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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Jurídicas e Políticas


Escola de Ciência Política

Paulo Roberto Almeida dos Reis Junior

EBSERH, HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS PÚBLICOS E AS DIRETRIZES


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: um reflexo político da desconexão entre o interesse
das instituições e dos receptores do serviço

Rio de Janeiro

2014
1
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Jurídicas e Políticas
Departamento de Estudos Políticos
Faculdade de Ciência Política

Paulo Roberto Almeida dos Reis Junior

EBSERH, HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS PÚBLICOS E AS DIRETRIZES


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: um reflexo político da desconexão entre o interesse
das instituições e dos receptores do serviço

Artigo apresentado à Escola de Ciência


Política para a disciplina “Orientação
Monográfica II”, como requisito parcial à
obtenção do grau de bacharel em Ciência
Política.

Orientador: Luiz Otávio Barreto Leite


Coorientadora: Clarisse Toscano de Araújo
Gurgel

Rio de Janeiro
2014

1
EBSERH, HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS PÚBLICOS E AS
DIRETRIZES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: um reflexo político da desconexão
entre o interesse das instituições e dos receptores do serviço

EBSERH, PUBLIC UNIVERSITY HOSPITALS AND THE PUBLIC


POLITICS GUIDELINES: a political reflection of the disconnection between the
institutions desires and their receivers’ service
Paulo Roberto Almeida dos Reis Junior1

RESUMO
Este artigo se dedica a percorrer o vasto campo, permeado por complexidades,
do pensar a saúde pública partindo de suas diretrizes institucionais e encontrando os
resultados de tais decisões dentro da esfera social. Uma vez que o tema trabalhado é
composto por modalidades de enfoques – jurídicas, políticas, sociais, econômicas – o
primeiro cuidado tomado foi de coletar dados capazes de abarcar as especificidades
(zonas de atuação, formas, reações) vislumbrando transcrever plenamente para o papel
os debates mais recorrentes que circundam a Saúde Nacional. Partindo da Lei
12.550/2011 encontramos a criação de uma instituição marcada por significados
antagônicos, denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Essa
aparece dentro de um cenário em que os problemas do âmbito da saúde nacional tomam
destaque devido à situação calamitosa de descaso. Nos últimos cinco anos, a situação
dos hospitais no país vem ganhando espaço através da mídia com o acontecimento de
situações que atacam diretamente os princípios delimitados na Carta de 1988 e na
Declaração de Direitos Humanos. Não apenas isso, o estágio de deterioração das
instituições prestadoras de serviço de saúde vem alcançando as camadas sociais de
maior poder econômico, e assim, maior poder de pressão nas esferas políticas
brasileiras. A crise dos planos de saúde é sinal claro da insustentabilidade da situação
gerando ônus aos governantes que, em resposta, acionam um pacote de medidas que
visam corrigir, dentro dos interesses mais relevantes para esses, tais mazelas. É objetivo
deste artigo, então, identificar através de metodologia confiável os elementos que dão
formas e relevo a essa grande arena de debate que tem como a EBSERH o seu eixo
central. O mesmo terá como postura o apontamento de enfoques relevantes para

1
Paulo Roberto Almeida dos Reis Junior é graduado em Ciência Política pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro – prarj@outlook.com.

2
entender o processo de escolha de determinada medida como política ideal para sanar
determinado processo, reflexões sobre o porquê da escolha específica, como ela toma
forma, a quem se dirige, e quais as reações a ela dentro da esfera da vida real e social.
Por fim, serão traçadas algumas linhas que demonstram o desenvolvimento de uma
tentativa de pensar o público em diálogo cada vez mais arraigado nos ideais da
mediação pelo Mercado e do sistema vigente, reduzindo a dimensão humana e inflando
a dimensão da eficiência pela competitividade. Adianta-se que esse trabalho conclui,
basicamente, que a reprodução da lógica utilizada na escolha das políticas nacionais
não, apenas, termina por não resolver os problemas vislumbrados, como atuam na
manutenção de uma delicada situação que prejudica com maior intensidade as camadas
de menor capital econômico. É clara a desconexão entre os interesses do Mercado, e
aqueles do povo.
Palavras-chave: EBSERH; políticas públicas; saúde; desconexão

ABSTRACT
This article is dedicated to traverse the vast field, permeated by complexities, of
public health thinking, starting on their institutional guidelines and finding the results of
such decisions within the social sphere. Once the theme is composed by modalities of
approaches - legal, political , social, economic - the first care taken was to collect data
which could grasp the specifics (areas of operation, forms, reactions) glimpsing fully
transcribe to paper the most recurrent debates that surrounds the National Health.
Starting on the Law 12.550/2011 we found the creation of an institution marked by
antagonistic meanings, called Brazilian Hospital Services Enterprise (EBSERH)2. This
appears in a scenario where the national health problems take prominence due to
calamitous situation of neglection. Over the past five years, the situation of hospitals in
the country is gaining momentum through the media by the event of situations that
directly attack the principles defined in the 1988 Constitution and the Declaration of
Human Rights. Not only, the health services provider institutions stage of deterioration
is reaching the highest economic power social layer, and so, the most capable layer to
pressure the Brazilian political spheres. The crisis in healthcare plans are a clear sign of
the unsustainability of the situation generating burden to governments that, in turn,
trigger a package of measures aiming the correction of those but considering the most
relevant to those interests. It is the aim of this article, to identify through reliable
2
Portuguese letter to Brazilian Hospital Service Enterprise.

3
methodology the elements and forms that give relief to this large arena of debate that
has as its central axis EBSERH. The same will posture the appointment of relevant
approaches to understand the process of choosing a certain extent as an ideal remedy to
given process, reflections on why the specific policy is chosen, how it takes shape, to
whom it is addressed, and what reactions is within the realm of reality and social life.
Finally, some lines are drawn to demonstrate the increasingly development of an
attempt, to think the Public, rooted in the ideals of dialogue with Market and mediation
by the current system, reducing the human dimension and inflating the size of efficiency
for competitiveness. This work concludes basically the reproduction of the logic used in
the choice of national policies not only ends up not solving the problems envisioned, as
act in maintaining a delicate situation that harm with greater intensity people of lower
economic capital. It is clear the disconnection between the interests of the Market and
the ones of the people.
Key words: EBSERH; public politics, health, disconnection

INTRODUÇÃO
EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), ou lei 12.550/2011
pode ser vista inicialmente nos marcos do que diz o art. 3º da própria lei que autoriza
sua criação, ou seja, um aparelho de prestação de serviços hospitalares diversos aos
hospitais públicos. A prática de terceirização, como é conhecida, é bastante comum
dentro das políticas tidas como prestadas pelo poder público, como já podemos ver nas
empresas de limpeza que são contratadas para prestar seu serviço dentro de instituições,
e que, portanto, pressupunha a prestação de concurso para admissão.
No entanto, a forma em que se delimita a EBSERH é muito mais abrangente do
que a simples prestação de serviços, e que ultrapassam todas as tênues barreiras entre a
terceirização e a privatização. A lei 12.550/2011 fornece à sua criação os poderes de
cooptação total do funcionamento dos hospitais públicos, seja modificando sua natureza
jurídica para o Direito Privado, seja controlando através de uma nova hierarquia de
comando, ou seja pela nova forma de captar recursos econômicos e humanos.
O projeto EBSERH inaugura uma nova lógica de se pensar saúde gratuita no
Brasil, amparada em princípios neoliberais de regulamentação através do mercado e
discurso de eficiência através da lógica concorrencial. Este se insere não só na prestação
de serviços voltados para sua política pública correlata, como também tem poderes

4
sobre a atividade de pesquisa em saúde, sendo então, também, regulada pelo MEC
(Ministério de Educação e Cultura).
Na linha de raciocínio que se pretende estabelecer, vislumbra-se que, desde o
discurso, a legitimação do projeto EBSERH, no sistema público de saúde, - um claro
rompimento com os padrões de qualidade e dignidade para o povo que o utiliza, visando
interesses terceiros –, não é capaz de se fazer presente. A situação toma uma feição
ainda pior quando o aparelho pré-construído, em séculos de experimentação, vem sendo
propositalmente sucateado, ignorando totalmente o prejuízo que a sociedade possa
sofrer com essa postura. As denuncias giram ao entorno de: fechamento de leitos,
remoção de equipamentos, revogação de concurso, retirada de verbas para reforma,
dentre outras.
O antropólogo Pierre Clastres procura sublinhar a falácia da denominação de
uma sociedade primitiva como não havendo Estado ou, - e aqui o que nos interessa –,
Mercado. Se as técnicas não são construídas na lógica da geração do excedente, então
são designadas a um patamar inferior, ainda que estas funcionem bem em seu contexto,
e com o devido zelo. “Não existe, portanto hierarquia no campo da técnica, nem
tecnologia superior ou inferior, só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua
capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade.”3

Quem já dependeu do serviço público de saúde brasileiro sabe como é difícil


conseguir um atendimento digno, ou em tempo viável. Já está no cotidiano do cidadão
ouvir reclamações de seus próximos sobre as mazelas dessa área de atendimento. E as
causas apontadas são muitas, e das mais diversas. Falta de profissionais, falta de
compromisso profissional, falta de recursos, falta de tempo viável para atender
determinada montante de pacientes. O que podemos inferir disso é que são muitas
faltas, para algo que se pretende fazer o melhor sistema universal de atendimento na
área de saúde.
Ainda que o Brasil seja o segundo país em número de cursos de medicina,
perdendo apenas para a Índia, essa mão de obra encontra dificuldades, seja pela lógica
concorrencial de mercado; nos altos custos de investimento para se abrir um negócio
particular; ou na baixa abrangência da contratação dos planos de saúde. A situação,
nesses âmbitos, não se faz satisfatória nem para os profissionais do regime privado, nem
para o povo brasileiro.
3
CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Pirateado pelo Coletivo Sabotagem (?), 2004.

5
A qualidade dos serviços públicos de saúde acha-se na
dependência do fornecimento de remédios, vagas, e leitos nos
pronto-socorros e hospitais e de outros fatores como a
contratação de médicos especializados ou de enfermeiros em
número apropriado – todos itens que devem ser bem estimados
na elaboração do plano orçamentário. Às notórias falhas de
planejamento, prestadas pelos gestores públicos da saúde, se
deve acrescer o problema da não-aplicação, pelos agentes do
Poder Executivo (situados nos três níveis federativos), dos
recursos financeiros previstos pela lei orçamentária para
determinadas tarefas e serviços públicos.4

É factível que grande parte dos problemas da saúde pública do Brasil dialogue
com a má gestão e da má confecção do plano orçamentário. Porém, ingênuo seria
acreditar na pura incompetência dos policy makers para explicar esse fenômeno. O nível
de perpetuação da “fazer” saúde pública no Brasil indica também uma perpetuação dos
elementos que a pensa. Nesse sentido, no horizonte direto que compõe criação e
criatura, aquilo que se encontra enquanto realidade de política pública é composta de
elementos racionalizados, e não puramente falhas e incapacidade de gerir, que por sinal
é o maior estandarte de defesa do projeto EBSERH.

Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja
política pública. Mead (1995) a define como um campo dentro
do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes
questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do
governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986)
segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades do
governo, que agem diretamente ou através de delegação, e que
influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição
de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não
fazer”. A definição mais conhecida continua sendo a de Laswell,
ou seja, decisões e análises sobre políticas públicas implicam
responder as seguintes questões: quem ganha o quê, por quê, e
que diferença faz. Outras definições enfatizam o papel da política
pública na solução de problemas.5

4
LEITE, L.O.F.B.; Emergência do Sistema Único de Saúde (SUS): a efetividade do direito à saúde e a
sua problemática. (NO PRELO).

6
Conhecendo tal realidade, qual o motivo por trás da escolha do projeto EBSERH
como grande cura da endemia que toma o SUS? Teóricos das políticas públicas por
vezes entendem tais escolhas como um processo sem correlação direta entre problema e
solução, como a teoria da trash can6, no entanto, é notória dentro da ciência política que
as ações respondem ao interesse de alguém, nem que seja do próprio promotor das
medidas tomadas. Como supracitado, o projeto EBSERH tenta se justificar pela
potencialização da eficiência na correção das mazelas na saúde pública. Assim, o
problema identificado é a generalizada incapacidade do SUS em atender a população
brasileira, e a solução está no projeto.
Pelo discurso, a implementação do projeto 12.550/2011 estaria em resposta à
demanda que surge na arena social. No entanto, situações podem abrir questionamentos
a essa linha de raciocínio que dialoga com a idéia de Pierre Clastres. No IDSUS (Índice
de Desenvolvimento do Sistema Único de Saúde), liberado em 2012 7, meses antes da
proposição do PL tratado, o Brasil obteve índice de 5,47 em dez pontos, enquanto a
cidade de Vitória foi a capital de maior pontuação, atingindo sete pontos. No entanto,
um dos primeiros hospitais universitários a aderir a EBSERH foi justamente o referente
à Faculdade Federal do Espírito Santo (UFES).
Apesar da natureza polêmica da esfera política, as aparentes incoerências entre o
diagnostico dos problemas e as decisões tomadas podem, em sua maioria, ser traduzidas
como plano racional em que os interesses de implementação são desconexos com os
interesses dos receptores dos serviços, ou não são diretamente correlacionados à
natureza essencial do problema.
Dessa amalgama de situações nasce o artigo, com caminho bem traçado,
buscando responder algumas dessas perguntas, e criar muitas outras. Ao longo das
próximas páginas se desenrolará todos os dados recolhidos tencionando acrescentar ao
debate. O artigo será desenvolvido com o seguinte formato:
A primeira parte será destinada para explicar o que é o projeto EBSERH
enquanto lei, expor os principais pontos e artigos, como isso seria importado para o
cenário real, e suas brechas; a segunda parte trará as situações criadas como forma de
estratégia de implementação dentro da esfera da vida real, ou daquilo que se observa; a

5
SOUZA, C.; Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Scielo, ano 8, n. 16, jul./dez. 2006,
p.20-45.
6
Teoria desenvolvida por Michael Cohen quebrando com a visão racionalista da conexão entre problemas
e medidas corretivas devido ao alto grau de incerteza e interferência no processo.
7
Dados coletados nos anos de 2008 a 2010, portanto, anteriores ao projeto de lei criador da EBSERH.

7
quarta parte se dedicará a discutir os efeitos do projeto às Universidades e suas
atividades de pesquisa; e por fim passaremos pelas localidades que já aderiram ao
projeto, a forma de contrato e situações derivadas.

1. METODOLOGIA
Esse é um trabalho de analise de uma política pública recentemente em voga,
portanto, boa parte dele são ponderações sobre as conseqüências dessa política quando
em contato com seus objetos de ação. Também é uma analise da própria concepção de
fazer política pública, sendo essa com um escopo mais antigo, o que pressupõe
pontuações amparadas em conhecimentos adquiridos ao longo da graduação em Ciência
Política.
Tão embora o tema central de discussão seja especificamente a EBSERH, esta
aparece dentro de um pacote de medidas que complementam sua própria natureza e
tentam justificar seus motivos de existir. Como objeto de estudo, a EBSERH deve tomar
forma para então ser analisada, com esse raciocínio voltamos aos supracitados enfoques.
Foi necessário buscar, utilizando a internet como principal ferramenta de acesso, dados
e fatos que delimitavam o que era o objeto de estudo, como ele era visto por seus
criadores, defensores, opositores, pela mídia e envolvidos diretos. Através da utilização
da internet foi possível coletar informações sobre sua tramitação enquanto lei, formação
enquanto figura jurídica, e feedbacks enquanto tentativa de implementação, em diálogo
com as demais medidas voltadas para sanar os problemas da saúde pública nacional.
Nesse sentido, recorreu-se diretamente aos endereços eletrônicos dedicados à
fornecer oficialmente dados sobre o projeto, como também centros virtuais de
informação voltados para debater as conseqüências de adotar tal modelo. Também são
consideradas noticias que circulam na mídia virtual sobre fatos e acontecimentos
conectados com a situação. Como observação de medida governamental também foram
consultados sítios oficiais dos centros políticos do Brasil como o Senado Federal,
Tribunal de Contas da União, ou Conselho Nacional de Saúde.
Ainda expondo as ferramentas e artifícios virtuais utilizados, intencionando
entender melhor o horizonte dos debates das políticas públicas de saúde dentro das
camadas acadêmicas e dos profissionais diretamente envolvidos, com raízes na cidade
do Rio de Janeiro, mas reflexos em todo o país, por sua forma de atuação e pelo tema se
desenhar de forma nacional, fez-se possível ter acesso a um grupo de emails contendo
aproximadas 3800 correspondências virtuais, desde o dia 20/05/2013 até o fechamento

8
desse artigo em janeiro de 2014, tratando dos debates correlatos por membros de
variadas origens dentro do “Fórum de Saúde Rio de Janeiro”.
Como um segundo passo, compreendendo que acrescenta valor a analise o
contato com o objeto de debate, para melhor discernimento científico sobre a
procedência das informações, pode ser dito que a modalidade de “observação
participante” foi utilizada. O trabalho de campo, o envolvimento físico com a pesquisa,
a despeito de seus possíveis perigos, desmistifica o conceito de ciência, reintroduzindo a
idéia de humanidade dentro de um cenário acadêmico ainda bastante apegado à suposta
neutralidade positivista.
Inaugurado por antropólogos de renome como Bronislaw Malinowski, a técnica
não está muito distante da política como em estudos de Karina Kuschnir. É, pelo
contrário, muito feliz uma vez que política é amplamente entendida como correlação de
poder no contato entre dois ou mais seres humanos. Presenciar o desenrolar do fato
social é, portanto, evitar parte de uma possível deturpação dos meios de analise através
de relatos imprecisos ou apontamentos excessivamente tendenciosos.
Dessa forma, parte das informações contidas nesse artigo terão sido
experimentadas pelo próprio autor, sem interferência decorrente de relatos terceiros, ou
como análise do próprio relato terceiro, sendo ele fonte primária das observações
utilizadas para compor o artigo. Embora tal prática pese negativamente no que tange ao
ideário acadêmico do amparo ao máximo em sólidos trabalhos anteriores, tenta fazer-se
positivo inaugurando uma reflexão fresca sobre uma temática parcialmente nova.
Por fim, como terceiro grande quadro metodológico utilizado, o trabalho passa
por leituras de artigos, trabalhos, papers e derivados que compõem o arcabouço
acadêmico da discussão dos rumos desejados para as políticas públicas, mais
especificamente no que tange à saúde. Ainda sendo um trabalho mais voltado para
avaliação daquilo que se desenha fisicamente na arena social, busca-se enriquecer a
leitura tendo como base os teóricos de pensamento político/sociológico/antropológico.

2. DISCUSSÃO

2.1 EBSERH enquanto Projeto de Lei e suas incoerências


De autoria do Congresso Nacional, e pouco alterada ao ser sancionado pela
Presidenta Dilma Rousseff, o Projeto de Lei 12.550, de 15 de dezembro de 2011, dá
forma e função à EBSERH ao longo de seus 17 artigos correlatos. Como procedimento

9
didático vamos dedicar à essa parte do trabalho um espaço de comentários ao conjunto
de informações que formam essa lei, e fecharemos com um resumo da Ação Direta de
Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel
Santos.
O artigo primeiro diz respeito à sua fundamentação jurídica, alertando para sua
personalidade de direito privado, mais tarde discutida pelo Procurador-Geral, seu
patrimônio próprio, sua vinculação ao Ministério da Educação, e como passagem mais
interessante, sua duração indeterminada. A entidade EBSERH se propaga com o
discurso de amparo ao sistema público de saúde, e, portanto, pressupunha-se como
duradoura apenas enquanto existir o problema a ser sanado. A duração indeterminada da
EBSERH é o primeiro anuncio de uma medida que pouco dialoga com o refino da
estrutura anterior, mas à perpetuação de sua própria essência. Os parágrafos que compõe
este artigo se referem à localização de sua sede, e sua capacidade não limitada de
descentralização em forma da criação de subsidiárias.
O artigo segundo determina que o capital social do projeto seja coberto pelo
orçamento da União e pela incorporação de bens, temporária, dos contratantes. Sendo
capital social, todo aquele recurso necessário para que seja instaurada e inaugurada a
empresa, volta o questionamento: Por que é mais fácil deslocar recursos para custear
todo um processo de transição do público para o privado e dar condições de
funcionamento inicial, mas não se faz possível destinar o mesmo recurso para revitalizar
os espaços públicos “in natura”?
O artigo terceiro revela a finalidade inicial da EBSERH, “prestação de serviços
gratuitos de assistência(...)”. A gratuidade dos serviços é garantida com o pagamento
das despesas pelo Estado, e com a utilização dos espaços e estruturas das contratantes.
Faz-se assim suspeito refletir sobre o porquê dos recursos para garantir o serviço da
Empresa estarem disponíveis após a implementação, e não estarem nas mesmas
instituições anterior à adesão. A cobertura dos gastos segue e se especifica como no
terceiro parágrafo: “É assegurado à EBSERH o ressarcimento das despesas com o
atendimento de consumidores e respectivos dependentes de planos privados de
assistência à saúde (...)”.
Já anunciado no terceiro artigo – “(...) apoio ao ensino, à pesquisa, e à
extensão(...)” – o quarto artigo define as seis grandes competências do projeto. Curioso
que quatro das competências centrais se focam em reafirmar o apoio da Empresa nas
atividades profissionais e de pesquisa dos hospitais de instituições federais de ensino. A

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transferência de tantas prerrogativas para competência da EBSERH destoa do tom de
“apoio”, como atividade secundária às definições da instituição anterior, e acaba se
transformando em interferência e cooptação.
Escondido entre o quarto e o sexto artigo, está o quinto que se limita a deixar a
EBSERH dispensada de qualquer processo licitatório, ferindo os princípios de
impessoalidade da administração pública, alertado por Roberto Gurgel em sua ação.
Com a convicção na capacidade de sanar os problemas da saúde nacional, não se faz
possível imaginar um único motivo para privilegiar a EBSERH, atropelando os
princípios estipulados na Constituição Federal.
O sexto artigo se foca em descrever a relação da EBSERH com as instituições
federais de ensino tendo em vista o principio da autonomia universitária. Como, porém,
esperar que exista alguma autonomia universitária quando a Empresa estipula as
obrigações (art.6º,§1, I); prazos e metas (art. 6º,§1, II); critérios para avaliar eficiência
(art. 6º,§1, III) e possibilidade de utilização desses parâmetros para “aprimorar” o
sistema (art. 6º,§1, IV). A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares já possui carta
branca para atravessar os princípios básicos da limpa administração pública, a
autonomia de uma ou outra autarquia não seria obstáculo pelo “bem maior”.
O artigo 8º traz a descriminação dos recursos referentes à Empresa. O item “c”
do segundo elemento apresenta sutilmente parte inerente da lei 12.550, ou seja, “das
aplicações financeiras que realizar”. Apesar da EBSERH ser defendida como
ferramenta de refino administrativo, é claro o interesse em garantir a possibilidade de
circular capital, deslocando capital que deveria ser reinvestido em saúde para atividades
especulativas como compra de ações. O item IV também abre ressalvas no repasse para
reservas legais e de contingência. Não é novidade alguma na política institucional que
os fundos de contingencia sejam utilizados para desvios e atividades não-correlatas
como moeda de troca.
Passando para o nono artigo, encontramos o §4º: “a atuação dos membros da
sociedade civil no Conselho Consultivo não será remunerada e será considerada como
função relevante”. Espaço figurativo visto que a relevância não é determinada, o
Conselho é consultivo e não deliberativo, e se aproveita do histórico da pouca
participação generalizada da população em qualquer atividade política de relevância.
Portanto, o centro diretor da EBSERH fica nas mãos do núcleo desejado, com pouca ou
nenhuma influência.

11
Os artigos seguintes, de número 10, 11 e 12 são contestados pelo Procurador-
Geral da República Roberto Gurgel sobre a vinculação dos contratos ao CLT, como
regime celetista, aos contratos temporários, sendo esses formalmente inconstitucionais,
e que, possivelmente, recairia com prejuízo aos profissionais vinculados às instituições
contratantes. A situação já decadente de trabalho dos profissionais de saúde estaria em
risco, uma vez que o critério de manutenção dos mesmos nos cargos se modificaria
dedicando a eles menor estabilidade. Uma vez que o grande problema identificado pelos
defensores da EBSERH, no sistema de saúde, é a administração de recursos, a quem
interessa a modificação do regime de trabalho dos atuais profissionais lotados e os
futuros?
O artigo de número 13 se refere à transferência de bens e recursos da instituição
contratante à EBSERH durante o contrato, com retorno à situação inicial ao fim. No
entanto, uma vez transferido os recursos, a instituição inicial estará rendida até o fim da
parceria às diretrizes de um elemento que deveria se firmar como apoio. Situação
semelhante às Fundações de Apoio que se espalham pelas universidades públicas,
prendendo e circulando seus recursos econômicos.
Seguindo ao próximo, artigo 14, temos aquele que determina os órgãos de
fiscalização à EBSERH, sendo eles o Poder Executivo e o TCU. No entanto, o Tribunal
de Contas já havia assinalado (TC-016.954/2009-5) para os descasos ocorridos ao longo
do processo de crescimento da ideia EBSERH, principalmente naquilo que tange aos
hospitais universitários, sem muita ressonância ou modificações ao formato de
implementação da Empresa.
O artigo 15 autoriza a EBSERH a aderir a sistema de previdência privado já
existente. Considerando a possibilidade de investir, ou retirar recursos para atividades
conectadas, e que o sistema previdenciário é um dos maiores concentrações de recurso
no Brasil como o fundo Previ, entendemos a necessidade de estipular um artigo voltado
justamente para garantir a atividade, sem dúvidas ou possibilidades de questionamento.
O penúltimo artigo voltado para EBSERH, de número 16, delimita que uma vez
assinado o vinculo entre a Empresa e a instituição contratante, esta primeira tem um
prazo de um ano para normalizar as atividades, como com a reativação de leitos e
contratação de pessoal. Curioso a utilização de reativação, e não de expansão, uma vez
que boa parte das críticas se referem à falta de leitos, que aparentemente – e se provará
mais tarde – existem, mas foram desativados. Considerando que os recursos da

12
EBSERH provêm inicial, e principalmente, dos cofres públicos, é questionável a medida
de não reativação antes do contrato.
O artigo 17 autoriza os Estados a criarem empresas públicas voltadas a serviços
hospitalares. No entanto, como aponta o Procurador-Geral Gurgel, para criação de
empresas de natureza públicas, como autarquias, faz-se necessário a existência de lei
complementar de autoria federal, pelo inciso XIX do art. 37 da CR. Essa falha, por sua
vez, se apresenta no projeto geral da PL 12.550/2011, ou seja, mesmo o projeto
EBSERH carece de lei complementar.
Cobrindo um último aspecto utilizado pelo Procurador-Geral para atestar a
inconstitucionalidade da PL 12.550/2011 à sua época, explicamos o fato da mesma não
possuir uma lei complementar uma vez que essa repete, em quase completude, o texto
da Medida Provisória nº 520, de dezembro de 2010, cujo valor se perdeu uma vez que
no período de seis meses (junho de 2011) não se aprovou a MP como lei, e por tal fato,
transgride a própria lei ao copiá-la em forma de projeto de lei em dezembro de 2011.
A medida cautelar decorrente desse ato de inconstitucionalidade foi indeferida,
no entanto, e nesse sentido, podemos ter uma clara visão do pano de fundo o qual a PL
12.550/2011 pertence. Sancionada passando por cima do corpo constitucional, das
normas da administração pública, e de uma leitura do “fazer políticas públicas” como
algo responsivo a real demanda encontrada na sociedade, suas incoerências transpassam
os limites do próprio discurso que será visto ao longo do trabalho.

2.2 Plano de fundo e estratégias de implementação


Decretado em 27 de janeiro de 2010, o ato nº 7.082 foi a fertilização do terreno
para implantação futura da EBSERH, decretada em mesmo ano, mas só transcrita em
projeto de lei no ano seguinte. Regulamentado no Diário Oficial da União em 5 de julho
do mesmo ano, o dispositivo chamado de REHUF (Programa Nacional de
Reestruturação dos Hospitais Universitários) propõe diretrizes diretas para entender as
funções dos hospitais universitários em relação ao ensino e ao atendimento em saúde, e
a partir disso, destinar novos recursos à essas instituições em vista de possibilitar seu
pleno funcionamento.
Assim diz o segundo artigo do decreto 7.082, que o dá sentido e forma: “O
REHUF tem como objetivo criar condições materiais e institucionais para que os
hospitais universitários federais possam desempenhar plenamente suas funções em
relação às dimensões de ensino, pesquisa e extensão e à dimensão da assistência à

13
saúde.” E, apesar de propor claros horizontes sobre o que se entende como ensino ou
atendimento à saúde pública, este em seus quatro primeiros artigos, em dez no total, não
aparentam interferir na autonomia universitária.
No entanto, ao enfrentarmos os artigos quinto, sexto e sétimo, notamos ali o
vínculo claro com o projeto 12.550/2011. Dispõe o artigo 5º:

Art. 5o  Para a realização dos objetivos e diretrizes fixados nos


arts. 2o e 3o, serão adotadas as seguintes medidas:
I - modernização da gestão dos hospitais universitários federais,
com base em transparência e responsabilidade, adotando-se
como regra geral protocolos clínicos e padronização de insumos,
que resultem na qualificação da assistência prestada e otimização
do custo-benefício dos procedimentos;
II - implantação de sistema gerencial de informações e
indicadores de desempenho a ser disponibilizado pelo Ministério
da Educação, como ferramenta de administração e
acompanhamento do cumprimento das metas estabelecidas;
III - reformas de prédios ou construção de unidades hospitalares
novas, com adequação às normas da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária - ANVISA e às disposições específicas do
Ministério da Saúde sobre espaços destinados à atenção de média
e alta complexidade;
IV - aquisição de novos equipamentos de saúde e substituição
dos equipamentos obsoletos, visando a utilização de tecnologias
mais modernas e adequadas à atenção de média e alta
complexidade;
V - implantação de processos de melhoria de gestão de recursos
humanos;
VI - promoção do incremento do potencial tecnológico e de
pesquisa dos hospitais universitários federais, em benefício do
atendimento das dimensões assistencial e de ensino;
VII - instituição de processos permanentes de avaliação tanto das
atividades de ensino, pesquisa, extensão e inovação tecnológica,
como da atenção à saúde prestada à população;
VIII - criação de mecanismos de governança no âmbito dos
hospitais universitários federais, com a participação de
representantes externos às universidades. 
§ 1o  Os Ministérios da Saúde, da Educação e do Planejamento,
Orçamento e Gestão elaborarão, em conjunto, grupo de

14
parâmetros que contribua para a definição dos quadros de lotação
de pessoal, à luz da capacidade instalada e das plataformas
tecnológicas disponíveis.  
§ 2o  Deverá ser mantida permanente atualização da infra-
estrutura física e do parque tecnológico, de modo a conter a
depreciação. 

Não se pode dizer que não são exigências naturais para um projeto de
investimento, ou injeção de recursos, esperar que a instituição beneficiada otimize a
utilização dos mesmo e de garantia da capacidade de geri-los. Assim como os artigos
sexto e sétimo que estabelecem um plano de reestruturação vinculado ao MEC e ao
Ministério da Saúde, e um cronograma para atingir esses resultados, proposto pelos
mesmos.
Contudo, esse é um pacote fechado para adoção da EBSERH, que propõe fazer
um trabalho de gestão que cumpre exatamente esses mesmos pontos, respondendo aos
mesmos ministérios, com o adicional de possuir uma fonte de recursos própria. Com
esse fértil terreno, o gestor já desinteressado pelas condições de seu hospital
universitário, mas interessado nos recursos que podem entrar, – e podem ser realocados
sob a justificativa de estar sendo gasto em “ensino”, – não encontram motivos para não
vincular sua instituição ao programa.
É afirmado o desinteresse em gerir, pelo gestor em questão, uma vez que
REHUF e EBSERH são projetos diferentes, no entanto, apesar da oferta de novas
verbas no orçamento, é necessário que o hospital universitário funcione de forma plena
e total. Não foi o que se seguiu nos anos de 2011 até 2013, em que os relatos de
fechamentos de leitos e diminuição de capacidade operacional se tornaram discurso
comum na grande maioria das instituições de ensino federal voltadas à saúde pública.
Tomemos como exemplo o caso do Rio de Janeiro, que segundo dados coletados
de 2008 a 2010 já despontava como a pior capital brasileira em fornecimento de saúde
pública, segundo o IDSUS, com índice de 4,5 em 10, abaixo da média nacional. Em
2010, dez centros vinculados à faculdades federais da região foram contemplados pelo
REHUF, porém essa foi a fase de maior degradação dos hospitais universitários, como o
próprio Gaffrée Guinle (UNIRIO).
Não somente isso, tais hospitais acabavam tendo por atender uma parcela muito
maior da população já que os demais hospitais públicos também se encontravam em
processo de degradação. Podemos citar a precarização na capacidade de atendimento do

15
INCA, e do Instituto Nacional de Cardiologia que foi palco de sérios enfrentamentos
contrários ao pressionamento da EBSERH. O esquecimento de prédios estruturados
como o edifício do antigo IML que sanaria parte da falta de leitos. E, em 2012, talvez o
mais gritante, a ordem de fechamento do IASERJ, cuja pressa em se fazer cumprir por
motivos não explicados gerou a morte de 15 pacientes, segundo AFIASERJ e
organizações parceiras, antes de sua demolição.
Nesse contexto, nasce o Fórum de Saúde do Rio de Janeiro, sediado no prédio da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Este junta, em reuniões mensais, estudantes,
professores, entidades, sindicatos, movimentos afins, membros da sociedade civil e
qualquer um que queira participar para debater as mudanças na realidade da saúde
pública da cidade e do resto do país. A abrangência, e afinco, do fórum, e seus
membros, merece destaque nesse trabalho, pois explicita a intenção contrária ao
mercado em que o discurso da EBSERH tenta se inserir.
O sistema de saúde público é universal, pois segue princípios de dignidade
humana que a ninguém podem ser negados. Nessa linha de raciocínio, inferindo
intenções é válido ressaltar a atitude de coletivos que debatem com abrangência de
personalidades, muitas vezes díspares, em contraponto ao projeto que pretende gerir
saúde para todos, mas marca reuniões pouco divulgadas apenas com reitores e
conselheiros e faz seu material explicativo claramente destinado a eles, e não aos
usuários e outros diretamente interessados. Faz-se elucidativo como a postura e ação de
determinados elementos pode refletir toda uma significância sobre seus reais ideários.

2.3 Autonomia universitária e mercantilização dos projetos de pesquisa


Seguem em sua totalidade os artigos 6º (...):

Art. 6º A EBSERH, respeitado o princípio da autonomia


universitária, poderá prestar os serviços relacionados às suas
competências mediante contrato com as instituições federais de
ensino ou instituições congêneres.
§ 1º O contrato de que trata o caput estabelecerá, entre outras:
I - as obrigações dos signatários;
II - as metas de desempenho, indicadores e prazos de execução a
serem observados pelas partes;

16
III - a respectiva sistemática de acompanhamento e avaliação,
contendo critérios e parâmetros a serem aplicados; e
IV - a previsão de que a avaliação de resultados obtidos, no
cumprimento de metas de desempenho e observância de prazos
pelas unidades da EBSERH, será usada para o aprimoramento de
pessoal e melhorias estratégicas na atuação perante a população e
as instituições federais de ensino ou instituições congêneres,
visando ao melhor aproveitamento dos recursos destinados à
EBSERH.
§ 2º Ao contrato firmado será dada ampla divulgação por
intermédio dos sítios da EBSERH e da entidade contratante na
internet.
§ 3º Consideram-se instituições congêneres, para efeitos desta
Lei, as instituições públicas que desenvolvam atividades de
ensino e de pesquisa na área da saúde e que prestem serviços no
âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.
(...) e 13:
Art. 13. Ficam as instituições públicas federais de ensino e
instituições congêneres autorizadas a ceder à EBSERH, no
âmbito e durante a vigência do contrato de que trata o art. 6º,
bens e direitos necessários à sua execução.
Parágrafo único. Ao término do contrato, os bens serão
devolvidos à instituição cedente.

Agora segue o artigo 207 da Constituição Federal:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-


científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e
obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão.

Haja vista a forma vaga como se definem a autonomia universitária e todos os


elementos dos artigos da lei 12.550/2011, supracitados, como se pode falar em respeito
à autonomia? Como já discutido inicialmente na parte 2.1 desse trabalho, os artigos 6º e
13 dão à EBSERH um contrato de obrigação com os profissionais e estudantes
vinculados; legitimidade para cobrar metas e determinar prazos; de avaliar todo o
trabalho e os resultados; e a utilização desses dados para modificar a estrutura de
trabalho local sob justificativa de aprimoramento; também tendo todos os bens

17
(equipamentos, ferramentas) sob a posse da Empresa; assim como a possibilidade de
interferir na destinação dos recursos; por fim considerando que a universidade é um
corpo institucional formado por variados setores, mas conselhos minoritários podem
implementar a EBSERH na instituição ignorando opiniões contrárias; fica a pergunta:
qual autonomia resta para ser respeitada?
Considerando que com a adesão à lógica do mercado, os novos hospitais
universitários se refinariam a partir da circulação de lucro; considerando também o
enfoque claro da lei nas instituições de ensino, como já demonstrado, calculamos a
fórmula mágica de geração de dividendos através da seleção por temáticas de pesquisa e
extensão que façam o capital circular a curto, e não mais por aquelas que melhor
dialogam com a necessidade do reino social a médio e longo prazo. Podemos lembrar,
por exemplo, que o mercado farmacológico é considerado o mais lucrativo do mundo,
assim como o de produtos estéticos.
Não surpreende então o sucateamento de hospitais como, no Rio de Janeiro, o
Gaffrée Guinle, reconhecido pelo tratamento da AIDS aos membros de baixa renda da
sociedade, ou do INCA, responsável por tratamento de ponta aos afetados pelo câncer,
ainda que possuidor de baixos recursos. Boa parte das recomendações dos Ministérios
Públicos, como será visto mais adiante, seguem a linha do prejuízo gerado à
universidade federal uma vez que sua autonomia seja cooptada por uma empresa que
funciona sob a natureza privada e dentro da lógica de mercado.

No caso da saúde, na atualidade, este é um setor econômico


importante para os países dominantes, seja por meio de suas
empresas de medicamentos e equipamentos, que integram
oligopólios químicos e eletroeletrônicos, seja por intermédio de
suas seguradoras e, inclusive, do recente envolvimento em
mercados de serviços antes constituídos, principalmente, pelo
pequeno capital e setor liberal. Um exemplo é a dominação do
mercado de hemodiálise por poucas empresas multinacionais que
também fabricam o equipamento (como a Fresenius). O setor
também é importante para empresas nativas de serviços de
saúde, que, desde os anos 2000, vêm passando por um processo
de consolidação, de constituição do capital financeiro (junção de
planos de saúde com hospitais e clínicas) e de financeirização
(abertura de capitais em bolsas de valores). Temos como

18
exemplos grandes cadeias de laboratórios financeirizados, como
o Dasa e o Fleury, e empresas como Amil e Bradesco. 8

Já hoje as pesquisas são financiadas, dentro da própria universidade com seu


nível atual de autonomia, baseadas em critérios de relevância muitas vezes pouco
determinados. No entanto, essas cúpulas com poderes de determinar a aprovação ou
reprovação estão ainda vinculadas à outras esferas de pressão. Essa situação passa a
inexistir, uma vez que a organização de trabalho dentro das universidades que aderem à
EBSERH responde à uma orientação muito mais verticalizada, em que o não
cumprimento das metas e critérios definidos em seu plano de reestruturação e
cronograma podem possuir poder de demissão.
Dentro dessa lógica de concorrência e geração de lucro agressiva, não sobra
espaço para pensar em pesquisas com pouco retorno econômico, ainda que provenha
bem incomparável à sociedade e seus membros menos abastados. Aquilo encarado
como avanço social hoje, passará a ser encarado como atraso na produtividade, o que
Graça Carapinheiro já identifica como malefício da globalização em 2005.
Obviamente estamos considerando que o projeto, ao ser contratado e
implantado, funcione de forma plena conforme descrito em seu corpo legal e em seu
contrato, cujo conteúdo será exposto na próxima parte. Considerando que um corpo
gestor político – que responde aos mesmos interesses que anteriormente; que recebe
recursos fixos das mesmas fontes governamentais, com algumas ressalvas; e são
compostos por indivíduos da mesma natureza – trabalhará com eficiência e honestidade
quando os elementos que se modificaram na equação são o aumento de poder nas mãos
dos mesmos e a maior autonomia frente aos membros interessados (corpo docente,
sociedade civil...).

2.4 Locais que aderiram, contrato e resistência


Tendo em vista o inegável enfoque do projeto EBSERH em se instalar dentro
dos hospitais de instituições de ensino federal, afinal dedica até espaço próprio no sítio
oficial, esse trabalho citará alguns eventos decorrentes da transição, para ilustrar
minimamente, e por fim, todas as informações e afirmações contidas até agora ao longo
dessas páginas, e reiterar a incompatibilidade da idéia de saúde pública transcrita como
produto participante de um grande mercado.
8
ANDREAZZI, M.F.S. Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares: inconsistências à luz da reforma do
Estado. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v.37, n.2. abr./jun. 2013.

19
Segundo o site da EBSERH, a empresa já firmou 19 contratos de gerência de
hospitais federais universitários, sendo: 10 no Nordeste (UFMA, UFRN, UFS, UFC,
UFBA, UFPE, UFPB, Univasf, Ufal, UFPI); 1 no Norte (Ufam); 4 no Centro-Oeste
(UNB, UFGD, UFMS, UFMT); 1 no Sul (UFSM), e 3 no Sudeste (UFTM, UFES,
UFMG). Apenas cinco desses contratos estão disponíveis digitalizados no site da
Empresa.9
Dentre os divulgados, o contrato é padronizado, exceto o firmado com a UFPI 10,
na forma de quinze cláusulas que abarcam em sua maioria aquilo que já foi exposto nos
artigos da própria lei 12.550/2011. Dentre as passagens mais significativas,
encontramos na cláusula quinta, em seu quinto parágrafo a seguinte redação:

Quando a cessão mencionada no parágrafo terceiro for de


docente do quadro efetivo da CONTRATANTE, fica acordada
que a CONTRATADA poderá disponibilizar a sua participação
em atividades teóricas das disciplinas acadêmicas de seu
Departamento de origem, conforme grade curricular previamente
apresentada, com carga horária semanal de até oito horas.

Isso significa, em outros termos, que o corpo docente poderá ser alocado para
qualquer atividade dentro dos termos mencionados, a despeito de sua vontade, uma vez
que a EBSERH possui também mecanismos de avaliação de rendimento, dentre outros
poderes encontrados no artigo 6º de sua lei de origem.
Outra passagem que demanda atenção, dentro de um contrato firmado, se
encontra em sua décima terceira cláusula, intitulada “Da Vigência”:

Excepcionalmente, dada a natureza do serviço prestado e do


objeto da CONTRATADA, o contrato é celebrado por prazo
indeterminado, com validade e eficácia condicionadas à
publicação resumida do instrumento pelo CONTRATANTE, no
Diário Oficial, e na integralidade, pela CONTRATADA, no seu
sítio na internet.

Quando lido à luz do parágrafo segundo, da cláusula anterior [...]

9
http://ebserh.mec.gov.br/hospitais-universitarios; acessado em: 18 de janeiro de 2014.
10
Possivelmente por ter sido o primeiro, e, portanto, tendo sofrido adaptações até o formato final.

20
“Caso a CONTRATANTE exerça a rescisão unilateral do
contrato, esta permitirá o levantamento das benfeitorias e bens
materiais aplicados na unidade hospitalar pela CONTRATADA
ou a indenizará por valor correspondente, bem como ressarcirá
quantos aos valores decorrentes da extinção antecipada de
contratos cíveis e trabalhistas celebrados, conforme o caso.”

percebemos que uma vez assinado o contrato, torna-se praticamente impossível


desvincular o hospital em questão da EBSERH, seja por vias jurídicas, ou seja por vias
políticas (uma vez que a reitoria é profundamente ligada ao MEC, que por sua vez
dirige a Empresa).
O contrato também garante a formulação de plano de reestrutura e cronogramas
para ajuste das situações propostas. No entanto, aquilo que se encontra nas informações
disponibilizadas no próprio sitio oficial são projetos feitos em formatos diferentes com
informações dispares, de forma a não ser possível executar um trabalho comparativo. Os
dados são em sua maioria de 2012.
Podemos começar analisando o caso da Universidade Federal do Piauí,
emblematicamente, uma vez que foi esse o primeiro a aderir o regime proposto pela
EBSERH, tendo contrato sido firmado em 14 de agosto de 2012. O PL 12.550/2011
afirmava que os problemas deveriam ser sanados em até um ano após a implementação
da Empresa no hospital, no entanto, seguem notícias sobre crises e má utilização de
recursos dois anos passados. A situação atingiu seu ponto critico em dezembro de 2013
tendo saído uma recomendação do Ministério Público Federal à Fundação Municipal de
Saúde de Teresina para reduzir o repasse de verbas ao HU. Aparentemente, menos de
2% do recurso repassado estava sendo utilizado.
Antes disso, em abril de 2013, o Ministério Público do Trabalho lançou ação
cautelar (PROCESSO nº. 1271-50.2013.5.22.000211) para anular o concurso aberto pela
Empresa e impedir a chamada dos aprovados, por afronta ao principio da isonomia. Em
novembro do mesmo ano, quatro médicos pediram demissão por não suportarem
trabalhar em condições como as visualizadas no HU, a despeito do repasse de dois
milhões mensais em verbas. Por fim, em dezembro de 2013, uma auditoria do
Ministério Público Federal exigiu que a situação dos leitos inativos, metade das UTI’s
inativas, falta de profissionais, e derivados, se normalizasse.12
11
http://www.clicapiaui.com/wp-content/uploads/Liminar-do-HU.pdf; acesso em 18 de janeiro de 2014.
12
http://180graus.com/noticias/mpf-cobra-o-funcionamento-integral-do-hospital-universitario; acesso em
18 de janeiro de 2014.

21
Examinando o caso da Universidade Federal do Espírito Santo, inferimos que
em novembro de 2013 essa, em parceria com a EBSERH desde 15 de abril de 2013, já
se preparava para abrir um concurso de 737 vagas, ainda em andamento. No caminhar
de oito meses a universidade teve acesso à possibilidade de reforçar seu quadro de
funcionários. Considerando a comum realidade das universidades federais no que tange
à dificuldade de abrir concursos, reforça o questionamento alimentado no inicio desse
trabalho sobre a real impossibilidade dos recursos serem liberados sem contrato firmado
com a instituição.
A UFES, como dado já apresentado, é representante da capital brasileira com
melhor pontuação para saúde no último IDSUS. Lá, a decisão de adesão à EBSERH não
foi unanimidade, com relatos de que seu reitor haveria dado declarações contrárias à
Empresa, mas ainda assim assinou o contrato. O concurso para o Hospital Universitário
Cassiano Antonio de Moraes, pertencente à UFES, foi retificado algumas vezes.13
Os concursos abertos para o hospital da UFMA tiveram de ser adiados quando
uma liminar da justiça federal suspendeu em setembro de 2013 o contrato firmado em
janeiro do mesmo ano. Ao que se indicava, o processo de adesão à Empresa não seguiu
as normas protocolares, assim como defrontaria aos recursos e capacidades econômicos-
administrativos da faculdade como um todo, e dessa forma, não se instaurava como
válida. No entanto essa liminar foi derrubada.14
Com orientação mais favorável ao processo de privatização, a gestão atual da
UNB foi uma das primeiras a dar certeza da adesão, firmando na mesma época da
UFMA, em janeiro de 2013. No ímpeto para aprovar o contrato, instaurou-se em abril
uma desordem entre os servidores alocados uma vez que a entrada da Empresa modifica
o regime trabalhista dos servidores alocados. O MPF também lançou recomendação
sobre a EBSERH ferir a autonomia universitária.15
Dependem do Hospital Universitário de Santa Maria, o Husm, 42 municípios
gaúchos, no entanto, o contrato foi firmado a partir da vontade unilateral do reitor da
faculdade em questão, em um processo que chamou atenção por passar por cima até
mesmo de reuniões, muitas vezes paliativas, porém como sendo o mínimo, com o

13
http://www.pciconcursos.com.br/noticias/ebserh-retifica-edital-n-2-do-hucam-ufes-e-mantem-os-
demais-inalterados; acessado em: 18 de janeiro de 2014.
14
http://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2013/09/suspensos-contratos-entre-ufma-e-empresa-de-
servicos-hospitalares.html; acessado em: 18 de janeiro de 2014.
15
http://www.sintfub.org.br/joomla/index.php/noticias/205-servidores-do-hub-continuam-sem-
esclarecimento-da-situacao-trabalhista-apos-a-entrada-da-ebserh-luta-pela-manutencao-das-30-horas-
continua.html; acessado em: 18 de janeiro de 2014.

22
conselho universitário. Aparentemente, forças políticas da região apóiam a adesão pelo
mero medo de que o hospital acabe sucateado caso rejeite a proposta. 16
Outra recomendação do Ministério Público Federal não seguida foi a de nº 56
expedida em Minas Gerais no dia nove de abril. Apesar do documento citando os
perigos em assinar o contrato, a UFMG está entre aquelas que já assinaram com a
EBSERH. Diferentemente das faculdades do Rio de Janeiro, que resistem até o presente
momento através do longo processo de lutas, seguiu-se o aconselhamento, por exemplo,
do processo administrativo nº 1.30.001.004556/2012-12, portaria nº 145/2013 da
procuradora Roberta Trajano.
Como fecho, podemos citar fragmentos do documento expedido pelo Conselho
Universitário da Universidade Federal do Paraná, que no corpo deste documento elenca
os principais propósitos para se insistir na manutenção de um serviço de saúde público,
e um sistema de ensino superior autônomo. Seguem tais passagens, buscando otimizar o
espaço:
que o SUS não foi plenamente instituído e que até hoje chegam
demandas aos HUE’s por conta da precariedade da rede primária
de assistência à saúde em alguns locais; (...) que apesar das
dificuldades e desafios acima elencados os HUE’s não deixaram
de realizar ensino, pesquisa e extensão sempre buscando cumprir
da melhor forma e qualidade seu papel frente ao frente ao SUS o
que somente tem sido possível graças ao constante
aperfeiçoamento de seus modelos de gestão e da qualificação de
seus quadros técnicos; (...) A preservação da autonomia
universitária é condição primeira e fundamental ao exercício do
livre pensar, base sobre a qual se constrói o conhecimento, a
ciência e tecnologia. Da mesma forma a autonomia das
universidades deve se constituir no meio através do qual a
sociedade brasileira edificará o futuro de um povo
verdadeiramente livre e soberano, capaz de se autodeterminar a
partir de suas instituições tecnologicamente evoluídas,
legitimamente democráticas, socialmente responsáveis e
ambientalmente conseqüentes. (...) Se faz necessário a
implantação de um modelo de financiamento publico compatível
com as demandas de infra-estrutura, custeio e equipamento de
um hospital universitário que faz ensino de qualidade, pesquisa
de ponta e realiza serviços de alta complexidade e alta tecnologia
16
http://www.clicrbs.com.br/dsm/rs/impressa/4,38,4350248,23252; acessado em: 18 de janeiro de
2014.

23
ao SUS e que incorpore, inclusive, os custos da folha de
pagamento de salários e encargos dos quadros fundacionais.17

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Mão Invisível smithiana foi teorizada com seriedade, sendo presunçoso
desqualificá-la com apenas um artigo. No entanto, ao que foi exposto acima, não é
tarefa árdua notar a clara incompatibilidade do sistema teórico quando implementado
em serviços públicos de primeira necessidade. Os seguidores das mesmas teorias
deveriam sentir-se minimamente incomodados, uma vez que seus princípios acabam
minimalizados em nome da implementação generalizada do modelo. Está claro que o
Mercado, regulado apenas pela concorrência, tem sua liberdade de agir restringida nos
cenários de privatização de políticas básicas. O princípio da impessoalidade também é
bastante debilitado com a interferência constante das vontades interpessoais.
A implementação da EBSERH é marco latente da interferência política dentro
dos marcos econômicos supostamente neutros. O processo de transformação de um
hospital federal, instituição de natureza pública, em empresa, subverte qualquer lógica
teórica. Não se consegue atingir um grau de eficiência de excelência, em nenhuma
modalidade de formatação de políticas, quando essa é criada para suprir interesses
pessoais de uma cúpula dotada de poderes capazes de firmar sua perpetuação no
domínio dos recursos. Não existe público alvo ou mercado saudável capaz de funcionar
dentro de um sistema de monopólio parasitário dos bens e insumos.
Saúde é um elemento constituído dentro de um plano abstrato, portanto,
impassível de ser transformada em mercadoria. A defesa desse processo se traduz em
falsa postura de ação, tendo em vista o raciocínio anterior. Qual seria então o produto
que circula dentro do mercado “EBSERHico”? A doença. Assim como sistemas
penitenciários privatizados têm como o crime a fonte de seus lucros, e os sistemas de
ensino privatizados têm como a manutenção de mensalidades sua fonte, não seria
diferente ao mercado da saúde. A indústria farmacêutica é um dos mercados mais
lucrativos hoje, e se alimenta do consumo de remédios. Complementar a isso está na
aquisição de planos de saúde, que, porém, já se encontra saturado.
Cidades em que o SUS depende da infra-estrutura de um único hospital privado
já adotam medidas de preferência à assistência aos pagantes de plano de saúde quase
independentemente da natureza da patologia encontrada. No entanto, gerir não responde
17
Resolução nº23/12-COUN da UFPR.

24
à falta de recursos enfrentada, e assim, com a generalização dos convênios médicos,
haverá escassez de leitos gerando concorrência mesmo entre os pagantes pelo
atendimento.
Exótica é a defesa ferrenha de gestores e diretores de hospitais federais pela
implementação do projeto EBSERH justificando sua necessidade pela incapacidade na
gestão dos recursos. Ai se ressalta o confronto à propagação da imagem inocente de que
o sistema falha por defeitos próprios de sua própria natureza. Pelo total contrário, não
existe nada de natural nas falhas, sendo elas propositais e intencionais. A paixão com
que boa parte dos gestores parece abraçar a privatização esconde desleixadamente os
pilares maquiados de um sucateamento enxertado por eles próprios dentro do sistema.
Ofuscadas pelo pilar de luz que é o PL 12.550/2011 estão ações ilógicas às
demandas mais óbvias que sanariam boa parte dos problemas da saúde de localidades
como a cidade do Rio de Janeiro – a saber, responder à falta de leitos com a demolição
de hospitais, fechamento da parte da capacidade de outros e negligenciando a existência
de prédios fechados totalmente equipados, porém fechados soa incoerente, bem como
responder à falta de profissionais com o cancelamento de concursos liberados pelo
Governo Federal.

Recentemente o município do Rio de Janeiro abriu um edital


para concurso público estatutário para médicos com carga
horária de 24h, ganhando R$1.500 e o Estado, simultaneamente,
publicou um edital para concurso público para médico com a
mesma carga horária, mas com salários de R$6.000,00, a cargo
de uma Fundação. É interessante notar que o Governo se propõe
a pagar um salário bem mais significativo ao médico, através da
Fundação, em relação a um concursado efetivo. Qual a lógica
dessa matemática? Afinal, o dinheiro que paga o funcionário não
é proveniente do erário público? (...) Por que não se introduzir
efetivos e modernos processos de gestão no interior da
administração pública, como os mecanismos de democracia
participativa? Por que não usar os conselhos de saúde, usuários
do sistema e profissionais de saúde para se construir uma melhor
forma de gestão e financiamento, já que, segundo o governo, o
SUS encontra-se desgastado? Esse mesmo SUS não foi
construído com a participação popular, juntamente com os

25
profissionais da área? É a classe dominante se reinventando
novamente no poder!18

Corrupção, portanto, existe em qualquer sistema dirigido por seres humanos


dotados de desejos e impulsos individualizantes, e, uma vez que os apoiadores dos
projetos certamente ganharão com isso cargos de direção, dentro das novas pirâmides
hierárquicas, há de se imaginar que os problemas de má utilização de recursos
continuarão existindo, e somado a isso teremos um sistema de saúde pública em que a
diferenciação entre abastados e pobres não poderá ser questionada, em que os
profissionais não possuirão qualquer mecanismo de segurança na manutenção de seus
empregos tendo em vista as diretrizes de uma cúpula voltada à mais-valia.
Em um país entendido como o fruto de uma absorção e refino do clientelismo,
por autores como Edson Nunes19, caberia indagar quais seriam os limites da total
cooptação do fornecimento de saúde ao povo em voga do interesse de um corpo diretor
indicado por esquemas políticos. As políticas públicas devem ser guiadas por principio
de humanismo e impessoalidade. As novas medidas nesse ramo deveriam seguir
interesses sociais e não os de empreendedores.
Já que estamos entendendo política como algo que responde a interesses, e
política pública como medida tomada pelo governo, a quem interessa sucatear hospitais
para implementar um novo modelo? Qual a força de representantes eleitos por uma
maioria, ou pela massa, mas que sacrifica essa parcela que o apoiou no ritual das
eleições para implementar um modelo de gestão em saúde ainda mais excludente?
Como será quando o número de profissionais designados por sua vontade de exercer
aquele papel diminuir, em função de profissionais indicados por serem leais a um
determinado corpo diretor?
A maior pressão social, necessariamente, sempre está sobre a base da pirâmide, a
lógica mercantil e concorrencial é desumana porque serviços básicos como educação,
saúde, alimentação, são elementos que o ser humano não pode esperar a sua vez na
concorrência para ter acesso. O ser humano é perecível e possui limites bastante
18
GRAMOSO, L.L., FONSECA, P.C.S.M. A falácia da gestão descentralizada na área da saúde e o
desmonte dos direitos sociais. In: SERRA, G.M.A, GUIMARÃES, L.S, SILVA JUNIOR, O.C., MAFRA
DA SILVA, A.V., CUNHA, F.T.S. (Org.) Gestão em saúde: novas abordagens. 1. ed. Rio de Janeiro:
Unirio, 2012.
19
NUNES, E. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 2. Ed., Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

26
marcados sobre sua capacidade de resistir uma vida sem o básico. Inexiste também o
homem naturalmente melhor ou pior que o outro, para política, em termos ideais, e,
portanto, instituições democráticas republicanas não selecionam melhores ou piores
para atendimento prioritário, tão menos pelo vil critério da renda.
Por fim, está claro que o interesse em voga não é pela manutenção de um bom
sistema de saúde, seja público ou privado, afinal temos um dos maiores e mais
reconhecidos sistema de saúde pública, refinados apenas nos florir da Constituição de
1988, com menos de três décadas, e, no entanto, já tem sido dado como ineficiente em
comparações com outros seculares, como o britânico. Não seria demasiado pessimismo
então crer que a situação calamitosa perduraria às medidas milagrosas da eficiência
“EBSERHica”, talvez ganhando apenas menos destaque na mídia uma vez que sanaria
interesses de uma pequena elite favorecida.
Discutir saúde não é apenas gerir hospitais, discutir saúde é refletir sobre aqueles
que não têm acesso aos bens privados, é discutir pesquisa, é discutir idosos,
manicômios, penitenciárias, narcóticos. Discutir saúde é discutir a capacidade da força
política fornecer ferramentas que propiciem à manutenção da vida dos membros da
sociedade por completo e dignamente. Saúde não é, nem pode ser, uma mercadoria.
Saúde é um direito básico inalienável de todos.

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