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Docência na universidade ultrapassa

preparação para mundo do trabalho


Ensinar e aprender é uma relação entre o que é
conhecimento no sentido epistemológico e o que é o
homem no sentido ontológico. Complexa, implica
responsabilidades que nem sempre estão presentes na
consciência do professor.
Profª. Drª Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira
Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Artigo publicado em "Docência Universitária: concepções, experiências e dinâmicas de
investigação". CERVI, G.M. e RAUSCH, R.B. (orgs). Meta Ed. 2014.

Introdução
A docência é uma atividade cujos significados para o aluno assumem proporções que
ultrapassam a sala de aula e perduram em sua formação. O que orienta os docentes
em sua ação pedagógica está vinculado com as respostas que ele dá àquilo que, para
ele, é o fim último da formação do aluno. O processo de ensino e aprendizagem
desenvolvido na universidade é um processo de formação do ser humano, do
profissional e do cidadão, isto é, de um indivíduo que desempenha vários papéis na
sociedade.

Não preparar para a autonomia no mundo de hoje, onde a comunicação é um dos


principais fatores de ação política, profissional e pessoal, é fazer do estudante um
servo do sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional
sem capacidade de pensar a sociedade. A aquisição de conhecimentos, dinamizada
pela ação docente e propiciada pelo currículo, pelas disciplinas, pelos conteúdos,
embora inicialmente não preveja um alcance maior do que o de fazer com que o
estudante adquira conhecimentos específicos, tem um substrato de permanência na
formação mais ampla do aluno. Assim, quer o professor tenha consciência ou não, sua
ação em sala de aula é uma ação de formação do homem, do profissional e do cidadão
e por isso, é uma ação que ultrapassa a sala de aula.

Neste texto vamos explorar questões que são pedagógicas no sentido mais amplo, isto
é, no sentido de formação do homem. Argumentaremos que a ação do docente na
universidade tem para o aluno significados que ultrapassam a dimensão de prepará-los
para o mundo do trabalho, pois o estudante ao apreendê-lo também está
desenvolvendo uma descoberta de si, do mundo social, profissional e cultural. O
ensinar e o aprender não é apenas uma relação direta entre conhecimentos e mente
conhecedora, mas uma relação complexa entre o que é conhecimento no sentido
epistemológico[1] e o que é o homem, no sentido ontológico[2]. Sendo uma relação
complexa, esta função fundamental da universidade se reveste de importância e
responsabilidades que nem sempre estão presentes na consciência do professor.
Discutir alguns aspectos dessa complexidade é a intenção deste texto.

Processo de ensino e de aprendizagem: duas faces de uma mesma moeda


Para o processo de ensino e de aprendizagem ser significativo para o indivíduo como
homem, profissional e cidadão, deve ter um compromisso com a preparação do aluno
para autonomia intelectual, emocional, social, cultural, política e profissional. A
formação para a autonomia do aluno, nesses vários âmbitos, é o propósito do ensino
na universidade desde a antiguidade e se reafirmou no modelo de universidade
moderna instituído por Humboldt (1997) ao organizar, em 1810, a Universidade de
Berlim[3], marco do modelo de universidade moderna.

Ao exercer a atividade docente, particularmente no nível da educação superior, o


professor deve responder para si algumas perguntas: Como eu quero ser professor?
Que formação quero dar ao aluno? Para qual universidade, ou seja, para que tipo de
instituição de educação superior? Para que tipo de sociedade? Com que ideia de
conhecimento estou trabalhando?

Parece óbvio que a resposta a essas questões seja: eu quero ser um professor que
ensina; um professor que faça o aluno aprender e crescer; um professor que permita
ao aluno construir seu conhecimento. Quero formar um profissional útil à sociedade,
que favoreça o desenvolvimento de seu país, que contribua para o avanço do
conhecimento e para uma sociedade democrática.

Estas respostas estão vinculadas a um processo mais crítico de ser professor e menos
ao histórico do papel de professor na tradição da educação superior brasileira. Nessa
tradição o professor, com raras exceções, entende que deve passar conhecimentos
técnicos e específicos de sua disciplina e do curso. É uma tradição ligada à cultura
universitária brasileira de única e exclusivamente formar profissionais para o mercado
de trabalho. Ao seguir a tradição de ensinar os conteúdos técnicos de uma área
profissional, o professor retoma a intenção que está vinculada com a definição do
termo “professor”. O termo professor tem raiz na palavra “professar”, que significa ter
a convicção, apregoar, reconhecer publicamente a validade do que é apresentado.
Assim, um professor “professa” saberes e conhecimentos sistematizados para alunos
que ainda não conhecem, para que estes os adquiram com a intenção de pô-los em
prática. Com esse entendimento, a relação que se estabelece em sala de aula entre
professor, aluno e conhecimentos é a de passar conteúdos. Cabe ao aluno apreendê-
los e reapresentá-los por ocasião das avaliações.

No entanto, a relação de ensinar e aprender que se estabelece na relação professor-


aluno é mais complexa que a simples transmissão de conteúdos, saberes e
conhecimentos específicos. É complexa por ser uma relação mediada pelo contexto
social, cultural, político e psicológico do professor e dos alunos. É complexa porque
engloba aspectos que se estabelecem em qualquer interação social, uma vez que a
ação docente é, além de educacional, uma ação social, psicológica e cultural. Os
aspectos emocionais imbricados nessa relação têm grande significado na construção
do conhecimento e são significativos tanto para os alunos que aprendem como para os
professores que ensinam. São relações de confiança, de agregação de valores, de
cultura, de empatia e de criação de elos afetivos.

A resposta à questão sobre para qual universidade o professor está ensinando é dada
baseada no conceito de universidade que ele tem, no seu entendimento sobre qual é o
papel desta instituição na atualidade. Normalmente o entendimento é o de que o
papel da universidade é o de formar profissionais úteis e necessários à sociedade. A
polissemia do termo útil nesta resposta pode nos levar a entender que estes
profissionais devem ser os que o mercado de trabalho necessita, respondendo assim,
às necessidades da sociedade e às necessidades do tempo histórico em que vivemos.
Muitos defensores dessa forma de pensar entendem que a razão de ser de uma
instituição de ensino superior é a de estar formando profissionais treinados e
habilitados para o mercado de trabalho imediato, e com isso, entendem estar
cumprindo o que chamam de ‘dever social da instituição de ensino superior’.

Essa lógica determina comportamentos e delineia expectativas sobre os papéis


desempenhados pelos docentes, pelas instituições e pelos alunos. Leva a entender que
se deve formar diplomados aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira. Nesse entendimento não há
lugar para o desenvolvimento do ser humano e da sociedade no sentido mais amplo e
não apenas o de mercado de trabalho. A ação docente fica limitada quando guiada por
esse entendimento reducionista, uma vez que é desenvolvida em conformidade com
as expectativas do papel docente na organização institucional. As expectativas de
papéis são estruturas fixas e estereotipadas que, se não forem rompidas, impedem a
transformação socioinstitucional, por assumirem caráter rígido e promoverem
situações institucionais que dificultam as condições para a mudança (DOTTA, 2006).

O docente que não se interroga sobre suas intenções ao ensinar terá suas atitudes
docentes guiadas por convenções externas, por imitação ou por padronização. A
vinculação principal do ensinar está nas respostas às questões que ele faz a si mesmo
sobre o seu propósito ao assumir a docência.

Docência e autonomia
Na universidade, o objetivo principal da formação do estudante é o de promover a
sua autonomia. Trabalhar a autonomia[4] é fazer o aluno adquirir autogoverno em
todos os âmbitos de sua vida pessoal e profissional. Filosoficamente o conceito de
autonomia implica na condição de liberdade que consiste na possibilidade do indivíduo
tomar suas próprias decisões com base em sua razão, em conhecimentos
fundamentados, em pensamento refletido, em conhecimento das possíveis
consequências da decisão escolhida, em seus valores e em sua cultura. Paulo Freire
(1996), em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, refere-se ao processo de contínua
construção da autonomia, como um processo “inconcluso” de formação do ser
homem. A “inconclusão” do ser humano é um movimento permanente de aprender e
se formar.
Newman (2001), um dos mais importantes estudiosos da universidade, um clássico da
literatura acadêmica cujos escritos estão influenciando a área da universidade desde o
século XIX, diz que a missão primeira da universidade é o compromisso com a
formação do homem para a autonomia e defende que é essa a essência da atividade
do ensinar na universidade.

Em Kant (1993), na obra “Conflitos das Faculdades”, obra voltada para a educação
superior, a questão da autonomia ganha força e centralidade. Defende o sentido de
autonomia considerando a formação da totalidade do ser humano e a racionalidade
em sentido mais amplo que o instrumental. Essa definição traz consigo uma
internalização das fontes morais, isto é, a fonte da força moral não pode mais ser vista
como exterior a nós e só pode ser explicitada pelo exercício da autonomia. Em Kant, a
ideia da natureza racional como fonte de dignidade humana e a própria ideia de
dignidade estão inseparavelmente ligada à ideia de autonomia.

A autonomia é, assim, o estado do indivíduo pleno como pessoa e profissional. O


compromisso do professor, particularmente no nível da educação superior, é com o
desenvolvimento da autonomia do estudante nas dimensões intelectual, pessoal,
emocional, social, profissional, cultural e política. Sendo estas as dimensões que
devem ser trabalhadas na educação superior, a ação pedagógica docente se estende
para muito além da ação de passar conteúdos, de treinar mentes e habilidades para
uma atividade profissional, de capacitar para um desempenho técnico eficiente
atendendo às necessidades do mercado de trabalho. Nessa dimensão, a ação
pedagógica deve atender às necessidades do indivíduo, da sociedade e da humanidade
– dimensões maiores do que a estreita especificidade técnica das competências
profissionais.

Ao olhar o ensino como ação pedagógica vinculada ao desenvolvimento da autonomia


como aqui descrita, o professor favorecerá que a educação seja feita para formação do
homem, como diz Kant (1996, p. 15) na obra “Sobre a Pedagogia” – outra de suas
obras voltadas para a questão pedagógica: “o homem não pode tornar-se verdadeiro
homem senão pela educação".

Para ilustrar um pouco mais a importância do ensino superior com questões mais
amplas que o simples propósito de formar profissionais, lembramos a famosa citação
de Stuart Mill em seu discurso na Aula Inaugural da Universidade de Saint Andrews,
em Londres, do início do ano letivo de 1867 (MILL, 1869/1999). A citação é longa, mas
seu conteúdo elucida a importância do papel do professor, da educação e da formação
do homem pela universidade antes que o profissional, já apontada naquela época:

Os homens são homens antes de serem advogados, médicos, comerciantes ou


industriais; se os fizerdes homens capazes e sensatos, eles se transformarão por si
mesmos em advogados ou médicos capazes e sensatos. Ao sair da universidade, os
recém-formados não devem levar consigo conhecimentos profissionais, mas aquilo
que é necessário para guiar o uso desses conhecimentos, para esclarecer os aspectos
técnicos de seu trabalho à luz de uma cultura geral. Sem formação geral, alguém pode
se tornar um advogado competente, mas não pode ser um advogado sábio. Acontece
o mesmo com outras atividades, mesmo as rotineiras. A educação pode fazer de um
homem um sapateiro mais inteligente, se tal deve ser o seu emprego, mas não lhe
ensinando a fazer sapatos; a educação chegará a isso pelo exercício intelectual que ela
impõe e pelos hábitos que engendra.

Com esta abrangência, o ato de ensinar se revela uma experiência ampla por ser um
processo de construção de identidade, de construção de conhecimento, uma relação
social, uma atividade política, uma função ética, uma ação criativa, uma prática com a
pesquisa. Lembrando novamente Paulo Freire (1996) e sua convicção sobre a
importância do ato de ensinar como um ato político: Freire argumentava que fazer do
ensino uma ação técnica é “amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no
exercício educativo: o seu caráter formador” (p. 37).

O domínio amplo do conhecimento, a capacidade de decidir, de processar e selecionar


informações, a criatividade e a iniciativa sempre foram objetivos da educação superior,
mas neste atual tempo histórico adquiriu maior intensidade. Dessa forma, a
autonomia para Giddens (1991) tornou-se uma necessidadeintelectual tanto quanto
uma necessidade emocional. Uma vez que os indivíduos precisam desenvolver uma
efetiva comunicação entre si, a autonomia traz a segurança do pensar e comunicar
suas próprias ideias. A falta de autonomia intelectual impede a criação de novas ideias
e no âmbito psicológico obstaculiza as discussões abertas e impede a manifestação
plural. Não preparar para a autonomia no mundo de hoje, onde a comunicação é um
dos principais fatores de ação política, profissional e pessoal é fazer do estudante um
servo do sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional
sem capacidade de pensar a sociedade.

A autonomia é também uma necessidade sociocultural, uma vez que a atual sociedade
traz um novo movimento cultural exigindo uma nova direção das relações políticas e
somente um indivíduo autônomo possui condições de entender as contradições do
mundo globalizado, questionando-as e agindo no sentido de canalizar as
oportunidades para mudanças qualitativas da sociedade (GUIDDENS, 1991).

Com essa dimensão do ato de ensinar, pode-se afirmar que todo professor deve
desenvolver uma reflexão crítica sobre sua prática docente. O professor que deixa de
refletir sobre ela trabalha de forma mecânica, repetitiva, sem pensar os significados da
relação ensino-aprendizagem no âmbito da formação do homem. Schön (1995),
baseado na teoria de Dewey, deu maior relevância ao desenvolvimento do conceito de
reflexão e sugere uma formação de profissionais reflexivos, dentre eles o próprio
professor. Nessa perspectiva, o ambiente universitário para o docente torna-se lugar
de investigação da própria ação docente. Para o autor, a reflexão-na-ação docente
(enquanto a desenvolve) e a reflexão-sobre-a-ação (reflexão feita posteriormente
sobre o que foi e como foi feita a ação docente) possibilitam que o professor utilize o
seu próprio ensino como oportunidade de mudança de suas práticas diárias em sala de
aula, mudança em relação a como constrói o conhecimento no aluno e mudança em
como deseja fazer a relação universidade e sociedade.
Dewey (1980), psicólogo e educador americano, iniciador e defensor do processo de
reflexão na formação do aluno, apresenta que são necessárias três atitudes para o
processo de ensino e aprendizagem acontecer: a) abertura da mente; b)
responsabilização; c) reconfiguração.

A “abertura da mente” consiste em não tomar como prontos, acabados e imutáveis os


conhecimentos científicos e os saberes profissionais. Leva a estar atento a diferentes
interpretações, em permitir-se a incerteza e sempre problematizar os conteúdos.

A “responsabilização” é a segunda atitude apresentada por Dewey e implica no


compromisso pessoal de buscar respostas próprias a toda situação de ensino para o
professor, e de aprendizagem para o aluno. Compromisso com a reflexão sobre as
consequências de cada resposta à situação vivenciada e sobre as possíveis direções de
cada escolha feita nos âmbitos pessoal, acadêmico e político-social.

A “reconfiguração” é a ação que procede das anteriores, onde ocorre a reorganização


dos conceitos, valores, crenças e atitudes (pessoais, profissionais, sociais e políticas).

Quando se diz comumente que um professor não consegue ensinar a quem não deseja
aprender, se demonstra a relação de abertura que o aluno deve ter para que o
processo de aprendizagem aconteça. O ensino e aprendizagem são as duas facetas da
mesma “moeda”. A imagem da moeda é uma visualização interessante, pois, ao
mesmo tempo em que as duas faces são constituintes da moeda, elas são autônomas e
diferentes, mas formam a unidade. Assim, podemos afirmar que no processo de
ensino e de aprendizagem é necessário um grande envolvimento tanto do professor
como do aluno. É necessária a automotivação do aluno para o aprender, mas é
também necessária a postura do professor em olhar o aluno para além de um número
na sala de aula, olhá-lo como um ser em desenvolvimento que busca sua identidade
pessoal e profissional.

Nosso comportamento como docente ainda está conformado pela tradição de


entender o ensino mais como informação do que formação. Estes são
aspectos dimensionados quando se fala que ser professor envolve mais do que o
conhecimento da área específica e a perspectiva de passar conteúdo. Envolve o
necessário conhecimento pedagógico, a reflexão sobre o que é conhecimento, sobre o
papel do profissional na sociedade, sobre o seu papel na formação da autonomia do
aluno.

Docência na contemporaneidade
Qual é o compromisso do professor universitário no atual período histórico? Vivemos
hoje em uma sociedade em que, cada vez mais, se lida com grande volume e
volatilidade de informações. Esta situação nos faz, mais uma vez, refletir sobre a
importância de se transcender a transitoriedade da situação de sala de aula focada
somente no conteúdo especificamente profissional e fazer dela a oportunidade para
trabalhar uma formação mais completa do aluno, isto é, trabalhar a sua formação
intelectual, moral e cultural. Isto reforça o compromisso do professor com a
autonomia do aluno. Para tal, muitos professores precisam operar mudanças em seu
sistema de valores sobre o que é a docência, o ensino e a aprendizagem. Mudanças em
sua forma de ver o aluno, o conhecimento, a sociedade, ultrapassando o que são as
necessidades imediatas destes para trabalhar as necessidades mais perenes da
humanidade.

A experiência de ensinar e aprender não é uma experiência de laboratório que se pode


replicar, mas é única e se diferencia em cada situação pedagógica. Cada sala de aula é
única, com diferentes alunos e situações específicas. A docência é uma atividade social
e é direcionada de forma dialética, pelo e para os valores culturais de determinada
sociedade em determinado contexto. No entanto, o que se processa na relação
professor- aluno-conhecimento ultrapassa os limites do espaço da sala de aula e do
tempo histórico em que ocorre a relação. É uma relação de reciprocidade onde
professor e aluno se formam e se transformam.

A relação do professor com o aluno é, na perspectiva heideggeriana, o que deve ser a


ênfase da educação. Utilizando-se de uma alegoria descrita no livro O Ser e o Tempo,
Heidegger (2006) associa a ação de educar à ação de “cuidar”. Heidegger descreveu
por meio de uma alegoria mítica, que a educação, como a ação de cuidar, é algo que se
desenvolve por toda a vida do indivíduo. A alegoria conta que o céu, a terra e o
cuidado concorreram para dar origem ao homem. O cuidado ao tomar uma porção de
terra nas mãos pediu ao céu que lhe insuflasse o espírito de vida para que este
deixasse de ser inerte e se transformasse em ser vivente. Ao dar vida à porção de terra
transformando-a em ser, o céu se sentiu criador da criatura, o que foi contestado pelo
cuidado. Chamaram então uma outra entidade mítica, o tempo, para pôr fim à disputa.
O tempo entendeu que a criatura deveria se chamar “homem”, pois provinha do
húmus (terra) e que sua alma, dada pelo céu, deveria voltar para lá quando morresse,
mas durante toda a vida deveria depender, permanentemente, do cuidado (educação).
Podemos tomar emprestado esse conto mitológico de Heidegger para entender o valor
e a importância da educação como processo contínuo de formação do homem.

Em pesquisa desenvolvida por Feltram (2003) sobre as lembranças que diferentes


profissionais tinham sobre um bom professor do tempo da universidade, a autora
buscou conhecer especialmente os aspectos reconhecidos por estes como os mais
estimuladores para o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Feltran (2003)
concluiu que as características mais marcantes para os alunos não estavam apenas no
trato do conteúdo (inegavelmente importante), mas na condição de ter levado o aluno
à autonomia como pessoa e como profissional.

Para a grande maioria dos docentes, a formação técnica do aluno é o que importa, é o
objetivo da relação ensino-aprendizagem. A preocupação com a formação técnica
leva, de forma consciente ou não, à exclusão dos valores éticos e estéticos, a privilegiar
os benefícios econômicos e pouco dimensionar a necessidade de pensar as
consequências sociais dos atos profissionais. A forma como as universidades se
organizam e a forma como os professores desenvolvem as aulas e os conteúdos estão
totalmente vinculadas à emergência da educação superior no período industrial. Nesse
período as empresas começaram a demandar profissionais habilitados e capacitados
para as suas necessidades, as quais passaram a ser tomadas como as necessidades da
sociedade e confundidas com as necessidades de desenvolvimento das nações. Essa
forma de ensino, que privilegiava a formação técnica, pragmática e utilitarista, fez com
que se perdesse a preocupação com a formação do indivíduo. Ainda hoje os
professores têm para si que formar bem os estudantes é dar-lhes condições de
responderem ao mercado de trabalho, sem se questionarem que mercado é esse.

A falta de preocupação com uma formação docente para a educação superior é


indicativo de como a questão da formação do homem, nesse nível educacional, é
pouco evidenciada. As instituições, de forma geral, permitem que seus professores
aprendam a ministrar aulas por ensaio e erro, desconsiderando a responsabilidade de
formação do aluno que a relação docente envolve.

Essa forma de atuar na formação do estudante nos vem do entendimento utilitarista


sobre o ensino superior e da organização dos cursos por meio de disciplinas técnicas,
pragmáticas que tenham utilidade no mercado de trabalho. É fato que os grandes
progressos proporcionados pela racionalidade científica dão respaldo a essa forma de
ensinar, mas ela toma o estudante como sendo uma “peça” necessária para a
engrenagem da maquinaria social e não como um indivíduo. É uma formação eficiente
para o mercado, mas ineficiente para o ser humano, para a sociedade mais ampla e
para a humanidade.

Morin (2007) critica esse modelo de formação afirmando que ele proporciona uma
capacidade mecanicista, disjuntiva e reducionista. Para ele, é uma capacidade
normalmente cega, que destrói as possibilidades de compreensão, reflexão e a
capacidade de julgamentos éticos, complexos e contextuais, tornando-os
profissionais inconscientes da responsabilidade social e sem autonomia.

Um comportamento docente que é determinante para os tempos atuais é o de


assumir que ensinar é inserir o aluno na condição de criar e produzir seu
conhecimento. O pensamento tradicional de transferência de conhecimento do
professor para o aluno não tem mais lugar em quaisquer dos níveis de educação. Ao
produzir seu conhecimento, o aluno adquire autonomia intelectual, pois o processo de
aprender é composto por condições internas e externas, particulares do aluno, nas
quais a qualidade da relação professor-aluno tem grande influência e se faz nos
espaços da contradição entre os determinantes e as possibilidades. É acreditando que
esse espaço é possível que se pode dizer da construção do pensamento autônomo do
aluno. Agir e oportunizar reflexões profundas sobre a direção que o conhecimento
toma ao ser construído e ao ser utilizado é uma das tarefas mais importantes da
docência nos tempos atuais.

Considerações finais
Os processos de ensino-aprendizagem que defendemos para a atual sociedade não
podem ser regidos por fórmulas técnicas e pensados por outros que não o próprio
professor. Não há receitas prontas para serem implementadas, mas
princípios fundamentais trabalhados em intencionalidades objetivadas no plano de
curso do professor, nas suas ações em sala de aula e em outras atividades do currículo,
para a formação do homem antes que para a estreita formação profissional.
É no exercício de uma atividade docente para autonomia que o professor pode
substituir práticas até então impermeáveis às mudanças, por prática docente
enquanto dimensão sociocultural da formação do homem no estudante universitário.

O preparo docente do professor tem núcleo central na postura ética e de respeito ao


estudante como ser em formação, pois o processo de ensino e aprendizagem
reconhece a relação de formação mútua (professor e aluno), uma relação
especificamente humana de se reconstruir e, assim, pode-se falar que o ensino e a
aprendizagem é uma atividade que se estrutura com muitas dimensões. Os aspectos
que precisam ser cuidados não são só os aspectos intelectuais, mas os emocionais, os
éticos, os políticos e os culturais.

Buscando explicitar a dimensão pedagógica na formação docente, abordamos os


aspectos demandados por uma prática educativa significativa tanto para a sala de aula,
como para além dela e se adverte para uma postura vigilante contra todas as práticas
de desumanização. Ensinar é desenvolver o raciocínio, a capacidade de reflexão, o
espírito crítico e investigativo sobre o conhecimento, sobre o mundo contemporâneo,
sobre a sociedade e sobre as atividades que se desempenha nela e no mundo.

Será uma ação para além da sala de aula tudo o que o professor puder plantar e o
aluno puder florescer para a sua vida profissional e pessoal visando uma melhor e mais
justa sociedade.

Referências

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R e MALUSÁ, Silvana. A prática da Docência Universitária. São Paulo: Pioneira, 2003.

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Paulo: Editora Paz e Terra. Coleção Saberes. 1996, 36ª Edição.

FREIRE, Paulo: Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São


Paulo: Ed. Unesp, 2000.

GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.

HEIDEGGER, M. O Ser e o Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes. 2006.

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SCHÖN, D. A. Formar Professores como Profissionais Reflexivos. In: NÓVOA, A. (Org.)


Os Professores e a Sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.

[1] Epistemológico - do grego episteme, ciência e logos, estudo de.


[2] Ontológico - do grego ontos "ente" e logoi, "ciência do ser".
[3] Em alemão Humboldt-Universität zu Berlin.
[4] O termo autonomia é composto por “auto” que significa de si mesmo e “nomia”
que significa lei.
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