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A INVENÇÃO

DAS TRADIÇÕES
ERIC HOBSBAWN
E
TERENCE RANGER
(Organizadores)

Tradução de
CELINA CARDIM CA V ALCANTE

6 ª Edição

Ef)
PAZ E TERRA
©Cambridge University Press
Título do original: 7be i,zvemio,z of traditio,z
Tradução: Celina Cardim Cavalcanti
Produção Gráfica: Katia Halbe
Capa: Claudio Rosas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
A invenção das tradições organização de COLABORADORES
Eric Hobsbawn e Terence Ranger
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
(Coleção Pensamento Crítico; v. 55) DAVID CANNADINE é pesquisador do Christ's College e professor
de História da Universidade de Cambridge. Autor de Lords and Lan­
149 d/ords - The Aristncracr and The Tol<.'ns 1774-/967 (1980). dedica-se
atualmente a pesquisas sobre as cerimônias públicas e sua evolução.
84-0176 CDD-398.042
CDU-398.1 BERNARD S. COHN é professor de Antropologia da Universidade
de Chicago. Autor de muitos artigos sobre as interações da história e
da antropologia e sobre o estudo da sociedade.
Índices para catálogo sistemático
1. Tradições inventadas - Finalidades e objetivos ERIC HOBSBAWM é professor de História Econômica e Social do
l. Hobsbawn, Eric, org Birkbeck College. Universidade de Londres. e membro do cmpo de
II. Ranger, Terence, org. editores do periódico Past & Present.
III. Série
PRYS MORGAN é professor de História no University College. em
Swansea. País de Gales. Já teve publicadas várias obras em galês e co­
laborou com alguns capítulos para vários livros sobre a história do
País de Gales. Recentemente escreveu A Ne ..... History nf Wa/e.1: The
Eighteen-Century Renaissance ( 1981).
EDITORA PAZ E TERRA S.A.
Rua do Triunfo, 177 TERENCE RANGER é professor de História Moderna da Universi­
Santa Efigênia, São Paulo, SP - CEP: O1212-01O dade de Manchester. tendo já lecionado em Zimbabwe (Rodésia) e na
Tel.: (11) 3337-8399 Tanzânia. Entre seus livros sobre os protestos. a história cultural e re­
ligiosa e as transformações agrárias na África contam-se The Histori­
vendas@pazeterra.com.br ca/ Studr o{African Religion ( 1972), Dance and Societ.r in Eastern A (ri­
www.pazeterra.com.br ca ( 1975) e Witchcraft Belief in the History o( Three Continents (a ser
publicado).

2008 HUGH TREVOR-ROPER é agora Mestre de Peterhouse. (Saint Pe­


Impresso no Drasil / Printed in Drazil ter College). em Cambridge. sob o título de "Lord Dacre of Glanton".
Foi professor da cátedra régia de História na Universidade de Oxford.
7

ÍNDICE

1. Introdução: A Invenção das Tradições


- Eric Hobsbawm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

2. A Invenção das Tradições: a Tradição das Terras Altas


(Highlands) da Escócia - Hugh Trevor-Roper . . . . . . . . . 25

3. Da Morte a uma Perspel:tiva: a Busca do Passado Galês


no Período Romântico - Prys Morgan . . . . . . . . . . . . . . . . 53

4. Contexto, Execução e Significado do Ritual:


a Monarquia Britânica e a "Invenção da Tradição",
e. 1820 a 1977 - David Cannadine . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

5. A Representação da Autoridade na fndia Vitoriana


- Bernard S. Cohn . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

6. A Invenção da Tradição na África Colonial


-Terence Ranger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

7. A Produção em Massa de Tradições:


Europa, 1879 a 1914 - Eric Hobsbawm 271
9

1. Introdução: A Invenção
das Tradições
ERIC HOBSBAWM
Nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que
a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públi­
cas de que ela participe. Todavia, segundo um dos capítulos deste li­
vro, este aparato. em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX.
Muitas vezes, "tradições" que parecem ou são consideradas antigas
são bastante recentes, quando não são inventadas. Quem conhece os
"colleges" das velhas universidades britânicas poderá ter uma idéia da
instituição destas "tradições" (a nível local, embora algumas delas -
como o Festival o( Nine Lessons and Carols (Festa das Nove Leituras e
Cânticos), realizada anualmente, na capela do King's College em
Cambridge. na véspera de Natal - possam tornar-se conhecidas do
grande público através de um meio moderno de comunicação de mas­
sa, o rádio. Partindo desta constatação, o periódico Past & Present,
especializado em assuntos históricos, organizou uma conferência em
que se baseou, por sua vez a presente obra.
O termo "tradição inventada" é utilizado num sentido amplo,
mas nunca indefinido. Inclui tanto as "tradições" realmente inventa­
das, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que sur­
giram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e de­
terminado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se esta­
beleceram com enorme rapidez. A transmissão radiofônica real reali­
zada no Natal na Grã-Bretanha (instituída em 1932) é um exemplo do
primeiro caso: como exemplo do segundo, podemos citar o apareci­
mento e evolução das práticas associadas à final do campeonato britâ­
nico de futebol. É óbvio que nem todas essas tradições perduram; nos­
so objetivo primordial, porém, não é estudar suas chances de sobrevi­
vência, mas sim o modo como elas surgiram e se estabeleceram.
Por "tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica, auto­
maticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sem­
pre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado
histórico apropriado. Exemplo notável é a escolha deliberada de um
estilo gótico quando da reconstrução da sede do Parlamento britânico
no século XIX, assim como a decisão igualmente deliberada, após a II
Guerra, de reconstruir o prédio da Câmara partindo exatamente do
mesmo plano básico anterior. O passado histórico no qual a nova tra-
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<lição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. te, entre a "tradição" no sentido a que nos referimos e a convenção ou
Até as revoluções e os "movimentos progressistas", que por definição rotina, que não possui nenhuma função simbólica nem ritual impor­
rompem com o passado, têm sçu passado relevante, embora eles termi­ tante, embora possa adquiri-las eventualmente. f: natural que qual­
nem abruptamente em uma data determinada, tal como 1789. Contu­ quer prática social que tenha de ser muito repetida tenda, por conve­
do, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradi­ niência e para maior eficiência, a gerar um certo número de conven­
ções "inventadas" caracterizam-se por estabelecer com ele uma conti­ ções e rotinas, formalizadas de direito ou de fato, com o fim de facili­
nuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a si­ tar a transmissão do costume. Isto é válido tanto para práticas sem.
tuações novas que ou assumem a forma de referência a situações ante­ precedente (como o trabalho de um piloto de avião) como para as prá­
riores, ou estabel�cem seu próprio passado através da repetição quase ticas já bastante conhecidas. As sociedades que se desenvolveram a
que obrigatória. E o contraste entre as constantes mudanças e inova­ partir da Revolução Industrial foram naturalmente obrigadas a inven­
ções do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutá­ tar, instituir ou desenvolver novas redes de convenções e rotinas com
vel e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a uma freqüência maior do que antes. Na medida em que essas rotinas
"invenção da tradição" um assunto tão interessante para os estudiosos funcionam melhor quando transformadas em hábito, em procedimen­
da história contemporânea. tos automáticos ou até mesmo em reflexos, elas necessitam ser imutá­
A "tradição" neste sentido deve ser nfridamente diferenciada do veis, o que pode afetar a outra exigência necessária da prática, a capa­
"costume", vigente nas sociedades ditas "tradicionais". O objetivo e a cidade de lidar com situações imprevistas ou originais. Esta é uma fa­
característica das "tradições", inclusive das inventadas, é a invariabili­ lha bastante conhecida da automatização ou da burocratização, espe­
dade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas cialmente a níveis subalternos, onde o procedimento fixo geralmente é
fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O "costu­ considerado como o mais eficiente.
me", nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e vo­ Tais redes de convenção e rotina não são "tradições inventadas",
lante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora pois suas funções e, portanto, suas justificativas são técnicas, não ideo­
evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer com­ lógicas (em termos marxistas, dizem respeito à infra-estrutura, não à
patível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudan­ superestrutura). As redes são criadas para facilitar operações práticas
ça desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, conti­ imediatamente definíveis e podem ser prontamente modificadas ou
nuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. abandonadas de acordo com as transformações das necessidades prá­
Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que quando numa ticas, permitindo sempre que existam a inércia, que qualquer costume
aldeia se reivindicam terras ou direitos comuns "com base em costu­ adquire com o tempo, e a resistência às inovações por parte das pes­
mes de tempos imemoriais" o que expressa não é um fato histórico, soas que adotaram esse costume. O mesmo acontece com as "regras"
mas o equilíbrio de forças na luta constante da aldeia contra os senho­ reconhecidas dos jogos ou de outros padrões de interação social, ou
res de terra ou contra outras aldeias. Os estudiosos do movimento com qualquer outra norma de origem pragmática. Pode-se perceber de
operário inglês sabem que o "costume da classe" ou da profissão pode imediato a diferença entre elas e a "tradição". O uso de bonés prote­
representar não uma tradição antiga, mas qualquer direito, mesmo re­ tores quando se monta a cavalo tem um sentido prático, assim com0 o
cente, adquirido pelos operários na prática, que eles agora procuram uso de capacetes protetores quando se anda de moto ou de capacetes
ampliar ou defender através da sanção da perenidade. O "costume" de aço quando se é um soldado. Mas o uso de um certo tipo de boné
não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim em conjunto com um casaco vermelho de caça tem um sentido com­
nem mesmo nas sociedades tradicionais. O direito comum ou consue­ pletamente diferente. Senão, seria tão fácil modificar o costume "tra­
tudinário ainda exibe esta combinação de flexibilidade implícita e dicional" dos caçadores de raposa como mudar o formato dos capace­
comprometimento formal com o passado. Nesse aspecto, aliás, a dife­ tes do Exército - instituição relativamente conservadora - caso o novo
rença entre "tradição" e "costume" fica bem clara. "Costume" é o que formato garantisse maior proteção. Aliás, as "tradições" ocupam um
fazem os juízes; "tradição" (no caso, tradição inventada) é a peruca, a lugar diametralmente oposto às convenções ou rotinas pragmáticas. A
toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que "tradição" mostra sua fraqueza quando, como no caso dos judeus li­
é a ação do magistrado. A decadência do "costume" inevitavelmente berais, as restrições na dieta são justificadas de um ponto de vista
modifica a "tradição" à qual ele geralmente está associado. pragmático, por exemplo, alegando-se que os antigos hebreus não co­
f: necessário estabelecer uma segunda diferença, menos importan- miam carne de porco por motivos de higiene. Do mesmo modo, os ob-
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jetos e práticas só são liberados para uma plena utilização simbólica e manda quanto da oferta. Durante os últimos 200 anos, tem havido
ritual quando se libertam do uso prático. As esporas que fazem parte transformações especialmente importantes, sendo razoável esperar
do uniforme de gala dos oficiais de cavalaria são mais importantes que estas formalizações imediatas de novas tradições se agrupem neste
para a "tradição" quando os cavalos não estão presentes; os guarda­ período. A propósito, isto implica, ao contrário da concepção veicula­
chuvas dos oficiais da Guarda Real, quando eles estão à paisana, per­ da pelo liberalismo do século XIX e a teoria da "modernização", que é
dem a importância se não forem trazidos bem enrolados (isto é. inú­ mais recente, a idéia de que tais formalizações não se cingem às cha­
teis): as perucas brancas dos advogados dificilmente poderiam ter ad­ madas sociedades "tradicionais", mas que também ocorrem, sob as
quirido sua importância atual antes que as outras pessoas deixassem mais diversas formas, nas sociedades "modernas". De maneira geral, é
de usar perucas. isso que acontece, mas é preciso que se evite pensar que formas mais
Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um antigas de estrutura de comunidade e autoridade�. conseqüentemente,
processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se as tradições a elas associadas, eram rígidas e se tornaram rapidamente
ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição. Os histo­ obsoletas; e também que as "novas" tradições surgiram simplesmente,
riadores ainda não estudaram adequadamente o processo exato pelo por causa da incapacidade de utilizar ou adaptar as tradições velhas.
qual tais complexos simbólicos e rituais são criados. Ele é ainda em Houve adaptação quando foi necessário conservar velhos costu­
grande parte relativamente desconhecido. Presume-se que se manifeste mes em condições novas ou usar velhos modelos para novos fins. Insti­
de maneira mais nítida quando uma "tradição" é deliberadamente in­ tuições antigas, com funções estabelecidas, referências ao passado e
ventada e estruturada por um único iniciador, como é o caso do esco­ linguagens e práticas rituais podem sentir necçssidade de fazer tal
tismo, criado por Baden Powell. Talvez seja mais fácil determinar a adaptação: a Igreja /Católica. frente aos novos desafios políticos e
origem do processo no caso de cerimoniais oficialmente instituídos e ideológicos e às mudanças substanciais na composição do corpo de
planejados, uma vez que provavelmente eles estarão bem documenta­ fiéis (tais como o aumento considerável do número de mulheres tanto
dos, como, por exemplo, a construção do simbolismo nazista e os entre os devotos leigos quanto nas ordens religiosas);' os exércitos
comícios do partido em Nuremberg. É mais diflcil descobrir essa ori­ mercenários frente ao alistamento compulsório; as instituições anti­
gem quando as tradições tenham sido em parte inventadas, em parte gas, como os tribunais, que funcionam agora num outro contexto e às
desenvolvidas em grupos fechados (onde é menos provável que o pro­ vezes com funções modificadas em novos contextos. Também foi o
cesso tenha sido registrado em documentos) ou de maneira informal caso das instituições que gozavam de uma continuidade nominal, mas
durante um certo período, como acontece com as tradições parlamen­ que no fundo estavam sofrendo profundas transformações, como as
tares e jurídi'cas. A dificuldade encontra-se não só nas fontes, como universidades. Assim, segundo Bahnson.2 a tradicional evasão estu­
também nas técnicas, embora estejam à disposição dos estudiosos tan­ dantil em massa das universidades alemãs (por motivos de conflito ou
to disciplinas esotéricas especializadas em rituais e simbolismos, tais de protesto) cessou subitamente após 1848 devido às mudanças no ca­
como a heráldica e o estudo das liturgias, quanto disciplinas históricas ráter acadêmico das universidades, ao aumento da idade da população
warburguianas para o estudo das disciplinas citadas acima. Infeliz­ estudantil. ao aburguesamento dos estudantes, que diminuiu as ten­
mente, nenhuma dessas técnicas é comumente conhecida dos historia­ sões entre eles e a cidade assim como a turbulência estudantil, à nova
dores da era industrial. instituição da franca mobilidade entre universidades, à conseqüente
mudança nas associações estudantis e a outros fatores. Em todos esses
3

. Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados peÍos histo- casos, a inovação não se torna menos nova por ser capaz de revestir-se
nadores onde não haja ocorrido a "invenção" de tradições neste senti­
do. Contudo, espera-se que ela ocorra com mais freqüência: quando facilmente de um caráter de antigüidade.
um� �ransformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões
sociais para os quais as "velhas" tradições foram feitas, produzindo
novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando 1. Veja. por exemplo. G. Tihon. "Les religieuses en Belgique du XVllle au XX e siecle:
as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores Approche Statistique··. Belgisch Tijdschrift ,.. Nie1<·.ste Geschiedenis Reme Bi'/ge d'His­
institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capaci­ toirt' Contemporaine. vii ( 1976). pp. 1-54.
2. Karsten Bahnson. Akademische Aus=üge aus deutschen Unfrersitiits und Hochschu­
dade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de ou­ lorten (Saarbrücken. 1973).
tras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem 3. Registraram-se dezessete desses êrndos no século XVIII, cinqüenta no período de
transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da de- 1800 a 1848. mas apenas seis de 1848 a 1973.
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morações barrocas o Estado e a Igreja mesclavam-se num plano mais al­


Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de ele­ to, surge também um amálgama de elementos religiosos e patrióticos nes­
m entos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins tas novas formas de atividade musical e flsica.'
bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer Não nos cabe analisar aqui até que ponto as novas tradições po­
sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma dem lançar mão de velhos elementos, até que ponto elas podem ser
linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações simbóli­ forçadas a inventar novos acessórios ou linguagens, ou a ampliar o ve­
cas. Às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas lho vocabulário simbólico. Naturalmente, muitas instituições políti­
nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos for­ cas. movimentos ideológicos e grupos - inclusive o nacionalismo - sem
necidos pelos depósitos bem supridos d� ri!ual, simbolismo e princí­ · antecessores tornaram necessária a invenção de uma continuidade his­
pios morais oficiais - religião e pompa principesca, folclore e maçona­ tórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que ex­
ria (que, por sua vez, é uma tradição inventada mais antiga, de grande trapole a continuidade histórica real seja pela lenda (Boadicéia, Ver­
poder simbólico). Assim, o desenvolvimento do nacionalismo suíço. cingetó"rix, Armínio, o Q uerusco) ou pela invenção (Ossian, manuscri­
concomitante à formação do Estado federal moderno no século XIX, tos medievais tcheços). Também é óbvio que símbolos e acessórios in­
foi brilhantemente analisado por Rudolf Braun/ estudioso que tem a teiramente novos foram criados como parte de movimentos e Estados
vantagem de ser versado numa disciplina ("Volkskunde" - folclore) nacionais, tais como o h ino nacional (dos quais o britânico, feito em
que se presta a esse tipo de análise, e especializado num país onde sua 1740, parece ser o mais antigo), a bandeira nacional (ainda bastante
modernização não foi embargada pela associação com a violência na­ influenciada pela bandeira tricolor da Revolução Francesa, criada no
zista. As práticas tradicionais existentes - canções folclóricas, campeo­ período de 1790 a 1 794), ou a personificação da "Nação" por meio de
natos de ginástica e de tiro ao alvo - foram modificadas, ritualizadas e símbolos ou imagens oficiais, como Marianne ou Germânia, ou não­
institucionalizadas para servir a novos propósitos nacionais. Às can­ oficiais, como os estereótipos de cartum John Buli, o magro Tio Sam
ções folclóricas tradicionais acrescentaram-se novas canções na mes­ ianque, ou o "Michel" alemão.
ma língua, muitas vezes compostas por mestres-escola e transferidas Também não devemos esquecei a ruptura da continuidade que es­
para um repertório coral de conteúdo patriótico-progressista ("Na­ tá às vezes bem visível, mesmo nos topoi da antigüidade genuína. De
tion, Nation, wie vo/1 klingt der Ton"), embora incorporando também acordo com Lloyd.' os cânticos populares de N atai pararam de ser
da hinologia religiosa elementos poderosos sob o aspecto ritual (vale a produzidos na Inglaterra no século X VI I, sendo substituídos por hi­
pena estudar a formação destes repertórios de novas canções, especial­ nos, como os compostos por Watts e pelos irmãos Wesley, embora
mente os escolares). Segundo os estatutos, o objetivo do Festival Fede­ haja versões populares desses hinos em religiões preponderantemente
ral da Canção - isso não lembra os congressos anuais de bardos gale­ rurais, como o Metodismo Primitivo. Ainda assim , os cânticos natali­
ses'? - é "desenvolver e aprimorar a canção popular, despertar senti­ nos foram o primeiro tipo de canção folclórica a ser restaurada pelos
mentos mais elevados por Deus, pela Liberdade e pela Nação, promo­ colecionadores de classe média para instalá-los "nas novas cercanias
ver a união e a confraternização entre amantes da Arte e da Pátria". das igrejas, corporações e ligas femininas" , e daí se propagarem num
( A palavra "aprimorar" indica a nota de progresso característica do novo ambiente popular urbano "através dos cantores de esquina ou
século X IX.) dos grupos de meninos roufenhos que entoavam hinos de porta em
Desenvolveu-se um conjunto de rituais bastante eficaz em torno porta. na ancestral esperança de uma recompensa". Neste sentido, hi­
destas ocasiões: pavilhões para os festivais, mastros para as bandeiras, nos como "God rest ye merry, Gentleman" (O Senhor vos dê paz e
templos para oferendas, procissões, toque de sinetas, painéis, salvas de alegria) são novos, não antigos. Tal ruptura é visível mesmo em movi­
tiros de canhão, envio de delegações do Governo aos festivais, janta­ mentos que deliberadamente se denominam "tradicionalistas" e que
res, brindes e discursos. Houve adaptações de outros elementos anti­ atraem grupos considerados por unanimidade repositórios da conti­
gos: nuidade histórica e da tradição, tais como os camponeses." Aliás, o
Nesta nova arquitetura dos festivais são inconfundíveis os resqufcios das
formas barrocas de comemoração, exibição e pompa. E como nas come-
5 . Rudolr Braun. 11p. cir . pp. 336-7.
(, _ A . l . . Lloyd. Fo/A S1111!( ;,, En{?la11d ( Londres. ed. 1969). pp 1 34-X.
7 . É preciso f'a,er uma distinção entre esse caso e o d a restauração d a tradição por
4. Rudolf Braun, Sozialer und kulture/ler Wandel in einem /ãdlichen lndustriegebiet im motivos que. no fundo. revelavam o declínio dela. "A restauração. por parte dos fa,en-
/ 9. und 20. Jahrhundert, cap. 6 ( Erlenbach-Zurique, 1 965).
16

próprio aparecimento de movimentos que defendem a restauração das


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virtude da hostilidade geral contra o irracionalismo, as superstições e
17

t radições, sejam eles "tradicionalistas" ou não, já indica essa ruptura. ai. práticas de costume reminiscentes das trevas do passado, e possivel­
Tais movimentos. comuns entre os intelectuais desde a época românti­ mente até provenientes deles, aqueles que acreditavam fervorosamente
ca. nunca poderão desenvolver, nem preservar um passado vivo (a não nas verdades do Iluminismo, tais como liberais, socialistas e comunis­
ser. talve1. criando refúgios naturais humanos para aspectos isolados tas, abominavam tanto as velhas tradições quanto as novas. Os socia­
na vida a rcaica): estão destinados a se transformarem em "tradições listas, como veremos adiante, ganharam um l 9 de Maio anual sem sa­
inventadas". Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições berem bem como; os nacional-socialistas exploravam tais ocasiões
genuínas não deve ser confundida com a "invenção de tradições". Não com um zelo e sofisticação litúrgicos e uma manipulação consciente
é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos dos símbolos! Durante a era liberal na Inglaterra tais práticas foram
ainda se conservam. quando muito toleradas, na medida em que nem a ideologia, nem a
Ainda assim, pode ser que muitas vezes se inventem tradições não produção econômica estavam em jogo, considerando-se isso uma con­
porque os velhos costumes não estejam mais disponíveis nem sejam cessão relutante ao irracionalismo das ordens inferiores. As atividades
viáveis, mas porque eles deliberadamente não são usados, nem adapta­ sociáveis e rituais das sociedades de ajuda mútua eram encaradas ao
dos. Assim, ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor mesmo tempo com hostilidade ("despesas desnecessárias", tais como
das inovações radicais, a ideologia liberal da transformação social, no "gastos com festas de aniversário, desfiles, fanfarras e adereços", eram
século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos proibidas por lei) e com tolerância pelos liberais no que dizia respeito
aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser aos banquetes anuais, pelo fato de que "a importância desta atração,
preenchidos com tradições inventadas. O êxito alcançado pelos donos especial mente em relação à população rural. não pode ser negada" . 1
'

de fábricas Tories em Lancashire (ao contrário do que aconteceu com Entretanto vigorava um rigoroso racionalismo individualista. não só
os Liberais), depois de terem utilizado esses velhos vínculos em seu como base de cálculos econômicos, mas também como ideal social.
proveito, mostra que eles ainda existiam e podiam ser ativados - mes­ No Capítulo 7 estudaremos o que aconteceu no período em que as li­
mo num ambiente sem precedentes do distrito industrial. 8 Não se pode mitações deste racionalismo foram se tornando cada vez mais eviden­
negar que os costumes pré-industriais não são adaptáveis a longo pra­ tes.
zo a uma sociedade que tenha passado por um determinado grau de Podemos concluir esta introdução com algumas observações ge­
revolução. M as esta inadaptabilidade não pode ser confundida com os rais sobre as tradições inventadas desde a Revolução Industrial.
problemas resultantes da rejeição dos velhos costumes a curto prazo Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: a)
por parte daqueles que os encaram como obstáculos ao progresso ou, aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condi­
o que ainda é pior. como inimigos ativos. ções de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais;
Isto não impediu que os inovadores inventassem suas próprias b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou rela­
tradições - por exemplo, as práticas da maçonaria. No entanto, em ções de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socializa­
ção, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comporta­
mento. Embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido certamente
inventadas (como as que simbolizam a submissão à autoridade na ln­
deiros (na virada do século ) dos antigos trajes regionais. danças folclóricas e rituais se­ dia britânica), pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que pre­
melhantes parn ocasiões festivas llli11 p11d1' ser considerada um indício de aburguesamen­ valeceu, sendo as outras funções tomadas como implícitas ou deriva­
to. nem de tradicionalismo. Parecia ser superficialmente uma ânsia nostálgica de recupe­
rar a cultura de antanho. que estava desaparecendo tão depressa. mas, no fundo, era
das de um sentido de identificação com uma "comunidade" e/ou as
u m a demonstração de identidade de classe através da qual os fazendeiros prósperos po­ instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais como a
diam estabelecer u m a distinção horirnntal em relação aos habitantes da cidade e uma "nação".
distinção vertical em relação aos agregados. artesãos e operários." Palie Over Christian­
sen. " Peasant Adaptation to Burgeois Culture? Class Formation and Cultural Redefini­
tion in the Danish Countryside'º, Eth11ologia Scandinavica ( 1978). p. 128. Veja também
ºº
G. Lewis. "The Peasantry. Rural C hange and Conservative Agrarianism: Lower A ustria 9. Helmut Hartwig, "Plakellen wm 1 . Mai 1934-39 . A esthetik und Kommunikation,
at lhe Tum of the Century'º. Pa.<t & Pre.<ent, n9 8 1 ( 1978), pp. 1 19-43. vii. n º 26 ( 1976). pp. 56-9.
K. Patrick Joyce, "The Factory Politics of Lancashire in the Later Nineteenth Centu­ 10. P. H.J . H . Gosden. The Friendly Societie.< in England. /815- /11,75 ( Manchester.
ry". Hi,torical J11umal. XVIII ( 1965). pp. 525-53. 1 96 1 ). pp. 1 23. 1 19.
18 19

Uma das dificuldades foi que estas entidades sociais maiores sim­ ceu com aqueles criados para pseudocomunidades globalizantes (co­
plesmente não eram Gemeinschaften, nem sistemas de castas. Em vir­ mo as nações e os países), provavelmente porque estas comunidades
tude da mobilidade social, dos conflitos de classe e da ideologia domi­ enfatizavam seu caráter eterno e imutável - pelo menos, desde a fun­
nante, tornou-se difícil aplicar universalmente as tradições que uniam dação da comunidade. No entanto, os novos regimes polfticos e movi­
comunidades e desigualdades visíveis em hierarquias formais (como é mentos inovadores podiam encontrar equivalentes seus para os ritos
o caso do Exército). Isto não afetou muito as tradições do tipo c), uma tradicionais de passagem associados à religião (casamento civil e fune­
vez que a socialização geral inculcava os mesmos valores em todos os rais).
cidadãos, membros da nação e súditos da Coroa, e as socializações Pode-se observar uma nítida diferença entre as práticas antigas e
funcionalmente específicas dos diferentes grupos sociais (tais como a as inventadas. As primeiras eram práticas sociais específicas e alta­
dos alunos de escolas particulares, em contraste com a dos outros) ge­ mente coercivas, enquanto as últimas tendiam a ser bastante gerais e
ralmente não sofriam interferências mútuas. Por outro lado, na medi­ vagas quanto à natureza dos valores, direitos e obrigações que procu­
da em que as tradições inventadas como que reintroduziam o status no ravam inculcar nos membros de um determinado grupo: "patriotis­
mundo do contrato social, o superior e o inferior num mundo de mo", "lealdade", "dever", "as regras do jogo", "o espírito escolar", e
iguais perante a lei, não poderiam agir abertamente. Poderiam ser in­ assim por diante. Porém, embora o conteúdo do patriotismo britânico
troduzidas clandestinamente por meio de uma aquiescência formal e ou norte-americano fosse evidentemente mal definido, mesmo que ge­
simbólica a uma organização social que era desigual de fato, como no ralmente especificado em comentários associados a ocasiões rituais, as
caso da reconstituição da cerimônia de coroação britânica" (veja. práticas que o simbolizavam eram praticamente compulsórias - como.
adiante. p. 290). Era mais comum que elas incentivassem o sentido co­ por exemplo. o levantar-se para cantar o hino nacional na Grã­
letivo de superioridade das elites - especialmente quando estas precisa­ Bretanha. o hasteamento da bandeira nas escolas norte-americanas.
vam ser recrutadas entre aqueles que não possuíam este sentido por Parece que o elemento crucial foi a invenção de sinais de associação a
nascimento ou por atribuição - ao invés de inculcarem um sentido de uma agremiação que continham toda uma carga simbólica e emocio­
obediência nos inferiores. Encorajavam-se alguns a se sentirem mais nal. ao invés da criação de estatutos e do estabelecimento de objetivos
iguais do que outros, o que podia ser feito igualando-se as elites a gru­ da associação. A importância destes sinais residia justamente em sua
pos dominantes ou autoridades pré-burguesas, seja no modelo milita­ iuniversalidade indefinida:
rista/burocrático característico da Alemanha (caso dos grêmios estu­
dantis rivais), seja em modelos não militarizados, tipo "aristocracia A Bandeira N acional, o H ino N acional e as Armas Nacionais são os três
moralizada" . como o vigente nas escolas secundárias particulares bri­ símbolos através dos quais um país independente proclama sua identida­
tânicas. Por outro lado, talvez, o espírito de equipe, a auto-confiança e de e soberania. Por isso, eles fazem j us a um respeito e a uma lealdade
a liderança das elites podiam ser desenvolvidos por meio de "tradi­ imediata. Em si já revelam todo o passado, pensamento e toda a cultura
ções" mais esotéricas, que manifestassem a coesão de um mandarina­ de uma n ação."
do superior oficial (como ocorreu na França ou nas comunidades
brancas nas colônias). Neste sentido. conforme escreveu um observador em 1 880, "os solda­
dos e policiais agora usam emblemas por nós"; embora ele não previs­
Uma vez estabelecida a preponderância das tradições inventadas se sua restauração como complemento de cidadãos individuais na era
"comunitárias", resta-nos investigar qual seria sua natureza. Com o dos movimentos de massa, que estava prestes a começar. 1 1
auxílio da antropologia, poderemos elucidar as diferenças que porven­ Podemos também observar que, obviamente, apesar de todas as
tura existam entre as práticas inventadas e os velhos costumes tradi­ invenções, as novas tradições não preencheram mais do que uma pe­
cionais. Aqui só poderemos observar que, embora os ritos de passa­ quena parte do espaço cedido pela decadência secular das velhas tradi-
gem sejam normalmente marcados nas tradições de grupos isolados
(iniciação, promoção, afastamento e morte), isso nem sempre aconte-

1 2. Comentário olicial do governo indiano . citado in R. Firth. Srmhols. Pub/ic and


Pnrate ( Londres. 1 97 3 ). p. 34 1 .
1 1 . J . l:.C. Bodk) . ln<' Com11atio11 of 1-.'J,..ard the Vllth: a Chapterof European and Im­ I J. Frederick M arshall. Curiositie.< of Ceremonials. Tit/e.<. Decorations and Form.< of
perial Hi11on ( Londres . 1 903 ) . pp. 20 1 . 204. /111,·m,111111wl I ú11i1i,·1 ( Londres. 1 880). p. 20.
20 21

ções e antigos costumes; aliás, isso já poderia ser esperado em socieda­ mo liberal alemão assumiu sua no\'a forma imperialista-expansionista
des nas quais o passado torna-se cada vez menos i mportante como observando-se a rápida substituição das antigas cores preta, branca e
m odelo ou precedente para a maioria das formas de comportamento dourada pelas novas cores preta, branca e vermelha (principalmente
humano. Mesmo as tradições inventadas dos séculos XIX e XX ocu­ na década de 1 890) no movimento da ginástica alemã, do que estudan­
pavam ou ocupam um espaço muito menor nas vidas particulares da do-se as declarações oficiais de autoridades ou porta-vozes. Pela histó­
maioria das pessoas e nas vidas autônomas de pequenos grupos sub­ ria das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter da­
culturais do que as velhas tradições ocupam na vida das sociedades dos sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana operária que não
agrárias, por exemplo. '• "Aquilo que se deve fazer" determina os dias, se conseguiram através de fontes mais convencionais. Por sinal, o estu­
as estações, os ciclos biológicos dos homens e mulheres do século XX do das tradições inventadas não pode ser separado do contexto mais
muito menos do que determinava as fases correspondentes para seus amplo da história da sociedade, e só avançará além da simples desco­
ancestrais, e muito menos do que os impulsos externos da economia, berta destas práticas se estiver integrado a um estudo mais amplo.
tecnologia, do aparelho burocrático estatal, das decisões políticas e de Em segundo lu,gar, o estudo dessas tradições esclarece bastante as
outras forças que não dependem da tradição a que nos referimos, nem relações humanas com o passado e, por conseguinte, o próprio assun­
a desenvolvem. to e oficio do historiador. Isso porque toda tradição inventada, na me­
Contudo, tal generalização não se aplica ao campo do que pode­ dida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como
ria ser denominado a vida pública dos cidadãos (incluindo até certo cimento da coesão grupal. M uitas vezes, ela se torna o próprio símbo­
ponto formas públicas de socialização, tais como as escolas, em oposi­ lo de conflito, como no caso das lutas por causa dos monumentos em
ção às formas particulares, como os meios de comunicação). Não há honra a Walther von der Vogelweide e a Dante, no sul do Tirol, em
nenhum sinal real de enfraquecimento nas práticas neotradicionais 1 889 e 1 896.' 5 Até mesmo os movimentos revolucionários baseavam
associadas ou com corporações de serviço público (Forças Armadas, a suas inovações em referências ao "passado de um povo" (saxões con­
justiça, talvez até o funcionalismo público) ou com a cidadania. tra normandos, "nos ancêtres les Gaulois" contra os francos, Espárta­
Aliás, a maioria das ocasiões em que as pessoas tomam consciência da co ), a tradições de revolução ("O povo alemão também tem suas tra­
cidadania como tal permanecem associadas a símbolos e práticas dições revolucionárias", afirma Engels no início de seu livro A guerra
semi-rituais (por exemplo, as eleições), que em sua maior parte são his­ dos camponeses alemães)" e a seus próprios heróis e mártires. No livro
toricamente originais e livremente inventadas: bandeiras, imagens, ce­ de James Connolly, Labour in lrish History (O operariado na história
rimônias e músicas. Na medida em que as tradições inventadas da era da Irlanda), há excelentes exemplos desta conj ugação de temas. O ele­
que sucedeu às revoluções Francesa e industrial preencheram uma la­ mento de invenção é particularmente nítido neste caso, já que a histó­
cuna permanente - pelo menos, até hoje - parece que isso ocorreu nes­ ria que se tornou parte do cabedal de conhecimento ou ideologia da
te campo. nação, Estado ou movimento não corresponde ao que foi realmente
Ora, pode-se afinal perguntar, será que os historiadores devem conservado na memória popular, mas àquilo que foi selecionado, es­
dedicar-se a estudar estes fenômenos? A pergunta é, de certo modo, crito, descrito, popularizado e institucionalizado por quem estava en­
desnecessária, já que cada vez mais estudiosos claramente se ocupam carregado de fazê-lo. Os historiadores que trabalham com informa­
deles, como se pode comprovar pelo conteúdo deste volume e pelas re­ ções orais observaram freqüentemente que a Greve Geral de 1926 teve
ferências nele incluídas. E melhor refazer a questão: o que os historia­ nas memórias das pessoas idosas um efeito mais modesto e menos im­
dores ganham com o estudo da invenção das tradições? pressionante do que o esperado pelos entrevistadores." Analisou-se a
Antes de mais nada, pode-se dizer que as tradições inventadas são
sintomas importantes e, portanto, indicadores de problemas que de
outra forma poderiam não ser detectados nem localizados no tempo.
Elas são indícios. Pode-se elucidar melhor como o antigo nacionalis- 1 5. John W . Cole e Eric Wolf. The Hidden Fron1ier. Ecologr and Erhnicitr in a11 A lpine
I ali,· , ( No, a lor4ue e Londres . 1 974). p. 5 5.
I li. Sohrc a popularidade dos l i v ros que tratam deste e de outros militantes históricos
na, hihliotcca, operárias alemãs. veja H .J. Steinberg, Sozia/i.smu., und deuruhe Sozialde-
1 4 . Sem falar na transformação de rituais duradouros e si nais de uni formidade e coe­ 111"!.rarie 7.ur 1de"/"gie der parrei 1·or dem er.Hen Weltl.rieg ( Hanover. 1967). pp. 1 3 1-3.
são em modismos eíêmeros - no vestuário. na linguagem. nas práticas sociais etc .. como 1 7. Ex istem ra,ôes hastante lógicas para que os participantes das bases geralmente n ão
acontece nas culturas jovens dos países industrializados. vejam os acontecimentos h istóricos por eles vividos como os da classe dominant,: e os
22 23

formação de uma imagem semelhante da Revolução Francesa durante incluir um componente construído ou "in ventado". E é exatamente
a Terceira República. ' 8 Todavia, todos os historiadores, sejam quais porque gra nde parte dos constituintes subjetivos da "n ação" moderna
forem seus objetivos, estão e nvolvidos neste processo, uma vez que consiste de tais construções. estando associada a símbolos adequados
eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e e. em geral. hastante recen tes ou a um discurso ela borado a propósito
reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mun­ ( tal como o da "história nacional" ), que o fenômeno nacional n ão
do da in vestigação especializada, mas também à esfera públ ica on de o pode ser adeq uadamente in vest igado sem dar-se a aten ção devida à
homem atua como ser p olítico. Eles devem estar atentos a esta dimen­ "inven ção das tradições".
são de suas atividades. Fina lmente. o estud_o da _ in ven ção das tradições é interdisciplinar.
A propósito, deve- se destacar um interesse específico que as "tra­ E um campo comum a h1 ston adores, antropólogos sociais e vários ou­
tros est udiosos das ciências humanas, e que n ão pode ser adequada­

ti
dições inventadas" podem ter, de um modo ou de outro, para os estu­
diosos da história moderna e contemporânea. Elas são altamente apli­ mente in vestigado sem ta l cola bora ção. A presente obra reúne. fun da­
cáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente recente, a mentalmente. contrihuições de hist oriadores. Espera-se que outros ve­
"nação" , e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado na­ nham t ambém a considerá -la útil.
cional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas, e daí por
diante. Todos estes e lementos baseiam-se em exercícios de engenharia
social muitas vezes deliberados e sempre inovadores, pelo menos por­
que a ori gina lida de histórica impl ica in ovação. O na cionalismo e as
nações israelita e palestina devem ser novos. sej a qual for a continui­
dade histórica dos judeus ou dos muçulmanos do Oriente M édio, uma
vez que na quela região há um século atrás n ão se cogitava nem no con ­
ceito de Estado territoria l do tipo padron izado atual, que só veio a tor­
nar-se uma proba bilidade séria após a I Guerra. As linguagens-padrão
n a cionais, que devem ser apren didas nas escolas e utilizadas n a escrita,
quanto mais na fala, por uma elite de dimen sões irrisórias, são, em
gra n de parte. const ruções relativamente recentes. Conforme observou
um historiador fran cês especializado n o idioma flamengo, o flamengo
ensinado hoje na Bélgica n ão é a língua com que as mães e avós de
Flan dres se dirigiam às crianças: em suma, é uma "língua materna"
apenas metaforicamente, n ão no sentido literal. Não nos devemos dei­
xar en ganar por um paradoxo curioso, embora compreensível: as na­
ções modern as, com toda a sua parafernália, geralmente afirmam ser o
oposto do novo, ou seja estar en raizadas na mais remota antigüidade,
e o oposto do construído, ou seja, ser comunidades humanas, " natu­
rais" o bastante para não necessitarem de definições que não a defesa
dos próprios interesses. Sejam quais forem as continuidades históricas
ou n ão en volvidas no conceito moderno da "França" e dos "france­
ses" - que ninguém procuraria negar - estes mesmos conceitos devem

historiadores os vêem. Pode-se chamar este fenômeno de "síndrome de Fabrício"' (alu­


sàn ao protagonista do livro A Cartuxa de Parma. de Stendhal).
I X. Por exemplo. Alice Gérard. La Rél'lllution Françoise: Mythe.< et /nterpreration.<.
/ 78'1-/'J711 ( Paris. 1970).
25

2. A Invenção das Tradições:


a Tradição das Terras A ltas
( Highlands) da Escócia
HUG 1-1 TREVOR-ROPER

H oje em dia, onde quer que os escoceses se reúnam para celebrar


sua identidade nacional, eles a afirmam abertamente através da para­
fernália nacionalista característica. U sam o saiote (ki/t), feito de um
tecido de lã axadrezado (tartan) cuj a cor e padrão indicam o "clã" a
que pertencem, e quando se entregam ao prazer da m usica, o instru­
mento utilizado é a gaita de foles. Tal parafernália, que eles reputam
muito antiga, é, na verdade, bem moderna. Foi desenvolvida depois, e,
em alguns casos, muito depois da União com a Inglaterra, evento con­
tra o qual constitui, de certo modo, um protesto. A ntes da União, es­
ses acessórios realmente já existiam sob uma forma rudimentar; na­
quele tempo, porém, eram vistos pela grande maioria dos escoceses
como um indício de barbarismo: o distintivo de montanheses velha­
cos, indolentes, rapaces e chantagistas, que representavam para a Es­
cócia civilizada e histórica m ais um inconveniente do que uma amea­
ça. Até mesmo nas Terras Altas ( Highlands), ainda naquela forma ru­
dimentar, aquela parafernália era relativamente nova: não constituía
característica original, nem distintiva da sociedade montanhesa.
Aliás, até a idéia de que existe uma cultura e uma tradição especi­
fica das Terras Altas não passa de uma invenção retrospectiva. Os
montanheses (highlanders) da Escócia não constituíam um povo sepa­
rado antes dos últimos anos do século XVII. Eram simplesmente emi­
grados irlandeses, vindos para a Escócia devido a pressões populacio­
nais. Naquela costa recortada e inóspita, naquele arquipélago compos­
to de grandes e pequenas ilhas, o mar funciona m ais como via de co­
municação do que como divisor; e desde fins do século V, quando os
Scots do norte da Irlanda desembarcaram em A rgyll, até meados do
século X V I I I , quando foi "aberto", após as revoltas dos jacobitas, o
Oeste escocês, isolado do Leste pelas montanhas, sempre esteve m ais
ligado à Irlanda do que às Terras Baixas (Lowlands) saxônicas. Tanto
sob o aspecto cultural q uanto social, aquela região era uma colônia da
Irlanda.
Estas duas sociedades célticas, a da Irlanda e a das Terras Altas
de Oeste, mesclavam-se até mesmo sob o aspecto político. Os Scots de
Dalriada dominaram Ulster, no norte da I rlanda, d urante um século.
26 27

Os dinamarqueses governaram ao mesmo tempo as H ébridas, a s cos­ etapa houve um processo pelo qual tais tradições foram oferecidas às
tas da Irla nda e a Ilha de M an. E em fins da Idade M édia os Macdo­ Terras Baixas escocesas históricas. a Escócia Ocidental dos Picts. sa­
nal ds das Ilhas exerciam sobre o Oeste da Escócia e o Norte da Irlanda xões e normandos, e por elas a dotadas.
um domínio mais próximo e mais efetivo do que os soberanos de direi­ A primeira etapa cumpriu-se no século XV III. A afirmação de
to, os reis da Escócia e Inglaterra . Sob o domínio dos M acdonalds, a que os escoceses célticos das Terras Altas de língua irlandesa não eram
cultura hebridense era puramente irlandesa. Vinham da Irlanda os tra­ apenas invasores vindos da Irlanda no século V D .C., mas já estavam
dicionais bardos, curandeiros e harpistas ( pois o instrumento tradicio­ na Escócia há muito tempo, correspondendo aos caledônios que ha­
nal dos hebridenses era a harpa, não a gaita de foles). 1 Os M acdonalds viam combatido os exércitos romanos. constitui. natural mente. uma
continuaram a exercer forte influência nos dois países, mesmo depois antiga lenda, muito útil no passado. F oi refutada com sucesso em 1729
da extinção do seu poderio·. Esta unidade política em potencial só foi pelo primeiro e maior arqueólogo escocês, o padre jacobita refugiado
rompida em meados do século XV II, quando foi estabelecida a Colô­ Thomas Innes, sendo, porém reabilitada em 1738 por David M alcolm3
nia inglesa em U lster ( Irlanda do Norte) e quando se iniciou a hege­ e, de maneira mais efetiva, na década de 1760, por dois escritores de
monia dos Campbells nas Terras Altas de Oeste. A unidade cultural, sobrenome idêntico: James M acpherson, o "tradutor" de Ossian, e o
porém. apesar de debilitada, perdurou. No século XV III, as H ébridas Reverendo J ohn M acpherson, ministro de Sleat, na ilha de Skye. Em­
eram ainda basicamente u ma área de povoação irlandesa, sendo o bora não fossem parentes, estes dois M acphersons se conheciam; Ja­
idioma gaélico que lá se falava normalmente classificado, no século mes M ac pherson ficou na casa do ministro quando visitou Skye, pes­
XV III, como irlandês. quisa � do sobre _"Ossian", em 1760, e o filho do ministro, que mais tar­
Culturalmen.te dependentes da Irla nda. sob o domínio "estrangei­ de vei o a ser Sir J ohn M acpherson, governador geral da l n dia. tor­
ro" e relativamente ineficiente da coroa escocesa, as Terras Altas e as nou-se depois a migo íntimo e cúmplice de James - os dois agiram de
Ilhas da Escócia não tinham cultura própria. A l iteratura era um páli­ comum acordo. Criaram sozinhos, através de dois atos isolados e falsi­
do reflexo da literatura irlandesa. Os menestréis dos chefes de clã esco­ ficação deslava da, uma literatura nativa da Escócia céltica e, para fun­
ceses ou vinham da Irlanda ou para lá viajavam a fim de aprender o damentá-la, uma nova história. Tanto esta l iteratura quanto esta his­
ofício. Aliás, segundo um autor do início do século XV III (por sinal, tória, pelas ligações que apresentavam com a realidade, haviam sido
irlan� ês), os menestréis escoceses eram a escória da Irlanda, que volta roubadas da Irlanda.
e meia era removi da e despejada naquele monturo providencial.) M es­ _O � bsoluto descaramento dos M acphersons acaba por suscitar
mo sob o poderio repressor da Inglaterra, nos séculos XV II e XV III, a adm1raçao. J ames M acpherson recolheu baladas irlandesas na Escócia
Irla nda céltica permaneceu, do ponto de vista cultural, uma nação his­ escreveu um poema " épico" no qual o cenário já não era o irlandês'
tórica, ao passo que a Escócia céltica era no máximo sua irmã mais mas o escocês, e depois descartou a s baladas genuínas como composi�
pobre. Não tinha, nem podia ter, uma tradição independente. ções posteriores, cópias de "Ossian" - e também a literatura irlandesa
A criação de uma tradição das Terras Altas independente e a im­ real : � que elas pertenciam, como se fosse um simples reflexo. D epois,
posição da nova tradição e de seus símbolos externos em toda a nação o m1 m stro de Sleat escreveu um Ensaio Crítico que fornecia o contexto
escocesa foi obra de fins do século XV III e início do século XIX. R ea ­ necessário ao "H omero céltico" " descoberto" pelo seu homônimo:
l izou-se em três etapas. Primeiro, houve um rebelião cultural contra a declarou que existiam celtas de língua irlandesa na Escócia quatro sé­
Irla nda: usurpou-se a cultura irlandesa e se reescreveu a história primi­ cu_los antes da data em que a história afirma que eles chegaram, e ex­
tiva da Escócia, chegando-se ao cúmulo de declarar, na maior insolên­ plicou que a literatura genuína e nativa da Irlanda havia sido roubada
cia, que a Escócia - a Escócia cél tica - é que era a "mãe-pátria", sendo dos inocentes escoceses pelos inescrupulosos irlandeses durante a alta
a Irlanda a nação culturalmente dependente. D epois, houve a elabora­ Idade M édia. Para arrematar, o próprio James M acpherson, baseado
ção a rtificial de novas tradições das Terras Altas, que fora m apresenta­ no trabalho do ministro, escreveu uma Introdução à história da Grã­
das como a ntigas, originais e características da região. E na terceira Bretanha e da l�la�da ( 177 � ) � orn o se fosse uma obra " independente",
reafirmando as 1de1as do mm1 stro. O sucesso dos M acphersons foi tan­
to que eles convenceram até Edward Gibbon, historiador dos mais
ºº
1 . Veja J . Bannerman. 'The Lordship of the lsles . in Jennifer Brown ( org.). Sco11ish
Socielr in rhe J 51h. Cemurr ( 1977).
3. Da, id M a lcolm. Disser1a1irms on 1he Cellic Languages ( 1738).
2 . A Collec1io11 of Sel'er�I Pieces br Mr. John Toland ( 1726). i, pp. 25-9.
28 29

críticos e cuidadosos, que reconheceu como orientadores em matéria prio Macpherson: seu Ossian sempre fora representado vestido com
de história escocesa aqueles "dois sábios das Altas Terras Escocesas", uma túnica esvoaçante e, a propósito, o instrumento que tocava não
James M acpherson e o Rev. M acpherson, perpetuando assim o que já era a gaita de foles, mas a harpa. E Macpherson também era oriundo
foi corretamente denominado de "uma sucessão de equívocos na his­ das Terras Altas, por sinal de uma geração anterior à de Scott. No
tória escocesa": caso em questão, isso fazia uma diferença incrível.
Limpar a história escocesa das mentiras inter-relacionadas e des­ Em que época o "saiote de lã xadrez", o kilt moderno, começou a
virtuadoras tramadas pelos Macphersons - se é que se conseguiu re­ ser usado pelos habitantes das Terras Altas? Não há dúvidas profun­
movê-las inteiramente - foi trabalho para um século inteiro.s Entre­ das a respeito, especialmente desde a publicação da excelente obra do
mentes, estes dois insolentes embusteiros conseguiram uma vitória du­ Sr. J. Telfer Dunbar.6 Enquanto o tartan - tecido com um padrão co­
radoura: colocar os habitantes das Terras Altas da Escócia em evidên­ lorido e geométrico - já era conhecido na Escócia no século XVI (vin­
cia. Antes desprezados tanto pelos habitantes das Terras Baixas, que do, ao que parece, de Flandres e chegando às Terras Altas depois de
os �onsideravam selvagens desordeiros, quanto pelos irlandeses, que atravessar as Terras Baixas), o saiote (philibeg) - tanto o termo como a
os tinham como parentes pobres e ignorantes, eles agora eram exalta­ peça - só surgiram no século XVIII. Longe de ser uma vestimenta tra­
dos pela Europa inteira como um Kulturvo/k que, enquanto a Inglater­ dicional montanhesa, foi inventado por um inglês após a União, em
ra e a Irlanda jaziam imersas num barbarismo primitivo, havia produ­ J 707; os "tartans dos clãs", por sua vez, são uma invenção ainda mais
zido um poeta épico de uma sensibilidade e um requinte primoroso, nova, cuja forma atual se deve a outro inglês, mais jovem do que Sir
que se equiparava (segundo Mme. de Staêl) ou até superava (segundo Walter Scott.
F. A. Wolf) o próprio Homero. E não foi apenas na literatura que eles Já que os montanheses da Escócia eram no início apenas irlande­
chamaram a atenção da Europa. Pois uma vez cortados os vínculos ses emigrados de uma ilha para outra, é de se supor que a princípio
com a Irlanda e adquirida - embora por meios fraudulentos - uma eles se vestissem exatamente como os irlandeses. De fato, é o que se
cultura antiga independente, os habitantes das Terras Altas da Escócia pode constatar. Até o século XVI, nenhum autor registrou qualquer
estavam livres para demonstrar esta independência através de tradi­ peculiaridade nos trajes das Terras Altas; todos os relatos do período
ções peculiares. O próximo passo em matéria de tradição foi estabele­ estão de acordo nesse ponto. Segundo eles, a indumentária comum
cer um traje característico. dos montanheses constava de uma longa camisa "irlandesa" (leine, em
Em 1 895 Sir Walter Scott escreveu, para ser publicado na Edin­ gaélico) que as classes altas - como na Irlanda - traziam tingida de
burgh Review, um ensaio sobre o Ossian de Macpherson. Demonstrou açafrão (leine-croich); uma túnica, ou failuin; e uma capa ou manto,
na exposição a sólida erudição e o bom senso que lhe eram caracterís­ que quando usada pelas pessoas de classe alta era toda colorida ou lis­
ticos. Rejeitou resolutamente a autenticidade do poeta épico que a eli­ trada, só que de um tom castanho-avermelhado ou marrom, para ser­
te literária escocesa em geral e os montanheses em particular insistiam vir de camuflagem entre as urzes. Além disso, os montanheses usavam
em defender. Todavia, no mesmo ensaio afirmou, entre parênteses, calçados de sola fina (as classes altas possivelmente usavam borze­
que sem dúvida o antigo caledônio do século III D.C. usava "um saio­ guins) e boinas achatadas e moles, geralmente azuis. Nas batalhas, os
te (philibeg) de lã xadrez". É surpreendente encontrar esta afirmação líderes usavam uma cota de malha e os homens de classes baixas, uma
feita de maneira tão segura num ensaio tão racional e crítico. Ao que camisa de linho acolchoada, pintada ou besuntada de breu, e coberta
me consta tal declaração jamais havia sido feita, nem mesmo pelo pró- de peles de veado. Além dessas roupas normais, os chefes e dignitários
que entravam em contato com os habitantes mais sofisticados das Ter­
ras Baixas talvez usassem calças justas de pano axadrezado, os trews,
uma combinação de calções com meias. Nas Terras Altas, os trews só
4. E. Gibbon, Decline and Fali of the Roman Empire, edição da Everyman. ii. p. 496:
M. V. Hay. A Cha111 of Error in Scollish Hi.f/orr ( 1927).
podiam ser usados na rua por homens que tivessem ajudantes que os
5. Assim - con forme ressaltou o estudioso mais informado sobre o assunto. Ludwig protegessem ou transportassem; eram, portanto, um sinal de distinção
Ster� . em seu importante ensaio "Die Ossianischen Heldenlieder". cuja tradução para o social. Tantos os mantos quanto os trews provavelmente eram feitos
,ngles se encontra em Tra11.1actiom o( the Gaeli,: Societr o( Jnverne.u. uii ( 1897-8) - o ar­ de tartan.'
tigo sobre M acpherson no Dictionary of National Biography "homologa as opiniões de
defensores mal informados". e os lexicógra fos albanogaélicos prejudicaram seu traba­
lho retirando parte d : seu !11aterial do "defeituoso e antigaélico Ossian" de Macpher­ ó. J . Telfer Dun ba1 . Historr o( the High/and Dre.u ( 1 962).
_
son. _ 7
ou seJa. da versao gaehca espurta dos poemas de Ossian. publicada em 1 807. Tai s descrições nos ,ão fornecidas por John M ajor in Historia Maioris Bri wniac
30 31

Durante o século XVII - no qual se rompeu o vínculo entre a Ir­ parecendo até m u lheres pobres de Londres quando cobrem a cabeça com
landa e as Terras Altas - o vestuário montanhês foi se transformando. O vestido para se protegerem da chuva.
As mudanças ocorreram de m aneira irregular ao longo do século. Pri­
meiro, a camisa longa caiu em desuso, sendo substituída nas ilhas no Esse saiote, acrescenta Burt, era normalm�nte u �ado "tão curto _ qu� ,
início do século pelo capote, colete e calções típicos das Terras Baixas.' m dia de ventania, ou quando é necessáno subir um morr<;> ou mch­
Por outro lado, um pastor escocês, muito tempo depois, lembrou-se de ��r-se . prontamente se percebe a sua indecência". Pela descnção nota­
que os indômitos escoceses do exército jacobita, ao passarem por sua se que ele não está se referindo ao kilt moderno, mas ao manto com
ci nto.
paróquia, em 1 7 1 5, "não usavam manto, nem saiote"; apenas uma tú­ .
Burt foi explícito com respeito_ à mdumentan . · a � as Ter_ras AI tas
nica justa, de cor lisa, de confecção caseira, que ia até abaixo do joe­ .
lho, com cinto.9 Que eu saiba, esta é a última prova da permanência do orque já naquele tempo ela era obJeto de c� ntr?vers1a _polft1c� . Após
� rebelião jacobita de 1 7 1 5, o Parlamento bntâmco h � vta cons1der �d?
/eine na Escócia.
Durante todo o século XVII, os exércitos das Terras Altas susten­ a idéia de proibir tais trajes por lei, assim com � � �nn � ue V � II pro1?1-
taram uma guerra civil contra os ingleses; segundo todas as descrições ra os trajes irlandeses: pensava-se que esta pro1b1çao aJudana a desin­
dos exércitos montanheses, os oficiais usavam trews, enquanto os sol­ tegrar O estilo de vida das Terras � !tas e a m_tegrar os montanheses na
dados tinham as pernas e coxas nuas. Tanto os oficiais quanto os sol­ sociedade moderna. Contudo, a lei acabou nao sendo ap rovada. Rec�­
dados usavam um manto, os oficiais para cobrir a parte superior do nheceu-se que a indumentária montanhesa era conveniente e necessa­
corpo e os soldados para envolver o corpo inteiro, preso na cintura ria num país onde o viandante precisa estar "saltando de pedra em �e­
por um cinto, de modo que a parte inferior, abaixo do cinto, formasse dra, vadeando brejos e dormindo ao relento, nos montes" . Tambem
uma espécie de saia; este traje era conhecido como breacan, ou "manto era necessário aos pobres, por ser bastante barato: "qualquer monta­
com cinto" . O que é importante frisar é que até aquela época nem se nhês pode adquirir estes traje � por . a� e!' ª �. al� uns xelins", qu� n��
falava no kilt conforme o conhecemos. Ou se usavam os trews aristo­ comprariam nem mesmo o mais ordmano traJe das Terr�s Batxa_s .
Ironicamente se a indumentária das Terras Altas tivesse sido
cráticos, ou os "mantos" dos "subordinados" . 1 º proibida depois d� " 1 7 1 5", em vez _de após � s � 'idos de 45", o ki/t, hoje
O termo "kilt" só surge vinte anos depois da União. Edward
Burt, oficial inglês designado para servir na Escócia como supervisor em dia considerado uma das antigas trad1çoes escocesas, provavel­
chefe sob as ordens do General W ade, escreveu então uma série de car­ mente jamais teria existido. Ele surgiu alguns anos depois que Burt es­
creveu suas cartas. num lugar bem próximo a lnverness. Apareceu de
tas, na maior parte de I nverness, descrevendo as peculiaridades e os repente, alguns anos depois de 1 726, quando ainda e_r� desconhe_cido.
costumes da região. Nestas cartas, ele fornece uma cuidadosa descri­ J á em 1 746 havia se firmado o suficiente para ser exphc1tamente citado
ção do "que/t'', que, segundo ele, não é uma peça isolada do vestuário, na lei parlamentar que naquele ano proibiu os _trajes montanhes� s.
m as apenas uma maneira especial de usar-se o manto, Quem o inventou foi um quaker inglês de Lancash1re, Thomas Rawhn­
todo pregueado e cingido na cintura de modo a formar um curto saiote son .
que vai só até o meio das coxas, sendo a outra parte do manto colocada
sobre os ombros e presa na frente e, . . . de maneira que os homens ficam
Os Rawlinsons eram uma família quaker tradicional de manufa­
tores de ferro, que residia em Furness. No início do século XVIII, jun­
tamente com outras famílias quakers de peso - Fords, Crosfiel<;fs,
Backhouses - eles controlavam "uma vasta rede de fornos de fundição
( 1 52 1 ); James Leslie, in De Moribus et Gestis Scotorum { 1 570); Lindsay of Pitscottie, in e forjas" em Lancashire. Só que, estando com falta de_ carvão veg�tal,
Chronic/e ( 1 573); G. Buchanan, in Rerum Scoticarum Historia { 1 583); N1colay d'Arfe­ . Felizmente, apos a
ville, La Navigation du Roy d'Escosse { 1 583). Os indícios estão reunidos em D . W . Ste­
eles precisaram usar madeira como combust1vel.
wart. O/d and Rare Scollish Tartans (Edimburgo, 1 893), I ntrodução. repressão da revolta, as Terras Altas estavam sendo franqueadas, e as
8. M . Martin, A Description of the Western /stands of Scotland ( 1 703). florestas do norte poderiam ser exploradas pela indústria do sul. As­
9. John Pinkerton, literary Correspondence { 1 830), i, p. 230. O ministro era pai do fi. sim, em 1 727, Thomas Rawlinson fez um acordo com Ian M acDonell.
lósofo Adam Ferguson.
. . chefe dos MacDonells de Glengarry, perto de Inverness, arrendando
1 0. Isto se demonstra pelos inddícios apresentados por Stewart, op. cll., p. 2 1 . Esta
exemplificado da forma mais gráfica possível nas figuras que sustentam as armas d e por trinta e um anos uma área de florestas em Invergarry. Construiu
Skene, do lugar do mesmo nome - dois montanheses, um (que porta uma espada) ves� 1-
_ ali um forno onde era refinado o minério de ferro enviado especial­
do com trews, e o outro em "trajes servis" ou seja, um manto com cinto (e não um Ktlt, mente de Lancashire. A empresa não foi bem sucedida em termos ec?­
como pensa Stewart: sobre esse aspecto, veja Dunbar, op. cit., pp. 34-5). nômicos; entrou em liquidação depois de sete anos, durante os quais,
32 33

porém, R awlinson acabou conhecendo toda a região, estabelecendo que, neste retrato, não é o chefe que está de kilt, mas sim seu criado - o
relações constantes com os M acDonells de Glengarry e, naturalmente, que reforça novamente o seu status servil. 1 1 As melhores autoridades
contratando "uma turba de montanheses" para trabalhar no corte das modernas atestam a veracidade da história com base nas provas aci­
árvores e no forno. " ma.'" Podemos, portanto, concluir que o kilt é uma vestimenta absolu­
Durante sua est ada em Glengarry, R awlinson interessou-se pel a tamente moderna, idealizada e vestida pela primeira vez por um indus­
indumentária das Terras Altas, p ercebendo ao mesmo tempo seus in­ trial quaker inglês. que não o impôs aos montanheses para preservar o
convenientes. O manto com cinto podia ser adequado p ara a vida modo de vida tradicional deles, mas parafacilitar a transformação des­
ociosa dos montanheses - para dormir nos montes ou esconder-se em te mesmo modo de vida: para trazê-los das urzes para a fábrica.
meio às urzes. Era também oportunamente barato, uma vez que todos M as sendo esta a origem do kilt, uma outra dúvida imediatamen­
concordavam que a classe baixa não tinha condições de adquirir um te nos ocorre: qual era o tartan utilizado pelo quak ers nos saiotes? Se­
par de calças nem ca lções. Entretanto, para homens que tinham de ria um sett, ou disposição de cores, diferente, especialmente criado
derrubar árvores e trabalhar nos fornos, aquele era "um traje um tan­ para um R awlinson de Lancashire, ou será que R awlinson se tornou
to quanto incômodo e desajeitado". Sendo, portanto, um homem "en­ membro honorári o do clã dos M acDonells? Será que esses setts real­
g enhoso e bem dotado" , Rawl inson mandou chamar o alfaiate do re­ mente já existiam no século XV III? Quando começou a diferenciação
gim� nto estacionado em l nverness e com ele pôs-se a "simpl ificar as entre os p adrões usados pelos vários clãs?
vestimentas, de modo que elas se tornassem práticas e convenientes Para os autores do século XV I que primeiro descreveram clara­
para serem usadas por seus operários". O resultado foi ofelie beg, phi­ mente a indumentária montanhesa, tal diferenciação não existia. S e­
liheg, ou "saiote curto", obtido pela separação entre saia e manto. e gundo eles, os mantos dos chefes eram coloridos e os dos seus seguido­
convertido numa peça separada, com pregas já costuradas. Este novo res, castanhos, de maneira que a diferenciação de cores era feita, na­
tr.aj� foi usado pelo próprio Rawlinson, cujo exemplo foi seguido pelo quele tempo. de acordo com o status social, não com os clãs. A pro­
soc10, l an M acDonell de Glengarry . Os membros do clã, como sem­ va mais anti ga apresentada em fa vor da diferenciação por clãs é
pre, não tardaram a imitar seu chefe, e a novidade " foi considerada uma declaração de M artin M artin, que esteve nas H ébridas em fins do
tão prática e conveniente que num instante o seu uso alastrou-se por século XV II. M artin, porém, simplesmente indica as localidades a que
todas as regiões montanhesas e também por muitas áreas das Terras correspondem os vários p adrões: não os diferencia com base nos cl ãs;
Baixas setentrionais" . aliás, são fortes os indícios contrários à diferenciação por clãs. Assim,
Este relato das origens d o kilt foi inicialmente feito em 1 768 por uma s érie de retratos cuidadosamente elaborados por R ichard W aitt
um fi dalgo montanhês que havia conhecido R awlinson pessoalmente. no século XV III, mostra os membros da família Grant vestidos com
F oi publicado em 1 785, sem levantar qualquer discordância. 1 2 Foi con­ trajes de p adrões os mais variados; nos retratos dos M acdonalds de
firmado p el as duas maiores autoridades em costumes escoceses da é­ Armadale podem-se observar "pelo menos seis padrões diferentes de
poca,'3 e por depoimentos isolados feitos pela famíl ia Glengarry. 1 4 Du­ tecido" ; e indícios contemporâneos relativos à rebelião de 1 745 - se­
rante quarenta anos não foi contestado, nem jamais foi refutado. Con­ jam eles do tipo indumentário, pictórico ou l iterário - não revelam
corda com todos os dados colhidos desde aquela época, inclusive com qualquer diferenciação de clãs, nem nenhuma continuidade de p a­
as p rovas constituídas por ilustrações, pois a primeira pessoa a ser re­ drões. A única maneira de comprovar a lealdade de um montanhês era
tratada vestida visivelmente com um kilt moderno, não com um manto olhar, não para o p adrão de suas vestimentas, mas p ara o penacho que
com cinto, surge num retrato de Alexander M acDonell de Glengarry, trazia na boina. Os p adrões eram apenas uma questão de gosto pessoal
filho do chefe que era amigo de R awlinson. � interessante observar ou de necessidade." Aliás, em outubro de 1745, quando o J ovem Ca­
valeiro esteve em Edimburgo com seu exército, o periódico Caledonian

1 1 . Sobre o empreendimento escocês de Rawl inson. ver A l fred Fel�. The Earlr . Jrun Jn­
du.<1ry o/ Fumes.< and Di.<lrict ( U l verston. 1 908), pp. 346 e seg.; Arthur Raistr ick, Qua­
1 5. Sobre o retrato. veja Dunbar. op. cit., pp. 69-70. Ao que parece. foi pintado por
ker.< in Science and Jndu.<lrr ( 1 950). pp. 95- 1 02 .
, olta de 1 747.
1 2 . O relato é d e autoria de I v a n Baillie d e A bereachen, e foi publicado n o Edinburgh
I ó. Dunhar. loc cit.
Maga=ine. mar. 1 785 (vol. 1 , p. 235).
1 7. Süo apresentadas provas conclusivas sobre esse aspecto por H . F. M cClintock. O/d
1 3. Refiro-me a Sir John Sinclair e John Pinkerton. Veja adiante p. 37
1 4. Refiro-me aos indícios dos Sobieski Stuarts. Veja adiante. p. 36. llighlallil /)re11 l/lUÍ Tartl/11 1 . �· ed. ( Dindal k . 1 940) e Dunbar. op. cit.
34 35

Mercury anunciava " um grande sortimento de tartans, os mais recen­ mo as vestes que os usuários tradicionais haviam rejeitado. 19 Durante
tes padrões" . C onforme admite D. W. Stewart, com relutância: os anos cm que durou a proibição, alguns nobres das Terras Altas gosta­
vam de vestir aquelas roupas tradicionais e de serem retratados assim,
eis um tremendo obstáculo para aqueles que defendem a tese de que os na segurança de seus lares. D epois que a lei foi abolida, a moda se
padrões são antigos; pois é estranho que, estando a cidade repleta de alastrou. Nobres escoceses anglicizados, membros prósperos da pe­
montanheses de todos os níveis sociais e de vários clãs, não lhes fossem quena nobreza, juristas bem educados de Edimburgo e prudentes mer­
oferecidos seus antigos setts, mas "um grande sortimento dos mais recen­
tes padrões." cadores de Aberdeen - homens que não estavam à beira da miséria e
que nunca teriam de saltar sobre as rochas e os brejos, nem de dormir
Dessa forma. qua n do irrompeu a gra nde rebelião de 1745, o kilt por ao relento nos montes - exibiam-se publicamente não nos históricos
nós conhecido era uma invenção inglesa recente, e não existiam tar­ trews, vestimenta tradicional de suas respectivas classes, nem nos incô­
tcm, di ferenciados de aco rdo com os clãs. Contudo, a rebel ião deter­ modos mantos com cinto, mas numa versão sofisticada e dispendiosa
mi nou uma mudança t;1 nto na história indumentária quanto na his­ da tal novidade, o philibeg, ou saiote curto.
tória sm.:1al e econômica da Escócia. Após ter sido sufocada a rebelião, D uas são as causas desta mudança notável. U ma delas é geral, da
·J governo britânico decidiu afinal fazer o que havia pretendido em Europa toda, e pode ser rapidamente resumida. Era o movimento ro­
1 7 1 5 ( aliás, até antes), destruindo de uma vez por todas o estilo de vida mântico, o culto ao bom selvagem que a civilização ameaçava destruir.
independente dos montanheses. Por intermédio das várias leis parla­ Antes de 1745, os habitantes das Terras Altas tinham sido despreza­
ment ares subseqü entes à vitória de Culloden, os montanheses foram dos, por serem considerados bárbaros indolentes e rapaces. Em 1 745,
desarmado�. seus chefes, privados de suas jurisdições hereditárias e, tinham sido temidos por serem considerados rebeldes perigosos. M as
além disso, o uso dos trajes montanheses - "manto, philibeg, trews, após 1746, tendo-se esfacelado sua sociedade com tanta facilidade, eles
boldriés. . . tartans ou mantos e acessórios multicoloridos" - foi proibi­ apresentavam o romantismo de um povo primitivo combinado ao
do sob pena de prisão sem direito a fiança até seis meses e, na reinci­ fascínio das espécies em perigo de extinção. Foi nestas circunstâncias
dência, deportação por sete anos. 1 8 E sta lei draconiana permaneceu em que Ossian saboreou uma tranqüila vitória. A segunda causa era mais
v i gor por tri nta e cinco anos: trinta e cinco anos durante os quais todo específica, e merece um exame mais detido. Foi a formação dos regi­
o modo de vida das T erras Altas se esfacelou rapidamente. Em 1773, mentos das Terras Altas pelo governo britânico.
ao fazerem sua famosa viagem, J ohnson e Boswell descobriram que Ela havia começado antes de 1 745 - aliás, o primeiro regimento
não haviam chegado a tempo de ver aquilo que esperavam, " um povo deste tipo, a Black Watch (Guarda Negra), depois do 439 e do 429 regi­
de aparência peculiar e um sistema de vida arcaico" . D urante a viagem mentos de fileira, havia lutado em Font enoy, em 1740. Porém, foi nos
inteira, segundo lembra J ohnson, não viram ninguém vestido com o anos de 1 757 a 1 760 que o presbítero Pitt procurou sistematicamente
1ar1c111. A lei ( da q ual ele discordava ) havia sido imposta em toda a
desviar o espírito marcial das Terras Altas da aventura jacobita para a
parte. Até a gaita de foles, observou ele, " começa a ser esquecida" . J á guerra imperial. C onforme ele diria mais tarde:
em 1780 os trajes montanheses pareciam ter-se extinguido por comple­
to, e nenhum homem racional teria tido a idéia de restaurá-los. Busquei o mérito onde ele devia ser encontrado; orgulho-me de ter sido o
primeiro ministro que o procurou, e o encontrou nas montanhas do nor­
A história, contudo, não é racional: ou, pelo menos, é racional te. Eu o chamei e trouxe para servir-vos uma raça de homens intrépidos e
apenas em parte. Aqueles que costumavam usar os trajes montanheses audaciosos.
realmente deixaram de usá-los. D epois de uma geração usando calças,
Logo estes reg i me n tos monta nheses se cobriria m de glória na Ín­
o campesinato humilde das H ighlands não via mais sentido em voltar
dia e na América. Também estabeleceram uma nova tradição indu-
a vestir o manto ou as roupas axadrezadas que antes consideravam tão
baratas e úteis. Não a dotara m nem mesmo o "prático e conveniente"
kilt, que era novidade. Em compensação, as classes médias e altas, que
antes faziam pouco daqueles trajes " servis" , adotaram com entusias-
1 9. A"im John lia� A l lan ( 1 eJa adiante p. 32). em seu Brida/ o/ Caii/chairn. pp. 308-9.
alirma q ue. na, ceri mônia, de casamento monta nhesas "pouco ou nada se vê'" do velho
lllrlllll . Isto foi puhl icado cm I xn. o a n o cm q ue a visita do Rei Jorge IV fez com que os
memhro , da a l ta cla"c de l:d i m h u rgo envolvessem os mem bro� com o tecido axadreza­
I X_ 1 9 Ge,l. 11 e. 39: 20 Geo. l i e. 5 1 : 2 1 Geo. l i c. 34. do.
36 37

mentária, pois através da " Lei Conciliatória" de 1 747, foram explicita­ A Sociedade tinha como segundo e não menos important_e objeti­
u dos traJes mon­
mente eximidos da proibição que pesava sobre os trajes montanheses; vo O de assegurar a revogação da lei que proibia o _so
portanto, durante os trinta e cinco anos em que o campesinato céltico nhes es na Escócia. Para isso, os membros da Socteda � e comprom e­
adotou em definitivo as calças saxônicas e o Homero dos celtas foi ��ram -sc. por 1 11 ic1ati \ a prúpria. a se encontrare m ( conl orrne era per-
retratado vestido com urna tú nica bárdica, foram apenas os regimen­ miti do em l nnd re,)
tos montanheses que mantiveram a indústria do tartan em funciona­ vestidos com aqueles trajes t ã o famosos p o r terem sido a �estimenta d e
mento e estabeleceram a novidade mais recente de todas, o kilt de Lan­ seus anc estrais célticos e, n a s reuniões, pelo r:nenos, f� lar a linguagem en­
cashire. fática, ouvir a deliciosa música, recitar a antiga poesia e observar os cos­
A princípio, o uniforme dos regimentos era o manto com cinto; t umes espedlic os de sua terra.
m as após a invenção do ki/t, que se tornou popular devido à sua con­
veniência, os regimentos o adotaram . Além do mais, provavelmente Pode- se observar, não obstante, que a indumentá ria m_ontanhesa , f!l e�­
foi esta adoção que deu origem à idéia de d istinguir os padrões de mo então ainda não incluía o kilt: pelas regras da Sociedade, consistia2
n os trews e no manto com cinto ("manto e saiote n � rna só peça") . º
acordo com os clãs. Quanto mais os regimentos montanheses se m ulti­
Tal objetivo foi alcançado em 1 782, quando o Marques de ? raha°! , .ª
plicavam para atender às necessidades ditadas pela guerra, mais se di­
pedi do de um comitê da Sociedade das Terras Altas, propos com ex1-
ferenciavam seus uniformes; de modo que quando os civis voltaram a
to, na Câmara dos Comuns, a revogação da lei. Isso _ c�� sou grande
usar o tartan e o movi mento romântico incentivou o culto dos clãs,
alegria na Escócia, e os poetas gaélico.s �elebrara � a v1t ? na do manto
esse mesmo princípio de diferenciação foi prontamente transferido do
com cinto céltico sobre as calças saxomcas. Dah por diante, pode-se
regimento para o clã . M as isso aconteceu bem mais tarde. Por enquan­
dizer que os trajes montanheses recentemen te remodelado s ganharam
to, nos restringiremos apenas ao ki/t, que, tendo sido inventado por
popularida de.
um industrial quaker inglês, foi salvo da extinção por um estadista im­ M as houve também obstáculos. Pelo menos um escoces, desde o
perialista inglês. O passo seguinte foi a invenção de uma linhagem es­
início, opôs-se a todo o processo pelo qual o� m ? ntanheses célticos, há
cocesa. Pelo menos este estágio foi levado a cabo pelos escoceses.
pouco tempo desprezados co� o ?�rbaros ahemgenas , passavam a ser
Começou com um passo importante, dado em 1 778; a fundação,
os únicos representantes da h1stona e da cult_u�a escocesas. � st� h o­
em Londres, da Sociedade das Terras Altas (Highland Society), cuja mem foi J ohn Pinkerton, que, apesar de ser v1S1velmente exc�ntnco e
principal função era incentivar as velhàs virtudes das Terras A ltas e alimentar fortes preconceito s, não pode deixar de ser considerado ,
preservar as antigas tradições das Terras Altas. Constituía-se princi­ conforme ele mesmo dizia, o m aior arqueólogo escocês desde Thomas
palmente de nobres e oficiais montanheses, mas seu secretário, "a Innes. Pinkerton foi o primeiro estudioso a descobrir indícios da v�r­
quem a sociedade parece estar especialmente agradecida pelo zelo com dadeira história medieval escocesa. Era inimigo implacável das falsifi­
que se empenhou para que ela tivesse êxito", era John Mackenzie,
cações históricas e literárias dos M acphersons. Foi também o primeiro
advogado do "Tem pie" , "o mais íntimo amigo e confidente", cúm­
estudioso a d ocumentar a história da indumentári a montanhesa . Só
plice, b raço direito e, mais tarde, testamenteiro de James M acpherson. cometeu um grave erro: acreditar que os picts perte� ciam a u� a raça
Tanto James M acpherson quanto Sir John M acpherson foram sócios di ferente da dos escoceses: que os picts (por ele admirados) nao eram
fundadores da Sociedade, de cujos objetivos explícitos um era o da celtas (por ele desprezados) , m � s godos. Tal �ng � no, poré '!1 , .não ! n � a­
preservação da antiga literatura gaélica, e cujo maior êxito, aos olhos lidou suas conclusões, quais seJam , que os pnme1ros caledomos distin­
de seu historiador, Sir John Sinclair, foi a publicação do texto "origi­ guiam-se por não usarem ki/ts, nem mantos com cinto, mas calças; que
nal" em gaélico de Ossian, em 1 807. Este texto foi fornecido por M ac­ o tartan havia sido importado há relativamente pouco tempo; e que o
k enzie. a partir dos trahãlhos de M acpherson, tendo sido editorado kilt era mais recente ainda.
pelo próprio Sinclair e acompanhado de um ensaio também dele que O próprio Sir John Sinclair logo aderi�. às idéias de Pi �� e.rton.
visava provar sua autenticidade (aliás, facilmente contestável). Consi­ Em 1 794 Sinclair havia reunido uma força m1htar local - os M 1hc1anos
derando a dupla função de M ackenzie e a preocupação demonstrada de Rothesay e Caithness - para servir na guerra contra a França; e,
pela Sociedade em relação à literatura gaélica (quase toda inspirada ou
produzida por M acpherson), todo este empreendimento pode ser con­
siderado como mais uma das operações da máfia dos M acphersons em
Londres. �O. Sir J. S i m:la i r. -1 11 A ,·,·011111 of the lli�h/and Societr of London ( I X l 3 ).
38 39

após detidos estudos, resolveu uniformizar as tropas não com o kilt Diante
( pois sabia tudo sobre o quaker R awlinson), mas com trews de tecido · regi onais e nos enfiar em arlequi nais calças de xadrez" .n
�!st e espirituoso ataque, � M ini st
_ . � rio recuou, e foram mo � tanheses
axadrezado. No ano seguinte, resolveu aparecer na corte em trajes ar m a
montanheses, que incluíam calças confeccionadas num tecido de pa­ v estidos de saiote que, apos a vitori a final de 1 8 1 5 , conqu1st �
e despertaram a curiosidade de Paris. � os anos � egumtes,
drão criado especialmente por ele mesmo. M as antes de comprometer­ i· m aginação
escrita por Sir W alter
se, consultou Pinkerton, que se mostrou encantado com a sua decisão a se' ri· e de romances iniciada . com Waver/ey, contri
· para d1" -
· bmu
S c ott combinad a com os regimento s montanhe ses,
. .
de suhstituir o "saiote por calças", porque o saiote, supostamente anti­ '
go, segundo Pinkerton " era, na verdade, bem moderno, e podia ser fundir a moda dos kilts e . t�rtans � ela Europ_a i nteira. .
aperfeiçoado sem restrições, pois isso não constituiri8 violação da tra­ Entrementes, outro m1htar dedicava- se a 1mp_or o mito de que es­
s es trajes eram realmente � ntigos. O Coron:1 David Stewart . de Gar�h,
dição. A lém do que, as calças são muito mais antigas do que o saiote".
A liás, nem o manto, nem o tecido multicolorido eram antigos, acres­ que se a listara no 42" regi mento ':1º � tanhe_s a_os dezessei s anos. pa� ­
centa ele. Tendo, desta forma, negado inteiramente a antiguidade do sara a vida de adulto inteira no Exercito, prmc1pali:nente no � str� nge1-
traj e que fora atribuído "a nossos ancestrais célticos" , Pinkerton pôs­ ro. Depois de 1 8 1 5 , como oficial a meio sol� o, ded� cou-se pri_m: 1ro ao
se a dissertar sobre seu valor intrínseco. D eclarou que o saiote " é não estudo dos regimentos montanheses, depois da vida e trad1çoes das
só flagrantemente indecente, como também anti-higiênico, pois permi­ Terras A ltas, tradições que havia descoberto q� ase sempre, talvez, no
te que o pó adira à pele e exala o fedor da transpiração"; é fora de pro­ refeitório dos oficiais, em vez � e nos � ales stre1tos_ ou extensos_ da Es­
cócia. Tais tradições, naquela epoca, mclu1am 7 o kilt e os padroes d� s
pósito, porque o tó rax é duplamente envolvido por uma túnica e por pelo c? ro� el. � e fato, ele ti­
um manto, ao passo que "as partes ocultas por toda as outras nações clãs. ambos aceitos sem questionamentos
vera conhecim ento da versão de que o ki/t havia sido i nventado por
são precariamente cobertas"; é também uma vestimenta afeminada,
miserável e feia: pois " nada pode reabilitar a regularidade deselegante e um inglês, mas recusou-se a levá-la em consideraçã_o porq� e ela era,
o brilho vulgar do tartan aos olhos da moda; todas as tentativas de in­ segundo ele, refutada "pela crença geral de qu� � sa,1,ote fazi a p� rte da
troduzi-lo no mercado falharam" . M as o tartan exclusivo de Sir J ohn, indumentária escocesa desde a aurora das trad1çoes . Ele tambem_ de­
conforme Pink erton apressou-se em observar, havia "contornado to­ clarou, com igual certeza, que os tecidos axadrezados s_empre haviam
sido confeccionados "com padrões diferentes (ou _setts d1fe� e.ntes. �om.o
das estas objeções" e, por ter apenas duas cores suaves, havia assegura­
do "um efeitc geral bastante agradável" . 1 1 eram chamados) de acordo com os vários clãs, tribos, familias e distri­
1

A ssim escreveu " o famoso arqueólogo, Sr. Pink erton" . Só que es­ tos" . Nã o fornece-u dados ·concretos para susten� ar n_en� uma dessas
creveu em vão, pois por aquela época os regimentos montanheses já afirmações. que foram publicadas em 1 822, num livro mutulado Sket­
haviam adotado o saiote curto, e seus oficiais facilmente se convence­ ches of the Character. M anners and Present Sta te of the High/anders of
ram de que este p eq ueno l.. i/1 era o traj e nacional da Escócia desde Scotland (Esboço do caráter, hábitos e estado atual dos montanheses
tempos imemoriais. Que pode a mera e trêmula voz da erudição contra da Escócia). Sabemos que este livro veio a ser a "base de todas as
uma enérgica ordem militar? A s contestações nem sequer seriam leva­ obras posteriores sobre os clãs" . 21
das em consideração. Em 1804. o M inistério da Guerra - influenciado, Não foi apenas através da literatura que Stewart . defende� a_ nova
talvez, por Sir John S inclair - considerou a possibilidade de substituir causa montanhesa. Em janeiro de 1 820, fundou a_ Soc1ed� d� Celt1ca de
o ki/t pelos trews, e sondou os oficiais de serviço, como convinha. O Edimburgo, composta por jovens civis_ cujo pr_inc1pal obJet1vo era o de
Coronel Cameron, do 79" regimento, ficou indignado. Será que o A lto "promover o uso generalizado dos antigos traJ eS montan_heses e� tre os
Comando estava realmente propondo que "cessasse aquela livre circu­ habitantes das Terras A ltas" , e fazer isto usando os ditos traJes em
lação de ar puro e saudável" sob o saiote, que "tão singularmente pre­ Edimhurgo. O presidente da Sociedade era Sir Walter Scott. n_ativo das
parava o montanhês para entrar em ação?" "Espero, sinceramente", Terras Baixas. O s sócios jantavam juntos regularmente, "vestidos �� m
kilts e boinas, à antiga, e armados até os dentes". Nessas ocas1oes.
protestou o galante coronel, "que Sua A lteza R eal nunca aceda a pedi­
do tão doloroso e degradante. . . como o de despojar-nos de nossos tra- Scott mesmo preferia usar calças, mas declarava ficar "bastante con­
tente com o incrível entusiasmo que demonstravam os montanheses

21. Pin kcrton. f_11erarr Corre.1pondence. p. Correspondence· Dunhar. op. cí1 . . pp. 16 1-2.
( l !UI J. rr
i, 404: Sir J ohn Sinclair.
22.
47 1 -J .
23. Dic1í,man of .\"a1ío11al Bio{?raphr. s. v. Stewart. David. 1772-1 X29.
40 41

quando lih �rtados _ da escravidão dos calções." "J amais se viu" , escre­ histór ica. E m 1 8 19, quando se começou a falar sobre a visita real, a fir­
veu ele. '.1pos um J antar. "pulação, alvoroço e gritaria iguais". 2• Tal ma preparou um "Catálogo de Padrõe s" e enviou amostras dos vários
era o efeito, !11 esmo na recatada Edimburgo, da livre circulação de ar tartans para Londres, onde foram devidamente "autenticados" pela
puro e saudavel sob o saiote montanhês. S ociedade como pertencentes a este ou aquele clã. Entretanto, quando
Assim, em 1 822, graças principalmente ao trabalho de Sir Walter a visita foi confirmada, deixou de haver tempo para tais requintes de
Scott e do Coronel S tewart, a ofensiva das Terras Altas já havia come­ orga nização. H ouve tal abundância de encomendas que "cada peça de
ç � � º · Re�eheu um� tremenda pu? licidade naquele ano por causa da tec ido era vendida assim que saía pronta do tear" . Em tais circunstân­
v1s1 ta oficial do R � 1 Jorg_e IV � Ed11:n b urgo. Era a primeira vez que um cias, o dever primordial da firma era manter a oferta e assegurar que
monarca hanovenano vinha a capital escocesa, e tudo foi cuidadosa­ os chefes montanheses pudessem comprar aquilo de que necessitas­
men�te p reparado para garantir o sucesso do evento. O que nos interes­ sem. Assim, Cluny M acpherson, herdeiro do chefe do descobridor de
sa sao as pessoas 9 ue se e � carregaram desses preparativos. Pois O mes­ Ossia n. receheu um tartan j ú ex istente, que passou a chamar-se para
. _ ele "M acpherson" ; só que antes, tendo sido vendido a atacado a um
t�e de cerimonias m � umbtdo de tod? s eles foi Sir Walter Scott, que de­
signou como seu assistente - seu "ditador" em matéria de cerimonial e certo Sr. Kidd, que o usou para vestir seus escravos das Antilhas, o pa­
vestuário - o Coronel S tewart de Garth; e os guardas de honra aponta­ drão se chamava " K idd", tendo sido anteriormente conhecido apenas
dos po� S� ott_ e Stewart para proteger o rei, os funcionários do gover­ como " N 9 1 55··. G raças a essa versatilidade comercial, os chefes con­
no e -a s ms_i� ma� da Escócia foram es� olhidos dentre aqueles "aficiona­ seguiram atender às instâncias de Sir Walter. e os cidadãos de Edin­
dos do ph1!tbeg . , os membros da Sociedade Cél tica "vestidos com tra­ hurgo p uderam adm irar Sir Evan M acgregor de M acgregor "vestido
Jes �a �acterístico� " . O resultado foi uma esquisití�sima caricatura da mm seu próprio tartan mo ntanhês. e acompanhado de seu séqu ito.
hi storia e da realidade � sc� cesas. Pr� so a seus fanáticos amigos celtas, bandeira e gaiteiros · · . e o Coronel M acDonell de Glengarry. herdeiro
arrebatad ? por suas propnas fantasias românticas cél ticas, Scott esta­ - através de Rawlinson - do mais antigo kilt da Escócia. agora sem
v � �etermmado a esquecer completamente a Escócia histórica sua Es­ dúvida sofisticado especialmente para a ocasião.
c?:ia das Terras Baixas. A visita real , segundo ele, devia ser "�ma reu­ Assim foi a capital da Escócia "tartanizada" para receber seu rei,
mao dos m? ntanheses" . Assim, ele instou com os chefes montanheses que também veio com o mesmo tipo de traje, desempenhou seu papel
P. ª �ª que v1ess_em com_ s� u "séquito" prestar homenagem a seu rei. na pantomima céltica e, no clímax da visita , convidou os dignitários
Vinde e traze, meia duzi a ou uma dezena de membros do clã" , escre­ presentes a fazerem um brinde não à elite verdadeira e histórica, mas
veu ele a um desses chefes, "de modo a parecer um chefe i lhéu, como "aos chefes e clãs da Escócia" . Até mesmo o dedicado genro e biógra­
soi s. . . o que ele mais apreciará ver serão os montanheses" . 2 ' fo de Scott, J . G. Lockhart, ficou desapontado com esta "alucinação"
� Os h� bitantes das Terra � � -l tas a te � deram ao pedido. Mas que pa­ coletiva, na qual. segundo ele. " as notáveis e surpresas glórias" da Es­
drao tranam nas roupa s? A 1de1a de cnar padrões de tecido d iferentes cócia foram atribuídas à s tribos célticas que " sempre constituíram
de a_cordo com os clãs, divul gada na época p or S tewart, parece ter-se uma parte pequena e quase sempre sem importância da população es­
_ .:ocesa" . Já L ord M acaulay , que era montanhês de origem. foi mais
� n gmado com os engenhosos fabricantes que, por trinta e cinco anos franco. Tendo escrito na década de 1 850, não duvidava de que a indu­
tiveram como únicos clientes os regimentos montanheses, mas qu�
agora, desde a �evogação de 1782, previam uma grande expansão do mentária montanhesa fo sse antiga. mas achava revol tante que raças ci­
mercado. A ma1? r destas firmas era a W illiam W ilson e Filho de Ban­ viliLadas da Escócia se vestissem com aqueles "sai otes" riscad os. por­
nock noburn, CUJ ª a � undância de registros representa uma fon'te inesti­ que aquil o contrariava o próprio sentido de evol ução histórica. No fi­
. nal. segundo ele. esta absurda moda moderna havia
mavel para ? S h1 stonador� s Os Srs. Wilson e Filho, percebendo a van­
tagem de cnar um repertono _.
de padrões de clãs d iferentes, o que ;:<;ti­ atingido um ponto além do qual não se poderia mais ir. O último rei bri­
_mulava a competiç� o entre as tribos, entraram, com esse objetivo, em
tânico que manteve uma corte em H olyrood j ulgou que não poderia dar
acordo coi:n a S ociedade das Terras Al tas de Londres, que cobriu prova mais definitiva de seu respeito pelos costumes que prevalecem na
Escócia desde a União do q ue fantasiar-se com um traje que, antes da
aquele proJeto comercial com uma capa, ou manto de respeitabil idade União, era considerado por n ove entre dez escoceses como roupa de la­
drão. ''
24. l.eller.1 o/ Sir W Sco/1. org. H. C. Grierson ( 1 932-7. vi. pp. 338-43. 452 : J. ( i .
Lock hart. Li/e of Sco11 ( 1 850). pp. 443. 48 1 -2.
2 5 . Letter.1 o / Sir W. Sco11. vii. p. 2 1 3. 26. M acaulay. lli11orr o/ 1:",1gla11d. ca p . X I I I .
42 43

. . A lém do qual não se poderia ir" ... M acau lay subesti mou a força - t oda espec1e de penduricalhos, condecorações falsas e
montanheses
de uma "aluci nação" apoiada por um interesse econômico. Scott po­ o uro péis" . 28
Foram vistos por u m aristocrata russo, que estava de vi­
deria readquirir o juízo perdido - como logo aconteceu - mas a farsa sita, em Altyre, residência da famflia Gordon Cuming, em todo o es­
de 1822 havia dado novo i mpulso à indústria do tartan, e inspirado plendor de suas condecorações e insígnias de cavaleiros. H aviam dado
uma nova fantasia a ser aproveitada por essa indústria. E então, che­ a seu nome u m toque escocês, mudando-o p rimeiro para Allan e, de­
gamos ao último estági o da criação do mito montanhês: a reconstru­ pois, p ara H ay A llan, e p or último, para H ay, alimentando a versão de
ção e difusão, sob forma espiritual e indumentária, daquele sistema de que seriam descendentes do último Hay, conde de E rrol. Como ele ha­
clãs que de fato havia sido destruído após 1745. As principais figuras via m orrido s olteiro, eles inventaram-lhe u m casamento secreto; mas
deste episódio foram dois dos personagens mais esqui vos e sedutores nunca afirmaram isso explicitamente, p ara não tornar vulneráveis suas
que já montaram nos cavalos-de-pau ou nas vassou ras voadoras da alegações. Sir W alter Scott lembrava-se de ter visto o mais velho dos
cu ltura céltica: os irmãos A llen. irmãos com a insígnia do Condestável da E scócia - p osto hereditário
Os irmãos A llen vinham de uma família da M arinha, muito bem da casa dos E rrols - "que e le não podia ter mais direito de usar do que
relaci onada. O avô deles, J ohn Carter A llen, havia sido A lmirante da tinha de ostentar a Coroa" . 29 Não podia ter mais, replicaria o critica­
Esq� adra .Branca da �f arinha Britânica. O filho dele, pai dos A llen, do, e nem menos.
havia servido na M an nha durante um breve período; a mãe era filha Os irmãos costumavam passar muito tempo no extremo norte,
de um cult o m i n i s t ro d a Igreja Anglicana. de Surrey. O pai dos Allen é uma vez que o Duque de M oray lhes concedera livre acesso à Floresta
uma figura bastante confusa, de vida bastante misteriosa. A o que pa­ Darnaw ay, e eles tornaram-se e xímios caçadores de veados. Nunca
reet:. passou a m a i or parte da vida no exteri or, pri ncipalmente na Itá­ lhes faltaram protetores aristocratas. Até os práticos "empresários"
lia . A i n fúncia dos dois fi lhos não está documentada. Tudo que se sabe das Terras Bai xas deixavam-se cat ivar por eles. Foi o que aconteceu
é que eram am hos artistas hem dotados em vári os campos. Escreviam com Sir Thomas Dick Lauder, cuja esposa t inha u ma propriedade em
poemas rom ú n t icos ú moda de Scott: sabi am vári as línguas, embora as Elgin. Foi para e le que, e m 1 829, os irmãos revelaram possuir um im­
tenham estudado, sem dúvi da, por conta própria; eram hábeis proje­ portante documento histórico. E ra u m manuscrito que (segundo eles)
tistas, entalhadores de madeira, carpinteiros. Seu jeito persuasivo e en­ havia pertencido a J ohn Leslie, b ispo de R oss, o confidente da R ainha
canto social proporci onava-lhes ampla liberdade na melhor das socie­ Maria da Escócia, e que fora entregue a seu pai por nada mais, nada
dades. Tudo faziam com perfei ção e tino. Não se sabe exatamente menos que o Jovem Cavaleiro, Príncipe Charlie, o Belo. O manuscrito
quando eles su rgiram pela pri meira vez na Escócia, mas evi dentemente intitulava-se Vestiarium Scoticum ou O Guarda-Roupa Escocês, e era
eles estavam com o pai durante a visita real de 1822 , e provavelmente uma descrição dos tartans tribais das famflias escocesas, em que cons­
estavam lá desde 1 8 1 9 . 18 19-1822 foi o período de preparação para a tava como autor um certo cavaleiro chamado R ichard U rquhart. O
visita. Foi também o período em que a firma Wilson e Filho de Ban­ Bispo Leslie havia acrescentado sua data - 1 5 7 1 - mas naturalmente o
nock noburn estava estu dando um plano sistemático de produção de manuscrito podia ser muito mais antigo. Os irmãos e xplicaram que o
tartans para os clãs montanheses, e a Sociedade das Terras A ltas de documento original estava com o p ai deles, em L ondres, mas mostra­
Londres, sem dúvida em conluio com eles, estava considerando a ram a D ick L au der u ma "cópia grosseira" que haviam adquirido e
publicação de um livro fartamente i lustrado sobre os tartans dos clãs que, sem dúvi da, vinha, finalmente, da família U rquhart de Cromarty.
montanheses.'· Acredita-se que a família Allen tenha estado em con­ Sir Thomas ficou muito entusiasmado com a descoberta. Não só o do-
tacto com a Wilson e Filho nesta época.
N os an os segui ntes. os irmãos provavel mente viajaram para o
exterior, aparecendo, p orém, ocasionalmente em grandes casas escoce­ 28. Leuers and Journa/.s of Ladl' Easrlake ( 1 895), i, pp. 54-5.
sas ou comparecendo a festas e legantemente vestidos (conforme um 29. É correto dizer-se que não foram os irmãos que deram origem à sua pretensão de
observador inglês) "com toda a extravagância permitida pelos trajes serem herdeiros dos' Duques de Erroll. Quando da morte de seu avô, Almirante J ohn
Carter Allen. em 1 800, quem redigiu seu necrológio escreveu que "ele era não só aparen­
tado com a Marquesa de Salisbury e o M arquês de Devonshire (recte Downshire), mas,
segundo opinião expressa por Lord Hillsborough, o titulo de Erroll lhe pertencia; por
27. Parte da proposta encon tra-se entre os manuscritos da Sociedade M ontanhesa de descender ele do velho Conde Hay por parte de pai". (Gentleman's Magazine ( 1 800), p.
Londres. Bihliotcca Nacional da Escócia. Depósito 268. Caixa 1 5. Sem data. com marca 1 02 1 ). A M arquesa de Salisbury, o Lord Downshire e o Lord Hillsborough eram todos
d'úgua de I X I X . membros da família Hill.
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44

cumento era im portante em si, como também constituía uma autêntica e seu manuscrito. Arranjaram um novo protetor, Lord Lovat, chefe
fonte a� toriz� da � ntiga a favor da existência de tartans próprios de catól ico da família Fraser, cujo ancestral havia sido executado no patí­
cada ela, e, alem disso, mostrava que esses padrões de tecido eram usa­ b ulo em 1 747. Adotaram também uma nova fé, declarando-se católi­
dos tanto pelos montanheses quanto pelos habitantes das Terras Bai­ cos roman os, e uma identidade nova e ainda mais ilustre. Eliminaram
xas, fato que muito alegrou às famílias das Terras Baixas que estavam o sobrenome Hay e adotaram o nome real dos Stuart. O irmão mais
ansiosa_s para meter-se na disputa.lo Assim, Sir Thomas preparou uma velho passou a chamar-se John Sobieski Stuart (John Sobieski, herói­
transcrição do texto, que o irmão mais jovem cortesmente ilustrou co rei da Polônia, era o bisavô materno do Jovem Cavaleiro); o caçula
para ele. Depois escreveu para Sir W alter Scott, que era o oráculo no ad otou o próprio nome do Jovem Cavaleiro, Charles Edward Stuart.
que dizia respeito a esses assuntos, insistindo q ue o documento fosse De Lord Lovat eles conseguiram a concessão de Eilean Aigas, uma ro­
p� blicado, rara corrigir os in � meros "tartans insólitos e espúrios que mântic a casa de campo localizada numa ilhota do Rio Beauly, em ln­
sao confecc10nados todos os dias, batizados com nomes particulares e verness, e ali montaram uma corte em miniatura. Eram conhecidos
vestidos como se fossem gen uínos". como "os Príncipes"; sentavam-se em tronos, mantinham uma etique­
Só que o espírito clássico de Scott havia retornado e ele não se ta rigorosa e recebiam honras reais dos visitantes, a quem mostravam
deixou enganar. A história e o conteúdo do manuscrito e'o caráter dos suas relíquias dos Stuarts e faziam referências a documentos misterio­
dois irmãos lhe pareciam m uito suspeitos. Ele não acreditava que os sos, guardados num cofre de aluguel . Penduraram tam bém o brasão
habitantes das Terras Baixas tivessem chegado a usar tartans de acor­ real sobre a entrada da casa; quando subiam o rio até a igreja católica,
do com os clãs, e desconfiava que aquilo fosse vigarice de algum fabri­ em Eskadale, o pendão real drapejava-lhes acima da embarcação; seu
cante. Insistiu que o man uscrito fosse no mínimo submetido ao exame sinete tinha o formato de uma coroa.
de _ esp:cialistas do M useu Britânico. Sir Thomas aceitou a sugestão, e Foi em Eilean Aigas, em 1 842, que os irmãos finalmente publica­
o irmao mais velho concordou prontamente; mas este caminho de ram famoso manuscrito, o Vestiarium Scoticum. Ele surgiu numa lu­
o
p_esquisa foi interrompido quando ele apresentou uma carta do pai, as­ xuosa edição. de apenas cinqüenta cópias. Foi a primeira série de ilus­
sinada por "J . T. Stuart Hay", admoestando-o severamente só pelo trações coloridas de tartans a ser publicada, e representou uma vitória
�at.º . de ter mostrado o documento, porque (segundo ele) - além de ser sobre as dificuldades técnicas. Tais ilustrações eram reproduzidas
mut1l tentar recuperar um mundo irremediavelmente pérdido - o do­ através de um novo processo de "impressão mecânica" e, nas palavras
cumento nunca poderia ser examinado por olhos profanos, devido a de um estudioso, escritas cinqüenta anos depois, "não foram suplanta­
cer� as ' '. a �_otaçõe� particulares feitas nas páginas em branco". "Quan­ das por nenhum outro método de impressão a cores posteriormente
to a opm1ao de Sir Walter Scott", continuava o autor da carta "visto inventado, tanto em matéria de beleza da execução quanto de exatidão
que. ja�� is a vi ser respeita? �. nem considerada do menor val�r pelos do detalhe'' . Na qualidade de organizador, John Sobieski Stuart acres­
ant1quarios, pouco se me da. li Isso colocou o oráculo de Abbotsford centou um comentário abalizado e novas provas da autenticidade do
no seu devido lugar. manuscrito: uma "cópia decalcada" do autógrafo do Bispo Leslie e
Derrotados pela a utoridade de Scott, os irmãos recolheram-se no­ uma "transcrição" do recibo dele pelo documento. O manuscrito em
vamente ao norte e gradativamente aperfeiçoaram sua imagem, perícia si, segundo ele, havia sido "cuidadosamente cotejado" com um outro
documento recentemente descoberto por um monge irlandês não iden­
tificado, num mosteiro espanhol, que agora infelizmente se encontrava
em ruínas . E era também mencionado um outro manuscrito, que esti­
30. Assim o M a rq uês de Douglas. por volta de 1 800. requereu q ue a Sociedade M onta­
n hesa de Londres descobrisse se sua família possuía "algum tipo de tartan em especial"
vera em posse de Lord Lovat recentemente, mas havia sido levado
Reconhecia q ue "faz tanto tempo que eles não usam tartan.< que agora deve ser custoso para a América e extraviado por lá. As buscas, porém, estavam em an­
descobrir": mas ele tinha esperança . . . (manuscritos da Sociedade Montanhesa de Lon­ damento . . .
d res. Caixa 1 . n• 1 0). Sendo reduzida a sua distribuição, a publicação d o Vestiarium
3 1 . A correspondência trocada entre Dick Lauder e Scott, assim como a transcrição
d_o Vestiarium feita por Lauder. estão agora nos A rquivos Reais, em Windsor. tendo
Scoticum não foi muito notada. Agora Scott já havia morrido, e Dick
sido ofertados à Rainha M aria pela sua proprietária. Srta. Greta Morritt, bisneta de Lauder, embora tivesse contin uado a "acreditar", guardou silêncio. Se
D1ck Lauder. em 1 936. Foi parcialmente publ icada no Journa/ of Sir Walter Sco/1. org. ti_ve�se escru_tinado os setts im pressos, talvez percebesse, surpreso, que
D. Douglas. 2. ed. ( 1 89 1 ). pp. 7 1 0- 1 3: depois saíram mais partes in Stewart, O/d and ? ªv �am sofrido uma quantidade considerável de emendas desde que o
Rar<" Sc'.J/li.,h Tartan,. . Estes documentos. e os mencionados na p. 40, são citados com a trmao caçula elaborara sua reprodução. Contudo, logo se constatou
perm1ssao de Sua Majestade. a Rainha.
47
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q ue o Vestiarium pub licado era apenas uma piece justificative prelimi­ traj es típicos das Terras Altas eram os fósseis do vestuário comum da
nar para uma obra original muito mais vasta. D ois anos mais tarde, os Id ade M éd ia, que havia sido substituído no resto da Europa no século
dois irmãos p ublicaram um volume ainda mais luxuoso, obviamente XV I, mas havia subsistido, adulterado, porém ainda reconhecível, na­
resultado de anos d e estudo. Este fólio estupendo, fartamente ilustra­ quele cantão esquecido d o mundo. Pois na Idade M édia (de acordo
d o pelos autores, era d edicado a Ludovico 1, rei da B avária, por ser ele com estes autores), a Escócia céltica fora uma regiãp p róspera na Eu­
"o restaurador das artes católicas na Europa" e continha uma d ed ica­ rop a católica cosmopolita: uma sociedade rica e refinada, na qual as
tória pret ensiosa. escrit a em gaéli co e em inglês, "aos M ontanheses" . esplênd id as cortes dos chefes tribais eram abastecidas - graças às
N a folha de rosto lia-se que o volume fora publicado em Edimburgo, avançadas manufaturas hebridenses - pela suntuosidade e pelo escla­
Londres, Paris e Praga. Intitulava-se The Costume of the Clans ( Indu­ recimento do continente. Lamentavelmente, es ta b rilhante civilização
mentária dos clãs). não perdurou: já no final da Idade M édia, aqueles agitados teares
hebridenses, aquelas esplendorosas cortes das ilhas, aquela "alta sofis­
f
The Costume of the Clans é uma obra extraordinária. Sob o aspec­
to puramente erudito, faz todos os trabalhos anteriores sob re o assun­ ticação intelectual" de M ull, Islay e Skye entrou em decadência; as
to parecerem falhas e comuns. M enciona as fontes mais arcaicas, tan­ H ighlands haviam sido isoladas do resto do mundo; sua sociedade em­
to escocesas quanto européias, escritas e orais, manuscritas e impres­ pobreceu-se e introverteu-se, e a indumentária tornou-se triste e
sas. R ecorre à arte e à arqueologia, assim como à literatura. U m ar­ medíocre. Apenas o Vestiarium - aquela grande d escoberta dos dois ir­
queólogo escocês erudito e meticuloso meio século depois, descreveu mãos - revelando o esplendor d os setts originais, permitiu entrever
o volume como "uma perfeita jóia tanto em matéria de elaboração aquela cultura esplêndida, agora extinta para sempre. Sim, porque os
quanto de talento" . ':. e o m el h or autor mod erno na área o classifi ca autores não manifestavam nenhum interesse em tentar restaurar ape­
como "uma obra monumental. .. uma das ped ras fundamentais sobre a nas a indumentária, desligada da cultura céltica católica da qual ela fa­
qual se constrói toda e qualquer história do vestuário das Terras Al­ zia parte. Seria o mesmo que transformar os traj es em meras fantasias.
tas" . " O livro é i nt eligent e e crítico. Os autores reconhecem que o kilt A verdadeira restauração seria aquela em que todo o passado fosse re­
é uma invenção moderna (afinal de contas, eles haviam estado com os vivido - como faziam os irmãos Stuart, compondo poemas, caçando
M acDonells d e Glengarry). Não se pode desprezar de imediato nada veados, mantendo uma corte tribal própria numa ilha do R io Beauly.
do que d izem. M as, em compensação, nada pode ser levado muito a Como Pugin, que procurou restaurar não só a arquitetura gótica, mas
sério. O livro baseia-se em pura fantasia e em falsifi cações d escaradas. toda uma civilização imaginária da qual o gótico fazia p arte, os "So­
Põem-se em evidência fantasmas literários, na qualidade de fontes au­ bieski Stuarts" ( como eram chamados por todos), buscavam restaurar
torizadas. U sam-se os poemas de Ossian como fonte, e citam-se ma­ não só a indumentária montanhesa, mas toda uma civilização das Ter­
nuscritos escusos. Entn: estes, inclui-se "um grosso volume contendo ras Altas imaginária; e o faziam através da fi cção descarada e da abo­
os poemas originais de Ossian, e vários outros manuscritos gaélicos minável retrospectiva histórica fornecida p elo "Ossian" .
valiosos" , recebidos d e D ouay pelo fi nado cavaleiro Watson, agora, É uma pena que o The Costume of the C/ans nunca tenha recebido
infelizmente, extraviados; um manuscrito em latim do século XIV, en­ críticas, nem atenção dos entendidos. Antes que tal acontecesse, os au­
contrado, junto com outros d ocumentos, no mosteiro espanhol que tores cometeram um grave erro tático. Em 1846, quase chegaram a de­
agora. mais infelizmente ainda, já não existe mais; e, naturalmente, o clarar explicitamente que possuíam sangue real. F izeram-no p or meio
próprio Vestiarium Scoticum, j á defi nitivamente datado, " segundo de uma série de contos nos quais, sob p seudônimos românticos mas
indícios internos" , do século XV. As ilustrações coloridas à mão re­ evidentes, declaravam estar revelando fatos históricos. A obra intitula­
produziam estátuas e retratos antigos. U m retrato do J ovem Cavaleiro va-se Tales of a Century ( Histórias d e um século), o século que ia de
vestido com trajes montanheses foi reproduzido "a partir do original, 1745 a 1 845. A idéia central era a de que a d inastia dos S tuart não esta­
em posse dos autores" . va extinta; a esposa do Jovem Cavaleiro havia dado à luz um filho legí­
The Costume of the Clans não era apenas um trabalho de erudição timo em Florença; esta criança, correndo risco d e ser assassinada por
antiquária; tinha um ponto d e vista a defender. Era a idéia de que os enviados da casa de H anover, teria sido confiada a um almirante in­
glês que o criara como se fosse seu p róprio fi lho. No devido tempo,
�se rapaz veio a ter dois filhos legítimos que, tendo lutado por Napo­
leão em D resden, Leipzig e W aterloo, haviam sido p essoalmente con­
Stewart. O/d and Rare Scottish Tartans.
32.
33. Dunbar. Hi.<rorr of the High/and Dress. pp. 1 1 1 . decorados p elo imperador por bravura, e depois se haviam retirado
48 49

para sua pátria, a fim de aguardarem lá o fim de seus dias, estafldo O que ele classifi cou como "um ferimento pavoroso" , quando assistia
agora empenhados em restaurar a antiga sociedade, os velhos costu­ aos jogos montanheses. Na hora do lançamento do martelo, o proj étil,
mes e trajes da terra natal. Para corroborar a história, havia no livro pes ando 1 7 libras ( aproximadamente sete quilos e meio), atingiu-lhe a
notas de rodapé bastante eruditas, mencionando os documentos ainda cabeça. fazendo com que, conforme ele explicou depois (com o fim de
não catalogados dos Stuarts, documentos alemães e poloneses que não atenuar alguma falta não especificada), " o meu crânio literalmente se
podia� ser examinados, e " manuscritos em nosso poder" . esfacelasse", sendo que quatro polegadas quadradas de osso tiveram
F oi nesta altura que um inimigo oculto atacou. Sob o disfarce de de ser substituídas por uma placa de metal. 36 Apesar deste contratem­
uma crítica extemporânea ao Vestiarium. um escritor anônimo publi­ po. Logan tornou-se um entusiasta das tradições montanhesas e, em
cou na Quarterly Review uma devastadora denúncia das pretensões 183 1 , após uma longa jornada através da Escócia, publicou um livro
dos dois irmãos com relação à realeza. 3• O irmão mais velho tentou a intitulado The Scottish Gae/ (O C elta escocês) que dedicou ao R ei Gui­
réplica, que. apesar do tom majestoso, não tinha muito conteúdo. 35 A lherme IV. Nesta obra, repetiu toda a mitologia montanhesa recente: a
obra erudita dos dois irmãos estava agora fatalmente desacreditada; a autenticidade dos poemas de Ossian, a antigOidade do kilt, a diferen­
rotina doméstica de Eilean Aigas cessou como que por encanto; e pe­ ciação dos tartans tribais; e além disso declarou que ele mesmo estava
los vinte anos seguintes, os dois sustentaram no estrangeiro, em Praga " preparando um trabalho que tratava expressamente dos tartans e
e em Pressburgo, as pretensões à realeza que na terra natal corriam emblemas, com ilustrações". Nessa época, L ogan já se estabelecera em
grave risco. No mesmo ano, a Rainha V itória adquiriu Balmoral, e a Londres, e a Sociedade das Terras Altas, em reconhecimento pelo seu
corte real de Hanover substituiu a corte jacobita ilusória e desapareci­ livro, imediatamente o elegeu presidente e encarregou-se de patrocinar
da nas montanhas da Escócia. o livro anunciado sobre tartans. Esta obra surgiu afinal em 1 843 - no
Na históri a econômica observa-se freqü entemente o fracasso dos ano seguinte à publicação do Vestiarium . Chamava-se Clans of the
pioneiros audaciosos, sonhadores e por vezes fantásticos, cujas reali­ Scnttish Highlands, sendo fartamente ilustrado por R. R. Macl an. com
zações são encampadas e levadas ao sucesso por um empreendedor setenta e duas pinturas que retratavam membros dos clãs vestidos com
mais terra-a-terra. Os Sobieski S tuarts jamais se recuperaram das de­ seus respectivos tartans.
núncias de 1 847. Embora devido a seu encanto pessoal, seu bom gênio É improvável que houvesse qualquer relação direta entre os So­
e seu comportamento nobre e inofensivo não faltasse quem neles acre­ bieski Stuarts, com sua erudição e seus ares aristocráticos não inteira­
ditasse, aquele artigo fatal na Quarterly Review sempre era menciona­ mente falsos, e J ames Logan, que era plebeu e pouco exigente. M as os
do contra eles. M as seu trabalho não foi perdido. O estiarium podia f Sobieski Stuarts sem dúvida estavam em contacto com os fabricantes
ter sido desacreditado, e o The Costume of the Clans, ignorado, mas os de tartan e eram consultores deles e dos chefes de clãs sobre os tartans,
espúrios tartans idealizados por eles foram adotados, sem os seus no­ talvez desde 1 8 19. S abemos também que o maior fabricante, Srs . W il­
mes manchados, pela Sociedade das Terras Altas de L ondres, tornan­ son e Filho, tiveram contacto com L ogan, que tratavam como um sim­
do-se um fator de contínua prosperidade para a indústria escocesa de ples agente, às vezes corrigindo seu trabalho a partir de seu maior co­
fabricação de tartan. O sucessor terra-a-terra dos etéreos Sobieski nhecimento; deduz-se que eles obviamente tinham à disposição o que
Stuarts, que obteve este êxito mais duradouro, foi J ames Logan. • 1 consideravam melhor autoridade. Portanto, parece provável que o tra­
J ames Logan foi um nativo de Aberdeen que, na j uventude, sofreu balho de Logan era inteiramente alimentado, por via direta ou indire­
ta, pelas fantasias dos Sobieski Stuarts. De qualquer modo, o Vestia­
rium foi publicado primeiro. Em seu livro, Logan rendeu tributo à " re­
cente obra magnífica de J ohn Sobieski Stuart", na qual o C/ans of the
34. ''The H e irs nf the Stuarts''. Quartal_ r Reriei, ·. lxxxii ( 1 847). O artigo foi atribuído Scottish High/ands nitidamente se baseava - embora com diferenças
na época. quase sempre sem qualquer dúvida. a J. G. Lockhart. a J. W. Crocker. a Lord ocasionais de detalhes, s ufi cientes para justificar uma publicação sepa­
Stanhope e a James Denn istoun: e talve, a outros. Na verdade. ele foi escrito por Geor­ rada. Na verdade, conforme escreveu um estudioso mais recente, mui-
g e Skene. professor da Universidade de Glasgow. irmão mais velho do estudioso céltico
W. F. Skene.
-� 5 . A réplica foi publicada por Blackwood e filhos ( Edimburgo. 1848). Tanto a crítica
quanto a réplica foram posteriormente republicadas j untas. sem data, por Lorimer e
Gillies. Edimhurgo. O volume foi i mpresso em particular. naturalmente pelos Sobieski 36. M anuscritos da Sociedade M ontanhesa de Londres. Caixa 5, de Logan ao comitê
Stuarts ou para atender a seus interesses. jiretor da Sociedade. (s. d.)
50 51

tos dos tartans de Logan eram " reproduções inconfessas dos padrões se nos Sobiesk i Stuarts; seus amigos os defenderam até o fim; e após a
do Vestiarium Scoticum" . 37 morte deles, Sir Lovat fê-los enterrar em Esk adale, ao lado da igreja
L ogan teve sorte na escolha da época de publicação. As denúncias �ue freqüentavam enquanto moravam na romântica casa da ilha, em Ei­
sobre as pretensões reais dos Sobieski Stuarts - os verdadeiros inven­ lean Aigas. Seus pertences foram postos à venda, e a Rainha Vitória
tores dos tartans de clãs - destruíram o crédito dos rivais exatamente no mostrou-se interessada, mas entre eles não se encontraram quaisquer
momento em que a R ainha V itória, com seu culto às Terras Altas, in­ relíquias, pinturas, miniaturas, títulos de propriedade ou manuscritos
centivava a produção e o uso dos tartans, assim como o cenário mon­ dos Stuarts. E ninguém jamais teve notícia do texto original do Vestia­
tanhês, o gado montanhês, S ir Edward L andseer e o ghil/ie J ohn rium Scoticum , com comentários do Bispo Leslie e os interessantes
Brow n. Em 1850 foram publ icadas nada menos que três obras sobre lembretes particulares - supostamente feitos por seu dono anterior, o
os tartans tribais, todas visível, porém silenciosamente inspiradas no Jovem Cavaleiro, ao entregá-lo a seu filho "J. J . Stuart H ay", também
desacreditado Vestiarium, cujos "organizadores" haviam em vão ten­ conhecido como "J ames Stuart, comte d' Albanie" , o ainda mais es­
tado publicar uma edição b arata. U m desses novos livros - History of quivo progenitor de nossos já esquivos heróis.43
the Highlands and the Highland Clans (H istória das H ighlands e dos Este artigo começou com uma referência a J ames M acpherson.
clãs montanheses), de autoria do Gen. J ames Browne, que veio a ser Termina com os Sobieski Stuarts. Existem várias semelhanças entre
uma espécie de modelo - continha 22 litografias coloridas de tartans, estes inventores da tradição montanhesa. Ambos idealizaram uma
retiradas sem qualquer menção do Vestiarium. 3 ' No restante do século, Idade de O uro no pas&ado das Terras Altas célticas. Ambos declara­
fo ram publicados regularmente inúmeros catálogos de tartans monta­ ram que possuíam provas documentais. Ambos criaram fantasmas li­
nheses, todos copiados - direta ou indiretamente - do Vestiarium. terários, forjaram textos e falsificaram a história para sustentar suas
Os Sobieski Stuarts, que retornaram à I nglaterra em 1 868, devem idéias. Ambos iniciaram uma indústria que prosperaria na Escócia du­
ter ficado mortificados com isso. Apesar de estarem agora quase na rante muito tempo após a morte deles. Ambos foram logo denuncia­
miséria, continuaram como sempre a desempenhar o papel que ha­ dos, mas não tomaram conhecimento das acusações e voltaram-se
viam escolhido. M oravam em Londres, freqüentavam a sociedade os­ tranqüilamente para outros objetivos: M acpherson dedicou-se à polí­
tentando suas condecorações e insígnias suspeitas, e eram b astante co­ tica indiana, e os Sobieski Stuarts, a uma vida irreal no estrangeiro.
nhecidos no Salão de Leitura do M useu Britânico, onde tinham uma Também havia, entretanto, grandes diferenças. M acpherson era
mesa reservada, sendo que " suas canetas, corta-papéis, pesos de papel um fanfarrão ganancioso, cujo objetivo, seja na l iteratura ou na politi­
etc. eram encimados por coroas abertas em miniatura, feitas de ou­ ca, era o de adquirir fortuna e poder, e dedicou-se a alcançar esse obje­
ro. 39 Em 1872 foi feito um apelo à Rainha Vitória para que se ameni­ tivo com uma determinação impiedosa, sendo, no final, bem sucedido.
zasse a miséria de seus supostos parentes, mas a crítica da Quarter/y Os Sobieski Stuarts eram homens amigáveis, eruditos, que ganhavam
foi lembrada, e o pedido não foi aprovado.•º Em 1 877, o irmão caçul a, discípulos em virtude da inocência que manifestavam; não eram falsá­
agora sozinho, fez uma t entativa anônima de reivindicar os títulos, rios, e simfantaisistes. Eram também autênticos na medida em que vi­
mas foi novamente reduzido ao silêncio por uma menção sobre a viam suas próprias fantasias. M orreram pobres, ao contrário de
Quarter/y.• Pode-se dizer que eles, assim como J ohn Keats, foram li­
1 M acpherson. A riqueza por eles gerada foi para os fabricantes dos tar­
quidados pela Quarterly: aliás, muitos pensam que foram as mesmas tans diferenciados segundo os clãs, que agora são usados, com entu­
mãos que liquidaram os três.•2 Contudo, nunca fa ltou quem acreditas- siasmo tribal, por escoceses e supostos escoceses desde o Texas até a
cidade de Tóquio.

37. Stewart, op. cit.


38. Stewart, op. cit. B. Não parece possível descobrir nada sobre Thomas Allen, tenente aposentado da
39. Dictionary of Nationa/ Biography, art. cit. Real M arinha Britânica. pai dos Sobieski Stuarts. Os sobrenomes e títulos posteriores
40. Manuscritos do Castelo de Windsor, porte pago 1 /79. dde estão registrados apenas nos escritos e falsificações feitas por seus filhos, que neces­
4 1 . Notes and Queries (jul. - dez. 1 877), pp. 92, 1 58, 2 1 4, 3 5 1 , 397. As cartas assinadas ;uavam deles para fins genealógicos. Não se sabe se o pai tomou parte, de algum modo,
" R I P" e " Requiescat in Pace" foram sem dúvida escritas por Charles Edward Stuart. 1b embuste. Era obviamente um ermitão. M orreu em Clenkerwell em 1 839 (e não em
42. J. G. Lockhart, autor da famosa crítica a Keats, era tido por alguns - embora erro­ 1 852. como se afirma no Dictionary of Nationa/ Biography), depois do que o filho mais
neamente - como autor da denúncia contra os Sobieski Stuarts. velho (e. após a morte deste. o caçula) adotou o título de Comte d 'Albanie.
53

3 . Da Morte a uma Perspectiva:


a Busca do Passado Galês
no Período Romântico
PRYS MORGA N

A MOR TE D O A LEGRE PA ÍS DE GA LES

1' Quando se examina a vida cultural do País de G ales no século


XVI I I e inícios do século XIX, percebe-se um paradoxo surpreenden­
te: por um lado, a decadência ou extinção de um antigo modo de vida
e, por outro, o irromper sem precedentes do interesse pelas coisas gale­
sas, acompanhado de tentativas extremamente conscientes de preser­
vá-las ou desenvolvê-las. O historiador galês Peter Roberts' escreveu
um relatório sobre o velho estilo de vida, em 1 8 1 5, no qual observava:
Quando, por causas políticas ou de outra natureza, os hábitos e costumes
de uma n ação sofrem, em geral, uma grande transformação, torna-se in­
teressante pesquisar como eram a ntigamente esses hábitos e costumes.'
Quase todos os costumes pitorescos do País de Gales tinham sido
"completamente abandonados", sendo que não restava nenhum traço
de certas crenças druídicas. O Hon. John Byng visitou a cidade de Bala
em 1 784, lá voltando em 1 793, e queixou-se de que "em dez anos, os
hábitos dessa gente parecem ter-se modificado". As manifestações da
alegria galesa haviam desaparecido, os galeses estavam ficando iguais
aos ingleses. e :1 viagem perdeu toda a graça. ' A decadência e a restau­
ração entremeiam-se de maneira curiosa, porque via de regra aqueles
que deploravam a decadência foram os mesmos que deram início à
restauração. Segundo R.T. Jenkins, o século X V I I I não foi apenas o
século da Restauração Metodista, mas acima de tudo o século das res­
taurações: educacionais, agrárias, industriais e culturais. A Renascen­
ça Galesa, ou a restauração da antigüidade, se não foi a mais maciça,
foi certamente a mais original.' N este período os patriotas e estudiosos

A hiografia da mai,,ria <ias pessoas mencionadas n este capítulo está no Dictionarr


o/ We/sh Bi11graph1· dm, ·11 to / 'NO ( Londres. 1 959). mas a de Peter Roberts encontra-se
no suplcmcn l o galês do dicionário ( Londres. 1970).
2. Peter Rohcrts . Ca111hria11 Popular A ntiquities ( Londres. 1 X 15). introd.
3. C. Bruyn Andrews (org.). The Torrington Diaries (Lon�res. 1936). i i i. pp. 254-5.
4. R. T. Jenkins . llane.1 Crmru rn r Ddeunattfed Ganrif ( H i stória de Gales no século
X V I I I ) (CardilT. 192X). pp. 2. 104-34. C f. E. Ô:NS: A Hi.Horr of Wa/eJ /660- 1815 (Car-
diff. 1976). pp. 23 1-50.
54 55

galeses redescobriram as velhas t � adiç� es � is_t óricas, ling�í s�icas e lit�­ E assim o Todo-Poderoso se compraz em lidar conosco, os britânicos;
pois estas várias idades eclipsaram nosso poder, corromperam nossa
rárias e criaram um passado que J amais ex1st1u para subst1tutr as tradi­ língua e quase nos riscaram das páginas da História.'
ções inadequadas. A mitificação romântica atingiu níveis fantásticos
no País de Gales, marcando para sempre a história recente d� região. A última frase era fundamental, pois no cerne da perda da auto­
O fato de que os estudiosos que perceberam a decadência foram confiança estava a perda do sentido de história. Em Esopo ( aprox.
os autores da recriação do passado não representa grave obstáculo. 1 697), Sir J ohn Vanbrugh faz com que E sopo entre em _contato � om
Edward J ones ( 1752- 1824), harpista de Jorge IV, lamentou no seu li­ um mensageiro galês, que a propósito se chamava Quaint (exótico),
vro sobre a música galesa, The Bardic Museum (O M useu dos B ardos): que explica seu oficio dizendo que naturalmente sua mãe era "galesa" .
A súbita decadência dos bardos e dos costumes do País de Gales pode ser Esopo: Galesa? Por gentileza, de que pais era ela?
atribuída em grande parte aos impostores fanáticos, ou pregadores ple­ Quaint: Senhor, de um país que fica nos confins do mundo, onde todo ho­
beus analfabetos, que apesar de infestarem o interior foram mui�as vezes mem já nasce fidalgo e genealogista.'
tolerados, desviando a maior parte do povo do caminho da Igreja legiti­
ma· e convencendo-os a abandonarem seus divertimentos inocentes, Segundo esta imagem, o � ais de Gales é � m exótico fi_m de i:nund_o
qu�is sejam, o canto, a dança e outras distrações e jogos �urais, que esta­
_ onde aristocratas que mal ti nham o que vesttr desfiavam intern_i! n�ve1s
árvores genealógicas que partiam do Enéias ? e Tróia, uma r�g1ao irre­
vam acostumados a apreciar até aquela data, desde o mlc10 dos tem­
pos . . . Em conseqüência. o País de Gales, antes um dos países mais ani­
mados e a legres do mundo, transform ou-se num dos mais melancólicos.' mediavelmente atrasada, cujos habitantes tinham ancestrais a valer,
mas não dispunham de uma história nacional.
D evido aos diversos livros sobre música galesa publicados entre 1 784 e Nos séculos anteriores, isso não era problema. Simplifi cando, a
1820 Edward J ones foi um daqueles que trouxe a cultura galesa da de­ velha visão galesa da história englobav a três aspectos: a origem da na­
cadê�cia e sobrevivência inconsciente à restauração consciente, e o re­ ção, a conversão ao cristianismo e as vidas dos príncipes nativos. A
sultado, embora à s vezes falso, jamais foi melancólico. parte mais antiga compreendia um conjunto de mitos ou fábulas se­
U m número b astante restrito de estudiosos galeses já havia perce­ gundo as quais os galeses foram o povo mais antigo, o primeiro das
bido há muito o desaparecimento de um estilo de vida peculiar dos ga­ Ilhas B ritânicas (daí os "britânicos" de Thomas J ones). O s galeses de­
leses. No século XV I, a cultura nativa ligada ao catolicismo desapare­ coravam os fatos que diziam respeito a seus heróis antigos, sua luta
ceu em grande parte, sem que uma cultura galesa esJ? ecifica!D ent_e pro­ para expulsar as hordas de invasores, suas derrotas e contra-ataques,
testante viesse a ocupar-lhe inteiramente o lugar; o s1stemaJ � ríd1c? lo­ em períodos compostos de três orações, as "tríades da Grã­
cal foi extinto o sistema bárdico sofreu atrofia, a língua antiga foi b a­ Bretanha" . 1 A segunda parte desta visão dizia respeito à cristandade
nida do âmbito administrativo e, embora as classes do funcionalismo britânica, introduzida na época do domínio romano, e defendida dos
ainda falassem galês, ou adotavam atitudes anglicizadas, ou co� por­ saxões pagãos pelos galeses com heróis como Ambrósio Aureliano e ?
tavam-se relativamente de acordo com os padrões da E uropa O ci den­ R ei Artur. Em todas as localidades a igreja ou a fonte sagrada eram li­
tal. A decadência continuou através dos séculos XVII e XVIII, ma� a gadas a este tema central por intermédio � e santos co_mo S. D a� i ou
fase crítica só foi atingida no século XVIII, pois até então os estu�10- outros santos célticos. A terceira parte da visão era mais convencional
sos podiam consolar-se com a i� éia d_e que o povo � uard_ava muitas e relacionava-se à genealogia dos príncipes nativos que descendiam de
das velhas tradições. A fase critica foi marcada a princípio por uma líderes tribais ou aliados dos romanos como Cunedda, chefe galês do
perda de autoconfiança. Thomas J ones, escritor de almanaques e lexi­ séc. X d.e:. ou de Cadwaladr, o Bem-Aventurado, o ú ltimo rei galês a
cógrafo galês, disse em 1688: reivindicar o domínio da Grã-Bretanha, no século V II, até a morte de
Existe um tempo delimitado tanto para as linguage�s q �anto para �s im­ Llywelyn II, em 1 282. Em meados do século XV III, os habitantes de
périos; ambos tiveram sua infância, fundament?s e mlc10, seu crescimen­
to e aumento tanto no sentido de pureza e perfeição quanto !1º aspecto do
alastramento e propagação; seu período de estabilidade; e sua velhice, de­
6. Thomas Jones, The British Language in its Lustre (Londres, 1 688), prefácio.
finhamento e decadência.
7. B. Dobrée e G. Webb (orgs.), The Works o/Sir John Vanbrugh (Londres, 1 927), II,
p. 33 .
8. Rachel Bromwich, Trioedd Ynys Prydein, the Triads of the Is/e of Britain (Cardiff,
5. Edward Jones. The Bardic Museum (Londres, 1 802), introd. p . X V I . 1 96 1 ), e Trioedd Ynys Prydein in We/sh Literature and Scholarship (Cardiff, 1 969).
56 57

Builth eram injustamente chamados de "traidores de Builth" . porque G eoffrey M onmouth, por considerá-lo fantástico demais. Depois, o
Llywelyn fora assassinado nas proximidades. que restou dessas críticas e adaptações foi apropriado por estudiosos
Durante a última parte da Idade Média, estas três partes diferen­ ingleses como se fosse a história primitiva anglo-britânica, uma vez
tes confundiram-se e transformaram-se. No século XII, Geoffrey de que desejavam relacionar a Inglaterra à antigüidade britânica. 1 2 Ob­
Monmouth adaptou os mitos antigos e inventou uma tradição galesa; viamente, lá pelo fim do século XVII, fragmentos e partes isoladas de
deu ênfase às origens troianas dos britânicos, sendo que a Bretanha as­ um a tradição bastante antiga foram decorados pelo povo sob forma
sim se chamou por causa de Brutus, e o nome Gales (Cymru) veio de de histórias domésticas, histórias de Emrys (Ambrósio), M erlin, Ar­
Câmbria; enfatizou também o papel heróico do Rei Artur. Esta ver­ tur, Taliesin e outros, segundo os correspondentes de Edward Lhuyd
são da história galesa era ainda teimosamente defendida pelos histo­ na década de 1690. ' 3 Esses fragmentos não faziam parte de um todo
riadores galeses em meados do século XVIII, e um dos principais obje­ coerente, eram antes como pérolas soltas de um colar arrebentado. Em
tivos dos patriotas era encontrar e publicar o original galês que, segun­ alguns casos, fragmentos arcaicos de história galesa foram guardados
do eles, fundamentava a história de Geoffrey. Estudiosos galeses da é­ sob a forma de baladas, como "Hanes y Cymru" (História dos gale­
poca também estavam conscientes da outra dimensão da tradição ga­ ses), de M atthew Owen, segundo a qual os galeses ficaram indiferentes
lesa, a profética e messiânica, que projetava o passado galês no futuro. às antigas derrotas. "
Evan Evans, por exemplo, de certo modo faz isso em sua análise da A perda da história galesa exerceu influência prejudicial em ou­
tradição bárdica galesa, em 1 764. 9 Na sociedade céltica primitiva, os tros aspectos da cultura. E verdade que o acervo hoje existente de tex­
rates, ou videntes. prediziam o futuro, função muitas vezes assumida tos literários relacionados ao saber e à cultura galesa data de aproxi­
pelos bardos, e assim, após a perda da independência, em 1282, a lite­ madamente 1 550 a 1 700; G .J. Williams observou que tal acontece por­
ratura do brud, ou da profecia, adquiriu grande importância. 'º que os escribas e arqueólogos perceberam que seu mundo conhecido
A tradição histórica nativa tripartida transformou-se gradativa­ estava próximo do fim, e que era necessário um ato heróico de salva­
mente no século XVI. O elemento profético entrou em decadência, mento. pois a situação tornava-se cada vez mais desanimadora. 1 1 G.J.
embora a tradição fosse astutamente manipulada por Henrique Tu­ Williams ohservou tamhém um declínio gradativo na compreensão da
dor. com o fim de aliciar os galeses; Henrique fez-se passar pela figura cultura tradicional, de seus símbolos, linguagem, gramática, por parte
messiânica do "Segundo Owain", e usou sua descendência de Cad­ dos literatos galeses, e muitos dos possuidores de manuscritos confes­
waladr para legitimar as pretensões dos Tudor com relação à suserania saram que, embora falassem galês, não entendiam nenhum dos docu­
da Grã-Bretanha. Para outros, Henrique parecia simbolizar a tão es­ mentos que possuíam, exceto que eram documentos valiosos. Thomas
perada volta do Rei Artur. U m pouco mais tarde, a Igreja Anglicana Hearne considerava impossível persuadir os galeses a imprimir antigas
apoderou-se dos mitos galeses segundo os quais a Igreja britânica ha­ crônicas manuscritas: "todos se opõem, e estão inteiramente a favor
via sido fundada por José de Arimatéia, e assim a culpa por sua perda do desencorajamento de sua própria história".'' As formas líricas in­
de independência poderia ser facilmente atribuída não aos ingleses, glesas (se bem que utilizando a aliteração consonantal, ou cynghanedd)
mas aos normandos e ao Papa. 1 1 O restante da tradição galesa foi mais passaram a dominar na poesia. e a teologia protestante substituiu o
desdenhado como mito sem fundamento do que absorvido, porque simholismo e as alusões tradicionais nos remanescentes da poesia tra­
Polidoro Vergílio desacreditou grande parte do relato histórico de dicional . N o princípio do século XVIII um bom estudioso galês. John

1 2 . T. D. Kcm.lrick. Hnri,I, l 111iq11i1r ( Londres. 1 950). pp. 34- 1 34 .


9. Evan..Ev ans, Some Specimens of Ear/y We/sh Poetry (Londres, 1 764), principalmen­ I J. f- V I mcn. ··A "e" \ ,,,,unt of Smm donia 1 693 W r i t ten for EdY. ard l.huvd··.
_ ·
te o seu D1ssertat10 de bardis". .\ ,11/01111/ l.1hran o/ 11 a/n .lu11m11/. \ \ iii ( 1 974). pp. 405- 1 7.
10. M. M. G riniths, Ear/y Vaticination in We/sh with English Parai/els (Cardiff, 1937); 14 : D:d � dd fone,. H/udrngcnld Crn,n (Shre\\ sbu ry. 1 759). p. 1 50: e T. H. Parry
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pp. 1 04- 1 6. _
(,. J. \\ ill 1.i m s ( or)!. A. Lcl' i,). 4g•n,ddau ar /fanes Drsg Grm raed (Aspectos da Histó­
1 1 . Sydney A n �lo, "Th� British History in early Tudor propaganda", Bul/etin of the ria da hudiçào Ga lesa ) (( ·:,rdiff. 1 969). p11 1 1 i111. mas neste caso principalmente nas p p .
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Views of Early British Church H istory", History, uxviii ( 1 953), rei�presso nos ensaios 1 6. C itado cm J. Davic,. /lnn-d a G11·ai1 \toses Williams ( Vida e Obra de M oses
do mesmo autor, We/sh R efonnation Essays (Cardiff, 1 967), pp. 207- 1 9. Williams) ( C a rdiff. 1 93 7 ). pp 24-5.
58 59

M organ de M a tchin. escreveu ao assistente de Edward Lhuyd, M oses o grande trabalho d os líderes protestantes galeses isabelinos não
\\ ill i ;1 111s ( 4 ue fora dura nte algum tem po secretário da Real Socieda­ foi inteirafY1ente acompanhado de uma cultura secular galesa moder­
de). di1endo que assim co mo não se podiam ler os clássicos gregos e na. por ex.emplo, uma literatura secular, moderna. As le_tras galesas
romanos sem um dicionário q ue informasse sobre as alusões clássicas, eram ainda dominadas pelos bardos retrogrados ( que haviam tomado
era necessúrio haver também um d icionário de cultura galesa, sem o O lugiir dos historiadores, copistas, bibliotecários, arautos, músicos
qual a história e a litera tura galesas seriam como uma fechad ura sem etc.). sendo que esta modalidade de manifestação artíst!�ª ia po� co a
chave. pouco fenecendo, à medida que a cultura dos menestre1s parecia ser
cada vez menos significativa em relação à época vivida. A arte dos me­
Thomas J ones - que não foi o único - comentou em 1688 que o
nestréis, ao que parece, entrou em decadência em comunidades meta­
Todo-Poderoso havia "adulterado nossa língua", e cada vez mais ga­
de galesas ou inteiramente galesas a proximadamente ao mesmo tem­
leses começaram a cha mar o galês de heniaith , a "l íngua velha", como
se ela tivesse sido internada num asilo. O poeta e tropeiro Edward M o­ po; havia poucos menestréis profissionais em Glamorgan após 1660,
poucos em M ontgomeryshire após 16�0. e, mesm_o na longínqu� pe_ní n·
rus elogiou o bispo Lloyd de Sto. Asaph (um dos sete Bispos de 1688)
sula de Lleyn, se nos guiarmos pelo l ivro Cynfeirdd Lleyn (Primeiros
por estar aprendendo galês, e disse em galês que era uma língua " bas­
Poetas de Lleyn), de Myrddin Fardd, houve um considerável i ntervalo
tante gasta, que já tivera seus dias de glória" e que era "um delicado
entre o último bardo. em 1 640. e o seg uinte, um amador embarcado
pavão, agora velho" . 1 7 Os satiristas ingleses, tais como W . R . , em sua
Wallography ( Londres, 168 1 ), esperavam que a língua morresse logo; num vaso de guerra, surgido em 1 800. 2 1 Em Merioneth, o último me­
chamavam-na de "algaravia" de "Taphydom" , falada apenas pelas nestrel doméstico que conservou os hábitos antigos foi Sion Dafydd
classes mais baixas. Henrique Rowlands de Llanidan, em sua história Las de Nannau ( 1 690); deve-se lembrar, porém, que a aristocra cia de
Nannau e d os arredores ainda estava escrevendo poesia em galês (para
de A ngelsey. queixou-se:
si e para publicação) a té o início do século XIX, por diletantismo. Os
E recentemente, tendo o inglês circunvizinho praticamente usurpado seu bardos que não conseguiram mais encontrar emprego, ou que agora
lugar como li nguagem polida e corrente entre nós, restam-nos muitas pa­ n;10 cra m 111:11s hcm-vi ndos. queixaram-se amargamente da 111 uJ;1rn.;;1
lavras obsoletas e i n úteis, q ue outrora talvez fossem as flores e os adornos rcccntc duran tc os pri meiros anos do século XV III. sendo q uc alguns.
de nossa língu a . " como Sion Prichard Prys, em seu livro Difyrrwch Crefyddol, manifes­
taram uma fúria impotente contra o modo pelo qual " as colunas ha­
Assim como todas as outras coisas galesas, a língua não tinha status, viam sido derrubadas" . 22 Os grandes da Gália não davam mais apoio à
era "desprezível" (termo usado por Thomas J ones, em 1688). Por vol­ cultura nativa, de modo que a "Arte debilitou-se, a Língua envelhe­
ta de 1 7 30, o poeta e squireen H uw H ughes escreveu ao grande estu­ ceu, tudo por fraqueza, e ora erram por caminhos incertos, à beira de
dioso Lewis M orris, dizendo que todos os defensores da linguagem ha­ sua própria destruição" . ' ' Não interessava que ainda houvesse poetas
viam desistido. '• O galês sobreviveu e foi preservado da fragmentação amadores entre os membros da baixa aristocracia ou no meio do povo,
em dialetos pela l iturgia anglicana e pela Bíblia galesa e literatura apo­ que ainda se publicassem l ivros de poesia. Os bardos só tinham olhos
logética protestante. Só que não havia na língua quase nenhum meca­ para um passado recente em que cantavam para a sociedade inteira,
nismo de modernização ou de desenvolvimento, e parecia não haver desde os grandes até os camponeses, em que todos participavam de
também nenhuma d inâmica real subjacente a ela. Assemelhava-se, uma vida alegre e prazenteira, em que o estilo de vida era harmonioso
conforme se vê na pitoresca folha de rosto do d icionário de J ames H o­ como um todo. O impiedoso satirista Ellis Wynne, clérigo originário
well ( 1659), a uma g uerreira amedrontada das tlor�stas, quand ? com,;,
parada às damas da corte inglesas ou francesas, ri camente traJadas.·
2 1 . G. J. Williams. Traddodias Llen_rddol Morgannwg (Tradição Literária de Glamor·
gan) (Cardiff. 1948): Enid Pierce Roberts, Bras/un o Hanes Llên Powrs ( Esboço da His­
1 7 . O. M. Edwards (org.). G1rnith Edward Morm (Llanuwchllyn. 1 904). pp. 2 1 -4. tória Literária de Powyss) ( Denbigh, 1 965); e M yrddin Fardd, Cynfeirdd Lleyn ( Poetas
I X. Henry Rowlands. Mona A ntiqua Re.Haurata ( Dublin, 1723). p. 38. A ntigos de Lleyn) ( Pwllheli. 1 905).
1 9 . Hugh Owen ( org.). A dditional Letters of the Morrises of A ng/esey, 2 vols. (Londres, 22. Gwyn Thomas . . . A Study ofChange in Tradition in Welsh Poetry in 1\/orth Wa/es in
1947·9). i. p. 1 3 . the Seventeenth Centurr . . (Oxford. tese de doutorado, 1 966).
20. James H owell. Lexicon Tetrag/otton (Londres. 1659). contém uma parte dedicada 23. Sion Prichard Pr):S. Di(rrrv,ch Crefrddo/ ( Recreação religiosa) (Shrewsbury. 1 72 1 ).
aos provérbios galeses. prefácio.
60 61

da baixa aristocracia, não gostava dos bardos, mas também detestava co nseguido encontrar ninguém que entendesse a m úsica galesa antiga,
os elementos m odernos da sociedade, e, com o Sion Prichard Prys, de­ em bora as listas de canções e as instruções para afinação e manejo dos
tectava nela uma espécie de vácuo: ele descreve a "imensa casa senho­ in stru mentos antigos constassem de muitos manuscritos galeses. Anos
rial escancarada" , cujos d onos haviam partido para a Inglaterra ou a depois, os irmãos M orris e seu círculo de amigos encontravam por
França "em busca do que poderiam encontrar com muito mais facili­ acaso um enorme álbum de m úsica galesa antiga, escrito com estra­
dade em sua terra". deixando a mansão entregue ás corujas, aos cor­ nho s caracteres. O autor era Robert ap H uw, o harpista do Rei Jaime
vos e às gralhas: J ; a data era 1 6 1 3. Robert vinha da mesma região da linha de Angle­
sey que os irmãos M orris, e faleceu em 1 665, apenas uma geração de­
Havia um grande número desses solares abandonados, que poderiam ter
sido, se não fosse o orgulho, o fantasma que persegue os melhores ho­ pois do nascimento dos M orris. A família M orris apreciava muito a
música: reuniam-se ao redor da harpa para cantar. sabiam a finar a
mens desde os tempos de outrora, um abrigo para os fracos, até uma es­
cola de paz e de bondade, e uma bênção para as centenas de casas que as crwth ou crota (antigo instrumento m usical celta), seus empregados,
circundavam." en quanto iam reunir o rebanho, tocavam velhas árias no pibgorn (uma
charamela primitiva), adoravam Vivaldi e Corelli e j ulgavam-se verda­
M esmo que tivessem ficado em casa, os nobres mais ilustres e a peque­ deira s autoridades em matéria de m úsica galesa. Contudo, um exame
na nobreza nunca se veriam como parte de uma pequena com unidade mais minucioso do caderno do jovem Richard M orris, repleto de me­
local unificada e harmoniosa . A casa-grande tradicional galesa estava lodias para rabeca, revela que quatro quintos das m úsicas vêm com
agora em extinção: a aristocracia não vivia mais numa mansão cheia títulos em inglês. 1 ' O grande álbum de Robert ap H uw (que represen­
de agregados . criados. amigos e bardos. 1 ' Levavam vidas privadas. e. tava uma seleção de música medieval) era inteiramente incompreensí­
ao replanejarem suas casas. adotaram os estilos londrinos. acabando vel, para eles e para qualquer outro m úsico galês do século XVII I . N a
com os estilos regionais pátrios. Já em 1 700, os galeses estavam viven­ m aior parte d o país, a antiga música tinha sido associada aos ritos e ri­
do de acordo com os hábitos londrinos do século anterior, ou mais an­ tuais da vida cotidiana, e evoluía juntamente com eles. Em fins do sé­
tigos. " culo X V I I , um dos correspondentes de Edward Lhuyd escreveu-lhe en­
A ruptura cultural foi nitidamente constatada n o mundo d a músi­ quanto ele se encontrava no M useu Ashmolean, em Oxford, descre­
ca. No fim do século X V I I I um colecionador de danças folclóricas ga­ vendo-lhe como era a vida antigamente em L landrillo, uma aldeia
lesas, William fones de Llangadfan, admirou-se de ver que uma tradi­ longínqua próxima à cidade de Bala:
ção de tantos séculos tinha desaparecido num período tão curto. Lewis Todo domingo de Páscoa Dafydd Rowland, velho tocador de crota, cos­
M orris enviou um poema anexado a umas cordas de harpa, para o dia­ tumava subir à tarde, acompanhado pelos jovens da paróquia, até o alto
rista William Bukeley, squire de Brynddu, em A nglesey, em 1 726: a de Craig Dhinan. para dividir os bois brancos. Depois. tocava uma melo­
quadri nha dizia mais ou menos o seguinte: dia chamada Ychen Bannog e todas as outras músicas antigas, que morre­
ram com ele."
Que lástima hoje em G ales não haver
Nem música, nem júbilo ou prazer
Outrora, no entanto, em cada lar Se estes bois fossem como os de G lamorgan, eram adornados com flo­
Havia sempre uma harpa, a vibrar." res e cercados de dançarinos coloridos, formando um quadro digno de
ser incluído na "U rna Grega" de Keats. Ychen Bannog eram os avan­
John Roderick, escritor de almanaques e gramático, já velho e pessi­ tajados bois de chifres longos da Europa primitiva . Quando o velho
m ista, escreveu a Lewis M orris, em 1 729, lamentando o fato de não ter músico morreu, extinguiu-se uma tradição que já vinha de muito lon­
ge. A crota mal era conhecida no Sul de Gales, e Daines Barrington i n­
formou à Sociedade de Arqueólogos em 1 770 que o último dos toca­
24. Ellis Wyn ne. G1<·e/ed1iaetheu _r Bardd Cwsc ( Visões do Bardo Adormecido) (Lon­
dores de crota galeses ainda v ivia em A ngelsey, embora sem sucesso-
dres. 1 703 ). p. 1 3. Cf. Gwyn Thomas. Y Bardd Cwsg a'i Gefndir (O Bardo Adormecido e
seu Contexto) (Cardiff. 1 9 7 1 ).
2 5 . Peter Smith. Houses o f the We/sh Countr_rside ( Londres, 1 975).
26. M ark Girouard. L1fe in the Eng/ish Countr_ r House ( Londres, 1 978), pp. 1 0, 1 38. 28. Parry-Williams. op.. cit.
27. H ugh Owen (org. ). Life and Works of Lewis Morris ( Anglesey Antiquarian Society 29. Edward L h uyd (org. R. H. M orris). Parochialia (Archaeologia Cambrensis, ii.
and Fjeld Club Publications. 1 95 1 ). p. 1 62. 1 909- 1 1 ) . p. 59.
62 63

res. Até mesmo a velha harpa simples galesa havia sido substituída no A descrição feita por Pennant do squire montanhês Lloyd of Cw m By­
século XV II por uma harpa tripla maior. Após 1660 houve uma inva­ chan em M erioneth, isolado dos modismos modernos, enclausurado
são de canções e baladas no estilo inglês, acompanhadas por um exér­ em refúgios na montanha, vivendo de maneira quase medieval, ali­
cito de melodias inglesas. O círculo dos M orris sabia que estava che­ mentando-se de papa de aveia e de cabrito assado, bebendo tragos de
gando ao fi m o costume de cantar versos ao som da harpa, pratica­ cerveja caseira num escroto de búfalo e desfiando sua árvore genealó­
mente confi nado, por volta de 1738, a localidades longínquas, como os gica desde os príncipes galeses, era o retrato de um sobrevivente exóti­
condados de Caernarfon e M erioneth. 30 co.3: H enry Lloyd of Cw m Bychan, parente de Lloyd, estava naquela
Na década de 1690, Edward Lhuyd e seus correspondentes já ha­
viam percebido que uma enfadonha uniformidade e�tava começando a
.f
i
época percorrendo a Europa na qualidade de estrategista, escrevendo
livros sobre estratégia que viriam a influenciar Napoleão.
insinuar-se na vida galesa. Por exemplo, eles compilaram com todo o Os irmãos M orris, Lewis, R ichard e William, eram amigos de
carinho os raros nomes de batismo nativos, tais como Llywarch, Go­ Thomas Pennant, e as muitas cartas que trocaram entre si dão uma
leubryd, Tegwared, T angwystl e daí por diante, substituídos por no­ boa idéia de um mundo que cada vez se tornava mais sóbrio e grave.
mes estereotipados como John e W illiam. O sobrenome fixo, em vez Os Morrises não eram nada puritanos, e os seus editores sempre foram
de uma série de patronímicos ligados pela partícula ap (filho de), tor­ obrigados a suprimir trechos das cartas por motivos de decência, mas
nara-se geral durante os séculos XVI e X V II nas classes mais altas, e o sis­ sabiam que as coisas estavam mudando. Seu amigo Thomas Ellis, vi­
tema antigo, que dava ênfase à genealogia das pessoas e à inter-relação gário de H olyhead, liderou um movimento de reforma moral em An­
entre os membros da comunidade que descendiam de um ancestral co­ glesey, transformando velhos rituais, expulsando da ilha todos os adi­
mum, resistiu apenas nas regiões mais distantes e entre as camadas hu­ vinhos, acabando com as vigílias e impedindo o povo de ir aos interlú­
mildes da população. H avia uma tendência geral ao comportamento dios. Ao que parece, ele logrou êxito com relativa facilidade, como se
elegante e polido, que via de regra espelhava-se não nos costumes gale­ o velho estilo de vida já estivesse em extinção. W illiam Bulkeley de
ses, mas nos usos da Inglaterra e da França. A Sociedade dos S argen­ Brynddu anotou em seu diário no dia 3 1 de outubro de 174 1: "Hoje à
tos da M arinha, acusada de ter tendências jacobitas, era um clube noite vi pouquíssimos coelcerths e fogueiras, o que talvez indique que
aristocrático fechado, no O este de Gales, que admitia mulheres como os velhos rituais supersticiosos estão a ponto de extinguir-se" . Esta
membros e tinha regras contra a linguagem de baixo calão e mau com­ mudança é confirmada por duas autobiografias camponesas remanes­
portam ento. Surpreendentemente, muitos senhores_de terras inten� s� a­ centes da Anglesey do século XV III: a de Rhys Cox33 e a de M atthew
vam-se pelos estudos arqueológicos ou pela traduçao de obras rehg10- Owen, primo do beberrão e irresponsável gênio poético Goronwy
sas para o galês, e certos membros da alta aristocracia eram devotos Owen3• . Estes textos revelam uma ilha apaixonada pelos esportes vio­
fervorosos, como Sir J ohn Philipps de Picton, sócio fundador da So­ lentos, onde se disputavam partidas de futebol terríveis que hoje em
ciedade para Promoção dos Conhecimentos Cristãos. W illiam B ulke­ dia envergonhariam qualquer torcida, uma ilha que se tornaria, contu­
ley de B rynddu, que, como sabemos, tinha uma harpa e adorava cole­ do, sóbria, grave e recuperada em inícios do século XIX. f: este o qua­
cionar poemas galeses, eram abstêmio, metódico e devoto, completa­ dro que obtemos de Edmund Hyde H all, na descrição que ele faz por
mente oposto ao incapaz e beberrão squire B ulkeley de D ronwy, do sé­ volta de 18 1 O, do condado de Caernarfon, lugar onde a vida do povo
culo XV II, autor de um r elato que existe até hoje. Thomas Pennant, estava sendo mudada em parte pelos fanáticos, e em parte pelo " espíri­
11

uma das figuras de proa da restauração histórica do século XVIII, to ganancioso da época", que não proporcionava aos homens lazer su­
costumava tomar seu chá de tarde na residência de verão onde seus an­ ficiente. A vida alegre do povo galês havia chegado ao fim; ele sentia
cestrais promoviam orgias regadas a vinho. Como outros observadore� que:
da sociedade galesa, ele percebeu que o velho costume do "terming",
ou seja, das peregrinações violentas de bar em bar, estava em extinção.
A maior parte destes folguedos e passatempos jazem agora no fundo das
covas para eles cavadas talvez em parte pelo desenvolvimento do raciocf-

30. Sobre os M orrises e seu círculo, veja J. H . Davies (org.). The Morris Lel/ers. 2 vols.
( A berystwyth. 1 906-7). The Letters of Goronwy Owen (Aberystwyth. 1 924); e Owen. Ad­ 32. Thomas Pennant. Tours in Wa/es. Journey to Snowdon ( Londres, 1 78 1 ), ii. pp. 1 1 4-
ditional Letter., . 1 6. Sobre Henry Lloyd, veja Dictionary of National Biography, s. n.
3 1 . H ugh ÜY..en (org.). The Diary of William Bulkeley of Brynddu (Anglesey Antiqua­ 33. Impresso in Lleuad yr Oe, (Swansea. 1 827), pp. 3 1 6- 1 8. 374-6.
rian Society and Field Club Publications. 1 93 1 ). pp. 22- 1 02. 34. I mpresso in Crmru (Caernarfon. 1 908), xxxiv, pp. 253-7.
64 65

nio do povo, mas certamente de maneira mais direta pelo espírito acre do tavam virando reuniões de pregação, a célebre partida de futebol entre
metodismo." times de duas cidades do condado de Cardigan chamada Y Bê/ Ddu (A
Bola Preta) fora transformada por um pastor matreiro num espetáculo
O metodismo já era (embora não admitisse) produto de um com­ de catequização, devido à forte revolta contra as mortes causadas pela
plexo movim ento de m o ralização e evangelização do povo galês, partida. O grande folclorista Eliss Owen, em seu fascinante livro sobre
organizado por anglicanos dissidentes e evangélicos, mais ou menos as antigas cruzes de pedra do Vale do Clwyd,4° conta que a restauração
no período de 1 660 a 1 730, conforme foi recentemente demonstrado eclesiástica vitoriana retirou as escadarias que ligavam o coro das igre­
sem sombra de d úvida pela volumosa obra de G . H . Jenkins. 36 O meto­ jas às tavernas locais, eliminou os nichos existentes nas igrejas, reser­
dismo era certamente um movimento promovido por indivíduos cons­ vados para a cerveja que o pároco dava como prêmio aos vencedores
cientes que pretendiam salvar almas, tendo, porém, herdado m uitas dos jogos dominicais, proibiu os campos de futebol nos adros das igre­
das preocupações do movimento moralista anterior, no sentido de jas, e construiu enormes tumbas de mármore nos adros onde antes
promover a alfabetização, de pregar e divulgar o evangelho e de modi­ havia os bailes e encontros esportivos. Tudo isso interessaria aos fol­
ficar os h ábitos antigos. A cultura metodista, por ser extremamente jo­ cloristas, se não fosse pelo fato de que o povo cuja vida agora se havia
vial e vigorosa, ajudou a preencher a lacuna que surgira na vida do po­ modificado por completo era também o último repositório das tradi­
vo. Robert Jones de R hos-lan, em sua crônica altamente popular ções, da música, do conhecimento histórico, da poesia e da linguagem
sobre os primórdios do metodismo no Norte de Gales, sempre classifi­ galesas. As transformações na vida do povo tiveram importância capi­
ca o velho estilo de vida de "relaxado" e "vazio" .3' mas ao destruir a tal aos olhos dos estudiosos e patriotas, que perceberam que, para po­
cultura antiga os metodistas e outros dissidentes criaram um novo esti­ der sobreviver. o País de Gales necessitaria de alguns novos reforços
lo de vida galês que rompeu os vínculos do povo com o passado. À artificiais.
medida que o século passava, os almanaques galeses (que existiam em Os líderes metodistas não eram filisteus sem cultura. Thomas Jo­
abundância) passaram a trazer cada vez menos d ias santos, datas de nes de Denbigh compunha poemas excelentes usando os metros gale­
festas e feiras de padroeiros. Os rituais e costumes desapareceram gra­ ses: seu amigo. Thomas Charles de Bala, conhecia os manuscritos gale­
dativamente: por exemplo, a dança do mastro deixou de existir em Ca­ ses, amigo do m itólogo romântico William Owen (Pughe), e interessa­
pei Hendre (condado de Carmarthen) em 1 725, continuou em Aberda­ do pela lenda de M adoc (veja p. 93 e seguintes). Opunha-se veemente­
re (Glamorgan) até 1 798, e resistiu até meados do século XIX em Pen­ mente à velha cultura comunitária. Escreveu o seguinte a um amigo
deryn, nas charnecas acima de Aberdare. que estava em Bala em 1 79 1 :
No princípio do século X V I I I havia no País de Gales uma biblio­ Há muitos meses que não se tocam n a vizinhança harpas que não sejam
grafia considerável contra o apego dos galeses aos mágicos, adivinhos as harpas douradas que menciona São João. O instrumento não corre ape­
e bruxarias, quando estas coisas há muito já vinham definhando na In­ nas risco: já foi inteiramente destruído e eliminado."
glaterra. " M esmo assim , em 1 767, Edm und Jones, "o Velho Profeta"
criticava a descrença generalizada em relação à magia em G ales e o E no mesmo ano escreveu a outro amigo:
crescente saduceísmo que ela representava. Os velórios estavam sen­
1
• Esta restauração religiosa terminou com todas as reuniões alegres que se
do transformados em encontros de oração, as festas dos padroeiros es- faziam para dançar, cantar ao som da harpa, e cair em toda sorte de fol­
ganças pecaminosas, que eram hábito entre os jovens daqui.''
A última feira realizada tinha sido a mais sóbria e recatada que ele ja­
35. Edmund H yde Hall ( org. E. G. Jones), A Description o{ Caernarvonshire in / 809-/ / mais vira. No século X V I , Camden havia indicado Llanrwst, em Den­
(Caernarfon. 1952). pp. 3 13- 14. bighshire. como centro de man ufatura de harpas. Samuel Lewis, em
36. Geraint H. Jenkins. Literature. Religion and Societr in Wales /660-1 730 (Cardiff.
1 978).
37. Robert Jones (org. G . Ashton). Drrch rr A mseroedd ( Espelho das Eras) (Cardiff.
1 958). p. 46. A edição original é de 1 820. 40. Elias Owen. Old Stone Cro.ues o( the Vale of C/...-_rd (Londres. 1 886). Owen era mi­
38. Geraint H. Jenkins. "Popular Beliefs in Wales from the Restoration to M etho­ n istro e famoso estudioso do folclore galês na época vitoriana.
dism", Bul/etin of the Board o( Celtic Studies. x wii ( 1977). pp. 440-62. 4 1 . W . H ughes. Li/é and Le11ers o( Thomas Charles of Bala ( Rhyl, 188 1 ). p. 182.
39. Edmund Jones. A Rela1ion o/Appari1io11.1 11 / Spiri1s . . . in Wales ( Londres. 1 767). Cf. 42. D. E. Jenkins. Li/e of Thomas Charles o( Bala. 3 vols. ( Denbigh. 1 908), ii. pp. 88-
Edgar Philips. Edmund Jone1 . lhe ()/,! Pmphet ( Londres. 1 959) 9 1.
66 67

seu Dicionário Topográfico de Gales, escreveu: "Antigamente, galês que ele não deveria apoiar mais uma sociedade assim tão velha e
Llanrwst era famosa pela fabricação de harpas; atualmente, as princi­ decrépita, que seria necessário envidar �sforços sobr.e-humanos par.a
pais atividades comerciais são a fiação de lã e a fabricação de meias" ." ganhar esse apoio. Daí a importância da invenção deliberada da tradi­
Autores do início do século XIX, tais como Peter Roberts ou ção em Gales.
William Howells descrevem um estilo de vida galês já decadente:• J
Mesmo as novidades relativamente recentes (datadas provavelmente do O EISTEDDFOD
século XVII), tais como as peças populares, o interlúdio (anterliwt) ou O eisteddfod, ou seja, congresso anual de bardos, não foi absolu­
as baladas líricas extinguiam-se rapidamente. As espirituosas e licen­ tamente uma invenção deliberada; a primeira reunião de que se tem
ciosas peças populares - "interlúdios obscenos", no dizer de Thomas notícia foi realizada em Cardigan pelo Lorde Rhys (um dos últimos
Ellis de Holyhead - foram sendo pouco a pouco substituídas por inter­ príncipes do Sul de Gales) em 1 176. A �alavra eisteddfod signific.a �pe­
lúdios de fundo moral ou social, à medida que passava o século, du­ nas "assembléia", e referia-se a um conJunto de concursos de musica e
rante a vida do maior ator e dramaturgo galês, Thomas Edwards poesia anunciados com um ano de ant:ce?ência, e nos qua�s �ram f�i­
"Twm o' r Nant". As peças saíram de moda antes mesmo da morte de tos julgamentos para atribuição de prem1os. Na Ida�e M edia, o e1s­
Twm, em 18 10. As baladas líricas, mesmo as que versavam sobre te- teddfod era também a ocasião em que os bardos (orgamza�os numa es­
mas moralistas, eram consideradas asneiras imorais na década de pécie de ordem ou corporação) arrum.avam a casa, exam1 � ando e au­
1820, e não tardaram a desaparecer.4 5 torizando os intérpretes dignos, e eliminando os maus. Assim como os
Aos olhos dos estudiosos e patriotas, o novo estilo de vida sóbrio legisladores galeses alegavam que seus códigos legais nativos se de­
parecia estranho, uma importação inglesa, que não provinha nem da viam ao antigo (porém genuíno) Rei H ywel, o Bom, os bardos tam­
aristocracia nem do gwerin , ou povo galês. William Jones de Llangad­ bém afirmavam que se reuniam de acordo com o "Estatuto de Gruf­
fan era um médico de aldeia anglicano, bastante influenciado por Vol­ fydd ap Cynan", que teria supostamente estabelecido um. sistema de
taire, que pouco tinha em comum com as idéias políticas realistas e le­ regras eficiente para a ordem dos bardos em 1 100. No e1steddfod de
galistas do grande harpista Edward Jones. Para William, Edward esta­ Carmarthen, em 1450, os testes para os bardos foram mais elaborados
va recolhendo música e folclore na última hora, e Edward pensava o e difíceis; por exemplo, eles tiveram que fazer composições utilizando
mesmo a respeito das danças antigas que William recolhia e descre­ uma combinação de vinte e quatro metros diferentes e elaborados, to­
via.'º Edward Jones e seus iguais pertenciam às fileiras da baixa aristo­ dos com aliteração controlada complexa. No século XVI houve dois
cracia e dos pequenos proprietários; alguns, como Pennant, eram da eisteddfodau importantes, realizando-se ambos em Ca_erwy �, ci.dade si­
alta aristocracia latifundiária; eram todos bastante conscientes, esta­ tuada no condado de Flint ( 1523 e 1567), mas estes dois fest1va1s foram
vam um pouco afastados da ralé, e perceberam que era necessário pro­ apenas um crepúsculo; as tentativas de rememorar os esplendores do
curar, encontrar e preservar, assim como recriar o passado galês para passado esvaneceram-se quando do planejamento de um novo eiste1d­
o povo sob novas circunstâncias, levando-se em conta a cultura dos li­ Jod, na década de 1590. A ordem bárdica logo entrou em fase de extin­
vros impressos, o moralismo sóbrio, os transportes e comunicações ção, por inúmeras razões, mas principalmente porque os bar�os esta­
mais eficientes, e o desejo de criar clubes e sociedades que substituís­ vam ligados a um estilo de vida antigo que, por sua vez, tambem esta­
sem a velha e abrangente comunidade. Entretanto, tantos eram os fa­ va desaparecendo:'
tores racionais, inspirados pelo senso comum, que indicavam ao povo Já durante o declínio e a desintegração do velho estilo de vida, po­
demos observar os primeiros indícios de restauração. Os congressos de
bardos chamados eisteddfodau foram restaurados por volta de 1700.
4 3 . Samuel Le•·,is. Topographical Dictionary of Wa/es (Londres. 1883). no verbete por iniciativa de um gramático e escritor de almanaques, John Rode-
" Llan rwst".
44. Will iam Howells. Cambrian Superstitions (Tipton. 183 1).
4 5 . Thomas Parry, Baledi'r Ddeuna11,fed Ganrif ( Baladas d o século XVIII) (Cardiff.
1935). pp. 148-9. A. Watkin-Jones. " Popular Literature o f Wales in the Eighteenth Cen­ 47. Gwyn Thomas, l:J1teddfi,dau Caen.-rs (Cardiff. 1967) é uma obra bilingüe. um.a
tury··. Bulletin o/ the Board of Celtic Studies. iii ( 1926), pp. 178-95, e "The lnterludes of avaliação do eisteddfod da década de 1450 à de 1700. Helen _ Ramage. " E1steddfodau r
Wales in the Eighteenth Century", ihid.. iv ( 1928). pp. 103- 1 1. Ddeunawfed Ganrir· (Eisteddfi,dau do século XVIII). in ldns Foster (org.) T11fyr �1:'­
46. A biografia padrão de Edward Jones é Tecwyn Ellis, Edward Jones, Barddy Brenin teddfod ( Palácio do Ei.1 teddfi,d. 1968). pp. 9-29. H. Teifi Edwards. Yr Eisteddfod ( Palac10
1 752-11?24 (Cardiff. 1957) . do t"isteddfi,d. 1976) é uma avaliação geral. em galês.
68 69

rick; como ele divulgou os congressos pelos almanaques, eles passa­ até a década de 1 780, a partir da qual passou a ocorrer uma grande

1
ram a chamar-se Eisteddfodau dos A lmanaques. O público leitor havia t ran sformação na natureza da instituição restaurada, por estar ela vin­
aumentado bastante desde 1 660, e existia pelo menos um pequeno nú­ cul ada a uma nova força do século X V I I I , as "sociedades galesas" .
mero de amadores letrados ansiosos por entrar em contacto com um A ntes, seriam inconcebíveis as sociedades dedicadas a promover as
tipo de cultura que não se constituísse apenas de máximas morais ele­ coisas galesas, mas elas surgiram do século X V I I I e proliferaram n os
vadas, e por desfrutar das belezas e glórias da arte nativa. A final, exis­ •' sécu los X I X e X X . As primeiras foram criadas por galeses londrinos,
te uma diferença entre o melhor dos sanatórios e a nossa própria casa. que auxiliavam os galeses que vinham .ª Lo � dres, o � ganizavam festas
Como o último bardo profissional tinha praticamente parado de com­ no dia de S. Davi ( 1 9 de março) e prov1denc1avam aJuda para os gale­
por na década de 1 690, os poetas q ue com pareceram aos n ovos eis­ ses necessitados. A primeira sociedade foi a dos A ncient Britons (anti­
teddfodau eram amadores, sendo que as reuniões provavelmente não gos bretões), criada em 1 7 1 5, q ue_ deu o rigem, em 1 75 1. ' à !-{ onorável
passavam de encontros entre pequenos e médios proprietários q ue, Sociedade de Cym mrodonon, mais famosa do que a pnme1ra (a pala­
sentados às mesas cobertas de queijo e cerveja, em tavernas enfumaça­ vra Cymmrodorion significa autóctones, e refere-se tanto aos galeses
das, trocavam poemas ou então apenas lançavam uns aos outros ver­ quanto aos povos que primeiro habitaram a Grã-Bretanha). Esta se­
sos de pé quebrado. criando uma espécie de rh.ifel tajód ("desafio" ). De gunda agremiação tinha os mesmos objetivos sociais e de ajuda que a
vez em quando, eles se dividiam em equipes segundo os condados - dos A ncient Britons, mas a lém d isso procurava recolher toda espécie
Lewis M orris destacou-se n um torneio entre poetas dos condados de de documentos literários, interessando-se pela história, por antigüida­
A nglesey e Caernarvon. Não obstante, h avia um elemento tradiciona­ des e por problemas atuais. A Sociedade de Cymmrodorion ganhou
lista: os poetas procuravam ater-se às normas poéticas medievais. e co­ uma quantidade enorme de membros, muitos deles grandees . e uma
nheciam tanto os eisteddfodau dos Tudor quanto o Estatuto de G ruf­ vez que o povo queria algo mais informal, fundou-se em 1 770 o Gwy­
fydd ap Cynan. O livro de gramática que J ohn Roderick publicou em neddigion (ou seja. dos nativos do Norte de Gales). que dava ên fase ao
1 728 era muito mais do q ue uma simples gramática.'' Destinava-se aos convívio social entre os membros, cujos principais passatempos eram
bardos de taverna e continha uma quantidade considerável de tradi­ a poesia, a crítica literária, as canções e a música executada na harpa.
ções bárdicas; visava ajudar os menestréis a redigir composições me­ Estas sociedades e clubes que se encontravam nas cervejarias de Lon­
lhores para os pequenos eisteddfodau, a corrigir os camgynghanedd (a­ dres tinham seus respectivos membros também em Gales, e os galeses
literações incorretas) e mencionava, oportunamente, o Eisteddfod de da terra mostravam-se bastante i nteressados nas atividades das asso­
Caerwys. de 1 567. e tam bém G ruffydd ap Cynan. Dafydd Lewis. co­ ciações metropolitanas.'9 Ao final da década de 1 780, literatos do Nor­
nhecido de Edward Lhuyd, e reitor de Cadoxton. nas proximidades de te de Ga les perguntaram ao G wyneddigion de Londres se com seu di­
N eath (G lamorgan) publicara em 1 7 1 0 uma antologia mais antiga de nheiro e organização eles não poderiam promover eisteddfodau em
epigramas selecionados da poesia galesa medieval que. por custar ape­ Gales, em grande escala. A capacidade de organização devia-se, no
nas quatro pence, devia destinar-se às camadas populares. Rhys M or­ fundo, a alguns profissionais galeses que residiam na terra natal, tais
gan. da fazenda de Pencraig-Nedd, vizinho de Dafydd Lewis, embora como Thomas Jones, fiscal do imposto de consumo de Corwen e Bala,
fosse dissidente, havia entrado em contacto com John Roderick através e muitos outros. Foram eles que realmente estabeleceram o padrão e
dos almanaques ou dos primeiros eisteddfodau, e Roderick resolveu criaram a tradição, pois passou a haver divulgação com bastante ante­
imprimir em 1 728 uma awd/ (ode) de Rhys M organ , como modelo, cedência, preparação de estalagens e pensões para receber os visitan­
para mostrar como escrever usando os 24 metros determinados para tes, cartazes anunciando as competições, comparecimento de verda­
os bardos em 1 450. M organ era um homem da nova era, membro de deiras multidões para assistir ao evento durante vários dias, interlú­
um grupo de dissidentes literários q ue formaria a espinha dorsal do ra­ dios de autoria de Twm o'r N an t à noitinha, bancas de livreiros por
dicalismo político inicial nas montanhas de Glamorgan, durante a dé­ toda parte, vendendo livr0s galeses, prêmios de valor para poesia, pro­
cada de 1 770. sa e música, medalhas íicamente trabalhadas, impressos dando conta
Os chamados eisteddfodau de almanaque continuaram com algu­ dos julgamentos e dos vencedores. Em matéria de organização profis-
ma dose de êxito, porém sem n unca causar grande impacto público,

4X. Sion R hydderch (John Roderick ). G rammadeg Cymraeg (Gramática galesa) 49. R . T. Jenkins e Helen Ramage. A Historr of the Honourahle Society of Cymmrodo­
( Sh rc\\ shur� . 1 72 X ) . ri1111 / 7., J - J 'l5 / ( Londres. 1 95 1 )
1
70 71

sional, foi um absoluto sucesso, e foi também uma adaptação perfeita morga n. que adotou o pseudônimo poético de Iolo Morganwg (Neddy
de uma instituição bastante arcaica às circunstâncias modernas. Os li­ de Glarnorgan). Certamente precisaremos referir-nos a ele com fre­
teratos e músicos amadores aguardavam visivelmente um imenso
qüên cia, pois ele não só foi u � li �erato e arq �eólogo �orn �etente.
público. Existia agora um grupo de profissionais q ue sabia organizar
as coisas. Por causa do turismo, abriram-se algumas estradas razoá- -,; corn o também um m itólogo rorna � t1co que �eum u num s? muitos S_?·
veis no Norte de Gales, e havia uma associação de galeses londrinos nh os e modismos, manias e fantasias. I _olo tinha verdad7 1�a obsessa,o
abastados (tais como Owen J ones, ou "Owain Myfyr", o incansável pelos mitos e pela história, e a partir do interesse pelo dru1d1srno no se­
curtidor de couro londrino, pai do projetista vitoriano Owen J ones), culo X V I I I ele inventou a idéia de que os bardos galeses eram os her­
deiros dos antigos druidas, haviam herdado d� les os ritua ! s e . ritos, a
que desejava em pregar seu dinheiro em favor do País de Gales.
religiã o e a mitologia (religião que era urna mistura do umtansrno_ de
O padrão estabelecido em 1 789 foi seguido até 1 798, q uando se Joio e do culto à natureza típico do século X V I I I ) . Parece que ele cnou
tornou difícil promover grandes ajuntamento s de público. Depois da este ncodruidismo cm Londres. em 1 790 ou em 1 791 . e. convencido de
guerra. em 1815, tudo voltou ao que era antes e assim continuou, salvo que ele e seu amigo Edward Evan (ministro unitarista, harpi_sta e poeta
algumas modificações . As competições m usicais, inovação q ue não fi­ de Aberdare) eram os últimos bardos q ue restavam dessa hnha de su­
gurava nos eisteddfodau de almanaque, passaram a ter urna influência cessão apostólica. promoveu um debate bárdic? -dr_uídi� o e � Prirnrose
cada vez maior nos festivais. Em 1 791, em St. Asaph, o concurso entre Hill. Londres, em 21 de j unho de 1 792. Esta v1gance d1vert1da encan­
cantores de pennilion ( estrofes acompanhad as por harpa) durou 13 ho­ tou muitos dos galeses londrinos (corno seu amigo, Dr. David Sarn­
ras, sem que o público demonstrasse o mínimo sinal de cansaço. As es­ well. o médico do Cap. Cook). e muitos literatos galeses na terra natal .
plêndidas medalhas foram desenhadas por Dupré, que se tornou, na­ Ao voltar para Gales. Joio organizou vários núcleos de bar � o.s den � ­
quela época. o principal escultor oficial da recém-criad a República minados "G orseddau" , por todo o país. forneceu-lhes urna sene de ri­
Francesa; e o Gwyneddig ion ( que se interessava um pouco pelo radi­ tuais. urna liturgia, um cerimonial e tratou de criar para eles um corpo
calismo político) tentou fazer com que os bardos caseiros escrevessem druídico de tradições, até sua morte, em 1 826. J ustiça seja feita: Iolo
sobre as liberdades políticas, sem grande êxito. Monsieur Dupré foi o não estava simplesmente pensando no aspecto carnavalesco do Gor­
pont� mais próximo da Revolução a que os bardos conseguiram che­ sedd: esses grupos destinavam-se a restaurar a ordem bárdica, a tor­
gar. As vezes atribuíam-s e prêmios a poemas ou a textos em prosa nar-se urna instituição cultural nacional em Gales, urna espécie de clu­
sobre ternas legalistas, tais corno a recuperação sanitária empreendid a be de torcedores da linguagem , literatura e história galesas.
por Jorge I l i ou a derrota das forças de invasão francesas em Gales em Após 1 81 5 o clima era propício para q ue as invenções impetuosas
1 797 ( o clima em Gales tornou-se bastante anti-revoluc ionário); o de I olo surtissem efeito, numa atmosfera bem mais afinada com a ima­
mais interessante, porém, é que esses prêmios q uase sempre eram da­ ginação romântica. Iolo não teve m uito trabalho para co_nvencer seu
dos a textos com ternas his�óricos: Gales desde Cadwalard , o Bern­ público ( i ncl usive seu amigo. Dr. Thomas Bowdler. inventor da
A venturado, até Llwelyn, o U ltimo, o massacre dos bardos galeses em "bowdlerização") de que estava dizendo a verdade. De 1819 em dian­
1 282 feito por Eduardo 1 . e daí por diante, o que exerceu urna influên­ te, os eisteddfodau convocaram o auxílio do Gorsedd dos Bardos, e os
cia bastante forte na criação de um interesse popular pelas tradições cerimoniais destes foram incorporados à divulgação e promoção dos
galesas (às vezes até bastante espúrias). eisreddfádau. Alguns Gorseddau de Bardos provincianos. tais corno os
Após 1 81 5 , os novos eisteddfodau promovido s estiveram sob os de Anglesey e Powys, existem até h oje, vinculados aos eisteddfodau do
auspícios d as sociedades carnbrianas de Gales, sendo que a iniciativa interior. Outros, tais corno o que funcionava em Pontypridd, na parte
passou dos velhos clubes sociais londrinos para grupos de patriotas, industrial de Glarnorgan, no século passado, tinham atividades com­
na sua maior parte aristocratas e clérigos, no próprio País de Gales. pletamente desvinculadas dos eisteddfodau. Durante o século X I X ,
Houve outro momento de decisão, no eisteddfod provinciano promo­ realizaram-se cerca d e 5 00 eisteddfodau cerimoniais importantes no
vido em 1819 em Carrnarthe n sob os auspícios do Bispo Burgess, de S. País de G ales, e deve ter havido milhares de congressos menores em
Davi. Foi neste festival que o Gorsedd dos Bardos da Grã-Bretan ha capelas ou em corporações de operários, que nunca foram levados em
introduziu-s e pela primeira vez no q ue até então havia sido simples­ consideração. A introdução do Gorsedd em 1 81 9 tendeu a aumentar o
mente um conjunto de competições . literárias e musicais. O Gorsedd interesse do eisteddfod pelos mitos e lendas e, às vezes, pela exclusão
(que significa trono) tinha sido inventado por um dos mais espetacula­ quase que completa da literatura referente à vida rno �erna. O� eistedd�
res galeses da época, E dward Williams (1 747- 1 826), pedreiro de Gla- fodau nacionais (que foram se tornando cada vez mais organizados, a
72 73

medida que passava o século XIX) por um lado, geraram um i ncrível ele s e encantado em encontrar amuletos de pedra de cobra (glain neidr
interesse pela históri a (genuína e mítica) entre os galeses, e, por outro, ou maen magl) nas Terras Altas da Escócia. na Cornualha e em Gales.
deveram muito do seu sucesso popular ao mito do Gorsedd, seu colori­ porque eles pareciam com as ova anguina (ovos de cobra) que Plínio
do ceri moni al e suas imponentes pantorni mas. Foi l olo o primeiro a atr ibuiu aos druidas. Aliás. em 1698, Lhuyd classifi cou-as de "pedras
encarar o Gorsedd como algo que iria incorporar as competi ções e druídi cas" :: Foi na época de Lhuyd, por volta de 1 700, que os estu­
transformá-las em urna coisa muito mais durável do que meros con­ diosos começaram a relacionar mais os druidas aos galeses, conforme
cursos localizados e es_pecífi cos, em parte de um todo mais amplo, uma se pode constatar a partir da obra do excêntrico deísta da I rlanda.
institui ção nacional. E claro que l olo foi um louco sonhador, viciado John Toland. ou da história de Anglesey escri ta pelo amigo de Lhuyd.
crônico e láudano, uma droga que causava al ucina1,:ões; m as era im­ Henry Rowlands, que chegou até a dizer que certas ruínas pré­
pulsionado pelos mi tos históri cos, usando-os, por sua vez, p ara criar históri cas si tuadas em Anglesey eram santuários e altares de sacrifícios
novas tradições que tiveram efei tos profundos e abrangentes. Assim, o usadas pelos druidas. e coisas do gênero. No i nício do século XV II I. o
eisteddfod moderno surgiu depois que havia desaparecido o último druida sofreu urna fantástica transformação, passando a ser visto não
bardo profissional, e adquiriu sua colorida personalidade num mo­ mais corno o obscurantista arcano, que se entregava à prática de sa­
mento em que os velhos hábitos e costumes tinham morrido e a vida se crifícios humanos. mas corno o sábio ou i ntelectual que defende a fé e
tornara ( no diLer de Edward J ones ) insuportavelmente monótona. a honra de seu povo. e os galeses começaram a perceber que manti­
OS DR UIDA S A NTIGOS E MODERNOS nham com ele urna relação di ferente da relação que os i ngleses manti ­
nham com o druidismo. E m Gales. respirava-se druidismo; quando o
U rn a vez que os colegiais da Renascença na I nglaterra e na Fran­ vizi nho de W illiam Garn bold de Puncheston ( condado de Pembroke).
ça haviam sido empanturrados das Guerras Gálicas de J úlio César e do o Sr. Meredi th. quis parabenizá-lo pela publicação de seu livro sobre a
Agrícola de Tácito, os druidas sem dúvida acabariam sendo redesco­ gramáti ca galesa em 1 727, ele considerou adequado encarar Garn bold
bertos, pois foram eles que comandaram a resistência dos povos nati­ corno sucessor dos antigos druidas. O círculo dos M orris era fascinado
vos da Grã- Bretanha e da Gáli a aos invasores romanos. Os arqueólo­ pelos druidas. embora de maneira vaga e imprecisa, e quando Lewis
gos ingleses Leland e Bale levantaram no século XV I a hipótese de que Morris desenhou urn a bandeira para o Cyrnrnrodorion em 1 7 1 5 , colo­
os bardos galeses pudessem ser sucessores dos druidas, primeiro por­ cou um Druida Anti go para sustentar o brasão. O estudioso mais pre­
que o santuário druídico ficava na ilha de Anglesey, e depois porque ciso e erudito do ci rculo dos M orris. Evan Evans. "leuan Fardd".
os bardos, assim com os druidas, eram figuras de autoridade e ti nham quase sempre se referia aos druidas e obviamente os igualava aos bar­
uma função proféti ca.'º M ilton, em sua elegia Lycidas , igualou os bar­ dos galeses - a poesia galesa primitiva, segundo ele, era di fícil de ser
dos galeses aos druidas, e o professor de história de Leyden, M .Z. compreendida porque provavelmente ti nha sido composta na "Cabala
Boxhorn, ao publi car um livro sobre as origens da Gália em 1654, não dos Druidas". N um longo poema, The Love of Our Country (0 Amor
só incl ui u urn a reprodução do di cionário galês de Davies de M allwyd. ao nosso país). composto em 1 772, ele coloca os druidas corn o os pri­
corno também sua própria coleção de provérbios galeses traduzidos meiros numa longa linha de defensores da nação galesa, diante de Ca­
para o latim, com o título de "Sabedoria dos Antigos Druidas".'' Su­ radog, H ywel, o Bom e outros. Chegou até a considerar sucessores d os
punha-se que os druidas haviam construído monumentos misteriosos, druidas os estudiosos renascentistas do século XVI, Gruffydd Robert
tais corn o Stonehenge, e assi m a redescoberta deles gerou um novo in­ e Sion Dafydd Rhys (que eram não- conformistas e haviam produzido
teresse pelos monumentos e pelo avanço da ciência da arqueologia. sua obra na Itália):
Edward Lhuyd, grande cientista e arqueólogo galês, vol ta e meia des­
confi ava dos druidas , por serem arcanos e obscurantistas, e oferece­ G ra nde amor à Pátria votastes. eruditos
rem sacri fí cios humanos; outras vezes, porém, ficava fascinado por Que o saber primeiro dos bardos revelastes,
Roberts e Rhys douto, que as regras ensinastes
da a rcaica poesia pelos d ruidas planejada . . . "

:\O. T. D. K cndrick . / /w /Jruid, ( Lond res . 1 92 7 ): Stuart Piggott . Th t! Druid, ( H a r­


rnonds\\ orth. 1 974) . r r- l l �-57: e A neurin Llo) d O"en. lhe fú111ow Dru id, ( Oüord.
I %�) '� R T. ( i unt hcr ( org . ) . Tlw l.if<' mu/ f_<'flen of Ed,rard Lhwrd ( sic) (Oxford . 1 945).
,1 l ' r " M n q!an . .. H<l\hnrn . lcihni, and t h e Celts"' . Studia Celtica. , ii i i x ( 1 97.1-41. r- 1 11,_
rr �7o-x_ '-1 I ) _ S i l , an h ans ( o rg . ) (í11"(J/fh 1· Parâwdig E1·a11 El'ans (Caernarfon . 1 X76), pp. 1 29
74 75

Se um estudioso tão atento e cauteloso quanto Evan Evans (já bastan­ teres em misteriosas varetas que se fazia girar entre 41.s dedos numa
te experiente, p ela necessidade de mostrar que a tradição galesa era ge­ m oldura de madeira, semelhante a um ábaco, chamada de "peithy­
nuína. ao contrário das vigarices de Macpherson e seu Ossian) era tão nen". Após a morte de Taliesin ab l oto, fora m publicados mais traba­
encantado pelo druidismo, não surpreende que pessoas menos escru­ lhos de l oto sobre o bardismo por obra de um dos seus mais zelosos
pulosas o transformassem num culto da moda e acrítico. Afirma-se discípulos, um clérigo do Norte de Gales, chamado J ohn Williams,
com freqüência que Edward W illiams, "l oto Morganwg" , criou este "Ab Ilhei " . A teologia druídica de l olo lembrava bastante o seu unita­
culto no Paí s de Gales, e não se pode negar que foi ele que o elevou ao rismo. acrescentando-se uma hoa dose de pacifismo. As cerimônias
ápice ao fundar o Gorsedd dos Bardos, mas ele estava apenas impri­ druídicas de l oto eram complexas, mas privadas de sacrifícios huma­
mindo sua marca pessoal naquilo em que todos acreditavam e que era nos. J oio disse aos bardos reunidos em seu Gorsedd no a lto da monta­
comumente aceito em Gales. 5 4 nha Garth, próximo a Cardiff, em 1797 , que ele pretendia fazer com
l oto Morga nwg interessava-se ao extremo por Stuk eley e p elos que o povo apoiasse a linguagem deles (deve-se acrescentar que l ot o
primeiros arqueólogos ingleses, e adorava ruínas megalíticas. Em suas havia sido educado falando inglês, mas pregava o uso do galês com o
visitas a Londres, ele deparou com a "Antiga Ordem dos Druidas" in­ fervor de um convertido), com que conhecessem sua história através
glês, deixou-se influenciar p elo deísmo de seu amigo David Williams das canções e com que se chegasse a uma religião moral sem necessida­
de Caerphilly (cuja Theophi/anthropia havia impressionado V oltaire e de de rixas entre os credos. Os pequenos proprietários de Glamorgan
Frederico o Grande) e ficou encantado com o quadro idílico que lhe suspenderam essas assembléias druídicas, temendo que pudessem
foi pintado da tranqüila vida dos nativos da Polinésia por David Sam­ atrair a atenção da frota francesa revol ucionária, ancorada no Canal
well . "Dafydd Ddu Feddyg" . um bardo galês que era também médico de Bristol.
do Capitão Cook . cuja morte testemunhou. 1 1 l oto acreditava que ele e Não eram ap enas os soldados os inimigos de l ol o: vários est udio­
seu amigo Edward Evan''· eram os únicos sobreviventes da ordem bárdi­ sos galeses. principalmente aquel es arqueólogos e historiadores que es­
ca. e que era tempo de revelar ao público os segredos arcanos, recebidos tavam sil enciosament e recuperando o passado galês de maneira cientí­
pelos discípulos sucessores dos druidas. Grande part e das tradições e fica, desconfi avam demais dele, como também alguns dos bardos que
invenções druídicas de l oto foi divulgada em revistas e manuscritos ele havia admitido em sua ordem. Edward Davies de Bishopston -
durante sua vida, e após sua morte em 1826 seu fi lho, Taliesin ab l oto "Celtic Davies" para os íntimos - era um clérigo que criticava l ot o:
(um mestre-escola decente e íntegro da cidade industrial de Mesthyr porém, deve-se lembrar que Davies publicou vários trabalhos que ma­
Ty dfil), publicou alguns dos textos de seu pai. por exemplo, o trabalho nifestavam uma profunda fé no druidism o. O problema é que ele dis­
Cyfrinach y Beirdd (O Segredo dos bardos), e seu maravilhoso cordava da versão de l oto. Nenhum dos contemporâneos de l olo foi
Coe/bren y Beirdd (0 Alfabeto dos bardos), que alegava ter sido regis­ capaz de desmascarar suas invenções e falsificações, e naquela época
trado por bardos druidas de Glamorgan no século XV I. O Coelbren era tão generalizado o gosto pelo mito e pelas lendas que poucos pare­
era um alfabeto parecido com o ogam, que se prestava à gravação em cem ter manifestado algum desejo de acabar com o ioloísmo. Os unita­
pedra ou madeira , e como os conquistadores ingleses proibiram os ristas achavam que o druidismo era uma religião altamente razoável:
bardos galeses de usarem p ena e tinta, eles foram obrigados a se comu­ os dissidentes criaram a versão que lhes apetecia, os ministros anglica­
nicarem entre si riscando mensagens redigidas com os estranhos carac- nos adaptavam-no a seus propósitos. Em meados do século, o círculo
dos Morris adotou pseudônimos bárdicos, num estilo descontraído e
brincalhão - William Morris, como recolhia conchas para seu bom
e ,egs. t ra, impresso na integra o livreto de Evan Evans. Sobre a prolongada correspon­ amigo Thomas Pennant, foi batizado de "Gwilym Gregynnwr"
dência entre i:, ans e Thomas Percy. veja A. Lewis ( org.). The Correspondence of Thomas (W illiam das Conchas). l oto levava esses nomes bárdicos profunda­
Percr (llllf /:ra11 1:'rn11 1 ( Louisiana. i 957).
54. U ijah Wari ng. Remllectiom a11d A 1tl'Cdotes o{ Ed•rnrd Williams ( L ondres. I XSO). mente a sério, e seus bardos tinham de manter a mesma atitude.
( i . J . \\ i lliams. lo/o .\forga111rg. r Gdrol Gr11ta{(Cardiff. 1 956) é uma biografia em ga­ William Owen (Pughe), por exemplo, escolheu o nome "l drison" , alu­
lês. mag n i fica. porém i nrnmpleta . Pr} s M orga n . lo/o .\forga1111g (Cardi ff. 1 975) consti­ são a Cader l dris. Foi nessa época, em que os nomes de batismo em
tui um breve estudo sobre lolo. em inglês. Gales haviam se tornado os mais monótonos possíveis, existindo mi­
5 5 . l:.. G . BO\,en. Darid Sam,n·II. Dafdd Du Feddrg. 1 75 1 -'NI (Cardi ff. 1974 ) é um es­
t udo bilingüe.
lhares e milhares de J ohn J ones e daí por diante, que surgiu entre um
,r, R T Jcn � 1 11 ,. Hem/d a'i <ief11dir (Um Bardo e sua Formação) (Cardiff. 1 949) é um número bastante grande de personalidades literárias galesas a moda de
c,t udn c111 !,!ali:,. ,obre 1·. dw ard Lvan de Aberdare. ad0tar nomes bárdicos sedutores e fantásticos, tais como Eryron
76 77

Gwyllt Walia (0 homem-águia das florestas de Gales). Iolo conhecia importância considerável, no geral, porque envolveu m itos que de­
os jardins do século XVI I I , com grutas druídicas (os que havia em monstraram ser a tradição cultural de Gales mais antiga do que qual­
Piercefield Park, perto de Chepstow, ou na casa de seu amigo Richard quer outra na Europa Ocidental, e transformou o estudioso, poeta ou
Colt H oare. em Stourhead). Iolo adaptou esse ideal de jardim , com professor em centro dessa mesma cultura. Até certo ponto, recuperou
sua sublime intensidade, e fez com que o Gorsedd, e, mais tarde, o eis­ o lugar original do bardo na vida galesa.
teddfod construíssem Stonehenges e m m iniatura por todo o País de
Gales para a promoção de cerimônias druídicas ao ar livre. Existe um A REDESCOBER TA DOS CEL TA S
desses altares, muito bem feito, nos Gorsedd Gardens, em frente ao Os galeses. durante a Idade Média, estavam vagamente conscien­
Museu Nacional de Cardiff, por exemplo. Ê que o que havia sido con­ tes de sua lrgação com os cómicos e os bretões; e alguns estudiosos,
siderado uma brincadeira no início do século XVI I I foi transformado como Buchanan . no século XVI, chegaram a supor que havia alguma
pela visão romântica em algo extremamente sério. Os bardos e neo­ relação entre os galeses modernos e os antigos gauleses. Durante o sé­
druidas que tinham estômago para isso interessaram-se pela constru­ culo XVI I . predominou a idéia de que os galeses tinham alguma espé­
ção de aras. e os dólmens eram. segundo supunham, utilizados para os cie de ligação com os hebreus, o que combinava com o mito de que os
sacrifícios. De fato, alguns pensavam que esta era uma prova de que os galeses descendiam de um dos netos de N oé. N as décadas de 1680 e
antigos sempre cremavam os cadáveres. U m dos seguidores de Iolo 1690. porém. vários estudiosos começaram a buscar um enfoque novo
que levavam esta idéia a sério era William Price de Llantrisant ( 1 800- para a questão. Em Oxford, Edward Lhuyd, que a princípio notabili­
93). médico e livre-pensador. que se opunha ao casamento, tinha mui­ zou-se como estudioso de fósseis e geólogo. passou a interessar-se por
tas das hipocondrias de Iolo e estava tão convicto do seu druidismo e sua l íngua natal e a compará-la de maneira detida e racional com o
do perigo que havia em se enterrarem cadáveres de pessoas mortas por idioma córnico (em fase de extinção) e com o bretão e. coisa que era
doenças. que cremou o corpo de seu próprio filhinho. Sua ação foi de­ ainda mais original. com o irlandês e com o gaélico escocês. Lhuyd
fendida ao cabo de um processo j udicial bastante divulgado, em conse­ queria entrar em contato com um abade bretão, Paul-Yves Pezron ,
qüência do qual iniciou-se a moderna prática da cremação. Portanto, mais conhecido na França com o cronologista, porque pensava-se que
o mito do sacrifício druídico influenciou a vida moderna (ou melhor, a Pezron estivesse escrevendo uin livro sobre as origens comuns de galeses
morte moderna). 1: hreliie, . 1 hLl \ d 11 ;'i 1 1 c onseg uiu encontrar-se com Peaon quando es­

A extensa literatura neodruídica publicada pelos galeses no teve na Bretanha. e o livro de Pezron foi publicado em 1703.'' Lhuyd
período rom ântico, em galês e inglês, nunca foi estudada adequada­ esperava que ele logo fosse traduzido para o galês, pois faria com que
mente. mas sim descartada com o sorriso indulgente com que os histo­ a aristocracia rural se interessasse mais pela língua e passado natal. No
riadores costumam tratar as primeiras crenças modernas na magia e final. o livro foi tradu1ido para o inglês em 1706 por um historiador de
na bruxaria. Contudo, arqueólogos e historiadores responsáveis do aluguel galês. de nome David J ones. Pezron comparava os galeses aos
fim do século X VI I I e começos do X IX levaram essa literatura a sério, bretôes. levantando suas origens através de fontes clássicas, e localizan­
homens como Samuel Rush Meyrick ou Richard Colt Hoare, e muitos do-a s nos celtas ou 4 cllni m encionados pelos escritores antigos. um
outros. J onathan William s escreveu, em cerca de 1818, uma história de povo bárbaro cujos domínios no passado estendiam-se da Gália à Ga­
Radnorshire. muito interessante, cuidadosa e detalhada, embora criti­ lácia (Ásia Menor). e que haviam sido o flagelo dos gregos e romanos.
casse intensamente o povo por abandonar a língua galesa. Cinco anos Per1on 1'111 a 1 1 H l : i 1 1 1 : 1 1 , l111H.!c. ill\ estigando ,1s celtas desde os heróis epó­
depois, publicou um pequeno livro sobre educação druídica, chamado nimos mais antigos até os tempos patriarcais. O método de Pezron era
Druopaedia, onde se confundem os druidas da antigüidade com os dos completa mente anticientífico. mas a história era interessante, cativa­
sonhos de lolo.'· A restauração do druidismo foi um movimento de va a imaginação, e o livro transformou os celtas numa moda que por
vezes chegava a ser mania. A tradução inglesa do livro ainda era reim­
pressa no início do século X I X . Henry Rowlands de Llanidan obser­
.. vou habilmente q ue. enq uanto Edward Lhuyd levantou a hipótese de
, - St1hrc l > r l'rr c,· de I l.111d rr,,r r1l. , q.1 R m Dcn n i ng . .. l )ruidism at Ponl) pridd . Í/1
S1 11:1rl \\ r l l1,111 1 ' 1 , > r).' ). <,l,1111ur,:,111 l/i11una11 ( Harr) . 1 9óJ). i. pp. I Jó-45. A Druopaedia
,k .ln11:1 1 h :111 \\ r l l r : 1 111' '"' p11hl ic:1da crn I cnrni n,tcr. crn I X2 J . Sohrc alguns aspectos do
.
dr111dr,1111, ).':r l0,. , eia I > . ,\ 1 oorc. · - ca r n hrian .\ nt i q uitv . . /11 ( i . C . Boon e J . M . Lewis 5X. Pn , M nrgan . .. Thc -\ hhé Pc!íon and lhe Celts .. . Fra111ac/ln111 n f 1h e /ln 11n11rah/,·
t orµ, 1. li c/111 l 11lf</lllf t (( ardt lT. 1 976). pp. 1 9 .1 -222 Snuc1 1 n/ C 111 1111rndunn11 ( 1 965 ) . pp. 2X6-95.

______________________________.......t........................, ________________ -J
79

que a lí ngua galesa vinha de uma língua-mãe hipotética, denomina da aos antigos celtas, enviando a M allet um exemplar do livro de Lhuyd
céltico, Pezron tinha a bsoluta certeza disso. 1• para p rovar seu ponto de vista. M allet simplesmente não conseguiu
O exame empírico das línguas que Edward Lhuyd a creditava se­ ent ender o texto de Lhuy d, e recaiu nos mesmos erros ao escrever sua
rem aparentadas com o galês (a grande A rchaeologia Britannica) sur­ história da Suíça, publicada em 1 803.6°
gi u em 1 707 . Foi um trabalho rudimentar que, no entanto, lançou mão Na verdade, os celtas jamais tiveram seu nome ligado às Ilhas Bri­
de um método comparativo detalhado de raciocínio muito difícil para tânicas, mas isso não importava, porque eles eram uma magnífica raça
que as pessoas o entendessem, por exigir que acreditassem em mudan­ de conquistadores que havia assolado a Europa inteira . Os mitos célti­
ças gradativas ocorridas em períodos de milhares de anos. U m dos que cos contribuíram muito para despertar nos franceses o interesse pela
compreendeu de imediato o objetivo de Lhuyd foi o grande filósofo história antiga e pela arqueologia de seu país. Os celtas eram o reflexo
LeibniL LeibniL já se interessa va pelo galês antes de entrar em conta­ das fantasias da época, e no Paí s de Gales forneceram a uma nação
to com a obra de Lhuyd, e a través de seus escritos etimológicos ajudou oprimida e desesperadamente pequena, que pouco tinha de que se or­
a estabelecer linhas de pesquisa sobre estudos célticos na Alemanha gulhar na época, um pa ssado magnífico, como consolo. A restauração
muito mais profundas que qualquer pesquisa feita na Grã-Bretanha e da antigüidade promovida no século XV III baseou-se mais no entu­
que. no final. teriam profun da s repercussões em Gales. Pode ser que os siasmo que Lhuyd demonstrava sentir pelos antigos celtas do que no
galeses tenham achado impossível a parte comparativa da obra de seu método preciso. Textos de eisteddfods datados Jo início do século
Lhuyd, mas poderiam pelo menos levar em consideração uma única XIX, escritos por artesãos ou sacerdotes, professores ou alfaiates, pa­
conclusão: a de que os galeses descendiam dos britânicos, que descen­ rec� m transbordar de entusiasmo mal fundamentado por aquilo que
diam dos cel tas, e que os antigos celtas tiveram um passado glorioso. os livros franceses chamam de "nos ancêtres l es Gaulois" e os galeses.
Os leitores monogl otas de galês tiveram uma vaga idéia da perspectiva de "nossos ancestrais, os celta s" . No centro da redescoberta dos celtas
de Lhuyd pelo Drych y Prif Oesoedd (Espelho das Eras Primitivas), em:ontra-se uma questão lingüística. sendo que o celtismo teve con­
uma história antiga de Gales de autoria de Theophilus Evans, escrita seqü ência s l ingüística s importantes. Ê da linguagem que se tratará a
em 1 7 16. Evans tentou subordinar seus dados aos objetivos e metas seguir.
anglicanos, como convinha a um sacerdote jovem e patriótico mas os
galeses mais p erspicazes logo perceberam que pela primeira vez em du­ l>A "A L GA RA VIA /JF TA PH fDO M " À . . Lf.\'GlA DO PA RA ÍSO ' º
zentos anos eles tinham uma visão de sua própria história que era au­
tônoma e separada da Inglaterra. O próp rio Lhuyd era um ardente pa­ . � ara os humoristas e satiristas ingleses que eram, em sua maioria,
� s uni cos que escreviam sobre o galês no século XV II, esta era uma
triota galês, apesar da racionalidade cuidadosa e da precaução carac­ l ngua gutural.. de u� a feiúra gr� tesca, ainda falada em toda parte
terísticas de seu método acadêmico, e parece que os estudiosos galeses como
'.
um pa toa, porem sem possui r status nenhum - e provavelmente
do início do século XV III, embora não se aproximassem de sua indis­ próxima da extinção. J á vimos como os eruditos e patriotas lamenta­
cutível genial idade, captaram fagulhas daquela chama. Tal foi o caso vam esta falta de consideração com algo que estava se transformando
de seus amigos William Gambold e M oses Williams, assim como o do na "língua antiga". Os estudiosos do século XV III alimentavam uma
círculo d os M orrí s. Lewis M orris passou a vida preparando um catá­ ve_r dadeira aversão pelo inglês, mas tendiam a corresponder-se em in­
logo de antigos nomes célticos na Grã-B retanha e no continente euro­ gles porque toda a sua cultura e educação lhes havia sido transmitida
peu, denominado Ce/tic remains (R esquícios célticos), para ampliar al­ naquela língua. Até mesmo os irmãos M orris tinham tendência a es­
guns aspectos da obra de Lhuy d. Thomas Pennant e a maioria dos c'. ever em ingl ês quando em sua correspondência volumosa desejavam
pomposos historiadores do fi na l do século XV III leu ou copiou as no­ di scorrer sobre assuntos ac�� êmicos e intelectuais, mesmo que para
tas topográficas de Lhuyd. Thomas Percy, grande erudito inglês, ten­ tra tar_ de o� tros assuntos uti lizassem o galês mais puro e vigoroso. O
tou demover o cavaleiro M allet, historiógrafo real da Dinamarca, da .
propno gales era reflexo do paradoxo que a cultura galesa vivia neste
idéia ( comum naquela época) de que os antigos teutões correspondiam período, pois embora a lí � gua_ não ti� esse nenhum status ( salvo o que
lhe fora emprestado pela hturg1a anglicana), constatou-se que no perío-

59. V ictor Tourneur. 1:·,quine d'une Historie des Études Ce/tiques ( Liege. 1 905). pp.
1 7 1 -206: A. R 1voallan. Pré.1ende de.1 Celte.1· ( Paris. 1 957), pp. 1 78-2 1 1 : e Stuart Piggott.
Celt.1 . Saxmn and the Earlr Antiquarie1 ( Edimburgo. 1 967). 60. Le"is. Corrnpondence o/ T/1,m,a.1 Percr and El'a/1 Erans. p. 1 06n .
80 81

do de 1660 a 1730 aumentou consideravelmente o número de livros tempo) irromper dos túmulos dos hábeis bardos em toda a pureza de seu
publicados em galês: os editores de livros galeses mudaram-se para lu­ esplendor_.,
gares mais próximos ao País de Gales, e já em 1718 publicavam-se os
livros no País de Gales." Durante o século XVI I I, essa tendência con­ O squire J ones certamente não fa_lava a "Alga_ravia _ de Taphy­
dom" . Acreditava piamente que sua hn�ua era a ma1_s any ga da Eur� ­
tinuou, e aumentou bastante a gama de assuntos abordados por livros
pa, talvez do mund? , que não e�a mestiça, como o mgl�s,_ q �e era ri­
impressos em galês. Lewis Morris chegou a publicar um livro em galês
quíssima, e que podia ser defendida con �ra todos os seus m1m! gos. Um
para explicar aos artesãos como fazer um polimento perfeito, verre
dos sinais da mudança gradual que havia tomado conta d_a h ngua era
eg/omisé e outras técnicas e métodos sofisticados. Em fins do século
O tama nho cada vc1 maior dos dicionários: só para mencionar alguns
XVII o galês inteligente, pelo menos no Sul de Gales (conforme se exemplos. o dicionário de Thomas J ones, de 1688, é prático e compac­
pode constatar pelo galês do infatigável tradutor e editor de livros puri­ to: o de Thomas Richards de Coychurch, de 1753, já é bem pesado: o
tanos Stephen Hughes de Meidrim e Swansea), achava difícil apreen­ de John Walters de Llandlough (publicado em partes de 1770 a 1795) é
der sua própria gramática e suas próprias regras de estilo. Como disse robusto. e o impressionante dicionário de William Owen (Pughe)
o Sr. Meredith a William Gambold em 1727, antes de ler a gramática (publicado de 1795 a 1 803) é imenso. Entrementes. o � estudio � os ha­
ele simplesmente aprendia de memória, "como tocam os rabequistas viam começado a encarar o galês como um bem nacional, ate como
do interior" . L ú pela metade do século XVIII existia, além de uma vas­ um monumento nacional. Os autores que escreviam em galês emocio­
ta literatura impressa em galês. constituída de brochuras referentes a navam-se muito com a idéia de que o galês estava diretamente ligado
assuntos de ordem moral ou religiosa, um n úmero pequeno de textos
literários. algumas obras h istóricas (que alcançaram uma enorme po­ aos primórdios da hi �tória e era, de certa ��rm � , . uma língua pura e
imaculada. Thomas R1chards chamou seu d1c10nano de Thesaurus, ga­
pularidade), e algumas gramáticas e dicionários. O papel do galês na
bando-se no prefácio:
vida da igreja anglicana. ao que parece, diminuiu após 17 1 4, mas esse
declínio foi devidamente contrabalançado pela tremenda i ntensidade Nosso nome ainda não foi expulso do Paraíso: por enquanto, não só os­
da literatura metodista e dissidente em galês. Ao final do século tentamos o verdadeiro nome de nossos ancestrais, como também preser­
XV111, o n úmero de gramáticas e dicionários aumentou, demonstran­ vamos da maneira mais íntegra e impoluta possível (sem qualquer altera­
do essas obras maior segurança e orgulho, e um pouco menos do der­ ção importante, sem m istura com qualquer outra língua) aquela Lf N­
GU A PRI M ITIVA, falada tanto pelos antigos gauleses quanto pelos bre­
rotismo lamurioso de antes. O .1quire Rice J ohes de Blaenau, próximo tões há alguns milhares de anos atrás."
a Dolgellau, publicou uma esplêndida coleção de poesias galesas me­
dievais em 1773, Gorchestion Beirdd Cymru (Triunfos dos bardos gale­ John Walters, outro sacerdote de Glamorgan , vizinho de Thomas Ri­
ses). Como seria de se esperar de um proprietário de terras, sua poesia chards, não só começou seu grande dicionário em 1770, como também
é repleta de chiste e bonomia, e o galês tem um quê de arrogante e em­ publicou em Cowbridge no mesmo ano um manifesto dos lit�ratos g_a­
pertigado. O prefúcio estú repleto de otimismo. porque a linguagem fi­ leses chamado A Dissertation on the We/sh Language (D1ssertaçao
nalmente atingiu uma fase de esperanças. após tantos desapontamen­ sobr� a língua galesa), que acredita nos mesmos mitos e lendas que Ri­
t os. perdas e derrotas no passado. Ele gostava de pensar que no que di- chards, transformando todas as deficiências da pobre língua galesa em
1ia respeito ao galês o " Pa rnaso é imutável", o "Hélicon é inexaurí­ virtudes. Como sinal de sua superioridade, este idioma puro e imacu­
vel": e terminava o seu prefácio da seguinte maneira (segundo a tradu­ lado não era usado para escrever contos sensuais, nem peças ordiná­
ção d o Autor): rias: sua pronúncia áspera era máscula e simples, ao contrário da in-
glesa, que era afetada e balbuciante. .
Pois agora percebo o grande amor que a aristocracia e a plebe sentem O galês foi submetido a uma mitologização � uito mais absu_rda _e
pela língua britânica, e também pelas obras dos bardos antigos; desta for­ fantástica do que esta. O círculo dos Morris, Lewis, que era func10n a-
ma, não tardaremos a ver a M usa (se Deus quiser, dentro de m uito pouco

62. Rice Jones, Gorchestion Beirdd Cumru (Shrewsbury, 1773), prefácio. As composi­
ções de autoria de J ones foram publicadas por Rice Jones Owen em 18 18.
63. Thomas R ichard,. A 111i411ae Li11guae Britannicae Thesaurus ( Bristol, 1753), prefá­
fi l . \\ . R o w land, ( org . D. S. h an s ). ( ú111hria11 Bih/iographr Llrfrrddiaeth r Crmrr <:io. c r. T. J . M organ. "Ciciriadurwyr ) Ddeunawfed Ganrif ' (Lexicógrafos do século
( L la n idlocs. 1 Xf,9 ): Jenki ns. l.iterature. Re/igio11 a11d Societr in Wa/es. XV I I I ) ÍII u,;11 Crn1r11. xi ( 1 966). rr. J- 1 8.
82 83

rio real, William, que era funcionário da alfândega em Holyhead e Ri­ por Iolo a incluir suas fantasias bárdicas, como_ uma longa introd�ção
chard, que estava no Ministério da Marinha, em Whitehall, tinham in- aos poemas. Em 1 800, Pughe, em colaboraçao com Iolo, pubhcm..
veja de um de seus amigos, um causídico chamado Rowland Jones, uma enorme coleção de todo tipo de obras da literatura galesa medie­
l
i;

porque ele havia se casado com a herdeira da Mansão Broom, em val, a Myvyrian A rchaiology of Wales, em cujas partes finais Iolo intro­
Lleyn, e assim podia, com sua renda, pagar a publicação de qualquer duziu um outro tanto de suas falsificações. Pughe era incapaz de resis­
coisa que escrevesse. Em 1764 saiu o seu Origin of Language and Na­ tir aos encantos dos mitólogos como Rowland Jones, tão devoradora
tions (Origem da linguagem e das nações), seguido, alguns anos de­ era a chama de sua paixão pelas coisas galesas, e estava certo de que o
pois, por efusões como The Circles of Gomer (Os círculos de Gomer) e galês, se analisado. revelaria os segredos da linguagem primitiva da hu­
The Ten Triads (As Dez Tríades), Gomer sendo o fundador epônimo manidade. Além disso, dissecando-se ou seccionando-se os vocábulos
de Cymru (Gales). Tais livros iam além do que fizeram Pezron e os cel­ galeses, seria possível reconstruir a língua em termos racionais, e am­
tomaníacos, dissecando indiscretamente e sem qualquer método as pa­ pliar infinitamente a utilização e o âmbito da língua. Pughe atacava o
lavras galesas com o objetivo de mostrar que o galês era a raiz de todas galês (idioma anguloso, cheio de irregularidades e singularidades sin­
as línguas. De certa maneira, era muito importante compreender táticas) com o extremo zelo racional de um déspota esclarecido, tal
como as linguagens deviam ser analisadas: através do conhecimento como o Rei José II. Reduziu a língua a segmentos e remontou-a de
de sua constituição e evolução que homens como John Walters (auxi­ maneira ordenada em seu grande dicionário e suas gramáticas, assim
liado por seu vizinho, o jovem lolo Morganwg) ampliaram o vocabulário como em suas várias composições literárias. Desse modo, encontrou
galês de modo a inventar palavras galesas que designassem novas coi- uma palavra galesa para todas as nuances possíveis em qualquer idio­
sas ou ações, criando assim a palavra geiriadur (dicionário) e tanysgri- ma: inventou o termo gogoelgrel'rddusedd para traduzir a expressão
fio (subscrever), dois termos ainda em uso corrente. Rowland Jones "uma certa dose de superstição", cyngrabad para corresponder a "a­
usou os mesmos métodos de maneira aleatória e desregrada, como fi. bundância geral", cynghron para significar "conglobação" , de manei­
zeram também muitos outros. Um foi o pornógrafo John Cleland, que ra que o dicionário publicado de 1795 a 1803 é bastante conglobante
deixou de lado as aventuras de Fanny Hill em favor das profundezas com uma abundância geral de pelo menos cem mil vocábulos, ou seja,
mais sombrias da lexicografia céltica, redigindo alguns folhetos onde 40 mil a mais do que o dicionário de inglês de Samuel Johnson. Dese­
relacionava as partículas do galês a muitas outras línguas. Como era jando recuperar no galês moderno a linguagem original dos patriarcas,
inglês, Cleland pertencia à periferia não-céltica, ao contrário de um Pughe construiu uma língua tão sólida e sublime quanto um mausoléu
dos maiores e mais competentes mitólogos da língua, William Owen neoclássico. Entre os amigos de Pughe encontrava-se o pastor meto­
(Pughe). dista Thomas Charles. que distribuiu a gramática galesa de Pughe
O nome de batismo de Pughe era William Owen. Nasceu no Nor­ como livro obrigatório pelas escolas dominicais de todo o País de Ga­
te de Gales em 1759, mas de 1776 em diante foi mestre-escola em Lon­ les. em 1808. Ê interessante observar, entretanto, que a edição publica­
dres, retornando a Gales em 1806, depois de herdar uma propriedade da em Bala utilizava a ortografia galesa convencional, enquanto a edi­
no interior, onde morou até sua morte, em 1835. Adotou o nome de ção publicada em Londres vinha na ortografia do próprio Pughe, uma
Pughe ao herdar tal propriedade; porém seu filho, editor de manuscri­ vez que ele (como tantos lingüistas entusiastas do século XVI II) emen­
tos galeses, Aneurin Owen, manteve o nome antigo. Pughe estava no dava a ortografia para torná-la mais lógica, fazendo com que a cada
centro da vida galesa londrina, e era amigo de muitos literatos ingle­ letra correspondesse um único som. Nesta época, Iolo Morganwg an­
ses, tais como William Blake e Robert Southey. Homem muito talen­ dava brigado com Pughe e, embora tivesse publicado o estapafúrdio
toso, profundamente culto e dedicado, era também muito bondoso e Coe/hren r Beirdd, ainda tinha a audácia de classificar as idéias de
simplório, caprichoso e excêntrico em matéria de religião, terminando Pughe de ·.. simples passatempos". A nova gramática de Pughe exerceu
por tornar-se, em 1802, presbítero da profetisa Joanna Southscott. influência considerável (e lamentável) sobre muitos escritores galeses
Pughe era quem planejava as publicações dos galeses de Londres, mas do século X IX: deve-se lembrar que ele foi apenas um dos muitos que
em 1789, quando lançou a espetacular edição dos poemas de Dafydd brincaram com a ortografia das línguas secundárias européias. Até
ap Gwilym, poeta do século XIV, Iolo Morganwg convenceu-o a mesmo o grande Edward Lhuyd, que até agora foi apresentado como
publicar vários pastichos de sua autoria como se fossem poemas do modelo de racionalidade e probidade intelectual, embaralhou tanto a
mestre. Em 1792, quando Pughe publicou uma edição de poemas gale­ ortografia do galês que fez do seu prefácio à A rchaeo/ogia Britannica
ses antigos atribuídos a Llywarch, o Velho, foi novamente convencido uma coisa quase que ilegível. Felizmente os ministros anglicanos le-
84 85

vantaram uma ferrenha resistência a qualquer desvio do galês utiliza- dades com o objetivo de promover a música nacionaJ.•5 Erasmus Saun­
do na Bíb lia de 1588, e os pughismos limitaram -se à gramática e à es- i ders, ao expressar a opinião da Diocese de S. Davi em 17 � 1 , observou
tilística. Na turalmente, Pughe, de outras maneiras, fez nascer entre os f que os galeses tinham uma obsessão natural pela poesia: mas Iolo
galeses um interesse tremendo por sua língua, pois eles simpatizaram l Morganwg, escreveu mais tarde, neste mesmo _século, que os galeses
com aquela idéia da pureza, da tradição patriarcal e da " infinita rique- eram viciados tanto em música com o em poesia, e que esta era uma
za" do galês. Pughe m ostrou-lhes que o galês era uma " língua do Pa­ opinião geral.
raíso" , herdada dos patriarcas, clichê existente até hoje. Se não hou­
Os estudiosos do início do século X V I I I admiravam as estrofes
vessem mitólogos como Pughes, poucos seriam os que se dariam ao
traba lho de conhecer a algaravia desprestigiada de Gales. De certa simples cantadas pelo povo nas regiões m_ais distantes, ªº. som da har­
maneira, Pughe e os outros eram com o restauradores vitorianos de pa. Tais estrofes (penil/ion te/yn) eram epigramas express1v� s, que da­
i grejas, construtores de m uitos templos horrorosos, sem os quais, po- tavam do século X V I ou X V I I . A lguns camponeses conheciam cent�­
rém , os e difícios antigos se teriam esfacelado. nas destes poemas, e eram capazes de adaptá-los a qualquer melod1_a
de harpa familiar. Os irmãos Morris suspeitavam que as estrofes ti ­
"A TERRA DA S CA NÇÔES" nham um caráter proverbial e talvez encerrassem fragmentos de sabe­
doria druí dica. Este costume de vários cantores apresentarem um
No princípio do século X VI I I , os estudiosos galeses ficaram pro­
após o outro várias estrofes de improviso acompanhados por. um har­
fundamente perplexos por não serem capazes de ler o grande códice
pi sta era considerado tipicamente galês; p? rém_, o que levou-ª restau­
musical de R obert ap H uw, embora o a utor tivesse morrido há pouco
ração da música galesa no século X V I I I nao f?1 tanto a c� nçao, mas a
tempo. em 1665." Nas a ntologias poéticas galesas que surgiram em
harpa. As primeiras árias galesas a serem pubhc�das surg! ran:1 por vol­
mea dos do século X V I I I , os orga nizadores coloca vam acima das letra s
ta de 1 726, como parte de uma coleção denominada A ria d1 Ca'!"era,
as mel odia s com as quais elas geralmente eram cantadas pelo povo. Os
mas a coleção que marcou época foi a de Blind_J � hn P � r:Y : pubh �ada
pa triota s galeses fica vam envergonhados porque m uitas das melodias
em J 742 sob o título A ncient British Music ( Musi ca bntamca antiga).
eram inglesas, e os ingleses zombavam dos galeses, por sua falta de ini­
Parry er� o harpista de Frederico, º· Prí ncipe de Gales, an:iigo de Han­
ciativa. Em a lguns casos, os galeses deformavam completamente as
del e compositor de música handehana para harpa. I nspirou bastante
melodias, para torná-las irreconhecíveis, e "agalesavam" também o Thomas Gray a completar seu poema The Bard (0 B_a � do) em 1 7 ? . ao
título. A lguns eruditos a chavam que os títulos das canções inglesas de­ tocar para o povo de Cambridge melodi� s que ele dma serem milena­
veriam ser todos traduzidos, mas Wil liam Wynne, poeta e squarson (ao res, cujos títulos, segundo Gray , "c? ntin� am tantas. p alavra � que a
mesmo tem po squire - proprietário - e parson - pastor), considerou _
gente perdia o fôle go" ." Blind Parry i nvesti gou a trad1çao � us1 cal ga­
que i sso seria simplesmente desonesto. Will iams de Panty celyn, grande lesa através dos concursos de música dos bardos, e descobnu que er_a
líder metodista e criador da moderna hinologia galesa, p raticamente herdada dos druidas. Contudo, as melodias, conforme estavam escn­
deu início à segunda resta uração metodista, em 1 762, com seu hinário: tas, pareciam bastante recentes. O círc� I_o dos Mo�ri� mantinha rel�­
:ontudo, queixa va -se de que só poderia publicar mais hinos quando ções de am izade com Parry e seu secretan � Evan � i lham . o qu� I re d1-
chegassem novas melodias da I nglaterra. Suas melodias são quase _ _
giu, em 1 745, um enorme volume manuscnto ( destinado a pubh caçao)
sempre versões dos sucessos populares da época: uma delas tem o títu­ sobre a prática do penillion (improvisos acompanhados pela harpa).
lo bastante típico de "Lovely Peggy - Moraliz' d" (A A dorável Peggy -
Moralizada).
Um século depois, as posições estavam completamente invertidas,
pois o País de Gales era considerado acima de qualquer outra coisa a 6�. <;obre o costume de tocar harpas consultei Robert Griffith. Llyrr Cerdd Dannau (0
"Terra das Canções" , onde a música havia fluído das harpas e b ocas L iHll da H arpa) (Caernarfon. 19 13); sobre a m úsica religiosa do período, con � ulte1 R.
D. Ci riffith. Hann Canu Cl"lwlleidfaol Crmru ( H istória do Canto Congregacwnal no
do povo durante séculos. E xistiam livros de canções, corais, grupos de País de Gales) (Cardiff. 1948); sobre det�lhes das várias canções folclóricas. recorri ao
harpas galesas, p rêmios e meda lhas para músicas, e uma rede de socie- J()umal ()/ the We/sh FolÁ Son� Societr; e. para obter críticas polêmicas. a Osian Ellis.
' ' \\ elsh M usic: H istory and Fane) ··. Tra11sactio111 ofthe Honourable Society oj Cymmro­
clomm 1 9 7:!-3 ( 1974). pp. 73-94.
66. A rthur Johnston. Thomas Cira ,· and the Bard (Cardiff. 1966): F. 1. M cCarthy, "The
64. M an uscrito Anexo do M useu Britânico 14905. publicado em fac-símile pela Gráfi­ Bard of Thomas e; ra, and its lmportance and Use by Painters", National Library of
ca da Universidade do País de Gales (Cardiff. 1936). Wa/e, )()urna/. xiv ( 1965). pp. 1 05- 13.
86 87

Tendo estudado este manuscrito, o Prof. Osian Ellis crê que a música fhom as Pennant. N o eisteddfod de 179 1 houvera um concurso de pe-
descrita por Evan é de um caráter bastante operístico e convencional, 11i/lio11 muito hem sucedido. o qúe provava que os primeiros organiza­
típico da época: o cantor canta qualquer estrofe que lhe apeteça (conti­ dores de ei.1reddfi1dau conheciam aquela arte. O que não conhecemos
nuando até que lhe faltem as palavras), com o acompanhamento todo com certeta. no entanto. é a exata natureza musical do concurso. Sem
ornamentado da hara. Nem se menciona aquilo que seria considerado dúvida. na época em que Owain Alaw publicou o livro Gems of We/sh
a arte exclusivamente galesa de cantar o penillion, ou canu gyda 'r tan­ Melody (Jóias da melodia galesa), em 1860, a arte do penillion já es­
nau, conforme o identificariam os músicos galeses desde a década de tava completamente amadurecida (embora fosse bem mais simples que
1830 até hoje. Essa arte incomparável, que o povo galês hoje acha tão a praticada no século XX). e ele retirou suas amostras de estribilho das
emocionante, é extremamente peculiar; a harpa repete a mesma melo­ canções de John Jones, "Talhearn" , assistente de Paxton na constru­
dia vezes sem conta, o cantor faz coro, com um estribilho ou descante ção das imensas mansões Rothschild na Inglaterra e na França, e tam­
de sua própria autoria, como acompanhamento do instrumento musi­ bém de um remendão de Manchester, chamado l dris Vychan, intér­
cal, sendo que as palavras, se possível, são escolhidas a partir de me­ prete fantástico. que vencia a todos no improviso e na melodia nos
tros aliterativos altamente elaborados, de origem medieval. Como grandes eisreddfi1da11 de meados do século XIX. Por essa época, natu­
Parry e William pretendiam fornecer um quadro de tudo que havia de ralmente. já se acreditava que a arte do peni//ion era antiqüíssima.
mais galês em matéria de música, eles certamente não poderiam deixar Na época em que Edward Jones lançava seus influentes livros, a
de descrever o que hoje se denomina cantar de penil/ion . Mais mistifi­ harpa tripla era considerada o instrumento nacional galês por excelên­
cadora ainda, é a perspectiva de Edward Jones ( 1752- 1824), harpista cia, sendo que os outros instrumentos galeses antigos, tais como o pib­
real e grande propagandista da música e costumes nativos galeses, em xom ou crn·rh (crota). haviam caído de uso há pouco tempo . Um minis­
obras escritas entre 1784 e 1 820. Edward Jones era de Merioneth, de tro e erudito patriota. Thomas Price, "Carnhuanawc". afirmava ter
uma região onde os costumes locais ainda eram bem respeitados no sé­ aprendido em fins do século XVIII no condado de Brecon a tocar uma
culo X V III, e onde hoje existem inúmeros solistas e grupos que prati­ pequena harpa com uma só fileira de cordas. De acordo com loto
cam o penillion. J ones concentra-se no valor literário das estrofes ex­ Morganwg, a primeira harpa tripla de Gales foi construída pelo har­
pressivas, e fornece uma vaga descrição do grupo de camponeses reu­ pista da Rainha Ana, Elis Sion Siamas. Entretanto, em 1 800 os patrio­
nido ao redor do harpista, cada qual com sua bateria de epigramas, tas estavam convencidos de que a harpa tripla (assim chamada por
para cantar ao som da harpa. Thomas Pennant, em seu Tours (Via­ possuir três fi leiras de cordas. sendo que a fileira central continha os
gens), também descreve uma cena semelhante, os camponeses reunin­ sustenidos e bemóis) era o instrumento nacional antigo, e em nome da
do-se nos montes ao redor de uma harpa, com um repertório imenso honra nacional devia ser defendido contra as novas harpas com pedal
de estrofes, apostando uns com os outros quem cantaria o maior nú­ introduzidas por Sebastien Hérard, de Paris. A harpa tripla havia sido
mero de estrofes, até que as montanhas vibrassem ao som da música. adotada na Inglaterra no século X VII, sendo uma versão da harpa
Edward Jones não encontrou nenhuma peculiaridade digna de nota no barroca italiana. Parece ter adquirido imensa popularidade em Gales
aspecto musical desta arte; apenas as estrofes extemporâneas merece­ Setentrional por volta das décadas de 1 690 e 1 700. penetrando. porém.
ram algum tipo de comentário. apenas gradativamente em Gales Meridional. No sul, só ganhou po­
A partir desta ausência, no século XVIII, de uma boa descrição pularidade ao ser tocada pelo talentoso Thomas Blayney, com o incen­
da arte conforme a conhecemos hoje, o Prof. Osian Ellis deduziu que tivo de um squire excêntrico de Galnbrân (Carmarthen). Sackville
ela não existia, a não ser sob forma extremamente embrionária. Con­ Gwynne. No princípio do século X IX , a harpa tripla era protegida
cluiu que como a arte que hoje conhecemos já existia em meados do pelo dinheiro e patrocínio de aristocratas como Lady Llanover, cria­
século X I X . ela teria sido desenvolvida por músicos galeses no começo dora de associações de harpistas e de concursos de harpa. que chegava
do século X IX . provavelmente por John Parry, "Bardd Alaw" ( 1 775- a distribuir harpas triplas como brindes. Ela jamais teria feito isso se
185 1 ). diretor musical de Vauxhall Gardens, compositor e grande or­ soubesse que a harpa tripla era um instrumento barroco italiano. Ape­
ganizador de músicos galeses em concertos e eisteddfodau. Pouco antes sar de todo esse incentivo, a harpa tripla foi se tornando o instrumento
de 1 809, George Thomson, editor de músicas de Edimburgo, veio ao típico dos ciganos, sendo que muitos dos melhores intérpretes descen­
País de Gales para recolher melodias galesas autênticas cujos arranjos diam de família ou tribo de Abram Wood, falantes do romani.
seriam feitos por Haydn (foram publicadas em 1809); Thomson relata Pela década de 1780, já havia ocorrido uma outra mudança im­
que não conseguiu encontrar os improvisadores de que tanto falava portante; agora, os galeses estavam convencidos de que eram um povo
88 89

dono de uma inexaurível abundância de melodias nativas, quase sem­ isto ocorreu antes que o País de Gales se tornasse a terra dos corais,
pre extremamente antigas. Os títulos ingleses das canções passaram a
em meados do século XIX. O mito de que a música galesa era muito
ser traduzidos ou adaptados à vontade - a canção "Cebell", datada do
século X VII, virou "Yr Hen Sybil", referindo-se supostamente a uma antiga contribuiu bastante para este surto de atividade e para o senso
de patriotismo que ele encerrava. •
antiga feiticeira; "General Monk ' s March" transformou-se em "Ym­ Em 1848, Thomas fones, "Glan Alun", bardo e jornalista, na re­
dait� y Mwngc", que pensavam tratar da fuga de um antigo monge
medieval; a balada composta por Martin Parker em 1 643, "When the vista Y Traethodydd reclamou que Gales, embora fosse um país muito
King enjoys his own again", passou a chamar-se "Difyrrwch y Bre­ musical, não tinha um hino nacional, uma canção entusiástica que
unificasse a nação, como os hinos da França e da Prússia.68 Este dese­
nin", que supostamente falava da corte de um príncipe medieval galês.
Uma canção mais recente, "Delight", de autoria de D'Urfey, virou jo, que era geral, logo foi satisfeito, pois em 1 856, em Pontypridd, Gla­
morgan, Evan e James James, pai e filho, compuseram a letra e a músi­
"Difyrrwch Gwyr Dyfi", que julgavam referir-se aos nativos do vale ca de "Hen Wlad Fy Nhadau" ("Terra de Meus Pais"). Era uma can­
de Dovey. Dizia-se que as melodias com títulos originais em galês pro­
ção profundamente patriótica, popularizada em 1 858 ao ser incluída
vinham de acontecimentos históricos bastante antigos: pensava-se que num grupo de canções patrióticas, no grande eisteddfod nacional de
a canção "M orfa Rhddlan", que apresenta características óbvias da Llangollen, sendo aceita por unanimidade, depois de 1860, como hino
música de Purcell, era o lamento dos galeses pela derrota diante do Rei
nacional. O majestoso hino "Tywysog Gwlad y Brynau" ("Deus Salve
Offa. em Rhuddlan. ocorrida em cerca de 750 d.C. Os turistas român­
ticos e os editores ingleses incitaram os galeses a levarem adiante tais o Príncipe de Gales) surgiu em 1863, na época do casamento do Prínci­
pe Eduardo, mas, embora fosse popular, jamais conseguiu alcançar o
invenções. George Thomson e Haydn foram praticamente os primei­
sucesso de "Land of My Fathers" .'9 O mais impressionante foi a rapi­
ros . a adaptarem letras em inglês às velhas árias galesas, utilizando dez com que se fortaleceu a tradição de cantar "Land of My Fathers"
muitas vezes temas históricos, auxiliados pela Sra. Hemans, Sir Walter
em todos os eventos públicos.
Scott e outros. O poeta romântico anglo-galês foi uma personagem
que surgiu na cena literária na década de 1 800; Richard Llwyd, "O A DA MA DE GA L ES
Bardo de Snowdon". foi um dos primeiros, encontrando nos livros de
canções um excelente campo de atividades. Por sua vez, os poetas da O exército de turistas que invadiu Gales no fim do século XVIII,
língua galesa foram obrigados a compor baladas históricas galesas que por vezes acompanhado dos artistas de estimação como John "War­
se equiparassem às invenções inglesas. Um dos mais fecundos compo­ wick" Smith ou � - C. l � betso� , observou que os ca�poneses de lá usa­
,
sitores de baladas históricas que se adaptassem às melodias galesas foi vam ro� pas que Ja hav1 �m �a1do de mo�a há sessenta anos e que eram
John Hughes, "Ceiriog". As canções, interpretadas em inglês ou em confe�c1onadas nos mais diferentes tecidos e padrões. Os relatos não
galês, faziam um sucesso incrível e eram um dos principais meios de menc10nam nenhum traje típico, como os saiotes das Terras Altas da
divulgação dos mitos históricos junto ao grande público. Nem sempre, Escóci_a.'º Como todo turista, eles tentaram encontrar algum atrativo
porém, as músicas eram levadas a sério - o teatro de começos do sécu­ no meio da pobre�a, e perceberam que as mulheres costumavam trajar
lo XIX em Cardiff costumava parodiar "Ar Hyd y Nos" (a conhecida amplas capas azuis ou vermelhas de tweed e chapéus masculinos ne­
"Ali Through the Night"), trocando-lhe o título para "Ah! Hide your gros. O chapéu de copa alta e o manto faziam lembrar as feiticeiras
Nose!" (Ah! Esconda o Nariz!)67 A mudança resultante do trabalho de pela simples razão de que constituíam o traje característico das cam�
homens como Blind Parry e Edward fones foi que os galeses adquiri­ ponesas inglesas na década de 1 620, tempo da caça às bruxas. As rou­
ram autoconfiança. No século XVII I, surgiram em Gales vários músi­ pas usadas nas planícies da Inglaterra na década de 1620 continuaram
cos de talento, que produziram uma grande quantidade de melodias a ser vestidas pelos pobres em algumas áreas montanhosas de Gales
nativas para concertos, musicais e eisteddfodau, assim como excelentes
músicas religiosas para os hinários que abundavam na época. Tudo
68. Traelhodrdd. iv ( 1 848). pp. l87-92. Era a principal revista intelectual galesa, edita­
da por Lewis Edwards.
69. Percy Scholes. " Hen Wlad Fy Nhadau", .Valional Library of Wa/es Journal iii
67. Cecil Price. The English Thea/re in Wales (Cardiff. 1948), p. 1 14. Contém muitas ( 1 943). pp. 1-10.
informações sobre a difusão da cultura inglesa pelo País de Gales no final do século 7 ? . F. Payne. We/sh Peasant Cos/ume (Cardiff, 1 964); M. Ellis, We/sh Costumes and
XVIII. C us10::1.< ( Aberystwyth. 1951 ); K. E theridge. We/sh Costume (Llandybie, 1 958 e reim­
pressoes posteriores).
90 91

até a década de 1 790, ou mais. Foram conservadas de maneira comple­ era uma poetisa de nome Gwenynen Gwent, a Abelha d o Condado de
tamente inconsciente. Não eram um traje típico, mas foram delibera­ Monmouth). O traje não tardou a ser adotado, por exemplo, nas tiras
damente transformadas em traje típico feminino na década de 1830 humorísticas dos jornais, como caricatura do País de Gales; foi repro­
por obra de várias pessoas, lideradas por Augusta Waddington ( 1 802- duzido nos cartões postais vitorianos; vendiam-se milhares de estatue­
96),' 1 esposa de Benjamin Hall, poderoso proprietário de terras e in­ tas que reproduziam uma mulher galesa vestida com sua vestimenta
dustrial do condado de Monmouth, e ministro do governo Palmers­ típica; os colegiais de todo o país de Gales ainda a vestem no dia l 9 de
ton, responsável pela conclusão das obras do Palácio de W estminster, março. Simbolizava o bem e o lar. Aparecia, por exemplo, nos pacotes
tendo dado seu nome ao Big Ben. Benjamin foi agraciado com um de farinha de trigo "Dame Wales" (Dama de Gales) e em muitos ou­
título de nobreza, e sua esposa é conhecida como Lady Llanover. Foi tros produtos galeses. Entrementes, os velhos trajes nativos, em todas
uma das líderes da ala pitoresca romântica da restauração galesa, no as suas variações locais (incluindo até, vez por outra, uma cartola alta
início e em meados do século XIX, tendo patrocinado inúmeras causas e uma grande capa), desapareciam à medida que Gales transformava­
galesas. Estudou e desenhou trajes femininos galeses e, em 1 834, no se num dos países mais industrializados do mundo.
Ei.1 1eddfád Real de Cardiff venceu o concurso de dissertações sobre a
conveniência de se falar o galês e vestir roupas galesas. Sua intenção, O NO VO VA LHA LLA CA MBRIA NO
em princípio, era convencer as galesas a prestigiarem o produto nacio­ Uma das mais interessantes características desse período é o apa­
nal. a usarem os rweeds nacionais em vez dos algodões e morins, tendo, recimento de heróis nacionais, e destes nenhum é mais característico
juntamente com algumas amigas, ofertado prêmios a coleções de dese­ do que Owain Glyndwr, o Glendower de Shakespeare, que se rebelou
nhos e padrões galeses para tweed. Em 1834, nem especificou o que contra Henrique IV e governou Gales de 1400 até o seu misterioso de­
fosse um traje típico, mas estava certa de que devia haver uma vesti­ saparecimento, em 14 15.' 2 Glyndwr era geralmente tido como usurpa­
menta que fosse distintiva e pitoresca, para ser admirada pelos artistas dor ou um rebelde equivocado na literatura, e embora Ben Jonson te­
e turistas. Num instante ela e suas amigas criaram um traje nacional ú­ nha dito em 1 6 1 8 que amigos galeses o haviam informado de que em
nico a partir dos vários trajes camponeses de Gales, cujas característi­ Gales Glyndwr não era considerado um rebelde, e sim um grande he­
cas mais peculiares eram uma enorme capa vermelha vestida sobre um rói, parece não haver muitas provas disso. No início do século XVIII,
elegante conjunto de anágua e camisola (pais a betgwn), e uma cartola o círculo dos Morris mal parece ter tomado conhecimento dele, consi­
preta bem alta, no estilo da Mamãe Gansa. Tais roupas destinavam-se derando-se que só o mencionaram uma vez, classificando-o de traidor.
a ser usadas nas "festas nacionais", no Dia de S. Davi, em concertos Segundo parece, Glyndwr estourou como herói nacional na década de
de música nativa, principalmente pelas cantoras e harpistas, ou nas 1770. Aparece em 1 772 integrando a procissão de defensores do país
procissões que abriam e encerravam os coloridos eisteddfodau de Lady no poema de Evan Evans, The Love of Our Country, e, em 1 775, recebe
Llanover, em Abergavenny. Ela inventou uma vestimenta para ser bastante destaque na História da Ilha de A ng/esey, atribuída a John
usada pelos criados de Llanover Court; o harpista, por exemplo, teria Thomas de Beaumaris, aparentemente baseada numa biografia ma­
de usar um traje estranho, de menestrel misturado com montanhês da nuscrita de Glyndwr, composta em meados do século XVII. Em 1778,
Escócia. Como Lord Llanover não estava disposto a andar fantasiado, Glyndwr recebeu um tratamento dos mais favoráveis por parte de
os homens de Gales foram poupados. Em 1 862, Lady Llanover ofer­ Thomas Pennant no livro Tours in Wales (Viagens em Gales).
tou um retrato seu, vestida com os trajes nacionais, à escola que havia Gilbert White enviou suas famosas cartas sobre a história natural
ajudado a fundar com o objetivo de promover o galês entre as classes de Selborne a Thomas Pennant e Daines Barrington, ambos líderes da
altas em Llandovery College. No retrato, ela traz uma jóia represen­ restauração histórica galesa, na década de 1 770. Pennant, natural de
tando um maço de alho-poró, na aba do chapéu de copa alta, e, nas Downing, condado de Flint, era um aristocrata anglicizado, apaixona­
mãos, um ramo de visco, para mostrar sua ligação com os druidas (ela do por tudo que fosse galês. Referia-se ao Castelo de Caernavon como
"o símbolo mais grandioso de nossa escravidão"; seu retrato de
Glyndwr é dos mais favoráveis, percebendo com perspicácia a tragédia
7 1 . O nome de Lady Llanover consta do Dictionary of Welsh Biography, s. n. : "Benja­
m i n H all"º; para obtenção de vários pormenores biográficos sobre o Lorde e Lady Lla­
nover. veja divesos artigos sobre eles, escritos por M axwell Fraser, no National Librarl' 72. J. E. Loyd. Owen Glyndwr (Oxford, 1 93 1 ): D. Rhys Philips, A Se/ect Bibliography
of Wa/es Journal, xii-xiv ( 1 962-6). o/ Owen G/_rndJ,r (Swansea. 1 9 1 5).
92 93

que foi a decadência e desaparecimento do herói, que causa�am uma ga nwg levou ao extremo esta idolatria da figura do bardo, em parte
segunda invasão inglesa em Gales. É possível que Pennant estivesse re­ devido à influência de Gorowyn Owen e de Evan Evans, em parte
produzindo as opiniões de seu companheiro de viagem, John Lloyd de porque sofria de uma terrível m ania de perseguição e queria virar o fei­
Caerwys, filho do squire de Bodidris, q ue fica bem próximo do quar­ tiço contra os feiticeiros, contra aqueles que menosprezavam os poetas
tel-general de G ly ndwr em seu país. Provavelmente, foi P�nnant que ou os estudiosos. lolo fez do bardo a figura principal do préstito histó­
lançou Glyndwr como herói nacional, e a q uantidade de hvros sobre rico galês, embora, em algu mas épocas, o bardo fosse um druida, e, em
ele, comparável a princípio com um filete, engrossou até as dimensões outras, um historiador ou literato; e sua imaginação jamais se incen­
de um córrego, tornando-se depois uma inundação. Primeiro pinta­ diava tanto como quando e le falava das perseguições aos bardos.
ram-no como um personagem trágico; depois, passaram a apresentá­ O bardo de Gray foi um personagem famoso durante as décadas
lo como o homem que previu a necessidade da existência de institui­ de 1 770 e de 1 780, sendo n aquela época um tem a comum na pintura.
ções nacionais galesas (tais como uma igreja nacional e uma universi­ Paul Sandby foi um dos primeiros a pintá-lo, seguido por Philip De
dade); e, finalmente, encararam-no como o pioneiro do n acionalismo Louthergourg, Fuseli e John M artin. Um dos melhores retratos é o de
moderno: i autoria do aluno de Richard Wilson, Thomas Jones de Pencerring.'i O
Em 1 770, Dames Barrington p ublicou o manuscrito da história quadro foi exposto em 1 774, e nele se vê o último dos bardos agarrado
da família Gwedir, de princípios do século X V I I , escrito por Sir J ohn à sua harpa, a fugir dos exercítos in vasores, que se aproximam de seu
Wynne. Este documento foi utilizado alguns a nos antes . como fonte templo, uma espécie de Stonehenge em miniatura, o sol se pondo no
para a história da I nglaterra escrita por Carte, que dele retirou o relato oeste, ainda acima do maciço de Snowdon, um vento gelado soprando
do massacre de bardos promovido por Eduardo 1, em 1 282. Thomas do leste, das bandas da I nglaterra. Esta cena dramática, o confronto
Gray apropriou-se da história de Carte e inspirou-se na interpretação entre o poeta e o poder do Estado, i ria repetir-se m uitas vezes. Logo
de Blind Parry para completar seu famoso poema, The Bard (O Bar­ foi adotada como tema para poemas e dissertações de eisteddfod, re­
do), em 1 7 57. -. G ray não acreditou inteiramente na história - não exis­ contada em vários livros ingleses e galeses, entrando até no fam oso
tiam ainda bardos galeses, prova de que os bardos de 1 282 tinham dei­ poema húngaro Os Bardos Galeses, de J anos Árány, no qual Eduardo
xado descendência? O relato de Carte baseava-se, de certo modo, nas I é visto como um cruel imperador da di nastia dos H absburgos a i nva­
lendas galesas segundo as quais houvera uma q ueima de todos os ve­ dir os Balcãs. Escusado dizer que tudo não passa de fábula ou mito.
lhos livros galeses em Londres, e de algum modo todos os bardos ha­ No máximo, isso poderia ser interpretado como ,uma intensificação
viam sido banidos. Pouco depois de 1 757, os próprios galeses começa­ grosseira do fato de que, de tempos em tempos, os reis medievais i ngle­
ram a acreditar na descrição de Gray, como se pode comprovar con­ ses autorizavam e fi scalizavam os bardos galeses devido às discórdias
sultando-se um estudioso preciso, como Evan Evans, que citou m uitas causadas em conseqüência das profecias que faziam.
passagens de G ray na década de 1 760. Antes, o círculo d os M orris
considerava o bardo galês acima de tudo como um artista profissional. U m dos mais extraordinários desses novos heróis foi M adoc, fi­
Para eles, a poesia era um divertido passatempo social, o 9 ue os le� ou lho do Príncipe Owain Gwynedd, que, decepcionado com as disputas
a romper relações com Gorowyn Owen, para quem a poesia era o tipo em sua terra natal, o N orte de Gales, partiu em seu navio Gwennan
mais sublime e épico de literatura. Evan Evans pertencia a uma gera­ Gorn em direção a mares ocidentais inexplorados, por volta de 1 1 70, e
ção para a qual o bardo era um ser heróico, quase sempre revoltad? descobriu a América. Retornando ao Pais de G ales, reuniu alguns
contra o mundo circundante. Evans admirava profundamente os pri­ companheiros, fez-se ao mar novamente com eles, e nunca mais vol­
meiros poetas galeses que haviam sido guerreiros genuínos. Iolo M or- tou. Supun ha-se que seus descendentes se tivessem miscigenado com
os índios e ainda sobrevivessem, no Oeste americano .'6 A lenda n ão
surgira no século XVIII, tendo sido utilizada pela primeira vez pelos
Tudors, para intimidar a Espanha, que reivindicava o domínio sobre a
73. Sih a n Evans. Gwaith r Parchedig E,·an E,·ans, p. 1 42; Davies, Morris Letters, i. p.
432; Thomas Pen nant, Tours, i ( 1778). pp. 302-69.
74. P. ToyAbee e L . Whibley, Correspondence of Thomas Grar (Oxford. 1935). ii. pp.
50 1 -2. Sobre a interação dos literatos galeses e ingleses neste período veja Saunders Le­
wis. A School o/ Welsh A ugu.<tans ( Londres. 1924); W. J . H ughes. Wa/es and the We/sh in 75. M cCarth\ . "The Bard o f Thomas Grav"; e introdução de Ralph Edwards ao catá­
Eng/ish l iterarure /mm Shakespeare to Scol/ (Londres e Wrexham, 1924); e E. D. Sny­ logo da exposição das obras de Thomas J �nes: Thomas Jones (Londres, 1 970).
der. The Celric Rel'il'a/ in English Lirerature 1 760-/íWO ( H arvard, 1923). 76. David Williams. John f_-l'an.< and the Legend o( .\fadoc (Cardiff. 1 963).
94 95

América do Norte. Permaneceu conhecida e adormecida no País de uma sociedade mais pura e livre, que guardava certa semelhança com
Gales, vindo a despertar somente na década de 1770, quando o interes­ os mitos dos Saxões Livres e do Jugo Normando entre os operários in­
se galês pela América foi excitado pela Guerra da Independência Ame­ gleses contemporâneos.
ricana. Houve não só um interesse pela Revolução como tal, como Joio Morganwg foi responsável pela transformação de muitos
também um forte movimento a favor da emigração galesa para a Amé­ personagens desconhecidos em heróis nacionais. Basta um exemplo.
rica, com o fim de fundar uma colônia de língua galesa na nova re­ Na década de 1780, Joio fazia criação de gado nos pântanos entre Car­
pública. O mito de Madoc só conquistou a imaginação do público em diff e Newport, onde veio a conhecer Evan Evans, naquela época um

'
1 790, quando o Dr. John Williams, ministro e historiador londrino, e cura de Bassaleg, beberrão e esfarrapado. Ambos visitaram juntos as
bibliotecário da biblioteca do Dr. Williams, publicou um relato das ruínas da residência de ! for Hael (lvor, o Generoso), o qual, segundo
peripécias de Madoc. Os galeses londrinos ficaram ansiosos. Joio determinava a tradição, embora de maneira um tanto vaga e incerta,
Morganwg (que estava em Londres na época) forjou toda sorte de do­ havia sido patrono do grande poeta Dafydd ap Gwilym, do século
cumentos, provando que ainda existiam descendentes de Madoc, fa­ XIV. Evans escreveu um belo poema romântico sobre as ruínas reco­
lantes de galês, em algum ponto do Meio-Oeste norte-americano, de bertas de hera, e Joio empreendeu suas primeiras falsificações impor­
modo que o Dr. Williams foi obrigado a publicar um segundo volume. tantes, a imitação dos poemas amorosos de Dafydd ap Gwilym, que
William Owen (Pughe) fundou uma associação "madoquiana" com o continham breves e sutis referências a Glamorgan e a lfor Hael. Nos
propósito de organizar uma expedição, que Joio pediu para chefiar. escritos que se seguiram, Joio procurou por todos os meios transfor­
Ficou desconcertado quando um jovem sério, John Evans de Waun mar !for no maior patrono da literatura galesa.'8 lvor tornou-se um
Fawr ( 1 770-99), apresentou-se, pronto para partir. Joio desculpou-se e nome popular em Gales, um chavão que significa generosidade. Vem
ficou, enquanto John Evans ia para a América, chegando por fim ao do seu o nome da mais galesa das sociedades beneficentes, a Ordem
Oeste Selvagem. Tornou-se explorador a serviço do rei da Espanha. dos Ivoritas; as estalagens onde se reuniam muitos de seus hóspedes
Depois de passar por uma série de aventuras horripilantes, chegou às chamavam-se lvor Arms, muitas das quais existem até hoje. Nas déca­
terras dos índios mandan (que julgou serem madoquianos); porém, das de I X20 e I X30. encontravam-se em Gales muitos outros criadores
descobriu que eles não falavam galês. Morreu no palácio do governa­ de mitos. Um deles, que escrevia histórias populares para os falantes
dor espanhol, em Nova Orleans, após ter vivido outras aventuras. O de galês, era um tipógrafo de Caernarfon, de nome William Owen,
mapa de sua jornada às terras dos mandans veio a ser a base para as ex­ "Sefnin". também conhecido como "Pab" (Papa) por simpatizar com
plorações de Lewis e Clark. O fato de não ter sido encontrado nenhum a Igreja Católica Romana. Escreveu sobre Glyndwr, Eduardo I e os
índio galês não destruiu a fé de Joio Morganwg, nem de seus amigos bardos galeses, a "Traição das Facas Longas", e muitos outros acon­
londrinos, muito pelo contrário. Joio até persuadiu Robert Southey a tecimentos dramáticos da história galesa. Um personagem bastante
escrever uma epopéia denominada Madoc. O movimento madoquiano parecido, mas que escrevia em inglês, era T. J. Llewelyn Pritchard,
fez com que um grande número de galeses emigrasse para a América; ator e jornalista preocupado em criar uma ilusão de "galesidade" para
um de seus principais líderes foi o jornalista radical Morgan John a aristocracia e as classes médias que não falavam mais galês, e para o
Rhys, que antes militara em Paris, tentando vender bíblias protestan­ mercado turístico.-• Não inventou, mas foi o principal promotor de ou­
tes para evangelizar os revolucionários franceses. Gwyn A. Williams, tro curioso herói galês, Twm Sion Catti, sobre o qual escreveu um ro­
depois de ter estudado o trabalho de Morgan John Rhys e o movimen­ mance em 1828. O verdadeiro Twm Sion Catti era um certo Thomas
to madoquiano, enfatiza que essa agitação em relação a Madoc fazia Jones, respeitável squire e genealogista de Fountain Gate, nas proximi­
parte de uma crise de modernização que estava atingindo grande par­ dades de Tregaron, no condado de Cardigan, surgido em fins do século
cela da sociedade galesa naquele período; o sonho de redescobrir os XVI; com o passar dos anos, haviam surgido várias histórias locais
índios galeses perdidos tinha muito em comum com o desejo de recriar
o druidismo ou a linguagem dos patriarcas." Era o desejo de alcançar
Rerieu·. i i i ( 1 967). pp. 441-72: também os dois livros recentes de Gwyn A. Williams: Ma­
doc The Ma/.:inft ofa Mith ( Londres. 1 979) e ln Search of Beu/ah Land (Londres, 1980).
7X. David Greene. Ma/.:ers and For1ters (Cardiff. 1975): e Morgan, lo/o Morganwg, pp.
77. Gwy n A. Williams, '·John Evan's M ission to the M a�ogwys, 1792- 1 799", Bul/etin
75-9 1 . sobre as falsificações.
of the Board oj Celtic Studies. uvii ( 1978), pp. 569-601. Sobre M organ John Rhys e emi­
79. T. J. LI. Pritchard. We/sh Min.<tre/sr (London and Aberystwyth. 1825), e The Ad-
gração. veja Gwyn A. Williams. " M organ John Rhees and his Beula", Welsh History
1·emure1· and Va1taries o( T1m1 Sim, Cau1· (A berystwyth. 1828).
96 97

onde ele se confundia com outros bandidos e salteadores desconheci­ foram francamente inventadas para os turistas; exemplo excelente é o
dos do distrito. Pritchard t ransformou esta figura desconhecida num do túmu lo de Gelert em Beddgelert, no condado de Caernarvon. Era
Till Eulenspiegel que pregava peças e fazia brincadeiras, e numa espé­ um dos locais mais visitados pelos turistas no final do século XVIII, e
cie de Robin H ood, que promovia a justiça com as próprias mãos entre os anos de 1 784 e 1 794 um hoteleiro de Gales Meridional, pro­
roubando dos ricos para dar aos pobres. A obra de Pritchard popula: prietário do Royal Goat Hotel, em Beddgelert, inventou a lenda de
rizou-se, foi traduzida para o galês, e não tardou que os galeses come­ que a aldeia assim se chamava devido a um marco funerário (que o au­
çassem a acreditar n essas lendas. Hoje em dia (não tendo Twm perdi­ dacioso hoteleiro construiu às escondidas), feito pelo Príncipe Llywe­
do a popularidade como herói ou anti-herói), o personagem promovi­ lyn , o Grande, em memória de seu galgo predileto, Gelert, morto in­
do por Pritchard parece ter-se originado de lendas folclóricas autênti­ justamente por ele mesmo. O Príncipe saíra para caçar, deixando Ge­
cas. f: um ótimo exemplo do modo pelo qual os heróis dos contos vêm lert tomando conta de seu herdeiro, e, ao voltar, encontrou o cão co­
substituir o hábito ultrapassado e debilitado de contar histórias ao pé berto de sangue, e nem sinal do filho. Depois de matar o animal, des­
da lareira. cobriu o bebê num canto escuro, e só então entendeu que Gelert havia
matado um lobo que atacara o berço real. O marco funerário era um
O ESPÍR I TO DO L UGA R - A PA ISA GEM E OS MITOS sinal do remorso do Príncipe." A história comoveu os turistas que gos­
tavam de animais, o Hon. W. Spencer compôs um poema famoso
T.J . LI. Pritchard, na verdade, fazia parte de um amplo movimen­ sobre o incidente. que Joseph Haydn adaptou à melodia de Eryri Wen.
to que visava fazer com que os galeses entendessem que deviam tratar e dentro de alguns anos a lenda voltou, sob a forma de versões galesas,
com carinho sua paisagem: para mostrar isso de maneira clara ao po­ à boca dos galeses monoglotas que habitavam a Snowdônia. Natural­
vo. Pritchard emprestava a cada pau ou pedra um interesse humano e mente. trata-se de mera fantasia. ou, mais exatamente, de uma adapta­
histórico."' Um de seus poemas intitulava-se The Land Beneath the Sea ção bastante astuta de um conto folclórico conhecido internacional­
( A Terra Submarina), e falava sobre Cantre'r Gwaelod, ou Lowland mente. É um bom exemplo do tipo de elaboração complexa de mitos
Hundred que havia submergido na Baía de Cardigan, uma espécie de que ocorreu em milhares de localidades, ajudando, pouco a pouco, a
Lyonesse galesa que afundara no início da Alta Idade Média por des­ fazer com que os galeses apreciassem a paisagem rude na qual labuta­
cuido dos servos do dissoluto e libertino Rei Seithennyn. Lendas anti­ vam para sobreviver.
gas autênticas relacionavam a história do Lowland Hundred com a Ao final do século XV III, os turistas consideravam Gales como
saga do poeta e profeta Taliesin. Escritores como Pritchard propala­ um país de grande beleza natural. Em meados do século XIX, os pró­
ram esta lenda folclórica por todo o País de Gales, e a canção "The prios galeses começaram a reconhecer os encantos de sua terra. A se­
Bells of Aberdovey" (Os Sinos de Aberdovey) foi adaptada a fim de gunda estrofe do Hino N acional galês diz o seguinte (tradução nossa):
provar que era uma música do tipo "Catedral Submersa", que se refe­ Velho Gales montanhoso, dos bardos paraíso
ria aos sinos das torres submersas ao largo de Aberdovey, embora fos­ Que belos os teus vales e penhascos
se uma melodia bastante recente, de autoria de Dibdin. A história era Quão mágico é o som
bastante útil, pois poderia ser transformada numa fábula moral para Dos a r•oios e rios de minha Pátria . . .
combater o alcoolismo ou os monarcas irresponsáveis. Thomas Love Tais sentimentos seriam inconcebíveis no século X VIII. Neste período
Peacock soube das tentativas empreendidas por William Maddox com não houve quase nenhuma descrição de paisagem, e as que restam, por
o objetivo de recuperar grandes áreas de terra submersa próximo à sua exemplo os versos de Dafydd Thomas sobre todos os condados de
cidade, Portmadoc. No romance Headlong Hall, ele satirizou os squi­ Gales : �scritos por volta de 1750, falam apenas de atividades, produtos
res galeses e seus visitantes ingleses por romantizarem a paisagem gale­ e habtltdades humanas, não exaltando nunca a beleza da terra. 82 O
sa e por traçar tantos planos de "aprimoramento". Num romance pos­
terior, The Misfortunes of Elphin (Os Azares de Elphin), incluiu uma
versão em prosa bastante espirituosa da lenda de Taliesin e da destrui­
8 1 . D. E . Jen k i ns. Bedd &elert. it.1 FacH. Fairies and Folk/ore I Portmadoc. 1 899). pp.
ção do Lowland H undred. Algumas das lendas referentes à paisagem 56-73 .
82. Os poemas de Daf)dd Thomas foram impressos por S. Williams. em Aberystwyth
em 1 8 1 6. mas eu recorri a uma versão i mpressa in Trrsofa 'r Plant (0 Tesouro das crian­
ças) para obter dados sobre 1 893-4.
XO. F. J. North. Sunken Cities (Cardiff. 1 957), principalmente pp. 1 47 e segs.
98 99

círculo patriótico dos M orris achava as montanhas feias, sombrias e to custo, começaram a encarar suas montanhas não como um castigo
ameaçadoras; consid erava m-nas no máximo como um castigo enviad o do Todo-Poderoso, que os havia expulsado das exuberantes planícies
pelo Todo-Poderoso para purgar as culpas passadas dos galeses. Os inglesas, mas como uma fortaleza ou defesa para a nação. A expressão
galeses nativos custaram muito a deixar-se contagiar p elo interesse de­ GH'lad y Bryniau (Terra das M o ntanhas) logo se tornou lugar-comum
monstrado pelas hordas de turistas ingleses que vinham admirar a que­ em G ales, mesmo para aqueles que viviam na baixada. E sta imagem
la paisagem agreste. Segundo o R everendo W illiam Bingley, os galeses m anteve-se firme, embora, na realidade, as melhorias nas estradas de
lhe perguntaram se na terra dele não existiam rochas nem cachoeira s. Talford e outras tivessem permitido que se atingissem as partes mais
A gramática d e W illia m Gambold, de 1727, foi reimpressa repetidas ina cessíveis da Snowdônia; embora turistas como William W ords­
vezes no início d o século XIX, e a edição de 1833 levava em conta as worth tivessem escalado o pico de S nowdon sem maiores dificuldades;
necessidades dos turistas que iam até "as românticas serras do Princi­ e em bora a população estivesse migrando das charnecas e montanhas
pado" , tendo sido acrescida d e frases como "Não há uma cachoeira para os vales e áreas industriais. À medida que os galeses se tornavam
nesta região?" e "Eu gostaria de visitar o M osteiro. V ou alugar um mais industrializados, iam se apegando à imagem do galês resoluto e
cabriole que me leve até lá." O apetite dos turistas tinha sid o aguçado inflexível das monta nhas, livre como o ar das al turas.
pelas gravuras que reproduziam o cenário galês, vendidas nas lojas.
J ohn By ng s ugeriu. enq ua nto esta va em Crogen, que os gravadores HERÁLDICA DA CUL TURA
vendessem mapas junto com as estampas, para ajudar as p essoas a O alegre Pa ís de Gales. com seus ritos e costumes variad os. esta­
chegarem ao local retratado. Contudo, a moda da paisagem galesa foi va em extinção, ou já extinto. Contudo, neste período surgiu um com­
criada não por um turista, mas por um galês chamado Richard Wil ­ plexo conj unto de embl emas que não só deram brilho à vida, como
son. também ajudaram os habitantes dos d iferentes vales ou os membros
Richard Wilson ( 1 7 14-82) era parente de Thomas Penna nt, e em- f: das várias seitas a entend erem que faziam parte de uma mesma nação.
bora grande parte de seu trabalho fosse feito na Itália e na Inglaterra, Tais emblemas apareciam com mais freqüência entre os galeses que vi­
el e parece ter feito uma descoberta original e independente da paisa- viam no exterior, em Londres, na América ou nas colônias mas não
gem gal esa nas d écadas de 1 750 e de 1760. Antes, o cenário galês era sempre. Os emblemas da nacionalidade surgiram nas complicadas ce­
simplesmente um registro topográfico. 1 1 A paisagem galesa obrigou rimônias de comemoração ao Dia d e S. Davi, montadas por galeses
Wilson (original d e Penegoes, próximo a Machynlleth) a adotar dois londrinos depois de 1 7 1 4." Os galeses at ra vessa va m Londres em pro­
estilos a nacrônicos, o primeiro ao ar livre, em que a natureza parece cissão até uma igreja, trazendo alho-porá nos chapéus, ouviam ser­
dominar a humanidade, e o segundo, um estilo mais romântico, em mões pregados em galês, reuniam-se para banquetes imensos (para
que as monta nhas e ruínas de castelos galeses transformam-se em algo centenas de convivas), erguiam infindáveis brindes de lealdade ao País
fa ntasticamente belo. Vendeu poucas obras para o público elegante, e de Gales e à dinastia governante, faziam col etas para obras de carida­
morreu à beira do fraca sso, perto de M old, em 1 782. Logo após sua de galesas, e depois iam fazer suas farras particulares.
morte, suas paisagens foram reproduzidas e imitadas aos milhares. Na verdade, no século XV III, o símbolo mais comum do País de
Quand o Cornel ius Yarl ey visitou Cader Idris, em 1803, identificou a Gales não era o alho-poró. mas as três pl umas de avestruz do Prínci­
Lly n y Cau nas anotações de viagem como " Lagoa de W ilson", tão fa­ pe de Gales, que original mente pertenceram (assim como o lema lch
moso havia se tornado o retrato que W ilson fizera dela. Naturalmente, Dien - " Eu sirvo " ) a Ostreva nt de H ainault, tend o sido adotadas pelo
esta nova tendência a apreciar as paisagens montanhosas agrestes se Príncipe Negro, que era filho da Rainha Philippa de Hainault. U ma
deu na Europa inteira, mas afetou principalmente os p equenos povos "plumagem emprestada", por excelência. Os galeses de Londres exi­
montanheses, como os galeses ou os suíços. O s galeses, depois d e mui- biam-nas, como nas cerimônias d os Ancient Britons, com o propósito
de mostrar aos hanoverianos que os galeses eram l eais, ao contrário
dos perigosos irlandeses e escoceses. As plumas e o lema foram adota­
XJ. lolo A . Wi lliams. " Notes o n Pa u l Sa ndbv and his Predecessors in Wales"', Tran- dos em 175 l p elo Cy mmrodorion para encimar seu brasão, e naquela
1·actiom o/ the Hmwurahle Societr o/ Cr111111md;,rio11 ( 1961 ). pp. 16-33: A. D. Fraser Jen·
kins. "The Romantic Traveller in Wales··. A mguedd/à. vi ( 1970). pp. 29-37: D. M oore,
"The Discovery o f the Welsh Landscape". i n D. M oore (org.). Wa/es in the Eighteenth
Century (Swansea. 1976). pp. 127-5 1. A obra padrão sobre Wilson é W. G. Constable. k4. Encontra-se em Davies. ,\forri, l.etters. i. p. 3. uma descrição dos convescotes da
Richard Wil.wn ( Londres. 1953). Sociedade dos Bretões Antigos.
1 00 101

época foram de l onge o ideograma ou logotipo mais comum d o País Um dos símbol os mais freqüentemente utilizados para represen­
de Gales. Até h oje, continuam sendo um símbolo bastante comum, fa. ta r Gal es no século XV III era o druida, principalmente o sumo- sa cer­
zendo parte, por exemplo, do escudo da Associação de Rugby U nion d ote druídico, com manto e capuz, tendo nas mãos a foice e um ramo
do Pa ís de Gales.'' dourado de visco. Em 1 75 1 , ele sustentava o brasão dos Cymmrodo­
Por outro lado, o dragão vermelho hoje tão familiar quase não rion, juntamente com S. Davi, tendo sido, depois d isso, cada vez mais
era utilizado. Fora considerado símbolo galês d urante a Idade M édia, empregado para dar nome a sociedades, clubes e estalagens. Aparecia
figura ndo freqüentemente entre 1 485 e 1 603 nos brasões da dinastia nas folhas de rosto do livros galeses, acompanhado pelos dólmens ( ti­
Tudor, onde provavel mente simbolizava o fato de que os Tudor des­ d os por aras dos druidas), que vi nham sob a forma de vinhetas ou flo­
cendiam de Cadwaladr o Bem-Aventurado, representando sua reivin­ rões. O Cambrian Registe, (excelente periódico de h istória e literatura
dicação de suserania sobre a Grã-Bretanha. Era considerado mais um galesas) escolheu o dól men como decoração para sua folha de rosto,
símbolo ad ministrativo da Assembl éia de Gales do que um símbolo em 1 795, assim como William Owen (Pughe) fez em vários de seus l i­
nacional, mas mesmo a ssim foi reabilitado como símbol o real do País vros. U m pouco mais tarde, o druida foi símbolo das casas das socie­
de Gales em 1 807 e , deste ano em d iante, cada vez mais utilizado nos dades operárias de beneficência; e foi provavelmente o avanço consi­
estandartes e brasões dos eisteddfodau ou d os clubes e das sociedades derável do não-conformismo que pouco a pouco expul sou o sacerdote
galesas no início do sécul o XIX. Só no século XX o dragão substituiu pagão da heráldica galesa nacional, embora ele haja permanecid o, j un­
as três plumas na estima dos galeses, pois as três plumas, a companha­ tamente com grinaldas de folhas de carvalho e visco. como elemento
das de seu lema subservie nte, foram consideradas respeitosas demais decorativo nas coroas, cadeiras e medalhas dos eisteddfodau.
pelos radicais, liberais e social istas. A harpa, ou, mais precisa mente, a harpa tripla, foi freqüentemen­
O alho-poró havia sido utili1ado durante séculos corn o símbolo te utilizada como símbol o do País de Gales. À s vezes, as próprias har­
pelos próprios galeses. As cores branca e verde associavam-se aos pas triplas eram decoradas com símbolos nacionais, folhas de alho­
príncipes galeses e eram utilizadas como uniforme militar primitivo no poró entrelaçadas na base e plumas principescas brota ndo da ext re­
século XIV . Shakespeare idealizou Henrique V (Harry de M onmouth) midade superior. As harpas surgiam nos estandartes e nos livros, em
e Fluellen e n feitados com alho-poró no Dia de S. Davi. para h onrar a códices e medalhas, quase sempre acompanhadas por lemas adequa­
memória de Gales. Também se usava o alh o-poró como orna mento dos em galês, como "Gales é o país das harpas" , "A linguagem da
na Inglaterra, por exemplo, nos tribunais de Londres, até o século alma fala em suas cordas" e assim por d ia nte. O cabrito montês, visão
XV II 1 , sendo ele, possivelmente, um dos meios sutis de que se servia a ainda das mais impressiona ntes da Snowdô nia, foi adotado por al guns
Igreja Anglicana para enxertar-se na memória da Igreja Britânica como símbolo de Gales. Pennant colocou um cabreiro com sua gaita
primitiva. Sem d úvida, o alh o-poró era usado de maneira bem mais de foles ou pibgorn , seguido do rebanho, no frontispício de suas Via-
consciente por galeses no estrangeiro. Embora essa trad ição não se ca­ gens; Lady Llanover escolheu um cabrito sel vagem para sustentar um
racterize como inventada, ela veio efetivamente fazer parte da elabora­ de seus brasões; e alguns regimentos galeses adotaram o cabrito como
da decoração simbólica que revestia os pavilhões e salas de concerto mascote. O animal também não poderia deixar de ser usado como ca­
para música nacional d os festivais no i nício do século XIX. F oi só em ricatura simbólica de Gales nas sátiras e tiras h umorísticas.
1 907 que o alho-poró foi substituído pelo narciso, devido a uma con­ O eisteddfod, provincial ou nacional, era neste período a ocasião
fusão gerada em torno da palavra galesa que significava " bul­ perfeita para um desfile desenfreado de emblemas, e os símbolos na­
bo" . Lloyd George, 19-ministro da Grã-Bretanha em 1 9 1 6-22. como­ cionais aqui mencionados misturavam-se aos emblemas especiais do
veu-se ante a delicadeza um tanto femini na do narciso, empregando-o, Gorsedd dos Bardos. Produziram-se milhares de coroas e cadeiras para
em vez do alh o-poró, no imponente cerimonial de posse encerrado em os eisteddfodau, fazendo-se, p ortanto, necessário criar uma l inguagem
Caernarvon, no a no de 1 9 1 1 , e também em coisas como as publicações decorativa para estes objetos. tolo M organwg (bom pedreiro assalaria­
e impressos governamentais da época. do e artista amador) era um prolífero manufator de símbolos, dos
quais o mais famoso era o nod cyfrin ( signo místico), composto de três
varetas, cada qual representando respectivamente o passado, o prese n­
X�. O ún ico estudo sobre o assunto é Francis Jones. The Princes and Principality of Wa·
te e o futuro, formando j untas o nome de Deus na teologia druídica:
/,,., (Cardiff. 1 969), principalmente pp. 86· 7 e 1 58-204. Edwards. Yr Eisteddfod. traz ilus· este signo a inda constitui um magnífico logotipo para o Eisteddfod
t rações de medalhas e decorações de pavilhões. Nacional. O ponto alto d os ritos e cerimônias do eisteddfod só foi ai-
102 1 03

cançado em fins do século XIX, quando Sir Hubert von Herkomer e como tema por pintores românticos como Henry Fuseli e Angelica
Sir Goscombe John desenharam para o Gorsedd dos Bardos trajes e Kauffmann, na década de 1 770. Entretanto, após 1847, foi transfor­
insígnias repletas de todos os símbolos já mencionados. mada numa forma de propaganda política, para incitar os galeses a
Os novos cerimoniais e os símbolos e insígnias serviram para aju­ agirem. '"
dar os galeses a visualizar seu próprio país, adquirindo importância A ação realizada em conseqüência da comoção gerada pelos Li­
excepcional numa comunidade nacional que não constituía um Estado vro Azuis foi paradoxal e contraditória. Por um lado, ela fez com que
s
político. Eram substitutos dos costumes e ritos perdidos da velha so­ os galeses se tornassem mais nacionalistas e anglófobos do que nunca;
ciedade dos festivais patriarcais, das noites alegres e das festas religio­ por outro, fez com que se preoc�passe"? em respond�r às crític_as dos
sas. comissionados, tornando-se mais parecidos com os mgleses, virando
L'M MOM t.:N TO DECISI VO: bretões práticos, obstinados, metódicos e falantes de inglês. A revolta
"A TRAIÇÃO DOS LIV ROS AZU IS" causou também novas alianças e novas divisões na sociedade galesa. A
restauração histórica empreendida no século XVIII, da qual analisa­
Em 1 847, a Comissão Rearde estudos sobre a situação educacio­ mos a parte mitológica, havia se colocado à parte das grandes forças
nal em Gales relatou ao governo os resultados de suas investigações envolvidas na questão religiosa, na reforma política e na revolução in­
através de seus Livros Azuis. A pesquisa foi provocada por muitos dustrial. Os grandes arqueólogos e historiadores em geral opunham-se
motivos; a preocupação com o aumento da dissidência ou do não­ à incrível força do metodismo, que não só destruiu o velho estilo ale­
conformismo entre o povo, a falta de oportunidades educacionais em 1! gre de vida, como também preencheu da maneira mais competente
Gales e a intensificação da agitação através das últimas décadas, cul­ possível qualquer espaço que pudesse ter sido deixado em branco. lolo
minando no Levante de Merthyr, em 183 1, nos Levantes Cartistas, de
1839, e nos Tumultos de Rebecca, de 1 839 a 1 843. Os membros da Co-
missão (todos ingleses) incluíram no relatório assuntos que transcen­ .
· 1- Morganwg, por exemplo, escreveu a seu patrono, Owain Myfyr, em
1799, que o Gwyneddigion e outros patriotas londrinos estavam sendo
tachados de painitas na Associação M etodista de Bala por um dos ini­
diam o âmbito educacional, atribuindo o atraso e a imoralidade do
.:$:ii
migos de lolo, sempre chamado por ele de "Ginshop fones". Ginshop
povo (principalmente das mulheres) à influência da dissidência e da Jones era guarda-costas de Jorge 1 11, tornando-se depois estalajadeiro
língua galesa. A onda de protestos gerada no País de Gales pelo que e pastor metodista. "Agora o Norte de Gales está tão metodista como
o Sul, e o Sul, metodista como o diabo", queixava-se lolo. '
8
foi por muitos considerado um libelo grosseiro contra a Nação, ba­
seado em indícios preconceituosos fornecidos por uma minoria William Roberts, "Nefydd", ministro batista e organizador de es­
não-representativa de galeses aos comissionados ingleses, chamou-se colas, escreveu uma série de ensaios em 1852 intitulada Crefvdd yr Oe­
"Traição dos Livros Azuis" (Brad y Llyfrau Gleision) . Foi um trocadi- soedd Tywy/1 (Religião da Alta Idade Média), onde estabelece um con­
lho histórico bastante requintado, baseado na expressão "Traição das traste entre a cultura popular semipagã do País de Gales e a nova e
Facas Longas", um dos temas prediletos dos mitólogos românticos. respeitável cultura galesa vigente, a do eisteddfod, da sociedade literá­
Vortigern (Gwrtheyrn), líder dos galeses (ou bretões) em fins do século ria, do clube e dos periódicos de debate; e observava que até pouco
V, convidou os saxões comandados por Hengist e Horsa a virem à tempo o espírito severo de Genebra havia impedido os metodistas de
Grã-Bretanha, para auxiliá-lo no combate a inimigos. Segundo a len­ desfrutarem desta cultura florescente. A velha guarda metodista desjl­
da, os saxões convidaram Yortigern para um banquete, onde ele se pareceu rapidamente na década de 1840. Os jovens perceberam até que
apaixonou pela filha de Hengist, Alys Rhonwen ou Rowena, e pediu-a ponto a cultura galesa havia mudado, e a controvérsia dos Livros
em casamento. Posteriormente, em outro banquete, os saxões, a um si­ Azuis levou-os finalmente a se unirem aos outros dissidentes e aos pa­
nal especial, caíram sobre os chefes galeses embriagados que se acha­ triotas galeses, porque os comissionados os colocavam todos num só
vam à mesa, e os assassinaram com suas facas longas, obrigando Vor­
tigern a ceder-lhes uma extensa área da Inglaterra. Esta "Noite de São
Bartolomeu" galesa era conhecida dos galeses há séculos, sob forma X6. David Wil liams. A His1on·. o{ Modem Wa/es ( Londres, 1 950), pp. 246-68, sobre
de fábula. O compositor de baladas Matthew Owen, no século XVII, não conformismo. e pp. 269-85 sob re o fortalecimento da consciência nacional, é uma
considerou-a um castigo pelos pecados, que deveria ser aceito de ma­ excelente obra para o estudo da década de 1 840.
neira passiva e humilde. No século XVIII, os mitólogos aperceberam­ 87. G. J. Williams. "Lhthvrau
• . Llenorion" (Cartas de Autores), Y Llenor vi ( 1 927). p.
se de sua potencialidade em termos dramáticos e ela foi empregada 39
104 1 05

saco, atacando ao mesmo tempo metodistas, não-conformistas e a camponês de Gales era culto e letrado, escrevia livros isentos de qual­
_
lmgua galesa. quer tipo de89imoralidade e não se incomodava com política, nem com
A aproxi � a�ão entre patriotas galeses, dissidentes e metodistas O Governo . Contudo, as coisas estavam mudando até mesmo no
. _ _ m undo romântico do eisteddfod, pois já em 1 83 1 A rthur James Johnes
m fehzme �te s1gmficou o surgimento de outra d ivergência, dessa vez
entre patnotas e anglicanos, que haviam dominado a restauração cul­ (mais tarde juiz) venceu o concurso de ensaios com o trabalho "As
tural sob vários aspectos desde o século X V I I I , tendo sido, sem dúvi­ Ca usas da Dissidência em Gales", que hoje em dia seria classificado de
da. seus mais bri ! hantes promotores de 1815 a 1847. A nova onda de in­ sociológico. Foi apenas alguns anos mais tarde que se tentou transfor­
teresse pelas c01sa� galesas após 1 8 1 5 foi bastante incentivada pelo mar o eisteddfod numa versão galesa da Sociedade Britânica para o
_ Progresso da Ciência. Os ministros patriotas, interessados pelo passa­
m ov 1mento conhecido como Yr Hen Bersoniaid L/engar (Velhos pasto­
_
res literatos}, mas que na verdade também incluía muitos leigos. 88 Sen­ do rem oto e m itológico, ainda predominaram no eisteddfod até o fim
da década de 1840, mas a controvérsia dos Livros Azuis colocou-os
do um tanto reacionários em matéria de política, eles retornaram ao
.
Pais de Gales menos conturbado do século X VI I I . Queriam preservar con tra a parede, e, pouco a pouco, os dissidentes e metodistas penetra­
ram no campo deles e os dominaram, afirmando representar a ação
o que restava do Alegre Gales e, dominando a literatura e a história
galesa e taxando os anglicanos de intrusos estrangeiros. Quando o
e�peravam �vitar quaisquer intromissões dos dissidentes ou dos met�
distas na vida galesa. Entre eles, contavam-se a historiadora i nglesa grande líder dos radicais galeses, Henry Richard, publicou suas Cartas
Angharad Llwyd (filha de John Lloyd, companheiro de Pennant);' e Ensaios Sobre o País de Gales, em 1 866, praticamente equiparou ser
galês a ser não-conformista, pondo de parte os anglicanos. A tomada
Lady Llanover; Lady Charlotte G uest, organizadora da famosa edição
de contos ga!��es m,� dievais por ela intitulada The Mabinogion ( l 849); da cultura galesa por parte dos não-conformistas gerou uma nova
_ imagem . Enfraqueceu o interesse dos galeses pelo passado nacional re­
John Jones, 1 eg1d , regente do coro da Christ Church, em Oxford; a
_ moto e substituiu-o por um interesse pelo passado do Velho Testa­

1i
colec10nadora de canções folclóricas M arie Jane W illiams de A ber­
mento e pela história pri mitiva das causas dissidentes, nos séculos
pergwn; Thomas Price, "Carnhuanawc", ministro, historiador e celtó­
XVII e XVI II, dando ênfase à caracterização no novo domingo purita­
logo; J ? hn Jenkins, "lfor Ceri " , ministro, organizador de eisteddfodau
no �o� "o domingo galês", sendo o novo "estilo de vida" galês aquele
e colecionador de canções folclóricas; e o ministro John W i lliams "Ab
da 1greJa, da escola de canto (de hinos religiosos, não de baladas), das
Ithel", o inescrupuloso organizador dos escritos drufdicos de' Joio _
reuniões de temperança, das Cymanfa Ganu (assembléias para entoar
M organwg e um dos fundadores da Associação Arqueológica
Cambriana. cânticos}, das reuniões e associações trimestrais, das sociedades de
aprin:i oramento mútuo, e de todas as outras coisas que para nós, h oje
A So.ciedade de M anuscritos Galeses e a Associação ArqueológÍ­
.

ca C ambnana, a escola de Llandovery e o Colégio U niversitário de S. em d1� , são típicas do País de G ales. Não admira, pois, que o historia­
dor Sir John Lloyd tenha declarado que o G ales vitoriano estava para
Davi_ em Lampeter eram todos veículos através dos quais este formidá­
vel c_í rculo t� ntava influenciar a vida galesa; contudo, o principal meio • o Gales da época da Rainha Ana com o este para o de Boadicéia. John

1
de d1vulgaçao para o povo era o eisteddfod. Em 1 8 19, o periódico radi­ Thomas, "Iem an Ddu", confessou que tinha perdido o contato com as
canções do passado; os jovens, mesmo no longínquo condado de Car­
cal de Swansea, Seren Gomer, aprovou o eisteddfod de Carmarthen
mas em 1 832 o editor Joseph Harris desconfiou profundamente do eis: digan, eram obrigados a cantar hinos religiosos nas festas de casamen­
teddfod de Beaum �i:is, por crer que ele desviava a atenção dos galeses to porque não conheciam mais nada além disso. 90
dos p �o � l �mas poht1cos. A ngharad Llwyd publicou, como apêndice de As grandes forças da política e da industrialização que haviam
sua h1s�ona de Anglesey, premiada no eisteddfod, um discurso de ou­ sido acuadas pelos estudiosos e patriotas acercaram-se do círculo en­
tro ministro patnota, o poeta John Blackwell, "Alun", segundo o qual o cantado dos mitólogos românticos nas décadas de 1 840 e 1 850. Não é

X X . Bedwyr Lew i s J ones. t'r Hen Ber.rnniaid Llengar ( Velhos Pastores Literatos) ( Den­ X9 A n g harad L l w ) d A llistor,· of the lsland r,f A ngleser ( R u t h i n . 1 832). p. 39 do
. _ '.
h1g h . 1 963 ): R. T. J � n k ins. Hanes C1mru _1·11 r Bedi.-aredd Ganrif ar Bymtheg ( H istória do apend1ce. ( 1. M ar) Elhs. ''Angharad L l wyd", Flintshire lli.<torica/ Societ r Publications.
_ uvi ( 1 976). pp. 5�-95. e x v i i ( 1 978). pp. 43-87 .
Pais de G ak s no seculo X I X ) 1. 1 789- 1 84 3 (Cardiff. 1 93 3 ) contém m uitas i n formações
sohre os m i n i s t ros n:it�;o1as. Sobre o posicion amento geral dos estudos célticos da déca­ 90 . J o h n Thomas. " ' l euan Ddu". The Camhrian Minstrel ( M erthyr. 1 845), p. 29n . A
.
da de 1 8 30 } jt I X60. veja Rachel Bromwich . .'.fa11hei.· A rnold and Celtic literature: a tradição de cantar h i nos religiosos em partidas de íutebol é um íenômeno do século
Retrospect IX65-/ 965 (Oxford . 1 96 5 ) . X I X . originário das mesmas causas.
106 107

negócios. Edwin Chedwick


que os patriotas do século XVIII ignorassem a existência dessas •�OJI Yf//. mais ativo no controle de seus próprios
. e cerimônias extraordinár ias associados aos Tu­
ç� s; o cu. �� 1 o d os M orns, por exemplo, entendia um pouco de indua- c,bservou que os ritos
ebecca, de 1 839 a 1 843, se haviam originado do costume
t � 1a e poht1ca, com� não podia deixar_ de ser, uma vez que Lewis Mor. multos de R consuetudinár ias há
ns era � controverti? º diretor das minas reais do condado de Cardi,. ( Piada de mau gosto)." As leis
·do o,tfi'I Pre11
sexual com procissões notur­
gan e Richard Morns trabalhava no Ministério da Marinha. Thomaa muit o. que puniam os delitos de caráter
Pennant
. vinha do valt: dt: C1, rt:t:nfield. no condado de Flint, onde ex,s- nas de homens vestidos de mulher, queima
de imagens e julgamentos
· . .• . . pnm
t iam muitas muustnas . . . os. Porém, em 1839, estes recursos foram transformados com
1t1vas, e como squire de importância int� simulad
ressou-se pelas reformas governamentais da década de 1 780. Patriotas fins de violên cia política e social. Thomas Jones, "Glan Alun", que pe­
como l oto Morganwg ou Morgan John Rhys e seus amigos envolv� dira um hino nacional em 1 848, manifestou-se também no mesmo nú­
r�m-se com a pol ! tica radical nas décadas de 1 780 e 1790, quando sur­ mero do Traethodydd contra o interesse galês da época pelo utilitaris­
gi_� uma exte � sa literatura so�re questões políticas em galês. 9 1 Na opi­ mo ingl ês racional e factual. Era chegado o momento, e de 1 848 eril
ntao de Owam M yfyr. a sociedade dos G wyneddigion deveria dedi- · diante a invenção da tradição, que por tanto tempo dominara a cultu­
car-se a _ deb_ates que abordassem de um ponto de vista radical as refor. ra galesa, entrou em decadê ncia.
mas na 1gr'?Jª e no Estado, e todas as outras sociedades galesas de Lon­ Os poetas, mitólogos e sonhadores viram-se submetidos às mais
dres devena� fazer o mesmo. Homens como loto e Morgan Joh severas críticas, às vezes de caráter geral, por parte daqueles que acre­
�h�s pertenciam a uma tradição de debates políticos entre os artesão: ditavam que o País de Gales precisava agora progredir de um estágio
d1ss1d�ntes _das _ montanhas de Glamorgan; constituíam , porém, uma inferior da evolução humana, onde a poesia e a história eram impor­
reduzi? ª m mona, e a repressão dos longos anos de guerra enfraqueceu tantes , para um estágio superior, onde o que importava eram as coisas
?�
o mov1me � to reforma, ao mesmo tempo que revigorou o sentimen­ práticas; de outras vezes, as críticas eram mais específicas. John
to revoluc10nano em Gales. Williams, "Ab Ithel", esperava fazer do Eisteddfod de Llangollen, em
Henry Richard, escrevendo em 1866, referiu-se à cultura de sua 1858, uma restauração dos dias de antanho, da época dos ministros
infância, recordando o grande número de periódicos galeses lidos pelo patrióticos das décadas de 1 820 e 1 830. Esperava obter ele mesmo o
pai, e observando que tais periódicos dedicavam-se à poesia e à reli­ prêmio de ensaio histórico, provando a verdade sobre o caso Madoc.
gião, com raras referências a assuntos políticos ou comerciais, salvo as E venceu. só que o verdadeiro vencedor foi Thomas Stephens, de
que apareciam num suplemento final ! 1 Isto teria sido aprovado por M erthyr Tidfil. que já havia publicado uma história da literatura gale­
Lady Llanover e pelos religiosos patriotas, pois a entusiástica renas­ sa. e que acabou com Madoc, afirmando que era um mito sem funda­
cença cultural por eles promovida teve como pano de fundo uma misé­ mento. A mudança podia ser observada simplesmente nos procedi­
ria dolorosa e uma violenta insatisfação. Angharad Llwyd comprou o mentos de Llangollen: por exemplo, William Roos de A mlwch obteve
estoque de livros de William Owen, "Sefnyn", a fim de destruí-los, um dos prêmios de pintura, com um quadro sobre a morte de Owain
porque o poeta era favorável à emancipação católica; e Lady Llanover Glyndwr. e outro sobre a recente morte do Capitão Wynn na Batalha
cortou relações com Llywelyn Williams ( l 822-72), u m brilhante intér­ de Alma. na Guerra da Criméia. Depois de alguns anos os galeses co­
prete da harpa tripla, porque seu pai, Sephaniah Williams foi líder do meçaram a conhecer através de seus periódicos os grandes progressos
Levante Cartista de 1 839. Assim como a controvérsia dos Livros Azuis da filologia alemã e do trabalho de Bopp e Seuss, que colocaram o ga­
levou os metodistas ao ponto de se envolverem na política e na cultura lês no seu verdadeiro contexto filológico, usando um método científi­
galesas, também fortaleceu a mão dos galeses que desejavam que seus co, e tornando cada vez mais difícil para os galeses acreditar na elabo­
compatriotas se envolvessem nos negócios e na política. M esmo sem a ração irracional de mitos históricos do século XVIII." Os velhos fran­
controvérsia dos Livros Azuis, as circunstâncias gerais da sociedade gos de Lhuyd e Leibniz iam finalmente descansar no poleiro. Os gê-
galesa estavam obrigando os homens a desempenharem um papel cada

93. David Willi a m s. The Rehecca Riots ( Cardiff. 1 955). pp. 53-6. 1 04. 1 28. 1 85, 1 9 1 .
9 L David Da v i , . lhe lnfluence o/ the French Revo/ution on We/sh L1fe and literatu" 24 1 . 290. Sobre a agitação d a década d e 1 790 até 1 835 veja D . J . V . Jones, Before Rebec­
� .
(( ar �a r� hen 1 9_6). !· J. h a ns. /Jrlanwad r Ch wrldro Ffrengig ar Lenyddiaeth Cymru
ca ( Londres. 1 97 3 ).
94. Bromwich. Ma11hew A mo/d and Celtic Literature: Francis Shaw. "The Background
( l n íl uen�1 a d a: Revoluçao hancesa na Literatura Galesa) (Liverpool, 1 928), Morgan
_ e to the Grammatica Celtica". Celtica. iii ( 1 953). pp. 1 - 1 7. sobre o trabalho de B opp em
John Rhr., a 1 A mwrau ( M . J . R hys e seu tem po) (Cardi ff, 1 935).
_
92. Henr) Richard. Letters and EHa_n on Wales, 2• ed. ( L on d res, 1 884), p . 93. I X39 e' o de Zeuss e m 1 853.
1 08 1 09

e avaliar os mitos e inven­


nios e fantasmas dos séculos longínquos da história e literatura gale­ ções culturais ou acadêmicas para verificar
sas. que tanto haviam divertido e inspirado as gerações anteriores, fo­ ções com base na crítica. O leitor e o escritor não podiam empreender
ram dispersos como se tivessem sido trazidos à luz do dia. jun tos uma caçada sistemática ao passado. Os manuscritos, por exem­
Enquanto isso acontecia, e enquanto os sobreviventes do mundo plo, estavam quase todos trancados em bibliotecas particulares, e pou­
antigo, como os ministros "Ab Ithel" e "Glasynys" ou Lady Llanover cos deles eram publicados; assim, era fácil para um falsificador de gê­
recolhiam-se, descontentes, ao isolamento e ao silêncio, o novo mund� nio como Joio Morganwg mistificar o público galês e inglês. Foi exata­
do Gales radical e não-conformista começou a tornar-se mito, as bru­ mente esta falta de instituições aptas e críticos abalizados que tornou
mas e névoas cobriram a história recente, e as pessoas passaram a di­ possível a Macpherson defender seus poemas de Ossian na Escócia, ao
vertir-se com uma série de novas lendas sobre si mesmas, sobre a per­ Barão Hersart de la Villemarqué (Kervarker) compor seus poemas
seguição aos primeiros metodistas (história contada no livro de Ro­ bretões antigos falsificados contidos em Barzaz Breiz, ou a Yaclav
bert Jones de Rhos-Lan, Drych yr A mservedd, que R. T. Jenkins cha­ Hanka publicar seu manuscrito tcheco medieval forjado, o Kralodvors­
mava de "o livro apócrifo da Restauração"), ou sobre Dic Penderyn e ky R ukopis. Hanka escreveu-o apenas dois anos depois que Ossian ha­
o Levante de Merthyr, em 183 1, ou a luta contra os proprietários via sido traduzido para o tcheco, e só foi desmascarado meio século ou
opressores e os capitães de indústria. mais depois, por Thomas Masaryck . Por outro lado, os ingleses não
tardaram a perceber as invenções de Chatterton.
CONCL USÃO: A PRESA A RISCA No País de Gales, o movimento de restauração e criação de mitos
surgiu de uma crise na vida galesa, em que o próprio sangue da nação
Afina_! . o que t.e conseguiu por meio deste movimento extraordiná­ parecia estar refluindo. De acordo com a razão e o senso comum, os
rio? O País de Gales que descrevemos não era um Estado político, e, galeses deviam encarar o passado como encerrado e terminado e, uma
por falta deste Estado, o povo foi levado a concentrar uma quantidade vez que haviam sido "riscados das páginas da História", deveriam
descomunal de suas energias em assuntos culturais, na recuperação do content ar-se com o que tinham. Foi necessário um esforço sobre-hu­
passado e, onde o passado deixava a desejar, na invenção das tradi­ mano da parte de um grupo restrito de patriotas para que seus patrí­
ções. O velho estilo de vida entrou em decadência e desapareceu, o cios apreciassem seu legado, valorizassem o que era deles. Sentiam que
passado era freqüentemente esfarrapado e maltrapilho, sendo necessá­ a única maneira de realizar isto seria esquadrinhar o passado e trans­
ria uma boa dose de invenção para remendá-lo. Os mitólogos românti­ formá-lo com a imaginação, criar um novo "galesianismo" que ins­
cos tiveram tão grande êxito em certos aspectos, que faziam as coisas truísse, divertisse, alegrasse e educasse o povo. O País de Gales mítico
galesas � arecerem de um exotismo sedutor. Isso foi bom enquanto o e romântico por eles engendrado permitiu que os galeses perdessem
an � 1go tinha autoridade, mas quando chegou a era do progresso, as um passado imediato e ganhassem uma versão artística e literária des­
c01sas mudaram. O "galesianismo" foi preservado e transmitido às ge­ se mesmo passado, como se pudessem matar dois coelhos de uma caja­
rações posteriores graças aos esforços decisivos dos patriotas a que dada. A arte e os artifícios aqui descritos tiveram uma função altamen­
nos referimos. Foi, porém, rejeitado por muitos, por estar associado te curativa nesta difícil conjuntura histórica galesa. A vida galesa con­
ao passado pitoresco e a uma mitologia um tanto desacreditada. O tinuou se transformando, e à medida que tal ocorria, renovava-se o
"galesianismo" da era vitoriana talvez fosse intenso e apaixonado por processo estudado. Logo que os românticos caíram do cavalo, foram
precisar enfrentar tantos inimigos. Para sobreviver, o nacionalismo substituídos por novos criadores de mitos e tradições, os do Pafs de
galês teve, nas décadas de 1860 e 1 870, que transferir-se sutilmente Gales radical e não-conformista. Os caçadores haviam mudado, mas a
para o novo mundo do radicalismo e do não-conformismo. caça continuou a mesma. 9 1
A restauração histórica e a invenção da tradição tiveram, no Pafs
de Gales, um efeito mais abrangente do que qualquer coisa semelhante
na Inglaterra, embora lembrasse o que estava acontecendo nos peque­
nos países europeus. No século XVIII, o País de Gales não possuía
uma tradição histórica contínua e venturosa; não tinha um passado re­
cente glorioso, nem heróico. Por isso, a redescoberta do passado re­
moto, dos druidas, dos celtas e dos outros teve um efeito estarrecedor 95. Em meu livro The Eighteenth Centurr Renai.uance ( Llandybie. 198 1 ). encontra-se
urna análise mais porrnenoriLada do assunto de que trata este capítulo.
sobre os galeses. O País de Gales não dispunha de uma rede de institui-
111

4. Contexto, Execução e Significado do


Ritual: a Manarquia Britânica e a
"Invenção da Tradição", e. 1 820 a
1 977 1
DA V I D CANNA D I N E

Em 1 820, The Black Book , crítica radical à corrupção e ao poder do es­


tah/ishment inglês. fez o seguinte comentário sobre o ritual da realeza:

'1
O fausto e o espetáculo, o desfile de coroas de reis e de nobres, de chaves
de ouro, cetros, bastões brancos e negros, de arminho e cambraia, bor­
dões e perucas, ficam ridículos quando os homens se tornam esclarecidos,
quando aprendem que o verdadeiro objetivo do governo é conceder ao
povo o máximo de felicidade com o mínimo de gastos.'
Quarenta a n os m a i s tarde. L o rde Ro bert Cecil. futuro terceiro mar­
q uês de Salisbury . após presenciar u m a abertu ra solene da sessão
do Parlamento, feita pela Rainha V itória, escreveu, em tom não m e­
nos desaprovador:
Há países que têm dom para o cerimonial. Não há dificuldade financeira,
nem falta de brilho que os impeça de promoverem espetáculos em que to­
mam parte de maneira efetiva e intensa. Todos encaixam-se naturalmente
em seus devidos lugares, integrando-se sem esforço no espírito da peque­
na representação de que estão participando, e instintivamente procuram
não demonstrar constrangimento, nem distração.

M ais adiante, porém, ele explica:


Tal tendência, porém, verifica-se geralmente apenas entre povos de clima
meridional, sem ascendência teutônica. Na Inglaterra, ocorre justamente

1. Já se havia anteriormente apresentado um esboço do presente trabalho no Semin á­


rio de H i stória Social na L n i versidade de Cambridge. e também num seminário conjun­
to de docentes e discentes na U n iversidade de Princeton. Agradeço imensamente aos
participantes pelos comentários e críticas. ao Dr. S. D. Banfield e ao Sr. C. J. Babbs pelo
auxílio que me prestaram. na resolução de dois problemas específicos. e ao Sr. J . Whale�
por partilhar comigo seu incomparável conhecimento sobre ritual e cerimonial nos pri­
mórdios da E uropa moderna. Algumas idéias preliminares sobre o assunto encontram­
se em meu artigo anterior. "The Not-So-Ancient Traditions of M onarchy". Ne .... Societr
(2 de junho de 1 977). pp. 438-40. A versão final. aqui apresentada. foi termi n ada em
1979.
2. Citado por D. Sutherland in The Landowners (Londres. 1968). p. 158.

____________________________...............................................................
1 12 1 13

o contrário. Podemos dar-nos ao luxo de sermos mais suntuosos do que a


maioria dos países; porém, até sobre nossos mais solenes cerimoniais pai­ Apesar da constante posição central da monarquia na vida políti­
ra algum sortilégio maligno, incluindo alguma característica que os torna
todos ridículos ... Sempre enguiça alguma coisa, sempre há alguém que ca, social e cultural da Grã-Bretanha, a natureza variável de sua i ma­
deixa de cumprir o seu papel , ou se permite que algum motivo escuso in­ gem pública durante os últi m�s du�entos ano � não vem sendo ?,igna de
_
terfira e estrague tudo. ' muita atençao por parte dos historiadores. O . teatro de poder levado
a efeito pelas cortes dos Stuarts e dos Tudors - a maneira pela qual o
Consideradas em conjunto, as citações acima exemplifi cam p osi cio­ prestíg_i o r� al e. republicano era exaltado � través de ;;ornp�i ca� os cerj ­
namentos contemporâneos frente ao cerimonial da monarquia bri­ .
monia1s - Ja foi estudado de modo exaustivo, enfocando nao so a Gra­
tânica durante os pri meiros três quartos do século XIX. Segundo a Bretanha, como também a Europa como um todo.6 D urante o fim do
primeira citação, como estava melhorando o nível cultural da pop ula­ século XIX e início do século XX, e laboraram-se vários estudos sobre
ção, o ritual da realeza e m breve passaria a ser realizado como se fosse um segundo florescimento de rituais e tradições "inventadas" na Ale­
magia primi tiva, uma farsa sem valor. O segundo trecho, por sua vez, manha guilhermina e na Terceira República francesa. Tais trabalhos
baseado num profundo conhecimento de causa, transmite a i déia de trazem sugestões i nteressantes para a i nvestigação sobre o ritual britâ­
que, de qualquer forma, a pompa centralizada na monarquia fazia-se nico contemporâneo.' E na Europa de entreguerras os rebuscados ri­
notar mai s pela sua inadequação do que pela i mponência. tuais dos novos regimes comunistas e fascistas já começaram a atrair
Hoje, na Inglaterra, ocorre justamente o contrário. Não há chefe bastante a atenção dos estudiosos.8 E m comparação, os rituais da mo­
de E stado cercado de mais ceri monial público do que a R ainha Eliza­ narquia britânica foram deixados de lado quase que totalmente desde
beth 1 1 , com exceção, t alvez, dos papas. Pode ser que de fato a esmaga­ fins do século XV II. Embora as biografias de reis e rainhas contenham
dora maiori a da população tenha se tornado mais esclarecida confor­ relatos adequados de casamentos, coroações e funerai s, não houve até
me esperavam os autores do The B/ack Book; só que não perdeu por agora nenhuma tentativa sistemáti ca de analisar este cerimonial sob
causa disso o gosto pela magia secular da monarquia. Pelo contrário, uma perspectiva diacrônica, comparativa e contextual.
como diz Ian Gilmour, "as sociedades modernas ainda precisam dos
mitos e . dos ri tuai s veiculados, por exemplo, pelos monarcas e suas
fa mília . . ' E . além dessa diferença, o cerimonial atual é realizado de 6. R. E. G iesev. The Rara/ Funeral Ceremonr in Renaissance France (Genebra. 1 960):
maneira tão impecável, que alguns observadores supõem que sempre R. Strong. SpÚndour at .Court: Renaissance Spectacle and /1/u.<ion ( Londres. 1 973): S.
foi assim. "Todo o fausto e magnifi cência de uma tradição milenar"; Anglo. Spectacle. Pageantrr and Earlr Tudor Policy (Oxford. 1 969): D. M . Bergeron.
" um espetáculo que perdura há séculos"; " a precisão que é resultado Eng/ish Civic Pageantrr, /558-1642 ( Londres. 1 97 1 ); F. A. Yates. The Valais Tapestries
( Londres. 1 959): E. M uir. "lmages of Power: Art and Pageantry in Renaissance Veni­
de séculos de tradi ção"; "os ingleses são verdadeiros especialistas em ce". A m. Hist. Rei' lxxxix ( 1 979). pp. 1 6-52: G . Reedy, "M ystical Politics: The I magery
matéria de cerimonial" - são frases usadas por locutores e jornali stas of Charles I l's Coronation". in P. J. K orshin (org.), Studies in Culture and Revolution:
contemporâne os para descrever os grandes cerimoniai s da monar­ Aspect.< of Engli.<h /nte/lectual History, / 640-/ 800 ( Londres, 1 972). pp. 2 1 -42; C. Geertz.
quia.5 Os relatos do The B/ack Book e de Lorde Ceei! podiam ser apro­ "Centers. K ings and Charisma: Reflections on the Symbolics of Power", in J. Ben­
priados para a época deles, mas hoje em dia já não valem mais nada. O David and T. N . Clark (org.), Cu/ture and its Creators: Essars in Honor of E. Shi/s (Chi­
cago e Londres, 1 977), princ. pp. 1 53-7.
objetivo deste capítulo é descrever e expli car as mudanças que se pro­ 7. G . L. M osse. "Caesarism, Circuses and M onuments", Joumal of Contemporary
cessaram no contexto e na natureza do cerimonial real inglês, tornan­ History, vi ( 1 97 1 ) pp. 1 67-82; C. Rearick, " Festivais and Politcs: the M ichelet Centen­
do irrelevantes os comentário s e deitando por terra as previsões de am­ nial of 1 898", in W. Laqueur and G. L. M osse (org.), Historians in Politics ( Londres
bos. 1 974), pp. 59-78; C. Rearick, " Festivais in M odem France: The Experience of the Third
Republic", Joumal ofContemporary History, xii ( 1 977), pp. 435-60; R. Samson, "La Fê­
te de Jeanne D'Arc en 1 894: Controverse et Célébration", Révue d'Historie Modeme et
Contemporarie, xx ( 1 973), pp. 444-63; M . Agulhon, " Esquisse pour une Arq�éologie de
la République: l'Allegorie Civique Féminine", A nna/es: Economies, Sociétes, Civi/isa­
J . 7h<' Sa11mlar Rnie11·. 9 fev. I X6 1 . pp. 1 40- 1 . Artigo anônimo.
tions, xxviii ( 1 973), pp. 5-34; E. J . H obsbawm, "Inventing Traditions in N ineteenth Cen­
4. 1 . (j ilmnur. 7"11<' 8od1· Poliric ( Londres, 1 969), p. 3 1 3 .
tury Europe" ( Past and Present Conference Paper, 1 977), pp. 1 -25. No correr de todo o
5 . J . Dim hlehy. Richard 1Ji111h/ehr ( Londres. 1 977). p. 329; S i r J. Wheeler Bennett.
presente trabalho manifesta-se minha dívida para com o trabalho de Hobsbawm.
/\ i11g George VI: Hi.1 Li/e a11d Reign (Londres. 1 965). p. 3 1 0; H. Vickers. "Twenty Five
8. G. L. M osse, " M ass Politics and the Political Liturgy of Nationalism", in E. Ka­
Years a Queen". in H . M ontgomer) - M assingberd (org.), Burke"., Guide to the British
menka (org.), Nationa/ism: The Nature and Evolution ofan Ideal (Londres, 1 976), pp. 39-
.\fo11archr ( Londres. 1 977). p. 42: 11/ustrared London News, 6 fev. 1 965. 54; H . T. Barden. The Nuremberg Party Ra/lies, 1 929-39 ( Londres, 1 967).
1 14 1 15

tos que podem ser tratados como manifestações culturais, exige-se


Po r conseguinte. foram o s sociólogos que empreenderam as pes­ uma descrição " ampla", e não " restrita" . 1 2 No caso das o casiões sole­
quisas pioneiras sobre o aspecto cerimonial da monarquia britânica nes, assim como no das grandes obras de teoria política, "estudar 1..�
tanto no sentido de coleta qu anto de interpretação dos dados. D esde� contexto . . . não signifi ca apenas obter informações adicionais. . . ; é tam­
estabelecimento do M ass Observation em 1937 , houve um fluxo inin­ bém uma preparação. . . para que tenhamos u ma compreensão . . . me­
terrupto de pesqu isas que visam avaliar a reação do público a sucessi­ lho r de seu significado do que a que poderíamos talvez obter a partir
vas o casiões solenes reais, desde a coro ação de Jorge V I até o Jubileu da simples leitu ra do texto em si" . ' ' Portanto, para redescobrir o " sig­
de Prata da Rainha Elizabeth.9 Alguns sociólogos tentaram analisar o nificado" do ritual real no perío do moderno, é preciso relacioná-lo
"significado" destas cerimô nias partindo de uma perspectiva durk hei­ com o ambiente social, político, econômico e cultural específi co em
miana. funcionalista, frisando a força integradora dos rituais e a ma­ que ele de fato se realizava. Assim como no caso da teoria política, no
neira como eles personifi cam e refletem, sustentam e reforçam valores estudo do cerimonial o simples ato de localizar a o casião ou o texto em
profu ndamente arraigados e generalizados entre o público. 'º Sob um seu contexto apropriado não visa simplesmente fornecer dados históri­
outro ponto de vista, o mesmo ritual é encarado não como expressão cos, mas na verdade iniciar o processo de interpretação. "
de um co nsenso atingido pelo povo , mas como personificação da "mo­
bilização de tendências" - um exemplo de consolidação da preponde­ Pois naturalmente, mesmo que o texto de u m ritual repetido,
rância ideológica da elite dominante através da exploração do cerimo­ como o de uma coroação, não sofra alterações com o tempo, seu " sig­
nial como propaganda. " Em ambos os casos, para os sociólogo s, de­ nifi cado" pode alterar-se profundamente, dependendo da natureza do
duz-se qual seja o " significado" do cerimonial na sociedade indu strial contexto. Numa época essencialmente estática, a conservação de ri­
a partir de uma análise basicamente descontextualizada do ritu al em tuais imutáveis pode ser um indício e um reforço genuínos da estabili­
si. aval iado dentro da estrutura relativamente histórica de u ma teoria dade e do consenso. Porém, num período de mudança, conflito ou cri­
marxista ou funcionalista. se. o ritual pode permanecer delib eradamente inalterado, de maneira a
Este capí tulo procura redescobrir o " signifi cado" deste cerimo­ dar a impressão de continuidade, comunidade e segurança, embora
nial monárquico por meio do emprego de uma metodologia u m tanto existam indí cios contextuais esmagadores em contrário. Sob certas cir­
diferente, qual seja, a de localizar de maneira mais abrangente o ceri­ cunstâncias, u ma coroação poderia ser encarada pelos participantes e
monial em seu respectivo contexto histórico. A idéia central em que se contemporâneos como u ma reafirmação simbólica de grandeza nacio­
baseia esta abordagem é que as o casiões solenes, assim como as obras nal. M as nu m contexto diverso, a mesma cerimônia poderia indicar
de arte ou de teoria política, não podem ser interpretadas simplesmen­ um desejo coletivo de reviver as glórias do passado. Da mesma forma,
te "em termo s de su a estrutura interna, indépendant de tout sujet, de um funeral real pode ser u m culto de ação de graças para homenagear
10111 ohje1. e, de foufc rn111ex1e" . Como acontece com todas as manifes­ um monarca que contribuiu para a grandeza do país. Ou, com a mes­
tações culturais que podem ser tratadas como textos, ou todos os tex- ma forma e texto, po deria ser interpretado como um réquiem não ape­
nas para o próprio monarca, mas para o país como uma grande potên­
cia. Assim, os textos de rituais podem alterar-se profundamente de
acordo com "a conjuntura histórica", exatamente como ocorreu com
9 . H k11111 11!!, c C l\1 ad!!C, .\fa r rll<' f11 e//1h ( Londres, 1 937); L. H a rris. L ong ro Reign a Estátua da L iberdade durante o século passado. ' 5
Ora l 1 ' 1 1 ,,ndrc,. 1 %6 ); J . ( i . Hlumler. J . R . H ro"n. A . J . E"bank and T. J . Nossiter.
",\ t t 1tud �� t,; thc M onarch) · Thcir Structure and Development during a Ceremonial
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<. o ronat1ll11 . .\11n11log1cal Rem·11 ·. nova série. i ( 1'153). pp. 63-X J ; Blumler e/ ai.• "Altitu­
des l ll thc M llna r<:h) ". pp. 1 70- 1 . 1 5: "todo ,igniilcado é. até certo ponto. deilnido ou determinado por um contexto".
1 1 S. l. ukcs. " l'lllillcal R itual a n d Social l n tegration" in S. Lukes. E.ua 1·s ln Social 1 5. M. Trachtcnbcrg. The S1a111e of Uhe nr ( H a rmondsworth. 1977). pp. 15- 19. 186-
Thrnrr ( Lond rc,. 1977 ). pp. 62-73: N . Birnbaum. "M onarchies and Sociologists: A Re­ 96. Sobre uma anúlise semelh ante da alteração no "'significado" da famosa ponte ferro­
_ , iária sobre o rio ZambeLe. na alt ura das Cataratas de Vitória. consulte J. Morris. Fare-
pl) to Prolcs"ir Shil, a n d M r. Y llUng''. So ciological Rei-ln,·. nova série. i i i ( 1 955 ). pp. 5-
23: R . Hornd. R1111al 111 lnd11,rrial Socie11· ( Londres. 1974). pp. 1 02-4. 11 ell 1hc Tru111pt'l1 . A 11 Imperial Refreai ( Londres. 1 978). pp. 347-X.
116 117

No entanto, as obras de arte, c omo as estátuas, são, por defini­ a qual reinava o monarca: era um país confiante na sua posição na hie­
ção, estáticas: seu signi ficado só se altera com o tempo devido a modi­ ra rquia internacional, ou preocupado e ameaçado por forças estran­
fica ções no contexto. Porém, no caso do ritual e do cerimonial, a pró ­ ge;ras? Era contrário à constituição de i mpérios, ou i mperialista con­
pria execução é elástica e dinâmica. Embora o texto básico de um ri­ victo? O sétimo aspecto é a condição da capital em que tem lugar a
tual repetido· possa permanecer fundamentalmente i nalterado - tal maioria dos cerimoniais da realeza: era uma cida de medíocre e sem
como a coroação, unção e reconhecimento de um rei inglês - a manei­ atra tivos, ou ostentava edifícios magníficos e i mponentes vias públi­
ra exata pela qual se apresenta o cerimonia l pode variar, o que por si cas, cenário perfeito para os rituais e cerimônias? Em oitavo l ugar, es­
só serve apenas para acrescentar uma nova dimensão às mudanças de tá a atitude dos responsáveis pela liturgia, música e organi zação: mos­
"significado" . O ceri monial pode ser bem ou mal executado. Pode ser travam-se indiferentes em relação ao cerimonia l e i ncompetentes em
cuidadosamente ensaiado ou levado a efeito de qualquer maneira, sem matéria de organização, ou tinham disposição e competência para fa ­
muita preparação. O s participantes podem mostrar-se entediados, i n­ zer da exibição um sucesso? O nono aspecto diz respeito à natureza do
diferentes, interessados ou mesm o apaixonadamente confiantes na i m­ cerimonial segundo a sua execução: era esta medíocre e descuidada, ou
portância histó rica da cerimônia na qual estão tomando parte. E as­ magnífica e espetacular? Por últi mo, resta a questão da exploração co­
sim, dependendo tanto da natureza da apresentação quanto do con­ mercial: até que ponto os fa bricantes de artigos de porcelana, meda­
texto em que ela se realiza, o " significado" de uma cerimônia visivel­ lhas e outros artefatos acreditavam poder lucrar com a venda de peças
m ente igual pode sofrer mudanças profundas. Nenhuma análise que se comemorativas?
limi te ao texto, dei xando de lado tanto a natureza da execução e a des­ Contextualizando-se e avaliando-se desta maneira os rituais e ce­
crição "ampla" do contexto, poderá oferecer uma explicação histori­ rimônias da monarquia britânica, torna-se possível redescobrir seu
camente convincente sobre o "significado" do ritual e do cerimonial "significado" de modo hi storicamente mais convincente do que fize­
da real eza na G rã-Bretanha moderna. " ram os sociólogos a té agora. Para eles, a I nglaterra do século XI X é
Partindo-se deste pressuposto, existem pelo menos dez aspectos uma sociedade "moderna", "industrial", "contemporânea", de estru­
do ritual, execução e contexto a serem investigados. O primeiro é o po­ tura já bastante conhecida . 17 Mas, como acontece com freqüência,
der político do monarca: era grande ou pequeno, crescente ou deca­ para o historiador o que importa mais são as mudanças e descontinui­
dente? O segundo é a personalida de e a i magem do monarca: ele era dades, não as semelhanças. Supor, por exemplo, como fazem muitos
amado ou detestado, respeitado ou i nsultado? O terceiro aspecto é a sociólogos, que a descrição da monarquia de �ea dos da era vitoria na
natureza da estrutura econômica e social do país por ele governado: feita por Walter Bagehot possuía naquela época o mesmo valor que
seria local, provincial e pré-industrial, ou urbana, industrial e regida possui · h oj e é demonstrar uma profunda ignorância, não só em relação
por critérios de classe? O quarto aspecto é o tipo, a lcance e posiciona­ ao contexto bastante peculiar no qual ele escreveu The Eng/ish Consti­
mento dos meios de comunicação: com que vivacidade a i mprensa des­ tution e seus artigos no The Economist, mas também da maneira exata
crevia as cerimônias da realeza, e qual a imagem que ela transmitia da pela qual tanto o contexto quanto a execução dos rituais da realeza se
monarquia? Em quinto l ugar, deve-se observar a situação predomi­ transformaram e se desenvolveram desde aquele tempo. 1 8
nante da tecnologia e dos costumés: seria possível à monarquia tirar D entro deste contexto "amplo", surgem quatro fases diferentes
proveito do uso de meios de transporte ou roupas ultrapassadas para exal­ no desenvolvimento da imagem cerimonial da monarquia britânica. O
tar sua magia e mistério? O sexto i tem é a auto-imagem da nação sobre primeiro período, que vai de pouco antes da década de 1820 até a dé-

ló. Para mim. como historiador. este parece ser o principal problema da abordagem 1 7 . Por exem plo. veja l.uk es. " Political R itual and Social Integration··. pp. 62-64.
textual em ant ropologia. exemplificado in E. Leach. Culture and Communication: The I X . Shils e Y oung. ''Thc Meaning o f the Coronation··. p . 64 : Bocock. Ritual in Indus­
l.og,c hr tthich Srmhol.< are Connected: an lntroduction to the Use of Structuralist A naly­ trial S11cic1r. p. 1 03: Rose e Kavanagh. "The M onarchy in Contemporary British Cultu­
,i, i11 Social A 111rop11/ogr ( Londres. 1976). pp. 84-93. onde o autor analisa a narrativa re". pp. 553. 557 Aliás. o aspecto mais importante do quadro complexo e ocasional­
bíblica da consagração de Aarão como sumo-sacerdote. Encontra-se um exemplo ainda mente rnnt raditório que Hagehot pinta do poder e pompa da monarquia era que este
melhor do gênero no discurso não publicado do mesmo autor. "Once a Knight is Quite quadro não era dncriri,·o. e sim f'T<'scriri,·o. Para uma análise mais completa neste senti­
º
l'nough ". em que se compara a investidura de um cavaleiro ao sacrifício de porcos na do. veja: J\i . St. John-Stevas (org . ). Tht! Collt!Cled Work.< o( Walter Bagehor. 1 2 vol. até a
Hornéu dos anos quarenta. paralelo que. do ponto de vista histórico. não acrescenta presente data ( Londres. 1 %5- 7X). v. pp. X 1-3. Veja também: R. H. S. Crossman. intro­
quase nada sohre o "significado"º da cerimônia de investidura no contexto atual. du�·,io a \\ Hagehot. lhe 1:1,g/i,h Cmwi1u1io11 ( Londres. 1963). p. 36.
1 18 119

cada de 1 870, é um período de ritual mal organizado, realizado num a seu nome, sem consulta a seus conselheiros políticos, para influenciar
sociedade ainda predominantemente localizada, pré-industrial e pro­ uma votação decisiva na Câmara dos Lordes.'º
vincial . A segunda fa se, q ue se inicia em 1 877, quando Vitória foi pro­
clamada imperatriz da l ndia, e vai até o irromper da I G uerra M un­ Vit ória , em seus primeiros dias de reinado, também não foi exatamen­
te omissa. Em 1839. ao recusar-se a aceitar damas de honra reco­
dial, foi, tanto na Inglaterra quanto na Europa, o auge da "invenção mendadas por Peel ela conseguiu prolongar artificialmente o governo
de tradições", uma época em que os velhos cerimoniais eram encena­ de Melbourne. Em 1 851 , ela quase dem itiu Palmerston do Ministério
dos com uma competência e beleza antes inexistentes, e em que foram
do Exterior e, após a morte de Alberto, continuou sendo " uma severa,
inventados propositalmente novos rituais para confirmar tal progres­ persistente e obstinada conselheira e crítica de seus governos". Em
so . Depois, de 1918 até a coroação da Rainha Elizabeth, em 1953, veio 1 879, os Comuns ainda debatiam a famosa moção de Dunning de que
o período em que os britânicos convenceram-se de que eram mestres "a influência da Coroa tem crescido, está crescendo e deve ser dimi­
na arte do cerimonial porque sempre haviam sido - crença que se tor­
nou possível principalmente porque os antigos rivais da I nglaterra em nuída".� '
matéria de ritual da monarquia - A lemanha, Áustria e Rússia - ha­ Se por um lado o poder real contínuo tornava o cerimonial impo­
viam abolido o regime monárquico, deixando a I nglaterra sem opo­ nente da realeza inaceitável, a fa lta constante de popularidade da mo­
nentes. Por último, desde 1953, o declínio do poderio da nação inglesa, narquia tornava-o impossível. A imagem e a reputação j unto ao públi­
juntamente com o poder de penetração da televisão fazem crer que o co de gerações sucessivas da família real durante os primeiros três
"significado" do cerimonial da realeza sofreu nova transformação ra­ quartos do século X IX significavam que as cerimônias eram quase
dical, embora não se possa ainda discernir com clareza os contornos sempre encaradas com indiferença ou aversão. As vidas, romances e o
desse novo período de mudanças. Em seguida, examinaremos uma a comportamento dos filhos de Jorge I I I eram suficientes para fazer de­
uma todas estas fases sucessivas. les talvez a mais detestada geração real da história inglesa. A maré da
monarquia baixou principalmente devido à extravagância e aos hábi­
II tos mulherengos de Jorge IV, que atingiu o auge da impopularidade ao
O período até a década de 1 870 foi o mais expressivo da monar­ 1 casar-se, em 1 821 , com a Rainha Carolina, acontecimento que se tor­
quia britânica em termos do poder real e efetivo por ela exercido. E
como a experiência do século X VII ainda permanecia viva na memó­
! nou tanto um escândalo quanto assunto de debates políticos. "Nunca
houve morte menos sentida do que a deste rei", comentou o jornal The
ria do povo inglês, havia m uita hostilidade contra a ampliação da in­ Times num editorial condenador sobre sua morte. "Quem derramou
fl uência real através da reabertura do "teatro de poder" felizmente fe­ ' 1
1 sequer uma lágrima por ele? Q ual o coração que estremeceu com uma
chado ao final do século X V I 1 . E m 1 807, por exemplo, Jorge I I I dis­ palpitação de tristeza desinteressada?22 Do mesmo modo, Guilherme
solveu um parlamento formado menos de um ano atrás, com o objeti­ IV teve um período muito curto de popularidade, que terminou devido
vo de aumentar a força de um ministério contrário à emancipação dos à atitude hostil que manteve em relação ao governo reformista Whig, fa­
católicos. Quatro anos depois, quando o Príncipe de Gales assumiu a zendo com que o jornal The Spectator condenasse sua "pusilanimida­
regência, era opinião geral que ele, se quisesse, poderia ter demitido a de e estreiteza de idéias, sua ignorância e seus preconceitos" . 21 De iní­
administração tory, substituindo-a pelos whigs. 1 9 Posteriormente, ele cio, Vitória também não gozou de melhor sorte. Sua preferência pelo
continuou sendo um personagem exasperante e importante no firma­ primeiro premie, lhe valeu os apelidos de "Sra. Melbourne" e " Rainha
mento político, um m otivo de constante irritação tanto para Canning, dos Whigs"; o público também não aprovava o vigor alemão do
quanto para Liverpool e Wellington . E seu sucessor, G uilherme IV, foi Príncipe Alberto, "um príncipe que, desde a infância, respirou os ares
ainda mais atuante, conforme explica o Prof. G ash:
Em seu curto reinado de sete anos, ele demitiu três ministérios, dissolveu
duas vezes o Parlamento antes do tempo por motivos pollticos, por três 20. N . Gash. Reaction and Reconstruction in English Politics. /832-IIU2 (Oxford.
vezes dirigiu a seus ministros propostas formais de coalizão com 1 965). p. 5.
membros da oposição; e numa célebre ocasião permitiu que se usasse o 2 1 . D. Beales. from Castlereagh to Gladstone. 1815-1885 ( Londres, 1 97 1 ), pp. iii. 1 63.
1 66; J. R idle) . Palmermm ( Londres. 1 972). pp. 529-40; K. Martin, The Crown and the
fatah/ishment ( Londres. 1 962). p. 52.
22. H i bbert. George 1 1 ·. pp. 782-3.
19. C. H i hhert. Gt�irge 1 1 · ( H armondsworth. 1 976). pp. 379-83. 675-86. 694. 23. Marti n . op. cit . p. 27.

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de cortes contaminadas pelo servilismo fantasioso de Goethe" . 2• E o na por Gillray, Rowlandson e os Cruikshanks transformaram a monar­
novo Príncipe de Gales, envolvido sucessivamente no escândalo Mor­ quia "sem dúvida no tema e no alvo mais comum dos caricaturistas".2 ' Da
daunt e no caso Aylesford, chamado por Bagehot de "rapazote desem­ década de 1850 à de 1870, Vitória foi objeto de constantes críticas nos edi­
pregado", n ão seria por certo capaz de dar nenhum brilho a esta coroa toriais. Os escândalos e assassinatos sensacionais tinham um efeito muito
desmazelada e malquista. mais significativo no aumento da circulação dos que os abundantes exem­
Em suma, a monarquia não era imparcial, não estava acima da plares das edições comemorativas do The Times e do The Observe, publi­
política, e nem num Olimpo acima da sociedade, como aconteceria cados por ocasião das coroações de Guilherme IV e da Rainha Vitó­
mais tarde, mas participava ativamente tanto da política quanto da ria. '' E a imprensa do interior, liberal, intelectual. racional, de classe
vida social. E como tanto a política quanto a vida social eram ativida­ média, avessa tanto à exibição quanto a manifestações emocionais, ge­
des tipicamente metropolitanas, realizadas em Londres, o atrativo do ralmente apoiava a imprensa metropolitana. 2• Além disso, a falta de
cerimonial monárquico era bastante restrito. Pois entre os governos de ilustrações fazia dos maiores cerimoniais reais coisas extremamente
Wilkes e de Chamberlain , a influência de Londres sobre o país era re­ misteriosas para todos. exceto os mais letrados e ricos. A imprensa
lativamente limitada, frente à reafirmação da Inglaterra interiorana. ilustrada ainda não era barata, e o Il/ustrated London News, fundado
As lealdades e rivalidades locais continuavam intensas; a comunidade em 1842. custava um xelim o exemplar, sendo distribuído exclusiva­
i nteriorana era ainda uma unidade coesa e realista.is Além do mais, o mente para o público das "paróquias". "' Sob tais circunstâncias. as
desenvolvimento desigual da economia e a lenta adoção da energia a grandes cerimônias reais não eram eventos públicos e em que todos
vapor significavam que embora a Inglaterra fosse considerada a "ofi­ participavam. mas ritos grupais distantes e inacessíveis. realizados
cina do mundo". as oficinas lá ainda eram pequenas e relativamente para proveito de a lgu ns. não para edi ficação da maioria. '
poucas. A Manchester de Engels, com suas fábricas enormes e subúr­ O estado predominante da tecnologia dos transportes serviu para
bios isolados, era uma exceção, não uma regra. Em 185 1 , a maioria da inserir a monarquia na sociedade, em vez de elevá-la a níveis superio­
mão-de-obra empregava-se na agricultura. Predominava "a Inglaterra res. Nada havia de anacrônico, romântico ou magnífico na maneira
da paróquia, das pequenas mansões e da fazenda". "As cidades do in­ em que se locomovia a monarquia inglesa. A Inglaterra vitoriana era,
terior grandes e pequenas... eram a norma, no que concerne à urbani­ conforme nos lembra o Prof. Thompson, uma sociedade movida a ca­
zação de meados do século XIX."2 • Num mundo assim localizado, pro­ valo, em que circulavam, por volta de 1870, 1 2 120.000 carruagens parti­
vinciano e informal, o espaço para apresentação de um monarca exal­ culares grandes e 250.000 veículos leves de duas rodas. Aliás, os mode­
tado por cerimônias, olímpico, arredio e distante, como pai da nação e los de carruagens utilizados pelos membros da família real eram geral­
foco de todas as lealdades, era nitidamente restrito. mente adotados mais tarde pelo público em geral. O faetonte, por
A condição e posição da imprensa constituía um obstáculo a mais exemplo, foi introduzido por Jorge IV, o vagonete pelo Príncipe Al­
para este desenvolvimento. Pois embora as grandes cerimônias reais fos­ berto e o vitória pelo Príncipe de Gales. 1 1 Em meados da era vitoriana
sem completamente cobertas tanto pelos jornais interioranos quanto pelos
da metrópole. a imprensa como um todo continuava hostil à monarquia.
Nas primeiras décadas do século XIX, as críticas feitas na imprensa londri-
27. M. \\ \ n n Jones. A Cart111111 lli.1turi- 11/ the .\1(}11arch 1 ( Londres. 1978). pp. 40-5. 6X-
77: M . WaÍker. Dailr Skerche.1: a Carto{}/1 llistorr o/ Brirish T«·entieth-Century Politic.1
( Londre,. 1 978). p. 23.
24. R. f-ulford. The Prince Con.wrt (Londres. 1 966). pp. 1 56-9. 28. R . D. Altick. The Eng/ish Co111111011 Reade, (Ch icago. 1957). pp. 343-4.
25. A . Briggs. Vi('(orian Cities ( Harmondsworth. 1 968), pp. 3 1 2, 357-9; H. Pelling. A 29. A. J. Lee. The Origins of rhe Popular Press. 1855- 19/4 ( Londres. 1976). pp. 38. 45.
Hi.Hori- of British Trade Unionism (Harmondsworth, 1 963). pp. 1 4- 1 5 . 74. 1 20- 1 .
26. W . L . Burn. The Age of Equipoise: A Study of the Mid- Victoria Generation (Lon­ 30. C . Fox. "The Development of Social Reportage i n English Periodical lll ustration
dres. 1 968 ). p. 7: Briggs. op. cit. , p. 32; W. A. Armstrong, Stability and Change in an En­ during the l 840s and Early I X50s··. Pasr and Preseli/. n. 74 ( 1977). pp. 92-3. 1 00-2. 1 1 1 : J .
glish County Town: A Social Study of York, /801-1851 (Cambridge, 1 974), pp. 1 0- 1 1 ; P.
D . Symon. The Press and 1/s Srorr (Londres. 1 9 1 4 ). p . 2 1 3.
M ath ias. The First Industrial Nari,m: An Economic History of Britain, 1 700-/ 9/4 ( Lon­ 3 1 . Vale mencionar que alguns volu mes !oram lançados em comemoração a grandes
dres. 1 969). pp. 259-73: C. Chamberlain, "The G rowth of Support for the Labour Party ocasiões reais neste período. e que aqueles q ue o foram, como o livro de Sir George
in Britain··. British Journal of Socio/ogy. uiv ( 1 973), pp. 482-4; A. E. M usson, British N aylor. The Coronation o/ His Mu,r Sacred .\faje.Hr King George I V. 2 vol. ( Londres.
Trad Unions. J/W0- 1875 ( Londres. 1 972), pp. 1 6-2 1 ; A. Reid, " Politics and Economics in
1 839). eram tão luxuosos q ue sua venda lim itou-se a um público bastante restrito.
32. F. M . L. Thompson. Vicrorian England: The Horse-Drawn Societr ( Londres.
the Form.ition of the British Working Class: A Response to H . F. Moorhouse", Social
llistory. iii ( 1978). p. 359. 1 970), p. 1 6 .

__________________________............________________________....-J
1 22 1 23

houve uma incrível proliferação de tipos de carruagens disponíveis, em Esse posicionamento explica muito bem porque a cidade de Lon­
virtude do patrocínio feito pela monarquia. Conforme observou W . B. dres não era o local adequa-do para cenário de magníficos cerimoniais
Adams já em 1837, "tantas são as variedades de formato e marca, que reais, e porque os ingleses sem dúvida faziam disso uma virtude. Até
nem mesmo os observadores experientes conseguem familiarizar-se mesmo o mais entusiasmado defensor da "metrópole infernal" reco­
com todas" . 34 Por conseguinte, as. carruagens dos reis e nobres não nhecia que ela não podia competir com a Washington cuidadosamente
eram mais vistosas do que as do comum dos mortais. Por exemplo, n a planejada de L'Enfant, a Roma das ruínas veneráveis, a Paris magnífi­
coroação de Guilherme I V, o carro mais exuberante era o do Príncipe ca de H aussmann , a Viena, cujos grandes planos de reconstrução fo­
Esterhazy. E na coroação de Vitória, sete anos depois, a carruagem de ram instituídos por Francisco J osé em 1854, ou com a São Petersbur­
Marshal Sout, embaixador da França, foi considerada mais suntuosa go. onde brilhava uma esplêndida constelação de cinco praças, cons­
que a da própria rainha. 11 truída durante a primeira metade do século XIX. 39 Nestas grandes ca­
Este descaso pela superioridade estrangeira em matérias de pouca pitais, os edifícios imponentes e as espetaculares vias públicas eram
importância era compensada pela extrema confiança na superioridade monumentos que visavam lembrar o poder do Estado e a i nfluência do
britânica na competição internacional, no que se referia a questões de monarca. Por outro lado, em Londres, as praças e subúrbios, estações
importância. Com a derrota de N apoleão, a I nglaterra ficou sem rivais ferroviárias e hotéis, eram monumentos ao poder e riqueza de particu­
na Europa continental, e, na América do N orte, os Estados U nidos, lares. A Londres de meados da era vitoriana era, conforme afirmou
devastados pela guerra civil, pareciam determinados a passar da infân­ Donald Olsen, um protesto contra o absolutismo, a expressão orgu­
cia direto para a desintegração, sem chegar a atravessar uma fase de lhosa das energias e valores de um povo livre.4° A grandiosidade à
prosperidade como grande potência. O discurso "Don Pacífico" de moda de Paris o u de São Petersburgo evidenciava o despotismo: pois
Palmerston personificava integralmente esta autoconfiança, por ser de que outra maneira poderia ser exercido poder suficiente ou levanta­
uma combinação de um panegírico à estabili'dade social e constitucio­ dos bastante fundos para levar a termo a execução de planos tão fa­
nal sem par da Grã-Bretanha, com uma afirmação aguda e popular de raônicos? Podia ser que Londres, em compensação, fosse uma cidade
seu incontestável papel de vigilante do mundo. 1• Do i nício até meados desmazelada, mas pelo menos seus habitantes não eram eséravos. N as
da era vitoriana, os ingleses viam-se como líderes do progresso e pio­ palavras de um contemporâneo: "Os edifícios públicos são poucos, e
neiros da civilização, orgulhando-se da natureza limitada de seu go­ medíocres em sua maioria . . . Mas que importa isso? Não se sente a
verno, de sua falta de interesse na formalização de impérios, de sua forte impressão de estar-se na metrópole de um povo livre?" 4 1
aversão à exibição, à extravagância, ao cerimonial e à ostentação. 3' A Ta l amor pela liberdade e pela economia e a aversão pela ostenta­
certeza do poder e a firme confiança no sucesso significavam que não ção foram um golpe mortal para os grandes cerimoniais reais, e a inép-
havia necessidade de se exibir. Podia ser que a pequena Bélgica gastas­
se mais que a Grã-Bretanha em seus tribunais metropolitanos, mas
com o poder efetivo e a religião da parcimônia, os i ngleses transmi­ que se expressava de tempos em tempos sob a forma de um desprezo incrível pelos ar­
tiam a idéia de que encaravam esse tipo insignificante de competição quitetos e pela arquitetura· · . Os tribunais de Bruxelas projetados por Poelaert custaram
com desdém ou indiferença. 38 1. 760.000 libras; o primeiro esboço dos tribunais de Londres, feito por Street. custou
apenas 1 .500.000 libras.
39. E. J. H obsbawm. The Age o/ Capitai. I íi4íi- l íi75 ( 1 977), pp. 3 26. 328, 329. 334, 337;
E. N . Bacon. Design o/ Citie1 , ed. rev. (Londres. 1978). pp. 1 96-9, 220-3; J. W . Reps,
Monumental Washington: The Planning and De,·elopment of the Capital Center ( Prince­
33. Sir W. Gilbey. M odern Carriages (Londres. 1 905). pp. 46-53. 63-4; G. A. Thrupp,
ton. N. J .. 1 967). pp. 5. 20. 21; A. Sutcliffe. The A utumn of Central Paris: The Defeat oj
The Historr o/ Coaches (Londres. 1 877). pp. 87-90.
Tmn1 Planning. líi50- / 9 70 (Londres, 1 970), cap. 2; D. H. Pinkney, Napoleon III and the
34. W . B. Adams. English Plea.<ure Carriages (Londres, 1837), p. 220.
Rehuilding o/ Pari., ( Princeton. 1 958). pauim: P. Abercrombie. " Vienna". Tm..-n Panning
35. Thrupp. op. cit., pp. 89-90; P. Ziegler, King William IV (Londres. 197 1 ), p. 193.
Rel'ie v. . i ( 1 9 1 0- 1 1 ). pp. 22 1 . 226-7; G. R. M arek. The Eagles Die (Londres. 1975), pp.
36. Burn. Age o/Equipoi.<e, p. 1 03; Ridley, Palmerston, pp. 523-4; A. Briggs, Victorian
17 1 -2; 1. A. Egorov, The A rchitectura/ Planning of St. Petersburg (Atenas, Ohio, 1969),
People ( H armondsworth, 1965). pp. 10- 1 1 , 24, 5 1.
pp. 104-5. 1 82. 192; J. H . Bater. St. Peter<burg: lndu.<triali:ation and Change ( Londres.
37. R. Robinson and J. Gallagher. Africa and the Victorians: The Official Mind of lm­
1976), pp. 1 7-40.
periali.<m ( Londres. 196 1 ), pp. 1 -4.
40. D. Olsen. The Grov.-th of Victorian london ( Londres. 1 976), pp. 5 1 -3, 61, 329. Sobre
38. Sir J. Summerson, Victorian A rchitecture in England: Four Studies in Evaluation
alguns comentários gerais acerca das estruturas de valor dos sistemas espaciais. veja D.
( N ova Iorque. 1 97 1 ). p. 1 15: "No século XIX. os governos ingleses eram parcimoniosos
Harvey. Social Justice and the City (Londres, 1973). pp. 3 1 -2.
a um ponto quase inconcebível; tal parcimônia estava ligada a uma fi losofia nacional 4 1. Citado por Olsen. op. cit .. pp. 55-6.
124 1 25

U ma parte do problema devia-se a uma ausên cia de interesse n o


eia c? m que o_s ar_ranjos musicais eram feitos só serviu para piora r a si­
ritual por parte do clero, que se man tinha indiferente ou hostil. Con ­
tuaçao. Os pri � e1ros seten ta anos do século XI X foram dos mais desa­
ni madores da hi stória da música na Inglaterra: n ão se salvou n en huma forme observou uma autoridade j á em 1763, "os escalões mais altos da
Igreja n ão crêem que a realiza ção dos cultos esteja incluída entre suas
� bra de nen � um compositor in glês; quanto mais as composições rela­ a tri bui ções"."- A combinação en tre a pobreza de recursos e a falta de
t1 � amen t� efemeras e sem importância feitas para os cerimoniais.•2 O
gosto fizeram dos primeiros três quartos do século XIX uma época de
hi n o nacional esta va longe de ser aquele hino patriótico tão ven erado
vacas magras em matéria de ritual litúrgico e preocupações eclesiásti­
em que se tran � formaria mais tarde: n ão foi n em can tado na coroação
da Rainha Vitoria: raramente surgia m n ovos arran jos para corais e, cas.48 Na A badia de Westmin ster, o in comparável R etábulo de Wren
d urante o rei nado de J orge I V ,4 3 proliferaram as versões alternativas foi retirado por ocasião da coroação de J orge I V e substituído por
uma vil estrutura num pretenso estilo gótico. Posteriormen te, o coro
.:rit icando o rei e elogian do a rainha. Os homen s que se sucediam na di­
reç."i_o d � K ing.'s M usi c n ão eram figuras de destaque, e tinham por foi reformado. e os hancos co locados tão próximos uns dos 11 u 1 rn,.
com algun s lugares para a congregação entre eles, que seria impossível
º ? ri ga ça o a pena s reger a orquestra rea1.•• E Sir George Smart, orga­
ni sta da Chap� I � o� a l. encarrega do dos arran jos musicais para todas conseguir-se uma in terpretação decente do can to - mesmo que o coral
fosse competente. J ames Turle, organista de 183 1 a 1882, era incapaz
as grande� � e� 1mon1as. desde o fun eral de J orge I V a té a coroação da de impor qualquer tipo de disciplina ao coro, e o órgão por ele tocado
R ainha � • _tona. era especialmente in competen te. Na coroação da Rai­
era velho e inaudí vel. Em 1 847-48. o Deão Buck land tornou ;1 orea ni­
nha V i toria. por exemplo. anun ci ou-se que ele iria toca r o órgão e zar o coro, colocando a maior parte da congregação n os tran sept�s. de
ma r� ar o c� mpa sso para a orquestra ao mesmo tempo, previsão que O onde não se podia ouvir n em ver os celebran tes. E quando finalmente
penod1 co lhe Musical Wor/d encarou com i ron ia , con siderando que
_ a congregação retorn ou à nave, foi obrigada a cantar os hinos len do­
ele sena incap_a, � e f�1er q� a lquer das duas coisa s sepa ra damen te.'' os "em en ormes ca rtazes presos à s colunas". Foi por motivo justo que
E� ta fa lta de insp1ra ça o e lideran ça nos a ltos escalões refletia-se n o
J ebb exprobou a "frieza, a esterilidade e irreverên cia na celebração
triste _ estado dos coros da s catedrais inglesas, especialmen te n o da
dos ofícios divinos". Até a época do D eão Stanley ( 1870-91 ), a admi­
A badia de Westmi n ster e na Ca tedral de São Paulo. Não havia en­ nistração da A badia caracterizou-se pela " ignorância em relação às fi­
s� io�'>: n ão se usavam sobrepeli zes: os coros não se desloca vam em pro­
nanças e in capacidade para os n egócios." 49 Se o clero n ão dava conta
c1 s�a o: a falta de a ssi duidade. a in disciplina e a irreverên cia eram gene­
nem da organização efi ciente dos cultos de rotina, o planejamento e
ra hza ? as: as ceri mônias era m prolon gadas e mal organizadas. Na
execução efetiva de gran des cerimoniais reais na A badia estava inteira­
A !rndia de Westmin ster. a maioria dos cônegos men ores e auxiliares
men te fora de cogitação.
le1 � os eram velhos e in competen tes. e os poucos capazes gera lmente
faZ1am parte de outros coros litúrgi cos de L ondres. de maneira que
III
n em sempre se podia con tar com eles."
Ê neste contexto que se deve compreender a realização e populari­
dade dos rituais e cerimoniais da realeza duran te os primeiros três
quartos do século XIX. Ê claro que n este primeiro período o cerimo­
42. M . Kenncd\ . The W11r/...1 o/ Ralph Vaughan Williams ( Londres. 1964), p. 1 .
. nial n ão se destinava a elevar a coroa a cima das questões políticas, até
43. P. A. Scholes . . God Sare the Queen · · _. The Hi.Hory and Romance of The World"s
First ,\at'.011al A 111h,·1:1 ( Londres. 1954). pp. 147-8. 165. 203-4, 209. Veja também Quadro aquele Olimpo de impotên cia em que só desempenharia uma função
3 do Apend1ce. ao fim deste capítulo. decorativa e in tegradora, para onde logo subiria; e n em visava alçá-la
44. Foram eles: Sir William Parsons ( 1786- 18 17). William Shield ( 18 17-29), Christian até aquele cume de poder pitoresco já antes escalado. A in fluên cia
� ramer ( 1829-34). f- _ran_çois Cramer ( 1 X34-8). George Anderson ( 1848-70). Sir William
C usms ( 1870-93). Vep E. Blom (org.). <irore"s Dictionary of Music and Musicians. 5. ed..
10 vol .. ( Londres. 1954). ,. p. 627.
45. Anôn .. · · M usic at lhe Last Coronation". .\fusical Times, � 1 iii ( 1902). pp. 18-20. 47. Citado por Pearce. op. cit .. pp. 18- 19.
46. B. Rainhow. lhe Chorai Rerfra/ in the A nglican Church ( 1839-/872) ( Londres. 48. W. O. Chadwick. The Victorian Church. 2 . ed. ( Londres, 1972). parte 2. pp. 366-74.
1?70). c�p : 13: Sir 1· . Bn ?ge. A Westminster Pilgrim ( Londres. 1 9 19). pp. 72-5, 195-20 1. 49. . J. Perkms. Westn1111ster A bhey: Irs Worship and Ornaments, 3 vol. ( Londres, 1938-
C omentam'. ' contemporaneos encontram-se nas seguintes obras: J . Pearce. Apo/ogyfor 52). 1. pp. X9-94. 106-9. 144. 153-63: ii. p. 16: iii. pp. 14 1. 149. 152. 155, 160, 163-4; R. E .
_ Prothero. lhe Li/e and Correspondence o (A rthur Penrhyn Stanler. D . D . , último deão de
C athedra/ .Sem ce ( Londres. I X39): J. Jehh. The Chorai Sen"ice o(the Church ( Londres.

-----------------------•----------------------�
I K43 ): S S. \\ cslc\ . .. J Fe11· ll "ord, 011 Cathedral .\fusic ( Londres. 1849). Wes1111i11 1ter. 2 mi. ( Londres. 1893). ii. pp. 282-3.
1 26 1 27

política reinante exercida pelo monarca fazia do cerimonial algo peri­ Seis anos depois, por ocasião de um casamento real, o mesmo pe­
goso; o poder real do país tornava-o desnecessário; e a natureza locali­ riódico acrescentou _qu� "ne� te país raras são as cerimônias públicas; e
zada da sociedade, reforçada pela imprensa interiorana, e unida à falta seus comp onentes sao invariavelmente os mesmos, concomita ntemen­
de um ambiente metropolitano suficientemente magnífico, transfor­ te escassos e ineficientes" . ' ' Aliás, até 1883 , William J ones ainda ob­
mava-o em a lgo impossível. Para a maior parte dos habitantes, as lea l­ serv�va que "?e �e-se admitir que a época atua l não favorece a perpe­
dades locais ainda predominava m sobre a sub missão nacional. E nas tuaçao de cerimonias elaboradas" . "
raras ocasiões em que o ritual realmente prendia a a tenção nacional, Estava absolutamente certo. A maioria dos grandes cerimoniais
ele não estava relacionado à monarquia, mas a heróis como Nelson ou rea is encenados durante os primeiros três quartos do século XIX osci­
Wellington, cujos funerais, sig nificativamente, superaram de longe os laram entre a farsa e o fiasco. Em 18 17 , nos funerais da Princesa Car­
de J orge II I, J orge IV , Guilherme IV e Alberto quanto ao luxo e à po­ lota , fi lha do Prí ncipe Regente, os agentes funerários estavam bêba­
pularidade."' dos. Dez ª ? ºs mais tarde, quando da morte do Duque de Y ork , a ca­
Os monarcas que eram politicamente enérgicos, mas pessoalmen­ p� la de Wmd � or estava _ tão úmida que a maioria dos presentes res­
te impopulares, rodando através das ruas tristes de Londres nos meios friou-se, Ca nnmg contraiu febre reumática e o bispo de Londres mor­
reu." A coroação de J orge IV , embora planejada de modo a ser o mais
de transporte convencionais, eram chefes da sociedade, não d o país. ,u11tu os;1 p,1...,Í\ cl. n u m a ten tativa desesperada e ma lsucedida de a n ­
Assim, o ritual real que os acompanhava não era uma folia para diver­
gari� r um pouco d e pop ularidade, foi tão pretensiosa, que a pompa
tir as massas, mas um rito grupal em que a aristocracia, a Igreja e a
fund1 u-.s� com a fars� . Foi necessário utilizar lutadores profissionais
família real reafi rmavam em conjunto sua solidariedade (ou animosi­
no _ Palac10 de Westmm st� r � ara manter a paz entre os ilustres porém
dade) a portas fechadas. C omo diriam os a ntropólogos, tais exibições belicosos convivas. O propri o J orge, e mbora suntuosamente vestido,
realizadas em Londres neste primeiro períod o não articularam uma "parecia corpulento demais, apenas para impressionar, lembrando, na
linguagem cerimonial coerente, como ocorrera na época dos S tuarts e verdade, um elefa nte ao invés de um homem" . E a tentativa patética e
dos Tudors, e como iria ocorrer novamente em fi ns do século XIX. Os malograd � q.ue_ fez a Rainha Carolina de entrar na Abadia estragou
promotores, participantes e espectadores não procuravam ver as ceri­ toda a cerimonia. Na coroação de J orge III , o encarregado do cerimo­
mô nias como parte de uma seqüência de cerimoniais cumulativos e in­ nial.: em resposta � s justas c� íticas feitas pelo monarca contra a organi­
ter-relacionad os. Não havia nenhuma espécie de vocabulário do ceri­ zaça � : obser_vou: . �enhor, e bem verdade que houve certa negligência,
monial, de sintaxe do espetáculo, de idioma ritualístico. O todo não mas Ja prov1denc1e1 para que a próxima coroação seja controlada da
era maior do que a soma das partes. 111a 11c1 ra 111;1 1 , p rcc1s;1 possÍ\ el." Só q ue as circu nstâncias frustara m
Sob tais circunstâncias, a inépcia do ritual britânico durante este , u a , p rc\ 1 ...ic,.
primeiro período torna-se mais facilmente explicável. Aliás, o futuro O "namoro" de J orge IV com a suntuosidade foi tão mal suced i­
terceiro marquês de Salisbury não foi o único a considerar inexpressi­ do que nem se repetiu no meio século seguinte. Nos próprios funerais
vo o cerimonial britânico. "Os ingleses" , segundo artigo pub licado no de Jorge, em Windsor, Guilherme IV falou o tempo todo e saiu antes
Illustrated London News em 1852, na época do funeral solene de do_ final. "Jamais se viu grupo tão heterogêneo, mal-educado e mal
Wellington. são tidos como um povo que não compreende os espetá­ orientado··. observou o The Times, ao descrever o cortejo fúnebre .'•
culos e comemorações, nem a maneira apropriada de dirigi-los. C o­
menta-se que eles se apinham para aplaudir até mesmo a s mínimas
tentativas no gênero; e que, ao contrário dos franceses e de outros po­
vos continentais, não têm mesmo gosto pelo cerimonial. A crítica, sem 52. lbid .. 30 j a n . 1 X5X.
dúvida, tem lá suas razões de ser. 11
53. W. Jones. Crmrn., 0111/ Con111a1ú111 ( Londres . 1 X83), p. viii.
54. C. H 1 h h ert. lhe Courr ar ll "ind,or· .4 l>o111estic Hi.<tor_r ( Londres, 1964), pp. 171-2.
_
5J. J. Per k 1 ns. lhe ( ,,r,11w11011 Hooh ( L ondres. 1 902 ). pp. 97, 1 1 5. 175. 258; Hibbert.
Georgt' H. pp. �97-604. r irnpn rtante fri,ar 4ue () est ilo público de Jorge IV antecipa,
soh muitos as pecto,. d e,em ol, , rncnt," p,1'teriore,: a grandiosidade de Londres ( Regent
50. R. Davey, A History of Mourning (Londres, s.d.). pp. 75-7. 8 1-3: J . S. C url. The
_
n:a1' (
Stn:et ). ª' \ IS!la,
_
a hcóua e :1 1 ri.i n d a ). e u rn a coroaç;i ll dispendiosa (veja Apênci­
Victorian Celebration of Death ( Newton Abbot, 1972). pp. 4-5: C. Oman . .\'el.Hm ( Lon­ dc. Quadro 1 ). ( rc, o 4ue. apesar de tudo isto. sem a concatenação ade4uada entre o
dres, 1947). pp. 563-6; E. Longford, We//ington. 2 vol. (St. Albans. 1971 -5). ii. pp. 4X9- prnccd ,mcntll e a, c,rcun,t;"1 11ci," dll conte,to ( cllnfnr111e ocorreu mais tarde). ele sim­
95. rlc,men tc n;i n lü ncinnnu.
5 1. 11/ustrated London News, 25 sei. 1852. <;t, H i hhcrt. <,,.,,,�,. l i . pp. 777-9.
1 28 1 29

Guilherme, por sua vez, detestava cerimoniais e ostentações, e tentou " Manter- se invisível é o mesmo que ser esquecido... Para ser um
passar sem coroação nenhuma. No final, permitiu que se realizasse a símbolo, um verdadeiro símbolo, devemos aparecer com freqilência e
cerimônia: esta. no entanto, saiu tão truncada que ficou conhecida com entusiasmo." Ou, como ele mesmo disse, de forma ainda mais en­
como a "Meia Coroação". Seus funerais foram igualmente pobres - fática, "por motivos que não são difíceis de se definirem, a Rainha,
"um arremedo deprimente", na opinião de Greville. A cerimônia foi afastando-se durante tanto tempo da vida pública, prejudicou tanto a
longa e tediosa, e os acompanhantes atrasavam-se, riam, tagarelavam popularidade da monarquia quanto o mais desprezível de seus ante­
e cochichavam perto do caixão. 5 ' A coroação da Rainha Vitória tam­ cessores, através de licenciosidade e frivolidade. "63
bém não impressionou. Não foi ensaiada nenhuma vez; os ministros Vitória, porém, era inflexível. Em 1 863, por exemplo, recusou-se
não sabiam a hora de falar: o coro era lamentavelmente inadequado; o a abrir o Parlamento, alegando "total incapacidade sem sério risco
arcebispo de Cantuária pôs o anel num dedo em que ele ficava aperta­ para sua saúde de realizar funções de sua alta posição acompanhadas
do; e dois pajens conversaram durante a cerimônia inteira. 18 Os fune­ por cerimoniais solenes, que exigem o aparecimento em público em
rais do Príncipe Alberto foram realizados quase que em particular, em trajes a rigor":ª Pois, conforme ela explicou mais tarde, mesmo na
Windsor, como o casamento do Príncipe de Gales. Em Londres, na re­ presença do marido, ela "ficava sempre terrivelmente nervosa em to­
cepção a Alexandra, alguns comentadores deploraram "o fraco gosto das as ocasiões públicas". A ausência do apoio de Alberto agora tor­
da decoração, a ausência de escolta e a extraordinária pobreza dos nava-lhe insuportáveis tais aparições."' Mas para Ciladstone, durante
cortejos reais" . A revista Punch, por sua vez, não gostou que o casa­ sua primeira gestão como primeiro-minist ro. não se poderia tolerar
mento fosse celebrado em W indsor - "uma aldeia obscura de Berkshi­ esta situação . " Falando em termos francos e gerais" , ohservou ele. "a
re. conhecida apenas por um velho castelo sem instalações sanitárias". Rainha não é visível e o Príncipe de Gales não é respeitado." Muitas
Mais uma vez, o planejamento e organização foram lamentavelmente foram as vezes em que, entre 1 870 e 1 872, com toda a energia, mas sem
inadequados. Palmerston teve de voltar de Windsor num vagão de ter­ o tato necessário, Gladstone lembrou à Rainha a "imensa importância
ceira classe do trem especial, e Disraeli foi obrigado a sentar-se no colo das funções sociais e visíveis da monarquia", tanto para o "bem-estar
de sua esposa.'' social do país" quanto para a "estabilidade do trono".66 No entanto,
Entretanto, o ponto mais baixo da magnificência real e da presen­ por mais forças que empregasse na busca de soluções para esta "gran­
ça do cerimonial foi atingido nas duas décadas seguintes à morte do de crise da Realeza", exigindo que a Rainha aparecesse em público
Príncipe Alberto, quando a viuvez solitária da Rainha e os escândalos com mais freqüência, ou nomeando o Príncipe de Gales para o cargo
envolvendo o Príncipe de Gales "constituíram a base para inúmeras de Vice- Rei da Irlanda, Vitória nem se perturbava. Conforme explicou
acusações" :" Entre 1 86 1 e 1 886, a rainha, apelidada agora pela im­ Disraeli na Câmara dos Comuns, ela se encontrava "sem condições
prensa de "Sr• Brown" , abriu o Parlamento apenas seis vezes. Até tisicas nem morais" de cumprir com seus deveres. 6'
mesmo o The Times "lamentava" sua longa ausência em Windsor, Este quadro de rituais mal organizados, com influência bastante
Balmoral e Oshorne:· 1 Em 1 864, alguém afixou um aviso às grades do restrita, é corroborado pelo baixo grau de exploração comercial esti­
Palácio de Buckingham, como se fosse um anúncio: "Aluga-se ou ven­ mulado por tais cerimoniais durante este primeiro período. As peças
de-se esta propriedade por motivo de queda nos negócios do último in­ comemorativas de porcelana, por exemplo, constituíam um estilo re­
q u i l 1 1 1 , 1 . . l o r.1111 fundados. entre 1 87 1 e 1 874. oitenta e quatro cluhes conhecido desde a década de 1 780. Só que a monarquia era retratada
republicanos, e radicais como Dilke e Chamberlain exigiam com vee­
mência que se procedesse a investigações no orçamento da monarquia.
Walter Bagehot. embora favorável a uma monarquia suntuosa e es­ ºº
63. W. Bagehot. "The M onarchy and the People . The Economist, 22 jul. 1 87 1 : idem.
plêndida, freqüentemente frisava que na verdade não podia ser assim. "The Income of the Prince of Wales··. The Economist, 10 out. 1874. Ambos os artigos

1
foram reimpressos in St. John-Stevas, The Collected Works of Walter Bagehot, v. pp.
4 19, 43 1.
,7 64. G. E. Buckle ( org.). The Le11ers o( Queen Victoria, 2. sér. /862-1885. 3 vol. ( Lon­
/ 1qdcr. 11 11/1<1111 l i . 1 52-.1 . 2 9 1 .
dres. 1 926-X). i. p. 1 33.
5X L l onglord. l kroria. R. I ( Londres. 1966). pp. 99.- 104.
65. lhid .. i. p. 244.
59 lhid.. p . .19:i: (i. lfattis..:orn he. Q11ee11 A lerandra (Londres. 1972). pp. 45-6.
. 66. P. Guedalla. The Queen and Mr. Glad.,tone. /845- 1879, 2. vol. ( Londres. 1933-4), ii.
hO. Zieglcr. ( ,mm (Ili{/ Peo{'I<" p. 2 1 . p. 357.
li l 7he Ti111n. 9 mn I X7 1
t>2 . l .ongford. ,.,"'"'ª· R . I . r 40 1 .
67 . P. Magnus. Glad.<1,111e: A Biogra{'hr (Londres. 1963), 207- 17.

------------ ---·---------------------------- .........


1 30 131

com muito menos freqüência do que outros personagens contemporâ­ niais magníficos. Em outros países, tais como a Alemanha, Austria e
neos. Frederico, o Grande era muito mais popular do que Jorge II, e Rússia, empregou-se o engrandecimento do cerimonial, como antiga­
Nelson e Wellington eram mais homenageados do que Jorge I I I . Du­ mente, para exaltar a influência real. Na Grã-Bretanha, por outro la­
rante o reinado de Jorge IV, produziu-se mais porcelana em homena­ do, os rituais semelhantes tornaram-se possíveis graças ao enfraqueci­
gem à Rainha Carolina do que ao próprio rei. Não se deu muita aten­ mento cada vez maior da monarquia. Na Inglaterra, ao contfário dos
ção às coroações de Guilherme IV e de Vitória, e entre 186 1 e 1 886, outros países, a volta do cerimonial marcou não a volta do teatro de
apesar dos inúmeros casamentos reais, não se produziu praticamente poder, mas a estréia da escalada da impotência.
nenhuma peça de porcelarra comemorativa. O mesmo ocorreu com a Ao mesmo tempo, o aumento da veneração popular pela monar­
produção particular de medalhas para o comércio. Mais uma vez, cu­ quia fez com que esse cerimonial se tornasse convincente a um ponto
nharam-se mais medalhas para homenagear a Rainha Carolina do que que antes não teria sido possível, na medida em que o poder fora subs­
para comemorar a coroação de seu marido, e as coroações de Guilher­ tituído pela popularidade. A longevidade, probidade, senso de dever e
me e Vitória passaram desapercebidas.68 Neste período inicial, a famí­ posição incomp_arável de matriarca da E_uropa e mãe de um impérj o
lia real era tão mal vista, e seu cerimonial tão pouco atraente, que não vieram sobrepupr e depois eliminar a atitude antes hostil em relaçao
foi julgada digna de exploração comercial em larga escala. a Vitória. Ao morrer, ela não era mais a "Sra. Guelph", a "Rainha
dos Whigs", mas a "mais eminente das soberanas" que "legou-nos um
I.V nome a ser venerado para sempre".-, O tempo foi igualmente generoso
Entre os últimos anos da década de 1870 e o ano de 19 14, entre­ para com Eduardo VII. Sua vida extravagante; o gosto e o apuro com
tanto, ocorreu uma mudança fundamental na imagem pública da mo­ que viajava: seus notáveis êxitos nas corridas; e a incomparável beleza.
narquia britânica, na medida em que seu ritual, até então inadequado, encanto e atrativos de sua consorte: todas estas vantagens ele teve du­
particular e pouco atraente, tornou-se suntuoso, público e popular. Até rante os seus poucos anos de reinado. O "rapazote desempregado" de
certo ponto isto foi facilitado pelo fato de que os monarcas estavam Bagehot se havia transformado, no fim do reinado, numa figura pa­
pouco a pouco se afastando da atividade política. Vitória, embora triarcal magnífica e venerável. pai do império e tio da Europa. U m
obstinada e difícil no início do reinado, exercia um poder efetivo mui­ versejador chegou a escrever por ocasião de sua morte:
to menor ao seu término. A expansão e aumento da importância do A maior tristeza já havida na I nglaterra
eleitorado, juntamente com uma maior consciência partidária, signifi­ Foi ver partir nosso velho e q uerido paizinho."'
cava que afirmações de prerrogativas reais do tipo que havia precipita­ Tal mudança na posição do monarca. que elevou Vitória e Eduardo
do a Crise do Quarto da Rainha estavam em muito menor evidência. acima da política, fazendo deles figuras patriarcais para toda a na­
Uma vez que o eleitorado se havia pronunciado em 1880, por exem­ ção, tornou-se cada vez mais urgente devido aos progressos econômi­
plo, a Imperatriz não tinha poderes nem de conservar Disraeli no car­ cos e sociais ocorridos no último quartel do século XIX. U ma vez
go, nem de destituir Gladstone." E Eduardo VII subiu ao trono já ve­
mais, Londres reafirmou seu domínio nacional, na medida em que a
lho e inexperiente, sem muito entusiasmo pelas atividades burocráti­ identidade e as lealdades provincianas enfraqueciam-se acentuada­
cas; todo ano passava três meses no exterior e, fora as interferências mente.'1 Foi no fim, e não no começo do século X IX que a Grã­
ocasionais em assuntos de política externa e a entrega de honrarias e Bretanha tornou-se uma sociedade de massas predominantemente ur­
condecorações, desempenhava um papel mínimo na vida política.'º bana, industrial, com lealdades de classe e conflitos entre classes inse-
Assim, à medida que minguava o poder real da monarquia, abria-se
um caminho para que ela se tornasse novamente o centro dos. cerimo-
7 1 . R . Da,c:� . lhe l'agea111 11/ l.011do11, 2 , oi . ( 1.ondrc:,. 1 90ó). 11. J'. ó23. hn um rnê.,.
publicaram-se no Reino Unido e nas colônias 30 elegias. que mais tarde foram rc:rro d u-
68. J. e J. M ay. Com111e1110ra1il'e Pollerr. J lfl0-1 900 (Londres, 1972), pp. 22, 40-5, 5 1. 1id," i11 J. ·\ l la 111 rnc:rl1H1. lhe /'a, 1111g 11/ l i, 111,ia ( l.ond rc,. 1 902 ). C onw oh,cn ou H ) -
58-9. 73: D. Rogers. Coro11a1io11 Souvenirs and Commemora/ives (Londres, 1975), pp. 25- nc,. "o mai, 1rn rressionante é a fre4 üência corn 4 ue a, elegia, c:hamam a , clha R a i nha
30. 3 1-3. 36: J . Edm unson, CoJlecling Modem Commemorative Meda/s ( Londres, 1972) de M ,i e". Vc:ja S . H i ne,. lhe l:d11ardia11 rum o/ .\fill(/ ( Princelon. N . J . . 1 %8 ). I' · 1 5 .
pp. 39-42. Veja també m Quadro 2 do Apêndice. 72. M agnus. t.'dl',ard Vil . I'· 526: M a rtin. Crmm and the EHahlishme!II, p. 68; Z iegler.
69. Longford, ViclOria. R. /., pp. 537-8. Crmm and People . p. 28.
70. P. M agnus. King Edward VII ( H armondsworth, 1967), pp. 342, 348, 373-7. 73. Briggs. Victorian Citi<'., . J'P 3 1 2- 1 3. 327. 330. 356-9.
132 1 33

ridos pela primeira vez numa estrutura genuinamente nacional. O como se ela fosse sagrada." Uma terceira mudança importante ocor­
Novo Sindicalismo, as controvérsias em torno de Taff Vale e o Julga­ reu em relação ao desenvolvimento de novas técnicas de fotografia e
mento de Osborne e a agitação nos anos imediatamente anteriores à I impressão. o que significava que as ilustrações não se limitavam mais
Guerra Mundial, prenunciavam um clima político e social bem mais aos caros semanários burgueses. Em conseqüência disso, ao fim do sé­
tempestuoso." Além disso, conforme se afirmou na época da coroação culo XIX as grandes cerimônias reais eram descritas com uma pronti­
de Eduardo, "o caráter ultrapassado de muitas das circunstâncias ma­ dão e intensidade inéditas, de um modo sentimental, emotivo e respei­
teriais de vida na época em que a Rainha Vitória foi coroada" contras­ toso, que atraía uma parcela muito mais ampla da população. 19
tava bastante com os progressos impressionantes e desconcertantes Se, por um lado, a imprensa era um dos principais meios de elevar
ocorridos nos sessenta anos seguintes - uma ampliação das liberda­ a monarquia a um Olimpo venerado, as transformações na tecnologia
des, as estradas de ferro, o navio a vapor, o telégrafo, a eletricidade, o dos transportes produziram efeito semelhante, na medida em que os
bonde. 15 Numa época de transformações, crise e transtornos, a "pre­ progressos serviram para tornar as carruagens dos monarcas cada vez
servação do anacrônico", a apresentação deliberada e cerimonial de mais anacrônicas e suntuosas. A partir da década de 1870, o comércio
um monarca impotente porém venerado como símbolo unificador de de carruagens sofreu uma séria parada em sua taxa de crescimento, até
permanência e da comunidade nacional tornou-se não só possível então espetacular."' A invenção do pneumático por Dunlop, em 1888.
como necessária. Na década de 1860, Walter Bagehot havia previsto f levou ao surto ciclístico da década seguinte. Já em 1 898 havia mais de
que "quanto mais democráticos nos tornarmos, mais apreciaremos a J
1.600 quilômetros de trilhos de bonde nas cidades inglesas, e em 19 14
pompa e o espetáculo. que sempre agradou ao povo" . E, de fato, ele este número havia triplicado. 8 1 Para os habitantes das cidades, em par­
estava certo .·, ticular (que nesta época constituíam a maioria da população), o cavalo
Para a promoção desta nova imagem do monarca como chefe da não fazia mais parte da vida cotidiana, como antes. Em Londres, por
nação concorreu principalmente o desenvolvimento dos meios de co­ exemplo, em 1903 , restavam apenas 1 42 coletivos a tração animal,
municação acontecidos desde a década de 1880. Com o advento da im­ contra 3.522 ônibus motorizados. A substituição dos fiacres pelos tá­
prensa marrom, as notícias sofreram um processo de nacionalização e xis foi também bastante acentuada. Em 1908, produziram-se 1 0.500
sensacionalismo, à medida que a imprensa liberal antiga, racional, in­ carros e veículos comerciais; em 19 1 3, o número era de 34.000. 82 Sob
telectual e burguesa era gradativamente suplantada pelos grandes diá­ tais circunstâncias, as carruagens reais, antes comuns, revestiram-se de
rios nacionais: impressos em Londres, com fortes tendências conserva­ um esplendor romântico que antes jamais se alcançara. Assim, en-
doras, ásperos, vulgares e dirigidos ao operariado. 11 Em 1896, Harms­
worth lançou o Daily Mai/, vendido a meio pêni, cuja circulação diária
chegou a 700.000 exemplares em quatro anos. Seguiram-se o Mirro,, o 7X. Walkcr. Oai/1· Sl.etdw, . pp. 7-X. 13; Wynn Jones. Cartoon Historr o( the .\lonar­
Sketch e o Daily Express. Ao mesmo tempo, as cruéis caricaturas e chy. pp. 130. 1 38-9; Lec. lhe Origiln of the Popular Press. pp. 120-30. . 1 90-6; Symon.
editoriais do período anterior desapareceram quase que por completo. The Pre.11 a11d i1 1 St"T" pp. 229-32; H. H erd. The .\farch of Jouma/ism ( Londres. 1 952).
·
Os romances de Eduardo V II eram discretamente omitidos, e caricatu­ pp. 233-40.
ristas como Partridge e Carruthers Gould desenhavam as grandes oca­ 79. Symon. "f' · ât . . pp. 235-9. Ê interessante observar que este é também o período em
que o,orre uma proliferação acentuada de obras populares que visam explicar. descre­
siões das vidas e mortes dos monarcas de maneira contida e respeitosa. ver e comemorar grandes eventos da realeza. Sobre as coroações de Eduardo V I I e Jorge
Apenas na imprensa estrangeira ainda se encontravam críticas à mo­ V veja. por exemplo: J . H . Pemherton. The Coronation Serl'ice according to the l 'se ofthe
narquia britânica. Na Inglaterra, porém, os jornais a tratavam quase Church of Engla11d ( Londres. 1902. 1 9 1 1 ); D. M acleane. The Great So/emnitr of the Co­
m11a1ú111 of the A i11g a11d Queen of Eng/and ( Londres. 1902. 19 1 1 ). W. H . Stackpole. The
Comna1io11 Regalia ( Londres. 19 1 1 ); E . M etallinos. Imperial and Royal Coronations
( Londres. 1902); L. G . Wickham Lcgg. Eng/ish Coronation Records ( Londres. 1 90 1 ); H .
74. Chamhcrlain. "The G rO\Hh of Support for the Labour Party'', pp. 48 1 . 485; F . Burke. The li i1torical Rernrds of the Coronation ( Londres. 1904 ); Bodley. Corona­
Pelling. Hi11"rr "' Bri1ish Trade l'nion.< . p. 89; M usson. British Trade Unionism, p. 65; J. tion of Ed,mrd lhe Sel'enth; l'erkins. The Coronation 800/,;. O surto de biografias reais
l.o, cll. Hri1i,h frade l '11i""' · /875- l 'JJJ ( Londres. 1 977). pp. 9. 2 1 -3. 30-3. 4 1 -6. populares e la udatórias tamhém data desta época.
75. J . E. C. Bodley. The C"m11ati"n o{King Edward the Sel'enth: A Chapter in European XO. Thompson. Victoria11 Engla11d. pp. 1 6- 1 8.
a11d Imperial Hi.,torr ( L ondres. 1903). pp. 203-6. X I . P. S Bag" cll. 71,e Tra11sport Rel'o/wion from 1 770 ( L ondres. 1974), pp. 150. 155.
76. W. Bagehot. "The Cost of Public Dignity", The Economi.H, 20 jul. 1867; artigo re­ X2. F. M. L. . Thompson. " N ineteenth-Century H orse Sense". Economic Historr Re-
produLido in St. J ohn-Stevas. The Col/ected Works of Walter Bagehot, v, p. 4 13. 1·iew. 2. sér.. xxix ( 1 976). p. 6 1 ; S. B. Saul. "The M otor lndustry in Britain to 1 9 14··. Bu­
77. Briggs. Victorian Cities. pp. 356-8. sine.u lliston . v ( 1 962). pp. 24-5.
134 135

quanto os fabricantes de carruagens como Mulliner eram obrigados a petir ... Pela primeira vei na história de nossa t�rra, a idéia do Império
produzir carros a motor devido à queda na demanda por seus produ­ manifestou-se em todo o seu esplendor, ao reunirem-se os filhos e filhas
tos mais tradicionais, Eduardo VII chegou a pôr em uso um novo lan­ do Império, vindos dos confins da terra para participar. As tradições ar­
dau de gala no qual voltou da Abadia após sua coroação. Descrito caicas da Idade Média foram ampliadas de maneira a incluir o esplendor
moderno de um poderoso império:·
como "em estrutura, proporções e decoração o mais gracioso e régio
"o pre­
veículo jamais construído", era uma prova incontestável da capacida­ " Sob tal aspecto", como observou mais tarde Sir Sidney Lee,
de nova e única que tinha o monarca de recorrer ao velho mundo para cede nte do Jubileu de Diamante de 1 897 foi aperfeiço ado.,""
contrabalançar o novo. 8 1 Se estes cerimoniais reais, que em parte refletiam uma consciência
A nível internacional, revelavam-se as mesmas tendências. A no­ inédita da possessão imperial formal, foram uma expressão de auto­
vidade de uma sociedade de massas nacional exprimia-se no frescor do confiança nacional ou de dúvida, ainda não foi completamente escla­
império formal no estrangeiro. E, mais uma vez, a originalidade do de­ reci do. A opinião dominante é a de que os jubileus de Vitória e a co­
senvolvimento foi ocultada e transformada em algo aceitável por asso­ roação de Eduardo marcaram o apogeu do império, da confiança e do
ciação com a mais antiga das instituições nacionais, a monarquia. Du­ esplendor." Mas outros, acompanhando o tom do " " Recessiona/" de
rante os primeiros três quartos do século XIX, nenhuma ocasião de ce­ Kipling, encaram-nos sob um ângulo bastante diferente - como afir­
rimonial real poderia ser plausivelmente considerada um "aconteci­ mação do espetáculo e da grandiosidade, da extravagância 90e da brava­
mento imperial". Porém, a partir de 1 877, quando Disraeli fez de Vitó­ ta. numa época em que o poder real já estava decaindo. Pois não
ria a imperatriz da fndia, e de 1 897, quando Joseph Chamberlain trou­ pode haver dúvida de que durante este período a Grã-Bretanha estava
xe os primeiros-ministros e exércitos coloniais para desfilarem na pa­ sendo cada vez mais desafiada por novas potências mundiais rivais,
rada do Jubileu de Diamante, toda grande data real passou a ser tam­ tanto economicamente quanto colonialmente e politicamente. A unifi­
bém uma ocasião imperia/. 8' Conforme observou Bodley, durante as cação da Itália e da Alemanha, a recuperação dos Estados Unidos dos
últimas décadas do reinado de Vitória, sua coroa torno»-se "o emble­ traumas da Guerra de Secessão, a disputa pela África, as tarifas adota­
ma da raça britânica, para encorajar sua expansão sobre a face da ter­ das pelas potências continentais, a decisão tomada pela Inglaterra de
ra" . 8 1 Eduardo, enquanto ainda Príncipe de Gales, visitou o Canadá e abandonar o "Isolamento Magnífico" e buscar alianças e apoio na
a f ndia, e na década de 1 900 o duque de York seguiu-lhe o exemplo, Europa, a Guerra dos Bôeres e as crises de Fachoda, Agadir e Marro­
fazendo uma volta ao mundo imperial e visitas extras ao Canadá e à cos, tudo prenunciava um mundo cheio de medo, tensão e rivalidades,
fndia. 8 ' Ê interessante observar que seu pai foi o primeiro monarca inexistente na tranqüila época de Palmerston. A liberdade de ação di­
britânico a ser coroado imperador da fndia e regente "dos Domínios plomática que antes possuíam os secretários do exterior havia desapa­
B rit:i nicos de além-mar" . Até mesmo a doença contraída por Eduardo recido no tempo de Salisbury.
na época de sua coroação foi positiva para o império, pois embora Essa crescente competição internacional refletia-se na reconstru­
partissem as delegações européias, ficaram as do império, tornando a ção em larga escala das capitais, uma vez que as grandes potências de-
coroação - quando ela finalmente se deu - "uma festa familiar para o
Império Britânico". Havia as "circunstâncias inéditas" sob as quais
era celebrada a "tradição imemorial". Ou, conforme outro comenta­ 87. J. Pcrk1ns. /ire C,mmation /Joo/.. ( Londres, 19 1 1), p. 329; Ziegler, Crov.-n and Peo­
dor observou, de maneira mais eloqüente: ple. pp. 56. óó; I'. E . Schramm. A lli.l"torr o{ the Englüh Coronation (Oxford, 1937). p.
A grande cerimônia . . . possuía uma nova característica peculiar, com a 104.
!i8. Sir S. Lec. A i11g 1:"d11 ard the Serenth: A Biograph_r. 2 vol. (Londres, 1925-7). ii, p.
qual nenhuma de suas antecessoras em Westminster poderia tentar com- 100. Tamhém se deve ohservar que nesta época o hino nacional foi sendo cada vez mais
tratado como hino imperial. Em 1892. S. G. R. Coles escreveu uma letra imperial. que
..
começava com Deus salve nossa lmperatriL e Rainha", e, cinco anos depois, H. A. Sal­
X3. Gilhe). Modem Carriages. pp. 36-8; M . Watney. The Elegant Carriage (Londres. mone compôs O Sol Imperial. .. tradução da terceira estrofe do H ino Nacional, apresen­
1961 ). p. X I . tado com.. metri íicaçào em cinqüenta das mais importantes línguas faladas no Império
X4. J . L . Garvin and J u l ian A mery. The Life o{ Joser:h Chamberlain. 6 vol. ( Londres. britânico . Veja Scholes. " úod Sa1•e the Queen ", p. 14 1.
1932-69). iii. pp. 185-95. 89. Duas obras recentes que adotam este ponto de vista são: J. M orris. Pax Britannica:
X5. Bodley. Comnation o/ Ed..-ard the Se1•enth. p. 19. The Clímax o/ an Empire ( Londres. 1968); C. Chapman e P. Raben, Debrett's Queen Vic­
86. M agnus. Ed..-ard VII. pp. 52-8. 13 1-2. 238-4 1; H. N i colson. King George the Fifth: toria's Jubilees. 1877 and 1897 (Londres, 1977).
Hi.1 Li/e and Reign ( Londres. 1 967). pp. 106- 10. 128-33. 228-37. 90. Hynes. Ed-..-ardian Turn o{ Mind. pp. 19-20.
1 36 1 37

fendiam sua vaidade da maneira mais visível e aparatosa. Em Roma, o Neste clima de acirrada competição internacional, a presunção e
Plano M estre de 1 883 visava criar uma capital digna de uma nova na­ O o rg ulho com que os londrinos da geração anterior haviam venerado
ção, com amplas avenidas e bulevares no estilo parisiense. E o término sua esmolambada capital já não podiam subsistir. A liás, desde 1 868 o
do enorme mon umento a Vítor Emanuel, em 1 9 1 1 , foi mais uma afir­ periódico The Builder alertava que, como "a imponente magnificência
mação enfática da grandiosidade e do orgulho nacionais.9 1 Em Viena, de uma capital é um dos elementos do prestígio nacional e, portanto,
o conglomerado de imponentes edifícios dando para a Ringstrasse, a do poder e da influência nacionais", fazia-se imprescindível que a ar­
m aioria dos quais construídos n a década de 1 870 e 1 880, foi especifica­ quitetura de Londres se tornasse "digna da capital do país mais rico
do mundo". Porém, foi só n as últimas décadas do século XIX, quan­
96
mente planej ado para refletir "a vastidão do Império" .92 Em Berlim, a
unificação alemã foi expressa visualmente sob a forma de "magníficas do se percebeu que o prestígio nacional estava ameaçado, que se toma­
ruas largas, praças arborizadas, monumentos e ornamentos", inclusi­ ram providências no sentido de transformar a miserável cidade envol­
ve a Coluna da Vitória, o Reichstag, a Siegesalle e a C atedral, todos · ta em brumas, cenário dos rom ances de Dickens, na capital de um im­
edifícios concebidos n u m espírito de ostentação chauvinista, "sentine­ pério. O estabelecimento do London City Council (Conselho M unici­
las silenciosas da glória nacional".93 Em Paris, a Torre Eiffel, cons­ pal de Londres) em 1 888 finalmente concedeu a Londres uma autori­
truída para a Exposição de 1 889, foi criada para ''frapper /e monde", dade administrativa única, que não se subordinava nem ao despotismo
para ser um "arco d o triunfo tão impressionante quanto aqueles que real, nem ao poder estatal, manifestando-se visivelmente pela constru­
as gerações anteriores erigiram p ara h onrar os conquistadores" .94 E ção de um imponente County H all (sede do Conselho M unicipal), i ni­
também em W ashington, a Comissão Park, que recomendou o térmi­ ciada em 1 908. 97 O Ministério da G uerra, em Whitehall, os Edifícios
no e âmpliação do plano geral original de L'Enfant, foi em parte moti­ do Govern o, a um canto da Praça do Parlamento, o Methodist Cen­
vada por objetivos semelhantes. Pois, como explicou Olmstead, a meta tral Hall (sede central dos metodistas) e a Catedral de Westminster
era exaltar "o efeito de imponência, poder e digna magnificência que contribuíram tam bém para o sentimento de grandiosidade e suntuosi­
deviam caracterizar a sede do governo de um grande e laborioso po­ dade ... Em Londres, como em outras metrópoles, proliferaram as está­
vo··. O término do Washington Memorial, a ampliação da Casa Bran­ tuas comemorativas e monumentais.99 Porém, as reconstruções mais
ca, a U nion Station, o M onumento a Lincoln e o plano que previa importantes e coerentes foram o alargamento do M ali, a construção
grandiosos edificios governamentais circundando o Capitólio, datam do Arco do Al mirantado, a reconstrução da fachada do Palácio de
todos desta época. E, conforme explicou a comissão, quando estes mi­ Buckingham e a construção do M onumento a Vitória, em frente ao
nistérios estivessem prontos, "o conjunto arquitetônico resultante, em Palácio. Este esplêndido e monumental conjunto imperial, que em­
matéria de magnitude e monumentalidade, não encontrará paralelo prestou a Londres peculiar aspecto tri unfal e cerimonial, foi termina­
em nenhum outro grupo de edificios legislativos do m undo moder­ do entre 1 906 e 1 9 1 3, sob os auspícios do Comitê pelo M onumento à
no" . 95 Rainha Vitória, cujo presidente era Lorde Esher. 'ºº E em Londres, a s­
sim como em Washington, Roma e Paris, era forte o elemento da com-

9 1 . S K o,tof. ''The Drafting of a M aster Plan for Roma Capita/e: An Exordium",


.!11umlll 11/ 1hc S11cie1 1:_of A rchitectura/ Historians. uxv ( 1 976). p. 8: A Robertson, Victor
tic.< and Symhol., in C. S. G,ll'ernment Bui/ding (Cambridge. M ass., s.d.). princ. pp. 244-
F111111m1111·/ li/. /\ i11!( 11//talr ( Londres. 1 925). pp. 1 04-6: R. C. Fried. Planning the Eternal
6_5. Cf. as _observações do arquiteto americano G ilbert de que os edifícios públicos deve­
Ci1r: R11111a11 P11/i1in· and Planning Since World War li ( Londres. 1 973), pp. 1 9-29; C.
Meeks. """ª" A rchitecture. J 750-/9/4 ( New H aven, 1 966), pp. 1 89 e seg. Sobre um epi­
riam_ inspirar "um justo orgulho no Estado " e ser "símbolos da civilização, cultura e
1dea1s de nosso país."
sód io cm part icular. veja E. Schroeter. ··Rome's First National State Architecture: The
96. Citado por Olsen. Grm,·th o( Victorian London, p. 53.
Pala==o dei/" Fi11a11=e. i11 H. A. M illon e L. Nochlin (org.), A rt and Architecture in the
97. Brtggs. J'ictorian Cities, pp. 325. 332-3.
Sa,"ice 11/ P11/i1in (Cambridge. M ass .. 1 978). pp. 1 28-49.
98. A. Service. Ed..-ardian A rchitecture: A Handbook to Building Design in Britain.
92 M arek . lhe Eagles /Jie. pp. 1 73-7.
/H9()./9/4 (Londres. 1 977). cap. 1 0; M . H . F'ort. "'Imperial Victorian", Geographica/
93. P. Ahercrom hie. "'Berlin: lts Growth and Present Day Function - l i - The N i ne­
Maga=ine . x I ix ( 1 977), pp. 553-62.
leenth Centur) ··. 7,111·11 Plm111i11g Rel'ie..-. iv. ( 1 9 1 4). pp. 308, 3 1 1 ; D. J. H ill, lmpression.1
o/ 1he /\ai1<·r ( Londres. 1 9 1 9). pp. 59-62; Príncipe von Bülow. Memoirs. //197-1903 ( Lon­ 99. V_eja Apêndice. Quadro 4. Veja tambêm Trachtenberg. The Statue of Liberty, p.
don. 1 9 3 1 ). p. 543.
94. Trachlcnherg. lhe Statue o( Liherty. p. 1 29.
..
,. 1 00: "A medida que o sêculo chegava ao fim, aumentava o ritmo da construção de co­
lossos. inaugurando-se um complexo emaranhado de monumentos de menor escala que
95. C. M. G reen . Washington. 2 vol . ( Princeton. N. J .. 1 962-3), ii, cap. 7; Reps. Monu- quase ameaçavam sufocar as praças públicas e locais pitorescos da Europa".
111<·111"/ Wa,hi11g1011 . pp. 9 1 . 1 1 5: L. Craig et ai.. The Federal Presence: A rchitecture. Poli- 100. G. Stamp, Lmrdon. / <JOO ( L ondres. 1 978), p. 305.
138 139

petição i nternaci onal . Conforme Balfour explicou ao organizar o Co­ !ebrados em grande estilo. D a mesma maneira, nos Estados U nidos
1 06

mitê, seu objetivo era o de produzir um conjunto de edificios esplêndi­ o centenário da revolução e o quadricentésimo aniversário da desco�
do, majestoso e monumental, "como os que foram erigidos por outros berta da Améri ca foram � elebrados de forma um tanto extravagante.
países, exemplos que podemos perfeitamente i mitar e superar com fa­ A o mesmo tempo, o Presidente Chester Arthur começou a aperfeiçoar
ci lidade" . 1 º 1 os rituais e o cerimonial relativos à Casa Branca e, signifi cativamente,
o plano de Gil be�t para W ashi ngton em 1900 i ncluía a construção de
Tais progressos, em Londres e no resto do mundo, formaram o �
"um grande pavilhão reservado aos préstitos e às cerimônias ofi­
nário do cerimoni al, que por si só constituía já um outro aspecto da ri­ ciais" . 1 º1
vali dade internaci onal. As monarquias adventícias da Alemanha e Itá­
lia não só buscavam competir com as mais veneráveis dinastias euro­ . M�is uma vez fez-se notar o elemento da c�mpetição. Um repór­
ter mgles de Moscou e S. Petersburgo que cobna os funerais de Ale­
péi as, quanto aos rituais da corte, número de i ates e trens; também xandre I l i para o The Times lembrou que "raramente ou nunca se
competiam de propósito nas suntuosas mostras públi cas da pompa viu, talvez, em toda a história, um cortejo ao ar livre tão deslumbran­
real . 'º' Assim, na Austria, o seiscentésimo ani versário da monarquia te. A ele só se poderia comparar, embora não o superasse, a procissão
dos H absburgos, o milésimo aniversário do reino da H ungria, os J ubi­ do jubileu de Vitóri a até a Abadia de W estmi nster" . 108 D o mesmo mo­
leus de Ouro e de Diamante de Francisco J osé e o octagésimo aniver­ do, quando o R ei Eduardo V I I visitou a Alemanha, em 1909, o K aiser
sári o do i mperador foram celebrados com pompa e grandiosidade ja­ estava decidido a estontear o rei i nglês com uma exi bição da suntuosi­
mais vistas. 1 º 1 A Itália retrucou com o extravagante enterro de Vítor dade de seu ceri moni al. E , apesar das dificuldades ocasi onais ele con­
Emanuel l i , em 1 878, e a i nauguração do monumento a este rei, em seguiu. "O I mperador" , escreveu mais tarde em seu diário o' Mordo­
19 1 1 , dat a em que também se comemorava o jubileu da U nifi cação mo do Palácio,
I t ali ana. 1 º' Na R ússia, os funerais de Alexandre I l i , em 1894, foram
i néditos em matéria de pompa e magnificência, e a comemoração do "ficou enca_ntado com a visita do Rei Eduardo, e disse; 'Os ingleses não
t ricent ésimo a niversário da di nastia dos Romanov, em 19 13, foi plane­ pod�m _equiparar-se a nós _ neste tipo de coisa', referindo-se à pompa da
j ada de modo a ser o mais luxuosa possível. N a Alemanha, os funerais proc1ssao, aos apartamentos reais do Castelo, ao Banquete, ao Baile da
do Kaiser Guil herme I e o J ubileu de Prata de seu neto foram t ambém Corte, e daí por diante."""
magníficos. 1 0i Até mesmo os regimes republicanos aderiram à moda.
Em 1880, na França, inventou-se o Dia da B astilha, que passou depois N em mesmo os a meri ca nos. por mais que se gabassem do i gualita­
a ser comemorado todos os anos. Os funerais de Vítor H ugo, em 1885, rismo d.e sua sociedade. fi ca ra m imunes a essa competiçã o. N a vira­
e o centenári o da revolução, quatro anos depois, foram também ce- da d� seculo, quando se tentou ampliar a Casa Branca, a justifi cativa
_
prmc1pal era que os quartos apertados deste edificio não eram adequa-

I O I . 1:-.. e M . Darh� . "The N atio,n's M onument to Queen Victoria", Country Life. clxiv
( 1 97X). p. 1 647. • 106. M osse . . . �·aesarism. Circuses and M onurnents", p. 1 72; Rearick, "Festivais in
Modern !-rance . pp. 447-8.
1 02 . Sohre o ritual da corte em fins do século X I X na Europa. veja Barão von Margut­
107. Reps. Monumental Washington, pp. 72-3. 85; S. M. Alsop. Ladr Sackville: A Bio­
t1. The Emperor Francis Joseph and Hi., Time.< ( Londres, 1 9 2 1 ). pp. 1 66-85; Princesa Fug­
graph_r ( Londres. 1 978 ). pp. 27-30. Uma das conseqüências de tornarem-se os monarcas
ger. The Glory of lhe Hah.<hurv ( Londres. 1 932), pp. 1 00-40; A. Topham. Memories of
e presidente� poderosos mai_s imponentes (e portanto mais expostos ao público) foi o au­
lhe Kai.<er'.< Cour/ ( Londres. 1 9 1 4). pp. 85-6. 1 23, 1 84-202; H ill. lmpre.uions of1he Kai­
mento do numero de assassmatos durante este período: Presidente Garfield dos Estados
ser, cap. 3; Conde R . ZedlilL-Trützschler. Twelre Years ai lhe Imperial German Court Unidos_. 1 XX 1 ; Alexandre l i da Rússia. 1 88 1 ; Presidente Carnot da França, 1 894; Primei­
( Londres. 1 924). pp. 46-60. 70- 1 . 95. 1 1 7. 1 65; M . Buchanan. Recollections of Imperial ro-Mm1stro Canovas, da Espanha, 1 897; Imperatriz Elizabeth dá Áustria. 1 898· Rei
Ru.uian Coun ( Londres. 1 9 1 3). p. 1 43. Humberto da Itália. 1900; Presidente McKinley dos Estados Unidos. 1 90 1 ; Pri�eiro­
1 03. K . Tschuppik. The Reign of 1he Emperor Francú Joseph. 1848- 1 9 1 6 ( Londres. M m 1stro Stolypin da Rússia. 19 1 1 ; Primeiro-Ministro Canalejas da Espanha, 1 9 1 2; Ar­
1 930). pp. 272, 354. 400. qmduque Francisco Ferdinando da Áustria. 1 9 1 4. Na Inglaterra. porém, todos os aten­
104. G. S. Godkin. Life of Victor Emmanuel li. Fim King of /ialy, 2 vol. ( Londres, tados contra a v ida de Vitória ocorreram entre 1 840 e 1 882. A pompa sem poder era
1 879). ii. pp. 233-44; Robertson, Victor Emmanuel Ili. pp. 1 03-6. muuo mais segura do que acompanhada pelo absolutismo. Veja Tuchman. The Proud
105. C. Lowe. A lexander Ili of Ru.uia ( Londres, 1 895), pp. 65· 76. 289-303; R. K. Mas­ To,.-er. pp. 72. 76; Longford, Victoria . R. I. . pp. 1 88-9, 2 1 1 - 1 2 . 490, 560- 1 .
s1e. Nicho/as and A lexandra ( Londres. 1 968). pp. 42-5, 224-7; B. Tuchman, The Proud I OX. Lo"e. Aln ander Ili. pp. 66-7.
Tower: A Ponrail of the Wor/d before the War. 1890- 1 91 4 (Nova Iorque, 1 978). p. 403. 109. Sedlit1-Trüt1schler. T..·elre Years ai lhe Imperial German Court, p. 257.
1 40 141

dos para recepções, o que, conseqüentemente, representava "a perda penho nas coroações do princípi o do século XX era incomparavel­
daquela ordem e dignidade que deveria caracterizá-los" . 1 1 º m ente melhor do que nas coroações anteriores. Finalmente, Sir Walter
Neste clima de competição, talvez tenha sido favorável - embo­ Parrat, M estre do King' s M usi c de 1 893 a 1924, trabalhou no sentido
ra bastante fortuito - que coincidisse com este surto do interesse pelo de melhorar a organi zação g eral das cerimônias. D urante a gestão de­
ritual e cerimonial a renascença musical inglesa, estimulada por Parry, le, o posto deixou de ser uma sinecura, pois ele se tornou a autoridade
promovida pelo zelo empresarial de Stanford e presidida pela geniali­ suprema nos arranjos musicai s de grandes ocasiões reais. 1 1 1 Por causa
dade de Elgar, o primeiro compositor i nglês de renome i nternacional destes progressos, Bridge e Parratt puderam colaborar com êxito nos
desde Purcell. 1 1 1 U m dos a spectos dessa renascença foi o aumento do arranjos musicais das coroações dé Eduardo V II e J orge V .
i nteresse pela história da música e dos hinos patrióticos, satisfatoria­ D urante o mesmo período, a posição da igreja oficial em relação
mente exemplifi ca da pelo fato de que existiam mai s histórias e arran­ ao ritual e às ceri mônias mudou visi velmente. Repetindo sem querer as
j os corais do hino nacional nas décadas de 1890 a 1 9 1 O do que em palavras de Bagehot, Samuel Wilberforce havia observado já em 1865:
qualquer outro período a ntes ou a partir desta época. 1 1 2 Ainda mai s, "segundo creio, existe na mentali dade i ng lesa uma forte tendência a
tal florescimento tornou possível apresentar as grandes comemorações promover rituais mais suntuosos" , previsão que foi côrroborada nas
reais não como denúncias da pobreza musi cal da Inglaterra, mas como décadas seguintes. Os bispos começara m a usar batinas roxas e a tra­
celeb rações do talento nacional. Portanto, as coroações de Eduardo zer cajados nas mãos. 1 1 6 As casulas, sobrepelizes, o incenso e as velas
V I I e J orge V foram adornadas com composições especialmente enco­ de altar tornaram-se cada vez mai s comuns nas catedrais e igrejas ur­
mendada s a Stanford, Parry, German e Sullivan. 1 1 ' Pa ralela mente, banas. Em 1 877 e nova mente em 1 897, os sacerdotes que celeb ra ram o
graças ao aperfeiçoamento dos padrões dos corais e orquestras, as pe­ culto do jubileu de Vitória trajavam pluviais e estolas colori das, inova­
ças passaram a ser bem executadas. Os pri nci pais responsávei s por este ção bastante pitoresca. E, assim como no aspecto secular do ritual
desenvolvimento foram Sir George Stainer, organista da Catedra l de rea l, o motivo foi em pa rte um desejo de atrair as classes trabalhado­
São Paulo de 1 872 a 1 888, e Sir Frederi ck Bridge, que ocupou o mes­ ras. Como E. W. Benson, arcebispo de Cantuária, observou após o J u­
mo posto na Abadia de W estminster, de 1 882 a 1 9 1 8 . Sob a firme e efi ­ bileu de Ouro, "dias depois, todos sentem que o movimento socialista
ciente orientação de a mbos, os corais passaram a ser habi lmente exer­ foi controlado" . 1 1 ' Sugestivamente, a s biografias e memórias dos últi­
citados e ensaiados, a entrar em procissão e a portar-se de maneira mos prelados vitorianos e eduardi nos contêm relatos pormenori zados
digna , vestindo sob repelizes. 1 1 ' Em conseqüência, o padrão de desem- de preparativos elaborados para os grandes cerimoniais da realeza -
algo que é visi velmente omitido em livros semelhantes escritos por
seus antecessores ou versando sobre eles. R andall Davidson, em espe­
cial, tornou- se uma autoridade eclesiástica inigua lável em matéria de
1 1 0. Rcp,. Mo1111111e111<JI Wa,hi11gt1111, p. 1 3 1 .
1 1 1. 1- H,rnc,. Til<' l-.'11gli1h .Husical Re11ai.<.<a11ce ( Londres, 1 966), cap. 7-9: Kenned) .
ritual real, parti cipando do J ubileu de Ouro de V itória como deão de
Ralph I lluglum Wil/ia1111. cap. 1 . Windsor, do Jubi leu de Diamante dela, da coroação de Eduardo como
1 1 2. Relato, históricos encont ram-se em Mu<ical Time.<, xix ( 1 878), pp. 1 29-30, 1 96-7. bispo de Winchester, e da coroação de J orge V como arcebispo de
260-2. J 1 5- 1 X. J 79-X 1 . 438-9; 1- . K . H arford. God Sal'e the Queen ( Londres, 1 882); A. C. Cantuária. 1 1 ' Ao mesmo tempo, a própria Abadia de Westminster foi
Bunten, God Save the King: Fac.<imi/es of the Ear/iest Prints of our National Anthen transformada num cenári o mais colorido e digno para o cerimonial
( Londres. 1 902): W. H . Cummings, God Save the King: The Origins and History of the
l\'ati1111al A 111he111 ( Londres, 1 902): S. Bateman, Our li/itera/e National A nthem: A Jacobi­
/e Hy11111 and a Rehei S1111g ( Londres. 1 9 1 1 ). Sobre arranjos corais, veja Quadro 3 do
A pêndice.
1 1 3. Encontram-se relatos detalhados da parte m usical destas duas coroações em Mu­ 1 1 5 . Sir D. Tovey e G . Parratt. Walter Parratt: Ma.<ter of 1he Mu.<ic ( Londres. 194 1 ),
sical Time., . xliii ( 1 902). pp. 387-8, 577-84; lii ( 1 9 1 1 ), pp. 433-7. Veja também: Sir A. C. pp. 90- 1 . 96- 102. 1 1 9. Parratt também foi organista da Capela de S. Jorge, em Windsor.
M acken1ie. A M11.1kia11 ·.,. /\'arrati1·e ( Londres. 1927). p. 1 55: C. L. Graves. Hubert Parrl': de 1 882 até 1 924. e em 1 897 organizou um volume de "Melodias para Canto Coral em
Hi.< Lije and Work. 2 vol. ( Londres. 1 926). ii. pp. 28-3 1 . 56-7; W. H. Scott. Edward G�r­ Honra de Sua M ajestade. a Rainha Vitória", que incluía composições de Stanford,
man: A n /111ima1,· Biography ( Londres, 1 932). pp. 1 52-4; P. M . Young. Sir A rlhur Sulli­ Bridge, Parry e E!gar.
van ( Londres. 1 9 7 1 ). pp. 248, 2 6 1 : H. P. G reene. Charles Villier.< S1anjord ( Londres. 1 1 6. Chadwick, Victorian Church, p. 3 1 1 .
1 935). pp. 223-4. 1 1 7. A . C . Benson, The L1fe of Edi,·ard White Ben.wn, .wmetime A rchbishop of Canter­
bury ( Londres. 1 899), p. 1 33.

,
I Í4. Chadwick, Victorian Church. pp. 385-7: Rainbow. Chorai Reviva/ in lhe A ng/i­
can Church, pp. 286-9; W. Sinclair. Memorial.< o( SI Pau/ '., Cathedral ( Londres, 1 909), 1 1 8. G . K . A . Bell. Randa/1 Davidson: A rchbishop of Canterbury, 3. ed. ( Londres,
pp. 4 1 1 - 1 2: Bridge. Wn1111i11'1t'r Pilgrim, pp. 65-77, 1 72-8. 1 82-6. 222-34. 1 952). pp. 1 1 8- 1 9, 307- 1 1 . 35 1 -7, 367-72, 608- 1 1 , 1 .300- 1 .

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1 42 1 43

grandioso. O órgão foi reconstruído em 1 884 e 1 �94; o coro, remodela­ ções" , na medida em que a rivalidade nacional era expressa e sublima­
do e iluminado a luz elétrica; os coristas ganharam batinas vermelhas da na competição entre os cerimoniais. A experiência inglesa só diferia
em 1 897: e o Lorde Rosebery doou uma nova cruz para o Altar-Mor daquela das outras nações ocidentais sob um aspecto principal: na
em 1 899. ' '" Assim, na coroação de Eduardo V I I , a posição da igreja R ússia. na Alemanha. na Itália, nos Estados Unidos e na Áustria, este
em relação ao ritual h avia m udado consideravelm ente, desde o início flo rescimento do cerimonial concentrou-se num chefe de Estado que
do reinado de V itória. Segundo Jocelyn Perkins, sacristão da Abadia aind a exercia um poder efetivo. Na I nglaterra, porém. embora a
(e também responsável por muitos melhoramento s nela realizados): so mbra cerimonial do poder se projetasse sobre o monarca, sua essên­
cia desviava-se cada vez mais para outra direção.
Nem se cogitava em qualquer coisa que sugerisse, mesmo de longe, esta Anteriormente, estes desenvolvimentos do contexto e circunstân­
esplêndida mescla ... O que era aceito em 1 838 infalivelmente seria rigoro­
samente condenado em 1 902 ... Considerou-se urgente atingir um alto pa­ cias pareceriam uma maneira positiva de explicar as transformações

1
drão de louvor e cerimonial na consagração solene de Eduardo VII.
1 20 na execução e "significado" do ritual. Na época, porém, talvez não
fossem tão propositais como se poderia imaginar. Foi apenas gradual­
E para a l�uém táo favorável à grandiosidade eclesiástica como Per­ mente, à medida que as cerimônias se sucediam, que surgiu esta sinta­
k i ns. o n:�u llado foi um rnmpleto sucesso: xe e linguagem coerentes dos símbolos e significados. Em 1 887, após
De ponta a ponta, o altar resplandeceu com a exibição de salvas de coleta, j cinqüenta anos de reinado, a V iúva de Windsor foi convencida - em­
jarras, cálices . . . A cerimônia ensinou uma lição extremamente necessâria bora ainda relutasse bastante - a participar de uma cerimônia solene
aos ritualistas amadores do século XIX, com seus vasos de encomenda e em Londres. A liás, isto foi a rriscado, pois a recente impopularidade
seus medíocres arranjos florais.'" da Rainha tornava impossível prever que tipo de recepção ela teria. E
sua recusa peremptória de usar a coroa e os trajes de gala só faziam
V dar fundamento a tais previsões. Nem a Princesa A lexandra, que exer­
f: neste contexto consideravelme nte alterado, tanto nacional cia sobre a Rainha mais influência, conseguiu fazer com que ela m u­
quanto internacional, que se deve situar o ritual real mais elaborado e dasse de idéia. ' '" Entretanto, o Jubileu de Ouro, realizado com procis­
mais atraente. Da década de 1 870 em diante, tanto na I nglaterra quan­ são e culto de Ação de G raças na Abadia, foi um enorme sucesso:
to em outros países ocidentais, a posição do chefe de estado foi realça­ "Um esplendor jamais visto por nós . . . A cerimônia solene mais sun­
da por meio do cerimonial. Um monarca venerado, transportado tuosa desta geração" .':' O J ubileu de Diamante, planejado com m ais
numa carruagem real luxuosíssima pelas ruas repletas de monumentos confiança e certeza, dez anos mais tarde, foi ainda mais deslumbrante.
e prédios triunfa is não era apenas, como tinham sido seus antecesso­ A própria Rainha, agradavelmente surpresa, observou:
res, o chefe da sociedade, mas era visto também como o chefe da na­ Creio que ninguém jamais recebeu ovação maior do que a que recebi en­
ção.':: Assim como no restante da Europa, na I nglaterra os progressos quanto percorria estas seis milhas . . . A multidão era indescritível, e seu en­
nunca vistos na indústria e nas relações sociais, e a vasta expansão da tusiasmo realmente maravilhoso e profundamente comovente."•
imprensa marrom. tornou necessário e possível apresentar o monarca,
P osteriormente . veio o funeral da Rainha Vitória, a coroação e o fu­
no esplendor de todo o seu ritual, desta maneira basicamente n ova,
neral de Eduardo V 1 1 . a rnrnaçüo e a recepção na Índia de Jorge V , e
como símbolo de consenso e continuidade que todos deveriam aca­
tar. " ' E. à medida que as relações internacionais iam se tornando mais a investidura de seu filho como Príncipe de Gales no Castelo de Car­
tensas. isto acrescentou um novo incentivo à "invenção das tradi- narvon. Aliás, nesta época, os departamentos de Estado e da· Casa
Real, que eram lamentavelmente ignorantes sobre o passado e o ceri­
monial em 1 887, já se haviam tornado especialistas no assunto. De vez
em quando ocorriam ainda alguns deslizes, como, por exemplo, quan­
1 1 9. Perkins. We.< tmin.<ter Ahher: /u Wor.<hip and Omaments, i, pp. 1 1 2, 1 87, 1 89; ii, do os cavalos dispararam durante os funerais da Rainha V itória. Tais
pp. 1 6- 1 7. 1 1 1 : i i i . pp. 1 63. 1 69. 1 79.
1 20. /hid. ii. p. 1 1 1 . Perkins foi sacristão de Westminster de 1 899 a 1 958.
1 2 1 . Perk ins. Coronation 800/.., pp. 336-7.
1 22 . Veja a carta d o Professor Norman Cohn a o Professor Terencc Ranger, citada por
1 24. Hall iscomhc. Qu<'<'ll A lnall{/ra. p. 1 74.
este último em seu artigo "The l nvention of Tradition in Colonial A frica" (Past and
1 25. ll/11.1 tratnl l.011d1111 ·' "" ' · 25 j u n . I XX7: Longford. Victoria. R. /. , p. 626.
Present Conference Paper. 1 977). p. 85, n. 3 1 . 1 26 Zicglcr. Cr111111 anti Pmple. p. 2J: LongTord. Victoria. R. /. . pp. 685-9 1 .
1 23. Hobsbawm. "lnvcnting Traditions", p. 1 5.
1 44 1 45

acidentes, contudo, raramente ocorriam e, quando aconteciam, eram Ao interesse de Esher pelo ritual real igualava-se o do próprio
imediatamente incorporados à " tradição" . 1 2 1 A combinação de um Eduardo V II. Embora sua mãe não apreciasse tomar parte em cerimô­
planejamento meticuloso, do entusiasmo popular, da ampla divulga ­ nias públicas, detestasse trajes principescos e aparições em público,
ção e de um esplendor inédito obteve êxito. Sugestivamente, embora Eduardo adorava "aparecer a seus súditos vestido com seus atributos
os funerais de Nelson e W ellington tenham sido mais esplêndidos e po­ de soberano" . '" Criticara constantemente a melancólica tristeza da
pulares do que os concedidos aos monarcas do início do século XIX m ãe, e sentira-se amargamente ofendido ao ver como seu p rimo, o
os últimos ritos de V itória e Eduardo foram muito mais deslumbrante� Kaiser, havia suplantado seu esplendor. Assim, depois de tornar-se
que os de Gladstone. 1 2 ' rei, teve duas razões para realçar a grandiosidade da monarquia . Com
Como o sucesso destas cerimônias dependia do aprimoramento a ajuda de Esher, foi incrivelmente bem sucedido. Na verdade, era o
de sua execução, houve principalmente três p essoas extremamente im­ próprio Esher que rendia tributo ao "curioso dom de visualizar uma
portantes. A primeira foi R eginald Brett, V isconde de Esher a emi­ cerimônia", e à "diligência, criatividade e invenção", possuídas p elo
nência parda dos círculos governamentais britânicos na virad� do sé­ seu soberano, dons que, segundo Esher, eram "essenciais, na ausência
culo, amigo de Vitória, Eduardo V II e J orge V, secretário do M inisté­ dos quais a improvisação é impossível" (o grifo é meu). 1 32 Outro corte­
rio de Obras Públicas de 1 895 a 1902, e guardião delegado e vice­ são, captando de modo mais sutil o elemento competitivo no novo ce­
g� ver? ador do Castelo de Windsor, de 1 90 1 a 1 928 . Foi responsável rimonia l. observou, de maneira nitidamente favorável: "Nosso R ei
nao so p � la refor_ma da decoração dos palácios reais e a reorganização ap resenta-se melhor do que Guilherme. Tem mais graça e dignidade.
� os arqui vos reais após a morte de V itória, como também pelo plane­ G uilherme é desajeitado, nervoso e sem graça."' 3 3
Jamento geral de todas as grandes cerimônias de gala, desde o J ubileu Assim, foi perfeitamente natural que um dos primeiros a tos de
de Diamante de Vitória a té o funeral de Eduardo V II. , ,. Em tese, o res­ Eduardo após a coroação fosse restaurar o caráter formal da abertura
ponsável por estas festas era o D uque de Norfolk, Chefe do Cerimo­ solene do Pa rlamento, com cortejo na carruagem real através das ruas
nial p or direito hereditário, Estribeiro- Mor, M ordomo-Mor e Cama­ de Londres. e a leitura de um discurso, feita pelo rei vestido com traj e
reiro- M or da casa real. Entretanto, a simpatia, o tato, a sensibilidade completo e sentado no trono - coisa que Vitória jamais fizera em qua­
h_istórica. � talento para a organização e o amor pelo cerimonial que renta anos. ' " Por ironia, foi a cerimônia fúnebre desse rei, na qual to­
Esher mani festa va lhe valeram a parte do leão. E havia muito o que fa­ mou parte também o onipresente Esher, que se tornou "a solenidade
zer, pois já fazia tanto tempo que não se promovia uma grande festa mais grandiosa de que ele jamais participara". Foi especialmente im­
real que ninguém ma is se lembrava como agir. "A ignorância em rela­ portante a exposição do corpo em W estminster Hall - " novidade que
ção ao passado histórico", observou certa vez Esher, exasperado, "por revelou ser extremamente popular" . Duzentos e cinqüenta mil p es­
pa rte de homens que, para trabalharem, deviam conhecê-lo, é algo de soas, aproximadamente, desfilaram diante do esquife: jamais tantos
estarrecedor." Apesar destes obstáculos, porém, suas cerimônias cui­ populares haviam pessoalmente vindo prestar, um a um, suas últimas
dadosamente ensaiadas e meticulosamente estudadas obtiveram um ê­ homenagens a um monarca britânico. Foi este precedente inédito que,
x ito fenomenal, que lhe valeu " dezenas de cartas elogiosas" enviadas juntamente com o longo cortejo pelas ruas de Londres, o caixão trans­
pela família real e também pelos p olíticos . Vitória, contudo, conti­ portado por uma carreta de artilharia puxada por marinheiros, segui­
nuou achando, fiel à velha a ntipatia pelo antigo p rimeiro-ministro, do do sep ultamento, uma cerimônia particular em W indsor, que com­
que os pr� parativos cuidadosos e discretos conduzidos por Esher para petiu com os funerais de J orge V e V I. ' 31
os funerais solenes de Gladstone, na Abadia de W estminster, cheira­ Enquanto Esher contribuiu com sua experiência e senso de orga­
vam a um " entusiasmo mal endereçado". ' 3º nização. e Eduardo com o apoio e o entusiasmo, as composições de El-

Vi1mu111 1-.·,l1<·r. 4 rnl. ( Londres. 1 934-X). i. pp. 204-7, 2 1 4- 1 7. 33 1 -2. 274-87, 304, 322.:
1 27. Sir 1- . Ponsonhy, Reco/lection.< o/ Three Reign.< ( Londres, 1 95 1 ), pp. 32-3, 83-94, 333. 337: iii. p. 5 .
27 1 -2 . 1 3 1 . Bodley. C,m111ati1111 11/ King Ed..-ard the Seventh, p. 205.
l 2 X . P. Cunnington and S . Lucas. Costume for Births. Marriages and Deaths ( Londres. 1°32. Lorde Esher. Cloud Çapp'd To..-er.< ( Londres, 1 927), pp. 1 82-3.
1 97 1 ). p. 240. 1 33. Citado por J. Elliot in Fa/1 of Eag/es ( Londres, 1 974), p. 1 37.
1 29. P. Fraser. Lord Esher: A Politica/ Biography ( Londres, 1 973), pp. 68-7 1 , 80-3 . 1 34. Lee. King Ed..-ard the Sel'enth, ii. pp. 2 1 -3.
1 30. M . V. Brett e Oliver. Visconde de Esher (org.) Journal.< and Lel/ers of Regina/d. 1 35. lhid. . ii. p. 720.
1 47
1 46

gar elevaram a música cerimonial de mero detalhe efêmero a obra de começou nesta época. pois os fabricantes lucravam c_om � atr�ç �o
arte por si só. A "Marcha Imperial", composta por Elgar em 1897, foi exercida pelo cerimonial real sobre ui:n mercado que Jamais ex1st1ra
o último sucesso do J ubileu de Diamante, transformando o autor a ntes. ' '" Além disso. novas firmas, tais como Rowntree, Cadbury e
n uma celebridade não o ficial da música britânica. Cinco anos depois, Oxo. aproveitavam as festas da realeza para faze� pr_op�ganda de seus
Elgar compôs a "Ode à Coroação", para comemorar a ascensão de produtos . e as autoridades locais_ começaram a drstnburr copos, cane­
Ed uardo VI I ao trono. A pedido do rei, foi incluído o arranjo coral da cas e outros brindes comemorativos. Da mesma forma, cunha�am-se
melodia ampla e sublime da "Pompa e Circunstância n9 I ", que mais mais medalhas comemorativas particulares para ve.nda no J ubrl�u de
tarde correria mu ndo sob o n ome "Terra da Esperança e da Glória". Ouro de Vitória do que nos quatro maiores acontecimentos anteriores
Depois, para a ascensão de Jorge V, veio a " Marcha da Coroação" e a junto s, e a coroação de Eduardo V I I foi novo paraíso para os �un � a­
representação "A Coroa da lndia", para o durbar em Delhi. Tais dores de medalhas. Além disso, em 1 887, cunharam-se pela pnme1r_a
obras. que refletiam o amor sincero que Elgar nutria pelo colorido, vez medalhas comemorativas no estilo das m�dalhas d � camp� n �a re1-
pela solenidade, pela precisão e pelo luxo, constituíam um fundo mar­ tas para serem presas no lado t?sq �erdo do per_to, outra ,mova�!º 1m1_ta­
cial e musical perfeito para as grandes cerimônias reais. ' " Ao mesmo da em todas as coroações e JUbtleus posteriores da epoca. ,:\ s� rm,
tempo. não se deve considerá-las como manifestação da extravagân­ tanto pelas medalhas e canecas, como pela música e pela grandrosrd�­
cia. do orgulho. do convencimento e auto-afirmação eduardina. As de, o último quartel do século X I X foi a "id �de do o �ro" das "tradi­
ções inventadas", na medida em que a atr�çao ex_erc1da pel_a monar­
11
-

grandiosas melodias de Elgar geralmente são fúnebres, melancólicas.


quia sobre as massas populares de uma sociedade i ndustrializada am-
tristonhas. meditativas e introspectivas. Nem mesmo o grandioso
tema pri ncipal de sua primeira sinfonia. gloriosamente enobrecido e pliou-se de uma fo �ma inc� ncebí �el ap� n � s u � a dé��da antes.
tri unfante ao final do último movimento, chega a banir totalmente as Esta ên fase maror no ritual n ao se hm1tou a famtha real. Restau­
forças da dúvida e das trevas, da descon fiança e do desespero, que per­ raram-se cerimoniais veneráveis e decadentes em muitas outras esferas
passam a composição. ' " Porém, embora a delicadeza real de sua músi­ de atividade. Revestiram-se novas instituições com a roupagem des­
ca se perca em meio à expansiva impetuosidade das palavras a ela lumbrante e anacrônica do espetáculo arcaico porém inventado. Em
adaptadas. suas marchas e melodias firmaram-se como acompan ha­ Londres, o Desfile do Prefeito ( Lord M ayor's Show) foi restaurado
mento indispensável de todas as grandes ocasiões reais - e assim tem sob a forma de uma suntuosa solenidade e, nas cidades do interior, os
sido desde então. novos edifícios públicos barrocos e o conceito de civismo mais acen­
tuado evidenciavam também o florescimento dos rituais cívicos. Tam­
Auxiliada pela intensa colaboração pessoal destes três homens, a bém a nova geração de universidades "Redbrick", com estilos arquite­
imagem da monarquia britânica j unto ao público sofreu transforma­ tônicos propositalmente anacrônic� s, reitores aristocrátic? s, ?ecas a � ­
ções radicais n os anos anteriores à I Guerra Mundial, na medida em tigas e formaturas exuberantes, fazra� parte d� um� tende� cra par�cr­
que o cerimonial antigo foi adaptado com sucesso em resposta às mu­ da. ' 4 1 Nas Colônias, o imponente regime do vice-remado mtroduz1do
danças na situação nacional e internacional, inventando-se e acrescen­ por Lorde Dufferin em Ottawa, quando era gov�r�ador-geral do �a­
tando-se um novo cerimonial. Estas mudanças manifestam-se de for­ nadá ( J872-78), lançou um precedente mais tarde 1m1tado na A ustraha,
ma clara na maneira inédita em que tais ocasiões reais erarn comercial­
mente exploradas. Embora não disponhamos de números precisos, é
óbvio que a produção em grande escala de louça comemorativa real
I 39. M ay. Commemoratil'<' Potterr. pp. 73-4; D. Seekers. Popular Staffordshire Potterr
( Londres. 1 977). pp. 30- 1 . . . .
1 40 A Casa da M oeda Real também cun hou medalhas ofic1a1s - outra novidade - em
I XX7. 1 897. 1 902 e 1 9 1 1 . Veja Rodgers. Coronation Souvenirs. pp. 38-4 1 ;_ Edmun � on.
1 36. 1 . Parrott. Ei,(.'ar ( Londres. 1 9 7 1 ). pp. 7. 1 X. 65; P. M . Y oung. Elgar. O. M.: A Stu­ Col/ecting Modem Commemorative Meda!.<. pp. 54-6 1 ; H. N. _Cole. C� ronatum and C 0111-
dr of a Mwicia11 ( Londres. 1 955). pp. 79. 97. 222. 288. memoration Meda/.,·. /flfll-1 953 (Aldershot. 1 953). p. 5. VeJa lambem o Quadro 2 do
1 -3 7. Sobre esta interpretação de Elgar. veja A. J. Sheldon. Edward Elgar ( Londres. Apêndice.
1 932). pp. 1 6. JJ. 48; C. Lambert. Music Ho.'. 3. ed. ( Londres. 1 966). p. 240; D. M . .
1 4 1 . D. Cannadi ne. "From ' Feudal' Lords to Figureheads: U rban Landownersh1p
McVeagh. Ed,.·ard Elgar: Hi., Li/e and Mufic ( Londres. 1 955 ). p. 1 8 1 ; B. M ame. E/gar: and Aristocratic l n íl uence in N ineteenth-Century Towns", Urban History Yearbook . v
Ili., Life and Workl ( Londres. 1 933). ii. pp. 1 96-7. 297-300. ( 1 978). pp. 26-7. 3 1 -2: M . Sanderson. The Universities and British lndu<try. lfl50-!970
I JX. Encontra-se uma apresentação mais eloqüente desta interpretação in M. Kenne­

________________________.........__....................................................
( Londres. 1 972). p. 8 1 .
d� . Portrait of E/,(.'ar ( Londres. 1 968). pp. 1 32-53. 202-9.

•1


1 48 1 49

N ova Zelândia e África do Sul. "2 E na ln dia, os três durbars em Delhi com o também em termos de sua imparcialidade pública. Até seus di­
( 1 877, 1 902 e 1 9 1 1 ) constituíram o ponto alto do lado público - embo­ rei tos de ser consultado, de alertar e de dar apoio foram relativamente
ra não do poder particular - do Domínio Imperial. Ao mesmo tempo, dim in uídos. Em 1 940, ele teria preferido Halifax como primeiro­
o sistema de honrarias foi bastante ampliado, com a criação das Or­ min istro, em 1 945 lamentou a saída de Churchill. Porém, em nenhuma
dens Indianas, da R eal Ordem Vitoriana, as Ordens do Mérito e dos das duas ocasiões teve poder para influenciar os acontecimentos. 1 '6
Companheiros da H onra, e restauraram-se as solenes cerimônias de Com pletara-se a evolução da monarquia constitucional.
posse entre os Cavaleiros da Ordem da Jarreteira e da Ordem do Ba­
Houve, portanto, uma evolução direta da i mpotência à suntuosi­

'
nho. 1 4 3 Em suma, a imagem pública enfatizada e ritualizada da m onar­
quia britânica foi apenas um exemplo de uma proliferação mais geral dade, passando pelas fases do distanciamento e da veneração, e corro­
de cerimonial inédito ou restaurado durante este período, que caracte­ borada pela excelente reputação pessoal dos monarcas. Especialmente
rizou a vida pública inglesa, européia e americana, não só a nível de Jorge V, aliando a honradez particular de sua avó à suntuosidade
chefes de estado, como também de uma maneira mais difundida. pública de seu pai, criou uma síntese que foi imitada por seus dois su­
cessores em seus longos reinados. 1 '' Por um lado, como seu pai ele
VI comparecia assiduamente aos rituais públicos e tinha obsessão por
coisas como o traje correto e a maneira de colocar as condecorações;
Durante o terceiro período, de 1 9 1 4 a 1 953, o contexto modifica­ ao mesmo tempo, sua vida particular combinava a despretensiosidade
se profundamente outra vez, de m aneira que o ritual d a mo � a �quia do homem do interior com a respeitabilidade da classe média. 1 48 Tal­
_
britânica deixou de ser simplesmente um aspecto de uma mvent1v1dade vez acidentalmente, mas decerto com grande êxito, J orge V conseguiu
competitiva geral, tornando-se uma expressão peculiar de continuida­ ser ao mesmo tempo majestoso e doméstico, uma figura paterna para
de num período de mudanças inusitadas. Para começar, a fórmula de todo o Império, embora também por si só fosse o chefe de uma família
fins da era vitoriana e eduardina, baseada numa monarquia de gran­ com a qual todos podiam identificar-se. (Por sinal, Eduardo V I I I des­
des cerimoniais e de i mparcialidade política repetiu-se de uma m aneira prezou ambos os elementos da síntese jorgiana, descuidando comple­
ainda mais estritamente constitucional. O poder limitado exercido por tamente do cerimonial, e levando uma vida particular escandalosa e
Eduardo V I I foi ainda mais diminuído durante os reinados de seus três movimentada. ) 1 '" Jo rge VI . ao contrário, adotou este nome de propósi­
sucessores. Embora, por exemplo, Jorge V fosse obrigado a tomar par­ to, para frisar o retorno ao estilo de seu pai. Aliás, quando ele subiu ao
te na crise constitucional herdada na sua ascensão, na escolha de um trono, Baldwin observou que ele i ria "conquistar a afeição do povo
primeiro-ministro conservador em 1 923, e na formação do Governo porque parece mais com o pai em matéria de pensamento e personali­
N acional, em 1 93 1 , e embora pessoalmente preferisse os Conservado­ dade do que qualquer de seus i rmãos" . 11º Mais uma vez o monarca
res, ele manteve em seus deveres públicos e constitucionais uma corre­ cumpria religiosamente seus deveres cerimoniais e públicos, enquanto
ção e uma imparcialidade escrupulosas. 1 " Foi uma figura de proa da levava uma vida doméstica completamente oposta à do irmão mais ve­
política, refletindo apropriadamente sua posição de figura de proa do lho. 1 1 1 Como o pai, possuía as qualidades da "coragem, perseverança,
cerimonial, e realizando a profecia de um radical, feita em 1 9 1 3 , de bondade e dedicação": foi o homem que venceu sua gagueira e recu-
que "na Inglaterra o rei faz o que o povo quer. O rei será socialista". 1 '1
A abdicação de Eduardo V I I I foi mais uma prova conclusiva de que
era o Parlamento que escolhia e rejeitava os reis, e Jorge VI era filho
de seu pai, não só em termos de preferência pelos Conservadores, 146. Wheeler-Bennett, /<. ing George VI. pp. 636-7, 649-50; Longford, House of Wind­
sor. p. 9 1 .
147. J . A . Thompson e A . M ej ia J r., The Modem British Monarchy ( Nova Iorque,
1 97 1 ). p. 38.
1 42. R. 1 1 . Hu hhard. Ridl'au Hall: fo 11/u.<trated Hi.<torr o/ Gm·ernmem House. 011a­ 148. Longford. House of Windsor, p. 63.
" ª· fm111 1 ·,ctoria11 Ti111n to thl' PreH'III Oar ( Londres. 1 977). pp. 20-38. 149. Thompson e M ejia. op. cit. , pp. 73, 79.
1 4.l . Sir 1 . de la Bere. Tlw Qu<'m\ Orden o{ Chi1•alrr ( Londres. 1 964). pp. 1 29, 1 43, 1 50. Citado por R. Lacey. Majesty: Elizabeth li and the House of Windsor (Londres,
1 44. 1 49. 1 1,x. 1 7 1 . 1 77. l 7X: Perk ins. W1'.<l111i11s1er Ahher: Jts Wonhip and Ornamenis. ii. 1 977), p. 109.
r 202 1 5 1 . Sobre a iconografia da família real no século XX, vej a: R. Strong, "The Royal
1 45. Citado por J. A. Thompson in " Labour and the Modem British Monarchy", I rnage·· in M ontgornery- Massingberd (org .) , Burke 's Cuide to the British Monarchr.
.\0111/, l 1/11111i, Q uarrcrh-. l x \ ( 1 97 1 ) . p. 34 1 . p. 1 1 2 .

________ __________....._________________________J
150 15 1

sou-se terminantemente a sair de Londres durante a II Grande Guer­ da abdicação, nenhum jornal londrino quis aceitá-la. 111 O editores e re­
ra. 11 2 Seu pai era "Jorge, o Bem Amado"; ele foi "Jorge, o Fiel". pórteres, assim como os caricaturistas, continuaram guardando res­
Sob tais circunstâncias, a monarquia, particularmente em oca­ peito, como se percebia claramente pelo acordo entre os proprietá�ios
siões solenes, cerimoniais, representava o consenso, a estabilidade e a dos meios de comunicação. Da mesma forma, as fotografias dos Jor­
comunidade. Aliás, os grandes rituais da realeza, o cerimonial do Dia nais, assim como os documentários filmados, eram cuidadosamente
do Armistício e o cada vez mais difundido culto natalino (aconteci­ montados. Após a coroação de Jorge V I, o chefe do cerimonial e o Ar­
mentos nos quais a família real sempre tomava parte) eram as três cebispo de Cantuária tinham poderes para revisar "qualquer matéria
maiores celebrações de consenso, nas quais a família real, as famílias que fosse considerada inadequada para exposição ao público em ge­
individuais e a família nacional estavam todas reunidas. Durante os ral". Da mesma maneira, em 1948, quando Harold Nicholson foi con­
anos de 19 14- 1953, a Grã-Bretanha experimentou uma série de mu­ vidado para escrever sobre a vida pública de Jorge V, recebeu reco­
danças internas, com proporções que superaram em muito as ocorri­ mendações explícitas no sentido de "omitir coisas e incidentes que fe­
das anteriormente. Entre 19 10 e 1928, a Grã-Bretanha evoluiu de país rissem a reputação da família real". ' 'º
com mais restrições ao direito de voto na Europa a um país com sufrá­ Contudo, o melhoramento mais importante desta época foi o ad­
gio universal para os cidadãos maiores, medida temida por ser o mes­ vento da 8. 8.C., que foi de profunda importância para a transmissão
mo que "munir um proletariado faminto e desgastado pela guerra de da dupla imagem da monarquia, construída de forma muito bem suce­
uma enorme preponderância no poder de voto". ' " O Partido Liberal dida por Jorge V. Por um lado, as transmissões de Natal, instituídas
perdeu o segundo lugar para o Partido Trabalhista e, especialmente em 1932 e imediatamente adotadas como "tradicionais", enfatizavam
após a 1 1 Guerra, a decadência das grandes famílias aristocráticas fez a imagem do monarca como pai de seu povo, que falava a seus súditos
com que a Coroa fosse se isolando cada vez mais na sociedade londri­ no conforto e na privacidade de seus próprios lares. 11 ' Jorge V foi um
na. A Greve Geral e a Grande Depressão acarretaram animosidade e radialista tão bem sucedido, que seu segundo filho, embora sofresse de
agitação de proporções inauditas, assim como as duas guerras mun­ gagueira, foi obrigado a dar continuidade à "tradição". Ao mesmo
diais. Em conseqüência, apresentou-se uma monarquia politicamente tempo, o primeiro diretor geral da 8. 8.C., Sir John Reith, também en­
neutra e pessoalmente exemplar, que logrou um êxito tremendo, cons­ tusiasta romântico do cerimonial e da monarquia, reconheceu rapida­
tituindo-o o "ponto estável de convergência de uma época perturba­ mente o poder do novo meio de transmitir um sentido de participação
dora", e tendo como traço mais efetivo a suntuosidade cerimonial no cerimonial jamais atingido antes. 118 Assim, desde a época do casa­
contida, e anacrônica. 1 1• mento do Duque de York em 1923, as "solenidades radiofônicas" tor­
Em parte isto era facilitado pela eterna subserviência dos meios naram-se típicas dos programas da 8. 8.C., na medida em que todas as
de comunicação, que continuavam a relatar as grandes cerimônias go­ grandes ocasiões reais eram transmitidas ao vivo pelo rádio, por mi­
vernamentais de uma forma discreta e respeitosa. Aliás, não era possí­ crofones dispostos de maneira a permitir que os ouvintes distinguis­
vel tratar de maneira diferente uma instituição que combinava a neu­ sem os sons dos sinos, dos cavalos, das carruagens e dos aplausos. De
tralidade política e a integridade pessoal: nada havia a ser criticado ou uma forma bastante realista, foi este desenvolvimento técnico que tor­
caricaturado. à maneira de Rowlandson e Gillray. De Partridge a nou possível a apresentação satisfatória dos cerimoniais da realeza
Shepherd e deste a Illingworth, as caricaturas sobre a família real li­ como acontecimentos nacionais e familiares, em que todos podiam to­
mitavam-se a quadros parabenizando a família real por viagens impe­ mar parte. E, conforme se pode constatar pelos dados da Mass Obser-
riais bem sucedidas. saudando a Casa de Windsor, ou lamentando a
morte de um soberano. Ê interessante notar que quando Low tentou
publicar em 1936 uma caricatura que criticava a monarquia na época firmar a regra. Em 1 937, Tom Driberg, então repórter do Daily Express, relatou a co­
roação num tom agressivo se comparado à "silenciosa admiração considerada apropria­
da pela maioria da imprensa'"; isso provocou "revolta e indignação'· entre os leitores.
Veja: T. Driberg, Ruling Passions (Nova Iorque, 1 978), pp. 1 07-9. A onda de livros co­
1 52. Ziegler. Crown and Peop/e, pp. 76-7. memorativos e autobiográficos continuou firme durante este período.
1 53 . Wheeler-Bennett, King George VI, p. 1 60. 1 56. Lacey. Majesty, p. 333; Jennings and M adge, May the Twelfth, p. 16.
1 54. Longford, House of Windsor, p. 9 1 . 1 57. Ziegler, Crown and People. p. 3 1 ; N icolson, King George the Fifth, pp. 670- 1 .
1 55 . "". alker, Daily Sketches, p p . 1 3, 2 3 , 1 26-7; Wynn Jones, Cartoon History of the 1 58 . A . Boyle, Only the Wind Wi/1 Listen: Reith ofthe 8.8.C. (Londres, 1 972), pp. 1 8 .
Mona. . 1y, pp. 1 32, 1 57-64. 1 74-9. Houve, naturalmente, exceções que tenderam a con- 1 6 1 , 28 1 .
1 52 1 53

vation, isso realmente ocorria: as transmissões radiofônicas das festas por minuto de atraso ou de adiantamento no cerimonial, e perdeu ape­
reais sempre alcançavam recordes de audiência. 1 5 9 nas cinco libras. 1 6 1 Nesta cerimônia, Norfolk foi auxiliado pelo Arce­
A combinaçã o da inovação dos meios de comunicação de massa e bispo de Cantuária, Cosmo Gordon Lang, classifi cado de "ator nato"
o anacronismo do cerimonial tornaram o ritual real ao mesmo tempo por H ensley H enson, e descrito por seu biógrafo como alguém que
consolador e popular numa época de transformações. Agora, o modo "dav a importância aos mínimos detalhes de uma ocasião que exigia
de apresentação dos monarcas, já incomum e suntuoso na época ante­ toda a teatralização e pompa que, para ele, traziam uma impressão
rior, tornou-se positivamente fantástico. Na coroação de J orge V I, por m uito forte de sentimento religioso" . Assim como Norfolk, o Arcebis­
exemplo, até a maioria dos pares veio de carro. H enry Chan� on, q_ue po pensava em termos da "linguagem teatral" , e foram estes represen­
tinha uma visã o infalível em matéria de detalhes e de romantismo, in­ tantes da Igrej a e do Estado que dominaram os três comitês e supervi­
formou que apenas três vieram de carrua� em. Ali�� · nesta época .ª sionaram os oito ensaios preparatórios para a coroação."' Além disso.
1 60

sociedade puxada a cavalo de meados do seculo XIX J a estava esqueci- nesta época, principalmente em conseqüência do trabalho do D eão
da há tanto tempo, que os garis que limpavam as fezes dos cavalos
após o préstito principal recebiam os aplausos mais intensos do dia.
161

impo-
fI Ryle e do sacristão J ocely n Perkins, a própria Abadia de W estminster
já era um cenário mais adequado para o cerimonial. O coro foi refor­
No mundo do aeroplano, dos tanques e da bomba atômica, a ij mado, as cadeiras revestidas com folha de ouro; os sinos foram recolo­
nê ncia anacrônica dos cavalos, das carruagens, das espadas e chapéus cados nos campanários, e voltaram as procissões com estandartes e
de pluma realçava-se ainda mais. Conforme observou um livro de car­ pluviais. Al iás, durante o decanato de Ryle ( 1 9 14-25), foram celebra­
ruagens de 1948, nem mesmo as grandes famílias usavam mais carrua- dos nada menos de oitenta e seis cultos especiais, inclusive o sepulta­
gens de luxo. Elas agora eram apenas "veículos exclusivamente para mento do Soldado D esconhecido. O " desenvolvimento da grandiosi­
cerimonial, vagarosos, como a Carruagem Real, lavrada e folheada .ª dade e do colorido dos cultos da Abadia" significava que as exigências
ouro. a ca rruagem do Prefeito de Londres e a carruagem do Presi­ extras do grande cerimonial real podiam ser atendidas com uma tran­
dente da Assembléia·· . raram ente utiliLadas. Aliás. na época da coroa- qüilidade, experiência e destreza jamais vistas. ' 65
ção de Elizabeth, nem mesmo a casa real dispunha de carruage� s sufi­ Da mesma forma, quanto à música, as inovações do período ante­
cientes para acomodar todos os nobres e chefes de E stado convidado�; rior foram consolidadas e ampliadas. Em 1924, ao morrer Parrat, o
foi necessário pedir emprestadas sete carruagens de uma companhia próprio Elgar foi indicado para o cargo de Mestre do King's Music.
cinematog rática. 1 • 2 tendo sido o primeiro compositor de proj eção a ocupar a posição em
A avançada organização envolvida na aquisição _ des! as car� u.a­ m ais de um século, o que constituía evidente reconhecimento da im­
gens extras constituía prova de que a tradição de profic1ênc1a ad� 1m s­ portâ ncia de sua música no ritual real. ' 66 Posteriormente, o posto con­
t ra t i \ ; 1 i n iciada rlir Lsher foi man tida de manei ra integral. O d ec1mo tinuou a ser ocupado por compositores de prestígio, e o titular fi cava
sexto Duque de Norfolk, Chefe H ereditário do Cerimonial, emhora ti­ com o controle dos arranj os musicais das cerimônias. Na época da in­
vesse apenas vinte e nove anos na época da coroação de J orge V 1, logo dicação de Elgar, ele já não era tão criativo como antes, não produzin­
adquiriu uma reputaçã o de ser pontual, bom _animador e dotado d� t�­ do mais nenhuma grande obra de música popular. Outros composito-
lentos teatrais comparáveis aos de E sher. Ahás, em 1 969 , ano do ulti­
mo grande cerimonial por ele conduzido, a investidura do Príncipe de
Gales ele completou 40 anos de experiência no ritual real. Na coroa­
ção d� 1 937, ele estava preparado para pagar a um colega uma libra 1 63. lbid.. p. 39.
1 64. H . Henson. Retro.,{lec t o{ an Unimportant L1fe. 3 vol . ( Londres. 1 942-50).
i. pp.
380-5: J. G. Lockhart . Cfümo Gordon Lang ( Londres. 1 949), pp. 408-23.
1 65 . P� rkins. U e11111i1111er Ahhe , ._ ll.1 Serricn a11d OrnamenH. i. pp. 1 1 3- 1 7. 1 93-4:
ii.
p . 207: 1 1 1 . pp. 1 80-7: M . H . Fillgerald . A Memoir of Herbert E . R
1 59 . J. e \\ . Rei1h. "1111 the Wi11d ( Londres. 1 949). pp. 94. 1 68-9. 22 1 , 238-4 1 , 279-82; rle (Londres, 1 928).
PP· 290-2. 307- 1 0: L. E. Tanner. Recol/ections of a Westminster À ntiquari· ( Londres.
A. Biggs. 7111' Jli\/11rr 11! Broadcusti11g i11 the l '11ited Kingdom. 4 vol. até agora (Oxforde e 1 969). pp. 65-8. 1 44-52.
Londres. 1 96 1 -79). i. pp.290- 1 : ii. pp. 1 1 . K I . I Q0- 1 . 1 1 2- 1 3. 1 57. 266. 272. 396, 505. 1 66. Desde 1 924. os titulares foram: Sir Edward Elgar ( 1 924-34),
º º
1 60. R. R hodes J ames (org.). ' Chi{ls ': The Diaries of Sir Henry Channon (Londres, Sir Walford Davies
( 1 934-4 1 ). S,r Arnold B.rx ( 1 94 1 -52), Sir A rthur Bliss ( 1 953-75), M afcolm Williamson
1 967). p. 1 23. ( 1 975- ). Veja Blom. Grove·., Dicrionary of MuJic and Musicians, v, p. 627. Sobre o
1 6 1 . Jennings e M adge, May the Twelfth, pp. 1 1 2, 1 20. trabalho de um determ inado titular. veja: H . C. Coles, Walford
1 62 . H. McCansland. The Eng/ish Carriage ( Londres, 1 948), p. 85; C. Frost, Corona­ Davin: A Biograph r
(Londres. 1 942). pp. 1 57-6 1 .
tion: June 2 / 953 ( Londres. 1 978), pp. 57-8.
1 54 1 55

res, porém, o substituíram, dando prosseguimento à nova tradição se­ cerimônias semelhantes em Moscou, Berlim, Viena e Roma, a obser­
gundo a qual cada grande ocasião devia ser também um festival de vação do comentarista seria. evidentemente, mentirosa. A sobrevivên­
música britânica contemporânea. 167 Bax, Bliss, Holst, Bantock, Wal­ cia, _ por si s�. havia Pornado vene�ável numa era de transformações
ton e Vaughan Williams compuseram músicas especialmente enco­ aquilo que ha pouco tempo era novidade numa era competitiva. Percy
mendadas para as coroações de Jorge V I e Elizabeth II. Aliás, as duas Schramm, em sua História da Coroação, defendia a mesma idéia com
maior exuberância retórica: '
marcha� da coroação de Walton. "A Coroa Imperial" ( 1 937) e "A Es­
fera e o Cetro" ( 1 95 3), rivalizavam com as composições do próprio El­ Tud? em Westminster permanece inalterado, ao passo que Aachen e
gar, não só em riqueza melódica e orquestral, como também devido ao Rhe1ms estão desertas. Já não há mais um lmperator Romanorum. Até
fato de que ambas tornaram-se peças normalmente executadas em mesmo os Habsburgos e Hohenzollerns tiveram que declinar de seus títu­
concertos. 1 6' los imperiais, e a Coroa, cetro e vestidos do antigo tesouro imperial trans­
formaram-se em peças de museu. Na França, n ão restou nem mesmo esta
Tais progressos no contexto nacional do ritual da realeza fizeram­ lembrança do passado . . . Se olharmos com atenção à nossa volta, veremos
se acompanhar por transformações ainda maiores na esfera interna- em toda parte velhas tradições reais serem atiradas no monturo. Raro é o
cional. No período anterior, as cerimônias britânicas, embora bastan- � pa.ís que logr? u �daptar por muito tempo suas tradições medievais para
te aperfeiçoadas em meados e no fim da Era Vitoriana, eram seme- 1. evitar sua aniquilaçao ou deturpação. Com efeito, um dos sintomas de
lhantes às grandes festas dos outros países. N esta terceira fase, porém, nossa época .é que os países, no gozo de poderes recém-surgidos, criam
elas deixaram de ser apenas uma instância de inventividade competiti- uma forma mte1ramente nova de Estado, e conscientemente deixam O
va, para tornarem-se únicas, por desistência dos outros competidores. pa.ssado de .lado. Em meio a tais cenas de construção e destruição, já não
Durante o reinado de Jorge V, a maioria das grandes dinastias reais foi existem mais 1 :mbranças do passado nem símbolos do presente, exceto a
substituída por regimes republicanos. Em 1 9 1 0, o imperador alemão, Catedral de Sao Pedro, em Roma, e o coro do Rei Eduardo em West­
oito reis e cinco príncipes coroados compareceram aos funerais de minster. ' ' '
Eduardo VII como representantes de seus respectivos países. Entre­ O co n t raste e n t re a d a r t ação e reco nst r ução não era arenas metafó­
tanto, durante o próximo quarto de século, "o mundo testemunhou o rico: va l i a ra ra as co n s tit uições ta nto q uanto rara as cidades . Em­
desaparecimento de cinco imperadores, oito reis e dezoito dinastias bora a reconstrução de Londres já estivesse completa bem antes da I
menores - um dos mais importantes desmoronamentos políticos da Guerra Mundial, as capitais de outros poderes novos ou recentemente
História". E, novamente, ao cabo da II Guerra Mundial, as dinas-
1
••
afirma?os estavam constantemente sendo reconstruídas, para melhor
tias italianas e iugoslavas haviam sido subjugadas, e o imperador japo-
nês estava desmoralizado. N este contexto internacional incrivelmente �raduz1r a grandeza nacional. Na Itália, por exemplo, Mussolini dese­
Java que Roma "parecesse maravilhosa aos olhos do mundo - vasta
modificado, o ritual da monarquia britânica podia ser apresentado pacífica. poderosa como na época do Império de Augusto", e o Plano-'
como manifestação sui generis de uma tradição longa e duradoura, de Mestr� de 1 93 1 tinha com<:' pri�cipal objetivo a criação de uma capital
uma forma que antes jamais seria possível. grandiosa e monumental, mclumdo a construção da Piazza Venezia e
Em 1 937, por exemplo, um comentarista da próxima coroação as grandes e monumentais estradas de acesso da cidade como a Via
observou que "uma coroação inglesa é uma cerimônia diferente de to­ I?ell'.Imperio, que levava ao Coliseu. 1 7 2 Também na Alem;nha os edifí­
das as outras: com efeito, não existe no mundo espetáculo mais im­ cios imensos, monumentais e descomunais do Terceiro Reich resulta­
pressionante, mais admirável"."º Já então, tais palavras eram verda­ do da colaboração entre Hitler e Albert Speer, refletiam um 'objetivo
deiras. Apenas vinte e cinco anos antes, quando ainda se encontravam s�melhante. A Casa da Arte Alemã, a Chancelaria de Berlim e os edifí­
.
�10s e areas de desfile de Nuremberg, e os planos posteriores e não rea­
lizados de construção de vias e arcos comemorativos em Berlim, refle-
1 67. Sohre a música executada nas coroações de Jorge V I e Elizabeth I I . veja Musical
Times. lxxviii ( 1 937). pp. 320. 497: xciv ( 1 953), pp. 305-6.
1 68 . 1. H olst. The Mu.<ic of Gusta,· Holst. 2.ed. (Londres, 1 968), pp. 46. 1 62; C. Scott­
Sutherland. A rnold Bax ( Londres. 1 973). pp. 1 8 1 -2: S. Pakenham. Ralph Vaughan 1 7 1 Schrn mm. History of the Eng/ish Coronation, pp. 1 04-5.
Williams: A Discovery of his Music ( Londres. 1 957), pp. 1 1 8. 1 64-5; F. Howes, The Mu­ l 72 . Fned. Planmng the Eternal City, pp. 3 1 -3: E. R. Tannenbaum, Fascism in lta/y ·
.
<ic o/ William Walton. 2.ed. ( Londres, 1 974). pp. 1 1 9-2 1 . Society and Culture. t 922-1 945 ( Londres, 1 973), p. 3 1 4; S. Kostof. "The Emperor and
lhe Duce: the Planning .
1 69. N icolson. King George the Fifrh. p. 1 54. . of Piazzale A ugusto Impera/ore in Rome". in Millon and
1 70. W. J. Passi ngham. A Hi.<torr of the Coronation ( Londres, 1 937). p. vii. No�hlin (org. ) . A rt and A rchitecture in thl' Senice of Politic.<, pp. 270-325.
1 56 1 57

tiam a crença eterna de Hitler de que uma civilização era avaliada pe­ ritos das diferentes cidades, Londres tem, sem d úvida, um direito quase
los g randes ed i fícios que dela restassem. Este neoclassicismo inova­
1 que inconteste de ser considerada a capital mais bela do mundo."'
''

dor não se limitou às potências fascistas. Em Moscou, a construção da Tanto em matéria de construção, q uanto de medidas constitucio­
Praça Vermelha para servir de centro de cerimoniais pode ser conside- nais a sobrevivência tornou venerável numa era de transformações
rada parte de uma expressão semelhante, �ssim como foi � i�pone�te aquÚo que recentemente fora novo n u ma era de c?mpetições. .
(e não realizado) plano do Palácio dos Sovietes, n um pro d 1g1oso �stilo i.·.
Tais contrastes refletem-se exatamente no propno cerimonial .
neoclássico. Em W ashington, o término do Lincoln M em orial, a
1
'"
Tanto na Itália como na R ú ssia, a n ova ordem política trouxe consigo
construção do M onumento a Jefferson na Ponte A rlington, assim formas histéricas, emotivas e tecnologicamente sofisticadas de cerimo­
como de um aglomerado de edifícios administrativos na Avenida da nial, a própria antítese das que prevaleciam na Inglaterra. Na Alema­
Constituição dem onstraram a força da mesma influência exercida do nha, em particular, o uso dos tanques, aviões e holofotes subenten­
outro lado do Atlântico . ' '' diam um compromisso com a tecnologia e uma impaciência com um
Porém , tanto em matéria de edifícios quanto de medidas constitu­ anacronismo absurdo, com carruagens de luxo e espadas cerimoniais.
cionais Londres foi uma vez mais uma exceção. Enquanto outros paí­ Em vez de se enfileirar pelas ruas, alegres mas ordeiros, como os lon­
ses co�pletavam ou reconstruíam os teatros em q ue a elite governa�te drinos, um quarto de milhão de alemães participava anualmente dos
apresentava seus espetáculos, em Londres o palco .ficou quase que in­ comícios de N uremberg, onde escutavam com "entusiasmo arrebata­
teiramente inalterado após a inauguração do conJ unto composto do dor" o "em ocionalismo desenfreado" da oratória de Hitler. A recita­
Palácio de Buckingham e do Arco do Almirantado. N os anos de entre­ ção sem ilitúrgica e o intercâ m bio entre orador e assistência: a manei­
guerras. apenas o County Hall veio reunir-se ao �ú�e�o. dos grandes ra pela qual as palavras pareciam brotar do corpo d? Führer; o est�do
edifícios públicos, embora sua construção tenha sido 1mc1ada antes de
de exaustão quase sexual a q ue chegava após seus discursos: tudo isto
1 9 1 4. A t é o Cenotaph. com todas as suas conotações simbólicas, foi contrastava bastante com a "dignidade inatacável" de Jorge V e sua
um acrésci mo relativamente insignificante à herança arquitetônica de
Rainha. 1

Londres. Assim, edifícios q ue eram novidade em 1 9 1 0 tornaram-se,


"

Não importa o quanto o ritual fascista (e a arquitetura) tenha


diante da competição arquitetônica em outras capitais, veneráveis em sido mais tarde considerado retrógrado e pouco original; na época,
apenas duas décadas. Os londrinos, ao invés de aceitarem �resu nçosa­ aquela histeria estridente é q ue foi n otada na Inglaterra, e comparada
mente o caos, como n a primeira fase, ou procurarem tardiamente al­ com o tradicionalismo mais evidente da monarquia. Conforme disse
cançar e superar seus com petidores. como na segunda, passaran_i a en­ Bronislaw Malinowski, na época da coroação de Jorge V I , os ditado­
carar sua cidade como a capital mais estável em termos de arquitetura res
- estabilidade física que refletia adequadamente a estabilidade de sua
política. Segundo Harold Clunn, que levantou as m udanças ocorridas criam rapidamente, de todo tipo de sobras mal organizadas, seu próprio
entre 1 897 e 1 9 14, ritual e simbolismo, suas próprias mitologias, e seus próprios credos reli­
giosos e até mesmo mágicos. Um deles transforma-se na encarnação da
considerando-se os enormes melhoramentos efetuados em todo o centro Divindade Ariana; os outros, clamorosamente, colocam-lhe na cabeça os
de Londres . . . , parece q ue a Londres de hoje provavelmente supera Paris louros dos antigos imperadores romanos . . . Interpretam-se-lhe ao redor a
em imponência. Embora variem imensamente as opiniões quanto aos mé- ponrpa e o ritual, a lenda e as cerimônias mágicas com um brilho 9ue ch�­
ga a ofuscar as instituições estabelecidas e históricas da monarquia tradt­
cional. ' "
1 73. A, Speer, /n.1ide the Third Reich ( Nova Iorque. 1 970). cap. 5, 6, 1 0. 1 1 ; B. M . La­
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27,
1

1 58 1 59

É natural que, na medida em que as tradições da monarquia britâ­ ter" . "' E a coroação de sua filha foi encarada de um ponto de vista
igualmente amplo. Segundo Philip Ziegler:
nica relaci onavam-se ao ritual, elas de certo modo fossem "estabele­
cidas" e "históricas"; só podiam ser descritas desta forma quando O Império estava de fato desmoronando, mas a Comunidade Britânica
comparadas com rituais recentes que com elas rivalizavam. Só que no ainda parecia ser uma poderosa realidade. Ligados pela monarquia co­
período de entreguerras as coisas eram vistas exatamente desta manei­ mum, cresceriam em força e coesão. A Grã-Bretanha, ainda bravamente
ra. Em 1936, por exemplo, o New Statesman comparou "o cálido e pa­ atracada aos arreios de um grande poder, conquistaria outra vez seu devi­
do lugar entre as nações do mundo."'"
ternal senso comum da transmissão natalina" feita pelo Rei, ao oficial
nazista que terminou "pedindo à audiência que o acompanhasse na Aliás. é neste contexto que as próprias palavras de Elizabeth devem
,audação nazista de Natal ao seu líder - Hei/ Hitler" . Ou, corno entrar: " Estou certa de que esta, a minha Coroação, não é um símbolo
Kingsley Martin afirmou de forma ainda mais enérgica no mesmo do poder e esplendor ultrapassados, mas urna declaração de nossas es­
ano, "Se nós atirarmos os adornos da monarquia na sarjeta . . . , a Ale­ peranças no futuro." ' "
manha nos ensinou que qualquer pivete os recuperará. " ' '"
Nestas circunstânci as diversas e desorientadoras, tanto no âmbito VII
nacional quanto no internacional, a atração do Império e a associação .,.-,,
Sob estas circunstâncias, o "significado" d o ritual real fo i ainda
da Coroa a ele por intermédio do cerimonial, apenas aumentaram - mais desenvolvido e ampliado. Sem dúvida, o poder político e o en­
em parte para desviar a atenção do público de problemas internos, e canto pessoal do monarca, a posição dos meios de comunicação, o ce­
por outro lado para expressar a idéia reconfortante de que num mun­ nário londrino e o estado da tecnologia, fatores profundamente trans­
do onde novamente competiam grandes potências, a Grã-Bretanha e formados durante o período anterior, permaneceram inalterados.
seu Império continuavam na dianteira. O tratado da Irlanda, a inde­ Corno antes. o mona rca era o pai de seu poyo e o patriarca do Impé­
pendência do Egito, o fim da soberania britânica na lndia e a separa­ rio, e o cerimonial real era tão esplêndido e feliz quanto no tempo de
ção da Irlanda e da Birmânia podem ter significado que o Império já Esher. Entretanto, paradoxalmente, são estes elementos tão reais de
entrava em decadência. Porém, as viagens muito bem sucedidas do continuidade que ao mesmo tempo disfarçam e explicam as mudanças
P ríncipe de Gales e do Duque de York aos Domínios e à lndia só fize­ no "significado". Foi exatamente o fato da permanência numa época
ram cimentar os laços entre a Coroa e o Império, de forma que cada ri­ de agitações internas e revoluções internacionais que emprestou ao ri­
tual real era um acontecimento ao mesmo tempo imperial e nacio­ tual real na Inglaterra os atributos de singularidade, tradição e perma­
nal. "º Cabe aqui, por exemplo, a interpretação do Prof. Malinowski nência que não existiam antes. O significado do ritual mudou mais
sobre a coroação de J orge VI: uma vez, não apesar da continuidade do estilo e circunstância, mas
A Coroação foi, entre outras coisas, uma amostra cerimonial em larga es­ por causa desta.
cala da grandeza, poder e riqueza da Grã-Bretanha. Foi também uma Além do mais, a impressão de continuidade e estabilidade era ain­
ocasião em que a unidade do Império, a força de seus laços, foi publica­ da mais enfatizada pela inovação, à medida que se criavam novos ceri­
mente representada ... Em termos psicológicos não houve dúvida de que a moniais. Urna destas séries de inovações concentrou-se nas Rainhas­
Coroação gerou um sentimento maior de segurança, de estabilidade, e as­ consortes. Entre as décadas de 1870 e 191O. não morreu nenhum côn­
segurou a permanência do Império Britânico. "' juge de monarca: Albert morreu antes de Vitória, e Alexan� ra viveu
Ou . conforme explicou-de forma mais sucinta o próprio Rei, pelo rá­ mais que Eduardo. Na terceira fase, porém, o papel da Rainha-con­
dio. em seus discursos de coroação: "Senti esta manhã que o Império sorte e da Rainha-mãe tornou-se importante, o que veio a reíleti r-se
estava verdadei ramente reunido no interior da Abadia de Westmins- no ritual real. Ao morrer em 1925, a Rainha Alexandra recebeu um fu­
neral solene mais devido ao seu marido do que ao Príncipe Alberto. 1 8 5

1 79. .\e><· Sra1esman. 25 jan. 1 936; K . M artin. "The Evolution of Popular Monarchy"", .
1 82. The Ti mes. Cm><·n and Empire ( Londres. 1 937). p. 1 84.
Po/i1ical Quarler/_1-. vii ( 1 936). pp. 1 55-6. 1 83. Ziegler. Crmrn and People. p. 97.
1 80. W heeler- Bennett. lúng George VI. pp. 1 99. 2 1 5, 254. 302-4. 37 1 -8 1 ; F. Donald­ 1 84. Frost. Comnalion. p. 1 36.
son . Ed><·ard VIII ( Londres. 1 976). cap. 6-8 . 1 85. Battiscomhe. Queen Alexandra. p. 302; Tanner. Recollections o f a Westminster
181. M ali nowsk i . " A Nat ion-Wide lntelligence Service", pp. 1 1 4- 1 5. An1iquarr. p. 67.
161
160

Houve n ova exposição do corpo (desta vez na Abadia de W estmins­ ção fo i um grande sucesso, provocando sentimentos gerais de entusias­
ter). seguida de procissão pelas ruas de Londres e de sepultamen to m o e apoio. Na opinião do Lorde de S alisbury, a ocasião representou
particular em W indsor. E no caso da Rainha Mary, em 1953, o ceri­ "um testemunho assombroso da estabilidade e da solidariedade bem
monial lembrou ain da mais o dos próprios monarcas, p ois seu corpo con solidadas deste país e império sob a autoridade de Sua Majesta­
ficou exposto n o W estminster H all. Igualmente inédito foi o fato de de" . '"º E R amsay Macdonald, que classificou o culto do dia do jubileu
que. para dar uma prova inequívoca de solidariedade familiar, a Rai­ de " arden te de emoção". ficou ain da mais comovido com uma recep­
nha Mary compareceu à coroação de seu fi lho, J orge V I, precedente ção aos primeiros-ministros dos Domín ios: "Aqui o Império era uma
que foi tamhém seguido pela R ainha-mãe Elizabeth. em 1953. "• grande família, uma reun ião familiar, tendo o R ei como chefe pater­
Os dois funerais públicos de rainhas viúvas n ão foram as únicas nal. Saímos todos com a sensação de que havíamos p articipado de
celehrações reais in ven tadas durante este período. Devido à idade de algo muito parecido com a Sagrada Comunhão."'"' Não poderia estar
Vitória e Eduardo, houve poucos casamentos de fi lhos do monarca mais explícito o con ceito de mon arquia como uma segun da religião.
duran te o segun do período, sendo que o último foi em 1885, entre a Porém, a avaliação mais detalhada e, ao que parece, realista, do senti­
Princesa Beatrice e o Príncipe Louis de Battenberg. No entanto, com mento popular evocado p elo jubileu foi resumida n a biografia de auto­
dois reis relativamen te joven s n o trono entre 1910 e 1953, o p otencial ria de H arold N icolson:
de cerimonial derivado dos ritos de passagem dos primeiros estágios Havia, acima de tudo, orgulho, orgulho no fato de que, embora outros
do ciclo de vida da família foi realçado. E m 1922, a Prin cesa Mary ca­ tronos houvessem caído, nossa monarquia, inigualável em dignidade, h a­
sou-se com o Viscon de de Lascelles e J orge V aproveitou a ocasião via durado mais de mil anos. Reverência, na idéia de possuirmos, na Co­
para transferir os casamentos reais da privacidade oferecida pelo Cas­ roa, um símbolo de patriotismo, um núcleo com um, um emblema de con­
telo de Windsor ou p ela Capela Real para as ruas de Lon dres, en ce­ tinuidade num mundo em rápida desintegração. Satisfação, ao sentirmos
nando o matrimônio n a Abadia, an tecedido por uma procissão com­ que o soberano estava acima de todos os conflitos de classe, todas as am­
bições políticas. todos os interesses sectários. Consolo, ao percebermos
pleta. "- Como explicou o Duque de Y ork, o resultado foi um grande que temos um patriarca forte e bondoso, que personifica e realça os mais
sucesso junto ao púh lico: "agora n ão é mais o casamen to de Mary", elevados padrões de nossa raça. Gratidão por um homem que por sua in­
ma� ( segundo os jornais) o "casamen to da Abadia", o "casamento tegridade conquistou a estima do mundo inteiro, o Rei Jorge representa­
real". o "casam ento nacional" , e até o " casamen to do povo" . ' " Se­ va e realçava as virtudes domésticas e públicas que os cidadãos britânicos
guiu-se em 1923 o casam ento do Duque de Y ork . a primeira vez que consideram ·suas. Nele o povo via. refletido e aumentado. aquilo que mais
um príncipe da casa real se casava na Abadia em quinhentos anos. Em preLava com o ideais próprios e individuais - fé. senso de dever. honesti­
1934. o D uque de Ken t também se casou ali, e, em 1947, a Princesa dade, coragem, bom senso, tolerância, decência e franqueza .'"
Elizabeth. Significativamente, porém, o casamento do D uque de Sem dúvi da é discutível se tais sen timen tos. expressos n esta ocasião.
Gloucester, realizado em 1935, foi en cen ado n a privacidade relativa devem ser encarados co mo prova do sucesso de ideologias mobilizado­
oferecida pela Capela Real do Palácio de Buckingham, devido ao re­ ras ou como florescimento gen uíno da opinião pública. ou se. n a ver­
ceio de que n este an o jubilar houvesse cerimonial demais, o que con­ dade. eram uma co mbin ação dos dois fatores.
correria p ara o desgaste da imagem pública da realeza. 'ª" Só n ão se pode negar que tenham existido esses sentimen tos.
Mas a n ovidade representada pelos casamentos de jovens da O restan te das cerimônias deste período foram do tipo já estabele­
família real n a Abadia e pelos funerais das rainhas viúvas n ão foram cido n a fase precedente do desen volvimento. O funeral de J orge V foi
nada p erto do Jubileu de Prata de Jorge V, para o qual, n ovamente, uma ação de graças pelo rei que sobrevivera à guerra e resistira n a
não havia um preceden te exato, pois o vigésimo quinto an iversário da paz. 1 9 3 A coroação de Jorge V I foi uma reafirmação imperial extrava­
ascensão de Vitória coincidiu exatamen te com a época da morte de Al­ gante da estabilidade da mon arquia após a interrupção da abdicação.
berto e do isolamento voluntário da R ainha. Mais uma vez, a inova-

190. Longford, House of Windsor, p. 94.


1 86. Lacey. Majenr. p. 1 1 6 . 191 . D : M arquand, Ramsay Macdona/d ( Londres, 1 977), p._ 774.
I X7 . lh11/. . p p . 76-X; N irnlson. Ki11g <ieorgt' tht' Fi(th. p. 92. 1 92. N 1colson. A i11f( <it'org<' the Fifth . pp. 67 1 -2.
1 88. J . Pope- Hennessy. Queen Mary. / 86 7- 1 953 (Londres, 1 959), pp. 5 1 9-20. 1 93. O relato mais completo a este respeito encontra-se no The Times. Hail and Fare­
1 89. Lace) . MaJt'Sty, p. 78: Wheeler- Bennett. King George VI, p. 1 5 1 . we/1: The Pa.uing of King George the Fifth ( Londres, 1 936).
1 62
163

Novamente, seu funeral foi expressão da admiração nacional por um seu lugar de grande potência; uma nova era isabelina ia raiando. Estas
homem que não queria ser rei, mas que havia vencido a guerra e a ga­ coisas não ficaram implícitas, mas sim conscientemente expressas na é­
gueira por um forte senso do dever. A Mass Observation registra triste­ poca da coroação. Segundo o Delhi Express:
za, choque e condolência gerais, tanto que provavelmente o famoso
comentário radiofônico feito por Richard Dimbleby sobre a exposição A segunda Era Isabelina começa com um quê de l eveza espiritual que a
do corpo em Westminster Hall realmente manifesta os sentimentos da Grã-Bretanha jamais experimentou a ntes. Em toda a sua história, ela ja­
maior parte de seus ouvintes: mais gozou do prestígio moral que a Comunidade Britânica, inclusive a
Grã-Bretanha, hoje possuem.
O carvalho de Sandrigham, oculto sob as douradas e opulentas dobras do
Estandarte. O lento bruxulear das velas reflete-se delicadamente nas jóias
Ntste contexto excessivamente eufórico, não nos é de todo surpeen­
da Coroa Imperial, até naquele rubi que Henrique usou em Agincourt. dente que o Arcebispo de Cantuária achasse que a Grã-Bretanha esta­
Ilumina o veludo roxo escuro do travesseiro, e as frias flores brancas da va mais próxima do Reino dos Céus no dia da Coroação, ou que a
única coroa q ue jaz sobre a bandeira. Como é comovente esta simplicida­ própria Elizabeth fizesse uma vibrante profissão de fé no futuro. 1 ••
de! Como são francas as lágrimas daqueles que passam, olham e depois A influência desta série de cerimônias pode ser avaliada pelo alto
saem, como fazem agora, numa torrente ininterrupta, e lá se vão na noite nível de exploração comercial e fabrico de itens comemorativos. Uma
escura e fria, buscando a solidão para meditar . . . Jamais um rei falecido vez mais, nos jubileus e nas coroações, proliferaram as peças comemo­
esteve tão seguro e tão bem guardado, aquecido pela dourada luz das ve­ rativas de porcelana. Aliás, os fabricantes nacionais estavam tão ávi­
las e acompanhado pelos passos amortecidos de seus devotos súditos .. . dos para lucrar com a coroação de 1937 que passou a ser cobrada uma
Como se aplica a Jorge, o Fiel, nesta noite, aquela frase singela de um
taxa de importação de 100% sobre qualquer souvenir estrangeiro. Em
desconhecido sobre seu querido pai: "O ocaso de sua morte tingiu os céus
do m undo inteiro. " ' " 1953, a Birmingham Corporation ofereceu como brinde às crianças do
lugar uma Bíblia, um exemplar do livro Elizabeth Our Queen, de Ri­
A diferença entre esta transmissão orgulhosa, leal, reverente e popular chard Dimbleby, um jogo de garfo e colher, duas canecas comemorati­
e o agressivo editorial do Times por ocasião da morte de Jorge IV ilus­ vas, uma lata de chocolate, lapiseiras, um canivete ou um prato com o
tra bem até que ponto havia mudado a posição do povo em relação ao retrato da rainha. 1 •1 Conferiram-se novamente medalhas comemorati­
cerimonial real e às ocasiões reais. vas à maneira das insígnias de campanha e os colecionadores torna­
A última grande cerimônia desta seqüência, congregando com ê­ ram a encomendá-las. '"' Porém essas medalhas eram cunhadas em
xito a monarquia e o império, enfatizando a estabilidade numa época número menor do que antes, principalmente porque estavam surgindo
de transformações e celebrando a duração do estado de grande potên­ dois novos modos de comemoração. O primeiro era o plantio de árvo­
cia da Grã- Bretanha, foi a coroação de Etizabeth II em 1 953. Foi uma res por todo o Império, novidade particularmente notável nas coroa­
ocasião abertamente imperial; as vestes da rainha traziam bordados os ções de Jorge V I e Elizabeth 11. 199 O segundo modo, que vinha do tem-
emblemas dos Domínios, os regimentos da Comunidade Britânica e as
tropas coloniais desfilaram, os primeiros-ministros dos Domínios e da
lndia compareceram à Abadia, assim como uma série de chefes de Es­ 1 96. Briggs, History of Broadcasting, iv. p. 470: M artin. Crown and the Establishment,
tado de ,vários protetorados exóticos. 1 9s Na época, parecia que as p. 1 5 . Os melhores relatos de todos os grandes cerimoniais reais, desde o Jubileu de Pra­
ameaças e desafios de guerra e de tempos de austeridade haviam sido ta de Jorge V até a coroação de sua neta, são os de autoria de Sir Henry Channon. Veja
suplantados: o império estava ainda praticamente intacto; o problema ·Rhodes James. Chips. pp. 32-3. 54-7. 1 23-6. 464-5. 472-4, 275-7.
da independência e do status republicano da lndia no seio da Comuni­ 1 97 . R odgers, Commemorative Souvenirs, p p . 38-43.
1 98. Veja Quadro 2, no Apêndice. Produziram-se novas medalhas oficiais na Real
dade havia felizmente sido bem resolvido; Churchill voltara ao n9 10 Casa da Moeda para o j ubileu de Jorge V e a coroação de Jorge VI. da maneira costu­
da Downing Street: a Grã-Bretanha havia uma vez mais confirmado meira desde 1 887. Em 1 953. porém, a Casa não emitiu uma Medalha Oficial da Coroa­
ção: cunhou apenas uma Coroa. Edrnunson explica que "os colecionadores reclamaram
que não produzir urna medalha dessas resultaria num sério rompimento com a tradição,
mas observou-se que nos tempos modernos a 'tradição' só existia desde a Coroação de
..
1 94. Dirnbleby. Richard Dimbleby, pp. 227-9; L. M iall (org.), Richard Dimb/eby: Eduardo VI 1 . Edmunson. Collecting .\Jodern Commemoratfre .\fedais, pp. 65-6.
Broadcaster ( Londres. 1 966). pp. 75-6. Sobre a reação popular à morte do rei, veja Zie­ 1 99. Por exemplo, Comitê de Plantio da Coroação, The Royal Record of Tree Planting.
gler. Crmrn .and People, pp. 84-96. the Provision of Open Spaces. R ecreation Grounds and Other Schemes Undertaken in the
1 9 , M orrí,. fún·,n·/1 the Tnm1p,·1 , . p. 49X. British Empire and Else1<·here. Especially in the United States of Amerira. in Honour of
the Coronation of His Majesty King George VI (Cambridge, 1 939).
1 64 1 65

po do ! ubileu d� Prata de Jorge V, foi a emissão de selos postais come­ quer oportunidade de fugir da monotonia". E a monarquia, cuja
morativos especialmente desenhados. Antes, a emissão de selos come­ "pompa e cerimonial" traz "fascínio, mistério e emoção" à vida de mi­
2
�orativos se r�stringiu ªº.
I� pério, e na Inglaterra apenas festejos ci­ lh ões, está especialmente dotada para fazê-10. 2º Se, por exemplo, a rai­
vis, �orno a Feira do l mpeno em Wembley, foram dignos de nota. A nha tivesse ido à Catedral de São Paulo numa limusine, para a celebra­
partir _de 1 �3 _5, porém, todo jubileu, coroação, casamento importante ção do culto de ação de graças pelo seu Jubileu, grande parte do es­
ou amversano de casamento (porém não, significativamente nasci­ plendor da ocasião se perderia.
me� tos nem funerais) foi motivo para emissão especial de �elos. 200 Foi de grande importância a maneira pela qual o cerimonial real
� ais _uma vez, uma novidade; porém bem dentro dos moldes "tradi­ se tornou um antídoto ou uma legitimação para as mudanças sociais
c10na1s". no âmbito nacional, de forma bastante semelhante à do período ante­
rior. Conforme evidencia o desenrolar dos acontecimentos, as conse­
VIII qüências da l i Guerra Mundial foram em vários pontos muito maio­
res, sob os aspectos social e econômico, do que as da Primeira Guerra.
Por definição, o período que se inicia com a coroação, em 1 953, é A aristocracia praticamente desapareceu do governo. Houve um declí­
recente demais para ser analisado satisfatoriamente, tanto em detalhes nio da conformidade do público à ética cristã. Proliferaram os proble­
quanto do ponto de vista histórico. Embora pareça evidente que o mas relacionados ao racismo, à violência, aos crimes e às drogas. A
"signi ficado" do ritual real entrou numa nova fase. na qual muitas das opinião pública e a legislação sofreram alterações consideráveis no
pressuposições do período anterior deixaram de ser válidas, ainda não que diz respeito a questões como a do aborto, da pena de morte, do
se esclarece � por completo de que maneira ele poderia ser positiva­ sexo a n tes do casamento e do homossexualismo. A riqueza e a ren da
mente classificado. Entretanto, em nome da integridade, apresenta­ foram redistribuídas, não de forma drástica, mas certamente mais
mos algumas observações compatíveis com a análise até agora utiliza­ acentuada do que nunca. A ssim. numa "sociedade igualitária. sexual­
da. Em princípio, o poder político do monarca permanece limitado, mente permissiva e multirracial", a monarquia permanece fiel ao papel
ou pelo menos é exercido de forma tão discreta que parece não ter a público e cerimonial apontado por Harold Nicolson ao qualificar o
mínima importância. Numa pesquisa recente, 86 por cento das pessoas Jubileu de Prata de Jorge V: "uma garantia de estabilidade, segurança,
entrevistadas pensavam que a rainha era uma "figura de fachada" continuidade - a preservação de valores tradicionais" . 203 Ou, como
"que assina as leis e faz o que o governo manda" . 20 1 Ao mesmo tempo: mostrou uma recente pesquisa de opinião pública:
a rainha mantém as tradições de "profunda consciência e senso de de­
ver" que caracterizam a monarquia britânica desde o reinado do avô Sua e\istência sign i fica seg u rança. estabil idade e manutenção do prestígio
dela, e permanece leal à síntese jorgiana da probidade na vida particu­ nacional: promete sanção religiosa e liderança moral; representa um n ú­
ºº
lar e de �plendor em público. Acima de tudo, numa época em que cleo "suprapartidário 4ue per m i te uma iden tificação grupal: simboliLa
alegria, emoção e satisfação do gosto pelo l uxo; é um importante, e talvez
grandes a reas de Londres foram reconstruídas. o homem chegou à cada vez m ais importante, sím bolo do prestígio nacional. ... ,
Lua, e o Concorde permitiu viagens freqüentes entre a Inglaterra e
Nova York, o fascínio romântico do cerimonial anacrônico tornou-se Como sugerem estas últimas palavras. o papel do ritual real adqui­
ainda mais atraente. Conforme explica Sir Charles Petrie, "o mundo riu ta mhém um novo significado no contexto internacional. uma
moderno ficou tão mecanizado que seus habitantes apegam-se a qual- vez que a posição mundial da Grã-Bretanha sofreu acentuado declí­
nio. As esperanças otimistas e crédulas da época da coroação - de que
adiante viria uma nova era isabelina - não se concretizaram. Aliás,
para os observadores atentos presentes àquela cerimônia, já se podia
200. L. N . e M. Williams, Commemoratfre Postage Stamps o/Great Britain, 1 890- 1 966
(Londres. 1 967), PP- 9, 25-40: T. Todd. A Histon·of British Postage Stamps 1 660- 1 940 prever tudo. Um comentarista americano, que não se deixou levar pela
( Londres. 1 94 1 ), pp. 2 1 1 , 2 1 4. 2 1 5, 2 1 7: H . D. S. Haverbeck. The Com'memoratire
Stamps of British Commonwealth (Londres. 1 955). pp. 89-94. Veja também Quadro 5 .
ad1ant_e. É interessante observar que a Grã-Bretanha demorou a adotar os selos come­
morat1vos. ao contrário da Europa e do I mpério Britânico. Na maioria dos países euro­ �O�. Sir Charlc, l'ctric. Ih.- .\lndem Hri/1,h \lo11archr ( Londres. 1 957), p. 2 1 5: Harris.
_ _ l.011g 111 Rl'lg11 (her l , '. rr. 27. 55.
peus, em11.1r_am-se selos espec1a1s nos aniversários e jubileus no período de 1 890 a 1 9 1 4.
e � no l m peno, a Terra Nova (Canadá) emitira selos especiais em comemoração à coroa­ 203. La,-.:y. Majesty. p. 245: Ziegler. Crm.-n and Peop/e, p. 1 98: A. Duncan, The Reali­
çao de Jorge V. VeJa: H obsbawm, "lnventing Traditions", p. 1 9. tr 11/ M ·,,wrch 1· 1 1 ,indrc,. 1970). r. 95.
20 1 . Rose and Kavanagh, "The Monarchy in Contemporary British Culture", p. 55 1 . 204. Harris. Long to Reign Over l's 1 • p. 1 37.
1 67
1 66

eia de elevar a realeza à medida que cai o pr_e�tígio nacional " , _de en fa­
euforia da ocasião, insinuou que "o espetáculo" era, em parte, "ence­ _
tizar como nunca a grandiosidade e exclus1v1dade de seu cenmomal,
nado pelos britânicos para elevar o moral de seu império já sensivel­ notável na G rã-Bretanha do pós-
em especial, foi particularmente
mente abalado". 2º1 E. significativamente, o título dado a Elizabeth foi
guerra.2,0
bem menos imperial do que os de seus três antecessores. Ela não era Neste sentido, tudo foi bastante facilitado pelo i mpacto da televi­
nem Imperatriz da lndia, nem Rainha dos " Domínios Britânicos de
são. que tornou as festas reais acessíveis de f?rma nítid � e instantânea,
Além- M a r·· . mas sim plesmente "Chefe da Comunidade Britânica de
co isa que nem o rádio nem os filmes de atualidades P? d1am �azer. Tan :
Nações" . 206 Desde então, o declínio rumo à impotência passou a acele­
to neste, como em outros aspectos, a coroação da Rainha Ehza �eth foi
rar-se cada vez mais, com a divisão do império colonial, o desapareci­
u ma ponte entre uma era antiga e uma nova fase de desenvolvimento.
mento da última geração de estadistas imperiais, como Smuts e M en­
E mbora o tom do comentário de Richard Dimbleby a colocasse num
ties. o fracasso de Sue, . os problemas em Biafra e na I rlanda do Nor-· mun do que tinha mais em comum com 1 935 (ou mesmo 1 897) do que
te. crises econômicas recorrentes e a entrada da G rã- Bretanha no M er­ com 1 977, o fato de que tal comentário foi transmitido pela telev_isão, e
cado Comum Europeu . Na verdade. o fu neral solene de Sir Winston de que as pessoas em sua maioria es tavam assistindo à cerimô �1a pela
Churchill. em 1 965. colocado exatamente entre a coroação de Eliza­ _ tornou claro que se havia aper­
televisão, em vez de ouvindo pelo rádio,
beth e o J ubileu de Prata. foi não só as exéquias de um grande homem, feiçoado uma nova maneira de transmitir as grandes cerimônias sole­
com o também. conforme se admitiu na época. um réquiem à toda­ _
nes.2 " Principalmente devido à televisão, Elizabeth foi , com efeito, a
poderosa G rã-Bretan ha. 2º' "primeira soberana britânica realmente coroada" , conforme exige o
Assim, "à medida que se esvaía o poder britânico . . . . crescia na preceito. "à vista do povo" . Daí a opinião de Shils e Young, para os
família real o o rgulho de ser algo exclusivamente nosso, que nenhum quais a ocasião foi um "ato de com u �h � o _ naci�m �1 · : - 2 1 2 J �mais fora
país poderia igualar" . 2º' Assim como, nos períodos anteriores de trans­ possível à população como um todo ass1st1r a cen f!l oma assim, estabe­
formações internacionais, o ritual da monarquia era importante para a lecendo-se um sentido inédito de participação ativa.
legitimação do império formal, e na construção de uma impressão de M as, como a imprensa ou o rádio, a televisão também trazia sua
estabilidade numa época de perplexidade internacional, também no mensagem . E, significativamente, embora a televisão tenha colocado
m undo do pós-guerra ela constituiu um paliativo para a perda do sta­ os políticos em seus devidos lugares, de forma que no Parlamento e em
tus de potência mundial. Ao assistir-se a uma grande cerimônia real, Whitehall já não se dá mais importância ao luxo, ela continuou a ado­
impecavelmente planejada, perfeitamente executada, acompanhada de tar a mesma atitude de reverência em relação à monarquia, pioneiris­
comentários que frisam (embora erroneamente) sua continuidade his­ mo do rádio nos tempos de Reith. Por um lado, programas como o fil­
torica desde os dias de grandeza da Grã-Bretanha, é q uase possível me "Royal Family" lograram perpetuar a figura da Rainha e de sua
acreditar que eles ainda não terminaram . Como observou Richard família como protótipos da classe média. 213 Por outro, a cobertura dos
Dimbleby, de forma bastante condescendente, na época da coroação, grandes cerimoniais ressaltou a imagem da grandiosidade e do esplen­
os americanos talvez fossem "um povo de grande vitalidade", mas de­ dor dos contos de fadas que Reith e a B .B .C . tanto buscaram promo­
vido à sua " falta de tradição" teriam de "esperar mil anos até poderem ver. A esse respeito são de especial i mportância os comentários de Ri­
mostrar ao mundo algo tão im portante ou admirável". 20• E, desde
chard Dimbleby, que cobriu todas as principais ocasiões reais para a
1 953, tal posição popularizou-se, na medida em que o declínio se reve­ B.B.C. entre a coroação e sua morte, em 1 965. Seus comentários elo­
lava inevitável. Nas palavras de D . C. Cooper, "quando as pessoas qüentes e carregados de emoção, abrasad � s por um � pr� funda dedic�­
vêem a mão enluvada acenar na carruagem dourada, sentem-se segu­ ção à monarquia e um sentimento romântico pela h1stóna e pela trad1-
ras de que tudo vai bem no país, seja qual for a verdade". A "tendên-

205. Briggs. Sound and Vi.<ion. p. 47 1 . 2 1 0. D.e. Cooper. "Looking Back in Anger", in V. Bogdanor e R. Skidelsky (org. �.
206. Longford. Hou.<e of Windrnr. p. 1 96; Morris, Fare ...,el/ 1he Trumpels, pp. 498-9. The Age o/ Ajfluence. / 95 1 -64 (Londres, 1 970), p. 260; Harris, Long to Reign Over Us. ·
207. l bid .. pp. 545-57; Dimbleby. Richard Dimbleby. pp. 370-5; B. Levin. The Pendu­ PP· I H. 52. ·
lum t"ear.<: Brifain i11 1he SiXlie.< (L ondres. 1972). pp. 399-407; R. Crossman , The Diaries 2 1 1 . Briggs. Sound and Vision. pp. 457-73; Dimbleby, Richard D1mbleby, pp. ,,223 - 39 ·
uf " Cah11t<'t .\f111i,1a. .1 , oi . ( 1 nndn:,. 1 97 5 ). i . pp. 1 4 1 -3 . 1 45. 212. Lacey. Ma;e.Hy. p . 208; Shils e Young, "The Meaning of the Coronauon • p . 80.
208. Ziegler. Crm,·n and People. p. 84. 2 1 3 . Ziegler. Crmrn and People. pp. 1 3 1-7.
209. Miall. Richard Dimhlehr. p. 83.
1 68 1 69

çào, descreviam o ritual teal da manei ra mais enjoativa e subserviente ontem foi um exemplo soberbo . . . Prova que ainda compensa fazer as coi­
possível. Por explicarem o cerimonial e ex"pressarem um sentido histó­ sas à maneira antiga."'
rico desta forma, os comentários de Dimbleby foram da maior impor­ ,\o mesnw tem ro. roré m . os entendidos reconheceram que a diminuta
tância na apresentação do ritual da monarquia como um festival de li­ �,c,ila tio cer i m onial colocava o evento claramente numa éroca rós-
berdade e comemoração da conti n uidade n uma época de inquietação e 1 m reria l :
perturbação. Como afirma seu biógrafo, na década de 1950 e no i nício
da década de 1960, Richard Dimbleby, com seus comentários, "fez Apenas alguns membros d a Família Real acompanharam � � ainha ª!é a
mais que qualquer outro para assegurar a posição do monarca na afei­ Catedral; havia apenas um punhado de soldados dos Domtmos de alem­
mar para complementar o já modesto contingente britânico; .n� o c_ompa­
ção do povo britânico". 1 " receu nenhum potentado estrangeiro... para dar um toque exouco a reali­
Assim. apesar dos primeiros receios em relação à transmissão ao zação da cerimônia.''-
vivo da coroação, seu s ucesso foi tão grande que todas as cerimônias
reais subseqüentes foram acima de tudo espetáculos televisivos. Aliás, Porta nto. soh vários asrectos. o cerimonial do j ubileu foi uma expres­
este elemento expandiu-se a ponto de chegar a influenciar os próprios são de decl ínio nacional e imperial, uma tentativa de convencer o
rituais. Na investidura do Príncipe de Gales, em Carnarvon, por exem­ mu ndo. at ravés da pompa e circunstância. de que este declínio não ha­
plo, a cobertura do tablado foi feita transparente de propósito, para \ ia de fato ocorrido. ou de a firmar que. mesmo que tivesse. não fa1ia a
que as câmeras de televisão pudessem filmar através dela. 2 1 1 Q uanto às men or diferença .
cerimônias em si, tinham n ovamente mais em comum com as monar­
quias de Jorge V e VI do que com as de Vitória e Eduardo: foram ritos IX
de passagem de uma família relativamente jovem, em vez dos j ubileus, O relato da evolução do ritual real aqui delineado certamente sur­
funerais e coroações de monarcas veneráveis. Os casamentos da Prin­ preenderia as autoridades dos séculos X I X e XX citadas no início des­
cesa Margaret (1960), do Duque de Kent (1961), da Princesa Alexan­ te a rtigo. O cerimo nial que an tes era mal executado agora tornou-se
dra (1963) e da Princesa Anne (1973), a investidura do Príncipe de Ga­ tão bem dirigido que os britânicos conseguiram convencer-se a si mes­
les (1969) e o Jubileu de Prata da Rainha (1977), assim como a abertu­ mos ( a pesa r das provas históricas em contrário) de que são bons orga­
ra solene do Parlamento desde 1958 foram todos rituais televisiona­ nizadores de rituais porque sempre foram. E. apesar do crescimen to
dos. da alfabetização e da educação. o gosto do público britânico pelo ritu­
É neste contexto "tradicional", porém modificado, que se pode al real aumentou. em vez de dimi n uir. As antigas cerimônias foram
encaixar de maneira mais apropriada o J ubileu de Prata de 1977. Sob adaptadas, foram i nventados novos rituais, cujo resultado conjunto
o aspecto da reação do público, tal ocasião pode ser encarada como foi, paradoxalmente, o de dar a impressão de estabilidade em períodos
parte de uma tradição que remonta ao J ubileu de Prata de Jorge V e às de mudanças internas, e de contin uidade e con forto em tempos de
comemorações mais veneráveis do tempo de Vitória: um espetáculo tensão e declínio internacional. Embora possa existir um sentido no
popular e bem organizado, do gosto do público. Sob outro aspecto, qual a monarquia britânica legitima o status quo, permanece o fato de
porém, a sublime e ímpar pompa e circunstância da ocasião consti­ que, durante os últimos duzentos anos, mais ou menos, o próprio sta­
tuiu, segundo muitos, um perfeito tônico para o amor-próprio da Grã­ tus quo modificou-se profundamente, e a imagem p ública e cerimonial
Bretan ha: da monarquia mudou juntamente com ele. Se, como parece possível, a
Partilhamos todos de um momento maravilhoso da História... Já se disse próxima coroação for feita fora da Câmara dos Lordes, da Comunida­
que a Grã-Bretanha pode ter perdido várias coisas, mas ainda pode mos­ de Britânica ou da I greja Oficial, o papel do cerimonial de criar a ima­
trar ao mundo que dá banhos em matéria de cerimonial. O espetáculo de gem consoladora da estabilidade, da tradição e da contin uidade só po­
derá ser mais realçado. O diálogo dinâmico entre o ritual e a socieda­
de, entre o texto e o contexto, vai conti n uar.
2 1 4. M iall. Richard Dimbleby, pp. 1 45-6, 1 57, 1 6 1 , 1 67; Dimbleby, Richard Dimb/eby.
.
pp. 225-52. 326-30.
2 1 5 . Sohrc a cohertura do ceri monial re,.d feita por televisão, vej a R. Baker, " Royal
Occasions", in Mary Wilson et a i. . The Queen: A Penguin Special ( Harmondsworth. 2 1 6. Daih Mirro,. X j u n . 1 977.
1 977). pp. 1 05-27. 2 1 7. Ziegler, Crown and People. p. 1 76.
1 70 171

narquias cuja im agem deviam realçar. Assim. as novas elites gover­


Ao mesmo tempo, o quadro de evolução, desenvolvimento e na nte,. que :1, ,uh,titu íram lltls anos de en treguerras . foram obrigadas
transformação aqui mostrado poderá surpreender os comentaristas e a r ecomeçar. Na I nglaterra, porém, a monarquia subsistiu, e as "tradi­
jornalistas que, em toda grande cerimônia real, falam com o maior de­ ções inventadas" tam bém. Portanto, a inovação que porventura tenha
sembaraço de "uma tradição milenar". Naturalmente é verdade que a ocorrido na imagem cerimonial da monarquia britânica no perí odo de
monarlj uia e algumas de suas cerimônias são antigas. Nem se pode ne­ entreguerras foi feita dentro, não fora dos moldes desenvolvidos nos
µar lJ U e na I nglaterra. assim com o na m aior parte da Europa . houve anos anteriores à I Guerra.
um período anterior. nos séculos XVI e XVI I, em que abundavam as Forçosamente. este é um relato restrito de um assunto vasto e
cerimônias reais minuciosas e esplêndidas. Porém, como argumentou com plexo, e, mesmo num capítulo deste tamanho, foi impossível ex­
o Prof. H ohshawm. a continuidade lJUe as tradições inventadas do fim plorar todos os temas e ramificações com a atenção por eles merecida.
do século XI X buscam estabelecer com esta fase anterior é ilusória. 2 1 8 O que se tentou fazer aqui foi uma descrição da natureza, da execução
Embora os elementos de que elas foram criadas possam por vezes ser e do contexto mutáveis do ritual real, na esperança de que isto ofereça
genuinamente veneráveis, seu "signifi cado" foi especificamente rela­ alguma explicação sobre como cerimônias semelhantes significaram
cionado a circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais da é­ coisas diferentes para pessoas diferentes em épocas diferentes. Natu­
poca. ralm ente, encontrou-se mais facilidade em identifi car ( sem dúvida, a
Na Grã-Bretanha, assim como na Europa, pareceu haver duas grosso modo) as etapas de evolução do que em explicar a dinâmica da
grandes fases de florescimento do cerimonial real. A primeira foi nos evolução. Pelo menos, esta abordagem parece tornar os fatos mais
séculos XV I e XV I I , centrada no absolutismo da sociedade pré­ compreensíveis. a nível de significado, do que a abordagem dos antro­
industrial. No início do século XIX, após um último alento com Na­ pólogos que estudam o ritual indépendant de tout sujet, de tout objet, et
poleão, esta fase passou, sendo sucedida por um segundo perí odo de de toute contexte, ou a dos sociólogos que crêem ser o contexto estáti­
esplendor cerim onial inventado, que durou da década de 1 870 ou co e imutável. E se, num ensaio com uma análise "ampla" , o texto da
I xxo até 1 9 1 4. Na Á ustria. Rússia e Alemanha, o cerimonial girava cerimônia por vezes desapareceu frente ao contexto da circunstância,
novamente em torno do poder real, apesar do declí nio deste último. isso vem unicamente demonstrar como a análise precisa ser "ampla" .
Na I nglaterra, porém, centrava-se na fraqueza da monarquia, e na Se, com efeito, as for mas culturais devem ser tratadas como textos,
França e nos Estados U nidos, talvez de maneira menos bem sucedida, como obras da imaginação construí das de elementos sociais, então é
nas lealdades republicanas. Além disso, esta segunda grande fase de para uma investigação de tais elementos sociais e das pessoas que -
florescimento do ritual ocorreu em sociedades cujas estruturas econô­ consciente ou inconsci ent em ente - participam nesta construção que
micas e sociais diferiam profundamente daquelas existentes no perío­ precisamos dirigir nossa atenção, em vez de fazer uma análise intrinca­
do anterior, de criação de tradições, o que p or conseguinte operou da e descontextualizada dos próprios textos. 2 1 • E ste ensaio, utilizando
uma profunda mudança das razões pelas quais tais "tradições" eram o exemplo do cerimonial real britânico durante os últimos duzentos
inventa das e da forma pela qual elas foram interpretadas e compreen­ anos, é uma tentativa neste sentido.
didas pelos contemporâneos dos "inventores".
É, portanto, neste segundo período de inventividade internacio­
nal e competitiva que se podem localizar imediatamente as origens da­
queles rituais grandiosos e esplêndidos que os comentaristas ingles�s
crêem ter mais de mil anos. Ao mesmo tempo, porém, o elemento mais
i m portante na .111hrel'il'é11cia destas " tradições" até o dia de hoje é a
continuidade exclusiva, preservada entre o ritual real anterior e poste­
rior à I Guerra. Na Áustria. Alemanha e Rússia, os rituais inventados
no período compreendido entre a década de 1870 e a I Guerra M un­
dial foram eliminados nos anos entre 191 7- 19, juntamente com as mo-

2 1 9. Geertz. lnrerprerarion o( Cu/rures. p. 449.


2 1 8. H obsbawm. ' ' l nventing Traditions ·· . pp. 1 . 1 1 .
172 173

A pêndice: Quadros estatúticos

Quadro 1 - Gastos com coroações Quadro 3 - A rran;os corais do Hino Nacional

Década Número Década Número


Coroação Custo (em libras)

238.238 1 80 1 - 1 0 2 1 87 1 -80 4
Jorge I V , 1 82 1 1 8 1 1 -20
G uilherme IV, 1 83 1 42.298 2 1 88 1 -90 3
1 82 1 -30 3 1 89 1 - 1 900 7
Vitória, 1 838 69.42 1
1 93.000 1 83 1 -40 6 1 90 1 - 1 0 14
Eduardo V I I , 1 902 1 84 1 -50 3
Jorge V, 1 9 1 1 1 85.000 1 9 1 1 -20 3
454.000 1 85 1 -60 4 1 92 1 -30
Jorge V I , 1 937 1 86 1 -70
Elizabeth I I , 1 953 9 1 2.000 1 1 93 1 -7 j

Fontes: H. Jennings e C. Madge, /1.fay the Twelfth ( Londres, 1 937). pp. 4-5: C. Fonte: P.A. Scholes. " God Sare the Queen.1 ": The llistorr a•1d Romance of Ih<'
Frost. Coronation. June 2 / 953 (Londres, 1 978), p. 24. ll "orlc/'.1 Fir11 .\ ational A nthem ( Londres. 1 954).rp. 274-9.
Nota: No caso da coroação da Rainha Elizabeth, as estimativas parlamentares
rara 1 952-J rrt:\ iam 1 . 500.000 libras: contudo, recuperaram-se 648.000 libras
com a vt:nda dt: l ugart:s rara assistir à cerimônia.
Q uadro 4 - Estátuas comemorativas erigidas em
Londres e em Washington

Quadro 2 - /1.frdalha.1 m111e111orati1·as de acontecimentos reais


Década Londres Washington Década Londres Washington

Reinado Ocasião Data Número 1 80 1 - 1 0 3 o 1 87 1 -80 13 7


1 8 1 1 -20 1 o 1 88 1 -90 14 X
1 82 1 -30 2 o 1 89 1 - 1 900 li 6
Jorge I V Coroação 1 82 1 40 1 83 1 -40 5 o 1 90 1 - 1 0 18 14
Guilherme I V
Vitória
Coroação
Co roação
1 83 1
1 838
15
30
1 84 1 -50 8 o 1 9 1 1 -20 13 7
1 85 1 -60 7 2 1 92 1 -8 7 8
Vitória J u bileu de Ouro 1 887 1 13 1 86 1 -70 10
Jubileu de Diamante 1
Vitória 1 897 80
Eduardo V I I Coroação 1 902 1 00
Jorge V Coroação 191 1 42
Jorge V Jubileu de Prata 1 935 12 Fontes: Lorde Edward Gleichen, London's Open A ir Statuary (Londres, ed.
Eduardo V 1 1 1 Coroação 1 937 36 1973), passim; J. M . Goode, The Outdoor Seu/prure of Washington, D.C. : A
Comprehensive Historica/ Guide (Washington, 1 974), passim.
Nota: Nesta relação incluem-se apenas estátuas comemorativas, eqüestres ou
/ "111,· L·\ !\Li d a \ . Co111111<·111ora1irc .\fedais ( Londres. 1 970). pp. 75-8. revi­ não, excluindo-se relevos, esculturas alegóricas, esculturas de chafarizes, de
são de M . H . G rant. " B ritish Medals since 1 760", British Numismatic Journa/, animais, esculturas abstratas e estátuas de cemitério. Se adicionadas estas últi­
xxii \ 1 936-7). rp. 269-93. xxiii ( 1 938-4 1 ). pp. 1 1 9-52. 32 1 -62, 449-80. mas, porém, a mesma tendência seria observada.
1 74 175

Quad ro 5 - E111iss1ies de selos reais comemo rativos


5. A Representação da A utoridade
na Índia Vitoriana
Reinado Ocasião Selos datados Total de
emitidos vendas
,. BERNARD S. COHN
"{;;:

.l 1 1 q.'l' \ J uh ileu de Prata l 'i \ ' 1 2d . . ! d . 1 1 2d . . 2 1 2 J . • 1 .008.000.000


J orge V I Coroação 1 9 3 7 l i2d. 388. 7 3 1 .000 CONTRA DIÇÕES CUL TURA IS NA CONSTR UÇÃO
Jorge V I Bodas de Prata l 'J4X 2 1 2d . . 1 l 1 hr.1 1 47 . 9 1 9.628 DE UMA LINGUA GEM RITUA L
Coroação
1 1 11:ihc t h 1 1 1 95 3 2 J / 2 d . , 4 d . J S . Jd .. J S . 6d. 448. 849 .000
Elizabeth l i I nvestidura do Em meados do século XIX, a sociedade colonial indiana caracte­
Príncipe de Gales 1 9 69 5d .. 9 d .. 1 s. 1 25.8 2 5.604 rizava-se por dividir-se em um pequeno grupo governante estrangeiro,
Elizabeth 1 1 Bodas de Prata 1 97 1 3 p .. 20p . 66 .389. 1 00 de cultura britânica, e um quarto de bilhão de indianos que viviam sob
Elizabeth 1 1 J u hileu de Prata 1 97 7 X I i2p .. 9p .. 1 Op . . 1 1 p .. 1 3 p. 1 59.000.000 domínio britânico efetivo. A superioridade militar destes estrangeiros
já havia sido positivamente demonstrada na brutal repressão de uma
revolta militar e civil alastrada pela maior parte da A lta fndia nos anos
de 1 857 e 1858. Nas duas décadas seguintes a esta ação militar, codifi­
Fontn: A. G. R igo de Righi. The Stamp o/ Rornlt_r: British Commemora tire Is­ cou-se uma teoria da autoridade, com base nas idéias e conclusões
sues for Royal Occasions. / 9J5- / 9 72 ( Lon dres. 1 97 3). pp. 1 4. 1 9 . 26 . 3 3 . 4 1 , 4 8; sobre a maneira adequada de organização dos grupos na sociedade in­
S. G i bbons. Great Britain: Specia/ised Stamp Catalogue, ii, King Edward VII to diana e seu relacionamento com seus governantes britânicos. Em
<,, ·ori:,· 1 . .1 . ..:J i l l l 1 1 d rc,. 1 '174 )_ pp 1 7 2 . 207. 2 1 1 : ,d,·111. (,r<'<il Hríta/1, Sp,·­
termos conceituais, os britânicos, que iniciaram seu domínio na qua­
cialised Stamp Catalogue, iii, Queen Elizabeth li: Pre- Decimal /ssues ( Londres,
1 976), pp. 1 48-9 , 2 54-6; H. D. S. Haverbeck, The Commemorative Stamps of lidade de "intrusos", tornaram-se "membros integrantes" ao confe­
the British Commonwealth (Londres, 1 955), pp. 9 1 , 92, 94. rirem ao monarca britânico a soberania da lndia, através da Lei do
Nota: Haverbeck fornece a cifra 450.000.000 para a emissão comemorativa da Governo da Ín dia, de 2 de agosto de 1 858. Esta nova relação entre
coroação de 1 937. Obtive a cifra mais baixa no catálogo de G ibbons. o monarca britânico, seus súditos e os príncipes nativos da India foi
proclamada em todos os principais centros de poder britânico na fndia
no dia 8 de novembro de 1 858. Na proclamação, a Rainha Vitória as­
segurava aos príncipes nativos que "seus direitos, dignidade e honra",
assim como seu controle sobre as áreas que possuíam seriam respeita­
dos, e que a Rainha "devia aos nativos de Nossos territórios indianos
as mesmas obrigações que a todos os outros súditos". Todos os seus
súditos indianos deviam sentir-se livres para praticar suas religiões.
Deviam gozar de "proteção igual e imparcial por parte da lei", e da
formação e administração desta lei: "Serão devidamente respeitados
os antigos direitos, usos e costumes da índia". Os príncipes e seus sú­
ditos indianos foram informados de que tudo se faria para estimular
"as indústrias pacíficas da índia, para promover obras de utilidade e
melhoramento público", e que i riam "gozar do desenvolvimento so­
cial que só poderia ser assegurado pela paz interna e por um bom go­
vemo" . 1

*d.p = pen ny. pence: s = shilling. - N .T. "Queen Victoria's Proclamation . 1 November 1 858", in C. H . Phill ips. H . L. Singh
1 76
177

A p ro� lamaçã_o baseav� -se em d uas suposições principais: segun­ uma vez que os britânicos haviam passado p or uma etapa feudal histó­
da a pn me1ra, havi a n a f nd1a uma di versid ade autócton e de culturas rica e, em termos an alíticos, o presente da India podia equiparar-se ao
socied � des e religiões; de acordo com a segunda, os governantes es� passado britânico. A organização política, a sociedade e a econ omia
trange� ros er� m respon sáveis pela manutenção d e uma forma de go- britânicas haviam evoluído a partir deste passado até chegar à forma
vern_ o 1mp� rc1al, que n ão se destinaria exclusivamente a proteger a in- � modern a; d aí, teoricamente, a atual sociedade feudal da fndia poderia
tegndade 1_n erente a essa d iversidade, mas também a promover o pro­ também evoluir até torn ar-se, n um futuro distante, uma sociedade
gresso social e material que beneficiasse os governados. mod ern a. Em termos de diretrizes políticas, os membros do grupo go­
A proclamação pode ser encarada como um pronunciamento cul­ vern ante poderiam discutir a eficácia política d e d ar apoio aos pro­
tural que abrange d uas teorias de po�er divergentes ou até contraditó­ prietários de terras, príncipes, campon eses ou à população indian a ur­
ria�: uma. q u e rrrn.:ura va ma nter na ln dia um sistema feud al: e out ra bana, d e educação ocidental, que crescia a cada ano, em termos de um
que previa mud anças que inevitavelmente acarretariam a d estruiçã� acordo geral sobre a n atureza da sociedade indian a e do alcance de
d esta_ ord : m feudal. Cad_a um_a destas teorias sobre o poder britânico metas ti nais em relação ao país, sem questionar as instituições de con ­
1n_c lu � a . 1dc1a� \llhrc a sm:wlog1a da fndia e a rela ção entre governantes · trole colonial existent es.
e md1v1 d � os e g�upos da sociedade indiana. Se a fndia devesse ser go­ Nas d écadas de 1860 e 1 870, a idéia de que "uma vez adquirida, a
ve: nad a ª . m_an �1 ra feud_al, seri a n ecessário reconhecer e/ou criar uma autoridade precisa ter um passad o seguro e conveniente" 2 começou
ari stocracia indiana, CUJOS membros poderi am fazer as vezes de "vas­ também a estabelecer-se. O passado, que estava sendo codificado e
salo_s " leais à Rainha britânica. Se a fndia fosse governada pelos ingle­ exigi a representação dos britânicos tanto n a fndia quanto n a Grã­
ses a mod � ":n odern a", s: ria necessário desenvolver princípios que vi­ Bretanha, e também dos indian os, tinha um compon ente britânico e
sassem atingi r um novo ti p o de or? em cívica ou pública. A queles que outro indiano, e uma teori a de relacion amento entre as duas partes. A
adotavam � ste ponto de vista d eseJ avam uma modalidade de governo Rainha era o mon arca tanto da fndia como da Grã- Bretanha, um cen­
representativo baseado soci ologicamente em comunidades e interesses tro de autorid ad e de ambas as socied ades. O chefe do governo britâni­
representados por indivíduos. co na fndia após 1858 tinha cargo e títulos d uplos. Como govern ador­
Os partidári� s britânicos d as modalidades feudal e representativa geral, ele era respon sável fundamentalmente frente ao Parlamento; e
de govern o coloni al concordavam quanto a vári as suposições sobre o como vice-rei, representava o monarca e sua relação <.om os príncipes
passado e o presente d a fndia, e defendiam a n ecessid ade e conveniên­ e povos da f ndia.
ci_ a d e um govern o monárquico para a f ndia. Em ambas as modalida­ A partir de 1 858, como parte do restabelecimento da ordem polí­
des, em?ora os indian os talvez se unissem a seus governantes brancos tica, Lorde Canning, o primeiro vice-rei d a fndia, realizou uma série
na qualtd ade de vassalos ou de representantes de comunidades e inte­ de longas vi agen s pelo Norte d a fndia para anunciar a n ova relação
resses, os �overn antes britânicos é que tomariam as decisões que afe­ proclamada pela Rainha. Tai s excursões tinham como uma de suas ca­
tassem o sistema como um todo. Os governantes britânicos acredita­ racterísticas os durbars, ou sej a, reuniões, feitas com grande número de
príncipes e dign itários indian os, e funci onários indian os e britânicos,
� am que os indianos haviam perdido o direito à autonomia por causa em que se con feri am honrarias e recompensas a indian os que tivessem
��sta�ent� d � . sua fraque_za, q� e os _ suj eitou a � ma série de regentes demon strado fidelidade a seus governantes estrangeiros d urante as re­
; s.tran�e! r�s . d esd e as mvasoes arian as, e, mais recentemente, à vi­ voltas de 1857-X. Nestes durbars ofereciam-se aos indianos títulos
toria brit_an_1ca sobre os _gover� an � es anteriores da fndia, os mongóis.
Esta ó bvia mc� "!P:tenc . a d os indian os para se governarem era aceita como os de Rajá, Naba bo. Rai Sahib, Rai Bahadur, e Khan Bahadur,
� acompan hados de trajes e emblemas especi ais (khe/ats), de garantia de
por todos os �ritamcos hgados ao gover_n o da f n di a. As disputas surgi­
?ªs entre os ingleses buscavam determinar se esta incompetência era privilégios e de algumas isenções quanto aos procedimentos burocráti­
ine�ente e permanente, ou se sob uma tutela adequada os indian os po­ cos normais; estes indianos recebiam também recompensas sob a forma
dert � m torn ar-se aptos a serem_ a�� ônomos. A teoria feudal abrangia a de pensões e concessões de terras em troca de iniciativas como as de
teoria representati va e a poss1b1hd_ade de evolução da competência, prot eger europeus durante as revoltas e forn ecer soldados e mantimen­
tos para o ex ército britânico. Estes durbars tinham uma forma deriva-

and B. N . Pande) ( orgs . ). The El'l1/utio11 of lndia and Paki.Ha11 /858- / 94 7: Select Docu­
ment.< ( Londres. 1 962). pp. 1 0- 1 1 . 2. J. H . Pl umb. The Death of the Past ( Boston. 1 97 1 ). p. 4 1 .
1 79
1 78

atos de obediência, gara ntias de lealdade e si m bolizava m a aceitação


da ?ºs rituais co rtesã o� d o s imperad o res m o ngóis e utilizada n os ri­ da superioridade daquel e que oferecia os khe/ats.
tuais real izad o s pel o s h i ndus e muçulmanos, qu e d o min a v a m a fnd'· No s durbars havia reg ra s fixas q uanto à colocação relativa das
n o século X V I I I , rituais esses adaptad o s pel o s ingleses n o iníci o d o s',� pessoas e d os obj eto s . A di s posição espacial n u m durbar est�bele�i � ,
cu l o X I X . � onde o s e nviad o s ingl eses representavam o papel de gove�­ criava e representava re lações co m o gove rnante. Quanto mais p rox1-
_
nantes india nos. mo se co l o cas se alguém da pesso a d o gover nante ou de seu represen­
O ritual m a i s i m portante do durbar m ongol era a ceri m ônia de in­ tante, maior era seu status. Tradicional m ente, n u m durbar, o persona­
corpo ração. A pes so a a ser agraciada co m esta honra ofe recia nazar gem real sentava- se sobre al m ofadas ou num trono baixo colocado
(m oedas �e ouro ) e/ ou peshkash (ben s co m o elefantes, cavalos, jóias e numa plataforma ligeira m ente elevada; todos os out ros fo rmavam fi­
o utro s obJ e to s d e valor). A quantidad e de m oedas de ou r o oferecida
leiras à esquerda e à direita. que se estendiam vertica lmente d o tron o
o u a espécie e quantidade de peshkash trazidas e r a m cuidadosa m ent�
até a ent rada do salão de audiências ou tenda. Em o utros durbars, as
d �e r m in a � as, segundo a classe e posição social do ofertante. Os m on­ fileiras se este ndi am no sentido h orizontal, separadas po r balaust r a­
7
go1s o fereci am u m khelat (enxoval) que, n um sentido estr ito consistia das; em am bos os ca sos , p orém, quanto m ais p róxim o alguém estives­
e r:n conjun tos de trajes e s pecíficos e o rdenados, ent re os q uais uma tú­ se da pe ss oa do re i, mai s participava de sua auto r idade. Ao ent r a r no
nica, u � turbante, xales, vários adorn os p ara tu r bantes, u m colar e durbar, cada um prest a va ho m enagem ao gover nante, geralm e_? te
.
o ut ras J o i a s, arma s e escud o s, podendo ta m bé m se r aco m panhado de
prostrando -se e saud a ndo- o co m diversas form as de toque das maos
caval os e e lefantes co m vá ri o s equipa m entos, com o sinal de autorida­ na cabeça. S egund o os mongóis, a ssi m a pes soa "colocava sua cabeça
de e po der. A quantid ade dest es iten s e seu valor tam bé m eram estipu­ ( sede d os se ntid o s e d a m e nte) humild emente em sua s m ão s e a ofe re­
l ad o s. Alguns bra sõe s , ro up a s e direit os , tai s co m o o de usar ta m bores cia à assem bléi a re a l, com o um pre sente " . 5 Se h o uve sse o fert a de nazar
e certos estand a rtes, restringi a m- se a me m bros de um a certa fam ília o u peshkash , o u re c e bim e nto de khelats ou o ut ras hon r a ria s , a p essoa
d o min a nte . P a ra os m ongóis e o utros governantes da índia estas ofe­ dava um passo à frente, para q ue o rei vi s se e/ou tocas se as oferendas;
re nd as rituai s co nstituía m u � a relação entre o doado r e � receptor, dep o is um funci o nário o u o p róprio rei v estia-o e entregava-lhe outr os
_
na o sendo m era m ent e entendidas com o si m ples intercâm bio de bens e objeto s de valor. S e entre esse s presentes estivessem elefantes ou cava­
val o �es . O khelat era sí m bolo da "idéia da continuidade ou sucessão . . . lo s, o s anim ai s eram trazidos até a entrada do salão pa ra serem admi­
.
co ntin uidade esta fundada sobre u m a base física, q ue dependia do rad os .
conta t � d � �orpo do rec�ptor co m o co rpo do doador po r interm édio Nos sécu los X V I I e X V I I I . o s britânico s tendiam a interpretar de
dos traJes . O rec epto r i nco rporava- se po r interm édio das roupas ao form a errônea estas ceri m ônias, i m aginando que fossem de função e
corp� _do d o ador. 1:al incorporaçã o , segundo F. W. Buckl er , baseia-se natureza econômica. A o ferta de nazar e peshkash seriam pagamentos
na 1de 1 a �e qu e o r�1 representa um "sistema d e governo no qual ele é a por fav o res prestado s, que o s br itânicos t raduzia m com o "di reit«;>s",
enca_r � açao . . . q ue inco rpora em se u co rpo . . . as pessoas daqueles que de acord o co m s uas atividades com e rciais. Porém, para os subordina­
part1c1pam de se u � o m íni o ".• Aqueles assi m incorpo rados não e ram do s d e governantes indianos, os di reitos estabeleciam privilégios que
ape na s servo s do rei, m as passavam a fazer p a rte dele, "assi m com o O constituíam fontes de riqueza e status. Os objetos q ue form avam a
o l h o na função princ! pal d a visão e o ouvido na á rea da audição". O base da rel ação p el a inco rporação - fazendas, roupas, m oedas de o uro
t�rmo na_zar, _q ue des ign a v a as m oedas de o uro oferecidas pelo subo r­ e prata, animai s , armas, jóias e pedrarias e out r os objetos - er am p a r a
dinado, e d � nv?do d e � ma palavra árab e e persa que significa "voto". o s britânicos ben s utilitários que fazia m parte do seu siskma de co­
.
O naza� t1p1co e oferecido na m oeda do m onarca, representando o re­ mérci o . Pa r a o s indianos, p o rém, o valor dos objetos n ão era determi­
conhec1me� t o d e que o monarca é a fonte da riqueza e do bem-esta r nado pelo m ercado, m as pelo gesto ritual da incorporação. U m a espa­
do s s ubo rdinados. A apresentação do nazar é recíp roca ao recebi m en­ da recebida das mãos do imperador m ongol ou que tivesse passado
to do khel�t , e faz pa rte do ritual de inco rporação. Estes gestos, do pela mão d e várias pessoas, possuía um valor que transcendia de lo��e
ponto de vista do s doado res do nazar e recepto res dos khelats, e ram seu valo r "de mercado ". Os tecidos e roupas, elem entos essenc1a1s

3 . F. W . Hud lcr. "Thc Orie ntal lk,r


ot". f oglica11 Th eo/ogica/ R er ie k· ( 1 5. Ahu AI FaLI. Th e A in-i-A khari, trad. de H. Blochman. org. por D. C. Philot. 2• ed.
24 1 . 927-8 ). r .
(Calcut�. 1 927). C L XV I I .
4 . Ihid. r 239.
1 80 181

num khelat, adquiriam um caráter de bens herdáveis. Deviam ser Depois que a Companhia das fndias Orientais ganhou o controle
g� �rdad_?s, passados de geração a geração e exibidos em ocasiões espe­
. militar de Bengala, em 1 757, sua influência cresceu, e os empregados
c1a1s. Nao se destinavam ao uso cotidiano. Os britânicos interpreta­ da Companhia começaram a voltar à Inglaterra com grandes fortunas;
vam a oferta de na:a� como sub� rno, e do peshkash como imposto, de estas fortunas e influência começaram a fazer-se sentir no sistema polí­
acordo com seus cod1gos culturais, e acreditavam que aquilo implicas­ tico britânico. A questão da relação entre a Companhia e a Coroa e o
se alguma compensação direta. Parlamento tornou-se crucial. A Carta da índia ( 1784) transferia defi­
. Na. segunda .metade do século X VIII, a Companhia das índias nitivamente ao Parlamento o governo da índia, mas mantinha a Com­
Orientais ressurgw após uma série de rixas com seus competidores panhia como instrumento de atividade comercial e governante dos ter­
fra � ceses, tornando-�e a maior potência militar dos Estados indianos, ritórios indianos sobre os quais a Companhia havia adquirido domí­
ªl?º.s derrotar sucess,1vamente o Nababo de Bengala ( l 757), o Nababo nio. O Parlamento e os diretores da Companhia também começaram a
Vmr de Awadh e o imperador mongol ( 1 764), Tipu, o Sultão de Mai­ restringir a aquisição de fortunas particulares, por seus empregados,
çor ( 1 799) e os. M aratas governados por Scindhia ( 1 803). Constituía reduzindo e depois eliminando as atividades comerciais privadas e de­
um poder nacional dentro do sistema político da India do século finindo como "corrupção" a incorporação de funcionários da Compa­
XVIII, tendo_ sido designada como Diwan (diretor das finanças) de nhia nos grupos nativos dominantes através do recebimento de nazar,
B � ngala pelo imperador mongol em 1 765, e encarregada de "proteger" khelats e peshkash, consideradas formas de suborno.
� 1m� er�.dor mongol em 1 803, depois que Lorde Lake tomou Delhi, a Com esta definição de "corrupção", e com a manutenção do im­
capital mongol. �m vez de deporem o imperador e proclamarem-se perador mongol como núcleo simbólico da ordem política indiana, es­
governantes da lnd1 � e su_cessores do império mongol, os britânicos tabeleceu-se outro paradoxo político. A coroa britânica não era a co­
contentaram-se, seguindo instruções de Lorde W ellesley, seu governa­ roa da ln dia; os britânicos, na lndia, eram súditos de seus próprios
.
d_or �eral, em. oferecer ao imperador reis, mas os indianos não eram. O imperador mongol continuava a ser
"todas as demonstrações de reve­
ren_c1a, _respeito e atenção". 6 Ao criarem a Companhia das índias a "fonte de honra" para os indianos. Os ingleses não podiam ser incor­
9 nenta1s, �.ue, � e acordo com Wellesley e outros encarregados, era a porados através de gestos simbólicos a um governante estrangeiro, e, o
protetora do imperador mongol, �s britânicos pensaram que iriam que talvez fosse mais importante, não podiam incorporar os indianos
. . en rar . a seu governo através de meios simbólicos.
.� e11_1 posse da .aut�.nda�e. nommal do imperador".' A aquisição
da aut_ondade nommal se�1a 1�teressante para os ingleses, pois em­ Em fins do século XVIII, à medida que os funcionárfos da Com­
�ora o imperador mo,n �ol nao t1�esse, segundo os padrões europeus, panhia das fndias Orientais passaram a desempenhar a função de lan­
nenhum �o.der, domm10 e autondade reais, quase todos os estados e çadores e coletores de impostos, juízes e magistrados, legisladores e
classes sociais da lndia continuavam a reconhecer sua autoridade no­ executivos no sistema político indiano, eram proibidos, por ordem de
mi �al" .' Sir John .Kaye, cuja História da Insurreição Indiana foi e em seus empregadores e de seu Parlamento, de participarem de rituais e
muitos aspectos amda é, a obra básica sobre as "causas" do Gr�nde constituírem relações oportunas com indianos que lhes fossem subor­
�vant�, faz!a me�ção ao relacionamento entre a Companhia das ín­ dinados. Porém, em relações com governantes locais aliados aos britâ­
d1 �s Orientais e o imperador mongol de 1803 a 1857, dizendo que fora nicos que lhes fossem subordinados, os empregados da Companhia
cnad_o um "parpdoxo político", pois o imperador ia tornar-se "um as­ entendiam que essa lealdade deveria ser simbolizada pah tornar-se vá­
salariado, uma ilusão, um fantoche. Era rei, mas não era - era ao mes­ lida aos olhos dos subordinados e seguidores. Os britânicos começa­
mo tempo alguma coisa e nada - uma realidade e uma farsa, ao mes­ ram, portanto, a oferecer khelats e a aceitar nazar e peshkash em reu­
mo tempo"." niões formais que pudessem ser reconhecidas pelos indianos como dur­
bars.
Embora os britânicos, como "governantes indianos" na primeira
. 6. De Wellesley a Lake, em 27 de julho de 1 803, in M ontgomery M artin (org.). The
_ metade do século XIX, continuassem a aceitar nazar e peshkash e a
oferecer khelats, tentaram restringir as ocasiões em que se realizavam
Despmches. Minutes and Correspondence of the Marquess of Wel/es/ey During His A dmi­
.
nwratwn tn lndia ( Londres. 1 837), 1 1 1. p. 232.
7. lhid. p. 208. estes rituais. Por exemplo, quando um príncipe ou nobre visitava o Pa­
8. De Wellesley à Assembléia dos Diretores. em 13 de julho de 1 804, in M artin, Des­ lácio do Governo, em Calcutá, ou quando o governador geral, gover­
patches. IV, p. 1 53. nadores, comissários e funcionários britânicos menos graduados viaja­
9. John W. K aye e George B. M alleson. Kaye ºs and Malle.rnn 's Hi.fforr of the /ndian
Mutiny oj 1857-8, 2' ed. ( Londres, 1892), li, p. 4 vam, organiz"ava-se um durbar. Os khelats eram sempre ofertados em
182 183

nom� d�s governadores das províncias ou do governador geral, e com Companhia a uma família real e a seus descendentes, em troca de suas
perm1ssao destes. O que os indianos oferecessem como nazar e pesh­ armas; tal contrato perdurava enquanto os chefes "exercessem um
k�sh nun�a ficava com o _funcionário que o recebesse. Em vez disso, fa­ bom governo" e aceitassem a supervisão de um funcionário inglês.
ziam-se hstas porn:ienonzadas e avaliação dos objetos apresentados, Creio que na primeira metade do século XIX havia uma lacuna e
que ficavam dep?s1tados no Toshakhana, um tesouro especial do go­ uma contradição da constituição cultural-simbólica da lndia. "Uma
verno para recebimento e oferta de presentes. Ao contrário dos india­ constituição cultural e simbólica" que segundo Ronald lnden
nos, os britânicos usavam presentes recebidos, ou de forma direta abarca o que se denomina esquema classificatório. suposições sobre a na­
dando a um indiano o que haviam recebido de outro, ou indireta, ven� tureza das coisas. cosmologias, visões de m undo, sistemas éticos, códigos
dendo num leilão em Calcutá o que haviam recebido e usando a renda legais. definições de unidades governamentais e grupos sociais. ideolo­
o �tida para comprar objetos que servissem como presentes. Os britâ­ gias. d outri nas religiosas. m itos. rit uais. modos de agir. e regras de etiq ue­
nicos p_rocuravam sempre igualar em termos econômicos o que davam ta.'"
e receb1 � rn . dan?o a_ conhecer aos indianos o valor exato dos objetos e Os elementos contidos numa constituição simbólico-cultural não são
a quantia em ?mhe1ro que lhes seria permitido oferecer. Se alguém. urna mera reunião de itens e coisas, mas organizam-se seguindo um
por exemplo. tivesse que oferecer corno nazar 10 1 rupias. receberia um padrão que afirma a relação entre os elementos e determina seu valor.
xale ou traje de idêntico valor corno khelat.
A teoria nativa do domínio na lndia baseava-se em idéias de in­
O ritual mongol conservou-se, ao que parece, mas os significados corporação e numa teoria de hierarquia na qual os governantes não só
�of�eram uma _ transfo �mação. O que havia sido para os governantes eram mais importantes que todos, mas também absorviam os governa­
md1anos _um � 1tual de mcorpo�ação agora era um ritual que denotava dos. Daí a importância duradoura do imperador mongol, mesmo
a subordmaçao, sem estabelecimento de laços místicos entre a figura
como "assalariado", na medida em que tanto os súditos indianos da
real e o amigo e servo escolhido, que se tornaria parte do governante.
Companhia das fndias Orientais quanto os governantes dos estados
Ao converter uma forma de oferecimento de presentes e oferendas
aliados ainda ostentavam honrarias que só ele poderia conferir. O
n_uma e�p�cie de "! ntercâmbio econômico", a relação entre funcioná­
_ khutba nas mesquitas, mesmo na lndia britânica, continuou a ser lido
n � br�tamco e súdito ou governante indiano tornou-se contratual. Na em seu nome, as moedas da Companhia das fndias Orientais até 1 835
p �1me1ra meta�e . do século XIX, os britânicos, à medida que expan­
exibiam seu nome, e muitos estados indianos continuaram a cunhar
diam seu domm10, baseavam sua autoridade na idéia de contrato e
moedas com a data régia do imperador mongol até 1 859-60. Embora
"bom governo". Cria�am um exército mercenário em que o contrato
os britânicos se referissem ao imperador mongol em inglês como o
ex� r�ssava-se metafoncamente na expressão "comer o sal da Compa­
"Rei de Delhi", continuaram a usar seus títulos imperiais completos
nhia : A lealdade entre os soldados indianos e seus oficiais europeus quando a ele se dirigiam em persa. Como o monarca da Grã-Bretanha
m�ntmha-se seg �ndo seu pagamento regular, um tratamento "decen­
só se tornou monarca da fndia em 1858, os governadores gerais ti­
te e a ?bservaçao da re�ra de não-interferência nas crenças e costu­
nham dificuldade em conceder medalhas e títulos aos indianos. Quan­
mes nat1v�s. Quando havia alguma rebelião, ela partia da idéia que os do um governador geral viajava e oferecia durbars a senhores indianos,
s ?lda�os tmham de que tal "c.ontrato", explícito ou implícito, havia geralmente chamava um chefe de cada vez, para que se evitasse o
sido v10l � ?? · quando e�? m obr�gado_s a usar chapéus de couro, a viajar
problema de ter que colocar um chefe acima de outro em termos de co­
sobre as aguas negras '. ou a mgenr alimentos proibidos, como gor­ locação pessoal frente a frente com o governador geral. Somente na
dura de porco ou de novilho castrado. O estado tornou-se o criador e
década de 1850 os britânicos começaram a tentar regularizar a prática
abonador das rela�õ�s contrat�ais entre os indianos com relação ao
uso dos recursos bas1cos de mao-de-obra e terra, através da introdu­ de dar salvas de tiros de canhão em sinal de respeito à presença dos
ção � e idéias européias de propriedade, renda e receita. Os senhores chefes indianos. O sistema de hierarquia representado pelas salvas só
foi fixado em 1 867. As tentativas dos governadores gerais no sentido
l� c� 1s que defendiam um sistema social baseado em conceitos cosmo­
log1cos, mantendo a ordem própria através de rituais converteram-se de simholizar urna nova ordem ou de elilT! inar algumas das contradi-
1

em "proprietá_ri� s de terras". Os "reis" indianos a quem se permitia


u!11� autonomia mterna sobre seus domínios foram rebaixados à con­
d1çao de "chefes e príncipes". Eram controlados por tratados de natu­ 1 0. Ronald l nden. "Cultural Sym holic Constitutions in Anc1ent l n dia". imp. mimeó­
reza contratual, que garantiam as fronteiras dos estados, o apoio da grafo ( 1 97fi). pp. fi-X.
185
1 84 .

ções e lacunas na constituição simbólico-cultural esbarraram no ceti­ va decidido a restaurar o prestígio britânico na lndia. Comandou uma
ci_smo e_ até i:nesmo em :ensuras dos diretores da Companhia das fn­ invasão do Afeganistão, que ocasionou os saques a Ghazni e Cabul,
d1as Orientais e do Presidente da Comissão de Controle em Londres em represália. Ellenborough teve a idéia de simbolizar a derrota dos
O Lorde William Bentick, governador geral de 1828 a 35, foi o primei� afegãos muçulmanos através do resgate do que se acreditava serem os
ro a aperceber-se da necessidade de estabelecer uma capital "imperial" Portais de Somnath, um famoso templo hindu de Guzerate (saqueado
longe de Calcutá, comentando com seus empregados em Londres e profanado seiscentos anos antes pelos muçulmanos, que levaram os
sobre a "necessidade de um ponto cardeal" que fosse sede do gover- Portais para o Afeganistão); os Portais foram trazidos triunfalmente
no. ' ' Para isso, escolheu Agra, por crer que fosse a capital de Akbar e para a lndia e colocados num templo recém-construído em Guzerate.
por acreditar que pouca diferença havia entre as condições políticas do Ellenborough publicou instruções para que os portais de sândalo atra­
tempo de Akbar e as do tempo atual , na medida que ambos os gover- vessassem a cidade de Punjabe numa carreta e fossem levados a Delhi,
nant �s preocupavam-se com a "preservação do império" . 1 2 Agra era escoltados por uma guarda de honra, com a devida cerimônia. Ellen­
considerada a "mais _brilhante jóia" da "coroa" do governador geral,' 3 ;•_•-.-.· borough chamou a atenção para seu intento publicando uma procla­
uma vez que se localizava "entre todos os cenários da glória passada e mação dirigida a "todos os Príncipes e Chefes e ao Povo da lndia" . A
futura, onde o império deva ser salvo ou perdido". 1 4 volta dos Portais seria, conforme proclamou Ellenborough. "o mais
esplêndido registro da vossa glória nacional; a prova de vossa superio­
. Quando Bentick levantou a questão da possibilidade de mudar a ridade militar sobre as nações além do Indo" . Pros!;eguindo, identifi­
capital, em 1829, a assembléia de diretores proibiu o estudo da mudan­
ça, as �everando que seu governo não era o governo de um único sobe­ cou-se com os povos e príncipes da ln dia tanto em "interesse como em
ran � � ndep �ndente, mas que a lndia "é governada por uma potência sentimento", afirmando que o "heróico exército" refletia "honra
mant1ma distante, e a posição da sede do governo deve ser considera­ imortal em meu país nativo e no adotado", e prometendo que preser­
varia e aperfeiçoaria "a felicidade de nossos dois países". ' Escreveu
8
da levando-se em conta esta circunstância peculiar" . Era exatamente
este p_assado marítimo/mercantil que Bentick tencionava mudar, pois uma carta no mesmo tom à jovem Rainha Vitória sobre o triunfo,
acrescentando que as "reminiscências da autoridade imperial (seriam)
�creditava que o caráter do governo britânico "não era mais o caráter agora transferidas para o Governo Britânico", e que o que restava a
incoerente de Soberano e Mercador",'l mas o de potência imperial.
Lorde Ellenborough, que havia sido presidente da Comissão de Con­ ser feito era tornar os príncipes da lndia "vassalos de uma Impera­9
trol� ?e. 1828 a 1 830, na �poca da investigação periódica do estado dos triz", se "Vossa Majestade viesse a ser cabeça nominal do Império" .'
temtonos da Companhia das lndias Orientais anteriormente à reno­ Ellenborough fez cunhar uma medalha especial para condecorar
va�ão _ de se� :ontrato de vinte anos pelo Parlamento, sugeriu ao então os soldados britânicos e indianos do exército da Companhia que servi­
pnme1ro-m1mstro, Duque de Wellington, que o governo da índia fosse ram na China duranie a Guerra do Ópio. O Duque de Wellington
transferido para a Coro a. " A sugestão foi recusada pelo Duque que, achou que Ellenborough, com esta iniciativa, usurpara as prerrogati­
segund_o Ellenborough, "estava preocupado em não criar divisões en­ vas da Coroa. 2º O ato de Ellenborough e sua proclamação relativa ao
tre os interesses comerciais de Londres". " retorno dos Portais de Somnath originaram críticas e insinuações mal­
Ellenbor�u�h tornou-se gov�rnador geral da India após a grande dosas entre os britânicos da lndia e da Inglaterra. Embora as preocu­
derrota do exercito da Companhia frente aos afegãos em 1842, e esta- pações de Ellenborough com as representações simbólicas da função
imperial para os britânicos na lndia não fossem a causa de sua demis­
são em _1 844, foram considerados representativos de uma concepção
do relac10namento entre Inglaterra e lndia que não encontrava grande
1 1 . "Bentic k . M i n ute 2 January 1 834". /. O. L. R .. Coleção da Com issão, apoio, nem na lndia nem na Inglaterra.
155 1 /62/250, p. 83.
1 2. lhid .. p. 94.
1 3. Jo hn Rosse l l i . Lord William Be11tick ( Berkeley, 1 974), p. 1 92 .
_
14. " Extract Political Letter to Bengal 3 J uly 1 829", /. O. L. R . . Coleção da Com issão
1 8 . John William K aye. Histor,· o(the War i11 A (ghanistan ( Londres, 1 85 1 ). l i . pp. 646-
1 370/54 '50X. p. 1 2.
7.
1 5. " Ben tick to C l . Di rector. M i n ute. 2 Jan uary 1 884", ibid. , p. 83.
19. Lorde Colchester (org . ). The Hi.Horr o(the lndian Administration of Lord Ellenho­
1 6. Alherl H . l m lah. Lord El/enhorough: A Biographr of Edward Law, Earl of El/embo­
_ rough ( Londres. s. d . ). p. 64.
mugh. Gol'emor <,,·11eral o/ lndia (Cam bridge. 1 939). p. 4 1 .
20. lhid . . pp. 324-38.
1 7 . lhid. . p . 42 .
186 187

As contradições e dificuldades para a definição de uma constitui­ insígnias e estandartes de cada loja, reunindo-se na praça em que o
ção simbólico-cultural remontam às tentativas, feitas durante a pri­ edifício seria construído.
meira metade do século XIX, de construir uma linguagem ritual que As Taças, Esquadro e outros implementas do Oficio foram então coloca­
servisse para representar a autoridade britânica junto aos indianos. A dos sobre o Pedestal . . . O Reverendo I rmão Bryce ... elevou uma prece so­
persistência no uso da linguagem mongol causou freqüentes dificulda­ lene ao grande Arquiteto do Universo ... Havia fileiras e fileiras de rostos
des, tais como penosas negociações entre os funcionários britânicos e humanos a perder de vista, e em todas as direções os nativos acotovela­
os súditos indianos a respeito de questões de precedência, formas de vam-se sobre os telhados, ansiosos para contemplar a imponente cena. 23
tratamento, os direitos preservados de usar títulos mongóis, o costume
ainda vigente de ofertar nazar ao imperador mongol, tanto do lado in­ A pós a prece. depositaram-se moedas em uma bandeja de prata com
diano quanto do lado britânico, e a concessão de khe/ats e emissão de a inscrição dedicatória no buraco sobre o qual seria colocada a pe­
sanads (cartas régias) na sucessão ao masnad nos estados indianos. dra fun damental. A pedra foi então depositada, ungida com milho,
Esta última prática era designada pelos britânicos "tráfico de sanads". óleo e vinho . Seguiu-se um discurso do Grão- Mestre Provincial. sendo
Não havia conflito apenas entre os nobres e elites e os funcioná­ o final da cerimônia assinalado pela execução do Hino Nacional,
rios britânicos, mas também no dia-a-dia dos tribunais e escritórios lo­ "Deus Salve o Rei". Não é apenas a linguagem ritual que é européia,
cais da Compan hia. no que tornou-se conhecido como a "contro­ mas também a instituição homenageada, e seu ideal público e cívico
vérsia dos sapatos" . Na Índia. os britânicos seguiam uma lógica me­ subjacente . A educação a ser oferecida nestas duas instituições deveria
tonímica em suas relações com seus súditos indianos, e o uso de sapa­ ser secular, não estando envolvida com a transmissão de ensinamentos
tos pelos indianos na presença dos britânicos era encarado como uma sagrados, como ocorria nas instituições educacionais nativas. Embora
tentativa de estabelecer relações de igualdade entre o governante e seus uma instituição se destinasse aos hindus e outra aos muçulmanos, não
governados. Por isso, os indianos eram sempre obrigados a retirar os havia restrições quanto à admissão de determinados grupos de hindus
sapatos ou sandálias quando entravam no que os britânicos definiam ou muçulmanos, como seria de se esperar na India. O fato de que os
como seu espaço - seus escritórios e lares. Por outro lado, os britâni­ fundos foram levantados por subscrição pública, encarada como um
cos sempre insistiam em usar sapatos ao entrar em espaços indianos, gesto de caridade à européia, assim como o uso de fundos levantados
inclusive mesquitas e templos. A única exceção importante ocorria no por meio de loterias, fazia com que a ocasião fosse, senão singular,
caso de um indiano que habitualmente usasse roupas européias em certamente inédita.
público: a este seria permitido usar sapatos na presença de seus chefes Nas primeiras décadas do século XIX abundaram as celebrações
ingleses em ocasiões de rituais à moda ocidental, como a recepção do das vitórias britânicas na índia e na Europa, chegadas e partidas de
governador geral, recepções reais, saraus ou bailes. governadores gerais e heróis militares, mortes e coroações de reis in­
Os britânicos experimentaram variadas formas de ritual para assi­ gleses e aniversários reais. A linguagem ritual destas ocasiões revelou­
nalar ocasiões públicas. O lançamento da pedra fundamental do Hin­ se idêntica à da Inglaterra, com fogos de artifício, paradas militares,
du College e do Muhammadan College (Colégio Hindu e Colégio Mao­ iluminação especial, jantares com brindes cerimoniais, acompanha­
metano) no ano de 1 824 em Calcutá foi celebrado "com as costumei­ mento musical, orações cristãs e, acima de tudo, discursos freqüentes.
ras cerimônias imponentes da maçonaria". 2 1 Os colégios foram funda­ Os indianos tinham uma participação secundária, como soldados nas
dos sob os auspícios do Comitê de Instrução Pública, composto de in­ paradas, como criados ou como platéias nas partes públicas das ce­
dianos e europeus que levantaram fundos principalmente de fontes lebrações.
privadas para estas instituições. Os colégios deveriam instruir os india­ CONTEXTUA LIZA ÇÃO DOS E VENTOS:
nos sobre os "princípios fundamentais das Ciências Morais e Físi­ O SIGNIFICA DO DO LEVA N TE DE 1857
cas" . :.· Os membros das diversas Lojas Maçônicas Livres de Calcutá
marcharam pelas ruas da cidade, liderados por uma banda, com as As contradições na constituição simbólico-cultural da índia britâ­
nica foram resolvidas no levante de 1857, tradicionalmente denomina­
do Insurreição Indiana, que acarretou a dessacralização da pessoa do
2 1 A . C . Da, G u pta (org. ), lhe Dars o{ John Companr: Selections from the Calcula
(ia:ell<'. / 824- / 832 (C alcutá, 1 959), p . 2 3 .
,, /hui .. p. �ó. 23. lhid.. p . 3.
19 1
190

tânicos e indianos, limitou-se a vinte e cinco membros que eram os


código de conduta para os príncipes e chefes que vinham ao durbar. prín cipes in�ianos mais _ importantes e funcionários britânicos civis e
Os trajes que usavam, as armas que podiam levar, o número de servos militares mais velhos e ilustres. Em 1 866, a ordem aumentou, com o
e soldados que poderiam acompanhá-los ao acampamento do vice-rei, acréscimo de duas categorias menores, e em 1877 já havia diversas cen­
o local onde eram recebidos por funcionários britânicos em relação ao :ti tenas de cavaleiros na ordem, donos de títulos pessoais concedidos
acampamento, o número de salvas de canhão em sua honra, a hora de ,_ pela Rainha. A investidura e a manutenção das categorias da ordem
entrada no salão ou tenda do durbar, se o governador se ergueria e vi-
ria cumprimentá-los, o lugar do tapete vice-real em que seriam cum-
1·� acrescentaram um importante componente europeu à linguagem ritual
que estava sendo estabelecida na f ndia. Os atavios da ordem eram in­
primentados pelo vice-rei, onde deveriam sentar-se, que quantidade de { gleses e " feudais" : uma túnica ou manto, um medalhão com a efígie da
nazar ofertariam, se teriam direito a 'serem visitados pelo vice-rei; to- ·...
Rainha (o uso de uma efígie humana era um anátema para os maome­
dos estes eram marcadores de hierarquia e poderiam ser mudados pelo tanos) e um pingente cravejado de jóias. A investidura era no estilo eu­
vice-rei para melhor ou para pior. Em concordância com o vice-rei, as ropeu. com a leitura da justificativa e a entrega dos distintivos, sendo
formas de saudação, os tipos de títulos indianos que os britânicos usa­ que o cavaleiro recém-agraciado ajoelhava-se diante do monarca ou
vam e as frases usadas ao final de uma carta eram todos classificados de seu representante. O aspecto contratual do merecimento ficava
e interpretados como sinais de aprovação ou louvor. constrangedoramente claro para os agraciados indianos, uma vez que
Da mesma forma, os indianos que estavam sob domínio britânico os atavios deveriam ser devolvidos após a morte do possuidor. Ao
direto eram normalmente classificados segundo suas cidades, distritos contrário das oferendas recebidas dos governantes indianos no passa­
e províncias contidas nos livros de durbar de vários funcionários. Os do. que eram conservadas como objetos sagrados em salas do tesouro,
líderes dos distritos eram hierarquizados de acordo com a receita pa­ para serem admiradas e usadas em ocasiões especiais, estas tinham de
ga, com a extensão das terras possuídas, árvore genealógica, atos de ser devolvidas. Os estatutos da Ordem exigiam que os agraciados assi­
lealdade ou deslealdade para com o governo britânico. Os funcioná­ nassem um termo segundo o qual os objetü's seriam devolvidos pelos
rios e empregados indianos do governo provincial ou imperial eram seus herdeiros. Os indianos também objetavam contra um dos estatu­
classificados por repartição, tempo de serviço e honrarias recebidas; o tos, que dizia em que condições o título seria cassado por atos de des­
povo, de acordo com a casta, a comunidade e a religião. lealdade. A Estrela da Índia tornou-se uma recompensa por "bons ser­
Imediatamente após o esmagamento da rebelião, e a transforma­ viços".
ção da rainha da Inglaterra em "fonte de honra" da í ndia, procedeu-se O relacionamento entre a Coroa e a índia estava começando a ca­
a investigações no sistema de títulos reais indianos, para ordená-los se­ racterizar-se por viagens dos membros da família real pela Índia, sen­
gundo uma hierarquia. Não só o sistema foi organizado, como tam­ do o primeiro o Duque de Edimburgo, em 1869. O Príncipe de Gales
bém os proprietários de títulos tiveram de "provar" por critérios esta­ fez uma excursão de seis meses à Índia em 1 875-6. As viagens reais não
belecidos pelos britânicos que tais títulos eram legítimos. Doravante só eram importantes na f ndia em termos de representação dos laços
apenas o vice-rei poderia conceder títulos indianos, baseado em reco­ entre os príncipes e os povos da índia com seu monarca, mas eram am­
mendação de funcionários locais ou provinciais. A base da concessão plamente divulgadas pela imprensa britânica. Após o retorno do
d.e títulos passou a ser especificada por atos de lealdade, serviço desta­ Príncipe de Gales, organizaram-se nas principais cidades inglesas ex­
cado e prolongado no governo, obras especiais de caridade, como doa­ posições dos presentes exóticos e caros por ele recebidos. Ironicamen­
ções para escolas e hospitais, contribuições para fundos especiais e te, um dos presentes principais ofertados em retribuição pelo Príncipe
"boa" administração dos recursos que visassem o aperfeiçoamento da de Gales foi uma tradução dos Vedas para o inglês, feita por Max
produção agrícola. Os títulos indianos eram vitalícios, embora hou­ MUiier.
vesse em algumas famílias proeminentes a crença de que se o sucessor No período de 1860 a 1877 ocorreu uma rápida expansão do que
desse ao chefe da família provas de bom comportamento, seria devida­ se poderia considerar a definição e expropriação da civilização indiana
mente recompensado com a renovação de um título já possuído, na pelos senhores imperiais. O domínio colonial baseia-se em formas de
próxima geração. As honrarias e títulos na década de 1870 estavam es­ conhecimento, assim como em instituições de controle direto. Desde
treitamente ligados aos objetivos expressos da nova ordem governa­ que Sir William Jones fundara, juntamente com outros estudiosos eu­
mental, "progresso e estabilidade". ropeus, a Sociedade Asiática de Bengala, em 1 784, houve um desen­
Em 186 1 , estabeleceu-se uma nova ordem de cavaleiros indianos, volvimento estável do acúmulo de conhecimentos sobre a história da
a Estrela da Índia. A princípio esta ordem, que incluía cavaleiros bri-
192 1 93

fndia, seus sistemas de pensamento, suas crenças e práticas religiosas,


e sua sociedade e instituições. Grande parte deste acúmulo era resulta- A LEI DOS TÍTULOS REA IS DE 1876
do da experiência prática em tribunais, na avaliação e recolhimento da Em 8 de fevereiro de 1 876, pela primeira vez desde a morte de seu
receita e o imperativo inglês anexo de ordenar e classificar as informa­ marido, em 1 86 1 , a Rainha Vitória abriu o Parlamento. Para gran�e
ções. Durante todo este período, cada vez mais europeus vieram a de- surpresa da oposição liberal, ela anunciou. em seu discurso, que sena
finir a chamada singularidade da civilização indi_ana . Tal definição in- ;, apresentado ao Parlamento um projeto de emenda a seus Títulos Ho­
cluía o desenvolvimento de um apare1ho destmado ao estudo das i noríficos Reais. No discurso ela referiu-se à "sincera afeição" com que
línguas e textos indianos, o que trouxe a pa?roniza�ão _e i n:i po_sição au­ seu filho, o Príncipe de Gales, então em viagem pela índia, estava sen­
toritária, não apenas aos europeus, mas ate aos propnos indianos, do do recebido "por meus súditos indianos". Para ela, isto provava que
que eles consideravam ser os "clássicos" do pensamento e da literatura "eles estão felizes com Meu governo, e são leais a Meu trono". 26 Ela
indiana. Através do incentivo à produção de livros didáticos nativos, portanto julgava que o momento era apropriado para fazer uma
os indianos começaram a escrever história à maneira européia, ado­ emenda aos Títulos.
tando freqüentemente idéias européias sobre o passado da lndia. Na Num discurso de 1 7 de fevereiro de 1 876, o primeiro-ministro,
década de 1 860 foi iniciado um levantamento arqueológico no qual os Disraeli. criticou as discussões de 1 858 com relação à elevação de Vitó­
europeus decidiam quais eram os grandes monumentos da India, quais ria a imperatriz da fndia. Naquela época, considerou-se prematura a
os monumentos que poderiam ser preservados ou descritos como par- idéia de fazer Vitória imperatriz, por causa das agitações na fndia. Po­
te do "legado" indiano. As operações de recenseamento e um serviço rém. continuou ele. nos vinte anos seguintes aumentou bastante na
de levantamento etnográfico ficariam encarregados de estudar "os po­ Grã-Bretanha o interesse pela f ndia. A visita do Príncipe estimulou
vos e culturas da Índia" e de colocar tais dados à disposição, em mo­ um sentimento de si mpatia entre os dois países, e Disraeli tinha certeza
nografias, fotos e tabelas estatísticas, não só de seus funcionários mas de que um título imperial. cuja natureza exata não especificou, "dará
dos cientistas sociais, de maneira que a fndia pudesse fazer parte do la­ grande satisfação, não apenas aos Príncipes, mas às nações da f n­
boratório da humanidade. Os britânicos acreditavam que as artes e dia". 2 · Simbolizaria a "determinação unânime do povo deste país de
ofícios indianos haviam entrado num período de acentuado declínio conservar nossa ligação com o Império Indiano". 2 ' Neste discurso,
diante da tecnologia e dos produtos industrializados ocidentais, daí a Disraeli frisou a diversidade da f ndia, pintando-a como "um país anti­
necessidade da coleta e da rreservação e colocação destas artes e ofi­ go, feito de várias naçõe5", povos e raças variegados, "diferentes
cias em museus. Além disso, fundaram-se nas principais cidades esco- quanto à religião, aos costumes e às leis - algumas bastante elabo �adas
las de arte onde os indianos poderiam aprender a criar esculturas, pin­ e civilizadas, e muitas de rara antigüidade". "E esta vasta com unidade
turas e artesanato com conteúdo indiano, mas atraentes e aceitáveis é governada", continuou ele, "sob a autoridade da Rainha, por vários
para o gosto europeu. Os construtores arquitetos indi�nos começa�am Príncipes Soberanos, alguns dos quais ocupam tronos ocupados por
a erguer edificios de estilo europeu, só que com motivos decorativos seus ancestrais quando a Inglaterra ainda era Província Romana."'" A
"orientais". O governo imperial criou comitês para procurar e preser·· mirabolante fantasia histórica proferida por Disraeli fazia parte do
var manuscritos vernáculos em sânscrito, em persa, em árabe. Os in­ mito mais tarde encenado no Congresso Imperial. A fndia era uma di­
dianos educados viam-se cada vez mais forçados a aprender sobre sua versidade - não tinha uma comunidade coerente, a não ser aquela pro­
própria cultura por intermédio de idéias e conhecimento europeu. Os piciada pelo domínio britânico, sob o sistema integrador da coroa im­
governantes britânicos definiam cada vez �ais o que era indi_an'? num perial.
sentido oficial e "objetivo". Os indianos unham de parecer indianos: Assim, no fundamento da defesa do projeto pelos conservadores,
antes de 1 860. os soldados indianos, assim como seus oficiais euro­ estava a idéia de que os indianos eram um povo diferente dos britâni­
peus, usavam uniformes de estilo ocidental; agora os uniformes de cos. Eram mais suscetíveis a frases grandiloqüentes, e seriam melhor
gala dos indianos e ingleses incluíam turbantes, faixas e túnicas consi­
deradas mongóis ou indianas.
A visão rei ficada e objetificada da f ndia, de sua vida, pensamento 26. H ansard. Par/iamentarr Dehate.1 ( 3 . sér.. C C X X V I 1. 1 876). p. 4.
sociologia e história seriam reunidas para celebrar a consumação da 27. lhid.. p. 409.
constituição política da f ndia, através da transformação de Vitória em 28. lhid .. p. 4 1 0.
imperatriz da fndia. 29. lhid .. p. 409.
1 94 1 95

governados através de algo que fascinasse sua imaginação oriental, Lytton escolheu Burne como seu secretário par:icular para "aj u­
"pois atribuem um enorme valor às mais ínfimas diferenças" . 30 Argu­ dar a restaurar relações amistosas e saudáveis entre a Índia e o A fega­
mentou-se que, dadas as relações constitucionais entre a Índia e a Grã­ nistão e, ao mesmo tempo, proclamar o título imper:al indiano, ambos
Bretanha, os príncipes indianos eram de fato vassalos, e a ambigüida­ assunto s", escreveu Burne, "sobre os q uais todos reconheciam que eu
de existente no relacionamento entre os príncipes e a supremacia britâ­ tinha conhecimento especial". 3 2 Como acontecia com a maioria dos
nica seria diminuída se o monarca britânico tivesse o título de " Impe­ vice-reis, Lytton chegou à ln dia sem saber quase n ada sobre o país ou,
rador". Embora alguns governantes indianos fossem chamados de o que talvez fosse mais importante, nada sobre o funcionamento do
"Príncipes" em inglês, seus títulos em línguas indianas eram de reis, governo colonial. A maior parte dos mais graduados funcionários do
por exemplo, M arajá. Com o título imperial, a ordem hierárquica se­ Império provinham do funcionalismo público, ou seja, tinham de vin­
ria nítida e inequívoca. A Rainha Isabel já tivera um título imperial, e te a trinta anos de experiência e relações bem tramadas por toda a bu­
assinalou-se que, na prática, desde a época em que Canning estivera rocracia, assim como uma capacidade altamente desenvolvida para as
na Índia, os títulos imperiais eram usados para referir-se à Rainha pe­ intrigas políticas. Os vice-reis q ueixavam-se amargamente das frustra­
los príncipes e governantes asiáticos independentes, tais como os Emi­ ções na implementação de seus planos e políticas impostas pela situa­
res da Ásia Central. I nsistiu-se, porém, q ue os britânicos eram suces­ ção política na I nglaterra. Coube ao secretário particular do vice-rei
sores dos mongóis, que possuíam uma coroa imperial recon hecida por articular o escritório do vice-rei com a burocracia. As questões de indi­
indianos de todas as classes. Os britânicos, segundo os conservadores, cações, promoções, colocações e atribuição de honrarias passavam , a
eram sucessores do imperador mongol; daí ser próprio e correto que a princípio, por suas mãos. Os vice-reis dependiam do conhecimento do
monarca da lndia, a Rainha Vitória, fosse declarada imperatriz. secretário particular sobre relações pessoais e facções no seio da buro­
O projeto de Lei dos Títulos Reais foi aprovado, e recebeu a san­ cracia, e sobre sua capacidade de utilizar o poder do vice-rei com êxito
ção real em 27 de abril de 1 876. A necessidade de superar o áspero de­ em relação ao funcionalismo público. Após vinte anos de experiência
bate, a cobertura jornalística antagônica, principalmente quando apa­ em várias posições do quadro, Burne já conhecia grande parte dos fun­
recia nos j ornais indianos e era debatida por indianos educados no cionários da fndia, e por causa de seu serviço na I rlanda e em Londres
ocidente, tornou-se parte da base para o planejamento do Congresso era bem relacionado com os líderes políticos do R eino Unido.
Imperial. Os três principais planejadores do Congresso, D israeli , Salis­ O planejamento do Congresso Imperial começou em sigilo, logo
bury (secretário de estado para a Índia) e Lorde Lytton (o recém­ após a chegada de Lytton e Burne a Calcutá, em abril de 1 876. Estabe­
indicado vice-rei), perceberam que o Congresso teria de ser planejado leceu-se um comitê que incluía T. H. Thornton, secretário do exterior
para impressionar tanto os ingleses quanto os indianos. ativo do governo da Índia, responsável pelas relações com os príncipes
e chefes indianos. e o General de B rigada ( mais tarde Marechal de
A S IN TENÇÔES DOS PLA NEJA DORES Campo) Lorde Roberts, quartel-mestre geral do exército indiano, in­
DO CONGRESSO IMPERIA L cumbido de executar o planejamento militar do Congresso. No com itê
O L orde Lytton , recém-indicado vice-rei e governador geral, vol­ figurava também o Coronel George Colley, secretário de Lytton para
to� à Inglaterr� de _Portugal, onde estivera exercendo o cargo de em­ assuntos militares, e o M ajor Edward Bradford, do departamento
baixador, e em J aneiro de 1 876 já havia i niciado o processo de superar político, chefe da polícia secreta recentemente fundada.
sua "absoluta ignorância . . . em relação à Índia". Este processo i ncluiu O presidente do comitê era Thomas Thornton, que havia servido
r�uniões em fevereiro com membros do pessoal do Ministério da fn­ principalmente em posições do secretariado; tinha sido secretário do
·dia, e outros encontros em Londres com pessoas consideradas "espe­ governo do Punjabe durante doze anos, antes de exercer por pouco
cialistas" em Índia. O mais influente era O. T. B urne, que m ais tarde tempo o cargo de secretário do exterior. O General Roberts, que tinha
acompanhou Lytton à Índia, como secretário particular, e era conside­ reputação de especialista em logística, foi encarregado de planejar os
rado por Lytton o criador do plano do Congresso. 3 1 acampamentos em Delhi. 33 Lorde Lytton ficou m uito impressionado

32. General de D l \ 1 "io S i r (h, e n Tudor Burne . . \femorin ( Lo n d res. 1 907). p. 204. e
pa.nin1 . sohrc \ U J l.:Jrrcir�t .
30. /hid. . p . 1 7 50. 33. M a re, h a l-de-Ca m po Lorde Ro hcrto de K a ndahar. Fortr-one t'ean in lndia. ( N o­
31. De Lytton a Salisbury . em 1 2 de agosto de 1 876, /. O. L R . . E2 1 8 / 5 1 8 / I . p . 367. va Iorque. 1 9()() ) . pp. 9 1 -2 .
196 1 97

com os talentos de R oberts. D evido à forma como se desincumbiu do tradição de (nossos) súditos ind ianos, o esplend or do poder supre­
planejamento do Congresso. foi d esignado para comandar as forças m o!"w Por isso, tomou-se a decisão de realizar a reunião em D elhi, a
britânicas no Afeganistão, tarefa de importância capital para a carrei­ cap ital mongol. ao invés d e em Calcutá. Nesta época, D elhi era uma
ra p osterior de R oberts na f nd ia e na I nglaterra. 34 ci dad e rel ativamente pequena, qu e estava se recuperando da destrui­
O comitê aproximou-se d as idéias e sugestõ es de um grupo peque­ çã o sofrida no levante de 1857. A população da cidade era tratada
no _e intluente de ofi� iais políticos. homens que haviam servido por como um povo subjugado. U ma d as " concessões" divulgadas em fa­
mui tos anos como residentes ou como agentes dos governadores gerais vor da rainha no Congresso foi a reabertura do Zinat ui Musajid, há
nas principais cortes indianas. Nos estágios iniciais do trabalho o Ge­ m uito fechado por "motivos militares" à visitação e adoração pú blica.
neral-de- Brigada Henry Dermot üaly. s obre o q ual Lytton escreveu e a resti tuição da Mesquita Fatepuri, em Chandi Chowk, aos muçul­
"há um consenso universal em torno da idéia de que não existe na ln­ m anos de Delhi; este templo havia sido confiscado em 1 857:º
dia u m homem que saiba lidar tão bem com os Príncipes Nativos A escolha de Delhi para local do Congresso também evitaria q ue
como D aly' '.3' também fez parte do grupo, ao que parece. Daly argu­ se associasse a coroa a um centro regional diferente, tal como Calcutá
mentava que fazer um durbar com todos os pri ncipais príncipes repre­ ou Bombaim. Delhi apresentava a vantagem de estar situada numa re­
sentados seria impossível, por causa dos ciúmes e susceptibilidades dos gião relativamente centr al, embora lá os recintos disponíveis para
chefes. 1• A maioria dos especi alistas em política acreditava que "fatal­ grandes reuniões fossem poucos. O local da assembléia rela cionava-se
mente surgiriam questõe s de preced ência e queixas ted iosas de tod as as com a Delhi britânica, não com a mongol, pois não foi o amplo Mai­
espécies. assim como rancores e melindres, o que causaria difi culdades dan diante do Forte Vermelho (que foi purifi cado e hoj e é o centro ri­
ainda mai s sérias" .,- Lytton tentou abrandar a oposição dos oficiais tu al político da fn dia). m as um l ugar próxim o à serra, escassamente
políti cos. ignorando-os sem qualquer resposta, e insistindo que a reu­ povoado, palco da grande vi tóri a britânica sobre a R ebelião. O acam­
nião em Delhi não era um durbar, mas um "Congresso I mperial" . As­ pamento britânico localizava-se na crista da serra, alongando-se para
sim. el e esperava qu e a questão d a precedência não surgisse, e que, o leste, em direção ao rio J amn a.
controlando cuidadosamente as visitas aos príncipes, não p recisasse O Congresso d everia ser uma ocasião que despertasse o entusias­
tratar de várias disputas territoriais. 3 8 m o da " aristocracia nativa do país, cuja simpatia e cordial fidelidade
Ao fi nal de julho de 1 876, o comitê já havia terminado seu plane­ consti tu em considerável garantia de estabilidade. . . para o I mpério I n­
jamento preliminar. O plano foi apresentad o ao conselho do vice-rei, diano" ." Lytton procurava criar laços mais fortes entre esta "aristo­
sendo enviada uma súmula a Londres, para ser aprovada por Salisbu­ cracia" e a coroa. Acreditava que a fndia jamais poderia manter-se
ry e Disraeli. A esta altura, já em princípios de agosto, foi mantido um apenas com a políti ca do "bom governo" , ou seja. melhorando as con­
estrito sigilo, pois Lytton temia que uma d ivulgação precoce do plano diçôes do rro1 ( agricultor ). arlicando arenas a j ustiça. e gastando so­
levasse a u m protesto geral na imprensa indiana - européia e indiana ­ mas consideráveis em obras de irrigação.
sobre certos detalhes do plano; receava também que ele causasse um A suposta susceptibilidade especial dos indianos aos desfiles e es­
debate tão "indecoroso" quanto o que assinalara a L ei dos Títulos retáculos e a rosiçào estratégica da aristocracia foram os temas que
R eais. definiram o Congresso que, por su a vez, segundo escreveu Lytton, d e­
Lytton esperava alcançar um i ncrível êxito com o Congresso. Es­ via intluenciar também a "opinião pú blica" na Grã-Bretanha, e fun­
perava que ele visivelmente " colocasse a autoridade d a R ainha no an­ cionaria como apoio ao governo conservador na I nglaterra. Lytton ti­
tigo trono dos mongóis, ao qual se associa, segundo a imaginação e a nha esreranças de q ue u m C o ngresso bem-sucedido. q ue causasse co­
mentários favoráveis na i mprensa, e que exibisse a lealdade dos prínci­
pes e povos da f ndia, provaria a sensatez d a Lei dos Títulos R eais.
.� 4. O. l. Hurnc . ººlhe Lmprcss of l ndia"". A siatic Quarter/_i- Reriei.·. I l i ( I XX7). p. 22.
Ly tton queria que o Congresso unisse ainda mais as comunidades
.15. lk t, tton a Sali,hur} . cm 1 1 de maio de I X75. 1. 0. L. R . . E2 1 X 1 5 1 X 1 1 . p. 1 47. britâni cas d irigentes e não-dirigentes da f nd ia, em apoio ao governo.
H, lh1d . . p 1 49 .
.1 7 . 1 . A i... n ug h t . cm ,cu artigo. 'ºlhe Royal Titles Act a n d l ndia ·· . Historical Journal
X 1 . n . .1 ( 1 %X). pp. 4XX-507. dá pormenores acerca das disputas de terras da época que
,upmt a mentc poderiam fa,cr-se notar no durhar: T. H . Thornton. General Sir Richard 39. De 1 , tton :i R a i n h a Vitúria. em 2 1 de ahril de 1 876. /. O . L . R .. E 2 1 X 5 1 X 1
,\fead,· ( Londres. I X9X ) . p. 3 1 0. 40. /. O .R /. . Cartas políticas e secretas da lndia . j an. e fev . 1 877 . n . 24. par. 20.
1X. De L}tton a Salishun . em 1 1 de maio de 1 876. /. O R. L . . E2 1 X ' 5 1 X 1 . p. 1 49. 41. De t } tl!ln ,1 R a i nha V i tória . 4 de maio d e 1 X76. / . O. L. R . E 2 1 X 5 1 X ·. ! .
1 98 199

Tal expectativa não se confirmou no Congresso. Os governadores de transformação, composta de comunidades: Estas podi_a m ser de gran­
M adras e Bombaim aconselharam que a assembléia não se realizasse, des dimensões e relativamente amorfas, tais com o a �md � /m �çulma­
e houve momentos em que se pensou que o governador de B om bai m na/sique/cristã/anim ista; r odiam ser vaga�ente reg1ona1s, �ais como
nem compareceria. Ele alegou q ue havia em Bombaim uma grande ca­ a bengali e a guzerate; pod1_am ser cas�as, tais c �m o a dos bramane� , .ª
rcst ia. 4 uc seria preciso ficar lá: os gastos feitos com a particip ação do dos rajaputros e a dos banianos; podiam tambem basea �-se_ em cnt�­
governo central ou do representante da província seriam . melhor apli­ rios educacionais e ocupacion ais, sendo compos�as por 1 �dianos oci­
cados para mi norar a fome. A m bos os governadores queixaram-se d o dentalizados. Os governantes ingleses que entendia � a l n_d 1a c?mo um
descontrole causado pela sua ausência do governo d urante d uas sema­ todo formado de com unidades procuravam controla-las 1dent1ficando
nas, quando dispunham de inúmeros funcionários que poderiam re­ para isso os "h omens representativos", líderes q ue, segundo se supu­
presentá-los no Congresso. nh a falavam em nome da comunidade e respondiam por ela.
M ui tos britânicos que no momento estavam na ln dia, tanto diri- i ' Segundo a teoria feudal, havia uma "aristo_cracia � ativa" n_a ln­
gentes com o não, e mui tos jornais britânicos i n fluentes consideraram Í di a. Lytton, para definir e regulamentar esta ansto_crac1� : planeJou a
a reunião como parte de uma política de exaltação dos "negros", e de in stituição de um conselho privado e uma Academia M 1htar em Cal­
dem asiada atenção aos indianos, porque a maioria das concessões e cutá. O consel ho privado seria puramente consultivo, convocad? pelo
privilégios destin ava-se aos indianos. Lytton escreveu que teve de en­ vice-rei "que manteria todo o mecan ismo sob seu controle" . 44 A in ten­
frentar "as d i ficuldades práticas de satisfazer ao elemento europeu , çã o de Lytton era organizar a constituição do conselho privado "d_e
que tem uma tendência à reclamação, e de superar o problema de fa. modo a tornar possível ao Vice- Rei, em bora parecesse consultar a opi­
\ ll rt:ccr m a i s o co n q u istado que o povo conqui stador" .'' nião nativa, a submissão dos mem bros nativos, assegurando, ap:sar
A oposição aos planos em Londres e na lndia foi tão forte que disso, o prestígio de sua presença e anuência".'' O plano de organizar
Lytton escreveu à Rainha V itória: um conselho privado na Í ndia logo esbarrou em problemas de ordem
constitucional e na oposição do conselho para a lndia em Londres.
Se a Coroa da I nglaterra alguma vez tiver o i nfortúnio de perder o vasto e Era necessária uma lei parlamentar para que se estabelecesse tal conse­
magnífico império da ln dia, não será por deslealdade da parte dos súditos lho e o Parlamento não se reuniu durante o verão e o outono de 1 876.
nativos de Vossa M ajestade, mas por um espírito de desunião na Grã­ Co�seqüentemente, anunciou-se, no Congresso, a nomeação de vinte
Bretanha, e a deslealdade e insubordinação dos membros do Serviço In­
"Conselheiros da Imperatriz", com o objetivo de " di rigir-se, em deter­
d i a no de Vossa M ajestade. cujo dever é coopera r com o G overno . . n;i
e wcu.,:;1 0 disci p l i nada e fiel de suas ordens.'' minadas épocas, com o fim de resolver assuntos im portantes, aos
Príncipes e Chefes da fn dia, para ouvir seu parecer e seus conselhos,
A SOCIOLOGIA COLONIA L E O CONGRESSO associando-os assim ao Poder Suprem o" .••
A Academ ia M ilitar de Calcutá seria o equivalente i ndiano d a
Em termos a n alíticos, o objetivo do Congresso foi manifestar e Academ ia M i litar Britânica d e Londres, o q ue realmente estabeleceria
torn ar imperiosa a sociologia da lndia. Os convidados foram �scolhi­ e organizaria uma "aristocracia_" p ara a ln dia. Os tít � l ? s _i ndianos h �­
dos com base em idéias dos governantes ingleses sobre qual sena a or­ viam sido um problema q ue afligia os gover ? antes bnt� n icos_ da _l ndia
dem social adeq uada para a fndia. Embora se en fatizasse o poder feu­ desde o início do século X I X . Aos o lhos dos mgleses, nao havia h ierar­
dal dos prínci pes e a "aristocracia natural", o Congresso também in­ quia fixa e linearmente ordenada, nem q ualquer sistema com � m de
cluía outras categorias de in dianos, os "cavalhei ros nativos", os "s�­ títulos, como o existente na sociedade b ritânica. Os títulos considera­
nhores de terras", os "editores e jornalistas", e " homens representati­ dos reai s pelos ingleses, como os de rajá, marajá, n ababo ou ba_h �dur,
vos" de várias categorias. Na década de 1 870 evidenciou-se uma con­ pareciam ser u sados ao acaso pelos i ndianos, e não eram cond1c1 ? na­
tradição na teoria britânica da sociologia indiana. A lguns membros do dos ao controle efetivo de nenhum território ou cargo, nem a um siste­
grupo dom i nante britâ nico encaravam a fndia, em termos históricos, ma h ierárquico de di ferenças de status.
como uma sociedade feudal formada por proprietários, chefes e cam­
poneses. Outros b ritânicos consideravam a lndia uma sociedade em
44. De 1 , 1 11>11 a Sali,hun . em .lO de jul h<l de I X 7ó. ihid.. p. 3 1 X.
42. 45. thid . . r 1 1 9
De L , t t<ln a Sali,hun . em JO de outuhro de I X7ó. ihid.
-tJ .
v
D e 1 ; l l<ln ú R a i n h a ° i tória. e m 15 de no,em hro de I X7ó. ihid. 46. <,a:c11.- o/ /11dia. ed1<;,1<l e,t r.1<lrdin,ir1a. i " de janeiro de I X77. p. 1 1 .
200 20 1

Havia, coordenado ao plano da fundação da Academia Militar assegurada e utilizada de forma eficiente pelos britânicos. Além de seu
facilmente
um plano de apresentar no Congresso Imperial noventa dos mais de; poder sobre as massas, a aristocracia indiana poderia ser e in­
tacados príncipes e chefes indianos, trazendo enormes estandartes en­ m anob rada. se corretamente seduzida, pois "deixam- se facilment
galanados com seus brasões. Tais estandartes tinham o formato de es­ fluenciar pelos sentimentos, e são suscetívei s à influência dos símbolos
s,
aos quais os fatos correspondem inadequadamente". º Os britânico
1
cudos, à moda européia. Os timbres também eram europeus, com
componentes heráldicos derivados da história da casa real correspon­ co ntinu a Lytton. poderiam ohter "sua lealdade sem abdicar de sequer
dente. As representações "históricas" dos timbres incluíam as origens uma parcela de nosso poder".'' Para reforçar seu raciocínio, Lytton
míticas das famílias, eventos que relacionassem as casas ao domínio referiu-se à posição britânica na Irlanda e, principalmente, à recente
mongol e, principalmente, aspectos do passado que ligassem os prínci­ experiência com os gregos jônicos que, apesar do "bom gove_rno_" a
pes e chefes indianos ao domínio inglês. eles concedido pelo domínio britânico, comprometeram entus1ast1ca­
Os estandartes foram apresentados no Congresso Imperial aos mente todas as vantagens por aquilo que chamou de "um paninho
príncipes indianos que compareceram. Estas apresentações substituí­ com as cores gregas". Acrescentou ainda, para frisar sua opinião a res­
ram a antiga prática mongol da troca de nazar (moedas de ouro) e peito da aristocracia indiana. que "quanto mais para leste se vai, mais
peshkash (bens de valor) por khelats (trajes de cerimônia), que caracte­ im portância se dú aos paninho s" . ·
rizava a prática britânica anterior nos durbars. Ao eliminar os rituais
de incorporação. os britânicos completaram o processo de redefinição
A REPRESE/1.' TA ÇiO DA SOCIOLOGIA COL ONIA L NA ÍNDIA :
da relação entre dominador e dominado, iniciado em meados do sécu­ OS CON VIDA DOS PA RA O CO.� GRESSO IM PERIA L
lo XV III. O que fora um sistema de autoridade baseado na incorpora­
ção dos subordinados à pessoa do imperador era agora uma expressão No centro do palco. de acordo com os i dealizadores da reunião.
de ordem hierárquica linear, na qual a oferta de um estandarte de seda ficariam os 63 príncipes regentes que compareceram a Delhi. Segundo
tornava os príncipes indianos súditos legítimos da Rainha Vitória. Na Lytton, eles governavam 40.000 pessoas e possuíam territórios maio­
concepção britânica da relação, os príncipes indianos tornavam-se ca­ res do que a França, a Inglaterra e a Itália.' 1 Os chefes em exercício e
valeiros ingleses. e deviam obedecer à Rainha e prestar-lhe vassala­ os trezentos "chefes titulares e aristocratas nativos" que comparece­
gem. ram foram considerados a "nata da nobreza indiana". Lorde Lytton
Lytton estava ciente de que alguns dos funcionários graduados escreveu a respeito:
mais experimentados e práticos, que haviam trabalhado na fndia e Entre eles estavam o Príncipe de Arcot e os Príncipes de Tanjore, da
agora eram membros da secretaria de estado para o conselho da fndia, Província de M adras: o M arajá Sir Jai M angai Singh, e alguns dos princi­
considerariam a apresentação das bandeiras e a fundação da Acade­ pais Talukdars de Oudh; quarenta representantes das mais destacadas
mia Militar como coisas "banais e tolas"." Para Lytton, tal reação se­ fam ílias da Província do Noroeste, descendentes da ex-família real de De­
ria um grave erro. "Do ponto de vista político", escreveu, "o campesi­ lhi; descendentes dos Saddozai de Cabul, e os Chefes Alora de Sind, sar­
nato indiano é uma massa inerte. Seu único movimento é o de obe­ dares siques de Am ritzar e Lahore, rajaputros das colinas de Kangra; o
diência. não a seus benfeitores britânicos, mas a seus chefes e príncipes Senhor semi-independente de Amb, na fronteira de Hazara, enviados de
nativos. por mais tiranos que sejam".48 Chilrai e Yassin, vindos no cortejo do M arajá de Jamu e Cachemira; ára­
Os outros possíveis representantes políticos da "opinião nativa" bes de Peshawar, chefes Patas de Kohat e Derajat; Tomduis Biluques de
Dera G hazi K han; cidadãos proem inentes de Bombaim; nobres gondes e
era o que Lytton desdenhosamente denominava "babus", que haviam maratas das Províncias Centrais; rajaputros de Ajmir e nativos da Birmâ­
aprendido a escrever "artigos meio subversivos na Imprensa Indiana, nia, da fndia Central, Maiçor e Baroda."
e que nada representam. a não ser a anomalia social que é a sua posi­
ção":• Ele sentia que os chefes e príncipes não eram uma mera nobre­
za, mas uma "poderosa aristocracia", cuja cumplicidade poderia ser
50. thid .. r l 'iO.
51. lhid.
47. De L� tton a Salishury . em 1 1 de maio de 1 876. /. O. L. R. , E2 1 8/5 1 8 / I , p. 1 49. 52. lhid.
4X. lhid. 53. /. o L R. . Cartas rolíticas e secretas da Í ndia. fev. 1 877. n . 24 . par. 5 .
49. lhid. 54. /hitf.
203
202

Esta ladai nha de nomes, títulos e lugares era para Lytton e para os in­ A sociologia colonial na Índia não era absolutamente fixa e rigi­
gleses a personi fi cação do Congresso. Os nomes exóticos, os títulos d amente ordenada e classificada. O si stema classificatório baseava-se
"extravaga ntes" e. acima d e tudo, a elaborada vari edade de trajes e em critérios múlti plos. que variavam se_gu� do o temp � � segund ? a � e­
aparências foram constantemente comentados por observadores ingle­ gião. A classificação ba� e.a� a-se em d ? 1s tipos de .: ri terios: º primeiro
ses do Congresso. A li sta de convidados incluía representantes ? e mui- referia-se ao que os bri tamcos acreditavam _ ser natural . , t�l � orno
tas das famílias reais i ndianas despojadas, tais como o filho mais velho casta, raça e religi ão; e o segundo dizia respeito a aspec� os soc_1a1 s que
do "ex- R ei de Oudh", o neto do Sultão de Tipu, e os membros da "ex­ poderiam i ncluir aprovei tamento, educaç�� - tant? � c1denta1s como
família real d e D elhi" (a Casa do Imperador M ongol). O compareci­ indianos -. o financia mento de obras de uti lidade publt � a. atos _de leal­
mento d estes descendentes d as antigas grandes dinastias governantes dade aos governantes britâni cos e a história da família, considerada
da índia emprestou ao Congresso um certo sabor de triunfo romano. em termos de descendência e genealogia. O que os ingleses chamavam
:;; de "aristocracia natural" da fndia era por vezes confrontado com a ca­
A concepção bri tânica da hi stória i ndiana, assim, concretizou-se, sob
a forma de um "museu vivo", formado pelos descendentes tanto dos tegoria dos "ari stocratas nati vos", cujo sta__rus. bas� a�� -se em s� as
inimigos quanto d os ali ados dos i ngleses, a reviver o período de con­ açõe s ( critérios sociais), não em sua descendenc1a ( criterios naturais).
quista da lndia. Os " governantes" e "ex-governantes" eram p ersonifi­ A maioria dos vinte e doi s i ndianos convidados pelo governo
cações fossi lizadas de um passado cri ado pelos conquistadores britâni­ como "ari stocratas nati vos" eram grandes proprietários, que contro­
cos no final do século XV III e princípio do XIX. Toda esta "hi stória" lavam extensos terri tórios, tai s como H atwa, Darbangha e Dumro� n
reuni u-se em D elhi, para anunciar, exaltar e glorifi car o pod er britâni- em Bihar. ou homens como J ai M agal Singh de M onghyr, que havia
co representado pela figura d e seu monarca. 5 ' prestado servi ços de leald ade d urante a " R ebeli ão" de Santhal e o
"L evante" de Sepoy . ''
A reunião d e passado e presente foi anunciada na primei ra pro­ O conti ngente d e "nobres e ari stocratas nati vos" de M adr� s � ra
clamação ofi cial d o Congresso Imperial, quando se afirmou que entre liderado por descendentes dos doi s governantes depostos: o princ1pe
os que seriam convidados estavam "os Príncipes, líderes e os nobres, de Arcot e a filha do último marajá d e Tanjore. Além dos grandes pro­
em cujas pessoas se associa a ambigüidade do passado à prosperidade pri etári os da província de M adras, _ os me� b� o_s indj an_os da As­
do presente" . 56 Indianos de todas as partes do Império e até mesmo al­ sembléia Legi slati va de M adras e d ois func10nari � s pubhcos _m_enos
guns asiáticos de outros paí ses confirmaram, com sua di versidade, a graduados também se enco� travam entre_ os �onv1dados ? fi c1a1s. ?
necessidade do domínio bri tânico imperial. O Vice-R ei , representando contingente de "nobres e ari stocratas nativos de B ombaim era • o
a imperatriz, consti tuía o único poder que poderia i ntegrar a i mensa m ai s variado, tendo sido aparentemente escolhido por qualida� es re­
diversidade i nerente à "sociologia colonial". A unidade do i mpério era presentativas. A cidade de B ombaim enviou dois p arses, dos quais um,
li teralmente concedida pelos governantes britâni cos, superiores e Sir J amesetji J ajeebhoy, era o úni co i ndiano da época que possuía u�
abençoad os. M encionou-se freqüentemente a di versidade nos discur­ título heredi tário de cavalei ro tendo sido nomeado chefe da comuni­
sos, característi cos dos dez dias d e ati vidades do congresso. N o ban­ dade parse de B ombai m pel� governo britânico. Além disso, havia
quete solene antes do iníci o do Congresso, diante de uma audiência também um mercador proeminente, considerado " membro represen­
composta de indianos em " trajes nati vos" e de britânicos de sobreca­ tati vo da comunidade maometana", i ntercessor governamental d o su­
saca ou uniforme, Lytton proclamou que se alguém quisesse conhecer premo tribunal d e B ombaim, e advogad o bem sucedido. Das " comu­
o signifi cado do título i mperial, bastaria "olhar ao redor" e ver um im­ nidades" da cosmopolita Bombaim, d uas eram parses: d � as _marata� ,
pério de "tradições e população numerosas. povoado por uma varie­ uma guzerate e a outra muçulmana. D o resto da p rovmcia vieram di­
dade quase infi nita de raças, cujo caráter foi moldado por i numeráveis versos proprietários, um juiz de tribunal de pequenas causas, um sub­
crenças" ." coletor. um professor de matemática da faculdade do D ecão, e o tra­
dutor oriental do governo de B ombaim. 59

5 5 . Para ohtcr .t l ista dos principais convidados consultar ihid.. ap. 1 e 2 .


56. Ga:c11,· of !lldia. ediçfo ext raordinária. 18 ago. 1 876. SX. /. () L R . C artas pol íticas e secretas da l ndia. jan. e fev. 1877. n. 24. ap. 2 .
57. /. O L R. . Cartas políticas e secretas da lndia. fev. 1 877. n . 24. ap. 1 1. "Speech of 59. lhid.
..
Lord l.� tton al Stale Banque! .
204 205

L OGISTICA E PLA NEJA MENTO F{S/CO: A CA MPA MENTOS, m enta s da cavalaria - aproximadamente 14.000 homens - q� e compa­
A NFITEA TRO E MO TI VOS DECORA TI VOS receram ao Congresso, havia 8.000 tendas armada s em Del h1 e nos a r­
redores para abrigar os convidados. No total, havia pelo menos 84.000
No final de setembro de 1876, já haviam sido feita s as listas de .
pessoa s no Congresso, das quais a penas 1 . 169 _ eram eur? péia� •
convidados e enviados os convites. Agora o planejamento ocupava-se O acampamento imperial central estendia-se por tres qu1lome­
dos preparativos propriamente físicos para o Congresso, o l ocal e pre­ tros, com um quilômetro e mei o de largura, nas planícies contígu� s. ao
paração das áreas dos acampamentos, que deveriam oferecer acomo­ la do nordeste da serra de Delhi, ocupando os campos do posto m1htar
dações adequadas para mai s de 84.000 pessoas, que convergiriam a anteri or à Rebeli ão. O complexo de tendas do Vice-R ei dava para a es­
Delhi no final de dezembro. Os acampamentos. estendiam-se num trada principal, de modo a ser facil mente acessí vel ao imenso número
semicírculo d e deL quilômetros, a partir da estação ferroviária de De­ de visitantes, europeus e indianos, que receberia para audiênc\ a s.
lhi. A preparação do local exigiu o despejo de cem aldeias, cujas terra s Wheeler, historiador oficial do Congresso, chamou as tendas do V1ce­
foram arrendadas, e cujos lavradores foram impedidos de plantar suas Rei de "casas de lona" , e o " pavilhão" - a enorme tenda do durbar -
cul turas de inverno. Realizaram-se depois grandes obras de constru­ de "Palácio":: Nesta tenda ficava a corte do Vice- R ei , que a presidia
ção de uma rede rodovi ária, de uma rede de fornecimento de água, de do seu trono, colocado numa plataforma elevada, sob um retrato da
diversos baza res e de instalações sani tárias adequadas. Como sempre Rainha Vitória, séria e vestida de preto, a i nspecionar os procedimen­
ocorria no caso de grandes reuniões de indianos no século XIX, os bri­ tos. 1-m l"rc n te ;1 ele estend ia-se o ta pete vice-régio, com o brasão do go-.
tânicos ficaram muito preocupados com a possi bilidade de surgimento vem o imperial indiano. Sobre ele havia cadeiras arrumadas em l eve se­
de uma epidemia, e por isso tomaram-se as devidas precauções de ca­ micírculo. onde se senta riam os membros de sua comitiva e os servi do­
ráter médico. Foi necessária a contratação de mão-de-obra, na maior res importantes do chefe que viriam prestar homenagem à recém­
parte camponeses das aldeias, deslocados para que seus campos fos­ proclamada Imperatriz e a seu Vice-R ei. Di stribuídos em fi leira ao re­
sem utilizados para os acampamentos. A preparação para a constru­ dor de toda a tenda ficavam a banadores com leques de cauda de iaque
ção das áreas de acampamento começou propriamente no dia 1 5 de e de égua, vestidos com o uniforme da criadagem do Palácio R eal , e
outubro, supervi sionada pelo G eneral de Divisão R oberts. atrás das cadeiras, dispostas paralela mente aos lados da tenda, fica­
Os governantes indianos convidados receberam aviso para traze­ va m cavala rianos eu nipcus e i ndianos. Tudo isto, brilhantemente il u­
rem suas tendas e bagagens; os horários das ferrovias tiveram de ser minado por lampiões de gás.
refeitos para transportar os milhares de servidores e ani mais que Acampado imediatamente à direita do Vice-Rei estava o governa­
acompanhavam os governantes. Impuseram-se severas restrições dor de Bombaim, e à esquerda ficava o governador de Madras. D epois
quanto ao número de acompanhantes. O número de servos permitido vinham os acampamentos dos vice-governadores. Na extremidade su­
a cada chefe baseava-se no número de salvas de canhão que ele poderia doeste do acampamento imperial, adjacentes aos acampamentos do
receber, sendo que os que tinham a honra de receber 17 ou mais salvas Vice- Rei e do governador de Madras, ficavam os acampamentos do
podiam trazer 500 servos; os que recebiam 1 5 poderiam trazer 400; os comandante-em-chefe do exérci to indiano e dos comandantes dos
de onze, 300; os de nove, 250 e os " vassalos" sem direito a sal vas só exércitos de Madras e Bombaim. Estes acampamentos tinham entradas
podiam trazer 100 servos. 60 O s planejadores calculavam que os gover­ indi viduais e eram quase tão grandes quanto os acampamentos do
nantes i ndianos e suas comitivas chegariam a um total de 25.600 pes­ Vice-R ei. Atrás dos acampamentos do V ice-Rei , dos governadores e
soas; mas, após o evento, calculava-se que havia 50.74 1 i ndianos em vice-governadores ficavam os dos delegados, do Presidente de Hydera­
seus próprios acampamentos, 9. 74 1 nos acampa mentos imperiais, tra­ bad e dos agentes do governador geral da fndia Central , Baroda e Ra­
balhando como secretári os, serventes e acompanhantes, e mais 6 .438 japutrana; chegava-se a estes acampamentos por meio de estradas i n­
nos "acampamentos mistos", como os da polícia, dos correios e telé­ ternas, pois eles não davam para a s planícies.
grafos, do bazar imperial e dos visitantes.6 1 Com exceção dos acampa- hpa lha dos ao redor das planície.s, a uma distância de 1 .5 k m até
7.5 km. ficavam os acampamentos dos indianos, organizados segundo
60. /. O. L. R . . Atividades do Congresso I mperial 8, 15 set. 1 876, Temple Papers, Eu­
ro. Man: FX6 / 1 66.
61. Os n úmeros são fornecidos in /. O. L. R .. Cartas políticas e secretas da lndia. 6 62. J . Talho) s Wheeler. lhe lli1ton- o/ the Imperial A ssemhlage at Delhi ( Londres.
ago. 1877. n. 1 40. ap. 8. 1 877). p. 47.
206 207

a região de origem. No lado oriental da serra, na várzea do rio J umna te a síntese de todo o direito que tem uma raça de comandar e governar
e mai s próxi mos do acampamento imperial fi cavam os do Nizam de outra."
Hy derabad, do Gaicovar de Baroda e o do M araj á de M ai çor. E stes Há muito exa gero, e talvez também uma certa dose de interesse n a
eram os "A campamentos Nati vos Especiais" . Na frente do acampa­ afirmação de Dinkar Rao: contudo, ela realmente in di ca uma das
mento i mperial fi cavam os dos chefes centro-in dian os, sen do que o principais metas de Lytton e seus colaboradores, ou sej a, representar a
mai s próximo do acampamento imperial era o do M araj á Sin dhia de natureta do domínio britân ico con forme a con cebiam: e era i sto que o
Gwalior. Quatro q ui lômetros ao sul fi cavam os acampamentos dos acampa men to representa va, em sua teoria de govern o: a ordem e a dis­
chefes da Provín cia do Noroeste de Bombai m e da Provínci a C entral. ciplina . que. na ideo logia britân ica. con stituíam parte de todo o siste­
Enfileirados ao longo dos muros da cidade, a oeste e ao sul, fi cavam os ma de domínio co lonial.
chefes do Punjabe, dentre os quais a pri mazia do lugar cabia ao M ara­
já de Cachemira q ue, a uma distância de três qui lômetros, era o que fi­ O A NFI TEA TRO E A PRECEDÊNCIA
cava mai s próximo ao acampamento imperial. Os chefes raj aputros Desde o início do plan ejamento, a questão da disposição dos lu­
acamparam ao longo de sete quilômetros e mei o, à margem da Estrada !!arcs dos �ovcrn;1 ntcs i n dia nos foi consi derada como a mais deli cada.
de Gurgoan, diretamente ao sul do acampamento imperial. Os acam­ ucl;1 u cpcnucnuo o êxito uo Con gresso Imperial. Como sa bemos. os
pamentos dos Taluk dars de Oudh ocupavam oito q ui lômetros ao lon­ problemas de precedên cia que, na opinião de especialistas como Daly,
go da Estrada de Kootub. Os nobres de Bengala e de Madras ficaram in fernizavam um durbar tinham de ser evitados. A tran sformação do
a uma di stá ncia de um q ui lômetro e meio do acampamento pri ncipal. durhar em " con gresso" permitiu a Lytton con seguir isso. Ele i nsistiu
Havia um contraste marcante entre a disposição dos acampamen­ que a reun ião n ão deveria lembrar um durbar "nem n os preparativos
t os europeus e os in dian os. Os acampamentos europeus eram bem or­ nem nas cerimôn ias" ,'' uma vez que o ritual de proclamar o n ovo títu­
ganizados, com ruas retas. e fileiras perfeitas de ten das de cada lado. lo n ão se daria "sob a lona", mas "nas planícies abertas, o que o de­
As flores e a gramJI den otavam o toque in glês que os britâni cos di vul­ sobri ga de questões de precedên cia, troca de presentes e outros estor­
garam por toda a ln dia. A s plantas foram forn eci das pelos J ardins Bo­ vos de um durbar com um":• Os plan ejadores do congresso foram de
tâni cos de Saharanpur e D elhi . Nos acampamentos indian os, ofere­ en contro a uma solução singular para a disposição dos assentos no
ciam-se aos governantes áreas onde cada um erguesse seu acampamen ­ Congresso Imperial. Deci di u-se que os príncipes ficariam numa arqui­
to à sua man eira. Aos olhos dos europeus, os acampamentos indianos hancaua cm semicírculo. divididos segun do a região de origem. do nor­
eram con fusos e desorganizados, com fogueiras dispostas aparente­ te ao sul. O Vi ce-Rei ficaria sentado em seu tron o sobre um estrado,
mente ao acaso, e uma mistura de pessoas, animai s e veículos a difi cul­ cercado apenas por membros mais graduados de sua comitiva e de
tar a li vre circulação. Entretanto, a mai oria dos observadores euro­ seus fami li ares. O estrado seria colocado de man eira que todos os in­
peus impression ou-se com a vi bração e o colorido dos acampamentos uianos. pelo menos na primeira fi la. ficassem eq üidistantes do V i ce­
indianos:' R ei . A ssi m, n i nguém poderia gabar-se de ser superior a seus colegas. A
O contraste entre o acampamen to imperial e outros acampamen ­ arqui!Jan cada seria di vi di da por provín cia ou por agên cia, com exce­
tos também foi notado por algun s indian os. Sir Dinkar R ao, dewan ção do Gai covar de Baroda, do Nizam de Hyderabad e do Maraj á de
( pri meiro-ministro) de Sin dhia, comentou com um dos aj udantes-de­ M ai çor, que ficariam numa seção especial, n os assentos centrai s. Cada
orden s de Lytton: uma das prin cipais divi sões g eográficas tinha uma entrada privativa, e
como a precedên cia de cada uma das unidades geográficas tinha sido
Se algum homem q uiser entender por que os i ngleses são e precisam neces­ sati sfatori amente resolvida, n ão surgiria, esperavam os plan ej adores, a
sariamente continuar sendo senhores da India, basta subir à Torre do quest ão da precedên cia region al. H avia uma estrada separada de aces-
M astro (ponto mais alto de observação dos acampamentos) e contemplar
e�te _ac�mpament� � aravilhoso. Ele verá o método, a ordem, a limpeza, a
d1sc1plma, a perfe1çao de toda a organização e reconhecerá imediatamen- . o/ Lord L i-11011 ·., .4 d111i11is1ralio11. /87fJ-
h4. ( 1 1 ,11.J.> 111 1 a,h lkl l \ Balfour. The lli.H orl"
0

/880 ( Lond rc,. 1 X9-9 ). p. 1 23.


65. l.vtton. " M cmorandum· · . 1. O. L R. . Atividades do Congresso Imperial X. 1 5 set .
1876. T�mple Papers. M a n . E uro. F86/ 1 66. par. 16.
63. Wheeler. op. cit . p. 47. 66. lhid.
208 209

so à_ s entradas, e um horário para a chegada. Os funcio nários europeus r; real. Entre os mastros trasei ros foram colocados os i mensos estandar­
deviam sentar-se no meio dos i ndianos, por exemplo, o vice-
governador do_ Punj abe fi caria j unto com o s príncipes e pessoas emi-
1 tes de seda, com o s brasões dos prínci pes e chefes. Nem todos os ob­
servadores se impressionaram com o cenário. V ai Pri nsep, pintor con­
::
nentes do Pu�J abe, o delegado g eral de R aj aputrana e os vários resi­ tratado para fazer um quadro do Co ngresso, que seria um presente co­
dentes no me10 dos chefes daquela região. Lytton escreveu: l etivo dos príncipes à sua nova i mperatriz, fi cou horrorizado com o
que considerou uma mostra de mau gosto. Ao ver o lugar, escreveu:
Os chefes � ão apresentam tantas objeções a sentarem-se em grupos de
suas pr�pnas nacionalid�des e província, como apresentariam por terem Que h orror! E eu terei de pintar isso?! Uma coisa ainda mais repelente
de se misturar e ser class1fieados com pessoas de outras províncias, como que o Palácio de Cristal! ... é toda ferro, ouro, azul e branco . . . O tablado
acontece num durbar. Cada chefe sairia de seu acampamento para o Es­ do Vice-Rei é uma espécie de templo escarlate com 24 metros de altura.
trado q ue lhe fora designado numa procissão de elefantes diferente, a Jamais existiu decoração mais barata, nem gosto pior."
tempo de receber o Vice-Rei:·
Em seguida escreveu:
A lém do pavi lhão para acomo dação do s grandes, co nstruíram-se Eles amontoaram decorações e cores umas sobre as outras. (O tablado do
duas enorm� s arquibancadas num ângulo oblíquo em relação a ele, Vice-Rei) parece o topo de um bolo de camadas. Pregaram panos borda­
para os servidores e outros vi sitantes. Grande número de sol dados do dos em painéis de pedra, escudos de latão e achas espalhadas por todos os
exército indi ano e dos exércitos dos príncipes ficavam em fileiras semi­ lados. O tamanho (do conjunto das estruturas) faz com que o lugar pare­
circulares de frente para o pavilhão, assim como os servidores e outros ça um circo gigantesco, com uma decoração bem adequada."
i ndi anos. Di sperso em meio aos espectadores estava um grande núme­
ro de elefantes e cavalos com seus palafreneiros e mahouts (conduto­ O CONGR ESSO IMPERIA L
res). No dia 23 de dezembro, tudo estava preparado para a chegada da
Para real ç� r a singularidade do evento, os planej adores desenvol­ personagem pri ncipal do Congresso Imperial, o V ice-Rei, Lorde Lyt­
veram um motivo decorativo _ ton. Os 84.000 indianos e europeus haviam se i nstalado em seus acam­
g eral que poderia ser chamado de "feu­
d0\ i lori;1 11 0 . . . Lock ridge Kipling, pai de R udyard K ipli ng e di retor pamentos distantes, as estradas estavam prontas e as construções e i ns­
da Escola de A rtes de La� ore, um pré-rafaelita sem grande i mportân­ talações também estavam prontas. A s ativi dades do congresso dura­
ci_ a e, segundo suas propnas _
palavras, um "soberbo ceramista", foi en­ riam duas semanas: o obj etivo era comemorar a ascensão da Rai nha
carregado de_ desenhar os uniformes e a decoração do Congresso . Vitória ao trono imperial, com o título de " Kaiser-i-Hind". O tít ulo
foi sugerido por G. W. Leitner, professor de Línguas Orientais e reitor
. C? nstru1u-se um enorme tablado para o Vice- R ei em frente ao do Colégio Governamental, em Labore. Leitner era húngaro, e come­
pavilhao, em forma de hexágono, medi ndo cada lado 12 metros, o que
dava um penmetro . çou sua carreira de orientalista, lingüista e intérprete no exército i n­
de 66 metros; a base de alvenaria tinha três metros
de altura. U m larg � lance de e� cadas levava à plataforma sobre a qual glês, durante a Guerra da Criméia. Foi educado em Constantinopla,
fi c� va o trono do V1 ce-Re1. . A cima do tablado fi cava um i menso balda­ Malta e no K i ng's College. em Lo ndres: obteve um Ph. D. pela U niver­
qui no. A s colu? as que o sustentavam eram festonadas com coroas de si dade de Fri burgo e era professor de árabe, turco, direito árabe e
louro, coroas imperi ais, águias semelhantes a gárgulas, estandartes maometano no Ki ng's College, em Londres, antes de ir para Lahore,
com a Cruz d� � - Jorge e a bandeira britâni ca. U m friso pendente do em 1 864. 'º Leitner argumentou que o termo " Kaiser" era bem conhe­
bal daq� i_ no ex1 b1a a Rosa, o T revo irlandês e o Cardo, ao lado do Ló­ ci do pelos nativos da Índi a, tendo sido usado por escritores maometa­
tus i_ ndiano. J? as colunas do baldaquino pendi am também escudos nos para referir-se ao César romano; daí ser o rei do Império Bizanti­
com a H arpa i rlandesa, o L eão R ampante da Escócia e os Três L eões no conheci do por " Kaiser-i-Rum" . Nas atuais circunstâncias do go­
d� Inglaterra. O pavilhão _se� i �ircular de 240 metros em que se senta­ vernante britânico na l ndia, o tít ulo sugerido seria adequado, segundo
vam_ os chefes e altos func1onan os do governo era decorado em flores­ Leitner, porque combinava perfeitamente o termo romano "César" , o
de-lis e galeotas douradas, e os suportes da lona ostentavam a coroa

6!1. Vai. C . Prinsep. lm{'erial lndia: A n A rtist 's Journal ( Londres, 1 879), p. 20.
69. lhid. . p. 29.
67. lhid. . par. I X: veja t a m hém Thornton. ºf' · cit. ap. do cap. 2 1 , " Note on the A rran­ 70. G. W. Leitner. Kaiser-i-Hind: The Onlr A{'f'mpriate Translation of the Title of the
gemcnt of thc I mperial Assemhlage". Em{'ress of /ndia ( Lahore. 1 876). pp. 1 1 - 1 2 .
211
210

ale� ã ? " K aise r .. e o russo "Czar", todos títulos im periais. No contex­ "uma aparência bastante surpreendente e peculiar . . . uma exibição va­
to md1a � o. sena _ um título extraordinário, e não correria o risco de
ser riada e brilhante de armas estranhas, uniformes esquisitos e tipos exó-
p �onunc1ado de forma errada pe! os indianos, como o título de impera-
_
f •
tlCOS
,, 74

O séquito levou três horas para atravessar a cidade e chegar aos


!� •z. n � m fana com que se associasse o domínio britânico com títul os �
Jª batidos, com ? "Xá" : "Padixá" ou "Sultão". Evitaria a associação aca mpamentos. À passagem do Vice-Rei, de sua comitiva e de outros
1med1ata com t1tulos hindus e muçulmanos .'' fu ncio nários britânicos, alguns dos servos dos príncipes indianos ade­
Lorde Lytton havia comentado com o Lorde Salisbury em fins de ria m ao destacamento oficial. Entretanto, nenhum dos príncipes con­
.
J Uiho de 1 8 76, ao ler ou � o tomar con �ecimento da leitura feita por vidados desfilou na comitiva. Estavam ali para receber a dádiva e as
Burne do panfleto de Le1tner, que o titulo de " Kaiser-i-Hin d" era hom enagens de sua imperatriz, e para assistirem ao que os britânicos
"ba stant� �onhecido dos orientais" e "amplamen te reconhecido " na fariam em nome dela, como monarca da lndia.
índ ia _ A semana entre a chegada e a grande recepção de Lorde Lytton e o
_ e ,:X s1a Cen_tral como "sím bolo do poder imperial". Além do dia da assembléia reservado à leitura da proclamação da ascensão de
m ais, o titulo era ·� uai em sânscrito e árabe, "sonoro" e não era "vuJ­
gar, nem mono rohzado po� n enhuma Coroa desde os Césares rom a­ Vitóri a ao trono im perial, em f \> de janeiro de 1 877, foi repleta de au­
,, d iênci as dadas por Lorde 1.ytton aos p rincipais chefes. várias recep­
nos . Lytton ?e1xou que Sahsbury tomasse a decisão definitiva sobre a
_ ções e jantares para visitantes e participantes ilustres. No total, foram
ques � ao do titulo indiano da Rainha.') Salisbury concordou com
. . 1 20 audiências durante o tem po em que Lytton esteve em Delhi, inclu­
".Ka1ser-1-H m d" e o título foi devidament e anunciado em caráter ofi­
cial no The Times de 7 de outubro de 1 8 76. Alguns o criticaram dizen ­ sive visitas de retribuição a muitos príncipes; Lytton recebeu também
do-o ohscu ro. como () em inen te orientalista R . e. Caldwell; e M i r Au­ várias delegações que traziam abaixo-assinados e comunicações de
l � d A h , professor de árabe e urdu do Trinity College, em Dublin, con­ lealdade à nova imperatriz .-,
s1de �ou-o "absurdo", por evocar "a figura de uma dama européia, As mais importantes destas reuniões foram as realizadas com os
vestida metade com roupas árabes, metade com trajes masculinos per­ príncipes na tenda de recepções do Vice-Rei . O príncipe comparecia
sas e de turbante indiano na cabeça". 73 num horário estipulado, acompanhado por parte de sua comitiva. Ao
entrar, dependendo de seu status preciso, seria cumprimentado pelo
. A chegada de Lytton à estação ferroviária de Delhi deu início ofi- Vice-Rei, que depois lhe ofertaria "seu" brasão bordado e costurado
cialmente ao congresso. Ele desce� do trem acompanha do pela esposa
e duas filhas pequenas e sua com1t1va, _ fez um curto discurso de boas­ sohre um grande estandarte de seda. As cotas d'armas dos príncipes in­
_
vmdas aos governantes indianos e altos funcionário s do governo ali dianos foram criadas por Robert Taylor, funcionário público de Ben­
P resentes, cumprime _ ntou ent usiasticam ente
alguns deles, e depois di­ gala e estudioso amador de heráldica. Taylor elaborou cotas d' armas
. _ para os governantes indianos pela primeira vez quando das visitas do
ng1u-se a uma fila de elefantes que o aguardava .
Duque de Edimburgo, em 1 869, e do Príncipe de Gales, em 1876. Lor­
. Lorde Lytton e a esposa foram transporta dos num houdah (ca­ de Lytton decidiu que além daqueles que Taylor havia feito anterior­
deira com co �ertura) de prata, feito para a visita do Príncipe de Gales
no ano anten or, colocado nas costas de um elefante considerad o O mente, deveriam ser criados mais oitenta.
ma10r _ da fnd1a, _ proprieda de do Rajá de Banaras. Os emblemas inventados por Taylor tinham relação com a idéia
� prociss � o. precedida por cavalarianos, passou pela cidade de que ele fazia das origens m íticas das várias casas reais, da identificação
Delh1 � encammh ? u-se a� Forte Vermelho, contornou o Jama M asjid destas com determinados deuses ou deusas, de fatos da história delas,
e depms prossegum em direção ao noroeste, até os acampame ntos da características topográficas dos territórios governados; ou então com­
s�rra. � o 1 ongo do traj eto estavam postados soldados do exército in­ binavam-se com algum emblema a ncestral associado a alguma casa
diano, m � i anos � ingleses, entr� os quais se encontrava m contingentes real ou até a um conjunto de casas. A maior parte das armas dos raja­
. _ vestidos com trajes "medievais " e putros continha um sol que simbolizava sua descendência de Rama.
dos exe rc1 �os reais de ehte, portanto
armas mdi _ anas. L ytton comentou q ue estes soldados nativos Os chefes siques do Punj abe tinham todos um javali em seus estandar-
tinham

71. !hid.. p. 9. 74. De L � llon ,·1 R a i n ha V i tória. /. O. L. R. . Cartas enviadas à R a i n ha. 1 2 dez. 1 876 a I
J a n . I X77. U I X • S I S 2 .
72. De Lytton a Salisbury. em 30 de j ulho de 1 876. /. O L. R . . E2 1 8/ 5 1 5, pp. 32 1 -2.
73. A thenaeum. n. 2559 ( 1 1 nov. 1 876). pp. 624-5: n. 256 1 (25 nov. 1 876). pp. 688-9. 7 5 . Thornton. op. cit. . p . 305.
212 2 13

tes. A cor do fundo do em blem a poderia tam bém ser usada para deno­ mad os e m fileiras. O Vice-Rei e sua reduzida com itiva, inclusive sua
ta r grupos regionais de chefes, sendo que e m alguns apareciam dete r­ esposa, entrou no anfiteatro ao som da "Marcha" da ópera "Tanhãu­
m inadas árvores ou plantas que era m sagradas para certas dinastia s. ser". Logo que o grupo desceu da carruagem, seis trom beteiros, vesti­
Até m esm o episódios da l_nsurreição era m reproduzidos, se indicassem dos em trajes m edievais, tocaram um a clarinada. A seguir o V ice-Rei
lealdade a os britânicos. As vezes, a im aginação de Taylor parecia se subiu ao seu trono ao som d os a cordes do H ino Nacional. O arauto
esgotar. Ca chemira, estado-ta m pão criado pelos britânicos em 1 854 chefe, tido com o o oficial m ais alto do exército indiano, leu a procla­
através do estabelecim ento de um Marajá que regesse territórios ante� m ação da rainha, onde se anunciava que daquela data e m diante seria
riorm ente d om inados por vários outros governantes, teve de conten­ acre scentado a seus Títulos Rea is o de " Im peratriz da Í ndia".
tar-se com três linhas onduladas para representar as três cadeias mon­ T. H. Thornton, secretário do exterior d o governo da Índia, leu
tanhosas do Him alaia, e três rosas para sim bolizar a beleza d o Vale de uma tradução da procla m ação d o novo título para o urdu. Depois, foi
Cachem ira. O s brasões era m bordados sobre a m plos estandartes de se­ disparada um a salva de I O I tiros de canhão, e os cavalarianos reuni­
da, de l , 5m por 1,5 m , no estilo rom ano; os estandartes indianos, que dos disparara m tiros de festim . O estrondo dos tiros de canhões e cara­
são flâ m ulas de seda, fora m rejeitados por não possuírem a forma ade­ binas causaram um estouro dos elefantes e cavalos; vários espectado­
quada para ostentar a s arm as da nova nobreza feudal.'6 Além do es­ res m orrera m e se ferira m , e ergueu-se um a enorm e nuvem de pó que
tandarte e da cota d ' arm as, os m ais im portantes governantes indianos fi cou pairando no ar a té o final da cerimônia.
rece bia m um enorme m edalhão de ouro, que devia ser usado pendura­ Lytton fez um discurso no qual, com o era com um e m discursos de
do num a fita em torno do pescoço. Os chefes m enores recebia m m eda­ vice-reis e m ocasiões especiais, ele frisou o cum prim ento da prom essa
lhões de pra ta , assim com o centenas de funcionários públicos m enores feita pela im peratriz e m sua procla m ação de 11> de novembro de 1858,
e soldados. tanto indianos com o britâ nicos. de que seria conquistada "um a prosperidade gradual", junta mente
Nem tudo correu bem durante a entrega dos estandartes e dos com o gozo tranqüilo, por parte dos príncipes e povos da Í nd ia, "de
m eda lhões; os estandartes era m incôm odos e difíceis de carregar, devi­ suas glórias hereditárias" e a proteção de "seus legítimos interesses" .
do ao peso dos mastros de latão e dos apêndices; os indianos fi cara m A base histórica da autoridade britânica na l nd ia foi criada pela
se m saber o que fazer com eles. Pensara m que os estandartes talvez " Provid ência divina", que havia solicitado à Coroa que "substituísse e
fossem destinados a sere m exibidos e m cortejos, nas costas dos elefan­ aperfeiçoasse o governo de Soberanos bons e grandes", cujos sucesso­
tes. U m tlfici a l de exército ing lês. q ue ao entregar medalhões de prata a res, porém , deixaram de
vários de seus cavalarianos ind ia nos dirig iu-se a eles em urdu, sequer
foi c� paz d� ex plic_a r o signifi cado da com enda a seus hom ens. O que "assegurar a paz interna em seus domínios. As discórdias tornaram-se
crônicas, e a anarquia, recorrente. Os fracos foram presa dos fortes e os
ele disse foi o segu10 te: "Suwars (porcos - ele queria d izer sowar, pala­ fortes, vítimas de suas próprias paixões".
vra urd u que significa soldado), sua I m peratriz m andou-lhes um billi
(gatos - ele queria dizer bilia, um medalhão) para que vocês usem em O governo d os sucessores da Casa de Tamerlane, continuou Lytton,
torno do pescoço"."' As ofertas da imperatriz destinava m -se a substi­ "não m ais conduzia ao progresso do Oriente". Agora, sob o domínio
tuir o oferecim ento de khe/ats e evitar a oferta de nazar, ou m oedas de britâ nico. todos os " credos e raças" estavam protegidos e seguiriam
ouro. É de se notar que o presente principal fosse um a representação guiados "pela vigorosa mão d o poder im perial" que trouxera um rápi­
da versão britânica do passado d os príncipes indianos em brasões. do progresso e "um a ma ior prosperidade".
Ao m eio-dia de 11> de janeiro de 1 877, tudo estava preparado para Lytton depois referiu-se à s norm as de conduta apropriadas para
a .e ? t!ada solene do Vice-Rei no anfi teatro. O s príncipes e outros dig­ os componentes do im pério. Prim eiram ente referiu-se aos "Ad m inis­
m tarios estava m todos sentados em suas seções, a arquibancada cheia tradores Britânicos e Fiéis Dirigentes da Coroa", a quem a im peratriz
de espectadores, e m ilhares de cavalarianos indianos e europeus, for- agradecia "pelo grande esforço em favor do bem do I m pério", e pela
"perseverante a tividade, honestidade e abnegação, inéditas na histó­
ria". E specialm ente, desta ca ra m-se os "diretores regionais ", de cuja
76. R. Ta� lor. The Princelr A rmorr Bei11g a D(,p/ayfiir the A rms ofthe Ruling Chief, oj paciente inteligência e coragem dependia a eficácia do funcionamento
/11dia a/ler 1h<"ir Ba1111en a., Prepared /iir the Imperial A .uemblage held at Delhi on the de todo o sistem a ad m inistrativo. Todos os m em bros dos serviços civis
flr.1 1 Dar o/ Jamwrr. 11177. documento datilografado do /. O. L. R.; e Pioneer Mail. 4
nov. 1 904 ( re�orte arquivado com Taylor. Prince/y A rmorr no /. O. L. R.).
e m ilitares receberam agradecim entos da Rainha por sua capacidade
7 7 . Burnc. Memories. pp. 42-3. de " m anter a alta reputação de sua raça, e de cum prir os preceitos be-
214 215

nignos d e sua religião". Lytton disse-lhes que eles estavam "conferin­ " Kaiser-i-H ind", foi interpretada por Lytton como sinal de que os ob-
do a todos os outros credos e raças deste país os inestimáveis benefí­ jetivos do Congresso haviam sido alcançados. . .
cios do bom governo" . A comunidade não-dirigente européia foi cum­ As atividades do Congresso estenderam-se amda por mais quatro
primentada pelos benefícios recebidos pela índia "de sua iniciativa, di­ dias. Houve torneios de tiro ao alvo, a inauguração de uma Taça Real
ligência, atividade social e retidão cívica". de hipismo, vencida (a calhar) por um dos cavalos dos príncipes, vá­
rios outros jantares e recepções, e a entrega de declarações de lealdade
Os príncipes e chefes do império receberam agradecimentos do e pedidos de várias corporações regionais e civis. Organizou-se tam­
Vice-Rei em nome da imperatriz por sua lealdade e sua disposição de bém uma grande mostra de artesanato indiano. As atividades encerra­
auxiliar seu governo no passado "caso este fosse atacado ou ameaça­ ram-se com uma marcha dos cavalarianos imperiais, seguidos de con­
do"; era para "unir a Coroa Britânica a seus vassalos e aliados que tingentes dos exércitos dos príncipes. Anunciaram-se longas listas de
Sua Majestade havia graciosamente consentido em assumir o título honrarias, alguns príncipes tiveram acréscimos em suas salvas de ca­
imperial". nhão, e doze europeus e oito indianos receberam o título de "Conse­
O Vice-Rei disse aos "súditos nativos da Imperatriz da fndia" que lheiros da Imperatriz". Entraram mais trinta e oito membros para a
"os interesses permanentes deste Império exigem que a supervisão e ordem da Estrêla da fndia. Milhares de prisioneiros foram soltos ou
direção suprema de sua administração seja feita por funcionários in­ ganharam redução de sentença, e alguns membros das Forças Arma­
gleses", que deveriam "continuar a constituir o mais importante canal das receberam recompensas em dinheiro. No dia da proclamação, rea­
para o livre escoamento das artes, ciência e cultura ocidentais para o lizaram-se cerimônias comemorativas em toda a fndia. Ao todo, mais
Oriente". Apesar de tal afirmação da superioridade inglesa, havia es­ de 300 reuniões semelhantes aconteceram nas capitais das províncias,
paço para que os "nativos da Índia" participassem da administração em todos os postos civis e militares, até nas coletorias locais.
"do país que habitam". Contudo, não seriam indicados para os altos
Nas cidades, os planos das cerimônias eram geralmente elabora­
cargos públicos apenas aqueles que tivessem "qualificações intelec­
dos pelos dirigentes indianos locais, incluindo durbars, ofe�t � de p o�­
tuais", mas também os "líderes naturais", "por nascimento, classe e mas e odes em sânscrito e outras línguas, desfiles de colegiais, distri­
influência ancestral", isto é, a aristocracia feudal, que estava sendo buição de doces às crianças, de alimentos aos pobres, de roupas aos
"criada" no Congresso. necessitados, culminando em geral numa exibição de fogos de artifício
O Vice-Rei concluiu o discurso lendo uma mensagem telegráfica ao cair da noite.
da "Rainha, Vossa Imperatriz", assegurando a todos os congressistas
sua amizade. "Nosso governo", dizia a mensagem, baseava-se nos CONCL USÃO
sublimes princípios da liberdade, igualdade e justiça, "que promove­
rão sua felicidade", somando-se à sua "prosperidade e aumentando Os historiadores não deram muita importância ao Congresso de
seu bem-estar". 18 1877; ele é no máximo tratado como uma espécie de leviandade, um
A conclusão do discurso do Vice-Rei foi saudada por ruidosos grande tamasha, ou espetáculo, com muito poucas conseqüências prá­
aplausos, ao término dos quais o Marajá Scindia, erguendo-se, dirigiu­ ticas. Ê considerado em histórias do nacionalismo indiano como a pri­
se à Rainha em urdu, dizendo: meira vez em que os primeiros líderes e jornalistas nacionalistas de
Xá em Xá, Padixá, Deus a abençoe. Os Príncipes da fndia a abençoam e toda a ln dia reuniram-se no mesmo local e na mesma hora, mas é omi­
oram para que seu hukumat (o poder de dar ordens absolutas que devem tido por ser um mero disfarce para mascarar as realidades do império.
ser obedecidas, soberania) seja inabalável para sempre." Ê Jambém tomado por exemplo da insensibilidade dos governantes
imperiais. que gastavam fantásticas somas do dinheiro público numa
Após Scindia. outros governantes exprimiram seus agradecimentos e época de carestia.
protestaram lealdade. A declaração de Scindia, que parece ter sido es­ Na época em que foi planejado e imediatamente após, o Congres­
pontânea. apesar de ele ter-se dirigido à Rainha sem utilizar o título de so foi bastante criticado pela imprensa de língua indiana e pelos jor­
nais ingleses. Foi considerado por muitos, assim como as tentativas de
glorificação do Império feitas por Ellenborough, uma coisa, de qual­
quer maneira, antiinglesa, produto das loucas imaginações de Disraeli
Ga=e1te of !11dia. edição extraordinária. 1 jan. l !l77, pp. 3-7.
7X.
79. Thornton. º!'· cit .. p. 3 10.
e Lytton.
2 16 2 17

M esmo assim, mais tarde os indianos e europeus continuaram a valores do "governo progressista" e na obtenção da felicidade e do
fazer do Congresso uma espécie de marco histórico, de referência. bem-estar dos povos indianos. O idioma britânico foi eficaz por ter de­
Tornou-se o padrão pelo qual se mediam as cerimônias públicas. terminado os termos do discurso do movimento nacionalista em suas
Pode-se dizer q ue o mesmo evento repetiu-se. duas. vezes - em _ 1 903, fases iniciais. Aliás, os primeiros nacionalistas diziam ser mais leais às
quando Lorde Curzon organizou um durbar 1mpenal em Delh1 para verdadeiras metas do império indiano que os governantes ingleses.
O Primeiro M ovimento de Não-Cooperação de 1920- 1 é conside­
proclamar Eduardo VII imperador da fndia exatamente no local onde
rado o marco do estabelecimento definitivo de Gandhi como persona­
se proclamara o título imperial de Vitória; e quando, em 19 1 1, tam­
gem decisivo na luta nacionalista. Era a primeira vez que se experi­
bém no mesmo lugar, J orge V foi em pessoa coroar-se imperador da mentava uma nova linguagem, sob a forma da não-cooperação e da
lndia. Curzon, homem muito ativo, inteligente e de uma fé quase me­ resistência passiva. Basicamente foi esta a primeira rejeição completa e
galomaníaca em seu próprio poder de g�vernar a fndia, passou quase
ampl a da autoridade britânica na f ndia. O movimento começou quan­
seis meses planejando "seu" durbar, segumdo sempre escrupul?samen­ do Gandhi declarou que os indianos deviam devolver todas as honra­
te os padrões estabelecidos por Lytton. Quando deles se desviav�, era rias e emblemas concedidos pelo Governo britânico. Ao fazer isso,
obrigado a dar explicações exaustivas e detalhad� s para suas modifica­ Gandhi atacou não só as instituições governamentais, como também a
ções e acréscimos. Provavelmente Curzon q �ena que � Durba� .fosse capacidade do governo de tornar sua autoridade significativa e obriga­
mais "indiano" do que o Congresso, e por isso o motivo era • mdo­ tória através das honrarias.
sarraceno··. em ve1 de "feudovitoriano"'. Também queria _ que os A maioria das contribuições de Gandhi ao movimento nacionalis­
príncipes tivessem uma participação m�is ativa no. e_vent_? em s1, ofere­
ta referiam-se à criação e representação de novos códigos de conduta
cendo homenagens diretamente. Este tipo de pa_rt1c1paçao ,to�nou-se ? baseados numa teoria de autoridade radicalmente diferente. Tais códi­
núcleo do Durbar Imperial de 1 9 1 1, quando muitos dos prmc1pes mais gos eram simbolizados por uma série de sinais. Os indianos não usa­
importantes, durante o desenrolar da �erimônia, aj?.elha�a� -se um a riam mais roupas ocidentais, nem os trajes "nativos" estipulados por
um diante de seu imperador, no que foi chamado de pav1lhao das ho­ seus governantes imperiais, mas apenas túnicas simples, tecidas em ca­
menagens"', que substituía o tablado do Vice-Rei, no centro do anfi­ sa. Era nas reuniões para prece comunitária, sem a atmosfera de dur­
teatro. bar dos comícios políticos, que ele pregava suas idéias. A peregrinação
Qual a importância ou conseqüência, não só _d ? Cong�esso I�pe­ indiana adaptou-se à política sob a forma das marchas de Gandhi, e a
rial e dos Durbares Imperiais, mas também do 1d1oma ntual cnado idéia da paidatra (caminhada dos políticos junto com o povo) ainda
para expressar, manifestar e impelir a construção da autoridade britâ­ faz parte dos rituais políticos da lndia.
nica sobre a Índia? Teriam Lytton e seus sucessores alcançado suas Todavia, a linguagem britânica não se extinguiu com facilidade
metas? Sob determinado aspecto não, pois a f ndia, o Paquist�o e Ban­ ou rapidez, e ainda pode ser encontrada sob várias formas. O fim do
gladesh hoje são países independentes. A _idéia �a perman�nc1a_ do po­ império começou onde se pode considerar que ele se iniciou, em 1857.
der imperial é uma raridade quase esquecida, ate para os h �stonadores com a profanação do palácio mongol, onde os funcionários britânicos
para quem os eventos do período de 1 877 a 1947 sao �m � disputa feroz beberam vinho e comeram carne de porco. O momento da transferên­
por lucros materiais, ou o auge da luta dos povos md1anos contra o cia da autoridade do Vice- Rei para o novo primeiro-ministro de uma
império. _ Índia independente teve lugar no Forte Vermelho, quando, à meia­
Creio, no entanto, que há uma outra forma de encarar a quest_ao noite de 14 de agosto de 1947, arriou-se a bandeira britânica diante de
do êxito ou fracasso das intenções de Lytton e seus aliados e da codifi­ uma vasta multidão de indianos exultantes.
cação do idioma ritual. Concentrei-me exclusivamente na estrutu_raç� o
britânica da autoridade e respectivas representações. Quando os md1a­
nos, principalmente nos primeiros anos do movimento n�cionalista:
começaram a desenvolver um idioma público político própno, qual �01
a linguagem utilizada? Em minha opinião, eles usara� º. mesmo .�1s­
curso empregado por seus governantes ingleses. As pnme1ras reumoes
dos Comitês Congressistas da fndia pareciam-se muito com durbares,
com procissões, a colocação dos principais �e �sonagens no _ centro,
seus discursos. veículo pelo qual tentavam part1c1par na conquista dos
219

6. A Invenção da Tradição
na África Colonial
TERENCE RANGER

!NTROD UÇÂO
A s décadas de 1870, 80 e 90 foram épocas de grandes florescimen­
to das tradições inventadas européias - tanto eclesiásticas como edu­
cacionais, militares, republicanas e monárquicas. Estas décadas tam­
bém marcaram a penetração européia na África. Existiram várias liga­
ções complexas entre estes dois processos. A idéia de império era do­
minante no processo de invenção de tradições na própria Europa, mas
os impérios africanos, por terem surgido muito mais tarde, mostraram
as conseqüência�. não as causas das tradições inventadas européias.
Distribuídas pela África, entretanto, as novas tradições adquiriram
um caráter peculiar, que as distinguiu de suas versões imperiais euro­
péias e asiáticas.
Ao contrário da fndia, muitas partes da África tornaram-se áreas
de colônias de povoamento de brancos. Isso significava que os coloni­
zadores tiveram de definir-se como os senhores naturais e incontestá­
veis de uma grande população africana. Os colonizadores basearam-se
nas tradições inventadas européias, tanto para definir quanto para jus­
tificar sua posição, e também para fornecer modelos de subserviência
nos quais foi às vezes possível incluir os africanos. Na África, portan­
to, todo o aparelho composto pelas tradições escolares, profissionais e
regimentais veio a exercer um papel de comando e controle muito
maior do que na própria Europa. Além disso, na Europa, tais tradi­
ções inventadas das novas classes dominantes eram até certo ponto
contrabalançadas pelas tradições inventadas dos operários ou pelas
culturas "populares" inventadas pelos lavradores. Na África, nenhum
agricultor branco se considerava camponês. Os trabalhadores brancos
das minas do Sul da África realmente basearam-se nos rituais inventa­
dos do sindicalismo de oficio europeu, porém em parte porque estes
eram rituais de exclusividade, podendo ser usados para evitar que os
africanos fossem definidos como operários.
Também ao contrário da Índia, a África não ofereceu a seus con­
quistadores a estrutura de um estado imperial nativo, nem rituais cen­
tralizados de prestação de homenagens, ou de entrega de honrarias. Se
se poderiam observar nítidas semelhanças entre os sistemas de gover­
no africanos e europeus a nível de monarquia; havia na África, segun­
do os colonizadores, várias dezenas de reinos rudimentares. Por isso,
221
220

tesãos ou trabalhadores. Pelo contrário, os rituais restaurados e inven­


?s bri�â � !cos fize�am um uso muito maior do conceito de "monarquia
imperial na África do que na Grã-Bretanha e na índia. A "teologia" tados do sindicalismo artesanal foram utilizados para impedir os afri­
de uma monarquia onisciente, onipotente e onipresente tornou-se pra­ can os de participarem. Em seu estudo sobre o sindicalismo branco na
ticamente o único ingrediente da ideologia imperial apresentada aos África do Sul, Elaine Katz mostra como os mineiros reivindicavam o
africanos. Para os alemães, o Kaiser também era o símbolo dominante status profissional. Esse sindicato, dominado por mineiros britânicos e
do domínio germânico. Já os franceses tiveram de incorporar os afri­ australianos, era "organizado com base numa filiação exclusiva, res­
canos numa tradição republicana, tarefa bem mais diflcil. trita a mineiros subterrâneos brancos que tivessem um certificado de
Todavia, por mais vantajosa que fosse para os britânicos, a ideo- trabalho com explosivos". Os líderes sindicais incitavam os membros
. muitas vezes acomodados a desfilarem atrás do estandarte da profis­
1.og, � monárquica não era suficiente para fornecer a teoria, nem
Justificar de pronto as estruturas locais de autoridade colonial. Como são e de uma charanga no Dia do Trabalho - rituais de solidariedade
poucas eram as semelhanças entre os sistemas político, social e jurídi­ trabalhista que naquele contexto evidenciavam status de elite. Confor­
co da África e da Grã-Bretanha, os administradores ingleses puseram­ me observou John X. Merriman , primeiro-ministro da Colônia do Ca­
se a inventar tradições africanas para os africanos. O próprio respeito bo, em 1908, os operários brancos que na Europa eram considerados
que sentiam pela "tradição" os dispunha a encarar favoravelmente membros das "classes baixas" ficaram "maravilhados ao ver que aqui
aquilo que julgavam ser tradicional na Á frica. Começaram a codificar se encontravam numa posição aristocrática devido à cor". 1
e a promulgar essas tradições, transformando desta maneira costumes Diversos livros recentes demonstram que nas décadas de 1 880 e
flexíveis em rígidas prescrições. 90 os africanos de todo o Leste, Centro e Sul da África estavam se tor­
Tu? o isto faz parte da história do pensamento europeu, mas tam­ nando lavradores, sendo que o excedente de sua produção era expro­
. priado por exploração, através do comércio, impostos ou arrendamen­
bem se integra bastante na história da África moderna. Os historiado­
res. para cht><:?arem a compreender as particularidades da África pré­ to, e que sua posição subordinada era definida pelo cristianismo mis­
colon ia l. precisam compreender estes processos complexos; muitos es­ sionário.' Porém, os lavradores africanos não tiveram grandes oportu­
t.ud1osos atm;anos e africanistas europeus ainda sentem dificuldade em nidades de usufruir as tradições inventadas através das quais o campe­
libertar-se dos falsos modelos de "tradição" colonial africana codifica­ sinato europeu procurara defender-se contra as intrusões do capitalis­
da.. �ntretanto, o estudo de tais processos não compete apenas aos his­ mo. Quase em toda a África, os agricultores brancos viam-se não
�oriografos, mas também aos historiadores. As tradições inventadas como camponeses, mas como uma verdadeira aristocracia rural. As
importadas da Europa, ao mesmo tempo que forneceram aos brancos manifestações camponesas européias só chegaram aos africanos por
modelos de "comando". deram também a muitos africanos modelos de meio de algumas das igrejas missionárias, tendo já sofrido modifica­
cor:iportame.nto "modernos". As tradições inventadas das sociedades ções em sua forma.
africanas : mve� tadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, A coisa que mais se assemelhou a uma igreja missionária campo­
co�o reaçao - distorceram o passado, mas tornaram-se em si mesmas nesa foi a Missão da Basiléia. Produto do pietismo de Vurtemberga, os
reah�ades atra�és das quais se expressou uma incrível quantidade de missionários da Basiléia levaram à África um modelo de sociedade ru­
conflitos coloniais. �al deri.vado de sua defesa ao retorno à vida rural da Alemanha pré­
mdustrial. Pregavam, contra a ameaça dos aglomerados urbanos in­
A S TRA DIÇÕES IN VEN TA DA S E UROPÉIA S dustriais, uma "aldeia-modelo cristã" idealizada, uma "tradição" ru­
t: O IM PÉRIO A FRICA NO ral reconstituída com base na "combinação pré-industrial de ofícios
empregando produtos naturais e famílias numerosas". Defendiam
As tr�dições i_nventad�s na Europa no século XIX foram irregu­ "urna estrutura social e econômica "tradicional" no sentido de existi-
larmente mtroduz1das na Africa. Nas décadas de 1880 e 90 muitos
brancos_ v1 � dos da Europa. Canadá e Austrália estavam cheg'ando ao
.
Sul ? ª Africa para trabalhar nas mmas; grande número de africanos, 1 . Elaine N . Katz. A Trade L'nion A ristocracy, Comunicação do I nstituto de Estudos
atra1dos, es_tª:' ª� entrando na rede migratória de mão-de-obra. Só Africanos. n. 3 ( U niv. do Wit\\ atersrand, Johanesburgo, 1 976).
��e as tr�� 1çoes mve� t�das européias, proletárias ou artesanais, não 2. Os dois mais recentes relatos sobre este tipo de transformação são: Robin Palmer e
mam fac1htar a defimç �o do lugar ocupado na hierarquia proletária Neil Parsons (org.), The Roots of Rural Poverty ( Londres, 1 978); Colin Bundy, The Rise
pelos trabalhadores afncanos. e muito menos classificá-los como ar- and Fali of the South African Peasantry ( Londres, 1 979).
222 223

rem relações d iretas "ent!e a produção e o fornecimento locais de ali­ d os clérigos haviam conhecido as " tradições" do colégio, do batalhão,
mentos". Foram para a A frica em princípio para encontrar terras que da universidade, mas não tinham garantias d e progresso seguro nas
servissem de refúgio à s comunidades rurais alemãs. No contato com h ierarquia s administrativas britânicas. Estes homens espalhavam-se
os africanos, agiam como " uma missão da aldeia para a aldeia" . Na pel a Á frica, transformados em soldados, caçadores, comerciantes, l o­
Alemanha, o modelo pietista apenas refletia de forma imperfeita um jistas, oportunistas, pol iciais, missionários. Freqüentemente envol ­
passado bem menos orgânico e coerente. Na África, j amais haviam viam-se em tarefas que na Grã-Bretanha seriam consideradas subalter­
exi stido "aldeias" com o tamanho e a estabil idade das da Basiléia. A s nas, aceitáveis apenas pela causa deslumbrante da construção do Im­
aldeias d as missões da B asiléia, l onge d e oferecer aos cultivadores pério. A ênfase colocada por estes homens em seu direito neo­
africanos um meio de protegerem seus valores, agiram como mecanis­ trad icional à aristocracia começou a intensifi car-se.
mos de controle europeu autoritário e de inovação econômica. ' As neotradições eram importantes também porque nas ú ltimas
F oram poucas as outras igrej as missionárias que expressaram de d écadas do século XIX passou a haver uma necessidade urgente d e
maneira tão clara as aspirações camponesas européias. M uitas, po-
rém, trouxeram características produzidas através das reações das l tomar a à tividade européia n a África mais respeitável e organizada.
Embora na própria Grã-Bretanha, com a promoção da burocracia e
igrejas à aspiração dos l avradores europeus. Assim, a Igreja Anglicana das tradições do funcionalismo na escola, no exército, na igreja e até
reagira à s tensões de uma sociedade rural cada vez mais classista de­ mesmo no comércio, a vida estivesse sendo organizad a, a maior parte
senvolv�ndo rituais comunitários "tradicionais"; mais tarde introdu- das atividades européias na África tropical, administrativas ou não,
1.i u na Africa as fes tas d a colheita e as proci ssõ es da época da A scen­ haviam permanecido desorganizadas, mirradas, irregulares e ineficien­
süo. at ravés dos campos afri canos.' A Igrej a Católi ca R omana reagi ra. tes. Com o advento do domínio colonial formal, tornou-se impres­
à proliferação anárquica de santuários, devoções e peregrinações ru­ cindível a transformação dos brancos em membros de uma classe do­
rais locais dando autorização a uma veneração mariana p opular e minante convincente, com d ireito de defender sua soberania não só
centralizando-a em alguns santuários aos quais se d irigiu o fluxo de pela força d as armas e do capital, como também através do status con­
peregrinos. 1 Depois introduziu na África réplicas dos santuários de sagrado pelo uso e outorgado pel as neotradições.
Fátima e L ourdes. Esta centralização dos rituais e devoções, instituída Portanto, tomaram-se determinadas providências para assegurar
antes que se estabelecesse um cristianismo popular africano que a re­ aos serviços militares e administrativos na África uma rel ação com as
clamasse, acarretou uma restrição, não um estímulo à imaginação dos tradições dominantes. No período inicial da administração colonial
lavradores africanos. fez-se uso freqüente d e oficiais d o exército britânico, que apenas recen­
A s tradições inventadas mais importantes para os brancos na Á­ temente se tornara uma força eficiente e respeitável. Lugard contava
frica, e que causaram o maior impacto sobre os negros, não foram as com estes funcionários para auxiliar os "nobres" administradores da
dos trabalhadores e lavradores europeus, mas as dos aristocratas e dos Nigéria. Em 1 902, L ady Lugard, numa carta escrita em Lokoja, às
profissionais liberais. H avia duas razões principais para a importância margens do Níger, conseguiu descrever um verdadeiro fes tival de neo­
destas neotradições. Nas décadas de 1880 e 90 já havi a um excesso de tradições. Para comemorar o D ia d a Coroação - d ia d a primeira co­
cap ital neotradicional na Europa, à espera de investimentos no es­ roação "tradicional" pormenorizada -
trangeiro. A produção de homens que pudessem empregar-se na classe
governante ampliada da democracia industrial realizara-se com êxito mandamos enfeitar a mesa patrioticamente, com rosas . . . e bebemos à
saúde do Rei, enquanto a banda tocava "Deus Salve o Rei" e uma multi­
excepcional. O s fi lhos mais novos, os órfãos bem-nascidos, os filhos dão de negros, servos e outros exclamavam: "Bom Rei! Bom Rei!". Eu
mesma pensei, ao percorrer a mesa com o olhar, observando os tipos de
rostos de cavalheiros ingleses que se enfileiravam dos dois lados, que o
nosso Império nos proporciona realmente um fenômeno permitindo que
3 1 Paul Jenkins, "Towards a Definition of the Pietism of Wurtemburg as a M issiona­ reunamos no coração da África para jantar vinte finos oficiais ingleses do
ry M ovement", Associação de Estudos A fricanos do Reino U nido, Conferência sobre tipo que se esperaria encontrar nos centros mais civilizados de Londres.'
brancos na África (Oxford. set. 1 978).
4. James Obelkevich. Religion and Rural Society: South Lindsey. 1825- 1875 (Oxford.
1 976).
5. Alphonse Dumont, "La Religion - A nthropologic Rcligicuse", in Jacques Le Goff
e Pierre Nora ( org. ). Faire de /'Histoire, Nouvel/es Approches ( Paris, 1 974), ii. pp. 1 07-36. 6. Margery Perham, lugard: The Years of A uthority (Londres, 1 960), p. 80.
224 225

Entrementes, o sistema educacional inglês começava a formar admi- e;:� tem:iais das neot radições do domínio. A lgumas comun idades foram
hem-sucedidas o suficiente rara imrlantar na África rérlicas das esco­
nistradores colonias civis. O reitor de Harrow declarou que j
':'� l as cujas trad ições validavam a classe governante britânica . A ssim, em
quando um reitor pensa no futuro de seus alunos, não esquece que eles se­ ) 927 .
rão cidadãos do maior império existente sobre a terra; ensina-lhes patrio­
tismo . . . Inspira-os com fé na missão divina de engrandecer seu pais e foi debatido com o Eton College um plano para fundação da "Escola
sua raça.' Privada do Quênia", sob os auspícios de Winchester e Eton, com colabo­
ração das duas entidades na formação do quadro de pessoal e na conces­
Os principian tes no funcionalismo colonial testem unharam o êxito são de bolsas de estudo aos filhos dos brancos mais pobres. Após uma
destes esforços. "Quanto às escolas particulares", escreveu Sir Ralpb viagem à Grã-Bretanha para analisar o apoio ao projeto, o Diretor de
Furse, um dos principais planejadores do funcionalismo colonial, Educação resolveu pedir que "todas as principais escolas particulares nos
são indispensáveis. Não poderíamos ter prosseguido sem elas. Na Ingla­ enviassem quadros dos edifícios escolares para que os meninos se
terra, as universidades exercitam o raciocínio; as Escolas Privadas fortale­ lembrassem constantemente das enormes escolas da Inglaterra, e para
cem o caráter e ensinam a liderar.' que os jovens que visitassem a escola pudessem também se recordar de
sua A lma Mate,."
Mas as universidades também vieram a desempenhar seu papel, e logo Como toque final, a escola receberia o título de "Rei Jorge V", "como
o Comissário Distrital precisou ser um homem muito bem-dotado. Para lembrança às raças atrasadas de que elas faziam parte do Império" . "
candidatar-se ao setor administrativo do Serviço Colonial, tinha de ser Para começar, porém , a transformação foi ocasionada principalmente
bacharel em humanidades, graduado com distinção numa universidade por um complexo sistema de reformulações que influenciaram a forma
reconhecida . . . Melhor ainda se, além de boas notas, ele tivesse também pela qual os brancos da Á frica eram encarados e a forma como eles
algum recorde em atletismo.' mesmos se encaravam .
I sto fez com que se produzissem administradores que governavam Tal processo funcionou de duas maneiras. O fato de que o exce­
seus distritos como prefeitos arrogantes, que inventavam tradições dente do capital neotradicional estava sendo investido na Africa, j un­
particulares para humilhar os serviçais. Contam de um comissário do tamente com o envolvimento de membros da alta sociedade na busca
distrito de Tunduru, ao sul de Tanganica, que ele costumava de um enriquecimento fácil, tornou possível aos analistas ressaltar o
dar um longo passeio vespertino, de chapéu. Quando, próximo à hora do elemento aristocrata em meio aos colonos brancos, e insinuar que a
crepúsculo, ele resolvia ir para casa, pendurava o chapéu numa árvore própria experiência colonial dava aos outros a oportunidade de se tor­
próxima e continuava, de cabeça descoberta. O primeiro africano que narem aristocratas. Lorde B ryce impressionou-se com "a enorme pro­
passasse por ali e visse o chapéu devia levá-lo à casa do comissário e en­ porção de h omens bem educados e de fino trato que se podia encon­
tregá-lo aos criados, mesmo que estivesse seguindo em direção oposta, e trar" na "imensidão tropical" da Rodésia em meados da década de
ainda tivesse muito que andar. Se fingisse não ter visto o chapéu, seria 1 890, acrescentando que a experiência colonial incentivava a "perso­
para sempre assombrado pela idéia de ser capturado pelo serviço de es­ nalidade a desenvolver-se sob condições simples, porém duras, ideais
pionagem do comissário.'º para fazer ressaltar a verdadeira força de um homem" . Em tais cir­
Só que isso não foi o suficiente para garantir a aristocracia dos solda­ cunstâncias, B ryce estava preparado para tolerar os rasgos de entu­
dos e administradores da África. H avia também necessidade de acredi­ siasm o neotradicional um tanto vulgares, que ele mesmo deplorava
tar que muitos colonos brancos também eram h erdeiros reais ou po- na I nglaterra. Ficou m uito impressionado com o entusiasmo dos bran­
cos sul-africanos relo críq uete. "o jogo nacional".
Mesmo quem pensa que na Inglaterra a paixão pelos esportes já ultrapas­
7. Citado por Cynthia Behrman, "The Mythology of British l mperialism, 1 890- 1 9 1 4"
sou todos os limites do razoável, tornando-se uma séria ameaça à educa-
( dissertação de doutorado à Universidade de Boston, 1 965), p. 47.
8. Sir Ralph Furse, citado por R. Heussler, Yesterday's Rulers: The Making of the
British Colonial Service (Londres, 1 963), p. 82; veja também, D. C. Coleman, "Gentle­
man and Players". Economic History Review, xxvi (fev. 1 973). 1 1 . M. G. Redley, "The Politics of a Predicament: The White Community in Kenya,
9. E. K . Lumley, Forgouen Mandate: A British District Officer in Tanganyika (Lon­ 1 9 1 8-32"" (dissertação de doutorado à U niversidade de Combndge. 1 976), PP· 1 24. 1 25.
dres, 1 976), p. 1 0. 1 2. James Bryce, /mpre.uions of South A/rica ( Londres. 1 897). pp. 232, 384-5.
1 0. lbid., p. 55.
226 227

ção e ao gosto pelos prazeres intelectuais, descobrirão talvez na espécie de biu. Partiu com um velho a migo também caçador, para procurar ouro.
clima a j ustificativa para a dedicação ao críquete . . . Nossos compatriotas Logo começou a cava r uma galeria de mina. "Não adiantava lembrar
não deixa_m de praticar o jogo nacional por medo do sol. São tão ingleses meu a migo de que eu nada sabia sobre escavações de minas, porque
aqui na A frica quanto o seriam na Inglaterra . " ele me redu zia ao silêncio com a resposta de que desencavar ouro era o
Ao lado deste processo de a fi r mação e construção da ari stocracia mes mo que desentocar uma raposa." Dentro em pou co Harding en­
ocorria u m outro - uma redefinição de ocupações; agora, era elegan� trou na Polícia Bri tâni ca da Á fri ca do Sul, encaminhado para uma
ser comerciante ou garimpeiro. Os j ovens aristocratas que migra vam carreira a dmi ni strativa considerada mai s aristocrática. 1 4
para a R odésia ou para o Quênia talvez sonhassem um dia serem pro­ Bem cedo, as condições na R odésia e no Quênia desenvolveram­
prietários de terras, mas no pri ncípio administrar uma l oj a de produ- Í' se de forma a estabel ecer uma sociedade ari stocrática mais estável. O s
tos agrí colas e comprar a produção agrícola africa na era muito mais _ asiáticos, gregos e ju deus assumiram o papel de lojistas e "vendedo­
lucrativo que tentar fazer plantações i ndividualmente. D e qualquer res de kafjir" ( sorgo, milho-za burro, pla ntado como cereal e forra­
fo rma, supunha-se que os "fazendeiros" que falassem i nglês eram aris­ gem); a produção agrária afri cana teve seus preços deliberadamente
tocratas, que não trabalhavam a terra com suas próprias mãos, mas reduzidos por manobras políti cas, colocando mão-de-obra à di sposi­
lançavam mão de seus novos poderes neotradicionais de comando ção dos fazendeiros aristocratas. M . G . R edl ey descreve as característi ­
para dirigir os trabalhadores. A ssim, em princípio, dependiam dos co­ cas da sociedade queniana branca logo após a I G uerra Mundial, da
nhecimentos que os africanos - ou os africânderes (africa nos descen­ seguinte forma:
dentes de europeu) - tinham da terra, e comprava m a melhor parte do A fonte principal de imigrantes britânicos com capital após a guerra era o
excedente dos lavradores africanos. Ao fazê-lo, desempenhavam uma que se denomi nava a "nova classe média alta". A riqueza familiar gerada
função i ndi spensável , uma vez que a mão-de-obra das economias colo­ cm empreendimentos na área da indústria, comércio e profissões havia
nia_i s primitiva � dependia inteiramente dos alimentos produzidos pelos atenuado as diferenças de classe da sociedade vitoriana. A educação das
africanos. Por i sso, durante um certo tempo, era considerado elegante escolas particulares havia fornecido antecedentes básicos para aqueles
ser dono de loja ou comprar cereais e gado dos africanos. ' 3 Lorde Bry- que não podiam reivindicar diretamente títulos aristocráticos como os
ce encontrou j ovens loji stas brancos "cultos e ponderados" na R odé- que tinham esse direito. Os antecedentes dos colonizadores de pós-guerra
sia em 1896, e também garimpeiros à procura de ouro com as mesmas deviam muito mais à usina, à mansão do dono de manufatura, ao reitora­
característi cas. O clima desta época inicial - e a euforia com as neotra­ do rural e à caserna dos oficiais do Exército I ndiano do que à linhagem
aristocrática . . . Entretanto, a fidalguia era um estilo de vida com q ue estes
dições da aristocracia - manifestam-se de forma notável na autobio­ se sentiam muito identificados, e pelo qual tinham um interesse obsessi­
grafia de Colin H arding. Hardi ng era filho do senhor da M ansão de vo . . . O fato de que os colonizadores europeus pertenciam à classe média
M ontacute, e na juventude preocupava-se exclu sivamente com extra­ alta representava a maior recomendação para aqueles que sentiam amea­
vagâncias da caça. Contudo, çado seu status e sua individualidade na sociedade britânica. "
a morte de meu pai revelou o desagradável fato de que nem eu, nem os
Redley relata como as neotradições funcionaram de modo a conservar
integrada a sociedade bra nca rural pequena e dispersa. Os jogos de
outros membros de minha família éramos tão opulentos como pensáva­
mos . . . Nem cu, nem meus irmãos tínhamos profissão, nem meios de ad­
quirirmos uma. equipe reuniam regularmente os vizi nhos de maneira aprovada e orga­
nizada. Permitiam também expressões simbólicas de protesto em lin­
Apesar di sso, "a caça ensina muita coisa" . Ha rding chegou a Bula­ guagem familiar tanto a coloniza dores como a administradores. R e­
wayo em 1894, e descobriu que "a agri cultura era um fracasso comple­ dley descreve uma "partida de fu tebol beneficente à fantasia" realiza­
to", e que "homens como eu eram mercadoria de pouca saí da". E ntre­ da em Nai robi, em 1907, e patroci nada pelo governador, que
tanto, "os lojistas experientes e confiáveis podiam conseguir quase to­
do o dinheiro que quisessem" . Só que o j ovem cavalheiro não sucum- foi desbaratada por colonos líderes, vestidos de secretários coloniais, que
traziam fileiras de medalhas feitas de tampas de lata e fita vermelha e fo-

1 3. Sobre a dependência dos brancos rodesianos em relação à produção de alimentos


africana, veja Palmer, "The Agricultura! H istory of Southern Rhodesia", in Palmer e 14. Colin H arding. Far Bugies (Londres, 1 933), p. 22.
Parsons (org.), The Roots of Rural Poverty. 1 5. M . G . Redley. op. cit., p. 9 .
228 229

ram marcando com estacas um contorno ao redor do campo, de modo a consc ientemente impingidas aos africanos, foram consideradas justa­
isolá-lo das reservas de florestas, de nativos e de caça, até que o próprio !",!_ - mente como agentes de "modernização".
campo ficasse inteiramente "fora dos limites" . 1
' H avia duas maneiras bem diretas pelas quais os europeus prncu ­
Por outro lado, todo projeto que visasse aumentar a população de co­ ravam fazer u s o d e suas tradições i nventadas para transformar e mo­
lonos brancos através da entrada de milhares de pequenos lavradores dernizar o pensamento e o comportamento africanos. A primeira delas
ou artesãos era frustrado pela determinação, por parte daqueles q ue era a aceitação da idéia de que alguns africanos poderiam tornar-se
controlavam a sociedade do Quênia, de mantê-la nas mãos dos cida­ m embros da classe governante da Africa colonial, daí estender-se a es­
dãos "educados nas escolas particulares que tivessem patrimônio, pen­ ses africanos a educação num contexto neotradicional. A segunda
são mi litar, renda resultante de investimentos ou subvenção famili ar m aneira - mais comum - era uma tentativa de fazer uso do que as tra­
estável" . dições inventadas européias tinham a oferecer em termos de uma rela­
ção reformulada entre governantes e governados. Afinal, a tradição
regimental definia as posições dos oficiais e soldados; a tradição de
A TRA NSMJSSA-0 DA S TRA DIÇÔES DE A UTORIDA DE casa-grande da aristocracia rural definia o papel de servos e senhores;
A OS A FRICA NOS a tradição da escola particular definia os papéis dos monitores e dos
alunos que os obedec i a m . Tudo isto poderia ser usado para construir
O jorna lista queniano radical J . K . Robertson criticava v i olenta­ unia sociedade hierárquica claramente definida, na qual os europeus co­
mente os brancos do Quênia por colocarem empecilhos à indústria de mandavam e os africanos eram comandados, porém num contexto co­
produção. Para provar sua opinião, inventou a história da carreira de mum de orgulho e lealdade. Assim, se as tradições que os trabalhado­
um colono. res e lavradores haviam criado para si na E uropa não exerceram gran­
de influência sobre os africanos das colônias, as tradições inventadas
John Smith, e� p r�gado 9e � m ar � azém em Londres, encontra uma vaga
num certo escritorio . da Africa oriental mglesa. John Smithers-Smith dei­ européias de subordinação tiveram uma influência realmente decisiva .
xa ? suor do rosto n?s livros e arquivos. "Ê o mesmo John, só que muito O melhor exemplo da primeira idéia - a d e que alguns africanos
mais ele. - . Descobriu o valor de um nome de grosso calibre . . . John leva poderiam transformar-se em governadores pela exposição à neo­
uma vida dissipada. Ê o costume, neste país. Rarament_e paga suas con­ tradição britânica - talvez seja a famosa escola, King' s College, em
tas .. , Vive de vales e das lindas histórias sobre o sangue azul de seus an­ Budo, no U ganda. Ê G . P. M cG regor que nos fornece o relatório mais
ce�tra_is. 1 <:Jhn é um_a verdadeira instituição neste país. e insinua-se no completo, assinalando com inteligência que o oferecimento da educa­
proprio se10 da sociedade de Nairobi. " ção primária só começou a ser levado a sério na própria G rã-Bretanh a
De m aneira m�is �era!, a f? rça das tradições inventadas européias de na década de 1 870, como parte do processo de situar a maioria da po­
_
autondade _
na A fnca colonial aJudaram pulação em seu devido lugar na hierarquia vocacional e educacional .
a produzir soldados, adminis­
tradores e colonos dedicados à ética "feudal/patriarca l", ao invés de à Daí a disseminação d e escolas primárias no Buganda (protetorado bri­
ética "capitalista/tra nsformadora". tânico no Uganda) no final do século XIX ter sido uma extensão con­
sideravelmente rápida do mesmo p rocesso ao império africano. No
Esta questão, porém, sob m uitos aspectos, é bastante enganosa. Buganda, porém, embora este tipo de educação parecesse bastante
As tradições inventadas da Grã-Bretanha do século XIX representa­ adequada à maioria lavradora, os missionários anglicanos não a consi­
vam uma forma de administrar uma sociedade industrial imensamente deravam apropriada para a aristocracia ganda.
complexa, uma maneira de gerenciar e acomodar as m udanças. Na Á­
frica, também, os brancos dependeram da tradição inventada para ge­ Até hoje, quase nada havia sido feito pelas crianças das classes altas (es­
rar a autoridade e confiança que lhes permitiram tornar-se agentes de creveu o Bispo Tucker), as quais, sob muitos aspectos, estavam em pior
transformações. Além d isso, na medida em que essas tradições foram situação do que os filhos dos lavradores. Estávamos convictos de que se
as classes dominantes de nosso país deviam exercer no futuro uma in­
fluência positiva sobre seu povo e sentir-se responsável por ele, era impe­
rioso que se tomassem providências no sentido de aprimorar a educação
1 6. M . G. Redley. op. cit ., p. 39. destas crianças abandonadas, da forma mais saudável possível . . . através
1 7 . R oger van z_.annenberg. "Robertson and the Kenra Critic". in K, King e A . 1. da disciplina pelo trabalho e pelo esporte em escolas internas, de maneira
Salim ( org.). Kenran Hi.<torical Biographies (N airobi. 197 1 ), pp. 1 45-6. a fortalecer o caráter e a capacitar os bugandeses a assumirem seus pró-
230 231

i,
�·

·? qui que têm alma" . Professores expatriados mais tarde teceram críti­
prios lugares na vida administrativa, comercial e industrial de seu próprio
país." cas ao "hábito budoniano de defender tradições sem valor só porque
Em suma, no Buganda os missionários queriam acrescentar à educa. el as sempre existiriam ". 2 1
ção elementar de estilo britânico uma estrutura de educação secundá­ Fossem quais fossem as tensões implícitas no ato de fazê-lo no
ria de estilo britânico, de um tipo neotradicional. Faziam questão de âmbito imperial que subordinava tão firmemente a classe ganda go­
explicar 4ue seu o bjetivo era "adaptar nosso método da Escola Priva­ verna nte aos administradores britânicos e a monarquia ganda à coroa
i.la inglesa ao contexto africano". Obtiveram um êxito extraordinário. i m perial, não há dúvida de que os missionários criaram em Budo um
O K i ng's College foi construído sobre a Colina da Coroação dos reis com plexo hem-suceJido de novas tradições. 4 ue evol uíram grad ual­
baganda, de forma que "am bos os cultos da coroação deste século fo­ mente num sentido paralelo a um cerimonialismo crescente da função
ram celebrados na capela do colégio"; "embora algumas das cerimô­ do Kabaka e dos outros reis ugandeses, de modo a obter uma síntese
nias tradicionais tenham sido observadas", o culto "obedeceu a vários próxima daquela ocorrida �� século X ! X na lnglat� rra. As cerimônias
aspectos d o culto d e coroação inglês" . 1 9 "O espírito de grupo logo se do Jubileu de Ouro do coleg10 - " Havia quatro Reis na mesa das pro­
estaheleceu na Escola Privada inglesa", e os mem bros ganda da T ur­ fessoras" - foram também expressão ritual da dedicação de uma gran­
key House requereram que este nome fosse mudado para Canada de fatia da classe governante ganda a essas tradições inventadas e já
House, para combinar com England House, South Africa House e consagradas. 22 M as a experiência de Budo não seria um modelo repeti­
A ustralia H o use - Turkey ( o u seja, "peru" ) parecia "visivelmente an­ do; os próprios britânicos terminaram se arrependendo da aliança ori­
tiimperia l .·· O lema da escola. segundo o que se i n forma também esco­ ginal com os chefes ganda, e achando que eles não poderiam promover
l h iJll pelos a l u nos. era uma versão ganda das últimas palavras de Ceei( mudanças realmente modernizadoras. Estas só seriam obtidas por co­
R. hoJes: · · Lill pouco feito e tanto para fa1er." mandantes europeus que tivessem o apoio leal de subordinados africa­
McGregor reproduz uma carta de u m aluno bugandês, escrita no nos.
primeiro ano de vida da escola, que nos permite ver este notável pro­
Havia várias tradições de subordinação à disposição. Uma delas
cesso de socialização do ponto de vista dos nativos.
era a tradição da hierarquia da casa-grande. Uma parte da auto­
Primeiro, de manhã, depois de levantar, arrumamos direitinho nossas ca­ imagem dos europeus na África consistia no direito de ter criados ne­
mas. Se não arrumarmos direito, os europeus nos criticam e censuram, gros - no auge da crise de mão-de-obra das minas sul-africanas, havia
quando aparecem por aqui . . . Nossas xícaras têm na frente um bicho se­ mais negros trabalhando em Johannesburgo como empregados do­
melhante a um leão. f: assim que se reconhece um estudante de Budo. E mésticos do que nas m inas. 23 Em 1 9 14, Frank Weston, bispo de Zanzi­
n inguém pode comer nada no seu compartimento , nem mascar café; só na
varanda, onde se servem as refeições. Cantamos um hino, rezamos, de­ bar, fez uma oposição entre a comunidade islâmica africana e a dife­
pois temos aula de inglês . . . Quando salmos, às quatro, vamos jogar fute­ renciação cristã. O cristão africano, escreveu, não tem a que se apegar,
bol, onze contra onze, e colocamos todos os jogadores em suas posições, a não ser "alguns europeus que passam por ele na rua; ele é inferior a
os goleiros, zagueiros, os meias e os atacantes.'º eles: eles podem tratá-lo com simpatia: talvez seja garçom deles, ou en­
Todos concordavam que Budo tinha conseguido criar aquela coisa im­ tão mordomo . . . mas irmão? Ainda não". 2 • Não havia tendência à
palpável, o "espírito da escola". Fazia-se sentir em Budo "fraternidade" na África colonial. Para a maioria dos europeus, a
imagem predileta de sua relação com os africanos era a de senhor pa­
em sua melhor forma, tal como o respiramos na Inglaterra após várias ge­ ternal e servo fiel. Esta foi prontamente transferida para o âmbito in­
rações de experiências - o espírito de equipe, de disciplina, de patriotismo dustrial. Em toda a África do Sul, os empregados africanos não se de-
local - tendo sido notável a transposição dele para o coração da África.
Sir Philip M itchell achava que Budo era "um dos poucos l ugares da-
2 1 . lbid .• pp. 54. 1 1 7, 1 24.
22. lbid.• p. 1 36. .
I X . G . P. M acgregor. A. inR' ColleR<'. Budo: The First Sixty Years ( Londres. 1 967), pp. 23. Charles van Onselen, ""The Witches of Suburbia: Domestic Service on the W1twa­
6. 1 6. tcrsrand, 1 890- 1 9 1 4" (manuscrito não publicado).
1 9. Jbid .. pp. 35-6. 24. Frank Weston, "Islam in Zanzibar Diocese", Central A/rica, xxxii , n. 380 (ago.
20. lbid.. pp. 1 7- 1 8. 1 9 1 4).
232 233

finiam como operanos, mas eram controlados e d isciplinados pelas nar seus estudos; sua coroação foi realizada na capela da escola; ele li­
Leis das Relações entre Senhores e Servos. derou a procissão do J ubileu de Ouro. Contudo, ele foi integrado à
Contudo, poucos brancos mantinham na África estabelecimentos tradição regimental do exército britânico.
domésticos de dimensões que permitissem todo o arsenal "tradicio­ Entrou no Corpo de Oficiais de Cambridge logo após sua chegada à Uni­
nal" da hierarquia servil britânica. A reestruturação dos exércitos afri. versidade e tornou-se oficial. . . Depois candidatou-se formalmente a
canos perm itiu uma aplicação mais elaborada das neotradições euro­ uma vaga no exército, dando como primeira opção a corporação dos
pé! as de subordinação. No fascinante relato de Sylvanus Cookey a res­ G uardas G ranadeiros . . . Foi o Rei Jorge V I que, numa iniciativa de boa
pe1 �0 d �st� processo, os franceses destacam-se como os primeiros e vontade, sugeriu que M utesa fosse promovido a capitão. Mutesa foi ao
m ais criativos manipuladores da tradição inventada militar. Na déca­ Palácio de Buckingham para a cerimônia."
da de 1 850, Faideherbe dispensou suas tropas oprimidas e desmorali­
zadas e atraiu voluntários africanos com uniformes "seduisant", ar­ A l i r-.L11 r u i .1 1'i rm a que os A ahaka.1 haviam-se tornado "uma institui­
mas modernas, j uramentos de lealdade sobre o Corão e carreiras ins­ ç,i o .111).!lo-a l'ricana" . fato nitidamente manifesto nas cerimônias que
tantâneas na glória militar da tradição francesa. �uL·elkram a m orte de M utesa. Ele teve dois funerais - um em Londres
e outro em K ampala, ambos caracterizados por grandes honras milita­
De Paris sugeriu-se até, como meio de instilar bem cedo um sentido da
modalida�e mil_it_ar nos jovens africanos, de maneira a prepará-los para res.
uma carreira m1htar, que os filhos dos tiral/eurs recebessem unifo rmes e Já houvera um toque de silêncio no primeiro sepultamento de M utesa em
equipamentos em miniatura semelhantes aos dos pais.'i Londres, em 1 969. Naquela ocasião, o componente militar do funeral foi
dei xado a cargo dos G uardas G ranadeiros britânicos. Agora (em Kam­
Os britânicos custaram mais a seguir esta linha. Mas diante da amea­ pala). os G uardas G ranadeiros apenas tomaram parte na cerimônia. O
ça francesa eles também puseram-se a regularizar os regimentos afri­ grosso do componente militar vinha do exército ugandês. M esmo assim ,
canos. Lugard dedicou sua meticulosa paixão pelo detalhe à trans­ o universo d e discurso existente entre aquela trombeta d e Londres em
formação de suas tropas nigerianas de "turbas" em uma força de com­ 1 969 e a trombeta entre as sepulturas kasubi de Uganda em 1 97 1 , era um
bate disciplinada e efetiva. Logo passou a tê-los em alta estima· cho­ universo comum."
viam sobre eles elogios oficiais por sua conduta em campanh'as na A acei tação de M utesa nas filei ras oficiais, porém, foi uma rara ex­
Costa d � Our� e no norte da Nigéria; construía-se uma tradição regi­ ceção. M uito m ais geral foi a produção de homens como o sucessor
mental tao rapidamente quanto se construíra o espírito de B udo. A ad­ de M utesa à presidência do Uganda, Idi Amin. M azrui argumenta que
n:i inistraçã ? de Lu_ga �d era formada principalmen te de oficiais do exér­ a ascensão de i\min e de seu "lumpen-milita riado" pode ser considera­
cito; tambem na Afnca Oriental _ os "governos eram essencialmente de da como a restauração das tradições militares pré-coloniais, suspensas
caráter militar nesta época", e o Professor George Shepperson fez ob­ desde a conquista colonial. Porém, de fato, a carreira de Amin nos for­
servações sobre nece um excelente exemplo de socialização através do exército colo­
a estreiteza da linha entre os civis e militares . . . Foi através de suas for­ nial. Conforme nos relata M azrui, quando Amin foi recrutado no
ças, bem como de suas missões que a cultura européia fo i levada aos habi­ Real Corpo Africano de Fuzileiros ern 1 946, mostrava
tantes nativos da África Central britânica." todos os sinais do condicionamento colonial à dependência . . . Dentro de
Este tipo de entrada de africanos na tradição m ilitar teve o sete anos fo i promovido a cabo e exibia as qualidades que tanto encanta­
m esmo tipo de ambigüi dades e o mesmo grau de êxito q ue a criação ram seus superiores britânicos - obediência instantânea, profundo orgu­
d ? espírito de Budo. As vezes, as duas formas de socialização se reu­ lho regimental, reverência em relação à Grã-Bretanha e aos britânicos,
niam, como no caso do Kabaka Edward M utesa. M utesa tornou-se um uniforme com vincos impecáveis, engomados até estalarem, e botas
Kabaka quando ainda era um colegial, em Budo, e ficou lá até termi- de biqueiras tão polidas que pareciam espelhos negros."

25. S. J. Cookey, "Origins and pre- 1 9 14 Character of the Colonial A rmies in West 27. Ali A. Mazrui, So/diers and Kinsmen in Uganda: The Making of a Military Ethno­
A frica" (conferência. U n i v . de Califórnia. Los A ngeles. 1 972) . cracy ( Londres, 1 975), p. 1 73.
26. George Shepperson . "The M ilitary History o f British Central Africa: A Review 28. lbid.. pp. 1 77. 1 90, 1 9 1 .
Article", Rhodes-Liringstone Journd{, n. 26 (dez. 1 959), pp. 23-33. 29. Jbid., pp. 206-7 .
235
234

as
Espelhos negros de oficiais i ngleses era exatamente o que se preten. acto ati n giu um climax - particularm� nte na _África � rie� tal - com n a
c1palm en e
�ampa nhas da I Guerra M un d_i� I . D �1 por .d1 �1nte, pri n �.
d ia fa zer d os sold ados a frica nos. Como Keegan d emonstrou, os t r
África britânica, a presença m1htar dimi nuiu. A_ modah d�de m1h �
exércitos europeus haviam-se baseado livremente nos traj es e na aura em relação às mo dahda des de i ntegraç ao
romântica das raças " guerreiras" por eles enfrentadas. Não parecem tev e sua influência diminuída _
o
a formaç ão burocr ática dos african os nos : m p regos �
missi onária ou "
ter feito isso na Á frica, n ão como conseqüên cia de seus confrontos mi­ a s que c1a � as
governo ou do empresariado . M as o _ d: bate sobre � � ! :
n
litares com os africa n os. R estou a Baden-Powell, um crítico da menta­
fluências ou sobre qual das neotrad 1çoes havia exercid o a mai or rn
lidade formal e militar, basear-se nas capacidades escotistas d os mata­
llut:nci a . afina l - Ulll dchatC ljUC oscila . 11�1 m edida cm yuc OS íCIS a l nca­
bele (povo da R od ésia) para oferecer à j uven tude branca um trei na­ ns no­
nos, cercad os ror ornamentos neotrad 1c1o� a1s, domin�':1 alg�
mento llcxín: I . fecundame nte insrirado em mitos k irlinguia nos so hre vos estados africanos: na med ida em que elites burocr at1cas tri unfa m
a júngal. Durante m uito temro. na Á frica merid ional . os jovens a frica­ ilitari ado" de M a 1 ru1 cont rol
_ �i 0�
cm outrn s Lstad 1 >s: e 1 > --1u111 rcn-m
­
nos eram trei nados sob rígidas normas regimentai s e os j ovens bran­ ao o
cos, paradoxalmente, nas técnicas dos mateiros. 30 tros - acaba por tornar- se menos i� port� nte que um� avahaç
efeito geral destes rrocessos de soc1ah zaçao n_e�col ? nial.
A admi ssão dos africanos ao que se pretendiam que fo ssem répli­ Este foi certamente considerável. As trad1çoes i nventad as euro­
cas das neotradições da Grã-Breta nha não ficou só na copa-cozinha, péias ofereceram aos africanos uma sér! e � e pontos d efinidos � e entra­
da casa-grande, nas escolas como B udo ou no recrutamento para o
exército. O cristão africano hipotético do Bispo W eston, em busca da da no mun do colonial , embora na ma10na dos casos ten_ha sido uma
entrada na situação subordinada em relação a ur:i superior_. Os euro­
fraternidade, pod eria, se tivesse sorte, "a prend er datil ografia" 3 1 , e
reus começar am a socializar os africanos no sent�do_ de ace� tarem um
muitos africanos educados em missões ingressaram nos níveis inferio­
dos mod os de cond uta neotradic ionai s europeus a d1 spos1çao - a li te­
res da hierarquia burocrática. Os escriturários africanos começaram a
ratura histórica está repleta de africano s orgulhosos por teref!' apren ­
dar valor aos ca rimbos e à fil eira d e canetas no bolso da camisa; as so­ dido a serem membros de um regimen to ou de terem aprendid o a ce­
ciedades de dança africanas usavam carimbos surripiados para auten­ lebrar corretamente o ritual do a nglicanismo do século passado. O
ticar sua correspon dência mútua, e dançavam com trajes completos, processo freqü entemente terminava com sérias ? m�aças ao p� d: r co­
tanto burocráticos como militares. 1 2 O person agem louco de Graham lonial, expressas muitas vezes em termos das proonas neo_trad1çoes de
Greene, no barco cheio de rolos de papel, escrevin hando constante­ socialização. (Os meninos de Budo passaram da celebraç ao fiel d� ce­
mente as minutas, enqua n to procurava en direitar um mundo alienado, rimôn ia de coroação "modern izada" de Edward M ute� a aos motins e
foi um tributo ao poder imagin ativo - embora também uma dramati­ protestos porque o Kabaka não era tratado p elas autor! dades como � e
zação da impotê n cia - das fo rmas d e burocracia colonial. E, natural­ fosse um rei "de verdade" .) Este padrão foi estabelec ido por M artin
mente, os cristãos africanos, transformados em integrantes do clero da Channock para os professore.s tradicional istas d_a �J azilândia e, com
fraternidade imperfeita das próprias igrejas cristãs, a prenderam a de­ maiores detalhes, por J ohn lhffe para o Tan� amca. Em_ suas. formas
sempenhar os rituais inventados e reinven tados da eclesiologia euro­ variáveis inspirou fortemente o que denominamos nac1onah smo. É
péia do século XIX. doloroso, mas não surpreendente, que Kenneth Kaunda, em � usca de
Neste sen tido, houve uma certa periodização. As tradições inven­ uma ideologia pessoal que o auxiliasse no caminho para a liderança
tadas européias fo ra m importantes para os africanos numa série de fa­ nacional encontrasse refrigério e inspiração nos Books for Boys de
ses superpostas. A neotradição milita r, com d emarcações hierárqui­ Arthur M ee (escritor inglês de literatura infantil) . i
i

cas claramente visíveis, e obviamente indispen sável ao funcionamento


do colonialismo primitivo, foi a primeira influência poderosa. Seu im-

1 9 19- 1 939" , se­


13 Tom Clavton . "C oncepls of Power and Force in Colonial A frica.
sÍituto de Estudos sobre a Comunid ade de Nações ( U niversida de de Lon-
�inário cio l n
30. Para uma anál ise das ambigüidades envolvidas no estabelecimento de tropas de es­ dres. out. 1 978).
coteiros na África e na exclusão dos africanos dessas organizações, veja Terence Ranger, · · 1 T rad"1t1on
· " , Afirica· � Af
34. M a rtin Channock, "Ambig uities in the M alawia - � Poht1ca
" Making N orthern Rhodesia Imperial: Variations on a Royal Theme, 1 924- 1 938", Afri· xx1v, n. 296 (jul . 1 ,
975)· John Iliffe , A Modem H1story of Tangany 1ka (Cambr idge.
can Affairs. lxxix, n . 3 1 6 (jul. 1 980). · 1 ·
fiQlrs,
1 979).
3 1 . Weston, " lslam i n Zanzibar Diocese", p . 200. P 31.
35. Kennet h Kaunda , Zambia Sha/1 be Free ( Londres , 1 962), ·
32. Terence Ranger. Dance and Societr in Eastern A/rica ( Londn:s. 1 975).
236 237

�e voltarmos po� �m momento à questão da "modernização" tradições de subordinação. Precisavam especialmente da colaboração
atraves do uso de trad1çoes .inventadas européias, evidenciam-se todas dos chefes, dos cabeças e anciãos das áreas rurais. Tal colaboração
as suas va� ta� ens e lim ! tações para os colonos. Elas realmente servi­ era, no fundo, um caso bastante prático de troca de beneficios. Os
38

ram para hm1tar os afncanos a categorias relativamente especializa­ governantes coloniais sentiram, porém, necessidade de uma ideologia
das - os askari (soldados nativos da África oriental), os professores, os comum do Império que englobasse brancos e negros, enobrecesse as
. . práticas de colaboração e justificasse o domínio branco. Os britânicos
servos, e dai por diante - e oferecer uma profissionalização rudimentar
de trabalha?ores africanos. Incrustadas nas neotradições da autorida­ e alemães encontraram tudo isto na idéia de Monarquia Imperial.
d� e subord1 � ação, estav�� e�igências bastante nítidas para a observa­ Na África Oriental alemã a idéia da centralização da monarquia
.
ça? dos � oranos e da d1s�1phna do trabal � o - o horário organizado, tinha dois aspectos. Por um lado, os alemães acreditavam que os pró­
ate f�nat1camente ? eterminado dos coleg1a1s .
. de Budo; o pátio dos prios africanos tinham uma noção rudimentar de realeza, e principal­
exerc1c1os como 0�1gem e símbolo de disciplina e pontualidade. Por mente nos primeiros estágios de interação com os reis africanos prepa­
_ .
outro la� o, as trad1çoes inventadas impingidas aos africanos foram as raram-se para apoiar as manifestações africanas de monarquia e para
de auto.ndade, em vez das de produção. Os operários podem ter sido enfeitá-las com alguns dos acessórios das encenações cerimoniais eu­
categon!a� os como "servos", mas por muito tempo o verdadeiro ser­ ropéias do século X IX. Assim, um oficial alemão relatou ao Kaiser em
vo do� est1 �0 goz �u de �m prestígio muito maior, podendo manipular 1890 que havia entregue presentes do imperador ao chefe Rindi do
,
as re�1 � roc1dades 1 m phc1tas na relação senhor/empregado negadas ao Chagga: "Enquanto os soldados apresentavam armas, . . . envolvi seus
op �rano. Os opera_ n. ? s e lavradores nunca tiveram acesso aos cerimo­ ombros com o manto da coroação. . . do Teatro Lírico de Berlim e co­
.
niais claros e Prest1g1ad os do soldado, do professor, do escriturário _ loquei-lhe na cabeça o elmo com o qual certa vez Niemann cantou
.
exceto na medida em que os adotaram nas fantasias de carnaval ou Lohengrin." '9 Por outro lado, os alemães acreditavam que as idéias
concursos de dança. 36 E, conforme já vimos, os africanos foram excluí­ africanas de governo pessoal por um monarca poderiam ser infinita­
dos e.specificament� das t�adições dos sindicatos. Os operários africa­ mente ampliadas de forma que a figura de um Kaiser todo-poderoso
nos t1v�ram que cnar sozinhos uma consciência e um comportamento viesse a personificar a autoridade imperial alemã. Como nos fala John
apropnado a sua posição. 3 7 Iliffe:
Esta foi um� das muit�s razões para o prestígio relativamente alto
dos empregos nao-produt1vos entre os africanos da África colonial. A cerimônia que sintetizou o domínio alemão foi a celebração anual do
Ao mesmo tempo, se as novas tradições de subordinação haviam co­ aniversário do Kaiser. Em todos os postos administrativos os askaris des­
filaram d iante de uma imensa multidão. Após uma inspeção e algumas
meçad� oportu� amente a definir certos tipos de especializações, de­
manobras, o oficial superior alemão dirigiu-se aos espectadores, louvan­
ram ongem mais tarde a conceitualizações profundamente conserva­ do as virtudes do Imperador e fazendo com que eles dessem três vezes um
doras destas espec_ializações, fazendo com que os professores, minis­ "viva" ao Kaiser e ao Reich. Depois todos dançaram, em circulas espa­
t�os e soldados afncanos se opusessem abertamente a tentativas poste­ lhados pela área do desfile.'º
nores de modernização.
Mas foram os britânicos que mais elaboraram a ideologia monárqui­
A S NO VA S TRA DIÇÕES DA MONA RQUIA ca. O rei britânico não possuía o poder executivo indiscutível e ma­
NA ÂFRICA COLO NIA L nifesto do Kaiser alemão. Contudo, dele se falava em termos mais
Os governos coloniais da África não queriam governar exercendo místicos do que práticos. J . E. Hine, bispo da Rodésia do Norte, achou
constantemente uma força militar, e precisaram de uma maior gama que a coroação do Rei Jorge V foi "uma grande cerimônia religiosa" .
de colaboradores do que os africanos conquistados para as neo-

38. Encontra-se um relato recente sobre intercâmbios de colaboração em Ronald Ro­


36. Ranger. Dance and Society in Eastern A/rica. binson, "European Imperialism and Indigenous Reactions in British West Africa, 1 890-
Para uma análise da literatura recente sobre a consciênc ia proletária africana, veja 1 9 14". in H. L. Wesseling (org.), Expansion and Reaction: Essays in European Expansion
t7. _
. eter G u_tkmd. Jean _ Copans e Robin Cohen, African Labour History (Londres 1 978)
and Rrnctf(i/1.< ln A s/a and 4 frica ( Laiden. 1 978) .
mtroduç�o; John H �ggmson . . African Mine Workers at the Union Miniere 39. I liffe. A Modern History of Tanganyika. p. 1 00.
d� Hau;
Katanga . . Assoc1aç
_ :
ao H 1stonca American a (dez. 1 979). 40. lbid .. pp. 237-8.
239
238

União Sul Africana, vós obedecereis lealmente à Sua decisão" : ' Em


Alguns aspectos do ritual, segundo ele, foram "muito teatrais, 19 15 Lorde Buxton afirmou ao Chefe Supremo que "Sua Majestade
lembrando uma cena de ópera" . Houve também "música demais", es­ jamais deixa de interessar-se pelo bem-estar dos Basuto", e que apre­
pecialmente escrita para a ocasião, "música moderna, para mim baru­ ciava o apoio aos "grandes exércitos que o Rei enviou contra Seus
lhenta e sem melodia". Mas, inimigos" . 44 Em 1 925, o Príncipe de Gales disse aos Sotho que estava
no geral, a Coroação foi magnífica. Não foi uma simples encenação me­ muito satisfeito por ver que vós ainda cultivais a memória de minha bisa­
dieval, anacrônica, sem n ada a ver com o espírito do século XX; não foi vó, a Rainha Vitória . . . Ela já não está mais entre nós, mas o Rei conti­
uma mostra teatral de uma magnificência bem preparada . . . Era um sim­ nua a velar por vós, com carinho de pai. Deveis mostrar-vos merec.!dores
bolismo da mais alta pompa, só que por trás dele havia uma realidade - a de sua proteção, ouvindo os homens que ele enviou para guiar-vos e edu­
unção sagrada do eleito do Senhor, um ato de caráter quase sacramental car-vos.''
seguido pelo gesto de depositar sobre a cabeça deste homem a Coroa qu�
é o sim bolo externo da terrível, porém, grandiosa responsabilidade de go­ E em 1927, o Coronel Amery, secretário de estado para as colônias,
vernar todo o povo inglês e as várias nações de além-mar que devem sua disse aos Sotho que "Sua Majestade o Rei, que me enviou nesta via­
lealdade ao Rei inglês." gem através de Seus domínios, está profundamente interessado por
No Norte da Rodésia, o administrador em exercício convocou todos cada um de seus súditos - grandes e pequenos " .46
os chefes Ngoni e seu povo para uma festa do Dia da Coroação; a Quando o Rei dirigiu-se pessoalmente aos Sotho - como na Men�
banda da "polícia nativa" tocou; o representante anglicano "vestido sagem Imperial de 19 10 - seus assistentes puseram-lhe na boca pala­
com trajes cerimoniais, rezou a prece especial escolhida para a oca­ vras de tom patriarcal:
sião, de pé junto à bandeira hasteada em comemoração" . O arrebata­ Quando uma criança está com problemas, vai falar com seu pai, e este,
do missionário mais tarde relatou as comemorações da tarde. após escutar o que ela tem a dizer resolverá o que deve ser feito. A criança
No vale acenderam-se quatro enormes fogueiras, ao redor das quais cen­ deverá, então, confiar em seu pai e obedecer a ele, porque não passa de
tenas de nativos escuros pulavam e dançavam . Alguns tinham guisas nos um membro de uma grande família, enquanto o pai tem grande experiên­
pés, e quase todos traziam clavas . . . Os europeus, abrigados por um an­ cia por ter resolvido os problemas de seus filhos mais velhos, sendo capaz
teparo de capim. ficaram sentados em semicírculo, e entre eles e as fo­ de julgar o que é melhor n ão só para o filho mais novo mas para a tran­
gueiras dançavam os aborígines . . . Depois a banda da polícia adiantou­ qüilidade e bem-estar da família inteira . . . A nação Basuto é como uma
se e à luz do fogo que morria brindaram-nos com a "Marcha dos Homens filha muito pequena entre os muitos povos do I m pério B ritânico:·
de Harlech", "Avante, Soldados de Cristo" e outras melodias.42
Não admira que em vista de tudo isto o velho chefe Jonathan tenha
Porém. não foi arenas a igreja oficial que falou da monarquia em ter­ saudado a visita do Príncipe de Gales à Basutolândia em 1925 com ter­
mos religiosos. Os administradores leigos, foram ainda mais longe. mos que alguns dos missionários presentes, surpresos, consideraram
Seus discursos pintaram aos ouvintes africanos um rei quase divino; quase blasfêmias:
onipotente, onisciente e onipresente. Numa série de discursos oficiais
aos Sotho, por exemplo, frisava-se que o rei tinha conhecimento de Para mim, hoje é um dia de festa. Rejubilo-me neste dia como Simeão das
sua situação, preocupava-se com o bem-estar do povo e responsabili­ Escrituras por ter visto o Senhor Jesus antes de dormir no túmulo de seus
pais.''
zava-se por decisões que na verdade houvessem sido tomadas pelo gabi­
nete. Em 19 1O, o Príncipe Arthur de Connaught disse ao Chefe Supre­ U sou-se a mesma retórica em toda a África britânica. Um observador
mo dos Sotho que o novo Rei Jorge V "lembra-se das reivindicações atilado das indaha.1 (conferências) do governador com os chefes no
que fizestes a Sua Majestade anterior, Rei Eduardo", e que ele sabia
que "quando ele resolver que é hora de incluir a Basutolândia na
43. Príncipe Arthur de Connaught, resposta do Discurso, 9 out. 1 9 1 0, pasta
S3/28/2 /2. Arquivos Nacionais, Lesotho, Maseru.
44. Lorde B u xton. resposta ao Discurso abr. 1 9 1 5. 53/28/2/3. Maseru.
4 1 . J. E. Hine, "The Coronation of King George V", Central A/rica, xxix, n . 344 (ago. 45. Príncipe de Gales. resposta ao Discurso, 28 maio 1925, 53/28/ 1 /9, Maseru.
1 9 1 1 ). pp. 200- 1 . 46. Coronel Amery, resposta ao Discurso, ago. 1 927, 53/28/ 1 / 12, Maseru.
42. A.G. De La P. . "How the Angoni kept Coronation Day", Central A/rica, xxx, n. 47. "The King's Message", out. 1 9 10, 53/28/2/2, Maseru.
345 (set. 1 9 1 1 ). pp. 242-3. 48. Discurso do C hefe Jonathan, 28 maio 1 925, 53/28/ 1 /9, Maseru.
240 24 1

norte da Rodésia na década de 1920 ouvi u-o dizer que essas reuni ões te" - e, em segundo lugar, o fato de poderem reunir-se assim amigavel­
"eram consideradas como uma demonstração (no sentido mais infan­ mente com todos os outros chefes do Território."
til possível) da benignidade de Sua Majestade em relação a seus súdi­ A administração da Rodésia do Norte gabava-se de que a indaba havia
tos africanos incultos".'º Certamente o governador preocupava-se representado a união de todos os povos do território, não por que fos­
muito em indicar o Rei como fonte de sua autoridade e da autoridade sem todos africanos. e menos ainda porque fossem todos da Rodésia
dos administradores distritais. do Norte, mas porque eram todos súditos de um rei poderoso. Tendo
Todos vós sois um só povo - súditos do Rei da Inglaterra. O Rei deseja em vista estes antecedentes, foi um sinal de enfraquecimento da auto­
que todos os seus súditos vivam juntos em paz. . . 1:. para assegurar isto confiança em vez de arrogância o fato de o governo da Rodésia do
que se enviam Governadores. . . O Governador que mora em Livingstone Norte ter sido obrigado a publicar instruções para os africanos, por
e tem uma grande região para administrar não pode ficar em um só lugar, ocasião da visita real de 1947, informando-os de que
mas os Comissários Distritais. . . representam o Governador e o Rei, e O Rei Jorge é o maior monarca do mundo. Não é como um chefe africa­
cuidam para que os desejos do Rei se realizem.s• no. Não gosta de aglomerações em torno d'Ele, e espera que seus súditos
Para emprestar credibilidade a estas alegações, os administradores co­ se comportem muito bem."
loni ais consideravam o aspecto ceri monial da monarquia extre­ M as as visitas reais eram ocasiões necessariamente raras na Á fri­
mamente importante. Q uando em 1 9 1 9 o C hefe Supremo da Basuto­ ca colonial. N os intervalos, o c ulto real teve de ser sustentado por ri­
lândia requereu permissão para visitar o Vaticano e o Palácio de Buc­ tuais inventados locais. Havia gente que fazia carreira se conseguisse
kingham em sua viagem à Europa, o alto comissário temeu que eie " se dar contribuições inspiradas a esses rituais. Exemplo excelente foi Ed­
deixasse impressionar indevidamente pela pompa e solenidade da re­ ward Twining, mais tarde governador de Tanganica. O biógrafo de
cepção no Vaticano e concluísse que o Papa era mais importante que o Twining conta que a família da mãe dele achava que ela não tinha feito
Rei!" A permissão foi recusada. 5 1 Quando o Príncipe de Gales visitou um bom casamento, porque o pai de Twining, um ministro, não era
o sul e o leste da Á frica em 1925, apesar de obviamente não gostar de considerado aristocrata. A carreira militar não muito destacada de
cerimonial, foi convencido pelas súplicas dos administradores colo­ Twining e sua transferência para o serviço colonial foi uma tentativa
niais, que lhe garantiram que se não aparecesse todo vestido de escar­ de conseguir um destaque convincente, levada a efeito do modo consa­
late às multidões de africanos, seria melhor nem aparecer. O efeito foi grado nas periferias imperiais da aristocracia. T wining só encontrou
satisfatório. "A chegada do Príncipe foi um acontecimento magnifi­ distinção no final - e obviamente devido à sua capacidade de inventar
co", publicou o Daily Telegraph de Basutolândia; "Sua Alteza Real tradições com a maior sinceridade.
fulgurava de tantas medalhas, uma visão que impressionou profunda-
1 1 1 1.: 1 1 1 1: a 111 ultid;1 11 imensa e silenciosa : · · · Do suhdistrito Solwezi da Enquanto ainda era oficial administrativo no Uganda, Twining
R , 1dé,1a do "l 1 1 rtc. n:io a notícia de lJUe os dois chefes que haviam escreveu e p ublicou um panfleto sobre a cerimônia de coroação ingle­
ct 1 1 1 1 p a rccido i1 i11daha do Príncipe. sa, sobre o qual o The Times Literary Supplement comentou que em­
bora "não existissem quase livros que se pudesse pensar em consultar
estavam muito emocionados ao manifestarem o prazer que sentiram em em busca de pormenores arqueológicos". "para permitir o acompa­
conhecerem o Príncipe . . . As duas principais impressões que parecem nhamento passo a passo do rito moderno, não se poderia esperar coisa
ter-lhes ficado gravadas na mente . . . foram, em primeiro lugar, a pompa melhor". Tendo assim rendido tributo à tradição inventada por outras
e cerimônia que cercaram a visita - nas palavras de Kapijimpanga, "o pessoas. Twining pôs-se, no ano da coroação de 1937, a inventar a sua
uniforme do Bwana brilhava tanto que nem podíamos olhá-lo diretamen-
própria. Na verdade, a administração começou a notá-lo pela sua or­
ganização bem-sucedida das comemorações de 1937 na Uganda, um

49. Winfrid Tapson. O/d Timer (Cidade do Cabo, 1 957), p. 65.


50. Governador Sir James M axwell, discurso na lndaba de Ndola, 6 jul. 1 928, pasta
ZA 1 /9/59/ 1 , Arquivos Nacionais, Zâmbia, Lusaka. 53. Relalório Anual. comissário nativo. subdistrito de Solwezi. 1 925. ZA 7 / 1 /9/2. Lu­
5 1 . A lto comissário, telegrama ao secretário de Estado, 19 maio 1 9 1 9, S3/28/2/4, Ma­ saka.
seru. 54. " Rodésia do Norte. A V isita Real. 1 1 abr. 1 947, Detalhes do Programa e dos pre­
52. Daily Telev:raph, 30 maio 1 925, "Picturesque Scenes". parativos para a transmissão", P3/ 1 3/2/ 1 , Lusaka.
242 243

triunfo de criatividade cerimonial, descrito com entusiasmo por seu pa do Estado colonial na Africa" pode ser talvez melhor investigada
autor: através da "observação de suas festas".
A noitinha, houve a Exibição Conjunta de Toque do Tambor e Fogos de Por todo o Império (escreve ele), houve comemorações no dia 6 de maio
Artificio, que foi um espetáculo em sua maior parte pessoal meu, u ma vez de 1 935, jubileu de prata do Rei Jorge V, até na pequena Kakamega, sede
que eu o criara, ensaiara dois números eu mesmo, organizara tudo, con1- de um distrito nas montanhas do Quênia ocidental. . . O poder do Estado
truíra uma arquibancada, vendera todos os bilhetes pessoalmente . . . Ao manifesta-se com um desfile das forças policiais . . . A majestade do go­
chegar, o Governador apertou um botão que na verdade não acion ava verno foi evocada num discurso do governador, lido pelo comissário dis­
nada, embora aparentemente disparasse um foguete que, por sua vez, trital, que observou que o Rei Jorge estava presente, mesmo diante do sú­
acendia uma enorme fogueira do outro lado do lago, que então disparava dito mais desprezível, na efígie das moedas que traziam, das medalhas de
50 foguetes. Neste momento, os Corneteiros tocavam a Retirada no escu­ seus chefes. Ele era "um grande soberano, q ue muito ama o seu povo e
ro, .e aí acendiam-se quarenta e poucas lâmpadas, holofotes e ribaltas, e procura governá-lo com j ustiça. Sempre mostrou um profundo interesse
os tambores e a banda começavam a tamborilar nos instrumentos de per. pessoal por vosso bem-estar" - e os mestres-escola lideres da opinião dos
cussão, enquanto os espectadores acomodavam-se para escutar . . . De­ lavradores estavam ainda influenciando nos princípios do legitimismo
pois, alguns colegiais faziam o Desfile dos Soldados de Brinquedo. Sou. camponês ao passarem por cima dos servos do Rei e requererem à Câma­
be dos detalhes na Escola Duque de York, em Dover, e adaptei-os às con­ ra dos Com uns que desagravasse as ofensas recebidas . . . A família real
dições locais. Os meninos vieram de calças brancas, túnicas vermelhas, e foi ai nda mais l igada ao progresso material na cidadania camponesa. Na
capacetes brancos de casamata, o oficial com uma barretina de pele de ur­ década da R ainha Vitória "muito poucos eram os que tinham roupas, a
so . . . O batuque prosseguiu depois disso. Fogos de artificio. Uma dança não ser peles e cobertores, e raros eram os que sabiam ler. Agora tendes
de guerra executada por 1 20 guerreiros vestidos com peles de leopardo. ferrovias, escolas, hospitais, cidades e centros comerciais, que vos dão a
Plumas de a vest ru,. la nças e escudos. Depois. o espetáculo " De selvagens oportunidade de desenvolvimento que é conseqüência da civilização e do
a soldados", mostrando o processo de transformação dos guerreiros nati­ bom governo". O aperfeiçoamento colonial relacionou-se à recreação dos
vos em verdadeiros soldados. lavradores. As atividades do dia incluíram uma exibição do grupo local
de escoteiros . . . Os governantes buscavam a simpatia de seus súditos no
O rri11L·iral acontecimento. a sensação da noite. foi um a retransmissão carnaval, quase que em verdadeiras saturnais. H avia competições exclusi­
d.1 \ 01 d o 11m o rei i m rerador. a m pliada por alto-fala n tes ocu ltos. N o vamente para os africanos, pau-de-sebo, cabo-de-guerra, cabra-cega; ha­
dia ,e!! u i 11te. h o u \'e u m a cerim únia na suprema corte. com a presença via também. contudo. esportes inter-raciais. uma corrida de bicicletas.
do A. uha/.. u . d o, j u í,e .... do !!Overnador. dos chefes e d11" hi sros - "in­ uma corrida de asnos, até uma partida de futebol à fantasia, entre euro­
\ e11ç;1 0 m i n h a . L1111h1:111. LJ Ue ,e tonwu u m a ceri 111ii11 i a a l tamente hon­ peus e indianos, para os nativos assistirem. Também a economia campo­
rosa . nesa foi cooptada; havia corrida de ovo na colher e de saco de farinha . . .
Também se utilizou a cultura camponesa; o dia começou com cultos reli­
O restante da carreira adequadamente destacada de Twining mos­ giosos. Os europeus foram a um erudito culto anglicano. Os africanos ti­
trou o mesmo interesse pelo cerimonial inventado. Foi um resplenden­ veram de contentar-se com uma simples missa.''
te governador de Tanganica. No final, tornou-se um dos primeiros pa­ É ó h v i o LJ U e os adm i nistradores britânicos levavam este tipo de
res vitalícios criados - exemplo supremo da tradição inventada - e coisa muito a sério - Twining, quando governador da Tanganica, re­
vendeu por uma n inharia seu Manto da Grã-Cruz da Ordem de São cusava-se a negociar com a U nião Africana da Tanganica, de Nyerere,
Miguel e São João, para comprar "uma túnica de segunda mão com porque os considerava desleais à Rainha. Contudo, é muito difícil ava­
orla de arminho legítimo."'• liar como os africanos encaravam tudo isto. Lonsdale descreve as co­
Em toda a África colonial britânica tais rituais eram levados mui­ memorações do Jubileu de Ouro de Kakamega como parte do proces­
to a sério, embora exuberância como a de Twining fosse coisa rara. so de "naturalização do Estado", e mostra como os líderes do campe­
Numa análise recente do relacionamento entre " Estado e Campesina· sinato local agiam facilmente de acordo com as regras; na Rodésia do
to na África Colonial", Joh n Lonsdale afirma que "a questão da pom- Norte, os chefes apoiavam a "teologia" administrativa dirigindo suas

55. Darrell Bates. A Gu.<t of Plumes: A Biographr o( Lord Wining of Godalming and
Tanganyika ( Londres. 1 972), pp. 1 02-5. 57. John Lonsdale, "State and Peasantry in Colonial A frica", in Raphael Samuel
º
56. lbid., p. 286. (org .). Peop/e s History and Socia/ist Theory ( Londres. 1 98 1 ), pp. 1 1 3 - 1 4 .
244 245

reivindicações de armas ou uniformes ao rei através de seu governador guia, às gradações da hierarquia militar, aos rituais da burocracia. Os
e enviando ao rei presentes de peles ou presas de leopardo; as associa­ africanos q ue procuravam manipular estes símbolos por si mesmos,
cões de dança africanas elegiam seus Reis e Césares, para presidi-las, sem aceitarem as implicações de subordinação dentro de uma neo­
com cerimônias adequadas; pregadores milenaristas anunciavam a tradição de autoridade, geralmente eram acusados pelos europeus de
seus ouvintes que o Rei Jorge, que até ali havia sido enganado por seus se preocuparem com ninharias, de confundirem a forma com a reali­
conselheiros corruptos, assumiria o controle direto e conduziria o Im­ dade e de imaginarem que era possível obter poder e prosperidade ape­
pério à Idade do Ouro.is O símbolo da monarquia nitidamente excita­ nas imitando práticas rituais. Todavia, embora isso fosse verdade, o
va a imaginação. Talvez por algum tempo também tenha contribuído excesso de ênfase nas formas já fora criado pelos próprios colonos
para algum tipo de consenso ideológico entre os europeus e seus cola­ brancos, cuja maioria era beneficiária, em vez de geradora da riqueza e
boradores africanos. Como veremos, uma grande parcela da política do poder. Se o monopólio dos ritos e símbolos da neotradição era tão
de colaboração teve lugar dentro dos limites impostos pela teoria colo­ importante para os brancos, não era ingenuidade da parte dos africa­
nial da monarquia. Todavia, conforme demonstra a fatal rigidez de nos o tentar apropriar-se deles.
Twining no Tanganica, a manipulação colonial da monarquia e, aliás, P_arece-me que havia de modo geral quatro maneiras pelas quais
todo o processo da invenção das tradições, tendo satisfeito grande nú­ os afncanos procuraram aproximar-se das tradições inventadas euro­
mero de objetivos práticos, tornou-se, afinal, contraproducente. A apa­ péias, de maneira relativamente autônoma, sem aceitar os pap�is a eles
rente irreverência despreocupada e a rapidez com que Twining fabri­ atribuí_dos pelos _ europeus dentro delas. Num certo aspecto, a burgue­
cava tradições mal disfarçavam sua profunda dedicação à monarquia, sia afncana aspirante procurava apropriar-se da gama de comporta­
à aristocracia, à neotradição. Era mais fácil inventar uma tradição do mentos e atividades que definiam as classes médias européias. Por ou­
que modificá-la e torná-la mais flexível depois de inventada. As tradi­ tro lado, muitos governantes africanos - e seus partidários - lutavam
ções inventadas, ao contrário dos costumes evoluídos inconscientemen­ para obter o direito de exprimirem sua autoridade através dos títulos e
te, só poderiam ser levadas a sério se fossem seguidas ao pé da letra. símbolos da monarquia neotradicional européia. Os africanos nova­
Aquele famoso "espírito" tão decantado em Budo não poderia surgir mente adaptaram o simbolismo neotradicional europeu como se fosse
onde fosse contado entre os restos mortais do cerimonialismo colo­ um modismo, manifestando sua sofisticação não através da "imita­
nial. ção" dos europeus, mas de uma mostra de sua impressionante capaci­
dade de atualizar-se, de discernir as realidades do poder colonial e fa­
TEi\' TA TI VA S A FRICA NA S DE UTILIZA ÇÃO ler sobre elas comentários perspicazes. Contudo, sob muitos aspectos,
DA lVEO TRA DIÇÃO EUROPÉIA ;:iuem usou de forma mais interessante as neotradições européias fo­
ram africanos erradicados, que precisavam descobrir novas maneiras
Uma das funções da invenção da tradição no século XIX foi dar de construir uma nova sociedade.
uma forma simbólica reconhecível e rápida aos tipos de autoridade e O relato mais claro de aspirações pequeno-burguesas africanas e
submissão em evolução. Na África, e sob a influência por demais sim­ da apropriação de neotradições da classe média britânica encontra-se
plificadora do domínio colonial, as próprias afirmações simbólicas na obra de Brian Willan sobre os africanos educados em missões em
tornaram-se mais simples e enfáticas. Os observadores africanos da Kimberley. na década de 1890. "Nesta época, Kimberley era um lugar
nova sociedade colonial dificilmente poderiam deixar de perceber a inexcedivelmente britânico: a vida cotidiana na Cidade dos Diaman­
importância que os europeus davam aos rituais públicos da monar- tes, com efeito, expressava talvez de maneira tão nítida como qualquer
outra parte do Império o significado e a realidade da hegemonia impe­
rial britânica." Na cidade havia
uma classe cada vez maior e mais bem organizada de africanos educados
58. Uma variação interessante, que desafiava diretamente a ideologia colonial impe·
ria!. veio num sermão pregado em Bulawayo em junho de 1 923 por um professor do
que ti nham sido atraídos a Kimberley pelas oportunidades lá existentes
Atalaia. chamado K unga: "O Rei Jorge V diz a verdade aos ingleses, mas o povo deste de emprego e de utilização das habilidades e alfabetização que possuíam.
país não se atém ao que ele diz; faz suas próprias leis. Em 1 9 1 2, o Rei quis vir à Rodésia
visitar os nativos e m udar as leis, mas os brancos da Rodésia do Sul enviaram-lhe uma Tais homens aspiravam tornar-se cidadãos estáveis do universo liberal
mensagem diLendo-lhe que não viesse. pois havia uma epidemia no país". Pasta
N3 5 ·x. A rquivos Nacionais. Rodésia. Salisbury. britânico do século XIX - um universo de liberdade, igualdade sob a
246 247

lei com um, de direitos estáveis de propriedade e de vigor empresarial. . � ntreme � tes, os chefes "tribais" africanos puseram-se a disputar
Ao mesmo tempo, p retendiam mostrar que pertenciam a este universo os v 1 s 1 ve1s atri butos da monarquia neotradicional porque seu status es­
através do domínio das tradições inventadas mais "irracionais" da tava sendo ameaçado em toda parte durante o período colonial médio.
classe média britânica de fins do século passado. Nos estágios iniciais, os adm i nistradores coloniais estavam satisfeitos
Superaram os brancos em sua lealdade à coroa. "Um símbolo cu­ o suficiente para reconhecer os governantes africanos como reis, e
riosamente importante e difundido . . . que expressava os valores e cren­ para conceder-lhes, como a Rindi, os luxos do cerimonial. Porém, à
ças por eles assumidas, era a figura da Rainha Vitória" ; eles celebra­ medida que os regi mes coloniais se afirmaram e tornaram-se menos
ram o Jubileu de Diamante da Rainha em 1 897 com banquetes e dis­ dependentes de concessões dos governantes africanos, começou um
cursos de lealdade em que dramatizaram suas conquistas "sucessivas" processo de esva1iamento. Assim, muitas das reivindicações da admi­
e sua fé na monarquia como abonador delas. Estabeleceram "uma nistração da Companhia Britânica da África do Sul à Rodésia de no­
rede de atividades regulares e participação em clubes, igrejas e socieda­ ro��te dependiam das concessões conseguidas de Lewanika de Baroce.
des". Acima de tudo, aderiram ao esporte: Dwa-se que Lewanika era um grande rei, recompensado com o acesso
ao fascínio da coroa britânica . O clímax simbólico da carreira de Le­
O esporte (diz Willan) era importante na vida da pequena burguesia afri­ wanika veio com o convite por ele recebido para ir assistir à coroação
cana de Kimberley, proporcionando-lhes mais um motivo de associação e de Eduardo V I I . em 1 902. Lewanika foi recebido com honras pela "so­
um meio de disseminar o valor hegemônico da sociedade em que viviam.
Jogava-se tênis em três clubes: Blue Flag Tennis Club, Champion Lawn ciedade" inglesa:
Tennis Club e Come Again Dawn Tennis Club . . . M uito mais populares, en­ puseram-lhe à disposição carruagens reais. desatrelaram-lhe os cavalos da
tretanto. eram o críquete e o rugby, esportes mais jogados na Colônia do ca � ruagem numa aldeia de Dorset para que os aldeões pudessem puxar o
Cabo em geral . . . O críquete foi o jogo realmente adotado pela pequena ' e1culo. pessoas co1� 0 a Duquesa de Abercorn ensinaram-no a jogar j o­
burguesia africana de Kimberley. Não admira, pois afinal o críquete não gos simples. cm chas.
era apenas um jogo . Lra antes uma instituição exclusivamente britânica
que englobava tantos dos valores e ideais . . . a que aspiravam os pequenos Foi incentivado a adquirir para uso na I nglaterra e em seu país alguns
burgueses. O críquete era um espaço de treinamento social: a analogia en­ dos símbolos do cerimonialismo real britânico: um coche real, um uni­
tre o críquete e a vida era amplamente aceita, sendo inquestionável seu forme de gala de almirante, jaquetas escarlates para seus criados em
valor na formação do caráter. "Cautela, cuidado, paciência e decisão", Leal ui. "Quando os reis se reúnem", anunciou o velho rei Lozi "nun-
segundo alegava um escritor do Diamons Fields A dvertiser em 1893 "in­
culcam-se com a viril prática diária do críquete". O críquete personificava ca há falta de assunto". 6º
e propagava a idéia do império. Dentro em pou.co, porém, o �elho soberano perderia completa­
Em Kimberley, os dois clubes africanos (que tinham vários times ca­ mente o poder. Assim que a admmistração da Rodésia do Norte se
da) eram o Duke of Wel/ington Cricket Club . . . e o Eccentrics Cricket Club: sentiu mais segu �a . reduzi u os poderes de Lewanika, repelindo-lhe os
até mesmo os nomes são sugestivos, simbolizando ambos qualidades protestos e manifestando esta retirada de privilégios através de uma
sobre as quais se construiu o Império Britânico." d � pl � i:nanipulaç�o do simbolismo real. Foi estabelecido que o alto co­
Mais tarde, na história africana, tudo isto veio a ser considerado pelos m1s �ano e � admm1_ �trador deviam ser ·saudados com a saudação real
brancos como uma supervalorização do ideal do i mpério. Na Africa Loz1; lambem se estipulou que Lewanika não seria m ais chamado de
do Sul não havia lugar para uma classe governante negra e jogadora de " Rei", uma vez que isto o colocava acima dos outros chefes e estabele­
críquete. O críquete africano extinguiu-se, e foi mais tarde substituído cia o que se considerava uma analogia completamente inadequada
pelo futebol proletário, esporte das massas na África moderna. Ape­ com o monarca imperial.6 1 As coisas se desenrolaram de forma· seme­
nas em sociedades coloniais excepcionais, como Serra Leoa, a socieda­ lhante no reino A n k ole, em U ganda. Lá houve um período inicial de
de creo/e podia demonstrar regularmente seu real poder através de ela­
horados rituais neotradicionais europeus.

60. Henry Rangeley ao "Caro Mr. Cohen", mar. 1938, Manuscritos H istóricos 20,
RA 1 / 1 / 1 , Lusaka; G. Caplan, The Elites of Barotse/and, 1878-/ 969 (Califórnia, 1970).
59. Brian Willan, "An A frican in K imberley: Sol. T. Plaatje, 1 894-8", Conferência 6 1 . M . R. Doornbos, Regalia Ga/ore: The Decline and Collapse of A nkole Kingship
sobre formação, cultura e consciência de classes: a construção da África moderna (jan. .
( Na1rob1. 1 975)..
1 980), pp. 3. 5. 1 4- 1 5.
249
248

apoio colonial à monarquia Ankole, seguido de uma reação na qual as suas vantagens; fez concessões à "reforma" do governo local e foi
"oficiais a serviço na região desaprovaram que o título de Rei fosse convidado. Sua viagem para o sul foi triunfal, pois a mão-de-obra mi -
usado para referência aos governantes de pequenos Estados africa- grante Lozi acorreu aos magotes à linha do trem para doar fundos
nos " para a viagem. Yeta foi recebido pelo rei; apresentou-lhe a saudação
r::;este período colonial médio, os "chefes supre�os" �f:i�anos lu­ real Lozi; e retornou em triunfo a Baroce, onde os progressistas Lozi
taram por obter o título de rei, convites para coroaçoes bntamcas :. por mostraram-se
manifestarem sua autoridade interna com coroas e tronos, coroaçoes e muito satisfeitos com a honra concedida a Baroce pelo Império Britânico,
jubileus à moda britânica. O Omugabe de Angola conseguiu. um trono que convidou Vossa Alteza para assistir à Coroação e, além disso, deu a
e um brasão bem como uma coroa. O sucessor de Lewamka , Yeta, Vossa Alteza um dos melhores lugares da Abadia, privilégio de que ape­
61

lutou infatig�velmente para proclama r um status real especial. Teve nas algumas dentre milhares de milhões de pessoas gozaram.•'
certas vantagens . Sempre que um membro da realeza visitava a Ro�é­
Esta vitória foi registrada para a posteridade pelo secretário de Y eta,
sia do Norte, a administração procurava desesperada outras atraçoes ( j oJ,, in Mbikusita, cuja obra Yeta 11/'s Visit to Eng/and foi publicada
que não as Cataratas de Vitória para Ih� mostr�r. A�a?avam po� �e­ Clll 1 940.
correr aos Lozi. Ao comentar as alternativas cenmoma1s para a VISlta
do Príncipe de Gales, em 1925, o governador lamentou que "de modo A Coroação (escreveu M bikusita) foi o maior evento que já vimos ou que
geral certamente nenhum dest7s -�hefes caus��á �r� �de im�r�ss�o", jamais veremos em nossas vidas. Ao assistir ao Cortejo da Coroação, sen­
consolando-se, porém, com a 1de1a de que a ex1b1çao ?qua �1ca d_e timo-nos como se estivéssemos sonhando ou entrando no Paraíso.
Lozi certamente seria "coisa deveras pitoresca como cenmomal nati­ Todavia. ele também deixou bem claro que Yeta prestou homenagem
vo"." Yeta trouxe sua frota pelo Zambeze ao encontro do Príncipe, ao Rei Jorge de rei para rei, relatando que Sobhuza II da Suazilândia
mas procurou frisar em seu discurso que "seria um gra �� e.prazer par_a lhe havia telegrafado "desejando . . . que saúdes o Rei com a etiqueta e
nós receber e saudar Vossa Alteza Real em nosso terntono com ceri­ o espírito real africano". 68
mônias adequada.1" :·' Além diss?, havia milha �es � e. Lozi trabal�ando l\ ,i o foram apenas os grandes chefes que já uma vez haviam pos­
nas minas e cidades do sul, muitos como escnturanos e supervisores. suído o título de "Rei" que utilizaram este tipo de política simbólica.
Estes "novos homens" estavam perfeitamente preparados para faze­ O recurso à neotradiçào política real foi uma das técnicas da grande
rem doações e prepararem abaixo-assinados para recuperarem o �ítulo 1nvcnçüo Je tradições "tribais" ocorrida em toda parte nas décadas de
de .. Rei" para seu chefe supremo. Em último lugar, o �tatus espec1a� de 1 920 e JO.''" Leroy Vail relata o que ocorreu no caso: os Tumbuka ti­
Baroce significava que a administração não poderia simplesmente im­ nham instituições religiosas e sociais diferentes. Sob o colonialismo.
por "reformas " locais, mas teria de negociar com Yeta. porém. um grupo de africanos educados nas missões criou uma supre­
Com todas estas vantagens, Yeta alcançou um notável triunfo macia Tumbuka . Chilongozi Gondwe foi escolhido para chefe em
si 111 húlico no linal de seu reinado. Estava decidido a assistir à coroa­ 1 907. e iniciou uma campanha para imprimir se status real nas cabeças
ção de 1937. Os obstáculos eram incríveis. � secretaria de Estado _em Jos Tumbuka. Todo ano comemorava o aniversário de sua ascensão
Londres havia a princípio decidido não convidar nenhum chefe afnc�­ ao trono. e começou a usar o título de "Rei". Foi entusiasticamente
no para a cerimônia, restringindo-se aos príncipes india?os. Os ad�1- apoiado pela elite missionária, que começava a produzir uma histopria·
nistradores da Rodésia do Norte alegaram que a coroaçao era um nto mítica do antigo império Tultlbuka. Conforme afirma Leroy Vail,
sacramental apropriado apenas para os brancos; os african�s �ão P?·
diam penetrar neste sacrário; a liturgia da coroação "não s1gmficana que a el ite erudita aceitasse valores tradicionais e uma organização hie­
nada para a grande maioria dos nativos" :• Yeta, contudo , usou todas
rárquica da sociedade sob a autoridade de chefes, não é coisa de se admi-

62. !bid. 67. Sobre a visita de Yeta à Inglaterra, veja seção de arquivo 2/324, ii, Lusaka.
63. !bid. 68. Godwin Mbikusita, Yeta 11/'s Visit to Eng/and (Lusaka, 1 940).
64. De Sir H erbert Stanley ao Sir Geoffrey Thomas. 7 jul. 1 925, P3/ D/3/8, Lusaka. 69. Terence Ranger, "Traditional Societies and Western Colonialism", Conferência
65. Discurso de Yeta I I I , 18 jun. 1 925, RC/453, Lusaka. sobre Sociedades Tradicionais e Colonialismo (Berlim, jun. 1 979). Publicado sob o titu­
66. Memorando sobre o secretário de Estado ao governador, 6 fev. 1 937, parte 1 / 1 792, lo "Kolonialismus in Ost-Und Zentral Afrika", J. H. Grevemcyer (org.), Traditiona/e
Lusaka. Gese/lschaften und europãischer Ko/onia/ismus (Frankfurt, 1 98 1 ).
250 25 1

rar, dada a natureza da educação vitoriana por eles recebida nas escolas ventar tradições n acionalistas, em vez de tribais. Na época da visita do
missionárias. Rei J orge V I à R odésia do Norte, em 1947, os intelectuais africanos
aproveitaram a ocasião para fazer discursos de lealdade defendendo
O comissário distrital tentou deter a aquisição de influência por parte uma série de idéias n acionalistas; as velhas lealdades destas ocasiões só
de Gondwe. "Disse-lhe que ele n ão poderia adotar o título de R ei." puderam ser man tidas à custa de cen sura arbitrária dos textos. A essa
Porém, na época da morte de Chilongozi Gondwe, em 1 93 1 , as coisas altura, surgira uma nítida diferença entre seus obj etivos e os do chefe
j á estavam mudadas. A administração colonial já apoiava uma políti­ Lozi, que em 1947 promoveu uma outra cerimônia seguramen te pito­
ca de govern o indireto que criou uma oportunidade para os inventores resca.72
da tradição de elite. Enquanto isso, os governantes africanos que realmente con segui ­
U m ministro africano, Edward Bote M an da, apoiou o fi lho de ram a dquiri r alguns dos acessórios da mon arquia n eotradicional so­
Chil ongozi, J ohn Gon dwe, como novo chefe. M an da criou um rito de friam um processo irônico. Tratava-se, como D oorn bos expressa mui­
coroação el aborado, que incluía uma série de "votos de chefia" basea­ to bem em relação a Ank ole, de uma transformação das in stituições
dos nos da coroação britânica - " Prometeis solen emente proteger n os­ monárquicas costumeiras, flexíveis e adaptáveis, n uma mon arquia co­
sa religião cristã e observar os ensin amentos da Bíblia que n orteiam o lonial "adaptada à estrutura burocrática e enfeitada com o correr do
correto govern o de vosso povo?" A supremacia Tumbuka começou a tempo com uma grossa camada de cerimonialismo" . A essência da
assumir as características de uma mon arquia cristã progressista.'º mudança em Ank ole tran sformaria o Omugabe "num in strumento de
Veremos que estas ten tativas de manipular o simbolismo real bri­ hierarquia burocrática e relegaria os v alores tradicion ais ao nível do
tânico eram complexas. Se do ponto de vista dos chefes elas eram prin­ folcl ore" . As aspirações de tornar-se mai s parecidos com o rei /i mpe­
cipalmen te reafirmações do status, do ponto de vista dos educados em rador termin aram por torn ar os governan tes africanos realmente mais
missões eram também uma tenta tiva de redefinir a autoridade dos che­ parecidos com ele, pois eles passaram a ocupar cada vez mais o centro
fes. O rito da Coroação Britân ica, segun do M bik usita, cerimonial de suas sociedades, em vez de estarem n o n úcleo político ou
mostra grande cooperação entre a Coroa e o Povo, e isto evidencia que cultural. Foi um processo perfeitamen te resumido pelo título do l ivro
embora o povo seja súdito do Rei, o Rei também é súdito do povo . . . de D oorn bos, Regalia Galore (Abundância de adereços). Porém, ao
Para nós é surpreendente que na Inglaterra a Rainha seja coroada junto con trário do cerimonial do rei/imperador, que ainda desempenha
com o Rei. Isto é um sinal de matrimônio irrevogável e de um verdadeiro uma fun ção n a reduzida Grã-Bretanha pós-imperial, o cerimonial dos
companheirismo. A civilização européia levou séculos para apreciar isto; reis africanos acabou n ão servindo para refletir n ada de importante. A
esperamos que através dos ensinamentos e exemplos a nós concedidos mon arquia Ank ole foi abolida sem qualquer sombra de oposição, e a
por esta civilização, esta geração venha a aperceber-se disso. imprensa local resumiu n a manchete a transição para um símbolo de
Os professores Lozi exprimiam a esperança de que a visita de Yeta autoridade mais abertamente burocrático - "O trono substituído pela
para a coroação "abrisse uma porta para a classe alta de Baroce" e "e­ cadeira do presiden te" . 1 1
levasse o paí s através da adoção de algumas das práticas civilizadas En tretanto, n ão fo ram apenas os governantes e o clero africanos
ex istentes n a Inglaterra":' Mais uma vez, n a Á frica, n eotradições bri­ que tentaram manipular os símbolos da tradição in ven tada européia.
tân icas eram consideradas fon tes de transformações modernizadoras. Também se apoderaram deles milhares de outros que viviam uma eco­
Contudo, assim como a dedicação ao simbolismo real revelou-se, n omia colonial, sej a como trabalhadores ambulantes ou como peque­
afinal, restrita aos colon ialistas, seus frutos por toda a Á frica foram no nos escriturários e funcionários. Cada um destes dois grupos procura­
máximo ambíg uos. Os africanos educados perceberam afinal que o ca­ va adaptar-se à n ova sociedade colonial , e faziam-n o em parte pela
minho para o poder efetivo, de forma a trazer mudanças moderniza­ participação em associações de dan ça em que algumas tradições inven­
doras, n ão estava n os pequenos " reinos" africanos. Começaram a in- tadas européias eram adotadas para exprimir a essência do colonialis­
mo, como fon te de prestígio, ou como sinal de bom gosto. J ohn I liffe

70. Leroy Vail, "Ethnicity, Language and National U nity", (pesquisa da U niv. de 72. Seção de Arquivo 3 /234, Lusaka contém as versões original e censurada dos Dis­
Zâmbia, 1978). Dr. Vail está organizando um volume sobre etnicidade e economi a poll­ cursos.
tica na A frica d o S ui. 73. Uganda A rgus. 28 set. 1 967.
7 1 . M bi kusita. op. cit., pp. 56, 63-4, 1 45 .
253
252

E stas danças eram executa das por homens que ou tinham segu­
descreve as associações de dança litorâneas na Africa Oriental Alemã rança em seu ambiente urbano litorâneo ou podiam retornar a s� us la­
logo antes da I Guerra M undial. Em 191 1 , os ngoma ya kihuni - asso­ res no interior. Outros, porém, sentiam-se deslocados, necessitando
ciação de dança dos vadios, nome ousado, escolhido por " imigrantes não só refl etir sobre a experiência colonial, mas também descobrir
de baixa classe do norte" - executavam danças em homenagem ao uma manei ra de organizar suas v idas como um todo. Para essas pes­
Kaiser. Dançavam o Bom, a ma imitaçãÔ de um exercício militar ale­ soas. foi útil uma tradição européia em particular - a modalidade mili­
mão; o nome da dança vinha do barulho da metralhadora. Os escritu­ tar. E ra o modelo mais nítido disponív el, principalmente nos primór­
rários e empregados domésticos "sempre comemoravam o aniversário dios do col onialismo. Suas demarcações de autoridade eram óbvias,
do Kaiser com chapau/inge" . Essas a ssociações de dança reuniam-se assim como seus métodos de inspirar a disciplina no trabalho; consti­
numa casa mobiliada em estilo europeu; tomavam chá; "ao cabo do tuía uma parte essencial das primeiras sociedades � oloniais eu� opéias,
festim, gritavam Hurrah! três vezes" ." Nas cidades litorâneas do Quê­ e parecia oferecer um model o completo de comuni dade operativa. E s­
nia uma divisão semelhante de classes gerou uma competição entre os tava tão à mão, que a modalidade e a metáfora militares eram ampl �­
migrantes Arinoti do nort e e os j ovens M a rini suaíli. O s M arini goza­ mente empregadas pelos missionários europeus, que armavam e trei­
vam de protetores ricos e aristocratas, e v enciam seus oponentes ple­ navam seus recém-convertidos antes que se estabelecesse o domínio
beus com cortejos abertos por retratos do governador e de seus escu­ colonial formal, e continuaram a treinar os colegiais e a organizá-los
deiros; com carros al egóricos de navios de batalha, com almirantes em em bandas estrídulas durante grande part e do período colonial." A
uni formes de gala recebendo a saudação na ponte; e numa gl oriosa disciplina apropriada, entretanto, não era simplesmente reforçada pe­
ocasião ainda muito celebrada nos álbuns fotográficos de Lamu, uma los brancos: muitas v ezes. era algo que os próprios africanos procura­
majestosa fi leira de nobres da Câmara dos Lordes, todos trajando ves­ vam. Afi nal. a adaptação às exigências do novo sistema col onial era
timentas cerimoniais completas."' coi sa que os própri os africanos tinham de fazer. E ra necessário um
Como já expliquei, estas ocasiões carnavalescas eram muito mais novo modelo de interação social, de hierarquia e controle para muitos
do que uma mera imitação dos brancos. As sociedades de dança des­ agrupamentos africanos que queriam tornar-se comunidades. A mo­
cendiam de associações mais antigas que durante décadas, e provavel ­ dalidade militar poderia ser utilizada pelos africanos para todos esses
mente séculos, refletiram as transformações n a experiência do l itoral e fins.
do interior, ora evidenciando uma mudança no equilíbrio de poder, O Prof. Ogot cita um caso impressionante. O Bispo Willis v isitou
pela adoção dos costumes Omani, ora pela adoção dos costumes in­ convertidos a fricanos espalhados no oeste do Quênia em 1916.
dianos. E ntre outras coisas, as associações de dança conseguiam cap­
tar com muita perspicácia as divisões básicas existentes na sociedade Educado ou semi-educado numa Escola Missionária (escreveu o Bispo), o
colonial européia, usando-as como base para o concurso de dança. Convertido retorna à sua aldeia nativa, e dele não mais se tem notícia. Da
Antes da formalização do colonialismo, as equipes francesas compe­ próxima vez que o missionário o encontra, ele já está dirigindo por livre
tiam com as britânicas e alemãs. Sob o colonialismo, as equipes que iniciativa uma pequena congregação de Leitores, da qual termina saindo
um pequeno grupo de candidatos a catecúmenos. Assim se desenvolve o
representavam o poder marítimo competiam com a infantaria colo­ trahalho. mas grande parte dele. em seus primeiros estágios é totalmente
nial. No Quênia, as equipes que professassem lealdade à coroa britâni­ independente dos europeus. Da mesma forma, quem visitar em qualquer
ca - " Kingi" - competiam com as equipes que representassem os rivais domingo a congregação nativa de Kisumu, verá que só em Kavindoro se
mais evidentes dos ingleses, os escoceses. As equipes "Scotchi" desfila­ encontra uma congregação uniformizada, e treinada . Nem todos, mas al­
vam pelas ruas de M ombasa , vestindo saiotes e tocando gaitas de fole, gumas centenas de fiéis, estarão vestidos com uma camisa branca curta
consagrando assim a invenção bem-sucedida, no século XIX, da tradi­ com guarnições azul-escuras e uma proteção azul-escura para as costas: as
ção escocesa. O s galeses, infelizmente, estavam menos presentes no letras C . M .K. toscamente bordadas no peito; e sobre o fez vermelho, uma
império africano, e não houve druidas nos concursos de dança africa­ cruz azul sobre um escudo branco. Um exame mais cuidadoso revelará
nos!'º listas e botões misteriosos, mostrando que de terceiro-sargento a coronel

74. I liffe. A Modem Historr of Tanganyika, pp. 238-9. 77. Terence Ranger, "The European M ilitary M ode and the Societies of Eastern A fri­
75. Ranger, Dance and So�iety in Eastern Africa. ca" (conferência da U niv. de Califórnia, Los Angeles, 1 972).
76. lbid.
254 255

estão representados todos os postos. Dois botõezinhos vermelhos no haviam ocorrido. Os colaboradores africanos, desempenhando seu pa­
ombro indicam o tenente, três indicam capitão, e daí por diante. Até o pel dentro de uma ou o utra das tradições européias introduzidas, pas­
contingente da Cruz Vermelha se reúne, com seus próprios ofi�iais, em savam a ser menos admirados q ue os "verdadeiros" africanos, que
frente ao edifício, antes do culto. Em toda a parte, a mesma c01sa, com aind a habitavam , supostamente, seu próprio universo adequado de
vários níveis de competência. As cores variam, a forma da cruz do boné tradi ção.
varia de acordo com os vários distritos, mas percebe-se em todos os luga­ O problema desta abordagem era que interpretava de m odo com­
res a mesma idéia geral. A parte interessante da organização é que ela foi pletamente errado as realidades da África pré-colonial. Estas socieda­
idéia exclusiva dos cristãos nativos. Foram eles que criaram e pagaram
seus próprios uniformes. Treinam e organizam-se sem instrução nem in­ des sem dúvida valorizavam as tradições e sua conservação, mas seus
tromissão de nenhum branco; seria dillcil encontrar maior prova de inde­ costumes eram mal definidos e infinitamente flexíveis. Os costumes
pendência natural." ajudavam a manter um sentido de identidade, mas permitiam também
uma adaptação tão espontânea e natural que passava muitas vezes
OS EUROPE US E A " TRA DIÇÃO" NA ÁFRICA despercebida. Além do mais, raramente existiu de fato o sistema con­
sensual corporativo e fechado q ue era considerado "característico" da
As tradições inventadas da Europa do século X I X haviam sido in­ África "tradicional". Quase todos os estudos recentes sobre a Á frica
troduzidas na Á frica para permitir que os europeus e certos africanos pré-colon ial do século X I X frisaram que, longe de existir uma identi­
se reunissem para fins d e "modernização". M as havia uma ambigüi­ dade "tribal" única, a maioria dos africanos assumia ou rejeitava iden­
dade inerente ao pensamento neotradicion al. Os europeus adeptos de tidades múltiplas. definindo-se em certos momentos como súditos de
algumas neotradições acreditavam que respeitavam os costumes. um chefe. em outros corno membros de certa seita, em outros, ainda,
Apreciavam a idéia dos dir: itos consuetudin_á rios e gostava� de co'!l­ cllm l l mem hrns de um clã. e em outros momentos como iniciantes
parar o tipo de título possu1do por chefes africanos com os t1tulos aris­ numa categoria profissional. Tais redes superpostas de associação e
tocráticos que reivindicavam . Existia assim um profundo mal­ permuta estendiam-se por amplas áreas. Assim as fronteiras da comu­
entendido. Ao comparar as neotradições européias com os costumes nidade "tribal" e as hierarquias de autoridade nelas existentes não de­
da África, os brancos estavam sem dúvida comparando coisas m uito finiam os horizontes conceituais dos africanos. Como afirn:ia Wim van
diferentes. As tradições i nventadas européias caracterizavam-se por Binsbergen, ao criticar historiadores africanistas por aceitarem a cha­
sua rigidez. Envolviam conj untos de regras e procedimentos registra­ mada "identidade Chewa" como um conceito organizador útil para o
dos - corno os ritos de coroação modernos. Davam segurança porque estudo do passado:
representavam algo imutável num período de transformação. Ora,
q uando os europeus pensavam nos costumes africanos, atribuíam a As tribos modernas da África central não são restos de um passado pré­
ele, naturalmente, estas mesmas características. A afirmação feita pe­ colonial, mas criações coloniais de administradores coloniais e intelec­
los brancos de q ue a sociedade africana era profundamente conserv�­ tuais africanos . . . Os historiadores não limitam a suposta homogeneida­
dora - 1.1ue levava urna vida fundada em regras anti4 üíssirn as e 1�1 uta­ de Chewa em vista dos indícios históricos de incessante assimilação e dis­
veis; n u ma ideologia baseada na imobilidade; u ma estrutura social cla­ sociação de grupos periféricos . . . Não distinguem entre um sistema de
ramente definida como h ierárquica - não implicava sempre numa de­ governantes mais velhos, imposto pelo congelamento colonial da dinâmi­
ca política, e o desequilíbrio de poder e influência competitivo, instável,
n ú ncia do atraso ou da relutância dos africanos em modernizar-se. fluido do período pré-colonial."
Significava, com freqüência, um elogio às ad�iráveis virtude� da tra­
dição, embora um elogio completamente equivocado. Esta atitude em Da mesma fo r m a . a Á frica d o século X I X não se caracterizava pe­
relação à África "tradicional" tornou-se mais evidente quando os la falta de co m petição econômica e social i n terna, pela autoridade
brancos entenderam nas décadas de 1 920 e 30 que na África n ão ia indiscutível dos mais velhos, pela aceitação dos costu mes que dava a
acontecer uma rápida transformação econômica, e que a maioria dos cada um - j ovens, velhos, homens e m u lheres - u m l ugar na socieda­
africanos teria q ue continuar em com unidades rurais; ou quando � ! de, definido e protegido. A competição, o movimento e a fluidez eram
brancos começaram a deplorar as conseqüências das m udanças que Jª

79. Crítica a S. J . Ntara, History of the Chewa, org. Harry Langworthy, feita por W.
78. F. B . Welbourn e B. A. Ogot, A P/ace to Fee/ at Home ( Londres. 1 966), pp. 24-5. M . J . Van Binsbergen, African Social Research (iun. 1 976), pp. 73-5.
256 257

características presentes tanto nas pequena,s comunidades como do controle social.' ' Missionários que haviam começado tirando os
agrupamentos maiores. Assim Mareia Wright demonstrou, num nos convertidos do seio de suas comunidades de modo a transfor� ar sua
mulante relato das realidades da sociedade de fins do século esti­ consciência em "aldeias cristãs", terminaram . anunciando as virtud �s
XIX no da "pequena" comunidade "tradicio �al". :º�os p_rocuravam organi­
corredor do Lago Tanganica, que a competição econômica e
polític
desprezava as "garantias consuetudinárias" oferecidas às mulhe a zar e tornar mais compreensível a s1tuaçao m finit_a!11ent�. com � lexa
pelo casamento ou parentela por afinidade. As mulheres viam-se res que consideravam co� seqüência do caos "_não�.trad1c1o_nal _do secul ?
..
tas vezes expulsas dos abrigos em que haviam buscado segurança mui­ X IX . As pessoas precisavam ser reconduzidas a suas 1dent1da_des_ tn­
precisavam encontrar outros lugares para viverem sozinhas. Mais , e bais: a etnicidade devia ser "restaurada", con:i o b �s� da_ asso� iaça? e
de. é claro. e no século XX. os dogmas das garantias consuetudiná tar­ da organização.'' Os novos endurecimentos, 1mob1hzaçoes e 1_dent1_fi­
das relações fixas e imutáveis ganharam vigor nestas mesmas rias e cações éticas. embora servissem a interesses europeus bastante 1med1a­
socieda­ tos, podiam, contudo. ser considerados. pelos br� ncos c?mo compl_et_a­
des, assumindo a forma de solidariedade à maneira ujamaa; a
época de mente "tradicionais" e, portanto, legítimos. As mvençoes da trad1çao
"rápida transformação", na qual "os fatores estruturais forma
is"
naram-se relativamente menos importantes do que a "elasticidade tor­ mai s abrangentes da África colonial ocorrer �m quand ? e_uropeus ?.�
poderes de decisão pessoais", levaram à estabilização. Como e os
comenta
acreditaram estar respeitando tradições afnca_nas_ � nt1qu1ss1mas_. ?
Mareia Wright: chamado direito consuetudinário, direitos temtona1s consue� ud � na­
rios. estrutura política consuetudinária, e daí por diante, � avia sido,
Os termos da reconst rução foram ditados pelas autoridades coloniais nos na verdade. inteiramente inventado pela codificação colonial.
anos que se seguiram a 1 895, quando a pacificação significou a imobili
ção das populações, o reforço da etnicidade e uma maior rigidez za­ Há uma l iteratura antropológica e histórica �ada v�z maior sobre
da defi­
nição social.'º estes processos, que aqui não será poss_í v�.1 resumir. Porem: alguns co­
Por isso, o "costume" no corred or de Tanganica era mais uma mentários impressionantes darão uma 1de1a do_ debate. � ss1m descreve
inven­ John Iliffe a "criação das tribos" na Tangamca colonial:
ção que uma restauração. Em outras partes, onde a dinâmica
competi­
tiva do século XIX havia dado aos jovens muitas oportunidad A idéia da tribo jazia no núcleo do governo indireto em Ta�ganica. R�­
es
tabelecerem bases independentes de influência econômica, de es­ quintando o pensamento racial comu � nos tempos � os alemae�, os ad� 1-
social e nistradores acreditavam que todo africano pert�n�_1a a uma .tr! bo, assim
política, os mais velhos assumiram, sob o colonialismo, o
controle de como todo europeu pertencia a uma nação.. A ideia_, s_e m_duvida, .de_veu
alocação de terras, das transações matrimoniais e das funçõe
s políti­ muito ao Velho Testamento, a Tácito e a Cesar, a d1stmçoes academ1cas
cas. Ao contrário do século XIX, no século XX as geron
tocracias de entre sociedades tribais baseadas no status e sociedades mode�nas bas�a­
pequenas proporções fo ram uma característica marcante nessas
dades. socie­ das em contrato, e aos antropólogos do pós-guerra, que �referiam o adJ �­
tivo "tribal" ao termo mais pejorativo, "selvagem"_. As tnbos eram consi­
Em parte, estes processos de "imobilização de população, deradas unidades culturais "possuidoras de uma l �nguagem c �mum, um
de etnicidade e de maior rigidez da definição social", ocorri reforço sistema social único, e um direito comum estabelecido". Seus s1sten:ias so­
dos no sé­
culo XX, foram conseqüências necessárias e inesperadas da ciais e políticos baseavam-se em relações de parentesco. Pertencia-se a
mudança
colonial econômica e política, do rompimento com os padrõ uma tribo por herança. As diferentes tribos relacionava� -se em termos
es inter­
nos de comércio e comunicação, a definição de limites territo
riais, a genealógicos . . . Como sabiam os administr�dores excepc1onalm�nte �e':1
alienação da terra, o estabelecimento de Reservas. Porém informados, este estereótipo tinha pouquíssimo � ver com � cale1doscop1-
, por outro ca história de Tanganica, mas foi sobre es�as � reias mov�d1ças,.Que C_ame­
lado, estes processos foram resultado de uma determinação
consc
por parte das autoridades coloniais de "restabelecer" a ordem iente ron e seus discípulos erigiram o governo indireto atraves da adoça_o d�
gurança e um sentido de comunidade por meio da definição e a se­ unidade tribar'. Sendo os donos do poder, criaram a geografia polit1ca.
e imposi­
ção da "tradição". Os administradores que haviam começado
por de­
clarar seu apoio aos cidadãos comuns contra os chefes rapac
es, termi­
naram por apoiar a autoridade "tradicional" dos chefes no interes 8 1. H enrv M eebelo. Reaction to Co/onialism (_M anchester.. _1 97 1 ). .
se � 2 . , Tcren-ce R anger. "'European Attitud_e�.and A frican R eaht1es: The R 1se and 1- all oi
the Matula Chiefs uf Suuth- East Tanlama . Joumal of Afncan Htston . xx. n . 1 ( 1979),
pp. 69-X2.
80. M areia W right, "Women in Peril", African Social Research (dez. 1975), p. 803. 83. John lliffe. A Modem History of Tanganyika, pp. 323-4.
258 259

reagindo às condições desenvolvidas entre 1 908 e 192 1 , assumiram a for­


Elitabeth Colson relata a evolução do "direito territorial consuetudi­ ma atual na década de 1 920."
nário" de forma bastante parecida:
O sistema recém-cri �do bas�ava-s� supostamente na tradição e era legiti­ Por volta da mesma época. os europeus começaram a interessar-se
mado pelo costume 1memonal. Nao era provável que se reconhecesse até mais pel o s aspectos "irracionais" e ritualísticos da "t radição".
que po� to_ o sistema � ã_o era um reflexo da situação contemporânea e olhando-os de forma mais tolerante. Em 19 1 7, um teólogo de missão
uma cnaçao dos admtmstradores coloniais e líderes africanos. anglicana sugeriu que pela primeira vez os missionários do campo
A questão não consiste apenas no fato de que esse suposto costume "colhessem informações a respeito das idéias religiosas dos negros",
oculta� a novos equilíbrios de poder e riqueza, uma vez que era exata­ para que sua relação com a sociedade tradicional pudesse ser com­
men!e isso que o costume sempre lograra fazer no passado; o p roble­ preendida. "No século XX já não nos contentamos em cortar o nó,
ma e que estas construções de direito consuetudinário, em particular como fizeram no século X I X, e dizer: a ciência acabou com essas su­
tornaram-se rígidas e codificadas, incapazes de refletirem prontament� perstições. " '" Após a I Guerra Mundial, os anglicanos na Á frica
mudanças futuras. Colson comenta que: Oriental, defrontando-se com a necessidade de reconstruir a sociedade
rural após a devastação da luta e o impacto posterior da depressão, co­
Os oficiais coloniais esperavam que os tribunais fizessem respeitar os cos­ meçaram a fazer análises antropológicas dos aspectos do ritual "tra­
tumes tradicionais em vez da opinião da época. Assim, começaram a ser
usados �st_ereótipos com uns_ sobre o direito consuetudinário africano pe­ dicional" que haviam contribuído para a estabilidade social. Dessa
l?s adm1mstradores coloma1s para avaliar a legalidade de decisões atuais pesquisa veio a conhecida política da "adaptação" missionária, que
estereótipos esses que acabaram por incorporar-se a sistemas "consuetu: produziu seu exemplo mais desenvolvido nas cerimônias cristianizadas
dinários" de ocupação." de iniciação da diocese Masasi, no sudoeste de Tanganica.8' De manei­
Da mesma manei ra. Wyatt M acgaffey mostrou como os ro\ o� do ra mais geral. surgiu desta espécie de pensamento e prática - com a ên­
� ak ongo passaram de u rn a situação pré-colonial "de p rocessos de fase nos rituais de continuidade e estabilidade - um conceito de " Reli­
dispersão e assimilação"; de "abandono das populações subordinadas gião Tradicional Africana" imemorial que de maneira nenhuma faz
de escravos e peões" ; de "uma confusão de dívidas, falências, escânda­ justiça à variedade e vitalidade das formas religiosas africanas pré­
los _e aborrecimentos", p ara um a situação colonial de definição muito coloniais.
m ais precisa e estática de comunidade e de direitos territoriais.
N � evolução da tradição, a prova do mérito era, freqüentemente, o con­ A MA NIPULA ÇÃO A FRICA NA DO COSTUME IN VENTA DO
ceito que o juiz presidente tinha de sociedade consuetudinária, derivado Ê cl aro que nada disso poderia ser realizado sem u'm a grande par-
em . última instância de . . . uma i magem européia remanescente do reino cela de participação africana. Com o escreve John Iliffe:
afncan.? de Prester John . . . Os registros do tribunal contêm provas da
evoluçao . .p � ra fins forenses. do mágico ao provável e refutável . . . ,\ q ucl,:, Os britânicos acreditavam erroneamente que os nativos de Tanganica vi­
CUJas trad1çoes foram refutadas voltaram um ou dois anos mais tarde com nham de tribos: os nativos criaram tribos destinadas a funcionar dentro
tradições melhores. do contexto colonial. . . (A) nova geografia política . . . seria transitória.
se não coincidisse com tendências semelhantes entre os africanos. Eles
U m a vez mais, creio que a questão não é que as "tradições" mudaram também tinham de viver numa complexidade social estonteante, que or­
para acomodar-se a novas circunstâncias, mas que, a certa altura, elas ganizavam com bases no parentesco e amparavam com história inventa­
pararam de mudar. U m a vez que "tradições" relacionadas à identida­ da. Além do mais, os africanos queriam unidades efetivas de ação, exata­
de comunitária e ao direito territorial estavam escritas nos registros mente como os administradores queriam unidades efetivas de governo . . .
dos tribunais e expostas aos critérios do modelo consuetudinário in­
ventado, um novo e imutável corpo de tradições h avia sido inventado.
No final, ocorreu uma síntese do novo e do velho, agora chamada de
"costume". As principais características da sociedade consuetudinária, 85. Wyatt M ac Gaffey. Custam and Government in the Lower Congo (Califórnia. 1 970).
pp. 207-8.
86. 'The Study of A frican Religion", Central A/rica, xxxv, n. 4 1 9 (nov. 1 9 1 7). p . 26 1 .
84. Elizabeth Colson, "The l m pact of the Colonial Period on t�e Definition of Land 87. Terence Ranger. " M issionary Adaptation and African Religious Institutions", in
Rights", in Victor Turner (org.), Co/onia/ism in A/rica (Cambridge, 1 9 7 1 ), iii, pp. 22 1 - Terence Ranger e Isaria Kimam bo (orgs.). The Historica/ Study of African Re/igion
51. (Londres. 1 972). pp. 22 1 -5 1 .
260

Os europeus acreditavam que os africanos pertenciam a tribos; os africa­


nos criaram tribos às quais pudessem pertencer."
i
1

Em cada distrito (escreveu Kikurwe), os homens e mulheres ocupavam-se


em ajudarem uns aos outros; ensinavam a seus filhos as mesmas leis e tra­
261

dições. Todos os chefes tentavam na medida do possível ajudar a agradar


Jú observamos no caso da supremacia Tumbuka como os governan­ ao povo, e o povo retribuía da mesma forma. Todos sabiam o que era le­
tes a fricanos e os .. mode r n i t a d o res" educados n as missões conj u­ gal e o que era contra a lei, e sabiam que existia um Deus poderoso nos
minavam-se para tentar manipular os símbolos da monarquia. Iliffe céus.9°
mostra como alianças semelhantes auxiliaram a constituir as idéias e É muito fácil perceber as vantagens pessoais que estes inventores da
estruturas da tradição "tribal". tradição procuravam ganhar. O professor o u ministro bem-sucedido
Durante os vinte anos após 1925, Tanganica passou por uma vasta reor­ que se tornasse braço direito de um chefe supremo, seria homem de
ganização social na qual os europeus e africanos uniram-se para criar real poder. O clero africano q ue construiu o modelo da "Religião Tr �­
uma nova ordem política baseada na história mítica . . . A nalisando o sis­ dicional" para apresentá- la como a ideologia inspiradora das comuni­
tema (de governo indireto), um oficial concluiu que seus principais parti­ dades p ré-coloniais estáveis p retendia fazer o mesmo nas sociedades
dàrios eram os chefes progressistas . . . N aturalmente, eles eram as figuras africanas modernas por meio do cristianismo "adaptado" .9 Mesmo
1

centrais do governo indireto, cuja atitude maior era dar-lhes liberdade de assim, I liffe conclui q ue
ação. As administrações nativas empregavam muitos membros da elite
loca l . . . Até mesmo homens que haviam recebido educação, mas sem seria errado ser cínico. O esforço de criar uma tribo Nyakyusa era tão ho­
postos de administração nativa, geral mente reconheciam a autoridade he­ nesto e construtivo quanto o esforço basicamente semelhante, quarenta
n.:dniiria . . . Em compensação. muitos chefes recebiam com simpatia os anos mais tarde, de fazer de Tanganica uma nação. A mbos foram tentati­
conselhos daqueles homens . vas de construir sociedades em que os homens pudessem viver bem no
mundo moderno."
lliffe conta como os chefes progressistas e os africanos educados em Só que havia ainda uma ambigüidade nas t radições inventadas afri­
missões uniram-se n um programa de "tradicionalismo progressista" . canas. Sem levar em conta o quanto elas possam ter sido utilizadas
Assim como nacionalistas mais recentes procuravam criar uma cultura pelos "tradicionalistas progressistas" para introduzir novas idéias e
nacional, aqueles que construíram as tribos modernas frisavam a cultura instituições - como a educação obrigatória sob a chefia Tumbuka - a
tribal. Em ambos os casos, os i ntelectuais assumiram a liderança . . . O tradição codificada inevitavelmente tornou-se mais rígida de forma a
problema foi sintetizar, "selecionar o melhor (da cultura européia) e di­ favorecer os interesses investidos vigentes na época de sua codificação.
luí-lo no que possuímos". Ao fazê-lo, os intelectuais naturalmente re­ O costume codificado e rei ficado foi manipulado por tais interesses in­
form ularam o passado, de forma que suas sínteses foram, na verdade, no­ vestidos como uma forma de afirmação ou aumento do controle. Isto
vas criações."
aconteceu em quatro situações em especial, pelo menos.
Uma das á reas em que os intelectu ais africanos interagiram com a teo­ Os mais velhos tend iam a recorrer à "tradição" com o fim de de­
ria missionária da "adaptação" foi a da invenção da "Religião Tradi­ fenderem seu domínio dos meios de produção rurais contra a ameaça
cional". dos jovens. Os homens procuravam recorrer à "tradição" para assegu­
rar que a ampliação do papel da mulher na produção no meio rural
Só quando os missionários estudaram cuidadosamente as religiões africa­
nas. durante a década de 1920, é que a maioria dos africanos atreveu-se a não resultasse em qualquer dimin uição do controle masculino sobre as
ponderar sobre suas atitudes publicamente. Michel K ikurwe, professor mulheres como bem econômico. Os chefes supremos e aristocracias
ti!,!ua e trihalista cultural. contemplava uma era de ouro na sociedade dominantes em comunidades que incluíam vários agrupamentos étni­
africana tradicional. . . Samuel Sehoza foi quem lançou a idéia de que as cos e sociais apelavam para a "tradição" para manter ou expandir seu
crenças religiosas nativas haviam antecipado o cristianismo. controle sobre seus súditos. As populações nativas recorriam à "tradi­
ção" para assegurar que os migrantes q ue se estabeleciam na área não
C omo os missionários, estes homens enfatizavam a função da religião viessem a obter nenhum direito econômico ou político.
na estabilização da sociedade.

90. lbid .. pp. 335-6.


9 1 . Ranger. " M issionary Adaptation and African Religious I nstitutions".
88. lliffe. vp. cit .. p. 324.
89. !bid.. pp. 327-9, 334. 92. Iliffe. op. cit. , pp. 324-5.
262

OS VELHOS USA M A " TRA DIÇÃO" CONTRA OS JO VENS


i
1 suas próprias aldeias com base em novos princípios de organização,
como foi o caso das congregações uniformizadas do oeste do Quênia,
263

A reificação colonial do costume rural produziu uma situação 1 de que o leitor ainda há de se lembrar. Entretanto isso era mais fácil de
bastante diferente da situação pré-colonial. O movimento pré-colonial 1 ser feito no princípio do período colonial, antes que a igreja européia e
1
de homens e idéias foi substituído pela sociedade microcósmica local, 1 o Estado europeu começassem propriamente a exigir uma subordina­
limitada pelos costumes. Para as autoridades coloniais era importante ção ao costume. Na aldeia de MacGaffey, os jovens, privados de alter­
restringir a interação regional, evitando a ampliação do foco dos afri­ nativas concretas, refugiavam-se em fantasias.
canos. Por esse motivo, prepararam-se para apoiar colaboradores a Para os jovens, há a compensação relativa do "Dikembe", um clube so­
nível local e endossar sua autoridade. Ao mesmo tempo, porém, os po­ cial que proporciona divertimento aos homens solteiros . . . a cultura do
deres coloniais queriam extrair mão-de-obra destas sociedades rurais, "Dikembe", uma interessante caricatura das sérias crenças e princípios
de maneira que os jovens estavam sendo atraídos para empregos mui­ mágico-religiosos da geração mais velha que a mais nova desafia, contém
to mais distantes do que costumavam ser no tempo pré-colonial. Estes as sementes de uma sociedade alternativa . . . As portas das cabines de
jovens deveriam ser, ao mesmo tempo, trabalhadores de uma distante solteiro contêm inscrições como " Palais d'Amour" em letras góticas . . .
economia urbana e cidadãos aceitáveis da sociedade microcósmica tão A cultura do Dikembe é a do bil/ismo, cujos heróis são os astros dos fil­
rigidamente definida. mes românticos franceses e americanos (e) tem esse nome por causa de
Buffalo Bill, "Xerife du quartier Santa Fe, metro d'amour". "
Esta situação gerou muitas tensões. Os migrantes voltavàm para
uma sociedade fortemente controlada pelos mais velhos; os velhos, Estes disparates sem compromisso escondem uma séria tentativa de
por sua vez, ficavam alarmados com as novas habilidades e a renda desacreditar o "costume", endossada pelos brancos, através dos efei­
adquirida pelos migrantes. Passaram então a reforçar os direitos pres­ tos subversivos da fantasia européia.
critivos consuetudinários que lhes davam o controle sobre as terras e Todavia, também se abrira outro caminho para os jovens no
as mulheres, de proteção, portanto. MacGaffey descreve a aldeia colo­ período colonial, antes do surgimento dos partidos nacionalistas. Vi­
nial de Bakongo nos seguintes termos: sava superar o "costume" reificado dos mais velhos através de recur­
sos a aspectos mais dinâmicos e transformadores do tradicional. Ana­
Os homens ficam cadetes até mais ou menos os quarenta anos, talvez até listas recentes observaram cada vez mais os amplos movimentos de er­
mais. . . Ficam à disposição dos mais velhos, que os tratam de forma
muitas vezes autoritária. Os jovens consideram os mais velhos invejosos e
radicação da feitiçaria ocorridos no período colonial, com a promessa
críticos. O status de jovem é o de dependente. . . O controle exercido de uma sociedade sem males, por assim dizer. MacGaffey conta como
sobre ele pelos velhos é função de seu monopólio gerencial no serviço em sua aldeia de Bakongo as acusações de feitiçaria feitas pelos mais
público de rotina. velhos causaram grande descontentamento, fazendo com que surgisse
um "profeta" que se dispôs a eliminar a feitiçaria, proeza que privaria
Este monopólio gerencial é principalmente função do controle do co­ os mais velhos de uma poderosa forma de controle social. O resultado
nhecimento "tradicional" que têm os mais velhos, conhecimento em foi a "paralisação t.emporária dos mais velhos". Roy Willis demons­
que se baseiam as reivindicações de terras e recursos. MacGaffey regis­ trou como no sudoeste rural da Tanganica, na década de 1950, jovens
tra "a objeção dos mais velhos" quando "jovens inteligentes tomavam tentaram romper o controle exercido pelos mais velhos sobre a terra e
notas diligentemente" numa audiência sobre um conflito de terras, os "serviços públicos de rotina" locais, através de uma série de movi­
ameaçando assim usurpar o monopólio dos velhos. 93 mentos de erradicação da feitiçaria, que venceram o costume inventa­
A reação dos jovens a esta manipulação da "tradição" assumiu do através da utilização de recursos da Idade do Ouro pré-social. 91
duas formas. O objetivo principal era levar a melhor sobre os mais ve­ Das muitas outras análises que sustentam o debate, vou contentar­
lhos e sua esfera de tradição local, mas inventada pelo regime colonial. me em citar um relato particularmente convincente, embora não
l � to podia _ser feito pela adoção de certas neotradições européias. As­
sim, os migrantes que retornavam geralmente estabeleciam-se como
catequistas - com ou sem o reconhecimento das missões - e fundavam
?4. lbid., .pp. 223-4.
95. Roy Willis, " Kamcape: A n A nti-Sorcery M ovement in South-West Tanzania",
Africa, xxxi, n. 1 ( 1 968).
93. M ac Gaffey, op. cit . . pp. 208. 222-3 .

..........................................................1t...................................................
264 265

publicado, sobre o conhecido movimento sectário Watch Tower (Ata­ reafirmaram seu controle sobre assuntos locais queixando-se de que os
laia) ocorrido no centro e sul da Á frica. Sholto Cross conclui: m ais jovens estavam desrespeitando as tradições; os homens reforça­
Os três cinturões mineiros da África colonizada . . . são o foco do movi­ vam sua autoridade sobre um sistema econômico e social em transfor­
mento, e o trabalhador migrante foi o agente principal . . . O sistema mi­ mação queixando-se de que as m ulheres estavam desrespeitando as
gratório existente nestes territórios prolongou o tempo em que os africa­ tradições.
nos podiam ser considerados limitados por sua cultura tribal . . . No en­ Uma antologia mais recente de ensaios sobre as m ulheres africa­
tanto, ao mesmo tempo, instituíram-se políticas que visavam promover a nas prova sem sombra de d úvida este argumento. Como nos lembra
mobilidade da mão-de-obra, solapando, porém, a base econômica des­ Caroline I feka-Moller, os registros coloniais sobre a "tradição" africa­
ta cultura tribal. . . A velocidade de mudança nas áreas industriais ultra­ na, nos quais se baseava o novo costume inventado, provinha exclusi­
passou de longe a das áreas rurais do interior, mas, mesmo assim, os tra­ vamente de informantes m asculinos, de forma que "as crenças nativas
balhadores migrantes continuaram a deslocar-se entre os dois mundos do femininas" não eram registradas. Assim, "o domínio masculino da so­
campo e da cidade . . . A proliferação de aldeias Atalaia (foi causada por) ciedade, ou seja, seu controle sobre crenças religiosas e organização
uma série de restrições impostas ao migrante que retornava. As autorida­
des consuetudinárias. com ciúmes dos novos homens, cujo estilo de vida pofítica". expressav.a-se de maneira ainda mais clara na tradição inven­
enfatizava os valores urbanos . . . A prevalência das mulheres e jovens na tada colonial do que jamais fora antes. Não se deu grande atenção às
Atalaia rural indica que as clivagens econômicas foram reforçadas por mulheres nem em trabalhos dos etnógrafos do governo indireto, nem
outras formas de diferenciação . . . As idéias avançadas da tão esperada li­ dos estudiosos da adaptação m issionária - nem de intelectuais africa­
beração (prometida) pela Atalaia milenar eram tais que a própria autori­ nos com base missionária." Além disso, os homens africanos estavam
dade consuetudinária tornou-se o principal alvo dos ataques." perfeitamente preparados para recorrer à autoridade colonial com
com o objetivo de impor o "costume" às mulheres, uma vez que ele j á
OS HOMENS USA M A " ' TRA DIÇÃO" CONTRA A S M ULHERES
estivesse definido. Na Rodésia do sul, e em toda a zona de m igração de
O livro de Denise Paul me, Women of Tropical A/rica, embora vise mão-de-obra industrial , os administradores aplicavam punições por
refutar uma imagem européia estereotipada da opressão das mulheres adultério e impunham um controle paternalista sobre o casamento
africanas, revelou, entretanto, de forma muito nítida, duas coisas. A para atender a diversas queixas constantes de homens "tradicionalis­
primeira foi um colapso de caráter prático, no período colonial, de tas" .9• Entrementes, na ausência de imigrantes do sexo masculino, as
m uitas instituições consuetudinárias que regulavam as relações entre mulheres passaram a desempenhar um papel cada vez mais importante
os sexos, um colapso quase sempre desvantajoso para as mulheres sob na produção rural.
o aspecto econômico. A segunda coisa foi o uso constante que os ho­ Uma vez mais, as mulheres tinham dois meios possíveis de se afir­
mens faziam da "tradição". Anne Laurentin afirmou em seu capítulo marem frente à tradição dominada pelos homens. Podiam optar pelo
da antologia que cristianismo m issionário e suas idéias de direitos e deveres femininos,
a lembrança dos bons dias do passado se faz acompanhar por um arre­ ou procurar usar as contrapropostas alternativas disponíveis den t ro
pendimento nostálgico por parte dos homens mais velhos. . . Entre jo­ da cultura africana. Às vezes, as mulheres tentavam desenvolver ritos
vens e velhos há um espírito profundamente antifeminista que brota de de iniciação feminina. que no passado haviam contrabalançado a in­
um sentimento de impotência diante do fato de que as mulheres não con­ fluência ritual masculina no m icrocosmo. Outras vezes, tentaram ba­
sentirão em voltar ao estado de dependência em que estavam há um sécu­ sear-se em formas de associação ritual regional e em movimentos pro­
lo atrás . Os velhos põem a culpa··da diminuição da taxa de natalidade nas féticos macrocósmicos do século XX, para desafiar as restrições da so­
mulheres." ciedade limitada do costume inventado.
Em minha opinião, Laurentin confunde queixas sobre o aumento da Alguns estudos recentes procuraram explorar estas iniciativas fe­
i ndependência feminina com o fato de sua existência. Os mais velhos mininas. Richard Stuart, num trabalho não publicado, mostra como

96. Sholto Cross, 'The Watch Tower M ovement in South Central Africa, 1 908- 1 945" 98. Caroline Ifeka-Moller, "Female M ilitancy and Colonial Revolt", in S. Ardener
(tese de doutorado apresentada à Universidade de Oxford. 1 973), pp. 43 1 -8 . (org.). Perceiving Women ( Londres, 1 975).
9 7 . Anne Laurentin, "Nzakara Women", in Denise Paulme (org.), Women o/ Tropical 99. Eileen Byrne, "African M arriage in Southern Rhodesia, 1 890- 1 940" (tese de pes­
A/rica (California, 1 963), pp. 43 1 -8. quisa de humanidades da U niv. de Manchester, 1 979).
267
266

as mulheres Chewa faziam uso de um elemento missionário importa­ A MA NIPULA ÇÃO DA " TRA DIÇÃO"
do, a Associação das M ães: CONTRA SÚDITOS E IMIGRA N TES
Desenvolvera-se um equilíbrio entre a esfera igualmente importante das Os dois outros recursos à "tradição" com base nas relações desco·
mulheres e a esfera pública dos homens, entre os Chewa da África centro. bertas no novo costume colonial são ainda mais diretos. lan Linden
oriental em fins do século XIX. (Isto) foi perturbado pelo impacto das in­ conta como os chefes Ngoni da N iazilândia tentaram usar a aliança
vasões africanas e européias, e as conseqüências do Cristianismo, do Co­ colonial com os administradores e missionários para exercer controle
mércio e da Civilização. Estes fatores solaparam as bases históricas da so­ sobre seus súditos Chewa. Para fazê-lo, esboçaram o conceito de uma
ciedade Chewa, e proporcionaram aos homens o acesso a novas formas "cultura N goni" disciplinada e sadia e de uma "cultura Chewa" deca·
de riqueza e poder negadas às mulheres. Durante o período colonial, os dente e imoral - os mesmos conceitos que Binsbergen critica, dizendo
neotradicionalistas tentaram manter este desequilíbrio entre homens e serem eles falsos com relação ao século XIX; eles argumentaram que a
mulheres, e reestruturar a sociedade em bases paternalistas e individualis­ cultura Ngoni havia prevalecido antes da chegada dos europeus e de­
tas. Para combater este processo, e capacitar as mulheres a passar de so­
ciedades pequenas para as grandes à sua própria maneira, foi que se mo­ via ser agora apoiada. contra as práticas "abominâveis" dos Chewas:
bilizou a organização anglicana feminina, ou Associação das Mães exploraram o gosto europeu pelas hierarquias nítidas de status para
( Mpingo wa Amai). Esta iniciativa obteve uma reação imediata ao ser in­ consolidar redes de poder muito menos definidas no passado. Os Ngo·
troduzida no início da década de 1 930, permitindo que as mulheres Che­ n i conseguiram também tornar mais rígida sua "tradição" de discipli­
wa redifinissem papéis e instituições históricas no âmbito das circunstân­ na e bravura militar através do uso seletivo da modalidade militar eu­
cias modificadas e reagissem a novos problemas. Obteve certo êxito na ropéia.
manutenção do status feminino.'"" Pode-se lançar mão de outro exemplo da Niazilândia para mos·
O estudo " Fertility and Famine" (Fertilidade e Fome), de Sheri­ trar o uso da "tradição" pelos nativos com o objetivo de manter o con­
lyn Young, trata da estratégia alternativa. Numa versão condensada, trole sobre os imigrantes. M atthew Schoffeleers demonstrou como os
é este o seu relato de um caso no sul de M oçambique: Mang'anja de Lower Shire Valley conseguiram reter o controle da au­
toridade, o controle da alocação de terras, e daí por diante, embora
O trabalho forçado colonial, no século XX, suplementou a migração na fossem em número muito menor do que os imigrantes de Moçambi·
retirada da força de trabalho dos Tsonga e Chopi. Os vastos latifúndios que. Fizeram-no através de recurso conjunto às "tradições" de chefia
dos colonos eram formados pela incorporação das terras dos agricultores pré-colonial e às "tradições" do culto territorial local. Aliás, a história
desses povos. Uma série de carestias e desastres ecológicos entre 1 908 e
1 922 assegurou uma forte dependência em relação à exportação de mão­ do vale no século XIX revela enorme fluidez; aventureiros fortemente
de-obra. A recuperação agrícola da década de 1920 disse respeito princi­ armados penetraram na região e subjugaram os Mang'anja; foram
palmente ao campesinato feminino, que produziu o grosso dos cajus e destruídos os santuários do culto territorial; ocorreram rapidamente
amendoins de M oçambique do Sul. . . Quando (na) II Guerra Mundial mudanças na auto-identificação do povo, que utilizava diferentes ró·
recorreu-se a um sistema de trabalho forçado, as m ulheres tiveram de tulos étnicos de acordo com as variações do prestígio . Foi a pacifica­
produzir safras imediatamente comerciáveis, principalmente de algodão, ção colonial que rompeu com o poder dos aventureiros armados, res­
trabalhando quatro dias por semana, sob a supervisão de homens. A taurou os chefes M ang'anja e realmente estimulou a invenção da iden­
adaptação a essas mudanças pode ser constatada pelo desenvolvimento tidade M ang'anja. Com o costume codificado colonial, o direito que
de cultos de possessão por espíritos entre o povo, dirigidos por m ulheres. tinham os chefes M ang'anja de distribuir a terra passou a ser sagrado.
A sociedade de M oçambique do Sul ainda hoje mostra uma diferença no­
No século XX, os Mang'anja obtiveram uma autoridade, em nome da
tável entre um campesinato feminino local e um semiproletariado mascu­
lino emigrante.'º' tradição, que jamais haviam exercido no passado. 1 º2

;
1
1 02. lan Linden, "Chewa lnitiation R ites and Nyau Societies", in Terence Ranger e
100. R ichard Stuart, " M pingo wa Amai - The M others' Union in Nyasaland" (ma· 1 John Weller (orgs.). Themes in the Christian History o/ Central A/rica ( Londres, 1 975);
nuscrito não publicado). Matthew Schoffeleers, "The History and Political Role of the M bona Cult arnong the
1 0 1 . Sherilyn Young, "Fertility and Famine: Women's Agricultura! History in )', Mang"anja". in Ranger e Kimambo (orgs.), The Historical Study of African Religion.
Southern M ozarnbique", in Palmer e Parsons (orgs.) Roots of Rural Povery. !
2 69
268

grantes - grupos explorados com que Ngugi simpatiza - algumas vezes


CONCL USÃO conseguiram extrair a vitalidade remanescente na mescla de inovação e
Os políticos, nacionalistas culturais e sem dúvida os historiadores prosseguimento inerente às culturas nativas, uma vez que elas conti­
africanos receberam dois legados ambíguos da invenção colonial das nuaram a desenvolver-se apesar dos rigores do costume codificado co­
tradições. Um deles é o corpo de tradições inventadas importadas da lonial .
Europa, que em algumas partes da África ainda exerce sobre a cultura Quanto aos historiadores, resta-lhes, pelo menos, uma dupla tare­
dominante uma influência que praticamente já não existe na própria fa. Precisam libertar-se da ilusão de que o costume africano registrado
Europa. Em seu Prison Diary (Diário do Cárcere), Ngugi wa Thiong'o por administradores ou por muitos antropólogos sirva de orientação
denuncia a elite contemporânea do Quênia: para o estudo do passado africano. Também precisam, porém, verifi­
car quantas tradições inventadas de todos os tipos têm a ver com a his­
Os membros da burguesia cúmplice dos europeus de uma colônia de po­ tória da África no século XX, e trabalhar no sentido de compor relatos
voamento consideraram-se afortunados. Não precisam viajar e morar no melhor fundamentados sobre tais tradições do que este esboço preli­
estrangeiro para conhecer e copiar a cultura da burguesia imperialista: minar.
pois não a aprenderam dos representantes coloniais culturais da cultura
metropolitana? Nutridos no ventre do velho sistema colonial, alcançaram
os píncaros de sua cumplicidade, encarando os europeus locais como o
alfa e o ômega do refinamento aristocrático e da elegância feminil. De­
pois que foram derrubadas as barreiras raciais à mobilidade social, o por­
te de um cavalheiro europeu - com botões de rosas e alfinetes nas lapelas,
lenços brancos impecáveis nos bolsos, fraques, cartolas e relógios de bol­
so com correntes de ouro - já não pertence mais apenas ao universo dos
sonhos e desejos . . . As colunas mais populares nos velhos jornais colo­
niais . . . eram as páginas sociais . . . Bem, as colunas agora estão de volta,
nas lustrosas publicações mensais burguesas . . . O colonizador jogava
golfe e pólo, ia às corridas de cavalo ou participava de caçadas reais, ves­
tido com jaquetas vermelhas e calças de montaria . . . Os alunos negros
agora fazem o mesmo, só que com maior zelo: o golfe e os cavalos trans­
formaram-se em instituições "nacionais". 'º3

Outros novos estados, menos atingidos pelas críticas de Ngugi, expres­


sa �am sua soberania com hinos nacionais, bandeiras e comícios que
Enc Hobsbawm diz, neste livro, serem típicos da Europa do século
X I X. Representando estados territoriais multiétnicos, as nações afri­
canas estão muito menos envolvidas na invenção de "culturas nacio­
nais" do que estavam os românticos escoceses ou galeses.
O segundo legado ambíguo é o da cultura africana "tràdicional",
representada por toda a estrutura da "tradição" reificada, inventada
pelos administradores, missionários, "tradicionalistas progressistas",
anciãos e antropólogos coloniais. Aqueles que como Ngugi repudiam
a cultura de elite burguesa correm o perigo irônico de adotar outro
conjunto de invenções coloniais. O próprio Ngugi resolve o problema,
adotando a tradição da resistência popular do Quênia ao colonialis­
mo. Como se percebe no correr deste capítulo, jovens, mulheres e imi-

1 03 . Ngugi w a Thiong'o, Detained: A Writer's Prison Diary (Londres, 1 98 1 ), pp. 58-9.


27 1

7 . A Produção em Massa de
Tradições: Europa, 1 8 70 a 1 914.
ERIC HOBSBAW M

1.
Uma vez cientes de como é comum o fenômeno da invenção das
tradições, descobriremos com facilidade que elas surgiram com fre­
qüência excepcional no período de 30 a 40 anos antes da I Guerra
Mundial. Não se pode dizer com certeza que nesse período inventa­
ram-se tradições "com maior freqüência" do que em qualquer outro,
uma vez que não há como estabelecer comparações quantitativas rea­
listas. Entretanto, em muitos países, e por vários motivos, praticou-se
entusiasticamente a invenção de tradições, uma produção em massa
que é o assunto deste capítulo.
Foi realizada oficialmente e não-oficialmente, sendo as invenções
oficiais - que podem ser chamadas de "políticas" - surgidas acima de
tudo em estados ou movimentos sociais e políticos organizados, ou
criadas por eles; e as não-oficiais - que podem ser denominadas "so­
ciais" - principalmente geradas por grupos sociais sem organização
formal, ou por aqueles cujos objetivos não eram específica ou cons­
cientemente políticos, como os clubes e grêmios, tivessem eles ou não
também funções políticas. Esta distinção é mais uma questão de con­
veniência do que de princípio. Pretende chamar a atenção para duas
formas principais da criação de tradições no século XIX, ambas refle­
xos das profundas e rápidas transformações sociais do período. Gru­
pos sociais, ambientes e contextos sociais inteiramente novos, ou ve­
lhos, mas incrivelmente transformados, exigiam novos instrumentos
que assegurassem ou expressassem identidade e coesão social, e que es­
truturassem relações sociais. Ao mesmo tempo, uma sociedade em
transformação tornava as formas tradicionais de governo através de
estados e hierarquias sociais e políticas mais difíceis ou até impraticá­
veis. Eram necessários novos métodos de governo ou de estabeleci­
mento de alianças. De acordo com a ordem natural das coisas, a con­
seqüente invenção das tradições "políticas" foi mais consciente e deli­
berada, pois foi adotada por instituições que tinham objetivos políti­
cos em mente. Podemos, no entanto, perceber imediatamente que a in­
venção consciente teve êxito principalmente segundo a proporção do
272

sucesso alcançado pela sua transmissão numa freqüência que o públi­


co pudesse sintonizar de imediato. Os novos feriados, cerimônias, he­
1 lo XIX era, basicamente, uma política de djmensões nacionais. Em su­
ma, para fins práticos, a sociedade ("sociedade civil") e o Estado em
273

róis e símbolos oficiais públicos, que comandavam os exércitos cada que ela funcionava tornaram-se cada vez mais inseparáveis.
vez maiores dos empregados do estado e o crescente público cativo Foi, portanto, natural, que as classes existentes na sociedade, e es­
composto pelos colegiais, talvez não mobilizassem os cidadãos volun­ pecialmente a classe operária, tendessem a identificar-se através de
tários se não tivessem uma genuína repercussão popular. O Império movimentos políticos ou organizações ("partidos") de âmbito nacio­
Alemão não foi feliz ao tentar transformar o Imperador Guilherme I nal; igualmente natural, que estes agissem de facto basicamente _dentro
num pai aceito pelo povo, fundador de uma Alemanha unida, nem ao do país. 1 Não surpreende também que movimentos que pretendiam re­
fazer de seu aniversário um verdadeiro aniversário nacional. (Aliás, presentar uma sociedade inteira ou um "povo" inteiro en_carassem sua
quem é que se lembra de que tentaram chamá-lo "Guilherme, o Gran­ existência fundamentalmente em termos de um estado independente
de"?) O apoio oficial assegurou a construção de 327 monumentos a ou. pelo menos. autônomo. Estado, nação e sociedade eram fatores em
Guilherme até 1 902, mas apenas um ano após a morte de Bismarck, convergência.
em 1 898, 470 municípios haviam resolvido erigir "colunas a Bis­ Pela mesma razão, o Estado, visto de cima, de acordo com a pers­
marck " . ' Não obstante, o Estado ligou as invenções de tradição pectiva de seus governantes formais ou grupos dominantes, deu ori­
formais e informais, oficiais ou não, políticas e sociais, pelo menos nos gem a problemas inéditos de preservação ou estabelecimento da obe­
países onde houve necessidade disso. Visto de baixo, o Estado definia diência, lealdade e cooperação de seus súditos e componentes, ou sua
cada vez mais um palco maior em que se representavam as atividades própria legitimidade aos olhos destes súditos e componentes. O pró­
fundamentais determinantes das vidas dos súditos e cidadãos. Aliás, prio fato de que suas relações diretas e cada vez mais intrometid� s e
assim como definia, também registrava a existência civil deles (état ci­ freqüentes com os súditos e cidadãos como indivíduos (ou no máximo
vil). Talvez não tenha sido o único palco desta natureza, mas sua exis­ como chefes de famílias) haviam-se tornado cada vez mais essenciais
tência, limites e intervenções cada vez mais freqüentes e perscrutado­ ao seu funcionamento, causou um enfraquecimento dos velhos meca­
ras na vida do cidadão foram, em última análise, decisivas. Nos países nismos através dos quais se mantivera com êxito a subordinação so­
desenvolvidos, a "economia nacional", sua área definida pelo territó­ cial: coletividades ou corporações relativamente autônomas sob o con­
rio de estado ou de suas subdivisões, era a unidade básica do desenvol­ trole do governante, mas que controlavam seus respectivos membros,
vimento econômico. Qualquer a lteração nas fronteiras do estado ou pirâmides de autoridade cujos ápices ligavam-se a autoridades. mais al­
em sua política acarretava consideráveis e duradouras conseqüências tas, hierarquias sociais estratificadas em que cada camada aceitava seu
m ateriais para os cidadãos do país. A padronização da administração lugar, e daí por diante. Em todo caso, transformações sociais como as
e das leis nela contidas e, especificamente, da educação oficial, trans­ que substituíram os estamentos (ranks) por classes, desgastaram-nas.
formou as pessoas em cidadãos de .um país determinado: "camponeses Os problemas dos estados e dos governantes eram sem dúvida_ muito
e franceses", segundo o título de um livro oportuno. 2 O Estado era o mais graves onde os súditos se haviam tornado cidadãos, ou seJ a, pes­
contexto das ações coletivas dos cidadãos, na medida em que estas fos­ soas cujas atividades políticas eram institucionalmente reconhecidas
sem oficialmente reconhecidas. O principal objetivo da política nacio­ como algo que devia ser considerado - mesmo que fosse apenas sob a
nal era, sem dúvida, influenciar ou mudar o governo do Estado ou forma de eleições. Agravaram-se ainda mais quando os movimentos
suas diretrizes, sendo que o homem comum tinha cada vez mais direi­ políticos de massas desafiaram deliberadamente a legitimidade dos s_is­
tos de participar dele. Na verdade, a política no novo sentido do sécu- temas de governo político ou social, e/ou ameaçaram revelar-se in­
compatíveis com a ordem do estado ao colocar as obrigações para
com alguma outra coletividade humana - geralmente a classe, a igreja
1 . G. L. M osse, "Caesarism, Circuses and M ovements", Joumal of Contemporary ou a nacionalidade - acima dele.
History, vi, n . 2 ( 1 97 1 ), pp. 1 67-82; G . L . M osse, The Nationalisation ofthe Masses: Poli­
tical Symbolism and Mass Movements in Germany from the Napoleonic Wars through the
3rd Reich (Nova Iorque, 1 975); T. Nipperdey, "Nationalidee und N ationaldenkmal in
Deutschland im 1 9. Jahrhunder1··. Historische Zeitschrift (j un. 1 968). pp. 529-85. princ. 3 . Isto ficou definitivamente comprovado em 1 9 1 4, pelos parti �os sociali�tas da � e­
543 ( notas). 579 ( notas). gunda Internacional, que não só reivindicavam ser de alcance basicamente mternac! o­

--------------111----
2. Eugen Weber, Peasants into Frenchmen: The Modemization of Rural France, /870- nal mas de fato às vezes consideravam-se oficialmente nada mais do que secções nac10-
/ 9/4 ( Stanford, 1 976 ) . nai� de um movimento global. ("Séction Française de l'Internationale Ouvriere").
275
274

cessárias. Tinham capitais, bandeiras, hinos nacionais, uniformes mi­


A questão parecia ser mais controlável onde menos mudanças na litares e acessórios semelhantes, baseados em grande parte no modelo
estrutura social haviam ocorrido, onde o destino dos homens parecia dos britânicos, cujo hino nacional (que data de apr? x. 1 740� é, p_rova­
estar sujeito apenas às forças desde sempre desencadeadas sobre a hu­ velmente. o primeiro, e no modelo dos franceses, CUJª bandeira tricolor
manidade por alguma divindade inescrutável, e onde as antigas formas foi livremente imitada. Vários novos estados e regimes foram capazes
de superioridade hierárquica e subordinação estratificada, multiforme de, como a Terceira República Francesa, recorrer ao simbolismo re­
e relativamente autônoma ainda vigoravam. As únicas coisas que po­ pu blicano francês do passado, ou, como o Imp�rio ale� ão de �is­
diam mobilizar o campesinato italiano além de suas aldeias eram a marck, associar -elementos tirados de um Império Alemao anterior,
igreja e o Rei. Aliás, o tradicionalismo dos camponeses .(que n�o deve aos mitos e símbolos de um nacionalismo liberal popular entre as clas­
ser confundido com passividade, embora não tenha havido muitos ca­ ses médias e ao prosseguimento da dinastia da monarquia prussiana,
sos em que eles desafiaram a própria existência dos senhores, contanto da qual n� década de 1860, metade dos ha�itantes da Alem�� ha de
que estes pertencessem à mesma fé e ao mesmo povo) foi constante­ Bismarck eram súditos. Dentre os estados ma10res, apenas a ltaha teve
mente elogiado pelos conservadores do século XIX, que o considera­ de partir do nada para resolver o problema resumido por d'Azeg_lio �a
vam o ideal do comportamento político dos súditos. Infelizmente, os seguinte frase: "Nós fizemos a Itália: agora temos de fazer os 1t�l_1a­
Estados em que tal modelo funcionou eram, por definição, "atrasa­ nos." A tradição do reino de Sabóia não era uma vantagem pol it1ca
dos" e, portanto, frágeis, sendo que qualquer tentativa de "moderni­ fora da região noroeste do país, e a igreja opun�a-se ao ��vo Estado
zá-los" provavelmente os tornaria menos viáveis. Teoricamente, era italiano. Talvez não surpreenda que o novo remo da _ Itaha, embora
possível conceber uma "modernização" que mantivesse a velha or�a­ animado para "fazer italianos", não estava nada en� us1asma� o co� a
nização da subordinação social (possivelmente com um pouco de m� idéia de fazer mais de um ou dois por cento deles eleitores, ate que isto
vençào ponderada de tradições), mas fora o Japão, é difícil enc_ontrar se tornasse completamente inevitável.
outro exemplo de sucesso na prática. Possivelmente, tais tentativas de Embora o estabelecimento da legitimidade dos novos estados e
atual izar os laços sociais de uma ordem tradicional implicavam o re­ regimes fosse relativamente raro, s_ua afírma�ão contra a ameaça da
baixamento da hierarquia social, um fortalecimento das ligações dire­ política popular não foi. Como dissemos acima, aquele desafi� _era
tas entre o súdito e o governante central que, intencionalmente ou não, principalmente representado, única ou conjuntamente, pela mob1hza­
passou a representar cada vez mais um novo tipo de estado. "Deus sal­ çào po lítica das massas, às vezes combinada, às vezes confl1t.� nt � .
ve o Rei" passou a ser (embora por vezes simbolicamente) uma exorta­ através da religião (principalmente a católica romana), da consc1encia
ção política mais eficaz do que "Deus abençoe o proprietário e seus de classe (democracia social), e do nacionalismo, ou pelo men� s a x �­
parentes e nos mantenha em nossas posições". O capítulo sobre a mo­ nofobia. Em termos políticos, tais desafios tiveram sua expressao mais
narquia britânica esclarece este processo até certo ponto, embora fosse visível no voto, e, neste período, apresentavam-se inextrincavelme� te
interessante realizar-se um estudo sobre as tentativas que fizeram di­ ligados à existência do sufrágio universal ou à luta por sua obtençao,
nastias mais autenticam-ente legitimistas, tais como a dos Habsburgos travada contra oponentes que, principalmente ag<?�ª· c�nformava� -�e
e dos Romanov, não só de impor obediência a seus povos como súdi­ com uma ação de defesa da retaguarda. Em 1 9 1 4 Ja havia na A_us �rali_a
tos, mas de angariar-lhes a lealdade como cidadãos em potencial. Sa­ ( 1 90 1 ), Áustria ( 1907), Bélgica ( 1 894), Dinamarca ( 1 849), Fmland1a
bemos que eles terminaram não conseguindo, mas teria sido este fra­ ( 1 905), França ( 1 875), Alemanha ( 1 87 1 ), Itália ( 1 9 1 3), Noruega
casso inevitável? ( 1 898), Suécia ( 1 907), Suíça ( 1 848-79), no Reino Unido ( 1 86 �-84) � nos
Por outro lado, o problema era mais dificil de ser resolvido em es­ Estados Unidos certa forma de sufrágio amplo, embora nao univer­
tados inteiramente novos, em que os governantes eram incapazes de sal e só ocasion;lmente se fizesse acompanhar da democracia política.
fazer uso eficaz de laços já existentes de obediência e lealdade política, Não obstante, mesmo onde as constituições não eram democráticas, a
e em estados cuja legitimidade (ou a legitimidade da ordem social por própria existência de um eleitorado de massas já evidenciava o proble­
eles representada) já não era mais aceita. Acontece que no período de ma de manter sua lealdade. A ascensão ininterrupta do voto soc1al­
1 870- 1 9 1 4 havia excepcionalmente poucos "estados novos". A maio­ democrata na Alemanha imperial não preocupou menos os governan­
ria dos estados europeus, assim como das repúblicas americanas, ha­ tes pelo fato do Reichstag ter muito pouco poder.
via, àquela altura, adquirido as instituições, símbolos e práticas ofi­ A ampliação do progresso da democracia eleit?ral e a co� seqile_?­
ciais básicas que a M ongólia, tendo declarado uma espécie de indepen­ te _aparição da política de massas, portanto, dommaram a mvençao
dência da China em 1 9 1 2, imediatamente considerou inovadoras e ne-
277
276

intelectual da política e da sociedade foi transformado pelo reconheci­


das tradições oficiais no período de 1870- 19 14. O que tornava isso par­ mento de que o que mantinha unidas as coletividades humanas não
ticularmente urgente era a predominância tanto do modelo das insti­ eram os cálculos racionais de seus componentes.
tuições constitucionais liberais quanto da ideologia liberal. As primei­
ras ofereciam obstáculos não teóricos, mas no máximo empíricos à de­ Creio não ser este o momento oportuno para fazer uma análise,
mocracia eleitoral. De fato, dificilmente um liberal dispensaria a ex­ nem mesmo a mais breve possível, deste recuo intelectual do liberalis­
tensão dos direitos civis a todos os cidadãos - ou pelo menos aos de mo clássico, que apenas os economistas não acompanharam.' Há uma
sexo masculino - mais cedo ou mais tarde. A ideologia liberal alcança­ relação óbvia entre ele e a experiência da política de massas, principal­
ra seus mais espetaculares êxitos econômicos e transformações sociais mente num país onde uma burguesia que tinha, segundo Burke,
através da opção sistemática pelo indivíduo, relegando a coletividade "rasgado violentamente ... o recatado cortinado da vida, ... as agradá­
institucionalizada, pelas transações de mercado (o "vínculo financei­ veis ilusões que tornavam o poder manso e a obediência liberal"8 da
ro") ao invés de pelos laços humanos, pela hierarquia de classe ao in­ forma mais definitiva possível, agora achava-se exposta, afinal, à ne­
vés da de estamentos, pela Gesel/schaft, em vez da Gemeinschaft. Dei­ cessidade permanente de governar por meio de uma democracia políti­
xou, assim, sistematicamente, de cultivar os vínculos sociais e de auto­ ca à sombra de uma revolução social (a Comuna de Paris). Natural­
ridade aceitos pelas sociedades do passado, tendo aliás pretendido e mente, não bastava lamentar o desaparecimento daqueles antigos ali­
conseguido enfraquecê-los. Contanto que as massas permanecessem cerces sociais, a igreja e a monarquia, como fez o Tai ne pós-Com una.
alheias à política, ou fossem preparadas para apoiar a burguesia libe­ embora não tivesse simpatia por nenhuma das duas.° Era ainda menos
ral, não haveria grandes dificuldades políticas em conseqüência disso. prático trazer de volta o rei católico, como queriam os monarquistas
Todavia, da década de 1870 em diante tornou-se cada vez mais eviden­ (eles próprios estando longe de ser os melhores exemplos de piedade e
te que as massas estavam começando a envolver-se na política, e não fé tradicional , corno no caso de Maurras). Havia que construir-se uma
se poderia ter certeza de que apoiariam seus senhores. "religião cívica" alternativa. Tal necessidade foi o núcleo da sociolo­
Após a década de 1870, portanto, quase que certamente j unto gia de Durkheim, trabalho de um dedicado republicano não-socialista.
com o surgimento da política de massas, os governantes e observado­ No entanto, teve de ser instituída por pensadores menos eminentes,
res da classe média redescobriram a importância dos elementos "irra­ embora fossem políticos mais experientes.
cionais" na manutenção da estrutura e da ordem social. Conforme co­ Seria ridículo insinuar que os homens que governaram a Terceira
mentaria Graham Wallas em Human Nature in Politics (A Natureza República, para atingirem uma estabilidade social, fiaram-se apenas
H umana na Política) ( 1908): "Quem se dispuser a basear seu pensa­ na invenção de tradições novas. Eles, ao contrário, basearam-se no
mento político numa reavaliação do funcionamento da natureza hu­ fato político real de que a direita era uma minoria eleitoral permanen­
mana, deve começar por tentar superar sua própria tendência de exa­ te, que o proletariado social revolucionário e os inflamáveis parisien­
gerar a intelectualidade do homem".• Uma nova geração de pensado­ ses poderiam ser permanentemente derrotados pelos votos das aldeias
res não teve dificuldade em superar tal tendência. R edescobriram ele­ e pequenas cidades, com representação equivalente ou maior, e que a
mentos irracionais na psique individual (Janet, William James, genuína paixão dos eleitores republicanos rurais pela Revolução Fran­
Freud), na psicologia social (Le Bon, Tarde, Trotter), através da an­ cesa e seu ódio pelos interesses dos detentores do capital poderia geral­
tropologia em povos primitivos cujas práticas já não pareciam preser­ mente ser aplacado por estradas apropriadamente distribuídas pelos
var simplesmente as características da infância da humanidade moder­ distritos, pela defesa dos altos preços dos produtos agrícolas e, quase
na (Durkheim não distinguiu os elementos de toda a religião nos ritos certamente, pela manutenção de impostos baixos. O aristocrata radi­
dos aborígines da Austrália?i ), mesmo naquele perfeito bastião da ra­ cal socialista sabia o que pretendia quando redigiu seu discurso eleito-
zão humana ideal, o helenismo clássico (Frazer, Cornford).6 O estudo

7. Provavelmente porque eles foram capazes de eliminar de seu campo de visão tudo
o que não pudesse definir-se como comportamento racionalmente ampliador; à custa -
4. Graham Wallas, Human Nature in Politics ( Londres, 1 908), p. 2 1 .
após a década de 1 870 - de um considerável estreitamento de seu campo de estudo.
5 . Emile Durkheim. The E/e111e111arr For,m of the Religious Life ( Londres, 1 976). Pri­
8. Edmund Burke, Reflections on the Revo/ution in France, cd. Everyman, p. 74.
meira edição francesa em 1 9 1 2 .
9. J. P. Mayer, Po/itica/ Thought in France from the Revolution to the 5th Repub/ic
6 . J . G . Frazer, The Go/den Bough, 3 . ed. ( Londres, 1 907-30); F . M . Cornlord, From (Londres, 1 96 1 ), pp. 84-8.
Religion to Philosophy: A Study ofthe Origins of Western Speculation (Londres, 1 9 1 2).
278 279

Há provas suficientes de q ue a burguesia republicana moderada


ral, recorrendo à evocação do espírito de 1 789 - não do de 1 793 - e a
reconhecia a natureza de seu p rincipal problema político ("falta de ini­
um hino à República, em cujo clímax garantiu sua lealdade aos inte­
migos da esquerda") desde a década de 1 860, e pôs-se a resolvê-lo logo
resses dos viticultores do seu eleitorado do Languedoc. 1 0
Entretanto, a invenção d a tradição desempenhou um papel fun­ que a República firmou-se no poder. 13 Em termos da invenção da tra­
dição, três novidades principais são particularmente importantes. A
damental na manutenção da República, pelo menos salvaguardando-a
primeira foi o desenvolvimento de um equivalente secular da igreja -
contra o socialismo e a direita. Pela anexação deliberada da tradição
educação primária, imbuída de princípios e conteúdo revolucionário e
revo l ucionária, a Terceira · República apazig uou os social-re­
republicano, e dirigida pelo equivalente secular do clero - ou talvez,
vol ucionários (como a maioria dos socialistas) ou isolou-os (como
dada a sua pobreza, os frades - os instituteurs. 1 • Não resta dúvida de
os ·anarco-sindicalistas). Em conseqüência disso, era agora capaz de
que esta foi um a criação deliberada do início da Terceira República e,
mobilizar até mesmo a maioria de seus adversários potenciais da es­
considerando-se a centralização proverbial do governo francês, de q ue
quer�a p ara defender uma república e uma revolução do passado,
o conteúdo dos manuais que iriam transformar não só camponeses em
const1tumdo uma frente ú nica com as classes q ue reduziu a direita a
franceses, mas todos os franceses em bons republicanos, foi cuidado­
uma permanente minoria no país. A liás, conforme se explica no ma­
samente elaborado. A liás, a "i nstitucionalização" da própria Revol u­
nual da política da Terceira República, C/ochemer/e, a principal fun­
ção Francesa na, e pela, República já foi estudada com maior vagar. 1
1
ção da direita era ser a lvo da mobilização d os bons republicanos. O
segunda novidade foi a invenção d as cerimônias públicas. A
movimento operário socialista negou-se a ser cooptado pela República . �
16

burguesa até certo ponto; daí a instituição da comemoração anual da mais importante delas, o Dia da Bastil ha, foi criado em 1 880. Reunia
Comuna de Paris no Mur des Fédérés ( 1 880) contra a institucionaliza­ manifestações oficiais e não-oficiais e festividades populares - fogos de
ção da República; daí também a substituição da " Marselhesa" tradi­ artifício, bailes nas ruas - confi nn ando anualmente a condição da
cional e agora oficial, pela n ova "lnternationale", seu hino durante o França como nação de 1 789, na q ual todo homem, m ulher e criança
caso Dreyfus, e principalmente durante as controvérsias sobre a parti­ franceses poderiam tomar parte. Embora deixasse espaço, para mani­
cipação socialista nos governos burgueses (Millerand). 1 1 Mais uma festações populares mais belicosas, mal podendo evitá-las, sua tendên­
vez, os republicanos jacobinos radicais continuaram dentro do simbo­ cia �eral era transformar a herança da Revolução n uma expressão
lism� oficial, a assinalar sua separação dos republic�nos moderados e conJunta de pompa e poder do estado e da satisfação dos cidadãos.
dominantes. Agulhon, que estudou a mania típica de erigir monumen­ Forma menos permanente de celebração pública eram as exposições
tos, em sua maioria da própria República, durante o período de 1 875 a m u � diais exporádicas que deram à República a legitimidade da pros­
1 9 14, observa, de maneira perspicaz, que nos m unicípios mais radicais peridade, do progresso técnico - a Torre Eiffel - e a conquista colonial
global q ue procuravam enfatizar. ' "
M arianne trazia pelo menos um dos seios nus, enquanto nos mais mo­
A terceira novidade foi a produção em massa d e monumentos
derados ela estava sempre recatadamente vestida. 1 2 No entanto, o mais
públicos já comentada. Pode-se observar que a Terceira República -
importante era que quem controlava todas as metáforas, o simbolis­
ao contrário de outros países - não era favorável aos edifícios públicos
mo, as tradições da Repúbl ica eram os homens do centro mascarados
de homens da extrema esquerda: os socialistas radicais, proverbial­
mente "iguais aos rabanetes, vermel hos por fora e brancos por dentro,
sempre do lado que mais lhes interessa". Assim que eles pararam de 1 3 . Sanford H . Elwitt, The Making of the 3rd. Repub/ic: Class and Politics in France.
contr? lar as fortu_nas da República - desde a época da Frente Popular /868-84 (Baton Rouge, 1 975).
em diante - os di as da Terceira República ficaram contados.
1 4. Georges Duveau, Les /nstituteurs ( Paris, 1 957); J. Ozouf (org.) Naus /es Mâitres
d"Éco/e: A utobiographies d'/nstituteurs de la Bel/e Époque (Paris, 1 967).
15. Alice Gérard, La Révolution Françoise: Mythes et /nterprétations, 1 789-1970 (Paris,
1 970). cap. 4 .
1 6. Charles Rearick, "Festivais i n Modem France: The Experiencc o f the 3rd. Re­
10. Jean Touchard. La Gauche en France depuis / '100 (Paris. 1 977). p. 50. public", Journal of Contemporary History, xii, n. 3 (jul. 1 977), pp. 435-60; Rosemonde
1 1 . Maurice Dommanget, Eugéne Pottier. Membre de la Commune et Chantre de rln­ Sanson. Les /4 Juillet . Féte et Conscience Nationale, 1 789-/975 ( Paris, 1 976), com biblio­
ternationa/e (Paris, 1 97 1 ); cap. 3. grafia.
1 2 . M . Agulhon, " Esquise pour une Archéologie de la République; I'Allegorie Civiquc 1 7. Sobre as intenções políticas da Exposição de 1 889, cf. Debora L. Silverman, "The
Féminine". A nna/es ESC, xxviii ( 1 973), pp. 5-34; M. Agulhon, Marianne au Comba/: /'1- 1 889 Exhibition: The Crisis of Bourgeois lndividualism", Oppositions, A Journal for
magerie et la Symbo/ique Républicaines de 1 789 à /880 (Paris, 1 979). ldeas and Criticism in A rchitecture (primavera 1 977), pp. 7 1 -9 1 .
28 1
280

símbolos: a tricolor (democratizada e universalizada na faixa do pre­


imponentes, dos quais já havia muitos na França - embora as grandes feito, presente em todo casamento civil ou outra cerimônia), o mono­
exposições tenham acrescentado alguns a Paris - nem às estátuas des­ grama da República (RF) e o lema (liberdade, igualdade, fraternida­
comunais. A principal característica da "estatuomania" francesa'ª foi de), a "Marselhesa", e o símbolo da República e da própria liberdade,
sua democracia, prenúncio da democracia dos monumentos da guerra que parece ter tomado forma nos últimos anos do Segundo Império,
após 19 14- 18. Dois tipos de monumentos espalharam-se pelas cidades Marianne. Podemos também observar que a Terceira República não
e comunas rurais do país: a imagem da própria República (na pessoa tinha qualquer desejo oficial pelas cerimônias especificamente inventa­
de Marianne, agora universalmente conhecida), e as figuras civis bar­ das, tão característico da primeira - "árvores da liberdade", deusas da
badas daqueles q� o patriotismo local escolhia para reverenciar, fos­ razão e festejos ad hoc. Não devia haver feriado nacional oficial que
sem vivos ou mortos. A liás, embora a construção dos monumentos re­ não o 14 de julho, nenhuma mobilização, procissão ou marcha formal
publicanos fosse evidentemente incentivada, a iniciativa e o custo de por parte dos cidadãos civis (ao contrário dos regimes de massas do sé­
tais empreendimentos eram questões de âmbito local. Os empresários culo XX, e também ao contrário dos Estados Unidos), mas uma sim­
que abasteciam este mercado ofereciam escolhas adequadas aos bolsos ples "republicanização" da pompa do poder de estado aceita - unifor­
de toda comunidade republicana, dos cidadãos mais pobres até os mes, paradas, bandas, bandeiras e coisas que tais.
mais ricos, desde modestos bustos de Marianne, dos mais diversos ta­ O Segundo Império Alemão representa um contraste interessante,
manhos, passando por•.estátuas de corpo inteiro de várias dimensões, principalmente porque vários dos temas gerais da tradição inventada
até os pedestais e acessórios alegóricos ou heróicos que os cidadãos republicana francesa podem ser identificados. Seu principal problema
mais ambiciosos podiam colocar aos pés da figura. ' 9 Os opulentos con­ político era duplo: como emprestar legitimidade histórica à versão bis­
juntos da Place de la R épublique e da Place de la Nation em Paris marckiana ( Prusso-Pequeno alemã) da uni ficação que não era reco­
constituíam a versão suprema deste tipo de estatuária. Tais monumen­ nhecida; e como lidar com aquela grande parte do eleitorado democrá­
tos reconstituem as raízes da República - especialmente seus baluartes tico que teria preferido outra solução (grande-alemães, anti­
rurais - e podem ser considerados vínculos visíveis entre os eleitores e prussianos. católicos e, acima de tudo, social-democratas). O próprio
a nação. Bismarck parece não ter-se preocupado muito com o simbolismo, a
A lgumas outras características das tradições "inventadas" ofi­ não ser pela criação de uma bandeira tricolor que unia a branca e pre­
ciais da Terceira República podem ser comentadas rapidamente. Exce­ ta prussiana com a nacionalista liberal preta, vermelha e dourada, que
to sob a forma da celebração de figuras de destaque do passado local, ele pretendia anexar ( 1 866). Não havia qualquer precedente histórico
ou de manifestos políticos locais, ela não recorreu à história. Em par­ para a bandeira nacional imperial preta, branca e vermelha.'º A receita
te, sem dúvida, porque a história antes de 1789 (a não ser talvez pelos de Bismarck para a estabilidade política era ainda mais simples: con­
gauleses), lembrava a igreja e a monarquia, e em parte porque a histó­ quistar o apoio da burguesia (predominantemente liberal), cumprindo
ria a partir de 1789 era uma força divisória, não unificadora: cada tipo ·seU programa até um ponto que não comprometesse a predominância
- ou grau - de Republicanismo tinha seus próprios heróis e vilões no
panteão revolucionário, como demonstra a historiografia da Revolu­
ção Francesa. As diferenças partidárias eram patentes nas estátuas a 20. Whitney Smith, Flags through the A ges (Nova Iorque, 1 975), pp. 1 1 6- 1 8. A bandei­
Robespierre, Mirabeau ou Danton. Ao contrário dos Estados Unidos ra nacionalista preta, vermelha e dourada parece ter tido origem no movimento estu­
e. dos estados latino-americanos, a República Francesa esquivou-se, dantil do período pós-napoleônico, mas só foi claramente instituída como bandeira do
portanto, do culto aos Fundadores do País. Preferia símbolos gerais, movimento nacional em 1 848. A resistência à República de Weimar reduziu sua bandei­
abstendo-se até do uso de temas que se referissem ao passado nacional ra nacional a estandarte de partido - aliás, a força militar do Partido Social- Democrata
adotou-a como nome ("Reichsbanner" ). embora a direita anti-republicana estivesse
nos selos postais até bem depois de 1914, apesar de a maioria dos Esta­ dividida entre a bandeira imperial e a bandeira nacional socialista, que já não tinha a
dos europeus (fora a Grã-Bretanha e a Escandinávia) terem descober­ disposição tricolor tradicional, talvez devido à associação com o liberalismo do século
to sua força de meados da década de 1890 em diante. Eram poucos os X I X . talvez por não indicar com clareza um rompimento radical com o passado. Toda­
via. a bandeira continuou com o padrão de cores básico do império bismarckiano (ne­
gro. branco e vermelho), embora destacasse o vermel ho , até então o símbolo apenas dos
n. 3 -4 ( 1978), movimentos socialistas e operários. A República Federal e a Democrática voltaram às
1 8 . M . Agulhon, "La Statuoma nie et J'H istoire". Ethno/ogie Française,
-4. cores de 1 848. a primeira sem acréscimos, a última com um emblema adequado, adapta­
PP· 3 . . ..
1 9. Agulhon. " Esquisse pour une Archeolog 1e . do do modelo básico foice-e-martelo com unista e soviético.
283
282

bismarckianos após 1866 e, finalmente, dos pan-germânicos e anti­


da monarquia, exército e aristocracia prussiana, utilizar as divisões semitas levou a sério três monumentos cuja inspiração era basicamen­
potenciais entre os vários tipos de oposição e evitar tanto quanto te não-oficial: o monumento a Armínio, o Querusco, na Floresta Teu­
possível que a democracia política influenciasse as decisões do gover­ toburga (em grande parte construído de 1838-46, e inaugurado em
no. Grupos obviamente irreconciliáveis que não podiam ser divididos 1 875); o monumento Niederwald, às margens do Reno, que comemora
- especialmente os católicos e principalmente os social-democratas a unificação da Alemanha em 1 8 7 1 ( 1 877-83); e o monumento come­
rós-lassallianos - causaram-lhe certo embaraço. Al iás. ele foi derrota­ morativo do centenário da batalha de Leipzig, iniciado em 1894 por
do nos confrontos diretos com ambos. Tem-se a impressão de que este "urna Associação Patriótica Alemã pela Construção de um Monu­
racionalista conservador d a velha guarda, apesar de mestre nas artes mento à Batalha dos Povos em Leipzig", e inaugurado em 1 913. Por
da manobra política, jamais conseguiu resolver a contento os proble­ outro lado, eles não parecem ter manifestado entusiasmo pela propos­
mas da democracia política, ao contrário da política dos ilustres. ta de transformar o monumento a Guilherme 1 na montanha
A invenção das tradições do Império Alemão associa-se, portan­ Kyffhãuser, no local onde, segundo as lendas, o Imperador Frederico
to, antes de mais nada, à era de Guilherme II. Seus objetivos eram pri­ Barba Roxa reapareceria, num símbolo nacional ( 1 890-6), e como não
mordialmente duplos: estabelecer a continuidade entre o Primeiro e o houve nenhuma reação especial à construção do monumento a Gui­
Segundo Império Alemão, ou, de modo mais geral, estabelecer o novo lherme I e à Alemanha na confluência do Reno com o Moselle (o
Império como realização das aspirações nacionais seculares do povo "Deutsches Eck". ou Recanto Alemão), dirigidos contra as reivindica­
alemão; e enfatizar as experiências históricas específicas que ligavam a ções francesas à margem esquerda do Reno. 2 1
Prússia ao restante da Alemanha na construção do novo Império, em À parte tais variações, o volume d e construções e estátuas ergui­
187 1. Ambas as metas, por sua vez, exigiam a convergência da história das na Alemanha neste período foi considerável, enriquecendo os ar­
prussiana e alemã, coisa a que se dedicaram por algum tempo os histo­ quitetos e escultores adaptáveis e competentes o suficiente. 22 Entre os
riadores imperiais patriotas (especialmente Treitsche). A principal di­ que foram construídos ou planejados só na década de 1 890, podemos
ficuldade na maneira de atingir tais objetivos era, em primeiro lugar, mencionar o novo edifício do Reichstag ( 1 884-94), cuja fachada osten­
que a história do Santo Império Romano da nação alemã era difícil de ta elaboradas metáforas históricas, o monumento de Kyffhãuser já ci­
ser adaptada a qualquer molde nacionalista do século XIX, e, em se­ tado ( 1890-6), o monumento nacional a Guilherme 1 - nitidamente
gundo, que sua história não afirmava que o desenlace de 1 87 1 fosse considerado o pai oficial do país ( 1890-7), o monumento a Guilherme
inevitável, nem mesmo provável. Podia ser relacionada a um naciona­ 1 na Porta Westfálica ( 1892), o monumento a Guilherme I no Deuts­
lismo moderno apenas por meio de dois artifícios: pelo conceito de um ches Eck ( 1 894-7), 0 extraordinário V alhalla de príncipes Hohen­
inimigo secular nacional contra o qual o povo alemão havia definido zollern na "Avenida da Vitória" (Siegesallee) em Berlim (1 896- 1901 ),
sua identidade, lutando para obter a unidade como Estado; e pelo con­ uma variedade de estátuas de Guilherme I nas cidades alemãs (Dort­
ceito de conquista ou supremacia cultural, política e militar, pelo qual rn und 1894, Wiesbaden 1894, Prenzlau 1898, Hamburgo 1 903, Halle
a nação alemã, espalhada por grandes partes de outros países, princi­ 1 90 1) e, um pouco mais tarde, um verdadeiro dilúvio de monumentos
palmente na Europa central e oriental, podia reivindicar o direito de a Bismarck, que gozaram de apoio mais genuíno dos nacionalistas. 23 A
unir-se num Estado Maior alemão. O segundo conceito não era exata­ inauguração de um desses monumentos constituiu a primeira ocasião
mente salientado pelo império de Bismarck, especificamente "o Pe­
queno império", embora a própria Prússia, como subentendia seu no­
me, houvesse sido historicamente formada em grande parte pela ane­
21. Hans-Georg J ohn, Politik und Turnen: die deutsche Turnerschaft ais nationale Be­
xação de regiões bálticas e eslavônicas fora dos limites do Santo Impé- wegung im deutschen Kaiserreich von /871-/ 9/4 (Ahrensberg be1 H amburg, 1 976), PP- 4 1
rio Romano. e seg.
Os edifícios e monumentos eram a forma mais visível de estabele­ 22. "O destino quis q ue. contra sua natureza, ele se tornasse um monumenta l escultor,
cer uma nova interpretação da história alemã, ou antes uma fusão en­ que iria celebrar a idéia imperial de G ui lherme II em gigantescos monum �.ntos _de bro_n­
ze e pedra. numa linguagem metafórica, com_ ênfase ex�_gerada no patos . . U lnch Th1e­
tre a "tradição inventada" mais velha e romântica do nacionalismo me e Felix Becker. A llgemeines Lexikon der btldenden Kunstler von der Ant1ke bis zur Ge­
alemão pré-1848 e o novo regime: os símbolos mais potentes foram os gemrnrt ( Leipzig, 1 907-50). iii, p . 1 85. Consulte também as entradas gerais, sob os no­
que conseguiram a fusão. Assim, o movimento de massa dos ginastas me, Begas. Sch illinj!. Schmit1.
alemães, dos liberais e dos grande-alemães até a década de 1860, dos 23. John. op. cit . . Nipperdey. "Nationalid ee", pp. 577 e seg.
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284

em q ue se utilizaram temas históricos nos selos postais do Império idéia imperial (Kaiseridee) durante a guerra, sobre o caráter da di nas­
( 1 899). tia H ohenlüllern. e daí por diante.''
Este acúmulo de construções e estátuas traz d uas implicações. A Talvez se possa elucidar melhor o caráter de uma dessas cerimô­
primeira refere-se à escolha de um símbolo n acional. Havia doi � _dis­ nias com u ma descrição mais detalhada. Observados por pais e ami­
poníveis: uma "Germania" indefinida, porém adequadamente m1htar, gos, os meninos entravam n o pátio d a escola, marchando e cantando
que não desempenhava grande papel na escultura, embora figurasse " Wacht em Rhein" (a "canção nacional" mais diretamente identi ficá­
freq ílentemente nos selos desde o início, uma vez que nenhuma figura vel com a hostilidade em relação à França, embora, significativamente
din ástica poderia por enquanto simbolizar a Alemanha como um to­ não fosse o hino nacional prussiano nem alemão). 26 Formavam de
do; e a figura do "Deutsche M ichel", que realmente surge num papel frente para os representantes de cada turma, que traziam bandeiras en­
subordinado no monumento a Bismarck. Ele pertence às curiosas re­ feitadas com folhas de carvalho, compradas com dinheiro arrecadado
presentações da nação, não como um país ou estado, mas como "o po­ em cada turma. (0 carvalho tem ligações com o folclore, o nacionalis­
vo". que passou a animar a demótica linguagem política dos caricatu­ mo e os valores militares teuto-germân icos - ainda lembrados nas fo­
ristas do século X I X, e que visava (como John Buli e o Ianque de cava­ lhas de carvalho que assinalavam a mais alta classe de ornamento m ili­
nhaque - não como M arianne, sím bolo da República) expressar o ca­ tar antes de Hitler: um equivalente alemão adequado dos louros lati­
ráter nacional, segundo o ponto de vista dos próprios membros da na­ nos .) O líder apresentava as bandeiras ao diretor que, por sua vez, diri­
ção . Suas origens e primórdios são desconhecidos, embora, como o gia-se à assembléia e falava sobre os gloriosos dias do último impera­
hino nacional, tenham sido quase certamente encontrados pela primei­ dor Gui lherme I e pedia três fortes vivas pelo presente monarca e sua
ra veL na G rã- B reta nha do século X V I I I . '' Essencialmente, o " Deuts­ imperatriz. Depois, os meninos marchavam, seguindo as bandeiras.
che Michel" enfatizava tanto a inocência e a simplicidade tão pronta­ Seguia-se ainda outro discurso do diretor, antes que fosse plantado um
mente exploradas pelos forasteiros ardilosos, quanto a força física que "carvalho imperial" (Kaisereiche) ao som de um coral. O dia encerra­
podia util izar para frustrar seus truques e conquistas manhosas quan­ va-se com uma excursão à G runewald. Todos estes procedimentos
do afinal despertada. Ao que parece, " Michel" foi essencialmente um eram simplesmente preliminares à comemoração em si do Dia de Se­
sím holo a n tiestrangeiro. dan, dois dias depois, e a liás, a um ano letivo repleto de reuniões de ca­
A segunda implicação diz respeito à importância capital da unifi­ ráter ritual, tanto religiosas como cívicas. 2 ' No mesmo ano, um decre­
:.:ação alemã por Bismarck com a única experiência nacional histórica to imperial anunciaria a construção do Siegesal/ee, relacionada ao vi­
que os cidadãos do novo Império tinham em com um, considerando-se gésimo quinto an iversário da guerra franco-prussiana, interpretada
que todas as concepções anteriores da Alemanha e da unificação ale­ como a i nsurreição do povo alemão "como um só povo", embora "a­
mã eram , de uma forma ou de outra, "grande-alemãs" . No contexto tendendo ao cham ado de seus príncipes" para "repelir a agressão es­
desta experiência, a guerra franco-alemã era fundamental. A tradição trangeira e alcançar a unidade da pátria e a restauração do Reich com
"nacional" (breve) que a A lemanha possuía resumia-se em três nomes: vitórias gloriosas" (o grifo é meu}. 28 O Siegesal/ee, como já se disse, re-
Bismarck , G uil herme I e Sedan.
Isto exemplifica-se cla ramente nos cerim oniais e rituais inventa­
dos (também principal mente no rei r.ado de G uil herme I I ) . Assim, os
25. Hein, Stal lmann. Dos Prin=-Heinrichs-Grmnasium =u Schdneberg. líi90- / 945. Ge.1-
anais de um ginásio regist ram nada menos que dez cerimônias entre chich1e einer Schule ( Berlim. s. d .. 1 965 ).
agosto de 1 895 e m a rço de 1 896 para comem orar o vigési mo quinto 26. Na verdade, não havia nenhum hino nacional alemão oficial. Das três canções
an iversário da guerra franco-prussiana, incluindo amplas comemora­ concorrentes " Heil· Dir Im Siegerkranz" (com a melodia do hino inglês "Deus Salve o
ções das batal h as da g uerra. celebrações do aniversário do imperador, Rei'º). por estar intimamente associada ao imperador prussiano, era a que inspirava me­
a entrega oficial do ret rato de um príncipe imperial, ilumi nação espe­ nos fervor nacional. "A Vigília do Reno" e "Deutschland Über Alies" ficaram equipa­
radas até 1 9 14. mas gradativamente "Deutschland", mais adequada a uma política im­
cial e discursos sohre a guerra de 1 870- 1 , sobre o desenvolvimento da perial expansionista, suplantou a "Vigília", à qual se associavam apenas idéias anti­
francesas. Em 1 890, entre os ginastas alemães, "Deutschland" já se tornara duas vezes
mais popular que a "Vigília", embora o movimento tivesse um carinho especial por esta
última canção. que alegava ter sido útil para a popularização. John, op. cit., pp. 3 8-9.
24. J. Surel, " La premiere Image de John Buli, Bourgeois Radical, Anglais Loyaliste 27. Stallmann, op. cit., pp. 1 6- 1 9.
( 1 779- 1 8 1 5)", Le Mouvement Social, cvi (jan-mar. 1979), pp. 65-84; Herbert M. Ather­
28. R. E . Hardt, Dir Beine der Hohenzollern (Berlim Oriental, 1 968).
ton, Political Prints in the Age of Hogarth (Oxford, 1 974), pp. 97- 1 00.
287
286

claro quando Bismarck abandonou sua campanha contra eles, não


presentava exclusivamente os príncipes H ohenzollern desde a época causaram s érios problemas. No entanto, apenas os social-democratas,
dos M argraves de Brandenburgo. que avançavam aparentemente de forma inevitável rumo ao status de
Ê interessante traçar uma comparação entre as i novações france­ maioria no Império, constituía m uma força política que, de acordo
sas e a lemãs. Ambas põem ênfase nos atos de fundação do novo regi­ com o que ocorreu noutros países na época, teria levado o governo
� e - a R e� olução Fran.cesa, especia lmente em seu episódio menos pre­ alemão a uma a titude bem mais flexível.
ciso e. mais controvertido (a tomada da Bastilha), e a guerra franco­ Mesmo assim, numa nação que para sua autodefinição dependia
pruss1ana. A não ser por este ponto de referência histórico, a R epúbli­ tanto de seus inimigos, externos e internos, isso não foi de todo inespe­
ca Francesa absteve-se de fazer retrospectivas históricas de forma tão rado; 2• mais ainda porque, a elite militar, por definição anti­
not� vel quanto. os alemães as favoreceram. Uma vez que a R evolução democrática constituía um instrumento tão p oderoso para elevar a
havia estabelecido o fato, a natureza e as fronteiras da nação francesa classe média ao status de classe dominante. Ainda assim, a escolha dos
e de seu patriotismo, a R epública poderia limitar-se a lembrá-los a social-democratas e, menos formalmente, dos j udeus como i nimigos
seus cidadãos por meio de alguns símbolos ó bvios - Marianne, a trico­ internos tinha uma vantagem a mais, embora o nacionalismo do I mpé­
lor, a " M a rselhesa", e daí por diante - complementando-os com uma rio fosse incapaz de explorá-la a fundo. Oferecia um apelo demagógico
pequena exegese i de? ló�ica que falasse (aos cidadãos mais pobres) tanto contra o liberalis mo capita lista quanto contra o socialismo pro­
sobre as vantagens obvias, embora às vezes teóricas, da Liberdade, letári o, apelo esse capaz de mobilizar as grandes massas da classe mé­
I gualdade e Fraternidade. Como o "povo alemão" antes de 1 8 7 1 não dia baixa, artesãos e camponeses que se sentiam ameaçados por am­
ti. nha defi niçã? nem unidade política, e sua relação com o novo I mpé­ bos, sob a bandeira "da nação" .
rio (que excluia � rande parte do povo) era vaga, simbólica ou ideológi­ Paradoxalmente, a mais democrática e, tanto sob o aspecto terri ­
. . . torial quanto constitucional, uma das mais claramente definidas na­
ca, a 1de.nt1fi �açao te� e que ser mais complexa e - com exceção do pa­
.
pel da dm.ast1a, exercito e Estado dos H ohenzollern - menos definida. ções enfrentou um problema de i dentidade nacional sob certos aspec­
Dai_ a variedade de referências, indo desde a mitologia e folclore (car­ tos semelhante ao da Alemanha Imperial. O problema político bá sico
valhos � lemãe.s, o ! mperador Frederico Barba R oxa), passando p elos dos Estados U nidos da América, após o término da secessão, era assi­
. milar uma massa heterogênea - até o fim de nosso período, um influxo
estereot1pos s1 mp l! fi �ados das charges, a té a definição da nação em
termos de seus 1mm1 gos. Como muitos outros "povos" li berados a quase i mpraticável - de pessoas que eram a mericanas não por nasci­
"Alemanha" definia-se mais faci lmente por aquilo a que se opunha do mento, mas por imigração. Os americanos tinham de ser construídos.
que de outras formas. As tradições inventadas dos Estados U ni dos neste período eram antes
Talvez isso exp lique a lacuna mais óbvia nas " tradições i nventa­ de mais nada destinadas a atingir este obj etivo. Por um lado, os imi­
das" do I mpério Alemão: não ter conseguido conci liar os social­ grantes foram incentivados a aceitar rituais que comemoravam a his­
democratas. É verdade que Guilherme I I a pri ncípio gostava de apre­ tória da nação - a R evolução e seus fundadores (4 de j ulho) e a tradi­
sentar-se como "imperador social", rompendo nitidamente com a ção protestante anglo-saxônica ( Dia de Ação de Graças) - como eles
p � Iítica p �ssoal de Bismarck, que colocou o partido no ostracismo. de fato acei taram, uma vez que agora estes dias eram feriados e oca­
Ainda . ªs.s1m, comprov? u-s� que a tentação de apresentar o movimen­ siões de festejos públicos e particulares. 30 (Em compensação, a " na­
to socialista como antinacional ("vaterlandslose Gesellen") era forte ção''. absorveu os rituais coletivos dos i migrantes - Dia de São Patrí­
demais para ser vencida, e os socialistas foram excluídos do serviço cio, mais tarde Dia do Descobrimento da América - e i nseriu-os no
p � b lico ? e modo ainda mais sistemático (proibidos i nclusive, por uma contexto da vida americana, principalmente a través do poderoso me-
lei especial, de ocupar cargos uni versitários), do que haviam sido, por
exemplo, no Império dos H a bsburgos. Não há dúvida de que as duas
dores de cabeça políticas do Império haviam sido consi deravelmente
a� en� adas. A glória e o p oder militar, assim como a retórica da gran­ �9. H. - t:. Wch lcr. Das d,-ut.,che A:aisnreich 1 11 7 !-/ 91,'I (Gõttingen. 1 973 ). pp. 1 07- 1 O.
d1 os1dade a lemã desarmara m os "grande-alemães", ou pan-alemães, 30. A história destas festas ainda n ão foi escrita, mas parece óbvio que elas se torna­
a gora cada vez mais afastados de s uas origens liberais ou até democrá­ ram muito mais institucionalizad as numa escala nacional no último terço do século
_
ticas.
X I X . ( i . W. Douglas. A 111erica11 81111ü 11{ Dars ( N ova Iorque. 1 937); El ilabeth H ough
Agora, se quisessem atingir seus objetivos, teria de ser através do Sc,h ri,t. Red f_e11er Da r,. A 81111Á 11{ /lo/lidar Cu.1111111.1 ( Philadelphia. 1 940).
I mpério, ou então não poderiam fazer nada . Os católicos, como ficou
288 1 289

canismo de assimilação da política municipal e estadual.) Por outro la­ cerimonial. Essa inovação é até comentada no New English Dictiona­
do, o sistema educacional foi transformado num aparelho de socializa­ ry. ii O valor publicitário dos aniversários é nitidamente d_emonstrado
ção política através da veneração da bandeira americana que, da déca­ pelo fato de que eles freqüentemente ofereceram oportunidade para a
da de 1 880 em diante, tornou-se um ritual diário nas escolas rurais. 3 1 O primeira emissã� de �stampas hi �tóric� s ou s� m �lhant�s em se!os p_os­
conceito do americanismo com o opção - a decisão de aprender inglês, tais, a form a mais universal de s1m bohsmo p ublico, alem do dmhe1ro,
de candidatar-se à cidadania - e uma opção quanto a crenças, atos e como se vê no Quadro 1 .
m odalidades de comportamento específicas trazia implícita a idéia
corresron denle de "a nti am ericanismo". N os países que definiam a
nacionalidade sob o ponto de vista existencial, podia haver ingleses ou Quadro 1. Primeira emissão de selos históricos antes de 1 914"
franceses an tiratrióticos, mas seu status de cidadãos ingleses ou fran­
ceses não podia ser posto em dúvida, a menos que eles também pudes­
sem ser definidos como forasteiros (metêques). Nos Estados U nidos, I' mm: i fll Primeiro J u bi leu ou
rorém. assim como na A leman ha, quem fosse "an tia mericano" ou Pa ís selo
selo oca si:i o esrecial
··vaterlands lose" teria seu status efet ivo como mem hro da nação rosto h istórico
em dúvida.
Como se poderia esperar, a classe operária era o conj unto maior e A lemanha I X72 1 899 I n auguração de monu mento
mais visível destes mem bros duvidosos da com unidade n acional; mais A u stria-H ungria I X '-0 1 908 60 anos de Francisco J osé
ainda porque nos Estados Un idos eles podiam realmente ser classifica­ lklgica I X-19 1 9 1 -1 G uerra (Crul V ermelha)
dos de imigrantes. A esmagadora maioria dos novos imigrantes eram Bu lgúia 1 879 1 90 1 A n i versário d a revolta
operários; por o utro lado, desde pelo menos a década de 1 860, a Esra n h a I X50 1 905 Tricentenário de
Don Quixote
m aioria dos trabalhadores em praticamente todas as grandes cidades I X6 1 Jogos olímricos
G récia 1 896
do país parecia ser estrangeira. Quanto ao conceito de "anti­ l t[i lia 1 862 1 9 1 0- 1 1 A n i versários
americanismo", cuj as origens parecem datar pelo menos da década de Países Ba i , os 1 852 1 906 T ricentenário de De
1 870, 3 2 não parece claro se foi uma reação dos nativos contra os foras­ R uvter
teiros, ou das classes médias protestantes anglo-saxônicas contra os Port ugal I X:i2 1 89-1 500,, a n i versário do
trabalhadores estrangeiros. Em todo caso, ele produziu um inimigo in­ I n fa n te Dom Henri q ue
terno contra o qual os bons americanos poderiam afirmar seu ameri­ R omên ia I X65 1 906 -10 anos de governo
canismo, assim como o faziam pela execução escrupulosa de todos os R ússia I X '-X 1 905- 1 9 1 3 Tricentená rio da
beneficência de guerra
rituais formais e informais, a afi rmação de todas as idéias convencio­
Sérvia I X66 1 904 Centenúrio da d i nastia
nal e institucionalmente estabelecidas como características dos bons Suh;a I X:iO 1 907
americanos.
Podemos analisar mais brevemente a invenção das tradições do
estado em outros países da época. As monarquias, por motivos ób­
vios, tenderam a relacioná-las à coroa, e durante este período inicia­ É quase certo que o jubileu d a Rainha Vitória, de 1 � 87, . repetido
ram-se os agora conhecidos exercícios de relações públicas centrados dez anos mais tarde devido a seu incrível sucesso, tenha msp1rado co-
nos rituais reais ou imperiais, bastante facilitados pela feliz descoberta
- ou talvez fosse melhor dizer invenção - do j ubileu ou do aniversário
33. O "jubileu". e,ceto em seu sentido bíblico. era antes apenas o qüinquagésimo ani­
versário de algum evento. Não há indícios anteriores ao século XIX de que os centená­
rios, um ou vários, e m uito menos os aniversários de menos de cinqüenta anos fossem
ocasião de comemoração pública. O .\'ew Eng/ish Dic/lonary comenta no verbete "1ubi
3 1 . R. Firth, Symbo/s. Pub/ic and Priva/e ( Londres. 1 973), pp. 358-9; W. E. Davies, Pa­ leu". "especialmente freqilentes nas duas últimas décadas do século XIX com referência
tri111i1111 1111 l'urod: Ih<' Stun i ,·1eru111 u11d /leredi1ur_1· Orga11isu1io11.1· in A merica
11{
aos dois 'jubi leus' da Rainha Vitória em 1 887 e 1 897. o jubileu suíço do Sindicato dos
1 783-/ 900 (Cambridge. Mass .. 1 955), pp. 2 1 8-22; Douglas, op. cit., pp. 326-7. Correios em 1 900 e outras comemorações", v. p. 6 1 5.
32. Agradeço ao Prof. Herbert G utman por esta observação. 34. Fonte: Stamps of 1he Wor/d 1 972: A Stanley Gibbons Catalogue (Londres, 1 972)
290

memor ações reais ou imperi ais subseqilentes na Grã-Bretanha e em


todos os outros pa íses. Até as dina stias mais tradicionalistas - os
í universal de sua raça, não constituem mera representação, mas um acon­
tecimento do maior interesse histórico.n
29 1

H absburgos em 1908, os Roma novs em 191 3 - descobriram os méritos A glória e a grandeza, a riqueza e o poder podi am ser simbolica mente
desta forma de propaganda . Era nova na medida em que se dirigia ao compartilhados com os pobres da realeza e seus rituais. Quanto m aior
público, ao contrário dos cerimoni ais cria dos pa ra simboliza r a rela­ o poder, menos atraente era, pode-se imaginar, a opção burguesa pela
ç�o entr� os mona rca s e a d! vinda de e sua posição no ápice de uma monarquia. Podemos lembrar que na Europ a a mona rqui a continuou
h1erarqu1 a de ma gnatas. Apos a Revolução Francesa , todo monarca sendo a forma universal de estado entre 1870 e 19 14, exceto na França
teve, mais cedo ou ma is t arde, de aprender a mudar do equiv alente na­ e na Suíça.
cional de "Rei da Fra nça " para "Rei dos franceses", ou sej a , a estabe­
lecer_ uma rela ção direta com a coletivida de de seus súditos, por mais II
�u.m� ldes que fossem. Embora também estivesse presente a opção es­
t1hst1ca por uma "monarquia burguesa " (estrea da por Luís Filipe), ela As tra dições políticas mais universais inventa das neste período
p_a rece ter sido adota da apenas pelos reis de pa íses humildes, que que­ foram obra dos Estados. Toda via, o surgimento de movimentos de
na m ma nter uma apa rência de modéstia - os Pa íses Baixos a Escandi­ massa que reivindica vam status independente ou até alterna tivo para
návi a - embora a té a lguns dos reis por direito divino - espe�i almente o os Esta dos acarretara m progressos semelhantes. Alguns destes movi­
Imp�r�dor Francisco José _ - yareçam ter representado o papel de fun­ mentos, principalmente o ca tolicismo político e vários tipos de nacio­
c1onano esforçado. que v1 v1a num conforto espartano. nalismo, estavam profundamente conscientes da importância do ri­
Tecnicamente, não havia grande diferença entre o uso político d a tual, cerimonial e mito, incluindo, via de regra, um pa ss ado mitológi­
monarqui a com o objetivo de fortalecer os governa ntes efetivos (como co. A importância das tra dições inventa das torna -se ainda mais notá­
nos impérios H absburgo, Roma nov, ma s ta mbém talvez indi ano), e de vel quando el as surgem entre movimentos racionalistas que eram, pelo
constituir a função simbólica das ca beças coroadas nos Estados p arla­ menos, rel a tiv amente avessos a elas, e que não tinham equipamento
mentares. Ambos ba sea vam-se n a explora ção da pessoa rea l com ou simbólico e ritua l pré-fabrica do. Portanto, a melhor m aneira de estu­
s�m ances_tr�is dinásticos, em oca siões rituais elabora das a qu� se asso­ dar seu aparecimento está num desses ca sos - o dos movimentos socia­
ciav am at1v1dades de propa ga nda e uma a mpla pa rticipa ção do povo, listas operários.
também através do público ca tivo disponível p ara doutrinação oficial O principal ritua l internacional destes movimentos, o ) 9 de Maio
no sistema educacional. Ambos fazia m do governante o foco da uni­ ( 1890) desenvolveu-se espontaneamente dentro de um período sur­
da de de seus povos ou seu povo, o representante simbólico da glória e preendentemente curto. No princípio, compunha -se de um a greve ge­
grandeza nacional, de todo o seu passado e continuida de num presente ral de um dia e uma manifestação reivindicando uma jorna da de tra­
em transforma ção. Toda vi a , as inovações foram t alvez mais delibera­ balho de oito horas, marca das numa d a ta já a ssoci a da durante alguns
da s _e sistemática s onde, como na Grã-Bretanha , a resta ura ção do ri­ anos com esta exigência nos Estados Unidos. A escolha desta d a ta foi
t �a hsmo real era c? nsidera da uma compens a ção necessária p ara os certamente ba stante pragmátic a n a Europa. Prov avelmente não tinha
riscos d a democracia popular. B a gehot já havia reconhecido o v alor imp_ort �ncia ritual n ?s Estados Unidos, onde o "Dia do Trabalho" já
da deferência política e da s p artes "nobres", ao contrário das "eficien­ havia sido esta belecido no final do verão. H a via sido proposto, com
te�", da constituição na época d a Segunda Lei Reformista. O velho certa razão, que essa da ta coincidisse com o "Di a d a Mudança ", a
D1sraeli, a o contrário do jovem, a prendeu a ter "reverência pelo trono data em que tra dicionalmente se encerra va m os contra tos de tra b alho
e seu ocupante" como "um poderoso instrumento de poder e influên­ em N ?v a Iorque e Pennsylva ni a. 36 Embora este, como períodos con­
cia ". Ao _ fi � do reina do de Vitória , já se compreendia bem a na tureza tratua is semelhantes em certas partes da agricultura tra dicional euro­
deste arttfic10. J. E. C. Bodley escreveu sobre a coroa ção de Eduardo péia, tivesse origina lmente feito parte do ciclo anual simbolicamente
VII:

O uso de um rito antigo por um povo apaixonado porém prático p ara as­ 35. J. E. C. Bodley, The Coronation of Edward VII: A Chapter of European and Impe­
sinalar as maravilhas modernas de seu império, o reconhecimento de uma rial History ( Londres. 1 903), pp. 1 53, 20 1 .
coroa hereditária por uma democracia livre, como símbolo do domínio 36. Maurice Dommanget, Histoire du Premier Mai (Paris, 1 953), pp. 36-7.
292 293
1

h_erda� o do a� o de trabalho pré-industrial, sua ligação com o proleta­ pular. ao ti roteio do J 9 de Mai o, em Fourmies. 189 1 )." Da mesma
r� ado i n d� s�nal e�a clara1!1 ente fortuita. A n ova I nternacional Operá­ fo rma. o 1 9 de Mai o desempenhou papel capital do desen volvi mento
na e Soc1 ahsta n ao considerou qualquer forma de manifestação em da nova icon ografia soci alista da década de 1890 em que. apesar da es­
particular. A i déi a de uma festa dos trabalhadores n ão só deixou de ser perada ên fase na luta, o toque de esperança, con fian ça e a aproxima­
menc� onad� n � _resolução origin al daquela corporação ( 1 889), como ção de um futuro melh or - muitas vezes expressas pelas metáforas do
tambem foi reJ e1 tada por razões i deológicas, p or vários militantes re­ cresci mento das plantas - prevaleceram.':
volucionários. . Aco.n tece que o 1 de Maio começou n uma época de extraordiná-
9

r_1 0 crescimento e en orme expansão dos movi mentos operários e socia­


Mesmo assi m. a escolha de uma data tão carregada de simbolis­ li stas de n umerosos países, e di fi ci lmen te poderia ter-se estabelecido
mo pelas an tigas tradições revelou-se importante, embora - como pen ­ n um clima político menos promi ssor. O antigo simbolismo da prima­
sa V an Gennep - na Fran ça o anti cleri calismo d o movimento operário
v.era. a el_e � � sociado, de man eira tão fortuita, foi perfeito para a oca­
tenha oposto resi stên ci a à inclusão de práticas folclóricas tradicionais siao,_ n o 1nic10 da decada de 1890.
em seu 1 9 de Mai o. " Desde o início, a ocasião atraiu e absorveu ele­
mentos si mbóli cos e rituais, principalmente a de celebração semi­ . Assim, a data tran sformou-se rapidamen te n uma festi vidade e
nto an u� I altamen te carregado. A repetição anual foi adotada para
religiosa e sobrenatural ("Maifeier"), um feriado e um di a santo. ao
atender � dema� d? d� s camada.s. Com ela, o conteúdo político origi­
mesmo tempo. (En gels, após referir-se a ele como uma "manifesta­ nal do di a - a ex1gen cia de uma J orn ada de trabalho de oito horas - fa­
ção" usa o termo " Feier", a partir de 1 893. 38 Adler reconheceu este talmente foi post� de lado, dando lugar a qualquer tipo de slogans que
elemento na Á ustria a partir de 1892, V an dervelde n a Bélgi ca desde atra1_ ssem os movi mentos operários nacionais n um dado ano ou com
1 893. ) An drea Costa explicou-o de forma sucin ta em relação à I tália mais fr.eqü ên cia. a uma afi rmação não específica da presen ça. da �lasse
( 1 893): "Os católicos têm a Páscoa; de hoj e em diante, os trabalhado­ op� rána e, em muitos países latinos, a comemoração dos " Mártires de
res terão sua própria Páscoa"; '• há referências também a W hi tsún, em­ Ch1 cag� " · O único elemento original man tido foi o in tern aci onalismo
bora mai s raras. Ain da existe um " sermão do J \l de Maio" curiosa­ d.a mani festação, de preferên cia si multâneo: n o caso extremo da Rús­
mente sin créti co, de Charleroi (Bélgica), 1898, encimado por duas epí ­ s1 ? � e 1 9 1 7 , os revoluci on ários chegaram a mudar seu própri o calen­
grafes: " Proletários de todas as terras, uni-vos" e "Amai-vos uns aos dano. para poder comemorar o Dia do Trabalho n a mesma data que o
outros".'º resto do mundo. E, de fato, o desfile público dos trabalhadores como
As ban dei ras vermelhas, únicos sí mbolos uni versais do movi men ­ uma classe con stituía o núcleo do ritual. O ) 9 de Mai o era con forme
to, fizeram-se presen tes desde o iníci o, assim como as flores, em vários al_gu� s comen tari stas, o único feriado, mesmo entre os aniv;rsários ra­
países: ·O cravo vermelho n a Á ustri a, a rosa vermelha (de papel) n a d1 ca1 s e revoluci oná�ios, a associar-se apenas à classe operária; embora
Alemanha, a silva e a papoula na Fran ça, e a flor do pi lriteiro, símbolo -:- Pelo men os na. G� a-Breta.nha - c? munidades específicas de operários
da renovação, cada vez mais difundida e, a partir de meados da década _
Ja mostrassem sinais de e�tarem crt ando ap resen tações coleti vas gerais
dt: 1 900, substi tuída pelo líri o-do-vale. sem associações políti cas. Pou­ como part� de seu movimento. (A primeira festa dos mineiros de
co se sabe acerca des.ta lin guagem das flores que, a j ulgar também pe­ Durham foi em 1871 / 3 Co�� todos os cerimoniai s do gên ero, era, ou
los poemas do J \l de Mai o da literatura socialista, associava-se espon ­ t� rn ou-se. uma ocas1 ao fami li ar basi. camen te bem-humorada. As ma­
tan eamen te à ocasião. Sem dúvida, isso acentuava a tônica do 1 \l de ni festaç� e� p olí� i cas clássi cas n ão eram n ecessari amente assi m. (Esta
Mai ? , tempo de ren ovação, crescimento, esperança e alegria (vide a caractenst1ca ain da pode ser observada em " tradições in ventadas"
menina com um ramo de pi lriteiro em flor, associada, n a memória po-

4 1 . M axime Leroy, La Coutúme Ouvriere (Paris, 1 9 1 3), i , p . 246.


37. A . Van Gennep. Manuel de Folk/ore Français /, iv, Les Céremonies Périodiques Cr­ 42. E. J . Hobsbawm, "Man and Woman i n Socialist lconography", History
_
c/ique.1 et Sai.rnniéres, 2: Cycle de Mai ( Paris. 1 949). p. 1 .7 1 9 . Workshop. vi, (outono 1978), pp. 1 2 1 -38; A . Rossel, Premier Mai. Quatre- Vingt-Dix ans
3 8 . Engels a Sorge, 1 7 d e maio d e 1 893, in Briefe und A uszüge aus Briefen a n F. A . Sor­ de Lurre, Populaire.1 dans /e Monde ( Paris. 1 977).
geu. A . (Stuttgart, 1 906). p. 397. Veja também. V ictor Adler, Auj.,ãt:e. Redem und Brieje 43. Ed ward Welbourne, The Miners' Unions of Northumberland and Durham
_
( V iena, 1 922). i , p. 69. (Cambridge, 1 923), p. 1 55; John Wilson, A History of the Durham Miners' Association
39. Dommanget, op. cit., p. 343. 1 870- 1 904 (Durham, 1 907), pp. 3 1 , 34, 59; W . A . M oyes, The Banner Book (Gateshead.
40. E. Vandervelde e J. Destrée, Le Socialisme en Belgique (Paris, 1 903), pp. 4 1 7- 1 8. 1974) . Estas manifestações anuais parecem ter-se originado em Yorkshire. em 1 866 .

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m ais recentes, como as festas nacionais do jornal comunista italiano separáveis, isso não quer dizer que as duas �oi�as foss� ll! idênticas e� ­
Unità.) Como todas elas, combinava a animação e entusiasmo público tre si. "O movimento" desenvolveu suas propnas trad1çoes, comparti­
e particular com a afirmação de lealdade ao movimento, elemento bá­ lhadas por líderes e militantes, mas não ne_cessariamente ?.ºr el�i�ore_s e
sico da consciência da classe operária: a retórica - naquela época, adeptos, e, por outro lado, a classe podena d_esenvolver tr�d1çoes in­
quanto mais longo o discurso, melhor, uma vez que um bom discurso ventadas" próprias, independentes dos movimentos orgamz�dos, ou
representava inspiração e divertimento - estandartes, emblemas, slo­ até mesmo suspeitos aos olhos dos ativistas. Vale a pena examinar bre­
gans, e daí por diante. De forma ainda mais decisiva, afirmou a pre­ vemente duas dessas tradições, ambas óbvios produtos de nossa era. A
sença da classe operária através da mais básica manifestação do poder primeira é o surgimento - especialmente na Grã-Bre:anha, mas talvez
proletário: a abstenção do trabalho. Pois, paradoxalmente, o sucesso também em outros países - de roupas como expressao de classe. A se-
do l 9 de Maio tendia a ser proporcional à sua distância das atividades gunda relaciona-se aos esportes de massa. . . .
Não é por acaso que a história em quadrinhos que satmz� leve­
cotidianas concretas do movimento. Era maior onde a aspiração so­
cialista prevalecia sobre o realismo político e a prudência sindical que, mente a cultura operária masculina tradicional da velha área !ndus­
trial da Grã-Bretanha (principalmente o Nordeste) tem como t1tulo_ e
como na Grã-Bretanha e Alemanha," recomendava que houvesse uma
símbolo o boné, que era praticamente o distint_i vo da class� rrolet_ár! ª
manifestação, todo primeiro domingo do mês, além do dia anual de _
quando não estava trabalhando: Andy Capp ( . Ze do Bone. ). Ex1st1 a
greve em J 9 de Maio. Victor Adler, percebendo a disposição dos traba­ .
também na França uma equivalência semelhante entre classe e bone,
lhadores austríacos. insistira na greve, ao contrário dos conselhos de
até certo ponto,'' assim como em �lg� � as p artes � a Alemanha. N a
K autsky,'' e assim o J 9 de M aio austríaco adquiriu uma força e uma _
Grã-Bretanha. ao menos, segundo ind1c1os 1conograficos, os proleta­
repercussão fora do comum. Portanto, como vimos, o )9 de M aio não rios não eram universalmente relacionados ao boné antes da decada de
foi formalmente inventado pelos líderes do movimento, mas aceito e 1890, mas no fim do período eduardino - como provam �otos ?e m �l­
institucionalizado por eles por iniciativa de seus seguidores. tidões saindo de jogos de futebol ou de �ssemblc�t �s - .tal 1den�1 � caçao
A força da nova tradição foi nitidamente avaliada por seus inimi­ era quase completa. A ascensão do bone proletano �·� da esta a e_sp�­
gos. Hitler, com seu agudo senso de simbolismo, houve por bem não ra de um cronista. Ele ou ela, supostamente, descobnra que sua histo­
só adotar a cor vermelha da bandeira dos trabalhadores, mas também ria tem relação com a do desenvolvimento dos �sp �r�es de massa, �� a
o 19 de M aio, convertendo-o num "dia oficial nacional do trabalho", vez que este tipo específico de chapé.u sur�e a pn�c1p10 como ace�sono
em 1933, e mais tarde atenuando suas relações com o proletariado.46 esportivo entre as classes alta e média. SeJam quais for�� su�s or� gens.
Pode-se acrescentar en passant que a data era agora um feriado geral ele tornou-se obviamente característico da classe operana, nao so por­
trabalhista na Comunidade Econômica Européia. que membros de outras classes, ou aquele� � ue aspiravam a esse status,
O J 9 de Maio e os rituais trabalhistas semelhantes situam-se entre .
não quisessem ser confundidos com �peranos, mas tambem porque _? S
as tradições "políticas" e "sociais", pertencendo ao grupo das primei­ trabalhadores braçais não estavam interessados em escolher (a nao
ras através de sua associação com as organizações de massas e parti­ ser, sem dúvida, para ocasiões de gran�e for� alidade) qualq �er out!a
dos que podiam - e de fato visavam - tornar-se regimes e estados; e ao forma de cobrir a cabeça, dentre as muitas ex1stent� s. A ma.mf�staçao
grupo das segundas porque manifestavam de forma autêntica a cons­ de Keir H ardie, que entrou no Parlam :nto de bon� ( 1892) , nd1ca que
_
ciência que os trabalhadores tinham de serem uma classe à parte, visto era reconhecido o elemento de afirmaçao de classe. . Ê razoavel supor
que esta consciência era inseparável das organizações corresponden­ que as massas sabiam disso. De alguma forma não � ui_to clara, ?s p ro­
tes. Em bora em muitos casos - tais como a Social- Democracia austría­ letários adquiriram o hábito de usar o boné bem raptdo, nas ultimas
ca, ou os mineiros britânicos - a classe e a organização tornaram-se in-

47. " L'ouvrier même ne porte pas ici la casquette et la biouse" (aqui os operários mes­
44. Carl Schorske. German Social Democracy. 1 905-1 7: The Development of the Great mo não usam a blusa e o boné) comentou desdenhoso J ules Yalles em Londres : em 1 872
Schism (Nova Iorque, ed. 1 965), pp. 9 1 -7 . - ao contrário dos parisienses, que tinham consciência de classe. Paul Martinez, The
. . French Communard Refugees in Britain. 1871-1880 (Univ. de Sussex, tese de doutorado,
45. M . Ermers, Victor A dler: A ufstieg u. Grosse einer sozialistischen Parte, (Viena e
Leipzig, 1 932), p. 1 95. 1 98 1 ), p. 34 1 .
. . . . •
46. Helmut H a rtwig, " Plaketten zum 1 . M ai 1 934-39", A esthetik und Kommunication, 48. O boné tipo caçador de veado usado pelo proprw Hard1e representa uma transiçao
vii, n. 26 ( 1 976), pp. 56-9. para aquele do tipo "Zé do Boné", que afinal se umversahzou.

1

296 297

décadas do século XIX e na primeira década do século XX, como par­ base comum para conversa entre praticamente qualquer par de operá­
te da síndrome característica da "cultura operária" que se delineava rios do sexo mascnlino na Inglaterra ou Escócia, e alguns jogadores
então. artilheiros representavam um ponto de referência comum a todos.
A história equivalente do vestuário do proletariado em outros A natureza da cultura do futebol neste período - antes de haver
países ainda não foi escrita. Aqui podemos apenas observar que suas penetrado muito nas culturas urbanas e industriais de outros países 1 2 -
implicações políticas eram perfeitamente compreendidas, senão antes ainda não foi bem compreendida. Sua estrutura socioeconômica. po­
de 19 14, certamente entre as guerras, conforme testemunha a seguinte rém, é mais compreensível. A princípio desenvolvido como um esporte
lembrança do primeiro desfile Nacional-Socialista (oficial) do ) 9 de amador e modelador do caráter pelas classes médias da escola secun­
Maio, em Berlim, 1 933: dária particular, foi rapidamente ( 1885) proletarizado e portanto pro­
Os trabalhadores ... vestiam ternos batidos mas limpos, e usavam aque­ fissionalizado; o momento decisivo simbólico - reconhecido como um
les bonés de marinheiro que na época eram um sinal geral externo distin­ confronto de classes - foi a derrota dos Old Etonians pelo Bolton
tivo de sua classe. Os bonés estavam enfeitados com uma tira discreta, Olympic na final do campeonato de 1 883. Com a profissionalização, a
quase sempre de verniz preto, mas freqiientemente substituída por uma maior parte das figuras filantrópicas e moralizadoras da elite nacional
tira de couro com fivelas. Os social-democratas e os comunistas usavam afastou-se, deixando a administração dos clubes nas mãos de negocian­
este tipo de tira nos bonés, os nacional-socialistas usavam outro, dividido tes e outros dignitários locais, que sustentaram uma curiosa caricatura
no meio. Esta pequena diferença repentinamente saltou aos olhos. O sim­ das relações entre classes do capitalismo industrial, como empregado­
ples fato de que mais trabalhadores do que nunca usavam a tira dividida res de uma força de trabalho predominantemente operária, atraída
rios bonés trazia a n otícia fatal de que uma batalha estava perdida."
para a indústria pelos altos salários, pela oportunidade de ganhos ex­
A associação política entre operário e boné na França entre as guerras tras antes da aposentadoria (partidas beneficentes), mas, acima de tu­
(la sa/opette) também é fato comprovado, mas falta pesquisa sobre sua do, pela oportunidade de adquirir prestígio. A estrutura do profissio­
história antes de 19 14. nalismo do futebol britânico era bastante diferente da do profissiona­
A adoção dos esportes, principalmente o futebol, como culto pro­ lismo nos esportes em que participavam a aristocracia e a classe média
letário de massa é igualmente confusa, porém sem dúvida igualmente (críquete) ou que estas controlavam (corridas), ou da estrutura da in­
rápida.'º Neste caso, é mais fácil estabelecer uma cronologia. Entre dústria dos espetáculos populares, e da de outros meios pelos quais a
meados da década de 1870, no mínimo, e meados ou fins da década de classe operária fugia de sua sina, que também forneceram o modelo
1880, o futebol adquiriu todas as características institucionais e rituais para alguns esportes dos pobres (luta livre).' 3
com as quais estamos familiarizados: o profissionalismo, a Confedera­ É al tamente provável que os jogadores de futebol tendessem a ser
ção, a Taça, que leva anualmente em peregrinação os fiéis à capital recrutados entre os operários habilidosos, 14 ao que parece ao contrário
para fazerem manifestações proletárias triunfantes, o público nos está­ do boxe, esporte que buscava seus praticantes em ambientes onde a ca­
dios todos os sábados para a partida do costume, os "torcedores" e pacidade de dominar o próprio corpo era útil para a sobrevivência,
sua cultura, a rivalidade ritual, normalmente entre facções de uma ci­ como nas grandes favelas urbanas, ou fazia parte de uma cultura ocu­
dade ou conurbação industrial (Manchester City e United, Notts pacional de masculinidade, como nas minas. Embora o caráter urbano
County e Forest, Liverpool e Everton). Além disso, ao contrário de e proletário das multidões aficionadas do futebol seja patente,5 1 não se
outros esportes com bases proletárias locais ou regionais - tais como o
rugby union, no Sul de Gales/ 1 o críquete, em certas áreas do norte da
Inglaterra - o futebol funcionava numa escala local e nacional ao mes­ 52. Ele foi muitas vezes introduzido no estrangeiro por expatriados britânicos e por ti­
mo tempo, de forma que o tópico das partidas do dia forneceria uma mes de fábricas locais de administração britânica mas, embora tenha nitidamente sido.
até certo ponto. naturalizado em 1 9 1 4 em algumas capitais e distritos industriais do con­
tinente. mal havia se tornado um esporte de massas.
53. W. F. Mandle, "The Professional Cricketer in England in the Nineteenth Centu­
49 . Stephan Hermlin, A bend/icht (Leipzig, 1 979), p. 92. ry", Labour History (Periódico da Sociedade Australiana para o Estudo da História do
50. Tony Mason, Association Football and English Society, /863-/ 9/5 (Brighton, Operariado), xxiii (nov. 1 972), pp. 1 - 1 6; Wray Vampley, The TurJ- A Social and Econo­
1 980). mic History of Horse Racing (Londres, 1 976).
5 1 . Cf. David B. Smith e Gareth W. Williams, Fie/d of Praise: Officia/ History of the 54. Mason, op. cit., pp. 90-3.
We/sh Rugh_r Union. /flf/ / - / 9!1/ (Cardiff, 1 98 1 ). 55. Mason, op. cit., pp. 1 53-6.

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conhece exatamente sua composição precisa por idade ou origem so­ campeonatos profissionais começaram na França em 1 88 1, na Suíça e
cial; nem a evolução da "cultura do torcedor" e suas práticas; nem até Itália a partir de 1892 e na Bélgica a partir de 1894. Sem dúvida, o
que ponto o típico fã de futebol (ao contrário do típico adepto das cor­ forte interesse comercial dos fabricantes e outros interesses publicitá­
ridas) era ou tinha sido um jogador amador ativo. Por outro lado, rios aceleraram a popularidade desse esporte. 19
sabe-se que, embora, como indicam as últimas palavras apócrifas de
um militante operário, para muitos membros do proletariado a devo­ III
ção a Jesus Cristo, Keir Hardie e ao Huddersfield United era indivisí­ Estabelecer a presença de classe de uma elite nacional da classe
vel, o movimento organizado mostrou uma falta geral de interesse por média e a caracterização de uma classe média muito maior era um
isso, assim como por vários outros aspectos não políticos da consciên­ problema muito mais difícil, mas um tanto urgente numa época em
cia de classe operária. Aliás, ao contrário da social-democracia centro­ que as profissões reivindicavam status de classe média, ou o número
européia, o movimento operário britânico não desenvolveu suas pró­ daqueles que aspiravam a elas aumentava com relativa rapidez nos paí­
prias organizações esportivas, com a possível exceção de clubes de ci­ ses em fase de industrialização. O critério para pertencer a estas classes
clismo na década de 1890, em que eram óbvios os vínculos com o pen­ não podia ser tão simples quanto o nascimento, a propriedade, o tra­
samento progressista. i• balho braçal ou o recebimento de salários, e embora sem dúvida fosse
É muito pouco o que sabemos sobre o esporte de massas na Grã­ uma condição necessária ter um mínimo socialmente reconhecido de
Bretanha, mas sabemos ainda menos sobre o continente. Ao que pare­ bens imóveis e renda, isso ainda não era o bastante. Além do mais,
ce, o esporte, importado da Grã-Bretanha, permaneceu monopolizado normalmente tal classe incluía pessoas (ou antes, famílias) com uma
pela classe média por muito mais tempo que em seu país de origem, ampla esfera de fortuna e influência, cada camada inclinada a despre­
mas sob outros aspectos a atração que o futebol exercia sobre a classe zar seus inferiores. A fluidez das fronteiras tornava difícil distinguir
operária, a substituição do futebol da classe média (amador) pelo ple­ com clareza os critérios de distinção social. Uma vez que as classes mé­
beu (profissional) e a ascensão da identificação das massas urbanas dias eram por excelência o lugar onde se dava a mobilidade social e o
com os clubes, desenvolveram-se de modos semelhantes.,. A principal aperfeiçoamento individual, dificilmente se poderia impedir a admis­
exceção, à parte as competições mais parecidas com espetáculos teatrais são a elas. Era um problema que abrangia dois aspectos. Em primeiro
do que atividades desportivas, tais como a luta romana (supostamente lugar, como definir e separar a elite nacional autêntica de uma classe
devida ao movimento dos ginastas alemães, mas com forte adesão po­ média alta (haute bourgeoisie, Grossbürgertum), uma vez que os crité­
pular), era o ciclismo. No continente, este era, provavelmente, o único rios relativamente fixos pelos quais se podia determinar a qualidade
esporte de massas moderno - conforme atesta a construção de "veló­ suhjetiva de membro da classe nas comunidades locais estáveis haviam
dromos" nas grandes cidades - quatro só em Berlim antes de 1 9 13 - e sido desgastados, e a descendência, parentesco, os casam_entos. as redes
a instituição do Tour de France em 1903. Tudo indica que pelo menos locais de negócios, a sociabilidade particular e a política já não repre­
na Alemanha os maiores ciclistas profissionais eram operários. 18 Os sentavam critérios seguros. O segundo aspecto era como estabelecer
uma identidade e uma presença para a massa relativamente ampla da­
56. Isso faz lembrar os Clubes de Ciclismo Clarion, mas também a fundação do Clube queles que não pertenciam a esta elite, nem às "massas" - nem mesmo
Ciclístico Oadby, por um caçador clandestino, ativista operário e membro da junta pa­ àquela categoria nitidamente inferior da pequena burguesia das "clas­
roquial, radical e local. A natureza deste esporte - na Grã-Bretanha tipicamente pratica­ ses médias baixas", que pelo menos um observador britânico classifi­
do por amadores jovens - era bastante diversa da do esporte proletário de massa. David cou ao lado dos trabalhadores braçais, colocando-as no mundo "das
Prynn. "'The Clarion Clubs. Rambling and Holiday Associations in Britain since the
l 890s"'. Jouma/ o/ Contemporarr lliHorr. xi. n. 2 e 3 Uul. 1 976). pp. 65-77: anôn., "The escolas primárias municipais".°º Poderia esta identidade ou presença
Clarion Fellowship". Marx Memorial Lihrarr Quarter/y Bulletin, lxxxvii Uan-mar 1 976), ser definida ou definir-se de outra forma além de "consiste basicamen­
pp. 6-9: James Hawker. A Victorian Poacher. org. por G. Christian ( Londres. 1 96 1 ). pp. te de famílias num processo de ascensão social", como sustentava um
25-6. observador francês do contexto britânico, ou como o que restou de­
57. Do clube do Ruhr. Schalke 04. eram mineiros. operários ou artesãos 35 entre 44 pois que as massas mais facilmente reconhecíveis e os "dez mais" fo-
membros identificáveis em 1 904- 1 3, 73 entre 88 no período de 1 9 1 4-24, e 9 1 entre 1 22 de
1 924-34. Siegfried Gerhmann. " Fussball in einer I ndustrieregion": J . Reulecke e W. We­
ber ( org.). Familie. Fahri/.. . Feierahend ( Wuppertal, 1 978), pp. 377-98. 59. Dino Spatazza M oncada, Storia dei Ciclismo dai Primi Passi ad Oggi (Parma, s.d.).
58. Annemarie Lange, Das Wilhelminische Berlin ( Berlim Oriental, 1 967), cap. 1 3, 60. W . R . Lawson, John Bu/1 and his Schools: A Book for Parents, Ratepayers and Men
princ. pp. 56 1 -2. of Business ( Edimburgo e Londres. 1 908), p. 39.
300 301

raro subtraídos da população, como comentou um observador i n­ exclusiva entre a classe média branca. A F. R . A . não tinha mais de
glês?• ' Para complicar a questão, surgiu um terceiro problema: o apa­ 30.000 membros em 1900, principalmente nas fortalezas do dinheiro
recimento da mulher de classe média, cada vez mais emancipada no "velho" - C onnecticut, Nova Iorque, Pensilvânia - embora também
palco público por direito próprio. Enquanto o número de meninos nos entre os prósperos milionários de Chicago. 65 Organizações como esta
lycées franceses entre 1897 e 1907 a umentou apenas discretamente, o diferiam das tentativas muito mais restritas de estabelecer um grupo
número de meninas elevou-se em 170 por cento. de famílias como elite semi-aristocrática (através da inclusão num R e­
Para a s classes médias altas ou "haute bourgeoisie" , os critérios gistro Social, ou coisa parecida), visto q ue estabeleciam ligações de
e instituições q ue a ntes servia m para separar uma classe aristocráti­ âmbito nacional. Certamente, era mais provável que a F.R.A., menos
ca domi nante forneceram obviamente um modelo: tinham simples­ exclusiva, descobrisse membros apropriados em cidades como O maha
mente de ser ampliados e a daptados. O i deal era uma fusão das duas do q ue um Registro Social muito elitista. A história da pesquisa da
classes, na qual os novos componentes se tornassem irreconhecíveis, classe média sobre sua genealogia ainda está para ser escrita, mas a
emhora isso prova velmente não fosse possível nem mesmo na Grã­ concentração americana sistemática nesta busca era provavelmente,
Bretanha, onde era total mente admissível que uma fa mília de banquei­ nesta época, relativamente excepcional.
ros de Nottingham lograsse, através de várias gerações, unir-se à reale­ Muito mais importante era a educação escolar, suplementada, em
za por meio de casa mentos. O que tornava possíveis as tentativas de certos aspectos, pelos esportes amadores, intimamente ligados a ela
assimilação (na medida em que fossem institucionalmente permitidas) nos paí ses anglo-saxônicos. A escolari zação fornecia não só um meio
era aq uele elemento de estabilida de q ue, conforme um observador conveniente de comparação entre indivíduos e famílias sem relações
francês. distinguia as gerações da a lta burguesia que já haviam chega­ pessoais iniciais e, numa escala nacional, uma forma de estabelecer pa­
do ao topo e se esta belecido como alpinistas de primeira geração."' A rá­ drões comuns de comportamento e valores, mas também um conjunto
pida aq uisição de fortuna s fabulosas poderia também capacitar os plu­ de redes interligadas entre os produtos de instituições comparáveis e,
tocrata s de primeira geração a pagarem para entrar num contexto ari s­ indiretamente. através da institucional ização do "aluno antigo" . "ex­
tocrático que nos países burgueses baseava-se não só no título e na aluno" ou "Alte Herren" , uma forte teia de estabilidade e continuida­
descendência como também em di nheiro suficiente para levar-se um de entre as gerações. Além disso, permitia, dentro de certos limites, a
est ilo d e vida adequa da m ente dissoluto. 6 3 Na Grã-Bretanha eduardi­ possibilidade de expansão para uma eli te da classe m édia alta, sociali­
na, os plutocr� ta � a provei tavam avidamente essas oportunidades. 6

zada de al guma maneira devidamente aceitável . A liás, a educação no
Contudo, a ass1 m1 lação i ndividual só se aplicava a uma reduzida mi­ século XI X tornou-se o mais conveniente e universal critério para de­
noria. terminar a estratificação social, embora não se possa definir com pre­
O critério aristocrático básico de descendência poderia, entretan­ cisão quando isto aconteceu. A simples educação primária fatalmente
to, ser adaptado para definir uma nova e ampla eli te da alta classe mé­ classificava uma pessoa como membro das classes inferiores. O crité­
dia. A ssim, surgi u uma verdadeira paixão pela genealogia nos Estados rio mínimo para que alguém pudesse ter status de classe média reco­
U nidos na década de 1890. Foi antes de mais nada um interesse femi­ nhecido era educação secundária a partir de, aproximadamente, 14 a
nino: as "Filhas da R evolução Americana" ( 1890) subsistiram e fl ores­ 16 anos. A educação superior, exceto· por certas formas de instrução
ceram, enquanto os " Filhos da R evolução A mericana", organização estritamente vocacional, era sem dúvi da um passaporte para a alta
um pouco mais antiga, extinguiu-se. Embora o objetivo manifesto fos­ classe média e outras elites. Segue-se, a propósito, que a tradicional
se distinguir os americanos nativos, brancos. protestantes. da massa de prática burguesa-empresarial de iniciar os filhos no serviço da empresa
nov,.o s imigrantes, seu obj etivo real era estabelecer uma camada alta em meados da adolescência, ou de abster-se da educação universitária,
começou a perder terreno. Foi certamente o q ue ocorreu na Alema­
nha, onde, em 186 7, 13 de 14 cida des industriais da R enânia recusa­
ram -se a contribuir para a comemoração do qüinq uagésimo aniversá­
6 1 . Paul Descamps, L º Education dans /es Écoles A nglaises, Biblioteca da Ciência Social
( Pa ris. j a n . 1 9 1 1 ). p. 25: Lawson . "f'· cit . • p. 24.
rio da U niversidade de B onn, alegando qué nem os industriais, nem
62. Descamps, op. cit., pp. 1 1 , 67.
63. lbid., p. 1 1 .
64. Jamie Camplin, The Rise of the Plutocrats: Wealth and Power in Edwardian En­
gland (Londres, 1 978). ó). Da, ics. l'atrioti,111 ,111 /'arade . rr. 4 7 . 77
.
1
1
- 1
302 303

seu s filhos a freqüentava m:• Lá pela década de 1890, a percentagem Áustria, França e Noruega, e passou do dobro na Bélgica e Dinamar­
de estu dantes de Bonn oriu ndos de famílias da Besitzbürgertum tinha ca ."º A expansão nos Estados U nidos foi ainda mais espetacular. Em
aumentado de cerca de vinte e três para pouco menos de quarenta, en­ 19 13 já havia 38,6 estudantes por cada 10.000 habitantes do país, com­
quanto aqueles oriundos da burguesia profi ssional tradicional (Bil­ parado ao número continental normal de 9- 1 1 ,5 (e menos de 8 na Grã­
dungsbürgertum) haviam baixado de 42 para 3 1 % ."' Foi provavelmente Bretanha e Itália).-, Era preciso definir a elite efetiva no seio do con­
o que ocorreu na Grã- Bretanha, embora observadores franceses da dé­ ju nto cada vez maior daqueles que possuíam o passaporte educacional
cada de 1890 ainda registrassem, surpresos, que os ingleses raramente exigido.
saíam da escola depois dos 16 anos."8 Decerto, este não era mais o caso Num sentido lato, esta elite foi agredida pela institu cionalização.
da "alta classe média", apesar de não terem sido feitas muitas pesqui­ O Pub/ic Schoo/s Yearbook, pu blicado a partir de 1889, estabelecia que
sas sistemáticas sobre o assunto. as escolas que faziam parte da chamada Conferência dos Diretores
A educação secundária fornecia um critério amplo de ingresso na constituía m uma comunidade nacional ou até internacional reconhecí­
classe média, porém amplo demais para definir ou selecionar as elites vel, senão de iguais, pelo menos de comparáveis; e a obra de Baird,
em rápida evolução, e que, embora numericamente bem pequenas, e A 111erica11 Colleie Fraternities. com sete edições entre 1 879 e 19 14, fez o
sendo chamadas de classe domina nte ou "establishment", eram quem mesmo com os "Grêmios das Letras Gregas", associações cujos
dirigia as questões nacionais dos países. M esmo na Grã-Bretanha, membros constituíam a elite entre a massa de estudantes universitários
onde não existia sistema secu ndário nacional antes do século XX, foi americanos. A inda assim, a te ndência dos aspirantes a imitar as insti­
preciso formar uma su bclasse especial de "escolas secundárias particu­ tuições dos bem- sucedidos fez com que se tornasse necessário traçar
lares" de ntro da educação secu ndária . Fora m defi nidas ofi cialmente um limi te entre as "classes médias altas" au tênticas, ou elites e os
pela primeira vez na década de 1860, e cresceram tanto pela ampliação iguais menos iguais do que o resta nte ."� A razão disso não era ap�nas o
da s nove escolas então reconhecidas ( de 2.74 1 meninos em 1 860 para esnobismo. U ma elite nacional em desenvolvimento também exigia a
4.553 em 1906) e também pelo acréscimo de mais escolas consideradas construção de redes de interação realmente eficazes.
de elite . A ntes de 1868, no máximo duas dúzias de escolas eram sérias É aí, pode-se dizer, que está a importância da instituição dos "a­
candidatas a tal status, mas em 1902, de a cordo com os cálculos de lu nos antigos", "ex-alu nos" ou "Alte- Herren", que ora evoluía, e sem
H oney, já havia u ma "lista curta" mínima de até 64 escolas e uma "lis­ a qual não poderiam existir como tais as "redes de alunos antigos" .
ta longa" máxima de a té 104 escolas, com uma margem de aproxima­ Na Grã-Bretanha surgiram "jantares de antigos" , ao que parece na
damente 60 em posição mais duvidosa."9 A s u niversidades expandi­ década de 1870, "associaçõe s de a ntigos" apareceram mais ou menos
ram-se neste período pelo aumento de matrículas, ao invés de por no­ na mesma época - multiplicaram-se especialmente na década de 1890,
vas fundações, mas este crescimento foi expressivo o suficiente para logo seguidos da invenção de u ma "gravata da ex-escola" adequada .")
produzir sérias preocupações com a superprodução de graduados, A liás, só no fim do século é que parece ter-se tornado comum que os
pelo menos na A lemanha. Entre meados da década de 1 870 e da de pais enviassem os filhos à sua ex-escola: apenas 5% dos alu nos de A r­
1 880, o número de estuda ntes chegou quase a dobrar na Alemanha, nold matricularam seus filhos em Rugby." Nos Estados U nidos, a

66. Cnado in J . Hobsbawm, The Age o/Capital (Publ. no Brasil com o título A Era do 70. J. Conrad, "Die Frequenzverhãltnisse der Universitãten der hauptsãchlichsten
Capital) (Londres. 1 977). p. 59: F. Zunkel. " l ndustriebürgertum in Westdeutschland", K ulturlãnder auf dem E uropãischen Kontinent", Jahrbücher f N. ÔK u. Statistik, 3• sé­
in H . U . Wehler (org.). Moderne Deutsche So=ialgeschichte (Colônia e Berlim. 1 966). p. rie, i ( 1 89 1 ). pp. 376-94.
323. 7 1 . Joseph Ben-David, "Professions in the Class System of Present-Day Societies",
67. K . H . Jarausch, "The Social Transformation of the University: Thc Case of Prus­ Current Sociologr . \ÍÍ. n. 3 ( 1 963-4). pp. 63-4.
sia 1 865- 1 9 1 5" , Jouma/ of Social History, ,üi, n . 4 ( 1 979), p. 625. 72. "Em conseqüência do esnobismo generalizado dos i ngleses, principalmente dos
68. M ax Leclerc, L 'Education des Classes Moyennes et Dirigeantes en A ngleterrt (Pa­ que ascendiam na escala social, a educação das classes médias tende a seguir o modelo
ris, 1 894), pp. 1 33, 144; P. Bureau, "Mon Séjour dans une Pctitc Villc d'Anglctcrre", La da educação da classe média alta, embora com menor dispêndio de tempo e dinheiro."
Science Sacia/e (suivant la Méthode de F. Le Play), 59 ano, ix ( 1 890), p. 70. Cf. também Descamps, L 'Education dans /es Écoles A nglaises, p. 67. O fenômeno estava longe de ser
Patrick Joyce, Work, Society and Politics: The Culture of the Factory in Later Victorian puramente britânico.
Eng/and (Brighton, 1 980), pp. 29-34. 73. The 81111/.. o/ Puh/ic Sch110/. O/d Bo r.<. l'ni,•ersitr. .\'an·. A rmr. A ir Force and Cluh
69. J. R. de S. H oney, Tom Brown's Universe: The Deve/opment of the Victorian Public Ties. intr. por James Laver (Londres, Í 968), p. 3 1 ; veja também Honey, op. cit.
Schoo/ ( Londres, 1 977), p. 273. 74. H oney. op. cit .. p. 1 53.
304 305

criação de "associações de ex-alunos" começou também na década de


1 870. "formando drculos de homens cultos que de outra maneira não Quadro 2. Ex-Alunos da Delta Kapa Ípsilon ( Dartmouthf'
se conheceriam".·. e assim um pouco mais tarde. construíram-se elabo­
radas sedes de grêmios nas faculdades, financiadas pelos ex-alunos,
que dessa forma demonstravam não só sua fortuna e seus vínculos en­ Década
tre gerações . mas também - como em processos semelhantes nos 1 850 1 890
" K ? rps" estuda � tis da Alemanha" - sua influência sobre a geração
mais Jovem . Assim, o grêmio Beta Teta Pi em 1 889 tinha 1 6 associa­
ções de ex-alunos, mas em 1 9 1 3 já havia 1 1 O; apenas uma sede em 1 889 Funcioná rios públ icos e d o j udiciário 21 21
(e.m bora outras sedes já estivessem em construção), mas 47 em 1 9 1 3. O M édicos 3 17
F1 Delta Teta ganhou a primeira associação de ex-alunos em 1 876 Pastores 6 10
12
mas já em 1 91 3 o número havia aumentado para cerca de uma cente� Professores 8
27
8
na. Empresários
Jornalistas e intelectuais 1 10
Nos Estados Un idos e na Alemanha o papel destas redes entre ge­ Outros J 5
rações era desempenhado conscientemente, talvez porque em ambos Total 50 102
os países ficasse muito nítida sua função primeira . de fornecer homens
para o serviço público . Os "Alte Herren" ativos nos " Kõsener
Korps", as associações de elite deste tipo na década de 1 870, incluíam ta, um James N . H i ll e um Weverhaeuser, deve ter sido uma incrível
1 .8 ministros '. 83 ? .funcion � r.ios y úblicos, 648 funcionários do judiciá­ máfia dos negócios. Na Grà- B�etanha, pode-se dizer, as redes infor­
rio, .127 .f� nc1onanos mun ic1pa1s, 1 30 militares, 65 1 médicos ( 10% dos mais, criadas pela escola e pela faculdade, fortalecidas pela continui­
quais m1htares), 435 professores secundários e universitários e 33 1 ad­ dade familiar, pela sociabilidade empresarial e pelos clubes, eram mais
vogados. Estes números ultrapassavam de longe os 257 "proprietá­ eficazes que as associações formais. Pode-se verificar até que ponto ia
rios" , os 24 1 banqueiros, diretores de empresas e comerciantes os 76 esta eficácia examinando-se os registros do posto de decifração de có­
profissionais técnicos e os 27 cientistas, além dos 37 "artistas e' edito­ digos em Bletchley e o Comando de Operações Especiais na II Guerra
res" .'' As primeiras agremiações universitárias norte-americanas tam­ M undial .· As associações formais, a menos que estivessem delibera­
0

bém davam ênfa �e a estes ex-alunos (O Beta Teta Pi, em 1 889, orgu­ damente restritas a uma elite - como os " Kõsener Korps" alemães,
l hava-se de possuir nove senadores, 40 deputados, seis embaixadores e que compreendiam 8 ° 0 dos estudantes alemães em 1 887, 5�-0 em 1 9 1 480
50 governadores), mas, como se pode ver no Quadro 2, o desenvolvi­ - podem ter servido em larga escala para fornecer critérios gerais de
mento econômico e político colocou-os numa posição cada vez mais "reconhecimento" social. Pertencer a qualquer Grêmio das Letras
m odesta, de forma q ue na década de 1 900 passaram a dar maior desta­ Gregas - mesmo os profissionais, que se multiplicaram desde o fim da
que a seus capitalistas. A propósito, uma corporação como Delta década de 1 890" - e possuir qualquer gravata com listas diagonais,
K apa lpsilon, que em 1 9 1 3 incluía um Cabot Lodge e um Theodore com alguma com bi nação de cores, já era suficiente.
Roose �elt. assim como 1 8 emine � tes banqueiros nova-iorquinos, entre Entretanto, o artifício informal básico para a estratificação de um
os quais J. P. M organ e um Wh1tney, nove poderosos empresários de sistema teoricamente a berto e em expansão era a escolha individual de
Boston, três sustentáculos da Standard Oi! e, até na distante M i nneso- parceiros sociais aceitáveis, o que era conseguido acima de tudo atra-

75. W. Raimond Baird, A merican College Fraternities: A Descriptive A nalysis of the 78. Delta Kappa Epsilon Catalog ( 1 9 10).
Society System of the Col/eges of the US with a Detailed A ccount of each Fraternity, 4. ed. 79. R. Lewin, Ultra Goes to War (Londres, ed. 1980), pp. 55-6.
(Nova Iorque, 1 890), pp. 20- 1 . 80. Grieswelle, op. cit., pp. 349-53.
76. Bernard Oudin, les Corporations Allemandes d'ttudiants (Paris, 1 962), p . 19; De­ 8 1 . Baird faz uma relação de 41 grêmios em 1 9 1 4 q ue não tinham sido mencionados
tlef Gries\\elle. "Die Soziologie der Kõsener Korps 1 870- 1 9 1 4", in Student und Hochs­ em 1 890. Vinte e oito deles surgiram após 1 900, dez foram fundados antes de 1 890, dos
"hule im / Y Johrhundert: Studien und Materialies (Gõltingen. 1 975. quais 28 eram formados exclusivamente por advogados, médicos, engenheiros, dentistas
77. Grieswelle, op. cit . , p. 357. e outras especializações profissionais.
-
306 3 07

vés da velha adesão aristocrática ao esporte. transformado num siste­ Quadro 3 . Torneios regulares entre Oxford e Cambridge
ma de disputas formais contra antagonistas considerados à altura em por data de criação 81
termos sociais. Ê importante notar que o melhor critério descoberto
para a "comunidade da escola particular" é o estudo de quais escolas
estavam prontas para jogarem umas contra as outras,' 2 e que nos Esta­ N� de
Data disputas Esporte
dos Unidos as universidades de elite (a "lvy League") definiam-se,
pelo menos no nordeste dominante, pela seleção de faculdades que
preferiam disputar campeonatos de futebol, naquele país um esporte Antes de 1 860 4 Críquete, remo. péla.
basicamente universitário quanto à origem. Nem é por acaso que os tênis
torneios esportivos formais entre Oxford e Cambridge tenham evoluí­ 1 860-70 4 Atletismo, tiro, bilhar.
do apenas depois de 1 870, e principalmente entre 1890 e 1 9 1 4 (veja corrida de obstáculos
Quadro 3). Na Alemanha, este critério social foi especificamente reco­ 1 870-80 4 Golfe, futebol, rugby, pólo
1 880-90 2 "Cross country", tênis
nhecido: 1 890- 1 900 Luta livre, hóquei, patinação.
5
A característica típica da juventude universitária como grupo social espe­ natação, pólo aquático
cial (Stand), q ue a distingue do restante da sociedade, é a idéia de "Satis­ 1 900- 1 3 8 Ginástica, hóquei no gelo.
fak tionsfãhigkeit" (aceitabilidade como desafiante nos duelos), ou seja, a lacrosse. corrida de motos.
reivindicação de um padrão de honra específico e socialmente definido cabo-de-guerra. esgri ma. corri-
(Standesehre).• ' da de automóveis. subida de morro
em motocicleta (alguns destes
mais tarde dei,aram de ser disputad,is )
Em outros lugares, de facto, a segregação ocultava-se por trás de
um sistema nominalmente aberto.
Voltamos então a uma das novas práticas sociais mais importan­
tes do nosso tempo: o esporte. A história social dos esportes das clas­ cionalização constituiu um mecanismo de reunião de pessoas de status
ses altas e médias ainda está para ser escrita," mas podem-se deduzir social equivalente, embora sem vínculos orgânicos sociais ou econômi­
três coisas. Em primeiro lugar, que as últimas três décadas do século cos, e talvez, acima de tudo, de atribuição de um novo papel às mulhe­
XIX assinalam uma transformação decisiva na difusão de velhos es­ res burguesas.
portes, na invenção de novos e na institucionalização da maioria, em O esporte que se tornaria o mais característico das classes médias
escala nacional e até internacional. Em segundo lugar, tal instituciona­ poderá exemplificar os três elementos. O tênis foi inventado na Grã­
lização constituiu uma vitrina de exposição para o esporte, que se Bretanha, em 1 873, adquirindo seu clássico torneio nacional no mes­
pode comparar (sem muito rigor, naturalmente) à moda dos edifícios mo país (Wimbledon) em 1 877, quatro anos antes do campeonato
públicos e estátuas na política, e também um mecanismo para ampliar americano e 14 antes do francês. J á em 1 900 alcançara sua dimensão
as atividades até então confinadas à aristocracia e à burguesia endi­ organizada internacional (Taça Davis). Como o golfe, outro esporte
nheirada capaz de assimilar o estilo de vida aristocrático, de modo a que apresentaria um atrativo fora do comum para as classes médias.
abranger uma fatia cada vez maior das "classes médias". O fato de que não se baseava no esforço de uma equipe, e seus clubes - que adminis­
ela, no continente, restringiu-se a uma elite consideravelmente reduzi­ travam às vezes propriedades imensas, com altos custos de manuten­
da antes de 1 9 14, não nos interessa aqui. Em terceiro lugar, a institu- ção - não se uniam em "Confederações", funcionando como centros
sociais potenciais ou reais: no caso do golfe, principalmente para os
homens (por fim, na maior parte para empresários), no caso do tênis,
para os jovens de classe média de ambos os sexos. Além do mais, é cu­
82. H oney, op. cit. , pp. 253 e seg. rioso que as disputas entre mulheres tenham surgido logo após a cria-
83. Günter Botzert. So:ialer Wandel der studentischen Korporationen ( Münster, 1 97 1 ).
p. 123.
84. Para obter algumas informações pertinentes, veja Carl Diem, Weltgeschichte des
Sport., um/ der /<'ih<'wr:i<'h1111g (Stuttgart. 1 %0); KI. C . Wildt. Daten :ur Sportge.schich­
te. Teil 2. Europa von 1 750 bis 1894 (Schorndorf bei Stuttgart, 1972). 85. Calculado a partir de Companhia Real de Seguros. Record of Sports, 9. ed. ( 19 14).
308 3 09

ção dos campeonatos para homens: as simples fem ininas passaram a �raçar li_nhas _d� classe que is<:>lassem as massas, principalmente pela
integrar Wimbledon sete anos após a introdução das masculinas, e en­ enfase s1stemat1ca no amadonsmo como critério do esporte de classe
traram nos campeonatos americano e francês sete anos após sua insti­ média e alta (como por exemplo no tênis, no futebol da Rugby Union,
tuição."· Quase pela primeira vez, portanto, o esporte proporcionou às ao contrário da associação de futebol e da confederação de rugby, e
m ulheres respeitáveis das classes altas e médias um papel público reco­ nos J ogos Olím picos). Todavia, representava também uma tentativa
nhecido de seres humanos individuais, à parte de sua função como es­ de desenvolver ao mesmo tempo um novo e específico padrão burguês
posas. filhas, mães, companheiras ou outros apêndices dos homens de lazer e um estilo de vida - bissexual e suburbano ou ex-urbano•º - e
d�ntro e fora da família. O �apel do esporte na análise da emancipa­ um critério ílexível e ampliável de admissão num grupo.
çao das mulheres requer maior atenção do que a recebida até agora, Tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a in­
assim como a relação entre ele e as viagens e feriados da classe média." venção de tradições sociais e políticas de uma outra forma: constituin­
Quase não é preciso documentar o fato de que a institucionaliza­ do um meio de identi ficação nacional e com unidade artificial. I sso em
ção do esporte aconteceu nas últimas décadas do século. Mesmo na si não era novo, pois os exercícios físicos de massa havia tempo que
Grã-Bretanha. ela praticamente só se estabeleceu na década de 1 870 - era m asslicia dlls alls movimentos nacionalista-liberais ( 0 T1111er ale­
a taça da Associação de F utebol data de 1 87 1 , o campeonato de mão. o Soko/s tcheco) ou à identificação nacional (tiro de riíle na Suí­
críq uete entre os condados de 1 873 - e daí em diante inventaram-se di­ ça). Aliás. a resistência do movimento ginasta alemão, com sentido na­
\ C r , 1 1 , rw\ os esportes ( tênis. tênis com peteca. hóq uei. pólo a q uútico e
cionalista em geral e antibritânico em particular, freou nitidamente a
daí por diante). ou de fato introduzidos em escala nacional (golfe), ou evolução do esporte de massa na Alemanha!' A ascensão do esporte
s1stem at1Lados ( boxe). N o restante da Europa o esporte em sua forma proporcionou novas expressões de nacionalismo através da escolha ou
moderna era importado conscientemente, em termos de valores sociais invenção de esportes nacionalmente específicos - o rugby galês dife­
e estilos de vida, da Grã-Bretanha, em grande parte por aqueles que rente do futebol inglês, e o futebol gaélico na I rlanda ( 1 884), que ad­
eram iníluenciados pelo sistema educacional da classe alta inglesa, tais quiriram apoio genuíno das massas aproximadamente 20 anos de­
co � o o Bar � o de Coubertin, admirador do Dr. Arnold." O importan­ pois. ' Contudo, em bora o vínculo específico de exercícios físicos com
te e a velocidade com que eram feitas estas transferências, embora a o nacionalismo como parte dos movimentos nacionalistas tenha conti­
inst itucionalização como tal tenha levado mais tempo para acontecer. nuado a ser importante - como em Bengala9 1 - era no momento certa­
O esporte da classe média com binava, assim , dois elementos da mente menos importante do que dois outros fenômenos.
invenção da tradição: o político e o social. Por um lado, representava O primeiro era a demonstração concreta dos laços que uniam to­
uma tentativa consciente, embora nem sempre oficial, de formar uma dos os habitantes do Estado nacional, independente de diferenças lo­
elite dom inante baseada no modelo britânico que suplementasse, com­ cai � e regionais. como na cultura futebolística puramente inglesa ou,
_
pet i sse com l>s m oddos continentais aristocrático-m ilitares mais ve­ mais literalmente, em instituições desportivas como o Tour de France
lhos. ou procurasse suplantá-los, e assim, dependendo da situação, se dos ciclistas ( 1 903). seguido do Giro d' I talia ( 1 909). Estes fenômenos
associasse a elementos conservadores e liberais nas classes médias e al­ foram mais importantes na medida em que evoluíram espontaneamen­
tas locais.''' Por outro, representava uma tentativa mais espontânea de te ou através de mecanismos comerciai_s. O segundo fenômeno consis­
tiu nos cam peonatos esportivos internacionais que logo complementa­
ram os nacionais. e alcançaram sua expressão típica quando da restau-
se,. lc11, 1 , /,,f'cwdw o/ .\j•nn, ( S . H runs" i,k � '.\/ova lor4ue. ed. 1 969): Lawn Tennis (tê-
11 1 , )
8 7 . Sobre u m reconhecimento precoce do tênis clube como "parte da revolta dos filhos 90_. Deve-se diferenciar este dos padrões de esportes e passatempos ao ar livre da velha
da classe média", veja T. H. S. Escott, Social Transformations ofthe Victorian Age (Lon­ anstocracia e classe militar, mesmo que estas às vezes aderissem aos novos esportes ou
dres, 1 897). pp. 1 95-6, 444. Veja também R. C. K. Ensor, England /870-19/4 (Oxford, novas formas de esporte.
1 936 ). pp. 1 65-6. 9 1 . John. op. cit .. pp. I 07 e seg.
88. Pierra de Coubertin, L 'École en A ng/eterre ( Paris, 1 888); Diem, op. cil. , pp. 1 . 1 30 c 92. W. F. M a ndle, "Sport as Politics. The Gaelic Athletic Association 1 884- 1 9 1 6", in
seg. R. Cashman e M . McKernan (org.), Sport in History (Queensland U . P ., Sta . Luc1· a
89. M arcel Spivak. " Le Développement de l'Education Physique et du Sport Français 1 979). '
de _ 1 852 à 1 9 1 4". Re1ue d'Histoire Moderne et Contemporaine, xxiv ( 1 977), pp. 28-48; D. 93. John Rosselli, "The Self-Image of Effeteness: Physical Education and Nationalism
LeJeune. " Histoire Sociale et A lpinisme en France, XIX-XX s.", ibid., xxv ( 1 978), pp.
m 1 9th Century Bengal", Pa.H and Present, 86 ( 1 980), pp. 1 2 1 -48.
1 1 1 -28.
310 1 311

ração das Olimpíadas em 1 896. Embora estejamos hoj e bastante cien­ símbolos externos, entre os quais os do nacionalismo (patriotismo,
tes da escala de identifi cação nacional indireta que estes campeonatos imperia lismo) eram talvez os mai s importantes. Foi, seg� ndo pens"',
proporcionam, é importante lembrar que a ntes de 1 9 14 eles mal ti­ como a classe essencialmente patriótica que a nova ou �sptrante classe
nha m começado a adquirir seu caráter moderno. A p ri ncípio, os cam­ média a chou mais fácil reconhecer-se coletivamente. . . .
peonatos "internacionais" serviam para subli nhar a unidade das na­ Tudo isto é especulação. Este capítulo não nos permite tr mai s
ções ou impérios da mesma forma que os campeonatos inter- regionais. longe. Por ora só nos é possível ressaltar qu� existem pelo menos al­
.
As partidas internacionais britânicas - como semp re as pionei ras - guns indícios prima facie em favor destas htpoteses, con� t� tados na
_
lançavam os países das Ilhas Bri tânicas uns contra os outros ( no fute­ atração exercida pelo patriotismo sobre a camada burocrat� ca �e bri­
bol: os países da Grã-Breta nha na d écada de 1 870, tendo a Irlanda tâni cos na Guerra da África do S ul e a função das orgamzaçoes _de
95

sid o incluída na d écada de 80), ou contra as várias partes do Impéri o massa direitistas nacionalistas - compostas na sua esmagadora mai o­
Britânico (os Fest .\fatches começaram em 1877). A primeira pa rtida in­ ria pela classe média, não pela elite - � a Al_emanha da � écada de 1 880
terna cional d e futebol fora das Ilhas foi entre a Áustria e a H ungria em dia nte, a a tração exercida pelo nactonahsmo de S chonerer sobre os
( 1 902). O esporte interna ciona l, com poucas exceções, permaneceu do­ estudantes uni versitários (fala ntes do alemão) - uma camada de classe
minado pelo amadorismo - ou seja, pelo esporte de classe média - até média profundamente marcada pelo nacionali � mo � m vários . paí� es
no futebol, ond e a associação internaci onal ( FIFA) era formada por europeus!• O nacionalismo que ganhou terreno 1dent1fi cav�-se 1rres1 s­
países ond e ha via ainda pouco apoio para o jogo entre as massas em tivelmente com a direita política. Na década de 1890, os gmastas ale­
1904 ( F rança. Bélgica . Dinamarca, Países Bai xos, Espa nha , Suécia, mães. antes liheral-nacionalista� ahandonaram as velhas cores na ci o­
Suí ça) . As olimpíadas continuaram sendo a maior arena interna cional nais em co njunto para adotar a no va bandei ra preta, vermelha e bra n­
para este esporte. Por co nseguinte, a identificação naciona l através do ca: em 1 898 ap ena s 1 00 dos 6 . 50 1 Turnervereine ainda conservavam a
esporte contra os estra ngeiros neste período pa rece ter sido sobretudo velha bandeira negra, vermelha e dourada. 9'
um fenômeno d e classe méd ia. Certo é que o nacionalismo tornou-se um subst1tu!� para a coe­
são social através de uma igreja nacional, de uma famtha real ou de
Talvez até isso seja i mporta nte. Conforme observamos, as classes
outras tradi ções coesivas, ou a uto-representações coletivas, uma nova
médias no sentido lato consideravam a identificação grupal subj etiva
algo extremamente difícil, uma vez que não eram, d e fato, uma mino­ reli gião secular, e que a classe que mais exigia tal modalidad� de coe­
são era a classe média em expa nsão, ou antes, a ampla massa m terme­
ria sufi cientemente p equena para estabelecer a espécie de associação
diária que tão notavelmente carecia de_ o� tras f�� mas d � c� esão. A esta
prática de um clube de dimensões nacionais que reunisse, por exem­
altura, novamente, a invenção de trad1çoes poht1cas c01nc1de com a de
plo, a rriaioria daqueles que houvessem passado por Oxford e sociais.
Cambridge, não sufi cientemente unidos por um destino e uma solida­
ri edade potencial comum, como os operários.9• As classes médias pre­
feriram tomar a atitude negativa de se segregarem d e seus i nferiores IV
através de mecani smos como a i nsistência rígida no amadorismo no D escrever o aglomerado de " tradições inventadas" nos países oci­
esporte, assi m como a través do estilo de vida e valores de " respeitabili­ dentais entre 1870 e 1 9 14 é relativamente fácil. J á se d eram exemplos
dade" , sem contar a segregação residencial. Porém, p ode- se dizer que suficientes de tais inova ções neste capítulo, desde as gravatas das e_x­
foi p osi tiva a atitude d e estabelecer um sentido de união a través de escolas e os jubileus reais, o Dia da Bastilha e as Filhas da R evoluçao

94. Seria interessante, em países cuj a linguagem permita tal diferenciação, pesquisar as
mudanças no emprego social mútuo da segunda pessoa do singular, símbolo de fraterni­ 95. Richard Price. A n Imperial War and the British Working-Class: Working-C/ass A l­
dade, bem como de intimidade pessoal. Entre as classes mais altas, é conhecido o seu titudes and Reactions to the Boer War. 1899-/902 ( Londres, ! 972), PP· 72-3.
uso entre colegas de escola (e, como é o caso dos politécnicos franceses, entre ex­ 96. Deve-se observar que na Alemanha o Korps �studanu � de ehte opunha-se ao
estudantes), oficiais e outros. Os operários, mesmo quando não se conheciam, usavam princípio do anti-semitismo . ao contrário das assoc1açoes que nao eram de eh te, embora
habitualmente a segunda pessoa do singular. Leo Uhen, Gruppe11bewusstsei11 u,u/ i11for­ na verdade O aplicasse (Grieswelle, op. c�t., p. 353). � a mesma forma, o ant1-sem1:1smo
melle Gruppe11bildu11g bei deutsche11 A rbeitern im JahrhU11dert der /11dustria/isierung (Ber­ foi imposto ao movimento ginasta alemao por pre�sao das bases, contra a opos1çao da
lim, 1 964), pp. 1 06-7. Os movimentos operários institucionalizaram o emprego deste velha liderança nacional-liberal burguesa do movimento (John, op. clt. , P· 65).
pronome entre seus membros ("Caro Senhor e Companheiro"). 97. John. op. cit .• p. 37.
312
l 313

gorias j á foi menci ona da, e não há dúvi da de que atingi u seu clímax
Americana, o I Q de Maio, a Internaci onal e os J ogos O límpi cos à Final
entre 1 870 e 19 14. Ainda a;;sim. esta li nguagem do discurso simbólico
da T aça e o Tour de France como ritos populares, e a i nstituição da
veneração à bandeira nos Estados U nidos. Os progressos políticos e as estava fada da ao declí ni o súbi to entre as guerras. Essa moda extraor­
transformações soci ais que podem ter originado este aglomerado tam­ dinária provaria ser quase tão efêmera quanto o surto contemporâneo
bém j á foram analisados, embora as últimas de forma mais breve e es­ de outro ti po de si mbolismo, o "art nouveau" . Nem a adapta ção ma­
peculativa que as pri meiras. Infelizmente, é mais fácil documentar os ciça da alegoria e si mbolismo tradi cional com objetivos públicos, nem
a improvi sa ção de uma nova e indefini da mas de qualquer forma cur­
motivos e intenções daqueles que estão numa posição de instituir for­
vilí nea linguagem da mulher e das plantas, o simbolismo, princi pal­
malmente tai s inovações, e até suas conseqüênci as, do que as novas
práti cas que surgem espontaneamente das bases. O s histori adores bri­ mente por razões particulares ou semi particulares parece ter-se ade­
quado mai s do que temporariamente a quaisquer reivindi cações so­
tânicos do futuro, ansi osos por investi gar questões semelha ntes em re­
ciais que o tenham origin�•d0. Só podemos especular acerca dos moti ­
lação a o fim do século XX, terão muito menos difi culdade em ana li­
vos que leva ram a ,,,:;u, mas este não é o local apropriado.
sar. por exemplo, as conseqü ências ceri moni ais do assassinato do Por outro lado, pode-se dizer que outra linguagem do discurso
C onde Mountbatten do que práticas novas como a aqui sição ( muitas
si mbóli co público, a teatral, revelou-se mai s duradoura. As cerimônias
vezes a altos preços) de placas de automóvel exclusivas. De qualquer
e desfil es públicos, bem como as reuniões de massa ritualizadas, não
forma. o objeti vo deste livro é incenti var o estudo de uma mat éria rela ­
eram novas. Mesmo a ssim, foi notável sua utilização com objetivos
tivamente nova. e qualquer intenção de a bordá-la de forma nã o expe­
ofi ciais e não-ofi ciais e seculares (manifestações de massa, parti das de
rimen ta l seria tota lmente inadequa da.
futebol , e coi sas do gênero). Além do mai s, a estruturação de espaços
Contudo, restam três aspectos da "invenção da tradi ção" neste ri tuais formai s, j á consci entemente permi tida pelo naci onalismo ale­
perí odo que merecem uma breve análise, para concluir. mão, parece ter si do sistemati camente levada a efeito, mesmo nos paí ­
O primeiro é a distinção entre as novas práti cas do período que se ses que até então pouca atenção lhe havi am prestado - isso nos lembra
revelaram duradouras, e aquelas que não. Fazendo-se uma retrospec­ a Londres eduardina - e não podemos deixar de examinar a i nvenção,
tiva, aparentemente o período que abrange a I Guerra Mundial consti­ neste período, de construções para espetáculos prati camente novas e
tui um di vi sor entre linguagens do discurso si mbólico. Como nos uni­ rituais de massa de fato, tais como estádios de futebol, abertos ou co­
formes mil i tares, o que poderi a denominar-se modalidade líri ca deu bertos:• O compareci mento de membros da família real à final da
luga r :. modali dade prosaica . Os uniformes inventados para os movi ­ Taça de W embley (a parti r de 19 14) e o uso de edifícios como o Sports­
mentos de massa de entreguerra s. que mal podiam justi fi car-se como palast, em Berlim, ou o V élodrome d' H i ver, em Paris, pelos movimen­
camuflagem operacional, absti nham-se das cores fortes, preferindo tos de massa de entreguerras de seus respectivos países prenunci ou o
tons foscos, como o preto e marrom dos fascistas e nacional­ desenvolvi mento de espaços formais para rituais públicos de massa ( a
soci ali stas." Não resta dúvida de que ainda se inventavam fantasias Praça V ermelha, a partir de 19 18), que seria sistemati camente fomen­
para os homens vestirem em ocasiões ri tuai s no período de 1870- 1914, tado pelos regimes fascistas. Pode-se observar en passant que de acor­
embora seja difíci l encontrar exemplos - a não ser, talvez, através da do com o esvazi amento da antiga linguagem do simbolismo público.
adoção de velhos estilos por novas i nstituições do mesmo tempo e, os novos cenários desse ritual público deviam frisar a si mplicidade e a
com sorte, mesmo status, tais como a beca e o capelo acadêmi cos para monumentali dade, ao i nvés da decoração alegórica da Ringstrasse de
novas escolas e graus. Os velhos costumes foram certamente conserva­ Viena ou do monumento a Vítor Emanuel em R oma, ambos do século
dos. Todavia, tem-se a nítida i mpressão de que, neste sentido, o perío­ XIX,"" tendênci a já prenunci ada em nosso período. 1 º 1
do vi veu do capital acumulado. Por outro lado, porém, desenvolveu-se
nessa época uma velha linguagem com entusi asmo peculiar. A mania
de erigir estátuas e edifícios públi cos simbólicos ou decorados com ale- 99. Cf. Wasmuth's Lexikon der Baukunst (Berlim, 1 9 3 2), iv: "Stadthalle"; W. Scharau­
W i ls. Ciehiiude um/ Geland für Grmnastik. Spie/ und Sport ( Berlim, 1 925): D. R. K n ight.
The Exhibitions: Great White City. Shepherds Bush (Londres, 1 978).
1 00. Carl Schorske, Fin de Siec/e Vienna: Po/itics and Culture (Nova Iorque, 1 980),
98. Os mais vivos uniformes desse tipo parecem ter sido as camisas azuis com gravatas
cap. 2.
vermelhas dos movimentos socialistas jovens. Jamais soube de nenhum caso de camisas 1 0 1 . Cf. Alastair Service, Edwardian A rchitecture: A Handbook to Building Design in
vermelhas. cor de laranja ou amarelas, nem de trajes cerimoniais realmente multicolori­ Britain /890-1 914 (Londres, 1 977).
dos.
3 14

No palco da vida pública, a ênfase, portanto, passou do planeja­


l As práticas que assim realizavam um trajeto s? cial de cima p �ra
baixo - da aristocracia para a burguesia, da burguesia para o operaria­
3 15

mento de cenários elaborados e variados, que podiam ser "lidos" do - provavelmente predominaram neste período, não apenas no es­
como uma história em quadrinhos ou tapeçaria, à movimentação dos porte, mas nos costumes e cu_ltura material em geral, d� da a força do
próprios atores - ou, como nos desfiles militares ou reais, uma minoria esnobismo entre as classes médias e dos valores do aprimoramento e
ritual representando para proveito de uma massa que assistia, ou, con­ progresso pessoal entre as elites da classe operária : 1 º 1 E_las se tra� sfor­
forme prenunciavam os movimentos políticos de massa da época (tais maram, mas suas origens históricas continuaram v1síve1s. O movimen­
como as manifestações do 1 9 de Maio) e as grandes ocas�es esportivas to oposto não esteve ausente, mas neste período foi menos vis ! vel. As
de massa, uma mescla de atores e público. Estas eram as tendências minorias (aristocratas, intelectuais, divergentes) talvez admirassem
que se destinavam a um maior desenvolvimento após 1 91 4. Sem mais certas subculturas e atividades plebéias urbanas - tais como a arte do
especular sobre esta forma de ritualização pública, parece razoável re­ music-ha/1 - mas a principal assimilação de práticas culturais ocorreu
lacioná-la à decadência da velha tradição e à democratização da políti- entre as classes baixas, ou mais tarde, entre um público de massa. Al­
ca. guns sinais dessa assimilação já eram visíveis desde 1914, transmitidos
O segundo aspecto da tradição inventada neste período refere-se principalmente pelos divertimentos e, talvez, so�retudo pela dança
às práticas ligadas a classes ou camadas sociais específicas, separadas social, que pode relacionar-se à crescente emancipação da mulher: a
dos membros de coletividades maiores interclasseS; tais como os esta­ moda do ragtime e do tango. Entretanto, qualquer levantamento das
dos ou "nações". Embora algumas dessas práticas fossem formalmen­ invenções culturais deste período não pode deixar de observar o desen­
te criadas para serem distintivos de consciência de classe - as práticas volvimento de subculturas e práticas autóctones de classe baixa que
do l 9 de Maio entre os trabalhadores, a restauração ou invenção do nada deviam às classes altas - eram quase certamente derivadas da ur­
costume camponês "tradicional" entre os agricultores (na verdade, os banização e da migração de massas. A cultura do tango em Buenos Ai­
mais abastados) - um número muito maior de tradições não eram tão res é um exemplo. 'º' É discutível até que ponto elas podem entrar
identificadas na teoria, sendo, aliás, adaptações, especializações ou numa análise da invenção das tradições.
apropriações de práticas originalmente iniciadas pelas camadas sociais O aspecto final é a relação entre "invenção" e "geração espontâ­
mais altas. O esporte é um exemplo óbvio. Partindo de cima, a linha de nea", planejamento e surgimento. É algo que sempre intriga os obser­
classe foi, assim, traçada de três formas: pela manutenção do controle vadores das sociedades de massa modernas. As "tradições inventadas"
aristocrático ou de classe média sobre as instituições que geriam o es­ têm funções políticas e sociais importantes, e não poderiam ter nasci­
porte, pela exclusividade social ou, de forma mais comum, pelo alto do, nem se firmado se não as pudessem adquirir. Porém, até que ponto
custo ou falta do equipamento fundamental necessário (quadras de tê­ elas serão manipuláveis? É evidente a intenção de usá-las, aliás, fre­
nis ou charnecas para a prática do tiro ao galo silvestre), mas acima de qüentemente, de inventá-las para a manipulação; ambos os tipos de
tudo pçla rígida separação entre o amadorismo, o critério do esporte tradição inventada aparecem na política, o primeiro principalmente
entre as camadas superiores, e o profissionalismo, seu corolário lógico (nas sociedades capitalistas) nos negócios. Neste sentido, os teóricos
entre as classes baixas urbanas e operárias. 1 º2 O esporte específico de da conspiração que se opõem a essa manipulação têm a seu favor não
classe entre plebeus raramente evoluiu conscientemente como tal. só a plausibilidade quanto os indícios. Contudo, também parece claro
Onde isso ocorreu, foi geralmente pela apropriação de práticas das que os exemplos mais bem-sucedidos de manipulação �ão aquele� que
classes altas, expulsão dos antigos praticantes e desenvolvimento de exploram práticas claramente oriundas de uma necess1da� e sentida -
um conjunto específico de procedimentos sobre uma nova base social não necessariamente compreendida de todo - por determinados gru­
(a cultura futebolística). pos. A política do nacionalismo alemão no Segundo Império não pode
ser entendida apenas de cima para baixo. Já se disse que até certo pon-
102. O profissionalismo subentende um certo nível de especialização ocupaci onal e um
_
"mercado" mínimo disponível, se existente entre a população rural estabclectd� . Lá ? S
1 03 . Observou-se uma correspondência weberiana entre esporte e prote,tantisnlll na
esportistas profissionais ou eram criados ou abastecedores das classes altas (i_óque1s,
Alemanha até 1 960. G. Lüschen. "The l nterdependence of Sport and Cu lture··. in M .
guias de alpinismo), ou compleme ntos de competições amadoras d � classe alta üogado­
_ Hart ( org. ). Sp ort i11 th<' Soâondtural Procn , ( Duhuque. 1 97 h l .
res profissionais de críquete). A diferença entre a ca�a da classe baixa e da a_lta não era
_ 1 04. Cf. Dias Matamoro, La Ciudad dei Tango ! Tango Histórico r So, iedad 1 ( Buenos
econômica, embora alguns caçadores clandestmos vivessem dela; era uma diferença le­
Aires. 1 96}).
gal. Exprimia-se através das Leis de Caça.
3 16

to o nacionalismo escapou ao controle daqueles que o consideraram


vantajoso para ser manipulado - pelo menos nesta época. 'º' Os gostos
e as modas, especialmente na área do divertimento popular, podem ser
" criados" apenas d entro de limites bastante estreitos; têm de ser des­
cob ertos antes de serem explorados e mod elados . Cumpre ao historia­
dor descobri-los num sentido retrospectivo - também tentando enten­
der por que, em termos de sociedades em transformação dentro de si­
tuações históricas em tra nsformação, sentira m-se tais necessidades.

1 05. Geoffrey Eley, Re-shaping the German Right (Yale U.P., Londres e New H avcn,
1 980).

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