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Introdução
A docência é uma atividade cujos significados para o aluno assumem proporções que
ultrapassam a sala de aula e perduram em sua formação. O que orienta os docentes
em sua ação pedagógica está vinculado com as respostas que ele dá àquilo que, para
ele, é o fim último da formação do aluno. O processo de ensino e aprendizagem
desenvolvido na universidade é um processo de formação do ser humano, do
profissional e do cidadão, isto é, de um indivíduo que desempenha vários papéis na
sociedade.
Neste texto vamos explorar questões que são pedagógicas no sentido mais amplo, isto
é, no sentido de formação do homem. Argumentaremos que a ação do docente na
universidade tem para o aluno significados que ultrapassam a dimensão de prepará-los
para o mundo do trabalho, pois o estudante ao apreendê-lo também está
desenvolvendo uma descoberta de si, do mundo social, profissional e cultural. O
ensinar e o aprender não é apenas uma relação direta entre conhecimentos e mente
conhecedora, mas uma relação complexa entre o que é conhecimento no sentido
epistemológico[1] e o que é o homem, no sentido ontológico[2]. Sendo uma relação
complexa, esta função fundamental da universidade se reveste de importância e
responsabilidades que nem sempre estão presentes na consciência do professor.
Discutir alguns aspectos dessa complexidade é a intenção deste texto.
Parece óbvio que a resposta a essas questões seja: eu quero ser um professor que
ensina; um professor que faça o aluno aprender e crescer; um professor que permita
ao aluno construir seu conhecimento. Quero formar um profissional útil à sociedade,
que favoreça o desenvolvimento de seu país, que contribua para o avanço do
conhecimento e para uma sociedade democrática.
Estas respostas estão vinculadas a um processo mais crítico de ser professor e menos
ao histórico do papel de professor na tradição da educação superior brasileira. Nessa
tradição o professor, com raras exceções, entende que deve passar conhecimentos
técnicos e específicos de sua disciplina e do curso. É uma tradição ligada à cultura
universitária brasileira de única e exclusivamente formar profissionais para o mercado
de trabalho. Ao seguir a tradição de ensinar os conteúdos técnicos de uma área
profissional, o professor retoma a intenção que está vinculada com a definição do
termo “professor”. O termo professor tem raiz na palavra “professar”, que significa ter
a convicção, apregoar, reconhecer publicamente a validade do que é apresentado.
Assim, um professor “professa” saberes e conhecimentos sistematizados para alunos
que ainda não conhecem, para que estes os adquiram com a intenção de pô-los em
prática. Com esse entendimento, a relação que se estabelece em sala de aula entre
professor, aluno e conhecimentos é a de passar conteúdos. Cabe ao aluno apreendê-
los e reapresentá-los por ocasião das avaliações.
A resposta à questão sobre para qual universidade o professor está ensinando é dada
baseada no conceito de universidade que ele tem, no seu entendimento sobre qual é o
papel desta instituição na atualidade. Normalmente o entendimento é o de que o
papel da universidade é o de formar profissionais úteis e necessários à sociedade. A
polissemia do termo útil nesta resposta pode nos levar a entender que estes
profissionais devem ser os que o mercado de trabalho necessita, respondendo assim,
às necessidades da sociedade e às necessidades do tempo histórico em que vivemos.
Muitos defensores dessa forma de pensar entendem que a razão de ser de uma
instituição de ensino superior é a de estar formando profissionais treinados e
habilitados para o mercado de trabalho imediato, e com isso, entendem estar
cumprindo o que chamam de ‘dever social da instituição de ensino superior’.
O docente que não se interroga sobre suas intenções ao ensinar terá suas atitudes
docentes guiadas por convenções externas, por imitação ou por padronização. A
vinculação principal do ensinar está nas respostas às questões que ele faz a si mesmo
sobre o seu propósito ao assumir a docência.
Docência e autonomia
Na universidade, o objetivo principal da formação do estudante é o de promover a
sua autonomia. Trabalhar a autonomia[4] é fazer o aluno adquirir autogoverno em
todos os âmbitos de sua vida pessoal e profissional. Filosoficamente o conceito de
autonomia implica na condição de liberdade que consiste na possibilidade do indivíduo
tomar suas próprias decisões com base em sua razão, em conhecimentos
fundamentados, em pensamento refletido, em conhecimento das possíveis
consequências da decisão escolhida, em seus valores e em sua cultura. Paulo Freire
(1996), em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, refere-se ao processo de contínua
construção da autonomia, como um processo “inconcluso” de formação do ser
homem. A “inconclusão” do ser humano é um movimento permanente de aprender e
se formar.
Newman (2001), um dos mais importantes estudiosos da universidade, um clássico da
literatura acadêmica cujos escritos estão influenciando a área da universidade desde o
século XIX, diz que a missão primeira da universidade é o compromisso com a
formação do homem para a autonomia e defende que é essa a essência da atividade
do ensinar na universidade.
Em Kant (1993), na obra “Conflitos das Faculdades”, obra voltada para a educação
superior, a questão da autonomia ganha força e centralidade. Defende o sentido de
autonomia considerando a formação da totalidade do ser humano e a racionalidade
em sentido mais amplo que o instrumental. Essa definição traz consigo uma
internalização das fontes morais, isto é, a fonte da força moral não pode mais ser vista
como exterior a nós e só pode ser explicitada pelo exercício da autonomia. Em Kant, a
ideia da natureza racional como fonte de dignidade humana e a própria ideia de
dignidade estão inseparavelmente ligada à ideia de autonomia.
Para ilustrar um pouco mais a importância do ensino superior com questões mais
amplas que o simples propósito de formar profissionais, lembramos a famosa citação
de Stuart Mill em seu discurso na Aula Inaugural da Universidade de Saint Andrews,
em Londres, do início do ano letivo de 1867 (MILL, 1869/1999). A citação é longa, mas
seu conteúdo elucida a importância do papel do professor, da educação e da formação
do homem pela universidade antes que o profissional, já apontada naquela época:
Com esta abrangência, o ato de ensinar se revela uma experiência ampla por ser um
processo de construção de identidade, de construção de conhecimento, uma relação
social, uma atividade política, uma função ética, uma ação criativa, uma prática com a
pesquisa. Lembrando novamente Paulo Freire (1996) e sua convicção sobre a
importância do ato de ensinar como um ato político: Freire argumentava que fazer do
ensino uma ação técnica é “amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no
exercício educativo: o seu caráter formador” (p. 37).
A autonomia é também uma necessidade sociocultural, uma vez que a atual sociedade
traz um novo movimento cultural exigindo uma nova direção das relações políticas e
somente um indivíduo autônomo possui condições de entender as contradições do
mundo globalizado, questionando-as e agindo no sentido de canalizar as
oportunidades para mudanças qualitativas da sociedade (GUIDDENS, 1991).
Com essa dimensão do ato de ensinar, pode-se afirmar que todo professor deve
desenvolver uma reflexão crítica sobre sua prática docente. O professor que deixa de
refletir sobre ela trabalha de forma mecânica, repetitiva, sem pensar os significados da
relação ensino-aprendizagem no âmbito da formação do homem. Schön (1995),
baseado na teoria de Dewey, deu maior relevância ao desenvolvimento do conceito de
reflexão e sugere uma formação de profissionais reflexivos, dentre eles o próprio
professor. Nessa perspectiva, o ambiente universitário para o docente torna-se lugar
de investigação da própria ação docente. Para o autor, a reflexão-na-ação docente
(enquanto a desenvolve) e a reflexão-sobre-a-ação (reflexão feita posteriormente
sobre o que foi e como foi feita a ação docente) possibilitam que o professor utilize o
seu próprio ensino como oportunidade de mudança de suas práticas diárias em sala de
aula, mudança em relação a como constrói o conhecimento no aluno e mudança em
como deseja fazer a relação universidade e sociedade.
Dewey (1980), psicólogo e educador americano, iniciador e defensor do processo de
reflexão na formação do aluno, apresenta que são necessárias três atitudes para o
processo de ensino e aprendizagem acontecer: a) abertura da mente; b)
responsabilização; c) reconfiguração.
Quando se diz comumente que um professor não consegue ensinar a quem não deseja
aprender, se demonstra a relação de abertura que o aluno deve ter para que o
processo de aprendizagem aconteça. O ensino e aprendizagem são as duas facetas da
mesma “moeda”. A imagem da moeda é uma visualização interessante, pois, ao
mesmo tempo em que as duas faces são constituintes da moeda, elas são autônomas e
diferentes, mas formam a unidade. Assim, podemos afirmar que no processo de
ensino e de aprendizagem é necessário um grande envolvimento tanto do professor
como do aluno. É necessária a automotivação do aluno para o aprender, mas é
também necessária a postura do professor em olhar o aluno para além de um número
na sala de aula, olhá-lo como um ser em desenvolvimento que busca sua identidade
pessoal e profissional.
Docência na contemporaneidade
Qual é o compromisso do professor universitário no atual período histórico? Vivemos
hoje em uma sociedade em que, cada vez mais, se lida com grande volume e
volatilidade de informações. Esta situação nos faz, mais uma vez, refletir sobre a
importância de se transcender a transitoriedade da situação de sala de aula focada
somente no conteúdo especificamente profissional e fazer dela a oportunidade para
trabalhar uma formação mais completa do aluno, isto é, trabalhar a sua formação
intelectual, moral e cultural. Isto reforça o compromisso do professor com a
autonomia do aluno. Para tal, muitos professores precisam operar mudanças em seu
sistema de valores sobre o que é a docência, o ensino e a aprendizagem. Mudanças em
sua forma de ver o aluno, o conhecimento, a sociedade, ultrapassando o que são as
necessidades imediatas destes para trabalhar as necessidades mais perenes da
humanidade.
Para a grande maioria dos docentes, a formação técnica do aluno é o que importa, é o
objetivo da relação ensino-aprendizagem. A preocupação com a formação técnica
leva, de forma consciente ou não, à exclusão dos valores éticos e estéticos, a privilegiar
os benefícios econômicos e pouco dimensionar a necessidade de pensar as
consequências sociais dos atos profissionais. A forma como as universidades se
organizam e a forma como os professores desenvolvem as aulas e os conteúdos estão
totalmente vinculadas à emergência da educação superior no período industrial. Nesse
período as empresas começaram a demandar profissionais habilitados e capacitados
para as suas necessidades, as quais passaram a ser tomadas como as necessidades da
sociedade e confundidas com as necessidades de desenvolvimento das nações. Essa
forma de ensino, que privilegiava a formação técnica, pragmática e utilitarista, fez com
que se perdesse a preocupação com a formação do indivíduo. Ainda hoje os
professores têm para si que formar bem os estudantes é dar-lhes condições de
responderem ao mercado de trabalho, sem se questionarem que mercado é esse.
Morin (2007) critica esse modelo de formação afirmando que ele proporciona uma
capacidade mecanicista, disjuntiva e reducionista. Para ele, é uma capacidade
normalmente cega, que destrói as possibilidades de compreensão, reflexão e a
capacidade de julgamentos éticos, complexos e contextuais, tornando-os
profissionais inconscientes da responsabilidade social e sem autonomia.
Considerações finais
Os processos de ensino-aprendizagem que defendemos para a atual sociedade não
podem ser regidos por fórmulas técnicas e pensados por outros que não o próprio
professor. Não há receitas prontas para serem implementadas, mas
princípios fundamentais trabalhados em intencionalidades objetivadas no plano de
curso do professor, nas suas ações em sala de aula e em outras atividades do currículo,
para a formação do homem antes que para a estreita formação profissional.
É no exercício de uma atividade docente para autonomia que o professor pode
substituir práticas até então impermeáveis às mudanças, por prática docente
enquanto dimensão sociocultural da formação do homem no estudante universitário.
Será uma ação para além da sala de aula tudo o que o professor puder plantar e o
aluno puder florescer para a sua vida profissional e pessoal visando uma melhor e mais
justa sociedade.
Referências
DEWEY, J. Vida e Educação. São Paulo: Abril Cultural. Col. Os Pensadores. 2.ed. 1980.
MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução de
Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007.