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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO – UFMA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, SAÚDE E TECNOLOGIA – CCSST


CURSO DE DIREITO

CIZA IOHANA MACHADO DE SOUZA

INFLUÊNCIA DAS MÍDIAS NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JÚRI:


Uma análise do caso da Boate Kiss

Imperatriz
2023
CIZA IOHANA MACHADO DE SOUZA

INFLUÊNCIA DAS MÍDIAS NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JÚRI:


Uma análise do caso da Boate Kiss

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Direito da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA como requisito para obtenção
do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Alberto A. de Araújo

Imperatriz
2023
CIZA IOHANA MACHADO DE SOUZA

INFLUÊNCIA DAS MÍDIAS NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JÚRI:


Uma análise do caso da Boate Kiss

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Direito da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA como requisito para obtenção
do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Alberto A. de Araújo

Aprovada em ___ / ___ / ___

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Alberto A. de Araújo

____________________________________________________
Examinador I

____________________________________________________
Examinador II

Imperatriz
2023
Dedico ao Gabriel, Alday e Adriana.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor e líder de estágio, Jorge Alberto A. de Araújo,


que, mesmo sem saber, foi peça fundamental na minha formação. Excelente
professor, rico em conhecimento e conselheiro acadêmico. Responsável pela minha
primeira aula nesta Universidade e que introduziu o Direito Penal na minha vida, e o
fez de forma brilhante.
À minha família: ao meu esposo Gabriel, que sempre foi um grande
incentivador, acreditou e me afirmou mesmo quando eu já havia desistido, agradeço
por ser o meu suporte e por ser esse homem que tornou a minha vida mais feliz em
todos os sentidos; a minha mãe Adriana, que sempre foi o meu ponto de consolo,
sempre sonhando mais alto pra mim do que eu poderia sonhar, uma grande
companheira e expectadora de todo o meu crescimento, fazendo cada desafio se
tornar fácil com seu apoio; ao meu pai Alday, homem forte como uma rocha, mas com
o coração mole como uma manteiga, que me ama além da sua obrigação e que
acredita em mim além do que posso imaginar, responsável pelo meu caráter e que se
orgulha de mim; aos meus avós Antônio e Marcelina, meus irmão Thiago e Isaac,
minha prima Samara e minha prima irmã Gabriela pelos conselhos e sugestões
acadêmicas; e ao amigo de quatro patas, companheiro nos momentos de escrita deste
trabalho.
Às minhas amigas Ana Júlia e Maria Joana, companheiras de ensino médio
que nunca mudaram, apesar da distância, que sempre torceram e comemoram cada
passo dado e que têm um lugar especial em minha vida.
Às minhas amigas de Imperatriz Hérika e Talita, colegas de trabalho do meu
primeiro emprego que se tornaram amigas mais chegadas que irmãs, a quem posso
contar com suas orações, conselhos e, com certeza, com suas risadas pra alegrar um
dia mau.
Ao meu amigo Wennedy, pelas sugestões, ideias e pelo tempo em me ouvir e
tirar dúvidas.
Ao meu supervisor direto de estágio, Dr. Cláudio Cezar Cavalcantes, que
debateu o tema deste trabalho comigo, que instruiu e tirou cada dúvida que surgia na
vida acadêmica e que foi ponto de conhecimento importante na minha aprovação da
OAB.
Por fim e mais importante, não deixaria de agradecer à Aquele que tornou o
meu fardo leve, o responsável e dono de tudo que sou e que tenho, a minha rocha e
esperança. Obrigada Jesus, sem Ti eu nada seria.
“Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que
crê em mim, ainda que morra, viverá;”
(João 11:25)
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar de que modo as mídias sociais tendem
a repercutir nas decisões judiciais, em especial no julgamento do caso do incêndio da
Boate Kiss, por meio do Tribunal do Júri. Tem-se como problemática o seguinte
questionamento: A mídia tem interesse em influenciar as decisões da população em
relação aos processos submetidos ao Tribunal do Júri, em especial no caso da Boate
Kiss? Utilizando-se da metodologia de pesquisa bibliográfica, mesclando com análise
crítica e estudo de caso, buscou-se entender, desse modo, como a repercussão
midiática tem se tornado uma ferramenta de influência perante as decisões emitidas
pelo Tribunal do Júri, auxiliando na obtenção de um pré-julgamento sobre determinado
caso. Como resultado, entende-se que é importante se observar a possibilidade de
uma influência das atuações jornalísticas, juntamente com as mídias sociais, nas suas
coberturas de crimes dolosos contra a vida, que são objeto de apreciação do tribunal
do júri, ocasião em que estas determinam e formam, mesmo que de forma indireta, as
decisões e apreciações proferidas pelos populares através do Conselho de Sentença,
e que violam, dessa forma, os princípios e normas penais, chegando a violar até
direitos fundamentais do cidadão.

Palavras-Chave: Influência. Mídia. Repercussão. Tribunal do Júri. Boate Kiss.


ABSTRACT

The present work aims to analyze how social media tend to have an impact on judicial
decisions, especially in the judgment of the Boate Kiss fire case, through the Jury
Court. The following question is problematic: Is the media interested in influencing the
decisions of the population in relation to the cases submitted to the Jury Court,
especially in the case of Boate Kiss? Using the methodology of bibliographical
research, mixing with critical analysis and case study, we sought to understand, in this
way, how the media repercussion has become a tool of influence before the decisions
issued by the Jury Court, helping to obtain prejudgment in a particular case. As a result,
it is understood that it is important to observe the possibility of an influence of
journalistic actions, together with social media, in their coverage of intentional crimes
against life, which are the object of appreciation by the jury, when these they determine
and form, even if indirectly, the decisions and assessments made by the people
through the Sentence Council, and that violate, in this way, the principles and penal
norms, even violating the fundamental rights of the citizen.

Keywords: Influence. Media. Repercussion. Jury court. Boate Kiss.


LISTA DE QUADROS

Quadro 01. Mudanças estabelecidas pela Lei nº 11.678/2008 nos procedimentos


adotados no Tribunal do Júri ...................................................................................20
LISTA DE FIGURAS

Figura 01. Interior da Boate Kiss após o acidente ................................................32


Figura 02. Parte do teto danificado pelo incêndio na Boate Kiss
.....................................................................................................................................32
Figura 03. Capa do periódico The New York Times sobre o incêndio na Boate
Kiss
.....................................................................................................................................33
Figura 04. Manchete sobre o incêndio na Boate Kiss em primeiro plano no site
da rede britânica BBC.
.....................................................................................................................................34
Figura 05. Aba do Portal G1 com reportagens exclusivas sobre o Caso da Boate
Kiss
.....................................................................................................................................35
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................13
2. O TRIBUNAL DO JÚRI: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ............................15
2.1 Conceito e historicidade do Tribunal do Júri...................................................15
2.2 Aspectos Subjetivos e Objetivos relacionados ao Tribunal do Júri .............20
3 A MIDIATIZAÇÃO DO TRIBUNAL DO JURI ..........................................................23
3.1 A (im) parcialidade da mídia no sistema judiciário brasileiro ........................24
3.2 Influência da mídia nos Tribunais do Júri ........................................................25
4 BOATE KISS: PERSPECTIVAS E CONTRACENAS DA MÍDIA NO TRIBUNAL
DO JURI GAÚCHO .....................................................................................................31
4.1 O Incêndio na Boate Kiss ...................................................................................31
4.2 A repercussão do incêndio na Boate Kiss .......................................................33
4.3 O Tribunal do Juri e a Boate Kiss: a mídia no banco dos réus? ...................37
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................44
13

1 INTRODUÇÃO

É fato que a grande mídia pode influenciar os processos criminais, tendo em


vista que os meios de comunicação, bem como as mídias sociais, estão presentes em
sociedade e chegam a qualquer indivíduo, não importa sua localização ou status
social, numa velocidade estarrecedora. Além disso, os meios de comunicação detêm
de grande poder e influência em relação aos receptores de suas mensagens, em
particular, quando se trata de matérias com viés jurídico, especialmente o criminal,
ocorrendo a condenação do acusado, antes mesmo do seu julgamento, afetando seu
destino processual.
Com base nisso, cabe salientar que os processos e decisões criminais podem
ser influenciados pela exposição midiática, gerando um questionamento sobre a
imparcialidade das decisões, especialmente aos crimes de competência do Tribunal
do Júri. Uma vez que este procedimento tem função de julgar os crimes dolosos contra
a vida e conta com a participação popular pelos seus jurados.
Nos últimos anos, o desenvolvimento e expansão dos jornais e meios de
comunicação alcançaram um nível que até então era impensável. Desse modo, a
temática em questão surgiu com o intuito de estudar e compreender como a grande
mídia pode influenciar processos criminais, tendo em vista que os meios de
comunicação, bem como as mídias sociais, são a porta de entrada e acesso a toda e
qualquer informação.
Diante dessa possibilidade, é válido apreciar de forma mais profunda essas
implicações em um caso concreto. Nesse contexto, o caso em questão é o julgamento
do incêndio ocorrido em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria no estado
do Rio Grande do Sul, na Boate Kiss. O fato deixou 242 mortos e cerca de 640
pessoas feridas.
Diante do exposto, surgiram questionamentos acerca de, como as mídias
sociais podem influenciar nas decisões da população em relação aos processos
submetidos ao Tribunal do Júri, visto que as mesmas, não possuem sapiência técnica
a respeito do Direito Penal e Processo Penal que regem as determinações do Tribunal
do Júri e se o respectivo, pode se consolidar isento de decisões errôneas e
influenciáveis.
14

O presente trabalho tem como objetivo geral, analisar de que modo as mídias
sociais tendem a repercutir nas decisões judiciais, em especial no julgamento do caso
do incêndio da Boate Kiss, por meio do Tribunal do Júri. Enquanto objetivos
específicos, busca-se explanar sobre os aspectos legais e legislativos acerca do
trâmite do procedimento do Tribunal do Júri, com aplicação do Direito Penal,
Processual Penal e Constitucional; apresentar os fatos do caso da Boate Kiss, com
análise no âmbito penal; e, por fim, avaliar as implicações do Tribunal do Júri do caso
em questão.
Tem-se como problemática o seguinte questionamento: A mídia tem interesse
em influenciar as decisões da população em relação aos processos submetidos ao
Tribunal do Júri, em especial no caso da Boate Kiss?
A metodologia utilizada para responder os questionamentos centrais do projeto
se deu pela inserção de pesquisa bibliográfica, mesclando com análise crítica, acerca
de um estudo de caso, onde, buscou-se analisar a relação entre a competência e
atuação decisiva do Tribunal do Júri e a expressiva e maçante atuação midiática na
sociedade perante o viés jurídico. A fundamentação se deu com base em livros,
artigos, teses, levantamento bibliográfico, audiovisual, etc.
15

2. O TRIBUNAL DO JÚRI: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2.1 Conceito e historicidade do Tribunal do Júri

Segundo Mougenot (2019), o Tribunal do Júri como um corpo colegiado e


díspar, integrado por um magistrado togado e por magistrados de fato, selecionados
entre os cidadãos da sociedade, com diferentes profissões. O vocábulo “jurado” é
proveniente de promessa (juramento) que é feito pela pessoa escolhida, ou seja, o
comprometimento de ser estabelecido como instituto leigo do poder judiciário,
transferido na incumbência de julgar no corpo colegiado definido por Tribunal do Júri.
O jurista infere ainda que é incumbido ao magistrado togado, presidente do
Conselho de Sentença, composto por sete jurados escolhidos, além de outras, as
responsabilidades elencadas no artigo 497, caput, do Código de Processo Penal,
igualmente o encargo de proferir sentença em similaridade com a decisão dos jurados,
inclusive relativamente à dosimetria da condenação. Aos jurados, cabem decidir sobre
a autoria e materialidade delitiva, se a ré deverá ser inocentada, se há qualificadoras,
fatores de majoração e redução de pena e condições agravantes e atenuantes
(MOUGENOT, 2021).
O Tribunal do Júri tem competência para julgar os crimes dolosos contra a vida,
bem como os crimes conexos e relacionados a estes. Tem previsão constitucional no
artigo 153, parágrafo 18, da Carta Magna de 1988 (NUCCI, 2014).
Apesar de existirem algumas controvérsias sobre a origem desta instituição, ela
é de suma importância, tanto por ser uma instituição que possui a democracia como
uma de suas principais características, bem como por serem os acusados julgados
por representantes da sociedade, que para o exercício dessa atribuição atuam sob a
guarida de relevantes princípios constitucionais (NUCCI, 2014).
Assim, versado como um dos institutos jurídicos mais conhecidos, o Tribunal
do Júri é reconhecido como um espaço no qual se promove a justiça pelas mãos da
sociedade, dentro dos trâmites legais. É através de tal espectro judicial que são
julgados os crimes dolosos contra a vida, tal como leciona a Carta Constitucional, em
seu artigo 5º, inciso XXXVIII. Entende-se, dessa forma, que o preceito legal pelo qual
se deriva a atribuição do júri perpassa pela ótica do constitucionalismo, além da
identidade penal.
16

Na proa desse raciocínio, ao se fazer um estudo sobre as características do


tribunal do júri, deve-se primeiramente, entender o seu conceito, atribuições, bem
como sua historicidade, a fim de que seja possível uma melhor formulação da síntese
temática. Assim, requer que sejam feitos intercâmbios com as noções gerais
intermediadas pelo Direito Europeu, a fim de que sejam moderados os objetivos do
estudo.
A Magna Carta da Inglaterra de 1215 foi o primeiro documento que passou a
constar da retórica do Tribunal do Júri. Assinada por João Sem Terra, a Carta trazia
em seu artigo 48, o seguinte:

Art. 48. Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado dos seus bens,
costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus Pares
segundo as leis do país.

Percebe-se que o uso do termo ‘julgamento pelos pares’, trouxe consigo a


noção de que determinados crimes não deveriam ser julgados de acordo com
premissas individualistas, mas sim com base na propagação do Tribunal Popular.
Outrossim, deve-se considerar que o julgamento por meio do uso do júri passou a ser
considerado ainda como uma forma de trazer uma maior celeridade e transparência
social sobre o julgamento das lides.
No tocante ao cenário brasileiro, a instituição do Tribunal do Júri somente
sobreveio a partir da do decreto-lei de 18 de junho de 1822, sendo utilizado para
julgamento dos crimes relacionados a imprensa. Assim, o decreto-lei fundamentava:

O Corregedor do Crime da Côrte e Casa, que por este nomeio Juiz de Direito
nas causas de abuso da liberdade da imprensa, e nas Provincias, que tiverem
Relação, o Ouvidos do crime, e o de Comarca nas que não o tiverem,
nomeará nos casos occurrentes, e a requerimnto do Procurador da Corôa e
Fazenda, que será o Promotor e Fiscal de taes delictos, 24 cidadãos
escolhidos de entre os homens bons, honrados, intelligentes e patriotas, os
quaes serão os Juizes de Facto, para conhecerem da criminalidade dos
escriptos abusivos (BRASIL, 1822).

Percebe-se assim que eram escolhidos vinte e quatro homens, de reputação


ilibada para o julgamento dos crimes considerados, à época, abusivos, da imprensa.
Foi também neste decreto-lei que se instituiu os moldes do processo de escolha dos
jurados, tal como ocorre atualmente:

Os réos poderão recusar destes 24 nomeados 16: os 8 restantes porém


procederão no exame, conhecimento, e averiguação do facto; como se
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procede nos conselhos militares de investigação, e accommodando-se


sempre ás fórmas mais liberaes, e admittindo-se o réo á justa defesa, que é
de razão, necessidade e uso. Determinada a existencia de culpa, o Juiz
imporá a pena. E por quanto as leis antigas a semelhantes respeitos são
muita duras e improprias das idéas liberaes dos tempos, em que vivemos; os
Juizes de Direito regular-se-hão para esta imposição pelos arts. 12 e 13 do
tit. 2° do Decreto das Côrtes de Lisboa de 4 de Junho de 1821 que Mando
nesta ultima parte applicar ao Brazil. Os réos só poderão appellar do julgado
para a Minha Real Clemencia (BRASIL, 1822).

Deve-se ater ao fato de que a decisão estabelecida pelos jurados era a que
prevalecia, e que em caso de recurso, os réus somente poderiam apelar para o
imperador. Para tentar driblar tais julgamentos, os escritores buscavam utilizar de
pseudônimos para que assim pudessem realizar seus escritos sem que houvesse
punição em caso de descumprimento das regras de imprensa estabelecidas pelo
império.
Outrossim, dois anos depois, já em 1824, houve a promulgação do texto
constitucional, no qual trazia a previsão do Tribunal do Júri para julgamento de ações
cíveis e criminais, conforme se observa no seu artigo 151:

Art. 151. O Poder Judicial independente, e será composto de Juízes, e


Jurados, os quaes terão logar assim no Cível, como no Crime, nos casos, e
pelo modo, que os Códigos determinarem.

Desse modo, a inovação trazida pela Constituição de 1824 repercutiu nas


demais Cartas Constitucionais, assim como também na formulação dos Códigos.
Exemplo disso se mostra na adesão do Tribunal do Júri, enquanto instituto jurídico,
dentro do Código de Processo Criminal, outorgado no ano de 1832.
O Código trazia, na primeira parte da 1ª seção, a tese dos jurados como parte
do processo de administração da justiça nos termos:

Art. 23. São aptos para serem Jurados todos os cidadãos, que podem ser
Eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade. Exceptuam-se os
Senadores, Deputados, Conselheiros, e Ministros de Estado, Bispos,
Magistrados, Officiaes de Justiça, Juizes Ecclesiasticos, Vigarios,
Presidentes, e Secretarios dos Governos das Provincias, Commandantes das
Armas, e dos Corpos da 1ª linha.
Art. 24. As listas dos cidadãos, que estiverem nas circumstancias de serem
Jurados, serão feitas em cada Districto por uma Junta composta do Juiz de
Paz, Parocho, ou Capellão, e o Presidente, ou algum dos Vereadores da
Camara Municipal respectiva, ou, na falta destes ultimos, um homem bom,
nomeado pelos dous membros da Junta, que estiverem presentes.
Art. 25. Feitas as listas do referidos cidadãos, serão affixadas á porta da
Parochia, ou Capella, e publicadas pela imprensa em os lugares, em que a
haja, e se remetterão ás Camaras Municipaes respectivas, ficando uma cópia
18

em poder do Juiz de Paz para a revisão, a qual deve ser verificada pela
referida Junta, todos os annos, no dia primeiro de Janeiro.

Nota-se que a escolha dos jurados passou a ser flexibilizada, entre os cidadãos,
desde que estes fossem eleitores aptos e não exercessem nenhum cargo ou ofício
perante o sistema de justiça, bem como na administração pública, como também
fizesse parte das Forças Armadas. A lista era fixada em local visível e de
movimentação constante, em especial nas paróquias, e deveria ser revisada e
atualizada a cada ano, no primeiro dia do mês de janeiro. Anos mais tarde, já em 1841,
com a instituição da Lei nº 261, de 03 de dezembro, foi feita a extinção do chamado
Júri de Acusação, além da alteração da quantidade de jurados que deveriam participar
das sessões (CARDOSO, 1986).
Foram diversas as demais alterações legislativas que levaram em consideração
o papel do Tribunal do Júri durante o Brasil Império. Sabendo disto, é importante que
se adentre na dinâmica de interposições feitas frente ao Brasil República, até
chegarmos ao que se conhece atualmente. A Constituição de 1891, trouxe consigo a
manutenção do Conselho de Jurados, mantendo o júri e a sua soberania nas decisões
que lhe coubesse.
Borba citado por Silva (2005, p. 24 e 25) denota que, em 1899, o Supremo
Tribunal Federal trouxe consigo uma atualização sobre as características do Tribunal
do Júri, quais sejam:

São características do Tribunal do Júri: I – quanto a composição dos jurados,


a) composta de cidadãos qualificados periodicamente por autoridades
designadas pela lei, tirados de todas as classes sociais, tendo as qualidades
legais previamente estabelecidas para as funções de juiz de fato, com recurso
de admissão e inadmissão na respectiva lista, e b) o conselho de julgamento,
composto de certo número de juízes, escolhidos a sorte, de entre o corpo dos
jurados, em número tríplice ou quádruplo, com antecedência sorteados para
servirem em certa sessão, previamente marcada por quem a tiver de presidir,
e depurados pela aceitação ou recusação das partes, limitadas as
recusações a um número tal que por elas não seja esgotada a urna dos
jurados convocados para a sessão; II – quanto ao funcionamento, a)
incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas ao Conselho, para
evitar sugestões alheias, b) alegações e provas da acusação e defesa
produzidas publicamente perante ele, c) atribuição de julgarem estes jurados
segundo sua consciência, e d) irresponsabilidade do voto emitido contra ou a
favor do réu.

Desse modo, entende-se que as características do Tribunal do Júri


estabelecidas trazia inovações com relação a escolha dos jurados, em especial com
a designação de cidadãos de todas as classes sociais, além da demarcação do
19

quórum do corpo de jurados, que deveria funcionar de acordo com o princípio da


incomunicabilidade entre os partícipes, responsabilidade do voto e consciência deste
perante o julgado.
A Constituição de 1934 não trouxe consigo referencias em torno das atribuições
do Tribunal do Júri, sendo que tal matéria foi atribuída ao Decreto-Lei nº 167, de 05
de janeiro de 1938, que passou a regular a instituição do júri. Esta foi a primeira carta
legislativa com as características relativas de tal instituto jurídico, sendo aplicada para
todo o território nacional.
Ressalta-se o fato de que tal decreto trouxe consigo a obrigatoriedade do
serviço do júri para todos os cidadãos de 25 até 60 anos de idade, e a recusa de ser
jurado tinha como consequência a perda dos direitos políticos. Trazia consigo a
segurança jurídica da prisão especial para quem fosse jurado, em caso de crime
comum, até o julgamento definitivo.
Em 1937, não houve o estabelecimento do instituto do júri nas linhas
constitucionais. Já em 1946, a Constituição Federal trouxe consigo a instituição do
Tribunal do Júri no rol dos Direitos e Garantias Individuais:

Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros


residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 28 - É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,
contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o
sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos
veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos
crimes dolosos contra a vida.

Cabe ressaltar que anos antes, o Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de


1941, trouxe consigo a instituição do Código de Processo Penal. Com isso, o Capítulo
II foi dedicado para que se fosse elencado o rito processual perante os crimes de
competência do júri. Com a Lei nº 11.689, de 2008, houve a revogação desse capítulo,
com a formulação do procedimento relativo aos processos de competência do tribunal
do júri. Entre as atualizações estavam a possibilidade de desaforamento, modo de
sorteio e quórum relativo dos jurados e a obrigatoriedade do serviço do júri para todos
os maiores de 18 (dezoito) anos de idade.
A atual Carta Magna de 1988, trouxe em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, que:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der


a lei, assegurados:
20

a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Desse modo, entende-se que o Tribunal do Júri na Carta Constitucional de


1988, passou a reconhecer, baseando-se em rito serene, a plenitude da defesa dentro
do âmbito do júri, bem como a soberania do veredicto, e o sigilo dos partícipes. Assim,
nota-se que as características do Tribunal do Júri ao longo da história do sistema
jurídico brasileiro, passou por diversos ajustes, mas que se mostrou necessário para
que se contemplassem os direitos e garantias individuais e fundamentais para com os
julgados.

2.2 Aspectos Subjetivos e Objetivos relacionados ao Tribunal do Júri

Via de regra, o Tribunal do Júri é respaldado pelo Código de Processo Penal,


mantendo-se a competência para o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§
1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, sejam eles
consumados ou tentados. Menciona-se ainda o respaldo constitucional dado pelo
artigo 5º, XXXVIII, alínea d, na qual considera que é reconhecido a instituição do júri,
com a prévia organização assegurada em lei, nos crimes dolosos contra a vida.
Desse modo, perfazem os crimes contra a vida, tal como homicídio simples ou
qualificado; feminicídio; homicídio culposo; induzimento, instigação ou auxílio a
suicídio ou a automutilação; infanticídio e aborto, este último exceto quando
necessário ou quando a gravidez resulta de estupro.
Cabe destacar que o rito do Tribunal do Júri é semelhante aos dos demais
crimes penais, mas com a diferença que é atribuição do Conselho de Sentença, por
parte dos jurados, de condenar ou inocentar o réu. Entretanto, ressalta-se que a Lei
nº 11.678/2008, alterou os procedimentos pertinentes ao Tribunal do Júri no CPP,
tendo como principais alterações:

Quadro 01. Mudanças estabelecidas pela Lei nº 11.678/2008 nos


procedimentos adotados no Tribunal do Júri
Alteração na ordem das inquirições: primeiro serão ouvida(s) a(s) vítima(s) do(s)
homicídio(s) tentado(s), depois as testemunhas e, por último, o réu.
Formação do júri: idade mínima para participar como jurado cai de 21 para 18 anos;
serão sorteados 25 jurados, em vez dos 21 atualmente previstos, mas o quórum
permanece o mesmo, quinze sorteados e sete escolhidos.
21

Impossibilidade de dupla recusa de jurados.


Processos dificilmente poderão ser desmembrados. Isso significa que quando
houver dois ou mais réus em um processo, eles serão julgados juntos.
Limitação na leitura de peças em plenário. Simplificação dos quesitos a serem
apreciados pelos jurados, como, por exemplo: atenuantes e agravantes não serão
mais apreciados pelos jurados e sim pelo juiz.
A sentença é dada pela maioria dos votos, assim, como são 7 os jurados, se os 4
primeiros a votarem decidirem pela absolvição ou pela condenação, os demais não
precisam votar.
O julgamento não será mais adiado se o acusado solto tiver sido intimado e não
comparecer à audiência. O julgamento poderá ser realizado sem a presença do réu.
Extinção do protesto por novo júri, (recurso que valia para quem era condenado por
período igual ou superior a 20 anos)

Fonte: TJDFT (2009, p. 04).

A plenitude de defesa é a primeira garantia constitucional do júri. Não seria


exagero afirmar que o legislador constituinte foi cauteloso e adotou preciosismo ao
tratar desta prerrogativa (LIMA, 2021). Segundo Oliveira (2011, p. 42), diante da
análise de tal princípio:

[...] defesa ampla é uma defesa cheia de oportunidades, sem restrições, é a


possibilidade de o réu defender-se de modo irrestrito, sem sofrer limitações
indevidas, quer pela parte contrária, quer pelo Estado-juiz, enquanto que
defesa plena é uma defesa absoluta, perfeita, completa, exercício efetivo de
uma defesa irretocável, sem qualquer arranhão, perfeição, logicamente
dentro da natural limitação humana.

A escolha dos cidadãos deve ser criteriosa, buscando todos aqueles que
melhor representem a sociedade. O juiz não pode diferenciar os cidadãos pela posição
social que eles ocupam, mas, deve visar a sua idoneidade. Sobre isso, Sousa (2010,
p. 833) diz que “o que se aconselha é uma maior diversificação, quando possível, de
funções sociais, de forma a permitir que a sociedade se faça presente por todas as
suas camadas”.
No que compete a convocação dos jurados para o Tribunal do Júri, Nucci (2014,
p. 176-179) coloca em evidência que:

O ideal, certamente, seria a formação do corpo de jurados com pessoas de


todas as classes sociais, mas, conforme a cristalina recomendação de Pontes
de Miranda, que possuíssem bons antecedentes criminais, boa conduta
social e cultura. O júri é, por natureza, um corpo julgador que decide por
íntima convicção, mas baseado num sistema normativo codificado, ou seja,
as partes – Promotor e Defesa – buscam esclarecer aos jurados as teses que
possuem para a condenação e para a absolvição. Os argumentos envolvem
questões acerca da culpabilidade, bem como avaliação de provas, matérias
22

complexas que exigem no mínimo, cultura para a devida compreensão. [...]


Pessoas incultas podem ter muito bom senso, mas certamente têm imensa
dificuldade de compreender teses jurídicas e análises de fatos extraídas da
prova dos autos. Poderá haver o julgamento pela aparência, ou seja,
conforme se apresentar o réu, de acordo com a melhor retórica, e,
fundamentalmente, seguindo instintos e impulsos emocionais, o Conselho de
Sentença terminaria condenando ou absolvendo. [...] Somente numa
comunidade homogênea, com população instruída – ao menos alfabetizada
– pode-se reclamar um Júri formado de jurados extraídos de várias classes.
Não é porque um miserável analfabeto será julgado pelo Tribunal Popular que
o Conselho de Sentença deva ser formado por pessoas de igual posição.
Terá ele melhores chances perante o corpo de juízes cultos, que analisem a
prova com isenção, até mesmo compreendendo os problemas sociais que
afligem a comunidade, do que diante de um conselho leigo e igualmente
inculto, o qual irá julgar por impulsos emocionais. Poderá, nesse caso, o réu
ter sorte e conseguir a simpatia dos jurados, mas se o contrário ocorrer,
certamente ele não terá chances e será condenado. [...] Parece mais indicado
continuar formando o corpo de jurados nas bases atuais, mesmo que
pareçam conselhos elitistas e distanciados da realidade social, para a
segurança do próprio acusado. A plenitude de sua defesa somente será
efetivamente assegurada caso as teses expostas em plenário sejam
compreendidas e analisadas por jurados imparciais.

No Júri, ressalta-se que não apenas a defesa técnica, relativa aos aspectos
jurídicos do fato, pode ser produzida, mas mais que isso: dadas as peculiaridades do
processo e considerando o fato de que são leigos os juízes, permite-se a utilização de
argumentação não jurídica, com referências a questões sociológicas, religiosas,
morais, dentre outras. Ou seja, argumentos que, normalmente, não seriam
considerados fosse o julgamento proferido por um juiz togado, no Júri ganham
especial relevância, podendo ser explorados à exaustão (SANTANA, 2021).
De forma semelhante, ao aplicar tal conceito nas análises de inferências,
Araújo (2020) considera que existe, em certas decisões judiciais, a relativização de
determinadas temáticas ou em torno de determinados objetos que acabam sendo
nutridos por “movimentos externos à prática” (p. 360) – judicial. Nesse sentido, pode-
se considerar que algo que reluta ser encontrado perante o Tribunal do Júri diz
respeito aos critérios de moderação da opinião popular perante determinados julgados
considerados relevantes e de grande repercussão. Por vezes, as inferências materiais
se tornam ofuscadas pela conformidade de interpretações que nem sempre são
aquelas plenamente delimitadas como sentença do Tribunal do Júri, mas
fundamentadas em um anseio popular e de clamor por justiça.
É diante desse quadro que a repercussão midiática entra como coadjuvante do
processo criminal, situando-se como intérprete e observadora, buscando ‘interpretar’,
de acordo com interesses diversos os fatos e os direitos competentes do júri.
23

3 A MIDIATIZAÇÃO DO TRIBUNAL DO JURI

Inicialmente, ao adentrar no assunto sobre as massas de comunicação, é


importante trazer ao projeto a sua história, evolução e aplicabilidade na sociedade
atualmente, como bem-dito por Lima (2001, p. 109), “a mídia é como um conjunto de
instituições que utilizam da tecnologia como um meio para que as comunicações entre
humanos se realizem”.
Além disso, antes de adentrar na sua aplicação, merece ser trazido à baila o
significado para o termo mídia, que vem do latim medium e explicado por Alberto Dines
(1997, p. 58):

Medium é meio, modo, maneira, forma, via, caminho, condição em que se


executa uma tarefa. Na linguagem técnica da comunicação, medium designa
o canal através do qual o emissor passa a sua mensagem ao receptor, a
audiência.

Dito isso, havendo a definição sobre o que é a mídia, a sua aplicação é


considerada como grande maquinário para formação da opinião pública, sendo até
considerada como uma forma de controle social (ZAFFARONI, 2019, p. 61).
Assim, diante da significação do termo, verifica-se que o meio jornalístico atua
em sociedade como uma política de compra e venda, considerando a informação
como o objeto do contrato, atuando de forma a prender a atenção do público.
Em meio ao emaranhado de dados que circulam diariamente pelos aparelhos
de comunicação, o que existe é uma concorrência pelos pontos de audiência, e o que
se vê como resultado desta concorrência são matérias de cunho apelativo e eivadas
de sensacionalismo, que moldam e transformam as opiniões populares, tornando
claro a intenção dos veículos jornalísticos: ter o monopólio da informação (PRADO,
2022).
Diante disso, é perceptível que jornais e mídias com temáticas de violência e
crimes na sociedade detém grandes números de audiência e, consequentemente, têm
ganhado espaço na programação da TV aberta e nas plataformas digitais. Além da
mídia televisiva, existem as redes sociais, os perfis de informação que noticiam crimes
por meio da internet, considerados mais populares ainda, uma vez que a maioria dos
leitores se interessam apenas pela manchete de divulgação e não pelo conteúdo do
texto (PRADO, 2022).
24

3.1 A (im) parcialidade da mídia no sistema judiciário brasileiro

Giddens (2007) reverbera que a globalização poderia ser um obstáculo para o


desenvolvimento social. Parece antagônico essa perspectiva, mas na verdade o que
o sociólogo estaria argumentando é que a forma como o mundo tem se portado diante
das tendências do sistema globalizado, tem feito com que a sociedade perca o
controle sobre as escolhas éticas e acabem por tornar o mundo instável, sem a correta
avaliação e controle do pensamento social.
Diante desse cenário inicial, pode-se considerar que os efeitos que a mídia, a
imprensa e as redes sociais têm tido no pensamento social, demonstra que, por mais
que se crie critérios específicos para que um determinado tema seja considerado de
uma determinada forma, há sempre os questionamentos em torno de uma inferência,
trazendo para a plataforma do pragmatismo, uma análise dual ou mesmo plural sobre
determinada retórica.
Percebe-se que, no campo macrossocial atual, é nítido se perceber a influência
da mídia naquilo que se pensa sobre política, economia, ideologias religiosas, e até
mesmo nas relações privadas e íntimas dos indivíduos. No âmbito político, por
exemplo, é incansável as discussões e debates nos noticiários sobre os extremos da
política nacional, sobre a realidade polarizada e sobre os seus efeitos práticos dentro
do cenário nacional.
A Carta Magna de 1988 elenca, em seu artigo 220, que “a manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Entretanto, percebe-se que a liberdade de pensamento possui limitações e fronteiras
e que nem sempre são respeitadas, levando para o campo da Filosofia e da Sociologia
do Direito, a diagnose dos parâmetros que sobrepõem esse contraste.
Interessante destacar que a imprensa e as mídias sociais têm tido tamanho
‘poder’, em seu sentido estrito, na modernidade, que as suas atribuições deixaram de
ser de apenas informar os fatos, mas de ser intérpretes e julgadores sobre estes. A
opinião popular tem sido, aos poucos, influenciada por aquilo que se observa nos
telejornais, nas redes. Isso tem afetado diretamente no modo como a sociedade
entende a si, ao outro e ao nós (VIEIRA, 2022).
Na proa desse raciocínio, ao adentrar na dinâmica de vetores das decisões
judiciais, Salgado e Gabardo (2021) argumentam que o sistema judiciário brasileiro
25

tem sido fragmentado diante da erosão das decisões judiciais que tem pendido entre
o common law e o civil law. Diante disso, percebe-se que:

[...] no caso do Brasil, levantamos a hipótese de que o Judiciário


desempenhou um papel crucial nesse processo ao assumir um viés populista
autoritário e realizar um novo tipo de prática legal. O populismo judicial
compartilha algumas características com as posturas dos poderes políticos:
desafia a legitimidade dos poderes estabelecidos, afirma representar a vox
populi, usa a mutação constitucional para consolidar o poder nas mãos dos
ministros, e minar o sistema de freios e contrapesos. Como seus
companheiros políticos, os populistas judiciais não negam a representação
política: eles afirmam ser os verdadeiros representantes. Nas decisões
judiciais populistas, há menos preocupação com a fundamentação jurídica e
o respeito à Constituição e mais referências à “vontade do povo”. (tradução
nossa, pág. 03).

Destaca-se o fato de que o populismo que os autores acabam problematizando,


diz respeito a uma vanguarda que tem tido ampla participação nas decisões judiciais
em especial do Supremo Tribunal Federal, e que tem se balizado por uma perspectiva
de politização da política (OLIVEIRA; CONTI; MEDEIROS, 2020). Observa-se que o
modo como a sociedade tem refletido sobre as decisões da Suprema Corte tem sido
reverberadas pelo papel da mídia, da imprensa, que tem colocado holofotes em
questões de repercussão pública, mas que perpassam pela ótica do privado, afetando
diretamente no viés sentencial.
Araújo (2020) argumenta que muitos Tribunais têm se utilizado de uma
mudança gradual nas dinâmicas de análise inferencista sobre determinadas matérias,
ao mesmo tempo que o STF, por exemplo, tem se destacado em não julgar
exclusivamente de acordo com as derivações da prática jurídica, mas diante de um
jogo que “rejeita explicar a normatividade do conteúdo com o apelo a uma comunidade
com ponto de vista privilegiado” (p. 22).
Diante desse quadro, importa destacar que um dos pontos em que mais se
repercute a influência das mídias nos processos judiciais se encontra no Tribunal do
Júri, e é esse viés que será apresentado a seguir.

3.2 Influência da mídia nos Tribunais do Júri

O Brasil tem uma imprensa livre, muito embora essa liberdade não seja
considerada absoluta, uma vez que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
220, constata que a divulgação de informações pela mídia deve observar os direitos
26

fundamentais do indivíduo elencados em seu artigo 5º, como outrora exposto. E, nos
dias de hoje, percebe-se a utilização da informação para outras finalidades que não a
de comunicar e informar, pois a mídia usa do próprio interesse para manipular uma
ideia que será passada com a informação, fazendo com que o público receptor crie a
partir dessa ideia uma nova realidade baseando-se no que viu, ouviu ou leu (NOBRE,
1988).
O Júri veio ao passar dos tempos, mudando, assim como houve mudanças
sociais, dentre as quais podemos citar o avanço dos meios de comunicação,
entretanto, essa grande quantidade de informações nem sempre é de qualidade, pois
a notícia tornou-se um instrumento poderoso nas mãos da imprensa, tornando-a
perigosa, uma vez que seu foco é a audiência (SANTOS, 2018).
Os noticiários de crimes e seus julgamentos, denominados crônica jurídica,
uma arma forte, que, para assegurar uma boa audiência, produzem prejuízo aos
direitos e garantias fundamentais do acusado pela prática de um crime que está sendo
noticiado, principalmente àqueles de competência do Tribunal Popular do Júri
(SANTOS, 2018).
A grande pressão exercida pela mídia faz-se refletir e questionar sobre a
imparcialidade dos julgamentos, como também o devido processo legal, atingindo
diretamente ao princípio da plenitude de defesa, que acaba se tornando ineficaz
perante as informações transmitidas pela mídia (SANTOS, 2018).
Um dos principais problemas em casos de grande repercussão que perpassam
pelo Tribunal do Júri diz respeito a parcialidade dos jurados quanto a sentença que
será proferida. São diversas as jurisprudências, acordões e decisões que acolhem ou
que afastam essa retórica diante dos casos de competência do júri. O desaforamento
acaba sendo um pedido recorrente tanto da defesa como da acusação, nesses casos.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou improcedente o pedido de
desaforamento de processo em que tinha como requerimento a mudança da comarca
em face da

DESAFORAMENTO DE JULGAMENTO. TRIBUNAL DO JÚRI.


REQUERENTE PRONUNCIADO COMO INCURSO NAS PERNAS DO
ARTIGO 121, § 2ª, INCISOS IV E V, DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE
IMPARCIALIDADE DO CONSELHO DE SENTENÇA, POR INFLUÊNCIA DE
IMPRENSA LOCAL. Somente em hipóteses excepcionais, previstas
expressamente em lei, e com base em fatos comprovados nos autos, justifica-
27

se o deferimento do pedido de desaforamento para outra Comarca do


julgamento a ser realizado pelo Tribunal do Júri. As informações do
magistrado que preside o feito são de primordial importância, vez que ele tem
contato direto com a repercussão do delito e com a respectiva sociedade
local. Na espécie, o douto magistrado de piso noticiou que não vê qualquer
razão para que o julgamento do processo em questão seja subtraído da
competência do Tribunal Popular, aduzindo que, embora o crime tenha
sido praticado em cidade do interior, sendo assim possível alcançar
alguma notoriedade na Comarca, inclusive na imprensa falada e escrita,
a situação não chega a comprometer a parcialidade dos jurados.
Ressaltou, ainda, que outros réus de semelhante antecedentes já foram
julgados por aquele juízo sem que se tenha registrado qualquer problema,
esclarecendo que o requerente já foi julgado pelo Egrégio Conselho de
Sentença da Comarca e a defesa em momento algum arguiu qualquer
incidente ou nulidade do julgamento. Com efeito, a indicação do interesse
da ordem pública, da imparcialidade dos jurados ou da segurança
pessoal do acusado, deve ser apresentada de forma concreta e objetiva,
para verificar-se a real necessidade de mudança da competência
territorial, nos termos do artigo 427, do CPP, não bastando, para tanto,
aludir à larga divulgação do crime ou ao fato do réu responder a vários
processos na Comarca, pois tais fatos, inexistindo elementos fáticos
que indiquem coação moral ou julgamento predeterminado, não são
capazes de ensejar o desaforamento. Não fosse assim, em casos de
noticiamento nacional de um crime de homicídio, a imparcialidade dos jurados
estaria comprometida em todo o território nacional, o que não é de se admitir.
Improcedência do pedido. (TJ-RJ - DESAFORAMENTO DE JULGAMENTO:
00325976620138190000 RIO DE JANEIRO MACAE VARA CRIMINAL,
Relator: SUIMEI MEIRA CAVALIERI, Data de Julgamento: 24/09/2013,
TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 01/10/2013, grifo
nosso)

Nota-se que a decisão acima reverbera, em seu final, que não é válido que haja
o desaforamento de processos que tenham elementos fáticos de coação moral ou
julgamento predeterminado, uma vez que isso poderia acarretar um problema não
apenas regional, pois se todo processo for preciso ser desaforado, não haveria espaço
para julgamento em outras localidades, ainda mais quando este tem sobrecarga de
conhecimento público e irrestrito, sendo repercutido nacionalmente.
O seguinte julgado no Supremo Tribunal de Justiça colabora para o
entendimento de tal cerne:
28

HABEAS CORPUS. DECISÃO DO JÚRI. ALEGAÇÃO DE NULIDADE.


DIVULGAÇÃO DE FATOS DO PROCESSO À IMPRENSA. DIREITO À
INFORMAÇÃO. VÍCIOS NÃO COMPROVADOS. Na via estreita de habeas
corpus o julgador não trabalha com suposições ou meras alegações, mas
com verdades concretas, razão porque cabe ao interessado perfilar com
exatidão e indicar com fundamentos sólidos o prejuízo porventura sofrido ao
direito de defesa em situação vivida nos autos. O exercimento do direito de
informação não macula os dados contidos no processo só porque o público
deles tomou conhecimento. Ordem denegada. (STJ - HC: 24249 RJ
2002/0109759-9, Relator: Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Data de
Julgamento: 10/02/2004, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: --> DJ
15/03/2004 p. 287)

Percebe-se que o julgado acima nega a concessão de habeas corpus para réu
em que a defesa coaduna que pela repercussão da imprensa sobre caso concreto, a
decisão do júri poderia estar comprometida. Na decisão, o relator proferiu que o
exercício do direito de informação não macula os dados contidos no processo, uma
vez que nem sempre o que se encontra nos noticiários é a verdade presente nas vias
de fato das entrelinhas do processo, cabendo ao jurado atribuir sentido para o que
está sendo discutido perante o plenário, desvinculando-se do saber social.
Assim, entende-se que a repercussão dada pela mídia em determinados
processos judiciais tem sido palco de debates entre os juristas sobre até que ponto a
imprensa passa a influenciar as arguições e inferências dedicadas nas decisões,
inclusive do Tribunal do Júri.
Por um lado, há os que consideram como positiva o saber prévio e notório sobre
determinado caso, a fim de que seja mais fácil para a acusação ou para a defesa
elencar seus discursos. Por outro, entende-se que o caso deve ser analisado de
acordo com as ponderações exclusivas do quadro processual em voga, orquestrado
nas paredes do pleno, de tal modo que trazer uma clareza externa estaria indo de
forma contrária ao pressuposto da parcialidade, incomunicabilidade e manifestação
pré-determinada sobre sentença condenatória ou de absolvição (FRAGOSO, 2016).
Destaca-se o fato de que o jornalismo não apenas notícia, mas dá ‘poder’ à
notícia. Esta passa a ter um valor intrínseco no pensamento social, de tal modo que é
quase imprevisível que não se crie uma opinião popular em torno de um determinado
assunto que circula nas mídias comunicativas. A mensagem que é emitida acaba
sendo modificada pelas diferentes visões existentes, e, quando chega no receptor,
este deve decodificar utilizando-se daquilo que melhor lhe aparece (PRADO, 2022).
29

Mediante este contexto que o âmbito criminalístico se mostra uma fonte


abundante de notícias com grande potencial lucrativo, visto que, os crimes abarcados
pelo Tribunal do Júri são aqueles que atingem a vida humana e geram uma intensa
comoção. Nessas circunstâncias surge o sensacionalismo, onde o compromisso com
a veracidade dos acontecimentos é preterido e torna o caso uma verdadeira novela,
criando um espetáculo dominado por uma carga emocional que, por sua vez,
influencia o público se interligando a população através de acontecimentos cotidiano
e o uso de linguagem popular (MÉRO, 2002).
A utilização desses artifícios pela mídia, principalmente no que diz respeito a
forma como ela aborda o crime distorce a realidade, fazendo nascer uma verdadeira
cultura do medo onde os indivíduos estão tomados pelo lado emocional e há uma
maior propensão de estar sujeito a manipulação pela mídia.
Dessa forma, o jurado, nem sempre conseguirá se manter imparcial frente as
influências as quais foi submetido antes mesmo do próprio julgamento. O corpo de
jurados é formado por cidadãos da localidade que são tidos como leigos, já que não
possuem conhecimento acerca das ciências jurídicas, portanto, ao serem
selecionados é possível que já possuam uma opinião formada acerca do incidente a
ser analisado mediante a intensa veiculação da mídia (FRAGOSO, 2016).
Este fator levanta debates acerca do seu mecanismo do Tribunal do Júri. De
acordo com Hungria e Fragoso (1956), o júri só interessa ao povo como espetáculo,
como show, em que os promotores e os defensores se defrontam para os duelos de
oratória. É uma peça teatral que o povo assiste de graça e exclusivamente por isso é
que desperta ainda a sua simpatia.
A exploração da mídia sobre um fato criminoso realizada de forma
irresponsável causa graves consequências ao julgamento, visto que, o jurado é um
integrante da sociedade que, por determinação legal, foi eleito para atuar enquanto
juiz. A veiculação do fato criminoso, bem como da própria marcha processual, é
extremamente preocupante quando ultrapassa os limites éticos, visto que, a mídia tem
mais impacto sobre a decisão do corpo de jurados do que as provas processuais
produzidas na instrução e no plenário. Ou seja, as concepções do senso comum
acabam por exercer uma maior influência na decisão do que as provas trazidas pelas
partes (MONTEIRO, 2020).
Quando a mídia realiza o seu papel de forma equivocada, noticiando
acontecimentos de forma infiel a realidade processual, acaba por lesar ao princípio da
30

presunção da inocência. Como postula Nucci (2014), o estado natural das pessoas é
a inocência, logo, para que esse status de inocência seja retirado pelo Estado é
necessário que o indivíduo passe pelo devido processo legal, no qual diante de provas
cabais suficientes, o Estado poderá culpabilizá-lo.
Entretanto, diante da exploração midiática indiscriminada as quais são
submetidos alguns casos, dificilmente haverá um jurado que ainda não tenha formado
uma opinião acerca do acontecido, e que, apesar de ser uma opinião própria, teve
como elementos formadores os meios de comunicação que não refletem,
necessariamente, a verdade real construída no devido processo legal.
Em um cenário onde passa a ser exigida a condenação, bem como a aplicação
do direito penal enquanto prima ratio, ocorre um processo de desumanização do réu,
que em decorrência da suposta prática criminosa, terá seus direitos e garantias
fundamentais respeitados.
Em que pese a imprensa, esta possui relevante responsabilidade social da
imprensa, portanto a prestação de seus serviços em favor da sociedade é um dever,
conforme determina o art. 6º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (2013)..
Portanto, apesar da liberdade de imprensa, se demonstra imprescindível a
consecução do seu objetivo de informar a sociedade, e é indiscutível que nenhuma
liberdade é absoluta no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, tais limitações
não devem ser tratadas como uma forma de censura, apenas uma forma para evitar
que outros direitos sejam violados, em especial quando tende a influenciar decisões
importantes de clamor social, tal como as proeminentes do Tribunal do Júri.
31

4 BOATE KISS: PERSPECTIVAS E CONTRACENAS DA MÍDIA NO TRIBUNAL DO


JURI GAÚCHO

4.1 O Incêndio na Boate Kiss

Uma das tragédias mais memoráveis da atualidade brasileira, em termos de


acidente com resultado em incêndio, o Caso do Incêndio da Boate Kiss, ocorrido na
madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, é bastante emblemático pelas suas
peculiaridades, tanto pela repercussão social e midiática que teve – e ainda possui –
tanto pela responsabilização do desastre que deixou 242 mortos e 636 feridos na casa
de eventos da cidade de Santa Maria, no Estado do Rio Grande do Sul.
De acordo com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (2022), a Boate Kiss
foi o local escolhido para sediar a festa universitária chamada Agromerados. Numa
das apresentações, um dos integrantes da Banda Gurizada Fandangueira fez o
disparo de um artefato pirotécnico, que acabou atingindo o teto do estabelecimento,
vindo a pegar fogo.
Conforme investigações da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros, realizada
após o acidente, foi constatado que a espuma fixada no teto para isolamento acústico
da casa de eventos era feita de Poliuretano, um material altamente tóxico em contato
com o fogo, uma vez que a reação química produzida, provoca a emissão de
monóxido de carbono e de gás cianídrico – a título de comparação, os mesmos gases
eram usado nas câmaras de gás nos campos de concentração nazista – e isso
provocou a asfixia e danos respiratórios nas pessoas que estavam presentes no
momento do acidente, causando lesões graves e até mesmo a morte (MPRS, 2022).
Diversos foram os fatores que culminaram no acidente da Boate Kiss. De
acordo com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul
(2013), a tragédia poderia ter sido evitada, tendo em vista que dadas as
irregularidades físicas, estruturais, fiscalizatórias, entre outras, a ocorrência de um
desastre era iminente. Além disso, a falta de legislação adequada sobre a prevenção
de acidentes causados por incêndios, bem como de normas de segurança de
regulação estrutural das casas noturnas, também foram alguns dos pontos levantados
para que o acidente fosse uma tragédia anunciada.
32

Figura 01. Interior da Boate Kiss após o acidente.

Fonte: G1/Polícia Civil do Rio Grande do Sul (2013).

O lastro de destruição na estrutura física da Boate Kiss é bastante perceptível


nas imagens disponibilizadas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, tal como na
Figura 01 acima. Percebe-se que o teto ficou bastante danificado, dada a mudança
de estado da espuma presente. Cabe destacar que a imagem acima é apenas uma
das áreas de vivência do estabelecimento, no caso a que ficou com danos estruturais
mais críticos.

Figura 02. Parte do teto danificado pelo incêndio na Boate Kiss.

Fonte: G1/Polícia Civil do Rio Grande do Sul (2013).


33

Por sua vez, a Figura 02 deixa bastante perceptível os danos causados no teto
da Boate Kiss, com o deslocamento das placas acústicas feitas de espuma tóxica, que
eram fixadas não apenas no teto, mas também nas paredes, com a finalidade de
atenuar a amplitude sonora presente no ambiente. A estrutura de aço também foi
danificado, fazendo com que caísse em cima do público que estava na casa noturna,
dificultando a saída destes e causando ferimentos múltiplos.

4.2 A repercussão do incêndio na Boate Kiss

Minutos depois do início do incêndio na Boate Kiss, os noticiários regionais e


nacionais começaram a emitir plantões com manchetes em torno do ocorrido. Santa
Maria passou a estar no centro das atenções dos noticiários, em especial pelo fato de
que muitos estudantes que participavam do evento, e que eram alunos da
Universidade Federal de Santa Maria, eram oriundos não somente do município
gaúcho, mas das mais diversas localidades do país.
No mesmo dia do acidente, que ocorreu na madrugada, já na parte da tarde, a
presença da então presidente da República, Dilma Rousseff, no ginásio em que se
encontravam as vítimas do acidente, fez com que aumentasse o destaque da tragédia
nos portais de notícia nacionais e até mesmo internacionais.

Figura 03. Capa do periódico The New York Times sobre o incêndio na Boate
Kiss.

Fonte: Reprodução/Archive The New York Times (2013).


34

Em arquivo do periódico estadunidense The New York Times, observa-se que


o jornal trouxe na capa do dia 27 de janeiro de 2013, os dizeres, em tradução nossa,
“Uma cena de horror em uma casa noturna brasileira”, como mostrado na Figura 03.
A BBC, rede britânica de radiodifusão, também publicou, no mesmo dia, como
manchete no seu site a informação de que dezenas de pessoas morreram em incêndio
no sul do Brasil como mostra a Figura 04:

Figura 04. Manchete sobre o incêndio na Boate Kiss em primeiro plano no site
da rede britânica BBC.

Fonte: Reprodução/BBC (2013).

Foram diversos os veículos de imprensa que passaram a desenvolver suas


análises sobre o incêndio na Boate Kiss em todo o mundo, mantendo diálogos,
debates e discussões com especialistas de diferentes áreas, em torno do jornalismo
investigativo, paralelo às investigações oficiais. Eram diversas as problemáticas
encontradas pelos jornalistas, em especial no que dizia respeito a quem deveria cair
a responsabilidade para com o incêndio, se houve ausência de fiscalização por parte
dos órgãos competentes, se houve ingerência por parte dos proprietários da casa
noturna ou mesmo anuência destes para com o ato ocorrido.
Percebe-se, por exemplo, que as principais redes de mídia brasileira criaram
espaços dedicados em suas plataformas digitais com cobertura permanente para as
movimentações em torno do processo investigativo e, posteriormente, judicial, do
35

incêndio na Boate Kiss. Utilizando-se de metadados, ao se fazer pesquisas nas abas


do portal de agências tal como UOL, G1, Folha de São Paulo, entre outras, observa-
se a presença de janelas dedicadas exclusivamente, em ordem cronológica, com
referências ao caso da tragédia gaúcha.

Figura 05. Aba do Portal G1 com reportagens exclusivas sobre o Caso da


Boate Kiss.

Fonte: Reprodução/G1 (2023).

Se for elencar todas as manchetes dos principais noticiários e agências de


comunicação que trazem conteúdos sobre o caso do incêndio da Boate Kiss,
certamente não caberia no presente trabalho de conclusão de curso. Entretanto, o que
se observa é que a mídia, desde o momento do acidente, trouxe consigo diversos
holofotes em torno do fato ocorrido, fazendo não somente uma intermediação da
notícia em si, mas também colaborando para a instrução do julgamento social sobre
a tragédia ocorrida, em todas as suas dimensões.
Pompeo e Vieira (2013), em artigo publicado meses após o acidente,
coadunam que houve a estimulação da midiatização do incêndio, resultado do
ativismo digital, trazido pela revolução da globalização contemporânea. Para os
pesquisadores:
36

Muitas pessoas ficaram sabendo do incêndio na boate Kiss por meio da


própria rede, em especial do facebook. Na ordem cronológica dos fatos, após
a tragédia, eram, minuto a minuto, postadas fotos e vídeos do local e das
vítimas, sendo que, alguns/algumas, por tão fortes, chegaram a ventilar
questionamentos acerca da (des)necessidade de sua publicação ante
necessário o respeito a amigos e familiares envolvidos (POMPEO; VIEIRA,
2013, p. 07).

Restou-se incontroverso que, minuto a minuto, os fatos e acontecimentos


posteriores ao acidente tornaram-se de conhecimento além do campo regional pela
proporcionalidade dos conteúdos publicados não somente pelos órgãos de imprensa,
mas também pelas mídias sociais. Até então, o Facebook se comportava como a rede
social mais utilizada no mundo, e era por meio dele que muitas pessoas recorriam
para ‘visualizarem’ o que estava ocorrendo, para manifestarem, protestarem e criar
um espaço de discussão em torno do acidente.
Silva (2022, p. 13) argumenta que o que ocorreu foi a instauração de uma
sensação de sadismo midiático em torno do ocorrido, conforme se observa:

Os meios de comunicação passaram a acompanhar diariamente a vida de


cada um dos participantes e, conforme a investigação, bem como os
processos, foram recebendo andamento e atualizações, foi-se esculpindo a
face dos condenados. Embora ainda haja a supremacia da presunção de
inocência, um direito previsto na nossa Constituição Federal, a mídia
conseguiu ultrapassar esse princípio jurídico e previamente já optou por
condenar pessoas que seriam, em sua ótica, responsáveis por tantas mortes
e por tanto sofrimento.

Dessa forma, observa-se que o alcance midiático do incêndio ocorrido na Boate


Kiss resultou em uma ampla manifestação por parte da sociedade, que se viu
renderizada em opiniões divergentes sobre quem era culpado, quem era inocente,
antes mesmo de decisão judicial pertinente.
Interessante ressaltar ainda que laudos, entre outros documentos da
investigação e do decorrer do processo judicial, eram meticulosamente ‘estudados’ e
‘analisados’ nas mídias sociais e pelos veículos de imprensa, fazendo com que a
opinião popular passasse a ser instigada pelo teor das publicações.
No âmbito judicial, foram seis os processos de responsabilização sobre o
incêndio na Kiss, sendo que o processo criminal passou a ter como réus Elissandro
Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, ambos sócios e proprietários da Boate
Kiss; Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira
37

4.3 O Tribunal do Juri e a Boate Kiss: a mídia no banco dos réus?

De acordo com Suzuki e Braga (2013), a primeira transmissão de julgamento


no tribunal do júri no Brasil aconteceu na primeira e segunda semana do mês de março
de 2013, com Mizael Bispo de Souza no banco dos réus, sendo acusado pela morte
de Mércia Nakashima, sua ex-namorada, ocorrida no ano de 2010. Após quatro dias
de júri, a sentença veio com a pena de 20 anos de prisão em regime inicial fechado,
que posteriormente foi alterada para 22 anos e 8 meses, após apelação do Ministério
Público.
O caso foi bastante veiculado na mídia nacional, em especial pelas
características do crime. Mércia Nakashima foi encontrada em uma represa na cidade
de Nazaré Paulista, depois que uma denúncia havia sido feita sobre um carro
submerso na barragem. O carro era o de Nakashima. As investigações se arrolaram
meses a fio, até que, depois de uma perícia em um dos sapatos de Mizael,
descobriram restos de algas que somente havia na represa em que o carro e corpo
de Mércia foram encontrados.
A repercussão do caso Nakashima acabou duelando as atenções dos
noticiários no ano de 2013 com o da Boate Kiss. De um lado, o julgamento de um
processo conturbado que havia passado por diferentes fases e que, por fim, chegava
ao júri. Do outro, as investigações e instruções em torno de um processo que estava
se iniciando, em torno de todas as suas nuances, mas que, pela mídia e ‘opinião
popular’, já se tinha um pré-julgamento formulado sobre as responsabilidades da
tragédia.
Foram nove anos desde o incêndio na Boate Kiss até o Tribunal do Júri, que
levou para o banco dos réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann,
Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão. Durante esse período, debates,
busca por especialistas, protestos, entre outras manifestações foram exibidas e
rememoradas nas redes sociais, nos portais de notícias. Seria mesmo apenas os
quatro réus que estavam no banco, os que deveriam ser acusados? Era uma
problemática que até hoje paira no imaginário social. Pereira e Barbosa (2022, p. 18)
consideram que:

Casos de grande repercussão, como é o exemplo do caso da Boate Kiss,


deve ser analisado pelo judiciário com cautela e respeito as normas e
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princípios constitucionais. É nítido que em situações como esta, a sociedade


almeja a condenação dos réus, desejo esse reforçado pelo poder da mídia
que condena antes mesmo do julgamento. Entretanto, é de todo oportuno
frisar o que prevalece o princípio do devido processo legal, previsto na Carta
Magna “art. 5º, inciso LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988). Deste modo, deverá ser
assegurado o contraditório e a ampla defesa.

Pensar sobre o contraditório e a ampla defesa em casos de grande repercussão


midiático como o da Boate Kiss revela a sensibilidade e a controvérsia em torno do
devido processo legal. Destaca-se que houve o desaforamento do processo principal,
assim como dos demais, que passaram a correr na Vara Criminal da Comarca de
Porto Alegre, uma vez que havia a pressão popular regional, que poderia influenciar
no decorrer do processo.
Cabe destacar que o clamor popular perante a condenação no júri da Boate
Kiss estava centrado no ‘fazer justiça’, independente de quem fosse responsabilizado.
Assim, diversas caravanas de pessoas, em especial familiares, amigos e até mesmo
as vítimas que ficaram feridas no acidente, antes mesmo do dia do julgamento, foram
para a capital gaúcha, e, com auxílio da imprensa, passaram a se manifestar em torno
do resultado do júri.
Michael Sandel (2012) considera que, para muitos, a justiça deve ser
reconhecida como uma virtude, que envolve um processo de meditação, escolha e
que necessita de ponderações adequadas para que as contraposições não levem a
‘conclusões equivocadas’. Diante desse ponto de vista, as manifestações em torno do
pedido de justiça na Kiss tinham por objetivo o de cominar no ideal de punir, fazendo
com que as divergências de opinião não fossem evidentes, “desconsiderando a
natureza judiciosa da justiça” (SANDEL, 2012, p. 18).
O júri no caso da Boate Kiss se iniciou no dia primeiro de outubro de 2021. O
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul transmitiu ao vivo pelo YouTube e outras
redes sociais o julgamento, que durou mais de uma semana e foi amplamente
televisionado. Foram ouvidas cerca de 14 vítimas que foram indicadas pelo parquet,
e mais outras vinte pessoas que foram arroladas pela acusação e defesa como parte
do rol de testemunhas. Após esse processo, passou-se para o interrogatório dos réus
e arguição da defesa e da acusação.
A rede de comunicação CNN Brasil publicou uma reportagem, no dia primeiro
de dezembro de 2021, que o júri da Boate Kiss foi um ‘evento de grandes proporções’.
De acordo com a fala do coordenador do TJ-RS, para a matéria, ““Um júri tão simbólico
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por todas as circunstâncias que o envolvem exige uma grande mobilização e estamos
prontos para que tudo transcorra do melhor jeito”. Para isso, foi mobilizado um quórum
de mais ou menos 200 servidores, além da contratação de empresas de comunicação,
que instalaram telões do lado de fora do pleno, a fim de que a imprensa pudesse cobrir
todos os detalhes.
Cabe destacar que a pandemia de COVID-19 impedia a lotação máxima do
auditório do júri, de tal modo que fez com que houvesse a presença, em especial, de
familiares e vítimas da Boate Kiss, além da equipe de comunicação do próprio
Tribunal, que transmitia simultaneamente, e de diferentes ângulos, o julgamento. Duas
câmeras foram utilizadas, sendo direcionadas com foco para os réus e a defesa, além
da acusação e o juiz Orlando Faccini Neto, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri da
Comarca de Porto Alegre, que presidiu a sessão (CNN, 2021).
Durante o julgamento, as redes sociais se tornaram também parte do júri,
informal, dos acusados. Facebook e Instagram passaram a repercutir as principais
falas dos advogados e assistentes de defesa, do Ministério Público e do próprio Juiz.
O Twitter se tornou um campo fértil para, em tempo real, ‘especialistas’ pudessem
visualizar, criticar, debater e identificar a consistência dos argumentos que estavam
sendo explanados no plenário e, deliberando, com senso crítico, os pontos positivos
e negativos de um ou de outro lado do tablado.
Quanto a isso, Ricardo e Silva (2022, p. 15) destacam que:

Verifica-se a alta potencialidade de notícias veiculadas na mídia, ao passo


que, essas possuem capacidade de influenciar no direito penal,
especialmente quando se trata de crimes que serão submetidos ao júri
popular, pois, nesse caso, são pessoas da própria sociedade que irão
condenar ou absolver o “acusado”, sendo que, na maioria das vezes, em
decorrência das repetidas notícias e, seu poder de persuasão, o jurado já
possui um pré-julgamento, que muitas das vezes pela condenação.

E mais, no tocante à Kiss:

Dentro desse contexto, a tragédia foi assistida à exaustão pela sociedade,


onde a cobertura midiática trouxe notícias travestidas de julgamentos,
divulgando o sofrimento e inconformidade dos sobreviventes e familiares dos
que morreram oque, por si só, influencia no tribunal do júri popular que julgou
os réus, razão pela qual, não se esperava outra decisão que não fosse
condenatória (idem, p.16-17).
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Desse modo, o julgamento da Boate Kiss, assim como outros júris de grande
repercussão trazem à tona os debates sobre os limites da publicidade dos processos
e de como os excessos podem influenciar, direta e indiretamente as decisões judiciais.
Não é uma temática fácil de ser abordada, mas que precisa de contínua discussão,
uma vez que a opinião popular reverbera, em parte, aquilo que se coaduna por certo
por determinados grupos sociais, como no caso da imprensa, que busca além
informar, legitimar ideias e sentidos em torno de um objeto, sujeito ou matéria
reportada.
Tamanha a influência da mídia no caso da Boate Kiss que foi inclusive apontada
como um dos fatores que ‘auxiliou’ no processo de anulação do tribunal do júri que
condenou os acusados da Kiss. Todos os procedimentos adotados na fase de
instrução preliminar, pronúncia, preparação para julgamento do plenário, alistamento
e sorteio dos jurados, desaforamento e composição do júri foram amplamente
divulgadas pela imprensa, de tal modo que até mesmo a acusação e a defesa se
beneficiaram daquilo que estava sendo debatido fora das paredes do Tribunal.
Tal retórica pode ser vista em trecho da denúncia do Ministério Público, o qual
preleciona que:

Na primeira ocasião, em razão de entrevistas concedidas à imprensa pelo


Comando dos Bombeiros com estimativa de que a capacidade da boate Kiss
fosse em torno de 1000 (mil) pessoas, a engenheira Josy Maria Gaspar
Enderly contatou com o denunciado RENAN, de quem tinha o número de
telefone, e esclareceu a ele que, por ter feito projeto técnico de Plano de
Prevenção Contra Incêndio (PPCI) para a boate Kiss em época próxima ao
início do funcionamento e calculara que a capacidade seria de 691
(seiscentas e noventa e uma) pessoas; RENAN deslocou-se até a casa de
Josy e, junto à filha desta, obteve via impressa daquele cálculo, bem como
de croqui retratando a planta baixa da boate; a partir de então, o Comando
da Brigada Militar e dos Bombeiros, em entrevista coletiva à imprensa,
retificou a informação sobre a capacidade da boate (MPRS, 2013, p. 09).

Observa-se, no presente relato, por exemplo, que houve posterior retificação


da quantidade de pessoas que eram permitidas, em sede de lotação, dentro da Boate
Kiss, uma vez que após a concessão de entrevistas do Comando dos Bombeiros à
imprensa, um dos denunciados teria se reunido com a engenheira que fez o Plano de
Prevenção Contra Incêndio do estabelecimento, e, depois de uma análise minuciosa
e alguns cálculos, permitiu esclarecer a quantidade real de lotação, fazendo com que
o Comando da Brigada Militar e dos Bombeiros retificasse, junto à imprensa, o
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quantitativo real. Este é apenas um dos exemplos de como se subjugou direta e


indiretamente a influência da mídia diante do processo.
Voltando às concepções iniciais, os réus foram condenados, mas antes de
finalizar o Tribunal do Júri, foram avisados de que um habeas corpus preventivo
julgado em segunda instância, deu a oportunidade de recorrerem em liberdade. Com
efeito, os portais de notícia passaram a se debruçar nas análises em torno do Direito
Processual Penal, buscando com especialistas na área, os nortes que deveriam seguir
a defesa e a acusação a partir de então (CNN, 2021).
Na decisão impetrada, o desembargador Manuel José Martinez Lucas,
inclusive, não deixa de mencionar a integral cobertura da imprensa sobre o
julgamento, e reporta em dado momento um termo que estava sendo utilizados nas
redes sociais sobre o juiz-presidente que ainda conduzia o julgamento, tal como juiz
‘linha dura’.
Com efeito, o ministro Luis Fux, à época, presidente do Supremo Tribunal
Federal, revogou o habeas corpus preventivo após recurso do MPRS, determinando
a prisão dos condenados. Em agosto de 2022, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul deu início ao julgamento do recurso impetrado pela
defesa dos acusados com o pedido de anulação do júri. Os motivos, para a defesa,
seriam diversos vícios processuais, em especial na ordem do sorteio dos jurados, na
composição do júri, nas manobras efetuadas pelo MP que poderiam ter influenciado
na ausência do contraditório e ampla defesa, entre outros.
O júri foi anulado.
A mídia, a imprensa, os portais de notícia continuam se debruçando em cada
nova atualização do processo criminal que responsabilizou – por ora, os quatro reús
outrora condenados. A opinião popular também tem sido redesenhada. Seria apenas
aqueles quatro homens responsáveis pela tragédia? Qual a responsabilidade dos
órgãos públicos e competentes na prevenção do incêndio? Houve culpa ou dolo?
São diversas as perguntas que rodeiam as discussões redes sociais afora,
mas uma coisa se sabe: a mídia tem se colocado no banco dos reús, e atuando ao
mesmo tempo na defesa e na acusação, e paralelamente, fazendo parte do próprio
rol de jurados. É necessário uma discussão mais ampla, robusta, sobre a
transcendência da mídia e sua influência no judiciário nacional, sobre os limites, as
fronteiras do público e do privado na semiótica do Direito Penal e Processual Penal.
42

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Isabella Nardoni. Patrícia Acioli. Eloá Pimentel. Bernardo Boldrini. Nomes que
são conhecidos nacionalmente, e que assim o tornaram pelo episódio fático de
homicídio em que foram vítimas ao longo da primeira década do século XX. A
cobertura da imprensa e dos noticiários, com seus plantões, carregados de jornalismo
investigativo, apuravam os detalhes, o desenrolar do processo, apontavam suspeitos
e culpados, trazia notas das defesas, emitia opiniões com base nos comentários de
especialistas.
Todos os casos acima descritos tinham algo em comum: eram crimes contra a
vida. Mais que isso, seriam – e foram - julgados perante o júri composto por sete
cidadãos que integrariam o Conselho de Sentença, em momento oportuno.
Entretanto, outro detalhe trazia a sincronia entre os casos: a repercussão que tiveram
perante a mídia e a opinião popular, sobre a responsabilização dos delitos.
A mídia, ou as mídias, são redes de comunicação que, assim como a internet,
se encontram interligadas. Os veículos de comunicação tem se tornado cada vez mais
íntimos e próximos do cotidiano social, discutindo, debatendo, refletindo e
promovendo temáticas, fatos, notícias, conteúdos múltiplos e plurais. Em voga, tem
crescido nos últimos anos o desenvolvimento do jornalismo investigativo, mas também
do jornalismo judicial, um termo que nem sempre é encontrado nas pesquisas
acadêmicas, mas que evoca a politização da justiça por parte dos instrumentos de
imprensa.
Diante desse quadro, o presente trabalho buscou por trazer, por mínima que
seja, uma análise em torno da influência da mídia nos Tribunais do Júri, mais
precisamente no caso da Boate Kiss. Poderia se ter elencado os mais diversos casos
envolvendo a participação do júri que ocorreram nos últimos anos, mas a
representatividade emblemática e a repercussão que teve, com a transmissão nas
múltiplas redes sociais, tanto na primeira como na segunda instância, foram motivos
para a escolha de tal caso concreto.
Importa destacar que são muitos os pontos que podem ser abordados e
destacados do presente caso concreto quanto a atuação e influência da mídia, mas
se procura reverberar em três argumentos plausíveis. O primeiro é de que o sistema
judiciário deve delimitar até que ponto o ambiente externo e suas diferentes interações
podem influenciar nas atribuições do júri. O segundo ponto é se pensar sobre os
43

critérios e as atribuições do júri. Por mais plural que seja a escolha dos jurados, o
judiciário deve se utilizar de freios e contrapesos para identificar os atores sociais que
irão compor o pleno, fomentando a razão em detrimento da subjetividade, sendo esta
uma problemática que emerge de campos variados da ciência jurídica. O terceiro
ponto a ser levantado é se, na atualidade, o tribunal do júri ainda é um artifício válido
para a formulação das sentenças.
Todos os pontos elencados, por mais simbólicos e reflexivos que sejam,
possuem múltiplas dimensões de concordâncias e discordâncias entre os pensadores.
Mas o que se sabe é que, independente da absolvição ou da condenação do júri, o
pensamento social, inconstante e impulsivo, acaba sendo influenciado, e a mídia tem
participação importante nesse processo. Teria a mídia lugar no banco dos réus?
44

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