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THAÍS DA COSTA
São Paulo
2019
THAÍS DA COSTA
São Paulo
2019
THAÍS DA COSTA
Aprovada em
Banca Examinadora
_______________________________________________
Prof. Dr. Adilson José Moreira
______________________________________________
Profª. Dra. Solange Teles da Silva
_______________________________________________
Prof. Dr. Flávio Leão Bastos Pereira
À Anne, Josué, Nathan, Mayara, Miguel e
Lara: minha incondicional torcida particular.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, sou grata ao meu avô José e ao meu pai Josué que sonharam com o
direito antes de mim. A lembrança de José e a incansável força de Josué me inspiraram em cada
passo, com esse trabalho a jornada de três gerações chegou ao fim.
À minha família, em especial aos meus pais, irmãos, minhas primas Rebeca e Sara
e minha tia Lenice, por todo o suporte, afeto, cuidado, colo, esperança, orações, calmaria e
alegria que me deram e continuam a dar.
Às minhas ancestrais que abriram o caminho e que guiam meus passos nessa
jornada.
À Beatriz, pela companhia, encorajamento, por ter comemorado cada etapa comigo
e principalmente pela paciência e compreensão nesses últimos meses.
À Giovanna, por ter dividido comigo toda a aflição, desgaste e loucura ao longo
desses últimos meses.
À Júlia, pelas horas e horas como ouvinte das minhas divagações, pelos comentários
sempre pertinentes, pelo cuidado e principalmente por ter acreditado nesse trabalho antes de
mim mesma.
Às minhas queridas amigas que me fizeram companhia e me agregaram das mais
diversas e especiais formas desde o primeiro semestre: Bárbara, Isabella, Jéssica, Larissa e
Rafaella; e a todos os meus amigos que nem por um momento sequer duvidaram da minha
capacidade e que sempre me encorajaram a prosseguir.
Ao Adilson, meu orientador e fonte de inspiração cujas aulas, sem exageros,
mudaram minha vida. Deixo aqui registrado o quanto me sinto honrada de ter desenvolvido
esse trabalho sob a orientação dele. Obrigada por abrir o caminho.
“I think part of it is accepting that it's so much
beauty in being black and that's the thing that, I
guess, I get emotional about, because I've always
known that. I've always been proud to be black.
Never wanted to be nothing else”.
(Trecho da faixa “Tina Taught Me” de Solange
Knowles – A Seat at the Table)
RESUMO
A presente monografia utiliza o conceito de lugar de fala e a relevância da raça para analisar as
decisões proferidas por um julgador branco em processos envolvendo racismo ajuizados por
demandantes negros. O fato de que o lugar que ocupamos na sociedade e nossa raça constrói a
perspectiva que temos acerca do mundo impacta diretamente na interpretação que será utilizada
pelo juiz no processo de tomada de decisão, resultando em decisões que contemplam e validam
a narrativa branca e excluem a narrativa negra e que, por essa razão criam precedentes que não
correspondem à realidade desse grupo social comprometendo o acesso à justiça de minorias
raciais.
This paper uses the concept of place of speech and the relevance of race to analyze
judgments made by a white judge in legal claims involving racism filed by black plaintiffs. The
fact that our place in society and our race builds our perspective on the world, directly impacts
the interpretation that will be used by the judge in the decision-making process, resulting in
decisions that contemplate and validate the white narrative and exclude black narrative, and for
this reason set precedents that do not correspond to the reality of this social group,
compromising the access to justice of racial minorities.
Key words: place of speech, racism, natural judge, access to justice, hermeneutics.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................9
2. ACESSO À JUSTIÇA.........................................................................................................14
3. JUIZ NATURAL.................................................................................................................22
7. CONCLUSÃO.....................................................................................................................59
REFERÊNCIAS..................................................................................................................63
9
1. INTRODUÇÃO
O princípio do acesso à justiça, embora não ipsis litteris, se faz presente mediante a
garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional prevista no art. 5°, XXXV da Constituição
Federal, que assegura o direito de todos recorrerem ao Poder Judiciário diante de lesão ou até
mesmo ameaça a qualquer direito, contemplando também o direito de acesso à forma
legalmente prevista para alcançar o resultado que se busca.1
Destarte, quando falamos de acesso à justiça, frequentemente discute-se os mecanismos
de acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário, sendo que nesse sentido se mostra a criação da
justiça gratuita e das Defensorias Públicas, ambas servindo ao propósito de subtrair ou
minimizar as barreiras para a condução do demandante à figura do juiz, o único apto para a
aplicação da norma jurídica ao caso fático.
Ao nos depararmos com as questões raciais trazidas para o Poder Judiciário, mais
especificamente as demandas envolvendo os danos morais sofridos pela população negra
quando alvos de racismo serão analisadas neste trabalho a título demonstrativo, podemos
constatar que estas pessoas, têm, idealmente, meios de buscar justiça, porém esta encontra uma
série de graves obstáculos para lhes alcançar, seja pela discriminação mediante o racismo
institucional2 sofrida por essa parte da população, seja pela impossibilidade de encontrar no juiz
alguém que efetivamente entenda a demanda entregue. A voz da população negra brasileira
continua sendo oprimida enquanto o discurso hegemônico emanado pelos gabinetes ressoa
soberano.
Nesse sentido, os estudos desenvolvidos por Gislene Aparecida dos Santos demonstram
que ao receberem casos de racismo e injúria racial os magistrados facilmente descaracterizam
o racismo sob a justificativa de ações movidas pelo “pelo calor das emoções”. O estudo também
demonstra que os obstáculos para a responsabilização por atos de racismo já estão presentes
quando da denúncia nas delegacias, sendo que apenas uma pequena porcentagem realmente é
julgada e sentenciada, o que acaba por gerar uma desconfiança acerca da “eficiência da lei na
punição do racismo”. Nas pesquisas de campo, a professora nos mostra que 5 a cada 10
1 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência.
2 “O racismo institucional ou sistêmico opera de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do
Estado, suas instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições privadas, produzindo e
reproduzindo a hierarquia racial” (WERNECK, Jurema. Racismo Institucional, uma abordagem conceitual.
Geledés – Instituto da Mulher Negra, 2013).
10
entrevistados esperavam não sofrer dupla discriminação pelo sistema judiciário e que 4 a cada
10 não confiam neste sistema.3
Todos os avanços construídos ao longo do tempo mediante positivação de direitos
processuais, impulsionados pela promulgação de nossa atual Carta Magna contemplam apenas
parte da abrangência da garantia constitucional de acesso à justiça, uma vez que, após
providenciar para todos de forma igualitária a acessibilidade ao sistema, este mesmo sistema
deve oferecer prestação jurisdicional individualmente e socialmente justa.4
Para tanto, nos é assegurada constitucionalmente a figura do juiz natural mediante
vedação da instituição de tribunal de exceção e garantia do julgamento pela autoridade
competente5, sendo assim, segundo os ensinamentos de Marinoni e Mitidiero, juiz natural “É o
juiz a que é constitucionalmente atribuído o dever de prestar tutela jurisdicional e conduzir o
processo de forma justa”6, de maneira que despido de suas convicções pessoais e blindado de
seu subjetivo, este julgador é competente para resolver toda e qualquer demanda confiada ao
sistema Judiciário.
A construção dessa figura visa fornecer segurança e imparcialidade àqueles que
recorrem à judicialização de seus conflitos, na medida em que esse julgador ideal, investido de
garantias que asseguram sua independência, se mostraria apto para dirimir o conflito mediante
oferecimento de solução legal que se traduz em justiça.
Porém, não podemos perder de vista que partimos de lugares diferentes, sendo certo que
a figura do julgador não está alheio à essa realidade. Essa constatação salta aos nossos olhos
quando observamos os casos de racismo levados ao Judiciário, onde de um lado temos os
demandantes pertencentes a uma minoria racial e que percorreram uma longa jornada para
poder depositar sua causa e, do outro lado, um juiz sorteado principalmente entre homens
brancos, uma vez que de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, 62% dos juízes do país
assim se identificam7.
O que separa o juiz da parte é bem mais do que o “semi-altar” em que sua cadeira está
posicionada no gabinete, temos um enorme abismo social entre eles: as realidades não se
comunicam. No já mencionado estudo da professora Gislene Aparecida dos Santos, foi
3
SANTOS, Gislene Aparecida. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de
atos de discriminação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 1, p. 194-195, 2015.
4 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988.
5 Art. 5º, XXXVII e LIII da Constituição Federal.
6 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
constatado nos atos do Judiciário o desejo que a raça “não conte” em um movimento típico de
manutenção da hierarquia racial mediante a “desclassificação dos atos de racismo como se não
tivessem ocorrido”8.
Não só o magistrado se encontra distante da realidade de uma pessoa negra que sofre
com o racismo, como também ele não se encontra equipado para tratar dessa demanda. A
bagagem acadêmica desse juiz carece de aprofundamento acerca do Direito Antidiscriminatório
e uma maior familiaridade com os direitos humanos a fim de que ao menos em um campo
teórico, seja possível assimilar o que foi posto diante dele. Sem essa formação jurídica
completa, o julgador corre o risco de se encontrar entregue aos estereótipos por ele construídos
e a ele impostos ao longo da vida, usando-os, inconscientemente ou não, como lente para
analisar a demanda.
Essa sistemática viciada é a responsável pela manutenção do discurso hegemônico que
ignora a realidade das pessoas negras que recorrem ao Judiciário por ter sua essência violada.
Integra o mecanismo de quebra desse discurso, o reconhecimento da existência de múltiplas
narrativas a serem consideradas, enxergadas e absorvidas. Sherrilyn A. Ifill nos ensina que
narrativas culturais não podem ser ignoradas pois transmitem a realidade, história e os valores
de determinado grupo, no nosso caso de minorias raciais, sendo necessário incorporar essas
vozes no processo decisório judicial a fim de neutralizar a influência e força das narrativas
dominantes no processo legal produzidas por homens brancos.9
O não reconhecimento e a exclusão dessas outras narrativas que se confrontam com a
narrativa dominante serve ao propósito de manutenção da hierarquia racial. Segundo Ifill, as
decisões judiciais legitimam narrativas de forma que o papel do juiz vai além de meramente
ilidir o conflito, se mostrando ser uma verdadeira mensagem transmitida para a sociedade
acerca de quais valores merecem a proteção estatal e quais não.
Nesse sentido, pensaremos a teoria do lugar de fala primeiramente como
reconhecimento da existência de outras narrativas oriundas do grupo social composto pela
população negra que se expressa a partir do lugar ocupado nas relações de poder e que por
ocupar um lugar de subordinação não consegue acessar certos espaços e ter suas narrativas tidas
como legítimas nestes espaços, como por exemplo, no Poder Judiciário.
8 SANTOS, Gislene Aparecida. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de
atos de discriminação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 1, p. 203, 2015.
9 IFILL, Sherrilyn A. Racial Diversity on the Bench: Beyond Role Models and Public Confidence. Washington
10RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017. (Coleção:
Feminismos Plurais).
13
específico, pretende trazer a necessária discussão acerca dos mecanismos para a quebra da
hierarquia discursiva presente no sistema judiciário pátrio mediante a aplicação das premissas
da teoria racial crítica e teoria do lugar de fala para entendermos o papel desempenhado pelos
protagonistas de um processo judicial envolvendo racismo através da análise de julgados
proferidos nas ações indenizatórias por danos morais no Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
14
2. ACESSO À JUSTIÇA
11 Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”.
12 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado – 20. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016,
p. 1.157.
15
Estado Democrático de Direito, ainda que mesmo tais direitos e garantias sigam
enfrentando maior ou menor déficit de efetivação.13
Falar de acesso à justiça, antes de mais nada, é falar sobre a garantia do pleno exercício
do direito de ação. Por mais que a Constituição Federal nos garanta a inafastabilidade do
controle jurisdicional, o inciso XXXV do art. 5º sozinho não contempla efetivamente este viés
do acesso à justiça, podemos observar que são necessários mecanismos viabilizadores do
exercício deste direito.
Usufruir do Judiciário já foi algo reservado a elite em tempos de supressão de direitos
das camadas sociais inferiores, em tempos de escravidão, por exemplo, não haveria como se
falar em acesso aos tribunais pela população escravizada. Porém com as conquistas sociais
alcançadas e possibilitadas pelo desenvolvimento de um estado democrático de direito, o que
por sua vez permitiu a ampliação dos direitos humanos e sociais resultando, entre outros tantos
avanços, na igualdade pelo menos formal entre todos, a discussão sobre acesso à justiça
demandou e demanda cada vez mais a atuação do Estado a fim de dirimir os óbices do acesso
universal à Justiça.
Mesmo cronologicamente distante desse cenário colonial, não podemos esquecer que
em um passado não tão distante, demandar judicialmente embora possível, ainda exigia a
contratação de um advogado ou advogada, bem como, o pagamento de custas judiciais para a
propositura da ação e demais despesas ao longo do processo, sendo assim, embora o Judiciário
estivesse disponível para a tutela do direito, poderia acontecer de não ser possível a propositura
da ação por insuficiência de recursos ou demais limitações financeiras e sociais.
Quando nos deparamos com um cenário de grandes disparidades sociais, onde uma
grande parte da população é pobre, sendo que neste contexto se encaixa o nosso país que possui
cerca de 26% da população abaixo da linha da pobreza14, além da limitação financeira para a
propositura da ação, temos como barreira ao acesso à justiça a ignorância no sentido estrito em
relação à lei derivada dos baixos índices de escolaridade, o que acarreta em grande dificuldade
de diagnosticar maiores lesões aos direitos e garantias individuais, o que por sua vez inibe a
busca da tutela estatal.
É necessária uma forte atuação do Estado para garantir a acessibilidade de todas as
camadas da população ao Poder Judiciário. Neste sentido desde 1950 temos regulamentada no
Brasil a Gratuidade da Justiça, ou como é popularmente chamada Justiça Gratuita, atualmente
13SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 318.
14 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de Indicadores Sociais 2018.
Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133
cf3f9ec2d45c2542b0.pdf. Acesso em 10.7.19.
16
prevista pelo Código de Processo Civil de 2015 que garante isenção das custas, despesas
processuais e até mesmo dos honorários advocatícios para todos aqueles que não possuírem
recursos financeiros para arcar com tais custos.
Some-se a isto a institucionalização das Defensorias Públicas promovidas pela
Constituição Federal de 1988 e os avanços no sentido de assegurar o acesso à justiça se mostram
palpáveis. Conforme já dito, sendo o Brasil um país que sofre de enormes diferenças sociais
entre as camadas da sua população, esta referida institucionalização contribuiu para encurtar a
distância entre os cidadãos e a busca pela justiça, uma vez que conforme se extrai do texto
constitucional no seu art. 134, as Defensorias não atuam apenas no campo de representação
judicial de pessoas hipossuficientes, servindo também ao propósito de “orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos”.
Orientação jurídica gratuita e acessível é um degrau importante nesta jornada de acesso
ao Judiciário em um país no qual até o ano de 2016, 51% da população adulta (25 anos ou mais)
tinham no máximo concluído o ensino fundamental15. Novamente vemos a necessidade de
criação de mecanismos para possibilitar o exercício do princípio constitucional de acesso à
justiça, pois não basta poder demandar perante o Estado quando não se sabe o que demandar
ou quando não se têm as ferramentas que possibilite desenvolver consciência acerca das lesões
ou potenciais lesões aos direitos assegurados pelo nosso ordenamento.
Não posso deixar de pontuar que o Brasil é um país de dimensões continentais e este é
mais um óbice para o acesso que neste capítulo discutimos. A Defensoria Pública é sem dúvida
instituição essencial para a população de baixa renda que tem a necessidade de buscar o controle
estatal sobre suas demandas e em grandes metrópoles por mais sobrecarregadas que as
Defensorias se encontrem, elas estão disponíveis.
Porém, o quadro não permanece o mesmo quando expandimos para lugares mais ermos
e menos povoados do país, cidades e regiões inteiras que sequer contam com um fórum, quem
dirá uma unidade de Defensoria Pública. Aqui não estamos mais falando sobre barreiras sociais
ou intelectuais, mas sim somadas a estas ou não, de barreiras geográficas que dificultam na
esfera física e espacial o acesso à justiça.
Em algumas regiões do país podemos observar que há um enorme déficit de unidades
judiciárias em relação à quantidade de municípios e em outras regiões, não obstante o número
de comarcas seja compatível com o número de munícipios, as pessoas encontram grandes
16 BASSETTO, Maria do Carmo Lopes Toffanetto Rossitto. Democratização do acesso à Justiça: análise dos
juizados especiais federais itinerantes na Amazônia Legal brasileira – Brasília: Conselho da Justiça Federal,
Centro de Estudos Judiciários, 2016, Série monografias do CEJ ; v. 23, pp. 53-54.
17 - Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018.
18 - THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – 52. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2018.
19 - Art. 2º da Lei 9.099/95.
18
escolaridade e espalhadas por toda a extensão do país que precisam ser alcançadas por esta
garantia uma vez que por ser um direito de primeira geração se mostra indispensável ao
exercício da cidadania.
Não obstante todos os problemas sociais que enfrentamos neste cenário, garantir o
acesso à justiça deve ser visto primeiramente em seu viés mais literal, garantir as etapas
necessárias para que qualquer pessoa consiga depositar qualquer demanda que necessite da
intervenção estatal perante o Poder Judiciário.
Em um segundo momento, acesso à justiça vai além da acessibilidade por si só,
conforme nos ensina Ada Pellegrini “[...] importa no acesso ao justo processo, como conjunto
de garantias capaz de transformar o mero procedimento em um processo tal, que viabilize,
concreta e efetivamente, a tutela jurisdicional”20. Neste viés processual, acessar à justiça é
sinônimo de garantir um processo justo, eficiente e eficaz.
Sendo assim, devemos abordar desde o reconhecimento do direito seguido do
ajuizamento da devida ação até o andamento do processo que deverá se dar em tempo
razoável21. Garantias processuais também servem ao propósito de acesso à justiça na medida
em que o que se busca ao demandar judicialmente é a aplicação da norma ao caso concreto
visando a solução da lide, a proteção a algum direito ou a reparação pela lesão deste, de forma
que assegurar a melhor solução possível para o caso entregue ao Judiciário também está
contemplado nos desdobramentos do princípio em tela.
Segundo Cappelletti e Garth para que se tenha o acesso à justiça, é necessário que o
Poder Judiciário além de estar disponível, ofereça prestação jurisdicional individualmente e
socialmente justa. Isso é, acesso à justiça não se resume e não pode ser resumido ao mero direito
de ação, em outras palavras, acesso à justiça não está relacionado apenas ao meio, mas também
ao resultado, à garantia do direito.
Um dos principais problemas no caminho do oferecimento desta resposta
individualmente e socialmente justa é a morosidade do Judiciário. Pelos dados levantados pelo
Conselho Nacional de Justiça, na primeira instância a sentença para ser proferida demora cerca
de dois anos e meio, sendo que na fase de execução o tempo médio é de seis anos e quatro
meses o que claramente representa um grande obstáculo ao acesso à justiça.
20 GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos constitucionais dos juizados de pequenas causas. In: WATANABE,
Kazuo (coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Ed. RT, 1985.
21 BASSETTO, Maria do Carmo Lopes Toffanetto Rossitto. Democratização do acesso à Justiça: análise dos
juizados especiais federais itinerantes na Amazônia Legal brasileira – Brasília: Conselho da Justiça Federal,
Centro de Estudos Judiciários, 2016, Série monografias do CEJ ; v. 23, p. 47.
19
22CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988, p. 7.
20
Quando se diz que se quer o acesso à ordem jurídica justa, isto no fundo parece se
confundir com a própria ideia de acesso ao Poder Judiciário, já́ que teoricamente ele
faria sinônimo com justiça em sociedades ditas democráticas. Vale dizer, o objetivo
contemporâneo das reformas processuais, muito menos que com a justiça, é com o
mero acesso, reduzindo o Poder Judiciário a mero prestador de serviços jurídicos,
atrelando a este serviço a expectativa de eficiência, como uma espécie de fast-food de
respostas judiciais [...].O escopo do processo é tão-somente o acesso à ordem jurídica,
não às garantias últimas de direito subjetivo que estão na base originaria que dá razão
de ser ao processo. 23
Acesso à justiça portanto, tem tamanha importância e é essencial ao exercício da
cidadania não apenas por representar a inafastabilidade da prestação jurisdicional, mas também
porque acessar à justiça se traduz e tem por essência a garantia, proteção de direitos.
Diante do exposto, temos outras questões que acabam por dificultar o acesso à justiça
em todos os sentidos, isso porque a variedade de causas e pessoas que procuram o sistema
judiciário é de uma enorme diversidade uma vez que nossa sociedade pode ser considerada uma
sociedade pluralista, composta das mais variadas classes de indivíduos pertencentes aos mais
variados grupos. Para oferecer a prestação jurisdicional individualmente justa conforme
proposto por Cappelletti e Garth, é necessário também se levar em conta a particularidade e
complexidade das demandas de forma individualizada.
Ao tratarmos de acesso à justiça por minorias raciais todos esses elementos devem ser
levados em consideração, pois estamos lidando com um cenário onde pelos dados do IBGE de
2015, contamos com 75%, do grupo que compõe os 10% mais pobres do país, sendo negros, o
que reflete das mais variadas formas: negros recebem menores salários, negros compõe a
maioria dos moradores das favelas, negros são a maioria entre a população carcerária etc. Isso
nos leva a deduzir que a população negra enfrenta grandes dificuldades no acesso à justiça que
não param nas barreiras intelectuais, físicas e financeiras.
Ao demandar perante o Poder Judiciário a população negra encontra um novo obstáculo
entre sua petição e a esperada justiça, principalmente nos casos envolvendo racismo e
especificamente neste trabalho, nas ações indenizatórias pelos danos morais decorrentes de
racismo e injúria racial: a falta de identidade.
Ao depositar seu pleito perante nosso sistema judicial, esta parcela da população, não
obstante ter percorrido uma grande jornada que resulta na petição inicial, mesmo podendo
contar com a Gratuidade da Justiça e com a Defensoria Pública para lhe auxiliar e
posteriormente defender, ainda está exposta a um sistema que lhe oferece julgadores que
poderão não se identificar com o caso concreto proposto, o que resultará na falha da prestação
23MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito e filosofia política: a justiça é possível – 2. ed. – São Paulo:
Atlas, 2008, p. 65.
21
jurisdicional efetivamente justa, tirando destas pessoas, por pertencerem a uma minoria racial,
o exercício do acesso à justiça constitucionalmente garantido que resultará em não reparação
ou proteção do direito invocado, o que não pode acontecer.
Minorias raciais que recorrem ao Judiciário em casos de racismo, precisam ter
assegurado o acesso à justiça não apenas para ajuizarem a ação competente, mas principalmente
para terem garantido e reparado seu direito à honra.
Ao longo desse trabalho a proposta é de pensar mecanismos para sanar esse problema
tão sério e tão urgente que acomete a maioria da população do país.
22
3. JUIZ NATURAL
24 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 797-
799.
25 Ibidem
26 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional - 18. ed., rev. e atual. – São
embora represente inegável avanço no campo dos direitos humanos, prolatou suas condenações
em uma total inobservância ao princípio do juiz natural, o que por sua vez representa um
obstáculo no caminho de se desenvolver e alcançar um processo justo.
Neste sentido, assegurando um processo justo, nossa Constituição Federal no inciso LIII
do art. 5º garante que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente”, da mesma forma, o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, no
primeiro item de seu art. 8º, contempla o princípio do juiz natural ao garantir que toda pessoa
tem o direito de ser ouvida “por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei”.
Pela leitura deste item podemos observar como a independência e imparcialidade do
julgador estão diretamente associados a disposição legal preexistente de sua competência,
sendo esta, de acordo com a definição dada por Nucci, “a medida da jurisdição, pronta a ser
exercitada dentro de determinado território, conforme matéria especificamente delineada”.27
Em outras palavras, a determinação dos aspectos e limites de atuação do julgador serve ao
propósito de preservação da imparcialidade e independência deste.
Sendo jurisdição a iurisdictio, latim para a expressão “dizer o direito”, a Constituição
Federal dispõe acerca daqueles aptos para tal função mediante definição de competência, de
forma que terá jurisdição para apreciação da ação ajuizada perante o Poder Judiciário, aquele
julgador pertencente a este órgão que encaixar nas regras de competência definidas para a
matéria a ser discutida.
Estando todos os elementos essenciais de composição do princípio do juiz natural
interligados, somente teremos o juiz natural se for garantida a independência do julgador e
conforme nos esclarecem Marinoni e Mitidiero, as garantias constitucionais dos magistrados
dispostas pelo art. 95, quais sejam, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de
subsídios, bem como as vedações impostas pelo parágrafo único deste mesmo artigo,
combinadas com a autonomia administrativa financeira e orçamentária do Poder Judiciário
disposta pelo art. 99, asseguram a independência judicial dos magistrados, concluindo que “Do
ponto de vista constitucional, portanto, o problema da independência judicial está ligado ao da
imparcialidade”28.
Isto porque, graças a separação de poderes e as garantias da magistratura supracitadas,
o julgador é colocado em uma posição de independência e segurança para que profira as
27 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais, 4ª ed. rev., atual. e ampl.
– Rio de Janeiro: Forense, 2015.
28 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 827.
24
decisões baseado na lei sem receio de repressões ou punições que o constranjam a julgar de
forma diversa da legalmente prevista por influências políticas, midiáticas ou hierárquicas. De
forma que podemos concluir, como já exposto que, a independência dos magistrados reflete
diretamente na sua capacidade de imparcialidade frente as demandas, sejam elas quais forem.
Por sua vez, a imparcialidade, elemento indispensável em um processo justo, se traduz
na ausência de interesse do julgador no êxito de qualquer uma das partes no processo 29. Isso
quer dizer que o magistrado deve se manter equidistante das partes, uma vez que se situa acima
e entre elas30. E conforme Nucci31:
A abrangência do juiz natural envolve, inequivocamente, o juiz imparcial, aquele que
tem condições, objetivas e subjetivas, de proferir veredicto sem a menor inclinação
por qualquer das partes envolvidas, fazendo-o com discernimento, lucidez e razão,
com o fito de aplicar a lei ao caso concreto, fornecendo a mais clara evidência de se
tratar de um Judiciário integrante do Estado Democrático de Direito.
O Poder Judiciário funcionando dentro de um Estado Democrático de Direito deve
garantir a imparcialidade de seus julgadores para que os demandantes acessem à justiça. Por
este motivo, tanto o diploma processual civil quanto o processual penal dispõe acerca da
possibilidade de afastamento do magistrado designado para a ação distribuída por motivos de
suspeição ou impedimento.
Sendo a suspeição pautada por uma ligação subjetiva pessoal do juiz com as partes,
podendo ocorrer quando o juiz tiver para com partes amizade ou inimizade, ou ainda possuir
interesse no resultado do julgamento, enquanto o impedimento ocorre quando o juiz possui com
as partes ou com a causa ligações objetivas, por exemplo, quando ele ou algum familiar for
parte do processo, quando já tomou conhecimento do processo em outro grau de jurisdição e
demais situações dispostas em rol extensivo.
Tais mecanismos são muito importantes uma vez que a escolha do juiz se dá mediante
a aleatoriedade, isso é, o julgador é selecionado através da distribuição aleatória do processo
entre os magistrados competentes para apreciar a matéria. A aleatoriedade também é elemento
essencial ao juiz natural, possibilitando que o magistrado sorteado, desde que não esteja nos
cenários de suspeição e impedimento, e uma vez revestido de independência, possa julgar de
forma imparcial.
Quando ausentes as circunstâncias caracterizadoras de suspeição ou impedimento do
juiz, isso é, quando o juiz está apto para ocupar esta posição de terceiro não-parte alheio ao caso
29 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 827.
30 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo - 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.58.
31 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais, 4ª ed. rev., atual. e ampl.
concreto, temos o que a doutrina chama de imparcialidade objetiva que diz respeito a este lugar
que o julgador ocupa na dinâmica do processo. Paralela a esta imparcialidade objetiva, deve
estar presente também a imparcialidade subjetiva que consiste na abstenção da interferência da
convicção pessoal do julgador a fim de que não aconteçam “pré-juizos” por parte do juiz
competente para o julgamento de determinado caso.32 Nesse sentido, Rubens R. R. Casara,
relembrando as lições de Luigi Ferrajoli nos traz que:
Com LUIGI FERRAJOLI reconhece-se que “o juiz não é uma máquina automática na
qual por cima se introduzam os fatos e por baixo se retiram as sentenças”. Ainda
segundo ele, o magistrado “por mais que se esforce para ser objetivo, está sempre
condicionado pelas circunstâncias ambientais em que atua, pelos seus sentimentos,
suas inclinações, suas emoções, seus valores ético-políticos”.33
Por mais que o magistrado esteja coberto de garantias e em termos objetivos tenha plena
condição de atuar de forma imparcial, Ferrajoli nos relembra da natureza humana do juiz não
enquanto cargo, mas enquanto pessoa que é naturalmente incapaz de ser neutro e está sujeito a
interferência de seus sentimentos e emoções, mas não apenas isso, o juiz, assim como qualquer
um de nós, também está sujeito às influências decorrentes do meio em que convive, do ambiente
em que foi criado e principalmente pode estar sujeito a convicções formadas a luz dos mais
variados preconceitos e estereótipos.
No Brasil, o acesso ao cargo da magistratura se dá mediante concurso público que, como
não poderia deixar de ser, em consonância com a profissão que será desempenhada pelos
candidatos aprovados, apresenta um elevado nível de dificuldade e exigência. Dito isso, em um
país com elevado nível de desigualdade social, conforme já exposto, onde a população negra se
vê nos cenários mais economicamente vulneráveis, não é de se espantar que pelo último Perfil
Sociodemográfico feito pelo Conselho Nacional de Justiça, 62% dos juízes são homens,
brancos e católicos, que enquanto homens, mas não apenas homens, homens pertencentes a uma
raça privilegiada e não apenas isso, mas homens brancos privilegiados que professam uma fé
com dogmas conservadores, estão sujeitos a influência de todas estas variáveis.
As garantias asseguradas pelo nosso ordenamento jurídico que preservam o instituto do
juiz natural parecem não ser suficientes para garantir um processo justo diante das
características personalíssimas que o juiz competente pode ou não ter e que podem o levar a
estar mais próximo de uma parte do que de outra. Isso é, a existência de disposição legal acerca
do juiz natural, embora essencial para o acesso à justiça e devido processo legal, pode não
32 LOPES Jr., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação,
2018, pp. 100-105.
33 CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 150.
26
garantir sua essência e finalidade na prática, pois não há como desconsiderar a natureza humana
daquele que ocupa o cargo.
Mesmo atuando dentro das balizas da lei, o julgador é totalmente passível de ser atingido
pelas suas convicções pessoais forjadas ao longo da vida sob as mais variadas influências ao
proferir uma decisão. Caso esta decisão, por se mostrar ilegal ou por estar maculada com o
subjetivo do magistrado não ofereça justiça ao demandante, temos a garantia legal do duplo
grau de jurisdição, que assegura a revisão da decisão por um colegiado.
Mas infelizmente, mesmo assim o demandante ainda pode sofrer injustiça dentro do
sistema, pois uma vez que a maioria dos julgadores disponíveis em todo o Poder Judiciário
possui as mesmas características (homens, brancos, heterossexuais), pode ocorrer a
confirmação do subjetivo do juiz de primeiro grau em vez de uma revisão de fato objetivamente
e subjetivamente imparcial.
O que acontece quando é distribuído a um juiz branco, nascido em família nobre, cujos
círculos sociais são compostos apenas por pessoas brancas, uma ação de danos morais causados
por racismo? Este juiz embora escolhido de forma aleatória, embora legalmente competente,
embora teoricamente imparcial, isso é, este julgador que condiz com o juiz natural, tão
necessário ao justo processo, conseguirá prolatar decisão justa a todo e qualquer caso concreto
que lhe for designado?
Como será demonstrado adiante, ainda que a resposta ideal para estas perguntas seja
“sim”, não podemos ignorar o fato de que um homem branco com formação acadêmica padrão
encontrará sérias dificuldades na apreciação de uma demanda envolvendo racismo, cenário de
vivência que é inegavelmente distante da realidade do julgador comum dentro do nosso Poder
Judiciário.
Esta última afirmação não seria verdadeira se entre os juízes tivéssemos maior
diversidade, se tivéssemos juízes negros na mesma proporção que temos pessoas negras na
sociedade brasileira, desta forma, a aleatoriedade na distribuição das ações seria mais funcional
do que podemos afirmar que é no momento.
Uma sociedade plural e diversificada demanda a compreensão desta realidade em todos
os serviços públicos e quando falamos de acesso à justiça, essa pluralidade e essa complexidade,
inerente as sociedades contemporâneas, devem estar presentes em todas as engrenagens do
sistema judiciário sempre visando o processo justo. Neste sentido, a Reforma do Judiciário que
se deu pela Emenda Constitucional n. 45/2004 já previa a necessidade de preparação e
aperfeiçoamento dos magistrados em formação continuada a fim de que estes consigam
27
absorver as mais complexas e variadas demandas que venham a ser depositadas e confiadas ao
Poder Judiciário.
A fim de preservar a finalidade do juiz natural, é essencial que o magistrado desenvolva
formação humanística e continuada, como nos ensina Fabrício Castagna Lunardi:
Numa sociedade cada vez mais complexa, na qual se desenvolvem novas tecnologias,
novas formas de viver em sociedade, em que surgem novos direitos, novas
reivindicações e onde os saberes são cada vez mais especializados, o Poder Judiciário
precisa estar constantemente se modernizando, sob pena de se afastar da sociedade e
perder a sua própria legitimidade.
Nesse ínterim, o juiz não pode decidir conflitos contemporâneos com base em
perspectivas ultrapassadas, numa tradição ou num contexto que não mais existem.34
O princípio do juiz natural deve ser aplicado de forma que possa garantir um julgador
imparcial para todos aqueles que demandarem e não só àqueles que se encontram próximos a
realidade do juiz, pois, nesse sentido, considerando que imparcial é o juiz que se encontra
igualmente equidistante das partes, se o juiz dentro do caso concreto de demandas envolvendo
racismo não tiver qualquer familiaridade com o demandante negro, mas conseguir se identificar
pessoalmente com o demandado branco, não teremos como garantir que essa equidistância
permanecerá igual entre o juiz e as duas partes.
Quando o magistrado consegue absorver a narrativa da pessoa branca, mas não consegue
absorver a da pessoa negra pela carência de proximidade no plano real com essa vivência,
vemos ser comprometida sua imparcialidade, pois ele naturalmente já está mais próximo do
demandado branco do que do demandante negro. Um princípio tão essencial ao real acesso à
justiça não pode contemplar apenas parte da população e deixar fora da sua proteção uma
minoria racial tão numericamente expressiva no país.
Ao tratarmos do acesso à justiça por minorias raciais é imperativo revisitar o princípio
do juiz natural, pois além de naturalmente não ser neutro, o julgador tem sua imparcialidade
comprometida pela mera natureza da causa.
O princípio do juiz natural tradicionalmente carrega o pressuposto de que o julgador
poderá se manter frente a demanda mantendo igual distância entre si mesmo e as partes,
enquanto ente abstrato aplicando a norma ao caso concreto, não importando o teor da demanda,
no entanto, pelo que Adilson José Moreira chama de Hermenêutica Negra, conforme será
exposto mais a frente, verificamos que a interpretação tradicional feita pelos julgadores, da
norma a ser aplicada no caso concreto acaba sendo inerente ao exercício deste princípio, porém
não se mostra adequada para a realidade de pessoas negras pois está fundamentada na premissa
de neutralidade racial.
34 LUNARDI, Fabrício Castagna. Curso de direito processual civil – São Paulo: Saraiva, 2016, p. 253.
28
Não podemos desconsiderar a raça dos julgadores, não podemos desconsiderar a raça
dos demandantes e o fato de que negros estão em uma posição inferior aos brancos nas relações
de poder, sendo assim, quando interpretamos a atuação do juiz natural sob a perspectiva de uma
pessoa negra podemos começar a observar como esse princípio pode atuar como óbice ao acesso
à justiça de minorias raciais.
29
35Redação da Revista Fórum. Erica Malunguinho: O sistema que está aí é fruto da branquitude; é hora de alternar
o poder. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/politica/erica-malunguinho-o-sistema-que-esta-ai-e-fruto-
da-branquitude-e-hora-de-alternar-o-poder/>.
30
este sistema e que por sua vez o reproduzem, trabalham de forma sistemática para a manutenção
dos negros na base da hierarquia racial que rege nossa sociedade.
A maioria dos negros do nosso país vivem nas piores áreas da cidade, tem os piores
níveis de escolaridade e as piores rendas, todos esses elementos estão interligados em uma
cadeia onde um aciona o outro em um eterno ciclo vicioso. Por ter baixa renda as famílias
negras moram nas periferias e seus membros começam a trabalhar ainda crianças ou no início
da adolescência, o que pode resultar no abandono escolar pela necessidade de trabalho em
tempo integral ou, em cenários trágicos e não tão raros, essas mesmas crianças e adolescentes
podem se envolver com trabalhos paralelos e marginais, sendo que este segundo caminho
conduz aos altos índices de jovens negros presos ou mortos, ainda mais em um país cuja Polícia
promove de forma tão competente o genocídio da população negra. Porém, mesmo se essas
pessoas negras que se encontrem neste cenário periférico e de pobreza conseguirem se manter
na escola e concluir o ensino médio, adentrar no ensino superior e mercado de trabalho também
representam um enorme desafio tendo a raça como obstáculo principal. Mais uma vez vemos
esse inquebrável ciclo vicioso, onde morando na periferia trabalhar é imperioso e a ausência de
profissionalização e o preconceito levam a ocupação de subempregos que demandam horas e
horas dentro do transporte público entre trabalho e casa, o que acaba por frustrar as tentativas
de estudo para ingressar em uma universidade pública, enquanto por outro lado os parcos
salários não comportam a mensalidade de uma universidade particular.
Todo esse desanimador cenário torna o caminho até uma carreira de magistratura algo
incrivelmente desafiador e repleto de obstáculos. Não é à toa que negros representam tão baixa
porcentagem entre os julgadores do nosso sistema judiciário, mas com certeza representam a
maioria entre os seguranças e faxineiros dos fóruns e tribunais.
O Poder Judiciário brasileiro está repleto de homens brancos e essa ausência de
diversidade não apenas é sintomática da estrutura social do país, como também reflete no
processo de tomada de decisões. A ausência de minorais no sistema judiciário fomenta o
racismo institucional presente nestes órgãos públicos gerando tratamento diferenciado àqueles
pertencentes a essas minorias e reproduzem e consolidam de forma eficaz as narrativas
emanadas pelos grupos majoritários comprometendo a legitimidade das decisões judiciais.
É justamente constatando essa defasagem na legitimidade das decisões judiciais
exaradas por cortes brancas, que a professora Sherrilyn A. Ifill defende a necessidade de
diversidade racial entre juízes e jurados no seu estudo “Racial Diversity on the Bench: Beyond
Role Models and Public Confidence” que é de grande valor para o que será discutido ao longo
desse trabalho, porém neste momento específico, dois pontos são cruciais, quais sejam, o
31
tratamento dispensado aos negros por um Poder Judiciário repleto de brancos, que nesse
trabalho atribuiremos ao racismo institucional e a reprodução da hierarquia racial pelos
membros desse órgão; e a hegemonia da narrativa branca que não é desafiada devido a ausência
de negros julgadores.
36 Leonel Jr, Gladstone. Jogos jurídicos e racismo: um retrato dos negros no Sistema de Justiça do Brasil.
Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2018/06/19/jogos-juridicos-e-racismo-o-raio-x-do-lugar-do-
negro-no-sistema-de-justica-do-brasil/>.
37 Nunes, Thais. Ordem é abordar indivíduos negros e pardos. Disponível em
<https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/01/ordem-e-abordar-individuos-negros-e-pardos.html>.
32
dos Santos que foi algemada e presa em plena sala de audiências no Rio de Janeiro
simplesmente por exigir as garantias do devido processo legal para sua cliente e também,
obviamente, por ser negra.
Poderia citar mais dezenas, centenas, milhares de casos e todos eles cumpririam o seu
papel de representação do tratamento oferecido aos indivíduos negros pelos Poderes do país em
todos os seus desmembramentos e repetirei o que já foi escrito no início desse capítulo: o nosso
Poder Judiciário, em especial, reflete e reproduz o racismo incrustrado na nossa sociedade que
por sua vez promove a estratificação social condicionando as minorias raciais a um estado de
subordinação. Nesse sentido, podemos observar o fenômeno crescente do encarceramento em
massa de jovens negros sob a fachada da guerra às drogas, não apenas no Brasil, mas ao longo
das Américas. Michelle Alexander nos traz o dado de que há mais negros que se encontram
encarcerados atualmente do que a quantidade de negros que eram escravos em 1850 nos Estados
Unidos38 e que essa marca deixada pelo sistema prisional na vida de pessoas negras reproduz
os efeitos da segregação racial formalmente extinta, gerando a estratificação social. No Brasil,
negros recebem maior rigidez da Justiça, pois “Enquanto 49,4% dos brancos detidos
permaneceram presos e 41% receberam liberdade provisória com cautelar, tais percentuais
alcançam 55,5% e 35,2% quando se trata de pessoas negras”39. Sendo assim, os sistemas
jurídicos e prisionais trabalham pela manutenção das hierarquias raciais.
Dentro das instituições públicas, esse racismo se manifesta em sua vertente institucional,
sendo aquele que “decorre necessariamente do alto grau de naturalização da hierarquia racial e
dos estereótipos que inferiorizam determinado grupo enquanto afirmam a superioridade de
outro”40. Adilson José Moreira, também destaca o fato de que:
Além de poderem agir de forma discriminatória, os membros dos grupos sociais
dominantes podem criar ou conformar as regras de funcionamento de instituições
públicas e privadas para que elas operem de acordo com seus interesses. Isso significa
que a discriminação contra minorias possui também um caráter sistêmico porque ela
está presente nas diversas instituições sociais, organizações que atuam de forma
integrada no processo de exclusão. O funcionamento desses mecanismos impede o
acesso a oportunidades aos membros de minorias em uma série de situações ao longo
do tempo e em diversas áreas da vida pessoal, o que contribui para a formação de
processos de estratificação de caráter durável (TILLY, 1998; MASSEY, 2007).41
38 ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness. New York:
The New Press, 2010.
39
MARTINS, Helena. “Lei de Drogas tem impulsionado encarceramento no Brasil”. Agência Brasil – EBC, 2018.
Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/lei-de-drogas-tem-impulsionado-
encarceramento-no-brasil>. Acesso em 23.10.19.
40 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; LYRIO, Caroline. Racismo institucional e acesso à justiça: uma análise da
Negros não estão expressivamente presentes no Poder Judiciário pelos mais variados
motivos, sendo que os principais já foram discutidos no item acima. Ocorre que, além da
manutenção do status quo consistente na promoção da estratificação das minorias raciais, essa
ausência causa um impacto direto no processo de tomada de decisões.
No já citado estudo da professora Sherrilyn A. Ifill, ela defende como a diversidade
racial se mostra ser um meio de alcançar pluralidade cultural nas decisões e não apenas isso,
mas também se mostra como um mecanismo de garantia de imparcialidade na medida em que
os valores e ponto de vista de determinado grupo não dominarão o teor das decisões.
Porém, no quadro atual do Poder Judiciário brasileiro, com a grande maioria dos juízes
sendo brancos, ocorre justamente essa hegemonia do discurso da branquitude nas decisões
judiciais, isso porque, assim como a condição subalterna do negro no Brasil o prende em um
ciclo vicioso, a condição privilegiada do branco também o condiciona a um ciclo que embora
não o subjugue, é igualmente vicioso, pois brancos circulam por ambientes privilegiados
acessados apenas por pessoas brancas o que coloca essas pessoas em contato apenas com os
seus iguais criando uma isoladora bolha de privilégios que limita o contato desses indivíduos
34
com outras realidades e por consequência impede a influência destas realidades no processo de
tomada de decisão.
Essa distância existente entre o julgador enquanto homem branco privilegiado e as
realidades da minorais que compõe nossa sociedade, é a causadora da ausência de intimidade
do juiz branco com questões raciais, que poderiam ser supridas por uma formação
complementar, o que na prática infelizmente não ocorre, mas voltaremos nesse ponto mais a
frente, porque além disso, essa distância é causadora da potencialização da influência que os
estereótipos negativos que recaem sobre a população negra têm na consciência dos juízes e
demais membros do Poder Judiciário.
O juiz, sendo ele negro, pardo ou branco, assim como todos nós, está sujeito às
influências do, e é moldado pelo, meio em que convive. A professora Sherrilyn A. Ifill trazendo
as discussões propostas por Delgado e Stefancic, nos relembra que juízes, assim como todos
nós, existem dentro de "realidades construídas" e veem o mundo a através das lentes de seu
próprio conhecimento e experiências que acabarão por embasar o senso de justiça indispensável
para o desempenho de sua função. O problema disso é quando as experiências do juiz e o
conhecimento extraído dessas experiências se encontram presos dentro dessa bolha de
privilégios supracitada. Isso significa dizer que a base do senso de justiça do julgador está
intimamente atrelada à sua experiência pessoal e sua experiência pessoal, por vezes, pode se
resumir ao fato dele ser branco e considerando que cerca de 54% da população nacional é
composta por pardos e pretos, esse juiz consequentemente e naturalmente apresentará um senso
de justiça distante da realidade da maioria do país.
E não apenas isso, mas em uma sociedade indubitavelmente racista, afirmar que somos
influenciados pelo nosso meio de convívio e que as experiências pessoais são determinantes
para a forma que vemos o mundo, também é afirmar que o juiz branco que convive em
ambientes brancos e cuja experiência pessoal é essencialmente decorrente do seu lugar no topo
da hierarquia racial, está sujeito, sendo ou não conscientemente racista, a reproduzir racismos.
Soma-se a isso o fato de que o juiz é peça do mecanismo de opressão movido pelo racismo
institucional no Poder Judiciário e nos deparamos com um grave problema de
comprometimento da legitimidade das decisões judiciais impregnadas pelo racismo.
Começamos a ver então a contaminação do princípio do juiz natural. Pelo nosso
ordenamento, o juiz será designado para julgar determinado processo mediante distribuição
aleatória entre os magistrados materialmente e territorialmente competentes, porém,
considerando que este juiz natural será sorteado entre um grupo de pessoas com a mesma
característica, isso é, brancos; e partindo da premissa apresentada por Ifill de que a ausência de
35
diversidade compromete até mesmo a imparcialidade, o princípio do juiz natural embora tenha
sido disposto com ares de neutralidade, na verdade esconde a reprodução compulsória do ponto
de vista do grupo dominante já que a imparcialidade inerente à essa função restará deficitária
pela ausência de diversidade racial entre os juízes.
A fim de demonstrar o impacto dessa hegemonia discursiva nas decisões, foram
reunidos alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos quais se discutiu
possibilidade de fixação de indenização pelos danos morais causados por atos de racismo no
geral. Os resultados da análise que será feita a seguir são preocupantes porque demonstram que
na maioria dos casos apenas a discriminação incontestavelmente intencional caracteriza o
racismo, nesses casos se reconheceu a configuração dos danos morais com direito à indenização
que nem sempre correspondem a média das demais indenizações por danos morais fixadas por
este Tribunal; os resultados também demonstram que muitas vezes o que sob os olhos de uma
pessoa negra é claramente um ato de racismo, passa despercebido pela Turma Julgadora sob a
alegação de não caracterização ou não demonstração do ato de racismo e por fim, pode ocorrer
de mesmo quando caracterizado racismo não gerar indenização.
Nesse caso concreto, expõe a autora que foi chamada de “neguinha” pelo ex-cônjuge de
sua amiga quando tentava separar uma briga do ex casal, e diante dessa ofensa ajuizou ação
indenizatória pelos danos morais sofridos. Em sede de contestação, o réu confirmou que se
utilizou do termo, porém negou o cunho racista. A ação foi julgada procedente, condenando o
réu a indenizar a autora na quantia de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Inconformado o réu apelou,
42TJSP, Apelação Cível 0001132-80.2014.8.26.0106, Relator J.B. Paula Lima, 10ª Câmara de Direito Privado,
Data do Julgamento: 02/04/2019; Data de Registro: 02/04/2019.
36
alegando em suma “que não houve intenção de ofender; que não é racista; que não se
comprovou comportamento preconceituoso”, foi negado provimento à apelação sendo
reconhecida na fundamentação do acórdão “O uso da palavra tem a conotação pejorativa por si
só, tencionando o agressor demonstrar inferioridade e desrespeito em relação ao seu
semelhante”, sendo mantido o valor fixado em sentença.
Aqui podemos observar primeiramente o discurso do réu que é amplamente conhecido
e reproduzido que alega ter feito uso da palavra racista sem intenção de ofender, defendendo
que não é uma pessoa preconceituosa e apenas falou sem pensar no calor da discussão, em
segundo lugar podemos observar o posicionamento do desembargador relator que captou a
essência que apenas o uso da palavra já traz consigo o espírito de diminuir outrem.
No entanto, não obstante esse caso à primeira vista nos pareça ser um caso de sucesso,
chamo atenção para o fato de que essa mesma câmara julgadora e esse mesmo desembargador
relator reconheceram o dano moral em um caso onde o autor emitiu seis cheques sem fundo e
sem notificação prévia teve seu nome inserido no cadastro de inadimplentes, fixando a quantia
de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) de indenização 43. Foi dado ao demandante que emitiu cheques
sem fundo mais que o dobro da indenização que foi dada à mulher chamada de “neguinha”.
Independente da disparidade entre as indenizações especificamente nos casos
apresentados acima, é interessante notarmos que nos casos onde foi reconhecido a ocorrência
do racismo ou injúria racial com direito a indenização, simplesmente não haveria como não ser
reconhecido devido a própria confissão do réu ou incontestável prova testemunhal ou
documental juntada aos autos44, enquanto que, conforme veremos a frente, não há
reconhecimento ou indenização quando o racismo se manifesta não pela injúria racial no uso
de palavras ofensivas, mas em comportamentos derivados da atribuição de estereótipos
prescritivos e descritivos às pessoas negras.
43
TJSP, Apelação Cível 1006618-24.2017.8.26.0009, Relator J.B. Paula Lima, 10ª Câmara de Direito Privado,
Data do Julgamento: 04/06/2019; Data de Registro: 04/06/2019.
44 Nesse sentido ver: TJSP, Apelação Cível 1002421-81.2016.8.26.0002, Relator J.B. Paula Lima, 10ª Câmara de
Direito Privado, Data do Julgamento: 26/03/2019, Data de Registro: 26/03/2019; TJSP, Apelação Cível 1025807-
43.2016.8.26.0196, Relator Alcides Leopoldo, 4ª Câmara de Direito Privado, Data do Julgamento: 25/05/2015,
Data de Registro: 15/05/2019; TJSP, Apelação Cível 1004465-75.2016.8.26.0066, Relatora Rosangela Telles, 2ª
Câmara de Direito Privado, Data do Julgamento: 28/05/2012, Data de Registro: 26/04/2019.
37
Nesse caso concreto, expõem os autores que, um deles foi contratado para prestar
serviço a um dos réus e que na ocasião do término do serviço, se dirigiu até a casa do contratante
acompanhada de sua irmã, também autora, para receber o pagamento, porém o contratante ao
perceber que estava sem dinheiro, pediu para os autores que o acompanhassem até o banco onde
ele faria o saque e o pagamento do serviço na sequência. Segundo narrado na petição inicial,
quando estavam todos no carro no caminho para o banco, o carro foi parado pela Polícia que
informou ter denúncia do filho do contratante e também réu desta ação, que ao ver o pai
acompanhado de duas pessoas negras imediatamente deduziu que se trataria de um sequestro.
Os autores ajuizaram a ação de indenização de danos morais sob a alegação de terem sido
discriminados por serem negros. A ação foi julgada improcedente fundamentada no
entendimento de que as provas não demonstraram que a conduta dos réus foi racista.
Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação, porém não obtiveram sucesso
uma vez que a este foi negado provimento.
A desembargadora relatora exarou o seguinte entendimento:
Ora, acionar a autoridade policial diante da desconfiança de que alguém está sendo
vítima de um crime não constitui ato ilícito. Não há prova de que o réu João Ricardo
tenha agido porque os autores são negros. A discriminação racial, que de fato é uma
conduta odiosa, deve estar caracterizada sem qualquer dúvida, não bastando meras
ilações.
Aqui, a desembargadora entende que a discriminação racial deve estar comprovada sem
qualquer dúvida, entendendo ser a interpretação dos autores “meras ilações”, meras deduções
que não comportam a indenização pretendida. Por onde começar? A desembargadora optou por
entender que não houve discriminação racial no fato de que pessoas negras no carro de um
homem branco foram prontamente associadas a criminosos, afirmando que atribuir a denúncia
45
TJSP, Apelação Cível 1002653-70.2015.8.26.0506, Relatora Mônica de Carvalho, 8ª Câmara de Direito Privado,
Data do Julgamento: 21/01/2014; Data de Registro: 25/03/2019.
38
ao racismo dos réus seria simplesmente uma dedução. Isso é, por não terem sido utilizadas
palavras e expressões racistas e também pelo fato de que os réus afirmaram não terem agido
movidos pelo preconceito, foi entendido pela julgadora que não estaria caracterizado o racismo.
Esses acórdãos são proferidos por turmas julgadoras formadas por três desembargadores
e o julgamento foi unânime para reconhecer a ausência de racismo, demonstrando na prática o
que Ifill diz em seu estudo acerca da necessidade de pluralidade de pontos de vista e valores
nos julgamentos. Para qualquer pessoa negra ou para qualquer estudioso das questões raciais
no Brasil, é simples ver como os réus nesse caso não precisariam dizer com todas as palavras
que somente acharam que os autores eram sequestradores porque os mesmos são negros para
ter sua atitude classificada como racista, podemos observar que eles agiram motivados pelos
estereótipos negativos reproduzidos e difundidos acerca da população negra, de forma que não
é necessário nenhuma maior, nas palavras da desembargadora, “comprovação de que a conduta
tenha sido fundada no fato de os autores serem negros”.
Neste caso concreto, foi narrada uma situação que entre outros detalhes, em meio a uma
discussão envolvendo o autor e o réu, este último reiteradas vezes chamou o autor de “macaco”,
situação que foi inclusive comprovada por prova testemunhal. A sentença de 1º grau julgou a
ação improcedente não obstante o reconhecimento de que a ofensa proferida pelo réu é de fato
injúria racial, inconformado o autor interpôs recurso de apelação ao qual foi negado
provimento. No acórdão de julgamento, o desembargador relator também reconheceu que de
46TJSP, Apelação Cível 0120740-42.2004.8.26.0100, Relator Rui Cascaldi, 1ª Câmara de Direito Privado, Data
do Julgamento: 25/08/2015, Data de Registro: 25/08/2015.
39
fato restou comprovada a existência de injuria racial, mas uma vez que a referida palavra
ofensiva foi proferida em meio à uma discussão “as ofensas à honra mutuamente proferidas
acabam por se neutralizar”.
O desembargador relator reconheceu a injúria racial, porém entendeu que ela teria o
peso de qualquer outra ofensa trocada no “calor da discussão” de forma que tudo o quanto foi
dito pelas partes se anulariam e a ofensa à honra não poderia ser caracterizada. Importante
ressaltar, saindo brevemente da seara civil, que o Código Penal no seu art. 140 dispõe acerca
do crime de injúria, cuja pena é de detenção, de um a seis meses, ou multa, e no § 3º desse
mesmo artigo temos disposto o crime de injúria racial, cuja pena é de reclusão de um a três anos
e multa, isso é, o crime de injúria racial não é igual ao crime de injúria, sendo o primeiro a
versão qualificadora do segundo, razão pela qual a pena é de reclusão e não mais de detenção
devido a seriedade e peso desse ato ilícito. Nosso ordenamento nos demonstra que nem toda
ofensa é igual, especialmente quando pautada na raça do indivíduo, porém, aparentemente o
desembargador relator parece discordar, concluindo que as proferidas ofensas à honra se
anulariam como em uma simples equação matemática ignorando o peso histórico e emocional
que essa palavra tem na comunidade negra.
Embora a influência dos precedentes judiciais, ao contrário do que acontece nos Estados
Unidos, não seja necessariamente determinante para o resultado do julgamento, esses julgados
acima expostos e os tantos outros que foram proferidos nesse mesmo sentido expressam a forma
como o Poder Judiciário recebe os casos de racismo e injúria racial e se mostram problemáticos
principalmente se vistos como narrativas culturais sob as premissas da Teoria Racial Crítica.
Sherrilyn Ifill ensina que as narrativas culturais são nada mais nada menos que as
histórias que permeiam e definem nossa cultura e que podem influenciar a forma como
determinada comunidade interpreta a realidade, ela chama atenção para o fato de que além
dessas narrativas expressarem os valores sob os quais se formam a comunidade, elas também
contêm registros da relação desta comunidade com as demais. Previamente nesse mesmo
trecho, Ifill aponta que as diferentes experiências vividas por negros e brancos produzem
diferentes realidades e diferentes narrativas culturais47.
Os pensadores da Teoria Racial Crítica defendem que decisões judiciais também são
narrativas culturais. Adilson José Moreira nos traz que em um processo judicial as partes
contam histórias e cabe ao juiz analisar e associar essas narrativas a fim de produzir uma nova
narrativa e citando Susan Silbey ele explica que:
47IFILL, Sherrilyn A. Racial Diversity on the Bench: Beyond Role Models and Public Confidence. Washington
and Lee Law Review, V. 57, 2000, p. 439.
40
48MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural. Revista Direito
Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 830-868, 2017.
41
Foi exposto que o princípio do juiz natural se mostra um óbice ao acesso à justiça de
pessoas negras, isso porque o juiz padrão do sistema judiciário brasileiro é um homem branco
e enquanto homem branco ele está assentado no topo da cadeia racial e social que rege nossas
interações, é dessa posição que ele vê o mundo, é dessa posição que ele extrai seus valores e é
dessa posição que ele se expressa. A professora Ifill chama atenção para o fato de que a raça é
altamente significativa no processo de construção de perspectivas e valores, sendo a perspectiva
a forma como vemos o mundo e valores as regras e padrões por meio dos quais uma comunidade
organiza e valora suas condutas, o resultado é de que a raça influencia diretamente a forma
como vemos o mundo. Ifill também defende que perspectivas e valores influenciam fortemente
o julgador no processo de tomada de decisão. E assim, ligando os pontos: a raça, por mera
consequência, desempenha papel importante neste processo de tomada de decisão.
Partiremos então do pressuposto de que o processo de tomada de decisão restará
estampado, ou inconscientemente refletido, na parte de fundamentação das decisões judiciais.
O Código de Processo Civil no seu art. 489, dispõe os elementos essenciais de uma sentença,
quais sejam: relatório, fundamentação e dispositivo. Antes mesmo de ter sido disposta no
Código de Processo Civil, a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais em razão
de sua importância já era norma constitucional (art. 93, IX, Constituição Federal), sendo este
nosso interesse principal nesse momento. Marinoni e Mitidiero nos ensinam que:
A motivação da decisão no Estado Constitucional, para que seja considerada completa
e constitucionalmente adequada, requer em sua articulação mínima, em síntese: (a) a
enunciação das escolhas desenvolvidas pelo órgão judicial para: (a1) individualização
das normas aplicáveis; (a2) acertamento das alegações de fato; (a3) qualificação
jurídica do suporte fático; (a4) consequências jurídicas decorrentes da qualificação
jurídica do fato; (b) o contexto dos nexos de implicação e coerência entre tais
enunciados; e (c) a justificação dos enunciados com base em critérios que evidenciam
ter a escolha do juiz ter sido racionalmente correta.49
A fundamentação da sentença judicial é a parte mais importante pois nela encontramos
não apenas a aplicação da norma ao caso concreto, mas especialmente a motivação do julgador,
sua linha de raciocínio e justificação para a escolha da saída jurídica adotada e apresentada para
a demanda. Considerando que a ausência de fundamentação adequada implica na nulidade da
sentença, o atual Código de Processo Civil tomou especial cuidado em dispor minuciosamente
todas as hipóteses em que a decisão não será considerada fundamentada blindando o processo
de decisões arbitrárias não legalmente embasadas.
49SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
42
Não obstante toda a preocupação dos nossos diplomas legais com a fundamentação das
decisões, essas não teriam como escapar das influências do subjetivo do juiz, isso porque
primeiramente como nos demonstra Ifill há invariavelmente a interferência de nossos valores e
perspectivas pessoais e também porque assumimos a figura do juiz enquanto ator ideológico
que embora deva ser inerentemente imparcial, é naturalmente incapaz de ser neutro.
Duncan Kennedy, no seu trabalho “Strategizing Strategic Behavior in Legal
Interpretation”50, analisa as decisões judiciais a partir de como se dá a interpretação e aplicação
do ordenamento jurídico pelo juiz que possui preferências ideológicas, este trabalho se propõe
a identificar as estratégias aplicadas por esses julgadores ao interpretar a lei moldando-as de
acordo com sua preferência ideológica. Nesse sentido, analisando as manifestações das
ideologias liberais e conservadoras nos resultados judiciais, o autor expõe a ideia de que, em
tradução livre, frações da intelligentsia liberal e conservadora são empoderadas através das
decisões judiciais para colonizar partes da hierarquia legal que não puderam ser influenciadas
por estas ideologias quando do processo legislativo e que negar a ideologia nas decisões
judiciais acabar por causar um efeito de legitimação desta prática51. Adilson José Moreira nos
esclarece que:
Nesse sentido, Duncan Kennedy afirma que decisões judiciais universalizam projetos
ideológicos porque utilizam argumentos que avançam os interesses de grupos
particulares ao identificar suas posições como um projeto legítimo para a comunidade
política. Esses projetos são usualmente formulados por intelligentsias ideológicas que
têm certos propósitos na definição do sentido de normas jurídicas. A interpretação
delas em uma direção ou outra tem um papel importante na definição do status social
dos grupos que discutem seus significados.52
Temos então, que a simples escolha de uma saída jurídica em detrimento de outra já
teria a capacidade de denunciar a influência ideológica atuante sobre o julgador, embora Ducan
Kennedy nos aponte que invariavelmente esse julgador negará qualquer influência do tipo
afirmando que o resultado se deu por interpretação feita de forma impessoal, essa negação
reiteradamente feita pelos juízes e tacitamente aceita pela sociedade e pelos juristas, não muda
o fato de que essas influências ocorrem e geram impactos na forma que essas questões serão
futuramente tratadas na medida em que se criam precedentes.
Duncan Kennedy ainda firma a ideia de que a preferência ideológica liberal ou
conservadora consiste na tendência do julgador em escolher saídas jurídicas, leis, que estão
associadas às ideias de liberalismo ou conservadorismo. Seguindo essa linha de raciocínio, no
50 KENNEDY, Duncan. Strategizing Strategic Behavior in Legal Interpretation. Utah Law Review, pp. 785-825,
1996.
51 Ibidem, p. 797.
52 MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural. Revista Direito
Brasil, no contexto forte de democracia racial que vivemos, e considerando que os julgadores
advêm de uma camada branca e elitista, esses julgadores poderão ser influenciados pela
ideologia da democracia racial53 para decidir casos de racismo mediante a aplicação e
interpretação da lei de forma que se molde à ideologia influente. Particularmente no caso 2
exposto no capítulo anterior, dos irmãos negros falsamente acusados de sequestro por estarem
na companhia de um homem branco, vemos a fundamentação judicial permeada da ideologia
da democracia racial consistente no discurso de que a raça dos envolvidos não era relevante e
que a suposição de que se tratavam de criminosos se deu por outros motivos que não a raça e
cor da pele, resultando em um dispositivo de desprovimento do recurso de apelação baseado no
entendimento de que não restou comprovado o racismo no caso concreto, o que nos permite
constatar mais um reflexo da influência da democracia racial na resolução do caso, isso porque
restou caracterizado o entendimento de que não houve racismo porque não estava
expressamente presente no caso concreto uma conduta individualizada, arbitrária e
intencionalmente discriminatória por parte do réu que fez a falsa acusação para com os autores.
Isso é, optou-se pela não aplicação do embasamento legal invocado pelos autores, o que
por si só já é indicativo da atuação de ideologias particulares do julgador no processo decisório.
Nesse sentido, por todo o exposto, há que se acreditar que se tivéssemos como relator deste
recurso, um julgador que não reproduz o mito da democracia racial, o resultado estampado no
dispositivo da decisão, bem como o raciocínio jurídico desenrolado ao decorrer da
fundamentação seriam essencialmente diferentes destes apresentados no referido acórdão54.
Quando atribuímos ao julgador o caráter de ator ideológico estamos dizendo que ele não
julgará de forma neutra, pois desempenhará sua função sobre a influência de seu subjetivo.
Nesse sentido, a percepção que o julgador tem da realidade é produto do lugar em que ele ocupa
na hierarquia social, de forma que não podemos desconsiderar o impacto da raça em todo esse
processo, uma vez que o julgador enquanto homem branco ocupa lugar privilegiado nesta
hierarquia e é desse lugar que ele extrai sua visão de como se dão as relações sociais, o que em
uma cadeia sequencial acabará por influenciar as decisões judiciais.
53 Ideologia cuja principal premissa se assenta na ideia de que não há racismo no Brasil. Luciana Jaccoud e Nathalie
Beghine apontam as denúncias levantadas pelo Movimento Negro na década de 70 para atribuir à democracia
racial o caráter de mito, pois esta propaga que “a mestiçagem seria vocação peculiar brasileira; não existiriam
conflitos raciais; a escravidão teria sido benigna; e, por fim, o desenvolvimento econômico haveria de
desmanchar os resíduos do preconceito e do racismo e promover a inclusão da população negra”.
54 No caso concreto, a relatora finaliza a fundamentação afirmando que “Somente diante de inequívoca expressão
Se estamos afirmando que a raça tem significativo impacto na forma como vemos o
mundo e está diretamente conectada ao nosso processo de formação de perspectivas, isso
significa dizer que a raça consequentemente também exercerá influência quanto às ideologias
que permearão nosso subjetivo e tudo isto está diretamente ligado ao lugar que ocupamos na
sociedade, pois conforme dito no início deste capítulo, é deste lugar que vemos o mundo e que
nos expressamos acerca do mundo.
Djamila Ribeiro em sua obra “O que é lugar de fala”, firma os entendimentos acerca do
conceito de lugar de fala, partindo principalmente da teoria do feminist standpoint de Patrícia
Hill Collins e a ideia de que esta teoria “precisa ser discutida a partir da localização dos grupos
nas relações de poder”55, localização esta que os submetem a condições sociais que acabam por
impedir o acesso desses grupos à determinados lugares e oportunidades. Sendo assim, falar
sobre lugar de fala é entender como o lugar ocupado por determinado grupo dentro da hierarquia
social dificulta o acesso deste grupo a determinados lugares e espaços o que por consequência
também impede que as narrativas culturais produzidas por esse grupo alcancem esses outros
lugares e espaços. Sendo assim, para entender como as relações se dão na esfera judicial
devemos ter clara a marcação do lugar de fala do demandante e do lugar de fala ocupado pelo
julgador que desempenha a função do juiz natural uma vez que “o lugar que ocupamos
socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas” 56.
O grupo formado pela parcela negra da população está posicionado na base da hierarquia
social, em posição inferior às camadas privilegiadas de onde vem os julgadores. Sendo assim,
pessoas negras por ocuparem este lugar na base são impedidas de ocupar espaços como cargos
de destaque do Poder Judiciário, sendo este um dos fatores que implicam na ausência de
diversidade racial desse meio. Diante deste cenário, pensaremos lugar de fala também como ato
de poder existir nesses lugares e “refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de
saberes consequente da hierarquia social”57.
O lugar de fala do demandante, e nesse caso específico, da pessoa negra que propõe uma
ação perante o Poder Judiciário, invariavelmente será mais complexo que o lugar de fala
daquele investido para receber essa ação, isso porque, quase sempre o demandante por ser negro
não estará sujeito a apenas um vetor de discriminação, no caso a raça, mas sim múltiplos,
55 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, pg. 63.
56 Ibidem, p. 71.
57 Ibidem, p. 66.
45
58
“A teoria da discriminação interseccional está baseada na premissa de que a luta contra a subordinação requer a
consideração da ação concomitante de diferentes vetores de discriminação que colocam os sujeitos em uma posição
estruturalmente distinta daqueles com os quais são geralmente comparados” definição dada em: MOREIRA,
Adilson José. Direitos fundamentais como estratégias anti-hegemônicas: um estudo sobre a
multidimensionalidade de opressões. Revista Quaestio Iuris, v. 09, nº 03, Rio de Janeiro, 2016.
59 MOREIRA, Matheus; DIAS, Tatiana. O que é lugar de fala e como ele é aplicado no debate público.
60 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, p. 60.
46
que ocupam o topo da hierarquia social a validação do discurso de que não há racismo e que
toda disparidade advém das diferenças entre as condições socioeconômicas.
Aqui, trago novamente os três julgados apresentados no capítulo anterior para
demonstrar o quão fortemente presente está essa ideia de que a experiência pessoal do julgador
é representativa da realidade universal e como outras narrativas não conseguem atingir a
fundamentação da decisão resultando em uma fundamentação embasada quase que
exclusivamente na percepção do julgador, percepção esta decorrente do seu lugar de fala, que
naturalmente difere da percepção da parte demandante. Dos três casos apresentados, somente
em um deles, mais especificamente o 3º caso – uso da palavra “macaco” como xingamento –
podemos verificar a utilização de qualquer apoio externo para fundamentação da decisão.
Nos outros dois julgados toda a fundamentação foi feita sem a utilização de qualquer
doutrina, jurisprudência, estudos, dados estatísticos ou qualquer outra fonte que pudesse
sustentar o raciocínio (em tese) jurídico apresentado pelo julgador, dessa forma, essas decisões
enquanto narrativas pautam a forma que esse assunto será tratado e recebido pelo Poder
Judiciário e o fato de serem fundamentadas na percepção do julgador produz resultados danosos
para a população negra, pois consolidam entendimentos como “O preconceito racial não admite
presunção, até porque constitui conduta tão perniciosa que afronta a natureza do Homem” que
reiteram a cegueira proposital acerca dos desdobramentos do racismo estrutural no país, por
exemplo.
O 3º caso, que conforme citado acima, conta com a utilização de precedente para a
fundamentação do raciocínio jurídico apenas serve ao propósito de demonstrar como são
perigosas as narrativas consolidadas por decisões judiciais neste contexto, pois o relator traz
em sua decisão um julgado onde foi exarado o entendimento de que a injúria racial não
caracteriza ofensa à honra quando proferida em um contexto de discussão com mútuas ofensas.
Como uma pessoa integrante do grupo social composto pela população negra de forma e
estando sujeita às mesmas experiências dos demais integrantes deste grupo, eu posso afirmar
que não é essa a percepção que eu tenho em relação à injúria racial proferida em uma discussão,
porém, pelo fato de não poder ocupar determinados lugares e a minha narrativa não ter as vestes
de legitimidade que a narrativa branca tem, a percepção do julgador é tida como representativa
da realidade e é reproduzida pelo sistema judiciário.
Pensar lugar de fala nos processos decisórios nos leva a entender e visualizar o
fluxograma de como a narrativa branca é reiteradamente validada pelas decisões judiciais, pois
estas são proferidas por aqueles que sempre tiveram autorização para falar por ocuparem
posição privilegiada criando assim uma hegemonia discursiva. Para a quebra desta hegemonia
47
se faz necessário o reconhecimento de outras narrativas que trarão os conflitos necessários para
as mudanças61 necessárias no tom das narrativas consolidadas pelas decisões judiciais.
BRANCO
Por fim, reconhecendo o juiz enquanto sujeito ideológico que ocupando lugar de fala
tão diverso do lugar de fala do demandante reproduz suas percepções pessoais nos casos de
racismo, nos resta entender um pouco mais acerca da figura desse juiz e seus mecanismos de
atuação e interpretação que operam de forma a afastar minorias raciais do acesso à justiça. Para
tanto será utilizada principalmente a Hermenêutica Negra fruto do jurista que pensa o Direito
como um negro, proposta por Adilson José Moreira em face da hermenêutica jurídica
tradicional uma vez que “as formas tradicionais de interpretação são inadequadas para falar
sobre a experiência jurídica de pessoas negras em função de seus pressupostos”62.
Primeiramente, para o escopo deste trabalho, a interpretação tradicional se mostra
inadequada uma vez que, pelo quanto exposto no item anterior e como consequência dos lugares
de fala ocupados, o julgador e o demandante possuem posições epistemológicas completamente
diferentes, isso é, a forma e o lugar a partir do qual conhecem e interpretam o mundo são
completamente diferentes; e conforme nos esclarece Djamila Ribeiro, “não poder acessar certos
espaços, acarreta em não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços”63, o
que por sua vez desencadeia uma hegemonia da posição epistemológica do grupo dominante
que reproduz entendimentos e interpretações baseados no universalismo reforçando o mito da
irrelevância da raça.
Adilson Moreira também nos chama atenção para o fato de que “A Epistemologia
Jurídica tradicional espera que traços da identidade dos juristas não desempenhem qualquer
papel dentro do tipo de interpretação que eles fazem”64, porém, conforme restou demonstrado
e conforme o exposto no começo deste capítulo, a identidade do juiz, construída através das
suas experiências pessoais, desempenha papel importante e não só importante como também,
para a análise proposta neste trabalho, perigoso no processo de tomada de decisão. Isso porque,
61 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, p. 80.
62 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
Contracorrente, 2019, p. 79.
63 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, p. 66.
64 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
em primeiro lugar, o juiz natural no Brasil é um jurista branco que representa a seguinte postura
interpretativa:
O jurista branco é um formalista que procura chegar a resultados legítimos por meio
da aplicação mecânica das normas a casos concretos. Ele acredita que seu papel como
intérprete reside na função de atender aos interesses das partes por meio da aplicação
racional das normas jurídicas, normas que são legítimas porque a produção delas
obedeceu a uma série de requisitos, o que torna o emprego da regra ao caso concreto
a principal função do jurista. Ele procura identificar aqueles elementos que indicam a
hipótese de incidência da norma, o que permite então uma atuação marcada pela
neutralidade e objetividade, sinal de que a justiça pode ser alcançada no caso
concreto65.
O jurista branco desconsidera o impacto das questões raciais; o princípio do juiz natural
foi elaborado e é aplicado sob a postura interpretativa de um jurista branco e por essa razão, se
parte da premissa de que qualquer julgador, não importando suas características pessoais, como
por exemplo, a raça, poderia aplicar a norma ao caso concreto o que se traduziria em justiça,
porém, o jurista que pensa como um negro e que compreende o direito por outra perspectiva
consequentemente ocupando outra postura interpretativa, consegue identificar que o exercício
do princípio do juiz natural em demandas envolvendo racismo e a relação desse julgador branco
com o demandante negro restam naturalmente comprometidas, isso porque o demandante negro
está diante de um jurista branco que desconhece sua realidade e vivência, razão pela qual
encontrará dificuldades na análise e compreensão do caso concreto e principalmente porque,
esse jurista branco interpretará a lei de uma posição epistemológica inadequada e insuficiente
para compreensão da demanda depositada.
A interpretação tradicional está marcada pela perspectiva branca o que não combina
com as demandas envolvendo racismo e com processos cujo contexto reflete o racismo
estrutural nas relações sociais. É necessário um novo olhar para que o processo de tomada de
decisão não trabalhe em desfavor das minorias raciais e nesse sentido, as narrativas são
fundamentais pois trabalham a fim de que seja considerada a situação concreta de pessoas
marginalizadas66. Para tanto a posição epistemológica de pessoas negras transmitida pelas
narrativas culturais produzidas por esta parcela da população, precisa ser inserida no sistema
judiciário.
Para a quebra da hegemonia discursiva em relação ao racismo presente nas decisões
judiciais precisamos pensar o princípio do juiz natural como um jurista negro mediante e
aplicação da Hermenêutica Negra o que nos permite diagnosticar os vícios no exercício desse
princípio para com a população negra. Entender como atua a posição interpretativa representada
65 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
Contracorrente, 2019, p. 124.
66 Ibidem, p. 80.
49
pelo jurista branco torna gritante como o Poder Judiciário em casos de racismo tem ignorado a
perspectiva e o lugar de fala do demandante ofendido e tem validado a perspectiva branca que,
quando o assunto é racismo, se mostra comprometida, distorcida e desconexa da realidade.
Claramente, não podemos desconsiderar o fato de que enquanto alguns juízes brancos
julgam os casos de racismo pautados em sua perspectiva branca da situação, por mera
ignorância em relação ao lugar de fala do demandante e despreparo acadêmico, alguns outros
assim o fazem por estratégia de dominação e manutenção do status quo, propositalmente
ignorando as narrativas negras para que continuem a ser tidas como ilegítimas.
Pela última vez voltaremos aos casos concretos apresentados no terceiro capítulo a título
exemplificativo da sistemática acima descrita. No segundo caso – negros falsamente acusados
de sequestro – a desembargadora relatora não considera a relevância da raça no cenário.
Enquanto uma jurista branca, ela adota uma postura interpretativa baseada principalmente nas
premissas do individualismo e universalismo como parâmetros para a análise do direito
invocado67. Os autores pedem reparação pelos danos morais sofridos pela falsa denúncia de
sequestro defendendo ter sido motivada por racismo, de forma que o caso concreto apresentado
expõe um contexto que não é comportado ou contemplado pela posição epistemológica do
jurista branco porque se defende que o racismo não se deu (unicamente) por uma ação
individualizada e arbitrária e sim pelo desdobramento da ideia que corre livremente pelo lugar
de fala ocupado por pessoas brancas de que pessoas negras correspondem ao estereótipo de
criminosos.
A desembargadora relatora do caso citado mesmo não vivenciando o racismo em
primeira pessoa poderia ter reconhecido a legitimidade da narrativa dos autores pela perspectiva
privilegiada e exclusiva que eles possuem acerca deste assunto em decorrência do lugar de fala
que eles ocupam para fundamentar sua decisão e enxergar sob outro ponto de vista como a
norma poderia ser aplicada ao caso concreto, mas isso não aconteceu.
E mesmo ignorando a narrativa dos autores, o resultado ainda poderia ser diferente se
essa julgadora não estivesse presa à posição epistemológica e à hermenêutica jurídica
tradicional e fosse versada em Direito Antidiscriminatório ou tivesse sido academicamente ou
profissionalmente preparada para entender como se dão as relações de dominação racial no
Brasil.
67MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. Revista de Direito
Brasileira, v. 18, n. 7, p. 393-421, 2017.
50
Porém, o que acontece na prática, são juristas brancos, que pensam o Direito como
brancos do seu lugar de fala privilegiado nas relações de poder, impondo colorblindness68 nas
suas decisões judiciais e, despreparados academicamente e profissionalmente para julgar
demandas que não sejam compatíveis com a sua realidade. Pois conforme nos ensina Ifill, o
senso de justiça dos julgadores é formado por seu próprio conhecimento e suas experiências
pessoais, o que resulta em julgadores com um senso de justiça seletivo e restrito.
Os impactos desta limitação no senso de justiça e a interpretação da lei que se dá pela
perspectiva branca são perfeitamente demonstrados nos estudos desenvolvidos por Gislene
Aparecida dos Santos que expõe como ao receberem casos de racismo e injúria racial os
magistrados facilmente descaracterizam o racismo sob a justificativa de ações movidas pelo
“pelo calor das emoções”. O estudo também demonstra que, antes mesmo desse processo de
tomada de decisão denunciado na presente monografia, os obstáculos para a responsabilização
por atos de racismo já estão presentes quando da denúncia, sendo que apenas uma pequena
porcentagem realmente é julgada e sentenciada, o que acaba por gerar uma desconfiança acerca
da “eficiência da lei na punição do racismo”69.
Nas pesquisas de campo, a professora nos mostra que 5 a cada 10 entrevistados
esperavam não sofrer dupla discriminação pelo sistema judiciário e que 4 a cada 10 não confiam
neste sistema70. Essa insegurança dos entrevistados é amplamente justificada pela forma que o
sistema judiciário brasileiro lida com o racismo, pois além do racismo sofrido que ensejou a
denúncia à autoridade policial ou as ações por danos morais, a pessoa negra enquanto vítima
ou demandante ainda está sujeita ao racismo institucional presente no Poder Judiciário e à
desclassificação da sua narrativa.
Ainda, a professora Gislene Aparecida dos Santos, constatou nos atos do Judiciário o
desejo que a raça “não conte” em um movimento típico de manutenção da hierarquia racial
mediante a “desclassificação dos atos de racismo como se não tivessem ocorrido”71. Aqui
vemos mais uma vez a reprodução do mito da democracia racial pelos poderes do País, seja nas
delegacias ou nos gabinetes dos fóruns, há esse movimento coordenado dos grupos dominantes
para não reconhecer o racismo e não se reconhecerem e admitirem enquanto opressores.
68
Expressão que comporta a postura pautada pela neutralidade racial, no sentido de que a relevância da cor/raça
não é considerada, porém, Ifill destaca que em sociedades racistas, colorblindness fomenta as desigualdades raciais
já existentes.
69 SANTOS, Gislene Aparecida. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de
72 SANTOS, Gislene Aparecida. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de
atos de discriminação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 1, p. 195, 2015.
73 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, pg. 92.
52
Tudo quanto elaborado nos capítulos anteriores nos levou até aqui. O que pode ser feito
diante deste cenário de marginalização de direitos fundamentais da população negra? Foi falado
acerca da necessidade de inserção das narrativas culturais negras no sistema judiciário e agora
serão propostos mecanismos práticos para tanto.
Embora eu não possa dizer que simpatizo com o espírito reformista, quando estamos
tratando de instituição tão basilar das relações jurídicas como é o juiz natural, não há como se
falar em simples exterminação desse princípio e seus desdobramentos por estarem corrompidos
(como tudo na nossa sociedade está) pelo racismo e suas múltiplas manifestações.
Forçosamente tendo que lidar com a existência do juiz natural na estrutura do sistema jurídico,
o objetivo se faz pensar em formas do exercício e atuação deste princípio que não sejam lesivas
ao direito de acesso à justiça de minorias raciais, na sistemática de “se não pode vencê-los,
junte-se a eles”.
Aqui serão pensadas formas de compatibilizar a teoria do lugar de fala com o exercício
do princípio do juiz natural para que seja alcançado o princípio do acesso à justiça e isso tudo
porque conforme nos ensina Adilson José Moreira: “não posso ignorar as formas como raça e
direito interagem nos diferentes níveis do processo decisório estatal”74.
74MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
Contracorrente, 2019, p. 78.
53
Em outras palavras, é preciso, cada vez mais, que homens brancos cis estudem
branquitude, cisgeneridade, masculinos. Como disse Rosane Borges, para a matéria O
que é lugar de fala e como ele é aplicado no debate público, pensar lugar de fala é
uma postura ética, pois “saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos
as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo”75.
Porém, feita essa distinção e não obstante essa necessidade, em paralelo devemos
continuar a jornada para que as instituições públicas do país reflitam a diversidade e pluralismo
da sociedade.
Sendo assim, em um cenário ideal de diversidade, a população negra seria menos lesada
no seu acesso à justiça pela maior presença de julgadores negros entre os magistrados do país,
razão pela qual o primeiro avanço que devemos ter no sentido de oferecer prestação
jurisdicional justa às pessoas negras é a viabilização da ocupação destes cargos do Poder
Judiciário por pessoas negras.
Claramente esta questão representa um longo debate acerca do racismo estrutural
envolvendo todos os dados estatísticos apresentados no decorrer deste trabalho que situam a
população negra na base da hierarquia social impedindo o seu acesso a inúmeros espaços,
porém não desconsiderando a importância desta discussão, este não é o foco desde item. Aqui
falaremos sobre a inclusão de negros no Poder Judiciário em caráter de urgência, medidas que
podem e devem ser tomadas imediatamente mediante a implementação de ações afirmativas
como por exemplo a Resolução nº 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça, que “dispõe
sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na
magistratura”. Sobre ações afirmativas, Adilson Moreira nos ensina que:
Esse termo designa um conjunto de medidas utilizadas por instituições públicas e
privadas que visam incrementar o acesso de grupos minoritários a oportunidades
acadêmicas e profissionais. Elas pretendem suplantar os problemas gerados pela
existência de diferentes formas de discriminação que impedem a inclusão social
desses grupos, processos cuja operação nem sempre pode ser eliminada por políticas
públicas universais. 76
Nas ações afirmativas de cotas raciais para os cargos do Poder Judiciário nós temos um
passo importante no sentido de dirimir os óbices da população negra ao acesso à justiça, essa
inclusão significa, uma vez que o magistrado se utiliza de suas percepções pessoais para julgar,
a introdução quase que forçada das narrativas negras nos discursos judiciais, principalmente
nos casos de julgamento colegiado onde a pluralidade de narrativas enriquece o processo de
75RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, pg. 86.
76 MOREIRA, Adilson Jose. Miscigenando o círculo do poder: ações afirmativas, diversidade racial e
sociedade democrática. Revista da Faculdade de Direito UFPR. Disponível em
<http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/43559/29061>. Acesso em 20.10.19.
54
Paralelo a adoção de ações afirmativas nos concursos para os cargos do Poder Judiciário
e a promoção de diversidade racial entre os julgadores, também se faz necessário a adoção de
medidas para que o julgador branco pense e consiga entender seu lugar de fala e como as
relações raciais acontecem na sociedade brasileira para então entender como o racismo opera e
qual seu papel nesse sistema.
Conforme exposto no capítulo anterior, a epistemologia jurídica tradicional, que é a que
vigora no processo de formação acadêmica dos juristas no Brasil, traz como pressuposto a
neutralidade e espera que a identidade do juiz não interfira na interpretação que este faz da lei
em seus julgamentos, de forma que para o objetivo que se pretende alcançar no presente
trabalho, é necessário expandir a posição epistemológica dos juristas brancos mediante a
introdução de novos conhecimentos.
Sem adentrar ao ponto de que este é um problema que começa nas faculdades de direito
que contam com uma grade curricular construída sob a compreensão do Direito dada por
homens brancos, fato é que a bagagem acadêmica do juiz padrão carece de aprofundamento
77Agência CNJ de Notícias. Ministro Dias Toffoli defende ações afirmativas para combater discriminação racial.
Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=395207>. Acesso em
20.10.19.
55
78 - PIMENTA, Clara Mota; SUXBERGER, Rejane Jungbluth; VELOSO, Roberto Carvalho; SILVA, Fernando
Quadros da Magistratura e equidade: estudos sobre gênero e raça no Poder Judiciário. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, p. 40, 2018.
79 VASCONCELLOS, Jorge. Mais de 300 magistrados recebem capacitação em políticas raciais. Disponível em
<https://www.cnj.jus.br/mais-de-300-magistrados-recebem-capacitacao-em-politicas-raciais/>. Acesso em
20.10.19.
56
dos Santos no estudo já citado acerca da percepção das vítimas de ato de discriminação diante
do Judiciário e dos recentes julgados expostos no terceiro capítulo deste trabalho, ainda vigora
entre os magistrados uma cegueira proposital em relação às questões raciais.
Considerando que apenas novos juízes tiveram acesso à esta etapa obrigatória de
formação sobre Políticas Raciais, é necessário que todos os magistrados em exercício venham
a cursar essa disciplina, e quantas mais forem necessárias, em caráter de formação continuada
a fim de não mais julgarem de forma desconexa da realidade.
80Theodoro Júnior, Humbert. Curso de direito processual civil – 59. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro:
Forense, 2018.
58
7. CONCLUSÃO
Mesmo 200 anos depois da abolição da escravidão a população negra ainda vive em
constante luta para sair da posição de subalternização imposta pelo grupo dominante e
mecanismos do racismo estrutural e, não obstante a garantia de igualdade formal assegurada
pela Constituição Federal, a realidade nos mostra que brancos e negros estão muito distantes
um do outro sendo que há uma relação de dominação racial do primeiro grupo para com o
segundo. Baseado nessa premissa de igualdade formal, a Constituição traz nos seus primeiros
artigos uma série de direitos fundamentais individuais indispensáveis para o exercício da
cidadania, entre eles temos a garantia do acesso à justiça que constitui um dos direitos mais
elementares em sociedades democráticas e que consiste não somente no direito à ação judicial
mediante garantias processuais, mas, principalmente para este trabalho, no acesso à prestação
jurisdicional efetivamente justa que vai além da aplicação da norma ao caso concreto.
Essa devida aplicação da norma depende da atuação do magistrado investido em sua
função de julgador pelo princípio do juiz natural, que, primeiramente que “é juiz imparcial,
competente e aleatório. É o juiz a que é constitucionalmente atribuído o dever de prestar tutela
jurisdicional e conduzir o processo de forma justa”81. A epistemologia jurídica tradicional
constrói o juiz natural como o julgador competente para resolver toda e qualquer demanda
depositada ao Poder Judiciário mediante aplicação da norma, esperando que traços da
identidade dos juristas não desempenhem qualquer papel dentro do tipo de interpretação que
eles fazem 82, razão pela qual foi adotada a Hermenêutica Negra proposta por Adilson José
Moreira para demonstrar que a interpretação tradicional deste princípio não atende às
necessidades de pessoas negras, pois está fundamentado na premissa de neutralidade racial.
No Brasil quase que invariavelmente o juiz natural será homem, branco e heterossexual
de acordo com os levantamentos feitos pelo Conselho Nacional de Justiça, isso é, a maioria dos
juízes brasileiros se encontram no topo das relações hierárquicas de poder ocupando posição
altamente privilegiada que não apresenta qualquer relação com a posição ocupada por minorias
raciais o que por sua vez representa um distanciamento nocivo do juiz com o caso concreto nas
demandas envolvendo racismo e que retratam a realidade dos demandantes e suas experiências
com a discriminação racial. Paralelo a essa divergência entre os pontos de partida do juiz branco
e do demandante negro, constatamos um baixo índice de condenações pela prática de racismo,
81
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
82MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
Contracorrente, 2019, p. 136.
60
o que se mostra incompatível com a dinâmica da sociedade racista na qual estamos inseridos e
analisando as ações judiciais envolvendo racismo, de tudo quanto exposto na presente
monografia percebe-se que estes dois pontos estão interligados: o baixo índice de condenações
está diretamente relacionado à distância entre a realidade privilegiada do julgador por este ser
branco e a realidade subordinada do demandante por negro, que leva este julgador a julgar de
forma desconexa da realidade. Falar em neutralidade racial em sistema judiciário inserido em
uma sociedade racista é no mínimo fantasioso.
Essa distância entre as realidades pôde ser entendida pela aplicação da teoria do lugar
de fala feita ao longo deste trabalho, considerando que “o lugar que ocupamos socialmente nos
faz ter experiências distintas e outras perspectivas”83 e que as perspectivas pessoais do juiz irão
influenciar o processo decisório, podemos observar que o lugar de fala ocupado pelo juiz fruto
do cruzamento de seus privilégios o coloca em uma bolha social e não dialoga com o lugar de
fala ocupado pelo demandante negro, fruto do cruzamento de todos os vetores de discriminação
que incidem sobre ele.
Pela teoria do lugar de fala também entendemos como o lugar ocupado por determinado
grupo dentro da hierarquia social dificulta o acesso deste grupo a determinados lugares e
espaços, o resultado é a ausência de diversidade racial no Poder Judiciário e a deslegitimação
sistemática das narrativas emanadas pela população negra. Essa deslegitimação das narrativas
negras é uma das causas pelas quais o julgado produzido pelo juiz branco não representa a
realidade do demandante e/ou da sociedade.
Por sua vez, pela Teoria Racial Crítica foi possível entender a importância dessas
narrativas dentro do contexto das ações judiciais envolvendo racismo. Pelos ensinamentos de
Ifill foi possível entender que, primeiramente, narrativas culturais transmitem a realidade,
história e os valores de determinado grupo e por esta razão não podem ser ignoradas. O que
ocorre no processo de tomada de decisão nas instâncias judiciais brasileiras, conforme
demonstrado pela análise de julgados, é a consideração exclusiva da narrativa cultural branca
em detrimento da narrativa cultural negra, o que acaba servindo ao propósito de manutenção da
hierarquia racial, pois, ainda segundo Ifill, as decisões judiciais legitimam narrativas de forma
que o papel do juiz vai além de meramente resolver o conflito, se mostrando ser uma verdadeira
mensagem transmitida para a sociedade acerca de quais valores merecem a proteção estatal e
quais não. Nesse sentido, pensadores da Teoria Racial Crítica defendem que decisões judiciais
83 RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte – MG: Letramento. Justificando, 2017, pg. 71.
61
são narrativas culturais e por essa razão determinarão a maneira como a sociedade e os agentes
estatais deverão agir diante de terminado tema84.
Considerar decisões judiciais como narrativas nos levou a entender como o lugar de fala
do juiz branco o situa em uma posição epistemológica específica que enseja uma postura
interpretativa universalista produzindo decisões judiciais carregadas da narrativa cultural
branca reproduzindo discursos marcados pelo mito da democracia racial a fim de promover a
manutenção dessa hierarquia racial onde brancos ocupam o topo. Essas decisões judiciais que
exaram entendimentos baseados na irrelevância da raça se mostram lesivas ao grupo social da
minoria racial como um todo, pois será criado precedente que posteriormente será aplicado a
fim de silenciar as narrativas negras que denunciam o impacto da raça nas relações sociais se
mostrando fundamentais porque trabalham a fim de que seja considerada a situação concreta
de pessoas marginalizadas85.
Constatamos que a ausência da narrativa negra nas instâncias judiciais é devida
primeiramente, a ausência de diversidade racial no Poder Judiciário uma vez que o lugar de fala
da população negra impede seu acesso aos cargos de magistratura pela operação do racismo
estrutural da sociedade e em segundo lugar pelo lugar de fala do juiz que o coloca em um ciclo
vicioso de ambientes privilegiados e lhe dá uma visão acerca do racismo de uma posição de
dominação resultando em um interpretação da lei marcada pela perspectiva branca gerando
julgados que por exemplo, não reconhecem ofensa à honra da pessoa negra chamada de
“macaco”.
Para a quebra dessa hegemonia discursiva que afasta a população negra de encontrar
real justiça mediante a propositura de ações judiciais, a posição epistemológica de pessoas
negras transmitida pelas narrativas culturais produzidas por esta parcela da população, precisa
ser inserida no sistema judiciário e fazer parte do processo de tomada de decisão. Sendo assim,
pensando o princípio do juiz natural como um jurista negro mediante a aplicação da
Hermenêutica Negra conseguimos diagnosticar os vícios no exercício desse princípio para com
a população negra chegando à conclusão de que o juiz natural, no fim do dia consiste no jurista
branco enquanto postura interpretativa que ignora a perspectiva e o lugar de fala do demandante
ofendido, validando a perspectiva branca que, quando o assunto é racismo, se mostra
comprometida, distorcida e desconexa da realidade reproduzindo a conveniente ideia de que o
84 MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural. Revista Direito
Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 830-868, 2017.
85 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica – São Paulo: Editora
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