Você está na página 1de 12

BRANQUEAMENTO, MESTIÇAGEM E “DEMOCRACIA RACIAL”: desdobramentos de um

racismo à brasileira

Bárbara Cristina Silva Pereira1

RESUMO: Considera-se a ideologia do branqueamento, o mito


da democracia racial e, posteriormente, a idealização da
mestiçagem enquanto símbolo nacional como desdobramentos
do racismo construído no Brasil. A história contada, branca e
eurocêntrica, tratou de camuflar essas estratégias de genocídio
da população negra como características naturais do processo
de formação do país. Pelo contrário, observa-se que essas
tentativas fazem parte de um projeto de sociedade pensado e
colocado em prática com o objetivo de renovar constantemente
a manutenção do poder pela branquitude.
Palavras-chave: Branqueamento. “Democracia racial”.
Mestiçagem. Racismo.

ABSTRACT: It is considered the ideology of whitening, the myth


of racial democracy and, later, the idealization of miscegenation
as a national symbol as unfolding of the racism in Brazil. The
story told, white and eurocentric, tried to camouflage these
strategies of genocide of the black population as natural
characteristics of the process of formation of the country. On the
contrary, it is observed that these attempts are part of a project
of society thought and put into practice with the objective of
constantly renewing the maintenance of power by white people.
Keywords: Whitening. “Racial democracy”. Miscegenation.
Racism.

1 INTRODUÇÃO

A ideologia do branqueamento, o mito da democracia racial e a supervalorização da


mestiçagem, enquanto desdobramentos do racismo brasileiro, estão inseridos em um
contexto histórico peculiar e interligados por estratégias que objetivam a manutenção de uma
sociedade dominada pela branquitude. É importante ressaltar que estes não são conceitos
exclusivos do Brasil, apesar de representarem características próprias do racismo aqui

1Assistente Social. Pós-graduanda do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde no Hospital


Universitário Materno-Infantil (HUUFMA). E-mail: <barbara.cristina@hotmail.com.br>.
construído. Da mesma forma, não são fenômenos presentes somente na história recente do
país (pós-República), a partir, unicamente, da política de imigração europeia.
Utilizamos o conceito de raça, aqui, a partir de uma esfera política e ideológica que
compreende a importância de sua vigência para os estudos relacionados ao racismo. As
alterações semânticas na utilização deste termo ao longo dos anos revelam disputas
ideológicas de interpretação da realidade, que variam de acordo com o movimento de
transformação das relações sociais.
Conforme aponta Guimarães (1999), trata-se de um conceito que ajuda o (a)
pesquisador (a) a compreender fenômenos sociais e suas intenções, sem reivindicar
necessariamente uma realidade biológica. Em outras palavras, “se não for à raça, a que
atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela ideia de ‘raça’?”
(GUIMARÃES, 1999, p. 27). Nesse caso, negar sua existência significa também negar a
existência do racismo. A apropriação do discurso “racialista” pelo Movimento Negro e sua
reavaliação por meio de uma construção identitária diferenciada, revela a importância deste
conceito em termos ideológicos na atualidade.
Dito isso, este artigo objetiva, de forma breve, dado os moldes acadêmicos impostos,
discutir três elementos fundamentais para o que diversos autores caracterizam como racismo
à brasileira: branqueamento, mestiçagem e “democracia racial”. Por diversos motivos, o
racismo no Brasil foi sedimentado a partir de posturas muito específicas, conscientes e bem
elaboradas, que dificultaram e dificultam a completa identificação dos impactos destas na vida
da população negra.
Essa forma de contar a história, branca e eurocentrada, utilizou diversos mecanismos
para colonizar conhecimentos, mentes e corações. Concordando com Abdias do Nascimento
(1978), destacamos a utilização dessas estratégias enquanto tentativas de genocídio da
população negra no Brasil. Além disso, também nos interessa observar, neste breve ensaio,
algumas falsificações criadas ao longo dos séculos com o intuito de amenizar ou até mesmo
anular os conflitos raciais presentes em nosso país.

2 TENTATIVAS DE GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

As tentativas de branqueamento da nação, para Nascimento (1978), fazem parte de


um projeto de sociedade que tem como base estratégica o genocídio da população negra. A
política imigratória racista é citada pelo autor com um dos principais instrumentos para
concretização dessa política. Clóvis Moura (1992) lembra como a Guerra do Paraguai, ao
absorver mão-de-obra escrava em larga escala, funcionou como tática para aproveitar os
trabalhadores imigrantes que chegavam ao Brasil e ao mesmo para branquear a população –
por meio do envio de negros à guerra e sua consequente morte em combate.
Diversas tentativas foram instaladas, mesmo antes da abolição formal da escravidão
negra, em 1888, com o objetivo de branquear a população brasileira. O propósito, com base
em teorias raciais clássicas que pregavam a existência de raças “inferiores”, era construir uma
sociedade de maioria “branca” através, principalmente, do suporte dos trabalhadores
imigrantes brancos vindos da Europa.
No que se refere ao período pós-abolicionista, a erradicação da “mancha negra”
aparece como estratégia central, ainda que ganhe nuances mais ou menos mascaradas,
dependendo do lugar e do momento. O Decreto de Lei nº 7.967, de 18 de setembro de 1945,
por exemplo, estabelecia que:

Art. 2. Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e


desenvolver, na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador
nacional (BRASIL, 1945).

O trabalhador “nacional” não incluía, portanto, a população negra escravizada


durante mais de três séculos. Ao valorizar a entrada de imigrantes de “ascendência europeia”
e descartar a possibilidade de inserção da população negra nos espaços de poder, o Estado
brasileiro intentou minar suas chances de desenvolvimento e “ascensão” social. Através das
transformações no mundo do trabalho, do cativo para o liberto, negros e negras foram
descartados. Mais do que isso, foram integrados perfeitamente ao seu papel marginalizado,
de reserva, para manter, também, as transformações do capital.
José de Souza Martins, em seu livro “O Cativeiro da Terra”, lembra como o imigrante
europeu repudiava qualquer semelhança de sua posição à da população negra escravizada.
Os próprios fazendeiros faziam questão de diferenciar o tratamento direcionado a cada um.
Conforme o autor (2010, p. 48), embora desiguais, “[...] fazendeiro e imigrante são vinculados
entre si por uma igualdade básica, a identidade de quem come na casa-grande. Nesse plano,
o imigrante está contraposto à senzala”. Enquanto persistia o auge da escravidão negra no
Brasil, trabalho era sinônimo de desonra e ociosidade era considerada nobre característica.
Não é de estranhar que, no momento em que negros e negras se encontraram em situação
miserável de não trabalho, esta lógica se inverteu.
Kabengele Munanga (1999), ao analisar o discurso de cientistas (juristas e médicos)
no final do século XIX e início do século XX, aponta as estimativas lançadas pelos autores
para o estabelecimento de uma nação branca. João Batista Lacerda (1911 apud MUNANGA,
1999, p. 53), considerado o mais “otimista”, defendia que, no período de um século, a
população preta, indígena e mestiça desapareceria aos olhos dos brasileiros, conformando
um país verdadeiramente branco.
Para Sílvio Romero (1975 apud MUNANGA, 1999), por exemplo, a criação de uma
identidade nacional e de um povo tipicamente brasileiro (através da relação entre negros,
indígenas e brancos), era algo que ainda estava em curso e que levaria bastante tempo para
se concretizar. Contudo, para este autor, desse processo de “[...] mestiçagem do qual
resultará a dissolução da diversidade racial e cultural e a homogeneização da sociedade
brasileira, dar-se-ia a predominância biológica e cultural branca e o desaparecimentos dos
elementos não-brancos” (ROMERO, 1975 apud MUNANGA, 1999, p. 52).
Por outro lado, contrariando a proposta de Sílvio Romero, Raimundo Nina Rodrigues
(1957 apud MUNANGA, 1999, p. 54) considera que essa junção dificilmente aconteceria
levando em consideração que “[...] uma adaptação imposta e forçada de espíritos atrasados
a uma civilização superior provocaria desequilíbrios e perturbações psíquicas”, isto é, a
possibilidade de uma unidade étnica estava descartada devido a inferioridade das raças não-
brancas.
É, na verdade, baseado no discurso de inferioridade das raças não-brancas – por
meio do movimento de eugenia e de teorias como o darwinismo social – que os autores
citados formulam suas teorias sobre a construção de uma nova nação e do povo brasileiro.
Assim, naquele momento, “[...] a grande pergunta, que restava sem resposta, girava em torno
do lugar que ocuparia a população negra recém-saída da escravidão e sujeita ao arbítrio da
República, sistema que surgia propugnando a igualdade cidadã” (SCHWARCZ, 2013, p. 18).

Como acontece na maioria dos países colonizados, a elite brasileira do fim do século
XIX e início do século XX foi buscar seus quadros de pensamento na ciência europeia
ocidental, tida como desenvolvida, para poder, não apenas teorizar e explicar a
situação racial do seu país, mas também e sobretudo propor caminhos para a
construção de sua nacionalidade, tida como problemática por causa da diversidade
racial (MUNANGA, 1999, p. 50).

A necessidade de criação de uma identidade nacional, após três séculos de


escravidão, estava assentada justamente nas tentativas desesperadas de desconstrução de
uma identidade negra a partir do ocultamento de sua história e seus grandes personagens2.

2 Em 1890, apenas dois anos após a abolição da escravidão, o Hino da Proclamação da República já
ecoava o sentimento de união e harmonia nacional com a seguinte frase: “Nós nem cremos que
escravos outrora/Tenha havido em tão nobre país”. Este continua, em seus versos, “Hoje o rubro
lampejo da aurora/Acha irmãos, não tiranos hostis/Somos todos iguais! Ao futuro/Saberemos, unidos,
Mais tarde, a representação do mestiço indicaria a solução viável para o início de um longo
processo de aniquilação da população negra.
Há, assim, no Brasil, uma expectativa basilar de miscigenação e assimilação raciais
como forma de construção de uma nação mais branca possível. As culturas africana e
indígena, ao assimilarem-se à “verdadeira cultura brasileira”, deixariam de existir, ou,
simplesmente, de tão opacas, tornar-se-iam algo de todos os brasileiros. Em outras palavras,
a homogeneização e incorporação de suas culturas e contribuições históricas, sob o manto
da valorização nacional, significava sua invisibilização.

A mestiçagem, como articulada no pensamento brasileiro entre o fim do século XIX e


meados deste século, seja na sua forma biológica (miscigenação), seja na sua forma
cultural (sincretismo cultural), desembocaria numa sociedade unirracial e unicultural.
Uma tal sociedade seria construída segundo o modelo hegemônico racial e cultural
branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças e suas respectivas
produções culturais (MUNANGA, 1999, p. 90).

Munanga (1999) defende que as ambiguidades presentes na classificação de raça e


o conceito estabelecido para a mestiçagem no Brasil funcionam como mecanismos de
aniquilação da identidade negra3. Fazendo comparações entre os Estados Unidos e o Brasil,
o autor considera que os efeitos da ideologia do branqueamento influenciam nas diferenças
de organização da população negra nos dois países, assim como na forma com a qual o
racismo foi e é entendido nesses dois lugares.
Nos Estados Unidos, “[...] a ideologia racial foi conduzida de maneira a não conceder
nenhum lugar a uma pessoa intermediária no esquema biológico. Ou bem uma pessoa era
negra ou branca” (MUNANGA, 1999, p. 86). Em contrapartida, no Brasil, a existência de um
grupo intermediário, os mestiços, “[...] principalmente quando portadores de atributos que
implicam status médio ou elevado (diploma de curso superior, riqueza e outros), podem ser
incorporados no grupo branco” (MUNANGA, 1999, p. 87-88).
Da mesma forma, Antônio Guimarães (1999, p. 41) afirma que o modelo norte-
americano “[...] exibia um padrão de relações violento, conflitivo, segregacionista [...]

levar [...] O Brasil já surgiu libertado/Sobre as púrpuras régias de pé./Eia, pois, brasileiros avante!/Livre
terra de livres irmãos!”.
3 Conforme nos dirige Guiraldelli e Engler (2008, p. 260): “Na classificação do Movimento Negro

[Unificado] são trabalhados apenas dois termos: negro e branco, que já vêm sendo incorporados pelo
mundo acadêmico, pelos meios de comunicação de massa, no âmbito político, porém, ainda são
inexpressivos nos discursos populares. No Brasil, não houve ao longo de sua história nenhum controle
da ascendência, até mesmo porque o objetivo da elite era de promover o branqueamento por meio da
miscigenação e com isso, não desenvolveu nenhum sistema de classificação racial [...]”. Utilizando os
apontamentos de Edward Telles (2003), o autor e a autora ressaltam que, pelo contrário, este sistema
de classificação racial no Brasil é bastante ambíguo, complexo e fluído, diferente dos países com
tradição de segregação racial estabelecida em lei.
baseados em arrazoados biológicos que definiam as ‘raças’”. Por sua vez, o modelo brasileiro,
através de uma convivência jurídica de igualdade que marcava sua indiferença formal,
apresentava-se como “[...] um sistema muito complexo e ambíguo de diferenciação racial,
baseado sobretudo em diferenças fenotípicas, e cristalizado num vocabulário cromático”
(GUIMARÃES, 1999, p. 41).
Nessa linha de raciocínio, para Oracy Nogueira (2007), o preconceito racial no Brasil
pode ser caracterizado como de marca. Isso significa dizer que se baseia no fenótipo ou
aparência racial. Segundo a autora, diferente dos Estados Unidos, onde a miscigenação, por
mais completa que fosse, não incluía o indivíduo no espectro branco, no Brasil, estes critérios
variam subjetivamente, fazendo com que mais pessoas não se identifiquem ou reconheçam
como negras.
Para Munanga (1999), o mito da democracia racial, que se baseia em dupla
mestiçagem (biológica e cultural) entre negros, brancos e indígenas, tem duas preocupantes
repercussões: “exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as
desigualdades” e impede “os membros das comunidades não-brancas de terem consciência
dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas” (MUNANGA, 1999, p. 80).
Além disso, a discussão acerca do racismo sob uma linguagem de status e classe4
contribui para esta diferenciação entre as relações raciais estabelecidas entre o Brasil e outros
países, ao mesmo tempo em que não admite que raça seja um dos principais elementos que
justifique as diversas expressões da questão social. É nesse sentido que Guimarães (1999,
p. 48) questiona a substituição do reconhecimento de formação étnica e racial no Brasil pelo
sentimento de nacionalidade – fenômeno que pretensamente permitiu que “[...] uma penumbra
cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis”.
Ainda que o processo de miscigenação não seja próprio do Brasil, o papel atribuído
ao mestiço livre no período colonial e monárquico assumiu características peculiares de
ascensão social, “um tipo socialmente aceito”, utilizado para preencher as lacunas
demográficas (deixadas pela escassez de brancos no período colonial) na realização de
funções militares e econômicas simples. É importante ressaltar que o tratamento diferenciado
não garantia uma vida livre do racismo e contribuía para o enfraquecimento de um sentimento
comum de consciência racial. É nesse sentido que a “democracia racial” é, tempos depois,

4“É claro que a situação racial no país, por se expressar dentro de um sistema de classes, está, por
assim dizer, contaminada por muito daquilo que se define classe social. Nem poderia ser diferente.
Porém, não se pode confundir as duas instâncias e nem ignorar o peso da variável raça nas relações
sociais e nos projetos de mobilidade social da população negra no Brasil” (PEREIRA, 1996, p. 78).
incentivada no ideário brasileiro – criando e dando continuidade a diversas falsificações da
história.

2.1 Apontando algumas distorções da história

Sabe-se que a necessidade de camuflar os conflitos no Brasil é antiga. A ideia da


existência de um “paternalismo” dos senhores no trato/convivência com a população
escravizada foi disseminada por bastante tempo. De acordo com Nascimento (1978), durante
séculos, o sistema escravista daqui ganhou fama internacional pelos seus traços
considerados mais “suaves” e “humanitários”. A “democracia racial”, enquanto ideologia
largamente propagada, foi a principal responsável pela criação desta realidade considerada
“cordial” e “afetuosa” entre as raças que aqui conviviam. A população mestiça é eleita,
inclusive, como símbolo desta “democracia”.
Em sua obra “Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre (2003, p. 265) aponta o
colonizador português como o mais “flexível” dentre os colonizadores europeus; como aquele
“[...] que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações
com os escravos”. Na concepção de Freyre, seja na presença ou ausência da mulher branca,
o homem português sempre inclinou-se para “o contato voluptuoso com a mulher exótica”.
Daí a proximidade entre casa grande e senzala, que, através das relações assimétricas de
poder, garantiu a origem histórica da miscigenação no país por meio da violência contra
mulheres negras.
É assim que Nascimento (1978) aborda o aspecto da miscigenação no Brasil: a partir
da exploração sexual da mulher negra. O autor descarta a ideia de uma suposta ausência de
preconceito racial por parte de homens brancos pelo fato de se relacionarem abertamente
com mulheres africanas. Pelo contrário, a fantasiosa teoria de interação sexual saudável entre
brancos e negras, enquanto desdobramentos de uma ideologia de democracia racial,
encobrem a forçada “[...] prostituição e o estupro sistemático e permanente da mulher africana
e de suas descendentes no Brasil” (NASCIMENTO, 1978, p. 63).
A escravidão praticada na América Latina também era considerada “menos dura”
quando comparada com a existente nas colônias inglesas do Norte, sob a justificativa de que
a influência da Igreja Católica teria sido decisiva para apregoar aqui um grau de “bondade”
diferenciado.
Em verdade, o papel exercido pela igreja católica tem sido aquele de principal ideólogo
e pedra angular para a instituição da escravidão em toda sua brutalidade [...]. O mito
da influência “humanizadora” da igreja católica procura exonerá-la de suas
implicações na ideologia do racismo sobre a qual a escravidão se baseava
(NASCIMENTO, 1978, p. 52).

Sobre este assunto, Clóvis Moura (2003) afirma que a Igreja Católica e seu clero
sempre foram escravistas no Brasil. Além de padres, muitas instituições e grupos religiosos
mantiveram escravos durante bastante tempo. A realidade é que a igreja nunca se posicionou
de forma contrária a este sistema, pelo contrário, beneficiou-se dele.

Além de ser o principal aparelho ideológico do escravismo, a Igreja Católica será sua
beneficiária privilegiada. Em razão desse vínculo estrutural da igreja com o
escravismo, alguns sacerdotes que se manifestavam contra a escravidão eram
repreendidos e/ou punidos. Exemplo disto é o padre italiano Bolonha que chegou ao
Brasil no final do século XVIII. Convencido da iniquidade da escravidão no país,
indignado com o que via cotidianamente, manifestou a sua opinião publicamente às
autoridades eclesiásticas [...]. Em consequência dessa ideia herética, o padre Bolonha
foi chamado a Portugal e nunca mais se teve notícias suas (MOURA, 2003, p. 4).

Além disso, o fato da América Latina possuir grande extensão territorial teria
garantido um número relativamente baixo de cativos em determinadas áreas, o que “[...]
ensejaria uma certa proximidade entre senhor e escravos, propiciando um tipo de tratamento
mais suave e humano para o último” (NASCIMENTO, 1978, p. 58). A verdade é que a
proximidade entre o litoral brasileiro e a África facilitou o comércio escravo e reduziu o preço
exigido por cada indivíduo, deixando as plantações brasileiras densamente povoadas pela
população africana escravizada.
Assim, as manobras utilizadas pelo colonialismo português trouxeram e fertilizaram
comportamentos bem específicos para a formação social do Brasil, contribuindo para a
criação de um aparente:

[...] selo de legalidade, benevolência e generosidade civilizadora à sua atuação no


território africano. Porém, todas essas e outras dissimulações oficiais não
dissimularam a realidade, que consistia no saque de terras e povos, e na repressão e
negação de suas culturas – ambos sustentados e realizados, não pelo artifício jurídico,
mas sim pela força militar imperialista (NASCIMENTO, 1978, p. 50).

Proprietários e mercadores de escravos no Brasil, a despeito das várias alegações


em contrário, em realidade submeteram seus escravos africanos ao tratamento mais
cruel que se possa imaginar. Deformações físicas resultantes de excesso de trabalho
pesado; aleijões corporais consequentes de punições e torturas, às vezes de efeito
mortal para o escravo – eis algumas das características básicas da “benevolência”
brasileira para com a gente africana (NASCIMENTO, 1978, p. 57).

Nascimento (1978) aponta ainda outras distorções incentivadas pelo ideário


colonialista que continuam a criar falsificações dos fatos históricos no Brasil. Uma delas é a
naturalização da prática de servidão levando em consideração que esta já existia entre os
africanos e que a própria população nativa cultivava e incentivava estas ações no seu modo
de agir local. Portanto, seria tão somente lógico que a escravidão fosse transplantada para a
América, dando prosseguimento a prática cultural dos seus cativos.
É importante salientar que a prática de manter escravos aparece de forma constante
na história da humanidade (HOFBAUER, 2006). Entretanto, esse argumento colabora com
posturas que retiram da população europeia ocidental a responsabilidade pela expansão e
manutenção, em grande escala, da escravidão aliada essencialmente à condição racial, a
qual estabeleceu posição central de exploração e opressão para o (a) negro (a) na economia
e na produção modernas.

No contexto de expansão europeia que se iniciara desde inícios da Modernidade, a


diferença negra parece grudar-se cada vez mais à desigualdade escrava, e pode-se
dizer que, se os comerciantes e colonos europeus não foram propriamente os
primeiros inventores desta conexão, certamente foram os primeiros a dar-lhe
simultaneamente uma centralidade mais definida e a beneficiá-la com o mecanismo
ideológico indispensável para um comércio que se faria intercontinental e diretamente
direcionado para um sistema produtivo onde o negro desempenhava o papel central
[...] (BARROS, 2009, p. 75-76).

Dessa forma, é possível afirmar que a ideologia do branqueamento, inculcada até a


história recente e atual do nosso país, foi e é crucial nas formas concretas e simbólicas de
manutenção do racismo estrutural. Na concepção de Guimarães (1999), a pretensão a um
antirracismo no Brasil tem raízes profundas: está assentada na constante lembrança de que
não perpassamos por nenhum período de segregação racial no plano formal (ao menos
durante a República), nem protagonizamos conflitos raciais abertos.
Na literatura, desde os estudos de Gilberto Freyre, no início dos anos 30, seguidos
por Donald Pierson, nos anos 40, e até, pelo menos, os anos 70, antropólogos e sociólogos
trataram de reafirmar e tranquilizar “[...] tanto os brasileiros quanto ao resto do mundo, o
caráter relativamente harmônico de nosso padrão de relações raciais” (GUIMARÃES, 1999,
p. 39).
A década de 1930, em especial, marca o início de uma valorização estereotipada do
mestiço. Antes visto como problema, agora este é visto como representação oficial da nação.
O movimento nacionalista “[...] se serve de elementos disponíveis, como a história, a tradição,
rituais formalistas e aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um “povo” que se constitui a
partir da supressão das pluralidades” (SCHWARCZ, 2013, p. 37).
Contudo, é crucial destacar que essa aparente valorização se dá apenas nas esferas
estabelecidas pelas próprias camadas dominantes como menos ameaçadoras. Os espaços
de poder e representatividade nacionais continuaram a ser dominados pela população branca.
Aliado a tudo isso, a ideia de uma democracia racial no Brasil, baseada na existência de uma
suposta cordialidade entre as raças, foi a fórmula perfeita para uma elite desejosa de
manutenção do status quo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A valorização da mestiçagem, por meio do nacionalismo, e o mito da democracia


racial combinaram perfeitamente com uma ideologia que há tempos buscava silenciar a
população negra através do branqueamento da “nação”. Nada melhor do que uma teoria que
ameniza os conflitos – negando a existência do preconceito racial por meio da harmonização
entre as raças – para garantir o alívio da elite branca, que agora pode usufruir de seus
privilégios sem a ameaça de um confronto aberto e direto como aqueles observados na África
do Sul e nos Estados Unidos. Ademais, o sufocamento das diferenças para criação de uma
“nova raça”, verdadeiramente brasileira, subentende o não reconhecimento de uma sociedade
plural em termos raciais.
Desse modo, apesar das mudanças observadas em outras esferas da vida humana,
as condições que mantinham a estrutura das relações raciais intactas no Brasil são renovadas
constantemente como condição para a manutenção do racismo instalado no país. Em termos
gerais, o preconceito e a discriminação racial continuaram fazendo parte da história brasileira,
ainda que, muitas vezes, de forma dissimulada. É o que alguns autores chamam de
antirracismo racista: um sentimento nacional que aparentemente condena o racismo e a
escravidão negra sem efetivamente concretizar algo que vá na contramão desta herança ou
que ao menos discuta e modifique os efeitos dessas questões na vida da população negra
brasileira.
Debater os efeitos dessas políticas e suas intenções, apoiadas pelo Estado e
orquestradas pela elite branca, significa reescrever a história do Brasil. É preciso reconhecer
que o racismo cordial construído no país tem bases muito profundas – até mesmo a
justificativa de que aqui não tivemos segregação racial oficial pode e deve ser questionada:
basta analisar os jornais das primeiras décadas do século XX e sua exaltação ao movimento
eugenista.
O sistema de classes e étnico-racial desenvolvido no Brasil buscou preservar a
população negra como indivíduos flutuantes e ahistóricos. Seja como exército de reserva,
como tipo não-ideal ou como sujeito marginalizado, essa população ainda concentra os piores
índices no que se refere à saúde, educação, trabalho, moradia, etc. Com isso, chama-se
atenção para a importância de revisitar o passado para compreender o presente. Questiona-
se, principalmente, a colonialidade do poder – que continua contribuindo para a utilização
dessas e outras artimanhas para a manutenção do racismo no Brasil.

REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. A Construção Social da Cor: diferença e desigualdade na


formação da sociedade brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

BRASIL. Decreto nº 7.967, de 18 de setembro de 1945. Dispõe sôbre a Imigração e


Colonização, e dá outras providências. Revogado pela Lei nº 6.815, de 1980. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del7967.htm>. Acesso em
12 out. 2018.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime
patriarcal. São Paulo: Global, 2003.

GUIMARÃES, Antonio. Racismo e Antirracismo no Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio


à Universidade de São Paulo, Editora 34, 1999.

GUIRALDELLI, Reginaldo; ENGLER, Helen. As categorias gênero e raça/etnia como


evidências da questão social: uma reflexão no âmbito do Serviço Social. In: Serviço Social
e Realidade, Franca, v. 17, n. 1, p. 248-267, 2008. Disponível em:
<https://ojs.franca.unesp.br/index.php/SSR/article/view/12/77>. Acesso em 03 nov. 2018.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São


Paulo: Editora UNESP, 2006.

MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Contexto, 2010.

MOURA, Clóvis. A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro.


Maceió: EDUFAL, 2003.

MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus


identidade negra. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de


um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. In:
Tempo social, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, Jun/2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf>. Acesso em 15 jan. 2019.
PEREIRA, João Baptista. Racismo à brasileira. In: MUNANGA, Kabengele (org.).
Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: EDUSP, 1996.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013.

Você também pode gostar