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A universidade pública sob nova perspectiva

A universidade pública sob nova perspectiva*

Marilena Chaui
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

I. conquista da idéia de autonomia do saber em face da


religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhe-
A universidade é uma instituição social e como cimento guiado por sua própria lógica, por necessi-
tal exprime de maneira determinada a estrutura e o dades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua
modo de funcionamento da sociedade como um todo. invenção ou descoberta como de sua transmissão.
Tanto é assim que vemos no interior da instituição Em outras palavras, sobretudo depois da Revolução
universitária a presença de opiniões, atitudes e proje- Francesa, a universidade concebe-se a si mesma como
tos conflitantes que exprimem divisões e contradi- uma instituição republicana e, portanto, pública e laica.
ções da sociedade. Essa relação interna ou expressiva A partir das revoluções sociais do século XX e com
entre universidade e sociedade é o que explica, aliás, as lutas sociais e políticas desencadeadas a partir de-
o fato de que, desde seu surgimento, a universidade las, a educação e a cultura passaram a ser concebidas
pública sempre foi uma instituição social, isto é, uma como constitutivas da cidadania e, portanto, como
ação social, uma prática social fundada no reconhe- direitos dos cidadãos, fazendo com que, além da vo-
cimento público de sua legitimidade e de suas atribui- cação republicana, a universidade se tornasse tam-
ções, num princípio de diferenciação, que lhe confere bém uma instituição social inseparável da idéia de de-
autonomia perante outras instituições sociais, e es- mocracia e de democratização do saber: seja para
truturada por ordenamentos, regras, normas e valo- realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, no correr
res de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A do século XX a instituição universitária não pôde fur-
legitimidade da universidade moderna fundou-se na tar-se à referência à democracia como uma idéia re-
guladora. Por outro lado, a contradição entre o ideal
democrático de igualdade e a realidade social da divi-
* Conferência na sessão de abertura da 26ª Reunião Anual da são e luta de classes obrigou a universidade a tomar
ANPEd, realizada em Poços de Caldas, MG, em 5 de outubro de 2003. posição diante do ideal socialista.
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Vista como uma instituição social, cujas mudan- Uma organização1 difere de uma instituição por
ças acompanham as transformações sociais, econô- definir-se por uma prática social determinada de acordo
micas e políticas, e como instituição social de cunho com sua instrumentalidade: está referida ao conjunto
republicano e democrático, a relação entre universi- de meios (administrativos) particulares para obten-
dade e Estado também não pode ser tomada como ção de um objetivo particular. Não está referida a ações
relação de exterioridade, pois o caráter republicano e articuladas às idéias de reconhecimento externo e in-
democrático da universidade é determinado pela pre- terno, de legitimidade interna e externa, mas a opera-
sença ou ausência da prática republicana e democrá- ções definidas como estratégias balizadas pelas idéias
tica no Estado. Em outras palavras, a universidade de eficácia e de sucesso no emprego de determina-
como instituição social diferenciada e autônoma só é dos meios para alcançar o objetivo particular que a
possível em um Estado republicano e democrático. define. Por ser uma administração, é regida pelas idéias
Postos os termos desta maneira, poderia supor- de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito.
se que, em última instância, a universidade, mais do Não lhe compete discutir ou questionar sua própria
que determinada pela estrutura da sociedade e do Es- existência, sua função, seu lugar no interior da luta de
tado, seria antes um reflexo deles. Não é, porém, o classes, pois isso, que para a instituição social uni-
caso. É exatamente por ser uma instituição social di- versitária é crucial, é, para a organização, um dado de
ferenciada e definida por sua autonomia intelectual fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e
que a universidade pode relacionar-se com o todo da onde existe.
sociedade e com o Estado de maneira conflituosa, A instituição social aspira à universalidade. A or-
dividindo-se internamente entre os que são favorá- ganização sabe que sua eficácia e seu sucesso depen-
veis e os que são contrários à maneira como a socie- dem de sua particularidade. Isso significa que a insti-
dade de classes e o Estado reforçam a divisão e a tuição tem a sociedade como seu princípio e sua
exclusão sociais, impedem a concretização republi- referência normativa e valorativa, enquanto a organi-
cana da instituição universitária e suas possibilidades zação tem apenas a si mesma como referência, num
democráticas. processo de competição com outras que fixaram os
Se essas observações tiverem alguma verdade, mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a
elas poderão ajudar-nos a enfrentar com mais clareza instituição se percebe inserida na divisão social e po-
a mudança sofrida por nossa universidade pública nos lítica e busca definir uma universalidade (imaginária
últimos anos, particularmente com a reforma do Es- ou desejável) que lhe permita responder às contradi-
tado realizada no último governo da República. De ções, impostas pela divisão. Ao contrário, a organiza-
fato, essa reforma, ao definir os setores que com- ção pretende gerir seu espaço e tempo particulares
põem o Estado, designou um desses setores como aceitando como dado bruto sua inserção num dos
setor de serviços não exclusivos do Estado e nele pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às
colocou a educação, a saúde e a cultura. Essa locali- contradições, e sim vencer a competição com seus
zação da educação no setor de serviços não exclusi- supostos iguais.
vos do Estado significou: a) que a educação deixou Como foi possível passar da idéia da universida-
de ser concebida como um direito e passou a ser con- de como instituição social à sua definição como orga-
siderada um serviço; b) que a educação deixou de ser nização prestadora de serviços?
considerada um serviço público e passou a ser consi-
derada um serviço que pode ser privado ou privatizado.
1
Mas não só isso. A reforma do Estado definiu a uni- A distinção entre instituição social e organização social é

versidade como uma organização social e não como de inspiração francfurtiana, feita por Michel Freitag em Le

uma instituição social. naufrage de l’université. Paris: Editions de la Découverte, 1996.


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6 Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
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A forma atual do capitalismo caracteriza-se pela ções, colóquios e congressos, a multiplicação de co-
fragmentação de todas as esferas da vida social, par- missões e relatórios etc.
tindo da fragmentação da produção, da dispersão es- Nela, a docência é entendida como transmissão
pacial e temporal do trabalho, da destruição dos refe- rápida de conhecimentos, consignados em manuais
renciais que balizavam a identidade de classe e as de fácil leitura para os estudantes, de preferência ri-
formas de luta de classes. A sociedade aparece como cos em ilustrações e com duplicata em CD-ROM. O
uma rede móvel, instável, efêmera de organizações recrutamento de professores é feito sem levar em
particulares definidas por estratégias particulares e consideração se dominam ou não o campo de conhe-
programas particulares, competindo entre si. Socie- cimentos de sua disciplina e as relações entre ela e
dade e natureza são reabsorvidas uma na outra e uma outras afins – o professor é contratado ou por ser um
pela outra porque ambas deixaram de ser um princí- pesquisador promissor que se dedica a algo muito
pio interno de estruturação e diferenciação das ações especializado, ou porque, não tendo vocação para
naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por con-
“meio ambiente”; e “meio ambiente” instável, fluido, tratos de trabalho temporários e precários – ou me-
permeado por um espaço e um tempo virtuais que lhor, “flexíveis”. A docência é pensada como habilita-
nos afastam de qualquer densidade material; “meio ção rápida para graduados, que precisam entrar
ambiente” perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve rapidamente num mercado de trabalho do qual serão
ser gerido, programado, planejado e controlado por expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco
estratégias de intervenção tecnológica e jogos de po- tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como
der. Por isso mesmo, a permanência de uma organi- correia de transmissão entre pesquisadores e treino
zação depende muito pouco de sua estrutura interna e para novos pesquisadores. Transmissão e adestramen-
muito mais de sua capacidade de adaptar-se celere- to. Desapareceu, portanto, a marca essencial da do-
mente a mudanças rápidas da superfície do “meio cência: a formação.
ambiente”. Donde o interesse pela idéia de flexibilida- Por sua vez, a pesquisa segue o padrão organi-
de, que indica a capacidade adaptativa a mudanças zacional. Numa organização, uma “pesquisa” é uma
contínuas e inesperadas. estratégia de intervenção e de controle de meios ou
A visão organizacional da universidade produziu instrumentos para a consecução de um objetivo deli-
aquilo que, segundo Freitag (Le naufrage de mitado. Em outras palavras, uma “pesquisa” é um
l’université), podemos denominar como universidade survey de problemas, dificuldades e obstáculos para
operacional. Regida por contratos de gestão, avalia- a realização de um objetivo, e um cálculo de meios
da por índices de produtividade, calculada para ser para soluções parciais e locais para problemas e obs-
flexível, a universidade operacional está estruturada táculos locais. O survey recorta a realidade de manei-
por estratégias e programas de eficácia organizacio- ra a focalizar apenas o aspecto sobre o qual está des-
nal e, portanto, pela particularidade e instabilidade tinada a intervenção imediata e eficaz. Em outras
dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada palavras, o survey opera por fragmentação. Numa
por normas e padrões inteiramente alheios ao conhe- organização, portanto, pesquisa não é conhecimento
cimento e à formação intelectual, está pulverizada de alguma coisa, mas posse de instrumentos para in-
em microorganizações que ocupam seus docentes e tervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa
curvam seus estudantes a exigências exteriores ao organização não há tempo para reflexão, a crítica, o
trabalho intelectual. A heteronomia da universidade exame de conhecimentos instituídos, sua mudança
autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de ou sua superação. Numa organização, a atividade
horas/aula, a diminuição do tempo para mestrados e cognitiva não tem como nem por que se realizar. Em
doutorados, a avaliação pela quantidade de publica- contrapartida, no jogo estratégico da competição do
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mercado, a organização mantém-se e firma-se se for II.


capaz de propor áreas de problemas, dificuldades,
obstáculos sempre novos, o que é feito pela frag- Tomada sob a perspectiva operacional, a univer-
mentação de antigos problemas em novíssimos sidade pública corre o risco de passar por uma moder-
microproblemas, sobre os quais o controle parece ser nização que a faça contemporânea do século XXI, sem
cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida que se toque nas causas que deram origem a esse
da organização, torna-se real e propõe a especializa- modelo universitário. Desse desejo de modernização
ção como estratégia principal e entende por “pesqui- acrítico e pouco reflexivo, são sinais duas idéias apre-
sa” a delimitação estratégica de um campo de inter- sentadas com insistência crescente pelos organismos
venção e controle. É evidente que a avaliação desse internacionais que subsidiam e subvencionam univer-
trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis sidades públicas. A primeira idéia é a de sociedade do
para uma organização, isto é, em termos de custo- conhecimento; a segunda, uma nova concepção da
benefício, pautada pela idéia de produtividade, que educação permanente ou continuada.
avalia em quanto tempo, com que custo e quanto foi A transformação do capital e da ciência, a que
produzido. Reduzida a uma organização, a universi- nos referimos anteriormente, articulada às mudanças
dade abandona a formação e a pesquisa para lançar- tecnológicas referentes à circulação da informação,
se na fragmentação competitiva. Mas por que ela o produziu a idéia de sociedade do conhecimento, na
faz? Porque está privatizada e a maior parte de suas qual o fator mais importante é o uso intensivo e com-
pesquisas é determinada pelas exigências de merca- petitivo dos conhecimentos.
do, impostas pelos financiadores. Isso significa que a Mas o que significa exatamente sociedade do
universidade pública produz um conhecimento desti- conhecimento?
nado à apropriação privada. Essa apropriação, aliás, Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento
é inseparável da mudança profunda sofrida pelas ciên- e a informação passaram a compor o próprio capital,
cias em sua relação com a prática. que passa a depender disso para sua acumulação e
De fato, até os anos 1940, a ciência era uma reprodução. Na medida em que, na forma atual do
investigação teórica com aplicações práticas. Sabe- capitalismo, a hegemonia econômica pertence ao ca-
mos, porém, que as mudanças no modo de produção pital financeiro e não ao capital produtivo, a informa-
capitalista e na tecnologia transformaram duplamente ção prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez
a ciência: em primeiro lugar, ela deixou de ser a in- que o capital financeiro opera com riquezas puramen-
vestigação de uma realidade externa ao investigador te virtuais, cuja existência se reduz à própria informa-
para tornar-se a construção da própria realidade do ção. Entre outros efeitos, essa situação produz um
objeto científico por meio de experimentos e de efeito bastante preciso: o poder econômico baseia-se
constructos lógico-matemáticos – como escreveu um na posse de informações e, portanto, essas tornam-se
filósofo, a ciência tornou-se manipulação de objetos secretas e constituem um campo de competição eco-
construídos por ela mesma – em segundo lugar e, nômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo
como conseqüência, ela tornou-se uma força produ- em que, necessariamente, bloqueiam poderes demo-
tiva e, como tal, inserida na lógica do modo de pro- cráticos, os quais se baseiam no direito à informação,
dução capitalista. A ciência deixou de ser teoria com tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e
aplicação prática e tornou-se um componente do pró- fazê-las circular socialmente. Em outras palavras, a
prio capital. Donde as novas formas de financiamen- assim chamada sociedade do conhecimento, do ponto
to das pesquisas, a submissão delas às exigências do de vista da informação, é regida pela lógica do merca-
próprio capital e a transformação da universidade do (sobretudo o financeiro), de sorte que ela não é
numa organização ou numa entidade operacional. propícia nem favorável à ação política da sociedade
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civil e ao desenvolvimento efetivo de informações e duplicar-se pela primeira vez, no início da era cristã;
conhecimentos necessários à vida social e cultural. depois, passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois
Em resumo: a noção de sociedade do conhecimento, a cada 50 anos e estima-se que, a partir de 2000, a
longe de indicar uma possibilidade de grande avanço e cada quatro anos duplicará a quantidade de informa-
desenvolvimento autônomo das universidades enquanto ção disponível no mundo.
instituições sociais comprometidas com a vida de suas Penso que se poderia acrescentar aqui: as cifras
sociedades e articuladas a poderes e direitos demo- sobre a quantidade e a velocidade dos conhecimen-
cráticos, indica o contrário; isto é, tanto a heteronomia tos, as cifras provenientes da publicação de artigos
universitária (quando a universidade produz conheci- nos quais são apresentadas descobertas científicas,
mentos destinados ao aumento de informações para o pode levar-nos ainda a uma outra reflexão, qual seja:
capital financeiro, submetendo-se às suas necessida- a quantidade de descobertas implicou uma mudança
des e à sua lógica) como a irrelevância da atividade na definição de uma ciência? Em outras palavras, a
universitária (quando suas pesquisas são autonoma- química, a matemática, a biologia e a história (para
mente definidas ou quando procuram responder às ficarmos com os exemplos mais freqüentes) foram
demandas sociais e políticas de suas sociedades). O redefinidas em termos de seus objetos, métodos, pro-
sinal da heteronomia é claro, por exemplo, na área das cedimentos, de tal maneira que poderíamos dizer, por
chamadas pesquisas básicas nas universidades latino- exemplo, que, hoje, a mudança epistemológica na
americanas, nas quais os objetos e métodos de pes- química equivaleria à mudança da alquimia para a quí-
quisa são determinados pelos vínculos com grandes mica no século XVII? Ou que, hoje, a mudança epis-
centros de pesquisa dos países que possuem a hege- temológica na história equivaleria àquela que, no
monia econômica e militar, pois tais vínculos são pos- século XIX, rompeu com a tradição historiográfica
tos tanto como condição para o financiamento das de narrativa dos memorabilia, levou a separar natu-
pesquisas quanto como instrumentos de reconheci- reza e cultura, a considerar a historicidade como o
mento acadêmico internacional. O sinal da irrelevância, modo de ser do homem e a buscar uma solução para
por outro lado, aparece claramente na deterioração e o tema clássico (que define a história desde Heródoto
no desmantelamento das universidades públicas, con- e Tucídides) da alternativa entre contingência e ne-
sideradas cada vez mais um peso para o Estado (don- cessidade? Ou ainda: sabemos que a mudança episte-
de o avanço da privatização, da terceirização e da mológica fundamental entre a ciência clássica e a
massificação) e um elemento perturbador da ordem contemporânea, século XX, encontra-se, de um lado,
econômica (donde a desmoralização crescente do tra- no fato de que a primeira julgava alcançar as coisas
balho universitário público). tais como são em si mesmas enquanto a segunda não
Outro aspecto que tem sido muito enfatizado titubeia em tomar seus objetos como constructos, e,
pelos organismos internacionais que discutem o ensi- de outro, no fato de que a ciência clássica julgava
no superior é que a sociedade do conhecimento é operar com as idéias de ordem e conexão causais
inseparável da velocidade, isto é, a acentuada redu- necessárias enquanto a ciência contemporânea tende
ção do tempo entre a aquisição de um conhecimento a abandonar a idéia de leis causais e a elaborar noções
e sua aplicação tecnológica, a ponto dessa aplicação como as de probabilidade, regularidade, freqüência,
acabar determinando o conteúdo da própria investi- simetria etc. Ao falar em explosão do conhecimento e
gação científica. Fala-se numa explosão do conheci- em explosão epistemológica, podemos dizer que a
mento, quantitativa e qualitativa, tanto no interior das sociedade do conhecimento introduziu mudanças epis-
disciplinas clássicas como com a criação de discipli- temológicas de tal monta que transformou as ciên-
nas novas e novas áreas de conhecimento. Segundo cias? Houve mudança na estrutura das ciências nos
alguns autores, o conhecimento levou 1.750 anos para últimos 30 ou 40 anos?
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Essas perguntas são suscitadas por dois moti- das qualificações para o trabalho em decorrência do
vos principais: 1) o fato, por exemplo, de que a quí- surgimento incessante de novas tecnologias, o de-
mica descubra novas substâncias ou que a matemáti- semprego estrutural decorrente da automação e da
ca desenvolva novos teoremas poderia ser considerado alta rotatividade da mão-de-obra, a exclusão social,
simplesmente como aumento quantitativo dos conhe- econômica e política. Esses efeitos econômicos e
cimentos, cujos fundamentos não mudaram nos últi- sociais da nova forma do capital são inseparáveis de
mos 30 ou 40 anos, aumento quantitativo decorrente uma transformação sem precedentes na experiência
tanto de novas tecnologias usadas nas pesquisas quan- do espaço e do tempo. Essa transformação é desig-
to do aumento do número de pesquisadores no mun- nada por Harvey com a expressão compressão espaço-
do inteiro; 2) a quantidade de publicações precisa ser temporal, isto é, o fato de que a fragmentação e a glo-
tomada cum grano salis, pois sabemos que essa quan- balização da produção econômica engendram dois
tidade pode exprimir pouca qualidade e pouca inova- fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a
ção porque: a) os chamados processos de avaliação fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de
da produção acadêmica, dos quais dependem a con- outro, sob os efeitos das tecnologias da informação,
servação do emprego, a ascensão na carreira e a ob- a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem
tenção de financiamento de pesquisas, são baseados distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compres-
na quantidade de publicação de artigos e do compare- são do tempo – tudo se passa agora, sem passado e
cimento a congressos e simpósios; b) a quantidade sem futuro.
de “pontos” obtidos por um pesquisador também de- Podemos acrescentar à colocação de Harvey que
pende de que consiga publicar seus artigos nos perió- falar do presente, como muitos hoje falam, como sen-
dicos científicos definidos hierarquicamente pelo do a “era da incerteza”, indica menos uma compres-
ranking; c) os grandes centros de pesquisa só conse- são filosófico-científica da realidade natural e cultu-
guem financiamentos públicos e privados se continua- ral e mais a aceitação da destruição econômico-social
mente “provarem” que estão alcançando novos conhe- de todos os referenciais de espaço e de tempo cujo
cimentos, uma vez que a avaliação deixou cada vez sentido se encontrava não só na percepção cotidiana,
mais de ser feita pelos pares e passou a ser determina- mas também nos trabalhos da geografia, da história,
da pelos critérios da eficácia e da competitividade (ou- da antropologia e das artes. Em vez de incerteza, mais
tro sinal de nossa heteronomia). Essas perguntas tam- vale falar em insegurança. Ora, sabemos que a inse-
bém se referem a um problema de fundo, qual seja, a gurança não gera conhecimento e ação inovadora, e
mudança imposta ao tempo do trabalho intelectual e sim medo e paralisia, submissão ao instituído, recusa
científico. da crítica, conservadorismo e autoritarismo.
Sabemos que uma das características mais mar- Na verdade, fragmentação e dispersão do espa-
cantes da cultura contemporânea é o que David Harvey ço e do tempo condicionam sua reunificação sob um
denominou compressão espaço-temporal. De fato, exa- espaço diferenciado e um tempo efêmero, ou sob um
minando a condição pós-moderna, David Harvey2 ana- espaço que se reduz a uma superfície plana de ima-
lisa os efeitos da acumulação flexível do capital, isto gens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se
é, a fragmentação e dispersão da produção econômi- reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.
ca, a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade No caso da produção artística e intelectual (hu-
extrema da mão-de-obra, a obsolescência vertiginosa manidades), a compressão do espaço e do tempo
transformou o mercado da moda (isto é, do descar-
tável, do efêmero determinado pelo mercado) em pa-
2
David Harvey. A condição pós-moderna. São Paulo: radigma: as obras de arte e de pensamento duram
Loyola, 1992 uma temporada e, descartados, desaparecem sem
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deixar vestígio. Para participar desse mercado efê- isto é, a educação deixa de ser preparação para a vida
mero, a literatura, por exemplo, abandona o roman- e torna-se educação durante toda a vida.
ce pelo conto, os intelectuais abandonam o livro pelo Precisamos ponderar crítica e reflexivamente
paper, o cinema é vencido pelo videoclipe ou pelas sobre essa idéia. De fato, não se pode chamar isso
grandes montagens com “efeitos especiais”. Para a de educação permanente. Como vimos anteriormen-
ideologia pós-moderna, a razão, a verdade e a histó- te, a nova forma do capital produz a obsolescência
ria são mitos totalitários; o espaço e o tempo são su- rápida da mão-de-obra e produz o desemprego es-
cessão efêmera e volátil de imagens velozes e a com- trutural. Por isso, passa-se a confundir educação e
pressão dos lugares e instantes na irrealidade virtual, “reciclagem”, exigida pelas condições do mercado
que apaga todo contato com o espaço-temporal en- de trabalho. Trata-se de aquisições de técnicas por
quanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a meio de processos de adestramento e treinamento
reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetivida- para saber empregá-las de acordo com as finalida-
de não é o conhecimento do que é exterior e diverso des das empresas. Tanto é assim, que muitas empre-
do sujeito, e sim um conjunto de estratégias monta- sas possuem escolas, centros de treinamento e reci-
das sobre jogos de linguagem, que representam jo- clagem de seus empregados, ou fazem convênios com
gos de pensamento. A história do saber aparece como outras empresas destinadas exclusivamente a esse
troca periódica de jogos de linguagem e de pensa- tipo de atividade. E essa atividade pressupõe algo
mento, isto é, como invenção e abandono de “para- básico, ou seja, a escolaridade propriamente dita.
digmas”, sem que o conhecimento jamais toque a Muitas vezes também, a competição no mercado de
própria realidade. trabalho exige que o candidato a emprego apresente
A compressão espaço-temporal produz efeitos um currículo com mais créditos do que outros ou
também nas universidades: diminuição do tempo de que, no correr dos anos, acrescente créditos ao seu
graduação e pós-graduação, do tempo para realização currículo, mas dificilmente poderíamos chamar a isso
de dissertações de mestrado e teses de doutorado. A de educação permanente porque a educação signifi-
velocidade faz com que, no plano da docência, as ca um movimento de transformação interna daquele
disciplinas abandonem, cada vez mais, a necessidade que passa de um suposto saber (ou da ignorância)
de transmitir aos estudantes suas próprias histórias, ao saber propriamente dito (ou à compreensão de si,
o conhecimento de seus clássicos, as questões que dos outros, da realidade, da cultura acumulada e da
lhes deram nascimento e as transformações dessas cultura no seu presente ou se fazendo). A educação é
questões. Em outras palavras: a absorção do espaço- inseparável da formação e é por isso que ela só pode
tempo do capital financeiro e do mercado da moda ser permanente.
conduzem ao abandono do núcleo fundamental do
trabalho universitário, qual seja, a formação. III.
E isso se torna também muito evidente quando
se vê a discussão da segunda idéia, qual seja, a edu- Se quisermos tomar a universidade pública por
cação permanente ou continuada. Afirma-se que, dian- uma nova perspectiva, precisamos começar exigin-
te de um mundo globalizado e em transformação cons- do, antes de tudo, que o Estado não tome a educação
tante, a educação permanente ou continuada é uma pelo prisma do gasto público e sim como investimen-
estratégia pedagógica indispensável, pois somente com to social e político, o que só é possível se a educação
ela é possível a adaptação às mudanças incessantes, for considerada um direito e não um privilégio, nem
se quiser manter-se ativo no mercado de trabalho. A um serviço. A relação democrática entre Estado e
educação permanente ou continuada significa que a universidade pública depende do modo como consi-
educação não se confunde com os anos escolares; deramos o núcleo da República. Este núcleo é o fun-
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do público ou a riqueza pública e a democratização 1. Colocar-se claramente contra a exclusão como


do fundo público significa investi-lo não para assegu- forma da relação social definida pelo neolibe-
rar a acumulação e a reprodução do capital – que é o ralismo e pela globalização: tomar a educação
que faz o neoliberalismo com o chamado “Estado superior como um direito do cidadão (na qua-
mínimo” –, e sim para assegurar a concreticidade dos lidade de direito, ela deve ser universal); defe-
direitos sociais, entre os quais se encontra a educa- sa da universidade pública tanto pela amplia-
ção. É pela destinação do fundo público aos direitos ção de sua capacidade de absorver sobretudo
sociais que se mede a democratização do Estado e, os membros das classes populares, quanto pela
com ela, a democratização da universidade. firme recusa da privatização dos conhecimen-
A reversão também depende de que levemos a tos, isto é, impedir que um bem público tenha
sério a idéia de formação. apropriação privada. Romper, portanto, com o
O que significa exatamente formação? Antes de modelo proposto pelo Banco Mundial e implan-
mais nada, como a própria palavra indica, uma rela- tado no Brasil com a pretensão de resolver os
ção com o tempo: é introduzir alguém ao passado de problemas da educação superior por meio da
sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto privatização das universidades públicas ou pe-
é, como ordem simbólica ou de relação com o ausen- los incentivos financeiros dados a grupos pri-
te), é despertar alguém para as questões que esse vados para criar estabelecimentos de ensino
passado engendra para o presente, e é estimular a superior, que provocou não só o desprestígio
passagem do instituído ao instituinte. O que Merleau- das universidades públicas (porque boa parte
Ponty diz sobre a obra de arte nos ajuda aqui: a obra dos recursos estatais foram dirigidos às em-
de arte recolhe o passado imemorial contido na per- presas universitárias) como a queda do nível
cepção, interroga a percepção presente e busca, com do ensino superior (cuja avaliação era feita por
o símbolo, ultrapassar a situação dada, oferecendo- organismos ligados às próprias empresas).
lhe um sentido novo que não poderia vir à existência
sem a obra. Da mesma maneira, a obra de pensamen- 2. Definir a autonomia universitária não pelo cri-
to só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não tério dos chamados “contratos de gestão”, mas
poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, pelo direito e pelo poder de definir suas nor-
por seu próprio excesso, nos dá a pensar e a dizer, mas de formação, docência e pesquisa. A au-
criando em seu próprio interior a posteridade que irá tonomia é entendida em três sentidos princi-
superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava pais: a) como autonomia institucional ou de
sedimentado na cultura, a obra de arte e de pensa- políticas acadêmicas (autonomia em relação aos
mento reabre o tempo e forma o futuro. Podemos governos); b) como autonomia intelectual (au-
dizer que há formação quando há obra de pensamen- tonomia em relação a credos religiosos, parti-
to e que há obra de pensamento quando o presente é dos políticos, ideologia estatal, imposições em-
apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho presariais e financeiras); c) como autonomia
da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal manei- da gestão financeira que lhe permita destinar
ra que nos tornamos capazes de elevar ao plano do os recursos segundo as necessidades regio-
conceito o que foi experimentado como questão, per- nais e locais da docência e da pesquisa. Em
gunta, problema, dificuldade. outras palavras, a autonomia deve ser pensa-
Pensando numa mudança da universidade públi- da, como autodeterminação das políticas aca-
ca pela perspectiva da formação e da democratiza- dêmicas, dos projetos e metas das instituições
ção, creio que podemos assinalar alguns pontos que universitárias e da autônoma condução admi-
são a condição e a forma dessa mudança: nistrativa, financeira e patrimonial. Essa auto-
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12 Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
A universidade pública sob nova perspectiva

nomia só terá sentido se: a) internamente, hou- vadas. Dessa maneira, a educação superior pú-
ver o funcionamento transparente e público das blica tem sido conivente com a enorme exclu-
instâncias de decisão; b) externamente, as uni- são social e cultural dos filhos das classes po-
versidades realizarem, de modo público e em pulares que não têm condições de passar da
períodos regulares fixados, o diálogo e o deba- escola pública de ensino médio para a universi-
te com a sociedade civil organizada e com os dade pública. Portanto, somente a reforma da
agentes do Estado, tanto para oferecer a todos escola pública de ensino fundamental e médio
as informações sobre a vida universitária, pode assegurar a qualidade e a democratização
como para receber críticas, sugestões e de- da universidade pública. A universidade pública
mandas vindas da sociedade e do Estado. Isso deixará de ser um bolsão de exclusões sociais e
significa também que a autonomia é inseparável culturais quando o acesso a ela estiver assegu-
da elaboração da peça orçamentária anual, pois rado pela qualidade e pelo nível dos outros graus
é esta que define prioridades acadêmicas de do ensino público; b) reformar as grades curri-
docência e pesquisa, metas teóricas e sociais, culares atuais e o sistema de créditos, uma vez
bem como as formas dos investimentos dos que ambos produzem a escolarização da uni-
recursos. Para que haja autonomia com cará- versidade, com a multiplicação de horas/aula,
ter público e democrático é preciso que haja retirando dos estudantes as condições para lei-
discussão dos orçamentos por todos os mem- tura e pesquisa, isto é, para sua verdadeira for-
bros da universidade, segundo o modelo do mação e reflexão, além de provocarem a frag-
orçamento participativo. Finalmente, a autono- mentação e dispersão dos cursos, e estimular a
mia universitária só será efetiva se as universi- superficialidade. É preciso diminuir o tempo em
dades recuperarem o poder e a iniciativa de horas/aula e o excesso de disciplinas semestrais.
definir suas próprias linhas de pesquisa e prio- Dependendo da área acadêmica, as disciplinas
ridades, em lugar de deixar-se determinar ex- podem ser ministradas em cursos anuais, per-
ternamente pelas agências financiadoras. mitindo que o estudante se aprofunde em um
determinado aspecto do conhecimento. É pre-
3. Desfazer a confusão atual entre democratiza- ciso também não somente assegurar espaço para
ção da educação superior e massificação. Para a implantação de novas disciplinas exigidas por
isso, três medidas principais são necessárias: mudanças filosóficas, científicas e sociais, como
a) articular o ensino superior público e outros também organizar os cursos de maneira a asse-
níveis de ensino público. Sem uma reforma ra- gurar que os estudantes possam circular pela
dical do ensino fundamental e do ensino médio universidade e construir livremente um currí-
públicos, a pretensão republicana e democráti- culo de disciplinas optativas que se articulem às
ca da universidade será inócua. A universidade disciplinas obrigatórias da área central de seus
pública tem que se comprometer com a mu- estudos; c) assegurar, simultaneamente, a uni-
dança no ensino fundamental e no ensino médio versalidade dos conhecimentos (programas
públicos. A baixa qualidade do ensino público cujas disciplinas tenham nacionalmente o mes-
nos graus fundamental e médio tem encaminhado mo conteúdo no que se refere aos clássicos de
os filhos das classes mais ricas para as escolas cada uma delas) e a especificidade regional (pro-
privadas e, com o preparo que ali recebem, são gramas cujas disciplinas reflitam os trabalhos
eles que irão concorrer em melhores condições dos docentes-pesquisadores sobre questões es-
às universidades públicas, cujo nível e cuja qua- pecíficas de suas regiões). Assegurar que os
lidade são superiores aos das universidades pri- estudantes conheçam as questões clássicas de
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Revista Brasileira de Educação 13
Marilena Chaui

sua área e, ao mesmo tempo, seus problemas bem como as grandes linhas do trabalho uni-
contemporâneos e as pesquisas existentes no versitário internacional.
país e no mundo sobre os assuntos mais rele-
vantes da área. Para isso são necessárias condi- 5. Revalorizar a pesquisa, estabelecendo não só
ções de trabalho: bibliotecas dignas do nome, as condições de sua autonomia e as condições
laboratórios equipados, informatização, bolsas materiais de sua realização, mas também recu-
de estudo para estudantes de graduação, aloja- sando a diminuição do tempo para a realização
mentos estudantis, alimentação e atendimento à dos mestrados e doutorados. Quanto aos pes-
saúde, assim como convênios de intercâmbio quisadores com carreira universitária, é preci-
de estudantes entre as várias universidades do so criar novos procedimentos de avaliação que
país e com universidades estrangeiras. não sejam regidos pelas noções de produtivi-
dade e de eficácia e sim pelas de qualidade e de
4. Revalorizar a docência, que foi desprestigiada relevância social e cultural. Essa qualidade e
e negligenciada com a chamada “avaliação da essa relevância dependem do conhecimento,
produtividade”, quantitativa. Essa revalorização por parte dos pesquisadores, das mudanças fi-
implica: a) formar verdadeiramente professo- losóficas, científicas e tecnológicas e seus im-
res, de um lado, assegurando que conheçam pactos sobre as pesquisas. Quanto à relevân-
os clássicos de sua área e os principais pro- cia social das pesquisas, cabe às universidades
blemas nela discutidos ao longo de sua histó- públicas e ao Estado fazer um levantamento
ria e, de outro lado, levando em consideração das necessidades do seu país no plano do co-
o impacto das mudanças filosóficas, científi- nhecimento e das técnicas e estimular traba-
cas e tecnológicas sobre sua disciplina e so- lhos universitários nessa direção, asseguran-
bre a formação de seus docentes; b) oferecer do, por meio de consulta às comunidades
condições de trabalho compatíveis com a for- acadêmicas regionais, que haja diversificação
mação universitária, portanto, infra-estrutura dos campos de pesquisa segundo as capacida-
de trabalho (bibliotecas e laboratórios realmen- des e as necessidades regionais. As parcerias
te equipados); c) realizar concursos públicos com os movimentos sociais nacionais e regio-
constantes para assegurar o atendimento qua- nais podem ser de grande valia para que a so-
litativamente bom de um número crescente de ciedade oriente os caminhos da instituição uni-
estudantes em novas salas de aulas (o proces- versitária, ao mesmo tempo que esta, por meio
so de democratização aumentará o acesso às de cursos de extensão e por meio de serviços
universidades); d) garantir condições salariais especializados, poderá oferecer elementos re-
dignas que permitam ao professor trabalhar flexivos e críticos para a ação e o desenvolvi-
em regime de tempo integral de dedicação à mento desses movimentos. Ou seja, a orienta-
docência e à pesquisa, de maneira que ele te- ção de rumos das pesquisas pode ser feita
nha condições materiais de realizar permanen- segundo a idéia de cidadania.
temente seu processo de formação e de atua-
lização dos conhecimentos e das técnicas 6. A valorização da pesquisa nas universidades
pedagógicas; e) incentivar o intercâmbio com públicas exige políticas públicas de financia-
universidades do país e estrangeiras, de ma- mento por meio de fundos públicos destinados
neira a permitir a completa formação do pro- a esse fim por intermédio de agências nacio-
fessor, bem como familiarizá-lo com as dife- nais de incentivo à pesquisa, mas que sigam
renças e especificidades regionais e nacionais duas orientações principais: a) projetos propos-
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A universidade pública sob nova perspectiva

tos pelas próprias universidades; b) projetos térios e interesses que servem ao capital e não
propostos por setores do Estado que fizeram aos direitos dos cidadãos.
levantamentos locais e regionais de demandas
e necessidades de pesquisas determinadas e MARILENA CHAUI é doutora em filosofia e professora titu-
que serão subvencionadas pelas agências. A lar na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univer-
avaliação dos projetos, para concessão de fi- sidade de São Paulo. Pela importância e consistência de sua obra,
nanciamento, e a avaliação dos resultados de- em junho de 2003, recebeu o título de Doctor Honoris Causa, pela
vem ser feitas por comissões democraticamente Universidade de Paris VIII, primeira mulher brasileira a receber o
escolhidas pelas comunidades universitárias, em referido título nessa universidade. É uma das maiores especialistas
consonância com a definição de um programa do mundo em Spinoza, tendo publicado Spinoza: uma filosofia da
nacional de pesquisas, definido pelo conjunto liberdade (São Paulo: Moderna, 1995), A nervura do real: imanên-
das universidades após o levantamento das ne- cia e liberdade em Spinoza (São Paulo: Companhia das Letras,
cessidades, interesses e inovações das pesqui- 1999) e Política em Spinoza (São Paulo: Companhia das Letras,
sas para o país. Além dessa avaliação do con- 2003). Foi secretária municipal de cultura, na Prefeitura de São
teúdo, deve haver uma avaliação pública dos Paulo, durante a gestão de Luíza Erundina (1989-1992). Atuou
objetivos e aplicações das pesquisas e uma ava- como uma das líderes do movimento nacional contra a implanta-
liação pública, feita pelo Estado, sobre o uso ção das licenciaturas curtas para a formação de professores em
dos fundos públicos. Em outras palavras, a nível superior e defensora da manutenção da filosofia nos currículos
universidade deve publicamente prestar con- do ensino médio brasileiro, durante o último governo militar. Publi-
tas de suas atividades de investigação à socie- cou, inclusive, o livro Convite à filosofia, que se constituiu em
dade e ao Estado. referência didática obrigatória para todos os que defendiam a per-
manência da disciplina nos currículos. Publicou ainda grande núme-
7. Adotar uma perspectiva crítica muito clara tan- ro de artigos e pelo menos dez livros, entre os quais se destacam: O
to sobre a idéia de sociedade do conhecimento que é ideologia, da Coleção Primeiros Passos, editada pela Brasi-
quanto sobre a de educação permanente, tidas liense, com mais de cinqüenta edições, constituindo-se em obra de
como idéias novas e diretrizes para a mudança referência tanto nos cursos de ensino médio como nos de gradua-
da universidade pela perspectiva da moderni- ção; Cultura e democracia; o discurso competente e outras falas
zação. É preciso tomar a universidade do pon- (São Paulo: Moderna, 1980); Conformismo e democracia; aspec-
to de vista de sua autonomia e de sua expres- tos da cultura popular no Brasil (São Paulo: Brasiliense,1986); e
são social e política, cuidando para não correr Escritos sobre a universidade (São Paulo: Ed. UNESP, 2001). Atual-
em busca da sempiterna idéia de modernização mente coordena a pesquisa “Filosofia no século XVII”.
que, no Brasil, como se sabe, sempre significa
submeter a sociedade em geral e as universi- Recebido em outubro de 2003
dades públicas, em particular, a modelos, cri- Aprovado em outubro de 2003

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Revista Brasileira de Educação 15

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