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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RAFAEL PEREIRA DA SILVA

“A MORTE DO HOMEM CORDIAL”:


TRAJETÓRIA E MEMÓRIA NA INVENÇÃO DE UM PERSONAGEM (SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA, 1902-1982)

CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta


pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29
de Outubro de 2015, considerou o candidato Rafael Pereira da Silva aprovado.

Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca

Profa. Dra. Maria Stella Martins Bresciani

Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel

Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata

Profa. Dra. Luciana Quillet Heymann

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no


processo de vida acadêmica do aluno.
À Lara, minha filha.
Agradecimentos

Não sei se para todos, pelo menos para mim, essa é uma das partes mais
aguardadas da escrita de qualquer trabalho, por duas razões óbvias. A primeira,
porque indica que mais uma etapa foi concluída; a outra, porque é hora de
prestarmos contas àqueles que realmente estiveram conosco durante o processo.
Penso também que este é um espaço de celebração, de memória, deixando claro
que ausências foram por mero esquecimento, não por apagamento. Vejamos.
Do lado familiar, sou imensamente grato aos meus pais, Iuçá e Graça,
que ainda hoje não sabem exatamente do que trato em minhas pesquisas, mas
compreendem a sua importância para a formação humana e cidadã. Agradeço
também às minhas irmãs, Fernanda e Beatriz, pela preocupação constante e pela
amizade.
Ao meu primo Alexandre agradeço pelas conversas, viagens culturais,
aulas sobre rotas latino-americanas, museus e lugares de visitação mundo afora e
aos parentes distantes, Bezego, Neide, Isabel e Nivaldo (in memoriam).
Durante a última década a família cresceu e por isso mesmo agradeço
acima de tudo à Giselle, mãe da Lara, minha esposa e companheira, que com sua
amizade, carinho e excessiva paciência, compartilhou por dentro todo este processo.
Aos meus sogros, Silvio e Lea, o meu mais sincero obrigado, sobretudo por
cuidarem da nossa Larinha em momentos de ausência minha e da Giselle por
motivos de escrita e trabalho. Agradeço ainda ao bisavô da Lara, Seu Jaime, que
recém nos deixou, já centenário. Figura exemplar, que além de músico, poeta,
memorialista e escultor, foi um humanista em tempos de indiferença e presentismo
constante.
Ainda por esses lados, deixo minha gratidão à maravilhosa Profa. Dra.
Maria das Graças Dias (in memoriam) e aos seus filhos e queridos amigos, Túlio e
Michelle, bem como aos seus companheiros, Cristy e Edu; à Márcia, ao Gian, Lucas,
Júlia, Jana, Juliano, Renata e aos demais amigos desse grupo.
Na Unicamp, agradeço de forma muito especial ao professor Dr. Edgar de
Decca, que além de uma orientação precisa durante esses anos, me abriu
perspectivas de mundo a partir de sua experiência acadêmica, me instigando, a
cada encontro ou troca de e-mails, a ter o protagonismo de um pensamento crítico e
livre de quaisquer amarras.
Na Itália, durante os meses em que lá estive, agradeço ao professor Dr.
Ettore Finazzi-Agrò pela recepção e aprendizado obtido na Universidade de Roma.
Por seu intermédio, estabeleci amizade, mesmo que a distância com o professor da
Universidade de Bologna, Dr. Luca Bacchini, a quem também agradeço pelas
profícuas conversas.
De volta à Unicamp, agradeço a todo o grupo da Olimpíada Nacional em
História do Brasil, coordenada pelas professoras Dra. Cristina Meneguello e
Alessandra Pedro (Leca); ao Bruno Terlizzi, que por inúmeras vezes me recebeu em
sua casa de Barão Geraldo, local agradável e de ótimos momentos; à Jussara
agradeço a amizade e as trocas acadêmicas constantes; à Clécia e ao Mauro pela
amizade e por também terem aberto a sua casa para me receberem inúmeras vezes
no último ano, tornando a vida em Barão Geraldo muito mais leve, bem como ao
Érito, pelas longas e agradáveis conversas nos bares do centrinho. Agradeço a
dedicação dos professores Dr. Carlos Berriel e Dra. Maria Stella Bresciani pela
leitura atenta da primeira versão desta tese, pelas valiosas críticas concedidas
durante o exame de qualificação e por aceitarem o convite para a defesa. Agradeço
ainda aos maravilhos profissionais do Arquivo Central da Unicamp, representados
por Telma Murari e Neire Rossio.
Ainda em Campinas, agradeço ao “acaso” por ter convivido o ano inteiro
de 2010 na inesquecível casa da Rua Plínio Aveniente, 88, ao lado dos amigos
Vinícius (Moscão), Carlos Alberto (Carlão), Deivison, Alisson, que era “agregado”,
Marcelo Mac Cord e Dani Pistorello, que volta e meia por lá batiam ponto. Esse
grupo quando pode ainda se encontra em bares, eventos, acadêmicos ou não,
mundo afora. Raro hoje é estarmos todos. Mas já pudemos matar a nostalgia em
Campinas, Belo Horizonte, Paris, São Paulo, Coimbra, Rio de Janeiro, Florianópolis,
Brasília. As lembranças dessa casa constituem um de nossos marcos biográficos.
Tempos em que se pedia gelo no vizinho e as "únicas" responsabilidades eram dar
vida à ideia abstrata de uma tese, escolher a cerveja mais barata no mercado para
regar as longas sessões “psicanalíticas" na cozinha de casa, enquanto alguém,
nunca eu, preparava a comida, ou pagar em dia o oneroso aluguel de Barão
Geraldo. Não poderia existir um grupo mais harmônico do que esse!
Em Brasília, onde resido atualmente, não posso esquecer de agradecer
aos amigos para toda hora Alexandre e Luciana, agora na companhia do José, que
nasceu junto com o término da tese. Aqui também sou grato ao Deda e à Vanessa,
pela amizade, pelas peixadas, sem duplo sentido por estarmos na capital, e por
cuidar de nossa casa nos longos períodos em que estivemos ausentes; ao Rodrigo e
à Lili, amigos da UFSC, que anos atrás me receberam e me abriram as portas dessa
cidade tantas vezes fria.
Agradeço muito aos amigos de mais de três décadas, Juliano, Fábio,
Pablo, Cícero, Júnior, Thiago, Murilão, Silvinho e às suas respectivas famílias,
agregados, filhos, companheiras. Da UFSC, onde passei muitos anos, agradeço a
amizade sincera do Camilo, Marcão, Disma e Karlinha, Lagarto (Prof. Dr. Rafael da
Cunha Schaefer), Maíra, Marcelo, Juliana Vamerlati, responsável pela revisão do
texto, Juan (Bolívia), Karla, Juliana Sartori, todos muito presentes, uns mais, outros
menos, ao longo de mais de uma década.
Agradeço ainda aos meus “velhos" professores, Dr. Paulo Pinheiro
Machado, Dr. Adriano Luiz Duarte, Dr. João Klug e a Dra. Maria de Fátima Fontes
Piazza, interlocutora em tempo integral desta tese. Agradeço aos demais membros
da banca, professores Dr. Sérgio da Mata, Dra. Luciana Heymann, Dr. Jeferson
Cano e Dr. Rui Rodrigues por aceitarem, de prontidão, o convite.
Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa no Brasil e à
Capes pela Bolsa-Sanduíche no exterior, sem as quais o trabalho investigativo e a
redação não seriam possíveis.
“Parte substancial de nossos literatos, isto é,
de nosso público escritor e leitor de livros,
satisfaz suas necessidades religiosas
exclusivamente na forma de
culto ao gênio”.

(Edgar Zilsel, Die Geniereligion. Frankfurt am Main:


Suhrkamp, 1990. p. 53-54)
RESUMO

A partir da década de 1980, a trajetória intelectual e biográfica de Sérgio Buarque de


Holanda passou a ser contada por um viés linear e memorialístico. De maneira
geral, essa trama, que ligava o passado modernista de Sérgio ao maduro militante
petista e de esquerda do fim da vida, se constituiu por um viés de excepcionalidade
da personagem, ainda hoje vista em publicações e eventos acadêmicos que a
sustentam. Partindo dessa constatação, esta tese conta a história de Sérgio
Buarque de Holanda pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foi
inscrita e propagada, segundo o entendimento de que nesses lugares podemos
perceber suas dimensões material, simbólica e funcional. Assim é que encontramos
Sérgio Buarque inscrito em textos memoriais, discursos fúnebres, livros, eventos,
ruas, biblioteca e arquivo, um conjunto de lugares de consagração arquitetados por
um grupo específico de acadêmicos no intuito de moldá- l o à sua vontade de
memória. Nessa operação foi intencional o apagamento de rastros políticos de
Sérgio Buarque, muito mais ligados aos campos educacional e pedagógico e muito
menos à esquerda combativa de outrora, como insistem ainda hoje alguns de seus
comentadores oficiais. Por fim, a tese ainda busca nas “tramas do arquivo”, suporte
material e funcional dessa memória, demonstrar que Sérgio Buarque de Holanda se
constituiu, na guarda de seu papelório, como personagem de si mesmo, alimentando
a mesma versão oficial e linear da vida exposta nesses diferentes lugares.

Palavras-chave: trajetória; memória; arquivo.


ABSTRACT

The intellectual and biographical trajectory of Sérgio Buarque de Holanda has been
recounted with a linear and memory-based bias from the 1980s onward. In general,
this approach, which connected Sérgio’s modernist past with the mature militant of
the Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores) and of the left at the end of his life
was constituted by a bias toward the exceptionality of the personage, still seen today
in academic publications and events which give it support. Based on this verification,
this thesis recounts the history of Sérgio Buarque de Holanda through the
perspective of memory and the sites at which it was registered and propagated
according to the understanding that at these sites we can perceive its material,
symbolic and functional dimensions. This is how we find Sérgio Buarque registered in
memorial texts, funeral speeches, books, events, streets, libraries and archives, a set
of sites of acclaim created by a specific group of scholars aiming to shape him to the
will of their memory. In this operation the erasing of political traces of Sérgio Buarque
was intentional, these being more connected to the educational and pedagogical
fields than to the old combating left as some of the official commentators currently
insist upon. Finally, this thesis also seeks through the “archive approach”, material
and functional support of this memory, to show that Sérgio Buarque de Holanda
constituted himself, in the keeping of his printed legacy, as a character of himself,
feeding the official and linear version of life exposed at these different sites.

Keywords: trajectory; memory; archive.


Sumário

Introdução.....................................................................................................................1

Capítulo 1: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL "ENTRE DOIS


PROJETOS” 21
1.1 Militância errante no modernismo brasileiro......................................................22
1.2 Sérgio Buarque e os quadros intelectuais a partir dos anos 1930...................54
1.3 "Raízes do Brasil" à contrapelo.........................................................................63
1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944.........................................74
1.6. Fechando parênteses.......................................................................................79

Capítulo 2: O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À


APOSENTADORIA E DEPOIS… 91
2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de
Holanda..................................................................................................................113
2.2. A década de 1970: política e historiografia....................................................118
2.3. Os últimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e um
pouco do Partido dos Trabalhadores....................................................................125

Capítulo 3: UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES 144


3.1. Morre o “Homem Cordial"...............................................................................144
3.2. A constituição de espaços de recordação: a Biblioteca e o Arquivo (de) Sérgio
Buarque de Holanda na Unicamp.........................................................................162
3.2.1. Os labirintos burocráticos e a compra da Biblioteca...................................167
3.3. A várias mãos: a montagem de um Fundo Privado.......................................182

Considerações finais 204

Referências Bibliográficas 208


1

Introdução

Milhares de pessoas transitam todos os dias pela Unicamp. De carro, de


bicicleta, de ônibus ou à pé, uma grande parte delas passa em frente à Biblioteca
Central, cujo endereço é a Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421. Desse vasto
universo de transeuntes, é quase certo que a maioria deles não se pergunte sobre o
homem cuja placa da rua homenageia e muito menos que em um dos andares da
mesma biblioteca que lhes passa despercebida aos olhos, encontra-se um dos mais
importantes acervos culturais do país.
Supondo que dos milhares de passantes, um deles mais atento tivesse a
curiosidade de saber quem foi aquela pessoa, o que num primeiro momento ela
descobriria a seu respeito? Teria sido um professor, um político, um escritor?
Iniciaria seus questionamentos relacionando o sobrenome de seu objeto ao
conhecido dicionário ou então ao famoso compositor de Música Popular Brasileira?
Imaginemos que se dotado de ímpeto investigativo, o curioso pedestre resolvesse ir
um pouco mais à fundo em suas questões e buscasse respostas na biblioteca: o que
de imediato encontraria? Caso perguntado por alguém sobre suas descobertas, o
que ele responderia?
Continuamos a cena hipotética e eis a resposta do caminhante: o homem
da placa era paulista, escritor, pai de Chico Buarque e de mais seis filhos! Também
foi modernista, crítico literário, jornalista, sociólogo, historiador e professor da
Universidade de São Paulo-USP. Teve amigos importantes como Mário de Andrade,
Antonio Candido, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Paulo Vanzolini, Manuel Bandeira,
Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Afonso Arinos de Melo Franco e muitos
outros. Publicou livros seminais, como "Raízes do Brasil”, que discute nossa
identidade, “um clássico de nascença”, diriam! Foi sempre um homem de esquerda,
solidário aos companheiros perseguidos nas duas ditaduras e, no fim da vida, foi
membro fundador do "Partido dos Trabalhadores” - PT. 1
1
O vínculo de Sérgio Buarque com o Partido dos Trabalhadores e consequentemente com a
"memória das esquerdas” foi institucionalizado em 2001, com a criação do “Centro Sérgio Buarque de
Holanda - Documentação e Memória Política”, fundado com o objetivo de se dedicar ao resgate,
organização, disponibilização e pesquisa sobre a documentação histórica relativa ao "Partido dos
Trabalhadores" e ao seu contexto histórico. Segundo o historiador Alexandre Fortes, que dirigiu o
Centro por cinco anos, a escolha do nome de Sérgio se deu pelo fato de ele ter sido simultaneamente
um dos grandes historiadores do país e um dos fundadores do partido, num momento em que o
grosso da intelectualidade de esquerda ainda apostava em outras alternativas políticas, como o setor
2

Os livros que pertenceram ao Dr. Sérgio, como lhe chamavam, estão no


setor de Coleções Especiais e Obras Raras dessa Biblioteca que sempre passamos
em frente, mas que nunca entramos. Lá há milhares deles, de história, literatura,
artes, sociologia, alguns muito raros, muitos em língua estrangeira e tantos outros
com dedicatória. O escritório no qual escreveu parte de seus livros encontra-se lá,
da mesma forma como ele o deixou antes de partir - me contou a bibliotecária,
quando visitei! Isso demonstra o quanto ele era dedicado, erudito, disciplinado, leitor
voraz, escritor perfeccionista, um verdadeiro “mestre”, concluí!
O interlocutor, impressionado com tamanha informação, interrompe a
narrativa e indaga: como você sabe de tudo isso? O que já foi escrito a respeito
desse homem, o senhor Buarque de Holanda? A que o narrador com toda a
segurança e pompa responde: há uma vasta fortuna crítica a seu respeito! De
cabeça lembro de alguns autores muito importantes e que sendo muito amigos dele
não lhes deixaram escapar nenhum momento da vida, nos brindando com seus
testemunhos. São estudiosos como Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa,
Maria Odila Leite da Silva Dias, Fernando Novaes, José Sebastião Witter, Laura de
Mello e Souza, Francisco Iglesias e outros que não me recordo agora.
Descobri também que existe um arquivo bem ao lado do restaurante
universitário, com milhares de documentos que lhe pertenceram, como cartas,
recortes de jornais sobre seus livros, cadernos com anotações das pesquisas que
fazia, textos inéditos datilografados, discursos proferidos, fotografias e muito mais
coisas. Há um inventário que as moças do arquivo levaram anos para terminar,
tamanha a quantidade de papéis guardados por ele e mais tarde levados até lá pela
sua esposa.
Foi com base nesse material que rodaram até um filme, “Raízes do Brasil:
uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda”, ideia de uma de suas filhas, Ana
de Hollanda, que foi ministra da Cultura, para homenagear não apenas o patriarca,
mas todo o clã. O filme conta com belos depoimentos da esposa, filhos, netos de
Sérgio e também de alguns daqueles autores de que lhe falei antes, como o Antonio
Candido. Para quem não leu "Raízes do Brasil” inteiro, o filme apresenta algumas

"autêntico" do MDB ou o PCB. Levou-se em conta ainda as relações muito próximas entre Fundação
Perseu Abramo e a direção do PT com a família Buarque de Holanda, em especial a viú va, dona
Maria Amélia, presente na inauguração do Centro. Essas informações me foram dadas pelo próprio
Alexandre Fortes por e-mail em 31 de agosto de 2012. Para maiores detalhes sobre o acervo ver:
FORTES, Alexandre. Construção de acervos e memória da esquerda: a experiência do Centro
Sérgio Buarque de Holanda. (Mimeo.).
3

passagens do livro, como aquela que exprime a nossa identidade e ficou muito
famosa, que fala da alegria do brasileiro, de que a gente é cordial e tal! 2
Grosso modo, para quem não é especialista na obra de Sérgio Buarque,
esta é a imagem corriqueira que passou para a memória histórica quando se trata de
falar do “maior dos nossos historiadores”. Foi a partir dela que, durante os tempos
de graduação (1999-2003) na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, por
exemplo, imaginando a vida perfeita dessa personagem, redigi um trabalho de
conclusão de curso reproduzindo inocentemente pari passu, os ensinamentos
daqueles estudiosos citados. Como ousar questionar tamanha autoridade e lugar de
enunciação? Com exceção de uns poucos capítulos de “Raízes do Brasil”, quase
sempre "O semeador e o Ladrilhador" e o "Homem Cordial”, lidos em uma ou outra
disciplina, o que nos chegava das obras de Sérgio era uma edição de “Visão do
Paraíso” em capa dura, editada em 2000 pela “PubliFolha” que compunha a
"Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”.
Anos mais tarde, no intuito de preparar o projeto de doutorado, cursei
como aluno ouvinte no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, uma
disciplina chamada “História Intelectual e os Estudos de Epistolografia”. Ministrada
pela professora Maria de Fátima F. Piazza, as discussões giravam em torno de
temas como “escrita de si”, biografia/autobiografia, composição de arquivos pessoais
e a possibilidade de abordagem das cartas como objeto/fontes de pesquisa. Durante
as leituras, que envolviam ainda teses e dissertações sobre intérpretes “menos
famosos”, algumas em especial nos deram a deixa para a ideia central da tese que
agora apresentamos.
Destacamos desse conjunto duas delas. A primeira, de Rebeca Gontijo,
sobre o historiador Capistrano de Abreu, levanta a hipótese de que a construção
identitária da personagem envolve dois tipos de exercício de legitimação. O primeiro
coletivo, resultante da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e
intérpretes do historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma tradição
2
Obviamente o personagem fictício se vale de uma leitura às avessas do conceito cunhado por
Sérgio Buarque em seu livro de estreia. A constituição desse documentário foi devidamente
problematizada em um artigo que aponta o filme como sendo a materialização imagética de um texto
biográfico de 1979, “Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, escrito por
Maria Amélia Buarque de Holanda para o lançamento da edição venezuelana de “Visão do Paraíso”.
Sua conclusão é que, dotados, ambos, de um modo de narrar tradicional e cronológico, acabam por
monumentalizar o sujeito biografado com o intuito de impor um sentido unívoco ao devir da memória
de Sérgio Buarque. CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história:
modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. In: Revista Ágora (Vitória),
v. 7, pp. 1-20, 2011.
4

intelectual. O outro individual, correspondendo às investidas feitas pelo próprio


Capistrano a partir de determinadas circunstâncias, por meio das quais ele constitui
a si mesmo como indivíduo e como intelectual.3
A segunda, de Giselle Martins Venâncio, intitula-se "Na trama do arquivo:
a trajetória de Oliveira Vianna”. Para a autora, Vianna organizou, ao longo de sua
vida, um arquivo e uma biblioteca pessoal nos quais ordenou os acontecimentos que
balizaram a sua trajetória, estabelecendo coerências, construindo continuidades e
linearidades, visando, de certa forma, legar um “esboço” de sua própria biografia.
Nesse sentido, seu arquivo privado e sua biblioteca pessoal sugerem uma escrita
autobiográfica, apontando para a “fabricação” de uma memória postumamente
elaborada por seus herdeiros intelectuais. 4
Frente a esses exemplos, a pergunta que nos surgiu à época era pensar
por que tantos intelectuais se tornaram objetos de estudo nessa perspectiva e
Sérgio Buarque de Holanda não, já que tinha organizado assim como os demais, um
arquivo pessoal e uma biblioteca privada? 5 E mais, por que essa exposição linear de
sua vida jamais recebeu um outro tratamento?
Arriscamos dizer que há uma espécie de “obsessão comemorativa” em
torno da figura de Sérgio Buarque e de seus escritos, fenômeno iniciado ainda na
década de 1980 e sem prazo de validade. Apenas durante o tempo de nossa
passagem pelo curso de doutorado, iniciado em 2010, vieram à público mais de uma
dezena de títulos6, alguns relançamentos e outros sobre a obra do historiador, sem
3
Essa tese encontra-se publicada com a seguinte referência: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano.
Capistrano de Abreu (1853-1927): memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013.
4
VENÂNCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna. Tese
(Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, 2003.
5
Dentre alguns trabalhos podemos citar: PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado doutor, querido amigo,
caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em História, Florianópolis, 2009; LEMOS, Clarice Caldini. Os bastiões da nacionalidade:
nação e nacionalismo nas obras de Elysio de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação
em História, Florianópolis, 2010.
6
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010; ______. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; ______. Monções e Capítulos de Expansão
Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014;______. O Homem Cordial (Coleção Grandes
ideias). São Paulo: Penguin, 2012; ______. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2015; MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:
correspondência. São Paulo, SP: Companhia das Letras: USP/Instituto de Estudos Brasileiros:
EDUSP, 2012; MARRAS, Stelio (org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, SP:
EDUSP: Instituto de Estudos Brasileiros, 2012; EUGENIO, João Kennedy. Ritmo Espontâneo:
organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Terezina: EDUFPI, 2011; COSTA,
5

contar artigos científicos, reportagens, matérias jornalísticas, etc. Uma delas, aliás,
aponta que “novas edições dos livros de Sérgio Buarque e mais obras sobre o crítico
literário e historiador estão previstas para sair em breve”, dentre elas uma biografia
assinada por Pedro Meira Monteiro, que ainda trabalha ao lado de Lilia Schwarcz, na
confecção de outra edição crítica e anotada de "Raízes do Brasil". Afinal, “se
Monções mereceu uma edição caprichada ao completar 70 anos, as oito décadas do
clássico mais clássico de um dos mais importantes pensadores brasileiros são um
bom pretexto para conhecer ou passar em revista sua vida e obra”. 7
Em resumo, o bastão vai sendo passado de uma geração antiga para
uma nova de professores universitários, muitas vezes “altaneiros e impossíveis de
compreender, contratados por comissões, ansiosos por agradar a vários
patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma
autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os
não especialistas”.8
Relevante na “versão oficial" é o fato de Sérgio Buarque ter se
transformado em um personagem atemporal, elevado sempre ao posto de “o maior
de todos os tempos” e descolado de outros intérpretes de sua geração, a exemplo
de Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, mas que como
eles imputava aos nossos pais colonizadores "o desacerto entre ideias e instituições
políticas e a condição do brasileiro (…) trazendo de Portugal para cá os resquícios
da organizarão feudal e, sobretudo, povo mestiço servindo de ponte entre a Europa
e a África. Pouco europeu”. Além da interpretação crítica ao liberalismo, Sérgio se
insere no rol daqueles, cujas obras se utilizavam de imagens de forte poder
persuasivo, construídos com metáforas e outras figuras de linguagem, "de fácil
assimilação e que ponteiam de forma abundante suas análises", dando título a livros

Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos. São Paulo, SP: Editora da UNESP:
Fundação Perseu Abramo, 2011. 2v; MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda:
encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna:
crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-
Unifesp, 2014; BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.
7
PIVETTA, Marcus. Monções (quase reescrito), Pesquisa FAPESP, n. 230, abril 2015, p. 79.
Enquanto revisamos o texto final da tese, acaba de ser lançado outro livro que tem Sérgio como
personagem. Trata-se de uma abordagem voltada para a crítica e história literária, de autoria de
Antônio Arnoni Prado, intitulada, “Dois letrados e o Brasil nação: a obra crítica de Oliveira Lima e
Sérgio Buarque de Holanda". São Paulo: Editora 34, 2015.
8
JACOBY, Russell. Os Ú́ltimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. p. 9.
6

como “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, ”Raízes do Brasil", "Evolução Política do


Brasil", de Caio Prado Júnior e "Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre. 9
Visto assim, Sérgio Buarque passaria imune a quaisquer tipos de
divergências, pessoal, ideológica ou acadêmica, não raras nos meios intelectuais
dos quais fazia parte. Explicação de alguns autores, quando silenciam de sua
biografia uma participação mais efetiva nas esferas do estado varguista, como se
fosse demérito, mencionando apenas pelo alto sua passagem por órgãos de cultura,
destino de tantos modernistas de sua geração, e não economizando loas, por
exemplo, à sua imagem projetada a posteriori de "intelectual combativo e signatário
da Declaração de princípios contra a ditadura de Getúlio Vargas”. 10
Além de contestador, Sérgio Buarque também passou para a memória
como um dos intérpretes ligados à nossa “moderna historiografia”, surgida com o
"sopro de radicalismo intelectual" que eclodiu logo após a chegada de Vargas ao
poder e que não teria, apesar de tudo, “sido abafada pela ditadura do Estado Novo”.
Em pesquisa sobre a história da historiografia no Brasil das décadas de 1940 a
1960, Rebeca Gontijo e Fábio Franzini problematizaram a memória que formou esse
ideal moderno. Para eles, não há dúvidas de que o famoso prefácio de Antonio
Candido à quinta edição de "Raízes do Brasil", escrito em 1969, é o marco inaugural
de uma nova visão a respeito desses intérpretes, na qual o livro de Sérgio assume
lugar de destaque justamente ao lado de Casa Grande & Senzala (1933), de
Gilberto Freyre e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado
Júnior”.11

9
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10. Para a autora,
intelectuais como Paulo Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, em particular, e
bem mais tarde Darcy Ribeiro, podiam ignorar ou até polemizar com as ideias e o projeto político de
Oliveira Vianna, visto como conservador, racista, autoritário, sem no entanto, deixarem de se nutrir na
mesma fonte e estruturarem suas análises, embora com ênfases e matrizes diversos, nas mesmas
hipóteses explicativas para a situação do Brasil nos anos 1920 e 1930”. pp. 10-11.
10
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. ______. (org.). Sérgio
Buarque de Holanda: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 8.
11
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de
uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al. ) Mitos, Projetos e Práticas
Políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Não por acaso, a
apresentação da última edição de Raízes do Brasil (2015) traz o seguinte texto: "Nunca será
demasiado reafirmar que 'Raízes do Brasil' inscreve-se como uma das verdadeiras obras fundadoras
da moderna historiografia e ciências sociais brasileiras. (…) E as novas gerações de historiadores
continuam encontrando, nela, uma fonte inspiradora de inesgotável vitalidade. Todas essas
qualidades reunidas fizeram deste livro, com razão, no dizer de Antonio Candido, "um clássico de
n a s c e n ç a ” . D i s p o n í v e l e m : http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13938.
Acessado em 29 de abril de 2015.
7

De testemunho de uma geração que sofreu os impactos desses autores


durante a formação secundária e universitária, o prefácio, que se tornou
independente do livro, foi apropriado em muitos casos de maneira acrítica, e o que
“nele era memória se cristalizou em história, do que decorreu uma canonização,
ainda que informal daqueles livros e autores que supostamente haviam marcado a
sua geração, ou ao menos, da qual ele fazia parte”. 12
Não por acaso, na década de 1970 durante o auge da repressão militar,
encontrarmos intérpretes como Francisco de Oliveira Vianna, Alberto Torres,
Francisco Campos e Azevedo Amaral, todos eles contemporâneos da tríade, sendo
rotulados como conservadores, direitistas, autoritários, racistas - em suma,
merecedores de pouco crédito.13 Time ao qual veio se juntar Gilberto Freyre,
também mandado às favas por seus posicionamentos favoráveis aos militares
brasileiros e ao salazarismo português e após passar pelo tribunal dos sociólogos da
Universidade de São Paulo, liderados por Florestan Fernandes, que o acusaram de
ter amaciado demasiadamente as violentas relações entre senhores e escravos.
Imagem que restou, mesmo que hoje saibamos que todos esses
intérpretes, incluindo os “modernos”, se dobraram, por exemplo, ao determinismo
mesológico: “o espaço incerto ocupado por Portugal, pouco definido entre a Europa
e a África, teria moldado o físico e o caráter do colonizador, fazendo que, em terras
do novo continente, esse homem passasse a sofrer o peso das condições adversas
dos trópicos". Em suma, como ensinou Maria Stella Bresciani, o determinismo do
meio ambiente aparece com maior ou menor ênfase nas explicações dos fracassos
e sucessos do colonizador e forma um lugar-comum no qual os estudiosos se
encontram”.14
Sérgio não só escapou ileso a essas disputas ideológicas, como também
foi elevado ao grau máximo de toda uma geração e a modelo exemplar de
intelectual. Na época em que foi agraciado com o troféu Juca Pato, concedido pela
União Brasileira de Escritores por suas "Tentativas de Mitologia” (1979), por
exemplo, Antonio Candido escreveu uma resenha da obra deixando clara a imagem
que gostaria de deixar para o futuro: “Por tudo isso, quem votou este ano em Sérgio
Buarque de Holanda (…) acertou em cheio, pois consagrou um intelectual que
apresenta não apenas a eminência específica requerida, mas que possui também as
12
Idem, p. 157.
13
BRESCIANI, op.cit., p 9.
14
Idem, pp. 12-13.
8

qualidades humanas que o tornam modelar como inspiração para os outros. Um


verdadeiro mestre, portanto”.15
Desde então, a partir da morte de Sérgio Buarque, essa versão passou
por constantes (re)atualizações, dado o momento político do país, “de ressaca
revolucionária” e os seus reflexos no campo historiográfico que expunham o ocaso
dos grandes modelos explicativos de base marxista, abrindo o campo disciplinar às
novas possibilidades de pesquisa, dentre as quais a retomada dos “clássicos" à luz
da chamada “nova história cultural”. 16 Nesse sentido Françoise Waquet deixa claro
que “o mestre não existe em si (quaisquer que sejam sua ciência e seu talento), é
criação do discípulo e a posteriori”, numa fusão de rememoração e construção
intelectual para formar uma imagem que transcende os fatos sobre os quais se
funda”.17
Não é por acaso, portanto, que os anos 1980 marcaram definitivamente
uma tendência de consagração, compilação e de primeiros estudos da obra
buarqueana, continuada na década seguinte e animada de modo particular por
Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, José Sebastião Witter e Maria Odila
L. da S. Dias, que como se percebe foram responsáveis por alguns textos que
ajudaram a traçar o perfil oficial do mestre-amigo. 18
Apenas no final da década de 1990 é que as narrativas testemunhais e
celebrativas perdem força em detrimento de estudos mais críticos e sistemáticos,
mas não menos entusiasmados, resultantes de pesquisas desenvolvidas em

15
CANDIDO, Antonio. As Tentativas de Mitologia de Sérgio Buarque de Holanda. O Escritor. Jornal
da UBE, n. 100, outubro de 2002, p. 24.
16
Refiro-me a influência que teve no país os volumes organizados por Pierre Nora e Jacque Le Goff,
Faire de l'histoire. Paris: Gallimard, c1974. 3v. (Collection folio/histoire). Bons exemplos da influência
de Sérgio Buarque na historiografia dos anos 1980, sobretudo a produzida na USP são: SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São
Paulo: Brasiliense, 1983; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Por um outro viés, podemos afirmar ainda que “na historiografia dos anos 1980, a revolução passou
por uma profunda revisão e as questões pertinentes ao contexto dos anos 1960 perderam a sua força
de atração”. DECCA, Edgar S. de. A revolução acabou…Prefácio à 5ª edição. O Silêncio dos
Vencidos: história, memória e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28.
17
WAQUET, Françoise. Os Filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do século
XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. p. 28.
18
Dentre os principais trabalhos destacam-se: CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlin e depois. In:
Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Vol.1 número 3, páginas 4 a 9, julho de 1982; DIAS, Maria
Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. Coleção Grandes Cientistas
Sociais. São Paulo: Ática, 1985; NOGUEIRA, Arlinda (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida e
obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988; CANDIDO,
Antonio. (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 1998.
9

diversos programas de pós-graduação ou a partir das publicações póstumas de


textos avulsos de Sérgio, entendidos como fontes, que visam ampliar a possibilidade
de outras leituras de seu percurso. Parte delas motivadas pela consulta a biblioteca
e ao arquivo pessoal19 do historiador, fazendo com que ele continuasse a ser objeto
de debates e tema de novas produções acadêmicas. 20
O propósito desta tese, portanto, é expor em primeiro plano a história da
memória de Sérgio Buarque de Holanda, construída a partir de sua morte,
percebendo por meio do recorte cronológico instituído por essa memória, os
silenciamentos impostos à trajetória desse intelectual. Nesse sentido, o foco é
lançado sobre um grupo específico de professores e acadêmicos que ainda hoje
detém o que chamaremos aqui de “monopólio da memória”; em outras palavras, a
permissão que lhes foi concedida pela família do morto, com base em relações de
amizade, de forjarem, por meio de seus testemunhos e publicações, uma versão
biográfica oficial da personagem, transmitida por espaços de consagração, como a
Universidade de São Paulo-USP e inscrita em lugares de memória como a biblioteca
e o arquivo.
Dito de outra forma, a versão oficial que apreendemos a partir de nossa
pesquisa é a que canonizou definitivamente Sérgio Buarque de Holanda nos campos
disciplinares da história e da crítica literária, visto que não há em torno de seu nome

19
Utilizo aqui a noção de “arquivos pessoais” como conjuntos documentais resultantes de uma série
de gestos e práticas, conformados pelos titulares, mas também por seus colaboradores, familiares e
herdeiros, e disponibilizados por meio de estruturas institucionais que os “produzem" como fontes.
HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de
Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. p. 74.
20
Como exemplos temos: CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Raízes do Brasil, 1936: tradição,
cultura e vida. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas; CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Outros lados:
Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940). 2003. Tese (doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP;
MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos
em Raízes do Brasil. Campinas/SP: UNICAMP: FAPESP, 1999; ______. Mário de Andrade e
Sérgio Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: USP/Instituto
de Estudos Brasileiros: EDUSP, 2012; WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste: a fronteira na obra
de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000; PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.).
Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005;
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EDUSP, 2008;______. Alegoria Moderna: A Crítica Literária de
Sérgio Buarque de Holanda. 1. ed. São Paulo: Unifesp; FAPESP, 2014; EUGENIO, João Kennedy.
Ritmo Espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina:
EDUFPI, 2011; MORAES, Ricardo Gaiotto de. Críticas Cruzadas: Mário de Andrade e Sérgio
Buarque de Holanda. 2014. 177 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de
história do império. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010; _______. Monções e Capítulos de
Expansão Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
10

uma memória em disputa. Iniciada por ele próprio ao “arquivar a própria vida” e
desenvolvida por esse grupo de amigos a partir da década de 1980, essa narrativa
primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de mestre,
com viés político à esquerda e a partir de um recorte cronológico específico,
predominando nessa complexa operação, além dos atos de poder, o fatalismo
biográfico. Em suma, se deu a Sérgio uma vida modelar, vista a partir de
celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos, que
(re)atualizam no tempo a imagem consensual que querem postergada.
Isto posto, entendemos que houve por parte desse grupo e da família da
personagem uma ativação memorial visando, de alguma forma, ao controle do seu
passado biográfico (e, portanto, do presente, daquilo que pode ou não ser dito e
daquilo que deve ser silenciado). Por essa perspectiva, reformular o passado em
função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar
a materialidade em que essa memória particular se expressa (do nome de rua às
comemorações, exposição de objetos, montagem de arquivo e biblioteca,
publicações póstumas…). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que
a gere(m) e controla(m).21
A memória histórica que se criou em torno de Sérgio Buarque de Holanda
pode também ser entendida a partir do que apontou o historiador português
Fernando Catroga. De acordo com ele, o conteúdo da memória é inseparável dos
seus campos de objetivação (linguagem, imagens, relíquias, lugares, escritas,
monumentos) e dos ritos que as produzem e transmitem, demonstrando que ela
nunca se desenvolverá no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e
simbólicos de memórias.22 Partindo dessas constatações defendemos a ideia de que
é possível perceber quais foram os campos de materialidade/objetivação e quais
foram os ritos que produziram essa “memória oficial” acerca do cultuado historiador.
Desse modo, consideramos para essa análise os seguintes itens: 1) as publicações
que indicam traços biográficos, organizada por pares; em suma, aquilo que virou
historiografia/fortuna crítica; 2) os discursos, as homenagens póstumas e os eventos
comemorativos; 3) a compra de sua biblioteca e a montagem do Fundo Sérgio
Buarque de Holanda.
21
SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 42.
22
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 23.
Col. Opúsculos.
11

De modo geral, as discussões no campo da memória vêm avançado


bastante nas últimas décadas e têm trazido não apenas aos pesquisadores, mas
também ao conjunto da sociedade, reflexões cada vez mais instigantes sobre os
usos e apropriações do passado. Grosso modo, foi a partir de meados da década de
1970 que a noção de “memória coletiva” consagrada por Maurice Halbwachs 23,
conheceu um novo surto. Na França, por exemplo, no trabalho coletivo iniciado por
Pierre Nora, "Os lugares de memória”24, aparece a noção de sociedades memoriais
para descrever as nossas sociedades contemporâneas invadidas por memórias
múltiplas.
Nora retoma e apropria-se das ideias básicas de Halbwachs - a oposição
que estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre
memória coletiva e história - as opondo ainda mais radicalmente. À memória
coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontânea,
desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil
para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui
um processo interessado, político, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo
sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história
é uma atividade da escrita, organizando e unificando numa totalidade sistematizada
as diferentes lacunas.
Hoje é impossível operar uma distinção clara entre memória coletiva e
memória histórica pois, segundo Nora, a primeira passa necessariamente pela
história, é filtrada por ela; é impossível à memória escapar contemporaneamente
dos procedimentos históricos. Assistimos hoje, de acordo com o autor, ao fim das
“sociedades-memórias”, e o que evidenciamos como uma revalorização retórica da
memória esconde, na verdade, um vazio. “Fala-se tanto de memória precisamente
porque ela não existe mais”.25
Em seu famoso texto "Entre mémoire et histoire” Nora organiza uma
rígida dicotomia entre essas duas noções. A memória seria a tradição vivida e a sua
atualização no eterno presente seria espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a
história, pelo contrário, uma operação profana, uma reconstrução intelectual sempre
problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação
23
HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris, PUF, 1950.
24
NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris, Gallimard, Coll. Bibliothèque illustrée des histoires, 3
tomes, 1984-1992.
25
SEIXAS, op.cit., p. 40; NORA, Pierre. Entre mémoire e histoire. La problemátique des lieux. In:
______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La République. Paris: Gallimard, 1984.
12

sistematizada e crítica do passado. A memória tece vínculos com a tradição e o


mundo pré-industrial, a história com a modernidade; neste sentido, a história-
memória é sobretudo conservadora; a história crítica, subversiva e iconoclasta. Tudo
aquilo a que chamamos hoje de memória, conclui, já não o é, já é história. 26
A memória encontra-se assim, prisioneira da história, transformou-se em
seu objeto e trama, em memória historicizada. De acordo com Jacy Alves de Seixas,
esta contemporânea apropriação da memória pela história resultou em dois efeitos
importantes. O primeiro é a sua extrema operacionalidade e produtividade. É o
“frenesi de memória” das últimas décadas, fenômeno novo e salutar, que está na
raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de
novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsável pelo “resgate" de
experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras
ou na periferia da história oficial ou dominante e pelo aparecimento de novas noções
como as de “memórias subterrâneas", "lembranças dissidentes", "lembranças
proibidas", "memórias enquadradas", "memórias silenciadas”. 27
O segundo efeito, que se entrelaça com o primeiro, diz respeito a
questionamentos até há pouco considerados pela historiografia, quais sejam: a
dimensão afetiva e descontínua das experiências humanas, sociais e políticas; a
função criativa inscrita na memória de atualização do passado lançando-se em
direção ao futuro, que se reinveste dessa forma de toda a carga afetiva atribuída
comumente às utopias e aos mitos. Dito de outro modo, a autora busca refletir sobre
as relações entre memória e história, atribuindo a necessidade de se iluminar a
memória também a partir de seu próprios refletores e prismas. Necessário, portanto,
segundo ela, incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e
sensibilidade na história quanto na memória involuntária. Necessário, igualmente,
nos atentarmos para o movimento próprio à memória humana, ou seja, o tempo-

26
NORA, op.cit., p. xix-xx; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain
François (et.al). Campinas: SP: Editora Unicamp, 2007. Em especial o sub-capítulo “Pierre Nora:
insólitos lugares de memória. pp. 412-421.
27
SEIXAS, op.cit. p. 43; VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva. Alguns elementos de
reflexão. Patrimônio e Memória, vol. 3, n. 1, 2007, p. 8. Exemplo bastante conhecido é o texto de
Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio” , Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n°3,
1989, pp. 3-15. Essas disputas pela memória, que incluem a historiografia, levou à formação em
2013, de um grupo de discussão e pesquisa coordenado pelo professor Edgar de Decca, intitulado
“Historiografia, conflito e memória”, no qual entre outros pontos, se propõe reavaliar as competências
do discurso histórico produzido na universidade e seus confrontos com o campo das memórias
coletivas desses novos sujeitos sociais emergentes. Segundo a autora, a expressão “frenesi de
memória” é autoria de Arno Mayer e está contida no artigo “Les pièges du souvenier, Esprit, nº 7, jul.,
1993. pp. 45-59.
13

espaço no qual ela se move e o decorrente caráter de atualização inscrito em todo


percurso da memória.28
Partindo dessas reflexões, Seixas nos chama a atenção para duas
questões muito atuais, quais sejam, a relação entre memória e ética e a função
utópica e mítica desempenhada pela memória. A primeira questão foi colocada em
pauta nas últimas décadas e coincide com acontecimentos históricos como a
implosão da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a explosão da ex-
Iugoslávia, o fim do Apartheid na África do Sul e outros. Segundo a autora, é do
interior desse caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções, que memórias
diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam reconhecimento,
visibilidade e articulação, respondendo a uma necessidade que a racionalidade
histórica é impotente para exprimir, “atualizando no presente vivências remotas
(revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em direção ao
futuro.29
A segunda questão parte da hipótese de que esse “frenesi de memória”
assistido hoje, represente o contraponto à timidez, recuo ou crise das utopias
racionalistas, particularmente sensível nas três últimas décadas do século XX. Ou
seja, “não mais as utopias, mas a(s) memória(s) estaria(m) apontando os lugares de
realização histórica. Nesse sentido, os discursos e as manifestações poderosas da
memória se colocariam atualmente à história como uma “palavra de oráculo”,
cumprindo funções que até recentemente (a década de 1960, provavelmente) as
utopias históricas preenchiam. Assim, conclui a autora, "o sonhar coletivo e
28
SEIXAS, idem., pp. 44-45. A ideia de “memória involuntária” (aquela que existe fora de nós, inscrita
nos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos, nos arquivos,
nas comemorações, nos artefatos e nos lugares mais variados) proposta pela autora se dá com base
na leituras de Henri Bergson e Marcel Proust. Partindo deles, Seixas contrapõe essa noção à de
“memória voluntária, que deixa escapar toda a dimensão afetiva e descontínua da vida e da ação dos
homens. Para ela, a “observação proustiana é de tal modo instigante para o historiador que, de
imediato impõem-se algumas considerações de ordem historiográfica. A primeira delas parte de uma
constatação: (…) a historiografia elegeu a memória voluntária, desqualificando a memória involuntária
tida como constitutiva de um terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história”. Em
seguida faz o seguinte questionamento: será esse procedimento ainda hoje pertinente e fecundo? A
resposta é negativa, porque é justamente essa dimensão afetiva e descontínua relegada pela
memória, a sua dimensão exilada, que parte das ciências humanas tem buscado precisamente
integrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas, da imaginação e do
imaginário na história. Seixas conclui sua crítica afirmando que, “mesmo a noção de resgate ou de
recuperação da memória dos excluídos e dos vencidos na história (…) na verdade, aplica-se apenas
se referida à memória voluntária. (…) Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tem
presenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções,
frequentemente avessa às clivagens ideológicas e políticas tradicionais. Memórias que parecem
emergir, irromper de um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente concebido,
contra todas as evidências, segundo os cânones da ideologia do progresso”. pp. 47-48.
29
Ibidem, p. 53.
14

individual sem o qual não há ação possível, o lançar-se coletivamente em direção a


um futuro representado como melhor investir-se-iam não mais nas utopias históricas,
mas valer-se-iam da memória para projetar-se e atar passado e futuro”. 30
Além da problemática da memória, essa tese também dialoga com a
chamada “História Intelectual" ou "História dos Intelectuais” 31, como a designa a
historiografia de tradição francesa, um campo de possibilidades ainda em discussão,
situada nos limites das histórias política, social e cultural. Deste modo, não existe um
consenso entre os autores de como definí-la.
Em meados dos anos 1980, em particular na Europa, como apontou
Marie-Christin Granjon, a percepção sobre o papel dos intelectuais mudou de
direção, possibilitando uma inovação na historiografia dos intelectuais, quando, de
tradicionais juízes de seu próprio engajamento passaram a ser considerados como
um objeto histórico similar a outros, passíveis de serem investigados pelos
especialistas das ciências humanas.
Jean-François Sirinelli, por sua vez, chamou a atenção para o caráter
polissêmico da noção de intelectual e estudou como essa noção se transformou com
o passar do tempo, a partir de duas perspectivas entrelaçadas e ambas presentes
na famosa e polêmica petição "J’accuse!”, publicada em 1898, no diário "L’Aurore
littèraire, artistique, sociale", por Émile Zola em defesa do capitão Alfred Dreyfus. 32
30
Idem, p. 55.
31
Para elaborar essa pequena síntese sobre o assunto, utilizei as seguintes referências:
ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de história intelectual. In: Tempo Social Revista de
Sociologia da USP. São Paulo: USP, v.19, n. 1, jul. 2007. pp. 9-17; BEIRED, José Luis Bendicho.
Vertentes da História Intelectual. In: BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio; GARCIA, Tânia da Costa
(orgs). Cadernos de Seminário de Pesquisa: Cultura e Política nas Américas. Assis: UNESP,
2009. pp. 86-98; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. pp. 194-195; CARVALHO, José Murilo de. História Intelectual no Brasil: a retórica como
chave de leitura. In: Topoi: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social.
Rio de Janeiro: UFRJ, n. 1, 2000. pp. 123-152; CHARTIER, Roger. História Intelectual e História das
Mentalidades: In:_____. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2002. pp. 23-60; DOSSE, François. Biografia Intelectual. In: ____. O Desafio
Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009. pp. 361-403; GRANJON, Marie-Christine.
Une enquête compare sur l’histoire des Intellectuels: sinthèse et perspectives. In: TREBITSCH,
Michel; GRANJON, Marie-Christine (Direc). Pour une histoire compare des intellectuels. Paris:
Editions Complexe; IHTP/CNRS, 1998. pp. 19-36.
32
Como se sabe, este oficial do exército francês de origem judia foi acusado injustamente de traição.
Aqueles que assinaram a petição a seu favor e pediram a revisão do processo “em nome da justiça,
da verdade e contra a razão do Estado” foram chamados de intelectuais. O aparecimento dessa
noção estava vinculado com o posicionamento público dos intelectuais e sua intervenção para alterar
o julgamento do capitão, que os configurava como “intelectuais de esquerda”, defensores de valores
e causas universais. Intelectual, portanto, designa, originalmente, uma vanguarda cultural e política
que ousava desafiar a razão do Estado. (...) Continuando a designar um grupo político, o substantivo
“intelectual” qualifica sobretudo uma atitude e uma maneira de se posicionar no mundo”. Esse breve
histórico foi retirado do livro de Sílvia Cezar Miskulin, Os intelectuais cubanos e a política cultural
da Revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda, 2009, p. 18, mas a referência exata da passagem
15

Uma mais ampla, em que os criadores e mediadores culturais eram os intelectuais, o


que englobava os escritores, jornalistas, professores. A outra, mais estreita, assenta-
se na noção de engajamento, onde o enfoque pode ser os intelectuais que
intervieram na vida das cidades, como por meio da assinatura de manifestos ou
ainda por meio de debates na imprensa.
Dentre as fontes para o estudo da história dos intelectuais, Sirinelli
destaca justamente a importância dos textos impressos, nos quais os intelectuais
têm papel fundamental, desde a gênese, circulação, até sua transmissão para
formar opiniões. Uma história social desses textos exigiria a análise sistemática de
elementos dispersos, conectados com a realidade em que estão inseridos,
possibilitando ao pesquisador reconstruir redes de sociabilidade, entendidas como
uma “ferramenta” explicativa para compreender a organização e a dinâmica do
campo intelectual, com suas amizades e inimizades, vínculos e tomadas de posição.
Mas é somente após a Segunda Guerra Mundial que o modelo do
"intelectual engajado” se torna mais concreto, já que era possível indentificá-lo, por
exemplo, na figura de Jean-Paul Sartre. Não apenas sua obra expressou seu
engajamento, mas sua trajetória também, notou Helenice Rodrigues da Silva, com a
participação de Sartre na luta de resistência aos nazistas, até seu posicionamento
público favorável à independência da Argélia, na guerra de libertação contra a
França (1954-1962)”.33
O escritor tornou-se porta-voz do chamado “terceiro-mundismo” ao pregar
o caráter revolucionário dos movimentos de libertação nacional e justificar, de certo
modo, a violência como meio válido para que o “colonizado” se afirmasse perante o
“colonizador”. O modelo de intelectual engajado personificado pelo filósofo
posicionava-se à esquerda, e, na maioria das vezes, subordinava a produção do
conhecimento e a elaboração de ideias ao político. Em suma, Jean-Paul Sartre
“encarnava a figura do ‘intelectual total’, ou seja, aquele que se posicionava sempre
sobre as mais diversas questões do tempo presente”. 34
Mas se por um lado, o engajamento dos intelectuais europeus do pós-
guerra teve reflexos diretos nas lutas anticoloniais e nas utopias revolucionárias, em
especial após a Revolução Cubana de 1959, por outro, nos Estados Unidos, o que
pode ser lida também na pesquisa de Helenice Rodrigues da Silva, intitulada Fragmentos da
História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002, pp. 15-16.
33
SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual. Entre questionamentos e
perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.
34
Idem, p. 34.
16

houve foi uma inversão e os intelectuais deixaram as ruas dos centros urbanos e as
páginas da imprensa para se institucionalizarem na academia e ocuparem espaços
produtivistas nas revistas especializadas.
Essa é a tese defendida por Russel Jacoby em seu livro "Os Últimos
Intelectuais, a cultura americana na era da academia”, uma crítica violenta ao
ambiente acadêmico departamentalizado dos dias de hoje, conforme o paradoxo
exposto no título. Para Jacoby, “os últimos” expõe o fim dos intelectuais públicos que
buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem,
estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates,
ao mesmo tempo em que também seriam os “novos”, acadêmicos voltados para si
mesmos, para dentro dos muros universitários e que “escrevem uma prosa esotérica
e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança
social”.35
Por fim, a História Intelectual pode ainda ater-se à análise das ideias
políticas ou ampliar-se a um diálogo mais próximo no campo da história cultural. No
primeiro caso, por exemplo, J.G.A. Pocock preocupa-se com o contexto de
elaboração dos vocabulários políticos, ou seja, trata-se de situar os textos no seu
campo específico de ação ou de atividade intelectual, levando em consideração
quem os maneja e com quais objetivos. O autor, então, estabelece uma divisão da
linguagem política em dois níveis: língua (langue) e fala (parole), com o objetivo de
compreender como ambas interagem ao longo do tempo. Assim, por meio dos atos
de fala (speech acts) o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou então
para inová-la mediante a reelaboração dos conceitos do discurso.
No segundo, o historiador Roger Chartier concebe a história intelectual
como sinônimo de história cultural. Propõe um programa crítico tanto da oposição
entre a alta cultura e a cultura popular – que estariam unidas por fenômenos de
circulação e de apropriação – quanto entre criação e consumo, produção e
recepção, sustentando que o sentido da obra também é constituído por meio das
suas interpretações. Em suma, o pesquisador deve investigar a produção intelectual
na sua relação com as outras produções culturais que lhes são contemporâneas, e,
ao mesmo tempo, nas suas relações situadas em outras esferas da totalidade social
(socioeconômica ou política).

35
JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. pp. 9-12.
17

De modo geral, as pesquisas recentes no campo da História Intelectual


vislumbram certas inovações nas análises, nas quais aparecem um tratamento
explícito ao estilo ou a exploração e valores meta-históricos se pensarmos nas
polêmicas levantadas por Hayden White, que configuram os textos, ou a busca de
linguagens, no sentido de Pocock, historicamente construídas e transmitidas de
texto a texto ao longo de extensos períodos históricos. Não raro, hoje também são
as análises por meio das fontes epistolares, dos periódicos culturais, das biografias
intelectuais36 ou dos arquivos privados, portas de entrada bastante convidativas
nesse vasto campo.
Frente ao exposto, o resultado final de nossas reflexões pode ser
acompanhado ao longo de três capítulos. Os dois primeiros, intitulados “Sérgio
Buarque de Holanda: um intelectual entre dois projetos” e “O retorno a São Paulo:
do Museu Paulista à aposentadoria e depois…” visam acompanhar a trajetória
intelectual de Sérgio Buarque de Holanda desde a sua juventude modernista até sua
morte em 24 de abril de 1982.
Embora tenhamos optado pela cronologia imposta pela memória histórica,
nosso intento busca amenizar certas “construções" cristalizadas no tempo por
muitos biógrafos. Nesse sentido, nossa hipótese é a de que Sérgio tenha oscilado
entre “dois projetos” intelectuais não antagônicos: um, de interpretação do Brasil
derivado de sua experiência militante no modernismo e o outro, de divulgação da
História, sem um fim político utópico postulado pela esquerda, concretizado por meio
de algumas de suas publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de
36
A biografia intelectual voltou a ter espaço a partir da década de 1980 quando da publicação do
polêmico "L’illusion biographique”, artigo no qual Pierre Bourdieu criticava a subjetividade de
biografias históricas, segundo ele "capazes exclusivamente de reconstruir a vida de forma artificial,
mesmo absurda: A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram, de
contrabando, no universo erudito”. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 62-63, juin
1986. O amplo debate que se estabeleceu desde então pode ser sintetizado da seguinte forma: “(…)
é importante termos claro que as biografias praticadas por historiadores profissionais não visam a
fazer vir à tona segredos antes escondidos, mas sim compreender historicamente os percursos de
certos personagens, de modo a entender, por exemplo, o funcionamento de determinados
mecanismos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente em grupos e instituições vistas
normalmente como homogêneas, a construção discursiva e não-discursiva dos indivíduos, as
margens de liberdade disponíveis às pessoas em diferentes épocas históricas, entre outras
questões”. SCHMIDT, Benito Bisso. Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia e
ética. História (São Paulo), v. 33, n. 1, jan./jun. 2014. p. 140. Outros trabalhos relevantes para essa
discussão são: BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, v. 10, pp. 83-97, 1997; LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA,
M. de M.; AMADO, J. (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996;
LORIGA, Sabina A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiência
da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998; DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever
uma vida. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo, SP: EDUSP, 2009; PRIORE,
Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009.
18

ensino, pesquisa e memória, a dimensão pública da sua militância, silenciada, para


que fosse enquadrado como um intelectual das esquerdas.
No último capítulo, intitulado “Uma memória para as novas gerações”,
continuamos a descrever a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, só que agora
pela perspectiva da memória e dos lugares em que ela foi inscrita e propagada,
levando em conta o entendimento proposto por Pierre Nora, de que nesses lugares
podemos encontrar suas dimensões material, simbólica e funcional. Nesse sentido,
pudemos vê-lo inscrito em discursos fúnebres, textos memoriais, eventos
acadêmicos, livros, biblioteca e arquivo, um conjunto de lugares de consagração
arquitetados por um grupo específico de intelectuais no intuito de moldá-lo à sua
vontade de memória, atestando em diferentes níveis de intervenção, a versão oficial
forjada pelo próprio Sérgio Buarque.
Apreender a trajetória de um personagem a partir dos papéis que o
possibilitam existir como imagem, fruto da capacidade humana de criar, inventar,
construir, nos obriga a pensar que os arquivos são constituídos, que nascem tanto
das operações de acúmulo e guarda de documentos, de classificação, nomeação,
acondicionamento, de dados conjuntos de documentos, como também das
operações de seleção, separação, ordenamento, distribuição e até mesmo de
atividades de descarte, destruição e adulteração de documentos. O arquivo e o
documento se fabricam, tanto quanto as narrativas que deles se utilizam,
responsáveis por desenhar rostos, perfis, figuras de sujeito, delinear personagens. 37
Por essa perspectiva também, pensar no que foi deixado por Sérgio
Buarque de Holanda nos remete a interrogar sobre a intencionalidade ou não dos
rastros ou traços que deixou o notável escritor. Necessário num debate como esse é
trazer à tona um texto de Durval Albuquerque, que como narrador deu, literalmente e
literariamente, voz aos documentos:

Não há gente que diz que nós documentos somos a garantia de que a alma,
o espírito, o pensamento, as vontades, as aspirações, as esperanças, as
paixões e as ações das pessoas de antanho não venham a morrer? Mesmo
aqueles pobres restos em que nos tornamos, até os simples rastros da
existência que deixamos, guardariam em seu interior pelo menos os rostos
daquele que nos criou e daquele para o qual fomos escritos, fora outros
rostos que mais fugazmente foram em nós figurados. Nós seríamos a sua
cara, teríamos mesmo nas cópias pálidas que nos tornamos o seu jeitão,

37
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e
documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v.
15, n. 26, pp. 7-28, jan.-jun. 2013.
19

permitiríamos vê-lo através de nós. Nós seríamos uma espécie de janela


sobre a qual ao se debruçar se enxergariam os perfis destes homens que o
passado levou. 38

Rastros que remetem ao “inquietante espetáculo que apresenta o


excesso de memória e de esquecimento”. 39 Ao excesso diz respeito parte da fortuna
crítica, textos da década de 1980 que inscreveram na memória histórica uma mística
imagem de Sérgio, na qual a linha do tempo ligava o jovem modernista ao militante
de esquerda, membro fundador do Partido dos Trabalhadores. Quanto àquilo que foi
esquecido, silenciado, uma vez que é próprio desse tipo de memória apagar os
rastros de sua própria constituição, apenas uma leitura às avessas de seus restos e
rastros é capaz de contribuir para que surja no horizonte o vulto de uma personagem
mais humana e assim podermos sugerir de uma vez por todas, “a morte do homem
cordial”.

38
Idem, p. 25.
39
RICOEUR, op.cit.
20

Capítulo 1
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL
"ENTRE DOIS PROJETOS”

No dia 13 de setembro de 2011, por volta das 17 horas, o professor


Antonio Candido conferia a uma plateia atenta, formada por estudantes e docentes,
um testemunho sobre a trajetória de seu grande amigo, Sérgio Buarque de Holanda.
A palestra fazia parte das antecipadas comemorações do cinquentenário do
"Instituto de Estudos Brasileiros”-IEB, fundado em 1962, com a efetiva participação
de ambos. No pequeno espaço do hall de entrada do IEB, localizado na
Universidade de São Paulo-USP, improvisado com cadeiras de plástico e com
muitos ouvintes em pé, o crítico remeteu suas lembranças a um romance de Charles
Dickens, "Uma narrativa de Duas Cidades”. Queria com esse “plágio”, demarcar as
cartografias que teceram as tramas intelectuais do mestre-amigo, surgidas no
modernismo, entre a antiga capital do país e a Pauliceia.
Nascido em São Paulo no ano de 1902, Sérgio Buarque de Holanda se
transferiu com a família para o Rio de Janeiro em 1921, permanecendo na capital
por 35 anos até retornar à terra natal em 1946, restando lá até o fim da vida, em
1982. As lembranças de amigos o colocavam como "ferranhamente paulista", tal
como visto em "Sérgio: anti-cafajeste”, crônica em que Manuel Bandeira dizia ter os
paulistas muitos defeitos, mas nunca o “cafajestismo", típico de cariocas. No
entanto, segundo Antonio Candido, o Rio de Janeiro foi mais importante para a
formação cultural do amigo. Lá, ao lado de nomes importantes como Henri Tronchon
e Henri Hauser, aprimorara o ofício de crítico e desenvolvera o de historiador. Até
que Getúlio Vargas chegasse ao poder em 1930, Sérgio formou-se bacharel em
Direito e atuou como jornalista, constituindo sua rede inicial de relações a partir de
importantes figuras da elite cultural e política, que incluíam figuras do quilate de
Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco Andrade, Afonso Arinos de Melo Franco,
Octávio Tarquínio de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Francisco de Assis Barbosa e,
segundo Candido, o mais chegado de todos eles, Prudente de Moraes, neto.
21

Sem grandes novidades nos temas tratados, a exposição de Antonio


Candido constituiu-se muito mais na oportunidade de ver em atividade um dos
grandes nomes do pensamento social brasileiro. Entre idas e vindas, sua narrativa
sobre a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda pôs em tela uma vida salutar e
singular, cuja juventude modernista o ligava ao "crítico e historiador de alto voo”. 40
Dito de outra maneira, Candido foi mais um escritor, entre outros, a produzir uma
“ilusão biográfica”41 da vida de Sérgio, oferecendo por meio de sua autoridade um
discurso coerente e ordenador da descontinuidade do real, um enredo de
causalidades, símile as hagiografias em que tudo se explicava pela origem, como
uma "vocação", como uma “eleição” ou ainda, como nas vidas da Antiguidade, com
um ethos inicial.
Seguindo uma trilha contrária à lógica de racionalização do passado e de
suas construções essencialistas, esse capítulo propõe uma leitura particular da
trajetória de Sérgio Buarque, diferente um pouco daquela inscrita na memória
histórica e construída pelo próprio personagem e por seus biógrafos após o seu
falecimento, em 1982. Nosso esforço sugere que Sérgio Buarque não oscilou entre
"duas cidades”, apenas, mas entre "dois projetos” intelectuais não antagônicos: um,
de interpretação do Brasil derivado de sua experiência militante no modernismo e o
outro, de divulgação da História, concretizado por meio de algumas de suas
publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de ensino, pesquisa e
memória. Em certo sentido, as linhas que seguem visam (re)construir algumas redes
de sociabilidade42 tecidas por Sérgio Buarque, consideradas essenciais para que ele
pusesse, em prática e com êxito, os seus projetos no campo educacional.

1.1 Militância errante no modernismo brasileiro

Em 1990 foi lançado no Brasil um importante ensaio do professor


estadunidense Russell Jacoby (1945-), intitulado "Os últimos intelectuais: a cultura
americana na era da academia”. 43 Nele, entre os instigantes temas tratados, Jacoby
tecia severas críticas ao modelo academicizante imposto aos intelectuais, que
40
CANDIDO, Antonio. Entre duas cidades. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque
de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 17.
41
Refiro-me, obviamente, ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique, publicado
em 1986 nas Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72.
42
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2.
ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
22

durante o pós-guerra começavam a migrar do espaço público das ruas, dos boêmios
bairros novaiorquinos, para institucionalizarem-se nos muitos campi abertos nos
subúrbios de diversas cidades. Nesse sentido, o título da obra é paradoxal:
"Últimos", na concepção do autor, expõe o fim dos intelectuais públicos ou
publicistas, que buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação,
cuja linguagem, estilo e crítica radical pressupunham um leitor educado, amplo e
sedento por debates, ao mesmo tempo em que apresentava os "últimos" como os
“novos", voltados para si mesmos, para dentro dos muros universitários.
No livro, Jacoby passeia pelas ruas de Greenwich Village, boêmio bairro
de Nova Iorque das primeiras décadas do século XX, quiçá o que significou para a
Faculdade de Filosofia da USP, a região da rua Maria Antonia, “uma rua na
contramão”, como aponta o sugestivo título de um livro/documento organizado por
Maria Cecília L. dos Santos. 44 Para os padrões franceses seria o mesmo que as ruas
d o Quartier Latin, em Paris. No auge de Village, raramente os intelectuais eram
professores universitários. No geral eram escritores, polemistas, artistas, críticos que
utilizavam os espaços dos jornais e periódicos como free-lancers e devido aos
aluguéis baratos, por lá mesmo se estabeleciam, gerando uma ampla rede de
sociabilidade e um profícuo espaço de debate público, tendo a rua como campo de
batalha, tanto de ideias como de sobrevivência.
A mudança radical do centro para os subúrbios não deixou de fora nem
mesmo a esquerda independente americana, que somada aos demais “retirantes"
transformaram-se em professores confinados com uma renda segura, sem nenhum
interesse em lidar com o mundo fora da sala de aula; em suma, indivíduos que
escrevem uma prosa esotérica e bizarra, dirigida principalmente para a promoção
acadêmica e não para a mudança social.
O posicionamento ríspido desse autor à sua própria geração não foi
uníssono e encontrou em Edward Said (1935-2003) certa ressonância. Em uma de
suas conferências de Reith, ministrada na rede BBC, em 1993, o palestino afirmava
serem injustas essas críticas em relação à universidade ou mesmo aos Estados

43
JACOBY, Russell. Os ultimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. Ainda muito atual, o livro foi apresentado em uma
resenha publicada por mim no número 6, ano III da Revista Crítica História, em dezembro de 2012.
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/142/Os%20últimos%20intelectuais.pdf,
acessado em 10 de outubro de 2014.
44
SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel,
1988.
23

Unidos, já que na sua opinião o trabalho do intelectual não era incompatível com o
do acadêmico. Para Said, o intelectual não representa um ícone de tipo estátua, mas
uma vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz
empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade uma porção de questões,
todas elas relacionadas, ao fim das contas, com uma combinação de esclarecimento
e emancipação ou liberdade. Concluía afirmando: "A ameaça específica ao
intelectual hoje não é a academia nem os subúrbios, nem o comercialismo
estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que chama de
profissionalismo”.45 Dito de outro modo, o trabalho intelectual como alguma coisa
que se faz para ganhar a vida entre nove da manhã e cinco da tarde, "com um olho
no relógio e o outro no que é considerado um comportamento apropriado,
profissional – não entornar o caldo, não sair dos paradigmas, tornando-se assim,
comercializável e, acima de tudo, apresentável, não controverso, apolítico e
objetivo”.46
Trazidas para o contexto cultural brasileiro, tanto a perspectiva crítica de
Jacoby, quanto a ressonância exposta por Said nos parecem válidas para
pensarmos a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda. Primeiro, porque ele
atravessou grande parte do século XX e viveu experiências símiles. Boêmio
confesso, Sérgio não abriu mão do uísque e nem dos cigarros até os últimos dias de
vida, militou no modernismo e deixou marcada nas páginas da imprensa “aquela
mudança dos ventos" vivida na juventude em pelo menos três aspectos: a
necessidade do contato dos nossos escritores com outras tradições de cultura que
nos livrassem do peso da matriz portuguesa, a urgência em pesquisar a nossa
originalidade artístico-literária e a abertura para a renovação das formas que
chegavam com a modernidade.47
Em segundo lugar, Sérgio foi crítico ferrenho dos rumos tomados pelos
modernismos, paulista e carioca, posição que deixou clara no seu famoso texto de
1926, "O lado oposto e outros lados”. Pouco depois viajou para a Alemanha como
jornalista e quando retornou ao Rio de Janeiro em 1931, institucionalizou-se em
diferentes órgãos de cultura durante o governo Vargas. Retornando a São Paulo

45
SAID, Edward. Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993. Sa o ̃ Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p. 75.
46
Idem.
47
PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio e Mário: um diálogo entre críticos. In: MARRAS, Stelio (org.).
Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 79.
24

após a queda do ditador, dirigiu o Museu Paulista e se efetivou na Universidade de


São Paulo, vindo a se aposentar em 1969.
Como apontou Said, o trabalho intelectual poderia conviver muito bem
com o acadêmico. No caso de Sérgio isso nos parece concreto. A institucionalização
serviu para ele consolidar a sua rede de sociabilidade e colocar em prática os seus
projetos no campo de expansão do conhecimento histórico, que passavam por uma
compreensão do Brasil e pela sua divulgação em todos os níveis. Sua aposentadoria
é lembrada sobretudo como um ato político, uma resposta ao AI-5, o que não
devemos negar. Em entrevistas Sérgio falou ainda em tempo de serviço com
vencimentos integrais. Todavia, pensando pelas lentes de Jacoby, nos parece
plausível que sua decisão final também tenha passado pela mudança da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, da rua Maria Antonia para o isolamento do subúrbio,
o Butantã, local em que o regime civil-militar pôde atuar de forma mais centralizada,
retirando do espaço público as disputas políticas daquela universidade.
Nesse contexto, Sérgio teria ficado “órfão" dos colegas e amigos
cassados, e, sem o convívio com eles e com a rua, lugar por excelência dos "últimos
intelectuais”, transferiu a boemia para o espaço privado de sua casa no Bairro do
Pacaembú, famoso reduto de festas e encontros políticos, no qual circularam muitas
personalidades do campo cultural brasileiro. Certa vez, comentando o mesmo
período numa entrevista, o historiador Boris Fausto afirmou que durante o AI-5,
enquanto alguns professores foram cassados e tiveram de deixar o país, "Sérgio
Buarque também resolveu se aposentar. Ele não tinha mais nenhum estímulo para
ficar naquele departamento” de História. 48
O sentido linear dado à vida de Sérgio Buarque como hoje conhecemos,
foi construído por ele próprio nas suas "Tentativas de Mitologia”, onde também
expõe pistas de seu baú de memórias, nos trabalhos que publicou, nas entrevistas
que concedeu, etc., e assegurados pela família e pelos amigos mais próximos após
sua morte, por meio de uma série de estratégias institucionais e editoriais – comuns
no universo intelectual e dos homens públicos – vistas, por exemplo, nas
homenagens póstumas, na organização de Seminários, nas publicações de
coletâneas e de textos inéditos, na montagem de arquivos, etc., e que no contexto

48
Entrevista com Boris Fausto. In: MORAES, José Geraldo Vinci; REGO, José Márcio. Conversas
com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 97.
25

das décadas de 1980 e 1990, sustentaram as (re)atualizações de sua memória


histórica.49
Parte dessa narrativa nos permite pensar em um jovem que desde muito
cedo soube captar os “ventos do novo tempo”. Avant la lettre, o prodígio Sérgio
compôs e publicou, com apenas nove anos, na Revista "Tico-Tico" a valsa "Vitória-
Régia", creditada por alguns estudiosos como parte de sua obra. Pouco tempo
depois, o mesmo rótulo valeria para sua participação na militância modernista, como
bem nos lembra uma estudiosa do período: "O fato de não haver participado da
Semana de Arte Moderna, em São Paulo, não tira de Sérgio Buarque de Holanda a
condição de haver sido um modernista avant la lettre".50 Exageros à parte, Sérgio foi
partícipe indelével desse plural movimento, que ultrapassou as fronteiras do eixo
Rio-São Paulo e o marco cívico da "Semana de 22”, como demonstrou Helena
Bonemy ao tratar do modernismo mineiro.51
A intimidade que Sérgio Buarque tinha com as letras já se transformou em
lugar-comum entre aqueles que se debruçaram sobre os significados de sua obra,
tanto crítica, quanto histórica. Todavia, nem só de talento viviam os homens e
mulheres de sua geração. Por esse motivo, tanto as redes de sociabilidade que
estabeleceu, desde o universo familiar, quanto os lugares de onde falou, escreveu e
se instituiu, foram essenciais para a inserção, manutenção e longevidade que teve
no campo intelectual ao longo de toda a vida. A esse respeito, Angela de Castro

49
A ideia de memória histórica é aqui entendida como o produto do pensamento crítico, com uma
linguagem conceitual, abstrata e laica, e com uma função ensinável e utilitária. Diferente, portanto, da
memória coletiva, caracterizada por uma origem anônima e espontânea por ser viva, concreta,
múltipla, imagética e sacral, e por possuir um cariz normativo. Pierre Nora também estabeleceu essas
diferenças. Para esse autor, a memória, vivida e suportada por grupos sociais, é representação
afetiva, em evolução permanente, aberta à dialética entre recordação e esquecimento, insconsciente
de suas deformações e vulnerável a todas as manipulações, sendo ainda suscetível de grandes e
longas latências e de repentinas revitalizações. Ao contrário, a historiografia será uma reconstituição
sempre problemática e incompleta do que já não existe; por isso, constitui uma laicizadora operação
intelectual, assente na análise e na atitude crítica. Para mais detalhes ver: CATROGA, Fernando.
Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre:
EdUFRGS, 2001. pp. 43-69. Vale ressaltar ainda que Catroga opera suas reflexões a partir de
autores clássicos desse campo de debates, dentre os quais podemos citar Maurice Halbwachs, Pierre
Nora, Paul Ricoeur, Paul Connerton, Joël Candau, Jacques Le Goff, Krzystof Pomian, Reinhart
Koselleck, Tzvetan Todorov, Paul Vayne, entre outros. No conjunto de (re)atualizações da memória
histórica de Sérgio ressaltam-se a elaboração de um lugar de memória a partir da compra de sua
biblioteca, a montagem de um arquivo pessoal, a realização das "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, organizadas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, USP e Unicamp, pela
publicação de livros póstumos como "O Extremo Oeste", "Capítulos de Literatura Colonial", "O espírito
e a letra (2 volumes)", "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda" ou coletâneas como "Sérgio Buarque
de Holanda: vida e obra", "Sérgio Buarque de Holanda”, coleção Grandes Cientistas Sociais, etc.
50
PRADO, Antônio Arnoni, op.cit., p. 79.
51
BONEMY, Helena. Guardiães da Razão: os modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.
26

Gomes nos chama atenção para o fato de que "não é tanto a condição de intelectual
que desencadeia uma estratégia de sociabilidade, mas ao contrário, é a participação
numa rede de contatos que demarca a específica inserção de um intelectual no
mundo cultural”.52
E assim foi. Sérgio não teve de viver em quartos baratos de hotéis ou
pensões, não precisou declamar, escrever poemas e nem desenhar caricaturas à
estranhos nas ruas em troca de comida, bebida e alguns tostões. Não precisou
brigar a cada dia pela sobrevivência e, tampouco, foi um intelectual maldito,
daqueles heroificados por um conjunto de características que podiam incluir a
pobreza, a angústia do tempo e a vivência à margem, regadas pelas mais variadas
experiências mundanas, sobretudo as que envolviam drogas e a contestação de
uma certa ordem burguesa. Pelo contrário, de família estruturada, Sérgio estudou
em ótimas escolas paulistanas, vindo a se formar em Direito no Rio de Janeiro, em
1924. Quem lhe abriu as portas da imprensa foi, nada menos, do que Afonso
d’Escragnolle Taunay, amigo de seu pai e seu professor de História no ginásio São
Bento.
"Originalidade Literária", seu primeiro artigo, foi publicado por indicação
de Taunay no jornal "Correio Paulistano", em 22 de abril de 1920, quando contava
apenas dezoito anos. Pouco depois, no mesmo veículo apareceu "Vargas Villa", em
4 de junho, mesmo mês em que registrou nas páginas d’ "A Cigarra" suas
impressões de "Santos Chocano”. Em conjunto, esses escritos de estreia
demonstravam que Sérgio não apenas se interessava pela inserção latino-
americana na cultura brasileira, como também se recusava a aceitar o velho
impasse gerado na Colônia, segundo o qual a emancipação da nossa vida
intelectual só viria com a nossa emancipação política. Por essa lente, Sérgio estava
convencido de que um compromisso prolongado com as bases materiais da vida na
extensão de seus domínios fez brotar na América hispânica um primeiro sintoma de
"originalidade literária” voltado para a integração espiritual com a natureza e a gente
nativa. Coisa muito diferente do que ocorreu ao colonizador português, que, mais
prático que o espanhol, não teve, segundo o crítico, uma "impressão tão sutil da
natureza do Novo Mundo", fato agravado pela circunstância de que as tribos

52
GOMES, Angela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.
Campinas/SP: Mercado das Letras, 2005. p. 13.
27

selvagens que habitavam o nosso território "não podiam inspirar aos dominadores,
em geral incultos e rudes, senão desprezo e ódio”.53
De acordo com Antonio Arnoni Prado, o que tem de mais sugestivo na
abordagem de Sérgio Buarque são as consequências que o autor tira delas, em
especial a ideia de que, se não tivemos no Brasil nenhum poema propriamente
épico, isso se deve ao fato de que a nossa concepção da matéria épica derivava de
fatores muito diversos daqueles então existentes na América espanhola. Avaliação
fundamental para a compreensão posterior de "Raízes do Brasil”. O artigo de estreia
nos mostra como o estilo “gongórico" de Rocha Pita transforma, em 1730 a
produção literária da América portuguesa, num equivalente tropical dos melhores
talentos de Roma e da Grécia clássicas.
Isso, de um lado, nos remete ao "bovarismo" como um dos conceitos-
chave com que Sérgio, mais tarde em "Raízes", vai desenvolver a ambiguidade das
relações do brasileiro com sua própria terra (a sua repulsa à realidade). E, de outro
lado, lança os primeiros germes da interpretação da cultura que, igualmente no livro
de 1936, atribui um valor excessivo ao prestígio universal do talento que, para nós,
não significa, a seu ver, propriamente amor ao pensamento especulativo; antes "à
frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa". 54
Arnoni Prado fala mesmo em sintomas de "consciência da modernidade
anteriores ao modernismo" para se referir à abertura que Sérgio Buarque dava a
integração com o continente americano. É o momento em que Sérgio vai buscar na
colonização urbana da América hispânica um contraponto para o predomínio, no
Brasil, da moral da senzala, "velho apanágio do patriciado rural responsável pela

53
PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo. In: CANDIDO, Antonio. Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1998. Na ocasião Sérgio articulava
essa constatação a um sentimento de americanismo integrador, identificado por ele na épica do
poema "Araucana", do espanhol Ercilla y Zuniga, nas páginas do "Rusticatio Mexicana” (1817) do
padre Rafael Landívar, que ele desdobra na leitura da obra igualmente integradora de um Francisco
Garcia Calderon, de um Santos Chocano ou mesmo de um Vargas Villa. pp. 72-73.
54
Idem, p. 73; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1979. pp. 118-119. Apenas como curiosidade, o historiador português Oliveira Martins (1845-
1894) ao se referir à sua “Biblioteca de Ciências Sociais”, onde publicou a sua "História de Portugal"
(a qual encontramos dois volumes de 1886 na biblioteca de Sérgio Buarque), já afirmava com o
mesmo sentido, nas últimas linhas abaixo, o seguinte: “Tampouco as investigações eruditas se
coadunam à natureza de nossa publicação, destinada a compendiar as conquistas feitas no domínio
da ciência, e não a embarcar-se em empresas de exploração no campo da arqueologia. Por isso o
leitor achará coordenadas e sistematizadas as investigações dos sábios e as doutrinas dos filósofos,
sem ociosas indicações de origens, nem aparato de uma erudição, aliás fácil de exibir, mas que não
convém à índole da publicação, além de que apenas valeria para iludir incautos ou encher de pasmo
os ignorantes”. PONTE, Carmo Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção Temas
Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. p. 18. (Grifo nosso).
28

submissão das cidades aos privilégios dos domínios agrários". Nessa fase pré-
Semana de 22, o jovem crítico vai contrapor o cosmopolitismo afetado de um Rubén
Darío ao nosso espírito de imitação e vai rebater o gosto pela alusão livre ao papel
dos caudilhos e das oligarquias da América Latina. E nisso, o artigo sobre Vargas
Villa, é exemplar como sintoma de um esforço ideológico interessado em definir um
papel literário para a Literatura e a arte de um modo geral. Tudo, segundo Prado,
para encorpar a convicção de que já não era mais possível naquela altura olhar para
esse passado sem a decisão de "estudá-lo com um espírito inteiramente novo,
ousado, irreverente, sem a menor preocupação com o que escreveram homens
como Rocha Pombo e Sílvio Romero".55
Em suma, Sérgio foi um jovem preocupado com os problemas de sua
época, dentre eles a emancipação intelectual do país e a emancipação política do
continente, associando a isso a busca de nossa identidade, como forma capaz de
vencer a nossa dependência externa. Sua crítica também funcionou como uma
espécie de radar da consciência estética que mudava, constituindo-se, aos olhos de
hoje, numa síntese indispensável para a compreensão das relações entre
modernização da linguagem e as transformações radicais que marcaram a
fisionomia de sua época.56
Tratar com maiores detalhes da fase crítica de Sérgio Buarque seria aqui
desvio de rota. Mesmo porque o assunto já foi devidamente esmiuçado por outros
estudiosos e os seus artigos de crítica já estão publicados em alguns livros. 57 Vale
registrar, todavia, que essa faceta do historiador, pensada em um aspecto mais
amplo e aprofundado, só viria a se concretizar a partir da publicação de "O espírito e
a Letra", em 1996, que com seus dois volumes reunia os textos inéditos de crítica

55
PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo, op.cit., p. 74.
56
PRADO, Antonio Arnoni (org). Nota sobre a edição. O espírito e a Letra: estudos de crítica
literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 23.
57
PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a Letra: estudos de crítica literária I-II (1920-1959). São
Paulo: Cia. das Letras, 1996; COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos
(2. vol.). São Paulo: Fundação Perseu Abramo / UNESP, 2011; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria
Moderna: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Tese de Doutorado. Universidade
de São Paulo-USP. Programa de Pós-Graduação em História Social. Há também os estudos do
"Grupo Clíope”, formado em 1994 por ocasião do 46º Congresso Internacional de Americanistas
realizado em Estocolmo e que conta com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como Ettore
Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi, Chiara Vangelista, entre outros, nos campos de história e literatura.
Uma das publicações desse grupo, organizada por Sandra Pesavento intitula-se: Um historiador nas
fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: edUFMG, 2005; e por fim, a
inédita tese de Marcus Vinícius Corrêa Carvalho, defendida em 2003, na Pós-Graduação em História
da Unicamp e intitulada Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política
(1920-1940).
29

publicados por Sérgio na imprensa, entre 1920 e 1959, abrindo as portas para
diversas dissertações e teses em muitas pós-graduações Brasil afora. Até então,
cabia aos pesquisadores vasculharem esse material em bibliotecas públicas, no
arquivo pessoal de Sérgio localizado na Unicamp ou se contentarem com uma parte
deles dispostos nas duas coletâneas publicadas pelo próprio enquanto vivo,
nomeadas "Cobra de Vidro" (1944) e "Tentativas de Mitologia" (1979).
Todavia, é impossível deixar de comentar o conhecimento que o jovem
crítico demonstrava dos autores latino-americanos e das propostas destes, de
emancipação cultural perante a Espanha. Numa passada de olhos rápida por suas
críticas, vislumbramos escritores da virada do século, como o político peruano
Francisco Garcia Calderón (1834-1905), os uruguaios José Henrique Rodó (1872-
1917), autor do clássico "Ariel", Alberto Nin Frias (1878-1937) e o nicaraguense
Rubén Darío (1867-1916). Aliás, sobre este último teceu considerações Perry
Anderson em seu livro sobre "As origens da Pós-Modernidade", confirmando bem
mais tarde o que o jovem crítico já havia registrado. Para Anderson, a criação do
termo "modernismo" para designar um movimento estético se deve ao poeta
nicaraguense que escrevia em um periódico guatemalteco sobre um embate literário
peruano. O início, por Rubén Darío, em 1890, de uma tímida corrente que levou o
nome de "modernismo" inspirou-se em várias escolas francesas (conhecidas
também de Sérgio) – romântica, parnasiana, simbolista – para fazer uma declaração
de independência cultural que desencadeou, naquela década, um movimento de
emancipação das próprias letras espanholas em relação ao passado. 58
Em paralelo ao gosto literário, o jovem Sérgio viveu em uma São Paulo
ainda provinciana, mas em vias de modernização. Seu relato à Maria Amélia, com
quem se casou apenas em 1936, revela em certa medida alguns indícios bem
característicos dessa fase. Suas diversões de garoto se davam, por exemplo, no
andar de bondes, em matinês de cinema, como o Central no Anhangabaú, o Royal
na rua Sebastião Pereira, o High Life no Largo do Arouche ou em caminhadas do
Centro até Perdizes, que cruzavam os brejos do Vale do Pacaembú. No Clube Tiro
35 fez amizade com Fausto de Almeida Prado Penteado, vindo a conhecer seu
primo, Yan de Almeida Prado, de quem guardou por toda a vida uma carta recebida
após a publicação de "Raízes do Brasil". Ainda segundo o seu relato, aprendeu a
dançar no curso de Yvone Daumérie, peregrinando pelos clubes a bailar: no
58
ANDERSON, Perry. As origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 9.
30

Paulistano, no Trianon ou nas “campinadas", maratonas de dança que varavam a


noite em clubes de Campinas.59
Note-se no relato as referências ao moderno por meio do cinema, dos
clubes, do bonde, das danças e ritmos da moda. Por outro lado, podemos vislumbrar
o provincianismo das tranquilas caminhadas, na presença dos brejos do Pacaembú
ou nas idas para o interior em busca de diversão. A esse respeito, é possível afirmar
que o período que compreende as últimas décadas do século XIX até os primeiros
anos do século XX foi tomado por uma série de novas manifestações culturais e
musicais em quase todo o mundo ocidental. Próprias do universo urbano moderno,
elas despontaram fundamentalmente no cotidiano das grandes e médias cidades em
formação.60
Os últimos tempos em que Sérgio Buarque passou em São Paulo foram
fundamentais para que ele estabelecesse parte de suas redes de sociabilidade,
antes de se mudar, por um longo período, para a capital federal. Na Paulicéia
transitou ao lado de Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Antônio Carlos Couto
de Barros, Rubens Borba de Moraes, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Oswald de
Andrade e Mário de Andrade. No ambiente urbano era comum que muitos deles se
encontrassem com certa frequência na Confeitaria Fasoli, mas às vezes também na
Pinoni ou na Vienense.61 Havia ainda o escritório de advocacia do Dr. Estevam de
Almeida, pai dos irmãos Guilherme e Tácito.
Um dos citados, Sérgio Milliet, conta ter conhecido seu homônimo nos
remotos anos de 1920 a 1922. Daquele momento em diante, segundo ele, passaram
a formar um grupo "endiabrado", constituído por uma espécie de "jeunesse dorée"
que juntava boemia e letras naquela cidade ainda provinciana. A respeito dos
amigos relembrou o seguinte "causo": "Ele (Sérgio Buarque) era, já nessa época, um
erudito. Essa erudição, que nos humilhava um pouco, ele a disfarçava, entretanto,
com boa dose de humor e foi como humorista que fingiu de uma feita acreditar na
existência de S.O. Grant, autor da “Cidade dificílima…”. Dizia que o andava
59
HOLANDA, Maria Amélia Buarque de. Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque
de Holanda. Disponível em: http://www.siarq.unicamp.br/sbh/biografia.html. Acessado em 23 de
outubro de 2014.
60
O boom de crescimento e urbanização que transformaria São Paulo numa metrópole moderna foi
estudado por Nicolau Sevcenko em Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
61
No depoimento de Maria Amélia, a Confeitaria Fasoli aparece localizada na Rua São Bento.
Todavia, quem localizava-se nesse endereço, no número 47, era a Pinoni. Ambas, entretanto, além
de oferecer comida e bebida, projetavam filmes. SOUZA, José Inacio de Melo. Imagens do passado:
São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2004.
31

procurando nos sebos britânicos, quando sabia muito bem que a brincadeira
nascera no apartamento de Guilherme de Almeida em noitada divertida, na
companhia de Oswald de Andrade, Rubens Borba e Tácito de Almeida”. 62
Em 1921 a família Buarque de Holanda se muda para o Rio de Janeiro.
Dentre os endereços que moraram, Sérgio se lembra de um na Gávea, na rua
Marquês de São Vicente, uma "casa simpática, antiga, com árvores de fruta e um
riacho no fundo do quintal”. A família ainda morou nas ruas São Salvador, Oitis,
Visconde da Silva, Ipiranga e Maria Angélica. No mesmo ano Sérgio se matriculou
na Faculdade de Direito.
Não foi, o modernista, um estudante assíduo. Preferiu, ao invés de se
dedicar à carreira jurídica, fazer amizades que durariam a eternidade e que foram
muito importantes para a sua consolidação no campo intelectual. O universo urbano
carioca também fez parte de sua formação humanista e autodidata. Ao lado de
Prudente de Moraes, neto, por exemplo, Sérgio Buarque costumava frequentar a
livraria Garnier e as mesas do Café Lamas Restaurante, no Largo do Machado. Na
livraria era comum que se encontrassem com Alberto de Oliveira, Américo Facó,
Jorge Jobim, pai de Tom, mais tarde também seu amigo, ou o poeta Raul de Leoni. 63
No Lamas, apontavam também Afonso Arinos, Gilberto Amado, André Dreyfus e
Renato Palmeira, que em certa ocasião lhe apresentou Candido Portinari, naquela
altura estudante de Belas Artes. Nas tardes, era comum irem ao Bar Nacional, às
vezes ao Brahma. Essa fase boêmia foi recordada com nostalgia por Gilberto
Freyre, logo após a morte de Sérgio, em 1982:

Sérgio, mestre dos mestres. Mas também meu amigo de dias boêmios de
nossa mocidade no Rio de Janeiro. Três amigos desses dias, sempre muito
juntos, fomos ele, Prudente de Moraes, neto, e eu. Boêmios pelo gosto da
música popular brasileira. Da afro-brasileira. Da carioca. Daí, mais de uma
vez amanhecermos, bebendo chope, em bares tradicionalmente cariocas,
ouvindo os para nós brasileiríssimos e como que nossos mestres, além de
amigos, de cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha. 64

62
MILLIET, Sérgio. À margem da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Revista do Brasil. In:
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio
Buarque de Holanda. Artigos e depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 96. É bem possível que um
desses sebos britânicos tenha sido a Livraria Craschley, localizada na Rua Ouvidor, 68.
63
HOLANDA, Maria Amélia Buarque de, Apontamentos… op.cit.
64
FREYRE, Gilberto. Sérgio, Mestre dos Mestres. Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco de
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 117.
32

O próprio Sérgio Buarque, numa entrevista que concedeu à Richard


Graham, legitima as informações. Perguntado sobre a vida carioca, o intelectual
dispara: "Eu entrei para a escola de Direito, mas pouco estudei. Levei uma vida
boêmia, cheia de conversas animadas nas calçadas de cafés, bares, livrarias e
redações de jornal. Conversávamos sobre política, arte, literatura, eventos
internacionais, e nossa vida privada".65
O estilo de vida que os jovens letrados levavam em São Paulo ou na
capital da República não era nenhuma novidade em outros lugares e tempos. Os
cafés, por exemplo, já desempenhavam papel importante na vida intelectual italiana,
francesa e britânica a partir do século XVII. Palestras sobre matemática eram
oferecidas no "Dougla’s" e no "Marine Cofee-House" em Londres, enquanto o
"Child’s" era para livreiros e escritores, o "Will’s" para o poeta John Dryden e seus
amigos, no “Rainbow" se reuniam refugiados e protestantes. Em Paris, o “Procope",
fundado em 1689, servia como ponto de encontro para Diderot e seus amigos. Eram
locais em que circulavam ideias e notícias, novidades literárias, etc., possibilitando,
além dos debates, o surgimento de redes de sociabilidade. 66
Nos primeiros anos no Rio, Sérgio encontrava-se sempre com Ribeiro
Couto que, um dia lhe apresentou Manuel Bandeira, na esquina da avenida Atlântica
com São José. Amizade duradoura. Sobre ele teceu maduras considerações a
respeito de suas poesias, publicadas nos livros "A cinza das horas" (1917) e
"Carnaval" (1919). Segundo Sérgio, em artigo que saiu na revista "Fon-Fon", logo
depois da Semana, em 18 de fevereiro de 1922, foi com Bandeira que pela primeira
vez surgiu uma poesia compreendida como simples capricho, como mera efusão de
um estado lírico, qualquer que ele seja, de modo a definir, entre nós, o aparecimento
de um verbo poético desligado de qualquer plataforma que não fossem
simplesmente a emoção e as palavras.67
Como já assinalamos, os embates intelectuais não se davam apenas no
espaço das ruas, dos bares e cafés. Assim, antes que fundasse com o amigo de
faculdade a Revista "Estética", em 1924, Sérgio, que já havia passado de entusiasta

65
GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982.
66
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003. pp. 50-51.
67
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Manuel Bandeira. In: PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a
Letra: estudos de crítica literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Publicado
originalmente na revista Fon-Fon, em 18 de fevereiro de 1922.
33

a militante de causa, resolveu se responsabilizar pela distribuição do periódico


"Klaxon" no Rio de Janeiro. Era a chave que faltava para que o jovem se firmasse
definitivamente nesse “pequeno mundo” intelectual. Seu principal interlocutor nessa
jornada foi Mário de Andrade.
Recentemente, Pedro Meira Monteiro publicou um livro em que trata das
relações estabelecidas entre os dois modernistas, localizando nos arquivos do
"Instituto de Estudos Brasileiros” da USP e no Arquivo Central da Unicamp, um
conjunto de 31 cartas trocadas por ambos, num recorte que vai de 1922 a 1944. Ou
seja, o material levantado cobria, desde os tempos “heróicos" do modernismo,
quando o jovem Sérgio era um preposto de Klaxon, até o momento em que Mário de
Andrade, já de volta a São Paulo, após uma passagem pelo Rio de Janeiro, entre
1938 e 1941, embrenhou-se pela pesquisa histórica, elegendo o amigo como uma
espécie de consultor nesses assuntos.
As anedotas sobre Graça Aranha e seu iminente rompimento com a
"Academia Brasileira de Letras”, as primeiras reações “conservadoras" dos jornais
cariocas à literatura dos modernos de São Paulo, assim como a proximidade de
Sérgio com Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, são alguns dos tópicos desse
conjunto.68 Para documentar o que foi dito, vale a pena reproduzir alguns trechos
dessas cartas. Em 8 de maio de 1922, Mário de Andrade escrevia o seguinte:

(…) Sei que Klaxon sairá no dia 15 sem falta. É preciso que não te
esqueças de que fazes parte dela. Trabalha pela nossa ideia, que é uma
causa universal e bela, muito alta. Estou à espera dos artigos e dos poemas
que prometeste. E não te esqueças do teu conto. Desejo conhecer-te na
ficção. Espero saída do primeiro número da revista para escrever ao
Ronald, ao Elísio aos amigos todos enfim. É preciso que digas ao Manuel
Bandeira que me lembro sempre muito dele. Recordo-me do Ribeiro Couto.
E, mais uma vez, obrigado.69

Em relação ao documento valem algumas considerações. Além da


precisão da data de lançamento da revista e dos pedidos de lembranças para os
amigos distantes, Mário mostrava-se curioso também com o lado ficcional de Sérgio.
68
MONTEIRO, Pedro Meira. A correspondência entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de
Holanda (1922-1944). In: MARRAS, Stelio (org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São
Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 94; MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade e Sérgio
Buarque de Holanda: correspondência. São Paulo: Companhia das Letras: IEB: EdUSP, 2012.
Klaxon, um dos principais testemunhos do modernismo, surgiu de fato em 15 de maio de 1922 e se
estendeu até dezembro/janeiro de 1922-23.
69
Carta enviada por Mário de Andrade à Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, maio de 1922.
Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências Passivas,
Cp. 20.
34

O conto a que Mário se referia, "Antinous", sairia apenas no número 4 de Klaxon. O


texto é um fragmento narrativo em tom fantasioso e experimental, que satiriza a
reverência pelo grande "Imperador constructor, architecto e artista", Adriano. No
mais, as imagens nele contidas fazem referências a símbolos da modernidade
urbana, como os automóveis, a velocidade, o cinema, a cidade-monstro com seus
edifícios e arranha-céus, as ruas asfaltadas, os boulevards, etc. Olhar anterior,
portanto, daquele que não tarde colocaria o interior do Brasil, seus costumes e sua
gente mestiça no cerne de nossa discussão identitária.
Discussão que, entre as décadas de 1920 e 1950 foi lugar-comum entre
intérpretes dos mais variados segmentos70, mesmo que a memória histórica
insistisse em separá-los por capricho ou rearranjos ideológicos, como bem
demonstra Maria Stella Bresciani em seu estudo sobre Oliveira Vianna, alocado, a
posteriori n o hall dos pensadores autoritários, em detrimento da moderna tríade
formada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior. Nele, a autora nos
possibilita pensar em outra chave, sugerindo que por mais que esses autores se
posicionassem em vertentes diferentes, divergentes até, duas conclusões,
colocadas na maioria das vezes como ponto de partida, definiam o diagnóstico do
Brasil e da condição de ser brasileiro naquela primeira parte do século XX; análises
que, segundo Bresciani, desembocavam em um projeto político mais ou menos bem
delineado.
A primeira conclusão partia da certeza de que as instituições de cunho
liberal, "base da república que se instalara com a Constituição de 1891, pouco
tinham a ver com as condições sociais e o preparo político do povo brasileiro, que se
movimentava mal em meio a elas”.71 Mais de um autor buscou provar o disparate de
o país se reger por formas políticas avançadas, pensadas e elaboradas por
pensadores de nações mais à frente na escala da civilização, “e transpostas para
uma nação regida por formas arcaicas de organização social e econômica, onde a
política e seu arremedo via-se refém das redes de poder local dominadas por
grandes latifundiários”.72
A segunda posição, como já mencionado na introdução, conferia aos
nossos pais colonizadores o desacerto entre ideias e instituições políticas e a
70
Nos referimos aqui a Paulo Prado, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio Prado
Júnior e Sérgio Buarque de Holanda e, um pouco mais tarde, Darcy Ribeiro.
71
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 10.
72
Idem.
35

condição do brasileiro, perspectiva que mais tarde, sobretudo na década de 1970,


irrigou os debates de outras disciplinas, como os estudos literários, em que “nossos
poetas, romancistas, escritores em geral passaram a ser analisados na mesma
chave do desencontro entre instituições e sociedade” até alcançar o lugar em que,
pela teoria marxista, se consolidou nas chamadas “ideias fora do lugar”. 73
Mais tarde ainda, já na década de 1990, Darcy Ribeiro, em "O Povo
Brasileiro”, reiterava novamente a imagem de um povo por vir a ser, sempre
colocado no futuro, sempre em projeção, um projeto. Desse modo, o autor
completava e confirmava essa figura de uma população aprisionada ao passado,
refém da imagem de homens e mulheres inacabados, malformados em sua
condição de cidadãos, fruto desses desacertos institucionais, incapazes, portanto,
de manter as rédeas de seu próprio destino. 74
De volta a Mário e Sérgio, a lembrança do primeiro na carta, para que o
amigo não esquecesse do seu conto, motivava o destinatário a uma atividade que
ele nunca chegou a desenvolver a fundo. O campo da imaginação dimensionado por
Sérgio Buarque, como sabemos, ficaria reservado para a atividade crítica e para
uma narrativa em outro campo, quando mais tarde se notabilizaria como
historiador.75
Em outra carta, logo após o lançamento do primeiro número, Mário
“cobrava" do amigo o empenho necessário para o bom andamento da causa:
"Klaxon segue a via muito bem. Mas precisamos de dinheiro. Recolhe o que
arranjastes por aí e o resultado da venda. Envia-o ao Tácito, tesoureiro". Na
sequência pergunta novamente pelos amigos e lamenta pequenos erros tipográficos
da edição número 3 da revista: "Os amigos como vão? Renato, Manuel Bandeira,
Couto, Ronald, Di? A poesia do Ribeiro Couto saiu lamentavelmente disposta.
Coisas de tipografia, que apesar do cuidado dos rapazes foi impossível consertar".76

73
Ibidem, p. 11. Para uma discussão mais apurada sobre as “ideias fora do lugar” ver: SCHWARZ,
Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo, SP: Duas Cidades: Editora 34, 2012; FRANCO, Maria
Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Caderno de Debates, n. 1. São Paulo: Brasiliense,
1976; PALTI, Elías José. Apêndice. Lugares y no lugares de las ideas en America Latina. In: El
tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. 1.ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, Argentina,
2007.
74
BRESCIANI, op.cit., p. 12.
75
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antinous (Fragmento). In: Klaxon. Mensário de Arte Moderna, São
Paulo, n. 4, 15 de agosto de 1922. pp. 1-2.
76
Carta enviada por Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 20 de julho de
1922. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências
Passivas, Cp. 19.
36

Depois de nove números e da última publicação, em janeiro de 1923, Klaxon


deixou de circular. Os motivos, claro, eram financeiros, já que a revista dependia
exclusivamente das vendas e anuidades e não contava com financiadores. Sérgio,
concomitante às noitadas cariocas e ao trabalho em Klaxon, continuava a sua
atividade de crítico e militante modernista na imprensa, escrevendo semanalmente
para diversos veículos, como "Mundo Literário", "América Brasileira", "Arte Nova",
"Rio Jornal", "Fon-Fon", até que finalmente, em 1924, fundasse a trimestral
“Estética", ao lado do parceiro Prudente de Moraes, neto. A revista seria inspirada
em "The Criterion” (1922-1939), de T. S. Elliot (1888-1965). Menos duradoura que a
anterior, "Estética" veio à público apenas três vezes.
A fase de Sérgio Buarque nessa revista convergiu também com o seu
amadurecimento como crítico e após encerrada mais essa experiência modernista,
ele passa a viver uma espécie de desencanto com os rumos tomados pelo
movimento. Décadas mais tarde ele afirmava que, "eu próprio já me desinteressara
bastante das questões de literatura, e pensava em escrever um livro para o qual
tinha até nome pronto: deveria chamar-se ‘Teoria da América’”.77 A publicação, em
1926, do texto "O lado oposto e outros lados" na "Revista do Brasil", então dirigida
pelo amigo Rodrigo M. Franco de Andrade, aparece para alguns estudiosos de sua
obra crítica como um momento decisivo. É possível, depois de tanto tempo,
perceber naquelas linhas deixadas por Sérgio, esboços de ideias que mais tarde
apareceriam, já mediadas pelas suas leituras alemãs, em "Raízes do Brasil".
Naquele artigo, o autor não poupa “elogios” e manda ao diabo qualquer
diplomacia ao criticar duramente os modernistas academizantes que, juntando
dominar a expressão nacional, nada mais fariam do que impor a sua hierarquia ao
universo das artes, atualizando uma atitute ilustrada que o modernismo pretendera
justamente combater. Por trás do alvo aparente, formado por Ronald de Carvalho e
Guilherme de Almeida, estavam Alceu Amoroso Lima e Graça Aranha. Sérgio
Buarque conclamava seus fantasmas para depois exorcizá-los. "O Lado oposto e
outros lados” traz uma contundente discussão sobre os partidários da ordem, "de um
lado", e os que, desde os "outros lados”, desconfiavam de toda ordenação e
apostavam fundo na espontaneidade, vista como liberdade que os resguardaria de

77
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Apresentação. In: Tentativas de Mitologia. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 29.
37

quaisquer tentações autoritárias.78 Eis o ponto que mais tarde aparecerá de forma
símile no livro de estreia do autor. Em suas palavras:

(…) gente bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nos


impor uma hierarquia, uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez
esse nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo. Carecemos
de uma arte, de uma literatura, de um pensamento enfim, que traduzam um
anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo nessa
panaceia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós
nos agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do
quê? É indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre
nós não é decerto, não pode ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia
e estranha a nós, uma lei morta, que importamos, senão do outro mundo,
pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar buscar esses espartilhos
pra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista dos outros.
O erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é,
por enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito
de uma detestável abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. 79

De acordo com Pedro Meira Monteiro, é interessante comparar o


"estouvamento de povo moço e sem juízo, ao natural, inquieto e desordenado" de
seu livro de estreia. Em ambos os casos, trata-se de reclamar e defender um ritmo
que resistisse aos impulsos idealizantes dos arquitetos políticos (em "Raízes do
Brasil") ou dos construtores da arte nacional (no artigo de 1926). Em ambos, a
"reforma" que propõem os partidários da ordem é, no fundo, nada mais que uma
reação ou uma leve "contrarreforma", como ironicamente sugere Sérgio Buarque, ao
referir-se à possibilidade de que o fascismo encontrasse guarida entre os
brasileiros.80
O rompimento com os "modernistas da ordem" levou Sérgio Buarque a
uma espécie de auto-exílio ou, como diriam alguns, a uma temporada na estação de
cura. Após distribuir seus livros entre os amigos mais próximos, ele partiu em 1927,
para a “moderna" cidade de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, para dirigir
o jornal "O Progresso”, a convite de um amigo, Vieira da Cunha. Há poucos registros
sobre os motivos que o teriam levado a essa “aventura”. Uma das fontes é a própria
memória de Sérgio, que de forma anedótica, tenta justificar a ousadia juvenil.

78
MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no espelho de Próspero. Novos Estudos CEBRAP,
n. 83, São Paulo, mar. 2009. A respeito de Graça Aranha, Sérgio Buarque tece algumas memórias
em seu texto de apresentação para a coletânea Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 22 e seguintes.
79
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados. In: O Espírito e a Letra, op.cit. p.
226.
80
MONTEIRO, As raízes…op.cit.
38

Perguntado por Richard Graham por quanto tempo havia ficado no Rio de Janeiro, o
historiador responde:

Até 1929, salvo uma experiência extravagante de seis meses, como redator
de um jornal numa pequena cidade do Espírito Santo. Minha melhor
lembrança desses meses foi quando substituí um promotor numa cidade
ainda menor, que alcancei depois de seis horas de viagem a cavalo.
Precisavam de alguém com curso de direito, e eu era o único disponível.
Cheguei cansado de morrer, mas ainda fui a um baile. Desnecessário dizer
que meu caso foi tão fracamente apresentado no dia seguinte que o júri
absolveu o acusado.81

Organizador de uma coletânea com os textos de juventude de Sérgio,


Francisco de Assis Barbosa relembra a mesma passagem descrita pelo amigo,
porém, com um pouco mais de detalhes:

Lá passou a ser conhecido como Dr. Progresso. Pouco importa, fez-lhe bem
a estadia no interior. (…) Certa vez, nomeado promotor ad hoc na cidade de
Muniz Freire, para participar de um júri, viajou seis horas em lembro de
burro, e chegou ao destino mais morto do que vivo, esfolado de tal sorte
que se viu obrigado a tomar um banho tépido de salmoura para poder
comparecer ao tribunal no dia seguinte. O réu foi absolvido, mas havia a
viagem de volta a Cachoeiro do Itapemirim, mais penosa ainda que a
vinda.82

Mesmo afastado do grande centro, Sérgio Buarque teceu uma rede de


relações que lhe garantiu sobrevivência num ambiente nem tão inóspito assim. Nos
conta Maria Amélia que o marido havia morado em uma pensão e que foi vizinho de
José de Magalhães Bravo, genro da proprietária e diretor do Banco Pelotense;
amigou-se igualmente a Mauro Monjardim, diretor do Banco Espírito Santo e ao
coronel local e presidente da Câmara de vereadores, Ricardo Gonçalves; além de
transitar, também, junto às duas facções políticas da região, ambas de sobrenome
Monteiro, uma de Bernardo, a outra de Jerônimo.
As memórias expostas por Maria Amélia são muito próximas daquelas
escritas em uma crônica por um outro amigo de Sérgio e nativo de Cachoeiro do
Itapemirim, o escritor Rubem Braga. Pouco depois de Sérgio conceder a entrevista
citada, Braga assinava uma crônica intitulada "O Dr. Progresso acendeu um cigarro
na lua", homenagem póstuma ao amigo que falecera havia dois anos. A crônica
brinca com a modéstia de orador de Sérgio, "apenas o pai de Chico", porém, notável

81
GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
82
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Introdução. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988. p. 27.
39

historiador que ocupava um "lugar todo especial em nossa cultura pela penetração e
equilíbrio de seus ensaios". O texto menciona um amigo em comum, o escritor e
político Afonso Arinos, que protestava "contra o relativo esquecimento em que caiu o
livro ‘Do Império à República’". A proximidade da crônica de Rubem Braga com o
relato de Maria Amélia está justamente na rede de amizades que Sérgio construiu
na cidade. Um dos amigos de "porre" aparece em ambos. Trata-se no Coronel
Ricardo Gonçalves. Braga, que era menino naquela época recorda:

Sim, eu me lembro do Dr. Progresso; seus porres, afinal não eram tão
grandes, e ele nunca ofendia ninguém. Costumava tomar umas e outras
com o saudoso Cel. Ricardo Gonçalves e outros bons homens da terra, que
formavam o Clube do Alcatrão de São João da Barra, que todos bebiam de
brincadeira.83

De volta ao Rio de Janeiro, ainda em 1927, e aparentemente curado da


crise existencial, Sérgio retomou a labuta cotidiana como tradutor de telegramas, na
United Press, trabalhando ao lado de Múcio Leão, Austregésilo de Athayde e Barreto
Leite Filho. A amizade com Múcio o levou ao "Jornal do Brasil", onde passou a
redigir uma crônica diária sem assinatura, intitulada "O dia dos senadores". Lá
estendeu ainda mais a sua rede de relações, somando as amizades de Barbosa
Lima Sobrinho, Aníbal Freire e João Ribeiro.
Em 17 de julho do mesmo ano, Sérgio Buarque publica em "O Jornal", de
Assis Chateaubriand, um texto intitulado "Notas do Espírito Santo". Nele são visíveis
os problemas que trazem a determinados enredos, as narrativas de memória. Se ao
fim da vida, o evento da passagem pelo estado capixaba narrado a Richard Graham
foi tratado de maneira anedótica, servindo de matriz para quem passou a contar a
vida de Sérgio, na época mesma do ocorrido, as impressões do historiador eram
exatamente contrárias. O relato, além de conferir um histórico da recente imigração
europeia ao estado, "a quase totalidade imigrou precisamente nestes últimos 30 ou
40 anos", informava o leitor sobre o seu amplo "desenvolvimento e modernização",
porém, nos mais dignos padrões dos "bota abaixo" cariocas.
A investida de Sérgio Buarque à paisagem capixaba tinha um objetivo
aparente: enaltecer a “índole ativa da gente que povoa o Espírito Santo”. Conforme
descreveu o visitante ilustre, o Estado do Espírito Santo condensava, à época de
sua estadia, uma paisagem que confirmava como nenhuma outra - dada “a rudeza

83
BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 154-157.
40

magnífica do ambiente” - se tratar de “terras brasileiras”. Entretanto, a “significação


do trabalho humano” ali investido, “singularmente merecedora de sua consideração”,
resultara na emergência de uma “capital moderna e confortável”. Segundo o
jornalista, por exemplo,

(…) em Vitória levantam-se andaimes, constrói-se a ponte que deverá unir a


ilha ao continente, desenvolvem-se obras do porto, erguem-se teatros,
abrem-se avenidas e sobre os escombros da velha cidadezinha colonial,
cheia de becos e de bibocas, de casebres amontoados pelos morros e de
velhos que discutem política nas farmácias e nos cafés, começa a surgir
uma capital moderna e de aspecto confortável. Essa atividade é
impressionante em todos os pontos da cidade. As construções contínuas,
os melhoramentos, os aterros, as demolições atestam bem que no Espírito
Santo a febre de progresso não fica apenas nas palavras e nas promessas
de plataformas de governo.84

Prosseguindo a sua descrição da modernização do estado, Sérgio chega,


enfim, ao que deveria ser, há seu tempo, a “saudosa” Cachoeiro do Itapemirim:

Seria preciso acrescentar (…) que o progresso não se manifesta de maneira


tão assombrosa somente na capital. (…) Em Cachoeiro do Itapemirim, uma
cidade moderna e com melhoramentos que proporcionam o melhor conforto
aos seus habitantes, com esgotos, calçamento, iluminação elétrica e até
uma linha de bondes elétricos, com um centro social bastante adiantado
(…) Refiro-me a Cachoeiro do Itapemirim porque residi ali durante alguns
meses e pude observar com mais frequência esse fato, mas quero crer que
no resto do Estado a situação não seja muito diferente. 85

As duas passagens merecem considerações. Em relação à primeira, o


processo de modernização do Estado do Espírito Santo descrito por Sérgio Buarque
atendia ao sentido do progresso ambicionado por parte das elites urbanas do país
nos anos iniciais do século XX. Entretanto, ele enaltecia antes a “ação
administrativa” que fazia ali “cooperar todas as forças que a riqueza natural do
Estado, o trabalho do povo e o esforço dos últimos governos souberam criar em
benefício deste progresso”.
Ao que nos parece, o sentido maior de seu enaltecimento se dava na
demonstração de que o progresso verificado era consequência do “produto mental”
capixaba, ou em suas palavras, da “índole ativa da gente que povoa (...) o Espírito
Santo, no muito que tal atividade é criadora da invejável prosperidade que o Estado
começa a desfrutar”. Ao enaltecer as intervenções urbanas implementadas no
84
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Notas do Espírito Santo. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.).
Raízes de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit, 91.
85
Idem, p. 92.
41

Espírito Santo, Buarque destacava antes o “esforço do trabalho humano para


integrar essa natureza na sua ordem e nos seus sistemas”, algo que produzia na
região um “contraste formidável” e, portanto, digno de suas notas. 86

Diante do trabalho magnífico que o esforço dos homens começa a realizar


em todo o Estado, a nitidez com que me pareceu tal constatação trouxe-me
muitas vezes a ideia de que provavelmente essa natureza tão peculiar
desaprova o estilo de civilização que o mundo europeu nos transmitiu e pus-
me a imaginar de mil jeitos a nova síntese por hora imprevisível, mas que
ocorrerá por força, entre esses dois elementos que hoje já começam a nos
parecer antagônicos: de um lado a herança cultural europeia ainda tão
acentuada, e do outro esse “espírito da terra” que os mais aptos ainda não
principiaram a compreender.87

Em relação à segunda, o que mais chama a atenção é o contraste da


descrição frente a memória que ficou registrada no fim da vida pelo próprio Sérgio
Buarque e pelos outros depoimentos citados. Ao recuperarmos esse registro de
época, escrito no calor da hora, o que parece claro é que a sua passagem pela

86
A discussão proposta por Sérgio Buarque a partir de suas "Notas do Espírito Santo” encontra
ressonância na seguinte síntese: “Os ideais de progresso e modernização, legitimados e reforçados
com a República, exerceram grande influência nos circuitos intelectuais brasileiros ao longo do século
XIX, e seus conceitos correspondiam a valores de mudança, de renovação social e cultural, de
pulverização de normas e comportamentos tradicionais. Essa ‘nova moral’ da modernidade dirigia-se
a uma superação ou mesmo destruição de padrões sociais amparados por uma dada tradição, e o
fazia em nome de um suposto progresso social, moral, científico, e cultural que implicava em uma
ideia de civilidade; era a partir das prédicas de modernização que o homem deveria superar seu
passado atrasado, necessariamente inferior ao seu presente, e se lançar ao progresso, à evolução e à
civilização. Assim, a modernização visava uma reforma total da sociedade. Modernizar significava, de
modo geral, promover o novo, que por excelência era o melhor, o positivo. À ideia de progresso e
modernização corresponde a noção de civilização. Promover o progresso representava, sobretudo,
civilizar-se, o que pressupunha uma concepção de temporalidade teleológica. Era como se as nações
ditas civilizadas estivessem à frente na escala de um suposto desenvolvimento social, cultural e
moral. Assim, o tempo linear do progresso impunha uma série de valores em escala universal. A
civilização era o objetivo supremo a ser buscado, um fim cujo meio seria a modernização constante
da sociedade pautada nos princípios progressistas. A detração do legado colonial brasileiro, portanto
de um passado arcaico e incivilizado, se tornou mais presente no imaginário social conforme a
República se aproximava, acabando por se consolidar com a proclamação do novo regime. A
República deveria tomar o lugar do Império por representar o caminho da civilização e a porta para a
sociedade positiva do futuro. Por conseguinte, a nação brasileira deveria se ‘atualizar’ frente às
nações europeias modernas, e para que isso acontecesse era preciso promover a sofisticação dos
meios de produção, reformar substancialmente as cidades construídas sobre os padrões coloniais,
além de erigir novos centros urbanos, bem como investir na ciência e na indústria. A República
desencadeava a crença no futuro, no progresso, já que este regime sintetizaria o modelo político ideal
para se gerir uma nação. No Brasil, o regime republicano representou a via do progresso à maneira
das nações europeias ocidentais; a República era o início de um futuro desejado, idealizado. O Brasil
deveria galgar os estágios do desenvolvimento, fugindo de seu atraso, e acertar o seu reló gio por via
de remodelações institucionais, estruturais, legislativas, comportamentais. A ciência e a racionalidade
tecnicista seriam os fatores responsáveis pelo avanço da sociedade brasileira”. In: MENEGUELLO,
Caion Natal. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica. 2007. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de Pós-Graduação em História pp.16-18;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à Republica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
(História Geral da Civilização Brasileira, t.II, v.5).
87
HOLANDA, Notas…op.cit., p. 90.
42

"cidade moderna" do interior não foi apenas uma experiência extravagante, resumida
a porres e a uma viagem em lombo de mula para uma audiência judiciária
“fracassada”. Suas impressões dizem muito mais. Elas, além de advogarem uma
visão favorável às reformas urbanas em curso no Brasil da época, dentro de uma
concepção imposta de modernização com todas as suas consequências, também
nos coloca um problema recente nas sociedades contemporâneas, qual seja, o
inquietante espetáculo que apresenta o excesso de memória e de esquecimento,
tema profundamente abordado por Paul Ricoeur que propunha como solução a ideia
de uma "política da justa memória", um de seus temas cívicos confessos. 88
Em relação a um excesso de memória, a passagem de Sérgio Buarque
pela Alemanha, próxima parada desse modernista errante, é cercada de exageros e
versões oficiais, mas que se transformaram em mantra toda vez que aparecem
questões que envolvam a sua fase de vida anterior à publicação de "Raízes do
Brasil". Sérgio Buarque não deixou quase nenhum registro sobre a sua passagem
por Berlim, entre junho 1929 e dezembro de 1930, exceto algumas entrevistas, uma
ou outra carta guardada em seu papelório, algumas linhas em "Tentativas de
Mitologia" e um caderno organizado por sua irmã, Cecília, com os recortes dos
textos que enviava de lá ao Brasil. Esse material, aliás, serviu de inspiração para
uma publicação póstuma e comemorativa, organizada por Francisco de Assis
Barbosa e sugestivamente intitulada "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda".
De resto, muito do que sabemos é atestado por textos que detalham um
pouco mais a versão contada pelo próprio protagonista. Em linhas gerais, a história
de Sérgio na Alemanha começa com o convite feito por Assis Chateaubriand para
que o jovem partisse como correspondente de "O Jornal”, com o encargo de fazer
reportagens sobre a situação política em três países: Alemanha, Polônia e União
Soviética. O resultado do intento foi o seguinte: restou no primeiro, visitou
rapidamente o segundo e não conseguiu passar as fronteiras do terceiro.
Sérgio partiu a bordo do navio Cap Arcona no dia 17 de junho de 1929.
Seu embarque foi festivo e acompanhado por amigos como Manuel Bandeira,
Prudente de Moraes, neto, Rodrigo Melo Franco, pelos pais, Dr. Cristóvão e Dona
Heloísa e pelos irmãos, Cecília e Jaime. Na véspera, Sérgio e Josias Leão, que
embarcou junto, foram homenageados com um jantar de despedida no restaurante

88
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et.al.
Campinas/SP: EdUNICAMP, 2007. p. 17.
43

português "Garota do Mercado”. Estiveram presentes amigos do jornalismo, como


Barbosa Lima Sobrinho, Múcio Leão, Austregésilo de Athayde, Osório Borba e os já
mencionados Rodrigo Melo Franco e Manuel Bandeira, entre outros.
Chegando a Berlim, Sérgio passou a residir em um dos mais agradáveis
pontos da cidade, numa esquina de Uhlandstrasse com a Kurfürstendamm, avenida
bonita e espaçosa chamada de Champs Elysées berlinense. Pouco depois se
mudou para outro apartamento na mesma rua, mais adiante, em cima do Uhlandeck,
que era o que se chamava um cabaré. Virando a esquina, ia facilmente ao
consulado do Brasil, na Kurfürstendamm, não sem antes passar pelo da Guatemala,
pelo teatro de Erwin Piscator e o café Illibrich, cuja orquestra americanizada tocava a
miúdo, entre outros sons, tangos argentinos em ritmo mais enérgico do que o
normal.89 Além desses detalhes, que foram anotados por Antonio Candido, são
significativos de sua passagem pelo Velho Continente, uma entrevista que realizou
em Berlim com o vencedor, em 1929, do Nobel de Literatura, o escritor Thomas
Mann, registrada em "O Jornal” de 16 de fevereiro de 1930 90; a tradução para o
português das legendas de "O Anjo Azul", filme com Marlene Dietrich, estrela da
época, o seu trabalho na revista bilíngue, DUCO 91, e mais do que qualquer outro, e
só recentemente revelado, o filho que teve com Anne Ernst. 92
Dentre as poucas fontes e relatos que tratam desse período de vida de
Sérgio, talvez um deles ainda seja pouco conhecido entre os estudiosos. Trata-se de

89
CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.), op.cit.,
pp. 119-120.
90
Sérgio relata o encontro e a descoberta de que o escritor era filho de uma brasileira no texto,
Thomas Mann e o Brasil. A esse respeito registrou: "Não me bastava a confirmação. Desejava
conhecer novos detalhes. E Thomas Mann prestou-se amavelmente a satisfazer minha curiosidade. A
mãe dos irmãos Mann, d. Júlia Bruhn da Silva, era filha de um alemão que possuía no Brasil uma
fazenda e que se casara com uma crioula, provavelmente de sangue português e indígena. Aos seis
ou sete anos foi trazida por seu pai a Lübeck, onde teria melhores possibilidades de uma educação e
de uma instrução exemplares. A futura Frau Júlia Mann nunca se esqueceu de sua infância no Brasil
e muito mais tarde ainda se recordava de que fora salva por um negro, escravo de seu pai, de uma
serpente venenosa. Era um tipo caracteristicamente latino (“uma perfeita espanhola", disse-me
Thomas Mann), dotada de um temperamento exaltado, que se deveria adequar com bastante êxito à
sua paixão pela música. Apreciava sobretudo Chopin e acompanhava com sua voz suave as
melodias de Schubert, Schumann e Lassen. A essa mistura de sangues, que influiu acentuadamente
em seu aspecto físico, deve Thomas Mann, provavelmente, algumas das suas qualidades mais raras
de escritor, certa feição característica, que o distingue bastante no conjunto da moderna literatura
alemã".
91
Sérgio Buarque prestou serviços à revista entre 5 de fevereiro de 1930 até 30 de setembro do
mesmo ano. No atestado de dispensa, escrito em alemão, que recebeu da editora Latein-
Amerikanischer Verlag, assinado em 30 de setembro de 1930, consta que o intelectual cumpriu a sua
função na seção de português da Revista DUCO com perfeita autonomia. Arquivo Central Unicamp,
Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal, VP 11. Tradução de Luciano Cavine
Martorano.
92
BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
44

uma carta que ele próprio enviou de Berlim à Rui Ribeiro Couto, alguns meses após
sua chegada em 1929. O documento foi encontrado nos arquivos de Couto,
localizados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A partir desse
escrito é possível acompanhar a visita que Sérgio realizou "por uma porção de
cidades" na Polônia, a recusa de sua entrada em Moscou; o emprego que, com
orgulho arrumou na Revista DUCO; informações sobre um artigo que escreveu em
alemão sobre a "moderna literatura brasileira"; um pedido de fotografias de alguns
modernistas para a ilustração desse texto, etc. A carta também informa o endereço
em que Sérgio residia, que de fato era o mesmo descrito por Antonio Candido,
porém com detalhes: Kurfürstendamm 31-1, Pension Marie Fisher, Berlim W. Em se
tratando de documento pouco conhecido, trazemos à íntegra sua transcrição:

Berlin, 7 de novembro de 1929. Couto amigo,


Depois de meu último cartão andei pela Polônia, passeando por uma
porção de cidades o meu ar de "estudante de teologia de Varsóvia’’. Depois
de obter um convite para viagem a Moscou, recebi uma inesperada recusa-
minha viagem foi abgelehnt pelo Comissariado do Povo de Negócios
Estrangeiros. Só agora recebi uma erlaubnis, mas deverei esperar a
primavera, pois desejo invadir a Russia em condições mais confortáveis que
as de meu antecessor Bonaparte.
Arranjei uma colocação na revista teuto-brasileira “DUCO”, de que v.
receberá os 3 primeiros números. Escrevo, traduzo, corrijo traduções, etc.
Nos números já publicados v. encontrará muitos erros de linguagem, mas o
admirável é que até agora não existia nenhum brasileiro no corpo de
redação da Revista. Eu sou o primeiro.
Escrevi ultimamente um artigo sobre a moderna literatura brasileira,
que deverá aparecer em alemão. Desejaria, porém, obter algumas
fotografias para ilustrar o artigo e lembrei-me de que v. poderia, talvez,
auxiliar-me nesse ponto. Mande, por exemplo, um retrato seu e, si tiver, um
do Manuel Bandeira, do Mário de Andrade, do Oswald, do Ronald…Não há
tempo para escrever e receber resposta do Brasil.
Outra coisa que desejaria de v. - e isso é indispensável- é que me
envie colaborações suas. Não pedirei poesias porque em tradução
perderiam muito, mas envie o que puder. Por enquanto peço que me
recomende a sua senhora e aceite muitas saudades do seu, Sérgio.
Ps: Desta vez não dá tanto trabalho ao correio berlinense como da outra.
Meu endereço é este: Kurfürstendamm 31-1, Pension Marie Fisher, Berlim
W. Pode escrever também para DUCO. Aquele “von Jornal do Brasil” está
errado.93

Além das informações mencionadas, o tom da carta parece revelar ainda


que Sérgio buscava na Alemanha, além do cumprimento de suas obrigações
jornalísticas, a divulgação do modernismo brasileiro. Naquilo que foi percebido por
Pedro Meira Monteiro, de que Sérgio tinha certa preguiça em escrever cartas, ao
93
Carta de Sérgio Buarque de Holanda à Rui Ribeiro Couto. Berlim, 7 de novembro de 1929.
Fundação Casa de Rui Barbosa. Acervo Rui Ribeiro Couto.
45

que parece, nessa jornada europeia os seus esforços em nome da causa como lhe
escrevera Mário de Andrade nos tempos de Klaxon, pareciam bastante honestos
como visto nas indicações de um cartão anterior ou no pedido de cuidados ao
correio para que os escritos chegassem com precisão. É como se o rompimento,
após a fase em Cachoeiro do Itapemirim, tivesse terminado e a saudade dos amigos
batesse mais forte por conta do “Desterro”.94
Depois de ler variados relatos e análises sobre esse período da vida de
Sérgio Buarque, o que mais nos chamou a atenção é a forma como esse conjunto
de textos buscou definir uma cronologia à vida da personagem, delimitando uma
fase marcada pelo antes e pelo depois de sua passagem por Berlim. Essa limitação
temporal é importante porque define a passagem no tempo histórico do jovem
modernista ao intelectual consagrado de "Raízes do Brasil". O próprio Sérgio, ao
ordenar a trama de sua trajetória, alimentou essa versão. Recordando, no fim dos
anos 1970, os seus anos berlinenses ele nos conta que,

Depois segui para o estrangeiro, lamentando apenas o separar-me por


longo tempo de amigos diletos, embora contente com o poder apagar da
minha lembrança pessoas menos estimáveis a meu ver e ideias que me iam
importunando. Do que não me livraria depressa era do projeto de Teoria da
América, pois justamente durante a estada no estrangeiro naqueles meus
Wanderjahre alemães, ela principiará a ganhar forma definitiva. O contato
de terras, gentes, costumes em tudo diferentes dos que até então conhecia,
pareceu favorável à revisão de ideias velhas e à busca de novos
conhecimentos que me ajudassem a abandoná-las, ou depurá-las.
Recomecei a ler, e recomecei mal, enfronhando-me agora em filosofias
místicas e irracionalistas (Klages, etc.), que iam pululando naqueles últimos
anos da República de Weimar e já às vésperas da ascensão de Hitler. (…)
Foi só depois de conhecer as obras de críticos ligados ao “círculo" de Stefan
George, especialmente de um deles Ernst Kantorowicz, autor de um livro
sobre Frederico II (Hohenstaufen) que, através de Sombart, pude afinal
“descobrir" Max Weber, de quem ainda guardo as obras então adquiridas.
(…) Os livros de Weber e um pouco as lições de Meinecke, em Berlim,
indicando-me novos caminhos, deixarão sua marca na minha Teoria da
América.95
94
DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de
Sérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 pp. 145-159. Nesse
texto, o autor defende a ideia de que Raízes do Brasil é uma obra constituída a partir de uma
experiência de desterro, que Sérgio vivenciou em Berlim. Nas palavras do autor: "Sérgio Buarque
provavelmente idealizou a obra de Raízes do Brasil, originalmente, num tema maior que seria uma
Teoria da América. Essa teoria da América, portanto, em 1936 iria se transformar na obra Raízes do
Brasil. Uma obra de desterro eu diria. Uma obra de Sérgio desterrado na Alemanha e que, em
seguida, se nós formos observar a trajetória historiográfica do autor, veremos que há uma sequência
de trabalhos quase de caráter etnográfico, em que Sérgio mergulha para dentro desse território de
desterros que é o Brasil. Livros que são significativos nesse sentido são: Raízes do Brasil, Monções,
caminhos e Fronteiras e o Extremo Oeste." p. 147.
95
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. pp. 29-30.
Importante trabalho para a compreensão do período em que o historiador esteve em Berlim é o
ensaio de Peter Gay, A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
46

De volta ao Brasil em 1931, Sérgio trouxe cerca de 400 páginas escritas


de sua "Teoria", texto esse jamais localizado. Foram dessas anotações que o
intelectual retirou o substancial para a publicação de um esboço do que mais tarde
seria "Raízes". A gênese de seu mais ilustre livro chamaria-se "Corpo e Alma do
Brasil: ensaio de psicologia social", e viria à público na "Revista Espelho", no ano de
1935.
Assim como no relato sobre o Espírito Santo, este também foi anotado em
fase final da vida, daí o contraste entre as certezas do presente, de um intelectual já
consagrado, em relação à carta enviada de Berlim à Ribeiro Couto, quando ainda se
firmava no mundo das letras. Se no texto de 1979 Sérgio versava com toda a
certeza a trama de "Teoria da América", ligando-a a “Raízes", o núcleo de sua fase
alemã, se ele se demonstrava sedento por novos conhecimentos e aparentava um
certo desencanto com o modernismo brasileiro - o documento exposto acima nos dá
uma impressão inversa. Nele, aparece um intelectual jovem, orgulhoso pela nova
colocação que conseguira, "o primeiro" brasileiro no corpo de redação de DUCO, um
modernista militante, mas um tanto inseguro por estar em ambiente “hostil",
preocupado em divulgar no exterior a literatura moderna do seu país e sem muitas
certezas do que viria pela frente.
A adoção dessa terminologia “fase alemã” foi sistematicamente inscrita ao
longo dos anos por autores muito próximos a Sérgio, como Francisco de Assis
Barbosa, Antonio Candido, Maria Odila L. da S. Dias e Francisco Iglésias, para
ficarmos em alguns. O primeiro escreveu em 1988, que "com a viagem à Alemanha,
encerra-se para Sérgio uma etapa da mocidade, a de seu aprendizado”. Antonio
Candido por sua vez, publicou logo após o falecimento do amigo, em 1982, um texto
intitulado "Sérgio em Berlim e depois", onde afirmava que "de todos os livros de
Sérgio, ‘Raízes do Brasil’ é o único do qual se pode dizer que é meio alemão". Já
Maria Odila, em 1985, dividiu a biografia do mestre e amigo em cinco partes, sendo
uma delas dedicada a "Raízes do Brasil", que obviamente reconstrói sua estada na
Alemanha. Por fim, Francisco Iglésias, em 1992, ao tratar dos anos de formação de
Sérgio, afirmava que ele, depois daquela experiência e ao voltar para o Rio de
47

Janeiro em 1931, "já está formado e entrega-se a outros trabalhos. Continua


jornalista, mas já picado pelo desejo de ser historiador”.96
No que diz respeito a essa fase de formação, é comum encontrarmos
nesses relatos a ideia de que Sérgio tenha levado em Berlim uma vida
exclusivamente voltada aos estudos, quando o mais provável é que tenha se
envolvido muito mais com a boemia modernista de lá, ligada ao famoso “círculo de
Stefan George (1868-1933), com os bicos, o jornalismo, do que com a universidade.
À historiografia, coube então, o papel transformador dessas versões em
memória histórica, desconsiderando o horizonte de total carência de fontes que
comprovem ou questionem tais fatos. Um bom exemplo foram os cursos de Friedrich
Meinecke, que Sérgio teria frequentado na universidade de Berlim, ou então a ideia
de que "Raízes do Brasil" tenha nascido como um sopro de radicalismo democrático.
Essas "tentativas de mitologia”, endossadas pelo próprio Sérgio Buarque, de acordo
com o professor Sérgio da Mata, seriam suficientemente frágeis se levarmos em
conta um estudo mais aprofundado do contexto alemão da época.
Em pesquisa que trata da recepção de Max Weber no Brasil 97, da Mata
acabou chegando na rede de autores alemães lidos por Sérgio Buarque de Holanda
e contidos em sua biblioteca até a publicação de “Raízes", buscando nessas fontes
as anotações e os grifos que Sérgio havia feito e referenciado em seu livro de
estreia. A conclusão a que chegou é de que, dentre as principais influências
encontradas na edição de 1936, estão autores do chamado vitalismo ou
irracionalismo alemão, cujas ideias, de certa forma, foram aceitas pelo Partido
Nazista, como Oswald Spengler, Ludwig Klages e Carl Schmitt. De modo que, pode-
se dizer, "Raízes do Brasil" continha em sua primeira edição, além de um
alinhamento menos weberiano, uma conotação de viés muito mais conservador do
que progressista ou radical, como quis a memória histórica posterior. 98
96
Na sequência: BARBOSA, Francisco de Assis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988; CÂNDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, São
Paulo. 1(3), julho de 1982; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador.
In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985. (Coleção
Grandes Cientistas Sociais, n. 51); IGLÉSIAS, Francisco. Exposição: Sérgio Buarque de Holanda,
historiador. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio
UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.
97
Essa pesquisa foi publicada recentemente no livro: MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana. As
origens da obra de Max Weber. 1.ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Em especial o capítulo,
“Weberianismo tropical: caminhos e fronteiras recepção da obra de Max Weber no Brasil, pp. 189-
208, onde o autor conclui em relação a Raízes do Brasil, que “se viu ali mais Weber do que foi
efetivamente o caso”.
98
MATA, Sérgio da. II Jornada da História da Historiografia. Mesa II- “Espaços da nação, tempos
da história. A palestra pode ser conferida em: https://www.youtube.com/watch?v=xuCGGE9buSM.
48

Já em relação as preleções de Friedrich Meinecke, a pesquisa revela


pontos muito importantes. Primeiramente, o único livro desse historiador que Sérgio
Buarque teria lido até 1935 foi "Burguesia cosmopolita e estado nacional", de 1908,
sequer foi citado em "Raízes". Na obra, aparece um único parágrafo grifado, algo
pouco comum, se comparado aos outros livros pesquisados, que trazem uma
grande quantidade de sublinhados. Quanto aos cursos mesmo assistidos, do que
tratavam? O que neles pode ter atraído Sérgio Buarque, para além do grande
renome de que gozava esse historiador? Para resolver a questão, da Mata foi até a
Biblioteca Estatal de Berlim e pesquisou os "cadernos de cursos” oferecidos entre
1929 e 1931, que eram elaborados pelos professores de todas as universidades do
país. Essa documentação continha os horários das aulas e atendimento dos
professores, referências bibliográficas, o conteúdo programático, etc., expostos
minuciosamente - prática comum nos meios acadêmicos alemães, porque
auxiliavam os alunos na preparação de cada semestre.
Partindo dessas fontes, ele concluiu que as temáticas dos cursos
ministrados por Meinecke pouco coadunavam com aquelas desenvolvidas em
"Raízes do Brasil". No espaço de três semestres os cursos oferecidos foram os
seguintes: 1) A Era da Contra-Reforma; 2) Exercícios históricos; 3) A vida política
das grandes potências na era do Absolutismo; 4) A história da Alemanha na era da
Restauração e da Revolução de Março até 1850. Soma-se a tudo, o fato de
Meinecke estar às vésperas da aposentadoria, que se daria em 1932, motivo pelo
qual suas preleções eram conferidas em sua casa, com um número limitado de
participantes regularmente matriculados. O que pode ter acontecido eram eventos
isolados, uma ou outra conferência desse professor, por exemplo, mas os famosos
seminários mesmo, que indicaram a Sérgio Buarque "novos caminhos", como ele
próprio registrou muito mais tarde, parecem ter sido quase impossíveis. 99
Acessado em 12 de novembro de 2014. Apenas para citar como exemplo, Antonio Candido afirmava
em 1982 a esse respeito que "Sérgio respirou nesse ambiente e conheceu alguns de seus aspectos
negativos, inclusive a duvidosa caracteriologia de Ludwig Klages. Mas a retidão do seu espírito, a
jovem cultura já sólida e os instintos políticos corretamente orientados levaram-no a algo
surpreendente: desse caldo cultural que podia ir de conservador a reacionário, e de místico a
apocalíptico, tirou elementos para uma fórmula pessoal de interpretação progressista do seu país,
combinando de maneira exemplar a interpretação desmistificadora do passado com o senso
democrático do presente”. CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco
de Assis. op.cit, p. 124. Já o próprio Sérgio Buarque admitia, décadas mais tarde, que durante sua
estadia na Alemanha, "recomecei a ler e recomecei mal, enfronhando-me agora em filosofias místicas
e irracionalistas (Klages, etc .), que iam pululando naqueles últimos anos da República de Weimar e
já às vésperas da ascensão de Hitler”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia,
op.cit. p. 30.
99
MATA, Sérgio da, II Jornada…op.cit.
49

Por outro lado, a primeira edição de "Raízes do Brasil" faz referência a


apenas um único historiador da universidade de Berlim, Kurt Breysig e ao seu livro,
publicado em 1931, chamado "A história da Alma e a Formação da Humanidade"
(Die Geschichte der Seele. Berlin, Walter de Gruyter, 1931). Note-se que na edição
seguinte de "Raízes", de 1948, essas referências, bem como outras vistas acima,
desaparecem. Breysig era uma figura controversa no meio universitário alemão da
época e diferentemente de Meinecke, seus cursos eram abertos e Sérgio pode tê-los
assistido, embora não o mencione em suas memórias. O alemão esteve ligado ainda
ao fechado círculo do poeta Stefan Georg, citado por Sérgio Buarque quando lembra
sua fase alemã, já que foi por meio de Ernst Kantorowicz, um de seus integrantes e
de sua biografia sobre Frederico II, que Sérgio teria trilhado o caminho que o levou a
conhecer a obra de Weber.100
No que foi levantando em relação aos títulos dos cursos oferecidos por
Breysig no mesmo recorte temporal, pode ser constatado que eles eram muito mais
próximos a "Raízes", sobretudo naqueles que tratavam de história comparada.
Vejamos: 1) Exercícios de introdução à história social comparada e à teoria da
sociedade, todos os semestres; 2) Teoria do desenvolvimento da construção da
trajetória da humanidade e o desenvolvimento do espírito alemão desde 1871
comparado com o de outros destacados povos europeus; 3) Teoria social e
psicologia da história universal; 4) O desenvolvimento e história da teoria da história
e da filosofia da história. Frente às informações levantadas, da Mata sugere que
"Raízes do Brasil” foi, em sua construção e em sua concepção, o exato oposto da
historiografia historicista, de que Meinecke seria talvez, o último grande
representante e defensor.
Independente desses contrapontos sobre a evocação alemã de Sérgio, o
certo é que o intelectual estava envolvido com discussões muito específicas de seu
tempo. Se saiu do Brasil com elas ou se as construiu a partir do espectro de leituras,
"radicais" ou “conservadoras", a que lá teve acesso, é fato que o seu projeto de
interpretação de país ficou marcado pelo viés de abordagem sociológica, pelo grau

100
Uma discussão importante e recente sobre esse período alemão da República de Weimar e do
círculo pode ser acompanhada na dissertação de mestrado de Walquiria Oliveira da Silva, intitulada:
Alemanha Secreta: biografia e história no círculo de Stefan George. Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade de Brasilia, 2013. Da mesma autora, vale mencionar o artigo, “A história
como Bildung: o Círculo de Stefan George e a função formativa da História. Tempos Históricos, vol.
19, jan/jun 2015, pp. 120-137.
50

comparativo em relação às Américas Hispânica e Anglo-Saxã 101 e mais do que as


outras duas, talvez, pelo conceito de “homem cordial” que passou insistentemente a
contornar a nossa identidade. A questão “quem somos" já estava em pauta desde o
século XIX com a consolidação do Estado Nacional no Brasil, permanecendo como
indagação por boa parte do século XX, se tornando a “pedra de toque” de toda uma
geração de intelectuais, sobretudo, aquela da primeira parte do século XX.
Em comum, esse conjunto de autores que incluía, além de Sérgio
Buarque, nomes como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Francisco de Oliveira
Vianna, Paulo Prado, Alberto Torres, Francisco Campos, etc., possuía projetos
políticos mais ou menos bem definidos, mas com soluções “diametralmente
opostas”. Havia nesses autores, como visto acima, o que Maria Stella Bresciani
denominou de “lugar-comum” de seus pressupostos, residentes na afirmação da
“incompatibilidade entre instituições, pensamentos e ideias liberais” – proposições
consideradas avançadas por terem sido formuladas em países “mais civilizados” – e
a situação ou a realidade brasileira, sinônimo de “atrasada, patriarcal, patrimonial,
semifeudal, por nela inexistir a figura política do cidadão, imprescindível para a
vigência efetiva de instituições, tal como preconizava a Constituição de 1891”.
Assim, forma-se nos textos desses autores a figura do brasileiro como um homem
descontente consigo mesmo, ressentido com seus pais colonizadores devido à
herança maldita aqui deixada, imagem negativa que situou a questão da cidadania
no núcleo do debate.102

101
Sérgio Buarque aprofunda esse grau comparativo duas décadas mais tarde, quando escreve sua
tese de cátedra, "Visão do Paraíso”, defendida na USP em 1958 e publicada pela primeira vez no ano
seguinte.
102
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um diálogo possível entre (e com) os intérpretes do Brasil. In:
SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca; AZEVEDO, Cecilia; ALMEIDA, Maria Celestino de (orgs.).
Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009. p. 167. Vale mencionar que a ideia de “lugar-comum”, à qual a Professora Maria Stella
Bresciani recorre, para além de sua acepção usual de clichê, contém em si a noção de “fundo-
comum”, ou seja, um conjunto de asserções que permitem a troca de crenças, de palavras, de
preconceitos, argumentos e opiniões sobre um tema. Deste modo, o “lugar-comum” se estrutura na
convergência de opiniões formadas na experiência do dia a dia, estreitamente vinculadas a
expectativas formuladas e fixadas no imaginário e nas representações coletivas, mas que, todavia, se
alimentam de uma tradição filosófica e uma concepção de política. A autora se vale das reflexões de
Myriam Renault d’Allones, no livro Le dépérissement de la politique. Généalogie d’un lieu commun.
Paris: Flammarion, 1999. Stella Bresciani identifica os "fundos comuns" de onde esses autores
elaboraram as suas ideias com base na incompatibilidade entre Estado e sociedade. Seriam eles: 1)
O pressuposto mesológico; 2) As noções de raça e de etnia como um pecado de origem; 3) A
avaliação da capacidade intelectual dos pais colonizadores; 4) A ausência do cidadão; 5) A
precariedade dos hábitos de solidariedade e cooperação, fazendo do liberalismo da Constituição
federativa de 1891 uma ideia exótica; e, 6) A volta ao pressuposto inicial quanto ao desencontro entre
instituições políticas e sociedade.
51

Nesse sentido, o projeto político de Sérgio Buarque, anunciado em


"Raízes do Brasil” e assinalado em alguns de seus textos anteriores, expunha em
primeiro plano o vínculo perverso entre “agrarismo e iberismo”. O predomínio dos
costumes rurais seria inseparável do "iberismo", herança do colonizador, e consistia
em obstáculo à formação de "centros urbanos", "centro de gravidade" da "revolução
lenta, mas segura e concertada" – iniciada pela “abolição” – em movimento cujo
objetivo era o fim do predomínio agrário, anunciando “o lento cataclismo, cujo
sentido parece ser o da superação das raízes ibéricas de nossa cultura para a
inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de
americano”.103
A aposta de Sérgio Buarque recaía em uma “boa e honesta revolução
vertical” capaz de pôr fim à situação que fazia com que os brasileiros “expiassem
ainda os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros, já que “a sociedade
brasileira foi malformada nesta terra, desde as suas raízes”. Não havia, então,
segundo Stella Bresciani, no projeto de Sérgio Buarque a recusa aos "ideais
democráticos” como algo incompatível com a população, mas a aposta na
transformação do “homem cordial” por meio da articulação de seus “sentimentos e
as construções dogmáticas da democracia liberal”, próxima às ideias da Revolução
Francesa. Processo que exigia a “urbanização contínua, progressiva,
avassaladora”.104 Não estariam esses preceitos já contidos anteriormente em suas
"Notas sobre o Espírito Santo”, quando, ao descrever o Estado, expunha em
primeiro plano o processo de reformas urbanas em curso, sintetizadas na expressão
“febre de progresso”?
Mas Sérgio Buarque parece oscilar em sua avaliação positiva dos ideais
liberais: seria, segundo Bresciani, a brecha pela qual se daria a transformação do
“cordialismo" em convicção cidadã, embora considerasse esses ideais parte de uma
teoria essencialmente neutra, despida de emotividade e que se enquadra facilmente
em fórmulas. Sérgio não definia, assim, de modo claro as instituições mais
condizentes ao Brasil, sugerindo que, tal como os princípios do liberalismo, “essas
outras elaborações engenhosas, o fascismo, integralismo, comunismo, não
mostravam o modo como nos encontramos um dia com nossa realidade”. 105 Parecia
antever o que viria no ano seguinte ao seu livro de estreia.
103
Idem; p. 178; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, op.cit. pp. 135-137.
104
BRESCIANI, ibidem, p. 179.
105
Idem, pp. 179-180.
52

1.2 Sérgio Buarque e os quadros intelectuais a partir dos anos 1930

Até que surgissem no Brasil as primeiras universidades na década de


1930 e as gerações de intelectuais delas advindas no decênio seguinte, os quadros
que compunham essa categoria social eram formados normalmente no seio das
classes dirigentes agrárias ou então emergiam de camadas altas e médias do setor
urbano, cujos pais ligavam-se às profissões liberais, como a advocacia, a
engenharia, a medicina, os negócios ou aos meios políticos. Esses bacharéis,
formados na Europa ou no Brasil, em centros como São Paulo, Rio de Janeiro,
Recife ou Salvador, quando não herdavam apenas o prestígio político da família,
atuavam no campo das letras, das artes e do jornalismo. E, não raras vezes,
exerciam essas labutas de modo concomitante. Podiam ter como locais de
sociabilidade os Institutos Históricos, a Academia Brasileira de Letras-ABL ou o
Colégio Pedro II, na capital federal, sem contar os gabinetes políticos, as pastas
ministeriais e as cadeiras legislativas.
Na década de 1930, com os rearranjos políticos que levaram ao poder
Getúlio Vargas, alguns fatores foram proeminentes na ampliação da formação de
quadros intelectuais. Dentre esses fatores, podemos mencionar a ampliação das
funções do Estado com a criação de novos órgãos públicos. Em contraposição às
matrizes do governo central no campo da cultura, verifica-se a fundação da Escola
Livre de Sociologia e Política-ELSP, em 1933, da Universidade de São Paulo-USP
no ano seguinte e da Secretaria Municipal de Cultura, de São Paulo. Tudo somado a
um maior investimento do mercado editorial privado, com destaque a importantes
coleções sobre história do Brasil. Dentre elas, a "Documentos Brasileiros", da editora
José Olympio e a "Biblioteca Histórica Brasileira”, da Livraria Martins Editora. Ambas
buscaram pôr em prática importantes projetos, cuja gênese podemos encontrar no
movimento modernista.106

106
Boas referências para essa discussão específica são: HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
sua história. 2. ed. EdUSP, 2005; FRANZINI, Fábio. À sombra das palmeiras: a coleção
Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1959). 2006. Tese
Doutorado em História Social. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas
e Letras; FREYRE, G. Prefácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1936; MORAES, Rubens Borba de. Apresentação. In: DAVATZ, Thomas. Memórias
de um colono no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1941; e, SILVA, Rafael Pereira da.
Modernismo, historiografia e sociabilidade intelectual: apontamentos sobre o quinto volume da
coleção Biblioteca História Brasileira (1931-1940). História (São Paulo), vol. 31, n. 2, dezembro de
53

Ao pensarmos a ideia de uma atuação de intelectuais modernistas nos


quadros do governo Vargas, sobretudo após a instauração do Estado Novo, em
1937, algumas questões devem ser ponderadas. Primeiro, devemos lembrar que
Sérgio Buarque de Holanda, então com uma grande experiência no campo
modernista e no jornalismo e já autor de "Raízes do Brasil” 107, foi um desses
intelectuais e como tal atuou em órgãos como a "Universidade do Distrito Federal"-
UDF, o "Instituto Nacional do Livro" - INL e a "Biblioteca Nacional – BN”. Muito antes,
portanto, de clamar por democracia e tecer duras críticas ao ditador Getúlio Vargas
nos idos de 1945, quando este já se encontrava no limbo, durante o "I Congresso
Brasileiro de Escritores”.
O segundo ponto é que, de maneira alguma, o "modernismo" deve ser
visto de forma homogênea ou simplesmente idealizado como um movimento de
contestação no campo das artes. Já nos chamou a atenção o relançamento do livro
de Carlos Berriel, “Tietê, Tejo, Sena”, onde o autor identifica os nada sutis tentáculos
ideológicos da oligarquia cafeicultora paulista nos campos da arte e da cultura. Por
via da atuação do principal mecenas da Semana de 22, Paulo Prado, é que se criou
uma memória oficiosa e acima de qualquer suspeita desse movimento 108. Nas linhas
abaixo, Berriel expõe que essas elites agrárias

(…) atingiram uma espécie de perfeição da ação ideológica: foram críticas


de si mesmas, e como historiadores estabeleceram o lugar que lhes
pareceu adequado no cenário das ideias nacionais. Condenaram práticas
culturais que não lhes serviam e as julgaram supérfluas, e edificaram em
seu lugar estruturas ideológicas eficientes e atualizadas, aptas à sua nova
2012. pp. 310-337. CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela
noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. pp. 181-198.
107
Nunca é demais lembrar que a primeira edição de Raízes do Brasil foi publicada pela editora José
Olympio em 1936, abrindo a Coleção Documentos Brasileiros. A obra foi então prefaciada por
Gilberto Freyre, que além de dirigir essa primeira fase da coleção já havia publicado Casa Grande &
Senzala em 1933.
108
BERRIEL, Carlos. Tiête, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Unicamp, 2013. O autor nos informa que Paulo Prado foi o principal braço intelectual entre a geração
literária portuguesa de 1870, que incluía nomes do peso de Eça de Queiróz ou dos historiadores
Oliveira Martins e Alexandre Herculano, com o modernismo paulista. Dentre as idas e vindas à casa
de seu tio Eduardo Prado, em Paris, absorveu dos intelectuais portugueses, amigos de seu tio, as
teses raciais da época, sobre a história portuguesa e as adaptou à realidade brasileira, buscando
justificar uma suposta superioridade de São Paulo frente aos demais estados. Isso porque, o paulista
descendia do português heróico dos descobrimentos, enquanto os demais brasileiros descendiam de
uma segunda geração, de portugueses misturados com índios lascivos e com os negros corrompidos
pela escravidão. A respeito de Oliveiras Martins, dois trabalhos que tive a oportunidade de conhecer
quando estive em Coimbra, em 2013, para um Colóquio de doutorandos, devem ser mencionados.
São eles: PONTE, Carlos Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção Temas
Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998; MAURÍCIO, Carlos. A invenção de
Oliveira Martins: política, historiografia e identidade nacional no Portugal contemporâneo. Coleção
Temas Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
54

face. Foram impiedosos com parnasianos e simbolistas. Ao se tornarem


críticas de si mesmas, essas elites tornaram homólogas sua trajetória e a do
país, seus projetos de classe e o projeto de nação. Como parte desse
processo, desautorizaram todas as formas de pensamento artístico e
literário estranho ao seu discurso de hegemonia.109

Ao definirem, portanto, uma nova cronologia para a história cultural do


país, essas elites intelectuais ligadas ao poder econômico da família Prado,
buscavam uma memória histórica de si mesmas. É o que constatamos, por exemplo,
em um estudo de Monica Pimenta Velloso: "Criou-se uma memória em que a
Semana de 22 se estabeleceu como um divisor de águas, e tudo o que aconteceu
de moderno no Brasil nas primeiras décadas do século XX passou a ser considerado
uma espécie de premonição dos temas de 22”.110
Partindo de si mesma, a narrativa hegemônica do Modernismo foi
constantemente reelaborada ao longo das décadas de 1930, 40 e 50, contando com
a posição privilegiada de seus atualizadores, escritores e professores, no sistema
local de produção de cultura. Sistema este, que englobava uma ampla e sofisticada
rede de instituições que incluía, por exemplo, a Faculdade de Filosofia e Letras da
USP (local de formação e de trabalho de Telê Ancona Lopez, estudiosa de Mário de
Andrade e de Antonio Candido, muito próximo de Sérgio e um de seus principais
memorialistas), os jornais "Folha de S. Paulo" e "O Estado de S. Paulo", as revistas
"Anhembi" e “Clima", além das editoras Nacional e Martins. 111
Mais recentemente é que a memória historiográfica do mito fundador do
Modernismo foi revista. Hoje devemos nos referir à ideia plural de “modernismos" 112,
para além do eixo Rio-São Paulo. Adepto dessa concepção, o historiador alemão
Peter Gay não se admirava de que os comentaristas, os entusiastas e os
comerciantes mais venais da indústria cultural costumassem mistificar as tentativas
de uma avaliação geral do modernismo. Para ele:

109
Idem, p. 14.
110
VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p.
22.
111
PONTES, Heloísa. Destinos mistos: os cri ́ticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São
Paulo: Cia. Das Letras, 1998.
112
VELLOSO, op.cit, p. 26. A autora lembra que estudiosos como Luis Costa Lima, Alfredo Bosi e
Silviano Santiago foram fundamentais no processo de releitura do modernismo brasileiro. Enfatizando
a diversidade da cultura brasileira, esses autores contribuíram para o entendimento da temporalidade
múltipla que marcava a brasilidade. Ao longo dos anos 1980, foi importante rever criticamente as
ideias que reforçavam uma visão do modernismo baseada na estética da ruptura. O trabalho de
Carlos Berriel, resultante de sua tese de doutorado, também pode ser lido nesse contexto de uma
revisão memorialística.
55

A mesma vagueza cerca o rótulo pespegado a obras artísticas e literárias:


na verdade, desde a metade do século XIX utilizou-se o termo ‘modernismo’
para todo e qualquer tipo de inovação, todo e qualquer objeto que
mostrasse alguma dose de originalidade. Assim, não surpreende que os
historiadores culturais, intimidados com o programa caótico e sempre
variável a que tentam dar uma ordem retrospectiva, tenham recorrido à
prudência do plural: ‘modernismos’.113

A ideia da pluralidade pode ser explicada também pela metáfora familiar,


a qual podemos imaginar uma grande família muito interessante e variada com
todas as suas expressões individuais diferentes, mas unidas por alguns laços
fundamentais, como necessariamente são as famílias. Tais laços são chamados por
Peter Gay de "estilo modernista”. Em suma, "um clima de ideias, sentimentos e
opiniões”.114 Por essa perspectiva, por exemplo, é possível pensar o Modernismo
brasileiro como o desencadeamento de vários movimentos que, ocorrendo em
diferentes temporalidades e espaços, alcançaram de forma distinta grande parte do
país115, e porque não, as esferas estatais.
Mais recentemente Daniel Faria teceu críticas importantes acerca do que
chamou de “mito modernista”. Para esse autor, a cronologia imposta a partir da
Semana de 1922, pelas redes de poder que a constituíram, foi também legitimada
ou propositadamente pouco questionada pela história literária no Brasil, balizada por
esse mesmo recorte temporal, a ponto de “hoje ser impossível qualquer texto sobre
literatura brasileira moderna sem a presença do subtexto ‘modernismo’”. Faria
percebeu que, assim como ele, muitos pesquisadores tinham a mesma sensação ao
indagar o seguinte:

Ora, se um assunto parece assim tão carregado de verdades, pleno e


definitivamente constituído, não é isto razão para a nossa desconfiança?
Um evento comemorado por intelectuais os mais refinados, rememorado em
festas e festivais promovidos pelo estado, sobretudo nas fases mais
autoritárias da história política do Brasil contemporâneo, televisionado,
musicado, reivindicado por poetas marginais e concretistas, ensinado nas
salas de aulas para crianças, adolescentes, jovens e adultos - um evento
deste tipo não merece ao menos uma pulga atrás da orelha? 116

Exemplo concreto dessa constatação é o fato de que autores como Mário


de Andrade e Menotti del Picchia terem adotado em suas vidas outros rótulos de
113
GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia. De Baudelaire a Beckett e mais um pouco. trad.
Denise Bottmam. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p, 17.
114
Idem, pp. 18-19.
115
VELLOSO, op.cit, p. 29.
116
FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: Editora da UFU, 2006. p. 14.
56

identificação, como por exemplo, o de “futuristas", entre os anos de 1921 e 1922. Ao


que tudo indica, o título de “modernista" foi instituído por Mário alguns anos depois
como uma tática de legitimação de agrupamento literário e político específico, se
tornando canônico e mais abrangente a partir da década de 1930, ganhando
estatuto acadêmico na década de 1950 a partir da obra de Antonio Candido e
alcançando expressão editorial somente na década de 1970, então promovida pelo
Estado, observado a partir de livros publicados em co-edições com o Conselho
Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. 117
A partir da década de 1930, a atuação de intelectuais na esfera do estado
autoritário gerou debates ainda hoje controversos. A tese mais conhecida a esse
respeito parte justamente da ideia de “cooptação" por parte do Estado, de um
grande número de intelectuais para ocuparem altos cargos de direção em diversas
repartições. Desse modo, vivendo às expensas do Estado vieram a produzir uma
cultura sintonizada com os desígnios autoritários governamentais, ao mesmo tempo
em que se autodenominavam intérpretes dos anseios da nação. 118
Antonio Candido ao analisar o "espírito dos anos 30", diz ter faltado à tese
de Sérgio Miceli o fato de que "o serviço público não significou e não significa
necessariamente identificação com as ideologias e interesses dominantes". Para
Candido, a margem de atuação opositora de intelectuais no período vinha de uma
elasticidade maior ou menor do sistema dominante, que os pôde abrigar e tolerar,
sem que esse sistema deixasse de exercer sua função corrosiva. 119 Assim é que,
durante o Estado Novo, por exemplo, Candido Portinari, cumprindo encomenda
oficial, pintou no moderno prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, os
"famosos murais que, pela concepção, temário e técnica, eram a negação do regime
opressor, ao mostrarem como representante da produção o trabalhador, não o

117
Idem, p. 15. Segundo Faria e na mesma direção de Peter Gay, o termo “modernismo” já existia,
mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos intelectuais e estéticos, conjuntos
de ideias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. Este sentido ainda é válido
em outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo" e “vanguardas" não são termos
equivalentes.
118
Sobre esse debate ver: Miceli, Sérgio. Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945).
São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979 e DECCA, Edgar S. de. Os intelectuais e a redemocratização
no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am
Main: Vervuert, 1991. pp. 29-42.
119
CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 194.
57

patrão branco, e ao fazê-lo conforme uma fatura que afirmava a inovação criadora
contra as normas tradicionais, de agrado dos poderes”. 120
Se antes, a abertura criativa concedida a Portinari pôde ser interpretada
numa chave de resistência à opressão, hoje sabemos que Vargas tinha muito clara a
intenção de “elevação do homem brasileiro”. Numa explícita parceria entre governo
e artistas e contando ainda com cientistas sociais, o governo impôs critérios
importantes para fixar a figura ideal que “nos seja lícito imaginar como representativa
do futuro homem brasileiro”, não se furtando de análises embasadas na frenologia,
na somatologia, na antropometria e sustentadas em dados sobre a formação,
evolução e unidade racial da população brasileira.
Em outras palavras, como demonstrou em sua pesquisa Maria Bernadete
Ramos Flores, “se não se pode afirmar que Vargas tivesse criado ‘uma imagem
unívoca e definida' para seu governo, pelos editais de concursos e pelos termos das
encomendas, mostra-se clara uma escolha estética paralela àquelas utilizadas nos
diversos programas imagéticos oficiais, no entre-guerras”. 121 O chamado "retorno à
ordem”, ao re-figurar o corpo fragmentado pelas vanguardas artísticas do início do
século, conclui, serviu aos programas de crença no advento do “homem novo”. O
trabalhador, a juventude e a mãe foram, em todos os governos, as figuras exaltadas,
esculpidas na sua integridade corpórea, transformadas em simióforos que
carregariam o ideal de nação.122
Assim é que vemos, por exemplo, o berço da civilização ocidental, no
caso da Itália; a raça pura, no caso da Alemanha; a nação próspera, nos casos da
União Soviética e dos Estados Unidos ou o expansionismo civilizado de mundos, no
caso português. No Brasil, a apropriação getulista da estética, em circulação na
Europa e nos Estados Unidos, projetava o “futuro homem brasileiro” de modo que o
conjunto escultório do Edifício do Ministério da Educação voltava-se para o futuro da

120
Idem, pp. 194-195. Nesse passagem, Antonio Candido vale-se do trabalho de Annateresa Fabris,
Portinari pintor social. 1977. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo (USP). Escola
de Comunicação e Artes. Nas palavras de Antonio Candido, a autora focaliza a pintura social de
Portinari à luz da teoria marxista da alienação, analisando o tratamento revolucionário do negro, cuja
função em telas e painéis dos anos 30 é uma afirmação racial, é um reconhecimento do seu papel
histórico, é símbolo do proletariado (FABRIS, op.cit. p. 176).
121
FLORES, Maria Bernadete Ramos. O nu e o vestido, o futuro e o passado, a pedra e a carne: a
estética da representação no Brasil e em Portugal. In: Tecnologia e estética do racismo. Ciência e
arte na política da beleza. Chapecó/SC: Argos, 2007. pp. 139-177.
122
Idem.
58

raça, ideal debatido intensamente pela geração de intelectuais que, de alguma


forma, concederam estilo ao governo estadonovista. 123
O Ministério da Educação e Saúde Pública - MES era comandado por
Gustavo Capanema e se transformou num dos principais pilares do regime ditatorial.
Esse microcosmo político, também chamado de "Constelação Capanema”, se tornou
um espaço profícuo para diferentes vertentes modernistas. É o que conclui a
historiadora Maria de Fátima Piazza, quando contrapõe a tese da "cooptação":

Sob a égide do mecenato Capanema foi que o dilema da participação dos


intelectuais e artistas na política teve seu ponto nevrálgico. Aqui vislumbra-
se o encontro de uma geração de intelectuais e artistas modernos, oriundos
de diversos estados da federação, cujo destino foi uma repartição pública, o
Ministério da Educação e Saúde Pública (MES). Foi desse órgão da
administração pública federal, conduzido por dois mineiros, o ministro
Capanema e seu chefe de gabinete, o poeta e escritor Carlos Drummond de
Andrade, que surgiu a “constelação Capanema”.124

A “constelação” nada tinha a ver com a censura imposta pelo


Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, muito menos com a repressão e
violência impostas por outros aparelhos do estado varguista. Gozava, antes, de
alguma autonomia para que seus projetos pudessem ser colocados em prática. No
MES, transformaram o “fardo-burocrático" em instituições que revelaram o Brasil
moderno - como o "Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional" (hoje,

123
Ibidem, p. 148. Na abertura do capítulo a autora descreve um bom exemplo dessas discussões:
Em junho de 1937, o ministro Capanema apresentara a Getúlio a proposta da estátua do homem
brasileiro a ser erigida no pátio do Edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública - MES: um
bloco de de granito, aproximadamente 11 metros de altura, sentado num soco, nu, como o Penseur,
de Rodin, mas de aspecto que denotasse calma, domínio, afirmação. (…) Porém, Censo Antônio, que
recebera a encomenda, apresentara um projeto que não correspondia ao desejado por Capanema: o
homem era de feições sertanejas, barrigudo e pouco atlético. Pouco depois a encomenda lhe foi
retirada e foi aberto um concurso público em janeiro de 1938 com as seguintes prescrições: a estátua
será constituída simplesmente com um homem que estará sentado; representativo do melhor tipo
racial brasileiro; o homem estará nu, respeitadas porém as conveniências da praça pública; será de
12 metros de altura e em granito; o pedestal terá apenas 30 ou 40 cm. Seria uma monumentalidade
em frente ao edifício do Ministério da Educação. A encomenda foi entregue a Brecheret, com a
recomendação expressa de Capanema, para que não fizesse trabalho estilizado e nem decorativo,
(…) o homem deveria ser figura sólida, forte. Nada de rapaz bonito. Um tipo moreno, de boa
qualidade, com semblante denunciando a inteligência, a elevação, a coragem, a capacidade de criar
e realizar. A estátua não fora concluída. Conta-se que a maquete de 3 metros de altura teria
desabado, sem deixar vestígios. Pelo exposto, o Homem Brasileiro seria de matriz clássica, aquele
"homem novo” que estava no centro dos interesses de todos os regimes políticos da década de 30.
FLORES, op.cit, pp. 141-142.
124
PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Os Afrescos nos trópicos: Portinari e o mecenato Capanema.
2003. Tese de Doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas. p. 24. Um outro estudo importante dessa temática é a coletânea
organizada por Helena Bonemy, Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:
Editora FGV; Bragança Paulista (SP): Editora Univ. de São Francisco, 2001.
59

IPHAN), o "Instituto Nacional do Livro", o "Serviço de Radiodifusão Educativa", o


"Serviço Nacional de Teatro", entre outros. 125
Um bom exemplo pode ser visto na montagem da "Coleção Biblioteca
Histórica Brasileira", que envolveu agentes públicos e a Livraria Martins Editora. 126
Na época em que chefiava a seção de publicações do Instituto Nacional do Livro,
cargo ocupado a convite de um amigo, o poeta e ensaísta gaúcho Augusto Meyer,
muito próximo de Vargas, Sérgio Buarque de Holanda foi convidado por um outro
amigo, o paulista Rubens Borba de Moraes a traduzir o quinto volume da coleção.
"Memórias de um colono no Brasil”, do imigrante teuto-suíço Thomas Davatz foi
lançado pela Martins Editora em 1941. O livro, assim como os demais que
compunham essa coleção, interessava muito mais pelo seu valor documental do que
literário. A volta às origens era uma das facetas modernistas no campo da
historiografia, o que se fazia a partir do estudo sistematizado de fontes documentais,
manuscritas e de preferência que versassem sobre o período colonial.
Em uma entrevista concedida nos idos de 1982, Rubens Borba de
Moraes, que à época da “Coleção", era diretor da Biblioteca Pública Municipal de
São Paulo, remonta essa perspectiva de um estudo “moderno" da História do Brasil:

Agora, o que aconteceu comigo, aconteceu com os outros também.


Aconteceu com o Mário, com o Oswald e com o Sérgio Milliet. Eu cheguei
aqui sem conhecer a cultura brasileira porque tinha ido para a Europa com 9
anos; voltei com 20. De maneira que eu não conhecia a cultura brasileira.
Comecei a ler. Passei três meses na fazenda com um monte de livros da
biblioteca da fazenda. Os livros que havia na fazenda eram ruins. Tinha
muito José de Alencar, tinha Taunay, tinha aqueles autores que meu avô e
meu pai liam e gostavam. De maneira que eu me atualizei. Depois, como eu
tinha uma inclinação por história, fui estudar história. Eu já via história a
partir de umas teorias mais modernas, que eu tinha aprendido na
Universidade de Paris. Já não era uma história de fatos, das grandes
pessoas e tal. Falei: "-Mas está tudo errado! está tudo errado! Precisa-se

125
Idem, p. 29. Especificamente sobre o SPHAN, ver: RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-
1968). 1992. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social.
126
A coleção publicou ainda os seguintes títulos: Viagem pitoresca através do Brasil, de Rugendas;
Viagem à Província de Sa ̃o Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire; Reminiscências de viagem, de Danil
Kidder; Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret; Memórias de um colono no
Brasil, de Thomas Davatz; Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles; Viagem à terra do Brasil de Jean
de Léry; Dez anos de Brasil de Carl Sedler; Memorável viagem marítima, de Joan Nieuhof; Notas
sobre o Rio de Janeiro de John Luccock; Viagem às missões jesuíticas do Padre Antônio Sepp von
Rechegg; Imagem do Brasil de Frans Post; Os caduveos de Guido Boggiani; História das missões
dos padres capuchinos, de Claude d’Abbeville; Noti ́cia do Brasil de Gabriel Soares de Souza; História
da guerra Rio e Buenos Aires e Galeria dos Brasileiros Ilustres de S. A. Sisson.
60

estudar o Brasil. (...) Precisamos voltar às fontes, precisamos estudar as


fontes para ver como é que se evoluiu.127

Os órgãos públicos, se por um lado garantiam a muitos intelectuais certa


estabilidade financeira e campo de atuação em suas empreitadas, por outro, os
distanciava cada vez mais das camadas populares, ou dito de outra forma, do
cotidiano de pessoas comuns que buscavam interpretar. Assim é que vivendo a
ilusão de estarem em posição privilegiada, de fora e acima do social, os intelectuais
produziram teorias explicativas da história e da sociedade brasileira pautadas pelo
nacionalismo, superdimensionaram o papel do Estado frente à sociedade e em
nome da modernização e da industrialização justificaram sem constrangimento a
necessidade do autoritarismo estatal. Como demiurgos, "imputaram ao conjunto da
sociedade uma insuficiência e uma incapacidade nabusca de seu próprio destino e,
por fim, atribuíram ao estado o papel de condutor e sujeito da própria história”. 128
Vale lembrar que esse é um período marcado por reações antiliberais em
todo o mundo ocidental, advindas da crise de 1929. Tais reações incluíram o
nazismo, na Alemanha e na Áustria, o fascismo na Itália, o "New Deal” nos Estados
Unidos e várias outras formas de autoritarismo e de nacionalismo. A tomada de
poder por Getúlio Vargas em 1930, e seus desdobramentos, foram a reação
antiliberal brasileira. Esta reação, porém, não foi homogênea e incluía movimentos
sociais, políticos e intelectuais muito diversos, que iam desde o integralismo até o
comunismo. O resultado do entrechoque de forças do período culminou em 1937
com um golpe que instaurou o Estado Novo. 129

127
Entrevista concedida a Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes em 15 de agosto de 1982, na
cidade de Bragança Paulista (SP).
128
DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e
poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 46. A
abordagem dessa história intelectual feita por Edgar de Decca, é ao meu ver um desdobramento de
seu livro O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. Nele, “a revoluc ̧ã o de 30 como memó ́ria histórica do vencedor da luta, fazendo parte do
exercício de dominac ̧ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado, qualificando tanto os
agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é memorizada pelo vencedor
como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a oligarquia”. No que diz respeito à
construção de uma memória histórica pelo vencedor, o autor também chama a atenção para a
cronologia criada após esse “fato”. Nesse sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado
“República Velha”, já que “tal revoluc ̧ão inaugura o novo” (e nisso pode-se inserir as interpretações
do Brasil). A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais a mais
corrente é a da economia agroexportadora x industrializac ̧ão, aspectos que marcaram profundamente
a produção acadêmica ao longo do século XX. DECCA, O silêncio…. pp. 108-110.
129
SALLUM JR, Basílio. Sobre a noção de democracia em Raízes do Brasil. In: MARRAS, Stelio
(org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 52.
61

1.3 "Raízes do Brasil" à contrapelo

O livro de estreia de Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil”, de


1936, passou, conforme a memória histórica, ilesa a qualquer forma de pensamento
autoritário vinculado ao período. Ao prefaciar a obra em 1967, num outro momento
de tensão política, no qual a ditadura civil-militar se consolidava institucionalmente,
Antonio Candido conferiu ao ensaio uma leitura às avessas, do que originalmente as
referências de Sérgio indicavam. Argumentando que ao "encontramos, em Raízes
do Brasil, um radicalismo potencial das classes médias comprometido com o povo",
o crítico, além de atestar o livro como pioneiro do radicalismo democrático, também
influenciava, pelo discurso de autoridade e pelo lugar de fala, uma geração inteira de
leitores que o interpretaram nessa chave. 130
Hoje, graças a pesquisas minuciosas de historiadores, sociólogos e
críticos literários, que buscaram se debruçar na obra, é possível lê-la com outras
lentes.131 Em alguns estudos, por exemplo, o foco concentra-se especialmente na
primeira edição do livro. Num ínterim de paciência arqueológica, se comparada às
demais edições, a primeira apresenta ao leitor um escritor alinhado às discussões de
sua época, doravante, tendente ao pensamento conservador alemão em voga nas
primeiras décadas do século XX, simpático à tirania como forma de governo e
saudosista do império.132 Marcas do tempo que o próprio Sérgio, assim como seus
intérpretes posteriores, buscou apagar de sua biografia.
Na segunda edição, publicada em 1948, houve de fato um apagamento
dos rastros, uma reescrita da memória do livro e do autor, na qual Sérgio Buarque
130
WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendido da democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do
Brasil, 1936. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40;
CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
131
Destaque para os seguintes trabalhos: os já publicados WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendido
da democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1936. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40. EUGENIO, João Kennedy. Ritmo
espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina: EDUFPI,
2011; ROCHA, João Cezar de Castro. Raízes do Brasil: biografia de um livro problema. In: MARRAS,
Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012 e o inédito
CARVALHO, Marcos Vinícius Corrêa. Raízes do Brasil, 1936. Campinas: Unicamp, 1997
(Dissertação de Mestrado), onde o autor procura afinar as atitudes teóricas de Sérgio Buarque com a
hermenêutica de W. Dilthey.
132
WAIZBORT, op.cit., p. 44. A simpatia monarquista de Sérgio Buarque também é apontada por
João Kennedy Eugênio, no artigo ‘Um horizonte de autenticidade: Sérgio Buarque de Holanda,
monarquista, modernista, romântico (1920-1935), que compõe parte da coletânea, Sérgio Buarque
de Holanda: perspectivas. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.
62

buscou sanear os córregos que o ligavam às nascentes alemãs de pensamento


autoritário. E isso por uma razão muito clara: o país já estava livre da ditadura
varguista. Nisso é que ideias de teóricos alemães ligados à cultura nazista como
Carl Schmidt, Friedrich Nietzsche, Oswald Spengler ou Ludwig Klages foram
expurgadas, ao mesmo tempo em que Sérgio também redefinia sua posição e seus
valores políticos, de modo que relido em outro momento o livro se tornou referência
para o debate político-intelectual da época, se afirmando como parte do movimento
pela redemocratização do país em curso desde 1945. Período, portanto, em que
Sérgio já tinha consolidado seu nome e o seu papel como historiador.
Numa leitura mais condizente com as matrizes da edição de 1936 é que,
por exemplo, o “mal-entendido da democracia” não seria como no geral se
interpretou, ou seja, uma crítica à retórica democrática de elites que exerciam o
poder político de modo oligárquico. Seria, ao contrário, uma defesa da oligarquia
contra a imposição de formas políticas estranhas às nossas raízes, encaradas na
cordialidade do homem brasileiro. O autor, inspirado no conservadorismo europeu,
criticaria ao modo de Nietzsche (citado em alemão como epígrafe no último capítulo
do livro) o artificialismo das formas trazidas de fora em nome da verdadeira
natureza, orgânica, da vida social. Criticaria, conforme aponta Basílio Sallum, "o
artificialismo da democracia em nome de nossa psique coletiva cordial, que se
ajustaria melhor à oligarquia, cuja melhor realização teria sido o segundo Império
Brasileiro”.133
Outro exemplo dos aportes teóricos conservadores, lidos e apropriados
por Holanda na primeira edição de "Raízes do Brasil”, mas suprimidas das demais, é
o do professor de Direito Público da Universidade de Bonn, Carl Schmitt. Embora
pontual, a referência é relevante na medida em que, no ano de 1935, Sérgio
publicava uma resenha da obra "O conceito de político"(1927) 134, de Schmitt, a

133
SALLUM JR, op.cit., pp. 53-54. Não cabe neste espaço adentrar essa discussão de modo
sistemático, o que inclusive já foi feito de maneira competente por outros autores, citados em nota
anterior. Todavia, é importante mencionar que a gênese do pensamento de Sérgio Buarque ao
elaborar o texto final da edição de Raízes de Brasil de 1936, encontra-se num debate do pensamento
alemão em torno das ideias de psicogênese e sociogênese. Para Leopoldo Waizbort, no período que
vai da virada do século XX até o início do período nacional-socialista na Alemanha, a discussão
acerca dos nexos de pisco e sociogênese é um dos núcleos fortes em torno do qual gravitavam os
debates acerca da interpretação histórico-cultural-social, debate esse difuso por toda a plêiade das
humanidades. Para Waizbort, a sociologia de então, procurou desenvolver esse problema, que pode
ser rasteado em autores como Georg Simmel, Max Weber, Ernst Troeltsch, Werner Sombart, Hans
Freyer, Karl Mannheim e Norbert Elias, todos conhecidos de Sérgio. WAIZBORT, op.cit., p. 41.
134
A resenha em questão, intitulada O Estado totalitário, encontra-se em: BARBOSA, Francisco de
Assis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 298-301.
63

mesma citada em “Raízes". Portanto, uma emissão de juízo escrita quando Sérgio
finalizava o livro e na qual "glosa Schmitt em perspectiva favorável". Observando a
resenha, notamos que a problemática da democracia sequer é mencionada. Não se
tratava de um tópico de discussão na obra de Schmitt mas, ao inserí-la em "Raízes
do Brasil”, a democracia passava a ser um "mal-entendido a ser esclarecido”.135
Desse modo é que no capítulo final de “Raízes do Brasil", "Nossa
revolução”, página 155, a complexa discussão acerca das condições do totalitarismo
na iminência do colapso do modelo de democracia liberal apresenta uma frase de
impacto: "É um fato instrutivo o das doutrinas que exaltam o princípio de autoridade
pressuporem fatalmente a ideia de que os homens são maus por natureza”. Trata-se
justamente de uma citação extraída de "O conceito de político", de Carl Schmitt.
Nesse contexto, Leopold Waizbort questiona se valeria a pena indagar se o Estado
forte, mesmo imposto, não seria no entender de Sérgio Buarque uma assertiva
compatível com a situação brasileira da época, justamente porque ela se
caracterizava por uma condição na qual o Estado impessoal, democrático, não se
positivava, tolhido pelo poder privado. Em outras palavras, não restava dúvida de
que a alternativa mais viável para essa disfunção, essa incapacidade de
organização da vida nacional era a de um Estado antiliberal forte e focado na figura
do tirano, ou seja, um presságio à própria imagem personalista de Vargas que se
constituía às vésperas de um golpe.136
Outra chave para a compreensão de "Raízes do Brasil” se dá a partir do
estudo de suas metáforas.137 Embora Leopold Waizbort objete que considerações ao
livro nessa perspectiva diluam seu sentido histórico e político, já foi comprovado pelo
contrário, que elas receberam de Sérgio um lugar central na formulação de seus
argumentos e no estilo de sua narrativa. Isso sem especular as metáforas que,
ressignificadas pelo autor, desdobraram-se e ganharam novos contornos em suas
interpretações posteriores. É o que sugere Edgar de Decca, nos lembrando que:

(…) a principal chave de entendimento da obra de Sérgio Buarque está na


relação metafórica que ele estabelece entre história e vida, sendo a última
um processo gradual de conhecimento através da experiência, a

135
WAIZBORT, op.cit., p. 53.
136
Idem.
137
Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema da metáfora, ver: RICOEUR, Paul; MACEDO,
Dion Davi (Coaut. de). A metáfora viva. São Paulo, SP: Loyola, 2000; BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Uma questão de estilo. In: O charme da ciência e a sedução da objetividade. Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. pp. 455-486.
64

experiência pessoal, imediata e a história, que teria uma certa afinidade


com a arte, ‘como conhecimento que incorpora a nova verdade da
experiência imediata, alterando e estabelecendo o mundo conhecido do
passado, e, alternativamente, exibe a verdade estabelecida, o padrão ideal
ou externo ao qual a experiência de vida que está ocorrendo no momento
deve ser associada’.138

É com base nessa relação, entre história e vida, que encontramos a


concepção histórica de Sérgio. Para ele, a própria história é entendida como uma
metáfora. É a história que liga o mundo do presente ao mundo do passado,
permitindo o transporte do mundo da experiência imediata para o das verdades
estabelecidas e da tradição. Assim, para evitar vertigens nessas cessões é que nos
valemos da metáfora, ponte que permite a passagem entre os dois mundos. Só
assim é que podemos falar de uma história redentora, viva, escrita a partir das
perturbações do agora, na qual o peso morto de um passado estático deve ser
exorcizado para que um novo tempo se estabeleça. Nas palavras de Sérgio
Buarque,

(…) uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de
seu tempo – mas em caso contrário ainda pode se chamar historiador –
consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer
isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas
ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no
passado o bom remédio para as misérias do momento que corre. 139

Ou seja, o passado não nos serve para explicar o presente. Ao contrário,


do "momento que corre" é que devemos buscar “afugentar" as coisas idas, os
nossos fantasmas, assombrações, os nossos problemas. Por esse motivo é que
podemos afirmar que a obra de Sérgio Buarque é movediça, um permanente
atravessar de fronteiras, de percursos, de caminhos e de estradas móveis, uma
ponte entre a tradição e a vontade do devir e de mudanças. A história, dessa forma,
jamais é fixa, sendo uma operação dos anseios de cada época. A partir do
entendimento da história como metáfora, De Decca propõe uma investigação de
"Raízes do Brasil”, buscando ao final de sua análise não apenas uma apreensão dos

138
DECCA, Edgar S. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil: decifra-me ou te devoro. Vária
História, Belo Horizonte, vol. 22, n. 36, Jul/Dez., 2006. p. 427.
139
HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1977. p.
XVIII.
65

sentidos figurados da obra, mas também das acepções políticas e sociais que ela
destinava aos leitores do tempo.140
Das metáforas consagradas por Sérgio Buarque, "fronteira e semeadura”
são imagens importantes do enredo que esse historiador atribuiu à sua explicação
do Brasil. Não por acaso, o capítulo que abre o livro trata das "Fronteiras da Europa",
uma homenagem, mas também continuidade à obra do historiador alemão Leopold
Von Ranke141, na qual Sérgio explora a metáfora da viagem da Europa a partir de
suas zonas de fronteira. Assim, através de Portugal e da Espanha, a Europa faria a
expansão do seu sentido e a partir de então, seriam apreendidas por outros povos
como metáforas civilizatórias. Ou nas palavras do próprio Sérgio Buarque:

A Espanha e Portugal são, como a Rússia e os países balcânicos (…) um


dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros
mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição menos
carregada, por si mesmo, desse europeismo que, não obstante, mantém
como um patrimônio.142

Vale lembrar que esse sentido metafórico de Portugal como fronteira


europeia foi tema da inédita tese de mestrado do autor, defendida em 1958, na
Escola Livre de Sociologia e Política. Intitulada "Elementos formadores da sociedade
portuguesa na época dos descobrimentos", a pesquisa buscou entre outros
assuntos, tratar das fronteiras étnicas, espaço de formação da sociedade
portuguesa no cruzamento das culturas muçulmana, hebraica e ibérica, descontando
a forte presença do negro africano. Nesse estudo, o jogo polissêmico do termo
fronteira possibilitou a Sérgio inferir que o multiculturalismo étnico fez Portugal voltar-

140
Não nos cabe nesse capítulo e nem é nossa intenção fazer uma leitura pormenorizada dos
significados possíveis atribuídos ao livro de estreia de Sérgio Buarque. Tampouco é objetivo fazer
uma leitura através da vasta fortuna crítica, lembrando que nosso foco principal é o autor como um
personagem. Nessa parte do capítulo, "Raízes do Brasil” é visto como um produto do seu tempo e
serviu como exemplo de análise social feita a partir dos anos 1930, momento de amplas
interpretações sobre o país.
141
Vale lembrar que, já no fim da vida, Sérgio escreve um longo ensaio sobre esse historiador.
Ranke, no momento político de nacionalismos europeus do século XIX, buscou estabelecer através
da análise histórica as fronteiras políticas e culturais europeias, percebendo essa unidade a partir de
três momentos: o primeiro momento foi a intensa migração dos povos romanos e germânicos,
propiciando a formação do interior da Europa; com as Cruzadas, segundo momento, os europeus
criaram o espírito de expansão para o exterior e de luta contra o infiel, criando uma profunda divisão
entre a cristandade de Roma e a cristandade oriental; por último, como observou Sérgio Buarque, as
fronteiras europeias se expandem para além dos oceanos, com a expansão ultramarina. HOLANDA,
Sérgio Buarque. Ranke. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979.
142
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. p. 4.
66

se para fora, sem muito apelo à sua própria internalização, daí a empresa colonial
ter sido sucedânea de uma disposição já existente.143
O complexo jogo de referências que envolvem a metáfora da
"semeadura", que parte da carta de Pero Vaz de Caminha, passando pelos sermões
do Padre Antônio Vieira e por obras como "Retrato do Brasil" (1928), de Paulo Prado
e "Casa Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre são importantes para a
compreensão do conceito de "homem cordial”. Em linhas gerais, a metáfora da
semeadura é relevante porque ajuda a explicar a passagem no Brasil de um mundo
agrário, exportador e tradicional para um mundo urbano e no seu horizonte,
moderno.
Nessa dinâmica, a fronteira reaparece como um lugar de contato entre
esses dois mundos. Diferente, portanto, de autores como Prado ou Freyre, para
quem semeadura tinha conotação sexual, de melancolia ou de adaptabilidade, para
Sérgio Buarque há uma dessexualização dessa metáfora e ela torna-se a forma de
constituição da colônia e do seu desdobramento do agrário para o urbano. Distancia-
se também de Vieira e de suas alusões ao sentido agrícola, para explicar a forma de
criação das cidades portuguesas na sua contraposição às espanholas. 144
A grande pergunta para Sérgio era de que modo a semeadura realizada
pelos nossos pais colonizadores foi capaz de dar forma a esta "original contribuição
brasileira para a civilização”, o homem cordial, em cujos traços permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio transpostos do meio rural e
patriarcal. Desse modo, podemos afirmar que há na interpretação de Sérgio
Buarque todo um ciclo de reprodução que se estende desde a semeadura da terra à
criação das raízes, chegando ao desenvolvimento do fruto na sua forma definitiva, o
homem cordial brasileiro.
Muito já se especulou a respeito dessa herança brasileira ao mundo.
Grosso modo, a expressão foi pela primeira vez utilizada em 1931 por Rui Ribeiro
Couto. Valendo-se também da metáfora da semeadura, todavia para um contexto
americano, afirmava esse autor que o egoísmo europeu, tocado pela intolerância e
pela fome, fundou no "leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa

143
DECCA, Edgar S. As metáforas…op.cit., p. 432. Uma cópia dessa tese encontra-se no Arquivo
Central da Unicamp. Nos arquivos da Escola Livre de Sociologia e Política-ELSP há um dossiê sobre
a vida universitária de Sérgio Buarque. Dentre os documentos encontram-se seus boletins, a ata de
defesa dessa tese, a cópia de seus trabalhos para as disciplinas cursadas, sua prova de proficiência
em língua alemã, entre outros.
144
Idem, p. 435.
67

daquela terra, a família dos homens cordiais", que se distinguiam do resto da


humanidade por duas características americanas: a hospitalidade e a credulidade. 145
É justamente nesse ponto, a partir do homem cordial e do seu jogo
metafórico, que o pensamento conservador de Sérgio se cruza, tal como
demonstrado acima, com o dos pensadores alemães. No seio das transformações
em curso na sociedade brasileira, rumo à urbanização e à industrialização, não por
acaso é que o homem cordial dissolve as distâncias e as diferenças de uma maneira
tão astuciosa que ao final do livro "ele disfarçadamente toma conta do próprio
historiador", quando Sérgio Buarque desagrega ao mesmo tempo a esquerda e a
direita brasileiras, num prenúncio de um tempo futuro que estaria ainda por
chegar.146
Dando cores ao desenho e alinhando as formas, o autor condenava o
verde do fascismo à brasileira, de um lado, o vermelho do comunismo, de outro, ao
mesmo tempo em que esquadrinhava, ao centro, críticas ao liberalismo. Em suma,
não compactuava com nenhum desses sistemas de ideias e valores, que no Brasil
não deitaram raízes e seriam, portanto, ideias importadas e fora de lugar. Daí a
dificuldade de nós lidarmos com as instituições impessoais, com as normas sociais e
com as leis abstratas como previa o Estado democrático burguês. Disso derivaria
nossa tendência à anarquia e nosso apego aos líderes autoritários que nos imporiam
a ordem e o constrangimento de nossos excessos. À luz do tempo histórico vivido
pelo autor, o capítulo final de "Raízes do Brasil” se tornava profético, pois não
bastava a implementação do Estado para a superação da ordem familiar, "eis que o
novo governante se auto intitularia o pai dos pobres”. 147 Em suma, "Raízes do Brasil”
se torna um instigante exemplo para pensarmos a ideia de explicação do país feita
de cima, num momento em que se buscava a modernização. Embora advindo do
modernismo, o enigmático ensaio de Sérgio Buarque, diferentemente do que
sustentou durante muito tempo sua fortuna crítica, serviu muito mais aos anseios do
“novo” que se buscava a partir de 1930, do que propriamente como um grito
democrático radical como propôs o memorialismo de Antonio Candido. O livro não

145
COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano. Revista do Brasil, Rio de Janeiro,
1985. Para de Decca, é bem possível que expressão tomada emprestada de Ribeiro Couto seja uma
alusão reatualizada e crítica de outro texto caro ao pensamento latino americano, Ariel, de José
Enrique Rodó.
146
DECCA, As metáforas…op.cit., p. 437.
147
Idem, pp. 437-8 e também GNERRE, Maria Lúcia. A tragédia da cordialidade: Antígona, o
estado e família no homem cordial de Raízes do Brasil. (texto inédito, doutorado Unicamp).
68

ficou isolado nessa ótica e nem foi calado pelo Estado Novo, formando ao lado de
outras explicações, como as de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior, o que a
posteriori se rotulou de moderna historiografia brasileira.148
E o rótulo “novo/moderno", tal como visto acima entre os modernistas de
São Paulo, também serviu de demarcação para uma nova cronologia da história da
história no Brasil. De modo que, toda a produção historiográfica anterior a 1930
passou a ser vista como um conjunto homogêneo e monolítico, salvo Capistrano de
Abreu, "homem ponte" entre gerações149 marcado por leituras oficiosas, autorizadas,
positivistas, raciais, advindas da tradição criada pela fundação do "Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro” - IHGB, ainda no século XIX. Assim, o novo tempo histórico
forjado pela “revolução” de 30 permitiu um (re)descobrimento do Brasil moderno,
exemplificado pelos diferentes diagnósticos produzidos da nação.

1.4. Sérgio Buarque nas engrenagens do serviço publico

Na época em que publicou “Raízes", Sérgio havia sido convidado a


trabalhar como professor na recém-inaugurada e efêmera Universidade do Distrito
Federal-UDF, idealizada pelo Secretário de Educação do Distrito Federal, Anísio

148
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memória e história da historiografia no Brasil: a invenção de
uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al.) Mitos, projetos e práticas políticas:
memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Vele destacar aqui a recente
obra organizada por Lincoln Secco e Luiz Bernardo Pericás, Intérpretes do Brasil: clássicos,
rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. Mesmo propondo trazer à luz autores pouco
estudados hoje ou relegados/esquecidos propositalmente pelos meios acadêmicos, a obra não deixa
de atestar a ideia de clássico, atribuída a Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre,
reforçando o memorialismo de Antonio Candido, também personagem da obra. Na crítica que
publicou ao livro, no jornal O Globo do dia 9 de março de 2014, o professor da IUPERJ, Francisco
Carlos Teixeira da Silva levanta questionamentos importantes: "por que os clássicos fazem
companhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em si
mesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e
“renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado de
outros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e Paulo
Freire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civil-militar, exilado e morto de forma vergonhosa
para o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos ainda
dívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por isso
mesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram de
tristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhuma
injustiça com os mestres já consagrados (…) abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outros
nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos,
então, um livro com sabor de resposta e de desafio. Em vez de repetir aqueles que frequentam com
assiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala ou
susto” (…) para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos".
149
Para uma análise detalhada de Capistrano de Abreu ver: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano:
Capistrano de Abreu (1853-1927), memória, historiografia, escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013.
69

Teixeira. O convite foi concretizado por seu amigo e padrinho de casamento, ao lado
de Rodrigo Mello Franco Andrade, Prudente de Moraes, neto, então diretor da
Faculdade de Filosofia e Letras. Mello Franco, na mesma época, em 1937, assumiu
a direção do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-
SPHAN, concebido por Mário de Andrade. Na UDF, Sérgio teria como companheiros
de prática docente o mineiro Afonso Arinos de Melo Franco, amigo de Sérgio desde
os tempos da Faculdade de Direito, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Gilberto
Freyre, entre outros.
Conduzida pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro desde 1935, a
UDF se distanciou do projeto educativo construído pelo Estado Novo nos anos
subsequentes ao golpe. A esse fato soma-se uma intensa campanha pública
difamatória de denúncia ao comunismo, feita pelo paladino do catolicismo à época,
Alceu Amoroso Lima, então reitor da UDF, levando ao fechamento da universidade
em 1939. De lá Sérgio partiu para o Instituto Nacional do Livro-INL, dirigido como já
dito, pelo gaúcho Augusto Meyer, amigo de Vargas. Antes, porém, o intelectual teve
uma breve passagem pelo Departamento de Teatro, ligado ao Ministério da
Educação.
Sua já mencionada fase no INL foi marcada pelo relacionamento com
Rubens Borba de Moraes. Dentre os diversos temas tratados pelos intelectuais, em
suas trocas epistolares, podemos destacar dois: a já citada organização da "Coleção
Biblioteca Histórica Brasileira” e a elaboração do "Handbook of Brazilian Studies”,
obra que seria realizada em coautoria entre Moraes e o estadunidense William
Berrien.150 Foi nessa época que Sérgio se aproximou do historiador Lewis Hanke,
diretor da "Hispanic Foundation" e ligada à "Library of Congress”. Segundo aponta
Thiago Nicodemo, foi por meio dessa ligação e em nome do próprio Instituto que
Sérgio Buarque viajou ao Estados Unidos em 1941, conferindo palestras no estado
de Wyoming e debatendo na Universidade de Chicago. Também aproveitou a
oportunidade para pesquisar na "Library of Congress" e esticar uns dias em Nova
Iorque.151
150
Essas correspondências encontram-se no Arquivo Central/SIARQ, da Universidade Estadual de
Campinas/Unicamp.
151
NICODEMO, Thiago L. Sérgio Buarque de Holanda e a dinâmica das Instituições Culturais no
Brasil (1930-1960). In: MARRAS, Stelio. (org). Atualidades de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
p. 113. Ao relatar essa passagem de Sérgio pelos Estados Unidos, Nicodemo nos informa que: “(…)
enquanto esteve em Nova Iorque, horas antes de embarcar para o Brasil, em 18 de julho de 1941,
Sérgio entrou em contato com Paulo Duarte e lhe passou informações sobre como deveria proceder
para obter cópias de manuscritos do século XVIII e XIX para a Biblioteca Municipal de São Paulo, e
70

No que pese a passagem de Sérgio Buarque pelos Estados Unidos,


estudos apontam que ela foi importante não apenas pelos laços estabelecidos com
pesquisadores estrangeiros, mas também pelo contato com outras formas de
abordagem histórica, que pouco depois apareceriam em obras como, "Monções"
(1945) e "Caminhos e Fronteiras” (1957). Especialmente no que se refere à tese da
"fronteira", lida a partir do livro "The Frontier in American History", publicado em 1920
e apropriada do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner. 152
Na sequência de seu itinerário pelos órgãos públicos, Sérgio assume, em
1944, a Divisão de Consultas da Biblioteca Nacional, ao lado do amigo Rubens
Borba, possível responsável por sua transferência. Este se estabeleceu na Divisão
de Preparação, a convite de Gustavo Capanema e do Ministro do Trabalho,
Marcondes Filho, na promessa de chegar à direção tão logo seu desafeto, Rodolfo
Garcia, se aposentasse.153 Em termos mais exatos, Sérgio Buarque foi "nomeado

sugerindo que entrasse em contato com Berrien e Hanke. Nicodemo se baseia em uma carta
localizada no CEDAE/Unicamp, Arquivo Paulo Duarte, vol. 8. De fato esse contato foi realizado. Um
Memorandum, de 18 de agosto de 1941, enviado por Geoge Sioussat, chefe da Divisão de
Manuscritos, a Paulo Duarte, aponta a lista de documentos consultados por Sérgio Buarque antes de
seu embarque de volta ao Brasil. Essa fonte afirma, ainda, que a seção de manuscritos estava
calculando os custos estimados para a microfilmagem dos seguintes documentos: Cleary, Brazil
Chronicas Lageanas. Or a record of facts and observations on manners and custons in South Brazil,
extracted from notes taken on the spot, during a period of more than 20 years. Lages, 1886. 415 pp.8-
3/4 x 13 in; Cleary, Brazil under the Monarchy. A record of facts and observations. From notes taken
in Brazil during a period of more than 20 years. n. d. 189 pp. 8 x 12-1/2in; Resolutien raeckend Brazil.
1649. 1 vol., 501 pp., 8-1/2 x 13 in; Rapports van Brazil (West India and East India companies, etc.)
16 items. 1636 - 1644. 235 pp., 8-3/4 x 13 in; Miscellaneous Papers relating to the West India
Company, Portugal and Brazil (In Dutch). 40 items. 1568, 1635-1695. 205 pp., 8-1/2 x 13. Essa
informação vai ao encontro do que já apontamos, ou seja, a ideia de uma moderna interpretação do
Brasil deveria passar pela devassa e pela leitura de documentos, sobretudo, manuscritos, de
preferência inéditos e localizados em arquivos fora do país. Na época em que localizei esse
documento, ainda em 2011, o CEDAE/Unicamp encontrava-se em fase de mudança para a atual
sede, no Instituto de Estudos da Linguagem. Dessa forma, o Memorandum estava em meio a um
grande volume de documentos avulsos, mas identificados como sendo as correspondências
recebidas por Paulo Duarte. Sobre a passagem de Sérgio Buarque pelo INL ver de maneira mais
detalhada: CARVALHO, Marcus Vinicius C. O Instituto Nacional do Livro e os modernistas: questões
para a história da educação brasileira. In: Cadernos de História da Educação, vol. 11, nº 2, jul/dez,
2012. pp. 543-557.
152
NICODEMO, op.cit., 113. Sobre essa "fase americana” de Sérgio Buarque vale consultar ainda:
WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo
Horizonte: EdUFMG, 2000 e o artigo cunhado pelo próprio autor na época, publicado no "Diário de
Notícias" do Rio de Janeiro e em livro na coletânea "Cobra de Vidro", de 1945, "Considerações sobre
o americanismo”. Vale mencionar ainda, que na Biblioteca que pertenceu a Sérgio Buarque há um
exemplar do livro de Turner, publicado em Nova Iorque em 1920 pela editora H. Holt. É bem possível,
portanto, que o historiador o tenha obtido durante a viagem aos Estados Unidos. A tese de Turner foi
apresentada pela primeira vez em formato de paper com o título "The significance of the Frontier in
American History", em 1893, durante um encontro da American Historical Association, em Chicago.
153
Nas correspondências trocadas entre Rubens Borba e Sérgio Buarque, Rodolfo Garcia é tratado
pelo primeiro várias vezes em tom de galhofa. Essa desavença também pode ser conferida em:
BANDEIRA, Suelena P. O mestre dos livros: Rubens Borba de Moraes. Brasília: Briquet de
Lemos/Livros, 2007. A chegada à diretoria da Biblioteca de fato ocorreu. Rubens Borba assumiu o
posto em 17 de dezembro de 1945, já sem a figura de Getúlio Vargas na presidência. Sua gestão à
71

diretor Padrão N, em comissão, por Decreto de 15 de agosto, com exercício a contar


a partir de 2 de setembro", conforme aponta o Relatório enviado pelo Diretor da BN
ao ministro Gustavo Capanema, em fevereiro de 1945. 154 Ao iniciarem os trabalhos,
os amigos constataram a precariedade em que o acervo se encontrava,
concentrando esforços na reforma e reestruturação de obras raras, periódicos e
manuscritos, atribuições de suas divisões.

1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944

Antes, porém, de descrevermos o estado interno deplorável em que se


encontrava a suntuosa Biblioteca, vale lembrar que 1944 é também o ano em que
Sérgio Buarque lançou, em coautoria com Octávio Tarquínio de Sousa, um manual
escolar, "História do Brasil". Pouco mencionado entre os estudiosos de sua obra, o
material era destinado à 3ª série do curso secundário, ciclo ginasial, e foi publicado
em edição única pela José Olympio. O livro, no entanto, não seria apenas outra
aposta do inteligente editor no mercado de manuais escolares. Na avaliação de
Márcia Gonçalves, o que mais pesava no jogo de interesses e motivações que
envolvia editores, autores e leitores, era a circulação de "novas interpretações” sobre
a formação histórica do Brasil155, acentuada ainda mais após a reforma Capanema.
O manual, dessa forma, enquadrava-se na reforma do ensino secundário
promovida pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1942. Nela
instituiu-se a divisão do curso secundário em duas partes: o ciclo ginasial, composto
de quatro séries e o ciclo colegial, com três. Dentre as mudanças curriculares,
destaca-se a divisão entre "História do Brasil" e "História da Civilização”. Em âmbito
geral, a reforma estabeleceu um lugar privilegiado para o ensino de História do
Brasil e uma rígida determinação do seu currículo, obedecido à risca por Octávio

frente da BN se estendeu até agosto de 1947, quando foi retirado do cargo pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra, que deu lugar a outro indicado, o escritor maranhense Josué Montello. BANDEIRA,
Suelena, op.cit., pp. 62-67.
154
A Biblioteca Nacional em 1944. Relatório que o Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema, Ministro da
Educação e Saúde apresentou em fevereiro de 1945, ao Diretor Rodolfo Augusto de Amorim Garcia.
Setor de manuscritos da Biblioteca Nacional, RJ.
155
GONÇALVES, Márcia de A. Uma história de cruzamentos providenciais: o manual didático de
Octávio Tarquínio de Souza e Sérgio Buarque de Holanda. In: ROCHA, Helenice A. B.; REZNIK, Luís;
MAGALHÃES, Marcelo de S. (orgs). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009. p. 116.
72

Tarquínio e Sérgio Buarque e controlado pela Comissão Nacional do Livro Didático


que velava pelo cumprimento dos programas oficiais. 156
No que tange ao conteúdo da obra é possível perceber partes
ensaísticas, entre outras de cunho épico, vistas, por exemplo, na ideia de “fronteira"
retomada de "Raízes do Brasil” ou na descrição das lutas de expulsão dos
holandeses do Nordeste, episódio transformado em uma "saga sangrenta e vitoriosa
dos que pugnaram pela defesa do território brasileiro”. 157 Mas em linhas gerais os
autores construíram uma abordagem culturalista na maneira de narrar a "formação"
da sociedade e da nação brasileira.
Vale lembrar que o tema da "formação" foi constante na historiografia
brasileira desde o século XIX, visto em autores como Von Martius, Francisco Adolfo
de Varnhagen, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Oliveira Lima, Manuel Bonfim,
Pandiá Calógeras, etc. Assim, era comum que em meio à busca de explicações
sobre a "brasilidade", se exaltassem aspectos selvagens e naturais de nossa terra,
de modo a caracterizar uma nação em marcha rumo à civilização. 158 Tão relevantes
foram essas temáticas, que mitos foram elaborados. O das três raças formadoras
(brancos, índios, negros), por exemplo, legou à literatura e à história a imagem de
um passado ancestral representado pela figura idealizada do índio inserido em
natureza idílica. Ao longo do século XIX, os debates sobre o seu lugar na construção
da nacionalidade foram marcados por dois tipos de representação: uma construída
pelo romantismo, inspirada pelo modelo do "bom selvagem”, e outra, de viés
evolucionista, que situava os naturais da terra, portadores do atraso e da desordem,
no início de uma escala que ia da barbárie à civilização. 159
156
Idem, p. 117. No sumário da obra podemos ler as seguintes temáticas: I- O descobrimento; II- Os
primórdios da colonização; III- A formação étnica; IV- A expansão geográfica; V- Defesa do território;
VI- Desenvolvimento econômico; VII- Desenvolvimento espiritual; VIII- O sentimento nacional; IX- A
independência.
157
Ibidem, p. 118. Em relação ao que foi descrito ver: SOUSA, Octávio T.; HOLANDA, Sérgio B.
História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. pp. 11-30 e 125-138.
158
Dentre os aspectos naturais, até o clima tropical foi considerado, no século XIX, como um fator de
criação de um sentimento nacional. Sobre este assunto ver: BARBATO, Luis Fernando Tosta. Brasil,
um país tropical: o clima na construção da identidade nacional brasileira (1839-1889). 2011.
Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas.
159
A ideia de brasilidade foi bastante divulgada a partir da publicação do livro do conde Afonso Celso,
Por que me ufano do meu país (1900), "servindo para indicar uma espécie de essência dos seres e
das coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria”. GONTIJO, Rebeca. O velho
vaqueano. Capistrano de Abreu: memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013. p. 69. As informações do parágrafo devem-se, além do citado livro, aos trabalhos de: ZILLY,
Berthold. Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco - a estilização do brasileiro ideal. In: DECCA,
Edgar S; LAMARIE, Ria (orgs). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura.
Campinas: Unicamp, 2000; NAXARA, Márcia R. C. Cientificismo e sensibilidade romântica: em
73

Do mesmo modo o tema da ocupação territorial surgia na mesma época.


Segundo Janaína Amado, as referências ao “sertão” e seus habitantes datam do
período colonial. Inicialmente, o sertão era definido por sua distância em relação ao
litoral, indicando um território imenso e desabitado longe da costa. Sertão e litoral
tornaram-se categorias complementares. Nas letras da autora, (…) "como em um
jogo de espelhos, uma foi sendo construída em relação à outra, refletindo a outra de
forma invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa), sertão
esvazia-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa”. Com o tempo, o
sertão passou a ser visto como uma região inóspita e inabitada, por oposição ao
mundo urbanizado das cidades litorâneas. 160
Dessa maneira, tal como as representações indígenas que assolavam as
mentes dos "homens de letras” de outrora, o sertão, região à margem do mundo
histórico, também foi transformado em matéria central nos campos da literatura e da
cientificidade. Duas vertentes somaram ao imaginário constituído a partir de fins do
século XIX: uma ligada à literatura de ficção, que incluía novelas, contos, romances
e peças de teatro e, outra, às expedições científicas, que abrangiam memórias e
relatos de viagens anotados por estrangeiros, bem como por militares e funcionários
do governo que percorriam o interior. O Brasil profundo se tornava, por
consequência, a inspiração de um plano de escrita da história, “dedicado a recuperar
ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais”.161O que pode ser
observado, por exemplo, na associação do sertanejo à "pureza" e à "honestidade" e
do interior como um lugar de "tradições genuínas” e em vias de desaparecimento. 162
Advindo dessa conjuntura, Capistrano de Abreu, a exemplo de Sérgio
Buarque de Holanda, nos ensinava que "a história dos caminhos antigos era a porta
de acesso para a compreensão da ocupação territorial. Eram as vias que ligavam o
sertão ao litoral, podendo ser terrestres ou fluviais”. Também podiam ser uma forma
de compreensão do processo histórico de formação do Brasil, vista pelas lentes de

busca de um sentido explicativo para o Brasil. Brasília: UnB, 2004.


160
AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In:_____ e
PIMENTEL, Sidney Valadares (orgs). Passando dos limites. Goiânia: UFG, pp. 51-78,
especialmente pp. 63-67; idem. Região, sertão, nação, Estudos Históricos - Dossiê História e
Natureza, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 145-151. Apud: GONTIJO, O velho…op.cit. p. 71.
161
GONTIJO, Rebeca, op.cit, pp. 71-72.
162
Idem.
74

um historiador-viajante, que conhece os espaços mediante o estudo de sua


ocupação ao longo do tempo.163
Não seria, portanto, mera especulação deduzir que leituras de uma dada
tradição historiográfica somadas às pesquisas desenvolvidas por Sérgio Buarque a
partir de sua experiência nos Estados Unidos, em 1941 e cujos resultados estão em
"Caminhos e Fronteiras"(1957), tenham sido antes, incorporadas em "História do
Brasil”, mesmo que de forma parca. Ao discorrerem sobre o elemento indígena, por
exemplo, os autores identificaram e diferenciaram os principais grupos encontrados
e contatados pelos elementos brancos no decorrer da conquista e da colonização.
Para eles, as migrações tupis foram favoráveis à conquista portuguesa em áreas
litorâneas.

A importância singular dos povos tupis no estudo da história do Brasil está


em que, de todos os grupos indígenas, foi esse o que verdadeiramente se
incorporou à população de origem europeia, transmitindo-lhe muitos de
seus costumes e de seu temperamento e caráter. (…) Pode-se quase dizer
que as migrações tupis prepararam terreno para a conquista do Brasil pelos
portugueses. Onde surgiram claros na dispersão dos tupis, também se
interrompia, não raro, a obra colonizadora.164

Em outra passagem, os autores explicam não apenas a dinâmica da


expansão territorial na colônia, como também os motivos da singularidade paulista,
povo que, mesclado aos índios, se tornou vitorioso na ousada tarefa de levar aos
inóspitos sertões a colonização.

A mistura com os índios, o isolamento no planalto, separado do litoral por


alcantiladas serras, o influxo do sangue estrangeiro, sobretudo espanhol,
tinham desenvolvido no paulista uma turbulenta ousadia, uma tenacidade
indomável e um espírito independente de que deu constantes provas. A
expulsão dos jesuítas, o episódio de Amador Bueno, aclamado rei de São
Paulo contra a própria vontade, as lutas entre as famílias rivais dos Pires e
Camargos, os desafios insistentes à autoridade dos delegados da
administração régia, constituem exemplos do ânimo irrequieto e impávido
de tais homens. Mas, é precisamente esse traço de caráter o que os faz
aptos a enfrentar os perigos e incômodos das ásperas jornadas ao sertão
remoto, desprezando fomes, feras, frechas e febres.165

Quando o processo da marcha para o oeste é deflagrado na trama,


surgem com ele os relatos das dificuldades enfrentadas pela "raça de gigantes”.

163
Aqui faz-se referência ao livro de Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento do
Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
164
SOUSA; HOLANDA, op.cit., pp. 84-85.
165
Idem, p. 108.
75

Fossem nas trilhas mata adentro ou nos rios caudalosos, o triunfo da conquista e da
sobrevivência só foi possível graças à incorporação de técnicas e práticas
autóctones, que atenuavam as intempéries do meio natural.

Nessas jornadas, em lugar de marchar de sol a sol, caminhavam apenas da


madrugada ao meio-dia, quando muito até às duas horas da tarde. Em
seguida, arrachavam-se, pescado, mel de pau ou frutos e raízes agrestes.
Graças a esse sistema que passou a ser conhecido pelo nome de "marcha
à paulista", conseguiram aturar grandes fadigas e trabalhos, sem precisar
transportar muitos víveres. Conhecendo todos os segredos da floresta
faziam suas viagens ordinariamente à pé. Quando muito construíam balsas
ou canoas de casca para transpor rios mais caudalosos. Nas longas
viagens fluviais utilizavam-se também de embarcações de madeira inteiriça,
semelhantes em tudo às do gentio.166

Expostos esses exemplos, indicam com alguma clareza que de fato


"História do Brasil” apresentava, em algumas de suas páginas, conteúdos
pormenorizados por Sérgio Buarque nos seus livros seguintes. Todavia, nos chama
atenção o silêncio de Sérgio em relação à sua obra didática, quando expõe em
setembro de 1956 no prefácio de "Caminhos e Fronteiras”, o seu universo de
pesquisas e publicações anteriores. De modo que, temas expostos no manual
escolar - os perigos dos sertões remotos, as viagens fluviais, as técnicas de
construção de embarcações, a extração do mel de pau, as andanças nas matas, etc.
- que tratavam da cultura material e da dinâmica colonial paulista, resultantes da
adaptabilidade dos adventícios ao universo indígena, só foram enumerados pelo
autor a partir de "Monções".
Nas primeiras páginas de “Monções" (1945), portanto, os argumentos
utilizados por Sérgio, sobretudo às questões de adaptabilidade e legado indígena
aos propósitos adventícios e à especificidade paulista, serão quase idênticos aos do
seu compêndio escolar. Vejamos:

A sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso mantém-


se, por longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou imaturidade,
que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a população
nativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na
grande propriedade rural que forma indivíduos sedentários. (…) Mas a
lentidão com que no planalto paulista vão se impor costumes, técnicas ou
tradições vindos da metrópole (…) terá profundas consequências.
Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do que em outras
capitanias, a ação colonizadora realiza-se, aqui, por uma contínua
adaptação a condições específicas do meio americano. Por isso mesmo

166
Ibidem. O termo “raça de gigantes” é atribuído por Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio ao viajante
francês Auguste de Saint-Hilaire. p. 109.
76

não se enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao contrário, a padrões


primitivos e rudes: espécie de tributo pago para um melhor conhecimento e
para a posse final da terra. Só aos poucos, (…) consegue o europeu
implantar num país estranho algumas formas de vida que trazia do Velho
Mundo. Com a consistência do couro, não a do ferro ou do bronze,
dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio. 167

Para concluir esse breve parêntese, o que tentamos demonstrar foi o fato
de que, pouco lembrado tanto pelo autor quanto pela fortuna crítica, "História do
Brasil", além de um meio didático de divulgação da moderna historiografia, já
continha em algumas páginas de seu conjunto, um indicativo do que Sérgio Buarque
definiu como “fronteira". Resultante de sua estadia americana em 1941, de suas
pesquisas documentais em curso e da leitura das teses de Frederick Turner, esse
conceito-chave se tornou, pouco depois, síntese de uma tradição historiográfica que
examinava a especificidade do paulista, bem como a expansão dessa população ao
extremo oeste do território colonial, contrapondo-se, portanto, ao modelo explicativo
estático da colonização litorânea. Nesse caso,

Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos,


instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam,
ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou
simbióticos, ora a afirma-ser ao menos enquanto não a superasse a vitória
final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou
melhor equipados.168

1.6. Fechando parênteses

De volta aos corredores e prateleiras poeirentas da Biblioteca Nacional,


Rubens Borba de Moraes, ao assumir seu posto, tomou a iniciativa de preparar um
relatório detalhado descrevendo a calamidade em que se encontrava o acervo.
Dividido em quatro itens – conservação das coleções, serviços, conservação do
prédio e pessoal –, o relatório apontava, por exemplo, que a Biblioteca Real, trazida
pela corte de D. João VI, estava praticamente perdida. "Os volumes, sujeitos à
intempéries – chuva e sol – haviam se transformado em ‘tijolos’ ". 169

167
HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. Rio de Janeiro, 1945. pp. 11-14.
168
HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp.
12-13. Importante mencionar que quando Sérgio Buarque começou a estudar esses assuntos, no
limiar da década de 1940, já se podia falar de uma tradição historiográfica, que lidava com as
entradas e bandeiras, à qual é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu.
169
BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 56.
77

As ricas encadernações estavam irremediavelmente perdidas e apenas


poucos volumes poderiam ser restaurados. A poeira acumulada era tanta que mal
dava para ler as lombadas. "Não há praticamente uma obra que não esteja bichada
e cinquenta por cento se transformaram em verdadeiros rendados” 170. A coleção de
folhetos, formada por Diogo Barbosa Machado 171, embrião da Biblioteca Real, estava
em péssimo estado de conservação. A maioria sem condições de reparo, com danos
irreversíveis. Amontoados pelos corredores da BN, muitos periódicos eram depósitos
de lixo e sujeira. A coleção de gravuras e mapas, comparadas em seu valor às das
melhores bibliotecas europeias, precisava ser urgentemente lavada ou restaurada.
No que tange ao conjunto bibliográfico, o relatório aponta que "as
coleções se formavam a esmo", sem nenhum critério de seleção, sem métodos, nem
planos, aleatoriamente. As coleções de periódicos, com assinaturas suspensas há
três anos, estavam incompletas, as obras de referência desatualizadas e não se
comprava nada do que era publicado desde 1900. A atualização de cada área não
era, portanto, acompanhada pela biblioteca, prestando um desserviço aos usuários.
Na conclusão do relatório, Rubens Borba recomendava a completa
reforma da instituição, no sentido de torná-la uma "verdadeira biblioteca nacional”,
indicada ao aprofundamento de estudos e pesquisas. Ele sugeria a execução de um
plano com três pontos principais: a mudança radical do pessoal existente; a
construção de um novo prédio, e, a restauração em larga escala do acervo. Com o
relatório em mãos, o ministro Gustavo Capanema resolveu acatar boa parte dos
problemas elencados pelo relator, que contava com a experiência de ter posto de pé
a Biblioteca Pública Municipal de São Paulo. 172 Embora se diga que nessa época
que Sérgio Buarque intensificou muito "seus estudos e pesquisas”173, restam
dúvidas: em primeiro lugar, não seria um contra-senso, já que o relatório apontava
para as péssimas condições de organização e conservação de parte do acervo? E
ainda, com tanto trabalho e problemas para resolver, que tempo restaria a Sérgio
170
MORAES, Rubens Borba. Relatório do Diretor da Divisão de Preparação da Biblioteca Nacional ao
Ministro da Educação e Saúde, março de 1945. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília,
vol. 2, n.1, jan/jun., 1974. pp. 91-106.
171
Além de presbítero secular católico, Diogo B. Machado (1682-1772) foi escritor e bibliógrafo, autor
da obra "Bibliotheca Lusitana", a primeira grande obra de referência editada em Portugal. Ao longo
dos anos, reuniu uma impressionante coleção de livros, opúsculos e gravuras que ofereceu ao rei D.
José I de Portugal, após a biblioteca real ter sido consumida pelo fogo durante o terramoto de 1755.
Levada para o Brasil, quando a família real portuguesa ali se refugiou em 1808, a colecção de
Barbosa Machado constitui hoje um dos mais preciosos fundos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
172
BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 58.
173
NICODEMO, Thiago Lima, op.cit., p. 114.
78

Buarque, na rotina de seu expediente na BN, para se dedicar a estudos mais


sistemáticos?
O próprio historiador deixou um registro de sua passagem pela BN e a
partir de suas impressões é possível deduzir que não lhe sobrava muito tempo para
tratar de “assuntos pessoais”. Como chefe de divisão, Sérgio Buarque elaborou um
relatório de área, que compunha com as demais, o relatório final de atividades para
o ano de 1944, enviado pelo diretor Rodolfo Garcia ao Ministro da Educação e
Saúde, Gustavo Capanema, em fevereiro de 1945. A Divisão de Consultas era
dividida em sete seções, cada qual contando com um servidor técnico responsável.
Eram elas: 1) seção de leitura geral e referência; 2) seção de periódicos; 3) seção de
manuscritos; 4) seção de belas artes; 5) seção de cartas geográficas; 6) seção de
obras para cegos; e, 7) seção de conservação.
Sérgio Buarque nos informa que devido à reforma em curso na Biblioteca,
a sua Divisão ficou mais “aliviada” de certas atribuições. As que envolviam, por
exemplo, classificação e catalogação, passaram a cargo da Divisão de Preparação,
dirigida por Rubens Borba. Em contrapartida, "houve a ampliação de atribuições já
existentes, além da criação de três seções novas”. No balanço dos quatro primeiros
meses de sua gestão e com vistas ao próximo ano, Sérgio Buarque afirmava que o
programa de reforma em curso "só poderá ser executado inteiramente com novos
recursos, inclusive de pessoal, material e instalações, que a Divisão de Consultas
espera poder utilizar no correr do ano de 1945”.174
Em relação à seção de Leitura Geral e Referência o diretor assinalou que
houve um "aumento apreciável” da consulta pública ao acervo, já que “a partir de 16
de outubro, o mesmo salão de referências que era franqueado ao público
consultante, das 10 às 16 horas, passou a funcionar até às 22 horas”.175 Essas
pequenas atitudes que previam o aumento e um maior contato do público com esses
órgãos de divulgação cultural, também foram tomadas por Sérgio à época em que
passou a dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, como veremos mais à frente.
Em relação às obras raras, Sérgio Buarque informou que as mesmas "não
dispunham de um lugar adequado para consulta e manuseio" e que o salão de
leitura de microfilmes dependia, para que entrasse em funcionamento, da montagem
de serviços de fotoduplicação, responsabilidade da Divisão de Preparação. A guerra

174
Biblioteca Nacional em 1944, op.cit.
175
Idem.
79

em curso na Europa não passou despercebida aos olhos do diretor, que atribuía
parte da carência de servidores e a dificuldade em adquirir novas obras à
beligerância. Mesmo assim,

A S.L.R continuou a organização e atualização de suas coleções de


referências bibliográficas, bem como a relação do material bibliográfico
próprio da Seção, a ser adquirido pela B.N. dentro das possibilidades da
presente situação mundial. Serviços internos indispensáveis foram, de certo
modo, afetados pela carência de funcionários, agravada, no mês de
dezembro, com a convocação para as forças expedicionárias do
bibliotecário Manuel Adolfo Wandeley, sub-chefe da S.R.L. 176

Naquilo que interessava aos periódicos, a impressão de Sérgio


corrobora o que foi apontado por Rubens Borba, já que o historiador também
denunciava a defasagem na compra de exemplares, sobretudo estrangeiros: "a
atualização das coleções que constituem o acervo da seção oferece algumas
dificuldades, mormente no que se refere a publicações estrangeiras, muitas das
quais deixaram de ser assinadas desde 1924 por falta de verba adequada". Outro
ponto de convergência entre os relatórios refere-se à conservação das obras do
acervo. Ao pontuar o trabalho realizado na seção de conservação, Sérgio destaca
que graças ao empenho de funcionários, todos vêm desenvolvendo um grande
esforço no sentido da limpeza, desinfeção e expurgo dos livros pertencentes ao
acervo da BN. Trabalhos que, sobretudo o expurgo, "serão grandemente
incentivados logo que esta divisão disponha de dois autoclaves e do pessoal
necessário".177
A Biblioteca Nacional foi o último órgão em que Sérgio Buarque ocupou
cargo enquanto esteve na capital federal. Antes, contudo, de voltar definitivamente
para a Pauliceia e dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, o historiador participou
ativamente do "I Congresso Brasileiro de Escritores”, promovido pela Associação
Brasileira de Escritores-ABDE, no início de 1945. Esse evento, entretanto, não deve
ser enaltecido como um marco único na luta contra o fim do Estado Novo. Embora
tenha lugar importante na história intelectual do país, o manifesto dos escritores
ecoou ao lado de outros movimentos políticos com o mesmo apelo sonoro. Ou seja,
todos buscavam liberdade de expressão e a volta de eleições diretas. 178
176
Ibidem.
177
Idem.
178
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getulio a Castello. Trad. Berilo Vargas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. pp. 82-83. Quem tratou com detalhes do I Congresso Brasileiro de
Escritores foi Carlos Guilherme Mota no capítulo 3 de seu livro, Ideologia da Cultura Brasileira
80

Ao tratar apenas do caráter combativo da ABDE, corremos o risco de


deixar de lado sua heterogeneidade nas articulações políticas e dinâmicas internas.
O que estava em jogo não era apenas a tomada de consciência social de
intelectuais e do seu papel de luta no caso do Estado Novo; antes, se debatia
também os interesses dessa categoria como classe. A fundação da ABDE se daria
em 1942, nos escritórios do jornal "A Manhã”, órgão oficial do governo, dirigido por
Cassiano Ricardo, um de seus signatários e defensores de que a Associação não
deveria ter caráter político. É momento também de entrada do Brasil na Segunda
Guerra, portanto, numa esquizofrenia ideológica, como tão bem revelou Antônio
Pedro Tota. Ou seja, em plena ditadura o governo enviava tropas à Itália para lutar
ao lado dos aliados, ao mesmo tempo em que aderia à doutrina liberal norte-
americana, sustentada pela política da boa vizinhança. 179 Havia, portanto, um clima
no ar para discursos em torno da ampliação democrática, mas que, do lado
institucional, não se concretizou.
Podemos acompanhar a dinâmica desse processo por meio do
surgimento de diversas organizações e manifestos pedindo maior liberdade política.
Em São Paulo, por exemplo, surge o "Grupo Radical de Ação Popular”, em 1942,
depois chamado "Grupo Resistência”, do qual participaram intelectuais e estudantes,
dentre eles Antonio Candido. Esse grupo foi o embrião da "Esquerda Democrática”,
que depois deu origem ao Partido Socialista Brasileiro-PSB, em 1947, do qual
Sérgio Buarque foi partícipe. Pelos lados cariocas, era fundada a "Sociedade
Amigos da América", com a presença dos generais Manuel Rabelo, Horta Barbosa e
Cândido Rondon e de líderes da futura União Democrática Nacional-UDN, como
Afonso Arinos e Virgílio de Melo e Franco. Entre os estudantes, a UNE organizou em
1942, na capital federal, uma passeata a favor da entrada do Brasil na Guerra e no
ano seguinte, o seu VI Congresso e a Semana Anti-Fascista. 180
(1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 5.ed. São Paulo: Ática, 1985.
179
Livro importante de Antônio Pedro Tota que trata dessa aproximação no campo da cultura, entre
Brasil e Estados Unidos, sob a égide da política da boa vizinhança é O imperialismo sedutor: a
americanizarão do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Em
certa passagem o autor afirma: "O estado liberal, exigência mínima para a ‘americanização’ (…)
estava longe da realidade do Brasil nos anos 1940. Apocalípticos ou integrados não chegam a levar
em conta que a 'americanização' do Brasil tem sua gênese no estado não liberal de Vargas, das
décadas de 1930 e 40. Uma ‘americanização paradoxal’”. p. 16.
180
MELO, Ana Amélia de Moura C. de. Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa.
In: Vária História, Belo Horizonte, vol. 27, nº 46, pp. 711-732, jul/dez. 2011. Para uma leitura mais
detalhada da Esquerda Democrática ver: HECKER, Alexandre. Socialismo sociável: história da
esquerda democrática em São Paulo (1945-1965). São Paulo: Unesp, 1998. Nesse livro, vale
destacar, Sérgio Buarque de Holanda é personagem secundário. Referências a ele aparecem apenas
em duas breves notas de rodapé: uma, na página 93, nota 11, que atesta sua participação no PSB
81

Desse modo, receptora que foi das demandas do tempo, a ABDE abraçou
em seus quadros uma variedade de tendências políticas, que incluía desde liberais
conservadores até comunistas ligados ao PCB. Fora esse aspecto mais geral, ela
também deve ser pensada em consonância com a ampliação do mercado editorial e
com a prática de algumas editoras que antecipavam o pagamento de direitos
autorais, possibilitando a alguns escritores dedicarem-se somente à literatura,
mesmo que o Estado continuasse a ser o principal empregador dessa categoria
social. Casos, por exemplo, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico
Veríssimo.181
Mas até que se consolidasse definitivamente como "figura heróica”, o
escritor não teve vida fácil. Desde a década de 1880 eram frequentes as opiniões
acerca do baixo status de seu ofício. A vida intelectual daquela época tinha que lidar
com a falta de um público leitor, com baixas remunerações e com as dificuldades de
publicação, já que em um país de analfabetos as principais editoras preferiam
investir nas traduções de romances franceses, mais aceitos, do que arriscar com
autores desconhecidos. Mas por outro lado, foi esse quadro que estimulou a
construção da imagem sublime dos escritores que, "apresentados como honestos e
abnegados, procuravam superar todos os infortúnios, (…) em defesa de uma arte
mais ‘sincera’, ‘genuína’ e, portanto, ‘verdadeira’".182
Contudo, mais do que talento, o que garantia aos escritores prestígio
junto ao público, ascensão social ou memória póstuma, eram as redes de
sociabilidade em que estavam envoltos. Detentores ou não de diploma ou de
recursos financeiros, era "importante que obtivessem o apoio de ‘padrinhos’ com
prestígio suficiente para arrumar-lhes alguma colocação". Ambicionavam, assim,
empregos públicos na burocracia estatal, vislumbrando a possibilidade de ganho fixo
que lhes garantisse tempo para escrever.183
Como bem nos lembra Rebeca Gontijo, uma vez no local certo, no
momento certo, o próximo passo era integrar ou reunir os grupos certos. Assim, a

paulista ao lado de Sérgio Milliet, Paulo Emílio Salles Gomes, Paul Singer, Oliveiros Ferreira,
Maurício Tragtember, Perseu Abramo, entre outros; e outra, na página 187, nota 182, como indicação
de leitura (imagina-se que "Raízes do Brasil") aos militantes do partido, que, além dos estrangeiros,
como Rosa Luxemburgo, Kautsky, Plekanof, Weber, deveriam estudar os brasileiros Caio Prado
Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, entremeados de Oliveira Vianna, João Ribeiro, entre outros.
181
MELO, ibidem. p. 717.
182
GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,
historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 46-7.
183
Idem, p. 48.
82

tecitura de relações em torno de figuras-chave ou de locais referenciais, como


redações de jornais ou revistas, salões, clubes literários, partidos políticos,
universidades, livrarias, etc., constituíam grupos de apoio mútuo chamados à época
de "igrejinha, panelinha ou coterie". O convívio em meio a essas redes estimulava o
hábito da conversa, das discussões, estreitava laços e demarcava diferenças,
quando não desenvolviam o culto a determinados escritores, que ainda em vida,
podiam ser transformados em referência e venerados como autoridades. É em
suma, o que Afrânio Coutinho já chamava de um "sistema bem montado de permuta
e fogo cruzado de elogios, às vezes de auto-elogio, que construiu a fama de muitos
nomes e obras".184
Isso posto, as palavras de ordem contra a ditadura da época não devem
fugir dessa complexa relação. Assim, afirmar um papel decisivo de "Sérgio Buarque
de Holanda na resistência ao Estado Novo", sobretudo na sua fase final, como é
atestado, pode soar pouco exagerado. É atribuir a ele uma supervalorização dentro
de um movimento coletivo e heterogêneo. É ainda, desvencilhar sua trajetória
intelectual do aparelho do estado, o qual sempre serviu até então, por meio de redes
de sociabilidade e apadrinhamentos que lhe garantiram postos de trabalho, viagens
oficiais ao exterior e tempo de pesquisa, sem que tivesse preocupação com
perseguições políticas ou mesmo com o exílio, tal como ocorreu a Graciliano Ramos,
Paulo Duarte, Caio Prado Júnior, entre outros. 185
Exemplar nesse sentido, a exaltação panegírica de Antonio Candido, até
hoje sustenta a imagem de que Sérgio Buarque de Holanda foi sempre um
intelectual de esquerda. Versa a esse respeito como testemunha de uma geração,
projetando a figura do amigo a tempos imemoriais de um passado mitologizado.
Para ele,

Sérgio Buarque de Holanda nunca foi militante político propriamente dito,


mas teve desde moço consciência política e posições ideológicas definidas
para o lado da esquerda, e como tal sempre foi tido. (…) De volta ao Brasil
no final de 1930, posicionou-se contra a ditadura de Getúlio Vargas (…).
Mais tarde, em 1942, participou da fundação da Associação Brasileira de
Escritores, a famosa ABDE, que visava ostensivamente a defender os

184
Ibidem, pp. 48-49. COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1962. pp. 21-22.
185
Graciliano Ramos ficou preso entre 1936 e 1937, período mais tarde retratado em Memórias do
Cárcere (2 volumes), postumamente publicado, em 1953; Caio Prado Júnior ficou preso entre 1935 e
1937, partindo em seguida para o exílio e regressando ao país em 1939; o jornalista Paulo Duarte foi
exilado por duas vezes: a primeira em 1932, após o levante paulista e a segunda em 1938, durante o
Estado Novo.
83

interesses profissionais, (…) mas se dispunha também a lutar (…) pela volta
das liberdades democráticas.186

Percebe-se nesse trecho o apagamento necessário da trajetória de Sérgio


Buarque no serviço público, sobretudo durante o Estado Novo, assim como das suas
posições conservadoras da juventude vistas em análises críticas a respeito de seu
livro de estreia. O salto temporal de 1930 para 1942 projeta ao leitor uma imagem
alva, de um intelectual pronto desde a juventude para tecer a crítica a qualquer
forma de autoritarismo que se impunha à sociedade, fosse ela de esquerda ou de
direita. Essa é a moldura anacrônica que enquadra Sérgio como o primeiro
historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas,
manifestando, assim, um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos
pequenos agrupamentos de esquerda.187
Outro exemplo nessa linha é o prefácio de Laura de Mello e Souza ao
livro "Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda
nos anos 1950”, publicado por Thiago Nicodemo, em 2008. Nele, a historiadora
reporta-se à vida de Sérgio como um homem exemplar:

É sabido que Sérgio Buarque de Holanda foi homem de seu tempo: na


década de 1920, ainda muito jovem, aderiu ao modernismo; como
correspondente jornalístico na Alemanha, assistiu à ascensão do Terceiro
Reich; foi socialista durante toda a vida, tendo lutado contra o Estado Novo,
se aposentando da Universidade de São Paulo em protesto ao AI-5 e
contando entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores. 188

Não resta dúvida de que Sérgio Buarque foi um "homem de seu tempo”,
como foram tantos outros, intelectuais ou não, de sua geração. O que talvez
diferisse Holanda dos demais fosse o fato de que, como "grande homem”, dotado de
livre arbítrio para pensar, se posicionar e escrever, escapasse do reino da
necessidade, onde vivia a maioria dos mortais.189
Desse modo, ao enaltecer de forma sublime a vida do historiador,
escolhendo apenas cores de combate para pintar sua biografia, Laura de Mello e
Souza reforça uma mística oficiosa, monumentalizada por textos celebrativos a
exemplo das práticas do século XIX, onde se buscavam nos campos da política ou
186
CANDIDO, Antonio. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: _____. (org.) Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 81-82.
187
Idem, p. 86.
188
SOUZA, Laura de M. Prefácio. In: NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e
a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. pp. 17-18.
189
GONTIJO, op.cit., p. 40.
84

das letras os vultos exemplares da nação. Assim, a etiqueta de "socialista a vida


toda", encobre um personagem muito mais complexo e propenso, pelo menos em
parte da juventude, a modelos sociais nem tão progressistas, como sugere a autora.
A famosa aposentadoria, de 1969, por exemplo, é atenuada pelo próprio
Sérgio. Numa conversa entre amigos, na casa do historiador, em 26 de junho de
1977, Paulo Duarte relembrava o episódio: "Quando nós fomos expulsos da
universidade em 1969, o Sérgio não foi". Na sequência, Sérgio toma a palavra: "Mas
no dia seguinte eu pedi demissão!" Paulo Duarte completa: "Dá licença, deixa eu
falar (…). No dia seguinte, ele pediu a sua aposentadoria em sinal de protesto pela
nossa cassação". E, Sérgio encerra o assunto: "Em protesto e solidariedade. Agora,
eu não acho que foi heroísmo nenhum, pois eu tinha tempo garantido e me
aposentei com meus vencimentos”.190
Em 1978, a Associação dos Docentes da USP publicou um importante
relato que revelava a particular relação do poder universitário com o governo
golpista. As perseguições "macartistas" que se perpetravam tinham por objetivo
tanto colaborar com a aniquilação dos opositores da ditadura, quanto desmontar um
movimento interno de democratização e restruturação progressiva da
universidade.191 Chegou-se ao cúmulo de montar dentro do gabinete da reitoria uma
"representação" do DOPS, responsável por vetar contratações, alertar diretores a
tomar certos cuidados e acompanhar os debates que envolviam a participação de
intelectuais que "incomodavam o regime”.192
Pouco antes, portanto, da aposentadoria de Sérgio, uma série de
problemas ocorreram. Em um deles, o vice-reitor, Hélio Lourenço de Oliveira,
encaminhava ao Conselho Universitário uma proposta de reforma universitária, que
incorporava um projeto de estatuto para a USP construído ao longo de 1968 pelas
Comissões Paritárias, particularmente da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e
190
Os velhos mestres, por Tarso de Castro, Paulo Duarte, Moacir Amâncio, Maria José, Miguel
Fontoura e Sérgio Gomes, Entrevista publicada no Folhetim da Folha de S. Paulo, em 26 de junho de
1977. In: MARTINS, Renato (org). Sérgio Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2009. p. 101. Essa mesma entrevista fez parte das investigações da extinta Divisão de
Segurança e Informações, ligada ao Ministério da Justiça, durante a ditadura, como veremos no
capítulo 2.
191
ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA USP. O controle ideológico na USP. São Paulo: Adusp,
2004. Esse documento foi originalmente publicado pela Brasiliense, em 1978, sob o título O livro
negro da USP: o controle ideológico na universidade. Segundo o prefácio da edição de 2004, houve
alteração no título para não "incorrer na conotação certamente involuntária e discriminação racial,
atentos aos alertas do movimento negro quanto à recorrente associação do adjetivo ‘negro' a algo
negativo". Associação…op.cit., p. 6.
192
ELIAS, Beatriz. Documento comprova existência de representação do DOPS na Reitoria da USP.
In: ASSOCIAÇÃO…op.cit., p. 103.
85

Letras. Lourenço foi cassado logo em seguida, por decreto assinado por Gama e
Silva, que permanecia reitor enquanto servia como Ministro da Justiça. 193 A "solução
final” veio de cima com uma Reforma (Lei 5540/68) que estabelecia a destituição da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, desmembrada em vários Institutos e
Faculdades, disso resultando o gradual processo de "mercantilização" do saber com
foco tecnicista e a adaptação da universidade aos moldes capitalistas de produção e
resultado.194
Todavia, nos parece relevante o fato de Sérgio Buarque, como intelectual
importante que era, não ter sido sequer citado uma única vez no documento. Isso
nos faz pensar que assim como no período Vargas, Sérgio não tivesse sofrido
grandes sanções em seus afazeres até 1969 e mesmo depois, como atesta um
artigo-depoimento de uma de suas orientandas, a professora Maria Odila L. da S.
Dias: "Não deixou porém todos os seus vínculos, continuando a orientação de
algumas teses. (…) Em 1972, publicou (…) "Do Império à República”, sexto volume
da série por ele coordenada”. Nessa época ainda se envolveu com a Justiça Militar
não como “suspeito" de qualquer subversão, mas pelo contrário, como testemunha,
na tentativa de livrar colegas de tais acusações. Segundo Dias, "acompanhou (…)
os processos de perseguição política, as prisões de colegas e alunos,
comparecendo, às vezes pessoalmente, às auditorias para dar apoio pessoal,
visitando-os na prisão, escrevendo, quando possível, manifestos de protesto". 195
Exemplo disso são duas cartas envidas de Santiago do Chile, em 1969.
Nelas, Caio Prado Júnior demostrava gratidão pelos depoimentos dados pelo amigo
a seu favor perante os militares. Em 19 de março eram esses os dizeres:

Meu caro Sérgio, estou a tempo para lhe escrever afim de agradecer o seu
depoimento na Justiça Militar em meu processo. (…) pode estar certo que
grande é o meu conhecimento pelo seu gesto em especial pelos tons do
depoimento que foram comunicados pelo meu advogado. Espero poder
retribuir-lhe que fico devendo, em todo o caso pode estar certo que não
esquecerei do fato. (…) Abraço-o cordialmente o amigo de sempre, Caio. 196

193
ASSOCIAÇÃO…op.cit., p. 7.
194
SANCHES, Rodrigo Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Sociedade e Estado, vol. 26,
nº 1, Brasília, jan/abr, 2011. Uma leitura detalhada da reforma Universitária realizada na USP durante
a década de 1960 foi feita por Macioniro Celeste Filho em seu livro, A constituição da Universidade
de São Paulo e a reforma universitária da década de 1960. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
195
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados [on-
line]. 1994, vol. 8, n º 22. São Paulo, set/dez. p. 273.
196
Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 296, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
86

É bem provável que Sérgio não tenha respondido de prontidão a carta do


exílio. Tanto é assim, que meses depois, em 27 de maio, Caio Prado, além de tratar
de outros expedientes, como as notícias sobre Chico Buarque no Chile ou as
disputas internas na universidade, lembrava:

Meu caro Sérgio, estou lhe remetendo com esta uma reportagem acerca do
seu filho e que naturalmente interessará você, (…) Você deve ter recebido
carta minha, já há tempos, agradecendo seu depoimento a meu favor na
Justiça Militar. Reitero aqui os meus agradecimentos. Tive notícias de seu
pedido de aposentadoria (…). Mas seja como for, (…) você pode estar
seguro, de minha grande amizade e admiração que espero poder reiterar
pessoalmente logo que atravessarmos as tão desfavoráveis circunstâncias
do momento que atravessa o Brasil e de que todos somos vítimas. Aceita
com Maria Amélia expressão de meus mais cordiais e afetivos sentimentos,
(…) abraço muito amigo do Caio.197

***

Nesse capítulo buscamos apreender a trajetória de Sérgio Buarque de


Holanda entre os seus anos de formação inicial no modernismo até sua fase
institucional no Rio de Janeiro, durante o período Vargas. Foi nessa sua “primeira
fase”, antes do retorno definitivo a São Paulo, em 1946, que Sérgio elaborou um
modelo original de interpretação do país a partir de "Raízes do Brasil”, o primeiro dos
seus dois projetos, consolidando-se definitivamente no campo intelectual, por meio
de suas redes de sociabilidade criadas nos espaços institucionais e da boemia.
Obviamente, a documentação levantada e a leitura que propusemos, possibilitou
relativizar certa memória histórica “excepcional" construída pelo próprio Sérgio
Buarque e vistas em seu papelório, como cartas, cartões-postais, bilhetes,
fotografias, certidões, diplomas, cadernos de pesquisa, recortes de jornal,
rascunhos, textos inéditos, etc., e sustentada por seus pares ao longo de toda sua
trajetória e depois.
Durante os seus anos cariocas o intelectual também buscou divulgar esse
conhecimento em diferentes instâncias de ensino, pesquisa e memória. Deu início
ao seu segundo projeto, não se furtando, inclusive, de ampliá-lo para um público
muito mais heterogêneo, fosse por meio da divulgação de textos históricos em
coleções para uma leitura moderna do Brasil, como a tradução que fez de Davatz ou

197
Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 298, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
87

na divulgação dessa mesma abordagem, a partir de um manual didático, escrito em


parceria com Octavio Tarquinio de Sousa, para alunos do ensino médio.
O capítulo a seguir dará continuidade a essa leitura crítica de sua
trajetória, começando pela sua estada na direção do Museu Paulista, passando pela
experiência universitária, que lhe retirou o espaço das ruas e lhe concedeu a
aposentadoria, terminando com o seu falecimento em 24 de abril de 1982. Durante o
percurso, o nosso intento é a percepção dos espaços de atuação prática do seu
segundo projeto.
88

Capítulo 2
O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À
APOSENTADORIA E DEPOIS…

A volta de Sérgio Buarque de Holanda à cidade em que nasceu coincide


com a reconstrução da Europa após o término da Segunda Guerra e com o início da
Guerra Fria. No país, o general Eurico Gaspar Dutra é eleito presidente pelo PSD
nas eleições de dezembro de 1945, apoiado pelo deposto Getúlio Vargas.
Recomposta a ordem democrática, certos resquícios de instabilidade política
insistiam em permanecer.
A UDN, que no início do governo cooperou com Dutra, resolveu voltar à
oposição após sentir-se pouco contemplada. Em seguida, é a vez de Getúlio Vargas
romper com o presidente. Eleito senador pelo mesmo partido, o ex-ditador
articulava, naquele momento, novas e velhas alianças em torno de um novo partido,
o PTB, prevendo retorno em breve. Na outra ponta havia um crescimento
considerável do PCB, que no pleito de 1945 elegera 14 deputados e 1 senador.
Nesse quadro, consolidado sob as bases liberais de uma nova Constituição,
promulgada em 1946, seguiu-se novo período de perseguições marcado, sobretudo,
pela declaração de ilegalidade do Partido Comunista no ano seguinte.
No geral, a tônica desse período de redemocratização pós-estado-novista
e de desenvolvimento econômico sustentado pela entrada de capitais estrangeiros,
foi a da exclusão de parcela significativa da população, tanto das decisões políticas
quanto dos benefícios advindos da industrialização. Muito visível no período foi o
crescimento das classes médias urbanas, ao lado de uma insipiente integração da
população mais pobre ao mercado de trabalho. No plano das decisões políticas os
compromissos pelo alto e o desenraizamento dos intelectuais com relação à
sociedade repetiram as experiências da ditadura anterior e as camadas pobres da
população continuaram vivendo sob o signo da exclusão política e econômica. 198

DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e


198

poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 47.


89

Por outro lado, a maior procura de parcelas médias urbanas à cultura e ao


ensino superior público ou privado levou, a partir dos anos 1950, o Estado a
dispensar maiores recursos às universidades, aumentando sua estrutura, atendendo
a demanda por novas profissões e criando organismos voltados ao desenvolvimento
científico e cultural. Nessa época, foram criadas a CAPES (Coordenadoria de
Aperfeiçoamento e Pesquisa no Ensino Superior), o CNPq (Conselho Nacional de
Pesquisa) em âmbito federal e no Estado de São Paulo, por exemplo, o governo
criou a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), todos
órgãos de apoio à pesquisa e ao ensino universitário. Essa dinâmica gerou uma
alteração na formação de novos quadros intelectuais, isso porque, embora as
universidades brasileiras tenham tido tal desenvolvimento a partir da atuação estatal,
pela primeira vez os intelectuais começaram a exigir autonomia e independência do
saber e da cultura. Uma comunidade propriamente universitária começou a se
estruturar e os intelectuais passaram a se distanciar progressivamente da tutela
política do Estado.199
É em meio a essas transformações em curso que Sérgio Buarque
assumirá o cargo de diretor do Museu Paulista, a cadeira de História Econômica na
Escola Livre de Sociologia e Política, entre 1947 e 1955 e mais tarde a cadeira de
História do Brasil na Universidade de São Paulo, a partir de 1956 até se aposentar
em 1969. Por essas lentes é que o historiador viu na universidade uma instituição
suficientemente autônoma e menos suscetível a instabilidades políticas - por isso
mesmo um lugar capaz de dar continuidade a projetos culturais esboçados desde os
anos 1930 no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. 200
Mas até que a autonomia viesse, sua indicação ao cargo de diretor do
Museu Paulista não se deu apenas por vias curriculares. Assim como nos trabalhos
anteriores, o retorno de Sérgio Buarque a São Paulo esteve cercado de conjunturas
políticas e foi determinado por uma rede pessoal bastante sólida. Sua investidura no
cargo, dessa forma, coincidiu com a intervenção estatal de José Carlos Macedo
Soares e com a aposentadoria por idade do antigo diretor do museu, Afonso
d’Escragnolle Taunay, em dezembro de 1945. Taunay, que no passado havia aberto

199
Idem, pp. 47-48.
200
NICODEMO, Thiago Lima. Sergio Buarque de Holanda e a dinâmica das instituições culturais no
Brasil 1930-1960. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:
EdUSP; IEB, 2012. pp.126-127.
90

as portas da crítica literária ao jovem Sérgio, agora lhe deixava às voltas nos
inúmeros corredores do palacete do Ipiranga.201
A respeito desse episódio há um importante registro. Trata-se de um texto
datilografado em quatro laudas, sem indicações de local ou data, de folhas
amareladas e com breves rabiscos à caneta nas cores vermelha, preta e azul, que
corrigiam concordâncias de uma ou outra frase. Anexado a ele um pequeno pedaço
de papel branco, recortado em forma quadrada, datilografado e assinado em azul:
"Rio, abril, 1988". A leitura desse documento leva a crer que se tratava de
homenagem feita por colegas da Faculdade de Filosofia da USP, quando do
ingresso de Sérgio Buarque como docente, em 1958 e, se a memória de sua viúva
estiver mesmo correta, ele foi redigido pelo professor Cruz Costa. Tal como exposto
por Maria Amélia: "Tenho a impressão que estas palavras foram do professor Cruz
Costa, catedrático de filosofia e grande amigo”.202
Revelando por meio de lembranças, imagens de uma longeva relação de
amizade, Cruz Costa nos oferece algumas pistas das redes que trouxeram de volta
o amigo às terras que tão bem conhecia e à direção do Museu, símbolo de sua
gente:

(…) Sérgio vivia na Corte, onde se passam grandes cousas e não desejaria,
por certo, transferir-se para a província, para uma faculdade tão estranha
aos hábitos nacionais. Nossa escola, àquela altura já contasse com nomes
ilustres no seu corpo docente, só produzira os famosos “chato-boys” de que
falava o saudoso Oswald as já referidas “relíquias"…Por isso, não lhe falei
uma vez sequer (…) sobre a Faculdade de Filosofia. Mas a ideia de contar
com ele, um dia, para honra nossa, como professor em São Paulo, não me
largava. Lembro-me de o haver acompanhado, no intervalo de uma das
sessões do Congresso, realizada no Centro do Professorado Paulista, na
visita em que ele fez à casa em que nasceu, à rua de S. Joaquim. E,
enquanto Sérgio Buarque examinava o casarão, eu cá com os meus botões
dizia: “este Hollanda paulista ainda para cá há de vir!”. Não sei ao certo,
quem o trouxe de volta, a essas terras cuja história ele tão bem conhece.
Creio que foram os Drs. Afonso de Taunay e Macedo Soares e que também
nisso andou o dedo do nosso amigo Dr. Fernando de Azevedo. Pois bem
hajam por isso.203

201
O primeiro artigo de Sérgio Buarque, "Originalidade Literária” foi publicado no jornal "Correio
Paulistano", quando o autor tinha 18 anos. Afonso Taunay, amigo de seu pai, foi responsável por
indicar o texto à publicação.
202
Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/UNICAMP. Série Vida Pessoal. Documento VP 180.
Esse documento também foi usado por Gisele Languardia Valente em sua tese de doutorado
intitulada As missões culturais de Sérgio Buarque de Holanda, defendida em 2009, na Unirio, área
de Memória Social. Todavia, a autora atribui a esse documento o caráter de epístola, o que discordo.
Ele é na verdade um texto escrito para ser lido em cerimônia específica. Tanto é, que no catálogo do
Fundo Sérgio Buarque, ele não consta na série Correspondências.
203
Idem.
91

Todavia, a versão que consta no bilhete anexo é um pouco diferente. Em


vez de Afonso Taunay e Fernando Azevedo, ele nos informa que quem intercedeu
com o governo do estado, pelo cargo, teria sido Paulo Duarte. Desdizendo o titular
do texto, rememorava a viúva: “Um esclarecimento: quando Sérgio soube que a
direção do Museu Paulista estava vaga, foi ao Paulo Duarte que ele telefonou ,
sugerindo que lembrasse seu nome ao governador Macedo Soares". 204
Independentemente de quem tenha sido o homem-ponte, o fato é que o
nome de Sérgio circulou nas altas esferas do poder, responsáveis pelas nomeações
de cargos públicos. Ao telefonar ao amigo Paulo Duarte para que intercedesse por
ele junto ao interventor, Sérgio demostrava sua ambição em assumir o Museu num
contexto de rearranjos intelectuais, favorecendo-se de sua sólida rede de relações
constituídas há muito, desde os tempos modernistas.
É provável que a nomeação de Sérgio Buarque como diretor do MP se
insira dentro de uma rearticulação da rede intelectual paulista propiciada pelo fim do
Estado Novo. Ligada ao antigo Departamento Municipal de Cultura, sob os auspícios
do prefeito Fábio Prado, a rede fora desmembrada por pelo menos dois motivos: a
instauração da ditadura, a partir de novembro de 1937, e pela ascensão de Prestes
Maia à prefeitura no ano seguinte. Com isso, intelectuais como Mário de Andrade e
Rubens Borba de Moraes foram obrigados a deixar a cidade, se dirigindo à capital
do país. Nessa rota de fuga Rubens formou ao lado de Sérgio algumas parcerias de
trabalho institucional, enquanto Mário de Andrade foi, como revela Eduardo Jardim
em estudo sobre seus últimos anos de vida, morrendo aos poucos. 205
Além deles, não se poderia deixar de mencionar a figura do jornalista
Paulo Duarte como um dos articuladores da política cultural em São Paulo. Duarte
circulava com desenvoltura entre a elite dirigente e teve papel definitivo desde a

204
Ibidem. José Carlos de Macedo Soares era um político influente, não apenas em São Paulo.
Presidiu a Academia Brasileira de Letras, entre 1942 e 1944 e foi partidário de Getúlio Vargas desde
a “revolução” de 1930. Em 1932 desempenhou missões diplomáticas na Europa e no ano seguinte
elegeu-se deputado federal constituinte por seu estado. Em 1934, participou da articulação que
conduziu o civil Armando Salles de Oliveira ao cargo de interventor do Estado, serenando um pouco
os ânimos da resistência paulista. Com a queda de Vargas e a posse do presidente do Supremo
Tribunal Federal, José Linhares, em outubro de 1945, Soares é indicado interventor federal em São
Paulo, permanecendo no cargo até março de 1948, quando assume Adhemar de Barros, eleito
meses antes. Encerrou sua trajetória política novamente no Ministério das Relações Exteriores,
convidado pelo interino Nereu Ramos, permanecendo até 1958, dessa vez sob a égide de Juscelino
Kubitscheck. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Jeneiro: Editora
FGV, 2001.
205
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. Vale lembrar que Mário de Andrade morre em 25 de fevereiro de 1945, logo após a
concretização do I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pela ABDE.
92

materialização da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e


Política, antes de ter sido exilado com o golpe de 1937. Desse modo, não restaria
surpresa alguma se fosse de fato o jornalista, após o seu retorno ao Brasil em fins
de 1945, o responsável pela indicação de Sérgio Buarque, já que conhecia Macedo
Soares pelo menos desde a Revolução de 1924 206, deixando, assim, as lembranças
de Maria Amélia bastante plausíveis.
Sérgio Buarque de Holanda foi nomeado por decreto em 25 de janeiro de
1946, mas somente assumiu a direção do Museu em 7 de março. A sua
administração tinha como foco a construção de um museu histórico, criando
condições para a consolidação do campo intelectual caracterizado pela
especialização acadêmica nas suas áreas de atuação; o que fez, por meio da
criação e circulação de periódicos acadêmicos, com a constituição e o
enriquecimento de acervos, com a realização de viagens e expedições e com o
intercâmbio no plano nacional e internacional. Mas não só. O novo diretor também
teve a preocupação de qualificar e aumentar a quantidade de visitantes do museu,
direcionando parte de suas ações no campo de instrução educacional, como
podemos ver, por exemplo, na contratação de guias especializados, na elaboração
de “folheto ou folhas avulsas, resenhas explicativas do material mais importante" e
no aumento dos dias da semana em que o museu deveria ficar aberto. Para tanto,
promoveu uma ampla reforma estrutural na instituição, tão logo a assumiu. 207
Antes, contudo, Sérgio salientou os aspectos positivos dos tempos de
Afonso Taunay e a sua virtude em concentrar esforços para o fortalecimento do
campo histórico. Sob “a administração deste ilustre administrador e em particular
durante a presidência de Washington Luís (1920-1924), em que se celebrou o
centenário da Independência", firmou-se positivamente uma orientação visando "ao
maior desenvolvimento da seção de história". Ainda nesse período presidencial
criou-se o "Museu Republicano, Convenção de Itu”, anexado à referida seção. O
Museu Paulista encerrava definitivamente a sua fase inicial quando era
exclusivamente voltado ao acervo de história natural, sobretudo zoológico, na qual
esteve "à testa o naturalista Hermann Von Inhering". 208

206
NICODEMO, op.cit, pp. 114-115.
207
Idem, p. 116; VALENTE, Gisele Laguardia. As missões culturais de Sérgio Buarque de
Holanda. 2009. Tese de doutorado em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro; Relatórios de Direção do Museu Paulista 1946 - 1956.
208
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. In: COSTA, Marcos (org). Escritos coligidos:
Livro II, 1950-1979. São Paulo. Unesp; Perseu Abramo, 2011. p. 165. Artigo originalmente publicado
93

Segundo Sérgio Buarque, o projeto de reforma que “elaboramos em


esboço ao sr. interventor Macedo Soares e por ele aprovado", previa não apenas a
criação de quatro seções técnico-científicas – a) História do Brasil, especialmente de
São Paulo, tendo como anexo o Museu de Itu; b) de Etnologia; c) de Numismática e
Medalhística; d) de Documentação Linguística –, como ainda as seções de
Biblioteca, Arquivo e Publicações. Previa-se do mesmo modo, segundo o diretor, o
ingresso no estabelecimento de técnicos especializados em cada disciplina
representada na instituição. E expunha que o problema com a falta de técnicos
especializados já vinha de há muito tempo: "Da ausência desses técnicos ressentia-
se, sem dúvida, a administração anterior, e só em parte poderia ser suprida pela
exemplar competência, no domínio da História do Brasil, de meu antecessor na
direção dessa casa".209
Como consequência da reforma aprovada pelo Decreto-Lei n. 16.565, de
27 de dezembro de 1946, efetivou-se a contratação de docentes advindos da Escola
Livre de Sociologia e Política-ELSP para o setor de Etnologia, que passou à
responsabilidade do professor Herbert Baldus e de seu assistente Harold Schultz,
além da retomada da "Revista do Museu Paulista", extinta desde 1939, dos "Anais
do Museu Paulista" e dos "Boletins do Museu Paulista", nova publicação que se veio
juntar aos “Anais”.210 A primeira, passou a concentrar as áreas de etnologia e
antropologia, tendo papel de destaque na consolidação desses campos de pesquisa
no país, enquanto que a segunda, ao lado do "Boletim", se concentrou nos estudos
históricos.211
Assim que voltaram a circular, os periódicos passaram a ser elogiados por
uma série de especialistas, sobretudo do exterior. Ao expor em balanço de gestão,
publicado em 1952, os pareceres favoráveis a essas publicações, Sérgio Buarque
de Holanda não apenas enaltecia a qualidade da equipe de pesquisadores por ele
formada, mas também fortalecia a sua própria imagem como intelectual à frente de
tão importante órgão. Segundo os seus registros:

Da importância da nova série da revista do Museu Paulista de que já


existem publicados quatro números, falam com eloquência algumas
na Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1952.
209
Idem, p. 166.
210
Idem, p. 169.
211
NICODEMO, op.cit., p. 116. A esse respeito consultar: RUBINO, Silvana. Clube de Pesquisadores.
A sociedade de Etnologia e Folclore e a Sociedade de Sociologia. In: MICELI, Sérgio. História das
Ciências Sociais no Brasil. vol. 2. São Paulo: Editora Sumará; Fapesp, 1995.
94

resenhas insertas em publicações estrangeiras. Em longo comentário


impresso no número 8, de 1950, dos “Studies of Linguistics", o professor
Georg L. Trager, do Instituto do Serviço Exterior do Departamento de
Estado norte-americano, diz, por exemplo, que, se for mantido o presente
nível, a nova revista há de figurar entre “as melhores existentes atualmente”
sobre Etnologia. O professor Martin Gusinde, conhecido antropólogo e
atualmente professor da Universidade Católica de Washington, escreve:
“Extraordinariamente valiosa pelo conteúdo, bela impressão e clara
apresentação, coisas que em geral não se encontram em revistas sul-
americanas. (…) E na "Revista de Etnologiae Arqueologia” de Tucumán,
Argentina, volume 1, número 2, escreve-se “Creemos que esta nueva serie
da la Revista del Museo Paulista se coloca a la cabeza da las publicaciones
sobre las Ciencias del Hombre que pueden comparárselas”.212

Embora não tivesse deixado marcas tão profundas como a de seu


antecessor Afonso Taunay, que elevou o Museu Paulista a símbolo da
Independência do Brasil213, criando uma narrativa histórica nacional a partir de São
Paulo, Sérgio Buarque foi responsável por muitas das aquisições que nutriram
consideravelmente o acervo da instituição. Pouco antes de partir a Roma, a convite
do Ministério das Relações Exteriores, Sérgio registrou a memória de seus primeiros
anos à frente do Ipiranga. Originalmente publicado na "Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro", em janeiro de 1952, o texto, além de nos trazer um histórico
do Museu, revelava as intenções e os feitos de seu diretor. Em tom autobiográfico, o
autor nos intera, por exemplo, de uma viagem que procedeu,

(…) afim de adquirir novas e valiosas peças evocativas do nosso passado.


Em resultado de viagem que tive a oportunidade de realizar em Cuiabá em
1946, foi possível a aquisição, para o estabelecimento, do acervo do antigo
Museu D. José, da capital mato-grossense, especialmente rico em peças da
arte religiosa colonial.214

Somados ao depoimento, alguns ofícios encontrados nos arquivos do


Museu Paulista indicam exatamente de que peças se tratavam. No geral, objetos da
cultura material do tempo da colonização do local que incluíam: tear e instrumentos
de fiação e tecelagem doméstica, lampadário, peças sacras, cadeiras, sofás,
castiçais, armas, granadas, sino de bronze, bandeja de prata, peças que
pertenceram a homens públicos do século XIX. Junto havia outras peças, “gratuitas",

212
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. op.cit, p. 168.
213
Estudo obrigatório sobre essa fase é o de Ana Cláudia Fonseca Brefe, O Museu Paulista: Afonso
de Taunay e a memória nacional 1917-1945. São Paulo: Museu Paulista; Unesp, 2005.
214
Idem, p. 167.
95

a serem doadas no pacote como instrumentos de suplício de escravos, como


troncos de ferro.215
Outros documentos também indicam que Sérgio Buarque pediu a compra
de livros, pinturas, painéis em azulejos, tapete. Em relação aos livros, admitia que o
"foco da biblioteca do museu era também atender a um público especializado e
divulgar seus estudos", daí constar no relatório assinado em 1947 a compra de mais
de 1150 obras. Solicitou igualmente o aumento de seus vencimentos e das verbas
para o Museu, bem como o rearranjo de servidores.
Em diversos ofícios podemos ler a demanda de: 11 volumes de Émile
Baylard, no valor de Cr$ 700,00 pagos à livraria Freitas e Bastos; 3 painéis de
azulejos de Antônio Luis Gagni, "Visita do Padre Guilherme Pompeu aos seus
grandes currais de Otuguaçu, 1702”, a um custo de Cr$ 3.200,00 e mais 2 painéis
cujos temas são a batalha de dois ituanos bandeirantes e a luta entre bandeirantes
ituanos e índios matogrossenses, por Cr$ 7.000,00; um tapete para a sala da
diretoria no valor de Cr$ 1.535,00 a ser encomendado na casa de móveis Paschoal
Bianch; 3 quadros à óleo do artista Henrique Manzo, representando aspectos da
Igreja e do antigo colégio dos jesuítas em São Paulo, no valor de Cr$ 7.000,00; o
aumento de seus vencimentos e o pagamento de abono de Cr$ 500,00 a que diz ter
direito e solicita elevação do cargo de diretor do padrão N para padrão P; por fim,
pede o aumento de verbas para o MP para investimentos na biblioteca, mostruários
com vidros inquebráveis para exposição de peças valiosas e telefones, tudo com
base no aumento da visitação pública ao Museu.216
Sobre o item relativo aos mostruários, Sérgio é enfático quanto aos
progressos:

Não menos sensíveis foram nesse período os progressos alcançados pela


seção de Numismática. Abrangendo antes da reorganização do Museu,
apenas uma sala incompleta, o acervo exposto de moedas e medalhas
distribui-se hoje por cinco salas. Pode-se ter uma base para a avaliação
desses progressos considerando que, em princípio de 1947, havia apenas
9,90 m2 de mostruários envidraçados e destinados à exposição dessas
peças. Em fins do mesmo ano esse total passava a 34,10 m2, em fins de

215
Ofício de 23 de abril de 1946, enviado por Ernani Lins da Cunha à Sérgio Buarque de Holanda.
Fundo Museu Paulista. Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série Correspondências
(jan-abr).
216
Fundo Museu Paulista, Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série
Correspondências, abril a agosto de 1946. Sobre os painéis de Luiz Gagni, ver o livro de Jonas
Soares de Souza, Painéis de azulejos do Museu Republicano “Convenção de Itu”. São Paulo:
Edusp; Museu Paulista, 2013; Relatório 1947 (MU 6137) Fundo Museu Paulista.
96

1948 a 45,10 m2, e em fins de 1949 a 62,76 m2. Assim, num período de
três anos, sextuplicou-se o material exposto. 217

Além dos citados objetos, a diretoria também concretizou a vinda do


acervo do Museu da Força Pública do Estado de São Paulo, que resultou em "uma
das mais ricas coleções de armaria do país" e de outras coleções, cujas peças
tratavam-se de porcelanas antigas e cristais brasonados ou monogramados
pertencentes a personalidades históricas.218
O interesse de Sérgio Buarque por aspectos da etnografia, antropologia e
da cultura material coincidem com um período de pesquisas do autor que suscitaram
na publicação de "Monções" (1945) e de diversos estudos publicados em periódicos
especializados, mas praticamente inacessíveis a um grande público, a exemplo de
"Índios e Mamelucos na expansão paulista", anunciado em separata dos "Anais do
Museu Paulista", em 1949. "Caminhos e Fronteiras”, livro que reúne esses textos,
nasceu não apenas da qualidade de seus escritos e interpretações sobre a cultura
material e as suas relações com a expansão paulista a oeste, mas sobretudo pelas
redes de sociabilidade das quais seu autor fazia parte. Coube a Antonio Candido e a
Octávio Tarquínio de Sousa a tarefa de articularem em volume único os estudos que
seriam publicados apenas em 1956. O primeiro deles, numa sessão em homenagem
ao amigo que "acabava de desaparecer", realizada no salão nobre da Faculdade de
Filosofia da Universidade de São Paulo, lembrava a este propósito que,

Nos anos 50, lamentando que (…) notáveis estudos de Sérgio ficassem
pouco acessíveis, (…) sugeri a um grande amigo dele e meu, Octávio
Tarquínio de Sousa, que o estimulasse a compor com alguns deles um
volume para a famosa coleção Documentos Brasileiros, que Octávio dirigia.
Este falou com José Olympio, que convidou Sérgio, e assim nasceu
"Caminhos e Fronteiras", que forma com “Monções" um par admirável (…)
de estudos históricos vinculados pela cultura material e a ocupação do
espaço.219

As reformas postas em prática no Museu não eram novidade, tampouco


representavam concepções genuínas de seu diretor, já que antes dele haviam sido
esboçadas por Paulo Duarte e Mário de Andrade nos tempos do Departamento de
Cultura de São Paulo. De modo que a ideia era que ocorresse uma "divisão entre o

217
HOLANDA, O museu…op.cit., 168.
218
Idem, p. 167.
219
CANDIDO, Antonio. Amizade com Sérgio. In: Revista do Brasil. In: BARBOSA, Francisco de
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 133.
97

museu histórico e um museu arqueológico e etnológico". Tanto foi assim, que em


seu último relatório à frente da instituição datado de 14 de janeiro de 1956 e
entregue ao Secretário de Estado dos Negócios da Educação, o historiador defendia
que seria uma evolução no caráter científico do Museu, justamente se houvesse
uma divisão em termos semelhantes, entre museu histórico e museu arqueológico e
etnológico.220
Reproduzindo, "com poucas diferenças", as considerações contidas no
relatório referente ao ano de 1954 e que, "me parecem ainda oportunas, (…) o
museu impõe o seu agrupamento em duas divisões, para facilitar a sua
administração e aumentar sua eficiência”. Conforme o documento:

A divisão de História, que compreenderá as secções de História Paulista,


História Brasileira, Numismática, Documentação Histórica e Coleta de
material, Conservação e Museu Republicano “Convenção de Itu” deverá
dedicar-se, principalmente, ao estudo da cultura luso-brasileira, mediante
pesquisas bibliográficas, ao passo que a divisão de Antropologia, com as
seções de Etnologia, Arqueologia, Documentação Linguística, Antropologia
Física, Folclore e Coleta de Material, procurará elucidar os problemas do
Índio e do caboclo de todo o nosso continente, no passado e no presente,
mediante investigações não só em bibliotecas, mas também in loco.221

O relatório referente ao ano de 1954, citado por Sérgio Buarque, havia


sido escrito pelo professor Herbert Baldus que passou a dirigir o Museu tão logo o
chefe ausentou-se para cumprir missão cultural em Roma, a partir de 1953. No
âmbito internacional esse período foi marcado pela ampliação de intercâmbios de
intelectuais brasileiros no pós-guerra e pelo início das operações da Unesco, que
culminaram com um considerável aumento internacional das redes de sociabilidade
criadas por Sérgio Buarque.
Em 1949, por exemplo, segundo alguns registros deixados pelo
historiador, podemos observar que ele viajou por duas vezes à Europa, uma para
participar de missões organizadas pela Unesco e outra, a convite de Fernand
Braudel e Lucien Febvre, para uma conferência na Sorbonne que resultou na
publicação de um artigo na famosa revista "Annales". Intitulado "Au Brésil colonial:
les civilisations du miel", o texto apareceria reescrito e publicado anos depois como o
capítulo 3 de "Caminhos e Fronteiras", renomeado "A cera e o mel".222 Em 1950
220
NICODEMO, op.cit., 117.
221
Relatório Anual do ano de 1955 apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios da
Educação, Vicente de Paula Lima, 14 de jan. 1956. APMP/FMPL 39, p. 26
222
NICODEMO, op.cit, p. 118; são desse período as seguintes cartas guardadas por Sérgio Buarque:
Cp 94 (Lucien Febvre, enviada de Paris e assinada em 15 de dezembro de 1948); Cp 96 (R. Ricart,
98

embarcou para os Estados Unidos, participando em Washington, a convite de Lewis


Hanke, do "I Colóquio Internacional de Estudos Brasileiros”.
Além de poucas cartas que guardou de importantes intelectuais da época,
Sérgio Buarque também deixou algumas lembranças sobre sua segunda viagem aos
Estados Unidos e "Sobre o Colloquium". Antes, contudo, expõe que da primeira vez
em que esteve por lá, em 1941, a capital americana associava-se em sua memória a
um clima de paz: "a paz soberana daquelas extensas alamedas à sombra do
capitólio, que vão buscar na distância das águas do Potomac, em face do Mont
Vermont".223 Dez anos mais tarde, as mesmas imagens emergem em suas
lembranças, agora com certa nostalgia, visto que para Sérgio "nesta nova e breve
visita não vi a necessidade de retificar a antiga impressão”.224
A recordação de Washington que mais lhe marcou, segundo ele próprio
escreveu, foi a de sua suntuosa biblioteca,

… a maior do mundo, diga-se de passagem, para não faltar a nota do


americanismo; Novo Sarapeum, basílica de livros, como já disse um dos
grandes poetas do nosso tempo. A verdade, porém, é que a Library of
Congress, ao lado do Capitólio e a poucos passos da National Gallery, é
elemento inseparável da paisagem de Washington e inscreve-se
harmoniosamente em seu conjunto urbano. É certo que o silencio estudioso
de seus amplos salões e das suas galerias apresenta-nos uma face apenas
dessa complexa fisionomia.225

Em seguida justifica que a reunião ocorrida entre 4 e 7 de outubro, a que


foram convidados brasileiros, portugueses, franceses, ingleses, argentinos, norte-
americanos, "todos igualmente interessados em bem conhecer as raízes lusitanas
de nossa cultura e as transformações que sofreram nesse continente", fazia parte
dos festejos comemorativos dos 150 anos da "livraria" (Library of Congress) e
recebeu significativamente o nome de "Colloquium".226
datada de Bourg-La Reine em 6 de março de 1949) e Cp 100 (Ministério das Relações Exteriores do
Brasil, enviada do Rio de Janeiro em 31 de janeiro de 1950 e agradecendo a Sérgio pelo trabalho
realizado em missão na Unesco). Fundo SBH, Siarq-Unicamp; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Les
civilisations du miel. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 5e année, n. 1, 1950. pp. 78-
81;
223
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sobre o Colloquium. In: COSTA, Marcos. Escritos coligidos,
op.cit., p. 52.
224
Idem, p. 53.
225
Ibidem.
226
Idem. p. 54. Pedro Calmon além de ter sido deputado estadual pela Bahia, entre 1927 e 1937, foi
conservador do Museu Histórico Nacional, membro da ABL e do IHGB e catedrático de Direito
Público na Universidade do Brasil (atual UFRJ) durante o Estado Novo. No governo Dutra, tornou-se
diretor do Instituto de Estudos Portugueses Afrânio Peixoto, no Liceu Literário Português, e foi
nomeado vice-reitor da Universidade do Brasil. No ano seguinte assumiu a reitoria da instituição,
deixando a direção da Faculdade de Direito. Em 1950 assumiu a pasta da Educação e Saúde e
99

Os debates que se iniciavam no suntuoso prédio da biblioteca


continuavam, não raramente, nos saguões e bares do hotel Stratford, localizado na
Rua E, reservado especialmente aos partícipes, demonstrando que Sérgio não
largara a sua alma boêmia dos tempos da juventude modernista. Foi em uma
dessas conversas que surgiu a proposta de Pedro Calmon, chefe da delegação
brasileira, que contava ainda com Rodrigo Melo Franco de Andrade, Serafim Silva
Neto, Alice Canabrava e Arthur Cesar Ferreira dos Reis, de se criar um Instituto de
Estudos Luso-Brasileiros, com ênfase nos estudos históricos. Tão logo expôs a
ideia, Pedro Calmon foi advertido pelo português Mendes Correa, que "respondia de
algum modo com outra limitação, acentuando o valor dos trabalhos antropológicos".
Para além das rivalidades disciplinares, Sérgio explorou uma vertente que lhe foi
característica por toda a vida. A solução para ele deveria abranger, além desses,
outros campos tratados no Colloquium, como Belas-Artes, Linguística, Literatura e
especificamente para o historiador sugeriu que se deveria criar "facilidades maiores
de acesso às fontes de pesquisa", o que proporcionaria resultados "mais
apreciáveis".227
O trabalho apresentado por Sérgio Buarque no evento, "As técnicas rurais
no Brasil durante o século XVIII" imprime bem a marca que lhe foi característica
durante os seus primeiros anos no Museu Paulista. Dessa base surgiram outros
estudos, focados nas relações entre cultura material e expansão geográfica,
publicados na revista "Anhembi" entre 1951 e 1952, sob os títulos de "Algumas
Técnicas Rurais no Brasil Colonial I, II, III" e que corresponde à segunda parte de
"Caminhos e Fronteiras".228
Lembrada com pouca ênfase por seus biógrafos, só recentemente a "fase
italiana” de Sérgio Buarque vem recebendo de alguns pesquisadores certa atenção.
Assim, alguns estudos apontam que essa passagem deve ser vista, antes de tudo,
como parte de um plano maior do estado brasileiro, constituído durante o segundo
governo Vargas (1951-1954) e que visava a difusão da cultura brasileira no exterior,
sobretudo na Europa em reconstrução após a guerra. A ida de Sérgio à Roma, entre

permaneceu no cargo até janeiro de 1951, quando Getúlio Vargas tomou posse na presidência da
República. Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2001. Sobre a específica atuação de Pedro Calmon frente ao Museu Histórico Nacional ver:
ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996.
227
Ibidem.
228
NICODEMO, op.cit., 118.
100

1952 e 1954, se enquadrava, portanto, em um projeto de criação de mais de 15


cátedras de "estudos brasileiros" em universidades de renome na América Latina e
na Europa e se concretizou mediante uma influente rede de sociabilidade, ampliada
ainda mais por ele durante os anos que passou à frente do Museu Paulista. 229
Como diretor e ao estabelecer definitivamente sua carreira de historiador,
Sérgio Buarque se aproximou de diversas universidades estrangeiras, disso
resultando os convites que recebeu para participar de congressos e comissões
científicas, muitas delas ligadas à Unesco. Dentre as figuras importantes com quem
se relacionou nessa época está Mário Guimarães, que era o chefe da Divisão
Cultural do Itamaraty e que, em julho de 1951 havia convidado Sérgio Buarque a
integrar uma comissão da Unesco encarregada de elaborar uma "História Científica
e Cultural da Humanidade", dirigida por ninguém menos, que Lucien Febvre. Além
de Sérgio, foram indicados Fernando Azevedo, Miguel Osório de Almeida e Gilberto
Freyre.
Memorialista de si mesmo, Sérgio Buarque não tinha o hábito de
organizar os próprios arquivos como apontam os seus biógrafos, mas fez questão de
deixar à posteridade uma carta, enviada justamente por Lucien Febvre, datada de 15
de dezembro de 1948. É com base nesse documento/monumento que podemos
reconstruir a teia de relações que culminou com o convite que Sérgio recebeu para
se estabelecer na Itália. A carta, datilografada em uma página, continha no alto do
canto esquerdo o timbre da "École Pratique des Hautes Etudes, 6ª sections,
Sciences Economiques et Sociales, Sorbonne", e dirigia-se ao "Monsieur Sérgio
Buarque de Holanda, directeur du Musée di Ipyranga".230

229
Entre os textos estão, HOLANDA, Maria Amélia Buarque Alvim. Apontamentos para a
Cronologia de Sérgio Buarque de Holanda. s/d, Fundo Sérgio Buarque de Holanda Biblioteca
Central da Unicamp; e o prefácio de Aniello Avella à recente tradução de um artigo do historiador
publicado na revista italiana "Ausonia", durante o período em que esteve na Itália. A Contribuição
Italiana para a Formação do Brasil. Trad. Andréa Guerini; pref. Aniello A. Avella. Florianópolis:
NUT/NEIITA/UFSC, 2002. Do mesmo autor encontramos a introdução a uma edição italiana de
Raízes do Brasil, publicada em 2000 com apoio da Embaixada Brasileira em Roma, intitulada, “Il
retorno del maestro cordiale” a qual contém uma parte chamada “Il período romano: la riscoperta di
un momento decisivo”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Radici del Brasile. Firenze: Giunti, 2000.
Agradeço ao professor Ettore Finazzi-Agrò a versão desta edição que me foi cedida durante o tempo
em que passei em Roma, no primeiro semestre de 2013. Cerca de 40 páginas detalhadas também
podem ser lidas na tese de Thiago Lima Nicodemo, Alegoria Moderna: consciência histórica e
figuração do passado na crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Doutorado em História
Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. A mesma parte foi publicada nos
Anais da ANPUH, sob o título de O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011.
230
Carta enviada por Lucien Febvre. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 94 P7.
101

Escrita para ser um veículo de comunicação entre duas instituições, a


epístola convidava o diretor a ministrar na Sorbonne, ao longo de um trimestre,
algumas conferências sobre pesquisas "históricas e etnográficas relativas ao Brasil",
matérias nas quais Sérgio era um dos "grandes artesãos". Nas letras de Lucien
Febvre podemos ler:

Nous vous serions reconnaissants de réserver à notre École un trimestre


d’enseignement. Nous vous prions de bien vouloir nous faire parvenir votre
réponse le plus rapidement possible, nous indiquent quand cet
enseignement pourraît commencer, avec l’intitule des conférences que vous
seriez amené à faire à nos étudiants sur les enquêtes historiques et
ethnographiques relatives au Brésil, - dont vous avez été l’un des grands
artisans.231

Sabe-se que Sérgio jamais completou a chamada. Contudo, com base


nesse mesmo convite ele pode ausentar-se do país e proferir a palestra já
mencionada, sobre “les civilisations du miel", que mais tarde acabou publicada na
revista “Annales". Ainda segundo o documento, o convite foi feito por indicação de
Fernand Braudel, que já vinha se comunicando com o historiador nos meses
anteriores “e que conhecera durante o período que havia lecionado na recém-
fundada Universidade de São Paulo". Braudel reagia a uma tentativa de
aproximação, pois, em outra carta guardada por Sérgio, o francês agradecia pelo
envio da segunda edição de "Raízes do Brasil", publicada no início de 1948,
comentava uma indicação de pesquisa e o convidava para o congresso de história
da colonização.232
Essas duas cartas são hoje muito mais do que pistas para recompor a
trajetória intelectual de nosso personagem. Sérgio Buarque sabia que tinha em
mãos duas raridades recebidas por ele de dois dos mais importantes intelectuais do
século XX. Não por acaso, essas cartas encontram-se em sequência no catálogo
organizado com os documentos que lhe pertenceram, de modo que não seria
exagero afirmar que, num gesto autobiográfico, Sérgio Buarque decidisse que essa
passagem de sua vida deveria restar para o futuro. Tanto que, na entrevista que

231
Idem. "Nós lhe seremos gratos de reservar à nossa instituição um trimestre de aula. Pedimos ao
senhor que nos informe sua resposta o mais rapidamente possível, nos indicando quando o curso
poderia começar, com o título das conferências que o senhor oferecerá aos nossos estudantes sobre
os questionamentos históricos e etnográficos relativos ao Brasil – dos quais o senhor é um dos
grandes especialistas”. (Tradução livre do autor).
232
NICODEMO, Thiago Lima. O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011. p. 2; Carta manuscrita de Fernand Braudel,
Paris, 25 de julho de 1948. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 95 P7.
102

concedeu ao historiador Richard Graham, a última antes de morrer, se lembrava


assim do episódio: "Oh, Braudel. Encontrei-o várias vezes. Aqui em São Paulo, onde
lecionou por um tempo, e em Paris. De fato, foi graças a uma carta dele e outra de
Lucien Febvre que tive sucesso em conseguir uma licença aqui. Ele é muito
simpático”.233
Por isso, antes de se tornarem publicáveis ou virem a compor arquivos
institucionais abertos à consulta pública, as cartas, documentos/objetos que podem
indicar os atalhos para o pequeno mundo privado, passam por um criterioso
processo de escolha, de seleção, muitas vezes por intermédio de familiares, no caso
dos titulares que já partiram; pelos próprios envolvidos quando vivos ou ainda por
regras arquivísticas específicas provenientes de cada instituição acolhedora. Numa
dinâmica de triagem daquilo que vai ser preservado e do que será apagado,
descartado, conduzindo, assim, à escrita de uma memória que restará para a
posteridade, ato político de construção de si ou do outro, que cabe ao pesquisador
atento decifrar.
Além dessas cartas e de suas memórias, Sérgio Buarque também deixou
registrado em relatório redigido no Museu Paulista os motivos que o levaram a sair
do país por alguns meses. Referente ao ano de 1949, o documento, entregue ao
Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Dr. José Moura Rezende, em 30
de janeiro de 1950, continha em um de seus itens as "Viagens ao estrangeiro". Ali é
possível saber que Sérgio Buarque esteve afastado de suas funções entre 15 de
março e 15 de junho de 1949, "em virtude de ato expedido” pelo secretário e
aprovado pelo governador do estado, ficando em seu lugar o chefe da Seção de
História do Museu, o professor Tito Lívio Ferreira. O motivo desse afastamento,
segundo o relatório, foi o convite que recebera do "Diretor da École Pratique des
Hautes Études, de Paris, para dar um curso acerca da história da civilização
brasileira".234
Como sabemos, Sérgio Buarque não aceitou o convite, que segundo ele,
"exigiria maior tempo de preparo e de estada no estrangeiro, mas realizou, contudo,
conferências na Sorbonne, durante o mês de maio, sobre temas relacionados à

233
GRAHAM, Richard. An interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982. In: MARTINS, Renato (org). Encontros: Sérgio
Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 205.
234
Relatório Anual do ano de 1950, apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios da
Educação, José Moura Resende, 30 de jan. 1950. APMP/FMPL. pp. 1-2.
103

história do Brasil".235 Ainda nessa viagem aproveitou para estabelecer "relações


efetivas" de permuta de publicações, de informações e eventualmente de material de
estudo e exposição, com organizações tais como o "Musée des Antiguités
Françaises” e o “Musée de l’ Homme de Paris”, por meio de seus diretores,
respectivamente o Sr. Varagnac e o Sr. Paul Rivet". 236 Os contatos serviram,
segundo Sérgio mesmo diz, para apreciar os progressos realizados "nesses
estabelecimentos, especialmente no segundo, com relação à técnica de
conservação e aproveitamento do acervo".237
O relatório também aponta que entre 14 de novembro e 3 de dezembro,
durante suas férias, Sérgio esteve novamente em Paris. Dessa vez a convite da
Unesco para participar da reunião de dois Comitês, um para o Estudo de Contatos
de Civilizações e outro para Traduções de Obras Representativas. As reuniões
ocorreram entre os dias 17 e 28 de novembro, na sede da entidade, na capital
francesa. Além das reuniões, o relatório nos informa que Sérgio Buarque aproveitou
o pouco tempo que tinha para renovar os contatos estabelecidos meses antes entre
o Museu Paulista e instituições correspondentes, "especialmente a ICOM, que se
destina, de modo expresso, a manter o intercâmbio e a colaboração entre os
museus do mundo inteiro sob a direção da organização das Nações Unidas". 238
Quem muito provavelmente abriu as portas da Unesco para Sérgio
Buarque foi Lucien Febvre, já que o francês havia participado ativamente das
discussões que efetivaram a entidade desde o seu início, se tornando protagonista
importante da política de desenvolvimento das ciências humanas na Europa, ainda
mais depois da fundação da "VI Seção da École Pratique des Hautes Études", em
1947. A obra de Febvre foi importante, sobretudo, após o término da Segunda
Guerra, marcada pelos totalitarismos, já que seu grupo vinculado à revista
"Annales", procurava seguir uma história relativamente descolada dos paradigmas

235
Idem, p. 2
236
Ibidem.
237
Idem.
238
Ibidem. O International Council of Museums-ICOM é a maior organização internacional de museus
e profissionais de museus dedicada à preservação e divulgação da patrimônio natural e cultural
mundial, do presente e do futuro, tangível e intangível. Criado em 1946, o ICOM é uma organização
não-governamental (ONG) que mantém relações formais com a UNESCO e tem estatuto consultivo
no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Sendo uma organização sem fins lucrativos, o
ICOM é sobretudo financiado pelas quotas pagas anualmente pelos seus membros. É igualmente
apoiado por vários organismos governamentais e outros. Uma parte significativa do programa da
UNESCO para os museus é implementada pelo ICOM. O ICOM tem sede em Paris, onde se encontra
igualmente sediado o Centro de Documentação UNESCO-ICOM. Mais informações no site:
http://icom.museum, acessado em 5 de junho de 2014.
104

de identidade nacional, valorizando as interações entre blocos civilizacionais em


seus múltiplos aspectos, como o mental e o material, articulando diversas disciplinas
ligadas às humanidades.239
Não seria por acaso, portanto, que uma “nova história mundial” estivesse
nos horizontes da Unesco desde o princípio, projeto que ganhou materialidade com
a sexta Conferência Geral de 1951 e com a elaboração de uma "História Científica e
Cultural da Humanidade" que dela resultou. No ano seguinte, a Conferência
realizada em dezembro confirmou as expectativas, expandindo-as mais tarde com o
"Rencontres Internationales de Gèneve", organizado para o mesmo fim e que contou
com a participação de Sérgio Buarque, já na Itália e com a organização de Lucien
Febvre. Paralelo a esse último, ocorreu em São Paulo, inserido nas comemorações
do IV Centenário da cidade, outra reunião, cujas temáticas eram as relações entre o
Novo Mundo e a Europa.240
O projeto de divulgação cultural brasileiro no exterior proposto por Vargas
e visto nos diversos intercâmbios e participações de intelectuais da casa em projetos
como os mencionados, em suma, a inserção do Brasil como potência internacional,
dependia naquele momento, do desenvolvimento e da industrialização capitaneados
por São Paulo. Nos anos 1950, a cidade passou por um intenso processo de
crescimento industrial e também populacional, disso resultando um
redimensionamento do campo da cultura à nova burguesia resultante desse
crescimento. A essa altura o Museu do Ipiranga já havia se transformado, por
iniciativa de Taunay, em instituição detentora da história pátria, em outros termos, de
uma narrativa do Brasil Nação construída a partir dos elementos de uma história
paulista.
Nesse movimento, a cultura também deveria se modificar em sua
essência, passando a representar e estimular a nova dinâmica social e os novos
padrões de consumo. Daí as comemorações de seu “IV Centenário” encarnarem o
desejo de externar a potência econômica e a capacidade de organização da cidade
e de seus cidadãos. Esse ímpeto foi visto como o momento em que projetos
239
NICODEMO, O itinerário…op.cit., p. 3.
240
Idem. Vale ressaltar, segundo publicação da Unesco, que os encontros foram organizados e
idealizados por uma comissão ligada à Conferência Geral da entidade, de 1952, constituída pelos
professores Lucien Febvre, Gilberto Freyre, Lewis Hanke e Silvio Zavala. Em São Paulo, as reuniões
ocorreram entre 16 e 21 de agosto de 1954 e foram organizadas em colaboração com a Sociedade
Paulista de Escritores e enquadradas nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.
El Viejo y el Nuevo Mundo. Sus Relaciones Culturales e Espirituales. Reuniones Inteletuales de São
Paulo y Rencontres Internationals de Genève, 1954. Paris: Unesco, 1956.
105

culturais idealizados nos anos 1920 e 1930 foram encampados por uma nova
agenda ideológica de promoção da hegemonia paulista, viabilizada por meio de
alianças entre o poder público e a indústria emergente 241, a exemplo do industrial e
mecenas, Francisco Matarazzo Sobrinho (Cicillo), presidente da Comissão
Organizadora do evento desde 1951.
Durante os preparativos e as efetivas festividades, Sérgio Buarque
encontrava-se em Roma. Contudo, o historiador participou como colaborador da
Exposição Histórica de São Paulo, coordenada por Jaime Cortesão, enviando
documentos sobre a história de São Paulo encontrados nos arquivos italianos, como
consultor da Comissão organizadora, nomeado por Cicillo, desde o início de 1952,
além de ter estreitado laços entre a Embaixada do Brasil na Itália e a Comissão do
IV Centenário. Mas, se por um lado sua participação não foi tão intensa, por outro,
ela serviu para estreitar ainda mais as suas "redes sociais de colaboração
intelectual” ligadas a esse novo contexto de uma cidade em transformação. Em
Roma, por exemplo, temos a informação de que Sérgio Buarque recebeu as visitas
de Yolanda Penteado, esposa de Matarazzo e Paulo Mendes de Almeida, que
estavam a serviço da Comissão.242 Em especial sobre a amiga, Sérgio Buarque
relembra que:

Vi-a poucas vezes em Roma, e em uma das vezes, quando almoçamos no


seu hotel, o outro comensal era diretor-geral das Belas Artes, um senhor
magro e alourado, com quem me aconselhei sobre a identificação de certo
desenho de Morandi, que um amigo comprou na via del Bambino. 243

O resultado dessas afinidades eletivas foi que, de volta ao Brasil, Sérgio


Buarque foi nomeado vice-diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo-MAM,
criado por Francisco Matarazzo, em 1948, e responsável pela organização das
Bienais até o início dos anos 1960.
241
NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…op.cit., pp. 119-120.
242
Idem, p. 120.
243
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tudo em cor-de-rosa. In: _____. Livro dos prefácios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 423. Ao se referir a "via Del Bambino", na verdade queria dizer "via
Del Babuino", local onde se encontrava a galeria de arte em que Paulo Mendes de Almeida, o amigo
citado, havia comprado um desenho do artista italiano Giorgio Morandi (1890-1964). A via del
Babuino, forma juntamente com a via del Corso e a via di Ripetta a chamada L’area del Tridente e
ambas dão acesso à famosa Piazza del Poppolo, local próximo aos jardins e à galeria de arte da Villa
Borghese, um dos mais importantes lugares de visitação da capital italiana. Sobre esse assunto
podemos achar informações na carta enviada por Paulo Mendes a Sérgio Buarque em 27 de abril de
1953, na qual ele faz um pedido para que Sérgio passasse na Fonderia d’arte Chiurazzi, na via del
Babuino, afim de conseguir a declaração de autenticidade de um desenho de Morandi ali comprado.
Carta de Paulo Mendes de Almeida a Sérgio Buarque de Holanda, Fundo SBH, Siarq-Unicamp, Cp
119.
106

Uma vez restabelecido no Brasil, em 1955, Sérgio Buarque retoma suas


atividades no Museu Paulista. No ano seguinte é contratado como professor na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, para lecionar História do
Brasil e no fim do mesmo ano transfere seu cargo de diretor de museu para a USP,
assumindo temporariamente no lugar de Alfredo Ellis, que se aposentara devido a
um enfarto, a cadeira de História do Brasil. Essa aproximação do historiador com a
USP não foi eventual, pois, como diretor do MP, considerado "instituição
complementar”, Sérgio Buarque havia estreitado a colaboração com a "instituição
principal”. Nessa política foi nomeado para o Conselho Universitário em 1948, não
sem antes ter participado de bancas examinadoras de concurso de cátedra, como as
de Astrogildo Rodrigues de Mello, em 1946, e de Eduardo d’Oliveira França, em
1951 e das bancas de livre-docência de Alice P. Canabrava e de Odilon Araújo
Grellet, ambas em 1946.244
Sabemos, segundo o relato de Antonio Candido, que Sérgio Buarque foi
convidado para o posto de professor-substituto a convite do amigo e docente de
Política na USP, Lourival Gomes Machado. 245 Aceito, o convite foi oficialmente
formalizado pelo professor Eurípides Simões de Paula em 29 de agosto, prevendo o
início das atividades para primeiro de setembro de 1956. Todavia, antes que
assumisse as aulas, Sérgio Buarque teve de resolver problemas burocráticos, que
indicavam a ele “acúmulo de cargos".
Uma série de documentos oficiais da universidade analisados por Rodrigo
Ruiz Sanches revelam a forma como se desenrolou esse imbróglio. Primeiramente,
o pedido de acúmulo de funções foi negado pelo governador do estado, cujo parecer
final indicava a "incompatibilidade de horários". A negativa se deu porque não ficou
claro quais seriam os horários em que Sérgio Buarque lecionaria suas aulas. A fim
de resolver tamanho mal-entendido, o diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, professor Eurípides Simões de Paula, encaminha um novo ofício para o
Presidente da Comissão de Acumulações, com os devidos horários do contratado:

Segunda, das 15h às 16h, no 4º ano, curso regular, das 16h às 17h, no 4º
ano, Especialização-Orientação/Trabalhos-Seminários; terça, das 16h às
19h, no 2º ano diurno, duas aulas e um Seminário, das 19h às 20h30, no 2º
ano noturno, duas aulas e um Seminário; sexta, das 14h às 17h, 3º diurno,
duas aulas e um Seminário, 20h às 23h, no 3º noturno, duas aulas e um

NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…op.cit., pp. 122-123.


244
245
CANDIDO, Antonio. Inéditos sobre Literatura Colonial. In: COLÓQUIO DA UERJ, Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
107

Seminário. O Diretor faz lembrar que o horário do interessado no Museu


Paulista é pela manhã.246

Com isso, o parecer final foi revisto e a Comissão responsável pelo caso
decidiu pela legalidade da acumulação. Contudo, considerando que o cargo de
professor-substituto era de tempo integral, Sérgio Buarque teve de pedir
afastamentos do Museu Paulista durante o tempo em que ministrou aquela cadeira
interinamente247.
Essas duas perspectivas, a de uma aproximação não fortuita de Sérgio
com a USP e a outra, de uma personagem às voltas com problemas administrativos
como qualquer outro servidor público, como atentam os autores, atenuam em certa
medida o tom celebrativo com que normalmente essa passagem foi vista por
intelectuais próximos ao historiador. A exemplo da professora Maria Odila Leite da
S. Dias, que foi sua assistente e orientanda, o mesmo episódio é narrado da
seguinte forma:

Em 1956, aos cinquenta e quatro anos e já autor consagrado, Sergio


Buarque de Holanda deixou a direção do Museu Paulista para assumir a
cátedra de História do Brasil no Departamento de História da FFLCH. No
apogeu de sua criatividade, trouxe para o meio acadêmico a vibração
intelectual que acompanhava o seu temperamento alegre e expansivo. A
sua chegada coincidiu com os últimos anos antes da ditadura militar,
quando a Universidade florescia e as possibilidades se revelavam mais
tangíveis. Pode-se afirmar que sua passagem pela USP foi um sintoma de
amadurecimento da instituição e de abertura nas relações do meio
universitário com a sociedade. A Universidade estava atenta à vida
intelectual que pulsava fora, interessada em absorver qualidade e capaz de
propiciar, acolher e aproveitar o alto nível de um intelectual brasileiro de
renome internacional.248

Essa fase de docente na USP foi decisiva na vida acadêmica de Sérgio


Buarque, pois, caso não prestasse o concurso para se efetivar no cargo, seria
demitido. O problema é que o historiador não possuía o título de mestre para que
pudesse concorrer à cátedra. A ideia então foi matricular-se como aluno de
mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, sob orientação do colega Herbert

246
Ofício nº 2638 de 5 de setembro de 1956, Processo 11787/56 folha 6. apud: SANCHES, Rodrigo
Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Revista Sociedade e Estado, volume 26, número 1,
Janeiro/Abril, 2011. p. 242.
247
SANCHES, op.cit., p. 243.
248
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos avançados
[online]. 1994, vol. 8, n. 22, p. 269.
108

Baldus.249 Vale lembrar que essa escola, a partir de 1933, tinha como projeto
educacional a criação de uma liderança moderna em São Paulo voltada para as
novas responsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil, com o
intuito de substituir as elites tradicionais, formadas no bacharelismo. 250
Na própria instituição há um dossiê dos tempos em que Sérgio Buarque
foi aluno. Nele encontramos requerimentos de matrícula, relação das notas por ele
obtidas nas disciplinas em que se inscreveu, ata da sessão de defesa de tese e os
trabalhos por ele entregues. De acordo com essas fontes, Sérgio Buarque teria
efetuado matrículas em agosto de 1956 e em fevereiro de 1957. 251
Também constam nesse pequeno acervo os dois exames de língua
estrangeira a que foi submetido, ambos realizados em novembro de 1957. No
primeiro deles, o historiador traduziu um texto em alemão extraído do livro
"Weltgeschichte des Mittelmeerraumes", de Ernest Kornemann. Na ocasião foi
avaliado pelo seu orientador e por Lolita E. Almeida, obtendo a nota A. Na prova de
língua inglesa versou para o português um trecho do artigo "Plural and differencial
acculturation in Trinidad”, de Daniel J. Crowley e obteve nota nove. No que pese a
pequena diferença nos resultados, vale lembrar que Sérgio teve uma maior vivência
com a primeira língua desde jovem, quando morou em Berlim e trabalhou como
jornalista entre 1929 e 1931.
Quanto às demais avaliações, o acadêmico entregou para cada uma das
disciplinas um trabalho escrito, à exceção de História Social do Brasil, a que dedicou
dois textos. Tratava-se de pequenos ensaios, com média de cinco a seis páginas
datilografadas, alguns com a sua assinatura e que versavam sobre temas dos quais
já havia inclusive publicado - caso de “Monções", fruto de anos acumulados de
pesquisas e da parceria que construiu no Museu Paulista com o professor Herbert
Baldus. Em linhas gerais eram estes os assuntos: a) análise da obra "Viagem no
interior do Brasil", do médico, mineralogista e botânico Johann Emanuel Pohl, que
esteve no Brasil no século XIX; b) estudos sobre sociedades indígenas do período
colonial, dentre os quais os Caiapó e os Paiaguá; c) estudos acerca do papel das

249
Para uma história mais detalhada dessa instituição ver: KANTOR, Íris; MACIEL, Débora; SIMÕES,
Júlio Assis (org.). A Escola Livre de Sociologia e Política, anos de formação, 1933-1953:
depoimentos. 2. ed. São Paulo: Sociologia e Política, 2009.
250
DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de
Sérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 p. 147.
251
CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda, Mestre em Ciências Sociais. In:
Notícia Bibliográfica e História, Campinas, nº 170, jul/set, 1998. p. 228.
109

embarcações fluviais empregadas na exploração do sertão brasileiro; d)


considerações sobre a arte pré-histórica; e) história dos contatos entre luso-
brasileiros de São Vicente e os colonos da América Espanhola entre os séculos XVI
e XVIII; f) análise do processo de formação da Vila do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
no século XVIII. Segundo Ricardo Caldeira, e com ele concordamos, já que tivemos
acesso a esse material, "são estudos que podem ser qualificados como etno-
históricos" fundamentados, sobretudo, em relatos de viajantes e documentos
escritos diversos.252
Em 4 de julho de 1958 Sérgio Buarque de Holanda obteve o título de
mestre defendendo, o até hoje inédito, "Elementos Formadores da Sociedade
Portuguesa na Época dos Descobrimentos". Meses depois o historiador iniciou o
processo seletivo para a cátedra de História da Civilização Brasileira, que contou
com a apresentação dos documentos e da tese, "Visão do Paraíso", com uma prova
escrita sobre o tema sorteado, "A conquista da paz interna e a conciliação política” e
com a sessão pública de defesa de tese no salão nobre da Faculdade, na rua Maria
Antônia. Por fim, em 14 de novembro de 1958 era decretado o seguinte resultado: "A
vista desses resultados foi o candidato aprovado com distinção e a comissão
julgadora indica-o para a regência efetiva, em regime de tempo integral, da Cadeira
de História da Civilização Brasileira, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo".253
Há um certo consenso em afirmar que o ingresso de Sérgio Buarque na
USP coincidiu com o ápice de sua maturidade intelectual e com o início dos anos
1960, era do romantismo revolucionário, período de grandes mudanças nos campos
político, cultural, sexual, dos costumes, juntamente com a emergência da mídia. O
momento também não poderia ser mais propício porque "pela primeira vez os
intelectuais começam a exigir autonomia e independência do saber e da cultura".
Uma comunidade propriamente universitária começa a se estruturar e os intelectuais
passam a se distanciar progressivamente da tutela política do estado.
Assim, até o final dos anos 1960, os intelectuais viriam a se encontrar
com o movimento estudantil e juntos no plano da política se autonomearam porta-
vozes das classes populares, numa dinâmica de crescente esquerdização da

252
Idem, p. 229. Vale ressaltar que todos esses textos apresentados encontram-se ainda inéditos.
253
Ibidem, p. 244.
110

universidade e da institucionalização das obras do marxismo no âmbito das ciências


humanas.254

2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de


Holanda

Institucionalizado através da nomeação assinada por Maria José Villaça


Vessoni, reitora da USP, no dia 3 de dezembro de 1958, e pelo então governador do
estado, Jânio Quadros, em 18 de dezembro do corrente, tendo o nome divulgado no
"Diário Oficial” de 20 de dezembro, Sérgio Buarque deixou, após treze anos de
docência, duas importante contribuições: a coordenação do projeto editorial da
"História Geral da Civilização Brasileira"-HGCB, criado nos mesmos moldes das
coleções "História Geral das Civilizações (1960-1972), dirigida por Maurice Crouzet
e "História Geral das Ciências", de René Taton e a efetivação do Instituto de Estudos
Brasileiros-IEB, em 1962. Ambas as iniciativas podemos inserir dentro do seu
projeto mais amplo de divulgação do conhecimento histórico e que englobava, de
um lado, um público consumidor de história e, de outro, a formação de quadros
docentes para atuar no ensino básico e de pesquisadores. 255
Em relação à primeira contribuição, pode-se afirmar que talvez tenha sido
um dos últimos esforços de síntese da história do Brasil, além de ter contribuído
para a consolidação da pesquisa histórica no país, seja na forma como a obra foi
estruturada, na aparição ampla e diversificada dos colaboradores, seja no conteúdo
dessas próprias contribuições. A coleção, lançada ao longo dos 1960, contou com
dois momentos distintos: um primeiro, sob direção de Sérgio Buarque de Holanda
que se estendeu até 1972, quando o autor publica sozinho o volume “Do Império à
República" e um segundo, sob coordenação de Boris Fausto que vai até 1984,
totalizando 11 volumes.
A sua primeira fase foi concomitante ao surgimento dos programas de
pós-graduação e a proliferação de novas universidades públicas, contando com a
atuação sistemática de instituições de fomento à pesquisa na área de humanidades.
No mesmo período da elaboração da HGCB, Sérgio Buarque ampliou ainda mais o
seu campo de estudos, lançando vistas à compreensão dos desdobramentos do

254
DECCA, Os intelectuais…op.cit., p. 48.
255
SANCHES, op.cit., p. 244; NICODEMO, op.cit., pp. 125-126.
111

processo de emancipação e formação do estado brasileiro, continuado pelas


pesquisas que orientou na pós-graduação da USP, tais como “O fardo do homem
branco", de Maria Odila Leite da Silva Dias, "Ibicaba, uma experiência pioneira", de
José Sebastião Witter, "Escravidão negra em São Paulo", de Suely Robles Reis de
Queiroz e "A lavoura canavieira em São Paulo", de Maria Teresa Petrone. 256
Há duas versões para o envolvimento de Sérgio Buarque de Holanda
com a coleção. A primeira nos mostra que ela se deu a partir do convite de Jean-
Paul Monteil, então diretor da Difusão Europeia do Livro, no ano seguinte a defesa
de "Visão do Paraíso", quando o historiador já era catedrático. Contudo, essa
hipótese foi contestada por dois historiadores em um artigo onde comparam a
"Coleção Brasiliana"257, dirigida por Américo Jacobina Lacombe, com a coleção
dirigida por Sérgio Buarque. A pesquisa no arquivo privado de Lacombe levou
ambos a encontrarem uma carta datada de 28 de outubro de 1957, endereçada a
ele por Rubem Lima, então diretor de produção da Companhia Editora Nacional, na
qual referia-se a uma "nova coleção" de que ele tinha ouvido falar e, ao que tudo
indicava, seria aquela dirigida por Sérgio Buarque. Segundo o documento:

Aproveito a oportunidade para perguntar-lhe se teve ou tem conhecimento


de uma História da Civilização Brasileira a ser editada pela Difusão
Europeia do Livro, sob orientação de Sérgio Buarque de Holanda. Vi com o
Dr. Aroldo de Azevedo uma carta circular da editora, dando o plano geral da
obra e a relação dos colaboradores. Ao que parece trata-se trabalho
relativamente sucinto (…) e de remuneração desvantajosa para os autores
($ 225,00 por página datilografada e cessão definitiva de direitos autorais).
Em todo o caso gostaria que o senhor nos informasse se teve oportunidade
de ler essa carta-circular e nos desse sua opinião a respeito. Talvez fosse
interessante tratarmos de divulgar imediatamente o plano e relação de
colaboradores da Grande História do Brasil que o senhor está
preparando.258

256
Sobre a História Geral da Civilização Brasileira ver os seguintes trabalhos: FURTADO, André
Carlos. As edições do cânone. Da fase Buarqueana na Coleção História Geral da Civilização
Brasileira. 2014. Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói;
VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e História Geral da Civilização
Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de especialização acadêmica (1956-
1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a. 2013; NICODEMO, Thiago Lima. A
herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da Civilização Brasileira. I Seminário
Brasileiro sobre Livro e História Editorial. 2004. Rio de Janeiro. Anais.
257
A Brasiliana foi criada em 1931 pela Companhia Editora Nacional, então propriedade de Octalles
Marcondes Ferreira, estendendo-se até 1993. Ela se constituiu, segundo Gustavo Sorá, num
importante espaço de difusão da produção intelectual sobre o Brasil. O conjunto de livros organizou-
se em duas fases: uma primeira, dirigida por Fernando Azevedo e uma segunda, a partir de 1956,
dirigida por Américo J. Lacombe. Maiores detalhes ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e
a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Ed.USP/ Com-Arte, 2010.
258
Arquivo Américo Jacobina Lacombe. Fundação Casa de Rui Barbosa. Pasta Correspondência.
Direção da Brasiliana. Apud: VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e
História Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de
112

Para além de compreender as contingências do debate intelectual em


curso na sociedade brasileira da época ou atentar para a "obscuridade que envolve
a história dos livros", o artigo nos induz a pensar sobre a importância da reescrita da
história. Sem acesso à fonte citada, Nicodemo foi traído por uma interpretação
parcial dessa fase da vida de Sérgio Buarque. Contudo, concluem os autores, como
a missiva de Lima a Lacombe data de 28 de outubro de 1957 e o concurso para o
provimento da cátedra da USP ocorreu em novembro de 1958, se o convite de
Monteil a Buarque se concretizou apenas no ano seguinte à sua defesa de tese,
como expressa a primeira versão, este contato editorial já estava estabelecido antes
da aprovação do autor de "Visão do Paraíso" no concurso. Assim, ele não poderia se
dar no ano seguinte à defesa, ou seja, em 1959, mas no mínimo, um ano antes, em
1957.259
Grosso modo, a série de livros objetivava dar acesso a um público leigo e
a estudantes as recentes pesquisas e análises que se produziam nas universidades
sobre a história do Brasil, seguindo os princípios das duas outras que lhe serviram
de modelo: o da heterogeneidade das áreas dos quais viriam os colaboradores e o
da liberdade de pontos de vista e divergência de interpretação entre os autores
responsáveis, o que garantiria a grandiosidade do conjunto e a pluralidade de
abordagem dos temas.
O assistente de Sérgio Buarque na empreitada foi o colega de
departamento, professor Pedro Moacyr Campos, experiente nessa seara por ter
traduzido do francês a coleção "História Geral das Civilizações". Para Thiago
Nicodemo, isso indicaria qual papel na concepção inicial da coleção que teria um
professor de História Antiga e Medieval como assistente de direção de um texto de
História do Brasil. Em outras palavras, Campos garantiria a legitimidade e a
sensação de continuidade entre o conjunto francês e o brasileiro quanto ao respeito
e às diretrizes gerais, o que explicaria o uso do termo “civilização" na coleção
brasileira.260

especialização acadêmica (1956-1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a.


2013. p. 19.
259
Idem, p. 20. Nota 26.
260
NICODEMO, Thiago Lima. A herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da
Civilização Brasileira. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 2004. Rio de Janeiro.
Anais. p. 5.
113

A segunda marca deixada por Sérgio Buarque na Universidade de São


Paulo se deu por meio de seu envolvimento direto com a criação do Instituto de
Estudos Brasileiros-IEB, em 1962, cuja pedra fundamental foi a compra da brasiliana
de Yan de Almeida Prado, contabilizada com cerca de 10 mil volumes e através da
qual se organizou um conselho de administração composto por representantes das
áreas de: História da Civilização Brasileira, Geografia do Brasil, Literatura Brasileira,
Antropologia e Etnologia do Brasil, História Econômica Geral e do Brasil, Economia
IV, História da Arquitetura do Brasil e pouco depois, Língua Indígenas. Acerca do
IEB há consenso em afirmar que ele foi idealizado nos moldes dos "area studies
center" , no sentido da busca pela integração de disciplinas em torno do mesmo
objeto - no caso específico, a realidade brasileira. Assim, a organização desse
Instituto fazia parte de uma experiência de colaboração internacional que Sérgio
Buarque adquirira pelo menos desde o início da década de 1940, quando foi pela
primeira vez aos Estados Unidos.261
A criação do IEB se insere em um projeto político institucional de
estreitamento entre as unidades que compunham a USP, pensado a partir de um
espaço físico comum. Os atores políticos diretamente envolvidos na aceleração da
construção do campus universitário foram o governador do estado, Carvalho Pinto, o
reitor da USP, Ulhoa Cintra, e o industrial Cicillo Matarazzo, que já havia inclusive
intermediado, com o governador, o financiamento do estado na compra para o IEB,
da coleção de cerca de 800 documentos de Dom Luís Antônio de Souza Botelho
Mourão e Morgado de Mateus, pertencentes ao Conde de Mongualde. 262
Outra preocupação de Sérgio Buarque ao participar da criação do IEB foi
a de abrir espaços, além do magistério, para que jovens universitários, sobretudo os
do curso de história, dispusessem de uma formação voltada também à pesquisa
acadêmica, tanto que o IEB ao longo dos anos adquiriu acervos como os de Mário
de Andrade, Fernando Azevedo, Caio Prado Júnior, entre outros, favorecendo,
assim, um conjunto amplo de pesquisas voltadas à realidade do país nos mais
diferentes campos.
Após 13 anos de atividades ininterruptas na USP, entre aulas,
orientações, publicações e a continuação de suas pesquisas, Sérgio Buarque se

261
NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…, op.cit., pp. 123-124; CALDEIRA, João Ricardo de
Castro. IEB: Origem e Significados. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Imprensa
Oficial do Estado. 2002.
262
Idem; SANCHES, op.cit., p. 252.
114

aposenta em 1969, obtendo mais tempo livre para se dedicar a novas pesquisas, a
escrita de alguns prefácios e sobretudo às suas viagens. Em 1973, por exemplo, foi
à Grécia, Turquia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Inglaterra e França. No ano
seguinte parte a Caracas a convite do governo venezuelano para a instalação da
Biblioteca Ayacucho. Em 1976 retorna novamente à Europa. E em 1979 publica seu
último livro, "Tentativas de Mitologia", cuja introdução é um testemunho
autobiográfico de parte de sua trajetória intelectual.
Nessa época também concedeu diversas entrevistas, para falar não
apenas de sua vida, como também da realidade do país. Uma delas, concedida à
"Folha de S. Paulo" em 1977, ao lado de Tarso de Castro e Paulo Duarte, quase lhe
rendeu o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Houve tempo ainda para
participar da vida política, no Centro Brasil Democrático, fundado em 1978 e assinar
o livro de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Em 24 de abril de 1982
deixa a vida para entrar na memória.

2.2. A década de 1970: política e historiografia

Na década de 1970 Sérgio Buarque de Holanda estava aposentado, mas


seu trabalho continuava em andamento; claro que num ritmo menos intenso. Mesmo
com crescentes problemas de saúde, elaborava livros, orientava pesquisas,
participava de bancas, prefaciava publicações de ex-orientandos e colegas, viajava
ao exterior, concedia entrevistas, recebia prêmios e envolvia-se com a vida política
do país.
"Do Império à República" (1972), o segundo tomo da História Geral da
Civilização, "Vale do Paraíba – Velhas Fazendas" (1974), a coletânea "Tentativas de
Mitologia" (1979) e o ensaio "O Atual e o Inatual em Leopold von Ranke" (1979)
compõem alguns dos seus trabalhos publicados nessa fase. Em relação ao livro de
1972, o estava reescrevendo com o intuito de relançá-lo em dois volumes,
denominados "O pássaro e a sombra" e "A fronda pretoriana”. Esses manuscritos,
que continham cerca de 150 páginas datilografadas, compõe "Capítulos de História
do Império”, lançado apenas em 2010.263
263
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. A organização dos manuscritos coube a Fernando Novaes, que é quem escreve a nota
introdutória do livro. Caso semelhante já havia ocorrido com os inéditos de "Capítulos de Literatura
Colonial", publicados em 1992 sob direção do amigo Antonio Candido. Escritos na década de 1950 e
115

No Brasil da época, os debates envolvendo diferentes projetos políticos


em oposição à ditadura deixavam de lado modelos revolucionários de outrora,
influenciados pela Revolução Cubana, para restabelecerem o diálogo a partir de
novos referenciais nos campos do discurso democrático, da cidadania e da luta por
direitos. Não obstante, percebermos em vasta produção sociológica do período a
emergência dos chamados “novos atores políticos” ou dos “novos movimentos
sociais”, que faziam da luta cotidiana pela sobrevivência nos cantões do país uma
bandeira muito mais plausível do que aquela dos abstratos modelos utópicos de
sociedade até então em voga.
Com o auxílio de setores progressistas e da Igreja Católica, a dita
sociedade civil se organizou em torno de movimentos de bairro, em oposições
sindicais, em partidos políticos de massa, em movimentos de mulheres, de negros,
de homossexuais e reivindicou tudo o que lhes fosse de direito, a exemplo da
construção de creches e da melhoria do transporte público nas periferias dos centros
urbanos, até mesmo os direitos ao lazer, à liberdade de expressão e às melhores
condições de trabalho pela via das grandes greves. 264
com base em pesquisas feitas pelo autor em arquivos italianos, deveriam compor uma publicação da
José Olympio, chamada "Era do Barroco no Brasil". Há, entretanto, outros manuscritos de Sérgio que
permanecem no "esquecimento". O mais emblemático talvez seja a sua tese de mestrado defendida
em 1958 na Escola de Sociologia e Política, intitulada "Os Elementos Formadores da Sociedade
Portuguesa na Época dos Descobrimentos", descoberta pelo professor Edgar de Decca no acervo
que a família de Sérgio Buarque confiou à Unicamp. Esse documento é muito mais do que um relato
da atmosfera cosmopolita que impulsionou a aventura levada a cabo pelos colonizadores
portugueses. Na avaliação do próprio De Decca, o texto aprofunda, duas décadas depois, temas que
Sérgio já esboçara em "Raízes de Brasil" pressupondo uma linha de continuidade entre as duas
obras, também visível em Visão do Paraíso. KASSAB, Álvaro. Edgar de Decca leva a Lisboa o Brasil
que descobriu Portugal. Jornal da Unicamp, edição 232 de 5 a 12 de outubro de 2003. p. 5;
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda na década de 1950. São Paulo: EdUSP, 2008.
264
Uma das melhores análises do período foi feita por Eder Sader no livro Quando novos
personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo
(1970-1980). 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. O conceito de “sociedade civil”, cunhado nos anos
1970 é problemático, pois sob seu leque encontram-se grupos heterogêneos, divididos em classes,
grupos corporativos, associações profissionais, frações ideológicas, instituições e movimentos sociais
que dificilmente convergem para um mesmo programa político. Essa visão obscureceu as íntimas
conexões do autoritarismo do regime no tecido social, ao mesmo tempo em que serviu de álibi para
muitos aliados civis do regime serem absolvidos diante da história, pois se colocavam sob o epíteto
vago de membros da “sociedade civil”. (Marcos Napolitano, 1964: História do Regime Militar
Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 249). O conceito também foi abordado no calor da hora,
exatamente em 1980, por Carlos Nelson Coutinho, que valendo-se de seu vasto conhecimento dos
escritos de Antônio Gramsci expõe que, "entre o estado que visa representar o interesse público e os
indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma esfera pluralista de organizações, de
sujeitos coletivos, em luta ou em aliança entre si. Essa esfera intermediária é precisamente a
“sociedade civil”, o campo dos aparelhos privados de hegemonia, o espaço da luta pelo consenso,
pela direção político-ideológica. (…) Quando surge esse mundo intermediário da “sociedade civil”, e
quando ele não está totalitariamente subordinado a um estado despótico, podemos dizer que a
sociedade passou de seu período meramente liberal para um período liberal-democrático".
COUTINHO, Carlos Nelson. Os intelectuais e a organização da cultura. In: ______. Cultura e
116

Sabemos também que essa década foi marcada pelo processo de


transição entre os "anos de chumbo”, institucionalizados por Emílio Garrastazu
Médici e os de "distensão política", lenta, gradual, iniciada no governo Ernesto
Geisel. Percepção construída durante o mandato do general e consagrada na
memória histórica liberal, em parte com a ajuda da grande imprensa que não cansou
de repetir o quadro explicativo "que colocou o presidente sob a perspectiva de uma
contradição suspensa pelo balanço positivo do saldo final do seu governo para o
processo democrático".265 Em linhas gerais, a agenda de abertura é iniciada apenas
em 1977, seguida da indicação oficial do general João Baptista Figueiredo para a
presidência. Nesse contexto, como afirma Marcos Napolitano,

… a partir de então já com pressão das ruas e do próprio sistema político


(nesta ordem), é que a abertura se transforma em um projeto de transição
democrática, ainda que de longo prazo. Havia uma pressão cada vez maior
dos movimentos sociais unidos, ocupando de forma crescente a praça
pública em torno da democracia, o que sem dúvida era um fator de pressão
a mais sobre as políticas de distensão e abertura no caso brasileiro. Eram
fatos novos, imprevistos, que colocavam novas demandas políticas, sociais
e econômicas, para as quais a estratégia do governo oferecia pouca
resposta além da repressão. A pressão das ruas talvez tenha sido o elo
perdido e esquecido entre a tímida distensão de 1974 e a efetiva agenda de
abertura em 1978.266

O processo final dessa etapa, a partir de 1982, foi "hegemonizado" pelos


liberais em negociação com os militares. Vantajosa para ambos, ela garantia uma
retirada sem punições às violações dos direitos humanos, via Lei de Anistia e sem
mudanças abruptas do modelo econômico fundamental, sancionado pelas elites, ao
mesmo tempo em que retomavam de maneira gradual as liberdades civis e o jogo
eleitoral, não sem antes colocarem à mesa o tema da “questão democrática”.
Absorvido por diferentes tendências, o conceito de democracia passou a fazer parte
do cardápio de empresários, partidos, imprensa, movimentos sociais e intelectuais.
No caso desses últimos, grupo no qual Sérgio Buarque se encontrava, não havia
consenso.
Alguns aceitavam o status quo imposto pelo governo, "afirmando que a
única opção para a construção da democracia era aceitar os limites e incrementos
da distensão oficial". Outros denunciavam a questão democrática como estratégia

Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 16.
265
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p.
229.
266
Idem, p. 234.
117

de renovação da hegemonia burguesa. Ou ainda, entendiam que a partir da nova


situação de distensão era preciso conquistar mais espaços e abrir mão da visão
instrumental de democracia, que afligia a esquerda e a direita. Para o bloco das
oposições, começava a se desenhar uma concepção de democracia “participativa”,
que tentava criar uma zona de convergência entre os conceitos elitistas e formais da
democracia liberal e a democratização da sociedade com base na afirmação dos
direitos sociais e da participação efetiva.267
É sensato afirmar que todo esse cenário teve reflexos diretos nas ciências
humanas. O boom de renovação que se efetivou na segunda metade da década de
1970 se deu num momento em que já eram claros os indícios de esgotamento de
algumas análises marxistas e de modelos de revolução como formas privilegiadas
de interpretação do passado. Enquanto a filosofia e a sociologia teciam sérias
críticas ao pensamento estruturalista de Louis Althusser 268, sobretudo a partir de São
Paulo e Rio de Janeiro, o campo historiográfico se voltava à discussão do universo
mental e das ideologias presentes nas análises históricas da "realidade brasileira”
produzidas até aquele momento.269
José Roberto do Amaral Lapa, por exemplo, constatava como um dos
traços essenciais dos trabalhos recentes “a ideologia como objeto e não motor do
conhecimento histórico”.270 Outra característica significativa do período trata, no
movimento de expansão dos cursos de Pós-Graduação e especialização em
História, da inserção da disciplina de teoria da história e da própria historiografia
brasileira.271 Nesse sentido, diversos historiadores no período se dedicaram à crítica
historiográfica da chamada geração de 1930, sintetizada pela acusação de uma
“perspectiva aristocratizante de cultura” da parte dos ensaístas intérpretes do Brasil,
como visto em “Ideologia da Cultura Brasileira” de Carlos Guilherme Mota.

267
Ibidem, pp. 234-42. Para uma definição mais precisa desses conceitos no âmbito histórico ver:
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
268
LÖWY, Michel. Notas sobre a recepção crítica ao althusserianismo no Brasil (anos 1960 e 1970).
In: BASTOS, Elide Rugai; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e
política, Brasil-França. São Paulo: Cortez, 2003. pp. 213-223.
269
Um bom balanço historiográfico pode ser encontrado em: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia Brasileira em perspectiva. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010.
270
LAPA, José Roberto Amaral A história em questão: historiografia brasileira contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 1976. p. 191. A importância de Amaral Lapa nesse período foi destacada por
Raphael Guilherme Carvalho em artigo recente, intitulado, “A escrita de si de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1970 (Notas para estudo). Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun 2015, pp. 80-102.
271
Idem, p. 9.
118

A abordagem deste autor deslocava o foco de atenção do campo


econômico para a dimensão ideológica do universo cultural brasileiro, mantendo o
eixo explicativo na definição da estrutura socioeconômica, tal como fora definida
pelos trabalhos da famosa Escola Paulista de Sociologia, na qual atuaram Florestan
Fernandes, Octavio Ianni, Aziz Simão e Fernando Henrique Cardoso. 272
A partir de então, várias pesquisas se orientaram nessa direção
"privilegiando o estudo das ideologias constitutivas" tanto dos movimentos sociais do
século XIX, a exemplo da Revolução Praieira, examinada por Isabel Andrade
Marson, quanto do "pensamento social autoritário”, como o de Alberto Torres,
esboçado por Adalberto Marson e "ainda vinculada pelos jornais de grande
circulação", como no caso dos trabalhos de Arnaldo Contier e Maria Helena
Capelato.
No mesmo espírito do tempo, os debates sobre a questão do “lugar das
ideias”, desenrolados a partir do ensaio de Roberto Schwarz sobre a adaptação do
modelo liberal europeu por uma sociedade escravocrata e atrasada como a
brasileira do século XIX, também causaram querelas nos meios acadêmicos. Numa
perspectiva marxista bastante sofisticada, esses trabalhos detiveram-se na
complexidade da análise da ideologia, apontando para sua dimensão instituinte,
mais do que reflexiva.273
O tema "Revolução de Trinta” não passou em branco nessas abordagens
e, na virada para a década de 1980, "O silêncio dos vencidos", de Edgar de Decca,
já apontava para os posteriores desdobramentos conceituais realizados em nossa
historiografia, a partir da incorporação das análises do discurso propostas por Michel

272
De modo geral, a ideia de uma Escola de Sociologia de São Paulo corresponde ao grupo de
investigadores que trabalhou ligado à cadeira do Professor Florestan Fernandes, na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, desde aproximadamente 1955 até 1969. Vale ressaltar
que seu líder negava a existência de tal Escola. EUFRÁSIO, Mário. A Escola de Sociologia e Política
de São Paulo e a Escola Paulista de Sociologia: um curto comentário e um breve depoimento. In:
KANTOR, op. cit, p. 118.
273
Desse conjunto podemos citar: MARSON, Isabel. O império do progresso: a revolução Praieira
em Pernambuco. São Paulo: Brasiliense, 1987; Movimento Praieiro - imprensa, ideologia e poder
político. São Paulo: Editora Moderna, 1980; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista em
Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CONTIER, Arnaldo. Ideologia e Imprensa em São
Paulo, 1822-1842: matrizes do vocabulário político e colonial. Petrópolis: Vozez; Campinas/SP:
Unicamp, 1979; CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo. São Paulo: Brasiliense,
1989. Sobre debate do “lugar das ideias” ver: Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao
vencedor as batatas: formas literárias e processo social nos inícios do romance brasileiro. São
Paulo: Duas Cidades, 1992; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Cadernos
de Debates, nº 1. São Paulo: Brasiliense, 1976; BRESCIANI, Maria Stella. Liberalismo, ideologia e
controle social: São Paulo (1850-1910) 1976. Tese Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História Social, USP.
119

Foucault e das discussões levantadas por Walter Benjamin em suas teses sobre a
filosofia da história. Questionando a temporalidade que localiza uma profunda
ruptura na história brasileira a partir do fato “Revolução de 30”, o autor procurou
evidenciar como se constituiu o imaginário dessa revolução por meio do
silenciamento do conflito capital/trabalho e da produção do silêncio da classe
operária, no final dos anos 1920, por uma violenta repressão política. Em outras
palavras, o livro analisou a produção do campo discursivo a partir do qual se
estruturou a memória e a historiografia desse evento, possibilitada pela vitória do
discurso do vencedor e da constituição de sua memória particular e excludente
como memória oficiosa e objetiva, ambas, sofisticadas estratégias de dominação
burguesa.274
No decorrer da década de 1980, a escrita da história no Brasil foi marcada
pelo surgimento de novas tendências e por um olhar mais acurado em relação às
fontes. Assim, processos judiciais, imagens, símbolos nacionais, memória, cinema,
diários íntimos, correspondências, cultura material, literatura, etc., em suma, tudo
aquilo produzido ou deixado como rastro, por anônimos ou não, homens e mulheres,
tornaram-se matéria-prima para inéditos estudos, cujo saldo foi bastante positivo.
Influenciadas pela história social inglesa, pela "Nouvelle Histoire", pela micro-história
italiana e pelos seus principais expoentes, como E. P. Thompson, Jacques Le Goff,
Pierre Nora e Carlo Ginzburg, mas também por pensadores como Michel Foucault,
Walter Benjamin, Hannah Arendt e Cornelius Castoriadis, a nossa produção
acadêmica produziu de maneira inovadora um conjunto de pesquisas que versavam
sobre temas como: mentalidades, religiosidade, cotidiano e lazer, mulheres, cultura
urbana e cidades, loucura e instituições de controle, correntes políticas, resistência
escrava, trajetórias individuais e questões raciais. 275

274
DECCA, Edgar S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. Para o autor, “a revoluc ̧ã o de 30 como memo ́ria histórica do vencedor da luta,
fazendo parte do exercício de dominac ̧ão, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado,
qualificando tanto os agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é
memorizada pelo vencedor como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a
oligarquia”. Decca também chama a atenção para a cronologia criada após esse “fato”. Nesse
sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado “República Velha”, já q u e “tal revoluc ã ̧ o
inaugura o novo”. A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais
a mais corrente é a da economia agroexportadora x industrializac ̧ão, aspectos que marcaram
profundamente a produção historiogra ́fica ao longo do século XX. pp. 108-110.
275
Dentre importantes estudos dessa fase podemos citar: "Nem pátria, nem patrão", de Francisco
Foot Hardman (Brasiliense, 1983), "Trem fantasma", também de Hardman (Companhia das Letras,
1988), "Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar", de Margareth Rago (Paz e Terra, 1985),
"Trabalho, lar e botequim", de Sidney Chalhoub (Brasiliense, 1986), "A vida fora das fábricas", de
Maria Auxiliadora Guzzo Decca (Paz e Terra, 1987), "O espelho do mundo – Juquery, a história de
120

Com exceção de "Raízes do Brasil", transformado em clássico pela


memória de Antonio Candido que o prefaciou em 1967 e, talvez, "Do Império à
República" de 1972, o restante e volumoso conjunto da obra de Sérgio Buarque
teve, ao que parece, pouco eco nesses acalorados debates sobre a "realidade
brasileira”, a ponto de um amigo seu e estudioso de sua obra confessar que "um dia
ele será apresentado em seu exato valor, passando a exercer influência maior.
Então a nossa historiografia será superior e vai ficar comprovado seu pioneirismo,
seu papel de verdadeiro abridor de caminhos".276
Essas palavras proferidas por Francisco Iglésias foram publicadas
primeiramente nas páginas do jornal "O Estado de S. Paulo" do dia 6 de junho de
1982, portanto, pouco depois da morte do amigo. Elas indicam, além de um devir,
que até a presente data, Sérgio Buarque de Holanda mesmo já reconhecido, não era
unanimidade entre seus pares no meio intelectual. Uma década depois as mesmas
elucubrações reaparecem, dessa vez compondo um conjunto de debates, cujos
temas eram a vida e a obra de Sérgio Buarque de Holanda, realizados na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Se tal lamento foi novamente dividido,
agora com os partícipes do Colóquio, é de se supor que as representações do
homenageado e do seu enquadramento no campo disciplinar projetado no passado,
ainda estava, naquela altura, em plena dinâmica de elaboração memorialística.
Feitas essas considerações, a sequência do capítulo tem o propósito de
acompanhar os últimos anos da vida de Sérgio Buarque de Holanda em sua casa e
no Centro Brasil Democrático-CBD, privilegiando a documentação que legou à
posteridade e que compõe parte de seu arquivo pessoal, juntamente com fontes
produzidas pela extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça
encontradas no Arquivo Nacional em Brasília. Papéis que, em diálogo, expõem as
suas redes de sociabilidade e a dialética dos anos finais da ditadura brasileira, além
do protagonismo de alguns setores intelectuais nesse processo.

um asilo", de Maria Clementina Pereira Cunha (Paz e Terra, 1986), "Sacralização da Política”, de Alcir
Lenharo (Papirus, 1988), "Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX", de Maria Odila L. da S.
Dias (Brasiliense, 1984), "O diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Melo e Souza (Companhia
das Letras, 1986), "Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro" (1750-
1808), de Silvia H. Lara (Paz e Terra, 1988), "Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da
pobreza”, de Maria Stella Bresciani (Brasiliense, 1982) e "Onda negra, medo branco. O negro no
imaginário das elites no século XIX", de Célia Maria A. Marinho (Paz e Terra, 1987).
276
IGLESIAS, Francisco. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.
p. 44.
121

2.3. Os ultimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e
um pouco do Partido dos Trabalhadores

Mesmo aposentado Sérgio Buarque de Holanda não deixou de ter uma


vida social intensa. Continuou trabalhando e a sua casa na rua Buri 35, no bairro do
Pacaembú, em São Paulo, não raro era o endereço para o qual se deslocavam ex-
alunos, jovens pesquisadores, amigos próximos, amigos dos amigos, amigos dos
filhos e jornalistas em busca de boas entrevistas. Era também um local de muitas
festas e um reduto em que o historiador, quando não estava em viagens, passava
um bocado de tempo ao lado dos filhos e dos netos. 277
Numa crônica publicada em 1969 Luís Martins já se referia à
hospitalidade dos Buarque de Holanda e com trocadilhos às obras do anfitrião,
assim se referia a ela:

A casa grande e hospitaleira – “raízes do Brasil” – o portão sempre aberto, a


escadinha do jardim que dá uma porção de voltas – “caminhos e fronteiras”
– a rede no terraço, enfim o salão cheio de livros, o anfitrião de chinelos, o
cafezinho logo oferecido: “visão do Paraíso”.
– Dr. Sérgio Buarque de Holanda, é verdade que, na opinião de Manuel
Bandeira, o senhor é um mestre “verdadeiramente sem par em sua
geração?”
– Nada disso. Eu sou apenas o pai do Chico.278

Anos depois, sobretudo ao nos debruçarmos na vasta produção


acadêmica sobre a vida e a obra de Sérgio Buarque, produzidas nas décadas de
1980 e 1990, encontramos muitas dessas lembranças. Em uma delas, o professor e
crítico literário Antônio Arnoni Prado narrou sua “epopeia" de estudante em fim de
tese.

277
Após a morte de Sérgio Buarque de Holanda e a compra de sua biblioteca pela Universidade
Estadual de Campinas, em 1983, a casa passou por um longo período de abandono. Em 1992 surgiu
a ideia de transformá-la em bem público. A proposta inicial era a montagem de um centro de
pesquisas voltado para professores da rede pública. Esse projeto não saiu do papel. Em 2002, ano
do centenário de nascimento de Sérgio Buarque, o casarão foi declarado de utilidade pública pelo
município, que previa a construção de uma discoteca. Desde então o local foi alvo de um demorado
processo judicial que envolveu a família e Emérita Aparecida Carbone, ex-babá de um dos filhos de
Sérgio e Maria Amélia. Em 2010 Emétita perdeu o processo por usocapião, a casa foi devolvida à
família que a repassou à prefeitura por uma indenização de cerca de 450 mil reais, sem correção.
Hoje o casarão abriga o Memorial do Ensino Municipal de São Paulo.
278
MARTNS, Luís. Crônica, O Estado de S. Paulo, 25/04/1969. Apud: WITTER, José Sebartião.
Introdução. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretaria
do Estado da Cultura, 1986. p. 21.
122

Em outubro de 1976 visitei Sérgio Buarque de Holanda em sua casa (…). Ia


entrevistá-lo para uma tese que então preparava, (…) sobre o modernismo
e a Semana de 22. Como seria natural, fui equipado para uma tarefa
acadêmica: lápis, muitas fichas e uma relação de questões anotadas no
papel almaço em cujo verso iam resumidos os temas, os autores a as datas
relativas aos acontecimentos do Teatro Municipal de São Paulo. (…) “Não
escreva nada, rapaz”, foi me dizendo assim que abri a pasta de cartolina
preta que ficava em cima da mesinha diante do sofá ao pé da escada, onde
ele estava sentado quando entrei conduzido por dona Maria Amélia (…).
“Não vale a pena escrever nada agora, eu ando muito esquecido de tudo…
Vamos conversando e eu vou falando do que lembrar…”. Estava
escurecendo, Sérgio usava uma camisa clara, vestia calças de algodão, de
cujos bolsos ia tirando, à medida que falava, cigarros Gauloise sem filtro,
que ascendia um na ponta do outro, sem precisar recorrer aos fósforos. “Do
Graça Aranha eu não vou falar, porque esse não foi modernista”, me disse
de repente, sem imaginar que com isso liquidava de vez com meu plano de
trabalho precariamente escorado numa série de perguntas que eu levara
dias organizando (…). Em dez minutos a conversa perdeu o rumo e a coisa
ferveu. Foram tantos os retratos, as revelações e as anedotas que ainda
hoje, vinte e oito anos depois, às vezes me surpreendo articulando aquilo
tudo num relatório que jamais serei capaz de concluir.279

Em outra, o ex-orientando e assistente de Sérgio na USP, o historiador


José Sebastião Witter, nos deixou lembranças entusiastas dos tempos em que
frequentava o saudoso endereço:

Sérgio era, no entanto, sempre um Professor… Dentro da sala de aula, nos


corredores da Maria Antônia, nas escadarias do prédio da Velha Reitoria da
USP ou no moderno edifício da Geografia e História (…) ele estava sempre
atendendo alguém, ouvindo, falando, ironizando, mas sempre ensinando.
Foi pelo menos para mim, um mestre. Também não deixava de sê-lo
naquela saudosa sala de estar da rua Buri, onde, sentado no seu sofá
predileto, passava horas e horas a nos falar sobre os seus temas preferidos
da História, abrindo caminhos para nossas pesquisas.280

Por fim, a crítica literária, historiadora e tradutora Marlyse Mayer, que


tinha em comum com Sérgio também a amizade com Antonio Candido, relata o
clima “alegre e festivo” da casa dos Buarque:

Conheci a alegre casa de Sérgio e de Maria Amélia por ocasião de um de


seus aniversários. Com o tempo nos encontraríamos frequentemente, e
Sérgio até construiu um parentesco um pouco emaranhado a partir de
primos tortos meus e sobrinho dele. Éramos primos, dizia ele, e me lembro
279
PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio, Mário e Klaxon: um encontro com Lima Barreto. In: ______.
Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. pp.
257-258.
280
WITTER, José Sebastião. Sérgio Buarque de Holanda, o professor. In: CALDEIRA, João Ricardo
de Castro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2005. p. 45. O professor Witter faleceu no dia 7 de julho de 2014, aos 81 anos em
Mogi das Cruzes, onde morava. Para mais informações sobre sua trajetória cito entrevista concedida
ao portal da FAPESP e publicada em 2006: http://revistapesquisa.fapesp.br/2006/06/01/uma-vida-na-
sala-de-aula/ acessado em 15 de julho de 2014, às 15h 51m.
123

quando, radiante, me convidou para a estreia da “neta”, minha “prima”??? a


“filha" do Chico, que é Morte e Vida Severina… E tive a sorte de ter podido
ir várias vezes conversar com ele no seu escritório da casa da rua Buri,
quando começava minhas indagações sobre os primórdios do romance
brasileiro, as primeiras leituras no Brasil, os primeiros livros que chegaram
aqui. Sérgio indicou-me o que seria para mim um fundamental livro de
aprendizagem, El Libro del Conquistador, de Irving Leonard (…).281

Poderíamos citar mais exemplos.282 No entanto, é importante frisar que


em conjunto esses relatos têm um duplo papel na construção póstuma da
personagem: servem para demonstrar a perenidade do morto e de sua obra, bem
como para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos. No caso específico dos
relatos daqueles que conviveram com Sérgio mais de perto, um argumento de
autoridade parece ser acionado na medida em que seus contemporâneos são vistos
como os mais capazes de identificar suas qualidades e os seus defeitos, de modo a
atribuir-lhe a devida importância no campo intelectual. 283
Na mesma direção, o historiador português Carlos Maurício afirma que
representamos os outros para dar sentido à sua existência, para conferir sentido ao
mundo, para falar do que somos e do que desejamos ser. Segundo ele, ao
manipular a sua imagem (a do outro) esperamos colher ganhos nos combates em
que estamos envolvidos, para nós ou para nossa concepção de vida. Ganhos que se
podem traduzir no "aumento da autoridade ou de prestígio nos domínios político,
religioso, científico, artístico, profissional, etc.". Em suma, manipulamos a sua
imagem para induzir alterações nos valores e nas práticas sociais, ou, ao invés, para
ajudar a enfrentar "a sua erosão. Inventar o outro, é mostrar/ter poder sobre o outro,
sobre os outros, sobre nós”.284
Além dos netos e filhos, dos estudantes e artistas, o endereço também
recebeu diversos jornalistas, que até lá se deslocavam em busca de boas histórias
ou de opiniões mais severas a respeito das agruras do país. Assim é que em junho
de 1977 Sérgio Buarque recebeu em sua casa um grupo de jornalistas, formado por
Moacir Amâncio, Maria José, Miguel Fontoura e Sérgio Gomes. Juntos estavam os
281
MEYER, Marlyse. No centenário de Sérgio Buarque de Holanda. In: CALDEIRA, João Ricardo de
Castro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Imprensa
Oficial, 2005. pp. 19-20.
282
O último livro de Chico Buarque, "O irmão alemão", lançado em 14 de novembro de 2014, pela
editora Companhia das Letras, traz algumas lembranças e descrições da casa da rua Buri, da
biblioteca e do jeito que Sérgio Buarque costumava trabalhar quando estava em casa.
283
ABREU, Regina. Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados. Estudos
Históricos-Dossiê Comemorações, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p. 210.
284
MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins: política, historiografia e Identidade Nacional
no Portugal Contemporâneo (1867-1960). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. p. 12.
124

amigos de longa data, Tarso de Castro e Paulo Duarte, este responsável pela
“excursão” ao bairro do Pacaembú.
Não se tratava necessariamente de uma entrevista em moldes
tradicionais, com roteiro prévio e temáticas determinadas, antevendo respostas que
comprovassem a capacidade intelectual dos protagonistas. Sob o título de "Sérgio
Buarque e Paulo Duarte" ou "Os velhos mestres", esse encontro estava muito mais
para uma roda de conversas à mesa de bar, do que qualquer outra coisa,
reafirmando a fama que possuía a rua Buri como "locus de sociabilidade". Tanto é
que, a certa altura, o anfitrião em meio a uma acalorada discussão sobre o papel
atual do jornalista como intelectual, interrompe sua fala a fim de completar os copos
vazios. Transcrito na íntegra, o diálogo, assim foi publicado:

Sérgio - Preciso fazer uma coisinha, passa essa bengala aí. A bengala é
meu pai nosso de cada dia nos dias de hoje! Olha, mas tem muito uísque
aqui em baixo ainda? Lá em cima tem à bessa, mas não posso subir.
Ontem, tinha uma menina aí, tomaram muito uísque (olha a garrafa). Um
restinho, não tem um restinho.
Tarso - (pega apressado outra garrafa, de baixo da mesa) - Não, não, tem
aqui, tem aqui.
Sérgio - Eu tenho medo que acabe, né?(…).285

De maneira geral podemos sugerir que essa conversa se transformou em


uma memória de geração, na medida em que os protagonistas dividiram suas
lembranças e experiências desde o modernismo até as suas críticas à ditadura atual
e aos seus representantes e, até mesmo, quanto a uma expectativa de futuro nada
promissora que se esboçava no país. Por algumas vezes mandatários foram citados
em tom de galhofa, o que gerou mal-estar em segmentos do aparelho de censura. A
resposta do regime aos "ataques" verbais veio na forma de um processo, que foi
encaminhado ao Ministro da Justiça sugerindo o enquadramento de Sérgio Buarque
e Paulo Duarte no artigo 36 da Lei de Segurança Nacional.
A entrevista foi publicada na íntegra no "Folhetim" do jornal "Folha de S.
Paulo" no dia 26 de junho de 1977 e contava com sete páginas de transcrição e
algumas imagens, não apenas de Sérgio e Paulo Duarte, mas também de
personagens por eles retratados, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Augusto Meyer, Érico Veríssimo e Filinto Müller. Lida na "Divisão de Segurança e
Informações" e considerada ofensiva, uma cópia do material foi encaminhada no dia
285
Sérgio Buarque e Paulo Duarte. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 de junho de 1977. Suplemento
Folhetim, p. 8.
125

12 do mês seguinte à José Carlos da Silva de Meira Mattos, responsável pela


assessoria de assuntos sigilosos do Gabinete do Ministro da Justiça. A folha inicial
do processo continha algumas marcas específicas, comuns nesses documentos da
época que atestavam o caráter sigiloso e confidencial das informações correntes,
além de nos apontar um devir, o de que a "Revolução de 64 é irreversível e
consolidará a Democracia no Brasil".286 Quanto à acusação:

O posicionamento dos dois entrevistados é nitidamente contestatório ao


regime e ao governo, não sendo poupados ataques, que culminam com
ofensas diretas ao Titular da Pasta da Justiça e genéricas a deputados,
senadores e ao Sr. Presidente da República. A Revolução de 64 possui
dispositivo legal apropriado para que não continuem impunes tais ofensas
às autoridades: no entender desta SNI a aplicação do art. 36 da Lei de
Segurança Nacional é plenamente cabível no caso.287

A Lei de Segurança que vigorava nessa ocasião era regida pelo Decreto-
Lei 898, de 29 de setembro de 1969, assinado em pleno funcionamento do AI-5.
Caso viessem a ser enquadrados e condenados, Sérgio Buarque e Paulo Duarte
deveriam cumprir a pena de 2 a 6 anos de reclusão, conforme o artigo citado.
Embora hoje pareça absurdo pensarmos que essas acusações pudessem ser
levadas à cabo, não podemos esquecer que na mesma época, quando já se falava
em distensão, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV
Cultura, havia sido torturado e em seguida assassinado nas dependências do DOI-
CODI, em São Paulo no dia 25 de outubro de 1975, quando se apresentou
“espontaneamente” para prestar esclarecimentos.
Outro caso emblemático ocorreu em janeiro de 1976, quando o
metalúrgico Manoel Filho também foi assassinado no mesmo DOI-CODI em
circunstâncias semelhantes. Portanto, ao se debruçarem naquilo que foi publicado,
os agentes da Divisão de Segurança e Informação nada mais faziam do que cumprir
a lei e o que previam as suas atribuições dentro da máquina pública, quais eram a
vigília e a censura política a qualquer forma de "subversão ou corrupção ao
sistema”.288

286
Processo GAB nº 100.430, 15/07/1977, Divisão de Segurança e Informação do Ministério da
Justiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
287
Idem.
288
A Divisão de Segurança e Informações do MJ foi criada pelo decreto-Lei nº 60.940/67, que alterou
a seção de Segurança Nacional. De acordo com o decreto, cabia a essa Divisão, como órgão de
assessoramento do ministro de estado e complementar do Conselho de Segurança Nacional,
fornecer dados, observações e elementos necessários à formulação do conceito de estratégia
nacional e do Plano Nacional de Informação; colaborar na preparação dos programas particulares de
126

No que se refere às "ofensas e ataques", o documento torna-se relevante


na medida em que sugere a forma como a entrevista foi lida pelos agentes. Anexa
ao processo verificamos que determinadas passagens encontram-se grifadas e
enquadradas. O problema, na ótica dos censores, não era necessariamente as
críticas ao país. Não lhes interessava também saber mais sobre o modernismo ou os
rumos da universidade brasileira, antes o que lhes despertava a ira eram o
"deboche" e a “galhofa” aos seus superiores. Assim, podemos ver assinalas as
seguintes passagens:

Sérgio - Acho que para resolver o “problemas” da USP basta botar o


Armando Falcão como reitor (risos).
Paulo - Como é?
Sérgio - O Armando Falcão como reitor.
Gomes - O que seria da USP com o Armando Falcão como Reitor?
Paulo - Acho que seria uma indicação digna da Universidade atual (risos).
(…)
Paulo - Dentro de 10 anos esse país é um país de analfabetos, né? Hoje ele
é quase país de analfabetos, não? Porque na realidade é o seguinte: é esse
grupo de analfabetos, dessa categoria de homens que aprendem a ler mas
não entendem o que lê, é que atualmente se tiram deputados, os
senadores, o presidente da República. Você olha a cara dele, do Falcão,
aquela cara cavalar. É uma cara cavalar a do Falcão, né? Mas não é o
único cavalar que existe. Há cavalares aí por toda a parte, né?.289

Após essa primeira triagem o processo chegou às mãos do assessor de


assuntos sigilosos, José Carlos Silva de Meira Mattos, que redigiu um outro parecer
encaminhado ao chefe de gabinete do ministro. No documento, amenizava as
acusações anteriores e responsabilizava os editores do jornal pelo “descuido" na
publicação da entrevista. Walter Costa Porto, o chefe de gabinete, leu as seguintes
palavras:

A DSI/MJ remete ao Gabinete matéria publicada pelo jornal “FOLHA DE


SÃO PAULO”, em suplemento denominado “FOLHETIM”, em que são
entrevistados os Snrs. Sérgio Buarque de Hollanda e Paulo Duarte. Na
entrevista é feita uma referência desairosa ao Snr. Ministro da Justiça. É de
se notar que no caso parece que a responsabilidade maior cabe aos
editores que transcreveram uma conversa em tom informal com os
entrevistados sem termo cuidado de uma revisão. É claro que um
comentário feito em um “bate-papo” descontraído é diferente de uma
declaração feita à imprensa ou em caráter oficial. Parece-nos entretanto que
só o Snr. Ministro poderá julgar a extensão da ofensa sofrida e a

segurança e informação relativos ao MJ e acompanhar a respectiva execução. Essa Divisão só foi


extinta no ano de 1990. Fundo: Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça:
Inventário dos dossiês avulsos da série Movimentos Contestatórios: Equipe de Documentos do Poder
Executivo e Legislativo; ALVES, Marcus Vinícius Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo, 2013. p. 10.
289
Processo, GAB…op.cit.
127

conveniência de qualquer medida com intuito de repara-la. Brasília, 26 de


julho de 1977.290

O desfecho se deu da seguinte forma: o assessor assinou o texto dando


ciência e o encaminhou ao Ministro Armando Falcão, que no dia 28 de julho decidiu
pelo arquivamento. É bem possível que tenham concluído que o "bate-papo
descontraído", em âmbito privado, não traria grandes prejuízos à imagem já
desgastada do regime, que àquela altura, deveria estar mais preocupado com a
perda de espaço no Congresso Nacional para o MDB, depois das eleições de 1974
e 1976, com a repercussão da morte de Herzog e com a pressão dos movimentos
sociais, sem levar em conta a economia que sempre assustava uma parcela da
“classe média” adepta aos militares. Sérgio Buarque possivelmente nunca soube do
seu “enquadramento" na Lei de Segurança Nacional, por isso mesmo continuou a
receber os amigos em casa e a debater questões políticas do país, tanto que no ano
seguinte fez parte com outros intelectuais da fundação do "Centro Brasil
Democrático” - CBD.
O historiador viajou de São Paulo para o Rio de Janeiro e no dia 29 de
julho, por volta das dez da manhã compareceu, ao lado de outros intelectuais, ao
salão de Convenções IV do Hotel Nacional para lavrarem a ata de fundação da nova
entidade, que mereceu da imprensa paulista uma breve nota:

Com o objetivo básico de realizar estudos e debates sobre os vários


aspectos da vida brasileira (…) será fundado oficialmente hoje o Centro
Democrático Brasileiro, presidido pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Durante a
solenidade de instalação (…) serão realizadas eleições para os principais
cargos da diretoria do Centro, formada entre outros, por Sérgio Buarque de
Holanda, Ênio Silveira e Antônio Houaiss. A entidade terá atuação de
caráter nacional, embora sua representatividade maior seja composta por
intelectuais do eixo Rio de Janeiro/ São Paulo. Entre os sócios fundadores
(…) estão o procurador Hélio Bicudo e o professor Dalmo Dallari. 291

Após breve oração de abertura, Oscar Niemeyer agradeceu a presença


de todos e enfatizou a finalidade que os congregava naquele instante, a de
"constituírem uma entidade civil, sem fins lucrativos ou político-partidários e que
seria devotada a colaborar nos esforços comuns de toda a Nação pela sua
redemocratização".292 A presidência da mesa ficou à cargo do professor Antônio

290
Idem.
291
O Estado de S. Paulo, de 29 de julho de 1978. p. 15.
292
Ata da Assembleia Geral de Constituição do Centro Brasil Democrático. D 1/1-9 P 79. Dossiê
Centro Brasil Democrático. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/Unicamp.
128

Houaiss. A pedido dos colegas, o presidente realizou a leitura de diversos


telegramas daqueles que não puderam estar presentes, mas que "hipotecavam o
seu plano de apoio e os seus votos de amplo êxito aos trabalhos que ali se iriam
desenrolar". Transcritos em ata, podemos ler as seguintes mensagens:

1) Confirmando minha adesão ao Centro Brasil Democrático peço ilustre


patrício representar-me reunião de amanhã. Abraços, Ruy Barata. 2)
Solidarizo-me Centro Brasil Democrático autorizando aposição minha
assinatura manifesto. Josué Guimarães. 3) Peço receber minha adesão
Centro, termos honrosa carta hoje recebida. Muito Grato. Edgar da Mata
Machado. 4) Na impossibilidade comparecer Assembleia inaugural CBD
razão compromisso eleitoral interior, desejo reiterar total apoio programa
nossa entidade (…) Romulo Almeida. 5) Razões fortes última hora obrigam-
me viajar hoje Brasília. Peço transmitir demais participantes Centro Brasil
Democrático meu grande interesse estar presente essa assembleia e meu
entusiasmo integrar tão patriótica iniciativa. Saudação. Roberto Saturnino
Braga. 6) Impossibilitado comparecer pessoalmente convenção dia 29 (…)
em virtude proximidade data convenção MDB de Minas (…) Adherbal
Teixeira Rocha.293

Após a leitura dos telegramas foi a vez da apresentação da Ordem do


Dia, para a qual o presidente pedia aprovação dos presentes. Em ordem podemos
assinalar: 1) Discussão e aprovação dos Estatutos; 2) Resoluções diversas; 3)
Leitura e assinatura da Ata. Houaiss deixou claro aos presentes que após o
encerramento da Assembleia haveria a convocação de uma outra, complementar, a
realizar-se depois de breve intervalo e na qual fossem discutidas e deliberadas
questões como o Regimento Interno da entidade, seu Programa de Trabalho e,
ainda, eleitos e empossados os componentes de seus órgãos efetivos. Após
movimentados debates, a Assembleia aprovara por unanimidade a constituição do
Centro Brasil Democrático, cuja sede provisória localizar-se-ia à Avenida Atlântica,
3.940, apartamento 201, no bairro de Copacabana. 294
Retomando a palavra, o Sr. Presidente esclareceu que a Assembleia
seguinte deveria contar com a presença de todos aqueles investidos da condição de
membros do Conselho Deliberativo provisório da entidade. Uma vez instituído, o
CBD passou a contar com as seguintes instâncias: Conselho Consultivo, Conselho
Fiscal, Conselho Diretor e Comissão de Sindicância. Sérgio Buarque de Holanda fez
parte do Conselho Diretor e ao lado de Ênio Silveira se tornou um dos vice-
presidentes. O Secretário Geral era Antônio Houaiss, o tesoureiro Mauro Lins e

293
Idem
294
Ibidem
129

Silva, os diretores, Audálio Dantas, Dias Gomes, Edmar Bacha, Francisco de


Oliveira, Francisco Pinto e João Saldanha. A presidência coube a Oscar
Niemeyer.295
Ainda na Assembleia, o presidente teve acatado por unanimidade o
pedido de transcrição, em Ata, do manifesto de fundação da sociedade. O
documento já era do conhecimento dos presentes, que dias antes o receberam
juntamente com o convite de convocação para o evento. O discurso defendido
previa uma pluralidade de signatários, que com diferentes convicções políticas e
religiosas tivessem em comum a luta pela democracia no país sob a bandeira da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pediam também "mudanças profundas
na organização institucional e social do País, a fim de que todos os brasileiros
possam, efetivamente, gozar de liberdade e viver em democracia". Com um tom um
pouco mais enérgico, o manifesto recomendava ainda a libertação das influências
estrangeiras nos campos, cultural, político e econômico e clamava pela reforma
agrária, afirmando que "se apropriem dos frutos da terra os que nela trabalham",
296
mas desde que dentro das leis.
Do geral para o específico, o documento previa como prioridades "a
anistia para todos os punidos e perseguidos políticos, a supressão do AI-5 e demais
instrumentos vigentes de abuso de poder", a revogação da atual Lei de Segurança
Nacional, o reconhecimento do direito de opinião e de associação, de reunião de
greve, de organização de partidos políticos e "outros direitos democráticos
ordinários" e por fim a convocação de uma Assembleia Constituinte soberana e
livremente eleita, medidas que "tornarão possível a edificação de uma sociedade
democrática em nosso país".297
No geral, a linguagem política do manifesto resumia o “espírito da época”
ao ressignificar os valores democráticos que, por vias institucionais, trariam consigo
novamente todos os demais direitos e liberdades. Nesse sentido, a Declaração dos
Direitos Humanos utilizada como bandeira possuía um valor simbólico de denúncia
contra as arbitrariedades cometidas pelo estado brasileiro, como as prisões, as
torturas e os desaparecimentos, bem como os princípios embutidos no rótulo
universal de uma "democracia burguesa" ou do que hoje se costuma chamar de
Estado Democrático de Direito. Historicamente, a Declaração dos Direitos Humanos
295
Idem.
296
Ibidem.
297
Idem.
130

só teve seu rascunho votado pelas Nações Unidas no contexto do pós-guerra, mais
precisamente em 1948, após "oitenta e três reuniões e quase 170 emendas mais
tarde”. No seu preâmbulo pregava que o desrespeito e o desprezo pelos direitos
humanos têm resultado em atos bárbaros que ofendem a consciência da
humanidade.298
De acordo com a historiadora Lynn Hunt, a Declaração não apenas
reafirmava as noções de direitos individuais do século XVIII, tais como a igualdade
perante a lei, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, o direito de participar
do governo, a proteção da propriedade privada e a rejeição da tortura e da punição
cruel, como também proibia expressamente a escravidão e providenciava o sufrágio
universal e igual por votação secreta. Além disso, requeria a liberdade de ir e vir, o
direito a uma nacionalidade, o direito de casar e, com mais controvérsia, o direito à
segurança social; o direito de trabalhar com pagamento igual para trabalho igual,
tendo por base um salário de subsistência; o direito ao descanso e ao lazer; e o
direito à educação, que deveria ser pública nos níveis elementares. Em suma, a
Declaração expressava um conjunto de aspirações em vez de uma realidade
prontamente alcançável. Concebia uma soma de obrigações morais para a
comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição, caso
contrário não teria sido aprovada. 299 Assumida, portanto, estrategicamente pelo CBD
num momento de acentuada oposição ao regime, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos se tornou um abrigo político capaz de acolher em sua área de
proteção os diferentes projetos partidários do momento, até que a enxurrada
repressiva se interrompesse.
Assim, a ideia de uma entidade autônoma e plural, conforme apontava
seu estatuto, deixava dúvidas e logo nos primeiros encontros, após a fundação, o
Centro se mostrou vulnerável às disputas internas das diferentes correntes político-
partidárias que lhe sustentavam, deixando outros temas na penumbra dos debates.
A cobertura do "Encontro Nacional pela Democracia", cujo tema era "Brasil depois
de novembro"300, feita pelo jornal "O Estado de S. Paulo" nos ajuda a perceber o jogo
298
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 205.
299
Idem, p. 206.
300
Obviamente o título do encontro refere-se às eleições gerais que ocorreram no dia 15 daquele mês
para mandatos que se estenderiam até 1983. Na ocasião estava em jogo a disputa por 23 vagas ao
senado e 420 à Câmara Federal. Foi nessa legislatura que nos anos seguintes se votou a Lei de
Anistia e a reforma política que instituiu o pluripartidarismo. Para mais detalhes sobre os resultados
desse pleito ver o artigo de Márcio Moreira Alves e Artur Baptista, publicado em: Revista Crítica de
131

de forças. Na página 3 de sua edição de 12 de dezembro de 1978, podemos ler a


seguinte chamada: "Encontro do Rio revela o desejo de manter MDB unido e
controlado". O conteúdo informava que após três dias de debates promovidos pelo
Centro Brasil Democrático, já era possível registrar duas evidências: uma, relativa ao
empenho das esquerdas em manter unido o MDB e a tentativa de assumir o controle
e a iniciativa de suas ações; a outra, de que essa unidade seria mantida até que se
concretizassem os compromissos de desdobramento de reforma política no rumo de
uma efetiva abertura democrática.301
Apesar da ausência das principais lideranças, o partido foi o tema central
dos debates, questionando-se, contudo, a conclusão contida no relatório final no
sentido de um apelo aos representantes dos diferentes setores da sociedade para
que se filiassem à legenda, "dando-lhe consistência e perenidade". Parlamentares
oposicionistas e representantes liberais negaram, no entanto, que essa posição
tivesse sido acordada, deixando as portas abertas para uma reformulação partidária
no momento oportuno. O questionamento refletia, segundo a nota do jornal, as
nítidas divergências de opinião e pontos de vista expostos na sessão de
encerramento, ocorrida no dia 10. Com claro “cunho liberal”, Raymundo Faoro e
Teotônio Vilela, o único arenista presente, pregaram a conciliação e a luta política
pacífica pela redemocratização dentro das regras vigentes, "das quais discordam,
mas aceitam como ponto de partida para a normalização constitucional e a plenitude
democrática", tom que desagradou os grupos mais à esquerda. 302
Do outro lado, pronunciamentos mais “radicais" também desagradaram
setores mais moderados e liberais. Em um deles, o líder sindical Lula, "certamente
feriu a sensibilidade de emedebistas compromissados com setores empresariais e
desgostou os remanescentes trabalhistas, de resto já descontentes com as críticas
feitas no curso dos debates dos dias anteriores". 303 Todavia, o discurso mais
polêmico partiu do presidente do Centro, o arquiteto Oscar Niemeyer, que
manifestando suas tendências comunistas deu salvas a Luís Carlos Prestes e a
Carlos Marighela. Segundo o jornal, a fala do "presidente e principal organizador do

Ciências Sociais, nº 3, dez. 1979.


301
O E s t a d o d e S . P a u l o , 1 2 d e d e z e m b r o d e 1 9 7 8 . p . 3 . A c e r v o online:
http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19781212-31823-nac-0003-999-3-not, acessado em 31 de
julho de 2014. Vale ressaltar que para o evento foram convidados 37 pessoas, entre elas, políticos,
historiadores, jornalistas, economistas, cientistas sociais e líderes de classe, que debateram questões
econômicas, políticas, institucionais e sociais, distribuídos em seis painéis.
302
Idem.
303
Ibidem
132

encontro destoou das conclusões e do sentido que se procurou, no curso dos


debates, dar à reunião”. Ao que tudo indica, ela produziu "evidente constrangimento"
à maioria dos membros da mesa, em especial ao presidente da "Ordem dos
Advogados do Brasil” - OAB e aos senadores Teotônio Vilela, José Richa e Pedro
Simon, situados em posição notoriamente opostas à do arquiteto.
Ao final do encontro, as manifestações dos liberais presentes na sessão
de encerramento transitavam entre irritação e surpresa. Moderados emedebistas
criticaram o que acharam "descortesia" da parte de Niemeyer, enquanto ex-
parlamentares do antigo PTB apontavam para a impossibilidade de qualquer aliança
com setores "radicais". Quanto aos liberais, o que se discutia é se a sua presença
nos debates ajudou a dar probidade a um movimento de tendência radical ou se, ao
contrário, contribuiu para minimizar a radicalização. A conclusão da reportagem não
poderia ser mais enfática quanto à ideia anterior de um “abrigo político”, afirmando
que, "seja como for, sabem que terão de continuar juntos até que se efetivem as
promessas e esperanças de democratização do país". 304
Diferentemente da entrevista concedida por Sérgio Buarque e Paulo
Duarte no ano anterior, em que os órgãos de censura atribuíram a um erro de edição
do jornal as "ofensas" ditas por eles em "conversa informal" e publicadas, a
efetivação do Centro Brasil Democrático recebeu por parte da Divisão de Segurança
e Informação-DSI um pouco mais de atenção, na medida em que se tratava de uma
organização política, pública e visivelmente articulada por setores do MDB e por
intelectuais de diferentes segmentos. Desse modo, desde o dia 2 de agosto uma
série de informes protocolados já circulavam por gabinetes do Ministério da Justiça
constituindo um processo, no qual podemos acompanhar todos os passos do Centro
Brasil Democrático.
Dentre os informes contidos no processo, o de número 23, de 17 de
janeiro de 1979, merece atenção. Nele podemos perceber o modo como o "Encontro
Nacional pela Democracia", ocorrido em dezembro, foi inscrito pelos órgãos oficiais.
Primeiramente, o documento apresenta um erro de registro, quando assinala o dia
10 de outubro como data de encerramento do encontro. Sabemos, entretanto, que o
correto é 10 de dezembro conforme matérias publicadas na imprensa. Aos olhos de
quem produziu o relato, todos os participantes eram "esquerdistas" pelo simples fato
de debaterem problemas ligados à democracia. A cobertura da imprensa e o
304
Idem.
133

Manifesto de Fundação do Centro, todavia, indicam o contrário, já que em torno do


projeto comum de retorno democrático gravitaram tanto liberais quanto comunistas,
como visto na sessão de encerramento.
No mais, o documento nos informa ainda sobre a "razoável cobertura" que
o Encontro recebeu da imprensa, sobretudo a carioca, e cita as conclusões a que
chegaram os participantes após "54 horas" de debates, das quais se destacam os
seguintes tópicos:

- "As eleições de 74, 76 e 78 demonstram que o modelo econômico e social


implantado em 1964 está falido".
- "O desgaste do fantasma do comunismo é flagrante”.
- “O fantasma do comunismo foi o grande derrotado nas eleições de 78, não
acrescentando um voto a mais à ARENA e não privando o MDB de um
único voto”.

Outras decisões importantes puderam ser constatadas, dentre elas o


"empenho dos esquerdistas em manter a união do MDB contra as tentativas de
implantação do pluripartidarismo, bem como a exigência de que se comprovem, na
prática, as promessas de liberalização do regime". 305 Mais à frente, o relato cai numa
contradição na medida em que ameniza o caráter exclusivamente "esquerdista" do
encontro, alegando que os discursos proferidos eram "ponderados e coerentes com
o atual momento" do país, em que pese a pressão das ruas e o rearranjo pelo alto
das principais elites políticas. Dissonante, assim como noticiaram os jornais, foi o
registro do discurso de Oscar Niemeyer, que no encerramento dos trabalhos "teceu
loas a Luis Carlos Prestes e Carlos Marighela, causando certo mal-estar e
constrangimento aos presentes, dentre eles Pedro Simon, Teotônio Vilela e
Raimundo Faoro, que não esconderam seu desagrado diante das palavras do
idealizador do Centro Brasil Democrático". 306 Por fim, em tom de respeito, o informe
ressalta a competência de “uma entidade que com apenas três meses (…) já
consegue aglutinar em torno de si segmentos diversos das esquerdas brasileiras,
sendo possível que em pouco tempo (…) se transforme num polo “legal" de
divulgação, em âmbito nacional, de ideias e concepções esquerdistas e
contestatórias em relação ao regime vigente". 307

305
Processo GAB nº 100.567, 07/08/1978, Divisão de Segurança e Informação do Ministério da
Justiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Informação n. 23/79/DSI/MJ.
306
Idem.
307
Ibidem.
134

Doravante, a questão central do processo, que após passar pelo


Ministério da Justiça foi encaminhado à Divisão de Ordem Política e Social-DOPS do
Departamento de Polícia Federal e em seguida arquivado, era saber se o Centro
Brasil Democrático constituía ou não uma entidade "subversiva", cuja finalidade
previa a organização partidária. A conclusão a que chegaram os assessores do
ministro é a de que "não está comprovada a propaganda, a tentativa, nem a
organização de partido de esquerda". Em um dos documentos, datado de 8 de
fevereiro de 1979, o diretor do DOPS, José da Costa Negraes, informava ao ministro
Armando Falcão que mesmo arquivado o processo o CBD continuaria a ser
"acompanhado", isso porque, segundo ele, o atual momento político de abertura
colocado em prática pelo governo não comportaria mais "medidas repressivas". 308
Em 6 de março o processo foi arquivado no DOPS e ficou aguardando
"novos fatos para acompanhamento do assunto", o que não demorou mais do que
72 horas para acontecer. Assim, no dia 9 chegava pelas letras da Divisão de
Segurança do Ministério da Justiça um "aditamento" com detalhes das atividades do
CBD desde sua fundação. Esse documento, em linhas gerais, atestava que o
Centro, após "organizar-se legalmente, vinha atuando concretamente segundo seus
objetivos”. Também dava destaque ao jornal "Brasil Democrático", em cuja edição de
novembro, a primeira, diga-se de passagem, trazia textos de "notórios esquerdistas”,
tais como Oscar Niemeyer, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson W. Sodré, Antônio
Houaiss, Ênio Silveira, João Saldanha e alguns outros. A tônica dos artigos,
segundo a fonte, era a crítica ao atual regime taxado de "arbitrário, fascista,
repressivo, reacionário e anti-democrático”. Ao final, a Divisão de Segurança e
Informação, órgão responsável pelo informe, não escondia a suas preocupações
sobre os rumos do país, alertando que:

As atividades do Centro Brasil Democrático (CEBRADE), e em vista dos


princípios ideológicos de seus fundadores, dirigentes e filiados, assim
também a sua estrutura de atuação, significam um perigoso incremento de
um movimento ostensivamente subversivo, que dado aos apaixonantes
debates dos temas propiciados pela abertura democrática, tenderá a tomar
vulto a curto prazo.309

No que se refere a uma participação mais efetiva de Sérgio Buarque de


Holanda dentro do CBD, as fontes apresentadas não trazem muito mais detalhes do
308
Idem, folha 33.
309
Ibidem, folhas 39 e 40.
135

que foi exposto. Não encontramos, por exemplo, registros de que ele tenha feito
pronunciamentos nos dois eventos em que participou no Hotel Nacional ou mesmo
que tenha acrescentado pontos mais específicos ao texto do Manifesto. O que há de
mais direcionado são as poucas fotografias em que Sérgio aparece ao lado de
Oscar Niemeyer, Antônio Houaiss e Ênio Silveira durante a fundação do Centro e o
texto assinado por ele no jornal "Brasil Democrático", conforme citado no processo.
Ao lermos o texto "Conseguirão expulsar o povo?", a conclusão a que chegamos é
que se trata da transcrição de uma entrevista e não propriamente de um texto de
opinião anotado pelo historiador. O parágrafo inicial esclarece qualquer dúvida:

Por que o Centro Brasil Democrático? O historiador Sérgio Buarque de


Hollanda , 75 anos, tem uma resposta precisa para a criação da entidade.
“O Centro objetivou a unir em torno de um programa eminentemente
democrático todas as forças vivas da nação. E é através dessa mobilização
que se bloquearão quaisquer tentativas de um retrocesso político". 310

Considerando o momento histórico e o estado de Sérgio Buarque à


época, "já meio tolhido por problemas de saúde", seria mais razoável deduzir que o
seu envolvimento no Centro Brasil Democrático tenha se efetivado muito mais por
afinidades eletivas com o grupo idealizador e por sua presença simbólica no campo
intelectual do que aquilo que foi consolidado em tom superlativo por certa memória
histórica, qual seja, a de que a sua participação foi "um ato de coragem e um
passaporte do intelectual Sérgio para o militante combativo". Atitude que revela a
“singularidade do espírito e ao mesmo tempo a sua grandeza em sendo o maior
historiador brasileiro, ser capaz de atitudes tão carregadas de sentimento, daquilo
que ele era, um homem simples (…)”.311 E se trocássemos o seu nome pelo de outro
integrante do Centro, não teríamos a mesma narrativa? Nesse caso, as noções de
"coragem" ou "grandeza" trazem consigo a ideia de que Sérgio Buarque era
excepcional, "singular" em suas tomadas de posição política, portanto, uma forma de
inscrevê-lo, resultante do trabalho de “enquadramento de lembranças construídas a
seu respeito em um complexo processo de organização da memória levado a cabo
por seus amigos e conhecidos a partir de marcos instituídos por ele próprio". 312
310
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Conseguirão expulsar o povo?. In: Brasil Democrático, nº 1,
novembro de 1978, p. 3. Em Marcos Costa, op.cit, p. 173 a referência a essa passagem aparece
como publicada em Caderno CBD, 1976. Informação ao meu ver equivocada.
311
CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, vol. 1, n. 3, julho de
1982, p. 9; COSTA, Marcos, Biografia histórica…op.cit., pp. 177 e 188.
312
SCHMIDT, Benito Bisso. Nunca houve uma mulher como Gilda? Memória e gênero na construção
de uma mulher “excepcional”. In:______; GOMES, Angela de Castro. (orgs). Memórias e narrativas
136

Pouco menos de dois anos após a fundação do CBD, algumas


preocupações apresentadas pelos órgãos do estado faziam sentido. Em 1979, já
sob o governo Figueiredo, houve a dissolução da ARENA e do MDB com retorno ao
pluripartidarismo e, também, a assinatura da Lei de Anistia que possibilitou a volta
ao país de lideranças políticas, intelectuais, artistas, a reintegração ao serviço
público de servidores cassados e a soltura de presos políticos. Terreno fértil,
portanto, para que parte do Centro viesse a apoiar a organização de um novo
partido, de massas e oriundo de setores do movimento operário, dos movimentos
sociais, da ala progressista da igreja e das classes artística e intelectual. Assim, no
dia 10 de fevereiro de 1980, intelectuais ligados ao CBD como Antonio Candido,
Perseu Abramo, Hélio Pelegrino, Hélio Bicudo, Mário Pedrosa, Sérgio Buarque,
entre outros, estiveram presentes no tradicional Colégio Sion, ao lado de outras
lideranças políticas e sindicais, para assinarem a ata de fundação do Partido dos
Trabalhadores - PT.
No caso específico de Sérgio Buarque é sabido que não deixou nenhum
documento formal acerca de sua opção pelo Partido, não publicou qualquer artigo,
nem deu entrevistas sobre o tema; tampouco foram encontradas em seus arquivos
anotações relativas a ele. O que conhecemos foi contado por sua viúva, D. Maria
Amélia, e por amigos próximos que estiveram presentes naquela ocasião ou, ainda,
por algumas fotografias. Logo após a morte de Sérgio em 1982, Antonio Candido,
um de seus principais “inventores”, publicou na revista do CEBRAP um texto
intitulado "Sérgio em Berlim e depois", no qual traça a linha contínua de uma
biografia excepcional em que o “jovem modernista” avant la lettre do passado se
ligava ao “intelectual maduro e combativo” do presente, preocupado com a aflição
dos oprimidos frente ao regime de exceção. Em suas palavras,

Afinal, em 1980 se integrou no processo de constituição do Partido dos


Trabalhadores e foi seu membro fundador. No encontro nacional
preparatório, lá estava ele apoiado à bengala, recebendo com Mário
Pedrosa, Apolônio de Carvalho e Manuel da Conceição uma apoteose de
aplausos, devidos aos que exprimem, cada um a seu modo, a coerência, a
continuidade e a diversidade dos esforços, necessários para aquele tipo de
luta que começava. Simbolicamente, era como se houvesse uma ligação
profunda entre a aclamação de agora e aquele texto de 1936, segundo o
qual sóa transferência de poder às camadas espoliadas e oprimidas poderia
quebrar o velho Brasil da iniquidade oligárquica.313

(auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EdUFRGS, 2009. p. 167.
313
CANDIDO, Antonio, Sérgio em Berlim…op.cit. p. 9.
137

Nas lembranças de Luiz Dulci, Sérgio "estava lá, no colégio Sion, em 10


de fevereiro de 1980, naquela inesquecível assembleia de líderes operários e
camponeses, de sindicalistas e intelectuais, de padres e artistas, de exilados que
acabavam de regressar ao Brasil e de companheiros recém-saídos da
clandestinidade".314 Sérgio estava lá, ao lado de Lula, de Olívio Dutra, de Manoel da
Conceição, de Apolônio de Carvalho, "de todos nós, vindos dos quatro cantos do
país para fundar o PT”.315 Com um pouco mais de detalhes, afirma Dulci, "recordo-
me de vê-lo à entrada do auditório, naquela confusão fraterna e emocionada, em
palestra com Mário Pedrosa, Antonio Candido e Hélio Pellegrino. Dalí a pouco, uma
das primeiras assinaturas do livro de fundação seria sua". 316
Seguindo a linha narrativa do “homem de coragem”, Dulci expõe que
naquela fase inicial de "dramáticos obstáculos organizativos", em que tanto se
combateu à direita e à esquerda a proposta petista, intelectuais como Sérgio
Buarque, Marilena Chauí, Antonio Candido, Paulo Freire, Mário Pedrosa, entre
vários outros, "cumpriram papel decisivo na defesa do PT e do pluralismo político-
ideológico no país. Pondo corajosamente em jogo o seu prestígio, afirmaram não só
o direito do PT a existir como também a importância histórica de sua existência para
os rumos da democracia brasileira. Uma batalha travada em vários campos: o
jurídico, o sociopolítico e o intelectual". Nesse último, afirma Dulci, "a simples
presença de alguém como Sérgio Buarque entre os proponentes do PT já alterava a
qualidade do debate".317
Já D. Maria Amélia, principal memorialista de Sérgio e organizadora de
seus papéis pessoais, recorda que até os últimos dias de vida o marido nunca
deixou de acompanhar "com entusiasmo o noticiário sobre o PT". Lembra-se de sua
indignação com o enquadramento de Lula na Lei de Segurança Nacional em outubro
de 1980. Temia que o episódio fosse utilizado para impedir a legalização do Partido,
para proscrevê-lo.318 Algumas fotos da época ficaram bastante conhecidas ao serem
reproduzidas em diversos livros em que Sérgio Buarque aparece como personagem.
A mais famosa, sem sombra de dúvida, é a que mostra o intelectual em pé apoiado
em sua bengala, enquanto assina o livro de fundação do partido. Em outras,

314
DULCI, Luiz. Sérgio Buarque de Holanda petista. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque
de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 89-90.
315
Idem
316
Ibidem
317
Idem, p. 91.
318
Ibidem.
138

podemos vê-lo ao lado de Lélia Abramo, Olívio Dutra, Lula e Jacó Bittar ou de pé em
companhia de Mário Pedrosa e Hélio Pellegrino.
Segundo um dos biógrafos de Sérgio, na ocasião da fundação do Partido
dos Trabalhadores, o historiador, já muito doente, confessou ter medo da morte.
Medo no sentido de não poder acompanhar o “desenrolar de uma nova fase que se
abria na história do país em relação aos seus movimentos sociais, com a fundação
do Partido. Um medo também realista, pois sentia que algo estava por acontecer e a
morte realmente não tardaria para chegar”. 319 Em 24 de abril de 1982, morria o
“homem cordial”.

***

Daqui em diante nos interessa problematizar as tramas da memória que


constituíram Sérgio Buarque de Holanda como uma figura excepcional. Para tanto,
elegemos alguns momentos importantes para analisar: 1) os discursos proferidos em
seu velório; 2) o processo de compra de sua biblioteca e a montagem de seu arquivo
pessoal; 3) o evento "Semanas Sérgio Buarque de Holanda"; e, 4) a publicação
"Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra". A partir dessas escolhas refletiremos
sobre aquilo que definimos como "estratégias de consagração", em outros termos,
um conjunto de enunciados e sentidos atribuídos por amigos, parentes, instituições e
pelo próprio personagem, que buscaram ao longo dos anos construir e sustentar
uma memória biográfica oficial, tanto no campo historiográfico quanto no campo
político das esquerdas e legado às gerações futuras.

319
COSTA, op.cit., p. 188.
139

Capítulo 3
UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES

3.1. Morre o “Homem Cordial”

Na manhã do dia 24 de abril Sérgio Buarque havia acordado, descido as


escadas e tomado seu café como de costume. Naquela época, se encontrava
acometido por uma forte pneumonia, agravada por um câncer nos brônquios,
possivelmente resultante dos cigarros que fumara durante toda a vida. Além do
uísque, gostava muito dos cigarros. Não os abandonou em momento algum.
Gostava dos franceses, mas na falta deles os nacionais o saciavam. O próprio
médico que o cuidava admitiu que proibí-lo de fumar seria inútil. O escritor não se
considerava supersticioso, embora não usasse marrom ou fumasse o 13º cigarro do
maço.
Dias antes, Sérgio havia almoçado com alguns amigos. Não imaginava
que seria a última vez que realizara tão simples e prazeroso ato. À mesa reuniram-
se o então líder sindical Luiz Inácio “Lula" da Silva, o deputado estadual Eduardo
Suplicy, Frei Beto e um de seus filhos, o compositor Chico Buarque, responsável
pelo encontro. Conversaram sobre política, possivelmente sobre o protagonismo do
recém-fundado “Partido dos Trabalhadores”- PT nas eleições que estavam por vir,
sobre a Guerra das Malvinas, que havia iniciado recentemente, e outros assuntos.
Em meio às elocubrações sobre os destinos pátrios, eis que surge em tom maior a
voz de Sérgio, sempre "avesso às formalidades”, a cantarolar “Sassaricando”,
conhecida marchinha carnavalesca, com um toque pessoal de sua irreverência: a
cantarolou em latim!
O historiador encontrava-se disposto naquela manhã de sábado e mesmo
com a saúde debilitada trabalhava em seus escritos, ao que parece, três ou quatro
livros já iniciados. Após tomar o café, Sérgio retornou ao quarto e em seguida
informou ao seu enfermeiro que queria se dirigir até o escritório. No curto trajeto o
historiador subitamente cai para trás. Seu coração parou de bater por volta das nove
140

e trinta. A imprensa não demoraria mais do que 24 horas para informar que havia
desaparecido o “homem cordial”, rótulo que carregou desde as polêmicas que
envolveram o seu livro de estreia.
Morreu em trânsito entre o quarto de dormir e o escritório, local da
agitação intelectual. Contrariando a lógica de funerais festivos, muito em voga na
capital da República a partir da virada do século XIX para o XX, tais como ocorreram
com literatos e homens públicos, a exemplo de Machado de Assis, em 1908, Afonso
Pena e Euclides da Cunha, em 1909, Joaquim Nabuco, em 1910, o Barão do Rio
Branco, em 1912, Pinheiro Machado, em 1915, Oswaldo Cruz, em 1917, Rodrigues
Alves, também em 1917 e Rui Barbosa, em 1923, Sérgio Buarque preferiu algo bem
mais simples. Avesso, portanto, àqueles mortos que “haviam construído a nação
com seus dotes inatos e únicos, de modo que o Brasil era visto como um grande
artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com
qualidades acima do normal”. Qualidades que os tornavam capazes de materializar
valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas. 320
Os velórios eram de suma importância para os membros da elite política e
literária, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, exigindo-se
dos organizadores cuidadosas escolhas, já que em muitos casos poder e letras
andavam atados. Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram
velados na "Academia Brasileira de Letras"-ABL, o Barão do Rio Branco no Palácio
do Itamaraty, enquanto Rui Barbosa na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados
por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, flores, altares, dosséis e guardas
de honra. O objetivo, segundo alguns estudos, "era demonstrar a especificidade da
vida e das obras do finado por meio das instituições com as quais ele se relacionara.
Na ocasião dos funerais, esses espaços serviam como uma espécie de palco para a
performance pública das elites”, que não se ressentiam em momento algum em
deixar de fora a população.321
Os velórios também eram uma ocasião propícia para discursos,
responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia fúnebre. Por meio de

320
GONTIJO, Rebeca. O Velho Vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,
historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 32-33. Em especial a discussão do
primeiro capítulo, “Morre o historiador da pátria”, no qual a autora apresenta o intelectual como
símbolo da “brasilidade” a partir do velório e dos necrológios lidos e publicados a respeito de sua
personagem.
321
Idem; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa, Estudos Históricos - Dossiê Heróis
Nacionais, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 152.
141

panegíricos, buscava-se a individualização e a imortalidade do finado. No caso dos


ilustres aqui citados, é notória a associação de seus nomes à nação, o que permite
considerar seus funerais como verdadeiros “rituais cívicos”. 322
O historiador português Fernando Catroga estudou muito bem o que
chamou de “culto cívico dos mortos”. Para ele é importante perceber que no trabalho
de elaboração póstuma, o que se “re-presentifica" é a imagem purificada do evocado
e o que se confirma é a vida do vivo. Daí a origem de uma prosopopeia memorial e o
seu cariz de exemplum: idealiza-se a personalidade do defunto, mascaram-se os
seus defeitos e exaltam-se as suas qualidades, edificando-se um modelo em que se
combinam formas de pensar arquetípicas e estereotipadas. A competência dos
“grandes homens" desaparecidos tende, assim, a ganhar o estatuto de
“panteonização” e este é posto a serviço das práticas identitárias dos grupos
(família, associações, gerações, Nação, etc.). 323
De acordo com Catroga, então, recordar os finados possibilita a instituição
e o reconhecimento de identidade, bem como o delineamento de esperanças
escatológicas (transcendentes e terrenas), oferecendo-se ao evocador uma história
com "um passado e um futuro” num encadeamento contínuo de gerações. Desse
modo, apesar de o rito implicar a repetição, “recordar e, sobretudo comemorar, será
sempre teatralizar uma prática de reescrita da(s) história(s); será, em síntese,
praticar coletivamente uma recordação que veicula mensagem para um tempo
fictício tecido pelo diálogo entre o presente-passado e o presente-futuro”. 324
Os Buarque de Holanda dispensaram qualquer tipo de pompa. Afinal, era
desejo de Sérgio que em seu velório não o rodeassem com flores, velas e nem que
tocassem música, muito menos que o fotografassem ou que fizessem imagens suas
para a televisão. Sabia que seu filho causava furor por onde passava e na sua
cerimônia não seria diferente. Preferiu a cremação e dela esvair-se no tempo e no

322
Ibidem, p. 151.
323
CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos.
Coimbra: Minerva, 1999. p. 31. Esse livro descreve o processo que conduziu à revolução romântica
dos cemitérios em Portugal e à transformação da necrópole num espaço público e efetivo, onde se
passou a dramatizar e a delir a tensão entre a finitude humana e os sonhos (utópicos e ucrónicos) de
sua superação. Também, mostra como é que, deste jogo simulador da vida e dissimulador da prova
ontológica da morte –o cadáver–, nasceu a cenografia simbolicamente adequada ao crescimento do
papel de uma instância julgadora que, em combinação ou em alternativa com a escatalogia judaico-
cristã, se foi impondo, cada vez mais, como um novo além: a memória dos vivos. Daí, a atenção do
autor à função sociabilitária e cívica das liturgias de recordação, assim como ao estudo das relações
entre o(s) poder(es) e o culto dos mortos.
324
Idem, p. 32.
142

espaço como pó a ficar imóvel preso em uma caixa de madeira esperando o tempo
fazer o resto.
O historiador não era religioso e alegava que a fé da esposa equilibrava
as contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e detestava cemitérios,
talvez por isso, a cremação fosse para ele o meio mais eficaz para se recalcar o
medo dos mortos, pois os antigos acreditavam que ela impedia o regresso do duplo,
isto é, o retorno da alma do defunto, eliminava as impurezas, protegia o cadáver do
ataque das feras, libertava o finado do domínio dos espíritos malignos,
proporcionava calor no mundo inferior, evitava o nojo da putrefação do corpo e
comunicava um significado salvífico evidente: o fogo purificava e iluminava o defunto
no caminho até o outro mundo, indicando que tal como o fumo, assim o espírito se
elevaria à morada dos bem-aventurados.325
Desejo respeitado. Durante o simples velório, ocorrido em sua residência
da rua Buri, estiveram presentes apenas os familiares e alguns amigos muito
próximos, como Frei Beto, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Paulo Vanzolini, Aziz
Ab’Saber, Aurélio Buarque, Mário Schemberg, Soares Amora, Perseu Abramo, entre
outros. Apenas no dia seguinte é que os jornais das principais capitais do país
estampavam manchetes sobre a morte de Sérgio. “O mundo intelectual reage diante
da notícia inesperada” publicava “O Estado de S. Paulo”, enquanto a “Folha”
anunciava “Sérgio até o fim, sem pompas”. No Rio de Janeiro, “O Globo” trazia
“Morre Sérgio Buarque de Holanda” e o "Jornal do Brasil” informava que “Historiador
é cremado na Vila Alpina”. Fora do eixo Rio-São Paulo, o curitibano “A Gazeta do
Povo” destacava que “Vítima de câncer, morre aos 80 anos o historiador Sérgio B.
de Hollanda” e o gaúcho “Correio do Povo”, de Porto Alegre, insistia em uma das
mais assinaladas características do falecido, “Um homem sem pose”. 326
O cortejo fúnebre partiu às 10 da manhã da casa da família direto para o
Cemitério da Vila Alpina, onde o escritor seria cremado. Chegando lá, além dos
parentes e amigos, muitos curiosos aglomeraram-se em frente à Capela, não para
solidarizarem-se em momento tão difícil, antes para ver se conseguiam avistar seu

325
Ibidem, p. 268.
326
Respectivamente, O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982; Folha de S. Paulo, 26 de abril de
1982, Ilustrada, p. 19; O Globo, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1982; Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 26 de abril de 1982; A Gazeta do Povo, Curitiba, 25 de abril de 1982 e Correio do Povo,
Porto Alegre, 27 de abril de 1982. Vale mencionar que o jornal paranaense cometeu um erro em sua
manchete, já que Sérgio Buarque, falecido no dia 24 de abril, apenas completaria 80 anos no dia 11
de julho.
143

filho ilustre. Dentre os curiosos, talvez muitos nem soubessem quem foi o defunto e
nem qual teria sido a sua contribuição para a cultura do país. Na capela, a missa foi
rezada por Frei Beto, que leu um trecho do Evangelho segundo São Mateus e falou
sobre a importância da obra de Sérgio Buarque. Eis o que pode ter dito:

Sérgio Buarque de Holanda parte e permanece presente ali onde ele nos
ensinou a admirá-lo e a apreendê-lo: em nossos corações. Sabemos, pela
fé, que agora ele está no Senhor, porque toda a sua vida foi o esforço
constante para vivenciar isto em que se resume a religião: o amor feito
causa de justiça e de liberdade. Para um homem anticonvencional como
este querido amigo e pai, façamos esta oração anticonvencional. Nessa
despedida, fica tudo aquilo que ele representou e representa: sua firmeza,
sua fidelidade, sua coragem, sua permanente juventude. Uma árvore, diz o
evangelho, se conhece por seus frutos. As sementes plantadas por Sérgio
germinaram no talento de seus filhos e no valor de sua obra. Enquanto
tantos insistem em olhar os fatos históricos pelos olhos do opressor, da
historiografia oficial, Sérgio nos ensinou a ler a história pela ótica dos
oprimidos, dos pequenos e dos humildes. Dele, guardamos agora uma
lembrança feliz: a fina ironia, sua vontade de contar e de recontar casos, a
capacidade de acolher as pessoas com os olhos e com o coração, o dom de
ser amigo de infância após cinco minutos de conversa. Fardas e fardões
nunca o preocuparam. Este trabalhador da cultura viveu entre seus livros e
amigos. Agora, a seu pedido, seu corpo será cremado, suas cinzas tornar-
se-ão sementes de vida nova. Sérgio será comunhão e nós encontraremos
sempre na brisa que sopra, na beleza das flores, no sol que brilha pela
manhã.327

Nas palavras mencionadas, dois pontos merecem destaque. O primeiro


diz respeito às características de Sérgio, retratado como uma figura
“anticonvencional”, de “fina ironia”, acolhedor, de amizade fácil e completamente
avesso às honrarias. Ditas em momento especial e delicado, essas adjetivações
formam, com tantas outras, um conjunto de características relacionadas à
personagem, definidoras de seu espírito e que são encontradas facilmente em
muitos textos que esboçam sua biografia.
Arquitetada por um grupo de renomados intelectuais próximos do
homenageado e de sua família, ecoada a partir de lugares socioeconômicos de
produção de conhecimento (universidades, imprensa, arquivo e biblioteca), com
regras científicas específicas, a versão hegemônica da vida de Sérgio que restou à
posteridade foi sendo transmitida e sustentada “monotonamente" por outros

327
Reprodução aproximada das palavras proferidas por Frei Betto na despedida de Sérgio Buarque
de Holanda, por ocasião de seu sepultamento. São Paulo, 25 de abril de 1982. Arquivo Central
Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 1.
144

intérpretes de sua obra até praticamente os dias de hoje, como visto, por exemplo,
em eventos celebrativos legitimadores dessa memória. 328
O segundo refere-se a uma leitura equivocada ou até mesmo inocente da
dinâmica historiográfica brasileira. Afinal, Sérgio Buarque de Holanda até onde o
compreendemos, jamais insinuou fazer uma “história dos oprimidos”, muito menos
pela “sua ótica”. Antes, buscava a experiência do tempo, com suas mudanças e
movimentos, atentando-se a debates e autores até então pouco mencionados, a
exemplo do historiador americano Frederick J. Turner, fundamental para a sua
definição de “fronteira” desenvolvida em “Caminhos e Fronteiras” (1956), coletânea
de estudos que tratou das relações entre colonizadores portugueses e indígenas,
sobre a geografia no processo de expansão paulista ou ainda das estruturas de vida
e cultura material, revelando uma colônia em movimento, diferente, portanto, das
grandes lavouras extáticas do nordeste açucareiro e escravocrata.
Podemos citar também o crítico alemão Ernst Robert Curtius,
sistematicamente apropriado por Sérgio Buarque em seus estudos sobre literatura
colonial, barroco e arcádia, no período em que viveu em Roma entre 1953 e 1954 e
cuja referência é claramente notada em “Visão do Paraíso” (1959). Obra na qual

328
A ideia de uma versão oficial passada à posteridade deve muito às discussões em torno da ideia
de "memória do vencedor”, trazidas aqui para um contexto de construção de personagem, diferente,
portanto, da demarcação temporal de um fato político, como propuseram Carlos Alberto Vesentini e
Edgar de Decca nas críticas à ideia de “revolução de 1930”. Ver a respeito: VESENTINI, Carlos
Alberto; DECCA, Edgar S. A revolução do vencedor. In: Contraponto, ano 1, n. 1, novembro de
1976. pp. 60-71; LENHARO, Alcir. Carlos Alberto Vesentini, historiador. Revista História, São Paulo,
n. 122, pp. 117-127, jan/jun, 1990; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta de
estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: HUCITEC; História Social USP, 1997; DECCA, Edgar
S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Exemplo de culto à memória de Sérgio Buarque foi realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da
USP-IEB, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2011. O Seminário “Atualidade de Sérgio Buarque de
Holanda”, contou com a presença de nomes como Antonio Candido, Laura de Mello e Souza, Richard
Graham, Antônio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro, entre outros. Na ocasião os participantes
foram saudados com uma exposição sobre a trajetória intelectual de Sérgio, elaborada a partir de
documentação do seu arquivo privado. No ano seguinte foi publicada obra homônima, Atualidade de
Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012, organizada por Stelio Marras. Embora
eu me refira a textos e eventos póstumos, é importante registrar que quando era vivo, alguns amigos
lhe renderam homenagens. Uma análise daqueles textos indicam total semelhança com estes que
estou apresentando, a exemplo de “Singularidade e multiplicidade de Sérgio”, anotado por Rodrigo
Melle Franco Andrade, “O cinquentenário do mestre”, de Octávio Tarquínio de Souza ou “Sérgio,
anticafajeste", de Manuel Bandeira. Quando nos referimos à universidade como lugar de produção de
conhecimento é no sentido atribuído por Michel de Certeau, ou seja, um local privilegiado, no qual a
história é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que é
possível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a fabricação do conhecimento e a
definição das regras que o presidem. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A
escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Por fim, a transmissão de sua memória também se concretizou com a publicação de livros póstumos,
livros celebrativos, montagem de biblioteca e arquivo pessoal, tópicos que serão desmembrados ao
longo do capítulo.
145

Sérgio estudou os mitos edênicos que acompanharam as narrativas dos


descobrimentos e da colonização da América, deixando claras as diferentes visões
de mundo que tinham espanhóis e portugueses no que se refere aos seus
imaginários sobre o Novo Mundo. No entanto, mesmo considerado por muitos como
o seu melhor livro, “Visão do Paraíso” teve ressonância limitada na época de sua
publicação, sendo esmiuçado em seu devido valor a partir da década de 1980,
quando os estudos historiográficos no Brasil passavam por uma maior
dinamização.329
Nesse sentido, o discurso de Frei Beto se torna anacrônico, uma vez que
reduz a obra de Sérgio, que teve fases distintas, a uma conjuntura de efervescência
política atravessada pelo país a partir dos anos finais da década de 1970, quando
encontramos na pauta do dia a repercussão da Lei de Anistia, a ascensão dos
“novos movimentos sociais”, o “novo sindicalismo”, a fundação do Partido dos
Trabalhadores-PT, as grandes greves de massa e o caso conciliatório do regime
civil-militar em vigor; em suma, o restabelecimento vindouro de uma nova ordem
democrática. Momento propício, portanto, para que as lembranças aferidas a Sérgio
Buarque tenham incluído em seu leque de singularidades o perfil de esquerda e
combativo do historiador, mais tarde naturalmente dissolvido em consenso a partir
de certa memória histórica.330 Nesse sentido, não custa lembrar que na ocasião do
329
TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. New York: H. Holt, 1920;
CURTIUS, Ernst Robert. Europaische Literatur und lateinisches Mittelalter. Bern: Francke, 1948.
Não por acaso, ambas as obras, em edições na língua original, faziam parte da Biblioteca que
pertenceu a Sérgio Buarque, hoje disponível ao público na Biblioteca Central da Universidade
Estadual de Campinas-UNICAMP. A esse respeito ver também: WEGNER, Robert. A conquista do
oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000;
NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008; ______. Alegoria Moderna. Critica Literária e
História da Literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014.
330
Importante nesse sentido é o conceito de "enquadramento da memória”, proposto por Michael
Pollak. Essa noção diz respeito a um processo de afirmação de determinadas lembranças, que
devem ser compartilhadas por um grupo a ponto de anular ou diminuir memórias concorrentes. É um
trabalho de restrição das possibilidades de interpretar aquilo que é lembrado, configurando uma
forma considerada socialmente legítima de recordação. Esse processo, todavia, não está imune a
disputas e fissuras que um determinado presente pode provocar, mas essa noção permite observar a
dinâmica da memória e do trabalho de geri-la, que transforma o que é lembrado ao mesmo tempo em
que contribui para a transformação dos indivíduos que lembram. POLLAK, Michael. Memória,
esquecimento, silêncio, Estudos Históricos - Dossiê Memória, vol. 2, n. 3, 1989. pp. 3-15. Não custa
lembrar que o Centro de Documentação e Memória Política do PT, ligado à Fundação Perseu
Abramo, leva o nome de Sérgio Buarque de Holanda. A editora da Fundação também é responsável
por algumas publicações póstumas de textos inéditos de Sérgio e de outros trabalhos de cunho
comemorativo, como “Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, organizado por Antonio Candido e
publicado em 1998, como resultado do Seminário "Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, ocorrido
em 26 e 27 de novembro de 1997. Nesse volume, vale lembrar, dois textos são emblemáticos:
"Sérgio Buarque de Holanda: petista," de Luiz Dulci e “A visão política de Sérgio Buarque de
Holanda”, de Antonio Candido, que em certa passagem afirma: “Ora, Sérgio Buarque de Holanda foi
146

seu enterro, o então deputado Eduardo Suplicy, que poucos dias antes havia
almoçado com Sérgio, afirmava ao enviado do “Jornal da Tarde” que o amigo “foi um
dos principais intelectuais do PT”.331
Se por um lado, Frei Beto tentava dar unidade à vida do amigo, por outro,
alguns textos saídos na imprensa em sua homenagem apontam que sua biografia
intelectual ainda carecia de maiores ajustes. Nesse sentido, "O Estado de S. Paulo”
de 25 de abril de 1982 trazia um artigo assinado por Marcelo Ielo. No texto o autor
elenca algumas das principais características de Sérgio Buarque, dentre elas, sua
“aptidão para a leitura”, sua “índole brincalhona”, seu “viés modernista”, seu “espírito
inquieto” e claro, sua "tendência para os estudos históricos” explícita desde a sua
juventude. Tamanho brilhantismo teria levado, de "maneira natural”, Sérgio a
escrever sua obra de estreia, já que foi “um verdadeiro batalhador para que os
caminhos nacionais fossem mais bem entendidos no Brasil. Nisso conclui que
"Raízes do Brasil", publicado em 1936, foi “elogiado por todos na época”, sendo a
obra mais conhecida de Sérgio “até os dias de hoje”. Foi com este volume, segue,
que a Editora José Olympio iniciou a Coleção Documentos Brasileiros, vendo-se
obrigada a publicar várias edições devido à procura”. 332
Elevado ao longo do tempo à categoria de “clássico de nascença” por
Antonio Candido e inserido na famosa tríade ao lado de "Casa Grande & Senzala"
(1933) de Gilberto Freyre e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio
Prado Júnior, o livro de estreia de Sérgio, diferente do que insinuou o jornalista,
também recebeu críticas negativas e “pouco a pouco sumiria do debate daqueles
dias sem que sua ausência se fizesse notar”, como demonstra Fábio Franzini em
seu estudo sobre a "Coleção Documentos Brasileiros”.333

o primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestando
assim um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos de
esquerda”. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 86.
331
"Assim noticiou o Jornal da Tarde a cerimônia fúnebre”. In: Revista do Brasil, Número Especial
dedicado a Sérgio Buarque de Holanda, Ano 3, nº 6, 1987. p. 111.
332
"Às vésperas dos 80 anos, a morte de Sérgio Buarque", de Maurício Ielo. O Estado de S. Paulo.
São Paulo, 25 abr. 1982. p. 38.
333
FRANZINI, Fabio. À sombra das palmeiras: Coleção Documentos Brasileiros e as
transformações da historiografia nacional (1936-1959). Rio de Janeiro, RJ: Edições Casa de Rui
Barbosa, 2010. Embora poucas, as críticas retiram o ar de unanimidade da obra citada. Em uma
delas, publicada no Boletim de Ariel, o crítico V. de Miranda Reis registrava o seguinte: “vai a gente
lendo o livro, lendo e aprendendo, aprendendo e concordando, até o capítulo IV. Daí por diante, faz-
se mister bons dentes. Porque em 'O homem cordial’, 'Tempos Novos’, ‘Nossa revolução’, há
verdadeiras concreções pedregosas”. REIS, V. de Miranda. Raízes do Brasil. Boletim de Ariel, ano
VI, n. 5, fevereiro de 1937, p. 129. Na mesma linha, a revista Veja, de 5 de maio de 1982, p. 123,
publicou uma pequena matéria em homenagem a Sérgio em que afirmava que Raízes do Brasil teve
147

Em outro exemplo, a "Academia Paulista de Letras”- APL, instituição da


qual Sérgio era membro, ocupando a cadeira de número 36, registrava em ata do
dia 6 de maio de 1982 que a sessão seria em “memória do acadêmico”. Ao se
debruçar sobre as biografias de Capistrano de Abreu, a historiadora Rebeca Gontijo
já nos alertava para o conjunto de “pequenas histórias”, que ao longo do tempo
construíram uma espécie de “folclore” a respeito de sua personagem. De modo que
ele passou a ser lembrado como alguém de quem se falava por meio de anedotas,
ditos espirituosos e epigramas, “prevalecendo a autoridade daqueles que o
conheceram pessoalmente”, criando assim, uma "rede de proximidade”, uma
espécie de "círculo de pactários”, responsável pela produção e pelo controle dos
rumores a serem divulgados.334
A esse "círculo" soma-se o próprio personagem, considerado como
alguém que atuou, passiva ou ativamente, na produção de discursos sobre si
mesmo e que, simultaneamente, foi objeto do discurso dos outros. A partir dessa via
de mão dupla é possível supor que Sérgio Buarque tenha criado para si uma versão
da própria vida, cujas pistas expostas em suas "Tentativas de Mitologia” (1979)
foram pouco depois atestadas e transmitidas pela sua "rede de proximidades”,
formada por seus pares, familiares, sobretudo sua viúva, instituições acadêmicas e
casas editoriais. Dessa simbiose é que foi surgindo um perfil no qual Sérgio se
autointitulou historiador, “minha vocação principal” 335 e foi retratado como um
intelectual sem pompas, crítico sem igual, leitor voraz, mestre, professor
extraordinário, scholar, erudito, boêmio, dedicado aos amigos e à família, um pouco
preguiçoso, pai do Chico, etc.
De volta à Sessão da Academia é possível identificarmos nas falas de
alguns presentes essa memória em movimento. O acadêmico Leonardo Arroyo, por
exemplo, lembrou do "anticonvencionalismo do confrade desaparecido”. Já Nogueira
Moutinho afirmava que Sérgio foi um "verdadeiro scholar” e Soares Amora, que
esteve no enterro, dizia que o amigo foi "exemplo raríssimo de professor dotado do
condão da sedução, da inteligência, da cultura, do saber profundo e da capacidade
de interpretação da História”.

“pouca ressonância na época” de sua publicação.


334
GONTIJO, op.cit., p. 157. A base para essa reflexão da autora encontra-se em BONNET, Jean-
Claude. Naissance du panthéon: essai sur le culte des grands hommes. Paris: Bayard, 1998. Não
por acaso, em um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, de 6 de junho de 1982, Francisco
Iglesias afirmava que “o folclore particular” Sérgio "deveria ser recolhido para que não se perdesse".
335
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 32.
148

Numa outra linha, alguns acadêmicos não poupavam loas à imagem


idealizada do "homem de letras”, elevando Sérgio ao mais alto panteão da história
pátria e mundial, tal como faziam no século XIX os integrantes do IHGB. 336 Pedro
Brasil Bandecchi, orientado por Sérgio em seu doutoramento, registrou que ele foi
“historiador dos maiores”, a exemplo de João Francisco Lisboa e Capistrano de
Abreu. Enquanto Geraldo Pinto Rodrigues, que sequer conviveu com o
homenageado, expunha que uma “visão bela e profunda da História” elevava Sérgio
à importância de um Fustel de Coulanges (1830-1889), Charles Seignobos (1854-
1942) e Thomas Carlyle (1795-1865). No final, Leite Cordeiro definia o colega como
“símbolo de intelectual honesto e independente, exemplo de amor ao trabalho, à
família e à pátria”.337
Se num horizonte próximo a imagem pessoal de Sérgio se desenhava
com traços mais nítidos, o mesmo não se pode dizer em relação à sua obra, naquele
tempo, esparsa. As considerações feitas sobre os seus escritos na época de sua
morte, indicam um historiador ainda a ser "descoberto em seu devido valor”. Não
obstante, Raimundo Faoro admitiu que o amigo “deixa uma obra importantíssima,
um pouco dispersa, que deveria ser levantada, reunida e editada”. Rubens Borba de
Moraes, parceiro inconteste de muitos trabalhos, dizia, por exemplo, ser “Visão do
Paraíso” um livro para “poucas pessoas”, enquanto Claudio Abramo enfatizava que
o companheiro de mais de trinta anos, “historiador emérito”, havia sido “suplantado
pelos sociólogos”.338
Em 5 de maio de 1982, a revista “Veja" divulgava um texto em que
assinalava estar a obra de Sérgio “relegada à segundo plano frente à Raízes do
Brasil”, ao passo que a APL não deixou de registrar em ata o fato de “a grande
produção de crítica literária de Sérgio Buarque ainda não estar reunida em livro”.
Opinião, aliás, defendida por Francisco Iglesias no "O Estado de S. Paulo” de 6 de
junho de 1982. Em um extenso artigo, além de questionar a imagem professoral do
amigo, segundo ele, “creiamos, Sérgio não gostasse muito do magistério, pois não
tinha boa comunicação oral”, Iglesias vislumbrava um horizonte de expectativas que,

336
Sobre a questão biográfica no século XIX brasileiro ver: OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever
vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de
Janeiro: FGV, 2012.
337
Academia Paulista de Letras. Ata da Sessão Ordinária de 6 de maio de 1982. Arquivo Central
Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 3.
338
Respectivamente: “O mundo intelectual reage diante da notícia inesperada”, O Estado de S.
Paulo, 25 de abril de 1982; “Impacto no meio intelectual”, Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982.
149

hoje sabemos, se concretizou. Dizia que a obra crítica de Sérgio era esparsa, mas
que “renderia alguns volumes”, se publicadas, o mesmo valendo aos seus muitos
prefácios “que deveriam ser reunidos em livro”. Quanto aos já editados, Iglesias
mostrava indignação ao fato de “Do Império à República” (1972), "um livro de tal
atitude” não ter recebido nenhuma atenção dos especialistas: “não saiu uma crítica,
nem mesmo uma notícia de jornal”. No caso de “Monções” informava o leitor que
Sérgio estava preparando uma segunda edição, na verdade “um outro estudo, três
ou quatro vezes maior”, no qual seriam inseridas pesquisas que vinha realizando há
algum tempo em arquivos de Portugal, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso.
“Deve ter sido acabado. Virá a ser a mais significativa obra do gênero, temos
certeza”. Iglesias tinha ainda conhecimento de outros inéditos, não se furtando de
sugerir que se preparasse os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e “Literatura
Colonial Brasileira”.339
Não tardaria muito para que as sugestões de Francisco Iglesias se
concretizassem. Ainda na década de 1980 começaram a ser publicados alguns
textos inéditos de Sérgio, a exemplo de "O extremo Oeste” (1986), organizado por
José Sebastião Witter e cujos originais se encontram no Arquivo Público do Estado
de São Paulo e “Raízes de Sérgio Buarque de Holanda” (1989), assinado por
Francisco de Assis Barbosa. Este último contendo artigos de juventude do autor, do
tempo em que viveu na Alemanha como jornalista. Já na década de 1990, Antonio
Candido organizou os originais de “A Era do Barroco no Brasil” e de "Literatura
Colonial Brasileira” em um volume intitulado "Capítulos de Literatura Colonial”
(1991), um conjunto inacabado de textos escritos ao longo da década de 1950 e
estimulados por pesquisas realizadas em diversos arquivos europeus, sobretudo,
italianos.340 Na mesma década viriam a público seus esparsos textos de crítica
literária, compilados nos dois volumes grossos de "O Espírito e a Letra” (1996)
apresentados por Antônio Arnoni Prado, bem como seus prefácios reunidos em livro
339
"Evocação de Sérgio Buarque de Holanda", Francisco Iglésias, O Estado de S. Paulo, 6 junho
de1982. Suplemento Cultura, v. 2, n. 104. pp. 4-5.
340
Do que tratava esse material? Salvo o escrito panorâmico, as partes elaboradas destinavam-se
com certeza ao volume Literatura Colonial, que seria o 7º da "História da literatura brasileira”
planejada no começo dos anos 1940 por Álvaro Lins para a editora José Olympio. No final das contas
foram publicados apenas o 6º volume, de Luis da Câmara Cascudo, "Literatura Oral", em 1952,
precedido em 1950 pelo 12º, de Lucia Miguel Pereira, "Prosa de Ficção (De 1870-1920)”. É possível
que naquela altura Sérgio estivesse trabalhando em paralelo, com tema ligado ao seu volume, o que
se percebe com a publicação de "Antologia dos poetas coloniais”, publicado em 1953 (texto que fazia
parte de um projeto do Ministério da Educação). CANDIDO, Antonio. Exposição: inéditos sobre
literatura colonial. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º
Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. p. 93.
150

homônimo.341 E mais recentemente vimos surgir, também em dois volumes, os seus


“Escritos Coligidos” contendo textos escritos entre a década de 1920 até o final dos
anos 1970, grande parte dos quais não contemplados em outras publicações. 342
“Monções" demoraria muito mais tempo para ser reeditado. Com a
segunda edição de 1976, apenas em 1990 sairia a terceira, que a pedido de Maria
Amélia foi organizada por Antonio Candido, contendo o texto original e um apêndice
com três capítulos reescritos (“Caminhos do Sertão”, “O transporte fluvial” e “As
estradas móveis”), o primeiro deles publicado como artigo 343 e os outros dois na
forma como foram encontrados no papelório do autor. Depois disso, só no fim de
2014 é que voltou às livrarias, em conjunto com “Capítulos de Expansão Paulista”,
cuja organização ficou a cargo de Laura de Mello e Souza em parceria com André
Sekkel Cerqueira.
Numa entrevista concedida à "Folha de S. Paulo”, publicada no dia 10 de
janeiro de 2015, a historiadora confirmava algumas pistas assinaladas por Iglésias
em seu artigo. Dizia, por exemplo, que quando fazia graduação durante a década de
1970, “intrigava-se com o fato de o já então renomado Sérgio Buarque de Holanda
andar com pequenos pedaços de papel rabiscados e amassados no bolso”.
Indagado pela aluna no que estava trabalhando, Sérgio respondeu: “estou
reescrevendo Monções”.344
Laura de Mello e Souza afirma ainda que, após a primeira edição da obra,
em 1945, Sérgio Buarque continuou a pesquisa, refez viagens, visitou muitos
arquivos e acumulou novos documentos sobre o tema a ponto de concentrar tanto
volume de material que "pensou em escrever um livro novo, mais completo” 345 ou
como indicou Iglésias, um estudo “três ou quatro vezes maior”, “a mais significativa
obra do gênero”. Em outras palavras, o agora denominado “Capítulos de Expansão
Paulista” nada mais é do que o conjunto dos capítulos reescritos de “Monções"
somados ao já publicado “O Extremo Oeste”.

341
HOLANDA, Sérgio. O livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
342
COSTA, Marcos (org.).Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos I (1920-1949). São Paulo,
SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011 e Sérgio Buarque de Holanda: escritos
coligidos II (1950-1979). São Paulo, SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011.
343
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos do Sertão. Revista de História, São Paulo, n. 57, pp.
59-111, 1964.
344
“Livro Monções é reeditado com textos inéditos”. Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 2015.
Versão online, acessada em 20 de fevereiro de 2015 às 17 horas. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1572902-livro-moncoes-e-reeditado-com-textos-
ineditos.shtml
345
Idem.
151

A esse respeito, o próprio Sérgio Buarque, em 1976, admitia em nota à


segunda edição de “Monções", que nada o impediu de ocupar-se durante as
décadas de 1950, 60 e 70 “com intermitências mais ou menos dilatadas de coligir
nova documentação sobre navegações fluviais setecentistas e oitocentistas e seus
reflexos na vida brasileira”, temas, “para um outro livro e provavelmente com título
diverso”, a que pesquisadores apontaram se tratar de “O Extremo Oeste”. 346
Segundo Sérgio, o trabalho em preparo “tem a ver com as chamadas 'monções de
povoado’, que assim se chamavam as frotas de comércio entre Porto Feliz e Cuiabá
e com viagens por terra entre São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, respectivamente, e
o extremo ocidente do Brasil. Para obra mais completa, segue, seria conveniente o
estudo “de toda a vasta estrada fluvial, que com breves intervalos, abraçava quase
todo o Brasil, desde o Tietê até a Amazônia”.347
Tamanho empenho foi financiado nos anos 1960 pela Fundação Calouste
Gulbenkian348 de Portugal e pela recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo-FAPESP. Em relação à primeira, enviamos no dia 3 de março
de 2015 um e-mail formal solicitando mais detalhes ou se havia algum indício que
confirmasse o envolvimento de Sérgio com aquela instituição. A resposta veio rápida
e para nossa surpresa descobrimos o seguinte:

(…) podemos confirmar que o historiador brasileiro Sérgio Buarque de


Holanda solicitou, em 1966, à Fundação Calouste Gulbenkian uma bolsa,
que teve anuência, para se deslocar a Portugal durante um período de 20
dias, a fim de consultar arquivos portugueses (Arquivo Ultramarino,
Biblioteca e Arquivo Público do Porto), com vista à preparação da segunda
346
Em seu prefácio à nova edição de Monções, Laura de Mello e Souza afirma que tanto José
Sebastião Witter, quanto André Sekkel Cerqueira defendem essa ideia. O primeiro, na apresentação
da obra póstuma de Sérgio observou que “aqui está o esboço de outro livro anunciado pelo
historiador, em 1976” e o segundo, em relatório de iniciação científica, apontou que “esse seria o livro
referido pelo autor no prefácio que escreveu para Monções, em 1976, quando justificou a opção de
manter o texto de 1945 e destinar a vasta pesquisa realizada, desde então, a outro livro, em vias de
elaboração, sobre igual tema”. Mais de uma passagem comum encontrada em ambas as obras
fundamentaria essa hipótese. SOUZA, Laura de Mello. Prefácio: Estrela da vida inteira. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções e Capítulos de Expansão Paulista. 4. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
347
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição. In: ______. Monções e Capítulos de
Expansão Paulista. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
348
A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição portuguesa de direito privado e utilidade
pública, cujos fins estatutários são a Arte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Criada por
disposição testamentária de Calouste Sarkis Gulbenkian, os seus estatutos foram aprovados pelo
Estado Português a 18 de Julho de 1956. Com mais de 50 anos de existência, a Fundação Calouste
Gulbenkian é uma das mais importantes fundações europeias, desenvolvendo uma vasta atividade
em Portugal e no estrangeiro por meio de projetos próprios, ou em parceria com outras entidades, e
através da atribuição d e s u b sí d i o s e b o l s a s . I n f o r m a ç õ e s r e t i r a d a s d o s í t i o :
http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Fundacao/HistoriaEMissao?a=22, acessado em 4 de março
de 2015.
152

edição do seu livro “Monções”, onde se estuda o comércio e navegação


entre São Paulo e Cuiabá no século XVIII. Informamos ainda que o
processo encontra-se microfilmado e o acesso é muito restrito. Nele apenas
consta correspondência trocada entre a Fundação Gulbenkian e o Professor
Sérgio Buarque de Holanda, sobre este assunto, não havendo informação
adicional, respeitante às pesquisas por ele desenvolvidas em Portugal. 349

Em relação à FAPESP, Sérgio já docente na Universidade de São Paulo-


USP, encaminhou um pedido em junho de 1965 de auxílio financeiro ao projeto
denominado “A navegação fluvial entre São Paulo e Cuiabá nos séculos XIX e XX”,
justificando que precisava de subsídios para a reedição de “Monções”. A solicitação
financeira foi aprovada e Sérgio Buarque recebeu a importância total de CR$
550.000,00 (Quinhentos e Cinquenta mil cruzeiros), pagas ao longo de 18 meses e
que buscavam cobrir as suas viagens de avião à Cuiabá e de transporte terrestre ao
Rio de Janeiro, bem como a sua estadia nessas cidades. 350
Nas referidas capitais, Sérgio pretendia visitar o Arquivo e a Biblioteca
Pública do Estado de Mato Grosso e no Rio de Janeiro o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro-IHGB, a Biblioteca Nacional e o Arquivo do Ministério das
Relações Exteriores. Queria com isso levantar e coletar fontes para “o estudo da
navegação dos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil”, visando “ampliar
consideravelmente em nova edição, que atualmente se elabora, a obra Monções
(…) encontrada há muito completamente esgotada”.351
A complementação desse estudo das rotas de comércio fluviais que
contemplariam ainda os rios amazônicos foi praticamente deixada de lado por
Sérgio, que admitia estar fora de sua capacidade o enfrentamento de “muitos e
mortais obstáculos que se oferecem ao longo de tão dificultosa navegação, de
milhares e milhares de quilômetros”, lacuna suprida por um pesquisador americano,

349
Carlos Luis, Serviço de Bolsas Gulbenkian. Visita pesquisador brasileiro (mensagem pessoal).
Mensagem recebida por <rapersilva@gmail.com> em 6 de março de 2015.
350
Respectivamente, Termo de outorga e aceitação de auxílio da Fundação de Amparo e Pesquisa
do Estado de São Paulo - FAPESP concedido ao projeto "A navegação fluvial entre São Paulo e
Cuiabá nos séculos XIX E XX". s.l., 9. jun.1965 e Ofício de Alberto Bononi, Diretor Administrativo da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP a Sérgio Buarque de Holanda,
informando a aprovação das contas relativas ao auxílio que lhe foi concedido. São Paulo, 13 mar.
1969. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal. Vale
corrigir o seguinte: no Termo de outorga, o título do projeto apresenta a pesquisa entre os séculos
XIX e XX, sendo que o manuscrito original do projeto aponta para os séculos XVIII e XIX.
351
Rascunho incompleto de Sérgio Buarque de Holanda pleiteando auxílio à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo para um projeto de pesquisa referente a um estudo da navegação
dos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil durante os séculos XVIII e XIX, visando ampliar
uma nova edição da obra "Monções". 9 p. Pi1315/68:101 P55. Arquivo Central Unicamp, Fundo
Sérgio Buarque de Holanda, Sub-Série Anotações de Pesquisa. pp. 104-105.
153

que naquela época se encontrava vasculhando arquivos e bibliotecas no norte do


país e em Portugal.352
Concretizadas as previsões, voltamos à imprensa. Mais de um estudioso
atribuiu à “ilusão biográfica” da vida de Sérgio a imagem de um “homem de
pensamento político radical”, “socialista-democrático”, apenas “socialista”, “militante
político”, “petista", etc. Ao fazerem isso, como tentamos mostrar nos capítulos
anteriores, esses autores deixavam de lado a dimensão pública de sua militância,
apagada para que o historiador se transformasse em um intelectual das esquerdas,
a exemplo do que disse Antonio Candido ao escrever “que a esquerda brasileira
poderá encontrar" nos textos de Sérgio Buarque de Holanda “muitos fermentos para
definir uma posição que leve em conta as nossas condições”. 353 Todavia, se
olharmos com mais detalhes alguns depoimentos publicados nos jornais, veremos
que essas adjetivações, ao menos no calor da hora, tinham outro significado.
Um exemplo é o que disse o professor e político Afonso Arinos de Melo
Franco: “Já sabia da morte de Sérgio, que era casado com minha prima-irmã. Estou
muito atingido. Era dos meus mais velhos amigos, representava uma espécie de
guia e líder da cultura. Pode e deve ser considerado uma das mais altas expressões
do humanismo cultural de toda a vida brasileira”. 354 Outros, podem ser lidos no jornal
Folha de S. Paulo, de 26 de abril, o qual trazia uma série de depoimentos sobre o
impacto que teve a morte do historiador no meio intelectual.

352
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição de Monções, op.cit. Orientado na Yale
University por Richard Morse, David Michael Davidson apresentou, em 1970, o resultado dessa
empreitada em sua tese intitulada “Rivers & Empires: the Madeira Route and the Incorporation of the
Brazilian Far West, 1737-1808”, estudo que engloba a formação territorial do Brasil Colonial ao longo
do século XVIII nos seus aspectos geopolíticos e econômicos, com foco sobre a história da Rota do
Madeira (formada pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira), que ligava as minas do extremo oeste do
Mato Grosso a Belém do Pará. Em suma, uma "tese sobre as monções do Norte”. A estadia do
americano em terras brasileiras não foi contínua. Iniciando suas pesquisas por Mato Grosso, em
1966, apenas no ano seguinte é que temos registros dele no norte do país, quando estabelece com
Sérgio uma interessante troca de cartas, nas quais é possível, entre outros temas, identificar os
passos de sua investigação, a circulação de fontes, o intercâmbio de ideias, bem como uma relação
interpessoal marcada pela cumplicidade. A tese de Davidson não foi publicada, salvo um único
trecho, intitulado “How the Brazilian West was won: freelance and state on the Mato Grosso frontier,
1737-1752”, capítulo da coletânea organizada por Dauril Alden, intitulada “Colonial Roots of Modern
Brazil: Papers of the Newberry Library Conference”. Em relação à tese, Sérgio registrou o seguinte:
“Minha falta neste particular é suprida, aliás, com vantagem, pelo magnífico estudo que dedicou às
monções do norte (…) o professor David Davidson, da Universidade de Cornell, que ainda espero ver
impresso e traduzido”.
353
CANDIDO, Antonio. Sérgio, o radical. In: NOGUEIRA, Arlinda; PACHECO, Felipe de Moura;
PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika. (orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São
Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988. p. 65.
354
O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982, p. 38.
154

Segundo o periódico, “amigos e críticos de sua obra são unânimes em


afirmar que o escritor, além de grande figura, era antes, um humanista (…). A
historiadora Emilia Viotti, que conhecia Sérgio desde os tempos da USP, não
hesitava em afirmar que o amigo pertencia a uma “geração de intelectuais de elite”,
mesmo que fosse capaz de assumir uma crítica de sua própria classe. Por jamais
hesitar em defender as causas democráticas, Sérgio era o “exemplo mais perfeito do
humanismo no século XX (…)”. Rubens Borba de Moraes, que esteve com o finado
há pouco mais de um mês, sublinhava que sua morte significava “a perda de um
companheiro que foi um dos grandes historiadores brasileiros, homem de cultura
geral extraordinária (…)”, mesma opinião de Fernando Novais, que não deixou de
destacar que Sérgio era um homem de “formação ampla”. Por fim, Nogueira
Moutinho escrevia que “o mais vivo de nossos homens de espírito”, se empenhou na
realização de uma carreira toda ela voltada à cultura brasileira”. 355
Em nenhum dos exemplos citados Sérgio Buarque foi alvejado como
intelectual de esquerda. Antes, o sentido atribuído à sua vida foi a de um homem
que estava acima de divisões pragmáticas, para o qual termos vagos como
“humanista”, “democrata”, “homem de espírito” podiam representar, em época de
ceticismo, sofreguidão e turbulência, como a do início da década de 1980, uma
promessa de descanso e de certeza. Não custa lembrar que essas mesmas
expressões foram objeto da análise do autor em outro momento de incertezas.
Em uma série de artigos saídos na imprensa paulista e carioca no final da
década de 1940 e início da década de 1950, Sérgio Buarque de Holanda trazia ao
público o resultado das discussões em curso, organizadas pela Unesco, sobre os
diferentes sentidos do conceito de democracia. Após rodadas de discussões os
estudiosos chegaram ao consenso em um único ponto, qual seja, a de que “todas as
formas de democracia (…) participam de uma tradição comum de humanismo”. 356
Cunhado em princípios universalistas, o sentido de humanismo atribuído
às democracias do pós-guerra, incluindo o ideal genérico de homem, é muito
próximo daquele atribuído ao historiador pelos seus pares, “o exemplo mais perfeito
do humanismo no século XX”, já que “tanto as formas coletivistas como as
instituições liberal-democráticas buscam igualmente a justiça, a igualdade, a

355
Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1982. Caderno Ilustrada, p. 1.
356
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A democracia e a tradição humanista. In: COSTA, Marcos (org.).
Para uma nova história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 35. Publicado
originalmente no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1949.
155

liberdade, a liberação do homem para o amplo desenvolvimento das suas


faculdades, o igual acesso aos benefícios da civilização e a livre participação nas
funções públicas”.357 Em suma, à época de sua morte e aos olhos de alguns amigos
próximos, Sérgio era muito mais um autor de literatura universal do que um possível
intelectual orgânico a municiar as esquerdas em sua luta política hodierna.
Passada uma semana de sua morte, as homenagens concentravam-se
agora na missa de sétimo dia que aconteceria no Convento dos Dominicanos no Rio
de Janeiro. Da família compareceram quase todos. A viúva e seis dos sete filhos.
Completando os presentes, muitos amigos. Não foi uma missa convencional, a
começar pela simplicidade, seguida de música, não aquelas carismáticas de
evocação à Deus, mas as de Chico Buarque, das quais Sérgio gostava muito e cujas
letras refletiam as aflições do povo, seus costumes e o cotidiano da “gente humilde”,
dos trabalhadores, etc. Mesmo assim, a liturgia fora seguida à risca. Nas primeiras
fileiras encontravam-se os familiares, dentre os quais Chico que estava
acompanhado de sua esposa, a atriz Marieta Severo. Parecia, dentre os outros, o
mais abatido.
As falas de Frei Beto mencionaram os escritos do morto. Afinal, além de
amigo, foi um de seus leitores. Para ele, eram livros que evocavam o nosso passado
profundo, que acusavam os verdadeiros objetivos dos colonizadores, que trouxeram
a morte aos índios, que saquearam nossas riquezas naturais e que denunciavam
também o autoritarismo ainda persistente, proclamava. Saindo da crítica aos
oprimidos, a cerimônia voltou-se à intimidade do casal tão bem conhecida do
religioso. Relatou, que “em sua última noite, Sérgio deu a mão à Maria Amélia e
pediu que cantasse com ele. Ela começou com “Acalanto”, mas ele disse: “essa
não!”, e começou a cantar “O que será”, uma de suas prediletas! Dentre os que
também assistiam a missa, além dos amigos próximos, talvez os amigos dos
amigos. Admiradores de seu trabalho como escritor, dentre eles Fernando Henrique
Cardoso.
No meio da celebração uma singela homenagem dos filhos ao pai. Escrito
por Maria Teresa e lido por Bebel Gilberto, neta de Sérgio, o pequeno texto já
anunciava um esboço oficial da vida do falecido, que aos poucos tomava corpo para
mais tarde materializar-se em diferentes instâncias de consagração. Eis o que ele
dizia:
357
Idem.
156

Sérgio, pai nosso, a você que está no céu assim como entre nós aqui na
terra, gostaríamos de repetir as palavras que te disse nosso queridíssimo
Frei Beto: Sérgio Buarque de Holanda sempre foi jovem, de fina e
inteligente ironia. Emprenhou-se em seu trabalho pela ótica dos humilhados,
dos pequenos e dos condenados da História. Você foi cremado para que
suas cinzas se tornem semente de uma vida nova. Vamos poder
reencontrá-lo na brisa da manhã, nas flores, na grama do jardim, nas
plantas, pois se tornará comunhão. Papioto, é como teus netos te chamam.
Papioto quer dizer Papai Outro. É isto aí. Você foi e será para sempre o pai
outro, muito grande e especial, de um mundão de jovens a quem você
encontrou tempo e paciência para se dedicar, como se não te bastasse
transmitir tanta sabedoria de vida a Miúcha, Sergito, Álvaro, Chico, Pii,
Bahia, Cristina, os sete filhos que você acarinhou a Memélia. Com certeza,
todos os seus muitos filhos aqui presentes, e também os distantes, estão
pensando em você assim: Sérgio, alegria nossa, salve. 358

Após as cinzas ao vento, tudo foi voltando à normalidade. Àqueles que


haviam homenageado o morto, “a família do escritor impossibilitada de agradecer
pessoalmente as manifestações de pesar de todos os amigos e entidades,
expressou seu profundo reconhecimento”, assinava D. Maria Amélia em uma nota
na imprensa.
E assim foram descansar, ao contrário da memória de Sérgio, que
ainda hoje permeia os mais diversos lugares. Como um espectro, um fantasma, ele
ainda vive em publicações póstumas e reedições, em corredores de universidades,
bibliotecas, em placas de rua, de praças e na memória histórica. Afinal, Chico
continua na pauta do dia, sobretudo após revelar um segredo que se esfarelou com
o pai. Sabia ainda que herdara dele certo talento literário. Agora, não apenas nas
páginas de jornais, ambos circulam lado a lado nas prateleiras de livrarias mundo
afora.359

3.2. A constituição de espaços de recordação: a Biblioteca e o Arquivo


(de) Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp

358
Homenagem escrita por Teresa Maria e lida por Bebel, por ocasião da Missa de Sétimo Dia,
realizada no Rio de Janeiro. São Paulo, 01 maio 1982. Arquivo Central Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio
Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 2. (Cópia datilografada com anotações
manuscritas de Maria Amélia).
359
Esse texto foi escrito com base nos documentos contidos na Série Homenagens Póstumas, uma
das tantas que formam o Fundo Privado Sérgio Buarque de Holanda, localizado no Arquivo Central
da Unicamp. Faço referência também ao último romance de Chico, O irmão alemão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
157

No início dos anos 1980 a Universidade Estadual de Campinas passava


por um período de crise institucional, sobretudo após a morte de Zeferino Vaz 360, em
1981. O panorama daquela época foi dominado por greves, passeatas, atos na
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, mobilizando toda a comunidade
universitária por melhores condições salariais e de trabalho. No ambiente interno, a
institucionalização e a ampliação da participação da comunidade nas tomadas de
decisão eram bandeiras comuns, delas resultando na primeira consulta para
reitores. Mas se por um lado a crise serviu para alinhar docentes, servidores e
estudantes em busca de maior autonomia universitária, por outro, a mão autoritária
do estado ainda era presente.
Contrário a esse estado de coisas, o governador-biônico Paulo Maluf
promoveu, de maneira arbitrária, a intervenção no Conselho Diretor e nas diretorias
de unidades acadêmicas, resultando na exoneração de 8 diretores e na demissão de
14 membros da Associação dos Servidores da Unicamp-ASSUC. Em seguida houve
um clima de receio e cuidado para que a universidade se mantivesse preservada e,
após muitas manifestações contrárias aos interventores e algumas rodadas de
negociação, um governo de pacificação foi instaurado para serenar os ânimos. 361
Em meio a essas questões José Aristodemo Pinotti, professor da
Faculdade de Ciências Médicas, foi nomeado reitor com o compromisso de iniciar o
processo de reconstrução física do campus e implementação da institucionalização
que previa a organização das instituições internas conforme determinavam os atos
estatutários e a atualização desses mesmos atos. No ano seguinte, em 1983,
ampliaram-se os debates em torno desses temas com ampla participação de
360
"O médico Zeferino Vaz (1908-1981) era bastante conhecido nos meios acadêmicos do país
devido à sua atuação em outras instituições universitárias: fora diretor da Faculdade de Medicina
Veterinária da USP; criador e diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP; presidente do
Conselho Estadual de Educação e reitor-interventor da UnB. Esta trajetória do Prof Zeferino Vaz deu-
lhe não só experiência administrativa mas também trânsito político nos governos estadual e federal,
beneficiando a Unicamp na aquisição de recursos para sua implantação e em seu desenvolvimento,
que deu-se à margem de perseguições políticas e ideológicas comuns nas instituições públicas da
época. A despeito de uma administração centralizadora e autoritária, as estratégias de marketing,
gerenciamento empresarial e produtividade acadêmica utilizadas pelo Prof. Zeferino à frente da
Unicamp possibilitaram que esta crescesse sem burocracia e que se mantivesse autônoma e livre de
intervenções militares”. MENEGHEL, Stela Maria. Zeferino Vaz e a UNICAMP: uma trajetória e um
modelo de universidade. 1994. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Educação, Campinas, SP. p. ix.
361
ROSSIO, Neire Martins. Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos da
Universidade Estadual de Campinas (1980-1995). 2012. Dissertação de Mestrado, Universidade
Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. pp. 2-3; SILVA, Patrícia Helena Gomes da. A
teatralização da memória: a cenificação da biblioteca Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp.
2008. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Estadual Paulista, Marília, Faculdade de
Filosofia e Ciências. p. 71.
158

docentes, discentes e servidores, concluídos em 1986, com a nomeação do


economista Paulo Renato Costa Souza como reitor e pela instauração do Conselho
Universitário, órgão máximo deliberativo da universidade. 362
Simultaneamente a essas querelas administrativas, a Unicamp entrava na
briga pela memória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda, materializada em sua
vasta biblioteca, nos seus documentos e objetos pessoais. A nova gestão sabia que
não poderia perder tempo, pois o tesouro deixado pelo patriarca da família já era
alvo de cobiça da Universidade de São Paulo-USP e também de casas
especializadas, como a Parke-Bennet de Nova Iorque e a Sotheby de Londres,
ambas interessadas em algumas raridades lá contidas.
Indícios dessa movimentação podem ser encontrados, por exemplo, na
troca de ofícios entre a Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP e a viúva do
Dr. Sérgio, mas também na imprensa e em outros registros. No dia 11 de junho de
1982, Maria Amélia recebia um documento oficial assinado por Pinotti,
demonstrando o interesse da instituição em adquirir o valioso acervo e no qual
expunha as seguintes “pré-condições”:

1) A Unicamp tem interesse na preservação da biblioteca particular do


professor Sérgio Buarque de Holanda em toda a sua integridade, mantendo
reunidos os livros, documentos, microfilmes, arquivos, e tudo o mais que lhe
for confiado pela família, no entendimento de que esse acervo representa a
vida científica de um dos nossos mais respeitados intelectuais; 2) A
Unicamp reservará instalações adequadas para a guarda do acervo e sua
utilização por pesquisadores do país e do estrangeiro e estudará a
conveniência de instalar um “Centro de Estudos Brasileiros” que terá por
núcleo inicial a biblioteca aqui mencionada; 3) Na hipótese de constituição
do aludido Centro, que terá o nome do prof. Sérgio Buarque de Holanda,
prever-se-á nas instalações um local adequado para a reconstituição do seu
ambiente de trabalho, aparelhando-o com os móveis, objetos de uso
pessoal e demais elementos que forem destinados pela família; 4) A
Unicamp contatará pessoal especializado para a preparação, guarda e
utilização do acervo, de forma a preservá-lo e mantê-lo na forma como foi
deixado; 5) A Unicamp designará uma Comissão de Professores que atuará
como mediadora nas conversações com a família de Vossa Senhoria, para
fins de avaliação, aquisição, traslado e guarda do acervo em seu campus,
situado em Campinas.363

A resposta de Maria Amélia, em forma de carta, foi enviada alguns dias


depois. Nas linhas datilografadas à reitoria, no dia 22 de junho, destacam-se a sua
preocupação com a memória do marido e ainda a “pressão" que amigos próximos,

362
SILVA, op.cit., p. 71.
363
Ofício Gabinete do Reitor 366/82. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque
de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folhas 2-3. Arquivo Central Unicamp.
159

ligados ao Instituto de Estudos Brasileiros-IEB da Universidade de São Paulo-USP,


vinham fazendo para que o acervo restasse lá. Eis o que diz o documento:

Em meu nome e em nome de meus filhos venho agradecer-lhe a grande


deferência demonstrada em relação à memória de Sérgio. Ele nutria pela
Unicamp o maior apreço e, para nós, será um contentamento se vier a ser
preservada e utilizada aí, parte do legado de toda a sua vida de trabalho. Só
não podemos, de imediato, levar adiante uma aceitação de sua honrosa
proposta porque, antes de a recebermos, outros amigos já estavam
mobilizando para que o acervo fosse adquirido pelo Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, organizado por Sérgio, por delegação do então reitor,
prof. Ulhoa Cintra. Hoje procurei a profa. Myriam Ellis, diretora do mesmo
instituto, expondo minha urgência de enviar ao senhor uma satisfação. (…)
Independente desta resposta, no entanto, se uma comissão da Unicamp se
interessar por um primeiro contato com a biblioteca, ela se encontrará a seu
inteiro dispor.364

O que mais chama a atenção nesse diálogo são os diferentes sentidos


que instituição e família atribuíram ao acervo bibliográfico em questão. Para a
Reitoria, o acervo representava "a vida científica de um dos nossos mais respeitados
intelectuais”, ou seja, nos transmite uma ideia de totalidade, grandiosidade, beirando
o “culto ao homem de letras” de outrora, cuja vida pública deve ser um espelho às
gerações futuras. Já para Maria Amélia, a vasta biblioteca era apenas “parte de um
legado”, um fragmento de escolhas conscientes daquilo que poderia ser exposto ao
público, construindo uma versão do marido, cuja memória ainda estava por ser
inscrita em suas outras dimensões.
A imprensa também cumpria o seu papel, não deixando passar a disputa
de bastidores envolvendo as duas instituições paulistas. Em 30 de setembro de
1982, “O Estado de S. Paulo” estampava a seguinte manchete: “Escolas disputam o
acervo do historiador”.365 Já “O Globo”, em tom mais “belicoso”, circulava com a
chamada: “Universidades em ‘guerra' pela biblioteca de Sérgio Buarque de
Holanda”.366 Em outro documento ainda, vemos os professores responsáveis pela
Comissão de aquisição da biblioteca pedindo à reitoria rapidez nos desdobramentos
do embate: “Informamos (…) que há grande interesse por parte da USP e de
universidades estrangeiras nessa aquisição, o que recomenda certa agilização do
processo respectivo”.367
364
Carta de Maria Amélia a José Aristodemo Pinotti, 22 de junho de 1982, Idem, Folha 5.
365
O Estado de S. Paulo, 30 de setembro de 1982, p. 17.
366
O Globo, 9 de outubro de 1982, edição matutina, Caderno de Cultura, p. 29.
367
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º
Volume. Folhas 11-12. Arquivo Central Unicamp.
160

Da “batalha", como sabemos, saiu vitoriosa a Unicamp que superou a


falta de verbas apresentando à família de Sérgio as melhores condições físicas e
técnicas para a salvaguarda do material. Contou ainda a seu favor o fato de, desde a
década de 1970, ela ter uma política voltada à aquisição de coleções privadas e a
constituição de arquivos que retratassem aspectos da vida brasileira nos mais
diferentes campos.368
É nesse contexto de expansão de acervos, portanto, que se insere a
compra da biblioteca (de) Sérgio Buarque de Holanda e a posterior montagem de
seu arquivo pessoal, lugares fundamentais para a construção, manutenção e
divulgação de sua biografia. O nosso objetivo nessa parte do capítulo é descrever
como se deu esse complexo jogo burocrático de aquisição da biblioteca,
identificando na documentação da própria universidade, evidências que apontem a
construção de uma memória celebrativa em torno da figura de Sérgio Buarque de
Holanda. Expor essa trama se torna relevante porque é a partir dela que emerge o
"Fundo Sérgio Buarque de Holanda", cuja entrada no espaço público e a sua
disponibilização como fonte de pesquisa, ou seja, a sua funcionalidade, abrem lugar
para uma série de novas interferências ou “ativações” que alteram os sentidos
atribuídos ao conjunto documental original. 369
Dentro desse entendimento, o estudo do arquivo de Sérgio Buarque
aponta para duas dimensões: uma, pessoal, viva, que passa por uma "escrita de si”
e a outra, institucional ou funcional, que atesta em diferentes níveis de intervenção,
a versão oficial do titular, garantindo para o futuro a sua dimensão simbólica. E qual
seria essa versão? Notavelmente a que foi escrita sob a perspectiva da "memória

368
O exemplo mais conhecido talvez seja o do "Arquivo Edgard Leuenroth”–AEL, composto por
documentos acumulados pelo militante e historiador do movimento anarquista Edgar Leuenroth, ao
longo de mais de cinco décadas e que contam capítulos importantes da nossa história social e
operária durante a primeira república, mas também dos modos de narrar a história brasileira,
fortemente influenciada pela história social inglesa nos anos 1980. Na mesma época, sob a guarda
do Instituto de Estudos da Linguagem-IEL, vinham-se constituindo o “Arquivo de Línguas Indígenas",
o "Arquivo de Português Culto falado em São Paulo", o "Arquivo de falares rurais afro-brasileiros e
outros falares" e o "Arquivo Pessoal de Brito Broca” (1903-1961). Em relação às bibliotecas, a
Unicamp passou a incorporar muitos acervos, como a biblioteca de Paulo Duarte, em 1970, cujas
obras tratam de história, sociologia e antropologia do Brasil. Em seguida veio a do historiador Hélio
Vianna, adquirida pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da universidade, em 1973. Em 1980,
foi a vez da aquisição da biblioteca de Theodoro Henrique Maurer Júnior, composta de ricos materiais
de linguística românica e linguística do português do Brasil, com cerca de 5 mil obras especializadas.
No ano seguinte, o Instituto de Estudos da Linguagem recebeu a doação da coleção bibliográfica de
Müller-Carioba, contendo livros gregos, italianos, ingleses, alemães e latinos, concomitante à doação
da Biblioteca Cornélio Penna.
369
Essa ideia foi defendida por Luciana Quillet Heymann em seu livro "O lugar do arquivo: a
construção do legado de Darcy Ribeiro”, Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012.
161

experiencial das testemunhas”, ou seja, aquela traduzida em uma memória cultural


da posteridade, uma memória viva suportada em mídias, protegida por portadores
materiais, como monumentos, memoriais, museus e arquivos e que no nível coletivo
e institucional são guiados por uma política específica de recordação e
esquecimento.370
Tal memória estabeleceu definitivamente o lugar de Sérgio Buarque nos
campos disciplinares da história e da crítica literária. Iniciada por Sérgio e transmitida
por seus pares e discípulos a partir da década de 1980, esse excesso de memória
viva primou por um caráter excepcional da personagem, pela sua condição de
mestre, por um recorte cronológico específico de sua vida e por seu viés político à
esquerda, predominando nessas narrativas, além dos atos de poder de quem as
definiu, o fatalismo biográfico. Em suma, uma biografia modelar, inscrita também em
celebrações, homenagens póstumas, coletâneas e na publicação de inéditos que
(re)atualizam no tempo a versão unívoca de sua trajetória intelectual.

3.2.1. Os labirintos burocráticos e a compra da Biblioteca

Era 13 de julho de 1982 quando o ofício número 223/82, enviado pelo


professor Jesus Antônio Durigan, diretor associado do Instituto de Estudos da
Linguagem-IEL chegava às mãos do reitor José Aristodemo Pinotti. O documento
tratava da indicação de nomes para compor uma comissão que seria encarregada
de estudar, avaliar e encaminhar os procedimentos para a “aquisição da valiosa
Biblioteca do Professor Sérgio Buarque de Holanda”. Construía-se nesse momento o
início de um diálogo envolvendo a universidade, a família do morto e diversos
órgãos de fomento à pesquisa. O volume de documentos surgidos dessas
conversas, incluindo trocas de ofícios, cartas, relatórios descritivos, minutas de
contratos, notas de empenho, bilhetes, comunicados, etc., foi reunido nas duas
partes do Processo nº 8291/82 que discriminava a “Aquisição da Biblioteca do
falecido Professor Dr. Sérgio Buarque de Hollanda”. É com base nesses
documentos que contaremos essa história.

370
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. p. 19.
162

Não demorou muito mais do que 48 horas para que os nomes sugeridos
fossem aceitos pelo Reitor e homologados por uma Portaria. Segundo o documento,
a Comissão ficava assim constituída: Professor José Roberto do Amaral Lapa,
Presidente; Professor Alexandre Eulálio Pimentel da Cunha; Professora Adélia
Bezerra de Menezes Bolle; e, Professor Ataliba Teixeira de Castilho. 371 Dois meses
após iniciados os trabalhos, a Comissão já apresentava os primeiros resultados.
Sabiam que não podiam perder tempo, já que a USP, concorrente direta no
processo, também havia montado um grupo de trabalho encabeçado pela professora
e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, Myrian Ellis.
No relatório entregue em 22 de setembro de 1982, a Comissão divulgava
à Reitoria as primeiras informações detalhadas do que haviam encontrado entre as
estantes e prateleiras da casa da rua Buri. Na parte documental, destacam-se
manuscritos de produção científica original, correspondência ativa e passiva,
microfilmes de documentação inédita provenientes de arquivos brasileiros e
estrangeiros e exemplares de teses inéditas de cuja banca Sérgio participou. O
fundo propriamente bibliográfico contava com cerca de 10 mil volumes e com um
setor de obras raras, sendo 50 delas de extrema preciosidade “altamente cotadas no
mercado internacional, e já preteridas por livrarias especializadas", como as citadas
Parke-Bennet e a Sotheby.372
Na mesma época, um importante livreiro de São Paulo foi procurado pela
Comissão para que emitisse um parecer, avaliando em números, a coleção. No
relatório entregue à reitoria no dia 26 de outubro, Álvaro Bittencourt, da famosa
livraria “Parthenon”373, não apenas sustentava o relatório descrito, como também
informava com maiores detalhes o que havia prestigiado, justificando assim, o preço
final de Cr$ 100 milhões de Cruzeiros. Segundo ele, tratava-se "de um rico e
expressivo acervo de quase 10 mil volumes versando sobre história, artes,
sociologia, filosofia, literatura, política e áreas de ciências humanas de modo geral,

371
Portaria Interna Gabinete do Reitor 045/82. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 9. Arquivo
Central Unicamp.
372
Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, Relatório de Comissão.
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” . Processo nº 2891, 1º
Volume. Folha 17. Arquivo Central Unicamp.
373
Fundada pelos bibliófilos José Mindlin, Cláudio Blum e Jacques Bloch, a loja, localizada
primeiramente na rua Barão de Itapetininga, 40, seria dedicada ao comércio de obras raras. Em 1951
o estabelecimento passou às mãos de Álvaro Bittencourt, que começou a vender outros tipos de
livros, além das edições de luxo. Em 1978, a loja mudou-se para o novo centro financeiro de São
Paulo, a Avenida Paulista.
163

de procedência nacional e estrangeira”, vários desses com anotações feitas por


Sérgio Buarque de Holanda nas margens ou no final do volume.
Havia também cerca de 400 obras raras, dentre as quais 3 volumes das
narrativas de Giovan Battista Ramusio 374, “muito bem conservados”, editados em
Veneza no século XVI, um dos seis exemplares de que se tem notícia e o único
existente no Brasil, além dos “Emblemata" de Andrea Alciati 375 do mesmo período.376
Não seria exagero acreditar que essas relíquias possam ter sido adquiridas por
Sérgio durante a sua estada em Roma, entre 1953 e 1954, período em que
intensificou os estudos sobre história literária, pesquisando arquivos e bibliotecas de
diferentes cidades europeias e vasculhando livrarias e casas especializadas em
momentos de folga.
De resto, segundo Bittencourt, foram listadas coleções raras de revistas
brasileiras, como as modernistas “Klaxon" e “Estética” e estrangeiras, muitas das
quais completas e de difícil acesso, enciclopédias especializadas em história e
história da cultura, separatas, “curiosos livretos e folhetos sobre São Paulo e cidades
paulistas”, fichas de trabalho, manuscritos e inúmeros documentos datilografados ou
manualmente copiados no Brasil e no exterior. Destaque do acervo são as inúmeras
edições originais de autores brasileiros, a grande maioria com dedicatórias
autografadas, como vistos em “Há uma gota de sangue em cada poema”, de Mário
de Andrade, “Os parceiros do Rio Bonito” de Antonio Candido, “Velórios de Rodrigo
M. F. de Andrade, “A trilogia do exílio” de Oswald de Andrade, “A bolsa e a vida” de
Carlos Drummond de Andrade ou “O homem nu” de Fernando Sabino. 377

374
RAMUSIO, Giovan Battista. Primo volume delle navigationi et viaggi: la descrittione dell'Africa & del
paese del Prete Ianni, con varij viaggi, dalla Citta di Lisbona, & infin!all isole Molucche, doue nascono
le Spetiere, et la Navigatione attorno il Mondo. Seconda editione in molti luoghi corretta, et ampliata.
In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1554; RAMUSIO, Giovan Battista. Secondo volume delle
navigationi et viaggi, nel quale si contengono l'Historia delle cose de Tartari, & diversi fatti de loro
Imperatore, descritta da M. Marco Polo Gentilhuomo Venetiano, & da Hayton Armero, varie
descrittioni di diversi autori... In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1559; RAMUSIO, Giovan Battista.
Terzo volume delle navigationi et viaggi, nel quale si contengono le Navigationi al Mondo Nuovo, a gli
Antichi incognito... Seconda edtioni. In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1565.
375
ALCIATI, Andrea. Andreae Alciati emblemata cum commentariis. Patavii (Italia): Typis Pauli
Frambotti Bibliopollae, 1661.
376
Relatório de Álvaro Bittencourt entregue à Reitoria. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor
Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 21. Arquivo Central Unicamp.
377
Idem.
164

Figura 1: Folha de rosto de livro com dedicatória de Mário de Andrade378

Fonte: ANDRADE, Mário de; SOBRAL, Mario (Coaut. de). Há uma gota de sangue em cada poema. São
Paulo, SP: Pocai, 1917. Coleção Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, Biblioteca Central-Unicamp.

Importante frisar que junto a esse importante acervo cultural, “a família


Buarque de Holanda aquiesceu incorporar, para efeito de sua venda, as estantes
que contêm os livros, bem como o mobiliário de trabalho do escritório tal como foi
deixado pelo insigne historiador”. Desse modo, a família não interferia somente na
seleção de papéis, “apenas uma parte do legado”, vale lembrar, como também na
etapa de "musealização" da biblioteca, prevista para ocupar um lugar de destaque
na futura sede da Biblioteca Central da Unicamp. Segundo o relatório da Comissão:

378
“Sérgio Buarque de agá ó dois eles á êne dê á, com a parte de mim que talvez esse livro não
conte… Será que não conta mesmo? Acho que conta sim tudo o que afinal não posso de, vulgo: uma
bêsta. Adonde é mesmo que você está morando agora? De automóvel sei ir porém pelo Correio não
sei. Ergo: baldeação Prudentico. Mário de Andrade.
165

Os livros e documentos constituirão um importante centro de pesquisas


para as áreas de Pós-Graduação em Letras, História, Ciências Sociais,
Artes e Educação. Os objetos pessoais e os móveis, devidamente
ordenados em local próprio no novo edifício da Biblioteca Central,
constituirão uma memória para as novas gerações e um exemplo para os
pesquisadores que certamente acudirão de todas as partes, atraídos por
esse importante acervo. Em seu conjunto, eles representam uma destacada
contribuição aos estudos brasileiros que se desenvolvem nesta
Universidade, e seu natural desenvolvimento na direção dos estudos latino-
americanos, tudo o que poderá ensejar, por sua vez , um novo espaço
criativo de pesquisas e produção de conhecimentos, sob a motivação de um
nome e de uma obra que constituem um dos grandes momentos do
pensamento brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda.379

É razoável entendermos esse processo como uma troca simbólica no


campo cultural, pois, se por um lado, a Unicamp garantia à Sérgio Buarque um
"lugar de memória”380 e de perpetuação de seu legado intelectual, por outro, o peso
do seu nome conferia à jovem universidade em expansão ainda mais prestígio e
credibilidade acadêmica no campo das humanidades, vislumbrados na expectativa
futura de "atrair pesquisadores de várias partes” do mundo interessados no tesouro.
Desnecessário seria listar todo o mobiliário que pouco depois acabou
sendo adquirido pela universidade; todavia, alguns objetos merecem nossa atenção.
Além dos muitos metros de estantes e prateleiras que ocupavam cômodos e
corredores da casa da família, em São Paulo, podemos destacar dentre os itens que
compunham o escritório, “tal como foi deixado” por Sérgio: 1 máquina de escrever
IBM com corretivo; uma máquina leitora de microfilmes “FUJI Microfilm Reader
Pinter Q4”, 1 escrivaninha de madeira clara com corte arredondado ao centro; sobre
ela, fazendo parte do móvel, 1 estante com 5 prateleiras de ambos os lados da
escrivaninha, 2 portas com 1 prateleira interna e 5 prateleiras acima; 1 cadeira de

379
Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, op.cit., Folhas 18-19.
380
A ideia de “lugares de memória” desenvolvida por Pierre Nora ganhou vida própria e vem sendo
constantemente utilizada de maneira aleatória e sem muito entendimento preciso de seu significado
histórico. De maneira rápida, esse conceito se desenvolve dentro dos debates historiográficos
franceses da década de 1970, cujo manifesto será a coletânea ‘Faire de la Histoire’, livro publicado
em 1974 que pôs em destaque os problemas teóricos que a disciplina histórica tinha diante de si, a
exemplo do artigo de Michel de Certeau, “A operarão historiográfica”, um contraponto às provocações
de Hyden White em “Meta-História" (1973) contido no volume. Do ponto de vista político, houve na
França na mesma época a “emergência do problema da memória como preocupação histórica”,
resultante da morte do General De Gaulle e do aumento progressivo do culto ao patrimônio. Maiores
detalhes em: BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora ou o historiador da memória. Entrevista com
Pierre Nora. História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp. 13-33. Nesse sentido, para não corrermos o
risco de cair no vazio conceitual, utilizamos aqui o termo de maneira um pouco mais livre, sem
referência direta à obra, todavia chamando a atenção para um ponto que ela levanta: “(...) a razão
fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento,
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”. NORA, Pierre. Entre mémoire
et histoire. La problemátique des lieux. In: ______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La
République. Paris: Gallimard, 1984. p. 22.
166

madeira, acento de palhinha, arredondada atrás; 1 cadeira tipo descanso, de


madeira escura, encosto regulável para trás e 1 sobressaltaste para frente, com 2
almofadas, assento e encosto listrados; troféus que Sérgio Buarque recebeu (Juca
Pato “O intelectual do ano" de 1979, Prêmio Jabuti, por "Tentativas de Mitologia”); e
1 placa de prata oferecida pelo Conselho Municipal de Educação de Bauru. 381
O escritório ou gabinete de leitura, reordenado a partir desses objetos no
novo espaço de visitação e como o encontramos ainda hoje, era muito diferente
daquele outro, “tal como foi deixado” por Sérgio em sua residência. O exame de
alguns registros fotográficos da época aponta para a existência de um espaço
doméstico predominantemente masculino, bagunçado, que destoava de outros
cômodos da casa, de ordenação atribuída às mulheres, esposas ou governantas, tal
como apontaram em seus estudos Regina Abreu e Vania Carneiro de Carvalho 382. É
sabido que Sérgio pertenceu a uma geração de intelectuais, denominada de
“homens de letras”, cujas características incluíam o bacharelado em Direito ou
Medicina, o autodidatismo, o domínio de várias línguas estrangeiras e de disciplinas
variadas, indo das artes à literatura, passando bem pela sociologia, antropologia,
etnologia, alcançando as carreiras jornalística ou política até chegarem na erudição
da disciplina histórica.
Na casa desses letrados, desde os mais ricos até os intimistas e
modestos, como demonstra a iconografia masculina da primeira parte do século XX,
estudada por Carvalho, as mesas de trabalho situadas no escritório que podiam
abrigar bibliotecas ou parte delas, como no caso de Sérgio, se constituíam como
“territórios de exceção”, imunes à ordenação doméstica supervisionada pelas
esposas ou criadas e longe da curiosidade dos filhos. Sobre as mesas podiam
figurar papéis, livros, tinteiros, canetas, telefones, carimbos, arquivos, máquinas de
escrever, etc.383 Imagem reforçada por Chico Buarque em seu último romance,
quando Ciccio, o personagem-narrador, descreve a rotina do pai no escritório de
trabalho, local proibido, vedado às suas curiosidades. À Assunta, mãe da

381
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 2º
Volume. Folhas 49-50. Arquivo Central Unicamp.
382
ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996; CARVALHO, Vania Carneiro de. Gênero e artefato: o
sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo, SP: Editora
da USP: FAPESP, 2008.
383
CARVALHO, op.cit., p.150.
167

personagem, cabia o papel de assistente do marido em seus delírios criativos.


Vejamos um trecho:

“Por via das dúvidas, quando ao sair do quarto eu ouvia o toque-toque da


máquina de escrever, tirava os sapatos e prendia a respiração para passar
ao largo do seu escritório. E me encolhia todo se por azar naquele instante
ele arrancasse num ímpeto o papel do rolo, achava que em parte era de
mim a raiva com que ele esmagava, embolava a folha e a arremessava
longe. Outras vezes a máquina cessava para meu pai pedir socorro:
Assunta! Assunta!, era alguma citação que ele precisava transcrever
urgentemente de um determinado livro. Com isso levava meses para redigir,
rever, rasurar, arremessar bolotas, recomeçar, corrigir, passar a limpo e
certamente contrafeito entregar para publicação o que seriam rascunhos do
esqueleto do grande livro da sua vida. Eram artigos sobre estética,
literatura, filosofia, história da civilização, que ocupariam uma coluna ou um
rodapé de jornal”.384

Ao longo de sua pesquisa, Carvalho afirma que era comum em muitas


imagens os homens aparecerem “sentados, mãos sob o queixo em posição de
leitura prolongada, escrevendo ou manipulando livros e papéis”, "exibição de si
mesmos” e fato raro para os ramos de atividade ligados ao trabalho manual. A
autora observa ainda, a presença de “verdadeiras mesas de trabalho, onde a
desordem, apenas aparente e circunstancial, significava algo extremamente positivo
e respeitável - o momento de reflexão, de criação, de estudo, imagens do trabalho
intelectual, atribuição masculina revestida do mais alto prestígio” 385, tudo aquilo que
a cenificação do “escritório-museu” nos subtraiu. Abaixo podemos ter a dimensão
dessas diferenças:

Figura 2: Reconstituição do escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda. BC, Unicamp, 2012

384
BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
385
CARVALHO, op.cit, pp. 43-48.
168

Fonte: Fotografia tirada pelo autor, acervo particular.

Figura 3: Escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, em sua residência à Rua Buri, pouco antes de
seu falecimento, São Paulo, fevereiro de 1982

Fonte: Fotografia tirada por Maria do Carmo Buarque de Holanda. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida
Pessoal, Arquivo Central, Unicamp

Em outra direção, arriscamos que é também possível atribuir a esse


mobiliário o sentido que Krzysztof Pomian definiu como "coleção", ou seja: “(…)
qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou
definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção
especial num local fechado preparado para este fim, e exposto ao olhar do público.
Somando-se a função dos objetos de serem intermediários entre os espectadores e
um mundo invisível de que falam os mitos, os contos e as histórias”. 386
Desse modo, por exemplo, o visitante poderia observar a máquina de
escrever “Royal", na qual foi datilografado “Raízes do Brasil”, os troféus de prêmios
literários como o “Juca Pato”, recebido da Associação Brasileira de Escritores ou as
cadeiras que Sérgio utilizava para leituras e repouso, as primeiras edições de suas
obras, em suma, o triunfo do intelectual bem-sucedido, imagem que deveria
perpassar às gerações futuras.
Antes, porém, de concretizar a compra de todo esse material e inaugurar
um espaço apropriado a ele, a Unicamp precisava captar recursos para efetivar o
pagamento estimado de Cz$ 100 milhões de cruzeiros, que ficou especulado com os
herdeiros do historiador. Nesse sentido, é possível acompanharmos por meio da
386
POMIAN, Ktrzysztof. Coleção. In: Enciclopedia Einaudi. vol. 1 Memória-história. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 67 e 71.
169

documentação, as dificuldades encontradas pela universidade para dar cabo a esse


ambicioso empreendimento de expansão cultural que previa tirar do papel o “Projeto
Pró-Memória Brasil” e estabelecer um "Centro de Estudos Latino-Amercianos".
Um exemplo disso é a negativa do Unibanco ao ofício expedido por José
Aristodemo Pinotti no dia 4 de outubro de 1982, na qual o seu diretor-presidente,
Roberto Konder Bornhausen, após delongas elogiosas, expunha o seguinte:

Em primeiro lugar gostaríamos de levar a V. Sa. os nossos mais sinceros


cumprimentos pelo seu empenho em dar continuidade a tão significativo
projeto de aquisição de bibliotecas e arquivos particulares dos nossos
maiores literatos, iniciativa esta que vem enaltecer ainda mais a nossa já
conceituada Universidade Estadual de Campinas. De outra parte, é com
pesar que vimos comunicar sobre a possibilidade de levarmos o nosso
efetivo apoio a tão relevante iniciativa, merecedora do maior estímulo por
parte de todos, uma vez que, por contingências orçamentárias, não temos
como atender no presente exercício, a pedidos como este ora formulado por
V. Sa.387

Ao que tudo indica, cópias do mesmo ofício foram enviadas a outras


empresas privadas por todo o Brasil, como também a órgãos públicos. Uma delas foi
recebida pelo “Bradesco", que justificando estar com as suas ações sociais em dia
através de sua Fundação, lamentava com elevada estima não poder ajudar:
“Informamos-lhe que, infelizmente, não podemos atender seu pedido. O nosso
orçamento, com verbas substanciais, já está, prioritariamente, comprometido com o
trabalho de assistência e ensino primário a mais de 17.500 menores carentes, nas
18 escolas instaladas no país”.388
Em outras respostas, o discurso ou as desculpas eram sempre as
mesmas. O “Brasilinvest", por intermédio de seu presidente Mário Garneiro, anotava
em 12 de novembro de 1982, que “embora reconhecendo (…) o elevado alcance da
iniciativa”, a empresa não tinha possibilidade, no momento, de destinar recursos a
esse fim, idêntico ao que advogava um representante da “Mercedes-Benz do Brasil”,
que, “embora entendendo ser o referido projeto de grande valia para o
desenvolvimento cultural dos pesquisadores em geral”, “desculpava-se” da
impossibilidade de assumir quaisquer compromissos. 389

387
“Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda” , op.cit.,1º Volume.
Folha 23. Arquivo Central Unicamp.
388
Idem, Folha 24
389
Ibidem, Folhas 26-27.
170

Algumas entidades, no entanto, se mostraram bastante receptivas ao


projeto da universidade, como foram os casos da companhia de saúde, higiene e
beleza "Johnson & Johnson” e da “Fundação Ford”. A primeira registrou a satisfação
de passar às mãos da universidade, através do “portador, nosso colaborador Dr.
João Alfredo Mendes Filho, o cheque 074299 de nossa emissão contra o Unibanco,
no valor de Cr$ 200.000,00 cruzeiros”. Recursos muito bem-vindos, como podemos
ver nos agradecimentos enviados à empresa pelo Reitor José Pinotti: “(…) ao
colaborar com a iniciativa em questão, a ‘Johnson & Johnson’ trabalha lucidamente
em favor da própria coletividade, pois uma universidade como a nossa, fortemente
voltada para a investigação, sempre balizou sua existência ativa pelos interesses da
comunidade que serve. (…) Com os nossos sinceros agradecimentos”. Já a outra,
após destacar a importância nacional e internacional do acervo a ser adquirido e
"não dispondo de recursos especiais para essa finalidade”, se mostrou disposta a
colaborar “ainda que de forma modesta” em apoio e reconhecimento à causa, sob a
condição de ficar a par do andamento do projeto, bem como do interesse
demonstrado por outras fontes de financiamento do mesmo. 390
Dentre as instituições públicas que foram chamadas a participar com a
disponibilização de recursos, a “Financiadora de Estudos e Projetos”-FINEP se
comprometeu quase que com metade deles. Os 40% do custo orçado do acervo,
destinados à Unicamp de forma complementar, possibilitaram à universidade
formalizar uma proposta oficial de compra da biblioteca, mesmo “levando em conta
as dificuldades naturais à execução de um orçamento” desse porte. Um documento
do gabinete do reitor, elaborado em 27 de janeiro de 1983 e endereçado a Maria
Amélia, propunha que a família recebesse a "Comissão designada para assinalar
essa matéria”, estabelecendo com ela o custo final da compra.
Em 24 de fevereiro a comissão entregou ao reitor uma síntese desse
encontro, na qual os herdeiros se dispunham a receber o montante oferecido pela
universidade. Anexada ao documento, uma carta assinada por Sérgio Buarque de
Holanda Filho, procurador da família, oferece mais detalhes daquilo que ficou
acertado:

(…) recebi hoje a Comissão designada por Vossa Excelência para a


aquisição da biblioteca do meu pai. Desejo inicialmente manifestar (…) a
concordância da família com relação à avaliação procedida no final do ano

390
Idem, Folhas 35-36.
171

passado, que estabelecia o total Cr$ 100.000.000,00 (cem milhões de


cruzeiros). Não obstante, e para preservar esse valor do desgaste a que
vem sendo submetida nossa moeda, é nossa intenção propor-lhe sua
correção a partir da data da carta do avaliador, mediante a aplicação de um
dos índices e correção monetária vigentes. Com respeito a sua forma de
pagamento (…) concordaríamos com um pagamento parcelar, aplicando-se
ao saldo devedor os mesmos índices de preservação de seu valor
aquisitivo, ao longo de 1983.391

Exatamente um mês depois e já dispondo de quase toda a quantia


necessária para a transação, José Aristodemo Pinotti autorizou, enfim, a compra da
biblioteca, celebrada a partir da assinatura de contrato em 27 de maio de 1983 392 e
do pagamento no ato da primeira parcela estimada em Cr$ 40 milhões de cruzeiros.
Não nos cabe nesse espaço descrever cada uma das cláusulas; todavia, uma delas
merece destaque, já que reforçava pelas letras jurídicas o esforço conjunto que
universidade e família vinham realizando na constituição e manutenção da memória
do falecido historiador. Segundo a cláusula nona:

A COMPRADORA obriga-se a constituir com o acervo um centro de


pesquisas para as áreas de Pós-Graduação em Letras, História, Ciências
Sociais, Artes e Educação e estudar a conveniência de instalar um “Centro
de Estudos Brasileiros” que terão por núcleo inicial a biblioteca objeto do
presente contrato. Na hipótese de constituição ao aludido Centro, o qual
terá o nome do Prof. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, preservar-se-á
nas instalações, um local adequado para a reconstituição de seu ambiente
de trabalho, aparelhando-o com os móveis e objetos de uso pessoal e
demais elementos que forem destinados pela família. A compradora
contratará pessoal especializado para a preparação, guarda e utilização do
acervo, de forma a preservá-lo e mante-lo, na forma como foi deixado pelo
Prof. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA.393

Oficializada a compra, coube a um professor da USP as autocríticas à sua


universidade por não terem adquirido o valioso acervo de um de seus mais ilustres
mestres. Tomado de certa perplexidade, o ex-assistente de Sérgio Buarque, o
professor José Sebstião Witter, à época também supervisor do Arquivo Público do
Estado de São Paulo, escreveu em 31 de março dois ofícios. Um deles, enviado à
reitoria, parabenizava a Unicamp pela façanha, ressaltando a importância da

391
Ibidem, Folha 53. Importante registrar, que pouco depois, em 2 de março de 1983, a Comissão
relatou à reitoria uma outra conversa que tiveram com Sérgio Buarque de Holanda Filho. Na ocasião
a família assinalava que a correção monetária deveria se dar a partir de 1º de janeiro de 1983,
favorecendo, desse modo, a Unicamp.
392
Reitoria, Resumo de Contratos, Processo 2981/82, contrato 1483. Diário Oficial do Estado de
São Paulo, 11 de junho de 1983, página 11.
393
Termo particular de Contrato de compra e venda do acervo bibliotecário e documental do
Professor Sérgio Buarque de Holanda. In: “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio
Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folha 82. Arquivo Central Unicamp.
172

permanência da biblioteca no estado, o seu valor inestimável e a manutenção de


sua unidade, desejos do titular e de seus herdeiros.
O outro foi enviado ao chefe do Departamento de História da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras-FFLCH da USP, professor Carlos Guilherme Mota. No
documento, Witter não escondia o desencanto com a instituição devido à falta de
sensibilidade e empenho dos seus dirigentes para que a biblioteca de Sérgio
Buarque ficasse lá. Em suas palavras: “(…) registro o fato e alerto o colega e Chefe
de Departamento para a falta de vigor de nossa universidade, que não procura se
agilizar para competir e ocupar o lugar que lhe é destinado na sociedade paulista.
Parece que a inércia nos relegará ao esquecimento, até mesmo daqueles que foram
nossos alunos”.394
Frustração de uns, alegria de outros, o certo é que poucos meses depois,
em cumprimento à cláusula sétima do contrato, a Unicamp começava o trabalho de
traslado do acervo cultural do local onde se encontrava, a rua Buri, 35, no
Pacaembú, em São Paulo, para as próprias dependências da universidade, que
previa ainda a contratação de pessoal especializado para a preparação, guarda e
disponibilização de todo o conjunto. Em se tratando de um grande volume de livros,
dentre eles obras raras, objetos pessoais, documentação e mobiliário, coube à
universidade um planejamento minucioso para que tudo corresse dentro dos
conformes.395
Não convém nessa parte do capítulo expor as manobras burocráticas em
curso na universidade naquela época, mesmo porque o assunto já foi tratado de
maneira pontual por outros pesquisadores. Todavia, é válido ressaltar que foi
durante essa “fase de institucionalização”, desdobramento da crise interna citada no
início dessa seção, que foi criado o "Centro de Informação e Difusão Cultural”-
CIDIC, um órgão previsto nos Estatutos (1980) e no Regimento Interno da

394
SILVA, Patrícia Helena Gomes da. op.cit. p. 85; Carta de José Sebastião Witter a Maria Amélia
Buarque de Holanda, comunicando que enviou à USP e à UNICAMP, correspondência sobre a
aquisição do acervo de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 31 maio 1983. 1p. (anexo
correspondência mencionada), Hp 14, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
395
Segundo o “Relatório Preliminar sobre a mudança da ‘Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda’”, o
traslado iniciado em 19 de julho de 1983 contava com mais duas etapas, sendo elas em 19 de agosto
e 26 de agosto. Ainda segundo o relatório, os períodos entre 22 e 25 de agosto e 29 de agosto e 2 de
setembro seriam reservados para o arranjo do material, que ficou alocado provisoriamente na antiga
sede da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp-FUNCAMP. In: In: “Aquisição da Biblioteca do
falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folhas 141-144. Arquivo Central
Unicamp.
173

Universidade (1974), que estabelecia como subordinados a Biblioteca Central, já


instalada desde 1967 e uma Divisão de Documentação em fase de construção. 396
Para os nossos propósitos esse órgão se torna importante porque quem o
coordena é Ataliba Teixeira de Castilho, integrante da Comissão que avaliou a
biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda e responsável pela contratação, via
FAPESP, dos profissionais técnicos (dois bibliotecários e um arquivista) que
iniciaram os trabalhos de tratamento do acervo bibliográfico recém-adquirido. 397
Durante essa etapa, muitos documentos vistos como “pessoais”, foram sendo
encontrados aleatoriamente em meio aos livros, os quais passaram a integrar junto
com outros papéis existentes nas coleções de Paulo Duarte e Zeferino Vaz, a
Divisão de Documentação.
Esta ganharia, em 1986, o contorno que conhecemos hoje de Arquivo
Central, constituída definitivamente como órgão complementar à Reitoria,
encarregado pelas suas políticas arquivísticas, em 1995, quando o CIDIC é extinto.
A partir de então foram fixadas duas categorias para a constituição de fundos dentro
da Unicamp: uma, de documentos produzidos e recebidos pelos órgãos da
universidade, constituintes de sua memória institucional, e outra, de fundos privados,
o patrimônio adquirido por ela em duplo sentido, de bem material e de bem cultural,
divulgador de memórias, de livre acesso a pesquisadores e outros visitantes. 398
A Unicamp, após cumprir as promessas expostas em 1983, – instalações
adequadas para a guarda do acervo, espaço para a reconstituição de ambiente de
trabalho e contratação de pessoal especializado para o tratamento e disponibilização
do material – enfim, entregava ao público, em 12 de agosto de 1986, a Biblioteca
(de) Sérgio Buarque de Holanda e seu “escritório-museu” numa inauguração solene,
que contou com exposição de fotos e com a presença de autoridades, como o novo
Reitor, Paulo Renato Souza, da viúva e filhos do casal.
Não podemos deixar de explicitar o fato de que essa inauguração ocorreu
durante a "V Semana Sérgio Buarque de Holanda”, evento que tinha além desse
objetivo, o de comemorar os cinquenta anos da primeira edição de “Raízes do
Brasil”. Essas “Semanas" foram instituídas pela Secretaria de Cultura do Estado de
São Paulo em 28 de abril de 1982, por meio da Resolução 19, assinada pelo

396
MARTINS, Neire do Rossio, op.cit., p. 19.
397
Para mais detalhes sobre esse processo de preparação técnica ver: Projeto FAPESP 83/0959 e
Processo FAPESP 85/0084-9. Fundo CIDIC, Caixa 2, Maços 20-21. Arquivo Central Unicamp.
398
Idem, pp.3-6.
174

secretário extraordinário à época, o senhor Antônio Henrique da Cunha Bueno,


nomeado pelo governador-biônico Paulo Maluf. Na prática, o evento entrava para a
programação oficial do estado, cabendo a essa secretaria a organização,
planejamento e execução de atividades que incluíam conferências, seminários,
debates e concursos “versando sobre a vida e obra do seu patrono”. Em suma, o
objetivo final era promover “comemorações visando recordar a figura do
homenageado”.399
A palavra "comemoração", não custa lembrar, vem do latim
commemoratione, declinação de commemoratio, que remete por sua vez ao verbo
memorare, que significa trazer à memória, fazer recordar, lembrar. Imperativa, a
palavra tem um sentido de necessidade, de quase obrigação. A comemoração seria
então a necessária evocação de uma memória, ela estaria ligada a fatos, a atos e a
pessoas não só dignos de serem trazidos à lembrança, mas que deveriam ser
lembrados, que não poderiam ou não podem deixar de ser recordados. 400
Em síntese, como expôs certa vez Durval Muniz de Albuquerque, as
comemorações são feitas de memórias, de lembranças e esquecimentos, mas
também são feitas de sonhos, de esperanças e de investimentos no presente
visando o futuro. Ela está diretamente relacionada com os usos sociais, culturais e
políticos da memória, é uma das modalidades não só de sua transmissão, mas de
sua elaboração, de sua produção. Ainda segundo este autor, o ato comemorativo
não só se organiza num momento em que se instaura um dever de memória, não só
se constitui num momento em que a lembrança é voluntariamente convocada, mas
“também se constitui num momento privilegiado para a proliferação de memórias,

399
Resolução 19 de 28 de abril de 1982. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Homenagens
Póstumas, Hp 131, Arquivo Central Unicamp. Ao todo ocorreram seis "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, a primeira, em 1982 e a última em 1987. Com excessão da "V Semana", que ocorreu entre
12 e 14 de agosto de 1986 na Unicamp, todas as demais se deram em julho, mês de nascimento de
Sérgio, na cidade de São Paulo. No mesmo ano de 1986, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro a
exposição comemorativa aos 50 anos de Raízes do Brasil, intitulada, “Sérgio, o renovador”. O evento
foi organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que publicou um pequeno livreto contendo textos
panegíricos de José Murilo de Carvalho, Francisco de Assis Barbosa, Onestaldo de Pennaforte,
Manuel Bandeira, além da lista de peças expostas, bibliografia do homenageado e dados biográficos.
Podemos a partir desse material, citar um exemplo do que definiremos abaixo como fatalismo: o
primeiro foi retirado do texto de José Murilo de Carvalho e diz o seguinte: “Raízes do Brasil tornou-se
o livro mais conhecido de Sérgio (…) e talvez o mais influente. Não foi o seu melhor livro. Mas teve o
grande mérito de representar uma alternativa às tendências dominantes da época e de anunciar o
grande historiador do futuro”. CARVALHO, José Murilo de. Cinquentenário de Raízes do Brasil. In:
Sérgio, Renovador. Rio de Janeiro: FCRB, 1986. p. 7.
400
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a
comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da
memória. Revista Brasileira de História (online), v. 33, n. 65, 2013. p. 386.
175

para a elaboração de versões daquilo ou daquele que se comemora". Pois o ato de


lembrar “é sempre realizado no presente, mas traz consigo uma expectativa de
futuro”.401
Já assinalamos no início do capítulo que a competência dos grandes
homens desaparecidos tende a ganhar o estatuto de “panteonização”, e este é posto
a serviço das práticas identitárias dos grupos. Nesse sentido, após atravessar a
esfera privada e a esfera institucional concedida pela Unicamp, a memória de Sérgio
chegava agora à esfera pública, uma vez inserida no calendário oficial de
comemorações do estado.
Vimos também, na época de sua morte, que a sua biografia carecia de
"ajustes" e que sua obra era “esparsa”. Portanto, nada mais propício para um
determinado grupo, formado por importantes acadêmicos que conheceram de perto
o morto, tomar para si a partir de um certo espaço de enunciação e com
determinados fins, cultural e político, o projeto de forjar, conforme seus próprios
interesses identitários, a biografia modelar do velho mestre baseada em princípios
de fatalismo402 e excepcionalidade, cujo resultado é visto em um livro matriz, produto
dessas “Semanas” e de nome sugestivo, "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”,
ato daquele presente-passado com vistas a congelar no tempo a memória
elaborada.
E o que emerge das páginas desse livro-monumento? Da parte de nomes
como Antonio Candido, Francisco de Assis Barbosa, Maria Odila L. da Silva Dias,
José Sebastião Witter, Suely Robles de Queiroz, para ficarmos apenas nos
memorialistas, lê-se a imagem de Sérgio Buarque como um intelectual
multifacetado, dividido entre os ofícios de jornalista, crítico literário, ensaísta e
401
Idem, p. 388.
402
O fatalismo é entendido aqui como uma “doutrina" segundo a qual os acontecimentos são fixados
com antecedência pelo destino. Tudo acontece porque tem de acontecer, sem que nada possa
modificar o rumo dos acontecimentos. Propenso a um rígido determinismo, o fatalismo impõe uma
mítica inevitável à jornada humana. O fatalismo tem-se insinuado em narrativas biográficas
contemporâneas escritas. O senso fatalista coloca o biografado em função de sua obra. Sendo assim,
em vez da parcela considerável da vida, sua obra se torna a sua própria vida. VILAS-BOAS, Sérgio.
Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Unesp, 2014. p. 85. Não por acaso,
lermos na Introdução de "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”, a seguinte passagem: “O volume
foi organizado visando um leitor imaginário que desconheça o autor e sua obra inteiramente.
Procuramos dispor a matéria de forma que, analisada inicialmente a vida, esta possa ajudar à
compreensão da obra, estudada em seus mais diferentes ângulos, aflorando em toda a sua
importância e profundidade. Ao final, contará o leitor com um levantamento exaustivo das publicações
do autor e do que sobre ele e sobre a sua obra já foi escrito até nossos dias”. In: NOGUEIRA, Arlinda;
PACHECO, Felipe de Moura; PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika.(orgs). Sérgio Buarque de
Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB,
1988. p. 11.
176

historiador, transeunte dos grandes centros produtores de conhecimento intelectual


do país, São Paulo e Rio de Janeiro.
Uma trajetória linear, vivida por alguém excepcional, isenta de conflitos e
cuja linha do tempo o levou da juventude modernista à fundação do Partido dos
Trabalhadores, a que tudo se ajusta à construção simbólica de um historiador
perfeito: “o mundo social inerte se curva à ação arrebatadora do gênio criador, que
não mais faria do que dar sequência a uma história de vida pontuada por feitos
escolares extraordinários”.403
Foi apenas no final dos anos 90 que as narrativas testemunhais daquela
época cederam lugar a estudos mais críticos e sistemáticos de sua obra, com a
elaboração de dissertações e teses em diversos programas de pós-graduação Brasil
afora e até no exterior. Parte desses estudos foi motivada pela consulta à sua
biblioteca e ao seu arquivo privado, fazendo com que Sérgio continuasse a ser
objeto de embates/debates e tema de produções acadêmicas variadas,
postergando, assim, sua memória até os dias de hoje.404

3.3. A várias mãos: a montagem de um Fundo Privado

Hoje grande parte das pesquisas sobre Sérgio Buarque se valem de seu
papelório. Todavia, são estudos constituídos dentro de uma concepção na qual
esses papéis acumulados seriam uma espécie de “repositório de provas”,
possibilitando aos investigadores tecerem narrativas e análises sobre ele e sobre
sua obra. Vistos nessa chave, os arquivos pessoais como objetos tendem a ocupar
um lugar periférico nas análises interessadas na construção social dos arquivos, já
que existe uma tendência em associá-los à “memória individual”, a interpretá-los
unicamente como acúmulos que documentam as atividades do titular ou revelam
dimensões de sua personalidade. Esse tipo de abordagem, como sugere pesquisa
recente, obscurece o caráter de múltiplas interferências, que de outro ponto de vista,
nos indicam a ideia de que esses arquivos são constituídos a várias mãos. 405

403
PALMEIRA, Miguel S. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joëlle; HEYMANN, Luciana (org.). Arquivos Pessoais: reflexões
multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 89.
404
SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia,
v. 8, 2012. pp. 233-234.
405
HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, op.cit, p.
69. A autora trabalha com a ideia de “olhar antropológico” sobre os arquivos pessoais, propondo que
177

De maneira geral, o interesse pelos arquivos no campo das ciências


humanas é tributário de reflexões que tiveram início no princípio da década de 1990,
nas áreas da filosofia, dos estudos culturais e da antropologia. De “repositório de
provas” que permitiriam conhecer o passado, essas reflexões passaram a olhar os
arquivos como parte do processo de construção de discursos e de consolidação de
memórias sobre um certo passado em disputa, ou seja, o arquivo passa a ser uma
instância na qual e pela qual se constroem “fatos" e “verdades”.
Nos pareceu consensual dentro dessa nova perspectiva, a importância
central que tiveram os trabalhos de Jacques Derrida e Michel Foucault, cujos textos
instituíram o arquivo como metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder;
como constructo político que produz e controla a informação, orientando a
lembrança e o esquecimento ou, de forma mais direta, como a “lei do que pode ser
dito”406, daí sugerirmos que o Fundo Sérgio Buarque de Holanda, concebido por uma
pluralidade de atores, pode atestar do ponto de vista da memória a versão que o
titular esboçou de si mesmo.
Com base nessas constatações, o objetivo principal dessa última seção é
descrever como se deu a montagem do "Fundo Sérgio Buarque de Holanda” e a
partir desse processo trazer à tona alguns indícios dessa montagem a várias mãos
no intuito de demonstrar como, do ponto de vista institucional, a memória histórica
do titular foi sustentada.
Os documentos do acervo pessoal 407 de Sérgio que deram origem ao
Fundo Privado - manuscritos de produção científica original, poucas
correspondências ativas e passivas, alguns cadernos de anotações de pesquisa,

o investigador desloque a atenção dos documentos para os processos de constituição desses


acervos. Por esse ângulo, além dos gestos individuais de seleção e guarda dos registros, devem ser
considerados os contextos nos quais os conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-
históricos mais amplos, de uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados e
disponibilizados, de outra.
406
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008;
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
2001; FRAINZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo
Capanema. Estudos Históricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 58-87; COOK, Terry. Arquivos
pessoais e arquivos institucionais: para um entendimento arquivístico comum na formação da
memória em um mundo pós-moderno. Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 129-
149; FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. Fátima Murad. São Paulo: EdUSP, 2009; GOMES,
Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos
Históricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 121-127; KEETELAR, Eric. (De)Contruire l’archive.
Matériaux pour l’Histoire de Notre Temps, n. 82, Nanterre, avr-juin, pp. 63-69.
407
Laurent Vidal define o termo “acervo pessoal” como “o conjunto dos documentos produzidos e/ou
pertencentes a uma pessoa, um indivíduo, resultados de uma atividade profissional ou cultural
específica. (…) O alcance cronológico dos acervos pessoais não ultrapassa a vida do indivíduo que o
constituiu”. Patrimônio e memória (Unesp), vol. 3 n. 1, 2007. p. 6.
178

microfilmes de documentação inédita provenientes de arquivos brasileiros e


estrangeiros, exemplares de teses não publicadas - começaram a ser reunidos pela
“Divisão de Documentação" e tratados ainda no final de 1984 e início de 1985.
Segundo Neire Rossio Martins, diretora do Arquivo Central da Unicamp e na época a
arquivista contratada por Ataliba Teixeira, as atividades consistiram, primeiramente,
em identificar os documentos acumulados na antiga Biblioteca Central e que
demandavam tratamento técnico. Foram então identificados os dossiês da biblioteca
de Paulo Duarte, que se encontravam em uma sala com livros “especiais”,
documentos da biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, recém-adquirida e em fase
de organização e outros documentos da própria universidade.
Ao longo dos anos outros papéis passaram a ser incorporados pela viúva
de Sérgio, D. Maria Amélia. Em algumas ocasiões, maços de documentos eram
entregues em mãos a enviados da Unicamp, em outras, eram pessoas de confiança
da viúva que se dirigiam até a universidade para levar os documentos.
Partícipe direta dessa história, Neire Rossio relembra que o contato com a
esposa de Sérgio se deu em 1984, por intermédio de João Bosco. Na época, o
músico estava em Campinas para um show promovido pelo "Diretório Central dos
Estudantes” e recebeu de Neire um bilhete que deveria ser entregue por ele à Chico
Buarque. A mensagem dizia respeito ao acervo de Sérgio. Não sabemos outros
detalhes, mas o bilhete chegou às mãos de Maria Amélia, que pouco depois foi à
Campinas visitar a biblioteca, trazendo consigo a primeira pasta com alguns
documentos selecionados, obviamente resultantes de um amplo "processo de
seleção" daquilo que poderia e/ou deveria se tornar público, com a clara finalidade
de instituir uma narrativa oficial sobre a memória do marido. 408
Se comparado ao acervo de outros intelectuais ou homens públicos, o de
Sérgio Buarque não é monumental, embora revele alguma fixação do titular no
acúmulo sistemático de papéis, porém muito diferente, por exemplo, de um Mário de
408
Essa característica da constituição de acervos também foi estudada por Aleida Assmann quando
tratou dos arquivos como constituintes de uma memória histórica. Para a autora, depois que as
atividades de recolhimento e conservação foram consideradas primeiramente como as mais
importantes do arquivo, a partir do século XIX os arquivistas tiveram também que limpar o arquivo e
descartar itens dele, atividades não menos importantes que as anteriores. Para a “cassação”, jargão
que denomina a destruição de acervos de arquivos, existem em cada época determinados princípios
de segregação e medidas de valor que não são necessariamente compartilhados pelas gerações
posteriores. O que é lixo para uma geração pode ser informação preciosa para outra e, por isso, os
arquivos não são apenas locais para armazenamento de informação; são igualmente locais para as
lacunas de informações que não resgatam somente as perdas em catástrofes e em guerras, mas
também resgatam, de maneira essencial e estruturalmente indispensável, uma “cassação"
equivocada, sob o ponto de vista dos pósteros. ASSMANN, op.cit, p. 370.
179

Andrade com o seu gigantismo epistolar, um Darcy Ribeiro com os seus documentos
de trabalho e diários, de um Pedro Nava memorialista ou ainda de Paulo Duarte, que
chegou a guardar um capacete do tempo da Revolta Paulista de 1932. 409
Segundo D. Maria Amélia, Sérgio tinha uma dinâmica própria de
autoarquivamento. Sua biblioteca, por exemplo, era uma “bagunça”, mas organizada
de acordo com sua própria lógica de recuperação e interesse. Os seus documentos
pessoais eram mantidos em pastas, caixas e gavetas sem quaisquer critérios
rigorosos de organização e indexação e seguiam uma certa “ordem natural” de
interesses de acordo com cada época de sua trajetória. Muitas cartas, por exemplo,
foram encontradas dentro de livros 410 por bibliotecários da Unicamp que as remetiam
ao Arquivo.
Pensando numa expectativa futura, no legado de seu trabalho e numa
eventual autobiografia como historiador e crítico, a suposta “bagunça" imposta pelo
arquivista não teria o intuito de incentivar naqueles que mais tarde encontrassem
esses papeis, a participação num jogo de adivinhações, gerando nesses
pesquisadores a surpresa em revelar cada um desses enigmas e ativando no trato
com outros rastros a composição de um “mosaico de si”? 411
A última remessa de documentos feita por Maria Amélia se deu em 2004.
Nessa época o Fundo já contava com mais de 2 mil documentos em diversos
idiomas, incluíndo certidões, fotografias, cartões pessoais, postais, medalhas de
honrarias, correspondências, originais de textos, cadernos de pesquisa, textos
escritos por Sérgio em diversos jornais e revistas no Brasil e no exterior, cópias de

409
Ponto importante a ser considerado é o fato de que nem todo gesto de arquivamento pode ser
associado a uma vontade de memória ou a um testemunho. Ver respectivamente: MORAES, Marcos
Antônio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo:
EdUSP; FAPESP, 2007; HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de
Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012; PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado
doutor, querido amigo, caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2009; MARTINS, Neire Rossio.
Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual de
Campinas (1980-1995). 2012, Dissertação (mestrado), Unicamp, Faculdade de Educação.
410
Não por acaso que Chico Buarque abre seu novo romance descrevendo uma carta encontrada
pelo personagem principal dentro do livro “O Ramo de Ouro”, pertencente ao seu pai e que depois de
manuseado deveria ser guardado exatamente como ele o havia deixado em alguma prateleira da sua
enorme biblioteca. BUARQUE, Chico. O irmão alemão, op.cit., pp. 8-10.
411
Questões dessa ordem foram formuladas por Philippe Artières ao tratar de certas práticas de
autoarquivamento. Para esse historiador, mais do que a natureza dos arquivos pessoais e as práticas
que lhes dão origem, o importante seria cotejar os modos de fabricação desses arquivos, ou seja,
buscam-se os gestos que podem transformar as práticas comuns em pequenos altares singulares ou
as experiências desse autoarquivamento numa obra de arte. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar-se: a
propósito de certas práticas de autoarquivamento. In: TRAVANCAS, op.cit., pp. 45-54.
180

documentos de arquivos visitados, dossiês (Centro Brasil Democrático, Instituto de


Estudos Brasileiros-IEB, Prudente de Moraes, neto, Museu de Arte Moderna-MAM),
resenhas sobre as suas obras, etc.
Remessas posteriores ainda foram feitas, todavia, constituíam-se em
produtos de pesquisadores recebidos por Maria Amélia ou matérias de jornal e
revista que ela mesmo colecionava, em geral textos celebrativos sobre a vida e a
obra do marido, portanto, documentos que compõem o seu Fundo Privado
institucional, mas que não são originários de seu acervo pessoal.
Dadas as características de movimento desse arquivo, Neire Rossio, que
trabalhou nele diretamente, o definiu como um “fundo aberto”, já que o trabalho de
catalogação se deu ao longo de mais de uma década, demandando da equipe
arquivística constantes “(re)fazimentos”412. Com o falecimento de D. Maria Amélia, já
centenária em 2010, o fundo pôde, enfim, ser considerado fechado.
A característica de movimento desse tipo de arquivo foi estudada por
Miguel Palmeira ao se debruçar sobre o legado do historiador da Antiguidade,
Moses Finley. Para esse autor, a criação de um arquivo pessoal e os seus
deslocamentos lançam luz sobre as energias sociais consumidas no processo de
constituição e preservação desse acervo, energias que somente poderiam ser
canalizadas em razão de um capital simbólico expressivo, previamente acumulado
pelo titular. Por essa perspectiva, alguém como Sérgio Buarque "mereceria" ser
reproduzido em arquivo não apenas porque nele se reconhece um historiador e
crítico importante, mas porque se entende que essa importância tem sua
perpetuação favorecida pela organização de um arquivo pessoal.
O que estaria em jogo, segundo Palmeira, é a administração de um
patrimônio intelectual que não diz respeito somente ao morto, mas
fundamentalmente às pessoas e às instituições associadas a seu legado, como já
sugerimos ao longo da tese. O arquivo, em outras palavras, reteria a marca dos
interesses, dos valores e das estratégias de consagração dos grupos sociais a que
se refere e elabora uma atividade de simbolização mediante a qual certos grupos
manifestam sua existência material, política e intelectual. 413

412
HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo, op.cit., sobretudo o capítulo 4, “Os papéis de
Darcy Ribeiro ou um arquivo de ‘refazimentos’". pp. 171-219.
413
PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, op. cit., pp. 95-96.
181

O caminho trilhado por Palmeira vai ao encontro daquilo que estamos


buscando nesse capítulo, ou seja, o de que há um princípio e um efeito de
sacralização do indivíduo na constituição de um arquivo pessoal com amparo
institucional. Assim, podemos afirmar que a inscrição de um conjunto documental
heterogêneo sob uma categoria que leva o nome de seu titular, seja ele quem for,
opera um recorte do registro de atividades intelectuais que se ajusta facilmente à
voga de restringir as forças atuantes no mundo acadêmico às ações isoladas de
alguns notáveis.414
Nisso procede o fato de que a não observação da dimensão de poder
investida na forma “arquivo pessoal” poderia levar os historiadores da historiografia
(e das ciências sociais, etc.) a relegar, como no passado, os historiadores de
“segundo time” ao limbo do esquecimento ou às trevas. Um desvio em relação a
uma linha evolutiva preestabelecida - o que atenderá às necessidades de uma
axiologia da profissão, mas não as de uma compreensão histórica das práticas dos
historiadores nos debates do tempo.415
Desse modo, mesmo que alguns biógrafos de Sérgio sugiram que ele não
estivesse lá muito preocupado em construir uma autoimagem, o discurso histórico
que emerge de seu arquivo pode ser lido como o produto de ações que envolveram
ele próprio, sua família, seus pares, a instituição detentora de seu legado e
estudiosos, que a partir de certa elaboração do passado feita de maneira póstuma,
contribuíram para a transmissão de uma dada memória às futuras gerações.
Caso contrário, o intelectual, nos seus últimos anos de vida não teria
concedido entrevistas416 “contando-se", não ditaria os seus “apontamentos
414
Idem, p. 96.
415
Ibidem, pp. 96-97.
416
Parte delas foram publicadas em um livro organizado por Renato Martins, intitulado Sérgio
Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. Na época publiquei uma
resenha da obra na Revista “História da Historiografia”, da UFOP, em que exponho o seguinte: ”O
livro conta com uma apresentação, dezesseis entrevistas e uma cronologia ao final do volume. De
formato pequeno e bem acabado, ele sugere um passeio pela vida do intelectual. Desse modo, o
tempo de leitura (…) voa como uma boa conversa de amigos em um bar, também porque algumas
das entrevistas levantadas por Martins possuem essa informalidade. Da juventude modernista à
maturidade serena, é o “pai do Chico” quem conta sua vida, explica, esclarece dúvidas e as expõem
também ao leitor (…). Vale ressaltar ainda que as entrevistas apresentadas nesta obra compõem
apenas um pequeno fragmento do que há no acervo do homenageado, aberto para consulta no
Arquivo Central da Unicamp. Dos dezesseis depoimentos apresentados, apenas oito coincidem com
os trinta e dois que formam a Sub-série: entrevistas, da Série Vida Pessoal, que inclui ainda centenas
de fotografias de Sérgio Buarque, com familiares e diversos intelectuais. Quanto ao texto de
apresentação de Renato Martins, nada traz de novo. Sua leitura de Sérgio Buarque em nada difere
das de seus mais ilustres comentadores. Aqui, mais uma vez, a linha do tempo que liga o jovem
modernista ao membro fundador do Partido dos Trabalhadores é seguida à risca, ficando as nuances
de uma leitura a contrapelo, ou da busca de uma “política da boa memória”, a cargo de quem quiser
182

biográficos” para a esposa, não revisaria alguns de seus livros, postumamente


publicados como restaram nos datilografados, não vetaria a publicação de um outro
ainda hoje inédito e nem escreveria as suas autobiográficas "Tentativas de
Mitologia”, agraciadas com o Prêmio "Juca Pato” da União Brasileira de Escritores. 417
Um conjunto intencional de indícios, por conseguinte, que auxiliaram na
organização do seu “mosaico" e que serviram de matriz para muitas narrativas
posteriores que o consagraram. Dito de outra maneira, Sérgio Buarque foi uma
personagem que se “moldou como o couro”, para usar uma expressão sua, e que
soube com inteligência e êxito sobreviver aos “movediços” campos intelectual e
institucional brasileiro durante toda a sua trajetória, somando quantias consideráveis
à totalidade da figura intelectual exemplar que restou à posteridade.
A organização das entrevistas, tal como está exposta no arquivo, nos dá
bons indícios dessa prática de contar-se. Observando a fase uspiana de Sérgio,
entre o final da década de 1950, quando foi aprovado no concurso de cátedra até o
final da década seguinte, quando se aposentou em 1969, constatamos que não há
indicação de que ele tenha concedido entrevistas a jornais ou revistas. Entre 1970 e
1975 há apenas uma indicação, enquanto que entre 1976 e 1982, ano de sua morte,
contamos 17 depoimentos.
À chamada imprensa diária, Sérgio Buarque falou aos gravadores e
repórteres do "Jornal do Brasil", "Folha de S. Paulo", "Última Hora", "Jornal da
Semana", "Diário do Grande ABC", além das semanais "Veja", "Isto É" e "Manchete".
No âmbito acadêmico há o famoso depoimento concedido ao amigo Richard
Graham, publicado em 1982 na "The Hispanic American Historical Review", que
muitos acharam ser a derradeira. Todavia, um bilhete de punho de Maria Amélia nos
informa que a última conversa que o marido teve com um jornalista foi publicada na
"Folha Ilustrada" da "Folha de S. Paulo"no dia 14 de fevereiro de 1982 e junto com
ela a sua última foto.418
se aventurar nesses encontros. SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de
Holanda, op.cit., pp. 235-236. Disponível em:
http://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/viewFile/357/255
417
A “União Brasileira de Escritores”- UBE foi criada em 17 de janeiro 1958, resultando da fusão da
Sociedade Paulista de Escritores com a Associação Brasileira de Escritores-ABDE. Esta última teve
como participantes, além do próprio Sérgio Buarque, figuras importantes de sua amizade, como
Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Antonio Candido, Paulo Duarte, entre outros.
418
Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Arquivo Central-SIARQ, Unicamp. Série Vida
Pessoal, sub-série Entrevistas. Campinas, maio de 2002. O grande número de entrevistas que o
historiador concedeu, entre 1976 e 1982, se inserem muito mais num momento de abertura política e
numa tentativa de inscrever-se à posteridade, do que numa "postura militante propriamente dita",
como insinua de maneira tendenciosa o historiador Marcos Costa, no intuito de colar Sérgio à
183

Mais de um autor já apontou que essas práticas de produção de si


compreendem um diversificado conjunto de ações, desde as mais diretas como a
escrita autobiográfica ou de diários íntimos ou aquelas constitutivas de uma auto-
imagem, realizadas pelo recolhimento de objetos materiais com ou sem a intenção
do indivíduo em formar coleção.
Pode ser o caso de pinturas que retratam a intimidade de famosos ou
anônimos, das fotografias, dos cartões-postais ou das correspondências e de outros
objetos ordinários como canetas, blocos de notas, bibliotecas, mobiliários, medalhas,
insígnias, diplomas, tudo aquilo que passa a povoar e a transformar a privacidade da
casa ou do escritório em um “teatro da memória”. Em suma, espaços cujos registros
encontrados materializam a história do indivíduo e dos grupos a que pertenceu, num
processo de musealização da própria vida como vimos, por exemplo, na montagem
da biblioteca de Sérgio na Unicamp.
Das possíveis narrativas que emergem do baú de memórias de Sérgio,
podemos vislumbrar duas figuras: a do “homem público", até então envolto em
diferentes projetos educacionais, da direção do Museu Paulista à docência,
passando pela direção da "Coleção História Geral da Civilização Brasileira” e
trilhando os labirintos da burocracia universitária dos conturbados anos de ditadura e
outra, do “homem de família", recolhido no aconchego do lar, cercado de parentes e
amigos.
Abrindo o álbum de sua vida, o vemos ainda criança posando nos
estúdios do Foto Rizzo ou na antiga casa dos pais na rua Piauí, ambos em São
Paulo, para em seguida desvendarmos sua trajetória intelectual desde os tempos do
modernismo até a maturidade historiadora, sempre rodeado de figuras de peso,
como Mário de Andrade, Prudente de Moraes, neto, Ribeiro Couto, Blaise Cendrars,
Caio Prado Júnior, Otávio Tarquínio de Sousa, Manuel Bandeira, Múcio Leão,
Lucien Febvre, Vinícius de Moraes, Vitorino Magalhães Godinho, Maria Yeda
Linhares, etc.

imagem da esquerda combativa do país. Segundo ele, “(…) só a partir dos anos 1970 que essa
tendência até então pouco recessiva na personalidade de Sérgio Buarque de Holanda ganha
predominância. Na última fase de sua vida, diante do conservadorismo obscurantista que havia se
abatido sobre a sociedade brasileira, Sérgio Buarque de Holanda se torna um militante propriamente
dito e demonstra isso de diversas maneiras, entre elas por meio das entrevistas que concedeu
criticando o regime em seu pleno período mais sombrio a partir da vigência do AI-5”. COSTA, Marcos.
Biografia Histórica: a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e
1980. 2007. Tese, Doutorado em História, Universidade Estadual Paulista (UNESP)- Assis. p. 168.
184

Também acompanhamos suas viagens a países como Alemanha, Itália,


França, Estados Unidos, Suíça, passeamos com ele pelas ruas cariocas,
berlinenses e paulistanas, até chegarmos ao período da aposentadoria e às cenas
da vida doméstica, quando já se tornara “pai do Chico”. 419
Sobre fotografias arquivadas, um autor reflete que as percorrer é como
mergulhar nos registros da memória familiar. Elas são, nesse sentido, um recurso
eminentemente moderno que possibilita a conservação e permanência de uma
continuidade visual do passado familiar. Resistindo à aceleração do tempo, esses
registros proporcionam uma orientação para a memória num contexto que tende a
ser fragmentário e dispersivo. Por meio das poses e instantâneos que contribuem
para a fixação da autoimagem de indivíduos e grupos familiares, podemos
acompanhar os registros de alguns ritos da vida privada, de alguns padrões de
sociabilidade.420
Assim, ao abrir um álbum podemos imaginar como seria a tarde de
conversas com Sérgio Buarque na varanda de casa, regada a uísque e cigarros, sua
afetividade ao lado dos netos, a alegria à mesa em dias de aniversário ou deixando-
se fotografar nos jardins da residência com a família toda. Também podemos subir
as escadas de madeira escura de sua casa e chegar ao seu caótico escritório, de
onde a claridade do sol perpassa sem dificuldade duas janelas amplas, uma delas
com vistas ao jardim. Dentro dele, prateleiras repletas de livros, uns valiosos, outros
nem tanto, inúmeros papéis e rascunhos de anotações espalhados, poltrona para
419
Além de cenas que retratam a vida intelectual e familiar de Sérgio Buarque, é possível
vislumbrarmos uma cartografia dos principais países percorridos por ele e porque não, “enquadrá-lo”
na categoria de "turista-fotógrafo", já que seus registros fotográficos têm o potencial de nos contar
histórias, de conter o tempo e, sobretudo, de preservar a memória, "que é falha e sujeita ao
esquecimento, um instantâneo que possibilita rever em imagem a própria experiência". LAURETTI,
Patrícia. Revelando o turista-fotógrafo. Jornal da Unicamp, nº 601, Campinas, 23/06 a 3/08/2014, p.
12. A matéria citada refere-se à tese de Lívia Afonso de Aquino, Picture ahead: a Kodak e a
construção de um turista-fotógrafo, Instituto de Artes, Unicamp, 2014. Há evidentemente outras fotos
que registram cenas de Sérgio Buarque em ambiente privado, como uma em Nova Iorque na casa de
sua filha, Miúcha e de seu marido João Gilberto ou vestido de Netuno em um navio durante festa a
fantasia, doravante, nos interessou aquelas em que está na casa da rua Buri. Outras cenas
corriqueiras que revelam a intimidade da família em sua residência são atestadas, por exemplo, pelos
registros da gravação do filme "Certas Palavras", documentário dirigido por Maurício Beru sobre a
trajetória musical de Chico, Em uma das fotos, o historiador está sentado à mesa saboreando uísque
ao lado do músico e de Vinícius de Morais. Em outra, aparece ao fundo, do lado direito da imagem,
novamente ao lado do Poetinha, ambos cercados por refletores e pessoas de pé em volta à
esquerda, só que dessa vez observando Toquinho, que está de costas e em primeiro plano. Já em
uma das sequências do filme, na qual Vinícius de Moraes reconstrói a história da canção "Samba de
Orly”, é possível vermos em viradas de câmera Sérgio Buarque em movimento, talvez um dos poucos
registros desse tipo acessíveis aos pesquisadores
420
SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In:
SEVCENKO, Nicolau (org). História da Vida Privada no Brasil 3: Republica: da Belle Époque à Era
do Rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 457.
185

leituras, a máquina de escrever. Esse pequeno museu da posteridade, àquela altura


aberto apenas para uns poucos, foi nos idos de 1972 descrito da seguinte forma
pelo jornalista Jorge Andrade:

Nas estantes, entre livros, microfilmes de toda a correspondência dos


representantes diplomáticos americanos no Brasil de 1809 a 1906. Sobre
uma mesa, um vigor grande de microfilmes. Esparramados entre os livros –
como num bric-à-brac –, vidros de colírio Moura Brasil, envelopes de Engov,
lápis, adesivos, cinzeiros, um vidro de Agarol, Sonrisal, fósforos, latas de
leite em pó, garrafas de uísque, remédios para dormir e outros para o
manter acordado.421

As fotografias contidas nos arquivos públicos e privados só recentemente


foram estudadas de maneira mais consistente, já que há nesse tipo de acervo o
predomínio dos documentos escritos. Ainda hoje, como aponta um estudo, se
discute se as fotografias deveriam ser consideradas documentos de arquivo,
considerando que sua forma de constituição estaria mais próxima dos itens de
coleção.
Grosso modo, os materiais visuais são tradicionalmente vistos como
autorreferentes, imagens de "alguma coisa”, sem conexão clara com o restante do
arquivo, com a entidade produtora e responsável pela existência do conjunto. A
hegemonia do valor factual, de acordo com Aline Lopes de Lacerda, determina o
tratamento a elas aplicado, e, a despeito do tipo de acervo que se tenha em mãos,
os esforços para a identificação, a descrição dos materiais são sempre direcionados
para fotos, pessoas, lugares e épocas retratadas. 422
Essa forma de tratamento é observada na composição do Fundo Sérgio
Buarque de Holanda. Elencadas na Série Vida Pessoal, esse conjunto, mesmo não
separado do restante dos documentos escritos, tem o claro intuito de dar
materialidade a um esforço biográfico, deixando de lado, por exemplo, questões
referentes à função original para o qual esses documentos foram produzidos. Em
outras palavras, ao mapear, indicar, localizar, inscrever, datar e descrever lugares,
momentos e personagens, num intenso trabalho de memória, D. Maria Amélia
reconstruiu histórias e atribuiu sentidos e significados a eventos que sustentam a

421
ANDRADE, Jorge. 42 anos a.C: um Buarque antes de Chico, o perfil de um dos maiores
historiadores brasileiros. Realidade, nº 75. São Paulo, 1972. Apud: WEGNER, Robert. Latas de leite
em pó e garrafas de uísque: um modernista na universidade. In: MONTEIRO, Pedro Meira;
EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas/SP; Rio de
Janeiro: Editora da Unicamp/EdUERJ, 2008. p. 495.
422
LACERDA, Aline Lopes de. A imagem nos arquivos. In: TRAVANCAS, op.cit., p. 58.
186

autoimagem e a memória do marido, garantindo pelo acervo visual a naturalidade


testemunhal necessária a versão oficial que se queria à posteridade.
Outras práticas de autoarquivamento podem ser vistas na Série
Correspondências. Nesse caso, indaga-se por que mesmo "desinteressado" de uma
"construção de si”, o intelectual teria se ocupado, ao longo de décadas, na
manutenção de papéis com grande valor simbólico, como as cartas modernistas que
recebeu de Mário de Andrade 423, Manuel Bandeira, outras de historiadores
importantes como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Richard Morse, Thomas
Skidmore, Lewis Hanke ou de amigos bem próximos e não menos célebres como
Antonio Candido, Octávio Tarquínio de Sousa, Rodrigo Melo de Franco Andrade,
Rubens Borba de Morais, Vinícius de Moraes, entre outros?
Sabemos que não foram poucas vezes que os carteiros tiveram que se
dirigir à Avenida Atlântica, esquina com a Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, à
Via San Marino, 12, apartamento 2, em Roma ou à Rua Bury, 35 no Pacaembú em
São Paulo, entre outros endereços, procurando por um tal Dr. Sérgio Buarque de
Holanda, às vezes grafado como “Hollanda", para lhe entregar pacotes com
encomendas de livros, bilhetes, postais ou cartas. Imagina-se que o intelectual fosse
constantemente interrompido em seus afazeres sempre que o sino da campanhia
anunciasse mais uma entrega, em muitos casos recebidas primeiramente por D.
Maria Amélia.
Não raras também eram as cartas que faziam menção à família toda, nos
dando a certeza de que os Buarque de Holanda viviam na mais completa harmonia,
como visto nas despedidas, onde os amigos enviavam as mais cordiais saudações
de lembranças e saudades, a exemplo desta, recebida por Sérgio em 16 de agosto
de 1959: "Na espera da sua resposta, aqui fico, recomendando-me muito a Maria
Amélia, afilhada e demais rebentos, e mandando a você um forte abraço, mais
admirativo depois da espinafrada na competente canalha corruptora. Antonio
Candido”.424
As cartas recebidas por Sérgio vinham de muitos lugares. Às vezes de
pertinho, da mesma cidade em que residia; por outras de bem longe, como Buenos
Aires, Santiago, Viena, Sevilha, Paris, Avignon, Chicago, Londres, Roma, Siena,

423
Esse conjunto de poucas cartas, que não chegam a duas dezenas, foi muito bem organizado por
Pedro Meira Monteiro e publicadas no livro, Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:
correspondência. São Paulo: Companhia das Letras; EdUSP; IEB, 2012.
424
Correspondência passiva, Cp 220, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
187

Belgrado, Lisboa, Bourg-la-Reine, Genebra e tantos outros, indicando o ímpeto


cosmopolita do historiador. Indícios razoáveis para pensarmos que o historiador quis
legar à posteridade “um pequeno museu para o resto do mundo” 425, além de
consolidar a "auto-imagem" de “mestre”, atribuída e amplamente divulgada por seus
discípulos e pares como podemos aferir a partir da leitura do instigante livro de
Françoise Waquet, “Os filhos de Sócrates”.426
Sérgio recebia muito mais cartas do que as enviava, 427 como podemos
observar na leitura de seu inventário ou de algumas cartas em que o remetente
cobrava notícias suas, dizendo que só as tinha por terceiros, lembrando da última
vez em que se falaram por telefone ou que lhe pediam agilidade nas opiniões de
temas de trabalho e na entrega de textos que envolviam prazos. Sabiam eles que as
respostas poderiam demorar um bocado. É o que lemos, por exemplo, numa
correspondência de Luís da Câmara Cascudo, datada de 20 de maio de 1953,
enviada de Natal, época em que Sérgio encontrava-se como adido cultural em
Roma.
Nela o intelectual potiguar “obsequiava” do amigo um pequeno texto
sobre o “desconhecido Príncipe Adalberto da Prússia”, que havia publicado um livro
chamado "Minha viagem ao Brasil" para inserir no seu "Antologia do folclore
brasileiro”, segundo volume: “(...) Agradeceria muitíssimo a gentileza de uma sua
resposta urgente porque o trabalho fica interrompido até que tenha uma sua
decisão. Com todos os votos de felicidade e os antecipados agradecimentos do
velho e fiel admirador e confrade”.428
Prática comum no meio intelectual brasileiro da primeira metade do
século XX, as correspondências tornaram-se, na última década, objetos/fontes
privilegiados de pesquisas nas mais diversas áreas, dentre as quais a história e a
crítica literária. Nesse sentido, cada vez mais comuns são as publicações de

425
Achei a expressão apropriada para esse capítulo. Ela foi retirada de um artigo da professora
Jeanne-Marie Gagnebin, O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. Revista Pro-Posições, v. 13
n. 3 (39), set- dez., 2002, p. 133. A expressão, segundo ela, é de autoria do artista russo Ilya
Kabakow.
426
WAQUET, Françoise. Os filhos de Sócrates. Filiação intelectual e transmissão do saber do
século XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
427
No inventário do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências, são indicados um
total de 379 cartas. Dessas, apenas 11 são cópias de cartas enviadas pelo titular. Na Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, localizei outras 6 cartas enviadas por Sérgio entre 1929 e 1954,
coincidentemente, períodos importantes de sua formação intelectual, que remetem às experiências
alemã e italiana. Outras tantas devem estar na guarda de parentes ou de amigos próximos, não
sendo possível localizá-las.
428
Luis da Câmara Cascudo, Cp 121, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
188

coletâneas de cartas que, junto com os diários, as biografias e autobiografias,


ganham cada vez mais espaço nas vitrines das livrarias, movimentando o mercado
editorial e, ao mesmo tempo, aguçando a curiosidade e a imaginação dos
pesquisadores e dos leitores comuns.
Por não serem simples fontes de informação, as correspondências
constituem um tipo específico de escrita própria, bem como os diários, as biografias,
as autobiografias, os arquivos pessoais e as memórias. São registros produzidos no
âmbito do privado que podem revelar vestígios de trajetórias de vida, de redes de
sociabilidade intelectual e política, de personagens importantes ou de anônimos. E
fornecer subsídios para uma história das práticas culturais, que na última década do
século XX, passou a reconhecer novos objetos, fontes, metodologias e critérios de
verdade histórica.429
No que envolve a criação de uma cultura epistolar, o século XIX pode ser
visto como o século das correspondências. Para alguns estudiosos, o hábito
epistolar difundiu-se por diversas camadas sociais, tanto na Europa como na
América e a escrita de cartas - que podiam ser de amizade, amor, familiares,
pedidos, recomendações, trabalho, conselhos, censura, queixas, louvor,
agradecimentos, etc. - buscava satisfazer o ímpeto de intimidade e privacidade que
acompanhava o estabelecimento da ordem burguesa no Ocidente. 430
Reveladoras, sobretudo, de fragmentos da vida íntima dos interlocutores,
de momentos perdidos no tempo após a sua composição, as cartas sempre
suscitaram, em seus autores ou destinatários, sentimentos ambivalentes de desejo
de preservação ou de destruição. Desse modo, o desejo de salvar vestígios de
vidas, de laços estabelecidos, de afetos experimentados permitiu que elas
sobrevivessem silenciosas em arquivos pessoais, muitos deles hoje abertos ao
público.
Se por um lado as fontes epistolares demonstram-se verdadeiros
"tesouros" ao gosto dos pesquisadores, por outro uma análise mais acurada desse
tipo de documento impõe, em geral, certos cuidados de rigor metodológico, em
especial quando personagens ilustres, intelectuais, políticos, celebridades passam a
ser o foco da devassa e objeto de debates promovidos por jornalistas, historiadores,

429
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In: _____. (Org).
Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. pp. 13-14.
430
MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINKY, Karla Bessanezi; LUCA, Tânia Regina
de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.
189

ensaístas, literatos e curiosos, dentro ou fora do espaço acadêmico. Nesse sentido,


uma autora chama especial atenção para o fato de que a dificuldade é proporcional
à relevância social, política ou cultural do correspondente em pauta, pois, no caso de
figuras públicas, torna-se mais difícil o trato com a quantidade e a dispersão dos
conjuntos documentais a serem reunidos, além de ocorrer um confronto com a
imagem do indivíduo já construída e consolidada pela memória e pela História. 431
No que foi exposto, é importante ressaltar a fragmentação desse tipo de
fonte/objeto. Não raro, as cartas se inserem nos arquivos como séries documentais
dispersas, pois, quando chegam ao pesquisador, tanto podem ter sofrido uma
seleção prévia por parte da família ou donatários que têm por interesse a
conservação de uma memória oficial do correspondente ou terem sofrido restrições
por parte do próprio autor que, por motivos variados, não guardava as cópias das
cartas que enviava, tampouco todas as que recebia. Por esses motivos, muitos
diálogos epistolares sofrem espaçamentos temporais ou tornam-se unilaterais,
devendo o historiador tentar complementá-los com outras fontes.
Em síntese, antes de se tornarem publicáveis ou comporem arquivos
institucionais abertos à curiosidade da pesquisa, as cartas, vistas como exemplo,
assim como os demais papéis do titular, passam por um criterioso processo de
escolha, seleção, que podem envolver familiares, no caso daqueles que já partiram,
os próprios envolvidos quando vivos ou ainda regras arquivísticas específicas
provenientes de cada instituição acolhedora, numa dinâmica de triagem daquilo que
vai ser preservado e do que será apagado, descartado, conduzindo, assim, à escrita
de uma memória que restará no tempo, ato político de construção de si ou do outro
que cabe ao pesquisador atento decifrar.
Assim é que podemos dizer que Maria Amélia foi uma das principais
memorialistas do marido. Atuando nos bastidores, foi ela quem primeiro se
preocupou com os "jogos de passado e de futuro”; em outros termos, com atos de
lembrança e esquecimento, já que conhecia de perto a dinâmica de trabalho de
Sérgio. Ela costumava acompanhá-lo, por exemplo, em pesquisas de campo,
chegando a dirigir o Fusca da família de São Paulo a Cuiabá, sendo responsável por
copiar passagens inteiras de documentos que o historiador encontrava em arquivos
visitados e, também, pela datilografia de muitos de seus escritos.

431
Idem., p. 203.
190

A viúva, por exemplo, tinha o hábito de ter conversas constantes com


amigos próximos da família toda a vez que a memória de Sérgio era evocada. Foi
assim quando participou ativamente da montagem de exposições fotográficas paras
as “Semanas Sérgio Buarque de Holanda” 432 e “Sérgio, o Renovador"433 ou quando
confiou a José Sebastião Witter, ex-orientando e assistente do marido na USP,
como mostramos acima, os manuscritos de "O Extremo Oeste”, seu último livro.
Inacabado, o texto original foi profundamente revisado por Witter, vindo a público
somente em 1986, pela editora Brasiliense e contando com uma cerimônia de
lançamento. No Fundo há alguns documentos a respeito dessa obra, como os
originais entregues posteriormente pela família à Unicamp.
Originais também foram entregues por Cecília Buarque a Francisco de
Assis Barbosa, que em 1988 organizou em parceria com Antonio Candido, um livro
inédito com os chamados “textos de aprendizado” do irmão, artigos que ele publicou
simultaneamente em “O Jornal” e no “Diário de Notícias” quando morou na
Alemanha.434 Cecília juntou atenciosamente cada um desses artigos, tendo o
cuidado de localizá-los nas páginas dos jornais, recortá-los e depois colá-los em um
caderno grande de capa dura, inscrevendo no tempo os momentos importantes da
vida do irmão, demonstrando por meio desse gesto, a preocupação da família com a
organização e a guarda da memória de um intelectual em ascensão.
A mesma sorte já não teve a tese de mestrado do historiador, defendida
em 1957 na "Escola Livre de Sociologia e Política”, pouco antes, portanto, do seu
famoso concurso de cátedra na Universidade de São Paulo. O inédito foi encontrado
nos arquivos da Unicamp pelo professor Edgar de Decca, quando este organizava
pesquisa para as celebrações do centenário de nascimento de Sérgio, em 2002.
"Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos
Descobrimentos”, título da dissertação, teve a publicação vetada por Maria Amélia,

432
Anotações com sugestões de Maria Amélia Buarque: trechos selecionados de cartas de artistas e
acadêmicos enviadas a SBH e entrevistas sobre ele para composição da IV Semana Sérgio Buarque
de Holanda. São Paulo, 1985. Hp 167, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
433
Sérgio, Renovador, op.cit. Nos agradecimentos podemos ler: “À família Buarque de Holanda, em
especial a Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda e a Cecília Buarque de Holanda, que gentilmente
cederam por empréstimo a maior parte dos documentos”.
434
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:
Rocco, 1988. O livro é dividido em 3 partes: a primeira, com introdução de Barbosa, contém textos de
Sérgio de sua “fase modernista”, dentre eles os famosos “Originalidade Literária” e “O lado oposto e
outros lados”; a segunda parte é apresentada por Antonio Candido que reedita um texto seu já
publicado, “Sérgio em Berlim e depois” e praticamente imprime o caderno que foi organizado por
Cecília, que apresenta a famosa entrevista “Thomas Mann e o Brasil”; por fim, a última parte tem a
apresentação de Manuel Bandeira.
191

seguindo recomendações expressas do marido, que segundo consta, jamais quis a


circulação desse trabalho.435 Uma atitude clara de apagamento dos rastros e que
incide diretamente sobre o ofício de muitos historiadores. Num país de dimensões
continentais e de contrastes materiais visíveis, a consulta in loco na Unicamp da
única cópia disponível do material, como quis a família, relega à margem desse
silêncio um sem número de pesquisadores interessados na compreensão da
interpretação do Brasil feita por Sérgio. 436
A publicação desse estudo seria uma demonstração de “política da justa
memória”437, porque sua importância para além do ineditismo, inclusive como um
texto literário nunca explorado, se deve ao fato de ser uma peça importante no
pensamento histórico de Sérgio, materializado em 1936, com "Raízes do Brasil" e
ampliado até 1958, com "Visão do Paraíso”, que aliás lhe deve um pedaço. 438 Nesse
inédito, Sérgio aprofunda alguns temas como o da adaptabilidade dos portugueses a
outros povos como árabes, italianos e africanos que circulavam na cosmopolita
Lisboa da época pré-descobrimentos. Foi desse entrecruzamento cultural que
emergiu, por exemplo, a figura do aventureiro, acostumado a lidar com conflitos e
diferenças, fator importante para o êxito resultante das grandes navegações.
Mesmo com o Antigo Regime instalado, o desenvolvimento burguês
comercial de Lisboa havia criado uma sociedade menos estratificada, possibilitando
aos sujeitos sociais uma mobilidade vertical e horizontal muito grande, os habilitando
a uma aventura desse porte. 439 Uma espécie de mal de origem – tão fundamental na
imaginação negativa do que foi a formação do Brasil contemporâneo – se explicita,

435
Entrevista com Edgar de Decca. Jornal da Unicamp, Edição 232, 5 a 12 de outubro de 2003.
Durante a entrevista, De Decca chegou a mencionar que a publicação do texto estava sendo
negociada com a família, todavia, o trabalho continua inédito e pouco conhecido mesmo dentro do
ambiente acadêmico.
436
Em suma, esse escrito escondido no arquivo é a peça que falta naquilo que foi indicado por De
Decca como dois projetos complementares feitos por Sérgio: um de compreensão das origens, visto
nas três obras – “Raízes”, “Elementos Formadores” e "Visão do Paraíso” – e outro de entendimento
da constituição do território, "a constituição de uma cultura do adventício. Assim, 'Caminhos e
Fronteiras' é aquilo que move e aquilo que limita; 'Monções' também é algo que te leva; o 'Extremo
Oeste' é até onde essa fantasia pode se estender. Existe claramente uma unidade”. Entrevista, op.cit.
437
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2007. p. 17. Essa expressão é utilizada por meio de uma livre apropriação da ideia original do autor.
438
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008.
439
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época
dos Descobrimentos.
192

portanto, na ideia de que "a colonização portuguesa funda uma sociedade voltada
para fora, incapaz de desenvolver-se com vistas a si mesma". 440
Para terminar, passamos ao último ponto do capítulo, o que trata do papel
da equipe arquivística na constituição desse Fundo, a última das várias mãos a que
nos referimos. Como mencionado, o Fundo se formou durante o processo de
reestruturação institucional em curso na Unicamp, que formalizou, entre outros
órgãos, o Arquivo Central. O modelo adotado pela instituição resultou de uma
política de valorização e formação de seus quadros internos de pessoal, posta em
prática por meio de uma série de intercâmbios e estágios de formação em
importantes centros de referência no país.
A partir do testemunho de Neire Rossio é possível acompanharmos as
principais influências recebidas pela equipe arquivística na elaboração narrativa
desse Fundo. Ela lembra que o primeiro estágio que fez foi realizado no Instituto de
Estudos Brasileiros-IEB sob a tutela de Heloisa Liberalli Bellotto, professora da USP
e na época responsável pelo arquivo do órgão. Durante a sua passagem, além do
contato com arquivos pessoais, conheceu os principais teóricos do campo
arquivístico de então, tais como o americano Theodore Schellemberg, os
canadenses Carol Couture, Jean-Yves Rousseau e as espanholas Vicenta Córtes
Alonso e Heredia Herrera.
Em seguida realizou estágios no Arquivo Público Municipal de São Paulo,
onde conheceu as discussões e a minuta do projeto do "Sistema Municipal de
Arquivos” e no Arquivo do Estado de São Paulo, onde trabalhou com o Fundo Júlio
Prestes, participando de reuniões em que pôde acompanhar as discussões sobre
aspectos da teoria arquivística europeia e americana, vindo a conhecer os projetos
da criação do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo e do município de Rio
Claro.
Já no Rio de Janeiro ela visitou a "Fundação Casa de Rui Barbosa" e o
CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Foi nessa época que Neire Rossio passou a
coordenar a Divisão de Documentação do Centro de Informação e Difusão Cultural
da Unicamp, que mais tarde deu origem ao Arquivo Central do Sistema de Arquivos
daquela universidade. Em posse dos documentos de Sérgio, a opção da equipe do

440
MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda.
História da Historiografia, n. 6, março de 2011. p. 226.
193

Arquivo foi de estabelecer um programa descritivo levando em conta item a item


documental, com a finalidade de elaborar um inventário.
Resultante de um denso processo de descrição, o inventário reúne
verbetes e informações que levam o pesquisador a percorrer o acervo de
documentos “produzido e reunido por Sérgio Buarque durante sua vida e por
aqueles que se dedicaram a reler a sua obra”. Disposto desde 1991 a pesquisadores
e publicado pela primeira vez em 1995 na rede de dados da Unicamp, esse
documento permaneceu em construção durante muitos anos e contou com a
colaboração de pesquisadores do próprio acervo, que se dispuseram a revisar
verbetes, e da família que vez ou outra foi procurada para ajudar a identificar
pessoas e a contextualizar fatos.441
O inventário, esse importante instrumento de consulta por meio do qual o
pesquisador tem acesso à descrição das unidades documentais do fundo, é
importante porque pode revelar a “biografia do arquivo”, numa perspectiva em que
ele se transforma em objeto. Em outra acepção, o inventário constitui um tipo de
narrativa biográfica sobre o titular, à medida que ele opera um encadeamento dos
fragmentos que registram a sua trajetória, dotando-a de uma inteligibilidade
específica, induzindo o olhar ou os rumos da pesquisa histórica. Há ainda a
possibilidade de entendimento do inventário como a história da construção do
conjunto documental considerado o “arquivo" de uma entidade, seja pessoal ou
institucional.442
A esse respeito, alguns autores vêm chamando a atenção para o “mito da
neutralidade” do trabalho arquivístico, propondo que a subjetividade de que se
revestem essas intervenções contribuam para uma crítica dos arquivos e,
consequentemente, para a abertura de um debate sobre conceitos como “fonte”,
“prova" e “autoria" nas pesquisas baseadas em documentos históricos. Isso porque,
ao conferir historicidade ao arquivo-fonte, revelando o caminho seguido no seu
tratamento, o arquivista assume sua condição de agente do processo de construção

441
Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central do Sistema de Arquivos, Área de
Arquivo Permanente, Campinas, março de 2013.
442
CUNHA, Olívia. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, jul-dez. 2005, p. 7-32; HEYMANN Luciana. Indivíduo,
memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, 1997, pp. 41-66; RANDOLPH, John. On the biography of the
Bakunin Family Archive. In: BURTON, A. (org.). Archive histories: facts, fictions and the writing of
History. Durham & Londres: Duke University Press, 2005, pp. 209-231, Apud, HEYMANN, Luciana.
Arquivos Pessoais em perspectiva etnográfica, In: TRAVANCAS, op.cit, pp. 67-76.
194

da memória, fornecendo elementos que podem orientar de forma diferenciada o


acesso do pesquisador aos documentos. Essa postura crítica só recentemente vem
ganhando espaço nos meios acadêmicos, uma vez que os estudos sobre arquivos
pessoais, pensados na perspectiva de objetos, ainda são em número escasso no
país.
Os poucos investimentos nessa direção apontam para o processo de
constituição do conjunto documental pelo titular e seus herdeiros, examinando os
esforços para projetar na documentação a imagem que gostariam de ver preservada
por meio do arquivo, mais do que os efeitos do tratamento arquivístico na imagem
projetada pela fonte documental com relação à trajetória do seu titular. Essa falta
reflete a “invisibilidade” da interferência do arquivista nesse processo, que é
alimentada, por sua vez, pelo desinteresse do usuário acadêmico pelas atividades
associadas à competência “técnica", o que faz com que o aparato por meio do qual
ele acesse os documentos se torne “transparente”, levando-o facilmente às
armadilhas da “ilusão biográfica"443 propiciadas por esses tipos de arquivo.
Nesse sentido, a custódia do arquivo de Sérgio por uma instituição de
pesquisa e pensamento crítico como a universidade não conseguiu neutralizar
completamente as demandas e projeções futuras do titular e de seus herdeiros
sobre ele. Sobretudo se considerarmos os efeitos desse arquivamento na
revitalização de sua obra, vistos na vasta fortuna crítica que se formou e nos muitos
inéditos de sua autoria que passaram a veicular no âmbito acadêmico a partir da
década de 1990, reforçando do ponto de vista documental o que a memória póstuma
já havia esboçado na década anterior.
É a partir desse conjunto, arquivo e biblioteca que se constituiu a memória
material de Sérgio Buarque de Holanda. Dele é que emergiu a historiografia que o
constituiu como personagem, como objeto, como texto, produto de uma operação
criteriosa de poder com base na escrita. Essa, que foi durante muito tempo
considerada como o rastro mais duradouro deixado pelo homem, uma marca capaz
de sobreviver à morte do seu autor e de transmitir uma mensagem 444. A sua aura de
duração, muitas vezes empregada como sinônimo de rastro, continua até hoje
imbuindo as grandes bibliotecas, esses santuários da memória universal, ou nutrindo

443
Refiro-me ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique, publicado em 1986 nas
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72.
444
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. Revista Pro-Posições, v.
13 n. 3 (39), set-dez., 2002, p. 128.
195

alguns escritores do sentimento de que deixarão uma marca imortal. Um rastro


duradouro nas ulteriores gerações, como se os seus textos fossem lídimos refúgios
contra o esquecimento e o silêncio, contra o desdém da morte.
Não fosse a vontade de memória e o esforço de um dado tempo histórico
em constituí-la, quem sabe os rastros deixados por Sérgio não se abeirassem
apenas dos restos, dos detritos, da sucata, do lixo, imagem afamada do chiffonier,
de Baudelaire e, assim, descrita por Walter Benjamin:

“Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu
assunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um
tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire
tão assiduamente. (...) Aqui temos um homem - ele tem de recolher os
restos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o
que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga,
ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum da
escória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe,
como um avarento, um tesouro, o lixo que, mastigado pela deusa da
Indústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.' Essa descrição é uma
única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de
Baudelaire. Trapeiro e poeta - os dejetos dizem respeito a ambos; solitários,
ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam
ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé
(passo intermitente) de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade
procurando a presa de rimas; deve ser também o passo ao trapeiro que, a
todo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em que
tropeça”.445

Embora remeta à modernidade a imagem do trapeiro que explica a do


poeta, já que ambos buscam na rua e no lixo os seus temas de sobrevivência e de
arte, evoca situações que se assemelham hoje, de modo figurativo, ao trabalho do
historiador. O descartável, isto é, restos que não interessam mais ao presente, serão
salvos pelos arquivos, criados porque não há mais a memória espontânea. Neles o
historiador os recolhe, festeja o descartável, a sucata, os objetos indesejáveis, os
trapos, míseros fragmentos de indivíduos ou de grupos.
Solitário, muitas vezes, o historiador procede como lhe impõe seu mister.
Na montanha de lixo ele cataloga, compila, separa. Como um avarento, vê ganhos
naquilo tudo e transforma o descartável em matéria-prima. Dela resultará sua
narrativa, não aquela que garantiria a tradição, a continuidade entre gerações, como
a de Homero entre os gregos. Antes, uma escritura que será política, autoritária ou

445
BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Capítulo "A Modernidade". In:
______. Obras Escolhidas III. Tradução (modificada) de José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1989. pp. 78-79.
196

de resistência, conforme o gosto, mas que será, no porvir, um campo de disputa da


memória.
Por essa perspectiva, pensar no que foi deixado por Sérgio Buarque de
Holanda nos remete a interrogar sobre a intencionalidade ou não dos rastros ou
traços que deixou o notável escritor. Marcas que remetem a uma tendência
frequente das sociedades atuais, qual seja, o ímpeto comemorativo, como nos
chamou a atenção Pierre Nora ao afirmar que “nenhum cientista, nenhum escritor,
nenhum artista teria a menor possibilidade de salvar-se do radar comemorativo”,
tantos eram os aniversários de nascimento e morte que geravam eventos de
comemoração.
Ímpeto observado nas diferentes estratégias de consagração que
garantiram a Sérgio não apenas lugares de memória, mas um lugar na história, da
historiografia, da crítica literária e no campo das esquerdas. Imagem póstuma, cuja
gênese encontramos nos elogios fúnebres, na fortuna crítica comemorativa da
década de 1980 e nos eventos acadêmicos que ainda hoje celebram o autor. Caso
contrário, sem essa vigilância comemorativa, a história depressa o varreria e talvez
não nos fosse possível elaborar um dos exercícios centrais desta tese, o de buscar
nos silenciamentos e, numa leitura às avessas desses rastros, uma possibilidade de
reconstituir as condições de elaboração dessa memória.
197

Considerações finais

Esta tese buscou elaborar uma leitura alternativa à tradicional fortuna


crítica de Sérgio Buarque de Holanda, tendo como mote os debates estabelecidos
nos campos da História Intelectual ou dos Intelectuais e da Memória. 446 Por essas
trilhas, em especial no Brasil, além dos já consagrados expoentes de nossa
“moderna historiografia”, pesquisas recentes passaram a cotejar, como objetos, os
historiadores, literatos e demais intelectuais ditos do “segundo time”, favorecendo a
crítica de uma memória instituída em nossa disciplina. No caso de Holanda, não
questionamos o seu mérito e contribuição às nossas letras, antes a persistência de
publicações comemorativas, reedições de livros, coletâneas de artigos e até análises
que insistem na trivial fórmula jovem modernista/fundador do PT. Como se sua
biografia fosse dotada de sentido programático, mesmo que a atual paleta de cores
da historiografia exija dos pesquisadores formas e cores variadas.
Isto posto, buscamos compreender o porquê de Sérgio Buarque de
Holanda ainda exercer a mesma “fascinação" 447 de outrora em certas instâncias de
produção acadêmica, como a USP, por exemplo. Mostramos ao longo do texto que
ainda há uma “obsessão comemorativa” e um “monopólio da memória” em torno da
sua figura e de seus escritos, sobretudo “Raízes do Brasil”, fenômeno este iniciado
na década de 1980 e sem prazo de validade.
Basta retomarmos, por exemplo, o fato de que vieram à público, durante a
realização da tese, mais de uma dezena de novos títulos com Sérgio na capa,
incluindo, entre eles, muitas reedições suas, estudos de caso, coletâneas de textos
avulsos e entrevistas, além de outros tantos que tratam de obras específicas. Como
não pensar nesta “obsessão comemorativa” quando Chico Buarque revela, em cores
446
Essa temática continua em voga. Basta ver o Dossiê “História Intelectual” do último número da
Revista Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun, 2015, lançado logo após o término da redação da tese.
Em especial vale mencionar o artigo de Cláudia Wasserman, "História Intelectual: origens e
abordagens",pp.63-79.http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/issue/view/744/showToc
447
O termo fascinação denota um tipo de encantamento intelectual, uma sedução, uma paixão. Ideia
apropriada de Sérgio da Mata em seu livro sobre as origens da obra de Max Weber. Segundo o autor,
quem primeiro teria usado a expressão “fascinação" ao se referir ao autor alemão, teria sido Nelson
Werneck Sodré, nos idos de 1950. O termo ainda remete à ideia de “culto de fé”, segundo a
concepção de Edgar Zilsel, citada por Mata, o qual aponta que, “parte substancial de nossos literatos
(…) satisfaz suas necessidades religiosas exclusivamente na forma de culto ao gênio”. MATA, Sérgio
da. A fascinação weberiana. As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
p. 12.
198

literárias, segredos familiares por muito tempo guardados, como a existência do seu
“Irmão Alemão”, apresentando documentos que desmontam a versão meramente
memorialística da passagem de seu pai por Berlim, causando frisson no mercado
editorial? Ou quando Antonio Candido insiste nesta mesma memória em um evento
celebrativo aos cinquenta anos do IEB?
Não seria exagero, então, afirmar que houve por parte de um pequeno
grupo de amigos e ex-orientandos o rearranjo da esparsa obra buarqueana, tanto
histórica quanto crítica, bem como o ajuste de seu perfil biográfico à esquerda,
levando em conta o envolvimento de alguns desses intelectuais com a fundação do
PT. Ou foi mero acaso que o Centro de memória política do Partido escolheu o
historiador como homenageado? O certo é que virou memória a versão de um
intelectual politicamente combativo, de posicionamento radical, anti-autoritário,
democrático, o maior de nossos historiadores, chegando sua obra em alguns casos
a ser lida como um sofisticado exemplo de história social dos excluídos, avant la
lettre.
Todavia, a leitura de algumas fontes apontou se tratar de um personagem
bem diferente, visto muito mais como um humanista e erudito, cuja obra naquele
início de década, além de esparsa, tinha pouco alcance nos meios acadêmicos fora
da órbita paulista. Daí a afirmação de Francisco Iglésias de que “Sérgio ainda há de
ser reconhecido em seu devido valor”. Se hoje o passado do historiador vive preso
nesse presentismo eterno, isso muito se deve a essas estratégias de consagração.
Um estudo recente mostrou que de nada vale a excelência de uma obra,
sem a existência de mediadores dispostos a mobilizar recursos capazes de garantir
a construção e a manutenção do “estatuto de clássico” de um determinado autor,
caso contrário muitos deles poderiam se desmanchar no ar. 448 Não foi apenas por
saudade, portanto, que intelectuais como Antonio Cândido, Francisco de Assis
Barbosa, José Sebastião Witter, Fernando Novaes, Francisco Iglesias, Maria Odila
L. da S. Dias, Laura de Mello e Souza, entre outros, elaboraram e sustentaram
versões que ajudaram a cristalizar o perfil oficial do mestre-amigo, materializado em
publicações póstumas de inéditos, coletâneas, reedições e enunciações em eventos
acadêmicos, sem contar a biblioteca e o arquivo, lugares funcionais dessa memória.
Embora persistente, essa evocação perdeu força na virada do século XXI.
Nessa época vieram à tona estudos críticos e contundentes resultantes de
448
Idem, p. 11.
199

pesquisas de fôlego em diversos programas de Pós-Graduação fora desse polo


irradiador e ancoradas de forma substancial na biblioteca e arquivo pessoal de
Sérgio. A partir de então, alguns estudos passaram e enxergar em seus textos, a
possibilidade de uma leitura historiográfica mais acurada, buscando suas influências
teóricas para além de "Raízes do Brasil”, a reconstituição de diálogos, suas práticas
de leitura, a influência de autores em sua prática crítica e historiadora, suas redes de
sociabilidade, seu papel como agente público e, o mais importante, muitas vezes
problematizando o status quo dessa memória.
Foi partindo dessa abertura de campo que este trabalho cotejou uma
história da memória, buscando no próprio recorte cronológico instituído pelos seus
detentores, possíveis silenciamentos concedidos à trajetória do historiador, como
visto em seus “dois projetos” intelectuais: o primeiro, de interpretação do Brasil
derivado de sua experiência militante no modernismo e, o outro, de divulgação da
História, praticada sem um fim político utópico, concretizado por meio de
publicações didáticas e pela sua atuação em instituições de ensino, pesquisa e
memória, a dimensão pública da sua militância relegada a uma atividade “menor",
para que depois fosse apreendido como um intelectual das esquerdas.
Buscamos demonstrar, também, que essa memória foi iniciada em vida
pelo próprio Sérgio Buarque de Holanda ao se constituir como objeto de sua própria
trama, tecida na guarda de papéis específicos, nas entrevistas concedidas no fim da
vida e em passagens autobiográficas de textos, como suas Tentativas de Mitologia. O
estudo desse material nos levou a sugerir que Sérgio Buarque buscou construir um
perfil de “mestre”, agrupando por meio de seus projetos, uma constelação
(inter)nacional de outros tantos historiadores e intelectuais, como acompanhamos
em suas correspondências, esboços de pesquisa ou livros autografados. Em vida,
vale lembrar, Sérgio não fez escola, mas deixou um valioso grupo de discípulos a
quem a família, por amizade, atribuiu o controle do seu passado biográfico.
A pesquisa também constatou que a memória de Sérgio Buarque não
sofreu qualquer embate de versões, já que foi criado um consenso em como narrá-
la. O que institucionalmente se disputou foi a sua herança material, composta de
uma valiosa biblioteca e um conjunto de móveis que originaram o seu escritório-
museu e o seu Fundo Pessoal. Nesse processo todo, o papel de D. Maria Amélia
como memorialista foi fundamental. Atuando nos bastidores, a viúva de Sérgio foi
quem primeiro se preocupou com atos de lembrança e esquecimento, já que
200

conhecia como ninguém a dinâmica de trabalho de Sérgio. Muitos registros


demonstram que ela costumava acompanhar o marido em pesquisas de campo, se
responsabilizando por copiar passagens inteiras de documentos e datilografando
muitos de seus escritos.
Para melhor discutir essas questões buscamos problematizar a questão
do arquivo, entendido como um objeto dotado de possibilidades narrativas e não
meramente um depositário institucional de memória. Daí concluirmos que, nem
mesmo a salvaguarda deste arquivo por uma instituição de pesquisa e pensamento
crítico como a universidade, conseguiu neutralizar completamente as demandas e
projeções futuras do titular e de seus herdeiros sobre a memória em questão.
Sobretudo se considerarmos hoje os efeitos desse arquivamento na revitalização de
sua obra, vistos na vasta fortuna crítica que se formou e nos muitos inéditos de sua
autoria que passaram a veicular no âmbito acadêmico a partir da década de 1990,
reforçando do ponto de vista documental o que a memória póstuma já havia
esboçado na década de 1980.
201

Referências Bibliográficas

ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de história intelectual. In: Tempo


Social Revista de Sociologia da USP. São Paulo: USP, v. 19, n. 1, jul.2007. pp.9-
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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Conferência - Ritual de Aurora e de


Crepúsculo: a comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e
multiplicado ou as antinomias da memória. Revista Brasileira de História (online),
v. 33, n. 65, 2013.

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