarem
o segundo mecanismo e a discussão teórica favorecê-lo, as provas, até então,
não são conclusivas (ibidem).
Para as conjecturas desenvolvidas na subseção 2.3 é indiferente qual
mecanismo de fato esteve operante ou se foi apenas um. O que importa é que
a vida, desde seus primórdios, traz inscrita em si mecanismos que traduzem as
marcas de intercâmbios inalienáveis entre ambientes e organismos (ambien-
tes, é importante manter em mente, cujas flutuações periódicas fundamen-
tais são determinadas por fenômenos não terrestres), independentemente se
tal inscrição ocorreu porque as variações cíclicas de origem celeste se incor-
poraram na matéria não viva ou porque elas atuaram como agente seletivo
– favorecendo, em meio à gama de variabilidade dos organismos primeiros,
aqueles que fortuitamente carregavam mecanismos mais sincronizados aos

309
Luiz Carlos Jafelice

respectivos compassos daquelas flutuações periódicas de então (visto que a


periodicidade destas costuma variar, de modo não regular, com o tempo).
Falamos muito em “vida” neste texto, algo reconhecidamente difícil
de se definir. Está além do escopo deste capítulo adentrar nesse assunto. Para
nossas necessidades, basta “uma definição ampla”, como propõe Ernst Mayr:
“a vida precisa ser capaz de replicar-se e fazer uso de energia ou do Sol ou de
certas moléculas disponíveis, como sulfetos em fontes termais no mar pro-
fundo” (MAYR, 2005, p. 223). Claro que em se tratando de planetas em sis-
temas extrassolares, deve-se substituir “Sol” por estrela e “sulfetos em fontes
termais em mar profundo” por algo equivalente, se existir, em tais planetas.
Uso muito, principalmente naquela subseção, expressões de teor an-
tropomórfico. Isto é faca de dois gumes. Em geral é problemático em educação
científica. Deve se estar ciente disto. Mas antropomorfismos também podem
ser úteis, muitos inclusive já estão incorporados ao linguajar comum – e aí é
que reside o maior perigo! Por isto esta nota de advertência. Todas as deno-
minações antropomórficas usadas no texto – por exemplo, através de verbos
como pulsar, palpitar, latejar, orquestrar, dançar etc. –, aplicadas para descre-
ver – ou em associação a – fenômenos e processos naturais não gerados nem
controlados por seres humanos, são propositais. Visam estimular um outro
olhar, apontar para uma outra forma de se construir significados. A qual, po-
rém, não é diferente do suposto modo isento – que de isento não tem nada!
– do construir científico. Todas essas formas, com ou sem antropomorfismos
explícitos, são construções humanas. Se forem usá-los, porém, advirtam seus
interlocutores ou sua plateia do que estão fazendo.
Quando digo, naquela subseção, “em meio a essa polirritmia, não ori-
ginada do seio da Terra – mas, sim, comandada por ‘objetos’, ‘processos’, de
fora desta”, convém frisar que tudo que um organismo vive na Terra, está refe-
rendado a uma perspectiva topocêntrica, isto é, relativa ao local – sobre a Terra
– onde ele está. Neste sentido, não adianta sabermos, cientificamente, que é a
Terra que gira em torno de si mesma etc. Para os processos vitais, os coman-
dos relevantes provêm de fora da Terra: é o Sol que define a alternância diária
claro-escuro ou as mudanças climáticas sazonais, assim como é a Lua que tem
seu brilho oscilando mensalmente ou é a principal causa das marés diárias.
Ao mencionar os “vários reinos em que [os seres vivos] são divididos”,
gostaria de remeter os interessados a Margulis e Schwartz (2001), para uma
extensiva e clara exposição sobre a classificação dos tipos de vida encontra-
dos na Terra.

310
Abordagem Antropológica

Ao dizer que “[a vida surge e se diversifica no planeta] [s]ubmetida


a esses múltiplos ritmos ambientais concorrentes (aos quais se conciliaram
os respectivos ritmos biológicos) [...]”, convém fornecer algumas definições
correntes e esclarecimentos. Os ritmos biológicos são frutos da ação conjunta
de fatores endógenos e exógenos. Contudo, nem todos esses ritmos possuem
clara correlação com ciclos ambientais. Há ritmos biológicos com “períodos
que vão de milisegundos, como os ritmos de disparo de neurônios ou de bati-
mento de flagelos de espermatozóides, até anos, como o ciclo reprodutivo da
cigarra americana (13 ou 17 anos) ou do bambu chinês (100 anos)” (MAR-
QUES et al., 1999, p. 47). Para esta nossa discussão, são mais relevantes os
ritmos inequivocamente associados a variações ambientais. A nomeação de
qualquer ritmo biológico se dá em função de sua frequência comparada com
a diária. Assim, tomando-se a freqüência do ciclo claro/escuro diário como
base – e com a ajuda dos respectivos prefixos latinos –, esses ritmos biológi-
cos são denominados61: circadianos, para aqueles “cujo período varia de 20
a 28 horas”, infradianos, “com períodos maiores que 28 horas”, e ultradianos,
“com períodos menores que 20 horas” (ibidem). Exemplos que nos interes-
sam aqui desses ritmos, são aqueles associados: ao ciclo dia/noite (de 24 ho-
ras) (circadianos), ao do ciclo lunar, das estações do ano, do próprio ano ou
maiores que este (infradianos) e ao ciclo das marés (ultradianos).
É pertinente destacar aqui que a reprodução sexuada (mas não só ela) é
sensível a esses ciclos. Como observam, e.g., Golombek et al. (1999, p. 153):
A conduta sazonal em relação à atividade reprodutora é crítica para
a sobrevivência da espécie [...]. Assim, de acordo com a duração da
gestação, existem espécies de “dia curto”, como a ovelha, cujo acasa-
lamento é invernal, e de “dia longo”, como para o hamster, com aca-
salamento estival.

Cabe, então, a pergunta: e a reprodução humana, é de “dia longo”, “cur-


to”, “médio”, ou é insensível a tal ciclo (no caso, o anual)? Ou ainda a pergun-
ta: se hoje, aparentemente, tal atividade reprodutora não denota tendência

61 Lembrando antes, da física: período é o inverso de frequência. Aquele mede o intervalo de tempo para
a duração completa de um fenômeno cíclico e esta mede o número de ciclos desse fenômeno por
unidade de tempo (que no caso é o dia). Como na discussão em curso é a frequência que nomeia um
ritmo biológico, se um processo biológico cíclico tem, por exemplo, um período bem maior que um
dia (i.e., leva muitas horas a mais que 24 horas para se repetir), a frequência associada a ele será (bem)
menor que a diária e, portanto, o ritmo caracterizado por ela será infradiano; se o período for bem
menor que um dia, a frequência será (bem) maior que a diária e o ritmo será ultradiano.

311
Luiz Carlos Jafelice

a nenhum tipo de “dia” (ao longo do ano), isto sempre foi assim durante o
processo seletivo de nossa espécie? Mais adiante, neste apêndice, comentarei
sugestão de pesquisadores sobre porque a existência de uma época do ano
“preferencial” para humanos acasalarem para fins reprodutivos pode ter sido
(seletivamente) vantajosa também no processo de nossa especiação.
Quando me expresso dizendo coisas como “o sucesso das espécies já
existentes, em se manterem como tais, e o das novas espécies, em se adapta-
rem”, é preciso cuidado, pois, além de conter antropomorfismos (como se as
espécies atuassem na manutenção ou adaptação por ação voluntária, preme-
ditada, visando, talvez, o alegado “sucesso”), aquela verbalização é enviesada,
por encerrar uma visão simplista da teoria da seleção natural – como se hou-
vesse descendência sem variantes ou a mutação ocorresse só devido a causas
externas aos organismos, além de ignorar o mecanismo da hereditariedade.
Aquela, portanto, é uma forma de dizer, que uso apenas como recurso narra-
tivo. Porém, fiquem atentos. As “novas espécies” não surgiram do nada, nem
chegaram prontas – com seus espécimes pioneiros completamente inéditos
– de algum lugar extraterrestre. Elas se originam a partir da variabilidade ge-
rada pela vida – a qual, portanto, já existia, e, para o que nos interessa nesta
argumentação, já existia adaptada à tal “polirritmia de origem celeste” – jun-
tamente com os ajustes seletivos naturais operantes, que já comentei ante-
riormente. Nesse contexto, as “novas espécies” apenas são selecionadas (isto
é, deixam maior fração relativa de descendentes com suas características mais
afeitas em continuar existindo naquele ambiente e ritmos) em função de me-
lhor se adaptarem (em comparação a outras variantes contemporâneas a elas)
aos respectivos ambientes cambiantes onde seus ascendentes também foram
biologicamente bem-sucedidos. Convém insistir: essa não foi adaptação por
“esforço próprio”, “mérito”, “empenho pessoal” (!), nem nada do tipo. A ex-
pressão “melhor se adaptarem” é uma forma de dizer. Na verdade, as espécies
que melhor se adaptaram puderam fazê-lo porque – é importante enfatizar o
caráter casual do motivo de elas terem alguma vantagem adaptativa – por ra-
zões fortuitas elas já operavam biologicamente em compasso mais adequado
às exigências ambientais de onde seus ascendentes habitavam62.
Mais uma vez é preciso deixar bem explícito, quando digo “esse su-
cesso só se deu porque a espécie humana conseguiu se adaptar também a

62 Para quem quiser rever ou aprofundar esses conceitos e raciocínios, recomendo, em particular, o ex-
celente livro de Gould (2001).

312
Abordagem Antropológica

esta exigência ambiental”, que esta foi uma adaptação que não dependeu de
voluntarismo, nem de inteligência ou racionalidade, por parte de um ou ou-
tro membro da espécie, nem da espécie como um todo. Dependeu, sim, de
processos seletivos operantes independentemente da existência, ou não, de
consciência ou de autoconsciência, ou de capacidade de premeditação e pla-
nejamento, ou de qualquer recurso de astúcia, comportamento privilegiado
ou suposta superioridade, nos seres onde aqueles processos atuavam. E, nun-
ca é demais insistir, ainda atuam, até hoje, embora agora mais em choque com
estilos de vida que uma fração enorme de pessoas no planeta adota. Claro
que com o surgimento da cultura, esta passou a ser outro recurso ou agente
adaptativo – como comento na subseção 2.3 –, ao que tudo indica com impli-
cações também seletivas. Contudo, evolutivamente falando, o surgimento da
cultura ocorreu apenas muito recentemente63.
Como explicito em algumas partes daquela subseção, há trechos lá que
são uma fantasia sem maiores rigores – embora, acredito, de valor reflexivo e
mesmo instrucional. Entretanto, há trechos que poderiam parecer fantasio-
sos para quem tem pouca familiaridade com as diversas áreas das ciências
naturais e humanas tratadas neste apêndice, em particular com a área de cro-
nobiologia, quando, na verdade, há muitas informações implícitas ali. Nesses
referidos trechos, apenas descrevi certos objetos e implicações dos estudos
nesta área de outra maneira. Assim, por exemplo, quando digo, em um dos
parágrafos de lá, “se nossa vida tivesse se concretizado, evolutivamente, em
um [outro planeta]”, e passo a descrever situações que envolvem “períodos
propícios à reprodução”; “propensão a variações de humor”; “duração do pe-
ríodo de gestação”; “o que nos traz paz ou infelicidade”, entre outras, estou
me referindo a fatos que a cronobiologia (principalmente, mas não apenas,
pois pelo menos a arqueologia, antropologia, psicologia cultural ou evoluti-
va – através de suas respectivas perspectivas e métodos de estudo –, também
estão bastante presentes nesses casos) tenta explicar recorrendo a processos
adaptativos, variações hormonais de ordem metabólica, frequentemente de-

63 Propostas mais recentes da teoria da seleção natural (e.g., LEITE, 2007, e JABLONKA e LAMB,
2010), na verdade questionam essa exclusão estrita (na linha em que argumento nesse parágrafo e em
outros trechos) de fatores extragenéticos daquele complexo processo adaptativo. Como comentei em
nota de rodapé na subseção 2.3, estas propostas favorecem ainda mais nossa narrativa. Porém, aqui
vamos ficar, conservadoramente, com a compreensão (ainda) clássica do tema, uma vez que o ponto
em questão (quais mecanismos seletivos estão estrita e efetivamente operantes no quadro discutido)
não é chave em nossos raciocínios.

313
Luiz Carlos Jafelice

sencadeados por variações climáticas, sazonais e luminosas. Na subseção 3.3


comento um pouco mais nessa direção. Na seção Sugestões de leituras cito fon-
tes específicas para os interessados naquela área de pesquisa.
O seguinte parágrafo, da subseção 2.3:
Podemos cogitar ainda várias outras consequências sobre nossa
“forma de ser”, caso tivéssemos evoluído em algum daqueles outros
ambientes. Por exemplo, como nossas concepções simbólicas, ana-
lógicas e representações sociais seriam afetadas se fôssemos de um
planeta sem eclipses solares – ou se houvesse vários totais por ano
[...]? E os períodos férteis de nossas “mulheres” – que, aqui na Terra,
talvez possam, evolutivamente falando, guardar relação com o ciclo
lunar –, como seriam “estabilizados” em um planeta sem lua ou com
mais de uma lua? E se mesmo quando houvesse (se houvesse) noite
escura e lua (ou luas) [...] não estimular e favorecer as noites de caça-
das, nem as comemorações de luaus? [...]

merece vários esclarecimentos, que faço a seguir.


Mary Douglas, por exemplo, argumenta que as organizações das so-
ciedades humanas, independentemente das culturas envolvidas, são estabele-
cidas sempre com base na busca de correspondência entre “a estrutura formal
de [suas] instituições [...] [e as dos] domínios não-humanos [da natureza]”
(DOUGLAS, 2007, p. 63). Assim, segundo essa interpretação sociológica,
nossas representações sociais guardam relação muito mais próxima – cons-
titutiva, na verdade – com fenômenos naturais do que se está habituado a
considerar.
Os eclipses solares são escolhidos por serem fenômenos que para nós
– humanos, na Terra – são muito especiais e notáveis e estão muito encrava-
dos em praticamente todas as culturas, não só em termos de processos psico-
lógicos associados, mas também de eventos históricos relevantes.
Quando relaciono “períodos férteis [das mulheres] [...] com o ciclo
lunar [e ‘estabilização’]”, me baseio em conjecturas de alguns arqueólogos e
antropólogos para a semelhança entre os períodos de lunação64 e de mens-
truação e algumas consequências que podem derivar disso (WENKE, 1990,
p. 180-185; TAYLOR, 1996, p. 103-106; e referências citadas nessas fontes).
Taylor aborda ainda os temas de controle de natalidade nos primórdios da

64 É o intervalo de tempo médio entre uma lua cheia e a lua cheia seguinte (ou entre duas luas novas
– ou quaisquer fases lunares iguais – consecutivas) e é de aproximadamente 29,53 dias. Também é
chamado de mês sinódico.

314
Abordagem Antropológica

nossa espécie, sincronia de períodos menstruais entre mulheres vivendo em


comunidades e o ajuste do período de gestação humano para ¾ da duração
do ano (terrestre!) (TAYLOR, ibidem).
Quanto à semelhança (relativa, aproximada e variável, bem sabemos,
pelo menos na modernidade) entre os períodos de lunação e de menstrua-
ção, Taylor (ibidem) comenta que uma grande variabilidade inicial (evoluti-
vamente falando) nos períodos de menstruação das mulheres (indo de bem
menos que cerca de 29,5 dias a bem mais), adicionada a outros fatores con-
dicionantes ambientais e de convívio intraespecífico, podem ter propiciado
uma sincronização dos períodos de menstruação com os das fases lunares.
Vou explicar essa especulação de Taylor.
Quais são esses “outros fatores”, afinal determinantes nessa especula-
ção, para favorecer aquela sincronização? Alguns são cogitações para épocas
remotas, do período de surgimento da espécie humana, outros podem ser ob-
servados ainda hoje. São eles, por exemplo: de ajuste dos períodos de mens-
truação para mulheres que habitam em uma mesma comunidade, do maior
encargo gestatório que recai sobre as mulheres, da necessidade adicional de
alimentos para mulheres grávidas ou recém-paridas, da dificuldade ou incer-
teza na obtenção de alimentos – agudizada nos períodos mais frios do ano,
tanto mais quanto maior fosse a latitude em que viviam –, da oportunidade
de se obter certos alimentos adicionais à noite – obtidos principalmente por
homens nos meses ou anos em que as mulheres estavam em fase avançada
de gravidez, cuidando de filhos recém-nascidos ou de prole infante –, de isto
ser mais viável de ter sucesso nas noites de lua cheia (dada a inadaptação da
visão humana para enxergar à noite) e da seleção natural implicar que os orga-
nismos que melhor se adaptam deixam maior número de descendentes com
as características que favoreceram aquela adaptação (e, portanto, com maior
probabilidade de estes chegarem à fase reprodutiva e também deixarem pro-
porcionalmente maior número de descendentes com aquelas características
vantajosas para aquelas circunstâncias, época e mudanças operantes). Assim,
Taylor cogita que a grande variabilidade inicial nos períodos de menstruação,
somada a fatores desse tipo, podem ter favorecido uma sincronização dos pe-
ríodos de menstruação com os das fases lunares – ou, de modo mais preci-
so: uma sincronização relativa que foi se dando ao longo de muitas gerações,
conforme prevaleciam mulheres cujos ciclos menstruais eram próximos aos
lunares, atributo este que transmitiam para várias de suas filhas. Segundo este

315
Luiz Carlos Jafelice

raciocínio – que, convém repetir, não é comprovado, é conjectura –, acrescido


da suposição de que os intercursos sexuais na época fossem mais frequentes à
noite, quando o grupo estivesse reunido e seus membros mais “desocupados”
(por necessidade de repouso, por proteção e pela quase impossibilidade de se
obter alimento – ao menos quando não eram noites de lua cheia), então, para
a mulher, estar em um período fértil em noites de lua cheia – se o conveniente
(do ponto de vista sazonal, i.e., evolutivo) fosse evitar filhos –, ou em noites
de lua nova – se o conveniente fosse ter filhos –, poderia fazer toda a diferença
(para sua própria sobrevivência e para a manutenção ou crescimento do gru-
po65). Nas noites de lua cheia os homens estariam longe, caçando, nas noites
de lua nova eles estariam junto ao grupo todo. Adicione-se a isto o fato de
aquela época e contexto estarem livres de certos afazeres e não estimularem
outras distrações – como aulas à noite, academia de ginástica, trabalhos para
concluir em casa, televisão, shopping center, internet etc. – e o quadro hipoté-
tico se completa66. Quando estar em período fértil ou não, porém, não seriam
“escolhas”, no sentido consciente do termo, que aquelas mulheres poderiam
ter feito. Mas, se as conjecturas nessa linha procedem, então o conjunto de
circunstâncias arroladas acima pode ter desempenhado papel importante no
processo de seleção natural em humanos, pois haveria uma vantagem sele-
tiva para as mulheres de então (e, portanto, para a espécie, como um todo)
cujo ciclo menstrual natural (isto é, de nascimento, hereditário) tivesse uma
regularidade próxima à do ciclo lunar67 (tornando essas mulheres, então, do-
minantes enquanto referência na busca – provavelmente de base feromônica

65 Como bem destaca Nancy Tanner, em seu original trabalho sobre as origens humanas, que atribui
às fêmeas humanas ancestrais papel decisivo na transição de primatas para humanos: “Acima e além
de tal estresse nutricional físico sobre as fêmeas, foram também as mulheres primevas que tiveram a
maior responsabilidade pela sobrevivência da próxima geração” (TANNER, 1981, p. 268; tradução
minha).
66 Não é difícil imaginar como esse quadro se conclui (embora isto não é garantia alguma de que as
coisas se deram dessa forma): os parceiros estão lá, em noites de lua nova, acomodados no abrigo,
crianças e alguns outros dormindo, mas eles próprios ainda sem sono e/ou com alguma comichão,
sem lampião, sem televisão e... bem, nem é preciso retroceder dezenas de milhares de anos para se ter
uma situação desse tipo e supor como ela pode continuar. Há cem anos não era significativamente
diferente disso e mesmo hoje se encontram lugares que ainda são assim. Não se deve esquecer, po-
rém, que o quadro todo era bem mais complexo. Não se estava tão à mercê do biológico – mesmo
se/quando aquela eventual sincronização estava sendo acertada. O uso de plantas e outros recursos
contraceptivos também já começavam a estar em uso por parte das mulheres de então.
67 Olhando pelos ângulos da mitologia e da história das religiões, vê-se que a solidarização de virtudes
femininas com atributos lunares é comum em muitas culturas humanas (vide, e.g., ELIADE, 1993b).
Isto, contudo, não é uma universalidade. Para muitas culturas indígenas brasileiras, por exemplo, a
Lua é uma entidade masculina.

316
Abordagem Antropológica

– de sincronia menstrual por parte de outras mulheres, mesmo se os ciclos


destas não fossem regulares ou, em sendo, não fossem espontaneamente pró-
ximos do lunar).
Estes últimos autores (Wenke e Taylor) tocam ainda no relevante pon-
to da origem dos calendários – registros sistemáticos para a medida de um
fluir temporal – e a relacionam às mulheres. Com efeito, segundo eles, in-
clusive a elaboração de calendários lunares – realização humana considerada
central na história da astronomia – pode talvez, em sua origem, ter surgido
como uma criação das mulheres, em função da intenção destas em registra-
rem períodos menstruais (ou seja, calendários que, no fundo, seriam o que
hoje denominamos “tabelinhas”) (WENKE, 1990, p. 183; TAYLOR, 1996,
p. 106). Sobre as mulheres é que recaem de modo muito mais decisivo as
implicações de uma gravidez, principalmente (mas não apenas) nas situações
marginais em que aqueles agrupamentos humanos iniciais viviam – o que jus-
tificaria elas terem todo o interesse em acompanhar de perto, com certo con-
trole relativo, seus períodos de fertilidade, pois, em tais circunstâncias, muito
provavelmente haveria uma época do ano mais conveniente para se ter um
filho (TAYLOR, 1996, p. 106). Além disto, antes de esse tipo de consciên-
cia e providências se estabelecerem e principalmente por razões seletivas de
caráter genético (e talvez também epigenético), nascer em época de escassez
crescente de alimentos (outono) ou de abundância alimentar crescente (pri-
mavera) podia ser crucial para o sucesso da espécie. Essa dinâmica ambiental
cíclica (insistindo: de origem celeste) pode ter sido decisiva para que o perío-
do de gestação humano se ajustasse em ¾ da duração do ano neste planeta68.

68 Observação: os registros pré-históricos em que esses pesquisadores se baseiam não são mundiais, são
da Europa e da Sibéria, ou seja, regiões com latitudes ao norte relativamente elevadas, onde viveram
por muitas dezenas de milênios as hordas iniciais de nossos ancestrais mais recentes; nessas regiões,
as variações climáticas sazonais são muito notáveis, em particular com invernos muito rigorosos,
quando a escassez de alimentos e outros agravantes podem ser determinantes para a sobrevivência.
Repito: o quadro descrito acima é de conjectura visando plausibilidade. A realidade para o ajuste
gestacional temporal do homo sapiens deve ter sido bastante complexa. Por outro lado, não pode ter se
fastado tanto da situação idealizada pelos pesquisadores em questão, mesmo com a origem da espécie
tendo se dado em regiões tropicais, relativamente menos sensíveis a mudanças sazonais. Com efeito,
as pressões ambientais seletivas nos organismos em geral são enormes, independentemente da época
geológica e da localização geográfica apreciadas. Portanto, quando se analisa suas consequências no
processo de nossa especiação – ocorrido em um planeta com regularidades sazonais bem definidas
(ainda que em constante alteração na escala temporal geológica), inclusive nas grandes porções
de sua superfície habitadas por hominídeos e nas quais outras espécies de animais, em particular
de mamíferos (como já mencionei), “ajustaram” seu tempo de gestação àquelas regularidades (i.e.,
estresses) –, não é convincente atribuir nosso tempo de gestação a mera coincidência ou considerar
que justo no caso de nossa espécie ficamos imunes àquelas pressões e livres para estabelecermos
aquele tempo com independência das imposições ambientais cíclicas anuais. Seja qual for o cenário

317
Luiz Carlos Jafelice

Outra linha de pesquisa, que reforça uma correlação direta entre o pe-
ríodo de menstruação e o das fases lunares, neste caso supostamente por ação
de teor cronobiológico associada à luz do luar, é apresentada por Kak (1996).
Ele cita:
Em um estudo com várias mulheres com inícios variáveis dos perío-
dos menstruais, a iluminação artificial do quarto de dormir da 14ª à
17ª noite seguintes ao início da menstruação resultou na regulariza-
ção do período, com a extensão do período chegando a ficar próxima
de 29,5 dias, o mês sinódico natural. Que este período é biologica-
mente significativo para a espécie humana é ainda sugerido pelo fato
de que a duração média da gravidez (da ovulação ao nascimento)
nas humanas é mais precisamente nove meses sinódicos, de 29,53
dias [cada um] [e não os “nove meses” convencionados pelo nosso
calendário civil, como se costuma dizer] (Encyclopaedia Britannica
1994, artigo sobre comportamento animal na Macropaedia, p. 761,
apud KAK 1996; tradução minha).

O autor acredita que o ajuste do período (naturalmente variável) da


menstruação àquele lunar tenha sido “disparado [filogeneticamente] pela
luz do luar [e que,] [c]om o viver sob luzes artificiais dos tempos modernos,
é fácil de ver como uma correlação direta [do período menstrual] com o
movimento da Lua foi perdido” (KAK 1996; idem). Ele prossegue citando
outros exemplos de ritmos biológicos – em humanos, mamíferos e outros
animais – de aproximadamente 24 horas e 50 minutos, ou seja, sincronizados
com um “dia lunar”, uma vez que a Lua nasce cerca de 50 minutos mais tarde
a cada dia69.

Recorro ainda a Taylor (1996) para amparar minha colocação, naque-

ocorrido, “nosso ajuste gestacional nos convenientes” ¾ de duração do ano terrestre é, no mínimo,
muito sugestivo.
69 Notem que o que causa esse atraso no nascer da Lua a cada dia é que ambos os movimentos de rota-
ção – o da Lua em torno da Terra e o desta em torno de si mesma – são no mesmo sentido (modo de
dizer, pois o plano orbital da Lua não coincide com o equatorial), de oeste para leste, e a velocidade
angular de giro da Terra é maior que a orbital da Lua [esta leva – tendo como referência as estrelas
de fundo – cerca de 27,3 dias para completar uma volta (360º) em torno da Terra, ao passo que esta
completa seu giro (360º) em torno de si mesma em 1 dia]. Da relação entre essas grandezas, decorre
que a Terra – tendo como referência, para este caso, o Sol – completa uma volta cerca de 50 minutos
antes de completá-la tendo como referência a Lua. Ou ainda: enquanto a Terra completa seu giro diá-
rio, a Lua “se afasta”, em seu deslocamento orbital, para leste. Portanto, alguém fixo sobre a superfície
terrestre verá a Lua novamente na “mesma” posição no céu, aproximadamente 50 minutos mais tarde
do que no dia anterior.

318
Abordagem Antropológica

le mesmo parágrafo: “E se mesmo havendo noite escura e lua [...] a ponto de


não estimular e favorecer as noites de caçadas [...]”. Caçadas essas, convém
destacar, que nossos ancestrais empreendiam (e muitos povos até hoje o fa-
zem) e foram (são) decisivas também para a urdidura do tecido social em
setores aparentemente independentes da atividade de “caça noturna”, como
Taylor (1996, p. 105-106) também comenta.
Quando explicito, ainda naquele parágrafo, “[...] favorecer as noites de
caçadas, nem as comemorações de luaus?”, me apoio em comentários como
os de uma nutricionista que trabalhou em um vilarejo na África, onde não
há (ou não havia na época) energia elétrica, quando ela diz: “a diferença nos
ciclos de atividades quando a Lua estava cheia era muito marcante. As pes-
soas saiam, iam visitar outras pessoas no meio da noite. Todo o tecido da
sociedade, os festivais e esse tipo de coisas eram organizados em torno da
lua cheia” (VINES, 2001; tradução minha). Ora, brasileiros – principalmente
nordestinos e nortistas – não deveriam, em princípio, estranhar isto. Com
efeito, aquele comportamento é, hoje, presente e notório, não só em nossas
culturas autóctones (indígenas), mas inclusive nas zonas rural e urbana no
norte e no nordeste do país, por exemplo, mesmo nas capitais! Ali, a vida
– anímica e social – está mais entrelaçada e harmonizada com aquele fenô-
meno celeste, embora a grande maioria dos que saem para comemorar luaus
não tem nenhuma consciência dos enredos harmônicos entre o ambiental e o
fisiológico-psíquico-social que fazem com que considerem natural e óbvio se
aproveitar a ocasião (do período de lua cheia) para festejar.
No parágrafo seguinte, da referida subseção, digo: “Como vemos [...]
nós nos tornamos quem somos (isto é, como somos) porque [...]”. Isto merece
alerta especial. As conclusões ali arroladas são provenientes de uma leitura
naturalizante. São pertinentes, pelo menos em certa medida e em alguns
aspectos importantes que consideramos constitutivos de nós mesmos, e
dentro de sua esfera de eventual significação e validade. Mas aquela vereda
explicativa está longe de explicar tudo sobre nós; é preciso manter isto sempre
em mente.
No parágrafo onde comento que os “mecanismos [intracelulares] de-
pendem de ‘comandos’ externos, ambientais, para se ajustarem e atuarem com
as regularidades com que atuam”, me refiro ao fato de que tais mecanismos
não têm frequências intrínsecas iguais aos – nem múltiplos ou submúltiplos
inteiros dos – “nossos” ciclos “terrestres” (i.e., celestes, na origem); além disto,

319
Luiz Carlos Jafelice

os tais ciclos “terrestres” são vários e não guardam razão inteira entre eles70;
e mais: esses ciclos mudam e mudaram bastante nos últimos 4,5 bilhões de
anos (ou 4 bilhões, em particular, se quisermos nos restringir apenas a par-
tir da época em que, aparentemente, o ambiente terrestre começou a poder
comportar vida); e mais ainda: essas mudanças não ocorreram segundo taxas
de variabilidade regulares, nem de modo isossincrônico, considerando-se os
vários ritmos sobrepostos sob os quais os ambientes, e os organismos nestes,
existiam. Se a vida dependesse de proporcionalidade fixa entre os ritmos dos
“relógios” intracelulares e os dos astronômicos, muito provavelmente ela não
teria se desenvolvido para formas mais complexas.
Com efeito, de que serviria uma proporcionalidade fixa, ou rígida
(evolutivamente falando), em um dado momento da história do planeta? Ela
não duraria muito tempo, na escala geológica do tempo. Para esta análise, va-
mos nos concentrar apenas no ciclo mais evidente, mas também de grande
relevância seletiva: o do dia-noite. Devido a interações de maré, não só a Lua
estava mais próxima da Terra há muitas centenas de milhões de anos, mas
também o dia era mais curto e, portanto, havia mais dias por ano – isto é,
a Terra girava mais rapidamente em torno de si mesma do que o faz hoje.
Na passagem do período Siluriano para o Devoniano, por exemplo, há cerca
de 410 milhões de anos, o dia durava 21,8h e havia 400 dias por ano (WI-
KIPEDIA, 2009a) – e este ainda é um passado relativamente recente para o
planeta e mesmo para a vida neste (MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p.
18-19); em eras anteriores as diferenças (em relação a hoje) devem ter sido
mais acentuadas ainda71. Um organismo cujos processos metabólicos tives-
sem uma frequência natural de funcionamento exata (i.e., igual ou múltiplo,
ou submúltiplo, exato) para uma dada situação cíclica ambiental, não supor-
taria a mudança dos ritmos ambientais que sempre ocorreu – provavelmente
não a uma taxa constante, além de os ritmos concorrentes serem diversos e as

70 Isto é, considerando as quatro periodicidades mais notáveis que destaquei na subseção 2.3, vê-se que
o mês não é composto por um número inteiro de dias, nem o ano; tampouco o ano contém um nú-
mero inteiro de meses; e nem o intervalo entre três marés altas consecutivas coincide com a duração
de um dia. Na subseção 1.2 (Gerais) deste apêndice, logo após o Quadro Interdependências, comento
mais sobre a ausência de razão inteira entre as três primeiras durações periódicas naturais básicas
mencionadas (dia, mês e ano) e como isto não foi problema quando as culturas começam a introduzir
o calendário solar, com este se sobrepondo ao lunar, posto que a concepção que tinham de tempo – e,
portanto, de calendário – não era a nossa, ocidental, linear e histórica.
71 Mais uma vez a advertência: não é possível extrapolar-se tais diferenças para passados distantes e
concluir-se a duração do dia ou o número de dias no ano ou outras grandezas periódicas para épocas
geologicamente remotas.

320
Abordagem Antropológica

razões entre suas respectivas durações (em um dado instante geológico) não
se manterem nessa mudança. Ter a capacidade de se adaptar a ambientes em
mudança é a essência da proposta da teoria da seleção natural.
Ainda envolvendo a perspectiva dessa teoria, quando escrevo: “Ve-
mos, do exposto nesta subseção, que o mundo dos seres vivos [...] Os diferen-
tes horários em que flores de espécies distintas se adaptaram para abrir [...] e,
então, minimizem a “competição” entre eles pelos recursos disponíveis e/ou
otimizem relações simbiônticas diversas [...]”, é preciso atenção às aspas na
palavra competição – é um linguajar que se usa nesse contexto, mas é apenas
modo de dizer, embora perigoso. Por outro lado, dois parágrafos antes deste
recém citado, quando escrevo “Nas competições ancestrais por nichos com
outras espécies homines [...]”, não coloco aspas na palavra competições – ain-
da que mesmo neste caso, cujo contexto descrito envolve diretamente nossa
espécie (apesar de se referir aos primórdios desta), não é tão claro se as aspas
não se aplicariam de fato; contudo, dado o referido contexto, é mais compre-
ensível se, por ventura, as aspas não se aplicarem. Explico.
É preciso cuidado para não se projetar antropocentrismos e, no caso
extremo, posturas ideológicas, nos processos biológicos. A sociobiologia já
cometeu vários excessos por conta disto, alimentando implicitamente (e, por
isto, mais eficientemente) preconceitos que alguns biólogos e intelectuais
contrabandearam da biologia para a interpretação da própria sociedade: o
chamado darwinismo social. O conceito de competição é um deles. Pode ha-
ver competição, enquanto decisão e ato conscientes, entre humanos, mas não
nos processos de seleção natural – competição no sentido de se premeditar
ações que favoreçam a própria vitória (seja por meios lícitos ou ilícitos), se
arquitetar a derrota do outro (idem) e se interpretar (e este ponto sobressai)
que quem vencer é superior (nas várias acepções e vantagens daí advindas)
a quem perder. A sociobiologia, em si, é terreno pantanoso, de fundações
movediças. Pior ainda quando é transposta de modo ralo e tendencioso para
sociedades humanas, como muitas vezes ela é divulgada. Segundo essa leitura
– conveniente para tentar justificar a mentalidade de uma globalização regida
por leis de mercado, que penetra em todos os setores da vida social –, compe-
tição é vista e vendida como inevitável ou explicitamente vantajosa72. Como

72 Pessoalmente, estou convencido de que “o estímulo à competitividade desemboca na exclusão de


modo incontrolável pelos agentes envolvidos” ( JAFELICE, 2005a). Nas últimas décadas, aquela tem
sido cada vez mais enaltecida, de todas as formas, meios, eufemismos e disfarces. Fundamentado
essencialmente em Santos (2000; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras), compus
a cadeia da exclusão, que inter-relaciona “ideologia, educação científica e competições do saber” ( JA-

321
Luiz Carlos Jafelice

educadores e cidadãos, precisamos, então, trazer à tona tal distorção, suas im-
plicações sociais e atuar para desconstruir suas falácias e construir uma nova
ordem, mais humana – ainda que temporária e em transformação constante,
mas cuidando de ser sempre acolhedora de diversidades e responsável, prin-
cipalmente para com o outro, incluindo o ambiente.

FELICE, 2005a) e explicita como “no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individua-
lista, ou se desaparece” (SANTOS, 2000, p. 67) ou porque “[a] competição não é nem pode ser sadia
[...] [pois ela] se constitui na negação do outro” (MATURANA, 1998, p. 13). Como explicita Milton
Santos, nas condições atuais, “instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao ca-
nibalismo, a supressão da solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável
e para o exercício da democracia” (SANTOS, 2000, p. 54). Enquanto Humberto Maturana enfatiza
que nas emoções presentes em competições esportivas, por exemplo, não há convivência sadia, pois
a vitória de um implica na derrota de outro, ou seja, “sob o discurso que valoriza a competição como
um bem social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que constitui as ações
que negam o outro” (MATURANA, 1998, p. 13). E, de modo mais contundente e direto para o que
nos interessa, ao tratar do “atual sistema de educação” (no Chile, que, neste aspecto, não se distingue
do daqui ou de outros países que aderem à mentalidade predominante), Maturana diz que com tal
sistema se “configura um projeto nacional fundado na disputa e na negação mútua, sob o convite à
livre competição [nas transações comerciais, mas imediata e inconscientemente estendido às outras
esferas da vida]” (idem, p. 14). Retomando Milton Santos, “[a] competitividade, sugerida pela produ-
ção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos
espíritos que se instala. [...] [Trata-se] de uma violência estrutural [...] [e um de seus corolários é a]
perversidade sistêmica” (Santos, 2000, p. 37). Ele esclarece: “a causa essencial da perversidade sistê-
mica é a instituição [...] da competitividade como regra absoluta, uma competitividade que escorre
sobre todo o edifício social. O outro [...] aparece como um obstáculo à realização dos fins de cada um
e deve ser removido, por isso sendo considerado uma coisa” (idem, p. 60; grifo do autor). E sintetiza:
“[n]este mundo globalizado [...] [a] competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo
comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mun-
do, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos” (idem, p. 46). Por razões desse teor
me posiciono contra olimpíadas do saber ( JAFELICE, 2005a), como, por exemplo, as olimpíadas de
matemática, de física, de astronomia etc. Claro que pode haver algum eventual benefício – localizado
e específico, atendendo a certos fins, não necessariamente os melhores para todos – na realização de
tais olimpíadas. Contudo, conforme analisado mais em detalhe em Jafelice (2005a), estou convenci-
do de “que, uma vez pesados os prós e os contras desse tipo de competição, estes ganham de longe”.
Pela visão de uma geografia-sociologia, “[e]xclusão e dívida social aparecem como se fossem algo
fixo, imutável, indeclinável, quando, como qualquer outra ordem, pode ser substituída por uma or-
dem mais humana” (SANTOS, 2000, p. 76). Pelo enfoque de uma biologia-autopoiética, “[n]ós, seres
humanos, podemos fazer qualquer coisa que imaginamos, se respeitarmos as coerências estruturais
do domínio [de existência] no qual operamos. Mas não temos que fazer tudo o que imaginamos.
Podemos escolher, e é aí que nosso comportamento como seres humanos socialmente conscien-
tes importa” (MATURANA, 2001, p. 198). Como destaca Stephen Jay Gould, a seleção natural é
darwiniana [vide ainda Jablonka e Lamb (2010)], ao passo que a mudança cultural é lamarckiana
(GOULD, 2001, p. 301-309). Podemos aprender com nossos erros e corrigir rumos que, muitas ve-
zes sem querer, com a melhor das intenções, estávamos ajudando a desencaminhar. Isto anima a es-
perança de Milton Santos, Humberto Maturana e muitos outros de nós: podemos, sim, construir um
mundo melhor, em que prevaleçam solidariedade, equidade e paz. Por isto, “nossa grande tarefa, hoje,
[enquanto educadores, intelectuais e formadores de opinião,] é a elaboração de um novo discurso,
capaz de desmitificar a competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos
espíritos” (SANTOS, 2000, p. 55). As ações coerentes com tal novo discurso, nos vários domínios da
sociedade (educacional, político, social, das relações interpessoais, jornalístico, das universidades, das
sociedades científicas e acadêmicas em geral etc.), poderão, assim, contribuir para substituir o que aí
está por algo mais humanitário.

322
Abordagem Antropológica

Ao mencionar que para “nossa espécie [...] outros ‘recursos internos’


[...] oriundos de processos subprodutos do fato de termos um cérebro maior,
começaram a operar” e que aqueles “recursos [...] nos habilitaram [...] para
criar cultura”, estou expressando uma reflexão livre, mas também simplista.
É apenas mais um ensaio para estreitar as inter-relações entre interpretações
humanísticas e científicas. Ao que parece, o quadro ali abordado é bem mais
complexo. Esse próprio “subproduto” (a cultura), por sua vez, serviu de es-
tímulo ulterior para um subsequente desenvolvimento do próprio cérebro,
em um processo complexo de retroalimentação ou sinergia. As literaturas an-
tropológica e evolucionista auxiliarão os interessados a enveredarem mais a
fundo nesses entrelaçamentos e conjecturas.
Contudo, quando comento que “cultura é [...] o diferencial que usa-
mos para nos definirmos enquanto humanos. [...] [que] ela pode ser vista
também como um ‘recurso interno’ de adaptação [...] [e que] considera-se
que só seres vivos podem ter cultura”, isto, em parte, é um gracejo – no senti-
do de que não se define cultura para o mundo inanimado nem para os mor-
tos! –, por outro lado – e isto é o mais importante de enfatizar aqui –, aquela
afirmação não deve ser entendida como uma insinuação de que cultura pos-
sa ser explicada pela neurociência. Seria muito reducionismo e ingenuidade
acreditar na possibilidade de tal explicação, embora, volta e meia, circulem
tentativas nesse sentido. Não há evidência que a suporte, pelo contrário, e
aqui não referendo uma explicação naturalizante desse teor73.

1.2 Gerais

Um bom exemplo – representativo e contundente, mas não isolado –


dos entrelaçamentos “dialéticos”74 entre cultura e natureza (cultura-natureza-
cultura-biologia-evolução-cultura-evolução-cultura-...) é dado pelo uso de
plantas psicoativas para provocar estados modificados75 de consciência, com

73 Geertz (2001, p. 179-190; vide seção Sugestões de leituras) nos oferece um ensaio estimulante sobre
esse tema.
74 Onde adoto, neste texto, a licença metafórica de chamar de “dialética” uma relação entre cultura e
ambiente – significando, como já expliquei, uma “interdependência dinâmica complexa”.
75 Prefiro o termo estado modificado de consciência, em vez da denominação comum de estado alterado
de consciência, porque embora ambos os termos possam ser sinônimos, “alteração” carrega em nosso
idioma uma forte conotação negativa, associada a perturbação, transtorno, exagero, algo indevido,
que deve ser evitado. Bem, esta evidentemente não é a conotação que deve ser relacionada às mudan-
ças perceptivas, cognitivas e outras decorrentes do uso culturalmente inserido de plantas psicoativas,
isto é, desde uma perspectiva antropológica.

323
Luiz Carlos Jafelice

as inúmeras consequências daí advindas nos planos psicológico, simbólico,


artístico, cultural e – para o que interessa destacar – também neurológico. O
recurso a esse tipo de substância (denominada alucinógena ou psicodélica
em meados do século passado) tem sido muito frequente, desde os primór-
dios da história da humanidade, como ainda o é contemporaneamente.
Uma das fontes em nossa tentativa de entendermos modos de vida e
visões de mundo de nossos ancestrais de estirpe (pré-históricos ou pré-des-
cobrimento, no caso das Américas, Austrália, entre outros “novos” mundos),
provém de registros pictográficos – pinturas rupestres ou gravuras em rocha.
A antropóloga Berta Ribeiro mostra que todo um lindíssimo panorama de
gravuras rupestres, s corporais e padrões de trançados e desenhos em ins-
trumentos musicais, cerâmicas e cestaria de culturas indígenas na Amazônia,
foram inspiradas em visões vivenciadas em estados modificados de consci-
ência pela ingestão (ritualística) de um cipó que causa aquela mudança. Isto
é, os padrões e desenhos observados naqueles registros materiais têm corre-
lação direta em forma e conteúdo com aqueles que aqueles índios dizem ver
quando estão sob o efeito das referidas plantas (RIBEIRO, 1995, p. 88-98;
vide também RIBEIRO, 2000). É importante ressaltar, aliás, que isto tudo –
plantas, sua ingestão ritual, desenhos enxergados, significados atribuídos, de-
senhos materializados em objetos, representações simbólicas associadas etc.
– faz parte da cosmologia desses índios, um saber mantido vivo através de sua
mitologia. [Outro exemplo igualmente notável a destacar nesse sentido, em
que inspirações artísticas são excitadas pela ingestão de plantas de poder, está
em Langdon (2000).]
O arqueólogo Robert Wenke, através de exemplos da Europa pré-
histórica e da comparação destes com outros produzidos por comunidades
de caçadores-coletores contemporâneas, também aponta para a possível cor-
relação entre estados modificados de consciência – neste caso, segundo ele,
pela ingestão de plantas psicoativas ou talvez devido a transes alcançados por
meditação ou, completo eu, por expressões ritualísticas envolvendo músicas,
cânticos e danças – e a realização de outro lindíssimo panorama de pintu-
ras rupestres em cavernas encontradas naquela região do planeta (WENKE,
1990, p. 183-184). Outros indícios e exemplos nessa mesma linha de ar-
gumentação – estendidos agora para Noruega, Sibéria oriental, áreas onde
habitam esquimós, Américas, Índia, Malásia, Nova Guiné e Austrália – nos
são apresentados pelo historiador das religiões Mircea Eliade. Ele afirma que
desenhos rupestres encontrados nesses lugares, contendo representações do

324
Abordagem Antropológica

tipo “raios X”, onde “aparecem [...] o esqueleto e os órgãos internos do ani-
mal”, se referem a “uma manifestação artística própria dos povos caçadores,
porém a ideologia religiosa de que está impregnada pertence ao xamanismo.
[...] [pois] o xamã é o único que, graças a sua visão sobrenatural, é capaz de
‘ver seu próprio esqueleto’” (ELIADE, 1999a, p. 43-44; tradução minha). Ele
diz que essa é uma experiência mística do tipo que “ainda se cultiva no budis-
mo tibetano” (idem; p. 44; idem).
Para informações mais recentes sobre relações de seres humanos com
substâncias psicoativas de um ponto de vista antropológico, recomendo o ex-
celente livro organizado por Labate e Goulart (2005)76. A vertente médica,
criminalística e do jornalismo sensacionalista referente ao tema das plantas
psicoativas – onde todas são genericamente catalogadas no departamento de
“drogas”, no setor das ilegalidades – dificulta que as pessoas possam encarar
o assunto com a perspectiva adequada, a qual, pela própria história e aplica-
ção daquele uso, é a antropologia que pode fornecer. Assim, o conteúdo do
referido livro é bastante esclarecedor por desassociar os efeitos de tais plantas
apenas das mudanças sensoriais ou busca do “barato” – como o conserva-
dorismo inculto, senão hipócrita, quer enxergar – e também por ressaltar a
possibilidade de se obter conhecimento “objetivo” sobre “o que existe”, por
uma via introspectiva e considerada – ocidentalmente – subjetiva77. Estes úl-
timos resultados é que nos são mais pertinentes e relevantes para aprofundar
e explorar na presente discussão.
Neste sentido, muitas culturas alegam ter obtido conhecimento da
ação medicinal ou outras propriedades de muitas componentes da flora e fau-
na, porque seus xamãs, quando em êxtase ou transe, foram guiados por espíri-
tos ou mestres, antropomorfizados ou não, na escolha das espécies e na forma
e época78 correta de coleta, preparo, prescrição e aplicação do produto resul-

76 A complementação e atualização dos muitos ângulos envolvendo esse importante tema – ainda den-
tro do apropriado enfoque antropológico – podem ser obtidas em outro livro muito oportuno de
Labate et al. (2008). Neste sentido, merece destaque também o livro de Sangirardi Jr. (1989), abor-
dando culturas indígenas americanas em geral e choques e entrelaçamentos com a cultura e práticas
médicas ocidentais.
77 E, portanto, para a mentalidade ocidental prevalecente, essa é considerada uma via inútil para nos
dizer algo válido (no sentido de uma concepção ontológica realista) sobre o mundo (objetivo) e, sim,
apenas sobre quem vive o processo (subjetivo). É o Ocidente, como já enfatizei antes, e a via adotada,
que acredita na possibilidade de separação entre sujeito e objeto e que a realidade do mundo só pode
ser alcançada via interação e intervenção com o concreto do mundo (ainda que na forma de energia
física).
78 Notem o ingrediente época, frequente em prescrições fornecidas pelo conhecimento tradicional, obti-

325
Luiz Carlos Jafelice

tante. É interessante observar que as alegações de revelações de segredos da


natureza obtidos através do uso de planta psicoativa guardam estreita seme-
lhança com alegações de filosofias transcendentais orientais, que argumen-
tam, por exemplo, que “A união do ser ao não-ser foi descoberta pelos sábios,
que refletiram sobre o que contemplaram em seus corações” (parte de uma
estrofe de poema do Rig Veda, texto da tradição indiana de cerca de quatro
mil anos atrás79, apud MARTINS, 1994, p. 34; a referência deste livro está na
seção Sugestões de leituras) – nestes últimos casos, sem que o estado modifica-
do de consciência fosse induzido por alguma substância e, sim, apenas através
de processos meditativos80. Como bem esclarece Roberto Martins, “existe um
processo de conhecimento que pode chegar àquilo que está, aparentemente,
fora do alcance dos próprios deuses. Os sábios descobriram essa ‘união do ser
ao não-ser’ voltando-se para dentro de si próprios pela meditação” (ibidem).
O mesmo parece suceder com xamãs, cujos conhecimentos de outros planos
e conexões de realidade lhes são propiciados81 quando sob o efeito de plantas
especiais ingeridas em contextos ritualísticos de sua cultura.

do em estado modificado de consciência ou não. É alusão explícita à importância essencial da relação


céu-terra para a ativação ou inibição (dependendo do que convém), preparação, aplicação ou otimi-
zação da ação do produto fitoterápico ou outro resultante. Por exemplo, sabe-se em muitas partes do
Brasil, em particular no interior do Rio Grande do Norte e região em torno, que “para não dar bicho”
(cupim ou outro que ataque madeira) deve-se cortar o pau (para se fazer cercas ou usar em constru-
ções) em noite escura (isto é, período de lua nova). Prescrições desse teor se aplicam sobre quando
deitar a galinha para que os ovos não gorem, quando fazer esta ou aquela experiência ambiental para
se prever a qualidade do próximo inverno (período de chuvas) e, naturalmente, sobre quando colher
certas plantas e preparar determinados medicamentos delas resultantes, dentre inúmeras outras situ-
ações. Vide Jafelice (2010a) onde isto é discutido mais em detalhe.
79 Segundo Kak (1995), novas datações levam a antiguidade do Rig Veda para cerca de 4.000 anos
atrás.
80 Alguns desses meditadores são chamados de iogues.
81 Essa outra visão de mundo é tão distinta da nossa habitual que convém discuti-la em detalhe. Esse
tipo de concepção – que considera que é possível conhecer algo que nós, ocidentais, entendemos
como sendo do exterior (do sujeito) e definitivamente independente (deste), através exclusivamente de
interiorizações orientadas (no e pelo sujeito) – é inconcebível em um mundo como o nosso, embe-
bido em ciência e tecnologia, que está convencido de que se não pegar, não tocar, não pode conhecer
aquilo que é tocado. Um mundo em que o universo é o que está lá fora e que só posso conhecê-lo – sua
origem, evolução, estrutura, inter-relações e leis que o regem – através do método (e experimenta-
ção) da ciência, isto é, conhecê-lo segundo um recorte epistêmico-procedimental bem específico e
restrito. Quem segue aquele outro caminho epistemológico, introspectivo, alega que também obtém
conhecimento, com todos os méritos e implicações pragmáticas de algo que também nós reconhe-
ceríamos como tal. Contudo, aquele saber não foi obtido por nenhum processo experimental, nem
procedimento que envolvesse tentativa e erro ou qualquer interação direta empírica com o objeto
que propiciou a obtenção daquele conhecimento. É como se pudéssemos conhecer o essencial sobre
a Lua, por exemplo, sem precisar ir até lá apalpá-la, cavoucar seu solo e analisar físico-quimicamente a
constituição de suas rochas – em parte porque tampouco este seria o tipo de conhecimento relevante

326
Abordagem Antropológica

Outro exemplo de entrelaçamentos natureza-cultura, bem mais


singelo que o anterior, mas também demonstrativo, está expresso no
fenômeno da bolandeira – embora quase ninguém saiba disto. Da forma em
que é incorporado na cultura, tal fenômeno expõe uma relação entrelaçada
de aspectos celeste-astronômico, celeste-meteorológico, terrestre, histórico e
social. Com efeito, vejamos: às vezes se forma uma roda luminosa, um arco
bem circular, em volta da Lua, com ela bem no centro. Esse é o fenômeno

almejado. Notem que nas situações referidas no texto acima, existe controle, digamos assim, referen-
dário a posteriori. Com efeito, pois o que um mestre de outro plano de realidade – ou a própria planta,
enquanto mestre – revelou ao xamã em transe sobre as propriedades de uma planta, por exemplo,
quando seguido na vida cotidiana por terceiros daquela cultura, mediante prescrições ditadas pelos
seus xamãs, funciona! Isto é: o uso daquele produto, daquela forma, realiza o processo de cura ou
outro específico buscado naquela consulta. O mesmo se aplica ao conhecimento obtido pelos sábios
em meditação. Esse sucesso é incompreensível e, portanto, inaceitável dentro do sistema de conheci-
mento científico; é atribuído ao acaso, à ocultação de etapa empírica não relatada, à intervenção de
fatores externos fortuitos que escaparam à percepção dos envolvidos ou a charlatanismo puro. Enfim,
análises e conclusões simplistas – ou mesmo preconceituosas – e, no fundo, nada científicas em seus
procederes. Analogamente àquela revelação de um poder medicamentoso específico de uma planta,
é possível que muito do que consideramos realidade – processos, relações etc., na acepção cotidiana,
das representações construídas a partir dos sentidos e da capacidade mental humana, isto é, no nível
perceptivo-cognitivo que enxerga e acredita na separação entre sujeito e objeto, que estes estão su-
bordinados a uma causalidade elementar etc. – possa ser acessado via aquele tipo de introspecção.
Se a interdependência cósmica é total – entendendo-se por cósmico não apenas o que no Ocidente
nos habituamos a reconhecer como tal e, sim, inclusive envolvendo níveis e domínios não passíveis
de serem compreendidos pelo arcabouço neural de que dispomos e, portanto, não passíveis de serem
explicados nem inferidos plenamente apenas do ponto de vista físico convencional –, esta hipótese
epistêmica “heterodoxa” não é tão sem sentido; é possível que ao nos voltarmos para dentro de nós
mesmos encontremos respostas para o que consideramos ordinariamente estar “fora” de nós. Neste
caso, mesmo relações – “fatos” e “conexões” – que captamos em um plano ordinário de realidade
podem ser “vistas” e “compreendidas” desde outras perspectivas – embora, muito provavelmente,
não com os mesmos significados, relações e implicações que somos capazes de reconhecer e entender
em nosso estado habitual de consciência. Isto também aproximaria muitos relatos de teor mítico de
conteúdos com significado eventualmente inclusive ontológico, em uma acepção ampla do termo.
Assim, as verdades reveladas nos estados modificados de consciência mencionados não teriam os
limites intrassubjetivos que nossa visão cientificista ortodoxa lhes atribuiria e poderiam se aplicar
tanto aos entornos autóctones e topocêntricos mais funcionais – envolvendo segredos de plantas,
pessoas e outros animais –, como, igualmente, aos contextos cosmológicos (na sua acepção física),
transcendendo a estrutura espaço-temporal conhecida. Esta possibilidade de conhecer é por demais
extravagante e estranha para nossa forma ocidental de enxergar as coisas. Contudo, é preciso manter
em mente que esta é uma forma cultural apenas, não a forma privilegiada per se quanto à acessibili-
dade e conexão com a ontologia nem quanto à compreensão da mesma. Para expressar o indizível,
as linguagens metafórica e poética, comuns nas situações narradas no texto, são o recurso disponível
para tentar-se expressar em palavras algo inefável, frequente nos relatos de experiências numinosas. A
rigor, porém, não temos como saber agora se “interdependência cósmica total” (com aquele sentido
de totalidade mais amplo e de impossibilidade de acesso completo pela via científica convencional,
esboçado acima) existe. Se não existir nada disso, sempre resta a reivindicação do direito a possibili-
dades múltiplas de construção de conhecimento significativo por seres humanos. O mais importante,
do ponto de vista da presente abordagem pedagógica, é nos empenharmos em garantir a legitimação
e a convivência harmônica de pluralidades, inclusive epistemológicas. Este último ponto é de relevân-
cia central na criação de estratégias de descondicionamento e de desconstrução do pensamento único
e na construção de uma visão de mundo mais diversamente humana e justa.

327
Luiz Carlos Jafelice

conhecido popularmente, em especial no Nordeste, como bolandeira.


Conhecedores tradicionais usam-no para predizer se vai chover – e quanto – ou
não. Ele é bem conhecido, pelo menos por agricultores no interior nordestino.
Contudo, o que não é tão conhecido – e que nesses anos todos de trabalho
com etnoastronomia só ficamos sabendo recentemente – é que há dois tipos
de bolandeira: a “de neve” e a “de vento”, conforme nos ensinou seu Josias: “a
de vento forma um arco grande, longe da Lua; a de neve fica bem mais perto,
em volta da Lua. [...] A de vento não quer dizer chuva. A de neve quer dizer
que vai chover” (SILVA, 2007). O arco é formado nas nuvens (finas ou pouco
densas), as quais estão próximas da Terra, em comparação com a distância da
Lua àquela. Ou seja, um fenômeno do céu meteorológico está diretamente
associado, aqui, a um objeto do céu astronômico. Quando os olhamos desde
a superfície da Terra, ambos estão próximos um do outro no quadro de visada
e podem ser interpretados como estando correlacionados – isto é, como se
Lua e bolandeira estivessem, de fato, fisicamente próximas uma da outra, em
relação de troca direta e o arco tivesse sido formado perto da Lua mesmo.
Em geral é difícil separar eventos astronômicos de meteorológicos a olho nu
desde uma perspectiva topocêntrica – que é a única de que dispomos em
nosso dia a dia82. Notem que aquela “correlação” se sustenta, na prática, por
ter também uma consequência factual observável, e não por mera repetição
de algum equívoco observacional ou associação infundada. Seu Josias, em
particular, tem consciência de que a bolandeira é fruto de nebulosidades daqui,
da atmosfera, embora pareça perto da Lua; isto é, ele sabe que esta está muito
longe daquelas. O nome bolandeira vem da época da economia da cana-de-
açúcar. A cana era moída numa máquina chamada bolandeira e era movida
por cavalos, bois ou escravos – os quais eram, em muitos aspectos, tratados
como, ou pior que, animais. Aqueles, andavam em círculos, empurrando um
pau comprido, através do qual faziam girar uma roda de engrenagens que
moíam a cana – também usada para descaroçar algodão ou ralar macaxeira
(mandioca). As pessoas ou animais andando no chão, em volta da máquina,
deixavam uma marca circular no solo. O nome da máquina foi estendido
para a marca no chão e desta para a marca no céu – assemelhada àquela, na
aparência, pois ambas têm a linha do arco mais nítida no centro da mesma e

82 Vide, neste sentido, por exemplo, a discussão histórica para tentar esclarecer se os cometas eram fenô-
menos meteorológicos ou não. Prevalecia a teoria aristotélica, de que eles eram de origem terrestre. A
questão só foi esclarecida no final do século XVI, por Tycho Brahe.

328
Abordagem Antropológica

as bordas mais esmaecidas –, todas denominadas bolandeira. Do ponto de


vista da física, esse arco noturno colorido – que mesmo astrônomos e físicos
com frequência desconhecem – é um arco-íris. A parte da luz (branca) do Sol
que, após reflexão na superfície da Lua, chega até a Terra, sofre o processo
de dispersão, por refração em nebulosidades na atmosfera terrestre83, e é
decomposta em suas cores integrantes. Pode-se dizer, então, que a bolandeira
é o arco-íris da Lua! Quando a formação do fenômeno é favorável, então
nas noites de lua cheia ele é mais notável; mas mesmo em outras luas (com
exceção da nova) é possível identificá-lo. Tentem.
Mudando o foco da discussão agora e fornecendo outros subsídios,
retomemos a parte acima, neste apêndice, onde mencionei que “se a vida de-
pendesse de proporcionalidade fixa entre os ritmos [...] muito provavelmente
ela não teria evoluído para formas mais complexas”. Neste ponto cabem ou-
tras informações e reflexões associadas. Não vou entrar em grande detalhe
porque está além do escopo deste capítulo, mas há digressões que merecem
ser mencionadas, pelo menos para descortinar a amplidão do que se está ten-
tando entender. As relações entre “céu” e “terra” podem ser tantas quantas
as existentes em um todo que é intrinsecamente complexo – uno, no fundo
– em muitos mais aspectos do que conseguimos imaginar. O mais provável
é que não consigamos abarcá-las e compreendê-las em suas totalidades de
inter-relações e implicações na conformação das várias formas de vida no pla-
neta, pelo menos não pela via exclusivamente analítica, racional. Sobre isto
comento algo nos próximos parágrafos.
Nesta parte, em vez de fazer comentários mais circunstanciados, como
cheguei a fazer acima, vou minimizar as explicações e concentrar as situações
destacadas em uma forma mais sinóptica e visual, através do Quadro Inter-
dependências. Em comentários mais breves e genéricos esclareço, a seguir, o
espírito e o conteúdo do mesmo.
Esse Quadro contempla apenas informações e conjecturas mais ge-
rais feitas nesta subseção 1.2, do presente apêndice. Assim, todas as questões
associadas à cronobiologia, por exemplo – tanto mecanismos adaptativos e
evolutivos, como implicações culturais desencadeadas ou relacionadas aos
mesmos, com exceção de um par de implicações associadas à Lua e a eclipses

83 Isto é, em gotículas de água suspensas (que compõem as nebulosidades) na atmosfera, como as que
flutuam pelo ar após uma chuva e podem contribuir para formar o habitual arco-íris, se as condições
forem propícias.

329
Luiz Carlos Jafelice

–, não estão incluídas nesse Quadro84. Os interessados, de posse do que está


exposto na subseção 1.1 (Específicos) deste apêndice e na subseção 2.3 (An-
tropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultura) deste capítulo, poderão
completar o Quadro nos aspectos e pontos que julgarem pertinentes. Além
disto, é claro, ele não é exaustivo na inclusão das “conexões” entre “aqui” e “lá”
e “implicações” das mesmas, nem nos casos em que ambas possam ser estabe-
lecidas sem maiores ambiguidades. Mesmo incompleto, ele serve para realçar
como os entrelaçamentos céu-terra, cultura-natureza, são variados, profun-
dos, dinâmicos, interdependentes e complexos. Aquilo que é muito incerto
ou especulativo está denotado no Quadro por um ponto de interrogação entre
parênteses: (?).
O Quadro Interdependências é original em dois aspectos, pelo menos.
Ele concentra correlações “céu-terra” – confirmadas ou conjecturadas – já es-
tudadas principalmente por alguns ramos das ciências naturais (embora nem
sempre pesquisado com o objetivo de explicitar aquele tipo de conexão), mas
que ainda não haviam sido reunidas em um único quadro sintetizador. Ele
apresenta, ainda, correlações originais daqueles estudos com aspectos cultu-
rais, e esta é a contribuição inédita mais relevante para o que nos interessa
neste capítulo.
Com efeito, somos seres de cultura, construtores de significados que
se dão na e pela cultura. Neste sentido, não devemos nos confundir com o
fato de o Quadro trazer um número aparentemente grande de dúvidas ou
especulações no domínio da cultura, nem com a disposição que coloca natu-
reza “antes” de cultura (no sentido de leitura do Quadro), com as implicações
– representadas por:  – que parecem subordinar deterministicamente esta
àquela. É preciso estimular um olhar holístico e lembrar, por exemplo, que só
a conformação de nosso pensamento analógico e simbólico já seria suficien-
te para definir uma característica essencial de nossa espécie (afinal, ele foi
um dos atributos cruciais para garantir o êxito desta enquanto tal), de onde a
maioria – senão todas – as outras possíveis ou eventuais implicações decor-
rem – e este tipo de consequência tem base mais assegurada (e.g., ELIADE,
1993b).

84 Neste sentido, nem outros fatores relevantes na relação “Terra-céu”, como a distância da Terra ao Sol
– que pode permitir ou não a existência de formas complexas de vida –, ou a velocidade de rotação da
Terra em torno de si mesma – que determina a duração média (ao longo do ano) da variação claro-
escuro do dia (com todas as implicações cronobiológicas e vitais daí decorrentes) –, entre outros, não
estão contemplados no Quadro Interdependências.

330
Abordagem Antropológica

Gostaria, então, de dirigir o olhar dos leitores para onde está a novida-
de. Sugiro que leiam e releiam esse Quadro, reflitam sobre o assunto, mas não
se prendam à razão, divaguem também, livremente, com as associações que
surgirem; tentem perceber a riqueza e a complexidade das relações “céu-terra”.
Recomendo, contudo, que não se detenham aí, nem se deixem dominar pelo
aspecto científico natural que prevalece no mesmo. Eludam a conceituação
automática que surge, com aquelas associações instantâneas e pensamentos
que transmitem conhecimento (e segurança) acima de qualquer suspeita (do
tipo: agora sabemos com certeza que a Lua é o satélite natural da Terra, o Sol
é uma estrela, a estrela cadente é um meteorito em queda, inflamado pelo
atrito com a atmosfera etc.) – para não interporem uma barreira intelectual
entre vocês e o Quadro, e não olharem para ele sabendo já de tudo e vendo “os
objetos”, “os fenômenos” e “as relações” lá arrolados como sempre os viram,
velhos conhecidos, talvez em arranjo incomum, mas nada diferente disso, en-
tre outras interferências intelectivas. Evitem também o reducionismo de pen-
samentos que vemos com frequência em matérias de divulgação científica, na
linha: o “todo” está interligado, como foi “provado” pela física, astronomia,
biologia, e tudo e todos fazemos parte de uma unidade – materialmente falan-
do85. Sim, porque todas essas explanações, por mais que acenem – de longe,
é claro – com possibilidades de enlevos outros, seu aterramento umbilical à
materialidade e ao cientificismo, com suas leis universais e invioláveis (ainda
que probabilisticamente, nos casos de sistemas complexos ou quânticos), as

85 No ensino e na divulgação de astronomia é comum encontrarmos comentários que tentam huma-


nizar essa área das ciências naturais. Um recurso habitual para tal é a construção de discursos que
recorrem à relação histórica da espécie humana com o céu – como se tivesse havido relação histórica,
como se esta tivesse sido da espécie e como se o que entendemos, na modernidade, por relação e por
céu se aplicasse a todas as épocas e culturas existentes. Aí, com frequência, é feita uma narrativa de
como deve ter sido a vida de nossos antepassados mais distantes. A ênfase costuma ser nos itens inse-
gurança, ansiedade e medo (ainda mais nas noites sem lua) da vida de então, impotentemente à mercê
das imprevisibilidades ambientais. É um desfiar de fantasias nessa direção que, de tanto se repetirem,
infelizmente ficaram convincentes para a maioria das pessoas, mesmo com formação universitária
completa – embora com grande ignorância nas áreas de arqueologia, antropologia e psicologia cultu-
ral, para citar poucas lacunas básicas para o tema em questão. Aquelas narrativas são antes projeções
da visão de mundo ocidental urbana consolidada na modernidade, do que recriações procedentes e
pertinentes do “como deve ter sido então”. Um dos objetivos daquele tipo de ficção narrativa é realçar
“como a astronomia é humana”. Ora, isto significa, no mínimo, forçar uma universalidade e atempora-
lidade que os estudos daquelas referidas áreas notoriamente não corroboram. É uma versão contem-
porânea do etnocentrismo e do anacronismo. Aquilo que se classifica hoje, com olhar retrospectivo
– isto é, historicamente anacrônico e antropologicamente desinformado –, como sendo da área de
astronomia, não tem cabimento. Comento sobre isto na subseção 2.2 e em Jafelice (2009a). Esse tipo
de narrativa que critico, lamentavelmente é muito comum em palestras, internet, livros, revistas e
exposições de divulgação e de ensino de astronomia no Brasil e no mundo afora.

331
Luiz Carlos Jafelice

impede de alçarem vôos mais atrevidos ou provocadores, de proporem com


seriedade algo de fato mais humano em diversidade inventiva e índole.
O “céu” e a “Terra” não estão interligados apenas por fazerem parte de
um determinado sistema físico maior (unidos por compartilharem dos mes-
mos constituintes e estarem sujeitos às mesmas leis naturais, dentre outros
pensamentos cientificistas típicos nessa linha), onde as trocas e estímulos
mútuos seriam inevitáveis. Assim, não deveria ser essa imagem a ser prevale-
cida após o estudo desse Quadro. Tudo bem se também essa imagem cientí-
fica convencional ganhar colorido e profundidade devido a tal estudo – afi-
nal, não queremos excluir olhares, queremos desconstruir falsos referenciais,
desfazer vieses tergiversantemente justificados e argumentar em prol de uma
equanimidade das epistemologias humanas e, portanto, de suas possibilida-
des representacionais e criadoras de sentido. Entretanto, o mais importante
a sobressair, após o estudo do Quadro Interdependências, deveriam ser três de
suas contribuições mais significativas, quanto à ontologia, à epistemologia e
à cultura.
Ontologia, porque na coluna do Quadro referente às implicações cul-
turais estou sugerindo que relatos míticos podem não dizer respeito “apenas”
ao espírito ou à psique humanos (no sentido cartesiano do pensamento cien-
tífico convencional), e, sim, podem guardar relação com uma constituição
ontológica, inclusive no sentido científico-realista, do suposto universo ma-
terial. Epistemologia, porque ao sugerir aquilo, estou sugerindo também que
as revelações obtidas através de estados modificados de consciência, segredos
contados por musas ou espíritos, em sonhos ou experiência numinosa que
for, podem também constituir um caminho de obtenção de conhecimento
geral, incluindo, eventualmente, aquele relacionado à ontologia no estrito
sentido cientificista do termo – caminho aquele, muito original, aliás, por ser
de teor introspectivo e dispensar completamente a interação físico-experi-
mental com o que está sendo conhecido (conforme já discuti acima). Cultu-
ral, porque, já enfatizei acima, somos seres de cultura e tudo que conhecemos
– isto é, que construímos para ter significado – é realizado pela e na cultura,
independentemente de o fruto dessa construção ter ou não relação com a
suposta ontologia perseguida pelo realismo científico.
Apresento o Quadro nas páginas 334 e 335. A seguir forneço explica-
ções sobre os conteúdos propriamente ditos e as alusões feitas no mesmo.

332
Abordagem Antropológica

Algo bem estabelecido e direto quanto à presença determinante do


“céu” nas nossas vidas, presente atualmente, está na forma com que medimos
o tempo – e os ângulos, ambas as medidas ligadas, na origem, a um mesmo
proceder. Com efeito, usamos um sistema sexagesimal (base sessenta)86 em
tais medidas. A origem dessa base remonta há mais de 5.000 anos, com os su-
mérios, e sua aplicação na astronomia, há mais de 3.000 anos, com os babilô-
nicos. Esses povos habitaram a região da Mesopotâmia, onde hoje é o Iraque.
Esse sistema era usado cotidianamente, na época, enquanto base numérica,
e por estudiosos, para uso matemático avançado e astronômico. Os babilôni-
cos transmitem esse sistema aos gregos87 que, por sua vez, o transmitem aos
árabes, de quem o herdamos. Ele era usado por esses povos enquanto sistema
erudito (IFRAH, 1997, p. 162). Assim, hoje, quando “olhamos a hora” em
nossos relógios de pulso – para quem os usa –, no canto da tela do compu-
tador ou onde for, ou quando calculamos tempos, estamos nos referindo a
um sistema de medida de cerca de 3.000 anos de idade (de origem guiada
por fenômenos celestes; embora a grande maioria de nós não tenha nenhuma
consciência disto). Ao passo que para todo o resto de nossas medidas e con-
tas – numéricas, financeiras etc. – adotamos (em praticamente todo o mundo
ocidental contemporâneo88) o sistema decimal. Que aquele sistema seja de
origem celeste não é estranho, pois só o céu89, o que nele ocorre, nos capacita
a construir equipamentos90 que visam reproduzir as regularidades rigorosas
que “as coisas do céu” nos propiciam – não há fenômeno intrínseca e exclusi-
vamente terrestre que nos dê tal rigor e exatidão temporal. Essas regularida-

86 Nas medidas de tempo, 60 segundos formam um minuto e 60 minutos formam uma hora; nas de ân-
gulos, 60 segundos (de arco) formam um minuto (de arco) e 60 minutos (de arco) formam um grau.
87 Essa “transmissão”, na verdade, tem muitos pontos em aberto ainda. Otto Neugebauer, conhecido
historiador da astronomia, que trabalhou diretamente com registros cuneiformes da astronomia ba-
bilônica, considera que “[p]ara a maioria dos historiadores modernos, o problema da transmissão
de conhecimento astronômico das escolas dos templos em Uruk e na Babilônia para homens como
Hiparco ou Apolônio permanece como a maior questão não resolvida” (NEUGEBAUER, 1983, p.
163; tradução minha [reprodução do artigo A sobrevivência de métodos babilônicos nas ciências exatas
da Antiguidade e Idade Média, de 1963; idem para este título]).
88 Onde as exceções mais notórias são as da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América.
89 Desde nossa perspectiva topocêntrica, convém relembrar mais uma vez – pois aquela é a única pela
qual podemos vivenciar os fenômenos celestes. Isto é, a regularidade (aceitável como tal para as es-
calas humanas de existência) dos movimentos da Terra etc. é vivida, por nós, enquanto regularidade
determinada pelo céu.
90 Por exemplo, Neugebauer (1983, p. 239-245; originalmente 1947) mostra que os babilônicos, em
uma fase inicial de sua astronomia (cerca de 800 a.C.), já usavam um relógio de água (clepsidra) para
medir o tempo.

333
Quadro Interdependências

334
Conexões céu-terra mais notáveis e algumas implicações nas relações natureza-cultura
CÉU MEDIAÇÃO TERRA
ENTIDADE/PROCESSO FORMA/ETAPA CONSEQUÊNCIA/IMPLICAÇÃO
Luiz Carlos Jafelice

ENTRELAÇADAS

NATUREZA CULTURA
“DIALETICAMENTE”

Ciclos Lua ⇔ Ciclos Sol/Estrelas ⇔ Ciclos planetas ⇒ Regularid. observ. (mês/ano/etc.) ⇒ Ciclos: lum./sazonali//; ⇒ Calend./Arquit./Festiv.
Dir.; med. âng./tempo; incid. lum. orient.; âng. incid. luz Sistema sexagesimal
Cometas/Meteoritos/Asteroides Composto de água (cometa) ⇒ Água na Terra Relatos míticos (?)
(incluindo ainda os eventos dos meteoros isolados e os mais Contém matéria orgânica ⇒ Origem da vida (?) Conhec. via estados
conspícuos, das chuvas de meteoros) ⇒ Contém vírus (?) ⇒ Especiação (?) ⇒ modif. de consc. (?)
Tem grande energia cinética ⇒ Destruição/Extinção Pinturas rupestres (?)
Contém ferro (meteorito; frag. aster.) Fonte de matéria-prima “Metalurgia” arcaica

Explosões de Supernovas ⇒ Produz radiação gama ⇒ Ext./Mut. T. primit. (?) Rel. mít./Impl. hist. (?)
Produz raios cósmicos ⇒ Especiação (?) Pinturas rupestres (?)

Raios Cósmicos (solares e extrassolares) ⇒ Raios cósmicos ⇒ Mutação genética/


(elétrons/prótons/íons) /Especiação
Oscilação do Sistema Solar em Relação ao Disco Galáctico → Há modulação (envolv. escalas de Extinções espécies
Entra-e-sai relativa/ periódico em nuv. molec. interest. de ≠ tempos  muitas dezenas milhões (?)

densidades, presentes principal/ disco da V. Láctea → Qto. + ⇒ anos) na incid. luz solar e na taxa de ⇒ Explosões espécies

densa a nuv., + notórios os efeitos raios cósmicos sobre a Terra (?) (?)

Precessão da Terra → Variação da direção do eixo de rot. ⇒ Alterna meses de verão (e inverno) ⇒ (?)
Terra em rel. plano eclíptica (órbita); período: 26.000 anos nos hemisf. a cada 13.000 anos
Condições Físico-Químicas (pressão; temperatura; abund. Condições físico-químicas propícias Suprimento de Matéria “lá” ≠ Matéria
química; radiação; grau de ionização) do Meio Interestelar para a síntese de moléculas moléculas necessárias “aqui”
(em particular – mas não apenas – em superfícies de grãos de ⇒ orgânicas complexas ⇒ para originar a vida (?) ⇒
poeira interestelar nas proximidades de certas estrelas) Narrativas míticas (?)
Lua Estabili// dir. eixo rot. Terra (?) ⇒ Compl. formas vida Pens. analógico e
⇒ Causa marés ⇒ Regula org. costeiros ⇒ simbólico humano →
Tem “fases” (qdo. vista da Terra) ⇒ Var. rítmica aparência sucesso da espécie.
Ciclo metônico (19 anos) ⇒ Repet. seq. fase/dia Calend. igreja catól.

Ciclo Solar → Variação na atividade solar (manifesta na Intensificação: de incidência de raios Correlação c/ eventuais Divindades celestes se
mudança do número de manchas e na produção de ⇒ cósmicos, do fenômeno das auroras ⇒ variabili// de período ⇒ manifestando (?)
tempestades magnéticas, que afetam a fotosfera, cromosfera e e da interação entre clima espacial e bem + longo (?) → Outro reforço para
coroa solares) cujo período é de 22 anos clima terrestre Glaciações (?) adoração do Sol (?)
Eclipses: da Lua e do Sol. Destacando a peculiari// notável: a Obliteração da luz do astro Do Sol: mudanças: Relatos míticos
rel. entre os tamanhos da Lua e do Sol é “compensada” pela ⇒ temporaria/ ocultado/esmaecido ⇒ comportam. animais, ⇒ Pensam. analógico
rel. inversa exata entre as distâncias desses astros à Terra → Fenômeno + marcante ainda (mas − reação das plantas Assoc. eventos histór.
possibilita a ocorrência de eclipses do Sol frequente) quando o eclipse é solar Da Lua: luminos. not. Pinturas rupestres (?)
Alinhamento de astros (planetas visíveis a olho nu na ⇒ Regularid. observáveis c/ durações ⇒ (?) ⇒ Pens. filosóf. indiano
antiguidade, Lua e Sol) e outros ciclos de teor astronômico variáveis, algumas muito longas Concep. cosmológica
Sete astros brilhantes (seis deles principal/ à noite) e errantes ⇒ Sucessão de eventos: var. lumin.; ⇒ (?) ⇒ Enredos/Divind. cel.
(mov. em rel. às estrelas de fundo) visíveis a olho nu eclipses; conjunções planetárias etc. Nomeiam dias semana
Enriquece o meio interestelar com material orgânico → Colisão de corpo celeste com a Terra Matéria Orgânica Complexa/Vida Primitiva (unicelular
eventual uso posterior em ambientes planetários outros, ou ⇐ → espalha matéria orgânica/vida ⇐ procariote) [→ Atenção: esta última linha é a única em que as
que tais, favoráveis para dar continuidade/originar a vida (?) primitiva no espaço sideral (?) implicações são, em princípio, da “terra” para o “céu”.]
Abordagem Antropológica

335
Luiz Carlos Jafelice

des se manifestam no que enxergamos entre o nascer e o ocaso de um deter-


minado astro ou – para a Lua e o Sol, ou estrelas – em períodos mais longos,
como o mês ou o ano, além daquelas de maior duração ainda, associadas aos
planetas. Em suma, remontando-nos àqueles primórdios civilizacionais cujas
criações tiveram implicações diretas em nossa cultura (e valem até hoje), me-
dir ângulos – que os astros percorriam no céu em relação ao plano horizontal
(entre nascer e ocaso), ou que o Sol ou a Lua percorriam em relação às estre-
las de fundo (diuturnamente) –, e medir intervalos de tempo era (é) um mes-
mo processo91. Esta sistemática se associa à elaboração de calendários.
As informações históricas sobre como os babilônicos do velho perí-
odo (cerca de 1.600 a.C.) faziam seus cálculos astronômicos não são dire-
tas, dependem de “interpretações de um contexto normalmente difícil”
(NEUGEBAUER, 1983 [1947], p. 239; tradução minha). Mas sabe-se que
seu calendário civil “nunca abandonou o uso de meses lunares verdadeiros”
(ibidem; idem) mesmo na época da astronomia matemática (dos últimos três
séculos a.C.). Havia um ciclo mais longo, sazonal, de caráter anual, para o
qual outro calendário, de motivação agrícola, era relevante. Embora se espera
que seja natural tentar-se ajustar o calendário lunar existente ao anual – o que
ocorreu, independentemente, em muitas culturas –, na Babilônia parece que
“não foi feita nenhuma tentativa séria nos períodos iniciais [pelo menos antes
de 800 a.C.] de se estabelecer relações fixas entre o ano solar e o lunar”, além
disto, “a intercalação de um 13º mês92 era regulada simplesmente de acordo

91 No apêndice 2 (O céu na organização da vida humana ao longo da história da humanidade) exponho


mais em detalhe sobre muitos dos aspectos da organização humana da vida que são pautados, na ori-
gem ou até hoje, por fenômenos celestes. Lá, comento questões envolvendo calendários, arquiteturas,
festividades etc., enfim, sobre as organizações do tempo, do espaço, das sociedades e das culturas com
base em “coisas do céu”.
92 O problema básico por trás de toda tentativa de sistematização e padronização de intervalos de tempo
para uso civil a partir de intervalos de tempo fornecidos pela única fonte confiável de fenômenos
periódicos (que é o céu) reside no fato de que não existem divisões exatas quando se trata de medir
o tempo astronomicamente desde a Terra. Com efeito, para um dado lugar sobre a Terra, o tempo
preciso que o Sol leva para retornar, depois de um ano, ao mesmo ponto no céu (tendo estado na vés-
pera no mesmo ponto em que ele estava na véspera do dia correspondente no ano anterior) não dura
um número inteiro de dias; nem a Lua leva um número inteiro de dias para retornar precisamente a
uma dada fase; e nem a duração do ano comporta um número inteiro de lunações. Uma lunação dura
aproximadamente 29,5 dias. Portanto, se for para arredondar, é natural aproximá-la a 30 dias. Isto
sempre implicou em um “excedente” de dias nos calendários solares, pois o ano (com quase 365 dias
completos) não tem exatamente 12 meses de 30 dias cada um (que dá um total de 360 dias). Os dias
“extras” (que são 5 em um ano, mas podem acumular-se ao longo de anos sucessivos) foram acomo-
dados de diferentes formas por várias culturas. Algumas consideraram que aqueles dias estavam “fora
do tempo”. Nestes casos, eles eram reservados para festividades ou comemorações cujo caráter era de

336
Abordagem Antropológica

com as condições da agricultura em cada ano particular. Para propósitos for-


mais, porém, havia um calendário esquemático que supunha um ano de 12
meses de 30 dias cada” (ibidem; idem). Era um calendário para finalidades
comerciais e econômicas93.
Daí surge a base para uma divisão do ano em doze períodos, cada um
associado a uma constelação, a qual o Sol leva 30 dias (teoricamente) para
percorrer – ou ainda, o Sol avança sobre a figura de uma constelação de fun-
do, 1/30 da mesma em cada dia. E levará 360 dias (aproximadamente) para
“varrer” todas elas. Ou seja: o Sol se desloca em um dia, 1/360 da volta (cir-
cunferência) completa do céu. Essa medida de tempo (dia) corresponderá a
um ângulo varrido pelo Sol em um dia, que será definido como um grau. Em
outras palavras, o Sol avança 1 grau por dia contra as constelações zodiacais
de fundo, que parecem incrustadas na abóbada das estrelas94. Dia e grau, grau

“ano novo”, pois um novo início se prenunciava após o “caos” e os preparativos e rituais vivenciados
nesses dias de interregno. Tudo isto, naturalmente, dentro de uma concepção cíclica do tempo (e.g.,
ELIADE, 1992a; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras). Quando esse ajuste dos
dias “a mais” não era feito anualmente, após alguns anos (5 a 7 anos, em geral) era necessário fazer-se
a inserção de um “mês” inteiro (muitas vezes com menos ou mais que 30 dias) para que os calendários
solar e lunar ficassem outra vez relativamente mais ajustados, conforme Neugebauer relata sobre o
caso babilônico no referido texto citado.
93 O que não deve ser confundido com o fato de que o calendário babilônico básico era lunar, com
“meses de vinte e nove e trinta dias mudando muito irregularmente, combinado com uma complicada
intercalação cíclica [de um mês adicional]” (NEUGEBAUER, 1983 [1942], p. 196; tradução minha).
O povo que adota um calendário com “doze meses de trinta dias cada, cinco dias adicionais ao final e
nenhuma intercalação de espécie alguma” (ibidem; idem) é o egípcio. Este calendário é o que é manti-
do provavelmente durante um dos períodos mais longos da história: criado cerca de 3.000 a.C., é ado-
tado pelos astrônomos helenísticos e usado não apenas por Ptolomeu (séc. II d.C.) na composição
do Almagesto, como por Copérnico na elaboração do Sobre as Revoluções das Esferas Celestes (séc. XVI
d.C.) (ibidem). É importante destacar que a complexidade desses conceitos calendáricos, tanto dos
egípcios como dos babilônicos, “não deve ser considerada como uma luta de dois ou três sistemas ca-
lendáricos competindo entre si no sentido moderno da palavra, mas representa a coexistência pacífica
de diferentes métodos de definir momentos de tempo e intervalos de tempo de diferentes modos em
diferentes ocasiões” (idem, p. 202; idem). A visão contemporânea, forçante de um pensamento único,
que obriga a adoção de padrões unificados – senão supostamente surgirão conflitos –, de cujo poder
a ciência atual é umas das fontes (SANTOS, 2000), como tenho enfatizado em outras partes do texto,
nos impede de reconhecer a possibilidade da convivência pacífica autêntica de pluralidades. Nessa
linha, Neugebauer considera um anacronismo a terminologia moderna que fala em “calendários luni-
solares” antigos. Ele ressalta que “alguns elementos da vida antiga [na Babilônia e em outros lugares]
eram regulados pelas estações; outros, pela Lua (e no Egito, também pelo [pelas cheias do rio] Nilo
e [pela estrela] Sotis)” (idem, p. 203; idem). Todos esses elementos mantinham sua independência e
conviviam sem objeções. Temos bastante o que recuperar e aprender daquilo. [Observação técnica:
Sotis era o nome dado pelos egípcios para a estrela Sírius, a mais brilhante do céu (e também a mais
brilhante da constelação de Cão Maior) (BOCZKO, 1984, p. 13).]
94 Notem que esse deslocamento diário do Sol (que é aparente, pois se deve ao movimento da Terra em
torno dele; mas, já insisti: nosso sentido para esses fenômenos é topocêntrico) é calculado a partir

337
Luiz Carlos Jafelice

e dia, tornam-se, desta forma, naturalmente expressões distintas para grande-


zas correspondentes: dia, nas questões temporais, e grau, na sua equivalência
geométrica. Assim, o céu fornece a matriz primordial ou, como diria Eliade, o
modelo exemplar a partir do qual os seres humanos começam a organizar-se
espacial, temporal e socialmente na Terra. Esta relação celeste-terrestre inte-
grada foi decisiva não apenas para os povos que viveram entre o Tigre e o Eu-
frates, há quase 40 séculos atrás, cujo legado em parte está conosco até hoje,
mas também para as culturas que não desembocaram na atual civilização oci-
dental, embora cada uma tenha dado sabor, colorido e textura próprios aos
seus temperos de significação.
Vou mudar de foco agora, para prosseguir nos comentários sobre as
entradas do Quadro Interdependências (mas não na ordem95 em que elas lá
aparecem, embora todas serão abordadas neste apêndice). Há pesquisas cien-
tíficas em astronomia que argumentam que se a Lua não existisse, a estabili-
dade relativamente grande da direção em que o eixo de rotação da Terra (em
torno de si mesma) aponta tampouco existiria (e.g., WIKIPEDIA, 2009a, e
referências lá citadas). A ausência daquela estabilidade facultaria ao planeta
dar algumas “cambalhotas” em sua órbita, ao longo de sua existência – fican-
do às vezes em uma posição cujo sentido de giro em torno de si mesmo é dito
“retrógrado” (isto é, como ocorre com Vênus e, “em parte”, com Urano, cujos
sentidos de giro são anômalos, comparados com os dos outros planetas do

de observações noturnas referentes àquele “dia”, pois, durante o dia (isto é, durante a parte clara do
dia), o fulgor do Sol não permite que se enxerguem estrelas, muito menos aquelas que compõem a
constelação que está imediatamente por trás dele. Porém, recorrendo-se a outras estrelas de referên-
cia pertencentes (ou não, necessariamente) a uma constelação oposta no céu é possível obter-se o
resultado comentado no texto. Por exemplo, se o Sol está “sobre” a constelação de Câncer, então sua
antagônica, a de Capricórnio, poderá ser visível à noite – porém, é claro, não se depende dela para
obter o deslocamento diário do Sol em relação à constelação sobre a qual ele está; a sequência e o
distanciamento (angular) entre as constelações são conhecidos; então, qualquer constelação visível
(à noite) serve, em princípio, para se acompanhar aquele deslocamento. É verdade que em casos ex-
cepcionais, constelações inteiras podem ser vistas de dia, mas estas são situações raras (em termos da
extensão de território abrangido e da duração), que é quando ocorre um eclipse solar total. Nestes
casos, inclusive a constelação contra a qual o Sol se posiciona – e outras próximas a ela – poderá ser
visível nos minutos em que durar a totalidade (e só para quem estiver na região onde esta ocorrer).
[Observação técnica: aqui usei constelação como sinônimo de signo – por simplicidade e porque não
utilizo essas informações em detalhe nesta discussão. Contudo, as constelações zodiacais têm tama-
nhos angulares diferentes “e o Sol pode permanecer tempos diferentes em cada uma”, ao passo que
os signos zodiacais “são 12 arcos de circunferência, com 30º cada, exatamente” (BOCZKO, 1984, p.
126), e, portanto, é em relação a estes que o Sol avança cerca de 1/30 do mesmo em cada dia.]
95 A ordem das entradas no Quadro é aleatória; ela foi definida antes por necessidades de ajuste de
diagramação.

338
Abordagem Antropológica

sistema solar) e às vezes em posição “progressiva”, isto é, com a direção que


o eixo da Terra tem atualmente96. Os registros geofísicos dizem que nosso
planeta tem tido razoável estabilidade na direção de seu eixo de rotação há
muito tempo, em termos geológicos. Não se sabe quando a Terra passou a ter
a Lua por companheira, porque a origem desta ainda é questão em aberto;
a teoria mais aceita até agora – de colisão de um grande corpo celeste com
a Terra – coloca tal origem praticamente na mesma época que a da Terra,
há cerca de 4,5 bilhões de anos. Se foi assim que as coisas se deram, então a
Lua acompanhou (coparticipou de?) todo o processo de surgimento da vida
no planeta; e mais de perto do que agora (com eventuais outras implicações
vitais daí decorrentes), visto que atualmente a Lua se afasta da Terra cerca de
3 cm por ano, devido à ação de marés (SPUDIS, 1999) (como já mencionei,
não dá para extrapolar essa taxa para o passado distante; não se sabe como
ela varia).
O tipo de instabilidade referido no parágrafo anterior, se ocorresse,
não impediria o surgimento e relativo desenvolvimento da vida aqui. Porém,
quase com certeza, impediria que ela chegasse ao grau de complexidade que
certas formas de vida tiveram (mesmo se já extintas) ou têm. Se tais conclu-
sões procedem, então inclusive nós, humanos – além de um enorme número
de animais e plantas, no mínimo –, não teríamos vindo à existência se não fos-
se pela participação decisiva da Lua! Se não outra, pelo menos participação
em garantir a estabilidade que evitou que as zonas climáticas da Terra mudas-
sem de forma brusca, geologicamente falando. Neste caso, então, talvez esse
astro não sirva apenas para regular ciclos de organismos à beira-mar ou ajudar
em caçadas noturnas, nem apenas para enlevar enamorados ou como des-
culpa para se comemorar luaus, como alguns raciocínios mais pragmáticos e
simplistas às vezes avaliam.
Segundo outras propostas teóricas – estas mais aceitas – grande parte
da água que existe na Terra se deve à abundante queda de cometas no planeta
em um passado distante. Cometas são compostos basicamente de gelo (de

96 Notem bem: não é o sentido de giro, objetivamente falando, que muda. Um planeta não muda seu
sentido de giro ao longo de sua existência [a não ser, talvez (teoricamente não é impossível), que uma
colisão extraordinária – ou uma série de fortes colisões em um mesmo sentido –, com direção e inten-
sidade apropriadas, mas não a ponto de destruí-lo, o atingisse]. Aquilo a que me refiro é o seguinte: se
Terra desse uma “cambalhota” dessas, por exemplo de cerca de 180º em relação à atual direção de seu
eixo de rotação, ela continuaria, como o faz agora, a girar de Oeste para Leste; porém, na representação
convencionada por nossa cultura, na qual o pólo norte “está para cima”, após aquela “cambalhota”
nosso planeta “estaria” com o pólo sul “para cima”.

339
Luiz Carlos Jafelice

água), compostos orgânicos e poeira cósmica, e se supõem que são os respon-


sáveis por, no mínimo, mais de um terço da água dos oceanos terrestres (mais
recentemente, porém, tem se questionado a grandeza dessa fração de água de
origem cometária). Água é elemento vital e sua abundância foi fundamental
para o desenvolvimento das formas de vida que tivemos e as que ainda temos
hoje neste planeta.
Há ainda teorias – estas mais hipotéticas – propondo que a queda de
corpos celestes na Terra, como cometas, meteoritos e asteroides, contendo
moléculas orgânicas complexas necessárias para a vida, forneceram ingre-
dientes essenciais à origem da vida. Notem que essa proposta fala do forne-
cimento sideral de compostos orgânicos necessários à vida; isto é diferente
de dizer que a própria vida se originou fora da Terra, foi trazida para cá (por
corpos celestes) e aqui proliferou.
Contudo, também este último tipo de proposta, mais extremada e con-
troversa, foi feita – como a defendida pelos astrônomos Fred Hoyle e Chandra
Wikramasinghe (vide, e.g., HOYLE, 1993), por exemplo, entre outros. Eles
argumentam que a vida foi originada no espaço e já chegou aqui pronta (nem
que fosse na forma virótica, mais simples); ao encontrar ambiente favorável
neste planeta, ela se tornou mais abundante e complexa. Esta última proposta
é chamada de panspermia – a vida é gerada em todo o universo (não apenas
em ambientes do tipo planetário, que acreditamos serem mais propícios para
sua origem e desdobramento).
Por outro lado, a existência de moléculas orgânicas muito complexas
sintetizadas no meio interestelar – e moléculas importantes na composição
de organismos e participação em processos vitais – já está bem estabelecida
pela pesquisa em astroquímica97. Muitas dezenas dessas moléculas – algumas

97 Aqui é oportuno fazer um relato particular. Certa ocasião assisti o seminário de um astrônomo pro-
fissional no qual ele passou o tempo todo enfatizando que o produto (molecular) resultante em um
certo ambiente interestelar não poderia ter sido sintetizado aqui na Terra (devido às condições físico-
químicas aqui presentes). (É pertinente mencionar que ele tinha envolvimento também com divulga-
ção científica em astronomia.) Quando o interpelei, ao final, dizendo que, então, havia uma diferença
entre os materiais nos dois ambientes (terrestre e não-terrestre), ele foi categórico e afirmou que eram
exatamente idênticos (se referindo, é claro, aos elementos químicos e propriedades que constituíam
aquele produto). Ou seja, ele não tinha nenhuma consciência que toda sua argumentação estava pro-
vando (cientificamente!) a diferença essencial entre o que é produzido “no céu” e aquilo que pode ser
obtido “na Terra”. Não diferença nos constituintes, não na matéria, fisicamente falando, ou nas ditas
leis universais que aquela supostamente obedece, mas diferença na possibilidade de criação natural
(sem intervenção humana) e consequentes diferenças estrutural e funcional totais! Este exemplo é
típico entre cientistas; é exemplo de um olhar que se enrijece, se limita e se prende à reprodução
automática de um discurso que, se imagina, trará a iluminação da razão e será destruidor de dogmas.

340
Abordagem Antropológica

contendo, por sua vez, muitas dezenas de átomos – foram identificadas no es-
paço nas últimas décadas. Já, a hipótese da panspermia, não tem confirmação,
nem refutação, científica comprovada ainda. Assim, devido àquele respaldo
observacional, a hipótese da agregação sideral de ingredientes vitais via cor-
pos celestes torna-se mais plausível – ou mais difícil de se descartar – do que
a hipótese mais radical de que a vida como tal foi criada “lá fora”98.
Ainda na linha de hipóteses heterodoxas, Hoyle e Wikramasinghe
também fizeram trabalhos mostrando o que consideram evidências de
que os cometas podem ter tido (e continuar tendo) papel fundamental
no desencadeamento de epidemias viróticas (gripes e que tais) entre nós
(HOYLE, 1993, p. 130-137). Segundo esses autores, cometas transportam
não apenas material orgânico, mas também vírus99. Assim, os cometas,
ao adentrarem a atmosfera terrestre, ou suas caudas100, teriam sido os
responsáveis pela disseminação de muitos vírus ao longo da história do
planeta. Com isto, esses corpos celestes atuariam como agentes de mutação

Aquele astrônomo não percebia que aquilo que ele relatava com tanta insistência, em outro contex-
to ou época, referendaria exatamente uma visão de mundo aristotélica. Afinal, ele estava mostrando
evidências empíricas de que, de fato, há coisas que só podem ser naturalmente produzidas no mundo
supralunar! Portanto, mostrando que “lá” as coisas são essencialmente diferentes de “aqui”. Contudo,
ele não estava preparado para uma discussão como esta, por ter incorporado a mentalidade iluminista
e não conceber outras formas – igualmente válidas e legítimas – de se enxergar e se pensar sobre as
coisas; a redução à materialidade e fisicalismo básicos embotou suas outras potencialidades, inclusive
cognitivas, e o transformou em um ideologizador, mesmo que involuntariamente – mas cujas conse-
quências deletérias de seu discurso são praticamente as mesmas das de um ato consciente naquela
direção, ou pior ainda, pois agravadas por ele ter o status de cientista.
98 Respaldos indiretos a um eventual papel central da contribuição extraterrestre para a origem da vida
estão sendo encontrados atualmente, através do recente crescimento da pesquisa em exobiologia
(também chamada astrobiologia, área que estuda a possibilidade de existência de vida em ambientes
não terrestres). Conforme relata, por exemplo, o astrônomo Amâncio Friaça: “Os grandes depositá-
rios de gelo no Universo são os cometas e a água é o principal componente dos cometas e dos seres
vivos. Na verdade, as proporções dos elementos químicos em cometas e nos seres vivos, considerando
o hidrogênio, oxigênio, carbono e nitrogênio, são semelhantes.” (FRIAÇA, 2007). Ele prossegue des-
tacando que a proporção relativa desses elementos nos cometas e nos seres vivos é a mesma que a do
cosmo em geral, mas não é a mesma que a da crosta terrestre, a qual “apresenta um déficit de carbono
e um déficit ainda maior de nitrogênio e hidrogênio.” (idem). Ele conclui com a instigante questão:
“Seríamos então antes filhos do Cosmos do que da Terra?” (idem).
99 São uma forma de vida. Correspondem, portanto, a um nível bastante complexo de organização mo-
lecular, embora bem mais simples que as células (como as bactérias, por exemplo) (MARGULIS e
SCHWARTZ, 2001, p. 15).
100 As caudas dos cometas são partes dos mesmos, desprendidas quando da interação com o Sol. Elas po-
dem interagir com a atmosfera terrestre, mesmo que o cometa que a gera passe muito longe da Terra;
basta que o rastro deixado pela cauda cruze a órbita da Terra e esta o atravesse em seu movimento
ao redor do Sol. (Isto, de fato, é a origem das chuvas regulares de meteoros que podemos apreciar
atualmente na Terra.)

341
Luiz Carlos Jafelice

celular (pelo material orgânico ou virótico exobiológico que carregam), tendo


contribuído, eventualmente, também para parte do processo de especiação
(i.e., criação de novas espécies de seres vivos). Segundo os proponentes,
quando as interações desses corpos com a Terra se deram após a origem da
nossa espécie, causaram surtos epidêmicos variados entre nós. Há, então,
pelo menos três importantes consequências que esses autores atribuem aos
cometas: origem da vida, origem de especiações e origem de epidemias. Estas
são propostas ainda em aberto.
Vê-se que cometas, meteoritos ou asteroides que colidem de tempos
em tempos com a Terra (com frequência bem maior no passado remoto)
podem ter contribuições antagônicas: trazer vida, mutação e transformação
(que enriquece a biodiversidade) ou trazer doenças, destruição e morte (seja
pelo próprio choque com a superfície terrestre, seja pelos vírus que carrega-
riam). De fato, uma outra consequência atribuída a esses corpos celestes, nes-
te caso diretamente associada ao choque (não só ao impacto ou explosão em
si, mas a toda a interferência em vulcanismo e na atmosfera terrestre devido à
colisão), é que eles foram responsáveis pela extinção de espécies no planeta,
ao longo da existência deste101. Esta proposta tem evidências aparentemente
favoráveis, em particular em relação ao evento que ocorreu no fim do Cretá-
ceo, há 65 milhões de anos, e levou à extinção dos dinossauros; a teoria mais
aceita diz que aquilo se deu por causa de um grande corpo que colidiu com a
Terra. Mesmo nesta situação, porém, o resultado “destrutivo” é relativo. Com
efeito, extinção de algumas espécies pode abrir espaço ou criar condições
para o surgimento de outras ou para a diversificação de algumas já existentes.
É o que ocorreu no nosso caso. Se os dinossauros não tivessem sido extintos,
os mamíferos (daquela época, contemporâneos dos dinossauros) não teriam
se desenvolvido da forma que aconteceu e a espécie humana não estaria aqui
hoje. Somos fruto da criação ou da destruição? Às vezes a destruição pode ser
construtiva, não é? Depende do ponto de vista. É complexo.
Aqui cabem observações sobre conexões natureza-cultura. Antes, con-
tudo, um esclarecimento sobre sociologia da ciência. É preciso ter claro que
o fato de Hoyle (depois acompanhado por seu estudante Wikramasinghe)
defender várias propostas que a ciência ortodoxa quer rejeitar com vigor, e o

101 Os interessados encontrarão um gráfico contendo os eventos de extinção de espécies (e subsequente


proliferação de outras espécies) nos últimos 542 milhões de anos na Terra em Wikipedia (2009b).
Esse gráfico apenas registra as épocas dos referidos eventos (ele é construído com base em registros
fósseis de animais marinhos), sem qualquer tentativa de explicar o motivo dos mesmos, muito menos
de estabelecer correlação com eventuais fenômenos de origem celeste.

342
Abordagem Antropológica

fato de sua teoria cosmológica do universo estacionário ter perdido a vez para
a da grande explosão (termo este, aliás, ironicamente cunhado pelo próprio
Hoyle), não significa que aquelas outras propostas suas não sejam científicas
e muito menos prova que elas estão enganadas. Hoyle teve reputação muito
alta na comunidade científica internacional, por mérito, por causa da qua-
lidade e rigor de suas contribuições. Para o que nos interessa aqui, muitos
dos argumentos dele nunca foram estudados a fundo desde uma perspectiva
autenticamente científica; foram antes refutados por não se adequarem às
correntes principais (canônicas) de pesquisa na época (e ainda prevalecen-
tes) – comportamento que os discursos dizem que não é próprio dos cien-
tistas, mas a prática reiteradamente comprova que é (e.g., LATOUR, 2000;
COLLINS e PINCH, 2003; FEYERABEND, 2006; 2007). A proposta pe-
dagógica apresentada neste capítulo não é afetada em nada se as ideias de
Hoyle e colaboradores procedem ou não. Como, porém, esta proposta pede
abertura e arejamento do pensamento, preferi destacar estes pontos acima,
fundamentados em estudos de caráter sociológico, ainda incomuns em edu-
cação científica ( JAFELICE, 2008a; LOPES e JAFELICE, 2009; JAFELICE,
2009b; LOPES, 2010).
Neste parágrafo divagarei. Como a proposta de correlação entre pas-
sagens de cometas e surtos epidêmicos é uma das que ainda não foi, a rigor,
estudada exaustivamente do ponto de vista científico (por outros que não os
próprios proponentes da mesma e alguns cientistas minoritários isolados),
e como, em princípio, ela poderia ter algum fundamento, isto nos estimula a
conjecturar implicações culturais evidentes e, adicionando outras evidências,
generalizar ainda mais tais implicações. Com efeito, pode ser que o medo que
as pessoas, de diferentes culturas, ao longo da história da humanidade, tive-
ram com respeito às “irregularidades” no céu – como a passagem de cometas,
queda de meteoritos, aparecimento de estrela supernova –, tivessem alguma
base inclusive factual (e não se devessem apenas a construções culturais fruto
da ignorância, a crendices ou rusticidades do poder de observação daquelas
pessoas, como querem os discursos de plantão, ainda inspirados no pensa-
mento iluminista). Afinal, mesmo do ponto de vista científico estrito, aqui
destacado também em suas vertentes não em moda, todas essas “irregulari-
dades” podem trazer algum malefício concreto. Este pode ser de dimensões
gigantescas, associado a devastações ambientais e mortes – como os casos
conhecidos de Tunguska, na Rússia, em junho de 1908, e no Brasil, na re-

343
Luiz Carlos Jafelice

gião do Alto Solimões, no oeste do Amazonas, em agosto de 1930; eventos


historicamente mais próximos para os quais se sabe que houve testemunhas
oculares humanas102 para presenciar aqueles fenômenos e suas consequências
(sem contar, evidentemente, os danos do episódio da extinção dos dinossau-
ros, posto que naquela época não existiam seres humanos para registrar o fe-
nômeno e transmitirem-no pela tradição oral ou registro pictográfico).
O que importa chamar a atenção aqui é que a concepção dos come-
tas, por exemplo, como mensageiros cósmicos temíveis, elos de comunicação
entre os céus, os deuses, e as pessoas, principalmente para trazer notícias de-
sagradáveis, não é algo que só aparece na idade média – conforme uma visão
estreita e etnocentrada103 da história da astronomia, ainda muito difundida
por aí, pode levar a crer. Seres humanos de épocas anteriores – e posteriores –
presenciaram a queda de cometas ou de meteoritos (manifestados enquanto
“estrelas cadentes”104) e sobreviveram (pelos menos algumas pessoas) para
constatar seus efeitos nefastos e transmitir oralmente essa experiência para
sua comunidade e descendentes. Essa vivência, e suas consequências – que
podem ter sido terríveis em muitos casos –, devem ter ajudado a estabelecer
uma correlação entre cometas e malefícios, destruição ou mau agouro – ali-
ás, convenhamos, correlação bastante bem fundamentada do ponto de vis-

102 Maiores informações sobre esses eventos são fornecidas pelo astrônomo Ramiro de La Reza (DE LA
REZA, 1997) e, por exemplo, no sítio Astromanual (ASTROMANUAL, 2009).
103 Isto é, neste caso (história da astronomia) uma visão eurocentrada, polarizada pela cultura ociden-
tal, enfim. Que é, por exemplo, a apresentada por Jean-Pierre Verdet (VERDET, 1992). No capítulo
Desordem Cósmica (p. 72-97; tradução minha para o nome do capítulo) ele fornece exemplos interes-
santes de várias culturas e suas associações com cometas, meteoros, meteoritos e raios de tempesta-
des, com muitas ilustrações. Contudo, ele ainda apresenta a visão etnocentrada que critico, se prende
a uma exposição cientificista convencional, apesar de tratar de temas da cultura, e reiteradamente
tenta ser gracioso, no sentido de desmerecer os relatos ou crenças que ele comenta. Por causa desses
vieses, muitas vezes sua exposição fica parcial. Por exemplo, ele não enfatiza, como seria justo, que
muitas daquelas associações que as pessoas faziam eram, com frequência, baseadas em fatos, isto é,
em consequências observáveis diretamente por quem as fez e depois as transmitiu, nas formas oral ou
impressa.
104 É preciso manter-se a perspectiva antropológica. Cometas e “estrelas cadentes” são objetos ou fenô-
menos “celestes”. Ou seja, embora hoje sabe-se que cometas estão fora da Terra e estrelas cadentes
(meteoros) são rastros de meteoritos produzidos pelo atrito destes com a atmosfera terrestre, senso-
rialmente, em uma primeira aproximação visual quanto à forma, genericamente falando (não quanto
ao tamanho, coloração ou duração), eles são indistinguíveis um do outro. Ou ainda: desde um ponto
de vista topocêntrico elementar, ou no que se refere às possibilidades de interação e intervenção hu-
mana sobre os mesmos, ambos os fenômenos são celestes.

344
Abordagem Antropológica

ta fenomenológico105. Não se trata, portanto, de dizer106 que as atribuições


historicamente registradas de nocividades associadas aos cometas são fruto
da ignorância, da superstição, não têm qualquer fundamento e tudo já foi
definitivamente esclarecido pela abordagem científica. A rigor, nada disto é
verdade. Nem a ciência esclareceu tudo que eventualmente pode existir asso-
ciado às correlações cometas/malefícios, nem a constatação histórica dessas
correlações é decorrência de falta de conhecimento, nem são elas desprovidas
de fundamentos factuais.
Na verdade, há pouco tempo, no final do século passado, e agora, em
pleno século XXI, retoma-se aquele tipo de temor: a queda de grandes corpos
sobre a Terra, ameaçando extinguir a vida (pelo menos as formas mais com-
plexas de vida) no planeta. Toda uma nova área de pesquisa em astronomia
se desenvolveu nos últimos quinze a vinte anos, e tem recebido cada vez mais
atenção e, naturalmente, verbas107. Agora, se tornou conveniente revirar no
fundo do baú das ditas superstições108 para se trazer episódios históricos – al-

105 Notem: o temor histórico das pessoas a esses corpos celestes não depende de a hipótese de eles de-
sencadearem epidemias ser procedente; se proceder, ela apenas reforça a fundamentação do referido
temor.
106 Como comumente encontramos em publicações destinadas a enaltecer a ciência – mas cujas consi-
derações, tanto de caráter antropológico ou cultural, quanto sobre a natureza do conhecimento cien-
tífico, são muito pobres, para não dizer ausentes.
107 Que é o que se repete agora, na última década, na nova área chamada astrobiologia. Até há pouco, a
grande maioria dos astrônomos nunca viu com bons olhos essas ânsias por busca de vida (inteligen-
te ou não) extraterrestre (a minoria de adeptos era vista de esguelha). Agora, interessar-se por isto
revelou-se um acesso a fontes de apoio financeiro na construção de telescópios, equipamentos e sa-
télites artificiais de uso astronômico, para (também, mas não só, a) busca de “planetas com vida” (ou
“habitáveis”) – como ouvi, em confissão em palestra pública recente, de um astrônomo de destaque
na comunidade, que atua em pesquisa e também em divulgação científica em astronomia. Ele, sem
pudor, reconheceu que esse interesse recente naquele assunto era um exemplo de oportunismo. Ora,
isto está longe da imagem usualmente vendida, sobre as motivações nobres da ciência e dos cientistas,
com interesse na busca da verdade acima de tudo etc. Mais parece ato de lobby movido por interesse
econômico privado. Esta metáfora se aplica, infelizmente. O pensamento único, com sua mentalidade
economicista, sua “obsessão pelo crescimento infinito e ininterrupto”, se apossou de todos os setores
da vida social (PENTEADO, 2008). O relato acima é só mais um exemplo, mas representativo, que
realça o quão humana é a ciência, inclusive naquilo que nós temos de equivocado, de desvirtuoso e de
deplorável. Esse relato também evidencia a urgência de se incluir sociologia da ciência na formação do
cidadão.
108 Para, inadvertidamente, fomentar-se novas superstições. Na minha visão, a paranoia de corpos que
vão colidir com a Terra, reações de seitas da nova era etc., são, em grande parte, subprodutos diretos
da cientificialoidização da mída e das pessoas, insufladas por uma divulgação científica ufanista, pro-
selitista e excitadora da curiosidade superficial que Bachelard e Wittgenstein, entre outros, criticam
(como exponho na última nota de rodapé do apêndice 5). Paradoxalmente, ao se enaltecer a solução
de tudo via ciência – a qual, dos pontos de vista conceitual, filosófico e sociológico, muito poucos

345
Luiz Carlos Jafelice

çados, então, à categoria de contribuição cultural relevante – para se reforçar


como essa área científica emergente é importante e recebe sua inspiração e
justificativa inclusive da história e da cultura – articulando um discurso onde
parece que a ciência ortodoxa sempre contemplou uma grande integração
ciência-cultura em seus programas109. Hoje, já bastante respeitada, essa nova
área é conhecida pela sigla NEO, do inglês: “near Earth objects”, que quer
dizer “objetos próximos da Terra”, os quais podem ser meteoritos, cometas
ou asteroides. Assim, ironicamente – ao contrário da mentalidade que foi se
forjando no Ocidente, dos séculos XVI a XX, principalmente, e até há duas
décadas, inclusive –, não é mais fora de propósito, nem mostra de incultura,
considerar-se que devemos temer “irregularidades” celestes. Este pensamen-
to, hoje, pode gerar empregos e, eventualmente, até ajudar a salvar vidas no
planeta110!
Há outra presença marcante de corpo celeste no desenho da história
da humanidade: a dos meteoritos, em particular111, implicando na origem

entendem, mesmo dentre aqueles com formação universitária em ciências (vide, e.g., MARTINS,
1999) – abrem-se os espaços para superstições de todo o tipo, agora fomentadas e ancoradas em uma
suposta terra firme científica. Nestas épocas, em que a propaganda é a alma do negócio, até esse tipo
de mentalidade, que não supera concepções elementares infundadas e ingênuas, é tolerada; afinal, ela
ajuda a manter a crença e a confiança (e os apoios financeiros!) na ciência.
109 Em outros contextos – como no da política, por exemplo – tal comportamento recebe denominações
não muito louváveis. A sociologia da ciência também explica bem esse tipo de comportamento por
parte dos cientistas.
110 Um exemplo do que Lopes (2010, p. 149) diz: “A ciência procede como se tudo o que veio antes já es-
tivesse presente no seu intento e que tudo que ela traz são coisas adicionais, para complementar [...]”.
Com relação ao texto acima, atenção ainda: não foram apenas novas evidências observacionais, frutos
de melhores telescópios, modernos recursos computacionais e equipamentos – como os argumentos
em defesa da ciência (que aproveitam para exaltar também a tecnologia) costumam levantar –, que
ocasionaram tamanha mudança de postura, nem isto significa uma ciência mais aberta e flexível. Esse
episódio só exemplifica uma situação típica na história da ciência, onde esta é reescrita de tempos em
tempos para atender suas próprias conveniências ou necessidades (KUHN, 1996; COLLINS e PIN-
CH, 2003; FEYERABEND, 2006). Um problema central continua sendo que este tipo de compor-
tamento não é trabalhado com a crítica e profundidade necessárias no ensino de ciências. Se isto não
mudar, não estaremos educando cientificamente, nem formando “cidadãos críticos e opinantes”, mas,
sim, estaremos apenas doutrinando um séquito de “prosélitos iludidos e devotos” ( JAFELICE, 2002,
p. 6; vide também, nessa linha de argumentação, JAFELICE, 2008a; LOPES e JAFELICE, 2009; JA-
FELICE, 2009b; e LOPES, 2010). Aquele comportamento, repito, não é esporádico, nem se restringe
a cientistas isolados; ele é o habitual, típico; é como a ciência real, existente, é feita (KUHN, 1996).
Como diz Latour: “[...] poucas pessoas de fora já penetraram nas atividades internas da ciência e da
tecnologia e depois saíram para explicar, a quem continua do lado de fora, de que modo tudo aquilo
funciona” (LATOUR, 2000, p. 33); e Collins e Pinch reforçam: “o que realmente acontece [no fazer
científico real] nunca foi dito fora de um pequeno círculo” (COLLINS e PINCH, 2003, p. 21).
111 Eventualmente fragmentos de asteroides. Não é relevante, para estes fins, a distinção entre esses
corpos.

346
Abordagem Antropológica

de uma “metalurgia” arcaica, digamos, a partir da matéria-prima que aque-


les objetos traziam para a Terra, principalmente quanto ao seu conteúdo em
ferro. Esta presença e o papel que desempenhou estão bem comprovados
documentalmente. Registros históricos e arqueológicos mostram que os me-
teoritos foram muito valorizados por muitas culturas. Como destaca Eliade,
eles “caem na terra carregados de sacralidade celeste, representam portanto
o Céu” (ELIADE, 1987, p. 17). É comum, então, a associação desses corpos
a divindades. Um dos exemplos mais notórios, que permanecem fortes até
os dias de hoje, é o meteorito que está abrigado na Caaba, o centro religioso
mais sagrado para o povo muçulmano, localizada na cidade de Meca, no Rei-
no da Arábia Saudita. A Caaba (cujo nome se aplica tanto ao abrigo constru-
ído quanto à pedra sagrada que ele protege) contém um meteorito – ou seja,
algo evidentemente de origem celeste –, que é considerado um presente de
Alá para esse povo. Mas há muitos outros exemplos ao longo da história112.
Humanos arcaicos “trabalharam o ferro meteórico muito tempo antes de sa-
berem utilizar os minerais de ferro encontrados na superfície da Terra [...]”
(idem, p. 19) Eles tratavam aquele ferro como material bruto “para o fabrico
de utensílios [...] cuja forma reproduzia em todos os aspectos modelos líti-
cos” (ibidem). Portanto, o ferro contido nos meteoritos não foi trabalhado
originalmente de um modo de fato metalúrgico, pois o processo de fusão era
desconhecido. Naquela condição – de origem celeste – ele foi um metal raro,
tão precioso quanto o ouro, ou mais, e foi usado principalmente em rituais.
Porém, naqueles primórdios já residia um fazer de cunho “metalúrgico”, po-
de-se dizer. Não como aquele efetivamente metalúrgico – o qual só será de-
senvolvido por alguns povos após a exploração do ferro terrestre, desde uns
3.000 anos atrás, a partir da região da Armênia –, mas aquele que implica em
trabalhar um metal – isto é, um material de aparência, textura, densidade, du-
reza e ductilidade distintas das rochas usadas para a confecção de outras ferra-
mentas e utensílios. Eliade destaca: “[q]uando Cortez perguntou aos chefes
astecas como obtinham as suas facas, eles mostraram-lhe o céu” (ibidem)113.

112 Cf. ELIADE, 1987, p. 17-18, e referências citadas na Nota A (Meteoritos, Pedras de Raio, Primórdios da
Metalurgia), p. 145-146.
113 Ainda sobre este tema, cabe observar que são denominadas “pedras de raio” – e no Nordeste, “pedras
de corisco” – objetos que, na verdade, são artefatos líticos produzidos por culturas pré-históricas (ou
pré-descobrimento, nos casos do Brasil, Américas, Austrália etc.). Aqueles objetos de pedra, com
simetria e forma tão bem moldadas, foram atribuídos, popularmente, ao fruto da queda de um raio na
terra – portanto, resultado de uma relação entre céu e terra. Nestes casos, esta atribuição não se aplica;
naqueles discutidos antes, porém, a conexão celeste procede.

347
Luiz Carlos Jafelice

Eliade aponta ainda: “[a] palavra suméria AN-BAR, o vocábulo mais


antigo que designa o ferro, é constituída pelos signos pictográficos ‘céu’ e
‘fogo’ [...] [e é traduzida] geralmente por ‘metal celeste’ ou ‘metal-estrela’”
(ELIADE, 1987, p. 19). Não é preciso destacar a importância do ferro na
história da humanidade – em setores díspares, como na arte, no cotidiano
e na guerra (notem que há ambivalência no caráter do ferro: benéfico e ma-
léfico114) –, que se consolida com a indústria do ferro terrestre após a desco-
berta e exploração de minas com minérios de ferro, o que dá origem à “idade
do ferro”. Contudo, “[o] ferro conserva ainda o seu extraordinário prestígio
mágico-religioso, mesmo entre os povos que possuem uma história cultural
bastante avançada e complexa” (idem, p. 24). Aqui, me interessa enfatizar:

114 Para referências sobre simbolismos associados ao ferro, vide Nota B (Mitologia do Ferro) em Eliade
(1987), p. 146. Há concepções cosmológicas (no sentido antropológico do termo) também associa-
das aos minerais e metais. Embora esteja além do escopo deste apêndice abordá-las, elas merecem
ao menos algum comentário: são aquelas cosmologias que “reforçam a correspondência homem-
universo [...] Daí resulta, por um lado, a ‘sexualização’ do reino vegetal e mineral e, de um modo ge-
ral, das ferramentas e dos objetos do mundo circundante. [...] [decorrendo] as múltiplas imagens do
ventre da Terra, da mina associada ao útero e dos minerais aos embriões [...]” (ELIADE, 1987, p. 27).
No capítulo 3 (O mundo sexualizado) de Eliade (idem, p. 29-35), o autor se aprofunda nos registros
históricos sobre essas concepções. Ele nos esclarece que “[q]uando falamos da ‘sexualização’ do mun-
do vegetal [...] não se trata de fenómenos reais de fertilização das plantas, mas de uma classificação
morfológica ‘qualitativa’, que é o resultado e a expressão de uma experiência de simpatia mística com
o mundo. É a ideia da Vida que, projectada no Cosmos, o ‘sexualiza’. O que está em causa não são ob-
servações [...] ‘científicas’, mas uma valorização do mundo circundante em termos de Vida, portanto
de destino antropocósmico, incluindo a sexualidade, a fecundidade, a morte e o renascimento” (idem,
p. 29). E prossegue: “[t]rata-se, portanto, de uma concepção geral da realidade cósmica em termos de
Vida, e consequentemente sexualizada, sendo a sexualidade um sinal particular de toda a realidade
viva. A partir de um certo nível cultural, o mundo inteiro, tanto o mundo ‘natural’ como o dos objetos
e ferramentas fabricados pelo homem, apresenta-se efectivamente sexualizado” (idem, p. 31; grifos
do autor). Enfim, “[c]omo seria de esperar, o simbolismo sexual e ginecológico mais transparente é
encontrado nas imagens da Terra-Mãe” (idem, p. 33). Muitas culturas ao longo da história da huma-
nidade – entre elas as culturas indígenas brasileiras – interpretam o surgimento de tudo que existe,
inclusive os seres humanos, como fruto de um casamento sagrado entre o Céu e a Terra. Este tipo de
concepção em alguns dos povos indígenas brasileiros é reapresentada para um público mais amplo,
com algumas fotos e ilustrações, por Leonardo Boff, onde vários mitos cosmogônicos (sobre a origem
das estrelas, de alguns alimentos, dos animais, das pessoas, da morte, do dia, das cores dos peixes etc.)
são recontados (BOFF, 2001). Na segunda parte do livro há informações sobre contribuições dos
indígenas ao Brasil e ao mundo, com dados sobre povos nativos, línguas e organizações indígenas
brasileiros, com comentários e exemplos sobre sua “sabedoria ancestral [e] integração sinfônica com
a natureza”, sua presença no cotidiano da casa, na culinária, na medicina e no imaginário popular,
sobre “[a] liberdade [como] a essência da vida indígena” e “[a] autoridade [enquanto] o poder com
generosidade”, dentre outros dados e discussões relevantes (idem, p. 126-159). Vejam na seção Biblio-
grafia adicional, deste capítulo, várias outras referências importantes, em particular as muitas escritas
e ilustradas pelos próprios índios, de diferentes culturas brasileiras, sobre suas cosmologias, suas mi-
tologias, visões de mundo, concepções de educação e relações com a natureza e seus diversos planos
de existência, interiores e exteriores.

348
Abordagem Antropológica

1) a importância simbólica do ferro, enquanto material celeste, que agrega,


posteriormente, sua contrapartida terrestre; 2) como o simbolismo daquele
é estendido a esta; e 3) as implicações dos entrelaçamentos das sacralidades
celeste e telúrica e as criações representacionais e os fazeres concretos na his-
tória humana, tanto no nível espiritual como no material e no industrial.
Prossigamos com a apreciação da perspectiva das ciências da natureza
para as relações “céu-terra”. Há trabalhos em astronomia que sugerem que as
muitas extinções em massa já ocorridas na Terra, algumas muito grandes, se
devem a um movimento oscilatório que o Sol realiza115 em relação ao disco
de nossa galáxia (vide CLUBE e NAPIER, 1996, e referências lá citadas). O
raciocínio oferecido é basicamente o seguinte: 1) é nesse disco galáctico em
que se encontram as nuvens interestelares compostas principalmente de mo-
léculas de hidrogênio (conhecidas como nuvens moleculares); 2) tais nuvens
podem ser bastante densas, a ponto de, em alguns casos, obliterarem grande
parte da luz solar que atinge a Terra, caso o sistema solar estivesse de fato
atravessando uma delas; 3) como os dados utilizados podem, aparentemen-
te, ser interpretados como indicando que o Sol oscila em torno do plano do
disco – portanto, entrando e saindo e entrando de novo e saindo do mesmo e
assim por diante –, então, ele já vez isso muitas vezes nos últimos 4,5 bilhões
de anos; 4) é possível que em algumas dessas passagens pelo interior do disco
ele tenha cruzado – juntamente com seu séquito de planetas – nuvens mole-
culares densas a ponto de impedir, durante a travessia, por muitos milhares
de anos, uma insolação suficiente na Terra para a manutenção de formas de
vida cuja dependência para com a luz solar é decisiva; e, portanto, 5) isto
ocasionaria as referidas extinções, as quais, embora não sejam periódicas116,
teriam, segundo os proponentes dessa hipótese, uma incidência compatível
com aquela que, em princípio, pode ser inferida de nuvens moleculares ob-
servadas no trecho já atravessado pelo Sol, no disco da Via Láctea, até a exten-
são do mesmo à qual se pode ter acesso observacionalmente.
Contudo, as coisas provavelmente são mais complexas do que o qua-
dro apontado por essa hipótese. E mais interessantes, também. Com efeito,

115 E, portanto, o sistema solar também realiza, pois este está gravitacionalmente preso ao Sol e o segue
em seus movimentos de deslocamento pela Via Láctea.
116 Pois nuvens moleculares, em geral, e as mais densas, em particular, não estão regularmente distribuí-
das ao longo do disco galáctico, portanto tampouco ao longo do percurso oscilatório do Sol em torno
daquele.

349
Luiz Carlos Jafelice

se essa teoria da oscilação do sistema solar em torno do disco da nossa galá-


xia oferece, por um lado, um mecanismo para extinguir (ao menos parte de)
a vida na Terra, ela concomitantemente oferece um mecanismo (o mesmo
mecanismo, na verdade, no estilo “liga-desliga”) para propiciar a explosão de
novas espécies – conforme se constata que também ocorreu de tempos em
tempos, durante a história da vida no planeta, após cada evento de extinção
de que se tem registro. Assim, se aquela oscilação destrói vidas – quando o
sistema solar entra em uma nuvem molecular mais densa –, ela também “cria”
vidas – quando ele sai daquela nuvem. Vejamos.
Um ponto ainda em aberto na teoria da seleção natural é sobre como
ocorrem as especiações, isto é, como se originam diferentes espécies ao longo
do tempo. Há diferentes propostas para tal. Uma delas argumenta que radia-
ções ionizantes – aquelas provenientes de elementos químicos radioativos
presentes na Terra, como o urânio, tório, plutônio etc., ou de raios cósmicos
e raios gama de origem extraterrestre117 – são um dos mecanismos por trás da
alteração do DNA e desencadeador de mutações que podem (se outras con-
dições intraorganismo e ambientais forem favoráveis e a adaptação do mutan-
te for bem-sucedida) levar à origem de uma nova espécie (após muito tempo
desse episódio mutacional, até aquela poder se consagrar como tal).
Nessa linha, então, temos duas fontes inequívocas de radiação ionizan-
te presentes na Terra: uma intrínseca – material radioativo presente naquele
que deu origem ao planeta – e outra extrínseca – oriunda principalmente de
raios cósmicos e raios gama (de origem solar e extrassolar, neste caso de ori-
gem galáctica e extragaláctica). Há indicações de que tais raios tiveram – e os
cósmicos ainda têm – importância fundamental em alguns processos ainda
não claros em biologia evolutiva, em particular aqueles associados a muta-
ções genéticas. Se isto procede, então também a diversidade de vida na Terra
pôde vir à existência, em grande parte, devido a coisas do céu.
Dessa forma, quando mencionei que teoria da oscilação do sistema
solar em torno do disco da Via Láctea oferece um mecanismo que “destrói
vidas [...] [mas] também [as] ‘cria’”, me referia ao potencial efeito mutacio-
nal dos raios cósmicos e à modulação de sua incidência sobre a Terra devido

117 Há bilhões de anos, antes que as cianobactérias transformassem a história do planeta, aumentando
em mais de 200 vezes a concentração de oxigênio na atmosfera terrestre (e este tende a bloquear a
radiação gama), raios gama vindos do espaço podiam atingir a superfície terrestre no nível do mar
(MARGULIS e SCHWARTZ, 2001, p. 51).

350
Abordagem Antropológica

àquele movimento oscilatório do Sol. Ao cruzar nuvens moleculares mais


densas, não só a incidência da luz solar sobre a Terra se reduz – levando à des-
truição de vidas –, mas também a dos raios cósmicos. Porém, ao emergir de
tal nuvem, a Terra volta a ser bombardeada por raios cósmicos – favorecendo,
assim, segundo a teoria sobre especiação citada, a origem de novas espécies.
Há diversos outros ritmos de teor astronômico. Suas possíveis impli-
cações nas relações “céu-terra”, contudo, conforme aventado no Quadro Inter-
dependências, são mais difíceis de se determinar de modo inequívoco (embora
haja pesquisas sendo feitas nesse sentido para alguns ritmos). Dentre aqueles,
o ciclo metônico é um com associação cultural direta. O ciclo metônico é
caracterizado pela repetição da sequência das fases da Lua e dos respectivos
dias do ano em que cada uma ocorre. Seu período é de 235 lunações, que
corresponde a aproximadamente 19 anos. Do ponto de vista cultural, tal ci-
clo foi bastante utilizado pela igreja católica (BOCZKO, 1984, p. 15-16; a
referência deste livro está na seção Sugestões de leituras). O ciclo de 22 anos
de atividade solar, por outro lado, ou uma possível variação relativamente re-
gular na luminosidade do Sol com período de dezenas de milhares de anos,
não têm alguma associação reconhecida com processos naturais terrestres ou
culturais. Embora, se esta última variabilidade, de período bem mais longo,
for, de fato, a responsável por desencadear glaciações periódicas na Terra,
como alguns cogitam, então ela tem claras implicações no desenvolvimento
da vida no planeta. Segundo esta hipótese, aquela variabilidade pode causar,
por exemplo, também extinções. E mais: ela teria consequências diretas para
os seres humanos que habitavam as regiões da Europa e da Ásia em torno de
12.000 anos atrás, podendo, inclusive – segundo teoria bastante aceita –, ter
sido decisiva para a ocupação humana das Américas, através do estreito de
Bering. Há restos materiais e também registros de relatos míticos que refor-
çam esta proposta. Em particular, aquele sobre a origem das manchas da Lua,
cuja semelhança – em estrutura e em detalhes118 – dos mitos de povos na re-
gião da Sibéria e de povos indígenas brasileiros é muito grande – difícil, senão
impossível ou muito artificial, de ser explicada por mera coincidência.

118 Como seria de se esperar, uma diferença menor atende às respectivas realidades regionais: o que a
moça passa no rosto de seu visitante noturno são cinzas, na Sibéria, e é jerimum (abóbora), no Brasil.
Em algumas versões há uma diferença maior na relação de parentesco da moça com o visitante, mas
sendo sempre parentes próximos.

351
Luiz Carlos Jafelice

Para ciclos astronômicos de outra ordem ou maiores, como o de pre-


cessão do eixo de rotação da Terra (com período de cerca de 26.000 anos), ou
como aqueles relacionados a planetas (conjunções ou alinhamentos; com re-
gularidades variáveis, dependendo de qual conjunto de planetas se considera
para tais posicionamentos particulares), tampouco é sabido em que medida
existe – ou, nestes casos, se é que existe alguma – influência com implicações
evolutivas e/ou culturais identificáveis.
Contudo, mesmo aqui há uma possível implicação cultural, muito re-
levante, que merece destaque. Com efeito, elementos constitutivos do pen-
samento filosófico indiano e algumas de suas concepções cosmológicas pa-
recem ter relação direta com fenômenos de caráter astronômico, alguns dos
quais envolvendo observação sistemática e acompanhamento refinado de
modo regular, por exigirem registros de longa duração. Martins (1994, p. 26-
30) discute a concepção cosmogônica indiana presente no Código de Manu,
“texto anterior à era cristã” (idem, p. 27). Segundo esse texto, o universo é cí-
clico, “sendo repetidamente criado e destruído” (idem, p. 28). O intervalo de
tempo em que o universo existe – assim como aquele em que ele não existe –,
segundo aquela concepção, é de 4,38 bilhões de anos. Como Martins desta-
ca, “[n]enhuma outra tradição da Antigüidade conseguiu imaginar durações
de tempo tão longas quanto as do Código de Manu” (idem, p. 29). O autor
pergunta: de onde surgiu essa ideia de ciclos tão grandes para existência/não
existência do universo? O Código não explicita a resposta. Martins diz que “o
próprio nome utilizado para eras (yuga) permite descobrir a origem dessas
ideias. A palavra yuga é um termo técnico utilizado pela antiga astronomia in-
diana. Ela significa conjunção de astros” (idem, p. 30). Embora conjunções de
vários planetas sejam muito raras119, não são impossíveis de ocorrer, e “os as-
trônomos indianos [a partir desse tipo de estudo] conceberam que todos os
planetas foram criados juntos [i.e., em conjunção, alinhados, desde um pon-
to de vista terrestre]” (ibidem). Assim, quando eles “se reunirem novamente,
todos ao mesmo tempo [i.e., quando voltarem a se alinhar outra vez, na exata
disposição inicial], o universo voltará ao seu princípio” (ibidem). Segundo
essa interpretação, então, aquele número tão grande, praticamente da mesma
ordem de grandeza daquele argumentado pela teoria cosmológica da grande

119 Lembrando que naquela época a Terra não era considerada um planeta e que os astros visíveis a olho
nu que pareciam ter vida própria e tinham frequência regular nos céus eram: o Sol, a Lua e os cinco
planetas – Vênus, Júpiter, Saturno, Marte e Mercúrio. Relembrando também que estes são, enfim, os
sete astros que nomeiam os dias da semana em muitas culturas.

352
Abordagem Antropológica

explosão, é o intervalo de tempo que resultaria até que “ocorresse [de novo]
uma grande conjunção (Mahà-yuga)” (ibidem). Martins diz que “[a] partir
dos dados existentes sobre movimentos dos planetas, foram feitos cálculos
que indicaram enormes durações, semelhantes às indicadas no Código de
Manu” (ibidem), e cogita ter sido esta a fonte daquela duração cosmológica.
Os trabalhos de Subhash Kak também salientam o entrelaçamento
central do céu, da terra e da vida encontrado na tradição indiana, conforme
expresso em seus textos sagrados. O autor menciona que “[o]s livros védicos
estão [escritos] em um idioma esotérico, onde as conexões entre os mundos
exterior e interior são esboçadas” (KAK 1996; tradução minha). Veda signifi-
ca conhecimento, em sânscrito, e o Rig Veda, que fala de uma ordem cósmica,
é o mais antigo dos quatro livros védicos (datado de cerca de 4.000 anos)
(idem). Kak enfatiza que “[o] sistema védico de conhecimento está baseado
nas equivalências entre estrelas [...], seres vivos [...] e a estrutura cognitiva
humana120” (idem; idem). O autor aventa a hipótese de que “a verdadeira co-
nexão entre estrelas e seres vivos estava baseada na identidade entre ritmos
biológicos básicos e períodos astronômicos” (idem; idem), e cita vários exem-
plos envolvendo estudos do tipo cronobiológico para apoiar suas reflexões.
Em outro trabalho, ele reforça que “[a] ideia central por trás do sistema védico
é a noção de conexões entre o astronômico, o terrestre e o fisiológico” (KAK
1995; tradução minha). E argumenta que a declaração de A. A. Macdonell,
estudioso dos Vedas do século XIX – “um dos fatos mais notáveis na história
da literatura [é] que um povo [...] tenha preservado seu livro sagrado sem
adicionar ou subtrair uma única palavra por 2.300 anos e isto essencialmente
através da tradição oral” (MACDONELL 1886, apud KAK 1995; tradução
minha) –, apesar de assombrosa, pode ser explicada com base na conexão
daquele texto com a astronomia. Segundo o autor, outros livros igualmente
antigos declaram “que o número de sílabas e de versos do Rig Veda estão de
acordo com um programa astronômico” (KAK 1995; idem); neste sentido,
o fato de nem uma única palavra ter sido alterada naquele texto é atribuído a
“uma tentativa de ser verdadeiro [manter-se fidedigno, verossímil] aos fatos
astronômicos observados” (idem; idem). (Salientemos que estamos falando
de registros astronômicos indianos de há mais de quatro mil anos.)

120 Surpreende a originalidade e profundidade da relação céu-terra-vida humana enxergada por aquela
cultura, que explicita a participação do céu inclusive na conformação de nossa cognição, i.e., das capa-
cidades, formas, possibilidades e limitações de nossa construção de entendimento das coisas.

353
Luiz Carlos Jafelice

O quadro da tentativa de estabelecer correlações céu-terra com base


em eventos físicos, porém, fica mais complicado quando pensamos naqueles
ainda mais difíceis de se analisar. Por exemplo: como o da explosão de algu-
ma supernova – embora este evento não seja periódico, ele pode, se ocorreu
relativamente próximo à Terra, em um passado mais distante, ter tido con-
sequências importantes para a evolução da vida no planeta, e, se ocorreu em
um passado mais recente (em termos de nossa espécie), ter tido alguma im-
plicação também de caráter cultural e/ou sócio-histórico; sem contar o caso
conhecido da supernova que originou a nebulosa de Caranguejo, registrada
principalmente pelos chineses no ano de 1.054 –; ou como a suposta colisão
de um meteorito com a Lua, registrado por monges na Inglaterra em 1.178 –
sugerida como origem (atualmente contestada) da cratera Giordano Bruno;
entre outros. Os casos deste parágrafo só foram citados para arrolarem-se os
mais notáveis dentre os conhecidos que podem ainda envolver eventuais cor-
relações céu-terra (embora eles não têm sido agrupados na literatura da área
com o intuito com que o fiz aqui).
Para finalizar esta parte das digressões, não é claro se eventos (natu-
rais de origem celeste que foram registrados historicamente) como os recém-
mencionados (da supernova de Caranguejo no século XI, ou o da suposta co-
lisão de meteorito com a Lua no século XII) ou os das passagens de cometas
ou os das chuvas de meteoros ao longo de toda a história da humanidade, não
foram interpretados e incorporados a narrativas míticas em culturas humanas
pelo mundo afora – afinal, esses eventos foram presenciados por pessoas de
muitas outras culturas, além daquelas a que se teve acesso a seus registros
históricos confirmados.
Merecem destaque, neste sentido, registros rupestres no Brasil, em
particular. No caso de cometas, em especial – mas também supostamente
de outros astros, como Sol, Lua, estrelas e planetas, e talvez, inclusive, novas
e supernovas –, há várias indicações arqueoastronômicas de que certas pin-
turas rupestres (em sítios arqueológicos de diferentes regiões do país) são
representações dos mesmos. Como já vimos, a importância e impliçações
culturais do entrelaçamento céu-terra-vida é evidente em inúmeros exem-
plos, e sua manifestação também na forma pictórica é apenas mais uma forma
de expressá-lo, muito comumente empregada. Datações mais acuradas das
referidas pinturas e o cruzamento com informações relativas à faixa (topo-
cêntrica) de visibilidade de cometas registrados historicamente alhures nos

354
Abordagem Antropológica

mesmos períodos das datações poderão reforçar (embora ainda assim não
garantir) a procedência daquelas indicações121.
Ainda no que concerne eventuais relações entre história e mitologia, é
importante não se incorrer no erro de adotar a postura positivista e ingênua
que quer enxergar nos mitos narrativas romanceadas e criativas inventadas
pelas pessoas, por motivos funcionalistas, a partir de estímulos de fenômenos
naturais e/ou históricos. Estudos em mitologia, antropologia e psicologia já
mostraram que essa interpretação realista simplista não explica a origem e o
significado dos mitos em geral. Além disto, como cogitei anteriormente, não
temos claro o que definir como ontologia e acesso e compreensão da mesma,
e se não é possível conhecer-se o que está “fora” voltando-nos para “dentro”,
posto que essa divisão pode carecer de sentido. Por outro lado, também já
comentei, uma das formas de o ser humano viver suas múltiplas relações
com o ambiente e integrá-las em si se dá através de processos psíquicos. Ou
seja, algo que o marque de maneira especialmente forte e incomum pode ser
estímulo com implicações mais indeléveis e pedir uma reacomodação em
seu psiquismo. Assim, apesar das ponderações anteriores, cabe a questão:
como o ser humano trabalhou (e trabalha) a construção de representações
(culturalmente) autoconsistentes e significativas após ter testemunhado ou
vivido algo fenomenologicamente extraordinário? Neste sentido, é oportuna
a observação de Mircea Eliade, ao estudar a diferença entre o pensamento
mítico e o histórico122. Ele destaca que “o episódio histórico” costuma ser
“traduzido de maneira completa para uma ação mítica” (ELIADE, 1992a, p.
41; a referência deste livro está na seção Sugestões de leituras), desaparecendo
algumas características marcantes que nós (ocidentais modernos) considera-
ríamos factuais e surgindo outras que não reconheceríamos como tais. Este
tipo de transmutação que parece ocorrer (desde nossa perspectiva analítica
ocidental) nas inter-relações entre cultura e natureza, certamente também

121 O cotejamento das representações pictóricas daqui com aquelas feitas por outrem, de outras regiões
do planeta, sobre tais supostos cometas ou outros fenômenos não teria muito sentido, dado o matiz
cultural que caracteriza inclusive aquele tipo de representação. Como comento no texto, “o céu não
é único; há tantos céus quantas culturas humanas”. Ou seja, não é um “fenômeno celeste”, por mais
marcante que seja, que terá “objetividade” para garantir desenho “fidedigno” (?) (hiper-realista?) do
mesmo. Basta ver as representações de cometas feitas por diversas culturas ao longo da história para
ter-se uma amostra da diversidade de representações possíveis (vide algumas delas, por exemplo, em
VERDET, 1992, p. 77 a 89). A não ser que um cometa com cauda dupla excepcionalmente contras-
tante fosse representado como tal em dois lugares distintos e para ambas as ilustrações se tivessem da-
tações confiáveis e praticamente coincidentes (e ainda assim, só com essas informações, não teríamos
uma certeza garantida).
122 Contudo, vejam também, segundo outra luz, a rica visão antropológica com que Overing (1995) nos
brinda, correlacionada a esse mesmo tema.

355
Luiz Carlos Jafelice

está presente quando o que está envolvido são os ditos fenômenos naturais
(e não apenas os históricos), como a literatura em antropologia há muito
estuda e comprova. Por isto, não devemos, ingenuamente, buscar correlações
diretas biunívocas no estilo do par “fenômenos naturais  eventos míticos”,
artificialmente criado por nós, nem se deve esperar dos relatos míticos infor-
mações factuais fidedignas, no sentido que o realismo científico atribui a
este termo. Por outro lado, tampouco se deve deduzir que, se não posso fazer
nada disto, então, nada há de significativo nem de correlação factual de teor
naturalista nas narrativas míticas. Pode haver, ou não – e isto é irrelevante para
a abordagem pedagógica aqui proposta. O que importa valorizar e cultivar é
uma mentalidade que entenda que tais narrativas correspondem a uma outra
visão de mundo e, é importante enfatizar, são frutos de outra epistemologia,
muito diferente da científica, em vários aspectos constitutivos e operacionais,
contudo, igualmente válida e legítima123.
Como fiz antes (algumas páginas acima), neste parágrafo também di-
vagarei. Agora envolvendo eclipses e algumas reações populares associadas.
Por exemplo: popularmente diz-se que não se devem cruzar galinhas (ou ou-
tros animais) em época de eclipse (solar ou lunar) ou, se isto ocorrer, have-
rá consequências para a prole daí gerada (estas variam de relato para relato).
Conheço um relato, de acontecimento recente (2005 ou 2006), sobre duas
galinhas que chocavam, simultânea e respectivamente, 15 e 17 ovos durante

123 Merecem menção os trabalhos do lógico Newton da Costa sobre os Azande. Este povo da África Cen-
tral ficou conhecido quando o antropólogo E. E. Evans-Pritchard publicou na Inglaterra, em 1937, o
livro Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande (vide VIVEIROS DE CASTRO, 2005, para in-
formações sobre a tradução para o português), onde discorria em detalhe sobre o pensamento mágico
e divinatório desse povo. Na mentalidade que foi se engessando no Ocidente, magia ficou automati-
camente vista como antagônica a qualquer pensamento digno de racionalidade e de operação lógica
consistente. Como em outros exemplos, foi preciso que trabalhos em antropologia viessem favorecer
uma abertura frente àquela mentalidade. Os trabalhos de da Costa vêm reforçar esse arejamento men-
tal, ao mesmo tempo em que aprofundam a discussão. Analisando o caso desde o referencial mais
amplo das ditas lógicas paraconsistentes, este autor e colaboradores escreveram o trabalho: “Há uma
Lógica Zande?”. Eles mostram que o raciocínio zande segue uma estrutura lógica – ou melhor, como
eles dizem (em resposta à pergunta título de seu trabalho): “Sim, há muitas [lógicas azande]!” (DA
COSTA; BUENO; FRENCH, 1998 e referências lá citadas; título e trecho do trabalho traduzidos
por mim). Este é só um exemplo – mas relevante pelo novo ângulo em que a questão é estudada – a
reforçar que o pensamento humano comporta muitas outras formas legítimas de raciocínio que não
apenas aquela em que foi se afunilando a mentalidade ocidental (a da modalidade racional cognitivo-
instrumental da ciência). Como bem elucida Viveiros de Castro (2005, p. 7): “[o] propósito episte-
mológico do recurso à bruxaria como explicação de infortúnios [...] [está na] busca não de causas
eficientes, mas de razões suficientes; não uma física da causalidade objetiva, mas uma política da in-
tencionalidade subjetiva; não o fenômeno e o conceito, mas o evento e o sentido”; concluindo: “a este
livro [...] a antropologia deve uma de suas principais contribuições ao pensamento contemporâneo,
a saber, a constatação de que há muito mais bruxaria no céu e na terra do que supõe a vã burocracia
da razão”. [Nota sobre a terminologia: o povo é denominado Azande; o adjetivo, zande; e seu plural,
azande.]

356
Abordagem Antropológica

um eclipse lunar. Destes, nasceu apenas um pinto e os outros 31 ovos ficaram


cheios, esbranquiçados e foram perdidos (mas não goraram, como às vezes
ocorre, senão teriam apresentado um cheiro característico, de podre, que não
foi o caso), isto é, eles simplesmente não geraram pinto algum. Como isto,
estatisticamente, tem uma probabilidade bastante baixa de ocorrer e nunca
havia ocorrido antes nem se repetiu depois, tal acontecimento foi atribuído –
por um conhecedor tradicional, quando consultado sobre o caso – ao eclipse.
Há várias outras associações tradicionalmente feitas em relação a eclipses, em
geral envolvendo situações com mulheres grávidas, partos, frutificações e pro-
cessos do tipo (fecundação, gestação, germinação, floração). Tais alegações
terão algum fundamento124 ou serão apenas fruto do desconhecimento, mis-
tura ou extrapolação de informações de fontes diversas e projeção psicológica
para o plano da vida dos medos que aqueles eventos astronômicos desenca-
dearam historicamente (e às vezes ainda desencadeiam)125? Embora algumas
daquelas alegações possam ter sido construídas em bases supersticiosas, não
há respaldo comprobatório para classificar todas sob este rótulo. Com efeito,
sabe-se que eclipses, em particular os solares, alteram significativamente os
comportamentos de animais e as reações de plantas126. Portanto, é evidente
que durante os mesmos – mais agudamente nas fases finais, pré-totalidade –
há mudanças fisiológicas e metabólicas notáveis nesses organismos, mudan-
ças, aliás, esperadas do ponto de vista cronobiológico; afinal, está havendo

124 Neste parágrafo (e em algumas das notas associadas) os leitores precisam estar ainda mais atentos,
porque enveredo propositalmente pela linha de argumentação científico-realista ortodoxa típica;
aquela que vive do suposto fundamento ontológico – inequívoca comprovação factual obtida segundo
seu método de objetividade, que lhe garantiria conexão ontológica incontroversa e lhe permitiria
proferir veredicto fidedigno sobre qualquer alegação que julgue espúria. Senão, o caso costuma não
ser digno sequer do benefício da dúvida.
125 É fácil encontrar cientista pronto a atribuí-las à pura crendice infundada – mesmo que ele, ou ela, na
verdade, nunca tenha pesquisado cientificamente aquelas alegações, nem esteja familiarizado(a) com
nenhuma literatura científica reconhecida, acatada e não controversa, que afirme ter estudado aquelas
alegações, em particular, e concluído que elas absolutamente não procedem. Esse tipo de reação au-
tomática – pavloviana, pode-se dizer – é antes a sedimentação da mentalidade iluminista-positivista
na comunidade científica do que de fato fruto de sensatez, imparcialidade e razoabilidade. Não são
reações movidas por um saudável ceticismo. Soam como veredictos sobre tudo e todos. Quando ditos
por um(a) cientista, então, ficam acima de suspeita, infelizmente.
126 Há muitos estudos científicos a respeito comprovando isto e eu mesmo pude confirmar esses fatos
durante dois eclipses solares totais, fenômenos gloriosos aos quais tive a felicidade de presenciar, aos
03/11/1994, em Foz do Iguaçu (PR), e aos 29/03/2006, na praia de Barra de Tabatinga (RN). Nesta
ocasião eu estava junto a grupo de estudantes do Curso de Geografia, da UFRN, a quem eu lecionava
a disciplina Astronomia e os levei a essa imperdível aula de campo. Foi uma grande festa! Os efeitos
a que me refiro acima, porém, foram bem mais notáveis durante o primeiro evento, devido ao local
afastado onde eu estava – no campo, longe do burburinho da cidade e das aglomerações de pessoas e
ao mesmo tempo próximo a muitos animais e plantas diversas –, mais favorável para a observação das
referidas mudanças nos comportamentos dos animais e nas reações das plantas.

357
Luiz Carlos Jafelice

alteração sensível no nível de luminosidade ambiental, com as decorrentes va-


riações da temperatura e umidade relativa do ar, dentre outras alterações. Em
que medida estas alterações influenciam ou não – e o quê – nos organismos
submetidos a elas não está de todo esclarecido. Isto não significa que aque-
las alegações da tradição procedem, mas, sim, que há espaço para se aventar
possíveis correlações, também pela vertente das ciências naturais. Em suma,
não é, de forma alguma, fora de propósito – inclusive do ponto de vista estri-
tamente científico convencional – cogitar-se que os fenômenos dos eclipses
podem, eventualmente, ter, sim, consequências perceptíveis no fluir da vida,
que foram captadas, catalogadas e repassadas pelos seres humanos ao longo
de nossa história no planeta – além de terem sido também, como em todo
processo cultural, acrescidas de outras componentes extrafenomenológicas
ou extracorrelacionais, a partir da intervenção da inventividade, analogismo
e extrapolação humanas típicas (atributos muito importantes, aliás, inclusive
na construção do conhecimento científico). Portanto, é, no mínimo, prema-
turo – além de preconceituoso – rir-se das alegações populares sobre correla-
ções entre eclipses e acontecimentos com seres vivos, entre outras. É possível,
em princípio, que elas tenham fundamento, sim. Não é claro que as alegações
expressem algo que aconteça conforme relatado, nem que, se ocorrerem, se-
jam exatamente como afirmado. Porém, para se estabelecer com mais clareza
a pertinência e a abrangência daquelas correlações – ou a ausência destas –
é preciso proceder-se com seriedade, e não de modo apriorístico e leviano
como se observa com frequência127. Em minha opinião, um dos principais
motivos de as coisas estarem assim em nossa cultura e presente momento

127 Presenciei outra situação desse tipo, digna de nota. Certa feita, quando viajava a trabalho em Pau
dos Ferros (RN), um taxista me relatou que havia testemunhado “uma bola de luz que vinha em sua
direção” (quando ele trabalhava com um trator perto de uma serra, por volta da meia noite). Quando
contei para colegas físicos e geofísicos, a reação, sem exceção, foi de riso ou escárnio para o que con-
sideraram imaginação fértil daquela pessoa. Ora, na época eu trabalhava com física de plasma. Sabia
da existência do chamado “relâmpago de bola”, um fenômeno cuja explicação completa ainda está
em aberto, mas cuja existência física está comprovada; é algo factual, como a ciência se sente apta a
tratar. Há vários indícios associando tal fenômeno com processos geofísicos e há registros em outras
partes do globo. Aparentemente, pela frequência com que esse tipo de relato ocorre naquela região,
ela é candidata a preencher as condições para aquela manifestação. Aquele relato, então, se encaixava
perfeitamente no de um relâmpago de bola. O que a testemunha ocular atribuía ao que viu pertence
a outro domínio, mas não havia nada de risível, nem no relato, nem no fenômeno relatado. O ponto
é: era preciso saber da existência do relâmpago de bola em física para não ridicularizar, de antemão,
aquele relato? A resposta é um sonoro não! Nem aquele, nem quaisquer outros relatos, ditos com a
honestidade com que são vividos. O que houve, por parte dos cientistas mencionados, foi limitação
de visão, formatação de pensamento. Não foi, insisto, um ceticismo de distanciamento e imparciali-
dade, positivo em ciência e em geral. Havia uma sentença previamente promulgada, mais ou menos
na linha: “fora da academia pululam crendices; portanto, qualquer relato dali deve ser encarado antes
como fantasioso ou supersticioso do que passível de conter alguma verdade ontológica”. Este com-
portamento, injustificável, mesmo em nome da suposta verdade, é habitual em muitos cientistas. Por
se comportarem como donos da verdade, contribuem, inclusive, para afastar as pessoas da ciência.

358
Abordagem Antropológica

histórico, se deve à imposição de uma visão de mundo (fomentadora de – e


amparada por – um pensamento único), a qual vem sendo feita – e, o que é
pior, acatada – sem crítica, sem abertura mental e sem humildade128. Isto não
é nada bom para a grande maioria de nós, nem para o planeta129.

128 Em 2009 participei de dois encontros internacionais; um, específico sobre ensino de astronomia,
e outro, sobre ensino de ciências naturais em geral. Em ambos presenciei situações praticamente
idênticas e que imputo como muito representativas e preocupantes. Nos dois casos os protagonistas
– cientistas, por formação, mas simpatizantes de causas educacionais – não eram originários, nem tra-
balhavam em instituições, do chamado terceiro mundo. Cada um, contudo, relatou suas experiências
mais recentes em países desse referido mundo, abarcando ensino e divulgação em astronomia/ciên-
cias (embora no primeiro encontro houve umas tantas apresentações que reproduziram atos como o
que vou relatar; mas me concentrarei naquele que se destacou pela explicitação das imagens e falas).
Fiquei perplexo! Parece incrível, mas tristemente foi fato: ambos os apresentadores protagonizaram
cenas em que eles – tendo projetada uma imagem dessas consideradas típicas dos países subdesen-
volvidos ou em desenvolvimento (com crianças maltrapilhas, em condições precárias de moradia,
higiene etc.), enquanto faziam a “setinha do mouse” (da projeção em datashow do respectivo tra-
balho que apresentavam) circular sobre o peito de uma dessas crianças – proferiram praticamente
as mesmas palavras, no estilo: “eles precisam de nós; precisamos fazer a ciência chegar também a
estes pequeninos...”. Um absurdo! E mais significativo ainda porque não foram relatos personalistas
e, sim, de programas oficiais de “ensino e divulgação” criados e amparados por associações científicas
profissionais e instituições acadêmicas, e porque esses foram encontros atuais, de grande e variada
participação internacional, de diferentes áreas das ciências naturais, em continentes diferentes e en-
volvendo protagonistas e plateia distintas, que não denotaram identificar nada de estranho naqueles
comportamentos e comentários, ao contrário. Incrível e deprimente. A intenção dos expositores (e
de outros que pensam e agem como eles) – é de se supor – era das melhores (embora com um mal
disfarçado emocionalismo). Todavia, a consciência mais ampla e profunda do que aquela intenção,
se concretizada a contento, implica em termos de extermínio de diversidade epistemológico-cultural
é que parece estar ausente nesses atores. Ou seja, a concepção de base é completamente equivocada,
na minha opinião. Para eles: 1) o sentido de desenvolvimento é o econômico; 2) se dá através da in-
serção (de todos os povos) na forma de a cultura ocidental ver o mundo; 3) a qual ocorre com maior
eficiência através de uma educação reprodutora do status quo; e 4) cujo ápice – aquilo que pode for-
necer os ingredientes basilares por excelência para aquela inserção e aquele tipo de desenvolvimento
– é a ciência. Se isto não é uma reprodução atualizada (nos métodos e discursos, mas não na menta-
lidade que a nutre nem nas estratégias psicológicas básicas que adota) das imposições que déspotas
e usurpadores de todos os tempos, em todas as guerras e colonizações, ou em todas as catequizações,
como as jesuíticas (para ficarmos em um exemplo mais tocante a nós e explicitamente destruidor de
outras visões de mundo), perpetraram, não sei o que é. Coisa boa, é que não será, independentemen-
te das intenções anunciadas. As armaduras e os hábitos foram substituídos pelos aventais brancos e
mudou quem alegadamente detém a verdade inquestionável. E só. O resto continua tão insensível e
aniquilador de culturas autóctones como sempre foram aquelas cruzadas para promover o “progresso
do conhecimento e da civilização” (vide citação mais completa de FEYERABEND, 2007, na nota de
rodapé seguinte). É impressionante a relutância das pessoas, mesmo letradas e cultas, em atentarem
para essa repetição travestida daqueles crimes que, em outros terrenos e contextos, elas dizem ser tão
ferozmente contra. Será que essa “cegueira” significa que elas compactuam, então, com aqueles crimes
em nome do crescimento e expansão da ciência? Será que se convenceram que a existência de excluí-
dos é inerente à condição humana e só nos resta mitigar as desigualdades inevitáveis através da impo-
sição de um pensamento único, de índole econômica e suporte científico? Será que não há uma ínfima
clareza que seja sobre o que a antropologia, em particular (mais ainda a culturalista e hermenêutica),
nos ensinou sobre o que é ser humano? Enfim, todo esse quadro é terrível e muito inquietante. Mas,
assim é como estão as coisas. Elas não são assim, nem precisam continuar evoluindo nessa direção, na
qual têm atropelado tudo que encontram pela frente. Embora dificultoso, é possível e urgentemente
necessário resistir-se e mudar-se esse estado de coisas. É com isto que espero contribuir ao criar e
aplicar esta abordagem e ao elaborar este texto para divulgá-la.
129 Por isto também me posiciono contra o que está por trás de um ano internacional da astronomia, ou
da física, da biologia etc. A despeito das boas intenções apregoadas, esse tipo de promoção, na prática,
funciona como uma investida organizada maciça da milícia científica impondo a visão de mundo

359
Luiz Carlos Jafelice

Retomando as discussões anteriores, e para concluí-las, convém expli-


citar: não tenho uma posição definida sobre se a vida se originou na Terra ou
fora dela, por processos exclusivamente intrínsecos ao planeta ou com a aju-
da de algum ingrediente fundamental vindo de fora; se cometas podem ser
responsáveis por desencadear epidemias na Terra ou não; se a Lua compro-
vadamente foi fundamental para a estabilidade na direção do eixo de rotação
da Terra ou não; se a teoria do movimento oscilatório do Sol com respeito
ao disco galáctico explica ou não extinções e/ou explosões episódicas de es-
pécies; se o ciclo estendido de atividade solar tem correlação com períodos
de glaciações ou não; etc. A escolha de uma dessas alternativas – em cada
caso extremas, em alguns mutuamente excludentes, com grandes implicações
científicas, para um lado ou para outro – não é relevante para a abordagem
antropológica proposta neste capítulo; é indiferente. Para minha proposta – e
para aquilo que uso na inter-relação desta com eventuais contribuições das
áreas de ciências naturais e humanas130 – não é a quantidade ou o grau em que
“coisas na Terra” dependem de “coisas do céu”, segundo comprovações acei-
tas pelas ciências ortodoxas, que motiva, caracteriza ou justifica essa abor-
dagem. Mesmo se ficarmos com as conexões cósmicas convencionalmente

ocidental prevalecente em todas as culturas. O aviso de Feyerabend, infelizmente, continua mais atual
e preocupante que nunca (basta frequentar, ou analisar trabalhos de, encontros internacionais de edu-
cação científica – na nota de rodapé anterior comento dois exemplos desse teor): “[o] ‘progresso do
conhecimento e da civilização’ – como está sendo chamado o processo de forçar costumes e valores
ocidentais em todos os cantos do mundo – destruiu [...] maravilhosos produtos da engenhosidade
e compaixão humanas sem uma única olhadela sequer em sua direção” (FEYERABEND, 2007, no
prefácio à edição chinesa, p. 22-23) (vide também SHIVA, 2003, p. 21-83, que reforça argumentos
e soma exemplos nessa direção). E isto é humanamente inaceitável. Este tema está intimamente re-
lacionado com o ensino de ciências em países multiculturais, como é o caso do nosso. Uma verten-
te majoritária e dominante de adeptos considera que deve prevalecer a postura universalista, como
defendida, por exemplo, em Matthews (1994). Portanto, também me posiciono contra esse tipo de
mentalidade no ensino de ciências. Este capítulo aprofunda essa discussão e oferece exemplos e al-
ternativa na construção de contrarracionalidades que evitem transformar a educação científica em
mais uma eficiente divisão daquela investida, cujas consequências podem ser equivalentes às de um
genocídio.
130 Ressaltando que não são apenas – e, com frequência, nem como embasamento ou prioritariamente –
nas contribuições oriundas das ciências em que me amparo ou obtenho inspirações para as criações
ou desenvolvimentos da referida proposta. Diversas e essenciais evidências, de muitas outras fontes
– tradicionais, intuitivas, vivenciais, testemunhais etc. –, animam e orientam a presente abordagem.
E isto, tanto na origem da mesma como nas suas transformações constantes, posto que, respeitado
seu eixo de caráter holístico, espiritual, biocentrado (se for para ela não abandonar seus princípios
norteadores e não descaracterizar seus fundamentos e objetivos), ela é aberta a contribuições e reela-
borações permanentes por parte dos interessados.

360
Abordagem Antropológica

aceitas pela ciência131, temos suporte mais que abundante para evidenciar que
as coisas “aqui” estão muito longe de serem autossuficientes, nem ontem nem
hoje, e que a interconexão com as coisas de “lá” é a maior que pode existir, em
um grau e dimensões, no fundo, ainda não plenamente compreendidos, em
particular quanto às constituições e manifestações metabólicas, psicológicas
e culturais, entre outras, que julgamos tão características de nossa humana
forma de ser.

1.3 Finais

Este apêndice expõe, de modo incompleto e sucinto, leituras, reflexões


e conexões que fui fazendo ao circular pelas várias áreas do conhecimento
mencionadas, na busca de conformar uma visão mais ampla, diversificada e
unificadora, mas flexível e temporária, e uma ação mais assertiva e construti-
va para as áreas em questão: educação em astronomia e, por extensão (desde a
perspectiva aqui adotada), educação ambiental. Isto me permitiu perceber as
falhas no procedimento padrão que observamos em livros didáticos, meios de
divulgação científica, cursos de formação de professores e as práticas destes
nas escolas. Baseado também em fatos – muitos deles, inclusive, das próprias
áreas em ciências naturais – foi ficando explícita a precipitação com que afir-
mações ditas científicas (amiúde sem o serem) são feitas tão frequentemente,
por cientistas ou não. Neste ponto o auxílio da sociologia da ciência foi muito
importante para esclarecer o processo em jogo132. Também sobressaiu desse

131 Ainda que a ciência jamais adote a denominação “conexões cósmicas” ao expor os resultados de seus
estudos, visto que esta lhe soa tão mística e tendenciosa. Quando falo cosmo, aqui, estou consideran-
do o termo do ponto de vista antropológico, e não físico. Naquele sentido, cosmo, ou o adjetivo cós-
mico, diz respeito à totalidade do que existe. Para as culturas em geral, cosmo significa a terra, o céu,
os diferentes planos da existência e todos os seres, coisas e relações que existem nesses níveis e entre
eles. Para ocidentais urbanos modernos com acesso à educação formal – de forte teor naturalizante
–, cosmo é tão somente o universo físico ( JAFELICE, 2002; 2004; 2009a). Isto, somado à adoção de
uma única forma de pensamento (SANTOS, 2000; a referência deste livro está na seção Sugestões de
leituras), cuja tendência é excluir o que é diferente – inclusive outras formas de se construir conhe-
cimento – e reduzir tudo à medida oferecida pela ciência canônica, a expressão “conexões cósmicas”
não apenas soa mística, mas impossível de se concretizar de modo literal, isto é, de alguma forma
transmaterial. Luziânia Ângelli Lins de Medeiros aprofunda esta discussão no capítulo 3 deste livro.
Uma limitação grave daquela visão única é que, além de separar sujeito de objeto e supor que é pos-
sível uma universalidade descritiva, ela pressupõe partes de um todo conectadas, ou conectáveis, ain-
da segundo uma temporalidade, linearidade e causalidade físicas tradicionais, ao passo que (mesmo
pensando pela vertente cientificista) outros processos sistêmicos, sinérgicos, complexos, não-lineares
e principalmente não-locais podem não só estar presentes, mas ser os derradeiros responsáveis na
conformação das espécies e da relação entre tudo o que existe no cosmo.
132 Reitero: tal leitura sociológica da ciência, infelizmente, ainda está muito ausente da área de educação

361
Luiz Carlos Jafelice

percurso pessoal de amadurecimento – que envolveu não só interiorização


e síntese, mas foi sempre acompanhado de perto por práticas (experiências
educacionais) e reaplicações revistas das mesmas –, como parece haver uma
intenção mais ou menos consciente de se moldar uma cultura – não científi-
ca, mas, sim, cientificialoide – relacionada aos assuntos correlatos (no nosso
caso nos preocupamos mais, mas não exclusivamente, com aqueles conven-
cionalmente ligados à astronomia).
Foi ficando bem claro como era prematuro e infundado – se é que não
também axiologicamente condenável – muito do que se costuma encontrar
no setor. São trazidas à tona com frequência, nessa área, argumentações (apa-
rentemente sempre bem fundamentadas, referendadas por resultados acima
de qualquer suspeita) que visam, no fundo, enfraquecer os aspectos culturais
autóctones vinculados às coisas do céu, enaltecer os aspectos cientificistas
(no sentido de reforçar a racionalidade cognitivo-instrumental reinante na
pesquisa em astronomia) e acentuar a separação, já enorme, entre as culturas
humanística e científica.
Essa ênfase, que persiste na atualidade, em querer desvincular o céu da
terra – seguindo os rastros confusos e dispersos de uma revolução seiscentis-
ta que há muito pede revisões hermenêuticas – é esquizofrênica. Com efeito,
por um lado, a intenção, às vezes quase desesperada, de promover aquela des-
vinculação, para eliminar (ou fortemente relativizar e desmerecer) resquícios
de conexões do tipo subjetivo, vivencial, visceral, constitutivo; por outro lado,
a ânsia em tentar reatar aqueles vínculos pela via supostamente objetiva, das
ciências naturais (física, química, biologia, astronomia, ecologia), em uma li-
nha mais ou menos como: “estamos todos irmanados pela mesma origem”
(em referência à teoria cosmológica da grande explosão); “estamos todos co-
nectados no universo” (idem, no sentido estritamente físico); “somos poeira
de estrelas”; entre outras tentativas – aliás, válidas, é claro, mas unilaterais e
vazias de substância e conexão culturais maiores, e, por isto, na maioria dos
casos, de fato não atingem as pessoas com a comoção ou o entendimento
necessários. É um movimento canhestro e paradoxal (mas com metas muito
claras) de tentativa complacente de um “reencantamento” do mundo (por-
que senão os envolvidos nesse processo percebem que não angariam tantos
adeptos) que não viole os princípios cientificistas, no qual, entretanto, qual-

científica, com implicações muito preocupantes para a formação dos cidadãos ( JAFELICE, 2008a;
LOPES e JAFELICE, 2009; JAFELICE, 2009b; LOPES, 2010).

362
Abordagem Antropológica

quer referência ao encantado efetivo, parte da constituição de todas as cul-


turas humanas, é sumariamente vetada ou ridicularizada e recriminada. Essa
frente esquizofrênica é uma das mais amargas falácias que presenciamos na
divulgação e no ensino de ciências naturais – portanto também em astrono-
mia e na relação com a concepção de ambiente – atualmente.
Não visei fazer um apanhado extensivo neste apêndice, que arrolasse
todas as possibilidades conhecidas ou cogitadas dos fenômenos astronômi-
cos e das manifestações culturais – embora o apresentado é inédito quanto
ao volume e à diversidade de exemplos e de perspectivas de interconexões
contemplados. Basta, porém, o breve panorama descortinado, contendo vá-
rias situações estudadas ou propostas, mesmo no âmbito acadêmico conven-
cional, para compreender-se que o quadro todo – relativo ao entrelaçamento
indeslindável entre o que acontece na terra e o que ocorre no céu e como este
é determinante em inúmeros episódios e instâncias cruciais para aquilo que
conhecemos hoje – é muito mais complexo e rico do que uma visão científica
de teor mais positivista e reducionista muitas vezes quer passar.
O conteúdo deste apêndice circula por muitas áreas do conhecimento
ocidental convencional. As possibilidades apresentadas exacerbam as inter-
dependências dinâmicas complexas entre o que nós separamos em “céu” e
“Terra”. Convém explicitar que aquelas são possibilidades concebidas dentro
de um referencial e procedimento científicos reconhecidos pelos pares e que
a referida exacerbação ocorre também pela via das ciências naturais, desde
que se esteja aberto para se ler na mesma o tipo de quadro passível de resul-
tar de suas interpretações. No texto, enfatizei muito que há (com frequência
bem maior do que aprendemos a enxergar através de nossa educação formal)
acontecimentos terrestres decisivos, inclusive constitutivos de nós mesmos,
enquanto pessoas, que são desencadeados e/ou regulados por participação
não terrestre. Contudo, é bom repetir também a advertência: falas como es-
tas últimas, tão repisadas neste livro, são desnecessárias ou sem sentido se se
adotar de fato uma visão holística. Desde tal visão, não há necessidade de se
insistir (nos casos em que isto se aplica, i.e., nos casos em que uma concep-
ção convencional de causalidade, seja a ocidental ou outras – entre outras
concepções, categorias ou processos que criamos para dar inteligibilidade ao
mundo –, se aplica) que a origem “aqui” não provém “daqui” etc.; afinal, tudo
– material ou espiritual, imanente ou transcendente, cognoscível ou incog-
noscível – conforma um uno, no sentido holístico de unidade ou totalidade

363
Luiz Carlos Jafelice

– conforme nossas capacidades mentais humanas permitem que entendamos


os sentidos de unidade, de totalidade e de holístico, é claro.
Aqui apresentei tanto resultados científicos mais amplamente aceitos
pela comunidade – embora normalmente não inter-relacionados da forma
com que destaco muitos deles – como algumas conjecturas, também científi-
cas! Este ponto é importante enfatizar. Algumas das ideias apresentadas neste
apêndice são consideradas heterodoxas pela ciência de plantão e, portanto,
costumam ser excluídas da circulação pública – ou citadas esporadicamen-
te, em geral com algum tom ambíguo ou explicitamente jocoso, que é outro
expediente bastante usado pelo comportamento de parcialidade criticado. É
preciso ter-se claro, contudo, que as conjecturas apresentadas são frutos de
um fazer científico canônico, cujo rigor e qualidade são tão bons quanto os
de quaisquer outros cujos resultados estejam mais de acordo com a moda ou
o paradigma vigente.
Sim, há moda pressionando o dia a dia dos cientistas e estes não são tão
imunes a ela quanto seus discursos querem fazer crer – e não me refiro apenas
a uma adesão e circunscrição ao paradigma científico vigente e a resistências e
conservadorismo frente a anomalias naquele, no sentido kuhniano (KUHN,
1996). É necessário que as pessoas compensem as lacunas de formação nes-
se sentido e busquem obter maior conhecimento de sociologia da ciência,
filosofia da ciência e história da ciência, em particular os estudos de enfoque
externalista desta última, para entenderem como funciona a ortodoxia cien-
tífica e porque há assuntos, ideias e abordagens proibidos por ela – e porque
tal proceder não significa que este é o preço a se pagar se quisermos crescer
em conhecimento, qualidade de vida, solução para os problemas globais etc.
Os livros de Feyerabend (2006) e Collins e Pinch (2003) são um ótimo co-
meço para se aprender sobre como a ciência encara as controvérsias e sobre
uma outra forma de se entender a construção do conhecimento científico133.
Recomendo fortemente a leitura desses livros para se abrir um pouco a mente
e se ter elementos para entender a natureza real (isto é, de fato existente) des-
te tipo de conhecimento, que difere muito da versão pública anunciada. Isto
ajudará os leitores a entenderem o que circula na mídia sobre ciência muito
mais do que se fossem cientistas de qualquer especialidade.

133 Recomendáveis continuidades de estudos nessa direção são os livros de Paul Feyerabend (2007) e de
Bruno Latour (2000).

364
Abordagem Antropológica

É preciso que as pessoas, principalmente os professores, comecem a


atentar para o que está ocorrendo culturalmente e resistam aos empobreci-
mentos associados à abordagem redutora tão em voga; empobrecimentos
esses de várias ordens – epistemológica, axiológica, cultural, dentre outras –,
que abrem flanco largo para a instalação (que ocorre de modo imperceptível,
invisível) de preconceitos e exclusões de todo tipo. Este livro espera também
contribuir fornecendo subsídios para se desvelar as falácias mais gritantes e se
arejar as reflexões sobre o assunto, visando diversificar a bagagem de leituras
e de práticas e abordagens alternativas e fortalecer o tipo de resistência revi-
sionista, mentalidade ecocentrada e ação solidária, assertiva e acolhedora de
diversidades – inclusive a epistemológica, base das demais, convém sempre
ressaltar –, necessárias para as mudanças inadiáveis pedidas pelo planeta.

365
Luiz Carlos Jafelice

Apêndice 2

O céu na organização da vida humana ao longo da história da


humanidade
(Subsídios para se encaminhar este tipo de discussão em uma
atividade pedagógica)

Na subseção 2.3 (Antropologia; cronobiologia; cultura, natureza, cultu-


ra) escrevi:
[...] também na psicologia, culturas e sociedades humanas há mui-
to mais manifestações determinadas por ritmos celestes do que se
pensaria à primeira vista. Nossa espécie tem suas organizações psi-
cológica – estados de ânimo, humores, crenças –, cultural e social –
celebrações de rituais, festividades, arquiteturas de monumentos e
urbana –, espacial – orientação, norteamento, confecção de mapas –
e temporal – elaboração de calendários, mudanças sazonais, medidas
do tempo – comandadas, em grande parte e em aspectos centrais,
por fenômenos celestes.

Neste apêndice apresento uma prática e discussões relativas ao texto


acima que trabalho com os estudantes ao lecionar astronomia. Elas podem
ser úteis para quem pretende aplicar uma abordagem como a proposta neste
capítulo. No que se refere às “organizações psicológicas”, a própria subseção
2.3 e o apêndice 1 aprofundam tal discussão. Aqui me concentro nas outras
“organizações” da vida humana arroladas acima.
Logo nos primeiros contatos com os estudantes, após os procedimen-
tos envolvendo desenhos das origens e do céu, elaboração de história coletiva
do grupo sobre as origens e as primeiras tarefas para casa envolvendo o res-
tabelecimento do contato com a Lua e as coisas do céu, conforme expus no
texto deste capítulo134, costumo fazer uma pré-avaliação135.

134 Vide ainda detalhamentos e esclarecimentos sobre essas atividades nos apêndices 5 (Origens) e 6
(Primeiras tarefas para casa), a seguir, e em Jafelice (2004).
135 Na verdade é uma investigação prévia do grau de consciência – ou ignorância – da turma sobre as
relações céu-terra-vida que me interessam trabalhar em profundidade com eles. Ao aplicá-la, talvez
convenha você chamá-la de primeiras impressões ou algo assim (para evitar eventual ansiedade neles
pela palavra “avaliação”, com frequência usada indevidamente, para ameaçar ou punir).

366
Abordagem Antropológica

Forneço à turma um texto que fiz especificamente para aferir o que, e


até que ponto, eles sabem sobre a presença de “coisas do céu” em nossa orga-
nização da vida cotidiana e, portanto, no linguajar que usamos.
Começo, então, projetando o texto a seguir em uma tela – mas você
pode igualmente distribuir cópias reprográficas para cada aluno ou escrever
o texto na lousa – e dando o seguinte comando: “Por favor, leiam este texto”
(digo a eles que com isto pretendo examinar às quantas andam os conheci-
mentos deles sobre a presença de coisas do céu no nosso dia a dia e na nossa
fala; repito para que leiam o texto136; e não digo nada mais):
Eu tinha marcado um encontro com Antonico pra hoje, na frente da
matriz, às sete da manhã. A gente ia preparar a festa de São João, que
vai ser hoje à noite. Só que Antonico é muito desorientado e atrapa-
lhado. Ele se perdeu e só chegou lá às 7h50min. Isso atrasou todo
o resto. Agora já são seis da tarde, ainda falta terminar de ajeitar a
fogueira, e a festa, a maior deste mês, já era pra estar começando.

Após alguns minutos, pergunto se entenderam o que leram (no geral,


eles sempre entendem; no particular, costumam surgir algumas incertezas, as
quais não discuto com eles nesse momento; espero a etapa seguinte).
Peço, então, que eles releiam o texto, agora para responderem a este
pedido:
1.“Digam o mês e o dia do ano em que ocorreu o que está relatado
nesse texto.”
Colho as respostas, conforme os estudantes começam a expô-las.
Aceito toda e qualquer resposta. E, importante destacar, como esta é uma
abordagem problematizadora, não demonstro (por meio de expressão facial,
reação corporal, tom de voz etc.) se uma determinada resposta é a que eu es-
peraria ouvir ou não. O que me interessa é incentivar a participação do maior
número de alunos possível. Vou anotando mentalmente as respostas para de-
pois discuti-las com eles.
Em seguida, peço que leiam o texto pela terceira vez, agora para aten-
derem ao pedido:
2.“Identifiquem nesse parágrafo tudo que está relacionado a coisas do
céu.”

136 Em geral, antes que comecem a ler, enceno de cantor e lhes canto um trecho de Antonico (samba de
1950, de Ismael Silva), música em que me inspirei para nomear o personagem do texto: “Ô Antonico,
vou lhe pedir um favor [...]”; linda canção, aliás.

367
Luiz Carlos Jafelice

Igualmente colho as respostas, sejam quais forem, para posterior dis-


cussão.
A primeira questão é mais direta para se responder (principalmente
em regiões do Brasil onde as tradições juninas se mantêm mais vivas). A se-
gunda questão muitas vezes não é respondida por inteiro, porque já há muito
perdemos a trilha que relaciona muitas coisas de nosso cotidiano com sua
origem celeste.
O mês é junho, em geral todos sabem. E o dia em que a festa de São
João é comemorada é 23 de junho137. Aqui, porém, surge um conflito, do qual
só nesse momento muitos se conscientizam: o dia de São João, segundo o
calendário católico, é 24 de junho. (Se esta contradição não surge espontane-
amente deles, eu a levanto.) Pergunto, então, a eles: “se o dia do santo é 24,
por que a festa de seu dia é comemorada na véspera?”.
É comum as pessoas não saberem com segurança o que responder a
esta pergunta. Voltarei a este ponto logo mais. Continuemos comentando o
gabarito da “pré-avaliação”.
Para a segunda questão, as principais respostas normalmente incluem
os elementos: hoje (enquanto definição genérica de um dia), manhã, tarde e
noite (enquanto associação à presença e posição do Sol no céu), sete da ma-
nhã, 7h50min e seis da tarde (estas três últimas só como medida da hora, sem
consciência de sua origem), festa de São João (mas só como algo que acontece
numa época determinada do ano), desorientado (mas esta apenas no sentido
de localização espacial genérica) e mês (mas esta apenas como medida de um
“tempo padrão” ao longo do ano). Nada muito diferente disto costuma ser
apontado como elemento daquele parágrafo que se relacione com coisas do
céu. Mas há muito mais naquelas frases sobre isto!
Por exemplo, também se encaixam nessa categoria as palavras: matriz
(enquanto alinhamento arquitetural terrestre com orientações definidas
pelo céu), festa de São João (aqui, remetendo à suas origens de celebrações
solsticiais pagãs, anteriores à era cristã), 7h50min (aqui, enquanto sistema
sexagesimal de medida), desorientado (aqui, enquanto etimologia da palavra),
fogueira (enquanto significado simbólico naquele contexto), festa (no sentido

137 Alguns ficam em dúvida, e dizem 24 de junho. No Nordeste, porém, pode-se dizer que essa dúvida
quase não existe, porque praticamente todos sabem, sem sombra de dúvida, que o dia dessa comemo-
ração é 23 de junho!

368
Abordagem Antropológica

de comemoração ritualística comunitária – de caráter religioso, em geral, e


intimamente vinculada ao calendário), mês (enquanto etimologia da palavra
e significado essencialmente celeste, posto que lunar), o fato de a festa ser
a maior do mês (ela se destaca em um mês com três festividades grandes),
o fato de a festa ser uma das maiores do ano (ela se destaca também como
festividade grande no ano todo) e os fatos de a festa iniciar-se às seis da tarde
da véspera do dia do santo (remetendo a um calendário básico lunar, como
foram os primeiros registros temporais sistemáticos de praticamente todas
as culturas humanas138; as pessoas em geral não têm consciência destas duas
“imposições” – de a festa não poder começar antes das seis horas da tarde e de
ela se dar na véspera da data oficial do santo –, e quando alertadas para estes
fatos não sabem como explicá-los).
Assim, um “gabarito” dessa “pré-avaliação” seria (onde destaco as prin-
cipais palavras diretamente relacionadas a coisas do céu):
“Eu tinha marcado um encontro com Antonico pra hoje, na frente da
matriz, às sete da manhã. A gente ia preparar a festa de São João, que vai ser
hoje à noite. Só que Antonico é muito desorientado e atrapalhado. Ele se per-
deu e só chegou lá às 7h50min. Isso atrasou todo o resto. Agora já são seis da
tarde, ainda falta terminar de ajeitar a fogueira, e a festa, a maior deste mês e
uma das maiores do ano, já era pra estar começando.”
Notem que esse gabarito (que só inclui os principais termos daquele
parágrafo que respondem à segunda questão) contém pelo menos dezessete
(17) citações139: hoje; manhã; tarde; noite; ano; festa de São João; sete da ma-
nhã; 7h50min; seis da tarde; desorientado; mês; matriz; fogueira; festa; o fato de
a festa ser a maior do mês; o fato de a festa ser uma das maiores do ano; e os fatos
de a festa iniciar-se às seis da tarde da véspera do dia do santo.
Comento, agora, sobre esses termos destacados e, em particular, o
porquê da seleção também de vários deles que a maioria das pessoas não
esperaria ver nessa lista.

138 Vide no apêndice 1 (Subsídios e pressupostos para orientar a leitura da subseção 2.3) (e nas referências lá
citadas) especulações sobre possíveis origens para esse tipo de calendário.
139 Ou seja: muitas associações com coisas do céu para um parágrafo relativamente curto! Claro que
o criei buscando exacerbar esse tipo de associação. Mas fica clara a verossimilhança com fraseados
típicos de nosso linguajar e modo de vida, em particular onde aquelas celebrações ainda são fortes,
mesmo que aqueles termos não sejam habitualmente proferidos tão em seguida um do outro. A ideia
foi dar ênfase àquelas associações e ao fato de não termos consciência (ou termos muito pouca, em
geral por motivos equivocados) das mesmas. Sugiro que você crie outros textos que realcem as inter-
conexões céu-terra-vida que costumamos ignorar.

369
Luiz Carlos Jafelice

Antes, porém, para fins didáticos, convém organizarmos as respostas


que normalmente são dadas à segunda questão, dividindo-as em dois tipos,
os quais resumo no quadro a seguir:

Tipos de citações nas respostas à segunda questão da pré-avaliação


Termos que normalmente são respon- Termos que praticamente nunca são
didos – embora aqueles marcados com respondidos ou, quando o são, não
asterisco (*) o são sem conhecimento trazem as motivações e associações de-
claro sobre a origem do termo ou até vidas (isto é, as pessoas de fato não sa-
onde vai sua associação com coisas do bem como esses termos se relacionam
céu. com coisas do céu).
hoje Matriz
manhã Fogueira
tarde Festa
noite o fato de a festa ser a maior do mês
o fato de a festa ser uma das maiores
ano
do ano
os fatos de a festa iniciar-se às seis da
festa de São João*
tarde da véspera do dia do santo
sete da manhã*
7h50min*
seis da tarde*
desorientado*
mês*

Já explicitei acima os principais motivos – isto é, motivos equivocados


ou incompletos – para as respostas destacadas com asterisco. Também expus,
com comentários breves entre parênteses, porque os termos da coluna à di-
reita não aparecem ou, quando são citados, não o são com base em associa-
ções pertinentes. Vamos aprofundar estes esclarecimentos.
   Hoje, manhã, tarde e noite, ou sete da manhã, 7h50min e seis da
tarde, ou mês, ou ano – enquanto palavras que designam momentos do “dia”
ou medida da hora ou uma certa medida de “tempo padrão” (no ano ou inter-
valos de tempo maiores, nos anos): são mais facilmente associadas a “coisas
do céu”, já que são mudanças nestas que especificam as definições ou altera-
ções daquelas. Porém, por que a medida da hora é feita dessa forma ou qual
a origem e significado da palavra mês para medir um certo “tempo padrão”

370
Abordagem Antropológica

(como comentarei mais abaixo), em geral são aspectos totalmente ignorados


por quem faz essas associações.
Desorientado – para designar genericamente perda de localização
espacial, e que, portanto, deve guardar alguma relação com orientação, pon-
tos cardeais e coisas de “astronomia”: também é termo mais simples de lem-
brarmos e associarmos. Mas outros elementos constitutivos de caráter “celes-
te” que existem por trás desse termo não costumam ser cogitados por quem o
propõe.
Com efeito, a única forma que seres humanos de diferentes culturas
dispuseram para se localizarem espacialmente, quando estão envolvidas lon-
gas distâncias140, provém “do céu”. Não é de se estranhar, portanto, que nossas
palavras básicas relativas ao direcionamento espacial (pelo menos em por-
tuguês) guardem, etimologicamente, relação direta com aquelas associadas
a direções cardeais. Desorientado é o oposto de orientado, que vem de oriente
(latim) e significa onde o Sol nasce. Semanticamente essas palavras amplia-
ram seu sentido, para incluir significados além daqueles meramente espaciais.
Uma pessoa pode estar orientada ou desorientada em relação a muitas coisas
e não só no caminho (no espaço) que deve seguir. Da mesma maneira, as pa-
lavras norteado ou desnorteado, são originárias de norte (anglo-saxão), obtido
após a direção leste-oeste ser estabelecida, como uma contraposição ao sul.
Ou seja, poderíamos, perfeitamente, ter adotado as palavras ocidentali-
zar ou sulear141 para indicar aquelas mesmas referências e orientações (ops!)
espaciais. Soa estranho dizer (ou ouvir): “aquela pessoa anda muito dessu-
leada” ou “ele se desocidentalizou e perdeu seu sul”, só porque não fomos
criados ouvindo isto assim, senão seria tão “natural” quanto “aquela pessoa
anda muito desnorteada” etc. É óbvio que não há nada objetivamente estra-
nho nessas palavras ou acepções. Assim, adotarmos um termo como nortear
– e suas variações – é mais um exemplo, agora linguístico, de que somos colo-
nizados (por povo que adotou o norte como referência espacial – e, portanto,
linguística – principal).

140 Para distâncias menores (pelo menos se não for no meio do deserto), os acidentes topográficos, o re-
levo da paisagem, a memória do percurso, são suficientes para a orientação espacial (mesmo no meio
de floresta tropical). Contudo, para longas distâncias em terra – que os povos (ou membros de suas
comunidades) sempre empreenderam – ou para viagens ao mar em regiões onde não é mais possível
avistar a costa – mais recentes, do ponto de vista histórico –, apenas o céu pode fornecer orientação
segura e garantida.
141 Marcio D’Olne Campos, em particular, propôs e tem comentado e incentivado, em várias ocasiões, o
uso da terminologia sulear (vide, e.g., CAMPOS, 1999).

371
Luiz Carlos Jafelice

 Matriz: para muitos é uma surpresa que este termo conste daquela
lista. Enquanto templo da igreja católica – assim como qualquer outro templo
de outras religiões em geral – a matriz representa um local sagrado e, portan-
to, não pode ser erigido de qualquer jeito. Tradicionalmente um templo não
pode ser construído em qualquer lugar nem com uma orientação qualquer.
Ou seja: as “coisas do céu” determinam nas primeiras sociedades hu-
manas (sejam da cultura babilônica, ou egípcia, chinesa, asteca, inca, indiana
etc.) como deve ser erigido o templo de sua religião e, por conseguinte, como
suas cidades devem ser estruturadas e organizadas espacialmente. Essas cida-
des (pelo menos as principais edificações de caráter sócio-administrativo e
nos entornos significativos para as comemorações ritualísticas das respecti-
vas culturas) são construídas, muitas vezes, a partir de uma “irradiação” cen-
tral definida pela orientação de seu templo. Orientação esta de caráter essen-
cialmente celeste.
Portanto, as “coisas do céu” estão muito presentes na arquitetura, onde
inspiram padrões às vezes presentes até hoje142, embora sua origem celeste
muitas vezes foi perdida no tempo e não tem a força e determinação que teve
algum dia.
Como essas orientações se concretizam na prática, depende de cada
caso. Para muitas culturas, a direção mais importante (para onde devemo-nos
orientar para orar ou meditar) é a do sol nascente (leste); para outras é outro
o ponto cardeal ou o ponto básico de referência (como para os muçulmanos,
cujo ponto de convergência e orientação é a localização da Caaba, na cidade
de Meca143). Seja como for, predominam associações de caráter celeste para
motivar as construções de templos e cidades na história da humanidade144.

142 Não me refiro às orientações de edifícios para atender a padrões de insolação, otimização de sombras,
correntes de ar, uso e armazenamento de energia solar etc., claramente definidas por causas celestes,
mas com motivações de teor diferente daquele aqui analisado.
143 Como já mencionei (no apêndice 1), a Caaba abriga um meteorito, uma pedra sagrada que é um
presente de origem celeste que Alá enviou a esse povo.
144 É pertinente aqui citarmos Eliade: “Nas grandes civilizações orientais – da Mesopotâmia e do Egito
à China e à Índia – o templo recebeu uma nova e importante valorização: não é somente uma imago
mundi [imagem do mundo], mas também a reprodução terrestre de um modelo transcendente. O
judaísmo herdou essa concepção paleoriental [oriental antiga] do Templo como cópia de um arqué-
tipo [um modelo exemplar primordial, de caráter divino, pelo qual as pessoas de uma dada cultura
tentam orientar seus atos e sua vida] celeste. É provável que tenhamos nessa ideia uma das últimas
interpretações que o homem religioso deu à experiência primária do espaço sagrado em oposição ao
espaço profano. [...] Lembremos o essencial do problema: se o Templo constitui uma imago mundi, é
porque o Mundo, como obra dos deuses, é sagrado. Mas a estrutura cosmológica do Templo permite

372
Abordagem Antropológica

 Festa de São João: é outra associação estranha para a maioria das


pessoas. Mas elas se surpreendem mais ainda quando lhes comunico que “a
festa de São João, na verdade, não é de São João (nem de nenhum santo da ig-
reja católica)”. Esta costuma ser uma revelação bastante inesperada. Em geral
ninguém nunca ouviu isto. E prossigo relatando que “São João nem gostava
de festa coisa nenhuma. É santo austero. Há inclusive cantiga popular que
diz: ‘São João está dormindo, não acorda não [...]’. Porque se ele acorda, ele
termina logo com aquela algazarra e falta do que fazer”145.
Em resumo, essa não é originalmente uma festa cristã. É uma festa pa-
gã146 arcaica, que existia muito antes de Cristo, em praticamente todas as regi-
ões onde hoje é o Oriente Médio, a Europa e a Escandinávia, por exemplo.
Ela sempre foi uma festa de caráter agrícola, de celebração do apogeu
do verão, da fertilidade da terra e, por extensão, das pessoas, comemorada na
época do solstício de verão (quando temos o dia mais longo e a noite mais
curta do ano). E a fogueira nessa festa simboliza o Sol em seu auge de esplen-
dor, calor e vida; esperanças de novo ano promissor.

uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica
continuamente o Mundo, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo” (ELIADE, 1992b,
p. 55-56; itálicos do autor). E prossegue: “A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo
que o Paraíso, portanto in aeternum [de modo eterno]. A cidade de Jerusalém não era senão a repro-
dução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu modelo era
incorruptível, porque não estava implicado no Tempo. [...] A basílica cristã, e mais tarde a catedral,
retoma e prolonga todos esses simbolismos. [...] na igreja bizantina [por exemplo, da cultura cristã]
‘[a]s quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo. O interior da igreja
é o Universo’ (Hans Sedlmayr, apud ELIADE, 1992b, p. 58)” (ELIADE, 1992b, p. 57-58; idem). Para
se compreender melhor essas explanações de Eliade, é fundamental se entender as concepções de es-
paço e de tempo que as sociedades humanas arcaicas tiveram, em geral independentemente umas das
outras. Para essas sociedades nem o espaço, nem o tempo, são homogêneos (vide também ELIADE,
1992a). Nós, pessoas ocidentais urbanas contemporâneas, temos tão entranhado em nós, através de
nossa cultura e formação cientificista, uma concepção de espaço e tempo como entidades homogêne-
as e lineares, que fica muito difícil entender concepções que outras culturas tiveram, e – importante
frisar – várias ainda têm, sobre isso. Aqui também cabem bons exercícios de antropologia sobre esses
conceitos e concepções. [As referências dos livros Eliade (1992a) e Eliade (1992b) estão na seção
Sugestões de leituras.]
145 Ou, segundo uma versão em Cascudo (1998; no verbete “João”; e referências lá citadas), não se deve
acordá-lo senão pode-se corromper o santo, que ficará tentado a deixar o céu e vir participar da festa
e, então, “o mundo acabará pelo fogo” (idem, p. 477).
146 “A palavra ‘pagão’ vem do latim pagus e significa aldeia” (MARTINS, 1994, p. 16). Ou seja, pagão quer
dizer aldeão. Só posteriormente essa palavra ficou estigmatizada com a conotação que a igreja católica
lhe impingiu (qual seja: a de alguém que segue uma religião que não adota o batismo). Aqui enfatizo
seu significado original, inclusive para estimular o acolhimento de uma convivência ecumênica, tão
necessário nos dias de hoje.

373
Luiz Carlos Jafelice

Aquilo que conhecemos como festa de São João é de fato uma come-
moração solsticial, portanto de caráter essencialmente celeste, originária de
quando as comunidades celebravam as colheitas, prestavam homenagens
às suas divindades, pediam que no próximo ano também houvesse fartura,
faziam suas adivinhações, principalmente as relacionadas aos possíveis casa-
mentos ou destinos amorosos dos seus habitantes (pois, já mencionei, essa
era uma festa centrada no tema da fertilidade em geral).
É importante ressaltar que era uma festividade de uma época cuja con-
cepção de tempo era cíclica. Ou seja, aquele momento da festa era de reinício;
ela era uma celebração de ano novo!147 Como destaca Martins (1994, p. 18),
“[e]mbora o povo do interior do Brasil não saiba qual a origem da festa, ela é
um ritual de repetição do nascimento do mundo”.
Porém, se, por um lado, São João não é santo festeiro e, por outro, essa
festa, em sua origem, é de verão: a) por que a associamos a esse santo?; b)
por que nos dão outra explicação para a fogueira (entre outros simbolismos)
da festa?; e c) por que a comemoramos no inverno (junho)? Basicamente
porque, apesar das muitas tentativas, a igreja católica não conseguiu eliminar
completamente essa tradição dos povos ibéricos, em particular. Para isto ela

147 Nos anos de 1999, 2000, 2002, 2008, 2009 e 2010 promovi Festivais de Solstício de Inverno, e em 2009
promovi ainda um segundo Festival, o de Equinócio de Primavera. Os três primeiros (de 1999 a 2002),
no pátio arborizado do Departamento de Física Teórica e Experimental da UFRN, em Natal (RN),
como atividade prática da disciplina de astronomia que eu lecionava na época, onde contei com a
ajuda de alunos e ex-alunos de vários cursos da UFRN nos preparativos e condução das celebrações;
os três últimos (de 2008 a 2010), na areia do rio Carnaúba, em Carnaúba dos Dantas (RN), como
prática em um curso de extensão universitária que ministrei lá, quando contei com a ajuda dos alunos
do curso e de membros da equipe do projeto que eu coordenava junto ao CNPq, do qual aquele curso
fazia parte. No Festival de Equinócio de Primavera (também em 2009), contei com a ajuda dos colegas
astrofísicos Leandro Kerber e Jules Soares e alunos do Departamento de Ciências Exatas e Tecnoló-
gicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus (BA), como parte da programação
da V Semana de Física da UESC, a qual teve por tema “Um mesmo céu... muitos olhares” [organizada
por Jules Soares (Coord.), Ana Paula Andrade, Leandro Kerber e Andréa Morégula]. Aqueles dois
colegas também participaram da organização do Festival de 2010, em Carnaúba dos Dantas, desta vez
juntamente com a colega antropóloga Flávia Cristina de Mello, também da UESC. Todos esses even-
tos foram abertos a todos os interessados. O intuito foi reviver celebrações solsticiais invernais – ou,
no segundo caso de 2009, equinociais primaveris – arcaicas de nossa cultura e muito do simbolismo
associado, recuperando conhecimentos ancestrais da relação das pessoas com os ritmos cósmicos e
práticas mítico-ritualísticas de uma era cujas concepções temporais e cosmogônicas eram cíclicas.
Foram festivais muito concorridos e desfrutados, embora nos três primeiros e no segundo de 2009
(equinocial) – é compreensível, pois realizados em ambientes específicos de ciências exatas – houve
alguns observadores casuais que estranharam muito aquilo tudo. [A título de esclarecimento: a festa
de São João está associada ao solstício de verão; então, o que promovi naquelas ocasiões, embora no
nosso calendário quase coincidissem com aquela festa, nada tinham a ver com ela; não foram um São
João (como se conhece) com a interposição de coisas incomuns ou “estranhas”; foram comemorações
de ano novo.]

374
Abordagem Antropológica

encontrou um santo de relevância148 com data próxima à da comemoração,


inventou “simbolismos” para justificar as práticas tradicionais associadas à
festa (como dizer, por exemplo, que a fogueira é para honrar o santo) e rede-
senhou toda a explicação racional para a origem e formato da mesma149.
O fato de comemorarmos essa festividade no inverno150 é mais uma
expressão evidente de que somos um povo colonizado151. No caso, como

148 Pois, como essa festa pagã era das mais importantes para os povos da antiguidade, no velho mundo, era
preciso encontrar um santo que também se destacasse, cuja data de sua festa litúrgica fosse próxima
àquela do solstício de verão (que é em torno de 21 de junho no hemisfério norte; é preciso manter em
mente que para todas estas datas originais a que nos referimos aqui, nossa referência é o hemisfério
norte, pois era onde os fenômenos celestes e eventos terrestres em questão associados estavam sendo
presenciados e celebrados pelas culturas nas quais nos concentramos em relação a essa festa, quais
sejam, as culturas que influenciaram diretamente a que nos colonizou). Esse santo foi João Batista,
primo de Jesus, que nasceu aos 24 de junho do ano 2 a.C. (em contraposição a São João Evangelista, o
mais novo dos doze apóstolos de Jesus, nascido aos 27 de dezembro do ano 10 d.C.) (WIKIPEDIA,
2009c). É pertinente notar que embora os fenômenos dos solstícios sejam ambos muito importantes,
do ponto de vista simbólico o de inverno é mais significativo. Com efeito, simbolicamente, para um
ano novo, o solstício de inverno representa a passagem à fase ascendente e luminosa do ciclo anual.
Ou seja, a esperança de um futuro auspicioso. Assim, o primeiro santo João – de destaque histórico e
religioso na vida e iniciação de Jesus – está associado ao solstício de verão (junho), porém, o último
santo João – apesar de ter festa litúrgica em data próxima à do solstício de inverno (isto é, em torno
de 21 de dezembro, no hemisfério norte) – não é vinculado a este evento. Era preciso uma figura à
altura da grandeza e significado simbólico deste fenômeno. É compreensível, então, que o nascimento
de Jesus (cuja data histórica não é conhecida com precisão) tenha sido escolhido para tal associação
(mais auspiciosa). Assim, o Natal fica associado ao solstício de inverno.
149 No capítulo 1 deste livro, Maria Luciene de Souza Lima Freitas apresenta outros elementos sobre esta
discussão na subseção 3.9 (As Origens Celestes das Festas Juninas através de Fantoches) (e referências lá
citadas) e no apêndice I de sua dissertação de mestrado (vide referência completa no capítulo 1) ela
expõe em detalhe uma prática de teatro de fantoches onde aborda essas questões relativas às origens
daquelas festas.
150 No sul do país é comum as pessoas acharem que as fogueiras das festas juninas são motivadas pelo
frio; que começaram a ser feitas para aquecer as pessoas nas noites frias daquelas festas. Está claro que
não é nada disto.
151 Na verdade, toda vez que olhamos um mapa-múndi ou um globo terrestre podemos nos lembrar que
somos colonizados. Adotar a direção cardeal norte “para cima”, como quem nos colonizou fazia (e
faz), é convenção arbitrária. Os árabes e os chineses, independentemente, costumavam representar
o sul “para cima”. Antes de se amarrar a convenção que adotamos hoje, houve mapas cuja direção
cardeal colocada “para cima” foi cada uma das quatro existentes. Ao que sei, em tupi não há palavras
para as direções norte e sul, apenas para “onde o sol levanta” (que chamamos de leste) e “onde o sol se
deita” (oeste). De fato, do ponto de vista astronômico, estas são as direções relevantes, que se podem
caracterizar sem ambiguidade, seja tomando o Sol (nos equinócios, quando o dia e a noite têm mesma
duração) ou estrelas como referência; essas foram as direções tomadas para orientação básica desde
a Antiguidade, pelos egípcios e outros povos, de onde as outras duas direções cardeais são definidas.
Uma vez estabelecida a linha “leste-oeste”, a “norte-sul” é uma “contraposição” natural para humanos
em geral. [A convenção de Ptolomeu – norte “para cima” – é reintroduzida no Ocidente por volta de
1.400 d.C. Na internet há sítios onde constam mapas com o sul “para cima”, por exemplo: Flourish
(2009) e Wikipedia (2009d). Recomendo uma consulta e contemplação detida desses mapas. Além
de instrutivo, ajuda a desfazer certa visão e hábitos mentais que se pensa serem tão objetivos. Quando
um ser extraterrestre chega em nosso planeta – a bordo de sua supernave espacial, é claro – ele/ela/?
não vai estranhá-lo mesmo que, desde seu ângulo de chegada, a Terra esteja com o polo sul “para

375
Luiz Carlos Jafelice

foram os portugueses que nos colonizaram – povo do hemisfério norte que


adotava (e adota) o norte como referência principal de orientação cartográfica
e outras – ao trazerem seus costumes para as terras conquistadas eles natu-
ralmente não os adaptaram em termos astronômicos. Afinal, nem podia ser
diferente, porque quando do descobrimento do Brasil de há muito já se havia
perdido o conhecimento de que aquela, na verdade, era uma festa de motiva-
ção essencialmente celeste, tanto nos sentidos fenomenológico e calendárico
do termo, como simbolicamente, para as relações de culturas pagãs com even-
tos naturais e transcendências associadas.
Os interessados encontrarão farto e interessante material sobre estes
assuntos em Câmara Cascudo152, onde são comentados muitos dos elemen-
tos acima, são fornecidos exemplos das famosas adivinhas de São João e ou-
tros fatos pitorescos são apreciados.
7h50min: sabemos que é uma medida de tempo, mas por que se
mede tempo assim e não, por exemplo, 7,83 h153, ou de alguma outra forma
qualquer? É só convenção? Mas, então, por que adotamos essa convenção e
não outra? Qual a motivação, ou os argumentos, para se adotá-la?
Estamos muito habituados com o sistema decimal, no qual avançamos
dez grandezas de um tipo para passarmos para a grandeza de ordem seguinte,
e assim por diante. Por exemplo: após dez unidades sequenciadas vem a deze-
na; após dez dezenas, a centena; após dez centenas, o milhar; etc.
Qual sistema que conhecemos em que são necessárias sessenta
“coisas” de um tipo para passarmos para o tipo seguinte; depois mais sessenta
deste segundo tipo para passarmos para o outro tipo seguinte, etc.?154 Depois

cima”. Ele/Ela/? não tem um modelo incutido para pensar que este corresponde a algo objetivamente
verdadeiro, impensável de se mudar; não cresceu convivendo com uma única convenção (a do norte
“para cima”) como nós. Exercite pensar no sul para cima; inclusive politicamente isto é muito perti-
nente. Trabalhe também isto com seus alunos e as pessoas em geral.]
152 Cascudo (1998, no verbete “João”, e referências lá citadas; e 1995). Estes assuntos são abordados
também nos livros: Martins (1994, p. 18); Mélo (1949); Frazer (1982a; 1982b).
153 Vejam só: o que era um número “redondo” (7h50min), no sistema decimal virou uma dízima periódi-
ca!
154 Pergunto isto à classe (notem que eles não leram a explanação que faço sobre o sistema sexagesimal no
apêndice 1, nem eu trabalhei este assunto com eles antes). Dou um tempo para que de fato as pessoas
respondam ou tentem fazê-lo. Devemos evitar perguntas de retórica (do tipo em que o professor
pergunta e ele mesmo, em seguida, responde; muitos creem que desta forma estão dialogando com a
turma; é claro que não estão). Após as respostas surgirem, relembro à turma que a resposta é o sistema
de medida das horas ou dos graus (um só sistema, como mencionei no apêndice 1). Aquela pergunta,
inserida em um contexto, como aqui, já costuma ficar sem resposta. Fora de contexto, então, as pesso-
as em geral sequer a entendem. No apêndice 1 comento mais sobre a origem do sistema sexagesimal
e a da equivalência entre dia e grau.

376
Abordagem Antropológica

de ouvir as respostas dos alunos, sistematizo: para medir (intervalos de)


tempo, precisamos de 60 segundos para formar um minuto e de 60 minutos
para completar uma hora. Ou ainda: para medir ângulos, necessitamos 60
segundos (de arco) para completar um minuto (de arco) e 60 minutos (de
arco) para formar um grau.
Ressalto, então: é notável que até hoje ainda utilizemos um sistema de
medida tão antigo, sem alteração ou substituição. É digno de nota também
que mesmo pessoas com bastante escolaridade desconheçam o fato de que
estão usando, neste exato segundo (!), um sistema babilônico antigo – e de
origem celeste – para medir, calcular e organizar o tempo.
Seis da tarde: não apenas como aplicação do sistema sexagesimal,
já comentado (no qual também sete da manhã se encaixa). Aqui, interessa
discutir porque esse particular horário da tarde é tão importante, a ponto
de ser determinante para inúmeras comemorações importantes em diversas
religiões.
Certa vez uma professora me contou que sua avó não permitia que
ela acendesse a fogueira de São João antes das seis horas da tarde de modo
algum. E ela, menina, ficava lá, ao pé do amontoado de madeira, só esperando
dar seis horas para poder acender a fogueira. Os leitores (ainda mais se forem
nordestinos, onde essas tradições são mais fortes e em parte ainda se man-
têm) talvez conheçam vários outros exemplos desse tipo.
A origem para tamanha relevância desse horário se remete à do ca-
lendário lunar. Por isto, a palavra mês foi outro dos termos destacados dentre
aqueles que ora analiso. Como comenta Eliade (1993b, p. 127-128): “A mais
antiga raiz indo-ariana relativa aos astros é a que designa a Lua: é a raiz me,
em sânscrito mâmi, ‘eu meço’ [daí deriva a palavra mensis (ou mense) em la-
tim, de onde decorre a palavra mês em português]”. (Daí deriva também a
palavra menstruação155). Enfim, mês é uma medida de tempo baseada nas
fases lunares.
Os calendários iniciais de todas as culturas humanas que os criaram
foram lunares, até onde se sabe. Em um calendário lunar “o dia seguinte” não
começa à zero hora do nosso calendário civil, como nos habituamos a enten-
der. Embora seja óbvio que o dia seguinte comece quando o anterior acaba,
a questão é definir quando o anterior acaba156. Isto sempre foi evidente para

155 Sobre isto comento algo mais no apêndice 1.


156 Notem: a duração de um dia, independentemente de quando se escolhe para iniciar sua contagem, é
de 24 horas (para usarmos nossa terminologia atual), para qualquer calendário, portanto inclusive o
lunar. No nosso calendário civil em vigor, a 0 hora se inicia “no meio da noite” e, então, as 24 horas se

377
Luiz Carlos Jafelice

nossos ancestrais: o dia acaba quando o Sol se põe. Depois que adotamos um
sistema fixo de divisão do dia em 24 horas, “o momento em que o dia acaba”
(i.e., aquele em que o Sol se põe) varia de dia para dia (em relação às horas
marcadas por tal sistema), para um dado lugar, ao longo do ano; padronizou-
se, então, seis da tarde como o horário médio em que o Sol se põe.
Assim, o que a grande maioria desconhece, é que não só os calendá-
rios lunares ainda têm presença muito entranhada em nossa própria cultura,
como o dia, para tais calendários, começa às seis da tarde (do que para nós
seria ainda “o dia anterior”). Como os eventos importantes de um determi-
nado dia começam, naturalmente, no início daquele dia, isto significa que
eles começam na véspera do que seria o tal dia comemorativo, segundo nosso
calendário civil (o qual é relativamente muito mais recente do que quando
as respectivas festividades foram criadas e eram celebradas ainda carregadas
dos simbolismos primordiais). Por isto, a festa de São João é comemorada na
noite do dia 23 de junho157. (Ou ainda, desde a perspectiva de um calendário
lunar: o dia solsticial de verão no hemisfério norte – que na cultura católica
virou dia da festa de São João – começa quando para nós são seis da tarde do
dia 23 de junho e acaba às seis da tarde do dia 24.)
“O dia de São João” é apenas um daqueles cuja comemoração começa
no que para nós é sua véspera. Como ressalta Eliade (1993b, p. 128): “Vestí-

completam nesse mesmo instante, no meio da noite [isto é, convencionamos que o dia começa/acaba
no instante em que Sol passa pelo meridiano inferior – que é aquela linha imaginária que divide ao
meio (na direção sul-norte) o céu de nossos antípodas (as pessoas que vivem no lugar diametralmente
oposto em relação ao nosso, no planeta); mesmo em nossa cultura (ocidental), porém, foi comum de-
finir o início do dia ao meio-dia (instante em que o Sol passa pelo meridiano superior), o que ainda é
adotado no calendário Juliano (BOCZKO, 1984, p. 159)]. Nos calendários lunares, esse instante “fim
de um dia, início do novo dia” é definido como aquele quando o Sol acabou de se pôr. Notem ainda que,
em nosso idioma, o sentido da palavra dia depende do contexto. Aqui, falamos do dia como a duração
do Dia Solar (24 horas). Mas essa palavra também é usada para indicar o intervalo de tempo em que o
ambiente ao ar livre está claro (há luminosidade solar direta ou indireta); dizemos que é “de dia”, em
contraposição ao seu tempo escuro “de noite”. Assim, um dia compreende a parte “de dia” desse dia,
mais a parte “de noite” desse mesmo dia. Nos calendários lunares, dia também significa “duração de
24 horas” – para usar nossa terminologia –; o que muda é o que se entende como sendo o instante em
que ele começa/acaba.
157 Como já mencionei, a força da tradição ancestral é mais forte no nordeste do Brasil. Aqui a festa de
São João é celebrada na noite do dia 23 de junho e a fogueira só é acesa às seis da tarde. No sudeste
e sul do país essa festa ficou mais enquadrada na convenção do calendário civil; então, comumente
ela é comemorada [ou quando ainda o era, como em São Paulo (SP), nos anos 50 do século passado,
na minha infância] no dia 24 de junho mesmo – e, escusado dizer, quando se faz fogueira, não há
nenhuma tradição dizendo quando ela pode ser acesa –, perdendo mais ainda suas conexões celestes
primordiais.

378
Abordagem Antropológica

gios [desse procedimento arcaico de medir e organizar o tempo e caracterizar


o início de um dia] encontram-se ainda nas tradições populares europeias
[que foram trazidas para cá principalmente pelos portugueses]: certas festas
são celebradas de noite [na véspera], como, por exemplo, a noite de Natal, de
Páscoa, de Pentecostes, de S. João, etc.”. Podemos entender muitos de nossos
costumes com base nisto.
O fato de a festa ser a maior do mês: está destacado porque, afinal,
esse mês é bastante festivo para os católicos158. Por que a festa de São João se
sobressai dentre as três?
Porque ela provém de adaptação católica, como já falei, a uma das fes-
tas de maior relevância na antiguidade para questões de sobrevivência (boas
colheitas) e de crescimento ou manutenção da comunidade (bons casamen-
tos). Portanto, é natural que ela fosse uma festa muito importante mesmo.
Ela marca um período crítico do ano, a época do solstício de verão (em sua
origem), quando o Sol “para” e o ciclo anual retoma seu curso para épocas
severas159.
   O fato de a festa ser uma das maiores do ano: idem ao motivo
anterior.
As celebrações solsticiais – como que expressando por meio ritualís-
tico e simbólico a interação, integração e intercâmbio entre as pessoas e o
cosmo – estão, por excelência, dentre as comemorações mais significativas ao
longo do ciclo (celeste) do ano. Em seguida vêm as festividades equinociais,
que marcam as respectivas fases intermediárias, no curso do ano, entre aque-
les momentos extremos.

158 Embora muito mais no passado. Hoje, aquela tradição ainda tem muita força, mas apenas em certas
regiões do país, como já comentei. As festas são: Santo Antônio (12/06); S. João (24/06) e S. Pedro
(29/06).
159 Como mencionei, o solstício de inverno tem maior relevância (simbólica), em relação ao de verão.
Em ambos o Sol “para” (solstício quer dizer “sol estático”), mas no solstício de inverno ele “para” de
ir cada vez mais para o sul (para povos do hemisfério norte), isto é, o dia (a parte clara do dia) para
de encurtar – ou a noite para de ficar cada vez mais longa. Se o Sol invernal não “parasse” nesse seu
“percurso” que torna o claro do dia cada vez mais curto, as consequências – como nossos antepassa-
dos certamente antecipavam – seriam fatais para os seres vivos (ao menos para um número enorme
de espécies animais e vegetais essenciais para a sobrevivência inclusive da nossa espécie). Adviria uma
noite eterna. Este é um extremo com implicações (imediatas e perenes) mais palpáveis, evidentes e
dramáticas (quando se vive em altas latitudes) do que as de verão. Daí, talvez, um simbolismo mais
forte associado ao solstício de inverno.

379
Luiz Carlos Jafelice

Os fatos de a festa iniciar-se às seis da tarde da véspera do dia do san-


to: merece especial ênfase pela importância do que está envolvido, conforme
já comentei acima, ao tratar de costumes culturais que mantemos até hoje,
cuja origem está em uma medida lunar do tempo, primeiras sistematizações
humanas para tal medida e organização de outras referências balizadoras para
a vida comunitária e em geral.

Em suma, o processo de organização da vida na ancestralidade foi real-


çando e sistematizando marcas em nós que nossos corpos-mentes já sentiam,
já sabiam que ocorriam (cronobiologicamente falando), embora naqueles
primórdios elas estavam sendo trazidas também para o nível da construção
simbólica. Até hoje trazemos fortes marcas de origem celeste, e ainda hoje,
apesar de adormecidas, elas são utilizadas para organizar aspectos relevantes
de diversos setores de nossas vidas. Tampouco disto temos consciência. Por-
tanto, busquem outras marcas que evidenciem esse tipo de organização, in-
tegrem ao que foi sugerido e discutido neste apêndice e/ou criem atividades
alternativas, e trabalhem com destaque também estes esclarecimentos com
seus alunos e outras pessoas.

380
Abordagem Antropológica

Apêndice 3

Somos parte do universo. Só parte? Qual?


(Subsídios para se encaminhar este tipo de discussão em uma
atividade pedagógica)

Neste apêndice apresento uma atividade e discussões sobre o conteú-


do do título. Vou começar diretamente com a atividade, depois embasá-la e
discuti-la160. É o que faço ao abordar este assunto – logo nos primeiros conta-
tos com os estudantes –, evidentemente sem prepará-los com nenhum título,
comentário ou insinuação prévios sobre o que vamos discutir.
Começo dizendo – e isto vale para vocês, leitores, neste momento:
“Agora vou escrever uma palavra na lousa e você, sem pensar, ve-
rifica qual a primeira imagem que tal palavra estimula em sua mente.
Preparada(o)?”
(Se necessário, repito o comando – sempre há alunos que, por um
motivo ou outro, estão dispersos, desatentos. Dou uns poucos segundos, de
preparação psicológica, e prossigo, falando e, ao mesmo tempo, escrevendo
na lousa.)
“A palavra é: universo.”
(Dou mais alguns segundos e continuo.)
“Qual a imagem que você imediatamente associou a essa palavra?”
Ouço então as várias respostas, mas sem opinar ou discuti-las, mesmo
que dentre elas algumas na verdade sejam perguntas. Anoto-as mentalmente
e incentivo-os a exporem todas as associações que fizeram ao estímulo da-
quela palavra.
No momento seguinte, inicio a discussão. Se você for aplicar esta prá-
tica e os textos aqui contidos, este apêndice – a exemplo do anterior – serve
como um roteiro de orientação.
Após os instantes iniciais, de relativa introspecção, prossigo comen-
tando que se fosse uma aposta e eu soubesse que você é pessoa que foi criada

160 O conteúdo deste apêndice é um desdobramento e aprofundamento do que discuto na subseção II.2
(Qual é nosso lugar no universo?) de Jafelice (2002, p. 4).

381
Luiz Carlos Jafelice

e educada apenas em nossa cultura, eu teria mais de 99% de chance de acertar


o que você pensou, pois o tipo de imagem que lhe ocorreu é a que ocorre a
praticamente todas essas pessoas.
Somos gregos demais – mesmo que outras misturas temperem o todo,
diferentemente em cada local do Ocidente. Quando se fala a palavra “univer-
so” hoje, invariavelmente as pessoas explicitam a concepção greco-cartesiana
que possuem, a qual considera possível a separação completa entre sujeito e
objeto. Como uma das consequências desse processo reducionista, as pesso-
as, pelo menos as da cultura urbana ocidental, em geral, associam “universo”
a imagens do tipo: “espaço interplanetário”, “espaço escuro fora da Terra”, “um
monte de estrelas”, “galáxias”, “sistema solar”, “céu noturno estrelado”, “infini-
to”, e ideias com essas características.
Todas as vezes que fiz esse teste de livre associação com as pessoas,
apesar de as faixas etárias cobertas irem da infância à terceira idade e de o
histórico pessoal e o grau de escolaridade variarem muito de caso para caso,
o resultado foi o mesmo: aquelas imagens apareceram, e só aquelas, pratica-
mente sem exceção.
Ninguém – ou quase ninguém, em uma proporção ínfima, o que refor-
ça o presente argumento – tem como primeira associação livre à palavra “uni-
verso” a imagem de si mesma(o)161, por exemplo, ou a imagem de uma outra
pessoa, de uma árvore, um animal, uma paisagem terrestre, e muito menos de
um pensamento ou de um sonho próprio ou coletivo.
Após o teste, me aproximo dos alunos e toco a pele de uma das pessoas
(em geral na pele do braço, chamando a atenção de todos) e digo “isto tam-
bém é universo, não?”. Quando faço isto, as pessoas a princípio estranham.
Não pelo ato – pois nesta altura elas já me conhecem o suficiente para saber o
tipo de postura pedagógica que desenvolvo com elas. Elas estranham porque
não entendem a associação da pele do braço com o universo. Ainda mais se
for em uma disciplina convencional de astronomia, onde psicologicamente
as pessoas vão preparadas para serem sobrecarregadas de informações, con-
ceitos, números e tecnicalidades.
“Mas – pergunto então a eles – nós também somos universo, não?”. A
pergunta, em si, já soa estranha em português. Paira uma dúvida no início.

161 E não que a ausência dessa associação específica, nesta situação, signifique desprendimento, altruís-
mo, prioridades ambientalistas, integração cósmica, desapego.

382
Abordagem Antropológica

Os alunos pensam que estou usando de uma linguagem metafórica. Sim e


não, mas principalmente não! Isto é, estou sendo essencialmente literal nesse
momento. Quero dizer que “também somos universo”, inclusive no sentido
habitual, concreto, digamos, de se ser algo.
Na nossa cultura, parece que “universo” é só o que está fora de nós.
Claro que, quando questionadas, as pessoas logo admitem que elas também
fazem parte do universo. Só que isto é processo posterior, racional, ou pelo
menos intelectual, nada espontâneo. E mesmo quando feito, não passa de uma
visão muito superficial e mecânica do que significa ser parte de algo – uma
visão de justaposição e articulação linear, embora eventualmente complexa;
uma concepção cartesiana, enfim, de supor que o todo seja igual à soma das
partes.
A primeira reação natural é considerar que nós estamos no universo.
Isto já está muito entranhado em nós. Por isto os presentes exercícios preci-
sam ser feitos com vagar e espírito adequado.
Ora, pela própria definição de universo, é impossível se estar no uni-
verso. Podemos “estar na sala” ou “estar no ônibus”, por exemplo. Porém,
não podemos “estar no universo”, embora esta seja a imagem que prevalece.
Precisamos, assim, reparar também essa antiga dicotomia, sacramentada nos
últimos trezentos e cinquenta anos, a qual meio segundo de reflexão revela
o quão absurda ela é. Contudo, como a racionalização apenas é insuficiente
para levar tal reparação a bom termo, o apelo à teatralização acima (suspense,
exagero, linguagem) e posterior discussão e retomada constante ao longo do
contato com os alunos, são recursos fundamentais para se alcançar – mesmo
que em parte – aquele objetivo reparatório. Neste sentido, perguntas do tipo
das seguintes deveriam ser feitas nesta altura da prática.
Por que o “universo” é melhor representado por uma estrela do que
por um ser humano? E os nossos sonhos? Não fazem parte também do “uni-
verso”? Eles não poderiam ser uma representação típica do “universo”? Por
que uma galáxia é mais representativa do “universo” do que uma baleia? O
“universo” seria exatamente o mesmo se a baleia não existisse? Se nossas fan-
tasias, imaginações, dúvidas e certezas, se tudo, enfim, de impalpável, inume-
rável, inefável, que dá sentido à nossa existência não existisse, o “universo”
permaneceria indistinguível daquele do qual fazemos parte? Se um elétron
a menos – ou a mais – o transforma em outro universo, então uma subjetivi-
dade qualquer a menos – ou mais – também, não? Ou não posso comparar

383
Luiz Carlos Jafelice

o fato de “ele ter” um asteroide a menos em sua constituição física com o de


“ele ter” uma planta a menos no nosso ambiente terrestre, ou um fio de so-
nho a menos no tecido metafísico “dele”? Afinal, o que é o universo? E qual é
uma “melhor representação” do mesmo? Definida com base em qual visão de
mundo? Convencionada e acatada por quem? Segundo quais valores e crité-
rios? E variações de perguntas desses teores.
Nota-se, em nossa cultura, que os domínios da revolução copernicana
foram confundidos e ela foi extrapolada além da conta.
Precisamos estar atentos para evitar que esse reducionismo, suposta-
mente efetivo e operacional, não confunda nossas mentes ao tentarmos nos
relacionar com os vários aspectos da realidade. Ele já tem confundido e pre-
judicado bastante na área da educação.
Nós não estamos no universo. Ele é que está em nós, ou pelo menos
também em nós. Somos parte do próprio universo, como tudo que existe o é.
Sem qualquer uma dessas existências ele não seria o que é. Seria outro uni-
verso. Mesmo se você preferir pensar só em termos materiais sobre o assunto,
esta conclusão é verdadeira. Pensando em pessoas, talvez possa-se dizer, de
modo mais apropriado, que, em um certo sentido, nós somos o universo162.
Em relação ao presente tema, muitas vezes ouvimos também uma
pergunta do tipo: “Qual é nosso lugar no universo?”. E mais: em geral não
a estranhamos (aliás, antevemos que ela até desperte bastante curiosidade).
Como já mencionei, somos muito gregos e cartesianos para identificar como
e até que ponto esses viéses culturais direcionam nosso olhar e apreensões
do mundo. Porém, o discutido acima estimula exercícios de acolhimento de
diversidades culturais, construções de outras visões de mundo e crescimento
pessoal que precisam ser feitos, principalmente pelos professores e seus estu-
dantes, para a comunidade.
Uma pergunta mais pertinente seria: “Qual é o lugar do universo em
nós?”. Sem antropocentrismo. É só para trazer o cursor mais para o meio, para
um equilíbrio.
Nós, as pessoas, em diferentes graus, mas praticamente sem exceção,
independentemente da cultura à qual pertençamos, sempre quisemos saber

162 E não estou me restringindo aqui às concepções de analogia entre o microcosmo e o macrocosmo,
também uma tentativa presente em nossa cultura, embora há muito descartada enquanto paralelo
aceitável de similitude.

384
Abordagem Antropológica

nosso lugar no universo. Mas não apenas nosso lugar físico, como a maioria
das abordagens em ensino e divulgação de astronomia insistem! Parece que
levar a “revolução copernicana” às últimas consequências é a sagração máxi-
ma das exposições populares ou iniciantes sobre astronomia163.
Outro ponto que merece algum comentário é sobre uma consequên-
cia básica de sermos gregos demais: também somos “cientificizados” demais.
Para trabalhar isto, costumo fazer outra prática. Pergunto aos alunos: “como o
universo se originou?”. Praticamente sem exceção a resposta é: “de uma gran-
de explosão”164. Discuto, então, que esta resposta é fruto de viés ou vício cul-
tural e de escolaridade. Com efeito, a pergunta – que parece pertinente e in-
discutível – é tendenciosa, está mal formulada de saída. No caso desta prática
é claro que a tendenciosidade é proposital, mas no caso da cultura ela é invi-
sível. Quem disse que o universo teve uma origem? Ninguém enxerga a falha
daquela pergunta porque para nós, ocidentais, é inconcebível que algo nunca
tenha tido início – e como encaramos o universo como “algo”, um conjunto
de “estrelas e espaços vazios” ou de “salas” ou de “ônibus”, parece não haver
alternativa ao fato de ele ter tido um começo, nem que eu tenha que entender
que nesse “instante” original também surgiu, então, o tempo. Por isto, excluí-
mos a possibilidade, igualmente plausível, de que o universo nunca tenha tido
um início – seja pela criação natural da física ou a da religião. Hoje começam
a aparecer, mesmo no âmbito da cosmologia científica – mas de modo ainda
minoritário e heterodoxo –, propostas de que o atual universo talvez seja fru-
to transitório de um processo sem começo e sem fim165. Isto ainda envolve
proporcionalmente poucos cosmólogos e está longe de embeber a mentalida-
de popular. O ponto, aqui, é enfatizar como nós, humanos, enxergamos “tudo
que existe” – “dentro” ou “fora” de nós – pelo filtro de nossa respectiva cultu-
ra, na qual a educação tem funcionado antes como doutrinadora do olhar e
reprodutora do status quo, do que fomentadora de questionamento, revisão

163 Maiores reflexões críticas sobre o ponto de vista aqui defendido e possíveis consequências educacio-
nais podem ser encontradas em Jafelice (2002).
164 Não é preciso ressaltar que apesar da resposta dada, não há qualquer compreensão do que significa
aquela “explosão”, que de explosão, teoricamente falando, não tem nada; sem falar da teoria da in-
flação cosmológica. Aquela resposta é automática, tipo “pavloviana”, sem conhecimento de causa,
entendimento ou embasamento científico de fato. Vide maiores comentários sobre distorções da edu-
cação e divulgação científicas na última nota de rodapé do apêndice 5.
165 Neste sentido, vide recente exposição abrangente e instrutiva feita por Mário Novello, em nível de
divulgação, sobre o histórico da pesquisa em cosmologia física e sobre esse outro ponto de vista, ainda
minoritário na área (NOVELLO, 2010).

385
Luiz Carlos Jafelice

e criação de outros olhares. Como diz Aveni (1993, p. 13; a referência deste
livro está na seção Sugestões de leituras), “vemos o que somos treinados para
ver”; o que é válido tanto para fenômenos naturais como para representações
mentais e sociais que dão sentido ao nosso mundo.

Por fim, cabe discutir brevemente as perguntas no título deste apên-


dice: “[Somos parte do universo.] Só parte? Qual?”. Na verdade elas já foram
“respondidas” (segundo o olhar defendido nesta proposta) na discussão aci-
ma, mas convém ressaltar o cerne de conceituações que estão na base das
nossas respostas (culturais) habituais a tais perguntas.
Este é o problema de sempre em nossa tentativa de construir inteligi-
bilidade. Como tenho destacado, só podemos fazer isto desde um referencial
cultural, pois é ele que, por construção, valida nossas verdades. Para nós, oci-
dentais, só se pode conhecer algo se se interagir com esse algo, cuja existência,
não temos dúvida, é exterior a nós e é independente de nós. No apêndice 1
discuto outras concepções de mundo e outras formas possíveis de obtenção
de conhecimento, para as quais não há separação entre o mundo de “dentro”
(de nós) e o de “fora” e para as quais podemos conhecer o que existe – seja
“dentro” ou “fora”, posto que estes são indistinguíveis, pois sua existência
básica se “assenta” em um nível de realidade em que tal separação carece de
qualquer sentido – voltando-nos para dentro de nós mesmos, em um pro-
cesso de meditação orientada ou de modificação ritualística da consciência.
Isto é inconcebível em nossa cultura – cujas alternativas de racionalidades
se perderam em um cientificismo oco, como já enfatizei lá –, mas é perfeita-
mente coerente e possível em outras culturas humanas. Segundo esta outra
concepção, portanto, essas “duas” partes talvez sejam uma só.
A abordagem proposta neste capítulo estimula a abertura mental para
lidar com esses temas tão complexos com humildade e buscando, antes que
respostas garantidas e definitivas, convivências solidárias, acolhedoras de di-
versidades – inclusive as epistemológicas, como tenho ressaltado – e cons-
trutoras de integrações, harmonias e concepções biocentradas. A prática e os
textos discutidos neste apêndice visam ajudar também nesse sentido.

386
Abordagem Antropológica

Apêndice 4

O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados


(Subsídios para se encaminhar este tipo de discussão
em atividades pedagógicas)

Adoto uma estrutura para as várias aulas iniciais de uma disciplina ou


curso sobre astronomia. Minha base e ênfase, como explicito neste capítulo,
estão no cultural166. Talvez seja útil expor tal estrutura como exemplo de pla-
nejamento de aulas, para quem quiser experimentar algo na linha da presente
abordagem. Por isto fiz este apêndice.
Na verdade, não apresento planejamento propriamente dito. São con-
teúdos e tarefas (para casa) organizados por aula167, para as 10 primeiras (de
um total de cerca de 30 aulas).
Em astronomia há muitos fenômenos bastante acessíveis à observação
a olho nu, mas que requerem tempo para serem percebidos, como, por
exemplo: as fases lunares, o movimento da Lua em relação a estrelas de fundo,
a mudança da posição do Sol no céu (para um dado local de observação e um
mesmo horário, com o passar dos – muitos – dias), a mudança nas constelações
que são visíveis (idem, mas à noite) etc. Além disto, é preciso tempo para que
os alunos adquiram o hábito de olhar para o céu e acompanhar regularmente o
desenrolar dos fenômenos celestes – e a incorporação desse hábito é objetivo
central em uma intervenção educacional como esta. Como quero ainda que,
na medida do possível, os alunos percebam os eventos, relações, dinâmicas,
por si mesmos antes, para só depois conceituar o que vivenciaram, é preciso
dar esse tempo também na duração da intervenção. O ideal, então, é que uma
intervenção dessas possa durar um ano – pois, assim, o ciclo sazonal básico se
completará e sua periodicidade fenomênica poderá ser vivenciada –, ou pelo
menos alguns meses. Senão, será preciso adaptar muito do que sugiro neste
apêndice.

166 Também abordo os conteúdos específicos habituais de astronomia, no seu devido tempo. Mesmo
para eles adoto procedimentos que exploram o uso do corpo, do concreto e tanta vivência quanto
possível. Este capítulo, porém, se concentra nos conteúdos e estratégias educacionais de teor cultural
associados àquela área. Em Jafelice (2005b) há algumas sugestões sobre encaminhamentos que pro-
ponho para trabalhar conteúdos específicos.
167 Cada Aula que explicito abaixo é de 90 minutos (ou seja: duas aulas comuns seguidas, de 45 minutos
cada uma). Pressuponho duas dessas Aulas por semana, mas isto pode ser adequado conforme as
necessidades.

387
Luiz Carlos Jafelice

Em resumo: como: 1) não explico verbalmente nada que possa ser


constatado antes pelos alunos por vivência própria (desde que adequada-
mente orientados para tal; no apêndice 6 aprofundo estes pontos); 2) um de
meus interesses centrais é que o contato com o céu e seus ritmos e sua presen-
ça em nossa vida seja restabelecido; e 3) o recurso de os alunos procurarem
a Lua no céu, retomarem contato com a mesma etc., se mostrou ser muito
eficaz para promover a reincorporação céu-terra-ambiente-vida com o olhar
e ênfase que considero importantes; então, preciso “esperar” que os alunos
restabeleçam aquele tipo de contato. Isto significa, na prática, ter que “espe-
rar” pelo menos um mês168 antes de abordar diretamente questões relativas ao
ciclo lunar. Mas há muito para ser feito enquanto isto, como veremos.
Um objetivo de minhas intervenções educacionais é quebrar as expecta-
tivas habituais. Ensinar com êxito pedagógico tem muito a ver, segundo minha
experiência, com jogar capoeira. É preciso desequilibrar os estudantes e, com
amor, naturalmente, fazê-los cair – mesmo com risco de sofrerem escoriações
leves169. Contudo, fazer isto, é claro, dando-lhes elementos para que eles desen-
volvam competências para se reerguerem e derrubarem o professor, se isto for
necessário nos processos de ensino e de aprendizagem em questão.
Estudantes – encharcados na sua cultura, como todos nós, pois não
poderia ser diferente disto – vêm para uma disciplina/curso desse tipo com
muitas ideias preconcebidas. Em geral, é frequente a expectativa pela vertente
técnico-cientificista, quantitativa, com uma profusão de imagens e de relatos
das últimas conquistas na área. Isto é contraproducente para o que considero
mais relevante no assunto – uma vez que viso uma reaproximação e, até onde
possível, uma reintegração das culturas humanística e científica. Quebro
aquelas ideias e expectativas, então, ao nem sequer mencionar nada daquilo
(durante mais da primeira metade da disciplina) e, ao mesmo tempo, ao tra-
zer elementos culturais em abundância para o primeiro plano. A ideia, porém,
não é frustrar os alunos. Por isto, é preciso se estar ciente daquele tipo de
expectativa para, ao conduzir os alunos por este outro caminho, fazê-lo com
envolvimento e significação: os alunos precisam perceber que, em geral, nun-
ca atentaram para nenhuma das conexões evidentes e relevantes apontadas

168 O ideal seria mais tempo. Isto é possível em um curso anual ou mais longo. Em disciplina semestral,
não.
169 Espero que a metáfora seja entendida. É óbvio que não me refiro a grosserias ou irresponsabilidades
de espécie alguma na ação pedagógica. São estilos distintos e esta comporta vários. Aqui, aludo a um de
meus estilos para provocar as desconstruções e descondicionamentos a que me referi na subseção 2.4.

388
Abordagem Antropológica

devido a um viés cultural de formação, à omissão da escola ou subserviência


desta às mentalidades cognitivista e tecnicista prevalecentes; precisam perce-
ber também o potencial enriquecedor e favorecedor do autoconhecimento
e do acolhimento de diversidades que o trabalho com essas outras conexões
estimula, estrutura e orienta; feito dessa forma, a adesão da grande maioria
ocorre com facilidade e felicidade.
O esboço de planejamento a seguir pode ser inútil para a reprodução
desse tipo de condução. Como já enfatizei, os interessados em aplicar a pre-
sente abordagem precisarão se familiarizar com ela – a qual é bastante inco-
mum em comparação ao que se costuma aprender sobre “educação científica”
–, adaptá-la às suas realidades, criarem e adequarem-na às suas idiossincrasias.
Feito isto, o seguinte planejamento pode ser aproveitável, em alguma medida.
O que for necessário para cada aula (texto, orientação etc.) consta do respec-
tivo planejamento.
Notem que este não é estrito ou rígido. Isto seria incoerente com a fi-
losofia da abordagem. Além de o planejamento ser aberto a adaptações, a in-
tervenção, em si, é desenhada em função de um calendário astronômico170 – e
não de conteúdos (ou ordenamentos destes) preestabelecidos (no apêndice 6
há maiores comentários sobre isto). Então, será preciso alterar o planejamento
em função daquele calendário – isto é, dos eventos celestes mais relevantes na
época em que a intervenção começar e durante o período em que ela durar.
Notem ainda que há um entrelaçado de conteúdos, tarefas, atividades
práticas e discussões em aula, que caracterizam o todo inicial (isto é, no mí-
nimo o primeiro terço da intervenção). Esse entrelaçado – de tarefas e dis-
cussões intercaladas, que são sistematicamente retomadas e aprofundadas em
uma problematização em espiral crescente – é estratégia pedagógica muito
importante, tanto pelo inédito da abordagem, como pela falta de familiaridade
dos alunos com o assunto e com o comportamento esperado deles. Atentem,
então, para esses entrelaçamentos, que causam ainda uma sobreposição de
tarefas em determinados períodos – pois uma tarefa passada para duas aulas
seguintes, vai se somar àquela passada na aula seguinte para outras duas aulas
adiante –, o mesmo acontecendo com as discussões dos assuntos trabalhados
em aula e aquelas dos pedidos nas tarefas. Para esclarecer estes cruzamentos,
montei um quadro (ao final, logo após a Aula 10) com parte dos conteúdos e
tarefas; espero que ele ajude a visualizar a que me refiro.

170 Vide melhor esclarecimento e exemplificação disto no apêndice 6 (Primeiras tarefas para casa).

389
Luiz Carlos Jafelice

Em suma: esse início estendido (pelo menos 10 aulas) é delicado e


decisivo. Assim, deve ser dada atenção especial a ele. Este apêndice explicita
e orienta sobre este ponto.
Aula 1
 desenhos: origens e céu [vide apêndice 5 deste capítulo e
subsubseção 4.1.9 (Representação pictórica das origens e do céu) do
capítulo 3];
 apreciação dos desenhos de todos sobre as origens;
 esclarecimento de quem o fez, ou não, pensando na teoria da
grande explosão;
 criação da história coletiva do grupo [apêndice 5];
 sussurros ao pé do ouvido [vide sessão com este nome abaixo,
neste apêndice];
 restabelecimento do contato com o céu [apêndice 6];
  Tarefa 1, para entregar na Aula 3: Lua, Vênus, Sentimentos e
Conhecimentos Populares [apêndice 6] [Tarefa, aqui, significa
sempre para casa.].
Aula 2
 aquecimento171: encontrar as diferenças nos pares (e posterior dis-
cussão) [vide subsubseção 4.1.7 (Dinâmica de observação) do capí-
tulo 3];
 análise e explanação dos desenhos sobre as origens: estrutura/re-
corrência explicitada ali. (“Big Bang”; estrutura psicológica huma-
na; mandala; etc.) [apêndice 5];
 análise e discussão sobre a história coletiva do grupo para as ori-
gens;
 comparação desta com histórias coletivas de outras diversas tur-
mas: nossa cultura tornada explícita através das palavras (sobretu-
do quando ditas em livre associação) [apêndice 5];
 início da discussão sobre nossas concepções cosmogônicas e a de
outras culturas, ontem e hoje;
 reflexões iniciais: o céu nas nossas vidas enquanto espécie;
 explanação sobre a filosofia e a metodologia (estilo das aulas) ado-
tadas (abordagem antropológica – holística ou transdisciplinar);

171 Esta prática, assim como a da composição de uma história coletiva apresentada no apêndice 5, foram
adaptações que fiz a partir de sugestões de técnicas de dinâmica de grupo que Rosa Adriana Piña
Jafelice me passou de seu trabalho em desenvolvimento organizacional e no ensino de idiomas (PIÑA
JAFELICE, 1994).

390
Abordagem Antropológica

  Tarefa 2, para entregar na Aula 4: a) mitos cosmogônicos: tex-


tos extraídos de Martins (1994)172; b) calendário lunar: começar a
elaboração diária dos desenhos da Lua – tarefa para todo o resto do
contato com a turma, até o último dos encontros [apêndice 6].
Aula 3
 discutir a profusão de resultados que vêm da primeira tarefa;
 reflexões iniciais sobre relações céu-terra-ambiente-vida [apêndice
2];
 reflexões sobre processos psíquicos comandando nossas ações,
pensamentos e sentimentos, mesmo que não estejamos cientes do
fato [apêndice 1];
  Tarefa 3, para entregar na Aula 5: a Lua e a mística lunar: texto
de Eliade (1993b) (o capítulo todo pode ser utilizado ou, se prefe-
rirem, apenas trechos selecionados173).
Aula 4
 iniciar a discussão sobre mitos cosmogônicos (o que são mitos,
origem, significado e função dos mitos) [e.g., Eliade, 2000; Mar-
tins, 1994, p. 12-19];
 discutir um por um dos mitos passados como tarefa;
 compará-los com o de nossa cultura (greco-judaico-cristã);
 comparar a concepção impressa na história coletiva do grupo (isto
é, a concepção de nossa cultura, greco-judaico-cristã) com a dos
mitos cosmogônicos discutidos [apêndice 5];
 primeiro contato dos alunos com a pré-avaliação [apêndice 2];
 iniciar a discussão e provocá-los ao final da aula: qual é o dia da
festa de São João, afinal? (resposta: pensem; tragam-na para a pró-
xima aula, quando retomaremos esse assunto);

172 De Martins (1994), seis mitos ao todo: a) indígena brasileiro (nheengatu; p. 7); b) judaico-cristão
(bíblico; p. 9); c) babilônico (p. 10-11); d) filosófico grego (Teogonia, de Hesíodo; p. 22-23); e) in-
diano (do Código de Manu; p. 27-30); e f) indiano (do Rig Veda; p. 33-34). [Disponível também em:
http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/.] Na tarefa, a origem e época de cada mito não estão
especificadas e, ao final, peço: 1) Responda o que você entendeu de cada um dos seis textos acima; 2)
Quais as civilizações que você acha que compuseram cada um desses textos e em que época da histó-
ria da humanidade você acha que isto ocorreu?; e 3) Qual dessas histórias você achou a mais fácil de
entender? Qual a mais difícil? Qual a que mais gostou? (Interessa também destacar e discutir, através
desta tarefa, diferenças profundas entre concepções epistemológicas ocidentais e outras.)
173 Preparei (em 2001) duas páginas com excertos extraídos de Eliade (1993b) e notas de rodapé ex-
plicativas para esta tarefa (futuramente disponível em: http://www.lapefa.ufrn.br/intercultural; vide
JAFELICE, 2010b).

391
Luiz Carlos Jafelice

  Tarefa 4, para discussão na Aula 5: busquem indicações de influ-


ências de fenômenos celestes nas organizações da vida feitas pelas
sociedades humanas ao longo da história da humanidade.

Aula 5
 analisar e discutir o texto sobre a Lua e a mística lunar;
 comparar com resultados que eles obtiveram nas entrevistas que
fizeram na primeira tarefa (em particular as da primeira atividade
da Tarefa 1; apêndice 6);
 trazer depoimentos e relatos sobre eventuais correlações entre
épocas do mês e quadros psiquiátricos (fontes: estudantes de cur-
sos anteriores; psiquiatra; VINES, 2001);
 problematizar história em quadrinhos de Chico Bento174 [Sousa,
1999];
 primeiras discussões sobre conhecimentos tradicionais, sua ausência
na escola e na formação de professores; distorções, preconceitos e
exclusões daí resultantes; necessidade de superação dessa defici-
ência; etc. [e.g., Jafelice, 2010a] [vide também a subseção 3.5 e o
apêndice 7 deste capítulo];
 desfrute e discussão do poema “O Povo Pataxó e a Lua” [Programa
de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais da Secre-
taria de Estado da Educação de Minas Gerais; buscar na internet
pelo título do poema, clicar em “ver em HTML” e ir à p. 16];
 retomar a pré-avaliação e concluí-la;

174 É uma história de duas páginas onde Nhô Dito – um senhor idoso, afrodescendente e provavelmente
analfabeto – questiona a veracidade das informações sobre a ida do homem à Lua que Chico Bento
lhe traz e diz ter aprendido na escola (“a perfessora disse”). Nhô Dito faz questionamentos muito
lúcidos e pertinentes – que, inclusive, criticam a facilidade com que aceitamos informações, em geral,
e os ditos conhecimentos, em particular. Ao final, Nhô Dito – admirando uma lua cheia, na qual
aparecem, lado a lado, São Jorge, seu cavalo e o dragão, olhando com ar de preocupação e tristeza
para a Terra – se pergunta: “será qui as perfessora inda tão cum tempo di oiá pra lua i sonhá um
poco... qui nem eu?”. Essa história é ótima problematização inicial para os embates entre a educação
formal e outras possibilidades epistemológicas humanas e o risco daquela, se não for adequadamente
orientada, contribuir para exterminar conhecimentos tradicionais e favorecer, assim, os empobreci-
mentos epistemológico e cultural decorrentes. Com efeito, no penúltimo quadrinho, Chico Bento sai,
se despedindo de Nhô Dito, e diz: “vô falá ca perfessora essas coisa qui voismecê mi conto!”. E é aí
que a coisa pode ficar muito mais séria e complicada: como foi formada aquela professora/professor
na hora de reagir e contrapor a visão de mundo que convencionamos (que é, inclusive – importante
salientar –, aquela impressa no livro didático, instrumento cujo apoio ao professorado é bem maior
do que seria conveniente) com aquela proferida por uma pessoa que é portadora de pelo menos três
(idade, etnia e grau de escolaridade) das principais características de quem é discriminado no Brasil?
Um aprofundamento para este tipo de discussão e encaminhamentos condizentes constam de Jafelice
(2008b; 2010a).

392
Abordagem Antropológica

 ao analisar os conteúdos da pré-avaliação, iniciar discussão sobre a


participação de “coisas do céu” na organização da vida pelas socie-
dades humanas ao longo da história da humanidade [apêndice 2];
  Tarefa 5, para discussão na Aula 7: começar a observar e regis-
trar, para controle próprio e para entregar: onde nascem e onde
se põem o Sol e Lua (para algum lugar de referência que você es-
colher; escolha, de preferência, um lugar que você possa mantê-lo
sempre o mesmo durante todos os dias em que fizer esta tarefa.);
como é o trajeto das estrelas no céu entre seus nascentes e seus po-
entes; como é a posição relativa entre o Sol e a Lua no céu e como
se manifesta a aparência da Lua em comparação à posição do Sol;
como fica a posição relativa entre a Lua e um conjunto de estrelas,
que você escolheu perto dela em um dado dia, conforme os dias
passam (dou explicações detalhadas sobre como encaminharem
tais tarefas observacionais).
Aula 6
 retomar a pré-avaliação (portanto, é o terceiro contato deles com
ela) e aprofundar a discussão sobre as relações entre “coisas do
céu” e a organização da vida pelas sociedades humanas ao longo da
história da humanidade [as partes da subseção 2.3. e do apêndice 1
onde trato das “organizações psicológicas” humanas e o apêndice
2];
  Tarefa 6, para discussão na Aula 7: pensem e tragam por escrito:
o que no ambiente que conheço e no meu corpo reage prontamen-
te a comandos do céu, parecem ser regidos por fenômenos celestes
ou parecem estar correlacionados ou sincronizados com alguns
destes, quais (“cá” e “lá”), como etc.
Aula 7
 discutir os resultados das tarefas sobre trajetos no céu e locais dos
nasceres e pores de Sol, Lua, estrelas, movimentos relativos;
 iniciar discussões sobre cronobiologia (essencialmente o que
consta do apêndice 1) (em mescla com a organização da vida pelas
culturas humanas, do apêndice 2);
  Tarefa 7, para discussão na Aula 10: comece a atentar para a mu-
dança no posicionamento do Sol conforme os dias passam; esco-
lha um local onde você está todo dia (ou quase) no mesmo horário
e no qual costuma bater o Sol e observe como variam as sombras
que ele cria com o passar dos dias, para os mesmos local e horário

393
Luiz Carlos Jafelice

[exemplifico que podem ser postes, paradas/pontos de ônibus, de-


graus de uma escada175, janela no quarto etc.].

Aula 8
 continuar exemplificando e aprofundando a discussão sobre a or-
ganização da vida pelas culturas humanas em mistura com a dis-
cussão sobre cronobiologia;
  Tarefa 8, para discussão na Aula 9: a) faça um resumo, o mais
completo possível, sobre o que descobriu e aprendeu sobre a Lua
somente a partir das suas próprias observações diretas sistemáticas
desse astro seguindo as orientações passadas nas tarefas sobre o
assunto; e b) dê continuidade às tarefas anteriores.

Aula 9
 aprofundar ainda mais a discussão sobre cronobiologia [apêndice
1];
 distribuir o texto “Descobertas sobre a Lua”176 a cada estudante e
discutir tudo que puderam entender sobre fenômenos envolvendo
ou associados à Lua exclusivamente através de observações regula-
res sistemáticas orientadas (para quem de fato as fez, é claro);
  Tarefa 9, para discussão na Aula 10: apenas continuidade das
anteriores.

175 Uma professora me contou que quando criança ela sabia a hora de ir para a escola pelo tamanho da
sombra do degrau na escada da cozinha. Um licenciando me disse que na infância pastorava as cabras
da família e (seu pai ensinou) sabia a hora de voltar quando a sombra de uma vara, em pé no chão, fos-
se do mesmo tamanho desta. É muito importante essa estratégia de você “puxar” esse tipo de assunto
relatando casos correlatos (qualquer que seja o tema que estiver tratando) que você conhece porque
vivenciou, lhe contaram, leu, viu em filme etc. (Como fiz nesta nota, por exemplo, e em outras partes
deste capítulo.) Porque isto invariavelmente favorece que pessoas do grupo comecem a se lembrar e
relatar casos que elas, parentes, vizinhos ou amigos, conhecem. É ótima ajuda para humanizar a aula,
realçar vivências e valores específicos daquele grupo e ir criando laços e uma identidade do mesmo
(da qual você passa a fazer parte, é claro). Não é apenas pedagogicamente conveniente e eficiente. É,
antes, humanamente desejável e gratificante. Claro, uma vez surgindo os relatos próprios delas – em
aula ou fora desta – é essencial dispensar a atenção merecida e socializá-los com o resto do grupo,
estimulando que outras pessoas se manifestem.
176 Observação: não componho esse texto como algo prévio, independente do que os alunos tragam,
pelo menos não para uma grande parte do mesmo. Ao contrário, em função do que trouxerem e for
sendo discutido nas aulas anteriores, vou registrando suas próprias constatações sobre a Lua (em
função do que vou pedindo para notarem associado a ela) e, daí, componho aquele texto. A qualidade
de informação – além do volume – que resulta dessa prática é impressionante, difícil de acreditar para
quem nunca a realizou. Mas é o que tem ocorrido, sem exceção. No anexo A do capítulo 3, Luziânia
Ângelli Lins de Medeiros apresenta uma versão do referido texto.

394
Abordagem Antropológica

Aula 10
 retomar e concluir as discussões sobre o texto “Descobertas sobre
a Lua”;
 discussão sobre as mudanças do Sol de dia para dia;
 apresentar as fotos dos pores-do-sol no rio Potengi, vistos da Pedra
do Rosário, em Natal (RN), durante um ano: do solstício de verão
de 2.000 ao de 2.001177;
 discutir a importância dos registros topocêntricos dos nasceres e
pores-do-Sol e da Lua desde locais afetiva e/ou culturalmente sig-
nificativos para as pessoas envolvidas;
 prática dos gnômons humanos; se o horário não permitir (porque
as aulas são à noite, por exemplo), passar como tarefa [vide sub-
subseção 3.3.2 (As medições da sombra) do capítulo 1];
 discussão sobre as outras tarefas específicas envolvendo posição
e deslocamento dos astros e exercitação da visão e da imaginação
espaciais dos estudantes;
  Tarefa 10, para discussão na Aula 11: a ser definida em função de
necessidades específicas daquele grupo e da continuidade prevista
em cada intervenção e/ou época.

177 Durante um ano fui lá, a cada 15 dias, para fotografar esse evento de um local que é significativo para
quem vive em Natal – mas cuja população carente que ali vive tem sido ignorada pelas administrações
públicas, em um descaso típico e triste deste país; também este aspecto social discuto ao abordar essas
fotos. Dentre estas, incluo, em particular, as dos dias dos três solstícios – o do verão em que iniciei o
conjunto de fotos e os do inverno e do verão seguintes – e as dos dois equinócios – o de outono e o
de primavera, intermediários. Em várias dessas ocasiões em que fui tirar essas fotos, aproveitei para
conversar com pescadores que residem nesse local e tentar aprender suas outras formas de ver, se
referir a e se relacionar com fenômenos celestes e as conexões destes com o mar e os seres que nele
habitam. Os pescadores – assim como os agricultores – têm muito a nos ensinar, em muitos sentidos.
A ideia de fazer uma tal sequência de fotos me veio de um livro de astronomia – do qual, infelizmente,
não tomei os dados bibliográficos na época em que li partes dele na biblioteca, e depois não consegui
mais localizá-lo –, em que o autor fotografou o nascer do Sol de um solstício ao seguinte (portanto,
durante seis meses) desde a porta de sua casa. Bem, fotografar o nascer do Sol, notívago como sou,
não era um projeto realista. Já, o poente... Foi o que fiz. Escolhi, então, um local significativo para a
maioria daqueles que eram, ou viriam a ser, meu público na disciplina em questão. Busquem lugares
significativos para quem vive na comunidade onde vocês lecionam, empreendam esse tipo de projeto
e depois socializem os resultados com todos. Não é preciso nenhum equipamento sofisticado para
isto. Atualmente, até com certos celulares é possível se tirar tais fotos, baixá-las em qualquer computa-
dor e exibi-las para a classe – mesmo que simplesmente da tela daquele. É preciso apenas planejamen-
to prévio e muita disciplina ao longo de toda a execução do mesmo, para levarem sempre o material
necessário em bom estado de funcionamento e estarem com antecedência razoável (em cada um dos
dias previstos para as fotos) no lugar de onde as tirarão – “o Sol” não espera se vocês se atrasarem para
as fotos, por mais justificáveis que sejam seus motivos! Porém, há relativa flexibilidade; se houver
(pequena) falha incontornável, isto não implica perda do projeto; fotos tiradas até dois dias antes ou
depois da data prevista ainda não o descaracterizam – mais que isto, é o caso de considerar o reinício
do projeto. Boas fotos e encontros!

395
Luiz Carlos Jafelice

Como mencionei antes, visando esclarecer o melhor possível entre-


laçamentos – de conteúdos e atividades, das tarefas e em aula – presentes na
organização de aulas sugerida neste apêndice, explicito no quadro a seguir
alguns deles.
Nesse quadro, adoto os seguintes códigos:
 TAREFAS: P  passada; C  cobrada – indicando as Aulas em
que as tarefas referidas são, respectivamente, passadas e cobradas.
 CONTEÚDOS: A  atividade; D  discussão – indicando as
Aulas em que os conteúdos referidos são trabalhados através de,
respectivamente, atividade prática ou discussão feita em sala de
aula (evidentemente há sobreposições destas durante as aulas; no
quadro só destaco a principal).
 AULAS: A1  Aula 1; A2  Aula 2; etc. – referindo-se a cada
uma das dez Aulas sugeridas neste apêndice.

Atenção: notem, do exposto em cada Aula acima, que há atividades prá-


ticas centrais para esta abordagem (não denotadas abaixo) que não transcor-
rem durante as aulas e, sim, enquanto as tarefas (para casa) são realizadas.
Alguns entrelaçamentos de conteúdos e atividades, das tarefas e em aula, acima sugeridos
TAREFAS\AULAS A1 A2 A3 A4 A5 A6 A7 A8 A9 A10

Lua, Vênus, sentimentos, conhec. popul. (entrev.) P C


desenhos da Lua (visando calend. lunar da turma) P C C C C C C C C
mitos cosmogônicos (textos extraídos de Martins) P C
a Lua e a Mística lunar (texto de Eliade) P C
buscar indic. influência fenôm. do céu organiz. vida P C
aprofundar observações Lua, Sol, estrelas P C
buscar sincronias ambiente/corpo assoc. fenôm. céu P C
Sol; mudanças sombras ao longo dos dias P C
continuidade das anteriores P C
resumir aprend. sobre Lua das observ. sistemáticas P C
CONTEÚDOS\AULAS A1 A2 A3 A4 A5 A6 A7 A8 A9 A10

origens: desenhos; história coletiva; sussurros A D D D


história grupo X outros grupos X outras culturas A D D D
Lua, Vênus, sentimentos, conhec. popul. (entrev.) D D D D D
mitos cosmogônicos (e breve pré-avaliação 1) D D
mística lunar; exempl. cultur.; pré-avaliação 2 D D D
pré-avaliação 3; organiz. vida na hist. humanid. 1 D
astros; cronobiologia 1 + organiz. vida hist. hum. 2 D
cronobiologia 2 + organiz. vida hist. hum. 3 D D
descobertas sobre a Lua 1 D
desc. sobre a Lua 2; astros; Sol; gnômons humanos D

396
Abordagem Antropológica

Constelações

A “continuidade prevista em cada intervenção e/ou época”, que men-


ciono na Tarefa 10, acima, é muito variada e dependente do grupo, época do
curso, eventos culturais de entrelaçamento ambiental marcantes, efemérides
astronômicas relevantes no período, ideias inéditas que se queira experimen-
tar no curso etc. Contudo, um tema fundamental, que não pode deixar de ser
trabalhado nessa continuidade – ou, conforme a oportunidade, melhor ainda
se puder ser desenvolvido concomitantemente, em sobreposição ao que está
sugerido acima para as dez primeiras aulas – é o das constelações.
Enxergar padrões no céu que tenham – ou ajudem a dar – sentido para
a existência é comportamento humano ubíquo. Portanto, também neste im-
portantíssimo tema faz-se necessária uma abordagem que valorize antes a vi-
vência e ofereça estímulos à descoberta e à projeção (psicológica e cultural)178
associada àquela visualização. Assim, após essas vivências e estímulos intro-
dutórios, são mostrados e discutidos padrões estelares identificados por di-
versas culturas, como menciono logo abaixo.
O objetivo, mais uma vez, é realçar um olhar antropológico para esse
tema, considerado tão “astronômico”. Contudo, exatamente por ele ter fica-
do refém de uma mentalidade objetivista e reducionista, esse tema é tão mal
compreendido pela astronomia científica. Na verdade, rigorosamente falan-
do, ele não tem espaço nesta, porque, como seus portavozes típicos enfati-
zam, nada de físico existe nas constelações – uma vez que as estrelas que as
compõem não têm interação física estreita179 – e, portanto, elas não nos dizem

178 Projeção espontânea, isto é, não induzida pela professora/professor. Permitam que as pessoas tenham
contato com o céu estrelado e vejam o que lhes surgir, o que quiserem ou imaginarem ver. Mesmo
que, em uma prática de campo inicial, os alunos perguntarem se “aquela é a constelação de [escorpião,
cruzeiro do sul; órion; etc.]”, não se deve responder e, sim, estimulá-los a admirar aquele céu e ver o
que enxergam nele, se enxergam alguma forma/figura e qual(is). Como destaco em um dos progra-
mas que elaborei para o planetário itinerante da UFRN – enquanto projeto um céu estrelado (no qual
uma pessoa facilmente se perde na busca de referências ou de “imagens” e “padrões” reconhecíveis)
e pergunto quem consegue “enxergar” o caçador Órion (cujo cinturão é composto pelas três Marias)
naquele céu –: “Precisa muita imaginação pra ver o caçador aí [e, neste momento, uso o apontador
laser para delinear na abóbada do planetário o conjunto de estrelas que compõe a constelação da
Órion]. Mas imaginação é algo que nunca faltou às pessoas. Ainda bem, né?” ( JAFELICE, 1998, p.
8).
179 São estrelas que não estão gravitacionalmente ligadas (como em um aglomerado globular) nem for-
mam os chamados aglomerados estelares abertos (agrupamentos de estrelas formadas recentemente
– para as escalas de tempo astronômicas –, a partir de uma dada nuvem molecular interestelar, que
estão se afastando umas das outras por movimento próprio).

397
Luiz Carlos Jafelice

nada de relevante sobre a origem, constituição, estrutura e evolução do uni-


verso (na acepção estreita habitual em que este é considerado).
Para as “vivências e estímulos introdutórios” ao tratamento desse
tema, mencionados antes, sugiro que os leitores consultem, por exemplo: 1)
estratégias de preparação para esse tipo de vivência nas práticas expostas na
subseção 3.5 (Salpique de tinta) do capítulo 1 e na subsubseção 3.2.2 (Cons-
telações de tinta em papel) do capítulo 2 – na qual também é comentado algo
sobre constelações indígenas brasileiras; 2) as referências citadas na subseção
Sobre etnoastronomia (inserida na seção Sugestões de leituras) do presente capí-
tulo; 3) o exemplo da relação entre constelações e estações do ano dos Desâna
(noroeste do Amazonas) analisado por Ribeiro (1995, p. 107-110, 114); 4)
as explicações e ilustrações dos próprios Desana180, do grupo Wahari Diputi-
ro Porã, feitas por Diakuru (2006, p. 17-39), também sobre as relações entre
as “estações do ano” marcadas pelas respectivas constelações; 5) constelações
de diferentes culturas (constelações que podem, inclusive, em algumas cul-
turas, ser definidas com base em um significado qualitativo, e não figurativo,
como estamos habituados a entender o termo constelação no Ocidente), em
particular constelações escuras que povos andinos veem na Via Láctea (faixa
leitosa visível em céus límpidos, quando se está longe de poluição luminosa),
citadas, e.g., por Aveni (1997) – cujo reconhecimento, aliás, se faz presente
entre nós, como as constelações do saco de carvão, do sapo etc., que diversas
culturas indígenas brasileiras também identificam, assim como alguns conhe-
cedores tradicionais brasileiros com os quais tivemos contato181; e 6) citações
de outras constelações autóctones dos conhecimentos tradicionais no nor-

180 Aqui, respeitei a respectiva grafia dos autores para o nome desse povo, a qual difere entre Ribeiro e
Diakuru. Eu mesmo, contudo, para as outras partes do texto, uniformizo e adoto a grafia Desana, de
Diakuru.
181 Também as épocas das “estações do ano” no sertão nordestino brasileiro são marcadas por constela-
ções, como a da barca, por exemplo, como nos ensinou seu Josias da Silva, de Carnaúba dos Dantas
(RN) (SILVA, 2004). Naquela região, há apenas duas estações: o verão, quando há estiagem, e o in-
verno, quando há chuvas. Também lá há mais de um inverno, por assim dizer, intercalados por breves
períodos de estiagens, mas não recebem denominações especiais. A chuva é o elemento determinante
na caracterização dessas estações – e não os meses em que supostamente uma das estações deveria
estar ocorrendo, nem a temperatura média ambiente. Assim, se a chuva vem na época esperada, mas
para por muitos dias e retorna depois, se diz, por exemplo, que “o inverno pegou de novo”. Contu-
do, quanto à relação entre constelações e estações do ano no nordeste brasileiro, são muito poucos
os “profetas” que a conhecem ( JAFELICE, 2010a; 2010b). Aproveitando, cabe mencionar algumas
denominações regionais para “objetos” astronômicos reconhecidos pela astronomia oficial, como, por
exemplo: Setestrelo, para as Plêiades; Velho Carreiro, para a Via Láctea; Duas Nuvenzinhas (às vezes
chamadas Duas Manchinhas) do Sul, para as Nuvens de Magalhães; entre outros.

398
Abordagem Antropológica

deste brasileiro, como a da barca, a dos três Reis Magos e a das três Marias
(sendo que este último conjunto – que ocidentalmente não é reconhecido
como constelação – não é aquele que conhecemos por esse nome) etc., co-
mentadas em Jafelice (2010b).
Para este tema, em particular, merecem destaque as representações e
organizações dos Desana, pois exemplificam possibilidades de riqueza e di-
versidade de relações humanas integradas com o ambiente, no sentido amplo
deste termo, conforme aqui adotado.
Para os Desana do rio Tiquié,
as épocas de derrubada, queima e plantio das roças, no rio Tiquié,
são calculadas pelo aparecimento de [dezenove] constelações e das
chuvas concomitantes, entre as quais medeiam curtas estiagens. [...]
[àquelas chuvas] correspondem fenômenos naturais, tais como: a pi-
racema (subida de algumas espécies de peixe em desova); subida de
cardumes de peixes não em desova; maturação de saúvas, térmites,
gafanhotos e larvas de borboletas, de que os índios se alimentam em
determinadas épocas do ano; maior concentração de rãs (localizadas
pelo seu canto) e de cogumelos, também comestíveis (RIBEIRO,
1995, p. 107).

Para os Desana do grupo Wahari Diputiro Porã, são vinte e duas as


constelações marcadoras das “estações do ano” e eles especificam que
acompanham as estações do ano através das constelações e do tempo
de amadurecimento das frutas. [...] [Essas constelações vêm] do nas-
cente e entram no poente. Quando uma constelação entra no poen-
te, na boca da noite, sempre acontece uma enchente ou inverno [...].
No final da enchente, forma-se um pequeno verão [...] de alguns dias
ou uma semana. Antes de cada lua nova, sempre cai também uma
pequena chuva (DIAKURU, 2006, p. 17-18).

Observem o conhecimento e a integração ambiental profundos e


complexos dessa cultura (e presentes em culturas indígenas em geral, brasi-
leiras e outras): eles identificam cerca de duas dezenas de “estações” em um ano,
com toda uma gama de sutilezas nos indicadores das mesmas – onde o céu é
um destes182.

182 É muito instrutivo contrapormos essa complexidade e exuberância de organização “sazonal” de uma
cultura autóctone (aliás, no caso, brasileira), com o quadro típico no ensino do assunto “estações
do ano” nas disciplinas de ciências e geografia da nossa educação formal. Aquele antigo esquema
(mas ainda presente, aqui e ali, em livros didáticos daquelas disciplinas) das quatro estações bem
diferenciadas entre si, com suas ilustrações características (de países do hemisfério norte – de onde
aqueles esquemas são importados – de alta latitude): flores; sol; folhas caindo; neve. Quase como se es-

399
Luiz Carlos Jafelice

Esse tipo de habilidade observacional e de capacidade classificatória


também são do domínio de conhecedores tradicionais com quem temos
tido contato no Rio Grande do Norte. Guardadas as devidas proporções –
principalmente devido às diferenças entre as respectivas culturas (graus de
autoctonia) e ambientes (floresta úmida tropical e caatinga aberta) em ques-
tão – esses conhecedores identificam um vasto número de marcadores do
tempo ao longo do ano, tanto envolvendo mudanças em plantas como nos
comportamentos de animais183 ( JAFELICE, 2010a; 2010b); embora, neste

tas fossem as únicas – ou as melhores, mais fidedignas – categorizações e representações da mudança


ambiental neste planeta durante o ano e fosse uma pena que nosso país seja tão inferior e pobre que
nem aquele padrão paisagístico anual apresenta. Quando, de fato, tal “padrão” não é encontrado nem
no sul do Rio Grande do Sul, o que dirá no resto do país. Contudo, a grande maioria dos professores
daquelas disciplinas – em parte devido à grave ausência, a meu ver, de uma boa formação também
de teor antropológico –, continuam inseguros e confusos, sem saber como encaminhar um ensino
desse assunto contextualizado para as peculiaridades e diversidades “sazonais” realmente vivenciadas
no território nacional. Mais uma vez, as culturas tradicionais vêm em nosso auxílio. Temos muito a
aprender com visões de mundo autóctones – por mais diversos, digamos, que sejam nossos respecti-
vos estilos de vida atuais –, visões que são bastante variadas inclusive em nosso próprio país. Fazendo
isto, teremos muito para compartilhar desse aprendizado com nossos alunos e as pessoas em geral.
Dedique-se também a isso. Nossa educação florescerá.
183 Aqui merece destaque mais um exemplo da humildade, riqueza, complexidade e transformação cons-
tante implícitas nos conhecimentos tradicionais – como já comentei na subseção 3.5 (Conhecimentos
tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia). Os conhecedores – no mesmo estilo do chefe índio
xavante Tsuptó Brupréwn Wairi, apresentado por Leite (2003) e que cito naquela subseção – não
consideram que o que sabem é tudo que há para se saber sobre os respectivos assuntos, nem que uma
vez sabido, as coisas não mais mudarão. Eles estão aptos a registrar mudanças na dinâmica ambiental
e o fazem sempre que elas ocorrem – sem qualquer conflito, interno ou outro. Como é um conheci-
mento construído em estreito diálogo com o ambiente, é natural que assim o seja – embora quem não
tem familiaridade com esse tipo de conhecimento (e, mais provavelmente, influenciado acriticamente
pela cultura, tem preconceito em relação àquele, não creditando ao mesmo nada de procedente e
original do ponto de vista epistemológico) não costuma enxergar sua robustez, consistência, flexibi-
lidade e abertura. Segundo testemunhas em Carnaúba dos Dantas (RN), houve um conhecedor lá,
seu Cesario Cílirio Dantas (conhecido como seu Cesarino), falecido em março de 1996, que coletou
setenta e três experiências indicativas de prognósticos ambientais, muitas das quais ele mesmo foi
descobrindo e sistematizando ao longo da sua vida – segundo relatos, ele passava noites e noites em
claro para conferir se uma percepção sua desse teor tinha fundamento ou não (em outra indicação de
que esses conhecimentos proveem, em parte, de uma organização empírica também, mas não ape-
nas). Segundo seu Zé Cirino, um dos conhecedores que contatamos nos últimos anos, seu Cesari-
no lhe dizia, alguns anos antes de morrer, que das 73 experiências que ele conhecia, “70 já estavam
mentindo” (ou seja, já não eram mais confiáveis como costumavam ser), só 3 não haviam falhado, e
mesmo estas não estavam tão claras quanto antes (CIRINO FILHO, 2007). Outros exemplos nesse
sentido nos foram relatados recentemente pelo próprio seu Zé Cirino e seu Deca Marinheiro, outro
conhecedor daquele município. Ambos presenciaram, independentemente, no primeiro semestre de
2010, florações incomuns em certas plantas marcadoras do tempo – aquelas cujas mudanças na qua-
lidade e/ou regularidade do seu ciclo anual são mais evidentes e indicam a qualidade do próximo
inverno, i.e., da época de chuvas (vide apêndice 7). Seu Zé Cirino nos disse (em meados de abril
de 2010) que viu a craibeira florar em março/abril (quando o normal é ela florar seis meses antes,
em setembro/outubro) e que – em seus 82 anos de idade – esta foi a primeira vez que ele viu isso

400
Abordagem Antropológica

caso, como falei, há apenas duas estações do ano: o inverno (quando chove) e
o verão (nas estiagens), havendo intercalações curtas desta naquela.
Notem ainda que as constelações Desana aludidas – sejam as 19 do
primeiro grupo mencionado ou as 22 do segundo grupo – são, todas elas, au-
tóctones, isto é, não guardam relação com quaisquer das 88 constelações ofi-
cializadas no Ocidente184. Além disto, aquelas constelações (de novo, sejam as
19 ou as 22) dizem respeito exclusivamente às associadas como marcadoras
das “estações do ano” – como sempre, na acepção indígena de estação. Diaku-
ru, no capítulo em que trata especificamente da “História das constelações”
do grupo Wahari Diputiro Porã, explicita: “Há várias outras constelações no
céu que não foram contempladas aqui porque elas não indicam nenhuma es-
tação do ano” (DIAKURU, 2006, p. 39).
Mesmo em uma só cultura (Desana), relativamente restrita em termos
geográficos, o calendário econômico muda de grupo para grupo. Para os De-
sana do rio Tiquié, “o ano começa em outubro. Nesse mês surgem, no poente,
quatro constelações, às quais correspondem chuvas que recebem os mesmos

ocorrer! (CIRINO FILHO, 2010). Seu Deca Marinheiro nos contou (em meados de junho de 2010)
que o cajueiro estava florando fora de época há um bom tempo já, mas sem segurar a carga (i.e., sem
manter a florada na planta – outra indicação, neste caso negativa, para o prognóstico de inverno para
o ano seguinte), e que a pinha já havia florado duas vezes neste ano (até junho de 2010) e tampouco
segurou a carga (SANTOS, 2010). Os três conjuntos de relatos acima registram comportamentos
ambientais anômalos. Estes exemplos são uma mostra evidente não só da construção das experiências
tradicionais em interação estreita com o ambiente, mas da atenção e abertura dos conhecedores para
a dinâmica e mudança deste. As transformações climáticas em nível mundial (como, por exemplo, o
fenômeno do El Niño, ou a indicação mais recente de um aquecimento global, e suas decorrências)
se manifestam localmente com alterações peculiares específicas. É importante notar que também ao
registro das alterações os conhecedores tradicionais estão sensíveis e atentos.
184 Outro exemplo neste sentido é dado na subsubseção 3.2.2 (Constelações de tinta em papel) do capítulo
2, onde são mostrados padrões enxergados em uma mesma região do céu pelos índios Tembé (no
Pará e parte do Maranhão, que veem a constelação da Ema), na cultura havaiana (que identificam
um anzol) e na nossa cultura (que herdou a imagem do escorpião). Conforme exponho em Jafelice
(1998, p. 4), “os havaianos enxergaram diferente dos sumérios, porque seu mundo e sua cultura eram
diferentes daqueles dos sumérios. [...] Se fôssemos herdeiros da cultura havaiana [que vê no céu um
símbolo de seu mito de criação: o anzol], nossas constelações seriam outras”. Como destaco na sub-
seção 2.2 (Quantos céus existem?) deste capítulo, a despeito do conjunto, disposições e brilhos rela-
tivos das estrelas etc. serem fisicamente os mesmos no céu, o céu caro ao humano, parte da vida – e,
portanto, do ambiente –, contém inúmeras outras componentes que lhe conferem significado maior.
Repetindo o que mencionei lá: “o céu não é único; há tantos céus quantas culturas humanas”. (Vejam
também JAFELICE, 2009a). E repito também a advertência que fiz na subseção 3.5 (Conhecimentos
tradicionais, etnoastronomia e arqueoastronomia), sobre a improcedência e equívoco, cometidos com
frequência por astrônomos, “de querer sobrepor, traduzir, comparar ‘céu indígena’ com o ‘nosso’, oci-
dental”. Não é por aí, se não quisermos de fato adotar e impor nossa forma de ver o mundo como
padrão de referência para todas as outras leituras culturais no planeta.

401
Luiz Carlos Jafelice

nomes” (RIBEIRO, 1995, p. 108). Para o grupo Wahari Diputiro Porã, “o ano
começa na segunda quinzena de agosto, quando a constelação [...] [da garça]
entra no poente, ao cair da tarde. [Esta é a primeira estação, a da “enchente
da garça”]” (DIAKURU, 2006, p.18). Dentre as constelações marcadoras de
estações que são comuns a ambos os grupos, inclusive pela ordem em que
surgem, estão, por exemplo, as da “enchente da cabeça da jararaca”, “enchente
do corpo da jararaca” e “enchente dos ovos da jararaca”185.

Sussurros sobre os astros ao pé do ouvido


Esta é outra prática para desestruturar expectativas sobre o compor-
tamento do professor e a condução da aula – vide metáfora da capoeira, que
mencionei acima – e para estimular a inclusão do corpo e de outras atenções
perceptivas nas atividades em sala de aula.
Bastante por brincadeira, mas não tanto só por isto, ao final da pri-
meira aula, quando sobra tempo (pois os desenhos e a história coletiva são
insubstituíveis), ando pela classe e, aleatoriamente, vou chegando bem perto
de cada estudante (até um total em torno de meia dúzia deles), e sussurro
(cada um por vez): “Você viu a Lua no céu hoje? Responda só pra mim, aqui,
baixinho.”186. Se a pessoa responde: “Não”, prossigo para perguntar o mesmo
para outra pessoa. Se a pessoa responde: “Sim”, pergunto: “como ela estava?”
ou “qual era a aparência dela?” e “que horas você viu ela?” e “me aponte mais
ou menos onde ela estava no céu na hora em que você viu ela”. Importante:
1) independentemente de a pessoa acertar ou errar as respostas, nada mais
comento nem expresso fisionômica ou corporalmente e me dirijo à próxima
pessoa; 2) notem que podem ser várias perguntas por estudante e que en-
quanto este diálogo em segredo ocorre muitas curiosidades e agitações são
desencadeadas no resto da turma; se forem aplicar esta prática, tenham isto
em conta e não se deixem perturbar por isto; um dos objetivos da mesma é

185 Notem as denominações escolhidas para essas constelações autóctones. Como se esperaria, elas têm
que ter sentido para quem as vive e as cria. Nesses exemplos (mas não só neles), a relação íntima
daquelas nomeações com habitantes e acontecimentos do ambiente (físico e simbólico) em que
aquela cultura existe é evidente.
186 Faço isto independentemente de ser época em que a Lua esteja visível ou não. Saber que ela não está
visível também denota grande proximidade com desenrolamentos no céu. Às vezes, formulo questões
mais difíceis, como: “você viu Vênus no céu hoje?” ou “[...] Júpiter [...]?” ou “[...] as três Marias [...]?”.
Mas o intuito não é dificultar, por isto prefiro me referir à Lua, muito mais relevante nessa iniciação
de contato regular com o céu.

402
Abordagem Antropológica

exatamente despertar esse tipo de frisson; e 3) para fazer tal prática (assim
como para poder comentar sobre as tarefas envolvendo observações do céu)
eu preciso ter visto a Lua antes, naquele dia, e saber exatamente a aparência
dela – além de sua posição no céu para um dado horário e inferir como ela
estaria/estará em horários anteriores/posteriores (portanto, quem for fazer
esta prática também precisa se preparar neste sentido, é claro).
Um outro objetivo evidente desta prática é deixar explícito como per-
demos o hábito de ter contato regular com o céu. Como o arqueoastrônomo
Antony Aveni sintetiza:
Tudo o que aprendemos sobre o céu hoje é adquirido por meio da
leitura de livros [ou da visita a sítios na internet, podemos acrescen-
tar sem em nada alterar a ideia] e, ocasionalmente, da visita a um
planetário. Exceto, talvez, quando abrimos a porta à noite para colo-
car o lixo para fora [...] [ou quando estamos] no caminho para casa
e damos uma olhada para cima para ver se poderá chover amanhã,
vivemos em um mundo basicamente sem consciência da metade de es-
paço visível que está acima do nível de nossos olhos (AVENI, 1993, p.
20; ênfases minhas, que destaco em aula).

Isto nos ajuda a refletir sobre nossos condicionamentos e escolhas.


Após a performance de “sussurrar ao pé do ouvido”, faço a primeira
das perguntas acima em voz alta para toda a classe (“Você viu a Lua no céu
hoje?”). Discuto, então, ao final, com eles, como é evidente nosso distancia-
mento dos fenômenos e andamentos celestes187, cito Aveni (acima), enfatizo
o quanto estamos perdendo – humana, pessoal e culturalmente – com isto e
explicito que ao longo desta intervenção educacional aprofundaremos esta
discussão e desenvolveremos técnicas para tentarmos restabelecer o contato
com o céu e, se possível, reincorporá-lo em nossas vidas, a começar pelas pri-
meiras tarefas para casa. Distribuo, então, para eles o texto com estas tarefas,
leio-as com eles e explico o que quero que façam (vide apêndice 6).

187 Pois a fração dos que viram a Lua costuma ficar na faixa dos 15%; os que sabem dizer com segurança
sua aparência e localização é menos da metade daqueles; e os que sabem sobre os outros astros são
muito mais raros ainda.

403
Luiz Carlos Jafelice

Apêndice 5

Origens: imagens, palavras, expressões culturais e psicológicas188


(Subsídios para se encaminhar este tipo de discussão em atividades
pedagógicas)

Este apêndice contém exemplos de atividades que desenvolvo logo no


início do primeiro contato com os alunos. Ele deve servir para esclarecer o es-
tilo de ação pedagógica que desenvolvo e prover orientação para quem quiser
experimentar as atividades expostas189.

188 Este apêndice é adaptação da subseção VII.2 (Primeiro Dia de Aula: Origens) de Jafelice (2004, p. 38-
40).
189 Para quem estiver estudando este capítulo, já deveria ser claro, nesta altura, que o conteúdo do mesmo
se refere aos bastidores, por assim dizer, da abordagem pedagógica que proponho. Quem participou
de alguma intervenção minha, mas não para formação de professores, provavelmente não identifica-
rá aqui muito daquilo que vivenciou lá, enquanto estudante. Aliás, provavelmente essa pessoa não
reconheceria aquilo que, quando vivenciado na intervenção, fluiu de maneira tão simples e agradá-
vel, além de instrutiva e formativa. Aqui, pela própria finalidade do texto, explicito, discuto e explico
muitos dos truques, embasamentos, pressupostos e esperanças – sim, porque é óbvio que há também
“truques” em uma pedagogia bem-sucedida; não para enganar, mentir, converter, tirar proveito, mas
para jogar a atenção para algo, quando o que precisa ser alcançado está em outro algo, que a prática
mostra que se for abordado diretamente não atinge o objetivo (pedagógico) desejado (seria, diga-
mos, uma “prestidigitação” com finalidade pedagógica). Ademais, um fazer pedagógico eficaz requer
de quem medeia o processo a habilidade de assumir uma persona – “máscara social”, no sentido jun-
guiano, mas aqui a ser elaborada e colocada pela própria pessoa, como faz uma/um atriz/ator (posto
que lecionar também é encenar, interpretar um papel, encarnar uma personagem), de modo mais
consciente e controlável, como recurso pedagógico adicional –, adaptável e conveniente às necessi-
dades pedagógicas de cada situação em particular, como já exemplifiquei que faço, em outras partes
deste capítulo. Ser educadora/educador implica ser também maleável e múltipla(o), para melhor be-
neficiar seus alunos do momento e circunstância em questão. Não teria cabimento expor isto tudo
para quem não está, nem vai estar, envolvida(o) em incluir o que é abordado aqui em sua própria
prática pedagógica. Com efeito, para quem não vai lecionar estes temas, ter que lidar com estas outras
discussões, de fundamentos e estratégias, seria supérfluo, desvio, enfado, e há risco de ser contrapro-
ducente. Este capítulo todo é formativo (além de informativo), portanto trata dos bastidores. Espero
que eles sejam úteis para atuais ou futuros professores, pessoas envolvidas com formação de professo-
res ou com divulgação em astronomia e em questões ambientais. Esta exposição, contudo, ficou mais
densa e técnica do que imaginei. Talvez por isto relutei tantos anos em tentar organizá-la em palavras,
de modo mais completo, para terceiros. Não saiu o que eu gostaria, mas ao menos saiu um registro
geral. O texto ficou extenso e ainda acrescido de mais de duzentas notas de rodapé (!) – cuja aco-
modação mais sensata em novas subseções, por exemplo, exigiria um tempo de que não dispus; não
foi apenas questão de meu estilo narrativo, foram complementações que considerei imprescindíveis,
mas de cuja necessidade só fui me conscientizando ao longo das revisões finais, quando já era inviável
modificar o capítulo como conviria. Enfim, espero que quem se dispuser a atravessar certas agruras
desta exposição consiga sair menos confusa(o) do que entrou e com a percepção de que a aplicação
exitosa desta proposta não é, de fato, algo tão complicado (como pode parecer à primeira vista para

404
Abordagem Antropológica

Chego em aula, praticamente não falo nada com os estudantes190, dis-


tribuo uma folha de papel em branco para cada um e disponibilizo giz de cera,
lápis de cor, canetas, etc. no centro da sala. Vou para a lousa, sem nenhuma
outra conversa ou comentário, e peço que cada um desenhe o começo de tudo
que existe (enquanto escrevo estes últimos dizeres na lousa). É comum pe-
direm esclarecimentos: “como assim, professor?”. Apenas repito: “é para de-
senhar ‘o começo de tudo que existe’, como você entende; é isto que é para
desenhar”. Não dou outras explicações ou esclarecimentos. Apenas especifico
que não precisam colocar o nome (para dar mais liberdade às expressões).
Recolho as folhas, distribuo uma segunda folha para cada um e peço
que desenhem o céu (também escrevo isto na lousa). Igualmente sem maiores
comentários. Enquanto fazem o segundo desenho191, disponho os primeiros
desenhos sobre uma mesa grande ou no chão.
Recolho o segundo desenho. Peço para que todos saiam das carteiras
e venham olhar os (primeiros) desenhos de todos os outros, o que fizeram,
como fizeram.
Passo, então, para o momento da composição de uma história cole-
192
tiva baseada no primeiro desenho. Será uma história daquele grupo em

alguns, ainda mais por eu não ter enxugado e suavizado a narrativa como poderia), além de ser muito
gratificante. Estou ciente que ela pode, talvez, soar heterodoxa para os padrões e valores vigentes, aos
quais nossa educação formal só faz reforçar nosso apego. Creio, porém, que quem se liberar da nossa
habitual subserviência a um formato único de pensamento, e não tiver receio de experimentar – ainda
que para isto tenha que subverter a ordem – visando sempre um trabalho responsável de inclusão e
acolhimento das diversidades e o bem de todos, não terá dificuldade em enxergar e pôr em prática o
espírito de desprendimento desta abordagem. Esta poderá, então, melhor exibir seu potencial e fluir
profícua e fecunda, sem simplismos, mas com simplicidade.
190 Nem os cumprimento, se possível. Afinal, como veremos neste apêndice, isto tudo faz parte da en-
cenação – eles não sabem que se trata de uma, mas quem precisa saber isto, no momento, é só você,
enquanto educador(a).
191 É pertinente mencionar que é frequente nesse segundo desenho aparecerem céus astronômicos, re-
ligiosos e misturados. Mas é interessante observar que mesmo em desenhos aparentemente de um
céu apenas astronômico, só com estrelas, planetas ou parte do solo na Terra, é comum aparecerem
pessoas e explicitamente expressões de afeto (mãos dadas etc.). Transparece uma concepção muito
presente: o ser humano está incluído no céu! (Ao passo que nossa cultura tem forçado sua exclusão –
e não estou fazendo alusão à expulsão bíblica do paraíso, bem entendido. Se essa exclusão (ainda) não
consegue êxito psicológico profundo maior – como indicam muitos daqueles desenhos –, ela já tem
suficiente eficácia para embotar expressões, sentimentos e pensamentos que explicitem aquela inclu-
são e inibir – em particular através de nossa educação formal, mas não apenas – vivências integradoras
daqueles elementos todos.)
192 Esta prática, assim como a do aquecimento no apêndice 4, foram adaptações que fiz a partir de suges-
tões de técnicas de dinâmica de grupo que Rosa Adriana Piña Jafelice me passou de seu trabalho em

405
Luiz Carlos Jafelice

particular. Disponho, na lousa, três possíveis tamanhos que a história terá.


Vota-se. Uma vez escolhido o tamanho (um pedaço determinado na lousa),
especifico as regras para a composição da história, quais sejam: a) cada pessoa
só pode falar para o professor; b) eles não podem conversar entre eles; e c)
ninguém pode corrigir ninguém. O que cada um for falando, vou escrevendo
imediatamente na lousa. Uma pessoa fala, a outra emenda, completa o pensa-
mento, a frase da(s) anterior(es), ou diz o oposto da frase da pessoa anterior,
ou começa nova frase ou diz palavras soltas, e eu vou escrevendo conforme
as contribuições de cada um vão sendo feitas – sem crítica, sem censura, sem
interferência alguma; nesse momento, sou apenas escriba –, até terminar o
espaço previamente acordado para o tamanho da história.
Próximo passo: decidir se a história vai ter nome (título) ou não. Vota-
se. Se for ter nome, são feitas as propostas de nomes. Em geral cerca de uma
dúzia de sugestões. Vota-se pelo nome.
A história, então, é lida em voz alta por todos ao mesmo tempo, os
estudantes e eu. Pronto. Foi dado o início. Ser originado é ser nomeado.
(Peço que todos copiem a história e eu a copio também, pois precisa-
rei passá-la para transparência, impressa ou em forma digital, para trabalhá-la
com eles futuramente.)
Portanto, somente após essa “origem” é que vou ao quadro e escre-
vo meu nome. Ou seja, até então, nessa prática, estávamos representando a
fase anterior à criação, “um caos primordial”, na qual não existem entidades
ou relações, não houve nomeações, não há formas sequer, “o momento pré-
criação”, dos mitos cosmogônicos com concepção cíclica do tempo. Era uma
encenação. Isto tudo é esclarecido e discutido posteriormente com os alunos.

“Big bang” e psique humana ocidental?


Pego o primeiro desenho de cada estudante, levanto para mostrar a
eles e pergunto se quem o fez pensou conscientemente na teoria da grande
explosão (“big bang”) quando o fez. Faço isto com um por um dos primeiros
desenhos.
Já tenho uma estatística razoável. Uma porcentagem significativa (>

desenvolvimento organizacional e no ensino de idiomas (PIÑA JAFELICE, 1994).

406
Abordagem Antropológica

30%) daqueles que fazem desenhos mandálicos193 não pensaram na grande


explosão (por outro lado, quem pensou nessa teoria enquanto desenhava faz
invariavelmente figuras mandálicas).
O “big bang” é totalmente mandálico – isto é, induz espontaneamente
representações imagéticas mandálicas194. Baseado na análise da sobrevivência
por vezes “frankensteiniana” daquela teoria ao longo das décadas e nesses re-
sultados envolvendo expressões pictóricas – isto é, de atividades não verbais
– estimuladas segundo uma técnica do tipo de livre associação, creio que um
forte motivo a alimentar a sobrevivência dessa teoria por tanto tempo, com
tantos adeptos, não se deve apenas às alegadas justificativas de caráter cien-
tífico195, mas, talvez principalmente, porque ela atende a necessidades psico-

193 Mandala é uma figura simétrica, centrada, muito usada no Oriente para meditação. O psiquiatra suiço
Carl-Gustav Jung levou esse tipo de figura para a psicologia ocidental e a associou ao que ele cha-
mou de processo de individuação. No Brasil, em particular, a psiquiatra alagoana Nise da Silveira,
trabalhando no Rio de Janeiro, usou motivos mandálicos no tratamento de pacientes esquizofrênicos,
onde aqueles se mostraram favorecedores no processo de reintegração da personalidade nesses pa-
cientes.
194 Atenção: as considerações desse parágrafo são especulativas, embora elas tentam se fundamentar em
algum argumento. Seria interessante que algum estudo futuro, de caráter transdisciplinar, pudesse
tentar confirmá-las ou refutá-las. Seja como for, sua confirmação ou não é indiferente para a aborda-
gem proposta e, importante frisar, não pretendo fazê-las passar como se fossem constatações científi-
cas. Representam apenas um livre pensar posto público, uma troca de ideias informal.
195 Na verdade, os supostos sucessos teórico-observacionais que os cientistas alegam ter obtido, sempre
chegam ao público, sem exceção, via textos de divulgação científica – mesmo quando estes são es-
critos por cientistas da área. Não poderia ser diferente, dada a complexidade conceitual-matemática
associada à formulação e estudo científicos de tal assunto. Mas, por melhor que esses escritos sejam
redigidos e ilustrados, o público está entendendo mesmo o que está em jogo, o que está sendo propos-
to e qual a solução que se está dizendo que “explica muita coisa até o momento”? Gaston Bachelard,
questiona a tendência de se pedir ao “cientista [...] para reduzir o conhecimento científico ao conhe-
cimento usual, isto é, ao conhecimento sensível”, pois, assim, se está incorrendo em grande erro e em
nada contribuindo para que alguém entenda o que ainda não conhece, porque esse alguém terá que
estar “disposto a saber de modo diferente [...] Em suma, tratar-se-á de curiosidade ou de cultura?”.
E enfatiza: “[s]e a ‘explicação’ [de uma teoria ou resultado científico] não passa de uma redução ao
conhecimento vulgar” em nada se avança em termos epistemológicos (BACHELARD, 1951, apud
ZANETIC, 2006, p. 85). Ludwig Wittgenstein, sendo ainda mais incisivo, considera que fazer divul-
gação científica é pretender fazer com que as pessoas acreditem “que entendem algo que realmente
não entendem e satisfazer assim o que considero um dos mais baixos desejos do homem moderno, a
saber: a curiosidade superficial sobre as últimas descobertas da ciência” (WITTGENSTEIN, 1930,
apud DALL’AGNOL, 2005, p. 215). Infelizmente, porém, isto é tão alimentado nas publicações ditas
populares sobre ciência (aliás, esse quadro só se agudizou nos últimos oitenta anos). Mas, permanece
a pergunta básica: o que o público está entendendo de fato sobre o “big bang” (ou sobre os outros
modelos científicos assim difundidos)? Que embasamento e autonomia autênticos de raciocínio são
incitados naquele público? É, no melhor dos casos, ingenuidade acreditar que a “educação científica”
– da forma em que é empreendida, amparada na visão de mundo que a nutre – vá municiar os “cida-
dãos” com conceitos e instrumentos intelectuais que os capacitem a opinar com conhecimento real
de causa sobre esses assuntos tão especializados, construídos segundo a leitura científica de mundo,

407
Luiz Carlos Jafelice

lógicas fundamentais no Ocidente, forjado e permeado pela cultura judaico-


cristã, de inspiração claramente centralizadora.

que se resolveu adotar hegemonicamente (mais críticas neste sentido em JAFELICE, 2008a, LOPES
e JAFELICE, 2009, JAFELICE, 2009b, e LOPES, 2010). Ainda para explicitar a atualidade e a gravi-
dade da situação, convém relembrar: em maio de 2004, um grupo de cosmólogos – tão sérios e com-
petentes quanto os que eles acusam – lança uma carta aberta à comunidade científica. Eles criticam a
postura totalitária dos defensores do modelo cosmológico da grande explosão e afirmam que estes os
têm discriminado sistematicamente e imposto restrições às suas pesquisas pelo fato de eles não con-
cordarem com aquele modelo. Os signatários da carta denunciam que tal procedimento “reflete uma
postura mental dogmática crescente que é estranha ao espírito da livre pesquisa científica” (VÁRIOS
AUTORES, 2004; tradução minha). Ou seja: aquela teoria – que qualquer “cidadão” escolarizado
hoje vai prontamente responder que “é a que explica como o universo surgiu e evoluiu”; teoria para a
qual parece não haver escapatória, que parece expressar a ontologia derradeira sem sombra de dúvida
– têm sérios discordantes entre cientistas. (Outras críticas à hegemonia infundada desse modelo, jus-
tificativas para as mesmas e discussão de modelos alternativos, são apresentadas pelo cosmólogo bra-
sileiro Mário Novello em NOVELLO, 2010.) Notem ainda que o procedimento inaceitável criticado
naquela carta está ocorrendo dentro da própria comunidade científica. E este caso, envolvendo a área
de cosmologia, não é exceção. Situações semelhantes se repetem nas áreas de antropologia, biologia,
arqueologia, astronomia, física, química etc. (e.g., COLLINS e PINCH, 2003). Discuto mais estas
questões na subseção IV.2 (Qual a (De)Formação do Educador e do Divulgador Científicos?) de Jafelice
(2004, p. 15-21).

408
Abordagem Antropológica

Apêndice 6

Primeiras tarefas para casa:


ciclo lunar, Vênus, sentimentos e conhecimentos populares196
(Subsídios para se encaminhar este tipo de discussão em atividades
pedagógicas)

Como mencionado na subseção 2.1 (Vivência; transdisciplinaridade;


astronomia e um olhar antropológico), qualquer intervenção educacional que
faço, segundo a abordagem aqui proposta, é estruturada (temporalmente) em
função do calendário astronômico do período em que a intervenção ocorre e a
ênfase é na recuperação vivencial da relação humana com o ambiente.
Assim, coerentemente com tal princípio, organizo o planejamento
para que o início de uma intervenção desse tipo se dê na lua nova (mas, se
possível, não no primeiro ou segundo dia da lua nova). Ao que parece (vide,
e.g., Eliade, 1993b, e referências lá citadas), a Lua tem – ao longo da história
da humanidade – participação fundamental na conformação de nossa estru-
tura representacional analógico-simbólica. Por isto, entabular relações mais
próximas com esse astro, em particular, constitui um ponto de partida de des-
taque em uma abordagem com os objetivos da apresentada neste capítulo.
Inicio o contato com os alunos em uma lua nova, então: 1) porque
esse é o início de um ciclo lunar clássico para muitas culturas; 2) porque
guardamos ainda fortes conexões com a Lua (embora, em geral, estas não
são valorizadas e se mantêm adormecidas); e 3) para que eles possam fazer
a lição de casa em um momento mais conveniente (em termos de horários e
sequência das fases lunares).
Se não for possível programar a intervenção (curso; disciplina; con-
junto de aulas) para começar em uma lua nova, então inicio o contato com
os envolvidos através de outras atividades e discussões [que não as indicadas

196 O adjetivo populares não deve ser entendido com nenhuma conotação pejorativa, ainda comum no
ambiente escolar e social, como comento no apêndice 7. Preferi mantê-lo nesse título (em vez de
substituí-lo por tradicionais, alternativos etc. – aliás, inadequados para o caso, conforme se depreende
da terceira atividade da Tarefa 1 abaixo), porque importa ressaltar (para os estudantes lá, ao recebe-
rem e realizarem a tarefa, e no texto aqui) a necessidade de reaproximação também com essa dimen-
são (em contraste com a erudita) e porque foi o que adotei historicamente, em 1998, quando comecei
a aplicar a Tarefa 1.

409
Luiz Carlos Jafelice

neste apêndice; embora algumas outras, dentre as indicadas no apêndice 4


(O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados), por exemplo, sejam apli-
cáveis nestes casos] e aguardo o dia conveniente de lua nova para passar as
tarefas de casa expostas abaixo – e desenvolver as atividades e discussões daí
decorrentes.
Um ponto importante, porém, é que nada disto – isto é, desse planeja-
mento, estratégia pedagógica e preparações – é comentado com eles nessas pri-
meiras aulas; só bem depois. Lembrem-se que queremos incentivar a ativação
de outros domínios psíquicos (que envolvam a intuição, o afeto, a emoção, os
sentimentos, o analógico) e não apenas os cognitivo-intelectuais habituais.
Na primeira aula (de fato, ou no primeiro momento do contato em
que for possível começar o tratamento deste assunto) os alunos recebem o
texto impresso com a tarefa reproduzida neste apêndice e, na aula seguinte,
entregam a tarefa feita.
É muito comum comentarem ou perguntarem: “Ah!, a Lua estava min-
guante, não é, professor?”. Nunca respondo uma pergunta desse tipo, cuja res-
posta pode, e deve, ser obtida por trabalho e inspeção direta da própria pessoa
interessada na resposta. Como falei, queremos que outras partes e funções de
sua psique e cognição sejam provocadas e outras habilidades exercitadas197.
Frente a perguntas desse tipo, então, remeto os alunos para posteriores acom-
panhamentos da Lua; depois analisaremos “em que fase ela está”198.
Parte da segunda tarefa para casa – que, na verdade, é uma atividade
que vai perdurar durante todos os dias, até o final da intervenção – implica em
eles desenharem a Lua (todo dia, de preferência no mesmo horário – enquan-

197 Por isto, mesmo quando chega o momento de “dar” respostas, não as exponho diretamente, e, sim,
adoto a velha e eficiente maiêutica socrática – adaptada aos nossos tempos, com pequenas variações,
e denominada abordagem problematizadora. Então, através de sequências de perguntas e reflexões
– para que os alunos tenham sempre tempo e oportunidade para experimentar caminhos interiores
e formular testes pessoais e, desta forma, participarem mais ativamente na construção do próprio
conhecimento – vamos chegando aos esclarecimentos procurados. É frequente outros esclarecimen-
tos surgirem no percurso, pois muitas áreas são estimuladas com aquelas “provocações”. Quando o
professor consegue dominar a própria insegurança e ansiedade, aquele processo dialogado e dialético
continua sendo dos melhores, pedagogicamente falando.
198 Embora as pessoas vejam a Lua perto do horizonte oeste, logo depois que o Sol se pôs, elas acham que
a Lua pode estar minguante. Elas não têm a menor noção e não têm como saber, na verdade. Por isto,
uma resposta direta àquela pergunta não vai ajudá-las a entender, de fato, isto é, incorporadamente,
o que está ocorrendo e porque aquela “lua” não pode ser minguante. Portanto, aguardo o momento
em que aquele esclarecimento possa ser dialogado com elas – que será após elas próprias terem se
esclarecido através das observações que lhes orientei para fazerem.

410
Abordagem Antropológica

to isto for possível) tal como a estão vendo, em um pedaço de papel de 10cm
X 10cm. Com estes desenhos vamos montando o calendário lunar daquela
turma. Em uma parede longa, colo 31 números alinhados horizontalmente
– escritos também em papel daquelas dimensões (embora isto não seja essen-
cial). Então, sob cada número (que representa o dia do mês), vamos colando
o desenho daquele dia, o qual escolhemos em conjunto199. Após dois a três
meses já é possível que os alunos comecem a perceber que vai se configuran-
do um padrão de sequência de “formatos” da Lua.
Uma das ideias básicas dessa prática é estimular outras associações e
ajudar as pessoas – em geral pouco ou nada habituadas a um contato viven-
ciado com ritmos celestes – a concretizarem esses ritmos, através de um re-
gistro que reproduz as primeiras organizações na medida do tempo feitas por
praticamente todas as culturas humanas. Esta segunda tarefa também está ex-
plicitada abaixo. Nos capítulos 1 e 3 os interessados encontrarão maiores es-
pecificações sobre essa prática de montagem do calendário lunar da turma.
Na terceira aula os alunos chegam sabendo, por inspeção direta, que a
Lua não pode estar na fase minguante, isto é, que a Lua não pode estar “min-
guando”, sumindo, porque sua parte iluminada está aumentando. E eu não
precisei falar nada a respeito! Auxiliados pelas orientações dadas, eles che-
garam por si mesmos ao conhecimento que era ansiado e possível até aquele
momento200.

199 Na falta de uma parede suficientemente longa para comportar os 31 papéis em linha reta, estes podem
ser colados fazendo-se “caminhos” na parede ou em um pedaço de papel largo, como o de embrulho,
ou ainda eles podem ser colados dispondo-os em duas ou mais linhas paralelas. Por exemplo, na Fi-
gura 2 da subseção 1.1 (Por um ensino de Astronomia Vivencial) do capítulo 1 é mostrada uma foto
onde um calendário lunar foi feito sobre papel madeira (de embrulho) no qual não havia espaço para
os números serem dispostos em uma linha reta; neste caso, cada mês fica representado em um papel
madeira daqueles. A desvantagem aqui é que esta disposição não favorece que se enxergue a formação
de um “padrão lunar” após alguns meses – e esta percepção é um fruto muito importante a se buscar
com a presente prática. Às vezes, contudo, é impossível montar-se o calendário em linha reta; nestes
casos é preferível montá-lo e trabalhar-se os muitos outros elementos que eles possibilitam, do que
não montá-lo; além disto, pode haver um tipo de vantagem em montar-se o calendário em um papel
como o mostrado naquela foto: é fácil de retirá-lo da sala, se necessário (porque, por exemplo, esta é
ocupada por outros grupos que, eventualmente, podem não respeitar o trabalho feito por colegas de
outros turnos), e guardá-lo até a próxima aula. Na foto da figura 7 do capítulo 3 há uma situação de es-
colha do desenho que irá para a parede. É importante destacar que essa escolha cuida de democratizar
a inserção dos desenhos, de modo a garantir que, ao longo do tempo, cada um da turma tenha alguns
desenhos seus compondo o referido calendário, que é coletivo.
200 Claro que mais adiante, na intervenção, vou trabalhar com eles o motivo de existirem fases da Lua
para quem a vê desde a Terra. Contudo, mesmo esse trabalho, é importante destacar, será feito sempre
na base de atividades corporais e materiais instrucionais concretos – deixando por último a discussão

411
Luiz Carlos Jafelice

Nesse meio tempo, através de outras tarefas apropriadas201, os alunos


vão criando o hábito de olhar para o céu e experimentar como os ritmos cósmicos
mais próximos (movimentos aparentes do Sol, da Lua, planetas e constela-
ções) se dão. Na verdade, bem mais que isto: uma das ideias centrais nesta
abordagem (e, portanto, na estratégia aqui especificada) costuma ser a de
levá-los a fazer uma coisa – no caso, acompanhar a Lua, descobrir em que
fase ela está, desenhá-la, observar como muda sua posição em relação a um
conjunto de estrelas de fundo etc. – com o intuito (se a estratégia for bem-su-
cedida) de que, no fundo, eles façam outra – isto é, principalmente outra: recu-
perem e incorporem, a princípio sem estarem conscientes, uma relação mais
interiorizada e ampla dos pulsares cósmicos; pulsares que estão tão próximos
(no corpo e espírito de cada um!) e ao mesmo tempo são tão imperceptíveis,
mas que podem ser revivificados e desfrutados com relativa naturalidade e
simplicidade, se a reaproximação a eles se der de modo mais especialmente
planejado e cuidadoso em priorizar tal finalidade.
Os ritmos astronômicos necessitam de tempo para serem sentidos e
conhecidos202. No fundo, precisam de pelo menos dois ciclos anuais inteiros,

sobre aqueles desenhos típicos nos livros didáticos. Mas isto tudo só será feito quando os alunos
estiverem em outra etapa no aprendizado desses assuntos. Está além do escopo deste livro especificar
esse outro tipo de atividades pedagógicas. Boa parte dessas práticas, envolvendo esse outro tipo de
trabalho com conteúdos específicos de astronomia, constam de Jafelice (2005b).
201 São tarefas envolvendo atividades não-verbais e textos para trabalhar elementos de mitologia, história
da humanidade, história das religiões, cronobiologia, origem do universo etc. Em grande medida elas
são comentadas no apêndice 4 (O princípio: primeiras aulas e artifícios adotados) e referências lá cita-
das; algumas daquelas tarefas e práticas estão adaptadas e desenvolvidas nos outros capítulos deste
livro.
202 Essa constatação – pode-se dizer óbvia –, de que é preciso (muito) tempo para se conhecer os rit-
mos astronômicos, não me era tão evidente, ou suas implicações não me eram de todo tão claras;
eu a concretizei devido a uma fala de Néstor Camino, durante a apresentação de um trabalho seu (o
qual, porém, enfatizava principalmente o ponto de vista cognitivo associado àquele conhecimento)
(CAMINO, 2000). Mas, minha direção e impulso de chegada a essa conscientização eram bastante
distintos dos que inspiram as abordagens técnico-cientificistas habituais na área, como expus na se-
ção 1 (Breve histórico). Por isto, e em conjunto com meus outros percursos e perspectivas, também lá
expostos, fui, então, desenvolvendo diversas associações adicionais. Notem: tempo é elemento cons-
titutivo da astronomia também pedagogicamente falando – pelo menos para uma abordagem como a
aqui proposta. Vamos, então, seguir o que esse tempo nos pede e também nos propicia. Vamos dar
tempo para as muitas (re)descobertas que precisam ser vividas, antes que quaisquer outras concei-
tuações. Por isto, a estrutura de um curso, ou conjunto de aulas, não deveria se pautar pelos textos
ou sequências de conteúdos específicos comuns em livros ou cursos de astronomia – como tenho
repetido, também aqueles serão aproveitados no seu devido tempo, mesmo assim, entretanto, desde
um enfoque muito distinto da educação formal dominante, a qual, na minha opinião, corre o risco de
perpetrar descalabros formativos. Ao passo que se cada pessoa receber orientação apropriada para ir
tendo pelo menos a noção de como ela própria experimenta as inúmeras vivências associadas a um

412
Abordagem Antropológica

senão a noção e associações correspondentes, de que há alguns padrões –


vontades, sentimentos, luminosidades no ar, estados de ânimo, aromas etc.
– que estão se repetindo de modo recorrente e interconectado, com periodi-
cidade anual, não podem ser formadas a contento. Contudo, mesmo em uma
intervenção mais curta, desde que o contato tenha alguma regularidade, há
bastante que pode ser feito nessa direção. Um ponto básico é centrar-se na
pessoa e no fazer e no sentir, no vivenciar, antes que no explicar antecipado,
com palavras, conceitos e racionalizações203.
Dois procedimentos que considero fundamentais nessa revivificação
e manutenção do contato com o céu, consigo mesmo e com conexões am-
bientais diversas e amplas – nos processos de autoconhecimento e consciên-
cia ambiental maior espontaneamente desencadeados através dessas práticas
–, são dar tempo ao tempo e priorizar o conhecimento vivencial do aluno, cons-
truído através de orientações adequadas e sem o oferecimento prematuro de
respostas conceituais.
As tarefas tratadas neste apêndice, devidamente adaptadas aos interes-
ses e faixa etária dos envolvidos, podem ser aplicadas com sucesso a quais-
quer grupos de alunos, como já vi ocorrer, na prática, várias vezes.
Reproduzo, a seguir, os textos relativos às duas primeiras tarefas para
casa. O texto da primeira tarefa – a qual, na verdade, envolve a realização de
várias atividades – está integral. O texto da segunda tarefa, porém, está in-
completo, porque na segunda tarefa – e também na terceira etc. – começo a
trabalhar com os alunos textos sobre concepções cosmogônicas de origem
mítica (extraídos, em geral, do livro de Roberto de Andrade Martins, 1994,
citado na seção Sugestões de leituras), sobre a Lua e a mística lunar (extraídos
de Eliade, 1993b, citado na seção Referências) etc. [Estes complementos das
tarefas seguintes estão detalhados, em grande parte, no apêndice 4 (O prin-

“fluir temporal” desde onde este se concretiza – cultural, biológica, psicológica e historicamente –
para os seres humanos (i.e., a partir das relações entre céu, terra, ambiente e vida – interior e exterior)
e, através dos trabalhos de campo, entrevistas, exemplos de outras culturas, trocas em sala de aula, ir
percebendo como seus parentes, vizinhos, amigos, conhecedores tradicionais, colegas de turma etc.
o fazem, podemos ter alguma esperança maior – embora não certeza, é claro – de que essa pessoa
possa começar a se colocar no lugar do “outro” para entender ou aceitar outras formas de se enxergar
as “mesmas” coisas.
203 Como bem dizem os sempre inspiradores Saló e Barbuy (1977, p. 25): “primeiro conhecer o bosque,
as noites estreladas e os rios serpenteantes antes que as plantações alinhadas, os canais de irrigação e
os letreiros luminosos para que a expressão surja como linguagem sem idioma”.

413
Luiz Carlos Jafelice

cípio: primeiras aulas e artifícios adotados)]. Ao final das respectivas aulas204,


essas tarefas são distribuídas, lidas e explicadas.

Tarefa 1. [Passada na 1ª aula.] Para ser entregue na próxima aula (dd/


mm/aaaa).

1. A Lua, ah! a Lua ...


 Ache a Lua no céu. Desfrute dessa visão. Faça esta tarefa
com tempo que permita esse prazer. Antes de tudo, a Lua, os astros, o céu,
diurno e noturno, são para serem redescobertos, curtidos, inicialmente sem
nenhum pensamento nem expectativa.
Apenas (re)estabeleça contato com o céu.
Imagine-se habitante do Brasil de uma época um pouco antes do des-
cobrimento; há mais de quinhentos anos, portanto. Pode ser mais difícil do
que parece.
Experimente. Insista.
Pare.
Suspenda outros afazeres e preocupações. Se permita desfrutar esse
contato.
 Repita isso no dia seguinte e em outros dias.
 Prepare uma breve descrição por escrito – e também dese-
nhando, compondo música, cantando, dançando, encenando, esculpindo
etc., se quiser – dessa sua vivência para compartilhar com os colegas.
[Durante a explicação da tarefa, comento: você deve me entregar, na
próxima aula, essa descrição por escrito. Se além desse relato você expressou
essa sua vivência através de alguma outra forma, compartilhe-a conosco tam-
bém.]
2. Vênus, hum ..., quem serás?
 Às vezes Vênus se nos apresenta como estrela d’alva, apare-
cendo no céu um pouco antes do Sol nascer, outras vezes ele é chamado de es-
trela vespertina, porque fica visível logo após o Sol se pôr. Em certas épocas ele
nem aparece no céu. Em qualquer um dos casos ele nunca fica muito longe do

204 Para a primeira aula, como, pela linha que proponho, não devo antepor explicações ou conceituações,
aproveito para fazer algumas práticas não-verbais – no caso, envolvendo desenhos e criação de histó-
ria coletiva pelo grupo – sobre concepções cosmogônicas e sobre o céu, e enceno a fase caótica, de
pré-criação do cosmo, conforme é recorrente nas cosmogonias de várias culturas. Estas práticas que
adoto nesse tipo de introito estão detalhadas no apêndice 5 (Origens: imagens, palavras, expressões
culturais e psicológicas) e referências lá citadas. Em parte elas também são adaptadas e apresentadas
nos capítulos 2 e 3 deste livro.

414
Abordagem Antropológica

Sol no céu. Descubra se atualmente Vênus está como estrela d’alva, vespertina
ou não está visível.
 Uma vez descoberto isto, e se ele estiver aparecendo, obser-
ve Vênus também no dia seguinte e em outros dias. (Se ele não estiver visível,
pastore o céu diariamente, nas proximidades do Sol, e passe a acompanhar
Vênus dia a dia assim que ele voltar a aparecer.)
[Comento ainda: neste segundo item, em princípio, não há nada para
você me entregar. Mas, se você expressou tal vivência de alguma forma e quer
mostrá-la a nós, traga-a.]

3. Você sabia?
Pergunte a conhecidos, pelo menos a umas duas ou três pessoas, que
não fazem parte deste curso/disciplina/intervenção, as questões abaixo (mas
sem inibir nem induzir nenhum tipo de resposta; deixe que as pessoas falem
espontaneamente sobre esses assuntos):
 Qual sua relação com a Lua? (Anote as principais
respostas.)
 Qual sua relação com a estrela d'alva ou com a vésper?
(Anote as principais respostas.)
 Para quê servem as estrelas? (Anote as principais
respostas.)
 Se você tiver alguma outra ideia, ou tipo de pergunta que
lhe ocorrer fazer, realize-a e anote-a também.
Você também deve compartilhar essas suas anotações com os colegas
na próxima aula.
[Comento também: ou seja, você deve me entregar, na próxima aula,
os resultados, por escrito, de todas as entrevistas que fez sobre os três (ou
quatro) subitens deste terceiro item.]

Tarefa 2. [Passada na 2ª aula.] Para ser entregue na próxima aula (d’d’/


mm/aaaa).

1. Desenhando a Lua

 Esta tarefa é para ser feita todos os dias, a partir deste segundo
dia de aula, até o final desta intervenção (curso; minicurso; disciplina; etc.).

415
Luiz Carlos Jafelice

Esta tarefa é bem diferente da primeira. Naquela, se estimula que você


retome contato com a Lua e as coisas do céu apenas para desfrutar, para cur-
tir, sem ficar pensando ou refletindo a respeito do que está fazendo, simples-
mente sentindo o mais plenamente possível o contato com o céu e com você
mesma(o), isto é, vivendo tranquilamente as sensações, sentimentos e esta-
dos de espírito que aquele contato desperta em você.
Esta segunda tarefa também deve ser desfrutada, claro, mas deve ser
feita com um espírito um pouco diferente. Aqui, você deve atentar para acio-
nar conscientemente outras percepções. Também ela – como a primeira –
deve ser feita diariamente, porém sempre depois de você ter feito o contato
anterior, de pura curtição, com a Lua e o céu205.
Nesta tarefa, você deve desenhar a Lua, da forma em que a está vendo,
em um pedaço de papel de 10cm X 10cm.
Depois de desenhá-la, deve anotar, no verso desse papel, a data, o ho-
rário, o lugar e a direção em que você fez aquele desenho (direção é aquela em
que você olhou, no céu, em relação a alguma referência terrestre – os fundos
de sua casa; bem no alto do céu; entre o coqueiro e o poste da praça etc.).
Você não precisa escrever seu nome nesse papelzinho, se não quiser. Mas, se
for fazê-lo – ou qualquer outra coisa escrita nele – precisa estar no verso do
papel. Na frente do mesmo, fica só seu desenho da Lua, daquele dia.
O objetivo desta tarefa é, após juntarmos os desenhos de todos os alu-
nos, ao longo de muitos dias, montarmos o calendário lunar desta turma206.
Ele é um calendário coletivo. Por enquanto, aguarde. A montagem será feita
entre todos juntos, em aula. Sua contribuição, nesse meio tempo, é fazer seus
desenhos diários.
Enfim, desenhe diariamente a Lua, o mais fielmente possível, como a
vê no céu em cada dia. Se não a encontrou no céu em algum(s) dia(s), porque

205 Por isto, leitora ou leitor, atenção para dois pontos: oriente devidamente os alunos sobre os comen-
tários que constam desse parágrafo e não misture esta tarefa com a primeira. Repetindo: passe esta
tarefa somente na segunda aula (isto é, no segundo encontro – em um outro dia – que tiver com o
grupo) e reforce que ao fazerem-na, os alunos devem fazer sempre antes a primeira tarefa – ou melhor:
os dois primeiros itens da Tarefa 1 (evidentemente sem a parte de redigirem de novo uma descrição
por escrito), que incentivam um reencontro de contemplação e imersão com as coisas do céu.
206 Vide acima, neste apêndice, maiores comentários sobre a elaboração desses calendários lunares, obje-
tivos e implicações da prática; vide também nota de rodapé associada àqueles comentários, onde dou
explicações adicionais e referências cruzadas para outras partes deste livro; vide ainda Jafelice (2004;
2005b) sobre o assunto.

416
Abordagem Antropológica

ela não apareceu nas vezes em que você a procurou ou porque estava nublado
ou chovendo, mesmo assim desenhe um pedacinho do céu, do jeito que você
o está vendo (“perto” de onde a Lua “deveria estar”), no papel, para represen-
tar o que você viu também naquele(s) dia(s) em que não pôde ver a Lua.
Aproveite esta tarefa observacional e preste atenção também em tudo
que vai mudando na Lua de dia para dia e como tais mudanças se dão confor-
me os dias passam (e, às vezes, mesmo durante um único dia, entre seu nas-
cente e seu poente). Atente para a mudança na forma, ou no aspecto, da Lua;
como tal aspecto muda; como o horário em que se vê a Lua em certa altura
no céu muda; como muda a posição da Lua em relação a um dado conjunto de
estrelas de fundo (que você escolhe como referência, a cada 2 ou 3 dias); como
mudam outros fatores relacionados à Lua (cor, brilho, tamanho, caminho que
ela descreve no céu, a “inclinação” das “pontinhas” dela e/ou de manchas nela
no céu, horários e locais em que nasce e se põe etc.) e quaisquer outras mudan-
ças que você observar com o passar do tempo.

Últimas orientações
Aproveite estas tarefas também para ir restabelecendo e incorporando
a sensação de um dos ritmos cósmicos fundamentais para quem vive na Terra
– o ritmo lunar, que contém vários sub-ritmos, na verdade.
Não se prenda à definição convencionada sobre “as quatro fases da
207
Lua” . Como destacado no item 16 do anexo A do capítulo 3, a aparência

207 Esta é outra tentativa de sistematização (reducionista) grega que herdamos. Como este tipo de con-
cepção, hoje genericamente denominada greco-cartesiana ou apenas cartesiana, veio a caracterizar o
que se entende por ciência na modernidade e estamos constantemente expostos à sua forma de ver o
mundo, achamos que aquela convenção das fases lunares não é arbitrária, é constitutiva, explica ou es-
clarece como as coisas são, quando, de fato, aquilo não tem nada de ontológico, nem na circunscrição
científica do que seja ontologia. Ou seja, a Lua não tem, objetivamente falando, quatro fases (ou qual-
quer número delas que seja); estas não fazem parte de uma propriedade da Lua; é uma aparência, algo
relativo, devido à posição de onde um observador enxerga a mudança de posicionamento da Lua em
relação à “linha” Terra-Sol que ocorre em um plano próximo a essa “linha”. Aquela convenção, então,
consiste apenas em se selecionar quatro instantes – interessantes pela geometria particular envolvida
no posicionamento relativo entre Lua, Terra e Sol (quando “observado” desde certo ponto de vista
“do espaço”, bem entendido, i.e., de fora da Terra – onde não costumamos frequentar; portanto, “vi-
são” essa dependente de imaginação espacial e abstração) – dentre infinitos outros. Foi um proceder
com inegável importância histórica e interesse intelectual ainda e sempre atual, mas que precisa ser
superado enquanto prescrição descritiva, pois não atende outras necessidades contemporâneas bási-
cas, de teor qualitativo, não cartesiano e relativista, na construção de significados. Ainda sobre aquelas
“fases”, muitas pessoas não entendem as divisões das “luas” que aparecem nos calendários. Perguntam
com frequência: “por que a lua cheia dura uma semana se a gente só enxerga ela cheia mesmo uns dois
ou três dias por mês?” (o mesmo tipo de dúvida, é claro, se aplica às outras fases). (Sem dizer que as

417
Luiz Carlos Jafelice

(da parte iluminada) da Lua muda a todo instante para nós, que a vemos da
Terra. Quer dizer, a Lua não tem apenas as quatro fixas fases, ela tem infinitas
faces; ou, se preferir, uma só, com sombreamentos e matizes ininterrupta e
ciclicamente cambiantes.
Conforme o tempo passa, os dias passam, preste atenção também em
si mesma(o) e se há alguma relação entre seus estados de espírito e as mudan-
ças que você vê que estão acontecendo com a Lua ou com o Sol ou no céu,
em geral.
Preste atenção também se você observa mudanças nas plantas e nos
animais conforme o tempo passa, em relação com as mudanças da Lua ou
outras mudanças celestes que você perceber.
Não force, nem invente, nenhuma dessas mudanças – e se notar mes-
mo alguma mudança, não se preocupe em arrumar explicações ou em querer
interpretá-la como sendo fruto de correlações causais habituais. Apenas tente
perceber se você nota, de fato, alguma dessas eventuais mudanças ou não.
Se nada notar, não se preocupe. Dê tempo ao tempo. Além disto, há muitas
formas de nos relacionarmos com o que existe. O importante, no caso, é você
continuar a se dedicar à realização das tarefas e a desfrutar o que elas lhe pro-
piciarem.

pessoas sequer têm noção de que a “lua cheia” propriamente dita, isto é, a Lua na configuração física
orbital em que ela é definida como estando “totalmente cheia”, só existe enquanto tal em um único
instante, tão fugaz e inapreensível quanto o presente! É esse o instante que os anuários astronômicos
indicam como sendo o da lua cheia – ou o respectivo instante de qualquer uma das outras “fases lu-
nares”.) Com efeito, aquele reducionismo nos induz ao engano de achar que a Lua permanece com a
aparência de “cheia” durante todo o intervalo de tempo definido para a “lua cheia” – isto é, engano que
perdura só enquanto a pessoa não se dispuser a olhar para o céu; quando o faz, ela descobre uma con-
tradição entre definição e realidade que não sabe como explicar. Recentemente tomei conhecimento
de uma discussão entre astrônomos profissionais preocupados com o fato de que em alguns sítios na
internet e livros didáticos estavam aparecendo definições para outras fases da Lua, adicionais às qua-
tro habituais. Cogitaram em oficializar um aumento no número das fases lunares sob o argumento de
que isto ajudaria a comunicação entre as pessoas e a elas identificarem em que etapa de uma lunação
a Lua se encontra em cada dia. A mim parece óbvio que não será aumentando o número das fases da
Lua (e, portanto, de denominações destas) – isto é, não será aumentando o número de vezes em que
vamos convencionar dividir e nomear a parte iluminada do disco lunar visto da Terra ao longo do ci-
clo lunar – que resolve esse tipo de coisa (embora uma mentalidade prescritivista desse tipo seja uma
tendência comum entre cientistas naturais). Ou será que se em vez de “quatro fases lunares” houvesse,
por exemplo, “oito fases” – definidas nas mesmas e únicas bases em que tais “fases” podem ser defini-
das, mas inventando-se mais quatro nomes para as novas fases –, as pessoas finalmente entenderiam
do que se trata aquele fenômeno e facilmente conseguiriam identificar no céu em qual das oito fases a
Lua está hoje? Este é mais um caso, entre inúmeros outros, em que é preciso abandonar a compulsão
científica por quantificação (além da presunção de que é ela que diz como as coisas do mundo são de
verdade) e começar a entender o fenômeno em questão (neste caso, felizmente, muitíssimo acessível)
simplesmente vivenciando-o – como comento acima –, de preferência desfrutando-o, e depois tam-
bém refletindo sobre ele, é claro, mas sem sofreguidão numérica (nem pretensão do absoluto).

418
Abordagem Antropológica

Tente, ainda, enxergar as coisas de uma outra forma. Pare um pouco


de pensar, refletir e raciocinar e deixe-se envolver por uma integração maior
entre tudo que existe no universo, não só na Terra ou no plano físico, mas
incluindo também a Lua, você, o Sol, seus sonhos pessoais, as estrelas, o am-
biente, os fenômenos celestes, os anseios humanos, o céu, os seres em geral e,
se possível, toda a conexão cósmica interdependente que existe.
Faça todas estas tarefas visando recuperar, de modo vivencial, uma
inter-relação maior e plena entre todos os seres vivos – incluindo você! – e as
coisas da Terra, do céu, da imaginação, da intuição e do cosmo inteiro.
Boas vivências!
E lembre-se de ir sempre registrando – por escrito e/ou em desenhos,
movimentos, argila etc. – tudo que você intuir, descobrir, sentir, pensar, criar,
e, além de compartilhar isso tudo com os outros à sua volta, traga para com-
partir também conosco, nos nossos vários encontros futuros.
Obrigado.

419
Luiz Carlos Jafelice

Apêndice 7

Protótipo para planejamento de aulas ambientais:


calendários tradicional e científico

A planilha apresentada neste apêndice é uma sugestão para a prepara-


ção de aulas ambientais208 que sejam guiadas principalmente com base nos
conhecimentos tradicionais209. Espero que ela sirva como modelo para quem
quiser alguma orientação sobre como levar uma visão antropológica para a
prática escolar. Notem, contudo, que tal planilha está incompleta. Ela é ape-
nas um apoio de partida210.
A comparação com eventos astronômicos e outros, de caráter cientí-
fico, se deve ao fato de estarmos inseridos em uma cultura que os têm como
referência básica. Embora a presente abordagem se propõe a questionar essa
hegemonia e a intervir nessa mentalidade, a ideia não é a de abandonar ou
ignorar esses elementos da cultura dominante – a ideia é ampliar, diversificar,
incluir e equilibrar –; afinal, aqueles fazem parte da educação formal que as

208 Lembrem-se que na visão defendida nesta abordagem, “ambiental” não se restringe a processos bio-fí-
sico-químicos que ocorrem na biosfera – e passíveis de serem plenamente compreendidos (em algum
grau ou etapa) essencialmente pela suposta objetividade da ciência convencional. Aqui, a interdepen-
dência cósmica – “para fora” do ser, da Terra e do plano físico e “para dentro” da alma, da vida interior
e de outros níveis de realidade – é pressuposta ser total. Portanto, para nós, educação ambiental lidará
também – e com ênfase particular, para tentar equilibrar o atual estado de coisas – com os necessários
descondicionamentos e reeducação da percepção, a integração das múltiplas dimensões do ser (a es-
piritual, afetiva, intuitiva, simbólica, mágica, àquelas atualmente mais valorizadas) e a construção de
uma nova visão de mundo, inclusiva e solidária desde uma perspectiva biocentrada e pluriepistemo-
lógica.
209 As informações sobre conhecimentos tradicionais que optei por explicitar na planilha correspondem,
por vários motivos, apenas a uma parte muito pequena das repassadas pelos conhecedores; servem,
porém, como breve exemplo. Conforme já mencionei na subseção 3.5 (Conhecimentos tradicionais, et-
noastronomia e arqueoastronomia), notem que os conhecedores tradicionais denominam experiências
aos sinais que leem no ambiente para fazerem seus prognósticos. Outro ponto importante a observar
é que dado o caráter holístico desse tipo de conhecimento, sua inclusão “amarrada”, “categorizada”,
em um formato de “planilha” evidentemente é uma tentativa inglória, e o resultado – embora, creio,
melhor do que não se explicitar nada daquilo – é limitado e inconcluso.
210 Quem for usar essa planilha em computador, pode adaptá-la diretamente de um dos exemplos gené-
ricos de aplicativos de agenda ou planejamento disponíveis na internet. Porém, na página de internet
que estamos elaborando ( JAFELICE, 2010b) disponibilizaremos a planilha em anexo, eventualmen-
te atualizada, para que os interessados possam copiá-la e modificar o que for necessário para sua apli-
cação. Embora, de minha experiência, o mais indicado para quem quiser experimentar esse tipo de
planificação em situação escolar real será elaborar sua planilha – seja para uso próprio ou coletivo, na
escola – em folha de cartolina, para tê-la sempre à mão.

420
Abordagem Antropológica

pessoas devem receber. Por isto, também os eventos convencionais (i.e., estu-
dados pela ciência convencional) estão incluídos.
Cuidado, porém, para não usarem a presente planilha como sugestão
para reforçar ainda mais a tendência ao pensamento dicotômico prevalecen-
te. A proposta, por trás dessa planilha, não é induzir a se pensar que haja pa-
ralelos entre os sistemas de conhecimento implícitos em cada um dos dois
calendários ou que um sistema seja redutível ao outro, nem referendado ou
referenciado pelo outro.
Atenção, então, se forem adaptar e usar essa planilha, para não confun-
direm saberes de domínios bastante distintos. Os conhecimentos tradicio-
nais são de caráter holístico e estão fundamentados em uma racionalidade
valorativa, bastante amparada em um pensamento de caráter analógico, onde
elementos factuais ganham sentido quando inseridos em uma visão de mun-
do maior, na qual a vida, o simbólico, o afetivo, são integrantes constituintes.
Os conhecimentos científicos são de caráter cartesiano e estão fundamen-
tados em uma racionalidade cognitivo-instrumental, que é factual, segundo
seu prévio recorte ontológico, e pressupõe as possibilidades de separabilida-
de completa entre sujeito e objeto e de estabelecimento de leis universais211.
Enfim, são domínios de conhecimento imiscíveis – isto é, epistemologica-
mente incomensuráveis. Não é possível reduzir um ao outro ou explicar um,
em todas as suas múltiplas instâncias, níveis e implicações de significados, a
partir do outro.
O quadro sugerido nesta planilha deveria ser montado no final de um
ano para ser usado ao longo do ano seguinte. Para isto, será necessário que vo-
cês pesquisem com antecedência e o mais extensivamente possível sobre os
conhecimentos tradicionais circulantes na região onde vocês lecionam212. Ao

211 Como bem alerta Shiva (2003, p. 25): “Além de tornar o saber local invisível ao declarar que não
existe ou não é legítimo, o sistema dominante também faz as alternativas desaparecerem apagando
ou destruindo a realidade que elas tentam representar. [...] o saber científico dominante cria uma
monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhan-
te à das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à substituição e destruição da
diversidade local”. Precisamos agir contra isto. Na esteira dessa imposição reducionista – ou como
exemplo contemporâneo representativo da mesma – estão os transgênicos e as justificativas científica
e eticamente inverossímeis – senão falaciosas e desonestas – associadas à pesquisa e disseminação
daqueles (LACEY, 2006).
212 Em Jafelice (2010b) constam orientações, esclarecimentos e exemplos para a pesquisa de caráter et-
nográfico que deve ser feita pelos professores interessados em incluir atividades envolvendo conhe-
cedores e conhecimentos tradicionais em seus planejamentos de aulas. [Esse tipo de material, infe-
lizmente, não consta de nenhuma publicação acessível, menos ainda se for para servir aos propósitos

421
Luiz Carlos Jafelice

mesmo tempo, vocês precisarão lançar mão de um anuário astronômico do


ano seguinte. Atualmente, há pelo menos um tipo de anuário regular dispo-
nível: o do Observatório Nacional (ON)213. Calendários agrícola e ecológico
convencionais também ajudarão.
A ideia, por trás dessa iniciativa, é prever e explicitar no planejamento
do ano seguinte as aulas de campo ou oficinas – de preferência realizadas em
várias ocasiões, distribuídas ao longo do ano – a serem comandadas por dife-
rentes conhecedores tradicionais do(s) município(s) onde vocês lecionam – ou,
na ausência destes, de algum outro lugar por perto, de onde vocês os conhe-
çam –, além das visitas dos mesmos à escola e em reuniões de pais.
Notem que a planilha214 diz respeito apenas ao 1º trimestre de 2008
e mesmo assim está incompleta, principalmente no calendário tradicional,

visados por uma abordagem como a aqui sugerida. Quem quiser experimentar terá que abrir o pró-
prio caminho; não muito diferente, na verdade, do que é na vida – lembremo-nos do “caminhante”, de
Antonio Machado, que comentei na subseção 2.4 (A teoria na prática: metodologia?) (MACHADO,
1917) – ou do que acaba acontecendo quase sempre nas iniciativas precursoras.] Aqueles saberes, em
grande medida e com frequência, têm características locais – portanto, conhecer alguns deles (por “ter
morado algum tempo lá”, “ouvido falar” ou livrescamente) para a região do Alto do Rio Negro, por
exemplo, ou para a do Pantanal, ou Vale do Ribeira, ou Seridó, é importante a título de comparação
e enriquecimento dos exemplos a serem dados aos alunos, mas não servirá de quase nada para uma
atividade pedagógica que priorizará a inclusão de conhecedores e conhecimentos locais nas escolas
da região onde vocês lecionam hoje. Além disto, é preciso manter em mente que para a presente
abordagem a recuperação daqueles saberes, apesar de indispensável, é consequência de dois objeti-
vos mais fundamentais, a saber: a valorização de quem os detêm e a promoção da integração entre as
gerações. Portanto, quem for planejar com essa postura precisa colher os conhecimentos tradicionais
com quem mora na comunidade em questão e ainda os mantêm vivos na memória – e melhor ainda
se essas pessoas continuam aplicando-os em suas vidas. Vide ainda Jafelice (2010a), além dos exem-
plos de interação com Secretaria de Educação Pública para participação em Semanas Pedagógicas e
de atuação junto à mídia local (conforme comento em nota de rodapé ao final da subseção 3.5) e de
criação de associação local ou busca de apoio às ali já existentes (como digo na nota final da subseção
2.1).
213 Na seção Sugestões de leituras forneço informações detalhadas sobre como adquirir esse anuário do
ON e comento sobre um outro, publicado pela Scientific American Brasil (até onde sei, em 2007 e
em 2009 – referentes, respectivamente, às efemérides astronômicas de 2008 e de 2010), mas o qual,
em princípio (por ter finalidades comerciais), aparentemente não tem continuidade regular garantida
pela editora.
214 Ela foi preparada com base em informações fornecidas por alguns dos conhecedores tradicionais de
Carnaúba dos Dantas (RN) e outras extraídas do Anuário Astronômico escrito por Júlio Klafke para
a revista Scientific American Brasil de dezembro de 2007. Os referidos conhecedores são: Rita Emília
da Conceição Nascimento (dona Rita de patrão), Josias da Silva (seu Josias), José Cirino Filho (seu
Zé Cirino), José Ladislau dos Santos (seu Deca Marinheiro), Adalgisio Elidio Dantas (seu Adalgiso)
e Manoel Martinho de Medeiros (seu Manoel). Optei por iniciar a planilha em janeiro, porque na
cultura em que estamos imersos esse é o nosso calendário (civil) de referência para nossas atividades
formais, em particular a estruturação do ano letivo. É preciso ter em mente, porém, que aquele não
é a referência para os ciclos sazonais, reprodutivos dos animais, agrícolas etc. Quando tive a ideia de

422
Abordagem Antropológica

como já falei. É necessário, então, aprontar uma planilha dessas, o mais com-
pleta possível, para o ano inteiro, antes de se começar o ano, e incluir-se no pla-
nejamento daquele ano as atividades correspondentes a cada período ali des-
tacadas.
Isto implica, dependendo das atividades envolvidas, prever-se várias
providências, como, por exemplo: a requisição de ônibus junto à prefeitura ou
secretaria de educação do município ou estado, acertos com colegas de outras
turmas ou de outras disciplinas, cruzamento com calendários de festividades
da cidade ou da escola, eventual arrecadação de fundos para pagar transporte
ou lanches para os envolvidos, obtenção de autorizações junto aos pais das
crianças, preparação da turma para o contato com os conhecedores e para as
aulas de campo ou oficinas que estes darão, acerto prévio com os conhecedo-
res sobre qual(is) o(s) dia/local/hora bons para todos, elaboração das tarefas
ou relatórios – seus e de seus alunos – após essas atividades, posterior discus-
são para eventuais correções nas próximas atividades desse teor etc.
Minha experiência com tais atividades aponta alguns pontos-chaves
que deveriam ser cuidados e passos que conviriam ser contemplados ao
incluí-las no planejamento, a saber: 1) os professores que as encaminharão
precisam investir em refazer a própria mentalidade sobre o assunto – pois,

elaborar tal planilha, não me ocorreu, a princípio, usar a representação calendárica circular, típica em
antropologia para registrar uma particular organização sócio-cultural tradicional – onde as atividades
de subsistência, de lazer, econômicas, cerimoniais etc. de uma dada cultura, ao longo de um ciclo anu-
al, são dispostas em um círculo e agrupadas em camadas concêntricas, em que cada “circunferência”
abriga atividade de uma categoria (definida segundo critérios da sociologia ou da antropologia, ine-
vitavelmente fragmentadores e reducionistas) e uma “fatia” qualquer indica sobreposição, no tempo,
das atividades adjacentes, na direção radial, naquela “fatia”. Adotar esse tipo de representação seria
o mais natural em uma abordagem como esta, porque aquela simboliza melhor uma concepção de
tempo cíclico, comum em comunidades tradicionais e a qual também nos interessa reavivar. Con-
tudo, mesmo quando me conscientizei disto, decidi manter o formato de planilha para organizar o
planejamento proposto neste apêndice. Essa decisão se deveu porque a representação circular está
muito distante do que é habitual para os professores e mais dificultaria do que ajudaria, ainda mais
para a implementação de algo novo como o aqui proposto. Preferi, então, manter a representação
linear, usual nos planejamentos escolares (e em nossa cultura em geral, que nutre uma concepção
de tempo histórico). Assim, esse formato favorece a exequibilidade desse planejamento para as fi-
nalidades pretendidas sem comprometer o sucesso da iniciativa nem desvirtuar os fundamentos da
presente abordagem – desde que quem o desenvolver esteja alerta para não sucumbir ao pensamento
único dominante nem abandonar o espírito que inspira tal abordagem, aberto, acolhedor de plurali-
dades, transdisciplinar, como tenho reiteradamente explicitado neste capítulo. (Em todo o caso, os
mais entusiastas deveriam experimentar montar os calendários da planilha sugerida abaixo em uma
única representação circular; neste caso, é claro, abrangendo um ciclo anual completo – e não apenas
três meses como exposto no modelo sugerido. Será exercício muito elucidativo para amadurecer a
compreensão desta proposta.)

423
Luiz Carlos Jafelice

nem suas formações nem o meio social ou a cultura escolar estão habituados
a dar tal relevância ao que é pejorativamente215 denominado “conhecimento
popular”, sinônimo de senso comum, ignorância, simplicidade epistemoló-
gica; 2) uma reformulação de mentalidade nessa mesma direção precisa ser
encaminhada com os alunos – afinal, eles são frutos da mesma cultura onde
todos estamos imersos; assim, sua ignorância e consequentes preconceitos
sobre o assunto também são os mesmos que a cultura como um todo fo-
menta; porém, se bem preparados, a receptividade dos estudantes é muito
construtiva; 3) ao procurarem os conhecedores216, peçam auxílio às pessoas
da comunidade – além de saberem quem detém esse tipo de conhecimento,
elas podem lhes ajudar a contactá-los; 4) é preciso sensibilidade para chegar
aos conhecedores e dialogar com eles para que ministrem aulas de campo
ou venham conversar com suas turmas217 – pois eles passaram uma vida de
discriminação e solidão epistemológica; não estão habituados a que profes-
sores e escolas venham procurá-los para serem professores, ainda mais que
muitos deles são analfabetos; contudo, se abordados com o respeito devido,
eles são muito receptivos e generosos, além de excelentes mestres, e ficam
muito felizes com esses encontros; 5) é preciso cuidado para enxergar aquele
tipo de conhecimento desde sua perspectiva epistemológica própria – e não
como alguma etapa tosca no processo de aperfeiçoamento do conhecimento
humano que culminará com “o saber correto” obtido pela ciência (como, por
exemplo, o da meteorologia, no caso das previsões do tempo, ou o da farma-
cologia, no caso das indicações de usos de plantas medicinais etc.); este tipo
de visão é muito comum, mas representa um equívoco e presunção enormes;
6) os alunos devem ser orientados para perguntarem sobre tudo que tiverem
curiosidade e para fazerem tantas anotações (escritas e desenhadas) quanto

215 E equivocadamente assim confundidos, pois “popular”, na acepção habitualmente adotada, não é
aquela aplicável aos etnoconhecimentos ou conhecimentos tradicionais.
216 Como já mencionei, também conhecidos, às vezes, por profetas, no interior nordestino.
217 Se puderem, prefiram sempre as aulas de campo; é frequente elas serem muito mais afeitas ao estilo
dos conhecedores, além de mais ricas. Eles costumam ter naturalmente um estilo de ensino que, em
nossa terminologia, denominamos peripatético. Com efeito, certa vez, José Adenilson de Medeiros,
professor de Carnaúba dos Dantas (RN), participante de nosso projeto, em uma das aulas de campo
em que levou uma de suas turmas para ter aula com seu Zé Cirino, conhecedor de lá, contou que
seu Zé Cirino lhe disse que preferia “falar desse tipo de coisa (no caso, ensinar sobre o que sabia das
experiências de prognóstico ambiental, uso das plantas medicinais, comportamento dos animais etc.)
andando” (MEDEIROS, 2009). É preciso, então, também, que nos adaptemos aos estilos e métodos
pedagógicos dos conhecedores quando recorrermos a eles para serem professores de nossos alunos e
nossos.

424
Abordagem Antropológica

possível durante as aulas; e, se for dada permissão pelos envolvidos, é impor-


tante também registrá-las com fotos, filmagens e gravações; 7) organizar com
os alunos, posteriormente, os resultados dessas aulas e, se possível, socializá-
los com o resto da escola; 8) cobrar dos alunos tarefas sobre aquelas aulas; 9)
preparar com os alunos as próximas aulas, de preferência sempre envolvendo
diferentes conhecedores da região; e 10) é preferível permear todo o ano leti-
vo com o apoio dos saberes tradicionais em vez de incluí-los apenas em épo-
cas específicas – e muita atenção para não se transformar tais encontros nas
distorcidas datas do tipo “dia do índio”, “dia do folclore”, “semana da cultura”
etc., pois não é a nada disto que esta abordagem se refere.
Notem que qualquer conteúdo específico pode estar envolvido nessas
aulas: história, geografia, ciências, língua portuguesa, matemática, artes etc.
Isto não se deve só porque se está adotando uma abordagem transdisciplinar.
Os próprios conhecedores, com seu estilo narrativo, circulam com desemba-
raço – e segundo um olhar espontaneamente integrador – por diversas áreas.
Tampouco essas aulas devem ficar restritas a algum nível específico de ensi-
no. Portanto, atenção para não segregarem qual turma ou faixa etária pode
ter esse tipo de aula e não compartimentarem o que for abordado nas mes-
mas, nem quererem circunscrevê-las a âmbitos conteudísticos, nem acharem
que são só questões “ambientais”, no sentido em que este termo costuma ser
convencionado e restrito, que vão ser tratadas nessas aulas. E mantenham em
mente (e aproveitem!): durante as mesmas vocês também serão alunos!
Atentem ainda para o fato de que o eixo dessas aulas não são conhe-
cimentos e, sim, pessoas! O objetivo maior é a valorização dos conhecedores.
Outro objetivo maior é a integração intergeracional entre as crianças, jovens e
os mais velhos que pode ser promovida – se conduzida com o espírito ade-
quado – a partir das trocas nessas aulas. Os conhecimentos em si mesmos
também vão ser valorizados, mas apenas como decorrência daquelas valori-
zação e integração prévias ou concomitantes e porque são relevantes para as
pessoas envolvidas.

425
Planilha: protótipo para planejamento de aulas ambientais: calendários tradicional e científico*

426
Luiz Carlos Jafelice

* Atenção: consulte as orientações e advertências referentes à interpretação e uso desta planilha no texto deste apêndice.
AUTORES

Maria Luciene de Souza Lima Freitas


Desde criança estudou em escola pública. Formou-se em Pedagogia pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte. Fez Mestrado Profissionalizante
em Ensino de Ciências Naturais e Matemática pela UFRN, bem como Gestão
Escolar pela mesma Instituição. É funcionária pública concursada da Rede
Estadual e Municipal em Natal. Lecionou desde a pré-escola até o ensino mé-
dio. Foi vice-diretora da Escola Estadual Alceu Amoroso Lima. Atualmente
ensina em Natal, na Escola Municipal Djalma Maranhão, em uma turma de 4º
ano, e na Escola Professora Maria Luiza Alves Costa, na Educação de Jovens
e Adultos.

Gilvana Benevides Costa Fernandes


Mestre em Ensino de Física e Astronomia pelo Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Ciências Naturais e Matemáticas da UFRN, é Licenciada em
Física pela UFRN. É professora de Física e Projeto Integrado da Rede Es-
tadual de Educação, no Centro Estadual de Educação Profissional Senador
Jessé Pinto Freire em Natal. Tem experiência na área de Educação, do ensi-
no fundamental à graduação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino,
atuando principalmente nos seguintes temas: educação e difusão do ensino.
Atualmente cursa pós-graduação em Gestão Pública na UFRN.

Luziânia Ângelli Lins de Medeiros


Bacharel e Licenciada em Psicologia pela UFRN, com Especialização em Psi-
cologia e Psicoterapia Transpessoal pela Associação Brasileira de Psicologia e
Psicoterapia Transpessoal (ABPT), tendo atuado na área Clínica por 8 anos
nesta abordagem. Foi professora das disciplinas de Psicologia do Desenvol-
vimento e Personalidade, na Escola Estadual Berilo Wanderley, em Natal,
para alunos do Magistério.  Realizou pesquisa de campo no mestrado com
os professores do Nível Fundamental I da Escola Estadual Alceu Amoroso
Lima, em Natal, tendo concluído o mestrado profissionalizante em Ensino
de Ciências Naturais e Matemática pela UFRN. Desde então é Coordena-
dora Pedagógica do Projeto de Educação Científica da Unidade de Natal da
Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), que
atende alunos do 6º ao 9º ano do Nível Fundamental da Rede Pública de
Ensino da Zona Oeste de Natal.

427
Luiz Carlos Jafelice
Bacharel em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo
(IFUSP), Licenciado em Física pela Faculdade de Educação da USP, Mes-
tre em Física das Partículas Elementares pelo IFUSP, Doutor em Astrofísi-
ca pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP,
Pós-doutorado em Astrofísica de Plasma no Instituto de Astronomia da Uni-
versidade de Cambridge, Inglaterra. Foi Professor de Física e Matemática
dos níveis fundamental e médio em escolas públicas e particulares da cidade
de São Paulo, Professor de Física do Centro de Ciências Exatas da Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Grupo de Pesqui-
sa “Astrofísica e Cosmologia” do Departamento de Física Teórica e Experi-
mental (DFTE) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Coordenador de projetos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente é Professor Associado junto
ao DFTE-UFRN, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências Naturais e Matemática da UFRN, Cofundador e Coeditor da Re-
vista Latino-Americana de Educação em Astronomia (RELEA) (eletrônica),
Coordenador do Grupo de Pesquisa “Ensino de Física e de Astronomia”
junto ao CNPq, Coordenador de projeto de difusão de astronomia cultural
junto ao CNPq, membro da Comissão de Ensino e Divulgação da Sociedade
Astronômica Brasileira (SAB), membro das Comissões 46 (Educação), 41
(História) e 55 (Divulgação) da União Astronômica Internacional (IAU). Há
mais de dez anos dedica-se exclusivamente à área de educação, com interes-
ses em antropologia, conhecimentos tradicionais, epistemologia, sociologia
da ciência e no desenvolvimento de abordagens pedagógicas interculturais
transdisciplinares.

428
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Oficinas Gráficas da EDUFRN
Editora da UFRN, em agosto de 2010.

Você também pode gostar