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CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Não sei se para todos, pelo menos para mim, essa é uma das partes mais
aguardadas da escrita de qualquer trabalho, por duas razões óbvias. A primeira,
porque indica que mais uma etapa foi concluída; a outra, porque é hora de
prestarmos contas àqueles que realmente estiveram conosco durante o processo.
Penso também que este é um espaço de celebração, de memória, deixando claro
que ausências foram por mero esquecimento, não por apagamento. Vejamos.
Do lado familiar, sou imensamente grato aos meus pais, Iuçá e Graça,
que ainda hoje não sabem exatamente do que trato em minhas pesquisas, mas
compreendem a sua importância para a formação humana e cidadã. Agradeço
também às minhas irmãs, Fernanda e Beatriz, pela preocupação constante e pela
amizade.
Ao meu primo Alexandre agradeço pelas conversas, viagens culturais,
aulas sobre rotas latino-americanas, museus e lugares de visitação mundo afora e
aos parentes distantes, Bezego, Neide, Isabel e Nivaldo (in memoriam).
Durante a última década a família cresceu e por isso mesmo agradeço
acima de tudo à Giselle, mãe da Lara, minha esposa e companheira, que com sua
amizade, carinho e excessiva paciência, compartilhou por dentro todo este processo.
Aos meus sogros, Silvio e Lea, o meu mais sincero obrigado, sobretudo por
cuidarem da nossa Larinha em momentos de ausência minha e da Giselle por
motivos de escrita e trabalho. Agradeço ainda ao bisavô da Lara, Seu Jaime, que
recém nos deixou, já centenário. Figura exemplar, que além de músico, poeta,
memorialista e escultor, foi um humanista em tempos de indiferença e presentismo
constante.
Ainda por esses lados, deixo minha gratidão à maravilhosa Profa. Dra.
Maria das Graças Dias (in memoriam) e aos seus filhos e queridos amigos, Túlio e
Michelle, bem como aos seus companheiros, Cristy e Edu; à Márcia, ao Gian, Lucas,
Júlia, Jana, Juliano, Renata e aos demais amigos desse grupo.
Na Unicamp, agradeço de forma muito especial ao professor Dr. Edgar de
Decca, que além de uma orientação precisa durante esses anos, me abriu
perspectivas de mundo a partir de sua experiência acadêmica, me instigando, a
cada encontro ou troca de e-mails, a ter o protagonismo de um pensamento crítico e
livre de quaisquer amarras.
Na Itália, durante os meses em que lá estive, agradeço ao professor Dr.
Ettore Finazzi-Agrò pela recepção e aprendizado obtido na Universidade de Roma.
Por seu intermédio, estabeleci amizade, mesmo que a distância com o professor da
Universidade de Bologna, Dr. Luca Bacchini, a quem também agradeço pelas
profícuas conversas.
De volta à Unicamp, agradeço a todo o grupo da Olimpíada Nacional em
História do Brasil, coordenada pelas professoras Dra. Cristina Meneguello e
Alessandra Pedro (Leca); ao Bruno Terlizzi, que por inúmeras vezes me recebeu em
sua casa de Barão Geraldo, local agradável e de ótimos momentos; à Jussara
agradeço a amizade e as trocas acadêmicas constantes; à Clécia e ao Mauro pela
amizade e por também terem aberto a sua casa para me receberem inúmeras vezes
no último ano, tornando a vida em Barão Geraldo muito mais leve, bem como ao
Érito, pelas longas e agradáveis conversas nos bares do centrinho. Agradeço a
dedicação dos professores Dr. Carlos Berriel e Dra. Maria Stella Bresciani pela
leitura atenta da primeira versão desta tese, pelas valiosas críticas concedidas
durante o exame de qualificação e por aceitarem o convite para a defesa. Agradeço
ainda aos maravilhos profissionais do Arquivo Central da Unicamp, representados
por Telma Murari e Neire Rossio.
Ainda em Campinas, agradeço ao “acaso” por ter convivido o ano inteiro
de 2010 na inesquecível casa da Rua Plínio Aveniente, 88, ao lado dos amigos
Vinícius (Moscão), Carlos Alberto (Carlão), Deivison, Alisson, que era “agregado”,
Marcelo Mac Cord e Dani Pistorello, que volta e meia por lá batiam ponto. Esse
grupo quando pode ainda se encontra em bares, eventos, acadêmicos ou não,
mundo afora. Raro hoje é estarmos todos. Mas já pudemos matar a nostalgia em
Campinas, Belo Horizonte, Paris, São Paulo, Coimbra, Rio de Janeiro, Florianópolis,
Brasília. As lembranças dessa casa constituem um de nossos marcos biográficos.
Tempos em que se pedia gelo no vizinho e as "únicas" responsabilidades eram dar
vida à ideia abstrata de uma tese, escolher a cerveja mais barata no mercado para
regar as longas sessões “psicanalíticas" na cozinha de casa, enquanto alguém,
nunca eu, preparava a comida, ou pagar em dia o oneroso aluguel de Barão
Geraldo. Não poderia existir um grupo mais harmônico do que esse!
Em Brasília, onde resido atualmente, não posso esquecer de agradecer
aos amigos para toda hora Alexandre e Luciana, agora na companhia do José, que
nasceu junto com o término da tese. Aqui também sou grato ao Deda e à Vanessa,
pela amizade, pelas peixadas, sem duplo sentido por estarmos na capital, e por
cuidar de nossa casa nos longos períodos em que estivemos ausentes; ao Rodrigo e
à Lili, amigos da UFSC, que anos atrás me receberam e me abriram as portas dessa
cidade tantas vezes fria.
Agradeço muito aos amigos de mais de três décadas, Juliano, Fábio,
Pablo, Cícero, Júnior, Thiago, Murilão, Silvinho e às suas respectivas famílias,
agregados, filhos, companheiras. Da UFSC, onde passei muitos anos, agradeço a
amizade sincera do Camilo, Marcão, Disma e Karlinha, Lagarto (Prof. Dr. Rafael da
Cunha Schaefer), Maíra, Marcelo, Juliana Vamerlati, responsável pela revisão do
texto, Juan (Bolívia), Karla, Juliana Sartori, todos muito presentes, uns mais, outros
menos, ao longo de mais de uma década.
Agradeço ainda aos meus “velhos" professores, Dr. Paulo Pinheiro
Machado, Dr. Adriano Luiz Duarte, Dr. João Klug e a Dra. Maria de Fátima Fontes
Piazza, interlocutora em tempo integral desta tese. Agradeço aos demais membros
da banca, professores Dr. Sérgio da Mata, Dra. Luciana Heymann, Dr. Jeferson
Cano e Dr. Rui Rodrigues por aceitarem, de prontidão, o convite.
Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa no Brasil e à
Capes pela Bolsa-Sanduíche no exterior, sem as quais o trabalho investigativo e a
redação não seriam possíveis.
“Parte substancial de nossos literatos, isto é,
de nosso público escritor e leitor de livros,
satisfaz suas necessidades religiosas
exclusivamente na forma de
culto ao gênio”.
The intellectual and biographical trajectory of Sérgio Buarque de Holanda has been
recounted with a linear and memory-based bias from the 1980s onward. In general,
this approach, which connected Sérgio’s modernist past with the mature militant of
the Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores) and of the left at the end of his life
was constituted by a bias toward the exceptionality of the personage, still seen today
in academic publications and events which give it support. Based on this verification,
this thesis recounts the history of Sérgio Buarque de Holanda through the
perspective of memory and the sites at which it was registered and propagated
according to the understanding that at these sites we can perceive its material,
symbolic and functional dimensions. This is how we find Sérgio Buarque registered in
memorial texts, funeral speeches, books, events, streets, libraries and archives, a set
of sites of acclaim created by a specific group of scholars aiming to shape him to the
will of their memory. In this operation the erasing of political traces of Sérgio Buarque
was intentional, these being more connected to the educational and pedagogical
fields than to the old combating left as some of the official commentators currently
insist upon. Finally, this thesis also seeks through the “archive approach”, material
and functional support of this memory, to show that Sérgio Buarque de Holanda
constituted himself, in the keeping of his printed legacy, as a character of himself,
feeding the official and linear version of life exposed at these different sites.
Introdução.....................................................................................................................1
Introdução
"autêntico" do MDB ou o PCB. Levou-se em conta ainda as relações muito próximas entre Fundação
Perseu Abramo e a direção do PT com a família Buarque de Holanda, em especial a viú va, dona
Maria Amélia, presente na inauguração do Centro. Essas informações me foram dadas pelo próprio
Alexandre Fortes por e-mail em 31 de agosto de 2012. Para maiores detalhes sobre o acervo ver:
FORTES, Alexandre. Construção de acervos e memória da esquerda: a experiência do Centro
Sérgio Buarque de Holanda. (Mimeo.).
3
passagens do livro, como aquela que exprime a nossa identidade e ficou muito
famosa, que fala da alegria do brasileiro, de que a gente é cordial e tal! 2
Grosso modo, para quem não é especialista na obra de Sérgio Buarque,
esta é a imagem corriqueira que passou para a memória histórica quando se trata de
falar do “maior dos nossos historiadores”. Foi a partir dela que, durante os tempos
de graduação (1999-2003) na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, por
exemplo, imaginando a vida perfeita dessa personagem, redigi um trabalho de
conclusão de curso reproduzindo inocentemente pari passu, os ensinamentos
daqueles estudiosos citados. Como ousar questionar tamanha autoridade e lugar de
enunciação? Com exceção de uns poucos capítulos de “Raízes do Brasil”, quase
sempre "O semeador e o Ladrilhador" e o "Homem Cordial”, lidos em uma ou outra
disciplina, o que nos chegava das obras de Sérgio era uma edição de “Visão do
Paraíso” em capa dura, editada em 2000 pela “PubliFolha” que compunha a
"Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”.
Anos mais tarde, no intuito de preparar o projeto de doutorado, cursei
como aluno ouvinte no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, uma
disciplina chamada “História Intelectual e os Estudos de Epistolografia”. Ministrada
pela professora Maria de Fátima F. Piazza, as discussões giravam em torno de
temas como “escrita de si”, biografia/autobiografia, composição de arquivos pessoais
e a possibilidade de abordagem das cartas como objeto/fontes de pesquisa. Durante
as leituras, que envolviam ainda teses e dissertações sobre intérpretes “menos
famosos”, algumas em especial nos deram a deixa para a ideia central da tese que
agora apresentamos.
Destacamos desse conjunto duas delas. A primeira, de Rebeca Gontijo,
sobre o historiador Capistrano de Abreu, levanta a hipótese de que a construção
identitária da personagem envolve dois tipos de exercício de legitimação. O primeiro
coletivo, resultante da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e
intérpretes do historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma tradição
2
Obviamente o personagem fictício se vale de uma leitura às avessas do conceito cunhado por
Sérgio Buarque em seu livro de estreia. A constituição desse documentário foi devidamente
problematizada em um artigo que aponta o filme como sendo a materialização imagética de um texto
biográfico de 1979, “Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, escrito por
Maria Amélia Buarque de Holanda para o lançamento da edição venezuelana de “Visão do Paraíso”.
Sua conclusão é que, dotados, ambos, de um modo de narrar tradicional e cronológico, acabam por
monumentalizar o sujeito biografado com o intuito de impor um sentido unívoco ao devir da memória
de Sérgio Buarque. CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história:
modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. In: Revista Ágora (Vitória),
v. 7, pp. 1-20, 2011.
4
contar artigos científicos, reportagens, matérias jornalísticas, etc. Uma delas, aliás,
aponta que “novas edições dos livros de Sérgio Buarque e mais obras sobre o crítico
literário e historiador estão previstas para sair em breve”, dentre elas uma biografia
assinada por Pedro Meira Monteiro, que ainda trabalha ao lado de Lilia Schwarcz, na
confecção de outra edição crítica e anotada de "Raízes do Brasil". Afinal, “se
Monções mereceu uma edição caprichada ao completar 70 anos, as oito décadas do
clássico mais clássico de um dos mais importantes pensadores brasileiros são um
bom pretexto para conhecer ou passar em revista sua vida e obra”. 7
Em resumo, o bastão vai sendo passado de uma geração antiga para
uma nova de professores universitários, muitas vezes “altaneiros e impossíveis de
compreender, contratados por comissões, ansiosos por agradar a vários
patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma
autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os
não especialistas”.8
Relevante na “versão oficial" é o fato de Sérgio Buarque ter se
transformado em um personagem atemporal, elevado sempre ao posto de “o maior
de todos os tempos” e descolado de outros intérpretes de sua geração, a exemplo
de Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, mas que como
eles imputava aos nossos pais colonizadores "o desacerto entre ideias e instituições
políticas e a condição do brasileiro (…) trazendo de Portugal para cá os resquícios
da organizarão feudal e, sobretudo, povo mestiço servindo de ponte entre a Europa
e a África. Pouco europeu”. Além da interpretação crítica ao liberalismo, Sérgio se
insere no rol daqueles, cujas obras se utilizavam de imagens de forte poder
persuasivo, construídos com metáforas e outras figuras de linguagem, "de fácil
assimilação e que ponteiam de forma abundante suas análises", dando título a livros
Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos. São Paulo, SP: Editora da UNESP:
Fundação Perseu Abramo, 2011. 2v; MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda:
encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna:
crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-
Unifesp, 2014; BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.
7
PIVETTA, Marcus. Monções (quase reescrito), Pesquisa FAPESP, n. 230, abril 2015, p. 79.
Enquanto revisamos o texto final da tese, acaba de ser lançado outro livro que tem Sérgio como
personagem. Trata-se de uma abordagem voltada para a crítica e história literária, de autoria de
Antônio Arnoni Prado, intitulada, “Dois letrados e o Brasil nação: a obra crítica de Oliveira Lima e
Sérgio Buarque de Holanda". São Paulo: Editora 34, 2015.
8
JACOBY, Russell. Os Ú́ltimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. p. 9.
6
9
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10. Para a autora,
intelectuais como Paulo Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, em particular, e
bem mais tarde Darcy Ribeiro, podiam ignorar ou até polemizar com as ideias e o projeto político de
Oliveira Vianna, visto como conservador, racista, autoritário, sem no entanto, deixarem de se nutrir na
mesma fonte e estruturarem suas análises, embora com ênfases e matrizes diversos, nas mesmas
hipóteses explicativas para a situação do Brasil nos anos 1920 e 1930”. pp. 10-11.
10
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. ______. (org.). Sérgio
Buarque de Holanda: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 8.
11
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de
uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al. ) Mitos, Projetos e Práticas
Políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Não por acaso, a
apresentação da última edição de Raízes do Brasil (2015) traz o seguinte texto: "Nunca será
demasiado reafirmar que 'Raízes do Brasil' inscreve-se como uma das verdadeiras obras fundadoras
da moderna historiografia e ciências sociais brasileiras. (…) E as novas gerações de historiadores
continuam encontrando, nela, uma fonte inspiradora de inesgotável vitalidade. Todas essas
qualidades reunidas fizeram deste livro, com razão, no dizer de Antonio Candido, "um clássico de
n a s c e n ç a ” . D i s p o n í v e l e m : http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13938.
Acessado em 29 de abril de 2015.
7
15
CANDIDO, Antonio. As Tentativas de Mitologia de Sérgio Buarque de Holanda. O Escritor. Jornal
da UBE, n. 100, outubro de 2002, p. 24.
16
Refiro-me a influência que teve no país os volumes organizados por Pierre Nora e Jacque Le Goff,
Faire de l'histoire. Paris: Gallimard, c1974. 3v. (Collection folio/histoire). Bons exemplos da influência
de Sérgio Buarque na historiografia dos anos 1980, sobretudo a produzida na USP são: SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São
Paulo: Brasiliense, 1983; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Por um outro viés, podemos afirmar ainda que “na historiografia dos anos 1980, a revolução passou
por uma profunda revisão e as questões pertinentes ao contexto dos anos 1960 perderam a sua força
de atração”. DECCA, Edgar S. de. A revolução acabou…Prefácio à 5ª edição. O Silêncio dos
Vencidos: história, memória e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28.
17
WAQUET, Françoise. Os Filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do século
XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. p. 28.
18
Dentre os principais trabalhos destacam-se: CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlin e depois. In:
Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Vol.1 número 3, páginas 4 a 9, julho de 1982; DIAS, Maria
Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. Coleção Grandes Cientistas
Sociais. São Paulo: Ática, 1985; NOGUEIRA, Arlinda (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida e
obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988; CANDIDO,
Antonio. (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 1998.
9
19
Utilizo aqui a noção de “arquivos pessoais” como conjuntos documentais resultantes de uma série
de gestos e práticas, conformados pelos titulares, mas também por seus colaboradores, familiares e
herdeiros, e disponibilizados por meio de estruturas institucionais que os “produzem" como fontes.
HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de
Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. p. 74.
20
Como exemplos temos: CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Raízes do Brasil, 1936: tradição,
cultura e vida. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas; CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Outros lados:
Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940). 2003. Tese (doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP;
MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos
em Raízes do Brasil. Campinas/SP: UNICAMP: FAPESP, 1999; ______. Mário de Andrade e
Sérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: USP/Instituto
de Estudos Brasileiros: EDUSP, 2012; WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste: a fronteira na obra
de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000; PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.).
Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005;
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EDUSP, 2008;______. Alegoria Moderna: A Crítica Literária de
Sérgio Buarque de Holanda. 1. ed. São Paulo: Unifesp; FAPESP, 2014; EUGENIO, João Kennedy.
Ritmo Espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina:
EDUFPI, 2011; MORAES, Ricardo Gaiotto de. Críticas Cruzadas: Mário de Andrade e Sérgio
Buarque de Holanda. 2014. 177 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de
história do império. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010; _______. Monções e Capítulos de
Expansão Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
10
uma memória em disputa. Iniciada por ele próprio ao “arquivar a própria vida” e
desenvolvida por esse grupo de amigos a partir da década de 1980, essa narrativa
primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de mestre,
com viés político à esquerda e a partir de um recorte cronológico específico,
predominando nessa complexa operação, além dos atos de poder, o fatalismo
biográfico. Em suma, se deu a Sérgio uma vida modelar, vista a partir de
celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos, que
(re)atualizam no tempo a imagem consensual que querem postergada.
Isto posto, entendemos que houve por parte desse grupo e da família da
personagem uma ativação memorial visando, de alguma forma, ao controle do seu
passado biográfico (e, portanto, do presente, daquilo que pode ou não ser dito e
daquilo que deve ser silenciado). Por essa perspectiva, reformular o passado em
função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar
a materialidade em que essa memória particular se expressa (do nome de rua às
comemorações, exposição de objetos, montagem de arquivo e biblioteca,
publicações póstumas…). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que
a gere(m) e controla(m).21
A memória histórica que se criou em torno de Sérgio Buarque de Holanda
pode também ser entendida a partir do que apontou o historiador português
Fernando Catroga. De acordo com ele, o conteúdo da memória é inseparável dos
seus campos de objetivação (linguagem, imagens, relíquias, lugares, escritas,
monumentos) e dos ritos que as produzem e transmitem, demonstrando que ela
nunca se desenvolverá no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e
simbólicos de memórias.22 Partindo dessas constatações defendemos a ideia de que
é possível perceber quais foram os campos de materialidade/objetivação e quais
foram os ritos que produziram essa “memória oficial” acerca do cultuado historiador.
Desse modo, consideramos para essa análise os seguintes itens: 1) as publicações
que indicam traços biográficos, organizada por pares; em suma, aquilo que virou
historiografia/fortuna crítica; 2) os discursos, as homenagens póstumas e os eventos
comemorativos; 3) a compra de sua biblioteca e a montagem do Fundo Sérgio
Buarque de Holanda.
21
SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 42.
22
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 23.
Col. Opúsculos.
11
26
NORA, op.cit., p. xix-xx; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain
François (et.al). Campinas: SP: Editora Unicamp, 2007. Em especial o sub-capítulo “Pierre Nora:
insólitos lugares de memória. pp. 412-421.
27
SEIXAS, op.cit. p. 43; VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva. Alguns elementos de
reflexão. Patrimônio e Memória, vol. 3, n. 1, 2007, p. 8. Exemplo bastante conhecido é o texto de
Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio” , Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n°3,
1989, pp. 3-15. Essas disputas pela memória, que incluem a historiografia, levou à formação em
2013, de um grupo de discussão e pesquisa coordenado pelo professor Edgar de Decca, intitulado
“Historiografia, conflito e memória”, no qual entre outros pontos, se propõe reavaliar as competências
do discurso histórico produzido na universidade e seus confrontos com o campo das memórias
coletivas desses novos sujeitos sociais emergentes. Segundo a autora, a expressão “frenesi de
memória” é autoria de Arno Mayer e está contida no artigo “Les pièges du souvenier, Esprit, nº 7, jul.,
1993. pp. 45-59.
13
houve foi uma inversão e os intelectuais deixaram as ruas dos centros urbanos e as
páginas da imprensa para se institucionalizarem na academia e ocuparem espaços
produtivistas nas revistas especializadas.
Essa é a tese defendida por Russel Jacoby em seu livro "Os Últimos
Intelectuais, a cultura americana na era da academia”, uma crítica violenta ao
ambiente acadêmico departamentalizado dos dias de hoje, conforme o paradoxo
exposto no título. Para Jacoby, “os últimos” expõe o fim dos intelectuais públicos que
buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem,
estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates,
ao mesmo tempo em que também seriam os “novos”, acadêmicos voltados para si
mesmos, para dentro dos muros universitários e que “escrevem uma prosa esotérica
e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança
social”.35
Por fim, a História Intelectual pode ainda ater-se à análise das ideias
políticas ou ampliar-se a um diálogo mais próximo no campo da história cultural. No
primeiro caso, por exemplo, J.G.A. Pocock preocupa-se com o contexto de
elaboração dos vocabulários políticos, ou seja, trata-se de situar os textos no seu
campo específico de ação ou de atividade intelectual, levando em consideração
quem os maneja e com quais objetivos. O autor, então, estabelece uma divisão da
linguagem política em dois níveis: língua (langue) e fala (parole), com o objetivo de
compreender como ambas interagem ao longo do tempo. Assim, por meio dos atos
de fala (speech acts) o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou então
para inová-la mediante a reelaboração dos conceitos do discurso.
No segundo, o historiador Roger Chartier concebe a história intelectual
como sinônimo de história cultural. Propõe um programa crítico tanto da oposição
entre a alta cultura e a cultura popular – que estariam unidas por fenômenos de
circulação e de apropriação – quanto entre criação e consumo, produção e
recepção, sustentando que o sentido da obra também é constituído por meio das
suas interpretações. Em suma, o pesquisador deve investigar a produção intelectual
na sua relação com as outras produções culturais que lhes são contemporâneas, e,
ao mesmo tempo, nas suas relações situadas em outras esferas da totalidade social
(socioeconômica ou política).
35
JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. pp. 9-12.
17
Não há gente que diz que nós documentos somos a garantia de que a alma,
o espírito, o pensamento, as vontades, as aspirações, as esperanças, as
paixões e as ações das pessoas de antanho não venham a morrer? Mesmo
aqueles pobres restos em que nos tornamos, até os simples rastros da
existência que deixamos, guardariam em seu interior pelo menos os rostos
daquele que nos criou e daquele para o qual fomos escritos, fora outros
rostos que mais fugazmente foram em nós figurados. Nós seríamos a sua
cara, teríamos mesmo nas cópias pálidas que nos tornamos o seu jeitão,
37
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e
documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v.
15, n. 26, pp. 7-28, jan.-jun. 2013.
19
38
Idem, p. 25.
39
RICOEUR, op.cit.
20
Capítulo 1
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL
"ENTRE DOIS PROJETOS”
durante o pós-guerra começavam a migrar do espaço público das ruas, dos boêmios
bairros novaiorquinos, para institucionalizarem-se nos muitos campi abertos nos
subúrbios de diversas cidades. Nesse sentido, o título da obra é paradoxal:
"Últimos", na concepção do autor, expõe o fim dos intelectuais públicos ou
publicistas, que buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação,
cuja linguagem, estilo e crítica radical pressupunham um leitor educado, amplo e
sedento por debates, ao mesmo tempo em que apresentava os "últimos" como os
“novos", voltados para si mesmos, para dentro dos muros universitários.
No livro, Jacoby passeia pelas ruas de Greenwich Village, boêmio bairro
de Nova Iorque das primeiras décadas do século XX, quiçá o que significou para a
Faculdade de Filosofia da USP, a região da rua Maria Antonia, “uma rua na
contramão”, como aponta o sugestivo título de um livro/documento organizado por
Maria Cecília L. dos Santos. 44 Para os padrões franceses seria o mesmo que as ruas
d o Quartier Latin, em Paris. No auge de Village, raramente os intelectuais eram
professores universitários. No geral eram escritores, polemistas, artistas, críticos que
utilizavam os espaços dos jornais e periódicos como free-lancers e devido aos
aluguéis baratos, por lá mesmo se estabeleciam, gerando uma ampla rede de
sociabilidade e um profícuo espaço de debate público, tendo a rua como campo de
batalha, tanto de ideias como de sobrevivência.
A mudança radical do centro para os subúrbios não deixou de fora nem
mesmo a esquerda independente americana, que somada aos demais “retirantes"
transformaram-se em professores confinados com uma renda segura, sem nenhum
interesse em lidar com o mundo fora da sala de aula; em suma, indivíduos que
escrevem uma prosa esotérica e bizarra, dirigida principalmente para a promoção
acadêmica e não para a mudança social.
O posicionamento ríspido desse autor à sua própria geração não foi
uníssono e encontrou em Edward Said (1935-2003) certa ressonância. Em uma de
suas conferências de Reith, ministrada na rede BBC, em 1993, o palestino afirmava
serem injustas essas críticas em relação à universidade ou mesmo aos Estados
43
JACOBY, Russell. Os ultimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. Ainda muito atual, o livro foi apresentado em uma
resenha publicada por mim no número 6, ano III da Revista Crítica História, em dezembro de 2012.
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/142/Os%20últimos%20intelectuais.pdf,
acessado em 10 de outubro de 2014.
44
SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel,
1988.
23
Unidos, já que na sua opinião o trabalho do intelectual não era incompatível com o
do acadêmico. Para Said, o intelectual não representa um ícone de tipo estátua, mas
uma vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz
empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade uma porção de questões,
todas elas relacionadas, ao fim das contas, com uma combinação de esclarecimento
e emancipação ou liberdade. Concluía afirmando: "A ameaça específica ao
intelectual hoje não é a academia nem os subúrbios, nem o comercialismo
estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que chama de
profissionalismo”.45 Dito de outro modo, o trabalho intelectual como alguma coisa
que se faz para ganhar a vida entre nove da manhã e cinco da tarde, "com um olho
no relógio e o outro no que é considerado um comportamento apropriado,
profissional – não entornar o caldo, não sair dos paradigmas, tornando-se assim,
comercializável e, acima de tudo, apresentável, não controverso, apolítico e
objetivo”.46
Trazidas para o contexto cultural brasileiro, tanto a perspectiva crítica de
Jacoby, quanto a ressonância exposta por Said nos parecem válidas para
pensarmos a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda. Primeiro, porque ele
atravessou grande parte do século XX e viveu experiências símiles. Boêmio
confesso, Sérgio não abriu mão do uísque e nem dos cigarros até os últimos dias de
vida, militou no modernismo e deixou marcada nas páginas da imprensa “aquela
mudança dos ventos" vivida na juventude em pelo menos três aspectos: a
necessidade do contato dos nossos escritores com outras tradições de cultura que
nos livrassem do peso da matriz portuguesa, a urgência em pesquisar a nossa
originalidade artístico-literária e a abertura para a renovação das formas que
chegavam com a modernidade.47
Em segundo lugar, Sérgio foi crítico ferrenho dos rumos tomados pelos
modernismos, paulista e carioca, posição que deixou clara no seu famoso texto de
1926, "O lado oposto e outros lados”. Pouco depois viajou para a Alemanha como
jornalista e quando retornou ao Rio de Janeiro em 1931, institucionalizou-se em
diferentes órgãos de cultura durante o governo Vargas. Retornando a São Paulo
45
SAID, Edward. Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993. Sa o ̃ Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p. 75.
46
Idem.
47
PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio e Mário: um diálogo entre críticos. In: MARRAS, Stelio (org.).
Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 79.
24
48
Entrevista com Boris Fausto. In: MORAES, José Geraldo Vinci; REGO, José Márcio. Conversas
com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 97.
25
49
A ideia de memória histórica é aqui entendida como o produto do pensamento crítico, com uma
linguagem conceitual, abstrata e laica, e com uma função ensinável e utilitária. Diferente, portanto, da
memória coletiva, caracterizada por uma origem anônima e espontânea por ser viva, concreta,
múltipla, imagética e sacral, e por possuir um cariz normativo. Pierre Nora também estabeleceu essas
diferenças. Para esse autor, a memória, vivida e suportada por grupos sociais, é representação
afetiva, em evolução permanente, aberta à dialética entre recordação e esquecimento, insconsciente
de suas deformações e vulnerável a todas as manipulações, sendo ainda suscetível de grandes e
longas latências e de repentinas revitalizações. Ao contrário, a historiografia será uma reconstituição
sempre problemática e incompleta do que já não existe; por isso, constitui uma laicizadora operação
intelectual, assente na análise e na atitude crítica. Para mais detalhes ver: CATROGA, Fernando.
Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre:
EdUFRGS, 2001. pp. 43-69. Vale ressaltar ainda que Catroga opera suas reflexões a partir de
autores clássicos desse campo de debates, dentre os quais podemos citar Maurice Halbwachs, Pierre
Nora, Paul Ricoeur, Paul Connerton, Joël Candau, Jacques Le Goff, Krzystof Pomian, Reinhart
Koselleck, Tzvetan Todorov, Paul Vayne, entre outros. No conjunto de (re)atualizações da memória
histórica de Sérgio ressaltam-se a elaboração de um lugar de memória a partir da compra de sua
biblioteca, a montagem de um arquivo pessoal, a realização das "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, organizadas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, USP e Unicamp, pela
publicação de livros póstumos como "O Extremo Oeste", "Capítulos de Literatura Colonial", "O espírito
e a letra (2 volumes)", "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda" ou coletâneas como "Sérgio Buarque
de Holanda: vida e obra", "Sérgio Buarque de Holanda”, coleção Grandes Cientistas Sociais, etc.
50
PRADO, Antônio Arnoni, op.cit., p. 79.
51
BONEMY, Helena. Guardiães da Razão: os modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.
26
Gomes nos chama atenção para o fato de que "não é tanto a condição de intelectual
que desencadeia uma estratégia de sociabilidade, mas ao contrário, é a participação
numa rede de contatos que demarca a específica inserção de um intelectual no
mundo cultural”.52
E assim foi. Sérgio não teve de viver em quartos baratos de hotéis ou
pensões, não precisou declamar, escrever poemas e nem desenhar caricaturas à
estranhos nas ruas em troca de comida, bebida e alguns tostões. Não precisou
brigar a cada dia pela sobrevivência e, tampouco, foi um intelectual maldito,
daqueles heroificados por um conjunto de características que podiam incluir a
pobreza, a angústia do tempo e a vivência à margem, regadas pelas mais variadas
experiências mundanas, sobretudo as que envolviam drogas e a contestação de
uma certa ordem burguesa. Pelo contrário, de família estruturada, Sérgio estudou
em ótimas escolas paulistanas, vindo a se formar em Direito no Rio de Janeiro, em
1924. Quem lhe abriu as portas da imprensa foi, nada menos, do que Afonso
d’Escragnolle Taunay, amigo de seu pai e seu professor de História no ginásio São
Bento.
"Originalidade Literária", seu primeiro artigo, foi publicado por indicação
de Taunay no jornal "Correio Paulistano", em 22 de abril de 1920, quando contava
apenas dezoito anos. Pouco depois, no mesmo veículo apareceu "Vargas Villa", em
4 de junho, mesmo mês em que registrou nas páginas d’ "A Cigarra" suas
impressões de "Santos Chocano”. Em conjunto, esses escritos de estreia
demonstravam que Sérgio não apenas se interessava pela inserção latino-
americana na cultura brasileira, como também se recusava a aceitar o velho
impasse gerado na Colônia, segundo o qual a emancipação da nossa vida
intelectual só viria com a nossa emancipação política. Por essa lente, Sérgio estava
convencido de que um compromisso prolongado com as bases materiais da vida na
extensão de seus domínios fez brotar na América hispânica um primeiro sintoma de
"originalidade literária” voltado para a integração espiritual com a natureza e a gente
nativa. Coisa muito diferente do que ocorreu ao colonizador português, que, mais
prático que o espanhol, não teve, segundo o crítico, uma "impressão tão sutil da
natureza do Novo Mundo", fato agravado pela circunstância de que as tribos
52
GOMES, Angela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.
Campinas/SP: Mercado das Letras, 2005. p. 13.
27
selvagens que habitavam o nosso território "não podiam inspirar aos dominadores,
em geral incultos e rudes, senão desprezo e ódio”.53
De acordo com Antonio Arnoni Prado, o que tem de mais sugestivo na
abordagem de Sérgio Buarque são as consequências que o autor tira delas, em
especial a ideia de que, se não tivemos no Brasil nenhum poema propriamente
épico, isso se deve ao fato de que a nossa concepção da matéria épica derivava de
fatores muito diversos daqueles então existentes na América espanhola. Avaliação
fundamental para a compreensão posterior de "Raízes do Brasil”. O artigo de estreia
nos mostra como o estilo “gongórico" de Rocha Pita transforma, em 1730 a
produção literária da América portuguesa, num equivalente tropical dos melhores
talentos de Roma e da Grécia clássicas.
Isso, de um lado, nos remete ao "bovarismo" como um dos conceitos-
chave com que Sérgio, mais tarde em "Raízes", vai desenvolver a ambiguidade das
relações do brasileiro com sua própria terra (a sua repulsa à realidade). E, de outro
lado, lança os primeiros germes da interpretação da cultura que, igualmente no livro
de 1936, atribui um valor excessivo ao prestígio universal do talento que, para nós,
não significa, a seu ver, propriamente amor ao pensamento especulativo; antes "à
frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa". 54
Arnoni Prado fala mesmo em sintomas de "consciência da modernidade
anteriores ao modernismo" para se referir à abertura que Sérgio Buarque dava a
integração com o continente americano. É o momento em que Sérgio vai buscar na
colonização urbana da América hispânica um contraponto para o predomínio, no
Brasil, da moral da senzala, "velho apanágio do patriciado rural responsável pela
53
PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo. In: CANDIDO, Antonio. Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1998. Na ocasião Sérgio articulava
essa constatação a um sentimento de americanismo integrador, identificado por ele na épica do
poema "Araucana", do espanhol Ercilla y Zuniga, nas páginas do "Rusticatio Mexicana” (1817) do
padre Rafael Landívar, que ele desdobra na leitura da obra igualmente integradora de um Francisco
Garcia Calderon, de um Santos Chocano ou mesmo de um Vargas Villa. pp. 72-73.
54
Idem, p. 73; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1979. pp. 118-119. Apenas como curiosidade, o historiador português Oliveira Martins (1845-
1894) ao se referir à sua “Biblioteca de Ciências Sociais”, onde publicou a sua "História de Portugal"
(a qual encontramos dois volumes de 1886 na biblioteca de Sérgio Buarque), já afirmava com o
mesmo sentido, nas últimas linhas abaixo, o seguinte: “Tampouco as investigações eruditas se
coadunam à natureza de nossa publicação, destinada a compendiar as conquistas feitas no domínio
da ciência, e não a embarcar-se em empresas de exploração no campo da arqueologia. Por isso o
leitor achará coordenadas e sistematizadas as investigações dos sábios e as doutrinas dos filósofos,
sem ociosas indicações de origens, nem aparato de uma erudição, aliás fácil de exibir, mas que não
convém à índole da publicação, além de que apenas valeria para iludir incautos ou encher de pasmo
os ignorantes”. PONTE, Carmo Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção Temas
Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. p. 18. (Grifo nosso).
28
submissão das cidades aos privilégios dos domínios agrários". Nessa fase pré-
Semana de 22, o jovem crítico vai contrapor o cosmopolitismo afetado de um Rubén
Darío ao nosso espírito de imitação e vai rebater o gosto pela alusão livre ao papel
dos caudilhos e das oligarquias da América Latina. E nisso, o artigo sobre Vargas
Villa, é exemplar como sintoma de um esforço ideológico interessado em definir um
papel literário para a Literatura e a arte de um modo geral. Tudo, segundo Prado,
para encorpar a convicção de que já não era mais possível naquela altura olhar para
esse passado sem a decisão de "estudá-lo com um espírito inteiramente novo,
ousado, irreverente, sem a menor preocupação com o que escreveram homens
como Rocha Pombo e Sílvio Romero".55
Em suma, Sérgio foi um jovem preocupado com os problemas de sua
época, dentre eles a emancipação intelectual do país e a emancipação política do
continente, associando a isso a busca de nossa identidade, como forma capaz de
vencer a nossa dependência externa. Sua crítica também funcionou como uma
espécie de radar da consciência estética que mudava, constituindo-se, aos olhos de
hoje, numa síntese indispensável para a compreensão das relações entre
modernização da linguagem e as transformações radicais que marcaram a
fisionomia de sua época.56
Tratar com maiores detalhes da fase crítica de Sérgio Buarque seria aqui
desvio de rota. Mesmo porque o assunto já foi devidamente esmiuçado por outros
estudiosos e os seus artigos de crítica já estão publicados em alguns livros. 57 Vale
registrar, todavia, que essa faceta do historiador, pensada em um aspecto mais
amplo e aprofundado, só viria a se concretizar a partir da publicação de "O espírito e
a Letra", em 1996, que com seus dois volumes reunia os textos inéditos de crítica
55
PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo, op.cit., p. 74.
56
PRADO, Antonio Arnoni (org). Nota sobre a edição. O espírito e a Letra: estudos de crítica
literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 23.
57
PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a Letra: estudos de crítica literária I-II (1920-1959). São
Paulo: Cia. das Letras, 1996; COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos
(2. vol.). São Paulo: Fundação Perseu Abramo / UNESP, 2011; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria
Moderna: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Tese de Doutorado. Universidade
de São Paulo-USP. Programa de Pós-Graduação em História Social. Há também os estudos do
"Grupo Clíope”, formado em 1994 por ocasião do 46º Congresso Internacional de Americanistas
realizado em Estocolmo e que conta com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como Ettore
Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi, Chiara Vangelista, entre outros, nos campos de história e literatura.
Uma das publicações desse grupo, organizada por Sandra Pesavento intitula-se: Um historiador nas
fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: edUFMG, 2005; e por fim, a
inédita tese de Marcus Vinícius Corrêa Carvalho, defendida em 2003, na Pós-Graduação em História
da Unicamp e intitulada Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política
(1920-1940).
29
publicados por Sérgio na imprensa, entre 1920 e 1959, abrindo as portas para
diversas dissertações e teses em muitas pós-graduações Brasil afora. Até então,
cabia aos pesquisadores vasculharem esse material em bibliotecas públicas, no
arquivo pessoal de Sérgio localizado na Unicamp ou se contentarem com uma parte
deles dispostos nas duas coletâneas publicadas pelo próprio enquanto vivo,
nomeadas "Cobra de Vidro" (1944) e "Tentativas de Mitologia" (1979).
Todavia, é impossível deixar de comentar o conhecimento que o jovem
crítico demonstrava dos autores latino-americanos e das propostas destes, de
emancipação cultural perante a Espanha. Numa passada de olhos rápida por suas
críticas, vislumbramos escritores da virada do século, como o político peruano
Francisco Garcia Calderón (1834-1905), os uruguaios José Henrique Rodó (1872-
1917), autor do clássico "Ariel", Alberto Nin Frias (1878-1937) e o nicaraguense
Rubén Darío (1867-1916). Aliás, sobre este último teceu considerações Perry
Anderson em seu livro sobre "As origens da Pós-Modernidade", confirmando bem
mais tarde o que o jovem crítico já havia registrado. Para Anderson, a criação do
termo "modernismo" para designar um movimento estético se deve ao poeta
nicaraguense que escrevia em um periódico guatemalteco sobre um embate literário
peruano. O início, por Rubén Darío, em 1890, de uma tímida corrente que levou o
nome de "modernismo" inspirou-se em várias escolas francesas (conhecidas
também de Sérgio) – romântica, parnasiana, simbolista – para fazer uma declaração
de independência cultural que desencadeou, naquela década, um movimento de
emancipação das próprias letras espanholas em relação ao passado. 58
Em paralelo ao gosto literário, o jovem Sérgio viveu em uma São Paulo
ainda provinciana, mas em vias de modernização. Seu relato à Maria Amélia, com
quem se casou apenas em 1936, revela em certa medida alguns indícios bem
característicos dessa fase. Suas diversões de garoto se davam, por exemplo, no
andar de bondes, em matinês de cinema, como o Central no Anhangabaú, o Royal
na rua Sebastião Pereira, o High Life no Largo do Arouche ou em caminhadas do
Centro até Perdizes, que cruzavam os brejos do Vale do Pacaembú. No Clube Tiro
35 fez amizade com Fausto de Almeida Prado Penteado, vindo a conhecer seu
primo, Yan de Almeida Prado, de quem guardou por toda a vida uma carta recebida
após a publicação de "Raízes do Brasil". Ainda segundo o seu relato, aprendeu a
dançar no curso de Yvone Daumérie, peregrinando pelos clubes a bailar: no
58
ANDERSON, Perry. As origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 9.
30
procurando nos sebos britânicos, quando sabia muito bem que a brincadeira
nascera no apartamento de Guilherme de Almeida em noitada divertida, na
companhia de Oswald de Andrade, Rubens Borba e Tácito de Almeida”. 62
Em 1921 a família Buarque de Holanda se muda para o Rio de Janeiro.
Dentre os endereços que moraram, Sérgio se lembra de um na Gávea, na rua
Marquês de São Vicente, uma "casa simpática, antiga, com árvores de fruta e um
riacho no fundo do quintal”. A família ainda morou nas ruas São Salvador, Oitis,
Visconde da Silva, Ipiranga e Maria Angélica. No mesmo ano Sérgio se matriculou
na Faculdade de Direito.
Não foi, o modernista, um estudante assíduo. Preferiu, ao invés de se
dedicar à carreira jurídica, fazer amizades que durariam a eternidade e que foram
muito importantes para a sua consolidação no campo intelectual. O universo urbano
carioca também fez parte de sua formação humanista e autodidata. Ao lado de
Prudente de Moraes, neto, por exemplo, Sérgio Buarque costumava frequentar a
livraria Garnier e as mesas do Café Lamas Restaurante, no Largo do Machado. Na
livraria era comum que se encontrassem com Alberto de Oliveira, Américo Facó,
Jorge Jobim, pai de Tom, mais tarde também seu amigo, ou o poeta Raul de Leoni. 63
No Lamas, apontavam também Afonso Arinos, Gilberto Amado, André Dreyfus e
Renato Palmeira, que em certa ocasião lhe apresentou Candido Portinari, naquela
altura estudante de Belas Artes. Nas tardes, era comum irem ao Bar Nacional, às
vezes ao Brahma. Essa fase boêmia foi recordada com nostalgia por Gilberto
Freyre, logo após a morte de Sérgio, em 1982:
Sérgio, mestre dos mestres. Mas também meu amigo de dias boêmios de
nossa mocidade no Rio de Janeiro. Três amigos desses dias, sempre muito
juntos, fomos ele, Prudente de Moraes, neto, e eu. Boêmios pelo gosto da
música popular brasileira. Da afro-brasileira. Da carioca. Daí, mais de uma
vez amanhecermos, bebendo chope, em bares tradicionalmente cariocas,
ouvindo os para nós brasileiríssimos e como que nossos mestres, além de
amigos, de cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha. 64
62
MILLIET, Sérgio. À margem da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Revista do Brasil. In:
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio
Buarque de Holanda. Artigos e depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 96. É bem possível que um
desses sebos britânicos tenha sido a Livraria Craschley, localizada na Rua Ouvidor, 68.
63
HOLANDA, Maria Amélia Buarque de, Apontamentos… op.cit.
64
FREYRE, Gilberto. Sérgio, Mestre dos Mestres. Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco de
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 117.
32
65
GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982.
66
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003. pp. 50-51.
67
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Manuel Bandeira. In: PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a
Letra: estudos de crítica literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Publicado
originalmente na revista Fon-Fon, em 18 de fevereiro de 1922.
33
(…) Sei que Klaxon sairá no dia 15 sem falta. É preciso que não te
esqueças de que fazes parte dela. Trabalha pela nossa ideia, que é uma
causa universal e bela, muito alta. Estou à espera dos artigos e dos poemas
que prometeste. E não te esqueças do teu conto. Desejo conhecer-te na
ficção. Espero saída do primeiro número da revista para escrever ao
Ronald, ao Elísio aos amigos todos enfim. É preciso que digas ao Manuel
Bandeira que me lembro sempre muito dele. Recordo-me do Ribeiro Couto.
E, mais uma vez, obrigado.69
73
Ibidem, p. 11. Para uma discussão mais apurada sobre as “ideias fora do lugar” ver: SCHWARZ,
Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo, SP: Duas Cidades: Editora 34, 2012; FRANCO, Maria
Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Caderno de Debates, n. 1. São Paulo: Brasiliense,
1976; PALTI, Elías José. Apêndice. Lugares y no lugares de las ideas en America Latina. In: El
tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. 1.ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, Argentina,
2007.
74
BRESCIANI, op.cit., p. 12.
75
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antinous (Fragmento). In: Klaxon. Mensário de Arte Moderna, São
Paulo, n. 4, 15 de agosto de 1922. pp. 1-2.
76
Carta enviada por Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 20 de julho de
1922. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências
Passivas, Cp. 19.
36
77
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Apresentação. In: Tentativas de Mitologia. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 29.
37
quaisquer tentações autoritárias.78 Eis o ponto que mais tarde aparecerá de forma
símile no livro de estreia do autor. Em suas palavras:
78
MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no espelho de Próspero. Novos Estudos CEBRAP,
n. 83, São Paulo, mar. 2009. A respeito de Graça Aranha, Sérgio Buarque tece algumas memórias
em seu texto de apresentação para a coletânea Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 22 e seguintes.
79
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados. In: O Espírito e a Letra, op.cit. p.
226.
80
MONTEIRO, As raízes…op.cit.
38
Perguntado por Richard Graham por quanto tempo havia ficado no Rio de Janeiro, o
historiador responde:
Até 1929, salvo uma experiência extravagante de seis meses, como redator
de um jornal numa pequena cidade do Espírito Santo. Minha melhor
lembrança desses meses foi quando substituí um promotor numa cidade
ainda menor, que alcancei depois de seis horas de viagem a cavalo.
Precisavam de alguém com curso de direito, e eu era o único disponível.
Cheguei cansado de morrer, mas ainda fui a um baile. Desnecessário dizer
que meu caso foi tão fracamente apresentado no dia seguinte que o júri
absolveu o acusado.81
Lá passou a ser conhecido como Dr. Progresso. Pouco importa, fez-lhe bem
a estadia no interior. (…) Certa vez, nomeado promotor ad hoc na cidade de
Muniz Freire, para participar de um júri, viajou seis horas em lembro de
burro, e chegou ao destino mais morto do que vivo, esfolado de tal sorte
que se viu obrigado a tomar um banho tépido de salmoura para poder
comparecer ao tribunal no dia seguinte. O réu foi absolvido, mas havia a
viagem de volta a Cachoeiro do Itapemirim, mais penosa ainda que a
vinda.82
81
GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
82
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Introdução. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988. p. 27.
39
historiador que ocupava um "lugar todo especial em nossa cultura pela penetração e
equilíbrio de seus ensaios". O texto menciona um amigo em comum, o escritor e
político Afonso Arinos, que protestava "contra o relativo esquecimento em que caiu o
livro ‘Do Império à República’". A proximidade da crônica de Rubem Braga com o
relato de Maria Amélia está justamente na rede de amizades que Sérgio construiu
na cidade. Um dos amigos de "porre" aparece em ambos. Trata-se no Coronel
Ricardo Gonçalves. Braga, que era menino naquela época recorda:
Sim, eu me lembro do Dr. Progresso; seus porres, afinal não eram tão
grandes, e ele nunca ofendia ninguém. Costumava tomar umas e outras
com o saudoso Cel. Ricardo Gonçalves e outros bons homens da terra, que
formavam o Clube do Alcatrão de São João da Barra, que todos bebiam de
brincadeira.83
83
BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 154-157.
40
86
A discussão proposta por Sérgio Buarque a partir de suas "Notas do Espírito Santo” encontra
ressonância na seguinte síntese: “Os ideais de progresso e modernização, legitimados e reforçados
com a República, exerceram grande influência nos circuitos intelectuais brasileiros ao longo do século
XIX, e seus conceitos correspondiam a valores de mudança, de renovação social e cultural, de
pulverização de normas e comportamentos tradicionais. Essa ‘nova moral’ da modernidade dirigia-se
a uma superação ou mesmo destruição de padrões sociais amparados por uma dada tradição, e o
fazia em nome de um suposto progresso social, moral, científico, e cultural que implicava em uma
ideia de civilidade; era a partir das prédicas de modernização que o homem deveria superar seu
passado atrasado, necessariamente inferior ao seu presente, e se lançar ao progresso, à evolução e à
civilização. Assim, a modernização visava uma reforma total da sociedade. Modernizar significava, de
modo geral, promover o novo, que por excelência era o melhor, o positivo. À ideia de progresso e
modernização corresponde a noção de civilização. Promover o progresso representava, sobretudo,
civilizar-se, o que pressupunha uma concepção de temporalidade teleológica. Era como se as nações
ditas civilizadas estivessem à frente na escala de um suposto desenvolvimento social, cultural e
moral. Assim, o tempo linear do progresso impunha uma série de valores em escala universal. A
civilização era o objetivo supremo a ser buscado, um fim cujo meio seria a modernização constante
da sociedade pautada nos princípios progressistas. A detração do legado colonial brasileiro, portanto
de um passado arcaico e incivilizado, se tornou mais presente no imaginário social conforme a
República se aproximava, acabando por se consolidar com a proclamação do novo regime. A
República deveria tomar o lugar do Império por representar o caminho da civilização e a porta para a
sociedade positiva do futuro. Por conseguinte, a nação brasileira deveria se ‘atualizar’ frente às
nações europeias modernas, e para que isso acontecesse era preciso promover a sofisticação dos
meios de produção, reformar substancialmente as cidades construídas sobre os padrões coloniais,
além de erigir novos centros urbanos, bem como investir na ciência e na indústria. A República
desencadeava a crença no futuro, no progresso, já que este regime sintetizaria o modelo político ideal
para se gerir uma nação. No Brasil, o regime republicano representou a via do progresso à maneira
das nações europeias ocidentais; a República era o início de um futuro desejado, idealizado. O Brasil
deveria galgar os estágios do desenvolvimento, fugindo de seu atraso, e acertar o seu reló gio por via
de remodelações institucionais, estruturais, legislativas, comportamentais. A ciência e a racionalidade
tecnicista seriam os fatores responsáveis pelo avanço da sociedade brasileira”. In: MENEGUELLO,
Caion Natal. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica. 2007. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de Pós-Graduação em História pp.16-18;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à Republica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
(História Geral da Civilização Brasileira, t.II, v.5).
87
HOLANDA, Notas…op.cit., p. 90.
42
"cidade moderna" do interior não foi apenas uma experiência extravagante, resumida
a porres e a uma viagem em lombo de mula para uma audiência judiciária
“fracassada”. Suas impressões dizem muito mais. Elas, além de advogarem uma
visão favorável às reformas urbanas em curso no Brasil da época, dentro de uma
concepção imposta de modernização com todas as suas consequências, também
nos coloca um problema recente nas sociedades contemporâneas, qual seja, o
inquietante espetáculo que apresenta o excesso de memória e de esquecimento,
tema profundamente abordado por Paul Ricoeur que propunha como solução a ideia
de uma "política da justa memória", um de seus temas cívicos confessos. 88
Em relação a um excesso de memória, a passagem de Sérgio Buarque
pela Alemanha, próxima parada desse modernista errante, é cercada de exageros e
versões oficiais, mas que se transformaram em mantra toda vez que aparecem
questões que envolvam a sua fase de vida anterior à publicação de "Raízes do
Brasil". Sérgio Buarque não deixou quase nenhum registro sobre a sua passagem
por Berlim, entre junho 1929 e dezembro de 1930, exceto algumas entrevistas, uma
ou outra carta guardada em seu papelório, algumas linhas em "Tentativas de
Mitologia" e um caderno organizado por sua irmã, Cecília, com os recortes dos
textos que enviava de lá ao Brasil. Esse material, aliás, serviu de inspiração para
uma publicação póstuma e comemorativa, organizada por Francisco de Assis
Barbosa e sugestivamente intitulada "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda".
De resto, muito do que sabemos é atestado por textos que detalham um
pouco mais a versão contada pelo próprio protagonista. Em linhas gerais, a história
de Sérgio na Alemanha começa com o convite feito por Assis Chateaubriand para
que o jovem partisse como correspondente de "O Jornal”, com o encargo de fazer
reportagens sobre a situação política em três países: Alemanha, Polônia e União
Soviética. O resultado do intento foi o seguinte: restou no primeiro, visitou
rapidamente o segundo e não conseguiu passar as fronteiras do terceiro.
Sérgio partiu a bordo do navio Cap Arcona no dia 17 de junho de 1929.
Seu embarque foi festivo e acompanhado por amigos como Manuel Bandeira,
Prudente de Moraes, neto, Rodrigo Melo Franco, pelos pais, Dr. Cristóvão e Dona
Heloísa e pelos irmãos, Cecília e Jaime. Na véspera, Sérgio e Josias Leão, que
embarcou junto, foram homenageados com um jantar de despedida no restaurante
88
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et.al.
Campinas/SP: EdUNICAMP, 2007. p. 17.
43
89
CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.), op.cit.,
pp. 119-120.
90
Sérgio relata o encontro e a descoberta de que o escritor era filho de uma brasileira no texto,
Thomas Mann e o Brasil. A esse respeito registrou: "Não me bastava a confirmação. Desejava
conhecer novos detalhes. E Thomas Mann prestou-se amavelmente a satisfazer minha curiosidade. A
mãe dos irmãos Mann, d. Júlia Bruhn da Silva, era filha de um alemão que possuía no Brasil uma
fazenda e que se casara com uma crioula, provavelmente de sangue português e indígena. Aos seis
ou sete anos foi trazida por seu pai a Lübeck, onde teria melhores possibilidades de uma educação e
de uma instrução exemplares. A futura Frau Júlia Mann nunca se esqueceu de sua infância no Brasil
e muito mais tarde ainda se recordava de que fora salva por um negro, escravo de seu pai, de uma
serpente venenosa. Era um tipo caracteristicamente latino (“uma perfeita espanhola", disse-me
Thomas Mann), dotada de um temperamento exaltado, que se deveria adequar com bastante êxito à
sua paixão pela música. Apreciava sobretudo Chopin e acompanhava com sua voz suave as
melodias de Schubert, Schumann e Lassen. A essa mistura de sangues, que influiu acentuadamente
em seu aspecto físico, deve Thomas Mann, provavelmente, algumas das suas qualidades mais raras
de escritor, certa feição característica, que o distingue bastante no conjunto da moderna literatura
alemã".
91
Sérgio Buarque prestou serviços à revista entre 5 de fevereiro de 1930 até 30 de setembro do
mesmo ano. No atestado de dispensa, escrito em alemão, que recebeu da editora Latein-
Amerikanischer Verlag, assinado em 30 de setembro de 1930, consta que o intelectual cumpriu a sua
função na seção de português da Revista DUCO com perfeita autonomia. Arquivo Central Unicamp,
Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal, VP 11. Tradução de Luciano Cavine
Martorano.
92
BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
44
uma carta que ele próprio enviou de Berlim à Rui Ribeiro Couto, alguns meses após
sua chegada em 1929. O documento foi encontrado nos arquivos de Couto,
localizados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A partir desse
escrito é possível acompanhar a visita que Sérgio realizou "por uma porção de
cidades" na Polônia, a recusa de sua entrada em Moscou; o emprego que, com
orgulho arrumou na Revista DUCO; informações sobre um artigo que escreveu em
alemão sobre a "moderna literatura brasileira"; um pedido de fotografias de alguns
modernistas para a ilustração desse texto, etc. A carta também informa o endereço
em que Sérgio residia, que de fato era o mesmo descrito por Antonio Candido,
porém com detalhes: Kurfürstendamm 31-1, Pension Marie Fisher, Berlim W. Em se
tratando de documento pouco conhecido, trazemos à íntegra sua transcrição:
que parece, nessa jornada europeia os seus esforços em nome da causa como lhe
escrevera Mário de Andrade nos tempos de Klaxon, pareciam bastante honestos
como visto nas indicações de um cartão anterior ou no pedido de cuidados ao
correio para que os escritos chegassem com precisão. É como se o rompimento,
após a fase em Cachoeiro do Itapemirim, tivesse terminado e a saudade dos amigos
batesse mais forte por conta do “Desterro”.94
Depois de ler variados relatos e análises sobre esse período da vida de
Sérgio Buarque, o que mais nos chamou a atenção é a forma como esse conjunto
de textos buscou definir uma cronologia à vida da personagem, delimitando uma
fase marcada pelo antes e pelo depois de sua passagem por Berlim. Essa limitação
temporal é importante porque define a passagem no tempo histórico do jovem
modernista ao intelectual consagrado de "Raízes do Brasil". O próprio Sérgio, ao
ordenar a trama de sua trajetória, alimentou essa versão. Recordando, no fim dos
anos 1970, os seus anos berlinenses ele nos conta que,
100
Uma discussão importante e recente sobre esse período alemão da República de Weimar e do
círculo pode ser acompanhada na dissertação de mestrado de Walquiria Oliveira da Silva, intitulada:
Alemanha Secreta: biografia e história no círculo de Stefan George. Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade de Brasilia, 2013. Da mesma autora, vale mencionar o artigo, “A história
como Bildung: o Círculo de Stefan George e a função formativa da História. Tempos Históricos, vol.
19, jan/jun 2015, pp. 120-137.
50
101
Sérgio Buarque aprofunda esse grau comparativo duas décadas mais tarde, quando escreve sua
tese de cátedra, "Visão do Paraíso”, defendida na USP em 1958 e publicada pela primeira vez no ano
seguinte.
102
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um diálogo possível entre (e com) os intérpretes do Brasil. In:
SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca; AZEVEDO, Cecilia; ALMEIDA, Maria Celestino de (orgs.).
Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009. p. 167. Vale mencionar que a ideia de “lugar-comum”, à qual a Professora Maria Stella
Bresciani recorre, para além de sua acepção usual de clichê, contém em si a noção de “fundo-
comum”, ou seja, um conjunto de asserções que permitem a troca de crenças, de palavras, de
preconceitos, argumentos e opiniões sobre um tema. Deste modo, o “lugar-comum” se estrutura na
convergência de opiniões formadas na experiência do dia a dia, estreitamente vinculadas a
expectativas formuladas e fixadas no imaginário e nas representações coletivas, mas que, todavia, se
alimentam de uma tradição filosófica e uma concepção de política. A autora se vale das reflexões de
Myriam Renault d’Allones, no livro Le dépérissement de la politique. Généalogie d’un lieu commun.
Paris: Flammarion, 1999. Stella Bresciani identifica os "fundos comuns" de onde esses autores
elaboraram as suas ideias com base na incompatibilidade entre Estado e sociedade. Seriam eles: 1)
O pressuposto mesológico; 2) As noções de raça e de etnia como um pecado de origem; 3) A
avaliação da capacidade intelectual dos pais colonizadores; 4) A ausência do cidadão; 5) A
precariedade dos hábitos de solidariedade e cooperação, fazendo do liberalismo da Constituição
federativa de 1891 uma ideia exótica; e, 6) A volta ao pressuposto inicial quanto ao desencontro entre
instituições políticas e sociedade.
51
106
Boas referências para essa discussão específica são: HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
sua história. 2. ed. EdUSP, 2005; FRANZINI, Fábio. À sombra das palmeiras: a coleção
Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1959). 2006. Tese
Doutorado em História Social. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas
e Letras; FREYRE, G. Prefácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1936; MORAES, Rubens Borba de. Apresentação. In: DAVATZ, Thomas. Memórias
de um colono no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1941; e, SILVA, Rafael Pereira da.
Modernismo, historiografia e sociabilidade intelectual: apontamentos sobre o quinto volume da
coleção Biblioteca História Brasileira (1931-1940). História (São Paulo), vol. 31, n. 2, dezembro de
53
109
Idem, p. 14.
110
VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p.
22.
111
PONTES, Heloísa. Destinos mistos: os cri ́ticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São
Paulo: Cia. Das Letras, 1998.
112
VELLOSO, op.cit, p. 26. A autora lembra que estudiosos como Luis Costa Lima, Alfredo Bosi e
Silviano Santiago foram fundamentais no processo de releitura do modernismo brasileiro. Enfatizando
a diversidade da cultura brasileira, esses autores contribuíram para o entendimento da temporalidade
múltipla que marcava a brasilidade. Ao longo dos anos 1980, foi importante rever criticamente as
ideias que reforçavam uma visão do modernismo baseada na estética da ruptura. O trabalho de
Carlos Berriel, resultante de sua tese de doutorado, também pode ser lido nesse contexto de uma
revisão memorialística.
55
117
Idem, p. 15. Segundo Faria e na mesma direção de Peter Gay, o termo “modernismo” já existia,
mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos intelectuais e estéticos, conjuntos
de ideias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. Este sentido ainda é válido
em outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo" e “vanguardas" não são termos
equivalentes.
118
Sobre esse debate ver: Miceli, Sérgio. Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945).
São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979 e DECCA, Edgar S. de. Os intelectuais e a redemocratização
no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am
Main: Vervuert, 1991. pp. 29-42.
119
CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 194.
57
patrão branco, e ao fazê-lo conforme uma fatura que afirmava a inovação criadora
contra as normas tradicionais, de agrado dos poderes”. 120
Se antes, a abertura criativa concedida a Portinari pôde ser interpretada
numa chave de resistência à opressão, hoje sabemos que Vargas tinha muito clara a
intenção de “elevação do homem brasileiro”. Numa explícita parceria entre governo
e artistas e contando ainda com cientistas sociais, o governo impôs critérios
importantes para fixar a figura ideal que “nos seja lícito imaginar como representativa
do futuro homem brasileiro”, não se furtando de análises embasadas na frenologia,
na somatologia, na antropometria e sustentadas em dados sobre a formação,
evolução e unidade racial da população brasileira.
Em outras palavras, como demonstrou em sua pesquisa Maria Bernadete
Ramos Flores, “se não se pode afirmar que Vargas tivesse criado ‘uma imagem
unívoca e definida' para seu governo, pelos editais de concursos e pelos termos das
encomendas, mostra-se clara uma escolha estética paralela àquelas utilizadas nos
diversos programas imagéticos oficiais, no entre-guerras”. 121 O chamado "retorno à
ordem”, ao re-figurar o corpo fragmentado pelas vanguardas artísticas do início do
século, conclui, serviu aos programas de crença no advento do “homem novo”. O
trabalhador, a juventude e a mãe foram, em todos os governos, as figuras exaltadas,
esculpidas na sua integridade corpórea, transformadas em simióforos que
carregariam o ideal de nação.122
Assim é que vemos, por exemplo, o berço da civilização ocidental, no
caso da Itália; a raça pura, no caso da Alemanha; a nação próspera, nos casos da
União Soviética e dos Estados Unidos ou o expansionismo civilizado de mundos, no
caso português. No Brasil, a apropriação getulista da estética, em circulação na
Europa e nos Estados Unidos, projetava o “futuro homem brasileiro” de modo que o
conjunto escultório do Edifício do Ministério da Educação voltava-se para o futuro da
120
Idem, pp. 194-195. Nesse passagem, Antonio Candido vale-se do trabalho de Annateresa Fabris,
Portinari pintor social. 1977. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo (USP). Escola
de Comunicação e Artes. Nas palavras de Antonio Candido, a autora focaliza a pintura social de
Portinari à luz da teoria marxista da alienação, analisando o tratamento revolucionário do negro, cuja
função em telas e painéis dos anos 30 é uma afirmação racial, é um reconhecimento do seu papel
histórico, é símbolo do proletariado (FABRIS, op.cit. p. 176).
121
FLORES, Maria Bernadete Ramos. O nu e o vestido, o futuro e o passado, a pedra e a carne: a
estética da representação no Brasil e em Portugal. In: Tecnologia e estética do racismo. Ciência e
arte na política da beleza. Chapecó/SC: Argos, 2007. pp. 139-177.
122
Idem.
58
123
Ibidem, p. 148. Na abertura do capítulo a autora descreve um bom exemplo dessas discussões:
Em junho de 1937, o ministro Capanema apresentara a Getúlio a proposta da estátua do homem
brasileiro a ser erigida no pátio do Edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública - MES: um
bloco de de granito, aproximadamente 11 metros de altura, sentado num soco, nu, como o Penseur,
de Rodin, mas de aspecto que denotasse calma, domínio, afirmação. (…) Porém, Censo Antônio, que
recebera a encomenda, apresentara um projeto que não correspondia ao desejado por Capanema: o
homem era de feições sertanejas, barrigudo e pouco atlético. Pouco depois a encomenda lhe foi
retirada e foi aberto um concurso público em janeiro de 1938 com as seguintes prescrições: a estátua
será constituída simplesmente com um homem que estará sentado; representativo do melhor tipo
racial brasileiro; o homem estará nu, respeitadas porém as conveniências da praça pública; será de
12 metros de altura e em granito; o pedestal terá apenas 30 ou 40 cm. Seria uma monumentalidade
em frente ao edifício do Ministério da Educação. A encomenda foi entregue a Brecheret, com a
recomendação expressa de Capanema, para que não fizesse trabalho estilizado e nem decorativo,
(…) o homem deveria ser figura sólida, forte. Nada de rapaz bonito. Um tipo moreno, de boa
qualidade, com semblante denunciando a inteligência, a elevação, a coragem, a capacidade de criar
e realizar. A estátua não fora concluída. Conta-se que a maquete de 3 metros de altura teria
desabado, sem deixar vestígios. Pelo exposto, o Homem Brasileiro seria de matriz clássica, aquele
"homem novo” que estava no centro dos interesses de todos os regimes políticos da década de 30.
FLORES, op.cit, pp. 141-142.
124
PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Os Afrescos nos trópicos: Portinari e o mecenato Capanema.
2003. Tese de Doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas. p. 24. Um outro estudo importante dessa temática é a coletânea
organizada por Helena Bonemy, Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:
Editora FGV; Bragança Paulista (SP): Editora Univ. de São Francisco, 2001.
59
125
Idem, p. 29. Especificamente sobre o SPHAN, ver: RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-
1968). 1992. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social.
126
A coleção publicou ainda os seguintes títulos: Viagem pitoresca através do Brasil, de Rugendas;
Viagem à Província de Sa ̃o Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire; Reminiscências de viagem, de Danil
Kidder; Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret; Memórias de um colono no
Brasil, de Thomas Davatz; Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles; Viagem à terra do Brasil de Jean
de Léry; Dez anos de Brasil de Carl Sedler; Memorável viagem marítima, de Joan Nieuhof; Notas
sobre o Rio de Janeiro de John Luccock; Viagem às missões jesuíticas do Padre Antônio Sepp von
Rechegg; Imagem do Brasil de Frans Post; Os caduveos de Guido Boggiani; História das missões
dos padres capuchinos, de Claude d’Abbeville; Noti ́cia do Brasil de Gabriel Soares de Souza; História
da guerra Rio e Buenos Aires e Galeria dos Brasileiros Ilustres de S. A. Sisson.
60
127
Entrevista concedida a Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes em 15 de agosto de 1982, na
cidade de Bragança Paulista (SP).
128
DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e
poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 46. A
abordagem dessa história intelectual feita por Edgar de Decca, é ao meu ver um desdobramento de
seu livro O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. Nele, “a revoluc ̧ã o de 30 como memó ́ria histórica do vencedor da luta, fazendo parte do
exercício de dominac ̧ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado, qualificando tanto os
agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é memorizada pelo vencedor
como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a oligarquia”. No que diz respeito à
construção de uma memória histórica pelo vencedor, o autor também chama a atenção para a
cronologia criada após esse “fato”. Nesse sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado
“República Velha”, já que “tal revoluc ̧ão inaugura o novo” (e nisso pode-se inserir as interpretações
do Brasil). A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais a mais
corrente é a da economia agroexportadora x industrializac ̧ão, aspectos que marcaram profundamente
a produção acadêmica ao longo do século XX. DECCA, O silêncio…. pp. 108-110.
129
SALLUM JR, Basílio. Sobre a noção de democracia em Raízes do Brasil. In: MARRAS, Stelio
(org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 52.
61
133
SALLUM JR, op.cit., pp. 53-54. Não cabe neste espaço adentrar essa discussão de modo
sistemático, o que inclusive já foi feito de maneira competente por outros autores, citados em nota
anterior. Todavia, é importante mencionar que a gênese do pensamento de Sérgio Buarque ao
elaborar o texto final da edição de Raízes de Brasil de 1936, encontra-se num debate do pensamento
alemão em torno das ideias de psicogênese e sociogênese. Para Leopoldo Waizbort, no período que
vai da virada do século XX até o início do período nacional-socialista na Alemanha, a discussão
acerca dos nexos de pisco e sociogênese é um dos núcleos fortes em torno do qual gravitavam os
debates acerca da interpretação histórico-cultural-social, debate esse difuso por toda a plêiade das
humanidades. Para Waizbort, a sociologia de então, procurou desenvolver esse problema, que pode
ser rasteado em autores como Georg Simmel, Max Weber, Ernst Troeltsch, Werner Sombart, Hans
Freyer, Karl Mannheim e Norbert Elias, todos conhecidos de Sérgio. WAIZBORT, op.cit., p. 41.
134
A resenha em questão, intitulada O Estado totalitário, encontra-se em: BARBOSA, Francisco de
Assis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 298-301.
63
mesma citada em “Raízes". Portanto, uma emissão de juízo escrita quando Sérgio
finalizava o livro e na qual "glosa Schmitt em perspectiva favorável". Observando a
resenha, notamos que a problemática da democracia sequer é mencionada. Não se
tratava de um tópico de discussão na obra de Schmitt mas, ao inserí-la em "Raízes
do Brasil”, a democracia passava a ser um "mal-entendido a ser esclarecido”.135
Desse modo é que no capítulo final de “Raízes do Brasil", "Nossa
revolução”, página 155, a complexa discussão acerca das condições do totalitarismo
na iminência do colapso do modelo de democracia liberal apresenta uma frase de
impacto: "É um fato instrutivo o das doutrinas que exaltam o princípio de autoridade
pressuporem fatalmente a ideia de que os homens são maus por natureza”. Trata-se
justamente de uma citação extraída de "O conceito de político", de Carl Schmitt.
Nesse contexto, Leopold Waizbort questiona se valeria a pena indagar se o Estado
forte, mesmo imposto, não seria no entender de Sérgio Buarque uma assertiva
compatível com a situação brasileira da época, justamente porque ela se
caracterizava por uma condição na qual o Estado impessoal, democrático, não se
positivava, tolhido pelo poder privado. Em outras palavras, não restava dúvida de
que a alternativa mais viável para essa disfunção, essa incapacidade de
organização da vida nacional era a de um Estado antiliberal forte e focado na figura
do tirano, ou seja, um presságio à própria imagem personalista de Vargas que se
constituía às vésperas de um golpe.136
Outra chave para a compreensão de "Raízes do Brasil” se dá a partir do
estudo de suas metáforas.137 Embora Leopold Waizbort objete que considerações ao
livro nessa perspectiva diluam seu sentido histórico e político, já foi comprovado pelo
contrário, que elas receberam de Sérgio um lugar central na formulação de seus
argumentos e no estilo de sua narrativa. Isso sem especular as metáforas que,
ressignificadas pelo autor, desdobraram-se e ganharam novos contornos em suas
interpretações posteriores. É o que sugere Edgar de Decca, nos lembrando que:
135
WAIZBORT, op.cit., p. 53.
136
Idem.
137
Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema da metáfora, ver: RICOEUR, Paul; MACEDO,
Dion Davi (Coaut. de). A metáfora viva. São Paulo, SP: Loyola, 2000; BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Uma questão de estilo. In: O charme da ciência e a sedução da objetividade. Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. pp. 455-486.
64
(…) uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de
seu tempo – mas em caso contrário ainda pode se chamar historiador –
consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer
isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas
ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no
passado o bom remédio para as misérias do momento que corre. 139
138
DECCA, Edgar S. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil: decifra-me ou te devoro. Vária
História, Belo Horizonte, vol. 22, n. 36, Jul/Dez., 2006. p. 427.
139
HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1977. p.
XVIII.
65
sentidos figurados da obra, mas também das acepções políticas e sociais que ela
destinava aos leitores do tempo.140
Das metáforas consagradas por Sérgio Buarque, "fronteira e semeadura”
são imagens importantes do enredo que esse historiador atribuiu à sua explicação
do Brasil. Não por acaso, o capítulo que abre o livro trata das "Fronteiras da Europa",
uma homenagem, mas também continuidade à obra do historiador alemão Leopold
Von Ranke141, na qual Sérgio explora a metáfora da viagem da Europa a partir de
suas zonas de fronteira. Assim, através de Portugal e da Espanha, a Europa faria a
expansão do seu sentido e a partir de então, seriam apreendidas por outros povos
como metáforas civilizatórias. Ou nas palavras do próprio Sérgio Buarque:
140
Não nos cabe nesse capítulo e nem é nossa intenção fazer uma leitura pormenorizada dos
significados possíveis atribuídos ao livro de estreia de Sérgio Buarque. Tampouco é objetivo fazer
uma leitura através da vasta fortuna crítica, lembrando que nosso foco principal é o autor como um
personagem. Nessa parte do capítulo, "Raízes do Brasil” é visto como um produto do seu tempo e
serviu como exemplo de análise social feita a partir dos anos 1930, momento de amplas
interpretações sobre o país.
141
Vale lembrar que, já no fim da vida, Sérgio escreve um longo ensaio sobre esse historiador.
Ranke, no momento político de nacionalismos europeus do século XIX, buscou estabelecer através
da análise histórica as fronteiras políticas e culturais europeias, percebendo essa unidade a partir de
três momentos: o primeiro momento foi a intensa migração dos povos romanos e germânicos,
propiciando a formação do interior da Europa; com as Cruzadas, segundo momento, os europeus
criaram o espírito de expansão para o exterior e de luta contra o infiel, criando uma profunda divisão
entre a cristandade de Roma e a cristandade oriental; por último, como observou Sérgio Buarque, as
fronteiras europeias se expandem para além dos oceanos, com a expansão ultramarina. HOLANDA,
Sérgio Buarque. Ranke. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979.
142
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. p. 4.
66
se para fora, sem muito apelo à sua própria internalização, daí a empresa colonial
ter sido sucedânea de uma disposição já existente.143
O complexo jogo de referências que envolvem a metáfora da
"semeadura", que parte da carta de Pero Vaz de Caminha, passando pelos sermões
do Padre Antônio Vieira e por obras como "Retrato do Brasil" (1928), de Paulo Prado
e "Casa Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre são importantes para a
compreensão do conceito de "homem cordial”. Em linhas gerais, a metáfora da
semeadura é relevante porque ajuda a explicar a passagem no Brasil de um mundo
agrário, exportador e tradicional para um mundo urbano e no seu horizonte,
moderno.
Nessa dinâmica, a fronteira reaparece como um lugar de contato entre
esses dois mundos. Diferente, portanto, de autores como Prado ou Freyre, para
quem semeadura tinha conotação sexual, de melancolia ou de adaptabilidade, para
Sérgio Buarque há uma dessexualização dessa metáfora e ela torna-se a forma de
constituição da colônia e do seu desdobramento do agrário para o urbano. Distancia-
se também de Vieira e de suas alusões ao sentido agrícola, para explicar a forma de
criação das cidades portuguesas na sua contraposição às espanholas. 144
A grande pergunta para Sérgio era de que modo a semeadura realizada
pelos nossos pais colonizadores foi capaz de dar forma a esta "original contribuição
brasileira para a civilização”, o homem cordial, em cujos traços permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio transpostos do meio rural e
patriarcal. Desse modo, podemos afirmar que há na interpretação de Sérgio
Buarque todo um ciclo de reprodução que se estende desde a semeadura da terra à
criação das raízes, chegando ao desenvolvimento do fruto na sua forma definitiva, o
homem cordial brasileiro.
Muito já se especulou a respeito dessa herança brasileira ao mundo.
Grosso modo, a expressão foi pela primeira vez utilizada em 1931 por Rui Ribeiro
Couto. Valendo-se também da metáfora da semeadura, todavia para um contexto
americano, afirmava esse autor que o egoísmo europeu, tocado pela intolerância e
pela fome, fundou no "leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa
143
DECCA, Edgar S. As metáforas…op.cit., p. 432. Uma cópia dessa tese encontra-se no Arquivo
Central da Unicamp. Nos arquivos da Escola Livre de Sociologia e Política-ELSP há um dossiê sobre
a vida universitária de Sérgio Buarque. Dentre os documentos encontram-se seus boletins, a ata de
defesa dessa tese, a cópia de seus trabalhos para as disciplinas cursadas, sua prova de proficiência
em língua alemã, entre outros.
144
Idem, p. 435.
67
145
COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano. Revista do Brasil, Rio de Janeiro,
1985. Para de Decca, é bem possível que expressão tomada emprestada de Ribeiro Couto seja uma
alusão reatualizada e crítica de outro texto caro ao pensamento latino americano, Ariel, de José
Enrique Rodó.
146
DECCA, As metáforas…op.cit., p. 437.
147
Idem, pp. 437-8 e também GNERRE, Maria Lúcia. A tragédia da cordialidade: Antígona, o
estado e família no homem cordial de Raízes do Brasil. (texto inédito, doutorado Unicamp).
68
ficou isolado nessa ótica e nem foi calado pelo Estado Novo, formando ao lado de
outras explicações, como as de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior, o que a
posteriori se rotulou de moderna historiografia brasileira.148
E o rótulo “novo/moderno", tal como visto acima entre os modernistas de
São Paulo, também serviu de demarcação para uma nova cronologia da história da
história no Brasil. De modo que, toda a produção historiográfica anterior a 1930
passou a ser vista como um conjunto homogêneo e monolítico, salvo Capistrano de
Abreu, "homem ponte" entre gerações149 marcado por leituras oficiosas, autorizadas,
positivistas, raciais, advindas da tradição criada pela fundação do "Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro” - IHGB, ainda no século XIX. Assim, o novo tempo histórico
forjado pela “revolução” de 30 permitiu um (re)descobrimento do Brasil moderno,
exemplificado pelos diferentes diagnósticos produzidos da nação.
148
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de
uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al.) Mitos, projetos e práticas políticas:
memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Vele destacar aqui a recente
obra organizada por Lincoln Secco e Luiz Bernardo Pericás, Intérpretes do Brasil: clássicos,
rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. Mesmo propondo trazer à luz autores pouco
estudados hoje ou relegados/esquecidos propositalmente pelos meios acadêmicos, a obra não deixa
de atestar a ideia de clássico, atribuída a Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre,
reforçando o memorialismo de Antonio Candido, também personagem da obra. Na crítica que
publicou ao livro, no jornal O Globo do dia 9 de março de 2014, o professor da IUPERJ, Francisco
Carlos Teixeira da Silva levanta questionamentos importantes: "por que os clássicos fazem
companhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em si
mesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e
“renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado de
outros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e Paulo
Freire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civil-militar, exilado e morto de forma vergonhosa
para o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos ainda
dívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por isso
mesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram de
tristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhuma
injustiça com os mestres já consagrados (…) abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outros
nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos,
então, um livro com sabor de resposta e de desafio. Em vez de repetir aqueles que frequentam com
assiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala ou
susto” (…) para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos".
149
Para uma análise detalhada de Capistrano de Abreu ver: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano:
Capistrano de Abreu (1853-1927), memória, historiografia, escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013.
69
Teixeira. O convite foi concretizado por seu amigo e padrinho de casamento, ao lado
de Rodrigo Mello Franco Andrade, Prudente de Moraes, neto, então diretor da
Faculdade de Filosofia e Letras. Mello Franco, na mesma época, em 1937, assumiu
a direção do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-
SPHAN, concebido por Mário de Andrade. Na UDF, Sérgio teria como companheiros
de prática docente o mineiro Afonso Arinos de Melo Franco, amigo de Sérgio desde
os tempos da Faculdade de Direito, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Gilberto
Freyre, entre outros.
Conduzida pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro desde 1935, a
UDF se distanciou do projeto educativo construído pelo Estado Novo nos anos
subsequentes ao golpe. A esse fato soma-se uma intensa campanha pública
difamatória de denúncia ao comunismo, feita pelo paladino do catolicismo à época,
Alceu Amoroso Lima, então reitor da UDF, levando ao fechamento da universidade
em 1939. De lá Sérgio partiu para o Instituto Nacional do Livro-INL, dirigido como já
dito, pelo gaúcho Augusto Meyer, amigo de Vargas. Antes, porém, o intelectual teve
uma breve passagem pelo Departamento de Teatro, ligado ao Ministério da
Educação.
Sua já mencionada fase no INL foi marcada pelo relacionamento com
Rubens Borba de Moraes. Dentre os diversos temas tratados pelos intelectuais, em
suas trocas epistolares, podemos destacar dois: a já citada organização da "Coleção
Biblioteca Histórica Brasileira” e a elaboração do "Handbook of Brazilian Studies”,
obra que seria realizada em coautoria entre Moraes e o estadunidense William
Berrien.150 Foi nessa época que Sérgio se aproximou do historiador Lewis Hanke,
diretor da "Hispanic Foundation" e ligada à "Library of Congress”. Segundo aponta
Thiago Nicodemo, foi por meio dessa ligação e em nome do próprio Instituto que
Sérgio Buarque viajou ao Estados Unidos em 1941, conferindo palestras no estado
de Wyoming e debatendo na Universidade de Chicago. Também aproveitou a
oportunidade para pesquisar na "Library of Congress" e esticar uns dias em Nova
Iorque.151
150
Essas correspondências encontram-se no Arquivo Central/SIARQ, da Universidade Estadual de
Campinas/Unicamp.
151
NICODEMO, Thiago L. Sérgio Buarque de Holanda e a dinâmica das Instituições Culturais no
Brasil (1930-1960). In: MARRAS, Stelio. (org). Atualidades de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
p. 113. Ao relatar essa passagem de Sérgio pelos Estados Unidos, Nicodemo nos informa que: “(…)
enquanto esteve em Nova Iorque, horas antes de embarcar para o Brasil, em 18 de julho de 1941,
Sérgio entrou em contato com Paulo Duarte e lhe passou informações sobre como deveria proceder
para obter cópias de manuscritos do século XVIII e XIX para a Biblioteca Municipal de São Paulo, e
70
sugerindo que entrasse em contato com Berrien e Hanke. Nicodemo se baseia em uma carta
localizada no CEDAE/Unicamp, Arquivo Paulo Duarte, vol. 8. De fato esse contato foi realizado. Um
Memorandum, de 18 de agosto de 1941, enviado por Geoge Sioussat, chefe da Divisão de
Manuscritos, a Paulo Duarte, aponta a lista de documentos consultados por Sérgio Buarque antes de
seu embarque de volta ao Brasil. Essa fonte afirma, ainda, que a seção de manuscritos estava
calculando os custos estimados para a microfilmagem dos seguintes documentos: Cleary, Brazil
Chronicas Lageanas. Or a record of facts and observations on manners and custons in South Brazil,
extracted from notes taken on the spot, during a period of more than 20 years. Lages, 1886. 415 pp.8-
3/4 x 13 in; Cleary, Brazil under the Monarchy. A record of facts and observations. From notes taken
in Brazil during a period of more than 20 years. n. d. 189 pp. 8 x 12-1/2in; Resolutien raeckend Brazil.
1649. 1 vol., 501 pp., 8-1/2 x 13 in; Rapports van Brazil (West India and East India companies, etc.)
16 items. 1636 - 1644. 235 pp., 8-3/4 x 13 in; Miscellaneous Papers relating to the West India
Company, Portugal and Brazil (In Dutch). 40 items. 1568, 1635-1695. 205 pp., 8-1/2 x 13. Essa
informação vai ao encontro do que já apontamos, ou seja, a ideia de uma moderna interpretação do
Brasil deveria passar pela devassa e pela leitura de documentos, sobretudo, manuscritos, de
preferência inéditos e localizados em arquivos fora do país. Na época em que localizei esse
documento, ainda em 2011, o CEDAE/Unicamp encontrava-se em fase de mudança para a atual
sede, no Instituto de Estudos da Linguagem. Dessa forma, o Memorandum estava em meio a um
grande volume de documentos avulsos, mas identificados como sendo as correspondências
recebidas por Paulo Duarte. Sobre a passagem de Sérgio Buarque pelo INL ver de maneira mais
detalhada: CARVALHO, Marcus Vinicius C. O Instituto Nacional do Livro e os modernistas: questões
para a história da educação brasileira. In: Cadernos de História da Educação, vol. 11, nº 2, jul/dez,
2012. pp. 543-557.
152
NICODEMO, op.cit., 113. Sobre essa "fase americana” de Sérgio Buarque vale consultar ainda:
WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo
Horizonte: EdUFMG, 2000 e o artigo cunhado pelo próprio autor na época, publicado no "Diário de
Notícias" do Rio de Janeiro e em livro na coletânea "Cobra de Vidro", de 1945, "Considerações sobre
o americanismo”. Vale mencionar ainda, que na Biblioteca que pertenceu a Sérgio Buarque há um
exemplar do livro de Turner, publicado em Nova Iorque em 1920 pela editora H. Holt. É bem possível,
portanto, que o historiador o tenha obtido durante a viagem aos Estados Unidos. A tese de Turner foi
apresentada pela primeira vez em formato de paper com o título "The significance of the Frontier in
American History", em 1893, durante um encontro da American Historical Association, em Chicago.
153
Nas correspondências trocadas entre Rubens Borba e Sérgio Buarque, Rodolfo Garcia é tratado
pelo primeiro várias vezes em tom de galhofa. Essa desavença também pode ser conferida em:
BANDEIRA, Suelena P. O mestre dos livros: Rubens Borba de Moraes. Brasília: Briquet de
Lemos/Livros, 2007. A chegada à diretoria da Biblioteca de fato ocorreu. Rubens Borba assumiu o
posto em 17 de dezembro de 1945, já sem a figura de Getúlio Vargas na presidência. Sua gestão à
71
frente da BN se estendeu até agosto de 1947, quando foi retirado do cargo pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra, que deu lugar a outro indicado, o escritor maranhense Josué Montello. BANDEIRA,
Suelena, op.cit., pp. 62-67.
154
A Biblioteca Nacional em 1944. Relatório que o Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema, Ministro da
Educação e Saúde apresentou em fevereiro de 1945, ao Diretor Rodolfo Augusto de Amorim Garcia.
Setor de manuscritos da Biblioteca Nacional, RJ.
155
GONÇALVES, Márcia de A. Uma história de cruzamentos providenciais: o manual didático de
Octávio Tarquínio de Souza e Sérgio Buarque de Holanda. In: ROCHA, Helenice A. B.; REZNIK, Luís;
MAGALHÃES, Marcelo de S. (orgs). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009. p. 116.
72
163
Aqui faz-se referência ao livro de Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento do
Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
164
SOUSA; HOLANDA, op.cit., pp. 84-85.
165
Idem, p. 108.
75
Fossem nas trilhas mata adentro ou nos rios caudalosos, o triunfo da conquista e da
sobrevivência só foi possível graças à incorporação de técnicas e práticas
autóctones, que atenuavam as intempéries do meio natural.
166
Ibidem. O termo “raça de gigantes” é atribuído por Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio ao viajante
francês Auguste de Saint-Hilaire. p. 109.
76
Para concluir esse breve parêntese, o que tentamos demonstrar foi o fato
de que, pouco lembrado tanto pelo autor quanto pela fortuna crítica, "História do
Brasil", além de um meio didático de divulgação da moderna historiografia, já
continha em algumas páginas de seu conjunto, um indicativo do que Sérgio Buarque
definiu como “fronteira". Resultante de sua estadia americana em 1941, de suas
pesquisas documentais em curso e da leitura das teses de Frederick Turner, esse
conceito-chave se tornou, pouco depois, síntese de uma tradição historiográfica que
examinava a especificidade do paulista, bem como a expansão dessa população ao
extremo oeste do território colonial, contrapondo-se, portanto, ao modelo explicativo
estático da colonização litorânea. Nesse caso,
167
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. Rio de Janeiro, 1945. pp. 11-14.
168
HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp.
12-13. Importante mencionar que quando Sérgio Buarque começou a estudar esses assuntos, no
limiar da década de 1940, já se podia falar de uma tradição historiográfica, que lidava com as
entradas e bandeiras, à qual é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu.
169
BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 56.
77
174
Biblioteca Nacional em 1944, op.cit.
175
Idem.
79
em curso na Europa não passou despercebida aos olhos do diretor, que atribuía
parte da carência de servidores e a dificuldade em adquirir novas obras à
beligerância. Mesmo assim,
Desse modo, receptora que foi das demandas do tempo, a ABDE abraçou
em seus quadros uma variedade de tendências políticas, que incluía desde liberais
conservadores até comunistas ligados ao PCB. Fora esse aspecto mais geral, ela
também deve ser pensada em consonância com a ampliação do mercado editorial e
com a prática de algumas editoras que antecipavam o pagamento de direitos
autorais, possibilitando a alguns escritores dedicarem-se somente à literatura,
mesmo que o Estado continuasse a ser o principal empregador dessa categoria
social. Casos, por exemplo, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico
Veríssimo.181
Mas até que se consolidasse definitivamente como "figura heróica”, o
escritor não teve vida fácil. Desde a década de 1880 eram frequentes as opiniões
acerca do baixo status de seu ofício. A vida intelectual daquela época tinha que lidar
com a falta de um público leitor, com baixas remunerações e com as dificuldades de
publicação, já que em um país de analfabetos as principais editoras preferiam
investir nas traduções de romances franceses, mais aceitos, do que arriscar com
autores desconhecidos. Mas por outro lado, foi esse quadro que estimulou a
construção da imagem sublime dos escritores que, "apresentados como honestos e
abnegados, procuravam superar todos os infortúnios, (…) em defesa de uma arte
mais ‘sincera’, ‘genuína’ e, portanto, ‘verdadeira’".182
Contudo, mais do que talento, o que garantia aos escritores prestígio
junto ao público, ascensão social ou memória póstuma, eram as redes de
sociabilidade em que estavam envoltos. Detentores ou não de diploma ou de
recursos financeiros, era "importante que obtivessem o apoio de ‘padrinhos’ com
prestígio suficiente para arrumar-lhes alguma colocação". Ambicionavam, assim,
empregos públicos na burocracia estatal, vislumbrando a possibilidade de ganho fixo
que lhes garantisse tempo para escrever.183
Como bem nos lembra Rebeca Gontijo, uma vez no local certo, no
momento certo, o próximo passo era integrar ou reunir os grupos certos. Assim, a
paulista ao lado de Sérgio Milliet, Paulo Emílio Salles Gomes, Paul Singer, Oliveiros Ferreira,
Maurício Tragtember, Perseu Abramo, entre outros; e outra, na página 187, nota 182, como indicação
de leitura (imagina-se que "Raízes do Brasil") aos militantes do partido, que, além dos estrangeiros,
como Rosa Luxemburgo, Kautsky, Plekanof, Weber, deveriam estudar os brasileiros Caio Prado
Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, entremeados de Oliveira Vianna, João Ribeiro, entre outros.
181
MELO, ibidem. p. 717.
182
GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,
historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 46-7.
183
Idem, p. 48.
82
184
Ibidem, pp. 48-49. COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1962. pp. 21-22.
185
Graciliano Ramos ficou preso entre 1936 e 1937, período mais tarde retratado em Memórias do
Cárcere (2 volumes), postumamente publicado, em 1953; Caio Prado Júnior ficou preso entre 1935 e
1937, partindo em seguida para o exílio e regressando ao país em 1939; o jornalista Paulo Duarte foi
exilado por duas vezes: a primeira em 1932, após o levante paulista e a segunda em 1938, durante o
Estado Novo.
83
interesses profissionais, (…) mas se dispunha também a lutar (…) pela volta
das liberdades democráticas.186
Não resta dúvida de que Sérgio Buarque foi um "homem de seu tempo”,
como foram tantos outros, intelectuais ou não, de sua geração. O que talvez
diferisse Holanda dos demais fosse o fato de que, como "grande homem”, dotado de
livre arbítrio para pensar, se posicionar e escrever, escapasse do reino da
necessidade, onde vivia a maioria dos mortais.189
Desse modo, ao enaltecer de forma sublime a vida do historiador,
escolhendo apenas cores de combate para pintar sua biografia, Laura de Mello e
Souza reforça uma mística oficiosa, monumentalizada por textos celebrativos a
exemplo das práticas do século XIX, onde se buscavam nos campos da política ou
186
CANDIDO, Antonio. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: _____. (org.) Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 81-82.
187
Idem, p. 86.
188
SOUZA, Laura de M. Prefácio. In: NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e
a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. pp. 17-18.
189
GONTIJO, op.cit., p. 40.
84
Letras. Lourenço foi cassado logo em seguida, por decreto assinado por Gama e
Silva, que permanecia reitor enquanto servia como Ministro da Justiça. 193 A "solução
final” veio de cima com uma Reforma (Lei 5540/68) que estabelecia a destituição da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, desmembrada em vários Institutos e
Faculdades, disso resultando o gradual processo de "mercantilização" do saber com
foco tecnicista e a adaptação da universidade aos moldes capitalistas de produção e
resultado.194
Todavia, nos parece relevante o fato de Sérgio Buarque, como intelectual
importante que era, não ter sido sequer citado uma única vez no documento. Isso
nos faz pensar que assim como no período Vargas, Sérgio não tivesse sofrido
grandes sanções em seus afazeres até 1969 e mesmo depois, como atesta um
artigo-depoimento de uma de suas orientandas, a professora Maria Odila L. da S.
Dias: "Não deixou porém todos os seus vínculos, continuando a orientação de
algumas teses. (…) Em 1972, publicou (…) "Do Império à República”, sexto volume
da série por ele coordenada”. Nessa época ainda se envolveu com a Justiça Militar
não como “suspeito" de qualquer subversão, mas pelo contrário, como testemunha,
na tentativa de livrar colegas de tais acusações. Segundo Dias, "acompanhou (…)
os processos de perseguição política, as prisões de colegas e alunos,
comparecendo, às vezes pessoalmente, às auditorias para dar apoio pessoal,
visitando-os na prisão, escrevendo, quando possível, manifestos de protesto". 195
Exemplo disso são duas cartas envidas de Santiago do Chile, em 1969.
Nelas, Caio Prado Júnior demostrava gratidão pelos depoimentos dados pelo amigo
a seu favor perante os militares. Em 19 de março eram esses os dizeres:
Meu caro Sérgio, estou a tempo para lhe escrever afim de agradecer o seu
depoimento na Justiça Militar em meu processo. (…) pode estar certo que
grande é o meu conhecimento pelo seu gesto em especial pelos tons do
depoimento que foram comunicados pelo meu advogado. Espero poder
retribuir-lhe que fico devendo, em todo o caso pode estar certo que não
esquecerei do fato. (…) Abraço-o cordialmente o amigo de sempre, Caio. 196
193
ASSOCIAÇÃO…op.cit., p. 7.
194
SANCHES, Rodrigo Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Sociedade e Estado, vol. 26,
nº 1, Brasília, jan/abr, 2011. Uma leitura detalhada da reforma Universitária realizada na USP durante
a década de 1960 foi feita por Macioniro Celeste Filho em seu livro, A constituição da Universidade
de São Paulo e a reforma universitária da década de 1960. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
195
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados [on-
line]. 1994, vol. 8, n º 22. São Paulo, set/dez. p. 273.
196
Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 296, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
86
Meu caro Sérgio, estou lhe remetendo com esta uma reportagem acerca do
seu filho e que naturalmente interessará você, (…) Você deve ter recebido
carta minha, já há tempos, agradecendo seu depoimento a meu favor na
Justiça Militar. Reitero aqui os meus agradecimentos. Tive notícias de seu
pedido de aposentadoria (…). Mas seja como for, (…) você pode estar
seguro, de minha grande amizade e admiração que espero poder reiterar
pessoalmente logo que atravessarmos as tão desfavoráveis circunstâncias
do momento que atravessa o Brasil e de que todos somos vítimas. Aceita
com Maria Amélia expressão de meus mais cordiais e afetivos sentimentos,
(…) abraço muito amigo do Caio.197
***
197
Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 298, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
87
Capítulo 2
O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À
APOSENTADORIA E DEPOIS…
199
Idem, pp. 47-48.
200
NICODEMO, Thiago Lima. Sergio Buarque de Holanda e a dinâmica das instituições culturais no
Brasil 1930-1960. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:
EdUSP; IEB, 2012. pp.126-127.
90
as portas da crítica literária ao jovem Sérgio, agora lhe deixava às voltas nos
inúmeros corredores do palacete do Ipiranga.201
A respeito desse episódio há um importante registro. Trata-se de um texto
datilografado em quatro laudas, sem indicações de local ou data, de folhas
amareladas e com breves rabiscos à caneta nas cores vermelha, preta e azul, que
corrigiam concordâncias de uma ou outra frase. Anexado a ele um pequeno pedaço
de papel branco, recortado em forma quadrada, datilografado e assinado em azul:
"Rio, abril, 1988". A leitura desse documento leva a crer que se tratava de
homenagem feita por colegas da Faculdade de Filosofia da USP, quando do
ingresso de Sérgio Buarque como docente, em 1958 e, se a memória de sua viúva
estiver mesmo correta, ele foi redigido pelo professor Cruz Costa. Tal como exposto
por Maria Amélia: "Tenho a impressão que estas palavras foram do professor Cruz
Costa, catedrático de filosofia e grande amigo”.202
Revelando por meio de lembranças, imagens de uma longeva relação de
amizade, Cruz Costa nos oferece algumas pistas das redes que trouxeram de volta
o amigo às terras que tão bem conhecia e à direção do Museu, símbolo de sua
gente:
(…) Sérgio vivia na Corte, onde se passam grandes cousas e não desejaria,
por certo, transferir-se para a província, para uma faculdade tão estranha
aos hábitos nacionais. Nossa escola, àquela altura já contasse com nomes
ilustres no seu corpo docente, só produzira os famosos “chato-boys” de que
falava o saudoso Oswald as já referidas “relíquias"…Por isso, não lhe falei
uma vez sequer (…) sobre a Faculdade de Filosofia. Mas a ideia de contar
com ele, um dia, para honra nossa, como professor em São Paulo, não me
largava. Lembro-me de o haver acompanhado, no intervalo de uma das
sessões do Congresso, realizada no Centro do Professorado Paulista, na
visita em que ele fez à casa em que nasceu, à rua de S. Joaquim. E,
enquanto Sérgio Buarque examinava o casarão, eu cá com os meus botões
dizia: “este Hollanda paulista ainda para cá há de vir!”. Não sei ao certo,
quem o trouxe de volta, a essas terras cuja história ele tão bem conhece.
Creio que foram os Drs. Afonso de Taunay e Macedo Soares e que também
nisso andou o dedo do nosso amigo Dr. Fernando de Azevedo. Pois bem
hajam por isso.203
201
O primeiro artigo de Sérgio Buarque, "Originalidade Literária” foi publicado no jornal "Correio
Paulistano", quando o autor tinha 18 anos. Afonso Taunay, amigo de seu pai, foi responsável por
indicar o texto à publicação.
202
Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/UNICAMP. Série Vida Pessoal. Documento VP 180.
Esse documento também foi usado por Gisele Languardia Valente em sua tese de doutorado
intitulada As missões culturais de Sérgio Buarque de Holanda, defendida em 2009, na Unirio, área
de Memória Social. Todavia, a autora atribui a esse documento o caráter de epístola, o que discordo.
Ele é na verdade um texto escrito para ser lido em cerimônia específica. Tanto é, que no catálogo do
Fundo Sérgio Buarque, ele não consta na série Correspondências.
203
Idem.
91
204
Ibidem. José Carlos de Macedo Soares era um político influente, não apenas em São Paulo.
Presidiu a Academia Brasileira de Letras, entre 1942 e 1944 e foi partidário de Getúlio Vargas desde
a “revolução” de 1930. Em 1932 desempenhou missões diplomáticas na Europa e no ano seguinte
elegeu-se deputado federal constituinte por seu estado. Em 1934, participou da articulação que
conduziu o civil Armando Salles de Oliveira ao cargo de interventor do Estado, serenando um pouco
os ânimos da resistência paulista. Com a queda de Vargas e a posse do presidente do Supremo
Tribunal Federal, José Linhares, em outubro de 1945, Soares é indicado interventor federal em São
Paulo, permanecendo no cargo até março de 1948, quando assume Adhemar de Barros, eleito
meses antes. Encerrou sua trajetória política novamente no Ministério das Relações Exteriores,
convidado pelo interino Nereu Ramos, permanecendo até 1958, dessa vez sob a égide de Juscelino
Kubitscheck. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Jeneiro: Editora
FGV, 2001.
205
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. Vale lembrar que Mário de Andrade morre em 25 de fevereiro de 1945, logo após a
concretização do I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pela ABDE.
92
206
NICODEMO, op.cit, pp. 114-115.
207
Idem, p. 116; VALENTE, Gisele Laguardia. As missões culturais de Sérgio Buarque de
Holanda. 2009. Tese de doutorado em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro; Relatórios de Direção do Museu Paulista 1946 - 1956.
208
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. In: COSTA, Marcos (org). Escritos coligidos:
Livro II, 1950-1979. São Paulo. Unesp; Perseu Abramo, 2011. p. 165. Artigo originalmente publicado
93
212
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. op.cit, p. 168.
213
Estudo obrigatório sobre essa fase é o de Ana Cláudia Fonseca Brefe, O Museu Paulista: Afonso
de Taunay e a memória nacional 1917-1945. São Paulo: Museu Paulista; Unesp, 2005.
214
Idem, p. 167.
95
215
Ofício de 23 de abril de 1946, enviado por Ernani Lins da Cunha à Sérgio Buarque de Holanda.
Fundo Museu Paulista. Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série Correspondências
(jan-abr).
216
Fundo Museu Paulista, Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série
Correspondências, abril a agosto de 1946. Sobre os painéis de Luiz Gagni, ver o livro de Jonas
Soares de Souza, Painéis de azulejos do Museu Republicano “Convenção de Itu”. São Paulo:
Edusp; Museu Paulista, 2013; Relatório 1947 (MU 6137) Fundo Museu Paulista.
96
1948 a 45,10 m2, e em fins de 1949 a 62,76 m2. Assim, num período de
três anos, sextuplicou-se o material exposto. 217
Nos anos 50, lamentando que (…) notáveis estudos de Sérgio ficassem
pouco acessíveis, (…) sugeri a um grande amigo dele e meu, Octávio
Tarquínio de Sousa, que o estimulasse a compor com alguns deles um
volume para a famosa coleção Documentos Brasileiros, que Octávio dirigia.
Este falou com José Olympio, que convidou Sérgio, e assim nasceu
"Caminhos e Fronteiras", que forma com “Monções" um par admirável (…)
de estudos históricos vinculados pela cultura material e a ocupação do
espaço.219
217
HOLANDA, O museu…op.cit., 168.
218
Idem, p. 167.
219
CANDIDO, Antonio. Amizade com Sérgio. In: Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco de
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 133.
97
permaneceu no cargo até janeiro de 1951, quando Getúlio Vargas tomou posse na presidência da
República. Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2001. Sobre a específica atuação de Pedro Calmon frente ao Museu Histórico Nacional ver:
ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996.
227
Ibidem.
228
NICODEMO, op.cit., 118.
100
229
Entre os textos estão, HOLANDA, Maria Amélia Buarque Alvim. Apontamentos para a
Cronologia de Sérgio Buarque de Holanda. s/d, Fundo Sérgio Buarque de Holanda Biblioteca
Central da Unicamp; e o prefácio de Aniello Avella à recente tradução de um artigo do historiador
publicado na revista italiana "Ausonia", durante o período em que esteve na Itália. A Contribuição
Italiana para a Formação do Brasil. Trad. Andréa Guerini; pref. Aniello A. Avella. Florianópolis:
NUT/NEIITA/UFSC, 2002. Do mesmo autor encontramos a introdução a uma edição italiana de
Raízes do Brasil, publicada em 2000 com apoio da Embaixada Brasileira em Roma, intitulada, “Il
retorno del maestro cordiale” a qual contém uma parte chamada “Il período romano: la riscoperta di
un momento decisivo”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Radici del Brasile. Firenze: Giunti, 2000.
Agradeço ao professor Ettore Finazzi-Agrò a versão desta edição que me foi cedida durante o tempo
em que passei em Roma, no primeiro semestre de 2013. Cerca de 40 páginas detalhadas também
podem ser lidas na tese de Thiago Lima Nicodemo, Alegoria Moderna: consciência histórica e
figuração do passado na crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Doutorado em História
Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. A mesma parte foi publicada nos
Anais da ANPUH, sob o título de O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011.
230
Carta enviada por Lucien Febvre. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 94 P7.
101
231
Idem. "Nós lhe seremos gratos de reservar à nossa instituição um trimestre de aula. Pedimos ao
senhor que nos informe sua resposta o mais rapidamente possível, nos indicando quando o curso
poderia começar, com o título das conferências que o senhor oferecerá aos nossos estudantes sobre
os questionamentos históricos e etnográficos relativos ao Brasil – dos quais o senhor é um dos
grandes especialistas”. (Tradução livre do autor).
232
NICODEMO, Thiago Lima. O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011. p. 2; Carta manuscrita de Fernand Braudel,
Paris, 25 de julho de 1948. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 95 P7.
102
233
GRAHAM, Richard. An interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982. In: MARTINS, Renato (org). Encontros: Sérgio
Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 205.
234
Relatório Anual do ano de 1950, apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios da
Educação, José Moura Resende, 30 de jan. 1950. APMP/FMPL. pp. 1-2.
103
235
Idem, p. 2
236
Ibidem.
237
Idem.
238
Ibidem. O International Council of Museums-ICOM é a maior organização internacional de museus
e profissionais de museus dedicada à preservação e divulgação da patrimônio natural e cultural
mundial, do presente e do futuro, tangível e intangível. Criado em 1946, o ICOM é uma organização
não-governamental (ONG) que mantém relações formais com a UNESCO e tem estatuto consultivo
no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Sendo uma organização sem fins lucrativos, o
ICOM é sobretudo financiado pelas quotas pagas anualmente pelos seus membros. É igualmente
apoiado por vários organismos governamentais e outros. Uma parte significativa do programa da
UNESCO para os museus é implementada pelo ICOM. O ICOM tem sede em Paris, onde se encontra
igualmente sediado o Centro de Documentação UNESCO-ICOM. Mais informações no site:
http://icom.museum, acessado em 5 de junho de 2014.
104
culturais idealizados nos anos 1920 e 1930 foram encampados por uma nova
agenda ideológica de promoção da hegemonia paulista, viabilizada por meio de
alianças entre o poder público e a indústria emergente 241, a exemplo do industrial e
mecenas, Francisco Matarazzo Sobrinho (Cicillo), presidente da Comissão
Organizadora do evento desde 1951.
Durante os preparativos e as efetivas festividades, Sérgio Buarque
encontrava-se em Roma. Contudo, o historiador participou como colaborador da
Exposição Histórica de São Paulo, coordenada por Jaime Cortesão, enviando
documentos sobre a história de São Paulo encontrados nos arquivos italianos, como
consultor da Comissão organizadora, nomeado por Cicillo, desde o início de 1952,
além de ter estreitado laços entre a Embaixada do Brasil na Itália e a Comissão do
IV Centenário. Mas, se por um lado sua participação não foi tão intensa, por outro,
ela serviu para estreitar ainda mais as suas "redes sociais de colaboração
intelectual” ligadas a esse novo contexto de uma cidade em transformação. Em
Roma, por exemplo, temos a informação de que Sérgio Buarque recebeu as visitas
de Yolanda Penteado, esposa de Matarazzo e Paulo Mendes de Almeida, que
estavam a serviço da Comissão.242 Em especial sobre a amiga, Sérgio Buarque
relembra que:
Segunda, das 15h às 16h, no 4º ano, curso regular, das 16h às 17h, no 4º
ano, Especialização-Orientação/Trabalhos-Seminários; terça, das 16h às
19h, no 2º ano diurno, duas aulas e um Seminário, das 19h às 20h30, no 2º
ano noturno, duas aulas e um Seminário; sexta, das 14h às 17h, 3º diurno,
duas aulas e um Seminário, 20h às 23h, no 3º noturno, duas aulas e um
Com isso, o parecer final foi revisto e a Comissão responsável pelo caso
decidiu pela legalidade da acumulação. Contudo, considerando que o cargo de
professor-substituto era de tempo integral, Sérgio Buarque teve de pedir
afastamentos do Museu Paulista durante o tempo em que ministrou aquela cadeira
interinamente247.
Essas duas perspectivas, a de uma aproximação não fortuita de Sérgio
com a USP e a outra, de uma personagem às voltas com problemas administrativos
como qualquer outro servidor público, como atentam os autores, atenuam em certa
medida o tom celebrativo com que normalmente essa passagem foi vista por
intelectuais próximos ao historiador. A exemplo da professora Maria Odila Leite da
S. Dias, que foi sua assistente e orientanda, o mesmo episódio é narrado da
seguinte forma:
246
Ofício nº 2638 de 5 de setembro de 1956, Processo 11787/56 folha 6. apud: SANCHES, Rodrigo
Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Revista Sociedade e Estado, volume 26, número 1,
Janeiro/Abril, 2011. p. 242.
247
SANCHES, op.cit., p. 243.
248
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos avançados
[online]. 1994, vol. 8, n. 22, p. 269.
108
Baldus.249 Vale lembrar que essa escola, a partir de 1933, tinha como projeto
educacional a criação de uma liderança moderna em São Paulo voltada para as
novas responsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil, com o
intuito de substituir as elites tradicionais, formadas no bacharelismo. 250
Na própria instituição há um dossiê dos tempos em que Sérgio Buarque
foi aluno. Nele encontramos requerimentos de matrícula, relação das notas por ele
obtidas nas disciplinas em que se inscreveu, ata da sessão de defesa de tese e os
trabalhos por ele entregues. De acordo com essas fontes, Sérgio Buarque teria
efetuado matrículas em agosto de 1956 e em fevereiro de 1957. 251
Também constam nesse pequeno acervo os dois exames de língua
estrangeira a que foi submetido, ambos realizados em novembro de 1957. No
primeiro deles, o historiador traduziu um texto em alemão extraído do livro
"Weltgeschichte des Mittelmeerraumes", de Ernest Kornemann. Na ocasião foi
avaliado pelo seu orientador e por Lolita E. Almeida, obtendo a nota A. Na prova de
língua inglesa versou para o português um trecho do artigo "Plural and differencial
acculturation in Trinidad”, de Daniel J. Crowley e obteve nota nove. No que pese a
pequena diferença nos resultados, vale lembrar que Sérgio teve uma maior vivência
com a primeira língua desde jovem, quando morou em Berlim e trabalhou como
jornalista entre 1929 e 1931.
Quanto às demais avaliações, o acadêmico entregou para cada uma das
disciplinas um trabalho escrito, à exceção de História Social do Brasil, a que dedicou
dois textos. Tratava-se de pequenos ensaios, com média de cinco a seis páginas
datilografadas, alguns com a sua assinatura e que versavam sobre temas dos quais
já havia inclusive publicado - caso de “Monções", fruto de anos acumulados de
pesquisas e da parceria que construiu no Museu Paulista com o professor Herbert
Baldus. Em linhas gerais eram estes os assuntos: a) análise da obra "Viagem no
interior do Brasil", do médico, mineralogista e botânico Johann Emanuel Pohl, que
esteve no Brasil no século XIX; b) estudos sobre sociedades indígenas do período
colonial, dentre os quais os Caiapó e os Paiaguá; c) estudos acerca do papel das
249
Para uma história mais detalhada dessa instituição ver: KANTOR, Íris; MACIEL, Débora; SIMÕES,
Júlio Assis (org.). A Escola Livre de Sociologia e Política, anos de formação, 1933-1953:
depoimentos. 2. ed. São Paulo: Sociologia e Política, 2009.
250
DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de
Sérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 p. 147.
251
CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda, Mestre em Ciências Sociais. In:
Notícia Bibliográfica e História, Campinas, nº 170, jul/set, 1998. p. 228.
109
252
Idem, p. 229. Vale ressaltar que todos esses textos apresentados encontram-se ainda inéditos.
253
Ibidem, p. 244.
110
254
DECCA, Os intelectuais…op.cit., p. 48.
255
SANCHES, op.cit., p. 244; NICODEMO, op.cit., pp. 125-126.
111
256
Sobre a História Geral da Civilização Brasileira ver os seguintes trabalhos: FURTADO, André
Carlos. As edições do cânone. Da fase Buarqueana na Coleção História Geral da Civilização
Brasileira. 2014. Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói;
VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e História Geral da Civilização
Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de especialização acadêmica (1956-
1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a. 2013; NICODEMO, Thiago Lima. A
herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da Civilização Brasileira. I Seminário
Brasileiro sobre Livro e História Editorial. 2004. Rio de Janeiro. Anais.
257
A Brasiliana foi criada em 1931 pela Companhia Editora Nacional, então propriedade de Octalles
Marcondes Ferreira, estendendo-se até 1993. Ela se constituiu, segundo Gustavo Sorá, num
importante espaço de difusão da produção intelectual sobre o Brasil. O conjunto de livros organizou-
se em duas fases: uma primeira, dirigida por Fernando Azevedo e uma segunda, a partir de 1956,
dirigida por Américo J. Lacombe. Maiores detalhes ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e
a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Ed.USP/ Com-Arte, 2010.
258
Arquivo Américo Jacobina Lacombe. Fundação Casa de Rui Barbosa. Pasta Correspondência.
Direção da Brasiliana. Apud: VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e
História Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de
112
261
NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…, op.cit., pp. 123-124; CALDEIRA, João Ricardo de
Castro. IEB: Origem e Significados. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Imprensa
Oficial do Estado. 2002.
262
Idem; SANCHES, op.cit., p. 252.
114
aposenta em 1969, obtendo mais tempo livre para se dedicar a novas pesquisas, a
escrita de alguns prefácios e sobretudo às suas viagens. Em 1973, por exemplo, foi
à Grécia, Turquia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Inglaterra e França. No ano
seguinte parte a Caracas a convite do governo venezuelano para a instalação da
Biblioteca Ayacucho. Em 1976 retorna novamente à Europa. E em 1979 publica seu
último livro, "Tentativas de Mitologia", cuja introdução é um testemunho
autobiográfico de parte de sua trajetória intelectual.
Nessa época também concedeu diversas entrevistas, para falar não
apenas de sua vida, como também da realidade do país. Uma delas, concedida à
"Folha de S. Paulo" em 1977, ao lado de Tarso de Castro e Paulo Duarte, quase lhe
rendeu o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Houve tempo ainda para
participar da vida política, no Centro Brasil Democrático, fundado em 1978 e assinar
o livro de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Em 24 de abril de 1982
deixa a vida para entrar na memória.
Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 16.
265
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p.
229.
266
Idem, p. 234.
117
267
Ibidem, pp. 234-42. Para uma definição mais precisa desses conceitos no âmbito histórico ver:
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
268
LÖWY, Michel. Notas sobre a recepção crítica ao althusserianismo no Brasil (anos 1960 e 1970).
In: BASTOS, Elide Rugai; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e
política, Brasil-França. São Paulo: Cortez, 2003. pp. 213-223.
269
Um bom balanço historiográfico pode ser encontrado em: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia Brasileira em perspectiva. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010.
270
LAPA, José Roberto Amaral A história em questão: historiografia brasileira contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 1976. p. 191. A importância de Amaral Lapa nesse período foi destacada por
Raphael Guilherme Carvalho em artigo recente, intitulado, “A escrita de si de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1970 (Notas para estudo). Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun 2015, pp. 80-102.
271
Idem, p. 9.
118
272
De modo geral, a ideia de uma Escola de Sociologia de São Paulo corresponde ao grupo de
investigadores que trabalhou ligado à cadeira do Professor Florestan Fernandes, na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, desde aproximadamente 1955 até 1969. Vale ressaltar
que seu líder negava a existência de tal Escola. EUFRÁSIO, Mário. A Escola de Sociologia e Política
de São Paulo e a Escola Paulista de Sociologia: um curto comentário e um breve depoimento. In:
KANTOR, op. cit, p. 118.
273
Desse conjunto podemos citar: MARSON, Isabel. O império do progresso: a revolução Praieira
em Pernambuco. São Paulo: Brasiliense, 1987; Movimento Praieiro - imprensa, ideologia e poder
político. São Paulo: Editora Moderna, 1980; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista em
Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CONTIER, Arnaldo. Ideologia e Imprensa em São
Paulo, 1822-1842: matrizes do vocabulário político e colonial. Petrópolis: Vozez; Campinas/SP:
Unicamp, 1979; CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo. São Paulo: Brasiliense,
1989. Sobre debate do “lugar das ideias” ver: Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao
vencedor as batatas: formas literárias e processo social nos inícios do romance brasileiro. São
Paulo: Duas Cidades, 1992; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Cadernos
de Debates, nº 1. São Paulo: Brasiliense, 1976; BRESCIANI, Maria Stella. Liberalismo, ideologia e
controle social: São Paulo (1850-1910) 1976. Tese Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História Social, USP.
119
Foucault e das discussões levantadas por Walter Benjamin em suas teses sobre a
filosofia da história. Questionando a temporalidade que localiza uma profunda
ruptura na história brasileira a partir do fato “Revolução de 30”, o autor procurou
evidenciar como se constituiu o imaginário dessa revolução por meio do
silenciamento do conflito capital/trabalho e da produção do silêncio da classe
operária, no final dos anos 1920, por uma violenta repressão política. Em outras
palavras, o livro analisou a produção do campo discursivo a partir do qual se
estruturou a memória e a historiografia desse evento, possibilitada pela vitória do
discurso do vencedor e da constituição de sua memória particular e excludente
como memória oficiosa e objetiva, ambas, sofisticadas estratégias de dominação
burguesa.274
No decorrer da década de 1980, a escrita da história no Brasil foi marcada
pelo surgimento de novas tendências e por um olhar mais acurado em relação às
fontes. Assim, processos judiciais, imagens, símbolos nacionais, memória, cinema,
diários íntimos, correspondências, cultura material, literatura, etc., em suma, tudo
aquilo produzido ou deixado como rastro, por anônimos ou não, homens e mulheres,
tornaram-se matéria-prima para inéditos estudos, cujo saldo foi bastante positivo.
Influenciadas pela história social inglesa, pela "Nouvelle Histoire", pela micro-história
italiana e pelos seus principais expoentes, como E. P. Thompson, Jacques Le Goff,
Pierre Nora e Carlo Ginzburg, mas também por pensadores como Michel Foucault,
Walter Benjamin, Hannah Arendt e Cornelius Castoriadis, a nossa produção
acadêmica produziu de maneira inovadora um conjunto de pesquisas que versavam
sobre temas como: mentalidades, religiosidade, cotidiano e lazer, mulheres, cultura
urbana e cidades, loucura e instituições de controle, correntes políticas, resistência
escrava, trajetórias individuais e questões raciais. 275
274
DECCA, Edgar S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. Para o autor, “a revoluc ̧ã o de 30 como memo ́ria histórica do vencedor da luta,
fazendo parte do exercício de dominac ̧ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado,
qualificando tanto os agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é
memorizada pelo vencedor como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a
oligarquia”. Decca também chama a atenção para a cronologia criada após esse “fato”. Nesse
sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado “República Velha”, já q u e “tal revoluc ã ̧ o
inaugura o novo”. A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais
a mais corrente é a da economia agroexportadora x industrializac ̧ão, aspectos que marcaram
profundamente a produção historiogra ́fica ao longo do século XX. pp. 108-110.
275
Dentre importantes estudos dessa fase podemos citar: "Nem pátria, nem patrão", de Francisco
Foot Hardman (Brasiliense, 1983), "Trem fantasma", também de Hardman (Companhia das Letras,
1988), "Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar", de Margareth Rago (Paz e Terra, 1985),
"Trabalho, lar e botequim", de Sidney Chalhoub (Brasiliense, 1986), "A vida fora das fábricas", de
Maria Auxiliadora Guzzo Decca (Paz e Terra, 1987), "O espelho do mundo – Juquery, a história de
120
um asilo", de Maria Clementina Pereira Cunha (Paz e Terra, 1986), "Sacralização da Política”, de Alcir
Lenharo (Papirus, 1988), "Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX", de Maria Odila L. da S.
Dias (Brasiliense, 1984), "O diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Melo e Souza (Companhia
das Letras, 1986), "Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro" (1750-
1808), de Silvia H. Lara (Paz e Terra, 1988), "Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da
pobreza”, de Maria Stella Bresciani (Brasiliense, 1982) e "Onda negra, medo branco. O negro no
imaginário das elites no século XIX", de Célia Maria A. Marinho (Paz e Terra, 1987).
276
IGLESIAS, Francisco. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.
p. 44.
121
2.3. Os ultimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e
um pouco do Partido dos Trabalhadores
277
Após a morte de Sérgio Buarque de Holanda e a compra de sua biblioteca pela Universidade
Estadual de Campinas, em 1983, a casa passou por um longo período de abandono. Em 1992 surgiu
a ideia de transformá-la em bem público. A proposta inicial era a montagem de um centro de
pesquisas voltado para professores da rede pública. Esse projeto não saiu do papel. Em 2002, ano
do centenário de nascimento de Sérgio Buarque, o casarão foi declarado de utilidade pública pelo
município, que previa a construção de uma discoteca. Desde então o local foi alvo de um demorado
processo judicial que envolveu a família e Emérita Aparecida Carbone, ex-babá de um dos filhos de
Sérgio e Maria Amélia. Em 2010 Emétita perdeu o processo por usocapião, a casa foi devolvida à
família que a repassou à prefeitura por uma indenização de cerca de 450 mil reais, sem correção.
Hoje o casarão abriga o Memorial do Ensino Municipal de São Paulo.
278
MARTNS, Luís. Crônica, O Estado de S. Paulo, 25/04/1969. Apud: WITTER, José Sebartião.
Introdução. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretaria
do Estado da Cultura, 1986. p. 21.
122
amigos de longa data, Tarso de Castro e Paulo Duarte, este responsável pela
“excursão” ao bairro do Pacaembú.
Não se tratava necessariamente de uma entrevista em moldes
tradicionais, com roteiro prévio e temáticas determinadas, antevendo respostas que
comprovassem a capacidade intelectual dos protagonistas. Sob o título de "Sérgio
Buarque e Paulo Duarte" ou "Os velhos mestres", esse encontro estava muito mais
para uma roda de conversas à mesa de bar, do que qualquer outra coisa,
reafirmando a fama que possuía a rua Buri como "locus de sociabilidade". Tanto é
que, a certa altura, o anfitrião em meio a uma acalorada discussão sobre o papel
atual do jornalista como intelectual, interrompe sua fala a fim de completar os copos
vazios. Transcrito na íntegra, o diálogo, assim foi publicado:
Sérgio - Preciso fazer uma coisinha, passa essa bengala aí. A bengala é
meu pai nosso de cada dia nos dias de hoje! Olha, mas tem muito uísque
aqui em baixo ainda? Lá em cima tem à bessa, mas não posso subir.
Ontem, tinha uma menina aí, tomaram muito uísque (olha a garrafa). Um
restinho, não tem um restinho.
Tarso - (pega apressado outra garrafa, de baixo da mesa) - Não, não, tem
aqui, tem aqui.
Sérgio - Eu tenho medo que acabe, né?(…).285
A Lei de Segurança que vigorava nessa ocasião era regida pelo Decreto-
Lei 898, de 29 de setembro de 1969, assinado em pleno funcionamento do AI-5.
Caso viessem a ser enquadrados e condenados, Sérgio Buarque e Paulo Duarte
deveriam cumprir a pena de 2 a 6 anos de reclusão, conforme o artigo citado.
Embora hoje pareça absurdo pensarmos que essas acusações pudessem ser
levadas à cabo, não podemos esquecer que na mesma época, quando já se falava
em distensão, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV
Cultura, havia sido torturado e em seguida assassinado nas dependências do DOI-
CODI, em São Paulo no dia 25 de outubro de 1975, quando se apresentou
“espontaneamente” para prestar esclarecimentos.
Outro caso emblemático ocorreu em janeiro de 1976, quando o
metalúrgico Manoel Filho também foi assassinado no mesmo DOI-CODI em
circunstâncias semelhantes. Portanto, ao se debruçarem naquilo que foi publicado,
os agentes da Divisão de Segurança e Informação nada mais faziam do que cumprir
a lei e o que previam as suas atribuições dentro da máquina pública, quais eram a
vigília e a censura política a qualquer forma de "subversão ou corrupção ao
sistema”.288
286
Processo GAB nº 100.430, 15/07/1977, Divisão de Segurança e Informação do Ministério da
Justiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
287
Idem.
288
A Divisão de Segurança e Informações do MJ foi criada pelo decreto-Lei nº 60.940/67, que alterou
a seção de Segurança Nacional. De acordo com o decreto, cabia a essa Divisão, como órgão de
assessoramento do ministro de estado e complementar do Conselho de Segurança Nacional,
fornecer dados, observações e elementos necessários à formulação do conceito de estratégia
nacional e do Plano Nacional de Informação; colaborar na preparação dos programas particulares de
126
290
Idem.
291
O Estado de S. Paulo, de 29 de julho de 1978. p. 15.
292
Ata da Assembleia Geral de Constituição do Centro Brasil Democrático. D 1/1-9 P 79. Dossiê
Centro Brasil Democrático. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/Unicamp.
128
293
Idem
294
Ibidem
129
só teve seu rascunho votado pelas Nações Unidas no contexto do pós-guerra, mais
precisamente em 1948, após "oitenta e três reuniões e quase 170 emendas mais
tarde”. No seu preâmbulo pregava que o desrespeito e o desprezo pelos direitos
humanos têm resultado em atos bárbaros que ofendem a consciência da
humanidade.298
De acordo com a historiadora Lynn Hunt, a Declaração não apenas
reafirmava as noções de direitos individuais do século XVIII, tais como a igualdade
perante a lei, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, o direito de participar
do governo, a proteção da propriedade privada e a rejeição da tortura e da punição
cruel, como também proibia expressamente a escravidão e providenciava o sufrágio
universal e igual por votação secreta. Além disso, requeria a liberdade de ir e vir, o
direito a uma nacionalidade, o direito de casar e, com mais controvérsia, o direito à
segurança social; o direito de trabalhar com pagamento igual para trabalho igual,
tendo por base um salário de subsistência; o direito ao descanso e ao lazer; e o
direito à educação, que deveria ser pública nos níveis elementares. Em suma, a
Declaração expressava um conjunto de aspirações em vez de uma realidade
prontamente alcançável. Concebia uma soma de obrigações morais para a
comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição, caso
contrário não teria sido aprovada. 299 Assumida, portanto, estrategicamente pelo CBD
num momento de acentuada oposição ao regime, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos se tornou um abrigo político capaz de acolher em sua área de
proteção os diferentes projetos partidários do momento, até que a enxurrada
repressiva se interrompesse.
Assim, a ideia de uma entidade autônoma e plural, conforme apontava
seu estatuto, deixava dúvidas e logo nos primeiros encontros, após a fundação, o
Centro se mostrou vulnerável às disputas internas das diferentes correntes político-
partidárias que lhe sustentavam, deixando outros temas na penumbra dos debates.
A cobertura do "Encontro Nacional pela Democracia", cujo tema era "Brasil depois
de novembro"300, feita pelo jornal "O Estado de S. Paulo" nos ajuda a perceber o jogo
298
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 205.
299
Idem, p. 206.
300
Obviamente o título do encontro refere-se às eleições gerais que ocorreram no dia 15 daquele mês
para mandatos que se estenderiam até 1983. Na ocasião estava em jogo a disputa por 23 vagas ao
senado e 420 à Câmara Federal. Foi nessa legislatura que nos anos seguintes se votou a Lei de
Anistia e a reforma política que instituiu o pluripartidarismo. Para mais detalhes sobre os resultados
desse pleito ver o artigo de Márcio Moreira Alves e Artur Baptista, publicado em: Revista Crítica de
131
305
Processo GAB nº 100.567, 07/08/1978, Divisão de Segurança e Informação do Ministério da
Justiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Informação n. 23/79/DSI/MJ.
306
Idem.
307
Ibidem.
134
que foi exposto. Não encontramos, por exemplo, registros de que ele tenha feito
pronunciamentos nos dois eventos em que participou no Hotel Nacional ou mesmo
que tenha acrescentado pontos mais específicos ao texto do Manifesto. O que há de
mais direcionado são as poucas fotografias em que Sérgio aparece ao lado de
Oscar Niemeyer, Antônio Houaiss e Ênio Silveira durante a fundação do Centro e o
texto assinado por ele no jornal "Brasil Democrático", conforme citado no processo.
Ao lermos o texto "Conseguirão expulsar o povo?", a conclusão a que chegamos é
que se trata da transcrição de uma entrevista e não propriamente de um texto de
opinião anotado pelo historiador. O parágrafo inicial esclarece qualquer dúvida:
(auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EdUFRGS, 2009. p. 167.
313
CANDIDO, Antonio, Sérgio em Berlim…op.cit. p. 9.
137
314
DULCI, Luiz. Sérgio Buarque de Holanda petista. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque
de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 89-90.
315
Idem
316
Ibidem
317
Idem, p. 91.
318
Ibidem.
138
podemos vê-lo ao lado de Lélia Abramo, Olívio Dutra, Lula e Jacó Bittar ou de pé em
companhia de Mário Pedrosa e Hélio Pellegrino.
Segundo um dos biógrafos de Sérgio, na ocasião da fundação do Partido
dos Trabalhadores, o historiador, já muito doente, confessou ter medo da morte.
Medo no sentido de não poder acompanhar o “desenrolar de uma nova fase que se
abria na história do país em relação aos seus movimentos sociais, com a fundação
do Partido. Um medo também realista, pois sentia que algo estava por acontecer e a
morte realmente não tardaria para chegar”. 319 Em 24 de abril de 1982, morria o
“homem cordial”.
***
319
COSTA, op.cit., p. 188.
139
Capítulo 3
UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES
e trinta. A imprensa não demoraria mais do que 24 horas para informar que havia
desaparecido o “homem cordial”, rótulo que carregou desde as polêmicas que
envolveram o seu livro de estreia.
Morreu em trânsito entre o quarto de dormir e o escritório, local da
agitação intelectual. Contrariando a lógica de funerais festivos, muito em voga na
capital da República a partir da virada do século XIX para o XX, tais como ocorreram
com literatos e homens públicos, a exemplo de Machado de Assis, em 1908, Afonso
Pena e Euclides da Cunha, em 1909, Joaquim Nabuco, em 1910, o Barão do Rio
Branco, em 1912, Pinheiro Machado, em 1915, Oswaldo Cruz, em 1917, Rodrigues
Alves, também em 1917 e Rui Barbosa, em 1923, Sérgio Buarque preferiu algo bem
mais simples. Avesso, portanto, àqueles mortos que “haviam construído a nação
com seus dotes inatos e únicos, de modo que o Brasil era visto como um grande
artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com
qualidades acima do normal”. Qualidades que os tornavam capazes de materializar
valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas. 320
Os velórios eram de suma importância para os membros da elite política e
literária, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, exigindo-se
dos organizadores cuidadosas escolhas, já que em muitos casos poder e letras
andavam atados. Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram
velados na "Academia Brasileira de Letras"-ABL, o Barão do Rio Branco no Palácio
do Itamaraty, enquanto Rui Barbosa na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados
por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, flores, altares, dosséis e guardas
de honra. O objetivo, segundo alguns estudos, "era demonstrar a especificidade da
vida e das obras do finado por meio das instituições com as quais ele se relacionara.
Na ocasião dos funerais, esses espaços serviam como uma espécie de palco para a
performance pública das elites”, que não se ressentiam em momento algum em
deixar de fora a população.321
Os velórios também eram uma ocasião propícia para discursos,
responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia fúnebre. Por meio de
320
GONTIJO, Rebeca. O Velho Vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,
historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 32-33. Em especial a discussão do
primeiro capítulo, “Morre o historiador da pátria”, no qual a autora apresenta o intelectual como
símbolo da “brasilidade” a partir do velório e dos necrológios lidos e publicados a respeito de sua
personagem.
321
Idem; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa, Estudos Históricos - Dossiê Heróis
Nacionais, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 152.
141
322
Ibidem, p. 151.
323
CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos.
Coimbra: Minerva, 1999. p. 31. Esse livro descreve o processo que conduziu à revolução romântica
dos cemitérios em Portugal e à transformação da necrópole num espaço público e efetivo, onde se
passou a dramatizar e a delir a tensão entre a finitude humana e os sonhos (utópicos e ucrónicos) de
sua superação. Também, mostra como é que, deste jogo simulador da vida e dissimulador da prova
ontológica da morte –o cadáver–, nasceu a cenografia simbolicamente adequada ao crescimento do
papel de uma instância julgadora que, em combinação ou em alternativa com a escatalogia judaico-
cristã, se foi impondo, cada vez mais, como um novo além: a memória dos vivos. Daí, a atenção do
autor à função sociabilitária e cívica das liturgias de recordação, assim como ao estudo das relações
entre o(s) poder(es) e o culto dos mortos.
324
Idem, p. 32.
142
espaço como pó a ficar imóvel preso em uma caixa de madeira esperando o tempo
fazer o resto.
O historiador não era religioso e alegava que a fé da esposa equilibrava
as contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e detestava cemitérios,
talvez por isso, a cremação fosse para ele o meio mais eficaz para se recalcar o
medo dos mortos, pois os antigos acreditavam que ela impedia o regresso do duplo,
isto é, o retorno da alma do defunto, eliminava as impurezas, protegia o cadáver do
ataque das feras, libertava o finado do domínio dos espíritos malignos,
proporcionava calor no mundo inferior, evitava o nojo da putrefação do corpo e
comunicava um significado salvífico evidente: o fogo purificava e iluminava o defunto
no caminho até o outro mundo, indicando que tal como o fumo, assim o espírito se
elevaria à morada dos bem-aventurados.325
Desejo respeitado. Durante o simples velório, ocorrido em sua residência
da rua Buri, estiveram presentes apenas os familiares e alguns amigos muito
próximos, como Frei Beto, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Paulo Vanzolini, Aziz
Ab’Saber, Aurélio Buarque, Mário Schemberg, Soares Amora, Perseu Abramo, entre
outros. Apenas no dia seguinte é que os jornais das principais capitais do país
estampavam manchetes sobre a morte de Sérgio. “O mundo intelectual reage diante
da notícia inesperada” publicava “O Estado de S. Paulo”, enquanto a “Folha”
anunciava “Sérgio até o fim, sem pompas”. No Rio de Janeiro, “O Globo” trazia
“Morre Sérgio Buarque de Holanda” e o "Jornal do Brasil” informava que “Historiador
é cremado na Vila Alpina”. Fora do eixo Rio-São Paulo, o curitibano “A Gazeta do
Povo” destacava que “Vítima de câncer, morre aos 80 anos o historiador Sérgio B.
de Hollanda” e o gaúcho “Correio do Povo”, de Porto Alegre, insistia em uma das
mais assinaladas características do falecido, “Um homem sem pose”. 326
O cortejo fúnebre partiu às 10 da manhã da casa da família direto para o
Cemitério da Vila Alpina, onde o escritor seria cremado. Chegando lá, além dos
parentes e amigos, muitos curiosos aglomeraram-se em frente à Capela, não para
solidarizarem-se em momento tão difícil, antes para ver se conseguiam avistar seu
325
Ibidem, p. 268.
326
Respectivamente, O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982; Folha de S. Paulo, 26 de abril de
1982, Ilustrada, p. 19; O Globo, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1982; Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 26 de abril de 1982; A Gazeta do Povo, Curitiba, 25 de abril de 1982 e Correio do Povo,
Porto Alegre, 27 de abril de 1982. Vale mencionar que o jornal paranaense cometeu um erro em sua
manchete, já que Sérgio Buarque, falecido no dia 24 de abril, apenas completaria 80 anos no dia 11
de julho.
143
filho ilustre. Dentre os curiosos, talvez muitos nem soubessem quem foi o defunto e
nem qual teria sido a sua contribuição para a cultura do país. Na capela, a missa foi
rezada por Frei Beto, que leu um trecho do Evangelho segundo São Mateus e falou
sobre a importância da obra de Sérgio Buarque. Eis o que pode ter dito:
Sérgio Buarque de Holanda parte e permanece presente ali onde ele nos
ensinou a admirá-lo e a apreendê-lo: em nossos corações. Sabemos, pela
fé, que agora ele está no Senhor, porque toda a sua vida foi o esforço
constante para vivenciar isto em que se resume a religião: o amor feito
causa de justiça e de liberdade. Para um homem anticonvencional como
este querido amigo e pai, façamos esta oração anticonvencional. Nessa
despedida, fica tudo aquilo que ele representou e representa: sua firmeza,
sua fidelidade, sua coragem, sua permanente juventude. Uma árvore, diz o
evangelho, se conhece por seus frutos. As sementes plantadas por Sérgio
germinaram no talento de seus filhos e no valor de sua obra. Enquanto
tantos insistem em olhar os fatos históricos pelos olhos do opressor, da
historiografia oficial, Sérgio nos ensinou a ler a história pela ótica dos
oprimidos, dos pequenos e dos humildes. Dele, guardamos agora uma
lembrança feliz: a fina ironia, sua vontade de contar e de recontar casos, a
capacidade de acolher as pessoas com os olhos e com o coração, o dom de
ser amigo de infância após cinco minutos de conversa. Fardas e fardões
nunca o preocuparam. Este trabalhador da cultura viveu entre seus livros e
amigos. Agora, a seu pedido, seu corpo será cremado, suas cinzas tornar-
se-ão sementes de vida nova. Sérgio será comunhão e nós encontraremos
sempre na brisa que sopra, na beleza das flores, no sol que brilha pela
manhã.327
327
Reprodução aproximada das palavras proferidas por Frei Betto na despedida de Sérgio Buarque
de Holanda, por ocasião de seu sepultamento. São Paulo, 25 de abril de 1982. Arquivo Central
Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 1.
144
intérpretes de sua obra até praticamente os dias de hoje, como visto, por exemplo,
em eventos celebrativos legitimadores dessa memória. 328
O segundo refere-se a uma leitura equivocada ou até mesmo inocente da
dinâmica historiográfica brasileira. Afinal, Sérgio Buarque de Holanda até onde o
compreendemos, jamais insinuou fazer uma “história dos oprimidos”, muito menos
pela “sua ótica”. Antes, buscava a experiência do tempo, com suas mudanças e
movimentos, atentando-se a debates e autores até então pouco mencionados, a
exemplo do historiador americano Frederick J. Turner, fundamental para a sua
definição de “fronteira” desenvolvida em “Caminhos e Fronteiras” (1956), coletânea
de estudos que tratou das relações entre colonizadores portugueses e indígenas,
sobre a geografia no processo de expansão paulista ou ainda das estruturas de vida
e cultura material, revelando uma colônia em movimento, diferente, portanto, das
grandes lavouras extáticas do nordeste açucareiro e escravocrata.
Podemos citar também o crítico alemão Ernst Robert Curtius,
sistematicamente apropriado por Sérgio Buarque em seus estudos sobre literatura
colonial, barroco e arcádia, no período em que viveu em Roma entre 1953 e 1954 e
cuja referência é claramente notada em “Visão do Paraíso” (1959). Obra na qual
328
A ideia de uma versão oficial passada à posteridade deve muito às discussões em torno da ideia
de "memória do vencedor”, trazidas aqui para um contexto de construção de personagem, diferente,
portanto, da demarcação temporal de um fato político, como propuseram Carlos Alberto Vesentini e
Edgar de Decca nas críticas à ideia de “revolução de 1930”. Ver a respeito: VESENTINI, Carlos
Alberto; DECCA, Edgar S. A revolução do vencedor. In: Contraponto, ano 1, n. 1, novembro de
1976. pp. 60-71; LENHARO, Alcir. Carlos Alberto Vesentini, historiador. Revista História, São Paulo,
n. 122, pp. 117-127, jan/jun, 1990; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta de
estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: HUCITEC; História Social USP, 1997; DECCA, Edgar
S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Exemplo de culto à memória de Sérgio Buarque foi realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da
USP-IEB, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2011. O Seminário “Atualidade de Sérgio Buarque de
Holanda”, contou com a presença de nomes como Antonio Candido, Laura de Mello e Souza, Richard
Graham, Antônio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro, entre outros. Na ocasião os participantes
foram saudados com uma exposição sobre a trajetória intelectual de Sérgio, elaborada a partir de
documentação do seu arquivo privado. No ano seguinte foi publicada obra homônima, Atualidade de
Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012, organizada por Stelio Marras. Embora
eu me refira a textos e eventos póstumos, é importante registrar que quando era vivo, alguns amigos
lhe renderam homenagens. Uma análise daqueles textos indicam total semelhança com estes que
estou apresentando, a exemplo de “Singularidade e multiplicidade de Sérgio”, anotado por Rodrigo
Melle Franco Andrade, “O cinquentenário do mestre”, de Octávio Tarquínio de Souza ou “Sérgio,
anticafajeste", de Manuel Bandeira. Quando nos referimos à universidade como lugar de produção de
conhecimento é no sentido atribuído por Michel de Certeau, ou seja, um local privilegiado, no qual a
história é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que é
possível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a fabricação do conhecimento e a
definição das regras que o presidem. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A
escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Por fim, a transmissão de sua memória também se concretizou com a publicação de livros póstumos,
livros celebrativos, montagem de biblioteca e arquivo pessoal, tópicos que serão desmembrados ao
longo do capítulo.
145
seu enterro, o então deputado Eduardo Suplicy, que poucos dias antes havia
almoçado com Sérgio, afirmava ao enviado do “Jornal da Tarde” que o amigo “foi um
dos principais intelectuais do PT”.331
Se por um lado, Frei Beto tentava dar unidade à vida do amigo, por outro,
alguns textos saídos na imprensa em sua homenagem apontam que sua biografia
intelectual ainda carecia de maiores ajustes. Nesse sentido, "O Estado de S. Paulo”
de 25 de abril de 1982 trazia um artigo assinado por Marcelo Ielo. No texto o autor
elenca algumas das principais características de Sérgio Buarque, dentre elas, sua
“aptidão para a leitura”, sua “índole brincalhona”, seu “viés modernista”, seu “espírito
inquieto” e claro, sua "tendência para os estudos históricos” explícita desde a sua
juventude. Tamanho brilhantismo teria levado, de "maneira natural”, Sérgio a
escrever sua obra de estreia, já que foi “um verdadeiro batalhador para que os
caminhos nacionais fossem mais bem entendidos no Brasil. Nisso conclui que
"Raízes do Brasil", publicado em 1936, foi “elogiado por todos na época”, sendo a
obra mais conhecida de Sérgio “até os dias de hoje”. Foi com este volume, segue,
que a Editora José Olympio iniciou a Coleção Documentos Brasileiros, vendo-se
obrigada a publicar várias edições devido à procura”. 332
Elevado ao longo do tempo à categoria de “clássico de nascença” por
Antonio Candido e inserido na famosa tríade ao lado de "Casa Grande & Senzala"
(1933) de Gilberto Freyre e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio
Prado Júnior, o livro de estreia de Sérgio, diferente do que insinuou o jornalista,
também recebeu críticas negativas e “pouco a pouco sumiria do debate daqueles
dias sem que sua ausência se fizesse notar”, como demonstra Fábio Franzini em
seu estudo sobre a "Coleção Documentos Brasileiros”.333
o primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestando
assim um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos de
esquerda”. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 86.
331
"Assim noticiou o Jornal da Tarde a cerimônia fúnebre”. In: Revista do Brasil, Número Especial
dedicado a Sérgio Buarque de Holanda, Ano 3, nº 6, 1987. p. 111.
332
"Às vésperas dos 80 anos, a morte de Sérgio Buarque", de Maurício Ielo. O Estado de S. Paulo.
São Paulo, 25 abr. 1982. p. 38.
333
FRANZINI, Fabio. À sombra das palmeiras: Coleção Documentos Brasileiros e as
transformações da historiografia nacional (1936-1959). Rio de Janeiro, RJ: Edições Casa de Rui
Barbosa, 2010. Embora poucas, as críticas retiram o ar de unanimidade da obra citada. Em uma
delas, publicada no Boletim de Ariel, o crítico V. de Miranda Reis registrava o seguinte: “vai a gente
lendo o livro, lendo e aprendendo, aprendendo e concordando, até o capítulo IV. Daí por diante, faz-
se mister bons dentes. Porque em 'O homem cordial’, 'Tempos Novos’, ‘Nossa revolução’, há
verdadeiras concreções pedregosas”. REIS, V. de Miranda. Raízes do Brasil. Boletim de Ariel, ano
VI, n. 5, fevereiro de 1937, p. 129. Na mesma linha, a revista Veja, de 5 de maio de 1982, p. 123,
publicou uma pequena matéria em homenagem a Sérgio em que afirmava que Raízes do Brasil teve
147
336
Sobre a questão biográfica no século XIX brasileiro ver: OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever
vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de
Janeiro: FGV, 2012.
337
Academia Paulista de Letras. Ata da Sessão Ordinária de 6 de maio de 1982. Arquivo Central
Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 3.
338
Respectivamente: “O mundo intelectual reage diante da notícia inesperada”, O Estado de S.
Paulo, 25 de abril de 1982; “Impacto no meio intelectual”, Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982.
149
hoje sabemos, se concretizou. Dizia que a obra crítica de Sérgio era esparsa, mas
que “renderia alguns volumes”, se publicadas, o mesmo valendo aos seus muitos
prefácios “que deveriam ser reunidos em livro”. Quanto aos já editados, Iglesias
mostrava indignação ao fato de “Do Império à República” (1972), "um livro de tal
atitude” não ter recebido nenhuma atenção dos especialistas: “não saiu uma crítica,
nem mesmo uma notícia de jornal”. No caso de “Monções” informava o leitor que
Sérgio estava preparando uma segunda edição, na verdade “um outro estudo, três
ou quatro vezes maior”, no qual seriam inseridas pesquisas que vinha realizando há
algum tempo em arquivos de Portugal, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso.
“Deve ter sido acabado. Virá a ser a mais significativa obra do gênero, temos
certeza”. Iglesias tinha ainda conhecimento de outros inéditos, não se furtando de
sugerir que se preparasse os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e “Literatura
Colonial Brasileira”.339
Não tardaria muito para que as sugestões de Francisco Iglesias se
concretizassem. Ainda na década de 1980 começaram a ser publicados alguns
textos inéditos de Sérgio, a exemplo de "O extremo Oeste” (1986), organizado por
José Sebastião Witter e cujos originais se encontram no Arquivo Público do Estado
de São Paulo e “Raízes de Sérgio Buarque de Holanda” (1989), assinado por
Francisco de Assis Barbosa. Este último contendo artigos de juventude do autor, do
tempo em que viveu na Alemanha como jornalista. Já na década de 1990, Antonio
Candido organizou os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e de "Literatura
Colonial Brasileira” em um volume intitulado "Capítulos de Literatura Colonial”
(1991), um conjunto inacabado de textos escritos ao longo da década de 1950 e
estimulados por pesquisas realizadas em diversos arquivos europeus, sobretudo,
italianos.340 Na mesma década viriam a público seus esparsos textos de crítica
literária, compilados nos dois volumes grossos de "O Espírito e a Letra” (1996)
apresentados por Antônio Arnoni Prado, bem como seus prefácios reunidos em livro
339
"Evocação de Sérgio Buarque de Holanda", Francisco Iglésias, O Estado de S. Paulo, 6 junho
de1982. Suplemento Cultura, v. 2, n. 104. pp. 4-5.
340
Do que tratava esse material? Salvo o escrito panorâmico, as partes elaboradas destinavam-se
com certeza ao volume Literatura Colonial, que seria o 7º da "História da literatura brasileira”
planejada no começo dos anos 1940 por Álvaro Lins para a editora José Olympio. No final das contas
foram publicados apenas o 6º volume, de Luis da Câmara Cascudo, "Literatura Oral", em 1952,
precedido em 1950 pelo 12º, de Lucia Miguel Pereira, "Prosa de Ficção (De 1870-1920)”. É possível
que naquela altura Sérgio estivesse trabalhando em paralelo, com tema ligado ao seu volume, o que
se percebe com a publicação de "Antologia dos poetas coloniais”, publicado em 1953 (texto que fazia
parte de um projeto do Ministério da Educação). CANDIDO, Antonio. Exposição: inéditos sobre
literatura colonial. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º
Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. p. 93.
150
341
HOLANDA, Sérgio. O livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
342
COSTA, Marcos (org.).Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos I (1920-1949). São Paulo,
SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011 e Sérgio Buarque de Holanda: escritos
coligidos II (1950-1979). São Paulo, SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011.
343
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos do Sertão. Revista de História, São Paulo, n. 57, pp.
59-111, 1964.
344
“Livro Monções é reeditado com textos inéditos”. Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 2015.
Versão online, acessada em 20 de fevereiro de 2015 às 17 horas. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1572902-livro-moncoes-e-reeditado-com-textos-
ineditos.shtml
345
Idem.
151
349
Carlos Luis, Serviço de Bolsas Gulbenkian. Visita pesquisador brasileiro (mensagem pessoal).
Mensagem recebida por <rapersilva@gmail.com> em 6 de março de 2015.
350
Respectivamente, Termo de outorga e aceitação de auxílio da Fundação de Amparo e Pesquisa
do Estado de São Paulo - FAPESP concedido ao projeto "A navegação fluvial entre São Paulo e
Cuiabá nos séculos XIX E XX". s.l., 9. jun.1965 e Ofício de Alberto Bononi, Diretor Administrativo da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP a Sérgio Buarque de Holanda,
informando a aprovação das contas relativas ao auxílio que lhe foi concedido. São Paulo, 13 mar.
1969. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal. Vale
corrigir o seguinte: no Termo de outorga, o título do projeto apresenta a pesquisa entre os séculos
XIX e XX, sendo que o manuscrito original do projeto aponta para os séculos XVIII e XIX.
351
Rascunho incompleto de Sérgio Buarque de Holanda pleiteando auxílio à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo para um projeto de pesquisa referente a um estudo da navegação
dos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil durante os séculos XVIII e XIX, visando ampliar
uma nova edição da obra "Monções". 9 p. Pi1315/68:101 P55. Arquivo Central Unicamp, Fundo
Sérgio Buarque de Holanda, Sub-Série Anotações de Pesquisa. pp. 104-105.
153
352
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição de Monções, op.cit. Orientado na Yale
University por Richard Morse, David Michael Davidson apresentou, em 1970, o resultado dessa
empreitada em sua tese intitulada “Rivers & Empires: the Madeira Route and the Incorporation of the
Brazilian Far West, 1737-1808”, estudo que engloba a formação territorial do Brasil Colonial ao longo
do século XVIII nos seus aspectos geopolíticos e econômicos, com foco sobre a história da Rota do
Madeira (formada pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira), que ligava as minas do extremo oeste do
Mato Grosso a Belém do Pará. Em suma, uma "tese sobre as monções do Norte”. A estadia do
americano em terras brasileiras não foi contínua. Iniciando suas pesquisas por Mato Grosso, em
1966, apenas no ano seguinte é que temos registros dele no norte do país, quando estabelece com
Sérgio uma interessante troca de cartas, nas quais é possível, entre outros temas, identificar os
passos de sua investigação, a circulação de fontes, o intercâmbio de ideias, bem como uma relação
interpessoal marcada pela cumplicidade. A tese de Davidson não foi publicada, salvo um único
trecho, intitulado “How the Brazilian West was won: freelance and state on the Mato Grosso frontier,
1737-1752”, capítulo da coletânea organizada por Dauril Alden, intitulada “Colonial Roots of Modern
Brazil: Papers of the Newberry Library Conference”. Em relação à tese, Sérgio registrou o seguinte:
“Minha falta neste particular é suprida, aliás, com vantagem, pelo magnífico estudo que dedicou às
monções do norte (…) o professor David Davidson, da Universidade de Cornell, que ainda espero ver
impresso e traduzido”.
353
CANDIDO, Antonio. Sérgio, o radical. In: NOGUEIRA, Arlinda; PACHECO, Felipe de Moura;
PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika. (orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São
Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988. p. 65.
354
O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982, p. 38.
154
355
Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982. Caderno Ilustrada, p. 1.
356
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A democracia e a tradição humanista. In: COSTA, Marcos (org.).
Para uma nova história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 35. Publicado
originalmente no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1949.
155
Sérgio, pai nosso, a você que está no céu assim como entre nós aqui na
terra, gostaríamos de repetir as palavras que te disse nosso queridíssimo
Frei Beto: Sérgio Buarque de Holanda sempre foi jovem, de fina e
inteligente ironia. Emprenhou-se em seu trabalho pela ótica dos humilhados,
dos pequenos e dos condenados da História. Você foi cremado para que
suas cinzas se tornem semente de uma vida nova. Vamos poder
reencontrá-lo na brisa da manhã, nas flores, na grama do jardim, nas
plantas, pois se tornará comunhão. Papioto, é como teus netos te chamam.
Papioto quer dizer Papai Outro. É isto aí. Você foi e será para sempre o pai
outro, muito grande e especial, de um mundão de jovens a quem você
encontrou tempo e paciência para se dedicar, como se não te bastasse
transmitir tanta sabedoria de vida a Miúcha, Sergito, Álvaro, Chico, Pii,
Bahia, Cristina, os sete filhos que você acarinhou a Memélia. Com certeza,
todos os seus muitos filhos aqui presentes, e também os distantes, estão
pensando em você assim: Sérgio, alegria nossa, salve. 358
358
Homenagem escrita por Teresa Maria e lida por Bebel, por ocasião da Missa de Sétimo Dia,
realizada no Rio de Janeiro. São Paulo, 01 maio 1982. Arquivo Central Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio
Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 2. (Cópia datilografada com anotações
manuscritas de Maria Amélia).
359
Esse texto foi escrito com base nos documentos contidos na Série Homenagens Póstumas, uma
das tantas que formam o Fundo Privado Sérgio Buarque de Holanda, localizado no Arquivo Central
da Unicamp. Faço referência também ao último romance de Chico, O irmão alemão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
157
362
SILVA, op.cit., p. 71.
363
Ofício Gabinete do Reitor 366/82. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque
de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folhas 2-3. Arquivo Central Unicamp.
159
368
O exemplo mais conhecido talvez seja o do "Arquivo Edgard Leuenroth”–AEL, composto por
documentos acumulados pelo militante e historiador do movimento anarquista Edgar Leuenroth, ao
longo de mais de cinco décadas e que contam capítulos importantes da nossa história social e
operária durante a primeira república, mas também dos modos de narrar a história brasileira,
fortemente influenciada pela história social inglesa nos anos 1980. Na mesma época, sob a guarda
do Instituto de Estudos da Linguagem-IEL, vinham-se constituindo o “Arquivo de Línguas Indígenas",
o "Arquivo de Português Culto falado em São Paulo", o "Arquivo de falares rurais afro-brasileiros e
outros falares" e o "Arquivo Pessoal de Brito Broca” (1903-1961). Em relação às bibliotecas, a
Unicamp passou a incorporar muitos acervos, como a biblioteca de Paulo Duarte, em 1970, cujas
obras tratam de história, sociologia e antropologia do Brasil. Em seguida veio a do historiador Hélio
Vianna, adquirida pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da universidade, em 1973. Em 1980,
foi a vez da aquisição da biblioteca de Theodoro Henrique Maurer Júnior, composta de ricos materiais
de linguística românica e linguística do português do Brasil, com cerca de 5 mil obras especializadas.
No ano seguinte, o Instituto de Estudos da Linguagem recebeu a doação da coleção bibliográfica de
Müller-Carioba, contendo livros gregos, italianos, ingleses, alemães e latinos, concomitante à doação
da Biblioteca Cornélio Penna.
369
Essa ideia foi defendida por Luciana Quillet Heymann em seu livro "O lugar do arquivo: a
construção do legado de Darcy Ribeiro”, Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012.
161
370
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. p. 19.
162
Não demorou muito mais do que 48 horas para que os nomes sugeridos
fossem aceitos pelo Reitor e homologados por uma Portaria. Segundo o documento,
a Comissão ficava assim constituída: Professor José Roberto do Amaral Lapa,
Presidente; Professor Alexandre Eulálio Pimentel da Cunha; Professora Adélia
Bezerra de Menezes Bolle; e, Professor Ataliba Teixeira de Castilho. 371 Dois meses
após iniciados os trabalhos, a Comissão já apresentava os primeiros resultados.
Sabiam que não podiam perder tempo, já que a USP, concorrente direta no
processo, também havia montado um grupo de trabalho encabeçado pela professora
e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, Myrian Ellis.
No relatório entregue em 22 de setembro de 1982, a Comissão divulgava
à Reitoria as primeiras informações detalhadas do que haviam encontrado entre as
estantes e prateleiras da casa da rua Buri. Na parte documental, destacam-se
manuscritos de produção científica original, correspondência ativa e passiva,
microfilmes de documentação inédita provenientes de arquivos brasileiros e
estrangeiros e exemplares de teses inéditas de cuja banca Sérgio participou. O
fundo propriamente bibliográfico contava com cerca de 10 mil volumes e com um
setor de obras raras, sendo 50 delas de extrema preciosidade “altamente cotadas no
mercado internacional, e já preteridas por livrarias especializadas", como as citadas
Parke-Bennet e a Sotheby.372
Na mesma época, um importante livreiro de São Paulo foi procurado pela
Comissão para que emitisse um parecer, avaliando em números, a coleção. No
relatório entregue à reitoria no dia 26 de outubro, Álvaro Bittencourt, da famosa
livraria “Parthenon”373, não apenas sustentava o relatório descrito, como também
informava com maiores detalhes o que havia prestigiado, justificando assim, o preço
final de Cr$ 100 milhões de Cruzeiros. Segundo ele, tratava-se "de um rico e
expressivo acervo de quase 10 mil volumes versando sobre história, artes,
sociologia, filosofia, literatura, política e áreas de ciências humanas de modo geral,
371
Portaria Interna Gabinete do Reitor 045/82. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 9. Arquivo
Central Unicamp.
372
Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, Relatório de Comissão.
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” . Processo nº 2891, 1º
Volume. Folha 17. Arquivo Central Unicamp.
373
Fundada pelos bibliófilos José Mindlin, Cláudio Blum e Jacques Bloch, a loja, localizada
primeiramente na rua Barão de Itapetininga, 40, seria dedicada ao comércio de obras raras. Em 1951
o estabelecimento passou às mãos de Álvaro Bittencourt, que começou a vender outros tipos de
livros, além das edições de luxo. Em 1978, a loja mudou-se para o novo centro financeiro de São
Paulo, a Avenida Paulista.
163
374
RAMUSIO, Giovan Battista. Primo volume delle navigationi et viaggi: la descrittione dell'Africa & del
paese del Prete Ianni, con varij viaggi, dalla Citta di Lisbona, & infin!all isole Molucche, doue nascono
le Spetiere, et la Navigatione attorno il Mondo. Seconda editione in molti luoghi corretta, et ampliata.
In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1554; RAMUSIO, Giovan Battista. Secondo volume delle
navigationi et viaggi, nel quale si contengono l'Historia delle cose de Tartari, & diversi fatti de loro
Imperatore, descritta da M. Marco Polo Gentilhuomo Venetiano, & da Hayton Armero, varie
descrittioni di diversi autori... In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1559; RAMUSIO, Giovan Battista.
Terzo volume delle navigationi et viaggi, nel quale si contengono le Navigationi al Mondo Nuovo, a gli
Antichi incognito... Seconda edtioni. In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1565.
375
ALCIATI, Andrea. Andreae Alciati emblemata cum commentariis. Patavii (Italia): Typis Pauli
Frambotti Bibliopollae, 1661.
376
Relatório de Álvaro Bittencourt entregue à Reitoria. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor
Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 21. Arquivo Central Unicamp.
377
Idem.
164
Fonte: ANDRADE, Mário de; SOBRAL, Mario (Coaut. de). Há uma gota de sangue em cada poema. São
Paulo, SP: Pocai, 1917. Coleção Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, Biblioteca Central-Unicamp.
378
“Sérgio Buarque de agá ó dois eles á êne dê á, com a parte de mim que talvez esse livro não
conte… Será que não conta mesmo? Acho que conta sim tudo o que afinal não posso de, vulgo: uma
bêsta. Adonde é mesmo que você está morando agora? De automóvel sei ir porém pelo Correio não
sei. Ergo: baldeação Prudentico. Mário de Andrade.
165
379
Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, op.cit., Folhas 18-19.
380
A ideia de “lugares de memória” desenvolvida por Pierre Nora ganhou vida própria e vem sendo
constantemente utilizada de maneira aleatória e sem muito entendimento preciso de seu significado
histórico. De maneira rápida, esse conceito se desenvolve dentro dos debates historiográficos
franceses da década de 1970, cujo manifesto será a coletânea ‘Faire de la Histoire’, livro publicado
em 1974 que pôs em destaque os problemas teóricos que a disciplina histórica tinha diante de si, a
exemplo do artigo de Michel de Certeau, “A operarão historiográfica”, um contraponto às provocações
de Hyden White em “Meta-História" (1973) contido no volume. Do ponto de vista político, houve na
França na mesma época a “emergência do problema da memória como preocupação histórica”,
resultante da morte do General De Gaulle e do aumento progressivo do culto ao patrimônio. Maiores
detalhes em: BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora ou o historiador da memória. Entrevista com
Pierre Nora. História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp. 13-33. Nesse sentido, para não corrermos o
risco de cair no vazio conceitual, utilizamos aqui o termo de maneira um pouco mais livre, sem
referência direta à obra, todavia chamando a atenção para um ponto que ela levanta: “(...) a razão
fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento,
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”. NORA, Pierre. Entre mémoire
et histoire. La problemátique des lieux. In: ______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La
République. Paris: Gallimard, 1984. p. 22.
166
381
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 2º
Volume. Folhas 49-50. Arquivo Central Unicamp.
382
ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996; CARVALHO, Vania Carneiro de. Gênero e artefato: o
sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo, SP: Editora
da USP: FAPESP, 2008.
383
CARVALHO, op.cit., p.150.
167
Figura 2: Reconstituição do escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda. BC, Unicamp, 2012
384
BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
385
CARVALHO, op.cit, pp. 43-48.
168
Figura 3: Escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, em sua residência à Rua Buri, pouco antes de
seu falecimento, São Paulo, fevereiro de 1982
Fonte: Fotografia tirada por Maria do Carmo Buarque de Holanda. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida
Pessoal, Arquivo Central, Unicamp
387
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” , op.cit.,1º Volume.
Folha 23. Arquivo Central Unicamp.
388
Idem, Folha 24
389
Ibidem, Folhas 26-27.
170
390
Idem, Folhas 35-36.
171
391
Ibidem, Folha 53. Importante registrar, que pouco depois, em 2 de março de 1983, a Comissão
relatou à reitoria uma outra conversa que tiveram com Sérgio Buarque de Holanda Filho. Na ocasião
a família assinalava que a correção monetária deveria se dar a partir de 1º de janeiro de 1983,
favorecendo, desse modo, a Unicamp.
392
Reitoria, Resumo de Contratos, Processo 2981/82, contrato 1483. Diário Oficial do Estado de
São Paulo, 11 de junho de 1983, página 11.
393
Termo particular de Contrato de compra e venda do acervo bibliotecário e documental do
Professor Sérgio Buarque de Holanda. In: “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio
Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folha 82. Arquivo Central Unicamp.
172
394
SILVA, Patrícia Helena Gomes da. op.cit. p. 85; Carta de José Sebastião Witter a Maria Amélia
Buarque de Holanda, comunicando que enviou à USP e à UNICAMP, correspondência sobre a
aquisição do acervo de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 31 maio 1983. 1p. (anexo
correspondência mencionada), Hp 14, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
395
Segundo o “Relatório Preliminar sobre a mudança da ‘Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda’”, o
traslado iniciado em 19 de julho de 1983 contava com mais duas etapas, sendo elas em 19 de agosto
e 26 de agosto. Ainda segundo o relatório, os períodos entre 22 e 25 de agosto e 29 de agosto e 2 de
setembro seriam reservados para o arranjo do material, que ficou alocado provisoriamente na antiga
sede da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp-FUNCAMP. In: In: “Aquisição da Biblioteca do
falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folhas 141-144. Arquivo Central
Unicamp.
173
396
MARTINS, Neire do Rossio, op.cit., p. 19.
397
Para mais detalhes sobre esse processo de preparação técnica ver: Projeto FAPESP 83/0959 e
Processo FAPESP 85/0084-9. Fundo CIDIC, Caixa 2, Maços 20-21. Arquivo Central Unicamp.
398
Idem, pp.3-6.
174
399
Resolução 19 de 28 de abril de 1982. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Homenagens
Póstumas, Hp 131, Arquivo Central Unicamp. Ao todo ocorreram seis "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, a primeira, em 1982 e a última em 1987. Com excessão da "V Semana", que ocorreu entre
12 e 14 de agosto de 1986 na Unicamp, todas as demais se deram em julho, mês de nascimento de
Sérgio, na cidade de São Paulo. No mesmo ano de 1986, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro a
exposição comemorativa aos 50 anos de Raízes do Brasil, intitulada, “Sérgio, o renovador”. O evento
foi organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que publicou um pequeno livreto contendo textos
panegíricos de José Murilo de Carvalho, Francisco de Assis Barbosa, Onestaldo de Pennaforte,
Manuel Bandeira, além da lista de peças expostas, bibliografia do homenageado e dados biográficos.
Podemos a partir desse material, citar um exemplo do que definiremos abaixo como fatalismo: o
primeiro foi retirado do texto de José Murilo de Carvalho e diz o seguinte: “Raízes do Brasil tornou-se
o livro mais conhecido de Sérgio (…) e talvez o mais influente. Não foi o seu melhor livro. Mas teve o
grande mérito de representar uma alternativa às tendências dominantes da época e de anunciar o
grande historiador do futuro”. CARVALHO, José Murilo de. Cinquentenário de Raízes do Brasil. In:
Sérgio, Renovador. Rio de Janeiro: FCRB, 1986. p. 7.
400
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a
comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da
memória. Revista Brasileira de História (online), v. 33, n. 65, 2013. p. 386.
175
Hoje grande parte das pesquisas sobre Sérgio Buarque se valem de seu
papelório. Todavia, são estudos constituídos dentro de uma concepção na qual
esses papéis acumulados seriam uma espécie de “repositório de provas”,
possibilitando aos investigadores tecerem narrativas e análises sobre ele e sobre
sua obra. Vistos nessa chave, os arquivos pessoais como objetos tendem a ocupar
um lugar periférico nas análises interessadas na construção social dos arquivos, já
que existe uma tendência em associá-los à “memória individual”, a interpretá-los
unicamente como acúmulos que documentam as atividades do titular ou revelam
dimensões de sua personalidade. Esse tipo de abordagem, como sugere pesquisa
recente, obscurece o caráter de múltiplas interferências, que de outro ponto de vista,
nos indicam a ideia de que esses arquivos são constituídos a várias mãos. 405
403
PALMEIRA, Miguel S. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joëlle; HEYMANN, Luciana (org.). Arquivos Pessoais: reflexões
multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 89.
404
SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia,
v. 8, 2012. pp. 233-234.
405
HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, op.cit, p.
69. A autora trabalha com a ideia de “olhar antropológico” sobre os arquivos pessoais, propondo que
177
Andrade com o seu gigantismo epistolar, um Darcy Ribeiro com os seus documentos
de trabalho e diários, de um Pedro Nava memorialista ou ainda de Paulo Duarte, que
chegou a guardar um capacete do tempo da Revolta Paulista de 1932. 409
Segundo D. Maria Amélia, Sérgio tinha uma dinâmica própria de
autoarquivamento. Sua biblioteca, por exemplo, era uma “bagunça”, mas organizada
de acordo com sua própria lógica de recuperação e interesse. Os seus documentos
pessoais eram mantidos em pastas, caixas e gavetas sem quaisquer critérios
rigorosos de organização e indexação e seguiam uma certa “ordem natural” de
interesses de acordo com cada época de sua trajetória. Muitas cartas, por exemplo,
foram encontradas dentro de livros 410 por bibliotecários da Unicamp que as remetiam
ao Arquivo.
Pensando numa expectativa futura, no legado de seu trabalho e numa
eventual autobiografia como historiador e crítico, a suposta “bagunça" imposta pelo
arquivista não teria o intuito de incentivar naqueles que mais tarde encontrassem
esses papeis, a participação num jogo de adivinhações, gerando nesses
pesquisadores a surpresa em revelar cada um desses enigmas e ativando no trato
com outros rastros a composição de um “mosaico de si”? 411
A última remessa de documentos feita por Maria Amélia se deu em 2004.
Nessa época o Fundo já contava com mais de 2 mil documentos em diversos
idiomas, incluíndo certidões, fotografias, cartões pessoais, postais, medalhas de
honrarias, correspondências, originais de textos, cadernos de pesquisa, textos
escritos por Sérgio em diversos jornais e revistas no Brasil e no exterior, cópias de
409
Ponto importante a ser considerado é o fato de que nem todo gesto de arquivamento pode ser
associado a uma vontade de memória ou a um testemunho. Ver respectivamente: MORAES, Marcos
Antônio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo:
EdUSP; FAPESP, 2007; HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de
Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012; PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado
doutor, querido amigo, caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2009; MARTINS, Neire Rossio.
Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual de
Campinas (1980-1995). 2012, Dissertação (mestrado), Unicamp, Faculdade de Educação.
410
Não por acaso que Chico Buarque abre seu novo romance descrevendo uma carta encontrada
pelo personagem principal dentro do livro “O Ramo de Ouro”, pertencente ao seu pai e que depois de
manuseado deveria ser guardado exatamente como ele o havia deixado em alguma prateleira da sua
enorme biblioteca. BUARQUE, Chico. O irmão alemão, op.cit., pp. 8-10.
411
Questões dessa ordem foram formuladas por Philippe Artières ao tratar de certas práticas de
autoarquivamento. Para esse historiador, mais do que a natureza dos arquivos pessoais e as práticas
que lhes dão origem, o importante seria cotejar os modos de fabricação desses arquivos, ou seja,
buscam-se os gestos que podem transformar as práticas comuns em pequenos altares singulares ou
as experiências desse autoarquivamento numa obra de arte. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar-se: a
propósito de certas práticas de autoarquivamento. In: TRAVANCAS, op.cit., pp. 45-54.
180
412
HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo, op.cit., sobretudo o capítulo 4, “Os papéis de
Darcy Ribeiro ou um arquivo de ‘refazimentos’". pp. 171-219.
413
PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, op. cit., pp. 95-96.
181
imagem da esquerda combativa do país. Segundo ele, “(…) só a partir dos anos 1970 que essa
tendência até então pouco recessiva na personalidade de Sérgio Buarque de Holanda ganha
predominância. Na última fase de sua vida, diante do conservadorismo obscurantista que havia se
abatido sobre a sociedade brasileira, Sérgio Buarque de Holanda se torna um militante propriamente
dito e demonstra isso de diversas maneiras, entre elas por meio das entrevistas que concedeu
criticando o regime em seu pleno período mais sombrio a partir da vigência do AI-5”. COSTA, Marcos.
Biografia Histórica: a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e
1980. 2007. Tese, Doutorado em História, Universidade Estadual Paulista (UNESP)- Assis. p. 168.
184
421
ANDRADE, Jorge. 42 anos a.C: um Buarque antes de Chico, o perfil de um dos maiores
historiadores brasileiros. Realidade, nº 75. São Paulo, 1972. Apud: WEGNER, Robert. Latas de leite
em pó e garrafas de uísque: um modernista na universidade. In: MONTEIRO, Pedro Meira;
EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas/SP; Rio de
Janeiro: Editora da Unicamp/EdUERJ, 2008. p. 495.
422
LACERDA, Aline Lopes de. A imagem nos arquivos. In: TRAVANCAS, op.cit., p. 58.
186
423
Esse conjunto de poucas cartas, que não chegam a duas dezenas, foi muito bem organizado por
Pedro Meira Monteiro e publicadas no livro, Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:
correspondência. São Paulo: Companhia das Letras; EdUSP; IEB, 2012.
424
Correspondência passiva, Cp 220, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
187
425
Achei a expressão apropriada para esse capítulo. Ela foi retirada de um artigo da professora
Jeanne-Marie Gagnebin, O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. Revista Pro-Posições, v. 13
n. 3 (39), set- dez., 2002, p. 133. A expressão, segundo ela, é de autoria do artista russo Ilya
Kabakow.
426
WAQUET, Françoise. Os filhos de Sócrates. Filiação intelectual e transmissão do saber do
século XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
427
No inventário do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências, são indicados um
total de 379 cartas. Dessas, apenas 11 são cópias de cartas enviadas pelo titular. Na Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, localizei outras 6 cartas enviadas por Sérgio entre 1929 e 1954,
coincidentemente, períodos importantes de sua formação intelectual, que remetem às experiências
alemã e italiana. Outras tantas devem estar na guarda de parentes ou de amigos próximos, não
sendo possível localizá-las.
428
Luis da Câmara Cascudo, Cp 121, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
188
429
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In: _____. (Org).
Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. pp. 13-14.
430
MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINKY, Karla Bessanezi; LUCA, Tânia Regina
de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.
189
431
Idem., p. 203.
190
432
Anotações com sugestões de Maria Amélia Buarque: trechos selecionados de cartas de artistas e
acadêmicos enviadas a SBH e entrevistas sobre ele para composição da IV Semana Sérgio Buarque
de Holanda. São Paulo, 1985. Hp 167, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
433
Sérgio, Renovador, op.cit. Nos agradecimentos podemos ler: “À família Buarque de Holanda, em
especial a Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda e a Cecília Buarque de Holanda, que gentilmente
cederam por empréstimo a maior parte dos documentos”.
434
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:
Rocco, 1988. O livro é dividido em 3 partes: a primeira, com introdução de Barbosa, contém textos de
Sérgio de sua “fase modernista”, dentre eles os famosos “Originalidade Literária” e “O lado oposto e
outros lados”; a segunda parte é apresentada por Antonio Candido que reedita um texto seu já
publicado, “Sérgio em Berlim e depois” e praticamente imprime o caderno que foi organizado por
Cecília, que apresenta a famosa entrevista “Thomas Mann e o Brasil”; por fim, a última parte tem a
apresentação de Manuel Bandeira.
191
435
Entrevista com Edgar de Decca. Jornal da Unicamp, Edição 232, 5 a 12 de outubro de 2003.
Durante a entrevista, De Decca chegou a mencionar que a publicação do texto estava sendo
negociada com a família, todavia, o trabalho continua inédito e pouco conhecido mesmo dentro do
ambiente acadêmico.
436
Em suma, esse escrito escondido no arquivo é a peça que falta naquilo que foi indicado por De
Decca como dois projetos complementares feitos por Sérgio: um de compreensão das origens, visto
nas três obras – “Raízes”, “Elementos Formadores” e "Visão do Paraíso” – e outro de entendimento
da constituição do território, "a constituição de uma cultura do adventício. Assim, 'Caminhos e
Fronteiras' é aquilo que move e aquilo que limita; 'Monções' também é algo que te leva; o 'Extremo
Oeste' é até onde essa fantasia pode se estender. Existe claramente uma unidade”. Entrevista, op.cit.
437
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2007. p. 17. Essa expressão é utilizada por meio de uma livre apropriação da ideia original do autor.
438
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008.
439
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época
dos Descobrimentos.
192
portanto, na ideia de que "a colonização portuguesa funda uma sociedade voltada
para fora, incapaz de desenvolver-se com vistas a si mesma". 440
Para terminar, passamos ao último ponto do capítulo, o que trata do papel
da equipe arquivística na constituição desse Fundo, a última das várias mãos a que
nos referimos. Como mencionado, o Fundo se formou durante o processo de
reestruturação institucional em curso na Unicamp, que formalizou, entre outros
órgãos, o Arquivo Central. O modelo adotado pela instituição resultou de uma
política de valorização e formação de seus quadros internos de pessoal, posta em
prática por meio de uma série de intercâmbios e estágios de formação em
importantes centros de referência no país.
A partir do testemunho de Neire Rossio é possível acompanharmos as
principais influências recebidas pela equipe arquivística na elaboração narrativa
desse Fundo. Ela lembra que o primeiro estágio que fez foi realizado no Instituto de
Estudos Brasileiros-IEB sob a tutela de Heloisa Liberalli Bellotto, professora da USP
e na época responsável pelo arquivo do órgão. Durante a sua passagem, além do
contato com arquivos pessoais, conheceu os principais teóricos do campo
arquivístico de então, tais como o americano Theodore Schellemberg, os
canadenses Carol Couture, Jean-Yves Rousseau e as espanholas Vicenta Córtes
Alonso e Heredia Herrera.
Em seguida realizou estágios no Arquivo Público Municipal de São Paulo,
onde conheceu as discussões e a minuta do projeto do "Sistema Municipal de
Arquivos” e no Arquivo do Estado de São Paulo, onde trabalhou com o Fundo Júlio
Prestes, participando de reuniões em que pôde acompanhar as discussões sobre
aspectos da teoria arquivística europeia e americana, vindo a conhecer os projetos
da criação do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo e do município de Rio
Claro.
Já no Rio de Janeiro ela visitou a "Fundação Casa de Rui Barbosa" e o
CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Foi nessa época que Neire Rossio passou a
coordenar a Divisão de Documentação do Centro de Informação e Difusão Cultural
da Unicamp, que mais tarde deu origem ao Arquivo Central do Sistema de Arquivos
daquela universidade. Em posse dos documentos de Sérgio, a opção da equipe do
440
MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda.
História da Historiografia, n. 6, março de 2011. p. 226.
193
441
Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central do Sistema de Arquivos, Área de
Arquivo Permanente, Campinas, março de 2013.
442
CUNHA, Olívia. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, jul-dez. 2005, p. 7-32; HEYMANN Luciana. Indivíduo,
memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, 1997, pp. 41-66; RANDOLPH, John. On the biography of the
Bakunin Family Archive. In: BURTON, A. (org.). Archive histories: facts, fictions and the writing of
History. Durham & Londres: Duke University Press, 2005, pp. 209-231, Apud, HEYMANN, Luciana.
Arquivos Pessoais em perspectiva etnográfica, In: TRAVANCAS, op.cit, pp. 67-76.
194
443
Refiro-me ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique, publicado em 1986 nas
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72.
444
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. Revista Pro-Posições, v.
13 n. 3 (39), set-dez., 2002, p. 128.
195
“Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu
assunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um
tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire
tão assiduamente. (...) Aqui temos um homem - ele tem de recolher os
restos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o
que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga,
ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum da
escória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe,
como um avarento, um tesouro, o lixo que, mastigado pela deusa da
Indústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.' Essa descrição é uma
única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de
Baudelaire. Trapeiro e poeta - os dejetos dizem respeito a ambos; solitários,
ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam
ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé
(passo intermitente) de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade
procurando a presa de rimas; deve ser também o passo ao trapeiro que, a
todo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em que
tropeça”.445
445
BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Capítulo "A Modernidade". In:
______. Obras Escolhidas III. Tradução (modificada) de José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1989. pp. 78-79.
196
Considerações finais
literárias, segredos familiares por muito tempo guardados, como a existência do seu
“Irmão Alemão”, apresentando documentos que desmontam a versão meramente
memorialística da passagem de seu pai por Berlim, causando frisson no mercado
editorial? Ou quando Antonio Candido insiste nesta mesma memória em um evento
celebrativo aos cinquenta anos do IEB?
Não seria exagero, então, afirmar que houve por parte de um pequeno
grupo de amigos e ex-orientandos o rearranjo da esparsa obra buarqueana, tanto
histórica quanto crítica, bem como o ajuste de seu perfil biográfico à esquerda,
levando em conta o envolvimento de alguns desses intelectuais com a fundação do
PT. Ou foi mero acaso que o Centro de memória política do Partido escolheu o
historiador como homenageado? O certo é que virou memória a versão de um
intelectual politicamente combativo, de posicionamento radical, anti-autoritário,
democrático, o maior de nossos historiadores, chegando sua obra em alguns casos
a ser lida como um sofisticado exemplo de história social dos excluídos, avant la
lettre.
Todavia, a leitura de algumas fontes apontou se tratar de um personagem
bem diferente, visto muito mais como um humanista e erudito, cuja obra naquele
início de década, além de esparsa, tinha pouco alcance nos meios acadêmicos fora
da órbita paulista. Daí a afirmação de Francisco Iglésias de que “Sérgio ainda há de
ser reconhecido em seu devido valor”. Se hoje o passado do historiador vive preso
nesse presentismo eterno, isso muito se deve a essas estratégias de consagração.
Um estudo recente mostrou que de nada vale a excelência de uma obra,
sem a existência de mediadores dispostos a mobilizar recursos capazes de garantir
a construção e a manutenção do “estatuto de clássico” de um determinado autor,
caso contrário muitos deles poderiam se desmanchar no ar. 448 Não foi apenas por
saudade, portanto, que intelectuais como Antonio Cândido, Francisco de Assis
Barbosa, José Sebastião Witter, Fernando Novaes, Francisco Iglesias, Maria Odila
L. da S. Dias, Laura de Mello e Souza, entre outros, elaboraram e sustentaram
versões que ajudaram a cristalizar o perfil oficial do mestre-amigo, materializado em
publicações póstumas de inéditos, coletâneas, reedições e enunciações em eventos
acadêmicos, sem contar a biblioteca e o arquivo, lugares funcionais dessa memória.
Embora persistente, essa evocação perdeu força na virada do século XXI.
Nessa época vieram à tona estudos críticos e contundentes resultantes de
448
Idem, p. 11.
199
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