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FILOSOFIA DA CIÊNCIA

autor do original
EDUARDO NAME RISQUES
FERNANDO DE FIGUEIREDO BALIEIRO
KAREN FERNANDA BORTOLOTI
MARIÂNGELA MARTINEZ
MARIO NISHIKAWA

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  sergio cabral, claudete veiga, claudia regina de brito

Autor do original  eduardo name risques, fernando de figueiredo balieiro, karen


fernanda bortoloti, mariângela martinez, mario nishikawa

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  fabrico

Revisão linguística  aderbal torres bezerra

Imagem de capa  nome do autor  —  shutterstock

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

R595f Risques, Eduardo Name


Filosofia da ciência / Eduardo Name Risques et al.
Rio de Janeiro : SESES, 2015.
168 p. : il.

ISBN 978-85-5548-061-4

1. Filosofia. 2. Ciência. 3. Sociologia. 4. Epistemologia. I. SESES. II. Estácio

CDD 121

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 7

1. Neotomismo e Positivismo 10

Contexto Histórico: A Baixa Idade Média 11


Neotomismo 14
O Humanismo Cristão de Jacques Maritain (1882 - 19730) 15
O Positivismo de Auguste Comte (1798-1857) 17

2. Karl Marx, Friedrich Engels e o Marxismo 32

Karl Marx e Friedrich Engels: Contexto Sócio-Histórico 33


A Interlocução com Hegel e a Perspectiva Dialética 35
Trabalho, Alienação e Mais-Valia 40
A Luta de Classes, Práxis e a Interdependência das Esferas Sociais 45
Ideologia, Consciência De Classe e Práxis Revolucionária 51
O Marxismo Entre a Teoria e a Prática Política 53
György Lukács 55
Antonio Gramsci 58
A Escola de Frankfurt 61
Louis Althusser 67

3. Fenomenologia, Personalismo e Serviço Social 74

Fenomenologia? 75
Fenômeno 76
intencionalidade 80
Intenção 81
Intuição 82
Evidência 82
A Redução Fenomenológica (Epoché) 83
A Epoché Husserliana e a Dúvida Metódica de Descartes 85
O Transcendente e o Transcendental 87
Noema e Noese 88
Redução Psicológica e a Redução Transcendental 88
A Descrição 89
Análise 90
Em Síntese 91
Fenomenologia e Serviço Social 93
Emmanuel Mounier 93
Personalismo 94
Conceito de Pessoa 97
Existência Humana 99
Comunidade 101
O Personalismo de Emmanuel Mounier e a Fenomenologia 103

4. Epistemologia da Ciência 112

Karl Popper 115


GastonBachelard 119
Thomas Kuhn 126
Michel Foucault 129

5. A sociologia de Bourdieu, Giddens e Habermas 138

Contendas do século XX: estruturalismo e pós-estruturalismo 139


Contendas sociológicas e psicológicas: indivíduo versus sociedade? 143
A teoria da estruturação de Anthony Giddens 144
A Teoria da Prática de Pierre Bourdieu 150
Jürgen Habermas e o papel da ação comunicativa 158
Jacques Derrida e a crítica ao Estruturalismo 163
Prefácio
Prezados(as) alunos(as)

Sejam bem-vindos à disciplina Filosofia da ciência! Muitos se perguntam:


Por quê estudar filosofia? Em que ela irá contribuir para minha formação profis-
sional? A filosofia tem sua essência na reflexão sobre o mundo que nos cerca. Ela
busca entender o porquê as coisas acontecem e porquê acontecem assim. A ao
fazer isto, ela estimula nosso conhecimento e consciência. Por sermos animais
racionais, todos temos esta capacidade e a obrigação de pensarmos em como
conseguir um lugar melhor para se viver. O assistente social também deve en-
contrar formas de promover o bem estar comum e é neste ponto que a filosofia
da ciência e serviço social se encontram. Nesta disciplina veremos:
No capítulo 1, veremos a evolução na forma de adquirir o conhecimento.
Saberemos como a filosofia de São Tomás de Aquino, o tomismo, a filosofia de
Maritian, neotomismo e a filosofia positivista de Comte contribuíram para a
formação da identidade da profissão de serviço social. Finalizaremos refletindo
sobre a neutralidade da ciência.
No capítulo 2, vamos abordar o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels
e o seus desdobramentos por meio dos chamados teóricos marxistas, dando
destaque as obras de Georg Lukács, Antônio Gramsci, Theodor Adorno, Max
Horkheimer, Walter Benjamin e Louis Althusser. Veremos que epistemologia
marxiana e marxista é uma referência que se caracteriza pela busca do conheci-
mento a partir das contradições de uma sociedade em contínua transformação.
No capítulo 3, daremos destaque a concepção de Fenomenologia proposto
pelo pensador alemão Edmund Husserl e os termos Pessoa e Comunidade em-
pregados pelo filósofo personalista Emmanuel Mounier. Teremos a exposição
dessas duas linhas de pensamento filosófico de forma a esclarecer que elas se
complementam e que serviram de base para a formulação de uma das concep-
ções que influenciou os profissionais do Serviço Social.
No capitulo 4, vamos analisar a epistemologia da ciência contemporânea a
partir do estudo das obras de Karl Pooper, Gaston Bachelard, Thomas Kuhn e
Michel Foucault verificando como esses filósofos da ciência foram fundamen-
tais para o desenvolvimento da ciência e a mudança de concepção acerca do
método científico.

7
No capítulo 5, você estudará a influência do movimento estruturalista na
Sociologia ao longo do século XX. Daremos destaque à Teoria da estruturação de
Giddens, à Teoria da prática de Bourdieu e ao conceito de ação comunicativa de
Habermas. Estes autores depararam-se com o desafio de compreender as con-
dutas humanas para além da dicotomia indivíduo versus sociedade.

Bons estudos!
1
Neotomismo e
Positivismo
1  Neotomismo e Positivismo
É muito importante que o futuro assistente social conheça os modelos de pen-
sar e agir socialmente e, para isto, é preciso ter noções básicas das correntes
filosóficas que deram base a estes modelos.
Por este motivo, vamos fazer uma viagem no tempo: Iremos até a baixa idade
média para conhecermos as transformações sociais e o surgimento de um novo
modelo de conhecimento que conciliava a razão e a fé. Continuaremos nossa
viagem até os dias atuais que concebem o conhecimento com base na ciência.
Veremos ainda as filosofias tomistas e neotomistas, passaremos pelo humanis-
mo de Jacques Maritain e chegaremos aos conceitos positivistas, correntes que
influenciaram as práticas de assistência social.

OBJETIVOS
•  Entender como as mudanças sociais do período da baixa idade média deram início ao novo
modelo filosófico baseado na conciliação entre a razão e a fé.
•  Conhecer a doutrina filosófica tomista de São Tomás de Aquino e como esta doutrina che-
gou ao século XX com o neotomismo e o humanismo de Jacques Maritain
•  Refletir sobre o conceito de positivismo desenvolvido por Auguste Comte, conhecendo
seus métodos e atitudes.
•  Fazer uma análise crítica sobre a neutralidade da ciência.

REFLEXÃO
Você já reparou como as pessoas têm diferentes formas de explicar o mundo ao seu redor?
Uns acreditam que as coisas acontecem por vontade de Deus, outros apenas reproduzem
as explicações que ouviam dos seus avôs e não param para analisar se tais explicações são
verdadeiras. Existem os que questionam tudo o que ouvem como se estivessem sempre
duvidando. E há aqueles que são adeptos do ‘ver para crer’ e buscam respostas que tenham
comprovações. Vamos entender porque isto ocorre.

10 • capítulo 1
1.1  Contexto Histórico: A Baixa Idade Média

As doutrinas de São Tomás de Aquino deram origem ao tomismo, berço da pro-


fissão de serviço social, e para melhor entendermos esta doutrina é importante
fazermos uma breve retrospectiva histórica sobre os aspectos econômicos, po-
líticos e sociais na baixa idade média.
A baixa idade média é um período da história medieval que compreende os
séculos X a XV e foi marcado por um contexto histórico de grandes mudanças
econômicas, políticas e sociais, principalmente para a Europa.
No âmbito econômico as conquistas de novas terras possibilitaram o cres-
cimento demográfico. O sistema produtivo feudal já não supria a demanda e,
para solucionar este problema, os senhores feudais expulsavam o excedente da
população que se aglomerava em aldeias. Nestas aldeias surgiram os primeiros
centros comerciais denominados burgos e os comerciantes locais eram conhe-
cidos como burgueses. Nascia, assim, uma nova classe social.
Porém, a estrutura feudal caracterizada por volumosas taxas de tributos, era
um grande obstáculo para os burgueses. Como forma de amenizar ou acabar com
esta estrutura, os burgueses se alinharam aos reis estimulando a centralização do
poder. Surgiu, então, o Estado Moderno no qual os reis, com o dinheiro da bur-
guesia, centralizavam o seu poder e forneciam condições para o desenvolvimento
comercial (MELLO e COSTA, 1995). Esta foi a principal transformação política.
Na esfera social as cidades cresciam significativamente, o sistema produti-
vo estava em desenvolvimento e as atividades comerciais eram intensas. Isto fez
com que emergissem novas classes sociais tais como os burgueses (comerciantes
locais), os cambistas (trocavam moedas) e os banqueiros (faziam empréstimos e
guardavam o dinheiro).
Os árabes estavam em intensa expansão e, além de controlarem rotas comer-
ciais importantes, ameaçavam a hegemonia da Igreja católica. Com o intuito de
combater o cerco mulçumano e expandir o cristianismo para o Oriente, a Igreja
promoveu o movimento que foi posteriormente denominado de As Cruzadas. Se-
gundo Mello e Costa (1995) este movimento foi de interesse não somente para
a Igreja, mas também para a nobreza que via nele uma alternativa para a con-
quista de novas terras para as cidades comerciais da Itália. Acreditava-se que o
movimento criaria uma rota mediterrânea que lhes permitisse chegar até a Ásia
Ocidental, Por sua vez, a população marginalizada esperava que tal movimento,
ao proporcionar a conquista de novas terras, a reintegrasse ao sistema produtivo.

capítulo 1 • 11
Como dissemos, estas transformações pelas quais a Europa passava amea-
çavam o poder da Igreja. Segundo Marcondes (2002), esta começava a sentir a
necessidade de racionalizar e sistematizar o saber teológico como forma de com-
bater os hereges que aumentavam devido à crítica feita à filosofia árabe islâmica.
Neste período (século XII) surgiram as primeiras universidades que promo-
viam seus estudos teológicos por meio da lógica e da razão. A metodologia utilizada
era a dialética ou lógica aristotélica. Esta metodologia é dedutiva porque busca as
explicações partindo de leis gerais que, por serem gerais, não provam mas permi-
tem explicar fatos específicos. A Igreja buscou nestes estudos as explicações racio-
nais para provar a existência de Deus e da alma humana, resgatando, assim a sua
importância para a salvação da humanidade. Cabe destacar que as universidades
foram cruciais para a divulgação destes conhecimentos e este período recebeu o
nome de escolástico. Seu principal representante foi São Tomás de Aquino.

ATENÇÃO
O alcorão, escritura sagrada para a religião muçulmana, apresenta as revelações de Alá
(Deus) e Maomé (profeta) por meio da análise lógica racional.

1.1.1  São Tomás de Aquino e o Tomismo

São Tomás de Aquino foi um Monge que viveu no sécu-


lo XIII, entre os anos de 1225 e 1274, na Itália. Seguiu a
ordem dominicana e teve carreira acadêmica na Univer-
sidade de Paris.
Sob forte influencia da filosofia de Aristóteles, Platão
e de Santo Agostinho ele criou uma doutrina chamada to-
mismo que se tornou um marco da filosofia medieval. Nes-
ta doutrina ele unificou o pensamento aristotélico com a
fé cristã. Conforme Marcondes (2002 p. 126), “São Tomás
mostra então que a filosofia de Aristóteles é perfeitamente
compatível com o cristianismo, abrindo, assim uma nova
alternativa para o desenvolvimento da filosofia cristã”.
Para ele o conhecimento se origina de duas ordens: a
natural e a sobrenatural.

12 • capítulo 1
A ordem natural é adquirida pelo uso da razão e que busca o conhecimento
por meio da ciência. Esta tem métodos próprios de investigação e a filosofia é
um forte instrumento para a obtenção da verdade. Já a ordem sobrenatural é
adquirida por revelações divinas e a verdade é obtida por meio da fé.
Para este filósofo estas duas ordens não são opostas, como aparentam, e
sim complementares. Segundo Costa (1993, p. 41) a razão pode se beneficiar
da fé porque esta pode ajudar a “ilustrar, esclarecer, explicar e defender os dog-
mas revelados”. Já a fé pode servir para orientar a razão “seja negativamente,
impedindo-a de incorrer em muitos erros, seja positivamente, indicando-lhe
a direção correta que deverá seguir em determinados temas da reflexão racio-
nal”. Ele acrescenta que os dois tipos de conhecimento (com base na fé e com
base na razão) têm a mesma origem: Deus. E, para provar racionalmente a exis-
tência de Deus, ele desenvolve ‘as cinco vias da prova da existência de Deus’
que, segundo Marcondes (2002) consistem em:

1ª prova: O argumento do movimento


Partindo da premissa de que tudo que se move é movido por outro ser, ao
fazer uma retrospectiva, chegamos ao primeiro ser movente que não preci-
sa de outro ser para movê-lo. Este ser movente é Deus.
2ª prova: A causa eficiente
Para ele nada surge do nada e isto sendo verdade tudo é efeito de algo ou
alguma coisa. Porém, se, novamente fizermos uma retrospectiva, chegare-
mos a primeira causa existente que não foi efeito de algo, ou seja, Deus.
3ª prova: A causa eficiente
Para ele nada surge do nada e isto sendo verdade tudo é efeito de algo ou
alguma coisa. Porém, se, novamente fizermos uma retrospectiva, chegare-
mos a primeira causa existente que não foi efeito de algo, ou seja, Deus.
4ª prova: A metafísica
É conhecida, também, pelo termo ‘grau de perfeição’. Para o filósofo tudo
possui qualidades em um grau maior ou menor. Desta forma, as qualidades
das coisas são comparativas, ou seja, só podemos afirmar se uma coisa é
boa ou ruim, se é melhor ou pior quando a comparamos com outra coisa.
Por exemplo, para eu afirmar que uma coisa é boa, preciso compará-la com
outra coisa. Assim sendo, chegamos a conclusão de que existe algo que pos-
sui o grau maior de qualidade, algo perfeito e que é nosso parâmetro máxi-
mo de comparação. Este ser perfeito é Deus.

capítulo 1 • 13
5ª prova: O argumento teológico
Parte do pressuposto de que existe uma ordem e uma finalidade no univer-
so. Assim, as coisas não existem e acontecem a esmo porque, se isto fosse
verdade, a vida seria um caos. Esta ordem não acontece do nada, é preciso
uma inteligência ordenadora para organizar as coisas direcionando-as para
a sua finalidade e esta inteligência é Deus. Para melhor entendermos pode-
mos fazer uma analogia com o ato de escrever: Para escrevermos uma carta,
por exemplo, as letras não surgem do nada, é preciso colocá-las em uma
sequência para que a finalidade da escrita aconteça e, para colocar em uma
ordem, é preciso que alguém as ordene.

Embora estes argumentos não sejam isentos de questionamentos, a grande


contribuição de São Tomás de Aquino está na forma inédita de analisar a exis-
tência de Deus que, até então, era feita com base na fé. São Tomás pautou seus
estudos na demonstração da existência de Deus a partir da razão.

1.2  Neotomismo

Esta corrente surgiu no século XIX, e pode ser definida como uma filosofia
doutrinária que objetiva analisar os problemas contemporâneos com base na
filosofia tomista. Muitos consideram o neotomísmo como sendo o tomismo
atualizado capaz de solucionar os problemas contemporâneos. O neotomísmo
considera toda a filosofia moderna a partir da filosofia de Descartes um erro
que causou a crise no mundo moderno porque estes estudos se afastavam do
metafísico e espiritual.
Assim como o tomismo, o neotomísmo também busca conciliar a razão
com a teologia. Desta forma afirma que o homem é, por natureza, livre, social e
dotado de inteligência e por isto é capaz e tem o direito de desenvolver os meca-
nismos necessários à sua sobrevivência e desenvolvimento humano e espiritu-
al. O neotomísmo visa restabelecer valores morais e a obediência aos princípios
cristãos, como forma de assegurar as mínimas condições de bem-estar social.
Entre estes filósofos destacam- se Jacques Maritian, na França. O Brasil
teve Alceu Amoroso Lima, conhecido também, por Tristão de Ataíde como seu
maior representante.
A profissão de serviço social teve forte influência das filosofias tomistas e neo-
tomistas uma vez que o assistente social é o responsável por planejar e colocar em
ação políticas públicas e programas sociais voltados para o bem-estar coletivo.

14 • capítulo 1
CONEXÃO
Esta filosofia condena qualquer forma de governo que adote uma política que cause dano ao
direito do ser humano a uma vida digna e tudo que ela acarreta: a liberdade, a saúde, o em-
prego e a habitação em prol de interesses do estado porque o Estado não pode se sobrepor
ao ser humano.

1.3  O Humanismo Cristão de Jacques Maritain (1882 - 19730)

Maritain nasceu em 18 de novembro de 1882 em Paris


e faleceu em 28 de abril de 1973 em Toulouse. Sua fa-
mília era de origem protestante, mas em 1906 conver-
teu-se ao catolicismo.
Em 1905, se formou em filosofia pela na Univer-
sidade de Paris. Entre os anos de 1906-1908 cursou
biologia na Universidade de Heidelberg, Alemanha.
Mas foi no Collége de France que conheceu Henri Ber-
gson, professor cuja influência marcou o início de seu
pensamento filosófico. Sob a influência de Spinoza e
Driesch desenvolveu a sua formação católica, Maritain
dedicou-se a estudar a filosofia de São Tomás de Aquino tornando-se, assim, o
principal representante do neotomismo.
Autor de mais de sessenta livros, ele buscava analisar a sociedade moder-
na, sempre questionando sua cultura e sua condição moral, política e religiosa.
Destas análises se originou a teoria do Humanismo Integral que está pautada
em cinco pontos:

O primado da pessoa sobre as coisas (numa crítica à mercantilização da vida realizada


pelo capitalismo) e sobre os processos sociais (crítica à filosofia da história marxista). O
bem comum não se confunde com uma situação de equilíbrio entre os interesses indi-
viduais (como supõem a filosofia política liberal) nem pode ser construído em oposição
ao bem pessoal (como supõem o coletivismo socialista).

capítulo 1 • 15
b. A pessoa é uma totalidade que não pode ser reduzida às suas várias dimensões (eco-
nômica, cultural, social, etc.). Entre estas dimensões, se sobressai a religiosa, pois a vida
humana é forçosamente relação com o Mistério, e o coração do homem não se satisfaz
enquanto não descansa em Deus, como lembrava Santo Agostinho.
c. O objetivo último de todas as ações que acontecem na vida social é a construção do
bem comum, que coincide com a plena realização de cada pessoa.
d. A dimensão ética, enquanto manifestação da liberdade da pessoa, está presente em
todas as esferas da vida (pessoal, econômica, política) e é necessária para a constru-
ção do bem comum. Portanto, não se pode pensar em progresso, desenvolvimento ou
justiça social sem uma atenção particular para com a ética pessoal.
e. O Estado não deve ser o grande protagonista das ações na vida social e na constru-
ção do bem comum. Este protagonismo cabe às pessoas e suas organizações. Ao Es-
tado cabe garantir a possibilidade de realização destas ações, numa postura subsidiária.
(RIBEIRO NETO, 2012 s.p).

Desta forma, sob a influência tomista, o Humanismo de Maritain, segundo


Queiroz (s,d) tem os seus preceitos baseados nos princípios cristãos e no bem
comum. O Estado é apenas uma ferramenta para o homem satisfazer suas ne-
cessidades coletivas. Cabe ao Estado promover o bem estar e a ordem pública,
a fim de promover o bem comum que satisfará as necessidades coletivas. Mas
nunca o Estado deve ser superior ao ser humano. Segundo Zilles (1987, p.32),
Maritain uniu “a razão filosófica à fé cristã e a especulação teológica com vistas
a um humanismo integral”. Seu humanismo integral inclui valores espirituais
do cristianismo e queria abranger todos os valores humanos.

CONEXÃO
Para aprofundar seus conhecimentos sobre os ideiais humanitários de Jacques Maritain,
visitem o site Instituto Maritian do Brasil http://www.maritain.org.br/. Nele vocês encontrarão
obras do autor, biografias e documentos pessoais, além de artigos de outros autores que
compartilham estes ideiais.

16 • capítulo 1
1.4  O Positivismo de Auguste Comte (1798-1857)

Para entendermos o positivismo é pre-


ciso conhecermos seu criador: August
Comte e a época em que vivia. Augus-
te Comte nasceu em 1798 e faleceu em
1857, tendo vivido em um período rico
em descobertas científicas e invenções,
quando também o desenvolvimento das
cidades era intenso e emergia um espíri-
to de valorização dos avanços científicos.
Formado na escola politécnica e
adepto da objetividade científica, ele
propôs-se analisar os fenômenos sociais
com a mesma objetividade das ciências
exatas. Para ele, os fenômenos sociais,
assim como os fenômenos naturais, podem ser analisados de forma racional e
sistemática, buscando-se as relações entre os fatos. Isto significa romper com
a teologia e a metafísica. Seu interesse não é mais entender as causas externas
dos fenômenos como, por exemplo, a criação do homem. Agora o interesse está
voltado à busca de conhecimentos práticos presentes na vida em sociedade.
Comte seguia três princípios:
1.  O fenômeno social deve ser analisado considerando-se todo o contexto
em que está inserido. Não se deve analisar o fenômeno social de forma
isolada e sem correlacionamento com a sua história.
2.  O conhecimento é passado de geração para geração e por este motivo pro-
gride. Assim, o estágio do conhecimento de uma determinada sociedade,
ou seja, o seu grau de evolução é coerente com a sua organização social.
3.  O homem é o mesmo por toda a parte e em todos os tempos por compar-
tilhar as mesmas características biológicas. (LAKATOS; MARCONI, 1999)

Com base nestes princípios, segundo ele, a sociedade tende a evoluir no


mesmo sentido passando por um processo de evolução na forma de obtenção
do conhecimento. Esta evolução ele chamou de Lei dos Três Estados.

capítulo 1 • 17
1.4.1  Leidos Três Estados

Para Comte a história da civilização esta dividia em três fases:


1.  Fase Teológica ou mitológica: Esta fase representa o início da história da
civilização humana, portanto a forma mais atrasada da sociedade. Nela,
devido à falta de conhecimento: as explicações dos fenômenos sociais e
naturais como, por exemplo, a morte, se faziam por meio do sobrenatural.

A fase teológica pode ser subdividida em três períodos: O período fetichista


que acredita na força sobrenatural da “feitiçaria”, de alguns animais e até mes-
mo de objetos. Em seguida, há o período politeísta que prega a existência de
vários Deuses. Os fenômenos eram explicados pela vontade divina. Assim, se a
sociedade sofresse com alguma peste, isto aconteceu porque Deus os castigou.
Desta forma, era prudente não “zangar” os deuses e, como tudo era vontade
divina, a sociedade pouco caminhava rumo a evolução. O último período foi o
monoteísta que pregava a existência de um único Deus criador e responsável
por tudo que acontece.
Em todos estes períodos as explicações racionais se limitavam à imagina-
ção, isto é, se limitavam ao campo da abstração.

2.  A segunda fase é a filosófica ou metafísica: Os constantes conflitos in-


ternos entre as entidades religiosas nos séculos XIV e XV enfraqueciam
as explicações baseadas na vontade divina e fortaleciam as explicações
racionais dos fenômenos. Embora a fase teológica e a fase metafísica
tivessem por objetivo entender a natureza íntima das coisas e o porquê
elas acontecem, ambas se diferenciam uma vez que ao se utilizarem dos
princípios metafísicos, estes põem em cheque o medo e a subordinação
do homem ao sobrenatural. Como os princípios metafísicos continuam
no âmbito abstrato, para estes filósofos, para se entender o mundo físico,
observável, é preciso buscar sua natureza que é abstrata. Um exemplo é

18 • capítulo 1
dado por Bazarian (1986, p.27) “no século XVIII, o químico Stall, por des-
conhecer a verdadeira causa da combustão dos corpos, imaginou um flu-
ído que ele chamou de ‘flogísmo’ e que seria o responsável pela combus-
tão. Por exemplo, o algodão pega fogo porque tem a qualidade flogísta”.

Embora a fase metafísica continue trabalhando o conhecimento de forma abs-


trata, ela teve sua importância ao questionar as explicações divinas e iniciar o inte-
resse por explicações racionais. No âmbito político, isto enfraqueceu o poder dos
reis e fortaleceu o poder jurista e, conseqüentemente o surgimento do Estado.

3.  Fase Científica, que emergiu no início do século XVI: Os estudos de Descartes
e as descobertas de Galileu Galilei enfraqueceram os conhecimentos com
bases teológicas e metafísicas porque os avanços científicos não se interes-
savam mais em buscar explicações para fenômenos externos como, por
exemplo, a origem ou criação do homem. Agora busca-se o conhecimento
prático que está presente e é observável na vida do homem como, por exem-
plo, as leis, a sociedade e suas relações e a ética entre outros. No século XIX as
descobertas científicas e invenções estavam no auge, a cidade se desenvolvia
rapidamente criando uma valorização da ciência. Desta forma, as explica-
ções de cunho abstrato foram substituídas pelo desejo de encontrar as leis
e descobertas comprovadas que regem os fenômenos. E para isto adotou-se
o uso metodológico observação-experimentação-repetição. É nesta terceira
fase que se encontra o positivismo. (OLIVEIRA et. al., 1998)

ATENÇÃO
“ Ciência torna-se uma palavra mágica ; é o novo mito que sobrevive até hoje no culto dos
valores materiais, visíveis, tangíveis, com descaso e até com desprezo pelos valores invisíveis
e intangíveis” (OLIVEIRA et. al, 1998 p. 54)

capítulo 1 • 19
Cientifista:
Devido à alta temperatura,
a água dos rios, lagos e
Metafísica:
oceanos evaporam e vão
A natureza da água é voltar para o céu se
para a sua origem. transformando em nuvem.
As gotas de água em
Teologia: grande quantidade deixam
as nuvens cheias e pesadas
O deus Éolo ou o deus e caem sobre a terra,
Tlaloc assim desejam. ocasionando o fenômeno
da chuva.

Segundo Oliveira et. al (1998), Comte percebeu que, mesmo com os avanços na
vida em sociedade, o homem ainda não tinha maturidade para agir sem uma orien-
tação filosófica e precisa de uma autoridade que os guie. Assim, acreditava que, por
algum motivo, as pessoas aceitavam a autoridade religiosa e, então, ele criou uma
nova religião para a humanidade que buscava difundir os princípios positivistas.
Esta religião tinha o objetivo de guiar as pessoas rumo à organização e pro-
gresso social valorizando a humanidade e o progresso científico. Havia cultos
públicos e privados, pregações, missões, orações e outras ações existentes em
outras religiões, principalmente a católica. Inspirado no calendário católico
que homenageia os santos, Comte chegou a criar um calendário para home-
nagear heróis da humanidade tais como Platão, Aristóteles, Kant entre outros.
Seus princípios são:
1.  a única fonte da verdade é a experiência;
2.  a observação dos fatos é o começo de toda ciência;
3.  o conjunto, a soma de todos esses conhecimentos científicos constitui
a filosofia;
4.  pelo fato de nós não podermos conhecer nada além da experiência,
qualquer especulação abstrata, qualquer metafísica, em suma, qual-
quer filosofia é-nos impossível;
5.  tudo se reduz ao fenômeno Material;

20 • capítulo 1
6.  estes fenômenos materiais são determinados por leis fixas (determinismo);
7.  para sairmos desse determinismo, é necessário conhecer essas leis, é
necessária a pesquisa científica, a única que nos permite conhecer as
leis da Natureza(OLIVEIRA et. al 1998, P. 55)

Apesar de o positivismo ter tido grande aceitação na Europa e em outros


países, como o Brasil, e as ideias de Comte foram duramente criticadas pela
tradição filosófica marxista, com destaque para a Escola de Frankfurt que vere-
mos no capítulo 2.

ATENÇÃO
Embora tenha criado uma religião para difundir os princípios positivistas, Comte também
ficou conhecido como “destruidor das religiões” porque ele atacou ferozmente as crenças
com base no sobrenatural chegando a chamá-las de primeiro estágio da civilização humana,
portanto altamente imatura.

1.4.2  Métodos e Atitudes Positivistas

A maneira positivista de pensar está presente na terceira fase da civilização huma-


na descrita por Comte. Vimos, também, que nesta fase a imaginação perde lugar
para a observação e comprovação. O conhecimento científico é supervalorizado
a ponto de Comte dizer que a verdade está com os cientistas e não com os teólo-
gos. Desta forma, o pensamento positivista está fundamentado na comprovação
científica. Esta já é a forma de pensar das ciências exatas tais como matemática
física e química. Segundo Comte estas disciplinas, por serem menos complexas
no sentido de poderem ser analisadas sem considerar o todo que as compõe, são
mais fáceis de pensar positivamente. Mas chegou o momento de transpormos
este modo de pensar para as ciências mais complexas como, por exemplo, a bio-
logia e a política, chegando, enfim ao método de estudar a sociedade. Tal estudo
teve o nome de física social e, posteriormente, sociologia.
Comte afirma que não há como estudar a sociedade de forma isolada, ou
seja, sem considerar o todo social e sua história, como ocorre na matemática
e outras ciências exatas (ARON, 1999). Vejamos um exemplo prático: Somente
podemos explicar a lei de cotas racial se fizermos uma análise história. Assim,

capítulo 1 • 21
veremos que no passado os negros eram vistos como seres inferiores e sem
alma e isto justificava a sua escravidão. Hoje, embora propaguemos o discurso
de que todos somos iguais, observamos que os negros continuam marginali-
zados e, para combater essa discriminação, é preciso criar leis que mudem o
comportamento social. Por isto temos a Lei nº 12.711/2012 referente às cotas
raciais em algumas universidades. É impossível explicar a existência das cotas
raciais nas universidades sem entender a história da humanidade.
Cabe ressaltar que Comte acreditava que a análise dos fatos sociais não deve se
limitar ao seu entendimento; é preciso colocar o conhecimento em prática. Segun-
do ele é preciso “ver para prever, a fim de prover”, ou seja, é importante conhecer a
vida em sociedade e tudo o que ela envolve para que possamos prever as consequ-
ências de nossas ações. Se conseguirmos prever estas conseqüências, conseguire-
mos escolher as melhores ações que levarão a sociedade rumo ao progresso.

ATENÇÃO
A frase ‘ordem e progresso’ escrita na Bandeira do Brasil mostra que a nossa independência
teve forte influencia do positivismo. Esta frase foi inspirada na premissa positivista de ‘amor
por princípio, a ordem por base, o progresso por fim’.

1.4.3  Neutralidade da Ciência

Até aqui vimos como obtemos o conhecimento por meio da ciência, mas ficam
algumas perguntas: O que é conhecimento? Como adquirimos? O que é a ci-
ência? E o conhecimento científico? É possível o pesquisador ter uma postura
neutra diante do objeto de investigação em ciências sociais?
Para responder estas perguntas é preciso ter em mente que o homem é um
animal que busca entender e dominar o mundo a sua volta, isto está em sua
natureza e é o que nos diferencia dos outros animais. Para isto, ele busca o co-
nhecimento que, segundo Platão, é a crença verdadeira e justificada.
Esta frase nos permite concluir que todos os tipos de conhecimento, in-
clusive o conhecimento científico, partem de uma premissa que nos permite
entender o fenômeno estudado até chegarmos a uma verdade. Podemos per-
ceber ainda que, quando surge a dúvida ou quando as nossas crenças não são
suficientes para entendermos a realidade, revemos e questionamos o nosso co-

22 • capítulo 1
nhecimento e buscamos novas verdades. Cabe ressaltar que o entendimento
ou explicação do fenômeno pode ser profundo ou superficial e pode seguir di-
ferentes métodos de investigação. Entendemos que não há um caminho único,
ou seja, há vários tipos de conhecimento que se apresentam como uma ordem
evolutiva, como veremos a seguir.

Conhecimento Popular ou senso comum:


O conhecimento popular ou senso comum é o conhecimento que herdamos
sem grandes questionamentos. Suas principais características são: cultural,
porque é passado de pai para filho; acrítica, porque não é questionado; super-
ficial, porque não exige comprovação, e passiva, porque não há uma reflexão.
Bazarian (1986) nos alerta dizendo que nem sempre este conhecimento é errô-
neo; ele até pode ser verdadeiro, mas ainda não foi comprovado. Por exemplo,
as gerações antigas já diziam que o chá de boldo ajudava a digestão, porém,
enquanto isto não foi comprovado, era um conhecimento popular. Após sua
comprovação tornou-se um conhecimento científico.

Conhecimento Religioso:
Conhecimento religioso ou conhecimento teológico é o conhecimento que
parte do princípio de que a existência de Deus é inquestionável e, por isto, não
precisa de comprovação. As explicações dos demais fenômenos advêm das ex-
plicações divinas, embora possam seguir uma razão lógica como vimos nos es-
tudos de São Tomás de Aquino. Este conhecimento não pode ser comprovado
porque parte da crença em experiências espirituais, místicas e sobrenaturais.

Conhecimento Filosófico:
Partindo da premissa de que o homem por ser um animal racional é capaz
de analisar o mundo a sua volta, o conhecimento filosófico critica todo o co-
nhecimento dogmático. Seu princípio é a dúvida metódica, ou seja, duvidar de
todas as explicações pré estabelecidas e superficiais. A reflexão é o ponto chave
da filosofia. Refletir sobre um tema significa voltar atrás, pensar no que já foi
pensado com um maior rigor lógico, questionar. Não é qualquer reflexão que
faz do homem um filósofo, ela precisa ser:
1.  Radical: Busca entender a origem e os conceitos fundamentais.
2.  Rigorosa: Deve ter um método claro para garantir a coerência de sua
análise. A linguagem deve ser rigorosa para evitar ambigüidade. É co-
mum criarem-se ternos como forma de evitar o duplo sentido.

capítulo 1 • 23
3.  De Conjunto: Deve analisar o conjunto e não de forma fragmentadas.
O conhecimento filosófico também não é passível de comprovação.
Conhecimento Científico:
Como vimos, o conhecimento científico ganhou forças na I Revolução Indus-
trial quando os interesses da sociedade estavam voltados para o seu progresso. O
seu objeto de investigação está no universo material, ou seja, busca entender os
fenômenos que podem ser observados e, por este motivo, dizemos que a ciência
é materialista. No mesmo sentido o seu método de investigação também tem que
ser passível de observação e, embora existam diferentes meios, a base está no ci-
clo de experimentação-observação-repetição. A ciência busca entender as leis ge-
rais que levaram à ocorrência do fenômeno e que sejam universalmente válidas
para todos os casos da mesma espécie, ou seja, a ciência busca entender o que
causou o fenômeno, se ele dependeu daquilo para que ocorresse e se, sempre que
ocorrer sob a mesma circunstância, se repetirá o mesmo fenômeno pesquisado.
Um exemplo do conhecimento científico é a Teoria da Gravidade de New-
ton. Todos nós já ouvimos a história de que Newton, descansando a sombra
de uma macieira foi atingido pela fruta. Ele pensou: Por que esta maçã caiu e
não flutuou? Buscou a resposta fazendo um estudo sistemático e passível de
observação e chegou a uma lei geral que ele denominou de Lei da Gravidade
Universal na qual afirmou que existe uma força que atrai todos os objetos para
o centro da terra. Esta força é a gravidade.

ATENÇÃO
De forma geral podemos dizer que o que diferencia os conhecimentos não são os fenômenos
estudados e sim a forma de entendê-los. No senso comum não há interesse em refletir sobre
o fenômeno porque ele já é dado como verdadeiro. Já a teologia aceita o conhecimento com
princípios dogmáticos; a filosofia utiliza-se da abstração e a ciência rejeita estes preceitos e
busca uma análise sistemática e materialista

Nos dias atuais o conhecimento científico é o mais aceito, mas você já pen-
sou para que serve a ciência? Se ela é neutra? Ou se a única forma de conhecer-
mos a verdade é por meio científico? Afinal, por que a ciência é tão importante
para a sociedade?

24 • capítulo 1
Já sabemos que os acontecimentos históricos levaram a sociedade a se de-
senvolver com base nos avanços científicos. No século XVIII o positivismo de
Comte pregava que o objetivo da ciência era o melhoramento da qualidade de
vida dos homens. Isto nos leva a pensar que a ciência é imparcial e neutra e que
seu conhecimento não está subordinado a nenhum interesse de grupos sociais.
Defender a neutralidade da ciência significa acreditar que esta pode ser ob-
tida sem ser influenciada pelos valores sociais e a cultura. Podemos ver este
conceito em três teses:
1.  Tese da neutralidade temática: a ciência é neutra porque o direciona-
mento da pesquisa científica, isto é, a escolha dos temas e problemas
a serem investigados, responde apenas ao interesse em desenvolver o
conhecimento como um fim em si mesmo.
2.  Tese da neutralidade metodológica: a ciência é neutra porque procede
de acordo com o método científico, segundo o qual a escolha racional
entre as teorias não deve envolver, e de maneira geral não tem envolvi-
do, valores sociais.
3.  Tese da neutralidade factual: a ciência é neutra porque não envolve juízos
de valor; ela apenas descreve a realidade, sem fazer prescrições; suas pro-
posições são puramente factuais. (OLIVEIRA, 2008, p. 98)

Porém, para estudiosos como Levy-Leblond e Marcuse, a neutralidade da


ciência é visão romântica que não retrata a realidade.
Jean Marc Levy-Leblond, ao receber o prêmio Thibaud da academia de Lyon
em 1970 disse em seu discurso que, embora os avanços científicos tenham
condições de contribuir para a melhoria da qualidade de vida, isto na prática
não acontece, devido às estruturas sociais. Segundo ele, as classes dominantes
buscam utilizar estes avanços em benefício próprio. Isto explica porque, mes-
mo com avanços na área médica, ainda há hospitais em situação degradante;
mesmo existindo os recursos, estes não repassados para a pesquisa médica.
Levy-Leblond nos faz lembrar que, embora entre os anos 1958 e 1968 a ciência
tenha permitido à sociedade aumentar a produtividade industrial, isto não ge-
rou uma melhoria nas condições de trabalho e foi preciso uma grande greve de
maio-junho de 1968 para que os trabalhadores obtivessem alguma melhoria.
Embora estes argumentos sejam da década de 70 na França, podemos observar
fatos semelhantes nos dias atuais (este discurso foi publicado em Lês Temps
Modernes, nº 288, julio/70).

capítulo 1 • 25
Mas poderíamos nos perguntar: Será que isto ocorre devido ao mau uso da
ciência? Se sim, poderíamos pensar que a ciência é neutra já que o cientista
apenas buscou o conhecimento e o disponibilizou para a humanidade? Quem
é o responsável pelo mau uso da ciência: o cientista ou os grupos sociais?
Existem, de fato, dois ramos da ciência. Um é a ciência pura, ou seja, a ci-
ência motivada pela curiosidade do pesquisador. O outro é a ciência aplicada,
aquela que é desenvolvida com um objetivo prático. Para esta é comum que
seus conhecimentos sejam utilizados por grupos sociais de acordo com seus
interesses de forma a fazer com que estes grupos permaneçam dominantes re-
forçando, assim, a estrutura social.
Neste sentido, Hebert Marcuse, um influente sociólogo e filósofo alemão
naturalizado americano_ que viveu 1898 a 1979, afirma ser de responsabilidade
do cientista o uso que a sociedade faz da ciência e suas consequências sociais.
Isto porque ciência e sociedade estão ligadas e este elo determina o progresso
ou regresso da sociedade.
É fácil encontrarmos exemplos que confirmem a ideia de Marcuse. A indús-
tria bélica, sob a falácia do patriotismo contou com a ajuda de muitos cientistas
para criar armas de destruição em massa. A bomba atômica foi desenvolvida com
o propósito de acabar com o nazismo na Alemanha. Hoje, a posse de armas nu-
cleares é usada com objetivos econômicos como, por exemplo, no Oriente médio.
Com base nos estudos de Marcuse (2009), podemos dizer que as estruturas
sociais às quais a ciência está subordinada acarretam o seu mau uso. Mesmo
que o cientista busque a pesquisa pura, como ela se difunde por meio de publi-
cações, por exemplo, ela estará disponível para os interesses mercadológicos,
tornando-se, assim uma mercadoria. Por vezes acontece que o pesquisador, a
fim de satisfazer suas necessidades sociais, busca pesquisar o que o mercado
deseja conhecer e valoriza sua descoberta, colocando a ciência a favor da classe
dominante. Mesmo as instituições de pesquisas ou universidades que, teori-
camente, não estão subordinadas ao mercado, não praticam a ciência neutra
porque são financiadas por organizações privadas ou pelo governo, ambos com
interesses particulares e isto faz com que a ciência incorpore o universo políti-
co e busque atender as necessidades mercadológicas. (MARCUSE, 2009)

26 • capítulo 1
CONCEITO
Conciliar: fazer que partes entrem em acordo
Doutrina: Princípios ou ensinamentos
Retrospectiva: Voltar aos acontecimentos do passado.
Âmbito: Esfera, campo ou área
Emergir: Surgir
Hegemonia: Superioridade
Reintegrar: Fazer parte novamente ou pertencer novamente
Hereges: Pessoas que questionam as crenças de uma determinada religião
Cruciais: Decisivos e importantes
Premissa: É o ponto de partida considerado verdadeiro de um raciocínio
Analogia: Relação igual
Prol: A favor de algo
Falácia: Uma fala ou discurso que aparenta ser verdade porém é falso.

.
ATIVIDADE
1.  O que foi o tomismo e o neotomismo?

2.  “Era necessário para a salvação dos homens que houvesse uma doutrina revelada por
Deus, além das disciplinas filosóficas que investigam a razão humana”. Com base nesta
frase de São Tomás de Aquino explique:
a) Qual a relação entre a fé e a razão?
b) Como São Tomás de Aquino usou a razão para provas a existência de Deus? (as
cinco vias)

3.  Como o humanismo de Maritain está presente na profissão de serviço social?

4.  Quais são as principais características do positivismo?

5.  Para você é possível a ciência ser neutra?

capítulo 1 • 27
REFLEXÃO
Neste capítulo tivemos a oportunidade de conhecer as vertentes teóricas clássicas em que
está pautado o serviço social.
Ao entendermos o contexto histórico, entendemos também como foi construída a sua
identidade profissional. Muitos têm a visão equivocada de que o profissional de serviço social
tem o único objetivo de ajudar os pobres e isto ocorre devido à forte influência dos valores da
Igreja Católica e da filosofia Humanística. Mas esta profissão vai além, sendo capaz de fazer
uma análise crítica da sociedade, entender as contradições sociais, produzir conhecimentos
e provocar transformações que visem o bem estar comum. Neste ponto encontramos as
influências positivistas. Porém, para que possa atingir seu objetivo é preciso que ele reflita
sobre a neutralidade da ciência.

LEITURA
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Tradução Maria Ermatina Galvão G. Pereira.
São Paulo: Martins Fontes, 1990

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARON, R. Auguste Comte. In: As etapas do pensamento sociológico. 5 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 65-122.

BAZARIAN, J. A necessidade do espírito científico In: Introdução à sociologia: As bases


materiais da sociedade 2 ed. – São Paulo : Editora Alfa-Omega , 1986 p. 19 - 45

COSTA, J. S. da Tomismo: principais temas. In: Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé.
São Paulo : Moderna, 1993 p. 38-73

LAKATOS E. M. e MARCONI, M. A. Histórico da sociologia In: Sociologia geral 7 ed. –


São Paulo : Atlas SA, 1999 p. 42 - 67

MARCONDES, D. A formação do mundo ociental In: iniciação a história da filosofia: dos


pré-socrtáticos a Wittgenstein. 7. ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 103-131

28 • capítulo 1
MARCUSE, H. A responsabilidade da ética. Sci. Stud [online]. 2009 vol 7, n. 1 p 159-164
ISSN 1678 – 3166. Traduzido por Marilia Mello Pisani. Disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S1678-31662009000100008&script=sci_arttext Acesso em 20 out 2014

MELLO, L. I. A. e COSTA, C. A. C. Baixa idade média In: História antiga e medieval:


da comunidade primitiva ao estado moderna. 3 ed. - São Paulo : Editora Scipione,
1995 p. 253-282.

OLIVEIRA et. al. As correntes filosóficas contemporâneas In: Introdução ao pen-


samento filosófico. 6. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 31-85

OLIVEIRA, M. B. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle


da natureza Sci. Stud [online]. 2008 vol 6, n. 1 p 97 -116 ISSN 1678 – 3166. Disponível
em < http://www.scielo.br/pdf/ss/v6n1/a04v06n01.pdf> Acesso em: 20 out 2014

QUEIROZ, A. Jacques Maritain e o humanismo integral, 2011. Biblioteca do Mosteiro


São Bento de São Paulo [online] Disponível em <http://culturageralsaibamais.wordpress.
com/page/55/Álvaro Queiroz > Acesso em: 20 out 2014

RIBEIRO NETO, F, B Humanismo integral, pensamento católico e os desafios da


sociedade brasileira In: 1º SEMINÁRIO SOBRE HUMANISMO INTEGRAL E DESEN-
VOLVIMENTO, 2012, PUC Campus Perdizes. p. 1-4 Disponível em http://www.pucsp.br/
fecultura/downloads/humanismo_integral.pdf Acesso em: 20 out 2014

ZILLES, U. A filosofia neotomista e sua influência no Brasil. In: Grandes tendências


na filosofia do século XX e sua influência no Brasil. Caixias do Sul: EDUCS, 1987. p. 17-42.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
A seguir veremos os conceitos que completa a vertente teórica clássica da assistência social
quebra com o paradigma positivista: Os princípios marxistas. Refletiremos sobre os pensa-
mentos de filosóficos de Marx, Atlhusser, Gramsci e Lucáks e finalizaremos com a escola de
Frankfurt que representa a escola neomarxisista.
Vamos lá?

capítulo 1 • 29
2
Karl Marx,
Friedrich Engels e o
Marxismo
2  Karl Marx, Friedrich Engels e o Marxismo
Neste capítulo, vamos abordar os aspectos teóricos fundamentais da obra de
Karl Marx e Friedrich Engels e sua atualização no século XX com a obra de teóri-
cos marxistas como Lukács, Gramsci, Adorno, Horkheimer, Benjamin e Althus-
ser. A epistemologia marxiana e marxista se preza pela busca do conhecimento
das contradições da sociedade em contínua transformação. A obra dos autores
visa apreender a totalidade complexa da sociedade capitalista, tendo como foco
os conflitos de classe derivados das relações sociais na esfera da produção, bem
como sua relação com outras instâncias da sociedade, tais como o Estado, a cul-
tura, a esfera jurídica, a religião, etc.
Discutiremos aspectos fundamentais da obra dos autores, como a questão da
luta de classes, a alienação do trabalho, a mais-valia, a ideologia, as relações en-
tre infraestrutura e superestrutura e a perspectiva dialética de análise histórica
da sociedade. Veremos como a perspectiva dos autores, elaborada durante o sé-
culo XIX, foi reconfigurada de modos diversos por autores marxistas do século
XX, atualizando questões próprias do capitalismo que se modificava e comple-
xificava, ao mesmo tempo em que abordavam aspectos não sistematizados nas
obras dos primeiros autores.
As obras dos autores aqui elencados são fundamentais na formação em Serviço
Social, apresentando uma perspectiva rica na apreensão dos aspectos contradi-
tórios da sociedade, visando uma análise totalizadora.

OBJETIVOS
•  Compreender a perspectiva do materialismo histórico dialético;
•  Refletir sobre as relações de classe social e suas contradições no âmbito da produção;
•  Entender a dimensão do trabalho como central na teorização de Marx e Engels;
•  Definir o que é ideologia;
•  Compreender as relações entre a economia e as outras esferas da sociedade;
•  Refletir sobre o que cada teórico marxista acrescenta às discussões propostas por Marx
e Engels.

32 • capítulo 2
REFLEXÃO
Já ouviu falar sobre a luta de classes? Já tomou contato com posições políticas que defen-
dem a construção de uma sociedade socialista? A obra de Marx e Engels se revelou uma
referência a movimentos e partidos orientados para a crítica do capitalismo. No entanto,
muitas vezes, o que se encontra são versões reducionistas da obra autores, simplificando a
complexidade das análises contidas nelas. Chamamos de marxismo vulgar as interpretações
simplificadoras da obra de Marx e Engels. Evitando cairmos em análises simplificadoras, va-
mos compreender os aspectos fundamentais da perspectiva marxiana (produzida por Marx)
e marxista (baseada na teoria de Marx).

2.1  Karl Marx e Friedrich Engels: Contexto Sócio-Histórico

Karl Marx (1818-1883) nasceu em 1818, em Trier (ou Tréveris, como traduzi-
da ao português), ao sul da Alemanha. Filho de jurista e oriundo de família de
classe média judaica (obrigada a se converter ao cristianismo devido ao antisse-
mitismo reinante no período), Marx seguiu os estudos na área do Direito. Frie-
drich Engels (1820 - 1895), nasceu em Barmen, também na Alemanha, no ano
de 1820 e foi filho de um industrial têxtil, mantendo relações com a atividade
industrial por boa parte de sua vida. Muito embora desencorajado a fazer cur-
sos universitários, devido à vocação prática familiar, desenvolveu-se como au-
todidata nos estudos filosóficos, econômicos e sociais, sendo frequentador de
cursos livres e contando com o assíduo intercâmbio de ideias com Karl Marx.
Ambos os autores construíram, em sua vasta obra, um marco teórico e episte-
mológico influente na compreensão da sociedade moderna em suas complexas
e interconexas dimensões.
A Europa de Marx e Engels se caracterizava por uma transformação social,
econômica e política radical, com o fim da servidão e das relações sociais feu-
dais, com o advento da moderna indústria fabril e da urbanização, com a pro-
pagação de ideais iluministas questionadores de privilégios naturais e com a
emergência de conflitos sociais acirrados. Os temas do trabalho fabril, da po-
larização entre as classes sociais e das transformações que a nova ordem capi-
talista impunha se revelaram centrais nas preocupações dos autores, embora
contrastassem com a realidade em que vivam na Alemanha que não acompa-

capítulo 2 • 33
nhava seus vizinhos no desenvolvimento político e econômico, embora permi-
tisse um desenvolvimento cultural relevante.

Karl Marx Friedrich Engels

A Alemanha veio a se unificar como um Estado-Nacional apenas em 1871,


até então se encontrava dividida em pequenos reinos, em um cenário marcada-
mente rural ou pouco desenvolvido em termos urbanos e industriais. A realida-
de alemã, portanto, contrastava com os avanços na esfera política e econômi-
ca apresentados em outros países. Na França, assistiu-se em 1789 a Revolução
Francesa, responsável pela derrocada do Antigo Regime e dos privilégios políti-
cos e econômicos do clero e da nobreza e, na Inglaterra, a Revolução Industrial
transformava abruptamente as formas de trabalho e de sociabilidade até então
vigorantes no mundo, consolidando uma ordem capitalista.
Aparentemente, visto pela perspectiva filosófica dominante do período na
Alemanha, o Estado moderno, fruto das transformações que advieram da Revo-
lução Francesa, era representativo de uma etapa superior de realização humana.
Esta etapa representaria uma era de igualdade nas relações humanas, em con-
traste com estágios menos avançados, marcado por relações feudais. Tal visão
predominantemente aceita passou a ser questionada pelos escritos do ainda
jovem Karl Marx que buscou, a partir de uma sólida fundamentação filosófica,

34 • capítulo 2
demonstrar que por detrás da aparente realização humana que a sociedade mo-
derna e o Estado moderno traziam, haviam relações de conflito, ou mais precisa-
mente, haviam contradições inerentes às relações sociais que se estabeleciam.
Marx propunha que havia um mundo a ser desvelado cientificamente que está
nas sombras do conhecimento comum. Trata-se de uma perspectiva epistemoló-
gica que intenta encontrar algo que existe além da aparente igualdade jurídica e
da realização humana supostamente alcançada. Em sua obra:

O mundo revelado é dramático, conflituoso e pronto para eclodir. No entanto, a verdade


desse mundo é fria e desoladora. As realidades escondidas são a economia, a mobili-
zação de recursos e as lutas políticas. Não é o mundo de nossas crenças comuns, mas
uma realidade ainda mais duramente mundana (COLLINS, 2009, p. 157).

Para chegar a tal proposição, Marx tomou contato com discussões filosófi-
cas que estavam na ordem do dia na culturamente efervescente Berlim, onde
desenvolveu parte de seus estudos. Aquele cenário era marcado pela centrali-
dade das ideias de Georg Friedrich Hegel (1770- 1831), filósofo idealista, o qual
fundamentou uma teoria da história baseada em um modelo que apreendia a
realidade vista como contraditória e dinâmica, que se desenvolve progressiva-
mente a partir de rupturas. Em outros termos, foi com Hegel que Marx apren-
deu a ver a História não como uma sucessão linear dos acontecimentos ou
como uma sequência de acontecimentos arbitrários, mas ao contrário, como
uma realidade complexa movida pelo contraditório e acessível à razão. No en-
tanto, embora Marx tenha se apropriado da perspectiva hegeliana, sua relação
com ela não foi passiva, ele a recriou em outras bases, como veremos a seguir.

2.2  A Interlocução com Hegel e a Perspectiva Dialética

Já vimos que, no entender de Hegel, a realidade não é estática, mas está sempre
em movimento. Encontramos, portanto, uma definição dialética da história,
um “[...] modo de compreendermos a realidade como essencialmente contra-
ditória e em permanente transformação” (KONDER, 2008, p. 08). A realidade
em transformação é, para o filósofo alemão, ditada pelo progresso do que ele
denomina de Espírito Absoluto. Hegel compreende a História da humanidade
a partir da Ideia de que o Espírito Absoluto que, em primeiro lugar, assume a

capítulo 2 • 35
imperfeição, desdobra-se em uma série de movimentos para, ao fim, retornar
a si mesmo aperfeiçoado. Neste sentido, a vida dos homens e suas transforma-
ções representariam o processo de realização do Espírito Absoluto.
Hegel constrói um modelo para pensar o movimento histórico que passa
do (1) ser em si (tese), momento inicial no qual o Espírito está aparentemente
em harmonia consigo, para o (2) ser do outro (antítese ou negação), momento
no qual emergem as contradições que exigem sua superação, e o (3) retorno a si
(síntese ou negação da negação), momento no qual as contradições são supera-
das e o Espírito se reencontra novamente, embora já modificado. Tal processo
não se esgota de uma vez só, na medida em que a realidade está em constante
transformação. A história, portanto, é a reedição deste movimento de tese, antí-
tese e síntese. Isso implica em uma nova forma de se pensar a realidade social,
marcadamente histórica (e não estática), e também uma nova perspectiva epis-
temológica, ou seja, de se pensar como a construção do conhecimento é inevi-
tavelmente histórica (pois o que é (ou o que não é) possível conhecer depende
do momento histórico em que vivemos):

Hegel foi o último dos grandes filósofos do Idealismo Alemão, e estava dentre os mais
dinâmicos. Kant havia demonstrado que a realidade nunca é vista em si mesma, mas
sempre a partir de nossas ideias subjetivas, incluindo as categorias de tempo e espa-
ço. Hegel havia tornado essas ideias menos subjetivas, bem como menos estáticas,
explicando-as como desdobramentos graduais do Espírito, que cria o próprio mundo.
(COLLINS, 2009, p. 52).

É desta forma que Hegel interpreta o desenvolvimento da consciência hu-


mana dos tempos pré-históricos às sociedades modernas. No entanto, Hegel
concebe um final a esta história de transformação. Em sua concepção, a socie-
dade e o Estado moderno seriam a representação da realização do Espírito Ab-
soluto. O contínuo movimento de tese, antítese e síntese findaria no momento
da consolidação da instituição do Estado Racional Moderno. Tal concepção en-
controu forte oposição entre seus seguidores. Na Alemanha, isso significava a
representação da monarquia prussiana como perfeição histórica e racional. A
oposição se estendia ao fato de que Hegel considerava a religião, na época vin-
culada ao Estado, como uma força transformadora progressista.
Uma série de jovens estudiosos, denominados de jovens hegelianos, entre
1830 e 1840, passavam a dialogar criticamente com a obra do filósofo alemão

36 • capítulo 2
de grande envergadura, já em outro contexto, no qual “O poder da ciência, que
Hegel procurava flanquear e restringir a uma etapa do progresso idealista, con-
tinuava a crescer, e a religião já não era mais defendida pelos intelectuais, mas
imposta pela força bruta do Estado ortodoxo” (COLLINS, 2009, p. 52). Marx
esteve em contato com os jovens hegelianos que muito o influenciaram. Em
especial, ressalta-se a obra de 1841de Ludwig Feuerbach, A Essência do Cris-
tianismo, que o impactou bastante por conter uma visão que rompia com o
idealismo hegeliano, pois estava baseada em pressupostos materialistas. Na
visão de Feuerbach, Deus era um ser inventado, projeção de um ser comple-
to, enquanto o ser humano é limitado e imperfeito. Tal pensamento levaria à
alienação dos seres humanos, à perda de sua essência e subestimação de suas
potencialidades. O autor rompe com a perspectiva idealista na qual a história
da humanidade se confunde com a realização do Espírito Absoluto, atribuindo
centralidade aos fenômenos concretos e históricos.
Karl Marx, portanto, vivencia na Alemanha um ambiente de discussão de
ideias que o influenciou a incorporar criticamente suas leituras de Hegel. Embo-
ra preservasse a compreensão dinâmica e contraditória da história de Hegel, mui-
to mais elaborada do que a dos jovens hegelianos, incorporou e mesmo estendeu
suas críticas a um aspecto fundamental da obra do póstumo filósofo: o Idealismo
de sua teoria, ou seja, a determinância que dava ao Espírito, ou às ideias. Marx
passa a pensar a dialética de forma materialista, voltada a aspectos concretos da
realidade e desvinculada da ideia de realização do Espírito Absoluto.
O ponto de partida para a análise da sociedade de Marx, em todos os seus
aspectos, não eram questões do espírito ou das ideias dos homens, mas das
formas concretas em que os homens reproduzem sua existência em sociedade.
Assim, substitui a história, pensada em Hegel a partir da história da filosofia e
história da religião, por uma história das relações concretas entre os homens.
Marx faz tais modificações mantendo o esqueleto hegeliano, no qual: “[...] os
conflitos e as mudanças na história mundial não [são entendidas] como sendo
aleatórias, mas lógicas e inevitáveis” (COLLINS, 2009, p. 53).
Com a perseguição do governo prussiano a professores críticos da religião,
como Bruno Bauer, então mestre de Marx, o autor alemão se muda para a Fran-
ça, local onde se vincula cada vez mais a problemas políticos concretos que o
possibilitam, subsequentemente, teorizar sobre as contradições das socieda-
des capitalistas em uma perspectiva dialética materialista:

capítulo 2 • 37
[...] Marx foi para Paris, o lar das revoluções. ele rapidamente se inteirou das ideias
dos socialistas franceses, utópicos como Charles Fourier (ou seu colega inglês, Robert
Owen), que advogavam em favor da construção de suas próprias comunidades socialis-
tas: um caminho que dificilmente poderia evitar a intervenção da sociedade ou mesmo
um conflito com esta. Mais importante que isso, Marx leu o trabalho dos historiadores
franceses sobre suas revoluções, homens como François Guizot, que já via os atores
em cena como classes sociais, ainda que se limitasse a arguir sobre o triunfo da bur-
guesia industrial sobre a aristocracia latifundiária. O materialismo de Marx começava a
adquirir um conteúdo de classe (COLLINS, 2009, p. 54).

O período que esteve em Paris foi marcante em dois sentidos. Em primeiro


lugar, pelo contato com o ideário socialista daquele contexto, e com a temática
que viria a ser central em sua obra: a luta de classes. Em segundo lugar, Marx,
influenciado por Engels, passou a estudar com afinco os autores da “Economia
clássica”, como Adam Smith e David Ricardo.
São desse contexto as obras de juventude de Marx, em diálogo com os eco-
nomistas clássicos, tal como Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de
1844. Neste momento, o autor reflete sobre questões fundamentais abordadas
na obra de Ricardo, Malthus e Adam Smith, como a propriedade privada, os
trabalhadores como “fatores de produção”, os interesses opostos entre as clas-
ses sociais, dentre outros. No entanto, Marx não tratava tais questões da produ-
ção, do salário, do capital como categorias abstratas e autônomas, deslocada
da vida dos homens. Marx abordava que a produção material, em todos os seus
aspectos, se configurava a partir de relações sociais. Além disto, escrevendo a
partir da França, onde observava as lutas de classe de forma mais evidente, sa-
lientava como a esfera da produção era marcada por um conflito constitutivo
entre as classes:

É sintomático dessas concepções tão errôneas o fato de os economistas incluírem o


trabalhador nos “custos” do capitalista, equiparando-o a qualquer outro tipo de dispên-
dio de capital. A economia política ignora como irrelevante o fato de os “objetos” reais
da sua análise serem os homens em sociedade.

38 • capítulo 2
É por esta razão que os economistas conseguem esconder algo que é na realidade
intrínseco à sua interpretação do modo de produção capitalista: o fato de o capitalis-
mo se basear numa divisão de classes entre o proletariado ou classe trabalhadora,
por um lado, e a burguesia ou classe capitalista, por outro. Essas classes mantém-se
o conflito endêmico no que se refere à distribuição dos frutos da produção industrial
(GIDDENS, 2005, p.38).

Marx e Engels elegem como centro de suas reflexões o capitalismo, como


um modo de produção histórico, versando sobre suas origens e suas formas
de reprodução. Os autores concebem a realidade histórica em que viviam não
como um dado natural, mas como uma realidade constituída na história e que,
como outras formas de organização social e econômica, também tenderia a ser
derrubada. Diferentemente de outros autores em que se baseavam, compreen-
diam o capitalismo como um regime contraditório, baseado na propriedade
privada que garantiria a alguns poucos, a burguesia, o controle dos meios da
produção (a fábrica, as máquinas, os instrumentos de trabalho, etc.) enquanto
outros, os trabalhadores, por não possuírem esses meios, seriam obrigados a
se sujeitar a atividades alienantes (no sentido de impedirem a plena realização
criativa) e, se submeterem à exploração no âmbito do trabalho assalariado.
Percebe-se que, já em suas primeiras obras, Marx se debruça sobre as condi-
ções materiais de existência dos seres humanos e seu foco é nas relações sociais
na esfera da produção. Além disto, acabou por edificar uma forma de compre-
ensão da história a partir das contradições que se expressam nas relações en-
tre as classes sociais, em especial, no âmbito da reprodução dos meios de exis-
tência social. Para essa elaboração teórica, incorporou vários aspectos da obra
dos economistas clássicos, mas os criticou como ideólogos burgueses, ou seja,
representantes da classe dominante. Tais autores criticados defendiam que os
valores e aspirações próprios do capitalismo, como a ideia de que os homens
buscam, por sua natureza, o lucro e a satisfação dos próprios interesses egoís-
tas. Mantendo uma visão dialética que apreendia o ser humano como resultado
de processos históricos, Marx refutara tais argumentos.
A história da humanidade passa a ser concebida por Marx como a história
de sucessivos modos de produção diferentes (formas nas quais os homens co-
operam no trabalho para produzir sua existência em sociedade) e as caracterís-
ticas do ser humano e de sua subjetividade seriam demarcadas pelo contexto

capítulo 2 • 39
no qual viveriam. De um lado os economistas clássicos compreendiam como
se fossem naturais as aspirações próprias da classe burguesa, ocultando seu
caráter histórico. De outro lado, não abordavam o caráter alienante e explora-
dor deste mesmo modo de produção no que se refere aos trabalhadores. Estas
características passaram a ser abordadas por Marx como definidoras do capita-
lismo enquanto um modo específico de produção:

Ora, na realidade, observa Marx, a constituição de uma economia de troca constitui a


resultante de um processo histórico, e o capitalismo é um sistema de produção his-
toricamente específico. O capitalismo não passa de um tipo de sistema de produção
semelhante a muitos outros que o precederam na história, e não pode ser considerado
como uma forma final, tal como os outros sistemas que o precederam foram igualmente
transitórios (GIDDENS, 2005, p. 38).

Dentro da visão dialética, os conflitos de classe eram classificados como


contradições que trariam os germens da própria dissolução da sociedade ca-
pitalista: “A visão hegeliana de Marx transformou os conflitos da Economia ca-
pitalista em contradições que iriam promover sua queda e sua superação por
outro tipo de sistema” (COLLINS, 2009, p. 55). A dialética de Marx, portanto,
tomava a forma de tendência à polarização entre as classes, dando ênfase às
contradições que têm no âmbito da produção sua força motriz. Invertendo o
modelo dialético idealista de Hegel, Marx fundamenta o materialismo históri-
co dialético: uma visão da história como movimento a partir do contraditório,
mas que tem como ponto de partida as relações materiais.

2.3  Trabalho, Alienação e Mais-Valia

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, Marx centra-se na discus-


são da alienação que se realiza na esfera mais elementar da reprodução social:
a esfera da produção. Marx percebia uma contradição inerente ao capitalismo:
este se caracterizaria como um modo de produção que permite uma produção
em uma escala cada vez maior e, ao mesmo tempo, no qual o produto do traba-
lho se volta cada vez mais contra o trabalhador, como uma força estranha:

40 • capítulo 2
A enorme riqueza que o modo de produção capitalista proporciona é apropriada pelos
donos da terra e do capital. Essa separação entre o trabalhador e o produto do seu
trabalho não se reduz apenas à expropriação de bens que pertencem ao direito do
trabalhador. O ponto principal da teoria apresentada por Marx é que, no capitalismo, os
objetos materiais produzidos pelo trabalhador são tratados da mesma maneira que o
próprio trabalhador [...] (GIDDENS, 2005, p. 39).

O trabalhador, no capitalismo, não dotado dos meios de produção (das máqui-


nas e dos equipamentos socialmente necessários) passa a produzir para o capitalis-
ta, vendendo sua força de trabalho como mercadoria. O produto do trabalho não
mais lhe pertence, mas pertence ao capitalista e, por fim, seu ritmo do trabalho
escapa a seu controle e passa a ser ditado pela máquina; ele se torna mero apêndice
da máquina. Neste sentido, o trabalho perde qualquer característica de realização
para os homens. Tal dimensão ocupa um espaço essencial na concepção marxia-
na, pois o trabalho para o autor é uma dimensão crucial da própria definição da
humanidade, ou seja, o homem para Marx se humaniza (e se diferencia dos outros
animais) por meio do trabalho.

CONEXÃO
O filme Tempos Modernos de Charles Chaplin de 1936
exemplifica de forma crítica e cômica o processo de trabalho
na indústria. Vemos na obra cinematográfica a forma como o
trabalhador se torna mero apêndice da máquina, realizando
atividade repetitiva e enfadonha.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Tempos_Modernos#media-
viewer/File:Modern_Times_poster.jpg

capítulo 2 • 41
Em A Ideologia Alemã (1845-6), Marx qualifica como um aspecto essencial
da condição humana sua capacidade teleológica. Em outros termos, trata-se da
capacidade de projeção criativa na atividade do trabalho que permite a recons-
trução contínua das condições de existência em sociedade. O trabalho é, para
Marx, o meio de relação entre o homem e a natureza, uma relação dinâmica e
autotransformadora. Os homens constroem suas condições de existência, per-
mitem sua reprodução em sociedade, a partir do trabalho, mas diferentemente
dos outros animais que mantém uma relação instintiva e repetitiva com a natu-
reza (tal como um João de Barro que produz habitações sofisticadas, mas que
pouco mudam e em nada evoluem na história), o homem sempre cria, a partir
das condições sociais, das técnicas e das formas de cooperação, novas condi-
ções de existência e, portanto, está sempre se transformando.
O homem se distingue dos animais justamente pela sua capacidade cria-
tiva no processo produtivo, a mesma qualidade que o permite se desenvolver
no desenrolar da História. Neste sentido, de um lado, os seres humanos sem-
pre criam novas condições de existência e de reprodução na sociedade, mo-
dificando-se historicamente. De outro lado, é sempre dotado da capacidade
teleológica que se expressa no trabalho, na relação entre homem e natureza,
caracterizando-se como uma característica fundamental da natureza humana,
eminentemente autotransformadora:

O movimento autotransformador da natureza humana, para Marx, não é um movimento


espiritual (como em Hegel) e sim um movimento material, que abrange a modificação
não só das formas de trabalho e organização prática de vida, mas também dos próprios
órgãos dos sentidos: o olho humano passou a ver coisas que não enxergava antes, o
ouvido humano foi educado pela música para ouvir coisas que não escutava antes etc.
“A formação dos cinco sentidos” - escreveu Marx - “ é trabalho de toda a história pas-
sada.” (KONDER, 2008, p. 51).

O trabalho contém, portanto, um elemento de realização humana. Elemen-


to que permitiu o desenvolvimento histórico de suas capacidades das socieda-
des mais simples à sociedade moderna capitalista. No entanto, o capitalismo
rompe com a capacidade criativa humana, alienando os homens na atividade
produtiva. O trabalho alienado faz romper a relação criativa essencial entre ho-
mem e natureza. A alienação do trabalho se dá com a separação entre o produto

42 • capítulo 2
do trabalho e o trabalhador, conjuntamente com o estranhamento dentro da
atividade produtiva, na medida em que a atividade em si não depende e nem
pertence ao trabalhador. O trabalho alienado é fruto do processo que criou a
propriedade privada, na medida em que a alienação do homem em relação a si
e em relação à natureza se efetua na relação de subordinação a outro homem,
ou melhor, em uma relação de dominação de classe. O produto e a atividade do
trabalho pertencem a outro homem que não o trabalhador, ao proprietário dos
meios de produção, o capitalista. O trabalho, no capitalismo, passa a se resumir
a uma atividade enfadonha e sem sentido ao trabalhador.
A condição básica para a alienação do trabalho é o processo de divisão so-
cial do trabalho. Em sociedades tribais a cooperação no trabalho se dá com os
indivíduos produzindo de forma muito semelhante uns aos outros, todos tendo
o controle do processo produtivo total. Na medida em que a sociedade cres-
ce, produz excedentes e cria um comércio passa-se a diferenciar as atividades
produtivas, entre urbana e rural, intelectual e física, etc. Com a formação de
excedentes na produção, inventa-se a propriedade privada e, assim, as classes
sociais. São vários os modos de produção e os tipos de propriedade que existi-
ram na História humana. Marx salienta que ao modo de produção capitalista
precederam o modo de produção escravista e o modo de produção feudal, de-
monstrando como eles tiveram seu desenvolvimento, apogeu e superação por
meio da transformação dialética (GIDDENS, 2005).
Na medida em que Marx considera, em uma visão dialética, que a contradi-
ção move a História, ele compreende o capitalismo como um modo de produ-
ção que seria derrubado com a superação de suas contradições. Isto seria pos-
sível com a superação do capitalismo e a construção de um mundo comunista,
no qual a propriedade privada seria abolida e, finalmente, a riqueza da produ-
ção fruto do capitalismo poderia ser dividida por todos os que trabalham. Mais
do que a questão da igualdade no consumo do que é socialmente produzido,
uma sociedade comunista, na visão de Marx, garantiria a volta da realização do
homem no trabalho, posto que este não mais seria alienado:

Os trabalhadores criam o mundo social e econômico mediante seu próprio trabalho


e são oprimidos por seus próprios produtos, que se voltam contra eles. Portanto, a
superação do capitalismo e a instituição do socialismo não implicam uma mudança
meramente econômica, mas a superação histórica da alienação. O mundo criado pelos
seres humanos finalmente volta a existir sob seu controle [...] (COLLINS, 2009, p. 56).

capítulo 2 • 43
A questão do trabalho e da dominação de classe perpassa a obra de Karl Marx.
No entanto, em suas obras mais maduras, em especial a sua obra-prima O Capi-
tal, o autor redimensiona sua reflexão a partir de uma leitura crítica aprofundada
dos economistas clássicos, considerando as relações sociais na esfera da pro-
dução. Marx busca entender como se mede o valor do trabalho produzido, para
tanto, recupera a teoria do valor-trabalho (recebida de Smith e Ricardo), na qual
postula-se a “[...] ideia de que o trabalho exigido pela produção das mercadorias
mede o valor de troca entre elas e constitui o eixo em torno do qual oscilam os
preços expressos em dinheiro” (GORENDER, 1983, p. XXX). Ou seja, o que cria o
valor das mercadorias produzidas “[...] é o trabalho socialmente necessário, exe-
cutado segundo as condições médias vigentes da técnica, destreza do operário
e intensidade do esforço na realização da tarefa produtiva” (GORENDER, 1983,
p. XXXIII). Simplificando, o valor de uma mercadoria é maior do que a de outra
porque exige, dadas as condições sociais, mais tempo de trabalho.
No entanto, o valor do trabalho não é de usufruto do trabalhador no capitalis-
mo. O trabalhador, despossuído dos meios de produção, se submete ao trabalho
assalariado e produz, em termos de valor, muito mais do que recebe na forma de
salário. Como exemplo, o trabalhador que trabalha em uma indústria calçadista
produz uma dúzia de sapatos por dia e em seu salário recebe o valor relativo a
um terço do que produziu. O que acontece com o excedente? Ele é apropriado
pelo proprietário dos meios de produção, o capitalista. O excedente é denomina-
do por Marx de mais-valia. Trata-se de um conceito que possibilita compreender
que a acumulação capitalista se baseia na expropriação do trabalhador.
A mais-valia pode ser absoluta, quando há aumento da jornada ou inten-
sificação da tarefa, produzindo um excedente maior ao capitalista. Mas ela
também pode ser relativa, quando se aumenta a produtividade por meio das
inovações técnicas. Assim, diminui-se o tempo de trabalho necessário, sem au-
mentar a jornada de trabalho, garantindo o aumento do excedente ao capitalis-
ta. A apropriação do excedente pelo capitalismo não se dá por escolha, mas por
imposição, na medida em que o capitalismo se baseia em uma economia con-
correncial na qual os empresários precisam diminuir os custos da produção e,
para fazer isso, exploram os trabalhadores:

44 • capítulo 2
o sistema de Marx repousa sobre o argumento de que o trabalho não é a fonte apenas
do valor econômico, mas também do lucro. Num sistema de mercado puro, que opera
conforme a relação entre oferta e demanda, tudo é cambiado segundo seu próprio va-
lor. Portanto, surge o seguinte enigma: de onde realmente vem o lucro? Marx responde:
do trabalho, que é o único fator de produção do qual se pode obter mais do que se gasta
para reproduzi-lo. Isso é, tecnicamente a “exploração do trabalho”, que significa que
os trabalhadores trabalham mais do que o número de horas que são necessárias para
reproduzir seu trabalho (COLLINS, 2009, p. 55).

O capitalismo se revela para Marx, portanto, como um modo de produção


calcado na exploração de uma classe sobre outra no âmbito do trabalho. Tal
composição predispõe ao antagonismo entre as classes sociais que, por possu-
írem interesses distintos - a do capitalista seria a acumulação do capital e a do
trabalhador o fim de sua exploração-, motivaria a conflitos de ordem política
que, segundo Marx e Engels, poderia levar a superação da ordem capitalista em
direção a um novo modo de produção não mais calcado na exploração do ho-
mem pelo homem.

2.4  A Luta de Classes, Práxis e a Interdependência


das Esferas Sociais

Karl Marx e Friedrich Engels publicaram em 1848 a famosa e influente obra


O Manifesto Comunista. Diferentemente de O Capital, obra da maturidade de
Marx e voltada ao estudo sistemático do capitalismo, O Manifesto tinha fins
práticos. Quando moravam na Inglaterra, enquanto exilados políticos da Ale-
manha, formaram parte da Organização Liga dos Comunistas, de emigrados
alemães, recebendo a incumbência de redigir um manifesto que apresentas-
se os objetivos socialistas aos trabalhadores. No período, haviam indícios de
eclosão de uma onda revolucionária no Ocidente europeu e, decorrente disto,
a obra é marcada pela percepção, depois abandonada por Marx em sua maturi-
dade, da iminência da Revolução Socialista.
Nesta obra, Marx e Engels abordam o capitalismo como um modo de pro-
dução eminentemente revolucionário, por transformar todas as esferas da vida
social, desde o trabalho às mais íntimas relações humanas. Além disto, defen-
dem a tese de que o desenvolvimento industrial que assistiam estava por levar
à polarização cada vez maior da sociedade em duas classes sociais: a dos capi-

capítulo 2 • 45
talistas, proprietários dos meios de produção, e a dos proletários, aqueles que
nada mais tinham além do que suas forças de trabalho para vendê-la no mer-
cado. Diante de um modo de produção compreendido como acentuadamente
polarizado, os autores previam o acirramento de antagonismos entre as classes
e a subsequente transformação desta sociedade, protagonizada pelos trabalha-
dores, antes explorados, em direção a uma sociedade igualitária.
Em outras palavras, dada a compreensão de que o capitalismo é fruto de
determinadas condições históricas, os autores passam a analisar as condições
para o seu desaparecimento. Os antagonismos, resultado das contradições do
capitalismo, não gerariam automaticamente sua superação, mas propiciariam
as condições para que a classe dos trabalhadores, ou proletários, justamente
a classe que conjugaria as irracionalidades do capitalismo (a perda da huma-
nidade no trabalho alienado e sua exploração para a acumulação capitalista),
protagonizassem a sua superação.
A burguesia foi a classe revolucionária que permitiu a transformação do feu-
dalismo em capitalismo, mas ela constituiu uma sociedade calcada em seus
próprios interesses de classe, já que se assentava na propriedade privada. O
proletariado poderia ser visto como uma classe universal, já que não represen-
taria um interesse específico. Esta classe aproveitaria de todo o desenvolvimen-
to tecnológico criado pelo capitalismo, mas faria com que tal desenvolvimento
fosse aproveitado por toda a humanidade e não só por alguns. Eles seriam os
“coveiros do capitalismo” e criadores de uma ordem comunista. Para tanto, de-
veriam tomar o poder e instaurar uma “ditadura do proletariado” até o momen-
to no qual o próprio Estado se tornaria inútil. O comunismo seria a fase final de
desenvolvimento humano, superadas as contradições da sociedade capitalista,
nesta fase não haveria mais necessidade de existência do Estado, instituição
vista por Marx como necessária apenas para a dominação de classe.
Uma forma possível, embora limitada, de compreender a obra de Marx e En-
gels é enfatizar que sua análise do capitalismo se centra de forma redutora em uma
sociedade supostamente polarizada entre apenas duas classes, a dos capitalistas
(ou a burguesia) e a dos proletários, ou trabalhadores. No entanto, em vários textos
de análise histórica e política, dentre eles Luta de Classes na França (1850) e O De-
zoito Brumário de Luís Bonaparte (1952), as lutas de classe tomam sentidos mais
complexos. Aparecem, nestas análises, as classes em suas frações, o campesinato,
o proletariado desarticulado e conservador (ou o lumpenproletariado), as classes
dominantes agrárias e industriais, dentre outros atores. As dinâmicas políticas e
institucionais, os acordos e alianças dependem da articulação entre essas classes,

46 • capítulo 2
algo que não é dado ou automático. Estas questões são abordadas com sofisticação
nestes textos históricos voltados a eventos específicos. Nesse sentido, não há uma
determinação direta entre uma posição na estrutura de classes da sociedade e um
posicionamento político. A forma como empresários e trabalhadores se engajam
politicamente depende de inúmeras situações contextuais.
Nas obras de Marx e Engels, portanto, “[...] são realçados não só fatores eco-
nômicos, mas também fatores políticos, ideológicos, institucionais e até estrita-
mente concernentes às pessoas dos protagonistas dos eventos históricos” (GO-
RENDER, 1983, p. XVII). Neste sentido, o enfoque marxiano não é economicista,
como muitos afirmam em uma leitura empobrecida dos mesmos, posto que a
economia não se encontra isolada da sociedade, na visão dos autores, mas está
em relação com as outras esferas sociais. A perspectiva materialista histórica não
é aquela que assume uma concepção determinista do âmbito econômico, mas
pode ser definida como:

a concepção segundo a qual a instância econômica, sendo a base da vida social dos
homens, não existe senão permeada por todos os aspectos dessa vida social, os quais,
por sua vez, sob modalidades diferenciadas, são instâncias da superestrutura possui-
doras de desenvolvimento autônomo relativo e influência retroativa sobre a estrutura
econômica (GORENDER, 1983, p. XXIV).

Em uma perspectiva materialista, é a existência social que determina a


consciência e não o contrário. São as contradições profundas na esfera da pro-
dução e nas relações sociais que, no limite, têm uma determinância em relação
aos outros aspectos da sociedade. Elas são a base ou infraestrutura da socieda-
de. Isso significa dizer que as ideias, as leis, o aparato jurídico são, em alguma
medida, limitados ou decisivamente influenciados pelo contexto social e pelas
relações de força entre as classes em vigor. Acima das determinações infraes-
truturais, há a dimensão superestrutural da sociedade que é justamente o as-
pecto cultural, legal e institucional de uma sociedade. O Estado, suas leis, as
ideias dominantes de uma época preservam íntima relação com a estrutura da
sociedade em questão, justificando a ordem social.
Neste sentido, além de influenciadas e limitadas pelas relações em vigor, a
dimensão superestrutural também influencia retroativamente a esfera das re-
lações sociais e de dominação. Marx e Engels construíram um modelo no qual
é possível compreender as relações entre as diversas esferas da sociedade. Por-

capítulo 2 • 47
tanto, o foco não recai apenas na dimensão econômica. Como exemplo, temos
que a propriedade privada é condição essencial para as relações de dominação
de classe que vigoram no capitalismo. A propriedade privada é algo que se re-
fere ao âmbito da produção, mas também ao âmbito jurídico e político, na me-
dida em que as leis, que são criadas dentro das fronteiras dos Estados-nação,
garantem sua reprodução:

Política, economia e classes sociais estão profundamente interligadas. O sistema eco-


nômico organiza-se em torno da propriedade, que é o que define as classes, e a pro-
priedade é garantida pelo Estado. A propriedade não é a própria coisa possuída: a coisa
é possuída por alguém somente porque o Estado estabelece o direito legal de posse,
e garante isso mediante o poder de polícia e, se preciso, mediante o uso do exército
(COLLINS, 2009, p. 68).

Neste sentido, a análise marxiana é econômica, mas é também a análise das


instituições políticas, das normas jurídicas, dentre outros âmbitos. Trata-se de
uma perspectiva que visa lidar com uma totalidade de relações entre as esferas
da sociedade. E isto se faz a partir do uso da dialética, ou seja, da apreensão de
que a realidade social não é harmônica, mas em constante mutação, na medida
em que apresenta aspectos que negam a própria ordem e produzem, assim, a
necessidade de sua superação. Como pensar a dialética materialista de Marx le-
vando em conta tantos fatores? Retomaremos essa questão no quadro a seguir.

A dialética hegeliana e a dialética marxiana


O livro O que é a dialética? de Leando Konder (2008), nos ajuda a compreender de
forma simples a teorização complexa de Marx sobre o conceito de dialética que apre-
ende o real como resultado de um incessante movimento contraditório. Para o autor, tal
perspectiva filosófica rompe com o pensamento metafísico que se baseia na ideia de
que a realidade é estática e não comporta elementos contraditórios:
Durante séculos, a hegemonia do pensamento metafísico nos acostumou a
reconhecermos somente um tipo de contradição: a contradição lógica. A ló-
gica, como toda ciência, ocupa-se da realidade apenas em um determinado
nível; para alcançar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de
uma parte da realidade. As leis da lógica são certamente válidas, no campo
delas; e - nesse campo de validade - a contradição é a manifestação de um
defeito no raciocínio (KONDER, 2008, p. 46).

48 • capítulo 2
A dialética nos permite uma concepção que não nega a lógica, mas contribui para
uma apreensão mais complexa do real, considerando que na mesma realidade convi-
vem aspectos em contradição e é isto que garante o movimento da história. De fato,
em uma perspectiva dialética, a realidade é composta por uma unidade contraditória
não facilmente acessível a nossos olhos e que demanda um laborioso esforço para
se apreendê-la. Do mesmo modo, a transformação não é a pura substituição de uma
realidade por outra completamente nova, mas a construção do novo que preserva as
bases da realidade anterior, no contínuo movimento que parte da tese, sua antítese e,
em seguida, a síntese:

Para expressar a sua concepção da superação dialética, Hegel usou a pa-


lavra aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem
três sentidos diferentes. O primeiro sentido é o de negar, anular, cancelar
(como ocorre, por exemplo, quando suspendemos um passeio por causa
do mau tempo, ou quando um estudante é suspenso das aulas e não pode
comparecer à escola durante algum tempo). O segundo sentido é o de er-
guer alguma coisa e mantê-la erguida para protegê-la (como a gente vê, por
exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto
onde morou há muitos anos e diz que ele foi preservado porque ficou “in-
tacto, suspenso no ar”). E o terceiro sentido é o de elevar a qualidade,
promover a passagem de alguma coisa para um plano superior, suspender
o nível. Pois bem: Hegel emprega a palavra com os três sentidos diferentes
ao mesmo tempo. Para ele, a superação dialética é simultaneamente a ne-
gação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial
que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior
(KONDER, 2008, p. 24-25).

Marx preserva tal concepção, o que nos permite compreender que nossa realidade atu-
al carrega aspectos da mesma sociedade em períodos que a precederam, mas reconfi-
guadas em uma outra totalidade social. No entanto, Marx inverteu a dialética hegeliana
ao dar precedência às bases materiais do que à dimensão espiritual ou ideológica. Marx
retira a explicação do desenvolvimento histórico de um suposto movimento do Espírito
Absoluto e define como ponto de partida os dados concretos da existência humana,
invertendo a própria forma como concebe a história:

capítulo 2 • 49
[...] Hegel dava importância demais ao trabalho intelectual e não enxergava a
significação do trabalho físico, material. “O único trabalho que Hegel conhe-
ce e reconhece” - observou Marx em 1844 - “é o trabalho abstrato do espí-
rito.” Essa concepção abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua atenção
exclusivamente na criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele,
as deformações a que ele era submetido em sua realização material, social
(KONDER, 2008, p. 27).

Em Marx, as contradições são as contradições da sociedade capitalista, baseadas na


exploração do homem pelo homem, originárias na esfera da produção, mas respaldadas
no âmbito jurídico, político e ideológico. A visão dialética visa penetrar na essência de
uma realidade em sua totalidade. Se a realidade é um todo integrado e contraditório, o
movimento para se chegar às contradições é o da decomposição das partes, abstrain-
do-as ao chegar em determinações cruciais da sociedade e, em seguida, a recompo-
sição das mesmas partes, considerando sua posição em relação aos demais aspectos
da sociedade. Marx exemplifica tal questão ao discordar da análise dos economistas
clássicos que partem de categorias isoladas, como por exemplo a “população”, sem
efetuar as mediações que permitem se chegar aos aspectos contraditórios da realida-
de. Em oposição, sugere:

A população é um todo, mas o conceito de população permanece vago se


não conhecemos as classes de que a população se compõe. Só podemos co-
nhecer concretamente as classes, entretanto, se estudarmos os elementos
sobre os quais elas se apoiam, na existência delas, tais como o trabalho as-
salariado, o capital etc. Tais elementos, por sua vez, supõem o comércio, a di-
visão do trabalho, os preços etc. “Se começo pela população, portanto, tenho
uma representação caótica do conjunto; depois, através de uma determinação
mais precisa, por meio de análises, chego a conceitos cada vez mais simples.
Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorno à população. Dessa vez,
contudo, não terei sob os olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade
rica em determinações, em relações complexas” (KONDER, 2008, p. 42).

A análise dialética se preza pelo esforço gradual de alcançar as contradições concretas


da sociedade, compreendida como uma totalidade complexa de múltiplas determina-
ções. O acesso às contradições não é transparente e imediato, demanda a capacidade
de enxergar por detrás da aparência das coisas.

50 • capítulo 2
2.5  Ideologia, Consciência De Classe e Práxis Revolucionária

Partindo de uma teoria materialista que lida com os vínculos que as várias es-
feras do social mantêm sob preponderância da esfera da produção, é possível
de antemão presumir que as ideias não são um aspecto autônomo ou indepen-
dente na sociedade. De forma geral, as ideias refletem interesses econômicos e
as relações sociais, o que em alguma medida garante que as classes sociais têm
a propensão de ver o mundo de um modo particular, na medida em que viven-
ciam a realidade de forma singular. No entanto, algumas ideias predominam
na sociedade e se impõem às outras, estas são as ideias dominantes. Chama-
mos o conjunto de ideias dominantes de um período de ideologia.
A ideologia de um período se relaciona com a forma como os homens de
uma época produzem suas condições de existência, na medida em que “[...] as
circunstâncias sociais em que se exerce a actividade dos indivíduos condicio-
nam sua percepção do mundo em que vivem” (GIDDENS, 2005, p. 78). No en-
tanto, se uma sociedade é marcada por uma dominação de classe, a produção
das ideias dessa sociedade também o é. Na visão de Marx:

[...] nas sociedades de classes as ideias dominantes de qualquer época são as ideias da
classe dominante. Desta proposição tem de se inferir um outra, a saber, que a dissemi-
nação das ideias depende predominantemente da distribuição do poder económico na
sociedade (GIDDENS, 2005, p. 78).

Isto seria uma característica de todas as sociedades de classes, marcadas por


modos de produção distintos, e da mesma forma isso persevera nas socieda-
des capitalistas, nas quais a moral legitima os interesses da classe dominante.
No capitalismo:

[...] a burguesia também criou um novo conjunto de ideais: liberdade, igualdade, “os
eternos direitos do homem”. Por trás desse universalismo abstrato estava uma men-
sagem de classe: eram palavras revolucionárias contra a aristocracia hereditária, que
proclamavam a dignidade do comércio, de trabalhar para viver e da ascensão mediante
acumulação de riquezas.

capítulo 2 • 51
Simultaneamente, a burguesia consagrou o império do dinheiro, que não faz distinções
de pedigree; derrubou a aristocracia; e tentou manter os trabalhadores em seu lugar,
na medida em que impedia que a noção abstrata de igualdade fosse estendida também
a estes, sem mencionar o fato de que a competição do mercado era extremamente
desfavorável para os trabalhadores (COLLINS, 2009, p. 65).

Os ideais de igualdade e liberdade serviram em determinado momento


histórico para derrubar uma ordem social e política, a do Antigo Regime, que
se sustentava na ideia de desigualdades naturais que, por sua vez, legitima-
vam privilégios à nobreza e ao clero. A burguesia então se uniu com as massas
populares e, por meio de uma revolução, fundou uma nova ordem na qual se
instituiu como classe dominante. No capitalismo, tais ideais continuaram a re-
verberar como se fossem seus valores constitutivos, enquanto que a desigual-
dade operada no âmbito da produção se passa como um acordo entre iguais:
o contrato entre capitalista e trabalhador. Neste sentido, as próprias leis que
supostamente garantiriam a liberdade e igualdade, acabam por justificar as de-
sigualdades inerentes ao capitalismo:

As ideias de liberdade e de igualdade apregoadas pela sociedade burguesa não podem


pois ser aceitas à letra como exprimindo a realidade social; pelo contrário, as liberdades
legais que existem realmente na sociedade burguesa servem apenas para legalizar
as obrigações contratuais no interior das quais o trabalho assalariado se encontra em
grande desvantagem face aos donos do capital (GIDDENS, 2005, p. 77).

Neste sentido, as ideias não são mero reflexo da realidade material, mas se
apresentam como “força material” com implicações práticas para a vida social,
em geral, reforçando a dominação de classe em voga. Enquanto os trabalha-
dores não tomarem coletivamente consciência de classe serão inebriados pelo
conjunto das ideias dominantes. Marx e Engels escreviam ideias e buscavam
difundir suas ideias na medida em que acreditavam também poder intervir no
mundo real. Em certo sentido, seus escritos se baseiam em uma concepção de
uma teoria da práxis revolucionária, ou seja, se baseiam na ideia de que a te-
oria não deveria se preocupar unicamente em compreender a realidade, mas
modificá-la. Para tanto, compreender a natureza histórica e transformadora da

52 • capítulo 2
realidade se faz essencial, algo que se faz estudando e também participando
das lutas políticas da sociedade:

As mudanças sociais só podem ser realizadas através da união da teoria e da prática, o


que exige portanto a integração do estudo das transformações históricas possíveis ou
iminentes e de um programa de acção prática que possa contribuir para a realização
dessas transformações (GIDDENS, 2005, p. 51).

A vida de Marx e Engels foi perpassada não apenas pelo esforço de produzir tex-
tos, como de participar de associações socialistas de trabalhadores. No entanto, foi
depois da morte da Marx que percebemos o crescimento significativo dos movi-
mentos de trabalhadores dentro de vários países da Europa, alguns de cunho re-
volucionário e outros, como o partido social-democrático na Alemanha, de cunho
reformista. Neste contexto, Engels divulgou inúmeros textos sobre o que chama
de socialismo científico, sua perspectiva construída em colaboração com Marx do
materialismo histórico, além de outros textos de Marx não publicados.

2.6  O Marxismo Entre a Teoria e a Prática Política

A epistemologia marxiana e marxista (aquela escrita por autores que seguem a


teoria e metodologia criadas por Marx e Engels) são fundamentais ao curso de
Serviço Social, na medida em que as questões de cunho teórico-metodológico e
ideopolítico são centrais na profissão. Há uma vinculação entre o fazer teórico
e o exercício da profissão de assistente social. Neste sentido, é necessário lidar
com questões sociais que envolvem a ordem do capital nas sociedades contem-
porâneas. O enfoque marxista fornece pesquisas que partem do método dialé-
tico, abordando aspectos contraditórios da realidade, em uma análise que visa
a totalidade, considerando a historicidade. O marxismo se desenvolveu a partir
do século XX e tem uma longa história vinculada à teoria e à prática política.
Ao falar do marxismo, é importante citar nomes como Lênin, criador do
Partido Bolchevique na Rússia, Rosa Luxemburgo, do Partido Social-Democra-
ta na Polônia e Partido Comunista Alemão e Leon Trotsky, figura central en-
tre frações social-democratas na Rússia. Estes autores trouxeram novos temas,
abordando o capitalismo do século XX, como por exemplo o monopolismo e
o imperialismo, no caso de Lênin, em reflexões que conjugavam teoria políti-

capítulo 2 • 53
ca marxista da luta de classes, estratégias políticas revolucionárias e a relação
entre o Estado e a sociedade. Tais reflexões precederam a Revolução Russa de
1917 da qual Lênin foi líder. É neste contexto que o marxismo se firma como
algo além de uma teoria, pois:

[...] também se tornou a doutrina de um movimento político - que foi revolucionário em


um determinado momento, mas desde a vitória dos comunistas na Rússia, em 1917, e
posteriormente em outros lugares, o marxismo passou a operar como um manifesto ofi-
cial do governo. Como resultado disso, o marxismo sofreu diversas cisões e variações,
correspondentes às disputas políticas no âmbito dos regimes comunistas e dos movi-
mentos revolucionários espalhados por todo o mundo. Para alguns intelectuais, essas
conexões políticas e essas aplicações práticas são parte do apelo do marxismo, mas
são também as responsáveis pela considerável repulsão por parte de outros (COLLINS,
2009, p. 51).

Com a morte de Lênin (1870-1924), Josef Stalin (1878-1953) assumiu o co-


mando da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conformando
uma experiência histórica representante do que hoje concebemos como “so-
cialismo real”, em oposição ao socialismo teorizado por Marx. Comumente,
relaciona-se a ideia de marxismo ou mesmo de comunismo (bem distante das
concepções marxianas) a experiências totalitárias, dentre elas a da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas dirigida por Stálin. Tal experiência histórica
foi marcada por:

Um regime policial de uma ferocidade cada vez mais intensa assegurava a consolida-
ção de um estrato burocrático privilegiado acima da classe operária. Nestas condições,
a unidade revolucionária da teoria e da prática que tinha tornado possível o bolchevismo
clássico estava inelutavelmente destruída. Na base, os movimentos de base foram tolhi-
dos e a sua autonomia e espontaneidade extintas pela casta burocrática que confiscara
o poder no país [...] (ANDERSON, 1976, p. 30).

De um lado, o marxismo ficou ligado à ideologia oficial dos partidos comu-


nistas que, por sua vez, tinham vínculos com a União Soviética. De outro lado
– e muitas vezes associado a isso –, durante o século XX se divulgou em muitas

54 • capítulo 2
instâncias o que se chama de marxismo vulgar. Trata-se de uma simplificação
da teoria complexa do marxismo, então reduzido a uma linha evolucionista, a
qual pressupunha uma transformação inevitável e automática do capitalismo
ao comunismo, como se fosse o destino natural de todas as sociedades. No
entanto, um outro marxismo se renovou, com vários autores cujas obras são
marcadas pela sofisticação teórica e, muitas vezes próximos à prática política
outras vezes distantes dela. Vejamos alguns dos principais expoentes do mar-
xismo no século XX.

2.7  György Lukács

György Lukács (1885-1971) foi filho de banqueiro nascido em Budapeste em


1885, na Hungria, no leste europeu. A despeito de sua origem abastada, sua
história pessoal o aproximou do marxismo e da militância política no Partido
Comunista da Hungria. Após um primeiro momento de sua produção vincula-
da à filosofia idealista e publicação de obras cuja reflexão circundavam ques-
tões estéticas, as quais nunca chegou a abandonar, voltou-se a refletir temas
propostos por Marx, atualizando-os. Uma das obra mais impactantes do autor
foi a História e Consciência de Classe, uma coletânea de ensaios publicada em
1923. Trata-se de uma teorização filosófica do processo de desumanização ca-
pitalista, dialogando com o pensamento marxiano e hegeliano, em oposição ao
materialismo histórico vulgar:

Em Lukács, o empenho em atualizar o marxismo – empreitada renovada a cada geração


tendo em vista o caráter assumidamente histórico dessa vertente – adquiriu contornos
próprios. História e consciência de classe estabelece como critério de aferição da per-
tinência e validade de qualquer obra que se pretenda herdeira do legado de Marx a sua
capacidade em desdobrar de forma articulada três tarefas, distintas e entrelaçadas:
fornecer um diagnóstico do presente histórico, se posicionar ante a já extensa linhagem
do marxismo e conceber uma interpretação original dos textos canônicos dessa doutri-
na (MUSSE, 2013, p. 296-297).

Lukács tem como fundamento, em História e Consciência de Classe, a dis-


cussão de Marx sobre a reificação (ou coisificação) das relações humanas no ca-
pitalismo, em análise proposta pelo autor alemão em O Capital. Marx, naquela

capítulo 2 • 55
obra, tematiza o que denomina de fetichismo da mercadoria, um processo no
qual o capitalismo se reproduz na medida em que transforma a mercadoria em
um hieróglifo mistificador, ou seja, se apresenta aos olhos das pessoas no mer-
cado de forma a esconder que seu valor é baseado em relações sociais na esfera
produtiva, como se o valor das mercadorias independesse das relações huma-
nas. Ou seja, as trocas efetuadas no mercado são feitas sem que se perceba a
atividade do trabalho por detrás das mercadorias. Assim, as relações de troca
entre os produtos do trabalho aparecem como relação entre coisas. Lukács re-
toma tais reflexões em obra cuja temática central é a reificação na relação entre
homens, considerando que o termo reificação descende do res latino que signi-
fica coisa. Nas palavras de Marshall Berman:

O coração de História e consciência de classe, e a principal fonte de sua força, é um


ensaio de 140 páginas que se encontra no centro do livro e se intitula “A reificação e a
consciência do proletariado”. Reificação é um fraco equivalente latinizado de Verdingli-
chung, um termo alemão que significa “coisificação”, o processo por meio do qual uma
pessoa é transformada em uma coisa. O problema básico do capitalismo, diz Lukács,
é que ele trata as pessoas como se fossem coisas e trata as relações humanas como
se fossem relações entre coisas. O tipo específico da coisa em que as pessoas das
sociedades capitalistas são transformadas chama-se mercadoria. Lukács toma a ideia
desenvolvida por Marx acerca do “Fetichismo das mercadorias” (O capital, cap. 1) e a
transforma numa visão total do que o capitalismo faz com a vida humana (BERMAN,
2001, p. 209).

Na obra do marxista húngaro, a reificação se aproxima muito da tematiza-


ção do trabalho alienado, no entanto já abordando uma nova era de burocra-
cias privadas e públicas agigantadas caracterizadas por especialistas. A análise
é de um observador do capitalismo do século XX, no qual observam-se traba-
lhadores fragmentados que “[...] perdem o contato não só com os produtos ou
serviços que criam, mas com seus próprios pensamentos, sentimentos e ações”
(BERMAN, 2001, p. 209). O trabalhador se transforma em uma peça em um sis-
tema mecânico, no qual “nos sentimos passivos e contemplativos [enquanto
trabalhadores]; vivenciamos a nós mesmos como espectadores de processos
que acontecem conosco, e não como participantes ativos que moldam suas
próprias vidas” (BERMAN, 2001, p. 210).

56 • capítulo 2
Percebe-se que as análises não são mais voltadas exclusivamente ao tra-
balhador manual das indústrias, tal como o fizeram Marx e Engels, enquanto
observadores do capitalismo industrial nascente do século XIX. Neste aspecto,
Lukács vai além, demonstrando que:

Na verdade, o capitalismo trata todos os homens e mulheres como peças intercambiá-


veis, como mercadorias que podem ser trocadas por outras mercadorias. Administradores,
soldados, cientistas e até empresários - todos os que fazem parte da sociedade moderna
- são forçados a deitar-se no leite de Procrusto da reificação e são sistematicamente
privados da liberdade de que todos supostamente gozariam (BERMAN, 2001, p. 210).

Desta forma, o autor aborda os custos humanos do capitalismo até mesmo


para as classes dominantes, fomentando a ideia de que se trata de um sistema
que oprime a todos. Estamos diante de uma teorização erudita e sofisticada,
bem distante das teorias vulgares do marxismo que se abstém de abordar a
desumanização do capitalismo em toda a sua totalidade, resumindo sua inter-
pretação à luta de classes e às desigualdades na distribuição daquilo que foi
produzido socialmente.
Distante das visões redutoras e deterministas da sociedade como se estas
fossem regidas por leis similares às leis físicas, Lukács traz novamente à cena
uma teoria da práxis, colocando ênfase na ação humana na construção da so-
ciedade. Ou seja:

Há algo fundamentalmente errado em modalidades de pensamento (quer se autodeno-


minem filosofia, história ou ciência) cujo objetivo principal é convencer as pessoas de que
não existem alternativas para a forma como elas vivem no presente. Para Lukács, uma
das forças mais pérfidas do capitalismo moderno é sua capacidade de mobilizar a energia
de nossos intelectos - e de nossos intelectuais - para turvar nossa visão e paralisar nossa
vontade, para nos reduzir a espectadores passivos de qualquer que seja o destino que o
mercado reserve para nós (BERMAN, 2001, p. 211).

Sintonizada com essa compreensão, sua vida foi marcada pela participação
política, tendo sido ligado ao partido comunista húngaro, à época estreitamen-
te vinculado à burocracia socialista soviética. Na União Soviética, o marxismo

capítulo 2 • 57
atuava como ideologia do Estado, legitimando as decisões pragmáticas conde-
náveis do partido. Em relação à obra História e Consciência de Classe, “para
evitar a expulsão, ele publicou uma retratação (sem modificar as suas ideias
pessoais); mas pagou por isso um preço: o de uma renúncia permanente às res-
ponsabilidades organizativas quer no Partido quer na Internacional” (ANDER-
SON, 1976, p. 44). Neste sentido, algumas críticas podem ser direcionadas a ele,
por respaldar as atitudes do governo soviético naquele momento, muito embo-
ra em sua vida tenha rompido com este governo, sendo inclusive preso por seus
representantes ao defender suas ideias. Outra crítica possível é sua abordagem
do partido comunista como encarnação da classe trabalhadora, deixando as-
sim as portas fechadas para a crítica desta organização política que, como hoje
sabemos, pode se caracterizar por práticas que nem sempre beneficiam aque-
les que supostamente representariam (BERMAN, 2001, p. 214).

2.8  Antonio Gramsci

Gramsci nasceu em Ales, na Sardenha, em 1891, em uma família de origem pobre.


Em Turim, quando estudante, adentrou no Partido Socialista Italiano, para em se-
guida se filiar ao Partido Comunista Italiano. Chegou a ir a Moscou, em 1922, para
participar do IV Congresso da Internacional Comunista. Foi eleito secretário-ge-
ral do PCI. Estando em Viena, quando recém-eleito deputado, não poderia voltar
à Itália, pois estava com ordem de prisão decretada contra ele, no período fascista
do governo de Mussolini. No entanto, regressou ao país confiando na imunidade
parlamentar e, ao chegar a seu destino, foi preso. Passou então por período de vinte
anos de reclusão, onde escreveu uma obra com forte repercussão no marxismo du-
rante todo o século XX aos dias de hoje (KONDER, 2010, p. 205-206).
Sua obra foi escrita em cadernos escolares, publicados depois da Segunda
Guerra Mundial, conhecida como Cadernos do Cárcere, caracterizados pela
“[...] perspectiva de uma reflexão capaz de aprofundar seu pensamento e desco-
brir novos modos de apreender a realidade, sem ficar preso a sistemas teóricos
envelhecidos” (KONDER, 2010, p. 107). Renovou o marxismo, dotando-lhe de
visão crítica e, neste sentido afastou-se também do materialismo histórico vul-
gar, baseado em leis inexoráveis da evolução social:

58 • capítulo 2
Quando Gramsci sustentava que tudo era história, empenhava-se em remover fórmulas
explicativas que deslocavam o objeto da pesquisa para qualquer elemento de uma história
que não modificava a realidade. As massas populares, segundo ele, podiam se equivocar,
mas buscavam referências confiáveis, que lhes permitiriam fazer mudanças significativas
(KONDER, 2010, p. 107).

Tendo assistido à revolução socialista na Rússia, pôde compreender que


haviam situações distintas no contexto da Europa oriental, no qual a revolução
foi efetuada e no contexto da Europa ocidental. Na última, salientou a presença
do que conceituou como “guerra de posições”, conflitos entre classes e grupos
mediados pela esfera da político-ideológica. Em outros termos, a disputa ideo-
lógica revelava-se fundamental na dominação de classe, agora compreendida a
partir do conceito de hegemonia. A hegemonia é o poder que se baseia no con-
sentimento e, para tanto se realiza a partir das ideias e não da coerção:

Reduzido à coerção, nenhum grupo conseguirá consolidar seu poder. A classe dominante
tem sobrevivido e mantido a exploração e a opressão dos trabalhadores porque consegue
neutralizar algumas áreas importantes do campo de batalha da cultura e, com isso, manter
a hegemonia (KONDER, 2010, p. 108).

Neste sentido, temos um redimensionamento da teoria marxista a partir de


Gramsci, ao evitar a simplificação da questão ideológica. Na obra de Gramsci,
a esfera cultura e das ideias é sobrevalorizada, em oposição a perspectivas cal-
cadas no determinismo econômico. A cultura, associada à esfera política e dos
valores, é compreendida como o lócus fundamental de dominação social, na
medida em que a dominação política se define não só pela coação, mas tam-
bém pelo consenso. A política é, portanto, a esfera marcada pela imposição de
ideias de alguns grupos sobre outros, ou seja, na qual algumas ideias se tornam
hegemônicas. A discussão a respeito da hegemonia considera a existência de
uma heterogeneidade de visões de mundo, enraizadas na sociedade que, por
sua vez, é marcada pela existência de vários grupos/classes. A abordagem de
Gramsci, portanto, não considera a ideologia como algo homogêneo e que se
impõe a todos da mesma maneira, assim:

capítulo 2 • 59
[...] possibilitando pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir
de um exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual uma classe hegemoniza,
na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira
como seus as classes subalternas [...] ela se faz e desfaz, se refaz permanentemente num
“processo vivido”, feito não só de força mas também de sentido, de apropriação do sentido
pelo poder, de sedução e de cumplicidade (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 112).

Gramsci põe relevo em duas dimensões da sociedade em suas análises: a


sociedade política e a sociedade civil. A primeira seria a dimensão do poder Es-
tatal, baseado em seu papel coercitivo, como um aspecto fundamental da do-
minação política, mas também baseado em um poder de produzir consenso.
A segunda dimensão seria a esfera da sociedade civil, marcada por elementos
tais como a imprensa, as escolas, as igrejas, os partidos políticos, dentre outros.
A reprodução do capitalismo necessita, além do aparato coercitivo do Estado,
da elaboração de um consenso valorativo na sociedade civil. No caso das so-
ciedades marcadas por uma sociedade civil desenvolvida, o âmbito dos confli-
tos de classe passam fundamentalmente pela disputa valorativa nesta esfera.
Neste sentido, os partidos políticos, depositários das vontades coletivas, e os
intelectuais, fundamentais nas elaborações de consensos valorativos, possuem
uma importância chave na disputa política e na possibilidade de reprodução ou
transformação social:

Em Marx, a ideologia é sempre negativa e atua na distorção do conhecimento. Em Grams-


ci e em Lenin, a ideologia é tendencialmente maléfica, porém pode, em situações ex-
cepcionais, ter um desempenho histórico progressista. Pode-se observar esse fenômeno
em movimentos populares, em cuja consciência - mesmo com as distorções ideológicas
- existe abertura para o real e disposição de transformá-lo (KONDER, 2010, p. 109).

Temos, novamente, uma perspectiva epistemológica que combina teoria e


intervenção social. Ou seja, Gramsci considera que a produção de ideias é algo
fundamental na transformação da realidade e, de outro lado, que as ideias de-
pendem de seus vínculos com a realidade social e, mais propriamente, com os
grupos sociais em disputa:

60 • capítulo 2
Para ele, o conhecimento provém de um movimento que já é passado e atravessa o pre-
sente na direção do futuro. Essa superação não se dá completamente, sua consciência
pode ser vista na expectativa de que os seres humanos cultivam de interferir nas coisas
presentes e ir além do futuro reduzido a prognósticos inócuos (KONDER, 2010, p. 111).

2.9  A Escola de Frankfurt

A Escola de Frankfurt recebeu tal alcunha por derivar suas principais produ-
ções teóricas do Instituto de Investigação Social de Frankfurt. Trata-se de uma
sofisticada formulação teórica, ancorada no marxismo, de orientação mais fi-
losófica, mas também em diálogo com a psicanálise de Sigmund Freud. Entre
seus nomes mais relevantes estão Max Horkheimer (1895-1973), que assumiu a
direção do instituto em 1930, Theodor Adorno (1903-1969) e Walter Benjamin
(1892 - 1940). Dentro da tradição marxista, os teóricos da Escola de Frankfurt
tiveram como centro de suas discussões questões vinculadas à chamada supe-
restrutura, redimensionando a importância desta esfera para a compreensão
da temática da dominação e reprodução social.
Trata-se de um contexto sociopolítico muito distinto da Alemanha de Marx
e Engels, no qual o capitalismo se redefinia, deixava seu passado marcadamen-
te liberal com o fortalecimento dos Estados-nacionais e de economia planejada
e, no caso alemão, com o advento do nazismo. Neste sentido, compreende-se
que os autores da chamada “Teoria Crítica”, oriundos da Escola de Frankfurt,
tivessem uma visão mais cética em relação ao progresso. Para Adorno, na visão
de Leandro Konder (2010), do legado de Marx sobra-se a crítica (negativa) do
capitalismo e não a proposta positiva, ou seja, a ideia de uma sociedade que
caminharia rumo à sociedade sem classes e à realização das capacidades do
homem em sociedade.
Trata-se de um marxismo rearticulado e centrado na análise das sombras
do Iluminismo, ou seja, ao invés de ver o mundo como caracterizado pela pro-
gressiva realização humana, o via como caracterizado pelo aprisionamento dos
aparatos racionalizadores da modernidade. Diante da experiência do nazismo e
das duas guerras mundiais, formulou-se uma visão menos otimista do devir hu-
mano, em contraposição a uma visão mais otimista que apostava na redenção
humana por meio do socialismo, Leandro Konder especifica tais diferenças:

capítulo 2 • 61
Os comunistas, ancorados na “dialética positiva”, não estavam em condições de enfrentar
o poderoso inimigo: apoiavam-se em uma concepção da história que privilegiava positi-
vamente a continuidade do movimento, em prejuízo da descontinuidade. Era como se fe-
chassem os olhos diante do perigo. (Adorno os advertia: não há uma história contínua, que
vai do selvagem à humanidade, mas há uma que vai do machado de pedra à superbomba
de hidrogênio) (KONDER, 2010, p. 59).

Adorno, ao presenciar a adesão das massas ao nazismo e outros regimes tota-


litários, analisou “[...]o indivíduo reificado, que tem ‘muito tempo livre e pouca
liberdade’, é despolitizado, de temperamento destrutivo e está preparado para
apoiar projetos políticos autoritários, caso isso lhe apareça como algo inevitável”
(DUARTE, 2003, p. 34). Na obra A Dialética do Esclarecimento (ou Dialética do
Iluminismo) de 1947, Adorno e Horkheimer apresentam o processo civilizatório
como dominado pela “racionalidade instrumental”. Em outros termos, o pro-
gresso técnico desenvolvido pelo capitalismo passou a ser analisado em seus as-
pectos sombrios:

os esforços pré-históricos do pensamento instrumental, pelo qual a humanidade aprende


a afirmar-se sobre a natureza, são propagados passo a passo na disciplinação dos instin-
tos, no empobrecimento das capacidades sensuais e na formação de relações sociais de
dominação (HONNETH, 1999, p. 521).

Nesta mesma obra, a Dialética do Esclarecimento, os autores atentam para


a “coincidência do mais alto grau de civilização com a mais crua barbárie” (DU-
ARTE, 2003, p. 49) e um dos focos era a interpretação de que havia mecanismos
mentais que não apenas impediam que as classes subalternas percebessem
seus interesses, mas que respaldassem experiências políticas autoritárias. Para
a compreensão desta questão, o foco se voltou para as condições culturais e
psíquicas no capitalismo. Tem-se a imbricação, portanto, entre economia polí-
tica, teoria da cultura e psicanálise. O problema central colocado pelos autores
da Escola de Frankturt, nas palavras de Leandro Konder, é sintetizado a seguir:

62 • capítulo 2
Tornava-se cada vez mais evidente que a consciência das pessoas era condicionada, sim,
mas não imediatamente dirigida por interesses econômicos. Muitos alemães que aplau-
diram o Fürer pertenciam a camadas ou setores da sociedade que seriam (como logo
foram) prejudicados por sua política (KONDER, 2010, p. 57).

A obra dos autores abrangia uma crítica ao totalitarismo, tanto do socialis-


mo real como do nazismo, mas não deixava de abordar como mecanismos se-
melhantes ocorreram nas democracias liberais capitalistas. De Frankfurt, per-
seguidos pelo regime nazista devido à sua origem judaica, os autores migraram
para os Estados Unidos. Naquele país, Adorno foi professor em 1938 na Colum-
bia University, em Nova Iorque. Em 1941 mudou-se para as proximidades de
Los Angeles, acompanhado de Horkheimer. Naquele contexto tomou contato
com a indústria cinematográfica hollywoodiana. O regresso dos autores à Ale-
manha se deu no pós-guerra, entre 1949 e 1950.
Desta experiência na América, nasceu a interpretação adorniana da indús-
tria cultural, publicada em capítulo da obra prima de Horkheimer e Adorno de
1947: “Ali se busca pensar a dialética histórica que, partindo da razão ilustrada,
desemboca na irracionalidade que articula totalitarismo político e massifica-
ção cultural como duas faces de uma mesma dinâmica” (MARTÍN-BARBERO,
2009, p. 73). O ensaio sobre a Indústria Cultural a compreende como “um ramo
de atividade econômica, industrialmente organizado nos padrões dos grandes
conglomerados típicos da fase monopolista do capitalismo” (DUARTE, 2003,
p. 50). O foco neste tipo de empreendimento econômico se fez importante no
contexto em que viveram, pois:

No século XIX, já existiam investimentos consideráveis na produção de bens culturais


que deveriam ser produzidos para ser consumidos no âmbito da “cultura de massas”. No
século XX, porém, a produção de bens culturais para as massas começou a dar lucros
colossais e, para isso, recebeu investimentos gigantescos. Já não se tratava da produção
de livros ou revistas (ou jornais relativamente pequenos), mas de filmes de cinema, gran-
des campanhas publicitárias e, um pouco depois, programas de televisão espetaculares
(KONDER, 2010, p. 60).

capítulo 2 • 63
A indústria cultural é abordada pelo autor na correlação entre aspectos objeti-
vos e subjetivos, na qual se aponta não o crescimento espiritual ou aprimoramen-
to intelectual, mas o contrário. Adorno constata a atrofia da atividade do espec-
tador para seguir o argumento do filme, em contraste com a arte erudita. Com o
advento do cinema o espectador deve ir tão rápido que não pode pensar: “o filme
não deixa à fantasia nem ao pensar dos espectadores dimensão alguma na qual
possam mover-se por sua própria conta, com o que adestra sua vítimas para iden-
tificá-lo imediatamente com a realidade” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 74).
Em relação à música popular da época, o diagnóstico é similar. Adorno vê
como uma das consequências a “regressão da audição”, ou seja, a “incapaci-
dade crescente do grande público para avaliar aquilo que é oferecido aos seus
ouvidos pelos monopólios culturais” (DUARTE, 2003, p. 33). Em oposição à co-
moção, as indústrias culturais promoviam a distração de seus espectadores ou
ouvintes, em uma conotação negativa na análise adorniana. Um dos focos de
sua análise é voltada ao jazz, música que se popularizava via meios de comuni-
cação de massa em sua época:

a crítica que Adorno dirige ao que aqui aparece sob o nome de “música popular” não diz
respeito a uma possível incompetência de seus compositores e arranjadores, mas, pelo
contrário, ao fato de sua grande perícia ser totalmente neutralizada e reorientada em fun-
ção das exigências dos monopólios culturais no sentido da padronização com objetivo de
garantir o retorno financeiro e a apropriação tácita ao status quo (DUARTE, 2003, p. 35).

A indústria cultural não é apenas moldada pelas demandas do público con-


sumidor, em vez disto, ela gera o gosto, produz o desejo por consumir. Além
disto, ela serve de instrumento de reprodução do capitalismo, atestando sua
vitalidade e a compreensão do mesmo como um sistema. A diversão do traba-
lhador no cinema, no seu tempo de lazer, permite que este se dedique ao traba-
lho mecanizado, em seu tempo de trabalho. Desta forma, ela contribuiu para o
não desenvolvimento da consciência de classe, funcionando como um aparato
ideológico do sistema:

64 • capítulo 2
A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo indus-
trial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia do-
minante, a qual outorga sentido a todo o sistema. Aliada à ideologia capitalista, e sua cúm-
plice, a indústria cultural contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens,
bem como dos homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma
espécie de antiiluminismo. Considerando-se — diz Adorno — que o iluminismo tem como
finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da
magia e do mito, e admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência
e da tecnologia, tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a
ciência e sobre a técnica. Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se
vítima de novo engodo:o progresso da dominação técnica (ARANTES,1991, p.IX).

Walter Benjamin (1892 - 1940) trazia outra interpretação, anterior a Adorno


e da qual o último discordou para estabelecer seu conceito de indústria cultu-
ral. Benjamin, em A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica (1936),
distingue a arte convencional, marcada por uma “aura” ou existência singular,
da arte “reprodutível”. Com a técnica da reprodução, há uma multiplicação
da obra de arte, facilitando o acesso a ela, fazendo com que esta perdesse sua
“aura”. Como exemplo da arte “reprodutível” pode-se citar o filme. O filme é
“impensável sem o que ele chama de seu lado destrutivo, catártico, associado à
liquidação do valor da tradição na herança cultural” (DUARTE, p. 22). No entan-
to, o autor analisa o lado “progressista” da reprodutibilidade técnica, qual seja,
o de aproximar a arte das massas:

Na destruição da aura estética, Adorno via um processo que força o observador a transfor-
mar-se num consumidor passivo e alienado, o que, portanto, torna a experiência estética
impossível a arte de massa, resultante da nova reprodução tecnicizada, representava para
ele nada menos que a “desestetização da arte” (Entkunstung der Kunst). Benjamin, por
outro lado, via na arte de massa tecnicizada sobretudo a possibilidade de novas formas de
percepção coletiva; apoiou todas as suas esperanças no fato de, na experiência remota da
arte, por parte do publico, aquelas iluminações e experiências que até então ocorriam no
processo esotérico da fruição solitária da arte poderem agora acontecer em circunstancias
mais prosaicas (HONETTH, 1999, p. 530).

capítulo 2 • 65
Benjamin se orienta por outras concepções que incluem as experiências
sociais na percepção das obras. Em outros termos, ele analisa a capacidade
de imaginação coletiva a partir de conteúdos experienciais comuns (HONNE-
TH, 1999, p. 531). Analisando as mudanças nas formas de interação social e na
sensibilidade com o desenvolvimento do capitalismo e dos produtos culturais
desenvolvidos então, Benjamin considera a possibilidade do espectador cole-
tivamente se revoltar contra uma ordem social a partir da experiência estética:

a morte da aura na obra de arte fala não tanto da arte quanto dessa nova percepção que,
qualquer homem, o homem da massa, em posição de usá-las e gozá-las. Antes, para a
maioria dos homens, as coisas, e não só as de arte, por próximas que estivessem, ficavam
sempre longe, porque um modo de relação social lhes fazia parecer distantes. Agora, as
massas sentem próximas, com a ajuda das técnicas, até as coisas mais longínquas e mais
sagradas (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 82).

Adorno conceitua a indústria cultural em oposição à leitura benjaminiana,


elaborando uma visão sistêmica que pode ser criticável na impossibilidade de
ver usos criativos e resistências dos produtos massivos:

Como pudemos observar, a teoria da sociedade moderna, de Adorno, começa pela in-
vocação de um sistema de integrado que se totalizou; portanto, ele vê todos os veículos
da industria cultural apenas como um meio de dominação, podendo catalogar as formas
populares de arte como fenômenos de regressão psíquica (HONNETH, 1999, p. 531).

Ao contrário de Adorno, Benjamin:

ainda atribuía aos grupos oprimidos a faculdade de percepção criativa, podendo depositar
todas as suas esperanças no fato de que as formas de arte de massa desencadeassem
potenciais inconscientes da imaginação coletiva e, assim, provocassem a politização da
estética (HONNETH, 1999, p. 533).

Independentemente das diferenças, é importante constatar a sofisticação te-


órica da Escola de Frankfurt, a qual nutriu e complexificou algumas das questões

66 • capítulo 2
colocadas na obra de Lukács, construindo, como o fez também o marxista húnga-
ro, um distanciamento de visões mais vulgares do marxismo, compreendendo que
esta epistemologia “[...] não podia ser uma construção teórica que proporcionaria
a quem a adotasse um elenco de respostas prontas [...]” (KONDER, 2010, p. 64).

2.10  Louis Althusser

Louis Althusser (1918-1990), nascido na Argélia e tendo vivido a maior parte


de sua vida na França, foi um dos teóricos mais importantes entre as décadas
de 1960 e 1970. O autor constituiu uma interpretação e atualização original
da obra de Marx e Engels a partir de um diálogo profícuo com o pensamento
de seu tempo, em especial o estruturalismo e a psicanálise. A abordagem de
Althusser teve como foco a análise da sociedade como “totalidade” entendida
como uma estrutura complexa, composta por diversas esferas em conexão. Ele
representou assim, uma alternativa ao pensamento marxista dominante mar-
cado pelo determinismo economicista.

Pela primeira vez, foi articulado, dentro do enquadramento organizativo do comunismo


francês, um sistema teórico importante, sistema cujo poder e originalidade foram reco-
nhecidos mesmos pelos seus mais determinados opositores. A influência de Althusser
espalhou-se muito rapidamente após 1965, dando-lhe uma posição única na história do
Partido (ANDERSON, 1976, p. 53).

A obra de Althusser teve uma repercussão muito forte em um período no


qual as diversas instituições da sociedade passavam a ser questionadas, em
parte porque ele articulava a crítica a diversas instituições à crítica ao capitalis-
mo. O autor edificou uma teoria sistemática da ideologia, essa não entendida
de forma redutora como falsificação da realidade, mas também como um siste-
ma de representações com funções práticas. Para o autor a ideologia seria algo
fundamental em qualquer sociedade, aspecto responsável pela coesão e repro-
dução social. Crítico a uma concepção subjetivista da história, na qual o sujeito
desempenha um papel ativo, encontrou nas estruturas sociais e suas ideologias
os mecanismos pelos quais os homens são sujeitados. Em outros termos, não
há autonomia para o sujeito, ao contrário, o que caracteriza a vida em socieda-
de é a sujeição dos indivíduos à ideologia.

capítulo 2 • 67
O papel da ideologia é fundamental na manutenção da ordem estabelecida.
A ideologia dominante se efetiva por meio de aparelhos ideológicos dissemina-
dos na sociedade. Na visão de Althusser, a sociedade é composta de um apare-
lho repressivo estatal e de aparelhos ideológicos do Estado (instituições como a
família, sistemas religiosos, sistema escolar, partidos políticos, imprensa, etc).
De alguma forma, Gramsci também amplia a discussão do Estado para essas
instituições, quando se refere à “sociedade civil”, no entanto, na análise de Al-
thusser a relação entre o aparato repressivo e os aparatos ideológicos do estado
são sistematizadas e articuladas em uma visão estrutural.
Nesta visão, o foco da dominação de classes sai da mera apropriação do Es-
tado com seus aspectos repressivos. Althusser propõe a ampliação da discus-
são sobre o Estado, articulado a outras dimensões da sociedade, por sua vez,
responsáveis pela produção da ideologia. Para pensar sobre essas dimensões é
necessário separá-las do aparelho repressivo do Estado que compreende:

o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc., que cons-


tituem aquilo a que chamaremos a partir de agora o Aparelho Repressivo de Estado. Re-
pressivo indica que o Aparelho de Estado em questão “funciona pela violência” - pelo me-
nos no limite (porque a repressão, por exemplo administrativa, pode revestir formas não
físicas) (ALTHUSSER, 1970, p. 43).

Ao contrário do aparelho repressivo que funciona pela violência, os apare-


lhos ideológicos do Estado são eminentemente ideológicos, enquanto institui-
ções distintas e especializadas. E, portanto, eles se definem pela pluralidade
e pelo domínio privado, em, contraste com o domínio público do aparato re-
pressivo. A ideologia tem uma existência material que se efetiva a partir dos
aparatos, ou seja, ela interpela os sujeitos que terão suas práticas materiais de-
terminadas por ela. Em outros termos, as crenças e ações dos indivíduos são
definidas por tais aparelhos ideológicos.
Os aparelhos repressivos, como o exército, também o são em alguma medi-
da ideológicos, já que dependem de uma ideologia para sua coesão interna. Da
mesma forma os aparelhos ideológicos também atuam com repressão, exem-
plo o sistema escolar com seus mecanismos de sanções, reprovações e expul-
sões. No entanto, somente os segundos são marcados predominantemente
pelo aspecto ideológico:

68 • capítulo 2
Se os AIE “funcionam” de maneira massivamente prevalente pela ideologia, o que unifica
a sua diversidade é precisamente este funcionamento, na medida em que a ideologia pela
qual funcionam é sempre unificada apesar das suas contradições e da sua diversidade, na
ideologia dominante, que é a da “classe dominante” (ALTHUSSER, 1970, p. 48).

Comumente, a classe dominante detém o poder do Aparelho Repressivo do


Estado, a partir de alianças de classe ou frações de classe. No entanto, o que de-
fine sua dominação é que a mesma classe também é ativa nos aparelhos ideo-
lógicos do estado. Nas palavras do autor: “nenhuma classe pode duravelmente
deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre
e nos Aparelhos Ideológicos de Estado” (ALTHUSSER, 1970, p. 49). Não se trata
de uma visão unilateral, a dominância nos aparelhos ideológicos é menos evi-
dente do que nos aparelhos repressivos, o que permite a existência de resistên-
cias e luta de classes nesses aparelhos. Sendo assim, o autor redimensiona, atri-
buindo centralidade, à esfera superestrutural em suas análises do capitalismo.
Vemos, na visão de Althusser como a de todos os autores aqui abordados,
a abordagem marxista com novos olhares para as problemáticas da sociedade,
dentro de uma perspectiva dialética e que dê conta da complexidade da socie-
dade em suas diversas esferas. São contribuições diversas que embora se rela-
cionem com uma determinada época e contexto no qual os autores viveram,
ainda podem nos fornecer elementos para a interpretação de nossa sociedade
atual. O marxismo é uma perspectiva que, embora sempre se renove, é atual,
pois as contradições da sociedade capitalista ainda estão na ordem do dia.

ATIVIDADE
1. Quais os fatores fundamentais que uma estratégia logística deve abordar?

2. Cite cinco atributos do serviço logístico.

3. O que é centro de distribuição e quais suas funções?

capítulo 2 • 69
REFLEXÃO
O canal eletrônico de vendas está cada dia mais presente na vida das pessoas, cada vez
mais o brasileiro tem comprado através de sistemas eletrônicos, como computadores, tablets
e celulares. Reflita sobre as implicações desta realidade sob o ponto de vista da logística.

LEITURA
Para o aprofundamento na perspectiva dialética marxiana, o livro O que é dialética? de Lean-
dro Konder é uma ótima introdução, com leitura acessível. Do mesmo autor outras duas obras
introdutórias são recomendáveis: Marx: vida e obra e Em torno de Marx, a primeira que versa
sobre a vida do autor e os temas e conceitos abordados por ele e a segunda com ensaios
sobre o autor e autores marxistas, como Lukács, Gramsci, Adorno, Benjamin, dentre outros.

Recomenda-se a leitura do seguinte texto: SANTOS, I. Eficiência Logística e seus Impac-


tos Financeiros. Artigos – Administradores.com. Disponível em: <http://www.administrado-
res.com.br/artigos/marketing/eficiencia-logistica-e-seus-impactos-financeiros/57765/>.
Acesso em: 20 out. 2014.

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tudo de casos. Dissertação de Mestrado – Administração, Universidade Federal do Rio e
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ção física. São Paulo: Atlas, 1993.

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70 • capítulo 2
BOWERSOX, D. J.; CLOSS, D. J. Logística Empresarial – O Processo de Integração
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CALAZANS, F. Centros de distribuição. Gazeta Mercantil: Agosto, 2001.

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LACERDA, L. Armazenagem estratégica: analisando novos conceitos. Centro de Estudos


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NEVES, M. F. Um modelo para planejamento de canais de distribuição no setor de alimentos.


1999. Tese (Doutorado) – Faculdade de Economia Administração e Contabilidade, Universi-
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NOVAES, A. G. Logística e gerenciamento da cadeia de distribuição: estratégia,


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anhanguera.com/index.php/rcger/article/viewArticle/63>. Acesso em: 20 out. 2014.

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SANTOS, I. Eficiência Logística e seus Impactos Financeiros. Artigos – Administradores.


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TONTINI, G.; ZANCHETT, R. Atributos de satisfação e lealdade em serviços logísticos. Gest.


Prod., São Carlos, v. 17, n. 4, p. 801-816, 2010.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No próximo capítulo você conhecerá os métodos de planejamento da demanda e de geren-
ciamento de transportes.

72 • capítulo 2
3
Fenomenologia,
Personalismo e
Serviço
Social
3  Fenomenologia, Personalismo e
Serviço Social

O presente capítulo tem como propósito apresentar a Fenomenologia proposto


pelo pensador alemão Edmund Husserl e os termos Pessoa e Comunidade em-
pregados pelo filósofo Emmanuel Mounier. Trata-se de uma exposição de duas
linhas de pensamentos filosófico que se complementam e que serviram de base
para a formulação de uma das concepções que influenciou os profissionais do
Serviço Social.

OBJETIVOS
•  Apresentar aos alunos de Serviço Social os principais conceitos que norteiam a Fenome-
nologia de Edmund Husserl.
•  Analisar palavras Pessoa e Comunidade nos termos empregados por Emmanuel Mounier.
•  Fazer com que o estudante perceba a relação entre a concepção fenomenológica e o
pensamento do filósofo personalista.
•  Demonstrar a influência dessas duas linhas de pensamento filosófico na trajetória histórica
dos profissionais da assistência social.

REFLEXÃO
No mês de junho de 2013 o Brasil foi surpreendido por uma grande manifestação popu-
lar. Naquele momento a imprensa, os partidos e os governantes não conseguiam identificar
quem eram aquelas pessoas que estavam nas ruas. O movimento que começou com um
grupo de pessoas protestando contra o aumento da passagem de ônibus foi crescendo com
a participação de outros grupos e se espalhando pelo país, chegando a se transformar em
uma batalha campal entre policiais e manifestantes. Esse acontecimento ficou conhecido
como Manifestações de Junho.

74 • capítulo 3
Introdução
Entre as diversas concepções que norteiam a trajetória dos profissionais do
Serviço Social podemos destacar a Fenomenologia. Trata-se de uma concepção
que ganhou destaque na década de 1970, período em que os assistentes so-
ciais viviam um momento da efervescência do Movimento de Reconceituação.
Como sabemos:

Este movimento surge a partir de fortes questionamentos, por parte de alguns pro-
fissionais, sobre a prática profissional, o compromisso e a consciência social de seus
agentes. O movimento pretendia rever o projeto profissional e redefini-lo a partir da re-
alidade vivenciada, caracterizando-se por um processo de revisão crítica... (BRANDÃO,
2006, p.48)

Nesse contexto, o referencial fenomenológico proposto por alguns profis-


sionais da área foi colocado como contraponto a uma concepção positivista-
-funcionalista, que defendia a visão da adaptação do homem ao meio social, no
que se refere ao objeto, objetivos, ideologia e método.
Nessa linha fenomenológica temos a presença de Emmanuel Mounier que
contribui com dois termos significativos para a compreensão da realidade en-
frentada pelos assistentes sociais. O primeiro refere-se ao emprego da palavra
Pessoa, em contraponto a noção de individuo. O segundo termo diz respeito a
palavra Comunidade.
O conteúdo desse capítulo tem finalidade de auxiliar o futuro profissional
de Serviço Social na compreensão das bases filosóficas dessa concepção que
estão presentes nos materiais do curso e nos discursos dos professores e pro-
fissionais da área.

3.1  Fenomenologia?

Para começo de conversa, vamos a seguinte pergunta: o que é fenomenologia?


Conforme os diversos especialistas no tema, a palavra fenomenologia significa
estudo dos fenômenos, ou ciência dos fenômenos. Eles mencionam que o cria-
dor dessa concepção foi o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938).

capítulo 3 • 75
CONEXÃO
http://www.phillwebb.net/History/Twentieth/Con-
tinental/Phenomenology/Husserl/Husserl.htm

Filósofo, matemático e lógico, professor em Göttin-


gen e Freiburg im Breisgau, autor de Die Idee der
Phänomenologie (A ideia da fenomenologia, 1906),
enfrentou o Psicologismo e o Historicismo e foi o
fundador da Fenomenologia.

Devemos destacar que a fenomenologia de Husserl assume o papel de um mé-


todo ou modo de ver a essência do mundo e de tudo quanto nele existe, como
nos esclarecem Cunha e Oliveira (2014)
Nesse mesmo sentido, Galefi (2000) destaca que a fenomenologia é compreen-
dida como método da crítica do conhecimento universal das essências. E co-
menta que, na compreensão de Husserl, trata-se de um método que é a própria
ciência da essência do conhecimento, ou doutrina universal das essências.

3.1.1  Então, Fenomenologia e uma Ciência Dos Fenômenos que Assume o Papel
de um Método de Ver a Essência do Mundo.

Vamos aprofundar mais um pouco. Cunha e Oliveira (2014) afirmam que a fe-
nomenologia é uma ciência rigorosa, porém não se apresenta uma ciência exa-
ta. Ela é uma ciência eidética, ou seja, que busca a compreensão da essência e
que procede por descrição e não por dedução. Ela se ocupa da análise e inter-
pretação dos fenômenos, sendo que, com uma atitude totalmente diferente das
ciências empíricas e exatas, que conhecemos.

3.2  Fenômeno

Fenomenologia refere-se de uma “ciência dos fenômenos”, como vimos acima.


Porém, percebe-se que não é tão simples assim. Para se compreender melhor

76 • capítulo 3
essa concepção vamos ao sentido da palavra “fenômeno” (ou como preferirem,
a etimologia da palavra).
O termo Fenômeno vem do grego phainómenon. Essa palavra grega significa
“aquilo que aparece”. Ou então, o discurso esclarecedor a respeito daquilo que se
mostra para o sujeito interrogador. Ela deriva do verbo grego phainomenai: “eu
apareço”. O que “aparece” é aquilo que se mostra à luz, o “brilhante” (phaino).
Fenômeno é, então, tudo o que se manifesta, aquilo que se desvela, que se
mostra à consciência do sujeito que o questiona.

A palavra fenômeno é antiga na história da filosofia ocidental. A palavra fenomenologia


agrupa a palavra “fenômeno” e “logos”, significando etimologicamente o estudo ou a ci-
ência do fenômeno. Por fenômeno, no sentido originário e mais amplo, entende-se tudo
o que aparece, que se manifesta ou se revela. Originariamente a palavra ―fenômeno
refere-se ao que existe
exteriormente, ou seja, fenômenos físicos. Primeiro os gregos usaram o termo para a
manifestação do ser numa íntima unidade entre o ser e aparecer. Com o tempo passou
a entender-se por fenômeno a aparência enganosa, oposta à realidade. Assim Platão
usa o termo para designar o mundo sensível, em oposição ao mundo inteligível. Nesta
perspectiva, Protágoras já afirma que podemos conhecer o que aparece, o fenômeno,
mas não o que está atrás dele, o que se oculta. Embora tal dissociação entre aparência
e ser não tenha sido aceita por Aristóteles, nem por Tomás de Aquino, passou a vigorar
na filosofia moderna, sobretudo no fenomenismo de D. Hume, para quem o fenômeno,
único objeto de nosso conhecimento, está separado da coisa em si.

ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como método radical. 2 ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002. 96 p. – (Coleção Filosofia; 41).

Devemos esclarecer que, apesar da palavra “fenômeno” se referir a o que


aparece, a forma como ela foi empregada por Husserl, designa o próprio apare-
cer. Nesse sentido, para o filosofo, esse termo indica fenômeno da consciência.
Ou então, usando o que Husserl considerava uma “expressão grosseiramente
psicológica”, o fenômeno subjetivo.

capítulo 3 • 77
Galeffi (2000, p. 25) alerta que:

Em virtude deste uso ambíguo, a palavra “fenômeno” favorece a formação de equívocos,


pois o próprio aparecer torna-se objeto de investigação, ou seja, o próprio sujeito do co-
nhecimento é investigado na sua estrutura de comportamento, em virtude da correlação
essencial entre o seu aparecer e o que aparece.

E esclarece que:

Trata-se, no caso, de uma relação interdependente entre o aparecer e o que aparece,


entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a consciência que conhe-
ce e o mundo ou objeto que aparece ou se mostra cognoscível (GALEFFI, 2000, p.25)

Sobre os fenômenos da consciência, Zilles (2002) menciona que a reflexão


sobre esse termo é o ponto de partida para examinar os diferentes sentidos ou
significados do ser e do existente à luz das funções da consciência. Por meio
deste método pretende chegar a um fundamento certo e evidente do ser e de
suas aparições.
Nesse sentido, a tarefa da fenomenologia é:

⇒ estudar a significação das vivências da consciência.

Dito isso, devemos esclarecer que a palavra “fenômeno” é para a fenomeno-


logia algo que compreende, simultaneamente, tanto o aparecer quanto aquilo
que aparece. Portanto, nessa concepção ocorre a relação indissociável entre o
sujeito e o mundo, a consciência e seus objetos.

Sujeito Objeto

78 • capítulo 3
Husserl elabora a sua proposta filosófica tendo por influência o filósofo Emmanuel
Kant. Para entender a influência é necessário rever as três posturas epistemológicas
adotadas ao longo da história da filosofia. Foram elas:
1ª) Realismo: primado do objeto em si mesmo apreendido pelos sentidos e depois re-
gistrado pelo intelecto. Para o realista a representação que fazemos das coisas está
subordinada aos objetos em si mesmos. O ponto de partida são os objetos ou as coisas
mesmas. As coisas são apreendidas pelos sentidos e depois registradas pelo intelecto.
Exemplo de filósofos realistas: Aristóteles, Locke, etc...
2ª)Idealismo:há a primazia do sujeito, da mente, das ideias que se constituem como
ponto de partida para a reconstituição de um acordo entre as coisas e a mente. Acordo
ou correspondência que se estabelece a partir de uma análise das ideias que me fazem
chegar a uma certa conformidade entre as ideias e as coisas.
3ª) Filosofia de Kant: A realidade existe, mas só é apreendida a partir de categorias que
provém do sujeito. A partir desta concepção introduz a ideia de fenômeno que expressa
a ideia da realidade não como ela poderia ser em si mesma (não sabemos como ela
poderia ser em si mesma),mas tal como ela aparece a nós, ao sujeito do conhecimento.
Aparece condicionada por determinadas estruturas lógicas da nossa mente que Kant
chama de ELEMENTOS TRANSCENDENTAIS. Transcendentais porque estão antes da
nossa experiência com o mundo e que condicionam esta experiência dando os fatores
para sua organização. Não há objeto sem comprometimento com o sujeito, há correla-
ção entre sujeito e objeto.

FONTE: Palestra “Fenomenologia e Existencialismo” do filósofo Franklin Leopoldo e Silva em


Café Filosófico da TV Cultura.
http://santiye.tv/play/Z2XPHjSYBfw/Fenomenologia_E_Existencialismo.html

Esclarecido o sentido das palavras fenômeno e fenomenologia, vamos ago-


ra ao aprofundamento dessa concepção filosófica. Os especialistas nessa con-
cepção filosófica destacam que um dos princípios básicos da fenomenologia
diz respeito à intencionalidade da consciência. Para isso devemos compreen-
der o emprego dado por Husserl à palavra Intencionalidade.

capítulo 3 • 79
3.3  intencionalidade

O conceito de intencionalidade ocupa um lugar central na fenomenologia. Para


os defensores dessa concepção, compreende-se a própria consciência como in-
tencional, voltada para o mundo (BRANDÃO, 2006).
Para compreender essa relação entre consciência e intencionalidade, de-
vemos destacar que o ponto de partida da fenomenologia de Husserl está na
seguinte proposição:

→“toda consciência é consciência de algo”.

Silva (2014, s/p) afirma que quando o pensador alemão faz essa afirmação,
está propondo a “análise compreensiva” da consciência. Ele está levando em
conta que todas as vivências (Erlebnis) do mundo se dão na e pela consciência.
Para Husserl é essa definição de consciência que nos remete à noção de in-
tencionalidade.
Nesse sentido, intencionalidade “significa apenas a característica geral da
consciência de ser consciência de alguma coisa”, como enfatiza Silva (2014, s/p).
A esse respeito, Triviños (2002. p.45) contribui para o aprofundamento des-
sa definição esclarecendo que:

a intencionalidade é algo puramente descritivo, uma peculiaridade íntima de algumas


vivências. Desta maneira a intencionalidade característica da vivência determinava que
a vivência era consciência de algo.

Como podemos perceber o ponto de partida adotado por Husserl está a aná-
lise dos fenômenos no âmbito da consciência. O intuito é tentar apreender as
coisas em si mesmas, ou seja, como elas são.
Silva (2014, s/p) menciona que a intencionalidade seria a marca fundamen-
tal da consciência, pois essa consciência está o tempo todo voltada para fora de
si. Porém, Husserl não considera a consciência como se fosse uma substância
ou um invólucro a partir do qual o mundo brotaria.
O princípio de intencionalidade é que:
→ a consciência é sempre ‘consciência de alguma coisa’, que ela só é consciên-
cia estando dirigida a um objeto (sentido de intentio).

80 • capítulo 3
→ o objeto só pode ser definido em sua relação à consciência, ele é sempre
objeto-para-um-sujeito.

Dartigues (2005 apud SILVA, 2014, s/p) nos alerta que isto não quer dizer
que o objeto está contido na consciência como que dentro de uma caixa, mas
que só tem seu sentido de objeto para uma consciência.
Conforme Silva (2014, s/p), esse conceito de intencionalidade colocado nes-
ses termos traz no seu seio as noções de intenção, intuição e evidência apodí-
tica. Para o aprofundamento da nossa análise cabe aqui o esclarecimento de
cada um desses termos.

3.4  Intenção

Para começar, vamos a noção de Intenção. Recorrendo a Triviños (2002. p.45)


veremos que:

“intenção” é a tendência para algo que, no caso de Husser, é a característica que apre-
senta a consciência de estar orientada para um objeto. Isto é, não é possível nenhum
tipo de conhecimento se o entendimento não se sente atraído por algo, concretamente
um objeto.

Husserl chama de “intenção” o conteúdo significativo de alguma coisa. Va-


mos esclarecer melhor:
→ Temos a intenção de um objeto, por exemplo, um livro sobre a mesa.
→ Quando possuímos apenas o significado intencional desse livro (bem como
da mesa).
→ No momento dessa intenção não há efetivamente a presença física do livro
e da mesa.

Como se observa, aqui existe apenas uma “intenção significativa” do livro,


quando “significamos intencionalmente” esse objeto, sem considerar ainda a
sua presença (FRAGATA, 1962, apud SILVA, 2014, s/p). Então:

⇒ A intenção é a tendência para algo

capítulo 3 • 81
3.5  Intuição

Dando sequência, vamos agora a noção de Intuição. Pelo que foi mencionado
anteriormente, “a intenção é a tendência para algo”. Esta “intenção” pode ser
preenchida pela presença do objeto, por exemplo, se nos colocamos diante do
livro. Neste caso temos uma “intuição”. Sendo a intuição, portanto o preenchi-
mento duma intenção. Nesse sentido:

⇒ A intuição é o preenchimento duma intenção

3.6  Evidência

Por fim, vamos à noção de Evidência. Vimos que a intuição é o preenchimento


duma intenção.
A evidência, nesse caso, é a consciência da intuição.

⇒A evidência é a consciência da intuição.

Dito isso, devemos alertar que, como “evidência” e “intuição” se implicam


mutuamente.
Fragata (1962 apud SILVA, 2014, s/p) esclarece que Husserl usa, na prática,
indiferentemente as duas palavras. Para o filósofo a “evidência” está direta-
mente relacionada ao grau de preenchimento da “intenção”.
Porém, o grau de clareza da “evidência” pode ser limitado por alguns fatores
como a distância e a luminosidade. Vamos ao exemplo:

Se o livro é apreendido sob uma


penumbra. Esse objeto terá alguns
aspectos que não irão “preencher”
por completo a intenção significativa
dele.Nesse caso, veremos que o grau
de clareza de minha intuição (evidên-
cia) estaria comprometido.
Fragata (1962 apud SILVA, 2014,
s/p) esclarece que “o supremo grau
de intuição só se verificaria na plena adequação entre intencionado e intuído.
Teríamos então, no sentido perfeitamente rigoroso, uma evidência apodíctica”.

82 • capítulo 3
Husserl admite que a adequação plena entre intencionado e intuído nun-
ca pode ser atingida de fato. Diante desse pressuposto, o pensador alemão de-
fende que o papel do filósofo é buscar atingir a mais plena adequação possível
entre intenção e intuição. Somente por meio dessa atitude o investigador pode-
rá obter um fundamento sólido e “primordial” para estabelecer sua filosofia.
(FRAGATA, 1962 apud SILVA, 2014, s/p).

HYLÉ
Conforme Silva (2014):
Na esteira do conceito de intencionalidade encontramos ainda a noção de hylé. Para
Husserl, a hylé seria a “matéria subjetiva” que compõe uma percepção qualquer. A
consciência de um objeto qualquer se daria sobre “dados hiléticos” que seriam “dados
constituídos pelos conteúdos sensíveis, que compreendem, além das sensações de-
nominadas externas, também os sentimentos, impulsos, etc.” (ABBAGNANO, 1998, p.
499) . Embora Husserl estabeleça que toda consciência é consciência de alguma coisa,
ou seja, quetoda consciência é intencional, ele não considera os dados hiléticos como
sendo intencionais. Os dados hiléticos seriam apenas a “matéria” sobre a qual a cons-
ciência se dá. A noção husserliana de hylé não pode ser aqui associada ao empirismo.
Husserl não reduz os objetos percebidos a sensações. A hylé husserliana é considerada
apenas como uma matéria que assume um papel importante na intuição de um objeto.

SILVA, Paulo César Gondim. A fenomenologia de Husserl: uma breve leitura. Disponível em
<http://meuartigo.brasilescola.com/filosofia/a-fenomenologia-husserl-uma-breve-leitura.htm >
Acesso em 2014.

Dito isso, concluímos aqui a análise do conceito de intencionalidade.

3.7  A Redução Fenomenológica (Epoché)

Dando sequência a nossa exposição a respeito da Fenomenologia de Husserl,


vamos agora a análise do seu método. Como foi dito no inicio, fenomenolo-
gia é uma ciência dos fenômenos que assume o papel de um método de ver a
essência do mundo.

capítulo 3 • 83
Nessa altura do nosso capitulo podemos observar que para se compreender
a concepção de fenomenologia, temos que desvendar esse jogo de palavras em-
pregado por Husserl.
Sendo assim, vamos ao passo seguinte que é a analise do método da redu-
ção fenomenológica ou epoché, tal como foi proposto pelo filósofo.
Devemos esclarecer que Husserl propõe um método radical para “vasculhar”
o fenômeno. Para esse método o filósofo introduz a noção de redução fenome-
nológica ou epoché. Vemos aqui que o pensador toma emprestado da filosofia
antiga o termo grego epoché, que se refere uma palavra que os antigos céticos
traduziam por “suspensão” do juízo a respeito das coisas (SILVA, 2014, s/p).

Porém, Husserl se apropria desse termo sob outra perspectiva:


→ a epoché consiste em pôr “entre parênteses” o mundo quando da apre-
ensão do fenômeno.

Dito de outra forma:


→ a epoché consiste numa suspensão momentânea da “atitude natural”
com a qual nós nos relacionamos com as coisas do mundo (SILVA, 2014, s/p).

Esse termo foi empregado no sentido de deixar provisoriamente de lado to-


dos os preconceitos, teorias e definições que nós utilizamos para conferir sen-
tido às coisas.
Martins (2006, p. 16) nos esclarece que a fenomenologia:

procura enfocar o fenômeno, entendido como o que se manifesta em seus modos de


aparecer, olhando-o em sua totalidade, de maneira direta...

E destaca que esse enfoque sobre o fenômeno ocorre:

sem a intervenção de conceitos prévios que o definam e sem basear-se em um quadro


teórico prévio que enquadre as explicações sobre o visto.

84 • capítulo 3
Epoché então consiste em uma:

“Suspenção Momentânea”

“sem a intervenção de conceitos prévios”

Com a suspensão momentânea da nossa atitude natural diante do mun-


do buscamos apreender na consciência as coisas no sentido de captá-las como
elas são em si mesmas.
Nesse sentido, a fenomenologia de Husserl aparece como uma tentativa
de examinar minunciosamente o fenômeno em sua “pureza”, isto é, em sua
“originalidade”.
Na exposição acima falamos em atitude natural! Vamos dar uma pausa para
um esclarecimento.

3.8  A Epoché Husserliana e a Dúvida Metódica de Descartes

Devemos esclarecer que ao propor que se evite a “atitude natural” na apreensão


e análise do fenômeno, o filósofo alemão demonstra sua busca insistente por
um rigor metodológico.
Urbano Zilles (2002, p. 13) esclarece que:

A fenomenologia tem por vocação ser prima philosophia e, por isso, a radicalidade do
pensamento cartesiano. O caminho genuíno da atividade filosófica é a reflexão. Parte
do cogito e de suas cogitata, do eu, das vivências do ego. Por isso o método fenome-
nológico consiste no acesso ao campo da consciência para submetê-lo à análise. Ego
cogito cogitatum é o esquema do âmbito da análise fenomenológica. Como todo cogi-
tare se orienta para algo – intendio- na fenomenológica fala-se de análise intencional
como seu método próprio de investigação.

capítulo 3 • 85
Inicialmente, verifica-se que é possível estabelecer uma relação de seme-
lhança entre a epoché de Husserl e a dúvida metódica de Descartes, pois:
→ A dúvida metódica conduziu Descartes ao porto seguro do cogito, isto é, à
subjetividade.
→ A epoché serviu de esteira para Husserl adentrar no âmago das aparições
das coisas à consciência.

Porém, ao apontar a suposta semelhança entre os dois filósofos, devemos


esclarecer que a epoché, ao pôr o mundo de lado, não tem a intenção de duvidar
da existência das coisas.

Com a epoché não se pretende propriamente duvidar da existência do mundo, nem,


muito menos, suprimi-lo. O mundo ancorar-se-á apenas sob o aspecto como se apre-
senta na consciência - reduzido à consciência (SILVA, 2014, s/p).

Dito isso, vamos desvendar essa diferença. Para Husserl, assim como para
Descartes:
→ O Eu Penso é a primeira certeza a partir da qual devem ser obtidas as outras
certezas.

Mas a fenomenologia de Husserl considera que:


→ O erro de Descartes é ter concebido o eu do cogito como uma alma-substância

Por consequência, Descartes a concebe “como uma coisa (res) independen-


te, da qual restava saber como poderia entrar em relação às outras coisas, colo-
cadas por definição como exteriores”. (DARTIGUES, 2005, p. 25).
Para Husserl, isso era recair na atitude natural:
⇒ a dicotomia cartesiana sujeito-objeto recupera exatamente a “atitude na-
tural” a qual Husserl não pretende adotar quando da sua análise da aparição
das coisas à consciência.

Nesses termos, a crítica é que:


⇒ A subjetividade que o cogito inaugura já estaria infestada de juízos a res-
peito do mundo.

86 • capítulo 3
Com a epoché Husserl pretende:
→ superar esse obstáculo e captar o fenômeno na sua originalidade

Isto é, captar o fenômeno:


→ no âmbito da própria consciência

Nesse sentido, podemos perceber que o método fenomenológico de Hus-


serl promove uma revisão no cogito cartesiano (SILVA, 2014, s/p).
Feito o devido esclarecimento, vamos a nossa análise do método.

3.9  O Transcendente e o Transcendental

Na análise do método proposto por Husserl, referente a redução fenomenoló-


gica, vamos perceber que nas exposições sobre esse tema feitas pelos especia-
listas estão presentes outras duas noções que deverão ser esclarecidas: o trans-
cendente e o transcendental. Abbagnano (1998, p. 973) em seu dicionário de
filosofia aponta que:
→ O transcendente é a percepção cotidiana e habitual que temos das coisas do
mundo: esta cadeira, esta árvore, este livro, etc.
→ O transcendental “é a percepção que a consciência tem de si mesma”

Nos termos empregados por Husserl (2008, p. 18):


O transcendente é o mundo exterior
Enquanto que
O transcendental é o mundo interior da consciência.
Conforme Urbano Zilles (2002), na concepção de Husserl, como filósofo
“devemos orientar-nos para o mundo interior, que chama de transcendental
enquanto chama o mundo exterior de transcendente. Deste modo o ser trans-
cendente é o ser real ou empírico enquanto o transcendental é o irreal ou ideal,
mas não fictício”.
Por meio dessa atitude se propõe a “explorar as riquezas da consciência trans-
cendental”, pois, “o filósofo não precisa recorrer ao mundo transcendente”.
Urbano Zilles (2002) afirma que “cabe-lhe buscar a evidência apodítica ou
indubitável na subjetividade transcendental através da descrição dos fenôme-
nos puros. Só na volta “às coisas mesmas” o filósofo encontrará a realidade de
maneira plenamente originária e com evidência plena”.

capítulo 3 • 87
Como podemos perceber a proposta da fenomenologia não é somente es-
tudar puramente o ser, nem puramente a representação do ser, mas compre-
ender o ser tal como e enquanto se apresenta à consciência como fenômeno.

3.10  Noema e Noese

Esses termos transcendente e transcendental nos trazem a reboque duas ou-


tras noções: noema e noese. Em Abbagnano (1998, p. 713), consta que:
→ noema é o aspecto objetivo da vivência

Cita como exemplo a árvore verde, iluminada, não iluminada, percebida,


lembrada, etc. Dito de outra maneira, o noema seria o mundo transcendente
tal qual ele nos é dado.
→noese é “o aspecto subjetivo da vivência

Conforme descreve o autor, trata-se do aspecto “constituído por todos os


atos de compreensão que visam a apreender o objeto, tais como perceber, lem-
brar, imaginar, etc.” (2014, p. 713).
Nesses termos, Husserl defende que o filósofo deve se deter no campo do
transcendental. Naquele que se refere ao nível da consciência tal como o mun-
do nos apresenta.
O método fenomenológico propõe ao pesquisador que encare o mundo
como se fosse pela primeira vez. Pois, considera-se que a sedimentação con-
ceitual que se acumula ao longo da vida viria a “obscurecer” maneira como se
apreende as coisas.

“encarar o mundo
como se fosse pela primeira vez”

3.11  Redução Psicológica e a Redução Transcendental

Nesse ponto da nossa análise a respeito da Fenomenologia, devemos esclarecer


que Husserl está propondo um método a partir da crítica ao positivismo, empi-
rismo e historicismo.
Na sua proposta Husserl a apresenta sob dois níveis, a saber: a redução psi-
cológica e a redução transcendental.

88 • capítulo 3
Na redução psicológica, os juízos relativos ao mundo que nos circunda são
postos “fora de circuito”.
Como foi mencionado acima, não se trata de duvidar da existência das coi-
sas. Trata-se somente de se realizar uma suspensão momentânea do juízo em
relação às mesmas.
Na redução psicológica se defende que seja “radicalizada”. Nesse caso, re-
fere-se ao momento em que o filósofo propõe a sua “redução transcendental”.

A “redução transcendental” seria a epoché da própria redução psicológica.


A redução transcendental levaria o investigador a um estágio de
“consciência pura”.
Para Husserl, “na ‘consciência pura’ ou ‘transcendental’, as vivências per-
dem inteiramente o seu caráter psicológico e existencial para conservarem ape-
nas a relação pura do sujeito plenamente purificado ao objeto enquanto cons-
ciente...” (FRAGATA, 1962 apud SILVA, 2014, s/p).
Nesse nível de redução chega-se ao que Husserl chama de “atitude fenome-
nológica”. É a partir dessa atitude que o investigador deve partir para funda-
mentar sua pesquisa em bases originais e seguras. (SILVA, 2014, s/p)
O método da redução fenomenológica ou epoché, numa certa medida, pro-
porciona o desocultamento das coisas mesmas, revelando-as em sua nudez
imediata e original. (SILVA, 2014, s/p)

3.12  A Descrição

Dando continuidade a análise do método proposto por Husserl, vamos ao pas-


so seguinte: a descrição.
Nessa parte do nosso texto vamos recorrer a MARTINS (1992, p.56) que dire-
ciona a exposição para a pesquisa na área das ciências humanas. Nessa obra o
autor esclarece que o trabalho do filosofo, ao recorre ao método da fenomeno-
logia, depois de colocar o fenômeno entre parênteses, como foi descrito acima,
consistirá em descrevê-lo. Fazer uma descrição tão precisa quanto possível,
procurando abstrair-se de qualquer hipótese, pressuposto, ou teorias.
Nessa etapa, busca-se exclusivamente aquilo que se mostra, analisando o
fenômeno na sua estrutura e nas conexões intrínsecas
Para Martins e Bicudo (1989, p.45), a descrição (...) “tem o significado de des
ex- crivere, isto é, de algo que é escrito para fora”. Nesse sentido, a descrição

capítulo 3 • 89
de alguma coisa implica em diferenciá-la de outra, apontando seus atributos,
elencando suas especificidades.
Para que isso ocorra, o momento da descrição não pode ser compreendido
como um procedimento mecânico, mas como um encontro social, uma relação
efetiva entre o pesquisador e o pesquisado, caracterizada pela empatia, intui-
ção e imaginação.

3.13  Análise

Feita a descrição, vamos ao passo seguinte: análise.


Martins (1992) orienta que após a obtenção a descrição dos colaboradores da inves-
tigação, o paço seguinte para o pesquisador é proceder à análise das mesmas. No
entanto, esclarece o autor que não existe um procedimento único, pronto, pré-esta-
belecido a ser rigorosamente seguido pelo investigador.
O que existe são trajetórias que podem revelar caminhos adequados na busca
da compreensão do fenômeno. “Trata-se de um caminhar gradativo, relacionado
ao próprio desenvolvimento da fenomenologia, enquanto alternativa metodoló-
gica de pesquisa nas ciências humanas e sociais”, como esclarece o autor.
Nesse sentido, Martins (1992) apresenta e descreve três momentos da traje-
tória fenomenológica: a descrição, a redução e a compreensão.
A descrição fenomenológica compõe-se de três elementos: a percepção, a
consciência que se dirige para o mundo-vida e o sujeito que se vê capaz de expe-
rimentar o corpo-vivido através da consciência.
Como vimos anteriormente, no momento da redução fenomenológica são
selecionadas, por intermédio da variação imaginativa, as partes essenciais da
descrição do sujeito pesquisado. Nessa fase o pesquisador imagina cada parte
da descrição como estando presente ou ausente na experiência, até que a mes-
ma seja reduzida ao essencial para a existência da consciência da experiência.
A redução tem como objetivo determinar, selecionar as partes da descrição
que são consideradas essenciais e aquelas que não o são. Nesse momento, de-
seja-se encontrar exatamente que partes da experiência são verdadeiramente
partes da nossa consciência, diferenciando-se daquelas que simplesmente su-
postas (MARTINS, 1992, p.59).
A compreensão fenomenológica ocorre simultaneamente a interpretação.
Esse é o momento em que o pesquisador pretende obter o significado essencial
na descrição e na redução. Ele assume o resultado da redução como um con-
junto de asserções ou unidades de significado. São as unidades que se mostram

90 • capítulo 3
significativas para o seu estudo, e que apontam também para a experiência do
sujeito, para a consciência que o sujeito tem do fenômeno.
Martins (1992, p. 60) orienta que:

Esta fase consiste em refletir sobre as partes da experiência que nos parecem possuir
significados cognitivos, afetivos e conotativos e, sistematicamente, imaginar cada parte
como estando presente ou ausente na experiência. Através da comparação no contexto
e eliminações, o pesquisador está capacitado a reduzir a descrição daquelas partes que
são essenciais para a existência da consciência da experiência.

Martins (1992) esclarece que as unidades de significado identificadas na


descrição, são inicialmente assumidas na linguagem própria do sujeito que
descreve o fenômeno (discurso ingênuo).
O paço seguinte é transformar esse “discurso ingênuo” em expressões pró-
prias do discurso que sustenta o que está sendo buscado, como por exemplo,
um discurso psicológico, educacional, social.
E por fim, organiza-se, a partir da análise das descrições dos vários sujeitos
da pesquisa, uma síntese das unidades de significado encontradas, na busca de
se identificar as suas convergências, divergências e idiossincrasias.
Devemos esclarecer que a trajetória do estudo fenomenológico tem a fina-
lidade de estabelecer um contato direto com o fenômeno vivido pelo sujeito
pesquisado. Para compreender esse fenômeno temos que recorrer ao discur-
so, buscar a descrição mais ampla do sujeito, com o intuito de conseguir uma
maior aproximação com a densidade semântica do fenômeno. Considera-se
que apenas um vocábulo, uma expressão, um conceito, ou uma definição não
poderá expressar tudo o que há a ser falado em relação ao que se pretende in-
vestigar (MARTINS, 1992).

3.14  Em Síntese

Diante dessa exposição detalhada da concepção de Fenomenologia proposto


por Husserl, faremos agora uma síntese, a partir da análise de Masini (1989) em
seu texto “O enfoque fenomenológico de pesquisa em educação”.
De início a autora (1989) nos esclarece que “não existe o ou um método fe-
nomenológico, mas sim uma atitude” do ser humano diante de cada fenômeno
a ser analisado e compreendido. Trata-se de uma atitude “de abertura do sujei-

capítulo 3 • 91
to para compreender o que se mostra” (procurando estar livre de conceitos ou
pré-definições) no estudo do fenômeno.
Conforme Masini (1989), o método fenomenológico não pretende ser empí-
rico ou dedutivo, mas descritivo. Nesse sentido, esse método tem como finali-
dade a descrição do fenômeno em si, tal como ele se apresenta, sem reduzi-lo a
algo que não aparece.

ATENÇÃO
Epistemologia: ou teoria do conhecimento (do grego “episteme” – ciência, conhecimento; “lo-
gos” – discurso), é um ramos da filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados à
crença e ao conhecimento.
http://www.dicionarioinformal.com.br/ontologia%20/

Do ponto de vista epistemológico, o método fenomenológico é contrário às


ideias que isolam o sujeito ou o objeto para o desenvolvimento de estudos. Ele
os concebe como correlacionados. Nesse sentido, compreende-se que numa re-
lação entre sujeito e objeto, um não pode existir sem o outro.
Devemos destacar que o método fenomenológico é centrado no ser huma-
no, especificamente na análise do significado e relevância da experiência hu-
mana. O ponto de partida dessa investigação é a compreensão do viver do pró-
prio homem. Considera-se que o homem imprime sentidos ao mundo, ao ser
capaz de intuir, tendo intencionalidades, orientando significações sobre tudo
aquilo que vai experenciando em sua existência. Ao estabelecer significações
para os objetos que analisa e interpreta, o homem une-se a eles. (MASINI, 1989).
Com essa exposição sobre o método fenomenológico, finalizamos essa par-
te desse capítulo. Na sequência do nosso material, apresentaremos a relação
entre a Fenomenologia e o Serviço Social.

CONEXÃO
Indicação para leitura:
MASINI, E. F. S. O enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In: FAZENDA,
I. Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989.

92 • capítulo 3
3.15  Fenomenologia e Serviço Social

Como mencionamos na introdução, uma das vertentes do Serviço Social no pe-


ríodo do Movimento da Reconceituação foi inspirada na Fenomenologia. Tra-
ta-se de uma concepção que emergiu como metodologia dialógica, aproprian-
do-se também da visão de pessoa e comunidade de Emmanuel Mounier.
Essa perspectiva teve uma grande contribuição, na medida em que colocou
para o assistente social a tarefa de “auxiliar na abertura desse sujeito existente,
singular, em relação aos outros, ao mundo de pessoas” (ALMEIDA, 1980 apud
YAZBEK, 2014. p.8). E criou uma tendência no Serviço Social brasileiro que pas-
sou a priorizar as concepções de pessoa, diálogo e transformação social, sem-
pre voltada para os sujeitos.
Dito isso, nessa parte do nosso material, daremos destaque ao pensamen-
to do filósofo Emmanuel Mounier com a preocupação de esclarecer os termos
personalismo, pessoa e comunidade.

3.16  Emmanuel Mounier

Essa parte do capitulo do curso sobre Filosofia da Ciência destina-se a expor o


pensamento de Emmanuel Mounier. Dando continuidade ao tema Fenomeno-
logia, vamos inserir, inicialmente, duas palavras proposto pelo filosofo: perso-
nalismo e pessoa. Mas antes de começar, cabe aqui o esclarecimento feito por
Adão José Peixoto (2010), quando afirma que “Mounier não escreveu sobre a
fenomenologia e nem afirmou a vinculação de seu pensamento a essa perspec-
tiva filosófica. Entretanto, é possível perceber que sua filosofia foi fortemente
influenciada pelas ideias fenomenológicas”.

ATENÇÃO
Emmanuel Mounier
Nasceu em Grenoble, na França, em 1º de abril de 1905 e faleceu em Châtenay-Malabry, no
dia 22 de março de 1950. Estudou filosofia durante três anos (1924 - 1927), sob orientação
de Jacques Chevalier. Em 1932, juntamente com alguns amigos funda a revista Esprit. E no
ano de 1949 escreve O Personalismo, obra em que procura resumir suas teorias e precisar
mais suas concepções antropológicas.
http://www.emmanuel-mounier.org/

capítulo 3 • 93
3.17  Personalismo

O personalismo nem sempre teve a mesma concepção e objetivo ao longo do


seu percurso histórico, que nos é apresentado nos momentos atuais por Mou-
nier, passando por mudanças de acordo com a época e necessidade que as mes-
mas vivenciaram no decorrer do tempo e da história.

O personalismo é uma filosofia que afirma o valor da pessoa enquanto valor absoluto.
O absoluto aqui é entendido enquanto fim que dá sentido a toda organização política
e social. A existência humana é o ponto de partida e o postulado do personalismo. Isto
significa que há, nessa perspectiva, uma prioridade da existência sobre a natureza hu-
mana, entendendo-se esta como um dado “ontológico definitivo”. Esta postura é uma
exigência de reformulação epistemológica, que significa, no interior do personalismo, a
tentativa de elaboração de uma fenomenologia da existência, situada entre o objetivis-
mo radical da ciência e o subjetivismo da metafísica.
(PEIXOTO,)

PEIXOTO, Adão José. Pessoa, existência e fenomenologia: notas sobre as concepções do


personalismo de Emmanuel Mounier. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 455-468, jul./
dez. 2010

No seu Dicionário de Filosofia Abbagnano (1998, p. 728) menciona que o


termo Personalismo foi designado para referir a três doutrinas diversas, porém,
com características conexas no decorrer da história. Conforme o autor:
→ A primeira surgiu como uma doutrina teológica. Essa tem na sua base
Deus como criador do mundo, contradizendo o panteísmo que afirma que
Deus se identifica com o mundo.
→ A segunda surgiu como uma doutrina metafísica. Essa considera que
mundo é constituído por totalidade de espírito, os quais no conjunto com uma
ordem ideal, em que existe uma autonomia individual. “O personalismo neste
sentido outra coisa não é senão um espiritualismo monadológico (átomo es-
piritual, substância desprovida de partes e extensão, indivisível, só Deus pode
criá-la ou anulá-la) de marca leibniziano-lotzista [...]”

94 • capítulo 3
→ A terceira foi compreendida como uma doutrina ético política. Nessa pre-
valece o valor absoluto da pessoa e seus laços com outras pessoas, contra o cole-
tivismo que na pessoa nada mais é que uma unidade numérica, e em polêmica
contra o individualismo que tende a aniquilar qualquer laço de solidariedade
entre as pessoas.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial Emmanuel Mounier retoma essa


doutrina personalista, de forma a dar um novo impulso a esta dimensão que
tende para a defesa da pessoa.
Peixoto (2010) afirma que o personalismo, a partir dessa retomada, passou
a ser compreendida como uma filosofia que afirma o valor da pessoa enquanto
valor absoluto. O autor esclarece que o termo absoluto “aqui é entendido en-
quanto fim que dá sentido a toda organização política e social”.
Nessa perspectiva, proposto por Mounier, a existência humana é compreen-
dida como ponto de partida e o postulado do personalismo. O que representa
que nessa linha de pensamento há uma prioridade da existência sobre a natu-
reza humana. Esta postura do personalismo é uma exigência de reformulação
epistemológica, que significa uma tentativa de elaboração de uma fenomeno-
logia da existência, situando-se entre o objetivismo radical da ciência e o subje-
tivismo da metafísica.

CONEXÃO
Epistemologia: ou teoria do conhecimento (do grego “episteme” – ciência, conhecimento;
“logos” – discurso), é um ramos da filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados
à crença e ao conhecimento.
http://www.dicionarioinformal.com.br/ontologia%20/

Rangel (2004) menciona que o movimento personalista nasceu precisamen-


te para se por diante da ameaça contra a pessoa e contra os valores pessoais de
todos “os processos de coletivização, nos quais a originalidade e a personali-
dade, são um luxo por demais custoso e onde os indivíduos se abandonam ao
anonimato e à irresponsabilidade” (p. 23).
Conforme o autor (2004), o personalismo faz algumas objeções que é preci-
so perceber. Segundo os seus proponentes, há pessoas que são “cegas” à pes-
soa, outras cegas à pintura ou até surdas à música. Porém, Mounier insiste que

capítulo 3 • 95
elas são cegas com uma quantidade de responsabilidade pela sua cegueira.
Para o filosofo, “A vida pessoal é, com efeito, uma conquista oferecida a todos,
e não uma experiência privilegiada, pelo menos acima de um certo nível de mi-
séria” (MOUNIER, 1967 apud RANGEL, 2004, p. 23).
Cabe destacar que para o personalismo não se dispensam a responsabili-
dade da pessoa no seu agir e seu ato de contribuição na realização da história.
Rangel cita Mounier afirmando que:

A essa exigência de conquista citada a cima seja uma experiência fundamental, “o per-
sonalismo acrescenta um juízo de valor, um ato de fé: a afirmação do valor absoluto da
pessoa humana” (Mounier, 1967, p. 85). Não dizemos absoluto no sentido da pessoa
do homem e não confundimos o “absoluto da pessoa humana com o absoluto do indiví-
duo biológico ou jurídico [...], a pessoa é um absoluto em relação a toda outra realidade
material ou social [...] (MOUNIER apud RANGEL, 2004, p. 49).

Outro ponto destacado por Rangel (2004, p.23) diz respeito


ao fato de que o personalismo de Mounier defende que:
→ “a pessoa é um absoluto em comparação com qualquer outra pessoa
humana”.

Devemos esclarecer que nessa perspectiva:


→ “a pessoa não pode ser considerada como parte de um todo”.

O personalismo compreende que:


→ A pessoa é um todo, com o todo, com o outro, com a comunidade.

Nesse sentido:
Eu sou, na medida que contribuo para o outro ser,
mais pessoa, num gesto sempre de expor para o outro.
Rangel (2004, p. 24) esclarece que o personalismo se apresenta na história
pela forte atuação pessoal diante do contexto sócio político existente de seu
tempo. E afirma que:

96 • capítulo 3
E ele nunca assumiu a fria atitude de filósofo profissional, pois não se encontra nele
um sistema elaborado pronto de uma filosofia, no sentido tradicional do sistema. Ele se
preocupa muito mais em testemunhar como profeta e provocar, despertar, um compor-
tamento e uma ação enquanto tal nos seus contemporâneos. Sua vida, sem dúvida, foi
o melhor testemunho de seu pensamento personalista.

Conforme Rangel (2004, p.24), o personalismo apresenta uma reação con-


tra toda atitude negadora da pessoa humana. Nessa perspectiva se critica o des-
conhecimento do homem real pelo pensamento, e o seu esmagamento pelas
estruturas políticas sociais ou econômicas.
Devemos destacar que o “personalismo” foi um movimento que, no período de
1932 a 1950, avançou à frente, ao se lançar a favor dos direitos humanos inaliená-
veis e na busca por um despertar diante das “desordens estabelecidas”. Mounier,
até seus últimos dias, conseguiu agregar valores e sua vida tornou-se um marco no
registro histórico em defesa da pessoa humana.
No último trimestre de 1949 foi publicada a obra “O Personalismo”, cerca
de três meses antes da morte de Emmanuel Mouinier. No final do livro, o seu
autor, sempre aberto ao diálogo, expressa seu maior desejo que a palavra perso-
nalismo “seja um dia esquecida”. Como menciona em sua obra:
As posições esboçadas nestas páginas são discutíveis e estão sujeitas a revi-
sões. Estas têm a liberdade de não terem sido pensadas na aplicação de ideolo-
gias recebidas, mas foram descobertas progressivamente, com a condição do
homem do nosso tempo. Todo personalista só pode desejar que elas acompa-
nhem o progresso dessa descoberta e que a palavra “personalismo” seja um dia
esquecida, porque não haverá mais a necessidade de atrair as atenções sobre
aquilo que deveria ser a própria banalidade do homem (Mounier, 1950, p.133).

3.18  Conceito de Pessoa

Como se percebe, a palavra pessoa está muito presente na concepção filosófica


de Emmanuel Mounier.
ABBAGNANO (1998, p. 730) no seu Dicionário de Filosofia aponta que a pa-
lavra pessoa, tem a sua origem no “latim Persona,[...] que no sentido mais co-
mum do termo refer-se ao “homem em suas relações com o mundo ou consigo
mesmo”. O autor destaca que em relação ao conceito de pessoa, podem se dis-

capítulo 3 • 97
tinguir as seguintes fases do conceito:
⇒ 1ª - função de relação-substância;
⇒ 2ª - auto relação (consigo mesmo);
⇒ 3ª - hetero-relação (relação com o mundo).

Para a nossa análise, a base do texto a respeito do termo Pessoa será fun-
damentada a partir da principal obra do filósofo católico Emmanuel Mounier:
“O personalismo”. Nessa obra o autor nos oferece uma análise detalhada dos
processos que envolvem a construção de uma postura individualista. E através
de sua proposta personalista o filosofo avalia criticamente essa postura indivi-
dualista, apresenta seus danos, do ponto de vista individual e coletivo.
No sentido entregado pelo autor, o personalismo consiste precisamente
numa oposição ao individualismo.

INDIVÍDUO PESSOA

Para Mounier, enquanto o individualismo mantém o homem centrado so-


bre si mesmo, a primeira preocupação do personalismo é descentrá-lo para co-
locá-lo nas largas perspectivas abertas pela pessoa.
No seu personalismo, o filosofo defende que a pessoa surge como uma pre-
sença voltada para o mundo e para as outras, sem limites, misturadas com elas
numa perspectiva comunitária.

Pessoa Mundo
Outros

E compreende que as outras pessoas não a limitam, fazem-na ser e crescer.


Não existe senão para os outros, não se conhece senão pelos outros, não se en-
contra senão nos outros.
A experiência primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa.

Nessa forma de pensamento proposto pelo autor, a pessoa, no movimento


que a faz ser, se expõe. Isso significa que a pessoa é, por natureza, comunicável.
Para Emmanuel Mounier, aquele que se encerra no seu EU nunca encontrará o
caminho para os OUTROS.

98 • capítulo 3
Em sua concepção, considera-se que nos somente existimos na medida em
que existimos para os outros. Com isso afirma que toda e qualquer pessoa é, des-
de suas origens, movimento para os outros, ou como em suas palavras “ser para”.
Como mencionamos acima, o personalismo é uma filosofia que afirma o
valor da pessoa enquanto valor absoluto. Peixoto (2010) nos esclarece que o ab-
soluto aqui é entendido enquanto fim que dá sentido a toda organização polí-
tica e social.
Conforme Peixoto, quando Mounier se refere à pessoa como absoluto, isto quer
dizer, segundo o próprio autor (MOUNIER, I, 1992, apud PEIXOTO, 2010, p.458):
•  1º - que uma pessoa não pode jamais ser considerada como meio por uma
coletividade ou por outra pessoa; que não existe espírito impessoal, acon-
tecimento impessoal, valor ou destino impessoal; o impessoal é a matéria;
•  2º - que, em conseqüência, excluídas as circunstâncias excepcionais em
que o mal não pode ser detido se não à força, é condenável qualquer re-
gime que, de direito ou de fato, considere as pessoas como objetos inter-
cambiáveis, as dirija ou as constranja contra a vocação do homem [...];
•  3º - que a sociedade, isto é, o regime legal, jurídico, social e econômico
não tem por missão nem subordinar a si pessoas, nem assumir a realiza-
ção de sua vocação [...]
•  4º - que é a pessoa que faz seu destino: outra pessoa, nem homem, nem
coletividade pode substituí-la.
Peixoto (2010) nos esclarece que o intuito do personalismo é a compreensão
da pessoa enquanto totalidade e enquanto centro de todas as ações. O nosso
dia a dia histórico deve se constituir numa afirmação radical do caráter inalie-
nável, insubstituível e, portanto, absoluto da pessoa.
Diz o autor (2010) que, ao afirmar o valor absoluto da pessoa, Mounier não
está propondo a edição de um novo individualismo, pois o que ele mais comba-
teu foi justamente o individualismo da civilização burguesa .

3.19  Existência Humana

Como mencionamos acima, para o personalismo, a existência humana é o pon-


to de partida e o postulado fundamental. E que isto significa que nessa perspec-
tiva há uma prioridade da existência sobre a natureza humana, aqui entendido
como um dado “ontológico definitivo”. Nesse sentido, o existir é mais denso do
que desenvolver uma determinada essencialidade; é submeter-se à contingên-

capítulo 3 • 99
cia, à facticidade, à interação com o outro e com o mundo, num esforço contí-
nuo de personalização (SEVERINO, 1983, apud PEIXOTO, 2010).
Peixoto (2010) esclarece que a existência pessoal é uma existência dialética.
Essa existência não se reduz a um esquema rígido e fixo de ser. Ela não é um
desenvolvimento mecânico de potencialidades predeterminadas, mas uma re-
lação contínua de conflitos entre a exteriorização e a interiorização.
O autor adverte que quando o personalismo parte da existência pessoal, não
está levantando uma oposição à essência, a uma possível essência humana,
pessoal. E esclarece que a essencialidade da pessoa, na perspectiva personalis-
ta, desenvolve-se por meio do projetar-se fora de si em face do real num retorno
para si. Sendo assim, podemos dizer que o homem é um ser natural e transcen-
dente: “só ele é capaz de conhecer, de transformar, de amar, de ser livre, de usar
do determinismo natural como instrumento de superação. Só ele é capaz de
ação construtiva” (SEVERINO, 1983, apud PEIXOTO, 2010. p.456).

Para que a vida ganhe plenitude, é também preciso agir, pois é na ação que se constrói
a trama da existência. O agir tem sempre uma intencionalidade e esta deve orientar-
-se para a transformação da realidade interior (autoconstruir) e da realidade exterior
(construir), para a afirmação de novos valores que fundamentem a construção de uma
comunidade de pessoas.

Diante do exposto acima, cabe esclarecer que o personalismo não fica preso
a uma concepção meramente existencial nem a uma concepção essencialista. Os
seus proponentes consideram que a existência e a essência fazem parte de uma
mesma totalidade: o homem. Sendo que este é um ser imanente e transcendente.

A nossa existência é uma expressão destas duas dimensões.

ATENÇÃO
Ontologia: (em grego ontos e logoi, “conhecimento do ser”) é uma parte da filosofia que trata
da natureza do ser, da realidade, da existência dos entes e das questões metafisica em geral. A
ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum
que é inerente a todos e a cada um dos seres.
http://www.dicionarioinformal.com.br/ontologia%20/

100 • capítulo 3
3.20  Comunidade

Nessa parte do texto nos dedicamos a esclarecer dois termos fundamentais


para a compreensão do pensamento de Emmanuel Mounier: personalismo e
pessoa. Para a continuidade dessa análise vamos incluir mais uma palavra fun-
damental para o filosofo: comunidade.
O personalismo considera que tomar o ser humano como pessoa é apreen-
dê-lo como ser que se constrói historicamente, como ser situado, ser de comu-
nicação, de adesão, de transformação.
Mounier, por meio dessa concepção personalista, ao apostar no ser huma-
no, está também apostando na comunidade, uma vez que a “pessoa é comuni-
cação essencial, é sair de si, é compreender, assumir o seu próprio destino e o
destino das outras pessoas”.
O filósofo, ao mesmo tempo em que afirma o valor absoluto da pessoa,
anuncia também a importância da vida comunitária. Ele considera que o ho-
mem só se torna pessoa e se realiza enquanto tal em comunidade. Aqui se per-
cebe a importância dada a comunicação.
Rangel (2004) menciona que para Mounier a comunicação entre as pessoas
é uma experiência fundamental, pois se considera que a pessoa é inseparável
da comunidade e incompreensível sem ela. Trata-se de uma comunicação que
é possível e necessária, que gera a comunhão autêntica com outras pessoas.
Mas para que isso ocorra depende muito da disponibilidade do sujeito, em dar
um passo na direção do outro, de ir ao encontro; de estar aberto, propondo co-
munhão. É por essa comunicação que se dá acesso ou abertura ao outro.
Devemos ressaltar que a pessoa, da forma como é compreendida aqui, não
existe separadamente da comunidade, pois a pessoa sempre terá necessidade
de se comunicar, do contrário, será impossível chegar ao outro. A comunicação,
seja no olhar, gesto, palavra, ação conjunta, partilha do mesmo pensar, estará
sempre dependente desse tão frágil vínculo. Como afirma Mounier, “quando
a comunicação se enfraquece ou corrompe, perco profundamente eu próprio:
todas as lacunas são uma falha nas relações com os outros [...]” (MUNIER, 1964,
apud RANGEL, 2004, p.37).
Mounier nos esclarece essa relação entre comunicação e comunidade ao
descrever o desenvolvimento da pessoa. Diz o filósofo: “o primeiro movimento
que, na infância, revela o ser humano é um movimento para outrem; a criança
saindo da vida vegetativa descobre-se nos outros, aprende nas atitudes que a
visão dos outros lhe ensina” (MOUNIER, 1964, apud RANGEL, 2004, p.37).

capítulo 3 • 101
Nesse momento essa PESSOA sente a necessidade de ter a contribuição do
OUTRO para o EU ser pessoa mais completa, ir completando a cada experiên-
cia existencial. Aqui a pessoa se constrói de dentro num primeiro passo.
O segundo passo é, oferecer se ao OUTRO no sentido de construir, parti-
lhar, para que, juntas dêem continuidade no processo de construção interior
das mesmas.
Como afirma Mounier:

Pela experiência interior, a pessoa surge-nos como uma presença voltada para o mun-
do e para outras pessoas, sem limites misturada com elas numa perspectiva de univer-
salidade. As outras pessoas não limitam, fazem-na ser e crescer. Não existem se não
para os outros, não se encontra senão nos outros. A experiência primitiva da pessoa é
a experiência da segunda pessoa. O tu e, dentro dele, o nós, precede o eu, pelo menos
acompanha-o (MOUNIER, 1964, apud RANGEL, 2004, p.37).

Verifica-se que a pessoa é uma existência capaz de se libertar de si próprio,


de se desposar, de descentrar para se tornar disponível aos outros.
Nessa linha de pensamento, observa-se que a acese do despojamento é a
acese central da vida da pessoal. Para o personalismo de Mounier só se liberta o
mundo e os homens aquele que primeiramente libertou a si próprio. Busca-se
compreender, calando-se para que a voz do outro ressoe.

Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista, para me situar no ponto de
vista dos outros. Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim, não conhecer
os outros apenas com um conhecimento geral, mas captar com a minha singularidade a
sua singularidade, numa atitude de acolhimento. Ser todo para todos sem deixar de ser,
e de ser eu [...] (MOUNIER, 1964 apud RANGEL, 2004, p.38).

Rangel (2004) afirma que é neste sentido que, na perspectiva personalista, o so-
cial e o político são expressões do pessoal. Conforme o autor é por isto que Mounier
clama em favor de uma revolução, ao mesmo tempo, personalista e comunitária,
que quer, assim, uma revalorização da vida das pessoas e da vivência comunitária.

102 • capítulo 3
3.21  O Personalismo de Emmanuel Mounier e a Fenomenologia

Para finalizar esse capítulo, faremos uma síntese relacionado a Fenomenologia


de Husserl e o personalismo de Mounier. Os argumentos abaixo serão apresen-
tados com base no artigo do filosofo Adão José Peixoto (2010).
Como vimos no decorrer do nosso texto, do ponto de vista epistemológico,
o personalismo procura a compreensão do ser da pessoa, de maneira diferente
da estruturação objetivante da Psicologia e das demais ciências humanas ou
da elucidação puramente lógica da metafísica essencialista, mas no sentido
da delimitação de uma fenomenologia existencial. E vimos também que a fe-
nomenologia, em geral, significa uma nova metodologia do conhecimento, no
sentido de superar os impasses epistemológicos oriundos de uma concepção
dualista que opõe ser e conhecer (PEIXOTO, 2010).
A busca da reformulação epistemológica por parte do personalismo é uma
tentativa de elaboração de uma fenomenologia da existência, “situada entre
o objetivismo radical da ciência e o subjetivismo da metafísica” (SEVERINO,
1983, apud PEIXOTO, 2010, p. 464).
Peixoto esclarece que para Mounier, o personalismo não pode fundar-se
numa psicologia cientificista, centrada numa orientação analítica e objetivista,
pois a primeira orientação transforma o espírito num instrumento manipulável,
que se compõe e decompõe; e a segunda que impede o afloramento da subjetivi-
dade naquilo que ela tem de específico (SEVERINO, 1983 apud PEIXOTO, 2010).
O autor complementa que, ao mesmo tempo, não pode se comprometer com
a metafísica encerrada num subjetivismo fascinado pelos encantos “das ideias
puras”, pois considera-se que ao afastar-se da história e da experiência concreta
da vida pessoal, “a metafísica estratificou-se nos seus próprios instrumentos ló-
gicos, esquecendo-se da opacidade do ser, sobretudo do ser do homem” (SEVE-
RINO, 1983, apud PEIXOTO, 2010, p.464/465).
A abordagem do ser pessoal exige mais do que o estabelecimento de rela-
ções objetivas e/ou lógicas.
Com relação a fenomenologia, Peixoto relembra que ela surgiu como uma
tentativa de superação da dicotomia entre sujeito e objeto, entre o homem e o
mundo, entre o subjetivo e o objetivo, que foi introduzida pelo racionalismo,
pelo empirismo e pelo positivismo.

capítulo 3 • 103
A crítica da fenomenologia é que o racionalismo afirma que o conhecimen-
to verdadeiro é aquele que advém do sujeito; o empirismo advoga que o conhe-
cimento válido é o que surge do objeto; e o positivismo afirma que o conheci-
mento verdadeiro é o que é objetivo, neutro e empiricamente comprovado.
Nesse sentido, a fenomenologia considera que essa dicotomização é equi-
vocada. Ela afirma que a experiência intencional nos mostra que esses dois
polos são indissociáveis, formam uma unidade, na medida em que fenome-
nologia compreende que toda consciência é consciência de algo, como vimos
anteriormente. Dessa forma ela afirma o caráter de “intencionalidade” da rela-
ção homem-mundo. O mundo não é entendido como o somatório das “coisas”
existentes, nem dos objetos produzidos pelo homem.
O mundo, na perspectiva da fenomenologia,

apresenta um sentido que transparece na interseção das experiências tanto individuais


como coletivas, e na inter-relação que se estabelece entre os diversos lugares desta
mesma experiência. Isto, no entanto, não quer dizer que o mundo seja simplesmente o
seu sentido. É este sentido encarnado na existência (REZENDE, 1990 apud PEIXOTO,
2010, p. 465).

Conforme Peixoto (2010), o mundo de que fala a fenomenologia é o mundo


humano, é o mundo da cultura, produto das relações homem-homem, homem-
-natureza. Considera-se que não há uma razão meta-histórica que define a exis-
tência do mundo, pois afirma-se que essa existência é determinada pela trama
existencial dos homens. Para o autor, a fenomenologia provocou uma profunda
revisão, tanto da concepção do sujeito (consciência) quanto do objeto (mundo).
Peixoto (2010, p. 466) citando Rezende (1990) esclarece que:

Consciência e subjetividade não são percebidas apenas como inteligência, espírito, li-
berdade, nem só corporeidade, determinismo, inconsciente, mas tudo numa constante
relação dialético-existencial. Por sua vez, o mundo não é visto só como matéria, produto,
instituição, condicionamento, mas mundo humano, marcado pela presença do homem
“ao mundo e no-mundo”.

104 • capítulo 3
Peixoto (2010, p. 467) finaliza destacando que Mounier desenvolveu uma
rica reflexão sobre o sentido da existência pessoal.

Sua preocupação foi a de afirmar o caráter absoluto da pessoa, entendendo este como
referência de todas as ações humanas. Procurou apontar a humanização como tarefa
primordial do homem. Para isto, foi fortemente influenciado pelo pensamento fenome-
nológico. Mesmo não tendo feito referências à fenomenologia, é possível perceber que
Mounier encontrou nesta perspectiva filosófica as bases para desenvolver o pensamen-
to personalista.

Com essa citação, concluímos aqui o nosso capitulo sobre a Fenomenolo-


gia de Husserl e o personalismo de Mounier. Esperamos que essa viagem pelo
pensamento desses dois filósofos tenha sido esclarecedora e tenha contribuído
para se pensar nos projetos de atuação dos nossos futuros profissionais de Ser-
viço Social. De qualquer forma, fica exposta aqui a base de uma das concepções
de norteou o debate a respeito da pratica do assistente social no Brasil.

LEITURA COMPLEMENTAR
A Variação Eidética
Por SILVA (2014, s/p)

Segundo Husserl, os objetos do mundo se nos apresentam sob diversas perspectivas (Abs-
chattungen) . Esta cadeira diante de mim pode ser apreendida sob diversas variações de
perfil (Abschattung). Na epoché, o objeto deve ser submetido às diversas variações possíveis
de perfil no intuito de se apreender aessência desse mesmo objeto, isto é, aquilo que per-
manece inalterado no mesmo. Nesse sentido, a redução fenomenológica (epoché) seria uma
maneira de se depurar o fenômeno a fim de se alcançar o objeto com total evidência:
o processo pelo qual podemos chegar a essa consciência consiste em imaginar, a propósito de
um objeto tomado por modelo, todas as variações que ele é suscetível de sofrer... este ‘invarian-
te’ identificado através das diferenças define precisamente a essência dos objetos dessa espé-
cie... Foi esse processo que Husserl chamou de variação eidética (DARTIGUES, 2005, p. 25).
Como a epoché tem como escopo apreender a “essência” do fenômeno, ou seja, seu eidos ,
compreende-se assim que tal método fenomenológico seja denominado de “variação eidética”.
Na variação eidética Husserl estabelece uma distinção entre o objeto percebido e o noema:

capítulo 3 • 105
“o noema é distinto do próprio objeto, que é a coisa; p. ex., o objeto da percepção da árvore
é a árvore, mas o noema dessa percepção é o complexo dos predicados e dos modos de ser
dados pela experiência” (ABBAGNANO, 1998, p. 724). A coisa que se apresenta à minha
consciência não tem a sua existência negada. O que Husserl defende é que a atual percep-
ção que temos de um objeto só se sustenta ante a possibilidade dos diversos perfis sob os
quais esse objeto pode ser apreendido:
(...) a fenomenologia, ao invés de igualar o objeto físico a um suposto fundamento ou substrato,
iguala o objeto físico a todas as suas aparências, as atuais e possíveis. As aparências que estão
sendo apresentadas não indicam uma coisa-em-si fundamental, mas sim possíveis aparências
que não estão sendo apresentadas atualmente, mas que poderiam vir a ser... Husserl chama
essas possíveis.

SILVA, Paulo César Gondim. A fenomenologia de Husserl: uma breve leitura.


Disponível em <http://meuartigo.brasilescola.com/filosofia/a-fenomenologia-husserl-uma-
-breve-leitura.htm > Acesso em 2014.

ATIVIDADE
1.  Leia o texto abaixo:

O homem da multidão
Edgar A. Poe.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela
do Café D. em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca
convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito, no
qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa a sua condição di-
ária. O simples respirar era-me um prazer, e por isso sentia um calmo, mas inquisitivo interesse
por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, diverti-me durante a maior parte
da tarde, ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão,
ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Essa que era uma das artérias principais da cidade, que regurgitava de gente durante o
dia todo. Até que ao aproximar-se o anoitecer a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas
se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele
momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso,
o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita.

106 • capítulo 3
Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na
contemplação da cena exterior.
De início minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os
transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no
entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras
variedades de figuras, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar
apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos
moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, mas sem mos-
trar sinais de impaciência; pois recompunham-se e continuavam, apressados, o seu caminho.
Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enru-
bescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários
em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço,
interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com
um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se
alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes, além do que já observei. Seus
trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida,
nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas — os eupátridas e os lugares-co-
muns da sociedade —, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares,
que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Eles que não excitaram muito a
minha atenção.
Apresente um comentário sobre o texto e relacione com o conteúdo desse capítulo.

REFLEXÃO
Neste capítulo conhecemos dois filósofos que serviram de base para a fundamentação de
umas para vertentes do Serviço Social. Vimos que a fenomenologia de Husserl e o perso-
nalismo de Mounier permite que o assistente social tenha outra forma de abordagem sobre
as pessoas e a comunidades a partir compreensão de suas experiências vividas. Por essa
abordagem procura-se compreender o ser da pessoa, de maneira diferente da estruturação
objetivante da Psicologia e das demais ciências humanas ou da elucidação puramente lógica
da metafísica essencialista.

capítulo 3 • 107
LEITURA
O Que é isto: A Fenomenologia de Husserl?
Trata-se de uma leitura da concepção fenomenológica de Husserl, um exercício de compre-
ensão do alcance do que ele propõe como Filosofia Transcendental. A visada é interrogante e
perplexiva, em momento algum conclusiva. Procura-se pensar com Husserl e não contra ele.
Releva-se, assim, o campo positivo da aquisição da atitude fenomenológica, no sentido do
fundamento de uma ciência do homem e para o homem, na abertura de suas possibilidades
livres e responsavelmente determinadas.

GALEFFI, Dante Augusto. O Que é isto: A Fenomenologia de Husserl? Ideação. Feira de


Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 1998. Dispo-
nivel em < https://pt.scribd.com/doc/4776000/Dicionario-de-Filosofia-Nicola-Abbagnano
> Acesso 2014.

BRANDÃO, Rita de Cássia Camargo. O Serviço Social no Brasil: A reinstrumentaliza-


ção necessária. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Historia, Direito e serviço
Social da UNESP – Campus de Franca, como requisito para a obtenção do título de Doutora
em Serviço Social. Franca: UNESP, 2006.

CUNHA, Ana Maria de Oliveira; OLIVEIRA, Guilherme Saramago de. Breves Considera-
ções a Respeito da Fenomenologia e do Método Fenomenológico. Disponível em
< file:///C:/Users/tutor.ead/Downloads/fenomenologia+e+m%C3%A9todo.pdf > Aces-
so 2014.

DARTIGUES, A. O que é a fenomenologia? São Paulo: Centauro, 2005.

HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre; EDIPUCRS,


2008.

108 • capítulo 3
MARTINS, J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poésis.
São Paulo. Cortez, 1992.

______. Estudos sobre existencialismo, fenomenologia e educação. São Paulo: Moraes, 1983.

MARTINS, J.; BICUDO, M.A.V. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e


recursos básicos. São Paulo: Moraes/Educ. 1989.

MASINI, E. F. S. O enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In: FAZEN-


DA, I. Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989.

PEIXOTO, Adão José. Pessoa, existência e fenomenologia: notas sobre as concep-


ções do personalismo de Emmanuel Mounier. Revista Filosofia. Aurora, Curitiba, v. 22,
n. 31, p. 455-468, jul./dez. 2010

PUCRIO. O personalismo de Emmanuel Mounier: contribuições ao cristia-


nismo. Disponível em < http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/16261/16261_4.PDF >
Acesso 2014.

RANGEL, Juarez Lopes. A Pessoa em Emmanuel Mounier na Obra O Personalismo.


Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão de curso de graduação em
filosofia na Faculdade Arquidiocesana de filosofia. Curitiba, 2004.

SILVA, Paulo César Gondim. A fenomenologia de Husserl: uma breve leitura. Dispo-
nível em <http://meuartigo.brasilescola.com/filosofia/a-fenomenologia-husserl-uma-breve-
-leitura.htm > Acesso em 2014.

TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa


qualitativa em educação: a prática reflexiva. São Paulo: Atlas, 1987. ______. A Pes-
quisa Qualitativa em Educação. São Paulo: Atlas, 2002.

YAZBEK, Maria Carmelita. Os fundamentos históricos e teórico­


metodológicos
do Serviço Social brasileiro na contemporaneidade. http://www.prof.jo-
aodantas.nom.br/materialdidatico/material/2_-_Fundamentos_historicos_e_teo-
ricometodologicos_do_Servico_Social_brasileiro_na_contemporaneidade_.pdf>
Acesso 2014.

capítulo 3 • 109
ZILLES, Urbano. A Fenomenologia Husserliana como Método Radical. In Husserl,
Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia / Edmund Husserl; introdução e tradu-
ção Urbano Zilles. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No próximo capítulo vamos estudar a estudar a epistemologia da ciência contemporânea por
meio de intelectuais como Gaston Bachelar e Thomas Kuhn.

110 • capítulo 3
4
Epistemologia da
Ciência
4  Epistemologia da Ciência
A partir das mudanças no campo científico ocorridas na passagem do século
XIX para o XX, muitas crenças e certezas foram abaladas ocasionando o apare-
cimento de novos questionamentos e a reavaliação dos critérios de verdade e da
validade dos métodos e teorias existentes.
Neste momento, a filosofia da ciência voltou-se para essas questões com a
participação de cientistas de diversos ramos, que produziram reflexões acerca
deste campo e de suas práticas que foram cruciais para o desenvolvimento da
ciência e a mudança de concepção acerca do método científico.

ATENÇÃO
Epistemologia do grego episteme: ciência e logos: teoria. Disciplina que tem as ciências
como objeto de investigação, tentando reagrupar a crítica do conhecimento científico, a filo-
sofia das ciências e a história das ciências (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p.88).

OBJETIVOS
•  Analisar a falsificabilidade de Karl Pooper;
•  Avaliar o chamado Novo Espírito Científico apresentado por Gaston Bachelard;
•  Compreender o conceito de Ciência Normal de Thomas Kuhn;
•  Compreender a Arqueologia das Ciências Humanas de Michel Foucault.

REFLEXÃO
Você se lembra do caso da clonagem da ovelha Dolly? Para que os cientistas conseguissem
realizar todo o processo que culminou com o nascimento de um clone tiveram que submeter
o projeto e todos os procedimentos metodológicos que seriam utilizados a diferentes comi-
tês de ética em pesquisa e, mesmo assim, ainda hoje não se chegou a um consenso quanto
ao conflito ético imposto por tal quebra de paradigmas científicos. O caso Dolly perece que
não foi moralmente aceito pela sociedade e ainda é considerado uma das mais significativas
rupturas de paradgimas.

112 • capítulo 4
Para compreender as transformações que ocorreram nas ciências na passagem do século
XIX para o XX é imperativo entender quer após Descartes, enfim, definir o que historica-
mente foi denominado método científico, o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857)
contribuiu com seu trabalho, e o espaço por ele alcançado, para torná-lo mais abrangente.
Em seu trabalho “Lei dos três estados”, Comte afirma que o conhecimento humano evoluiu
do estado teológico para o metafísico, e este evoluiu para o estado positivo, onde não se
buscam mais as causas das coisas, mas as leis efetivas da natureza. A partir daí, organizou
o conhecimento da natureza, organizadapor classes de fenômenos, em cinco diferentes Ci-
ências: a Astronomia, a Física, a Química, a Filosofia e a Física Social, além da Matemática
que, para o autor, deveria ser considera a “ciência zero”, porque todas as demais partem e
dependem dela. Deste modo, o método científico de Descartes foi, no século XIX, expandido
por Auguste Comte das Ciências Naturais para as Ciências Sociais e Humanas.
Em fins do século XIX e início do XX a concepção filosófica conhecida como Pragmatismo,
defendeu o empirismo no campo da teoria do conhecimento e o utilitarismo no campo da mo-
ral, teve ramificações na política, na educação e na crítica literária, para ser constituir como um
método científico. Essa concepção foi estruturada pelo filósofo e matemático norte-americano
Charles Peirce (1839 – 1914) e também por Willian James (1842 – 1910), John Dewey
(1859 – 1952) e os contemporâneos Richard Rorty, Hilary Putman, Stanley Fish, Nancy Fraser,
Cornel West, Ian Hacking, Richard Poirier e Stanley Cavell (MATTAR, 2008, p.77).
O pragmatismo valoriza a prática mais do que a teoria e considera que devemos dar mais im-
portância às conseqüências e efeitos da ação do que a seus princípios e pressupostos. Para
os pragmatistas, na realidade, a clareza de nossas ideias implica concebermos seus efeitos
práticos, ou seja, sensações e reações associadas com o objeto do pensamento. Assim, o
critério de verdade deve ser encontrado nos efeitos e conseqüências de uma determinada
ideia, em sua eficácia, em seu sucesso (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006).
A estrutura do método científico proposta pelo pragmatismo deveria ser a seguinte: identifi-
car o problema; oferecer uma hipótese explanatória usando meios abdutivos1 ; e verificar a
hipótese contra o problema por meios dedutivos. O que poderia ser sintetizado por meio da
tríade problema – hipótese – teste.
Como desta João Mattar, o pragmatismo seria o método dos outros métodos. Seriam seus
métodos acessórios o raciocínio abdutivo, do qual derivam as hipóteses que são seleciona-

1 A abdução é uma das três formas canónicas de inferência para estabelecer hipóteses científicas. As outras duas são

a indução e a dedução. A abdução foi a noção que Charles Peirce adaptou, usando-a no suposto sentido aristotélico, e

contemporaneamente é utilizada em pesquisas acadêmicas, principalmente na Semiótica e nas Ciências da Comunica-

ção (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006).

capítulo 4 • 113
das para testar o raciocínio dedutivo, pelo qual a certeza do conhecimento é expressa e
pelo qual, também, as hipóteses erradas são eliminadas do conjunto de elucidações; e o ra-
ciocínio indutivo, por meio do qual, especialmente, probabilidades são analisadas e hipóteses
que resistem aos exercícios de eliminação dedutiva são consideradas, para a investigações
posteriores (MATTAR, 2008, p. 78).
Além das discussões apresentadas pelos pragmatistas, o cenário da epistemologia das ciên-
cias era composto também pelo Círculo de Viena. O chamado Círculo de Viena, foi formado
por um grupo de cientistas de diversas áreas do conhecimento como a física e a economia, na
década de 1920, sendo os responsáveis pelo desenvolvimento do chamado neopositivismo.
Os cientistas alocados neste grupo buscavam solucionar problemas relacionados aos funda-
mentos da ciência, levantados a partir do descontentamento com os neokantianos (seguido-
res de Kant) e os fenomenólogos (seguidores de Hegel).
O objetivo do Círculo era desenvolver uma nova filosofia da ciência fundamentada na lógi-
ca de uma ciência empírico-formal da natureza empregando procedimentos lógicos e rigor
científico. Dessa maneira, tentaram formular um critério de cientificidade que pudesse ou
que tivesse uma correspondência com a natureza. Por isso, o Círculo de Viena adotou uma
forma de empirismo indutivista que se valia de um instrumental analítico como a lógica e a
matemática para auxiliar na concepção dos enunciados científicos. Tal critério seria o de ve-
rificabilidade, uma vez que acreditavamque os enunciados científicos deveriam ter uma com-
provação ou verificação baseada na observação ou experimentação. Isto deveria ser feito
indutivamente, ou seja, estabeleciam-se enunciados universais, pois a ciência tem aspiração
de universalidade, a partir da observação de casos particulares.
Deste modo, a indução foi o método utilizado porque, além de proceder experimentalmente, ga-
rantia um caráter de regularidade que permitia que se emitissem juízos universais e atestava o
caráter antimetafísico do Círculo de Viena, bem como reafirmava o procedimento de observação.
O resultado do estabelecimento deste critério surgiu também a partir da influencia da con-
cepção de linguagem de Wittgestein, segundo a qual mundo era composto de “fatos” atômi-
cos associados que expressariam sua realidade. Daí os enunciados gerais poderem ser de-
compostos em enunciados elementares referentes ou congruentes à Natureza, o que exclui
os enunciados metafísicos do processo de conhecimento.
Esta concepção da filosofia da ciência, que agrega a combinação de um formalismo extre-
mado com um empirismo radical, não demoraria a ser contestada e seu projeto colocado em
questão por diversos pensadores, especialmente Karl Popper.
Até meados dos anos 30, a filosofia do Círculo de Viena exerceu uma profunda influência
na cena cultural europeia, todavia, a ascensão do nazismo, a mudança ou morte de alguns
de seus membros, bem como uma série de contradições internas, fez com que o movimento
perdesse prestígio e influencia, mas suas teses, permaneceram em discussão.

114 • capítulo 4
4.1  Karl Popper

Podemos afirmar que na Filosofia da Ciência contemporânea há duas tendências


predominantes que avaliam os procedimentos e fundamentos científicos, a ten-
dência Histórica e a tendência Analítica.Assim como o Círculo de Viena, Popper faz
parte da Tendência Analítica por priorizar os aspectos metodológicos ao analisar o
desenvolvimento científico, o também chamadocontexto de justificação.
Karl Popper (1902 – 1994), austríaco radicado na Inglaterra, físico, matemático
e filósofo da ciência cujas teorias mais influenciaram o curso dos debates sobre
epistemologia das ciências entre as décadas de 1950 e 1970. Popper conquistou
notoriedade ao censurar o critério da verificabilidade, propondo como única pos-
sibilidade para o saber científico, que ele denominou de critério da refutabilidade
ou da falseabilidade.

ATENÇÃO
Karl Popper é considerado por muitos como o filósofo mais influente do século XX a tema-
tizar a ciência. Inicialmente influenciado pelo Círculo de Viena, desenvolveu uma concepção
própria da lógica e da metodologia da ciência. Foi também um filósofo social e político de
estatura considerável, um grande defensor da democracia liberal, do individualismo e um
oponente implacável do totalitarismo.

A Falseabilidade ou mesmo a sua tentativa seria, para Popper, a delimitação


entre o que é científico e o que é metafísico, poético ou mítico, substituindo o
conceito de Verificabilidade articulado pelo Círculo de Viena. O filósofo des-
tacava que este método caracteriza e acentua o aspecto criativo da ciência em
oposição ao modelo da inferência que não atende nenhuma expectativa do su-
jeito que conhece/cientista (MOREIRA, 2011). Na realidade, Popper sustentava
que falseabilidade deveria ser o critério utilizado para a avaliação das teorias
científicas o que garantiria a ideia de progresso científico, uma vez que a mes-
ma ciência que vai sendo aprimorada por fatos novos que a falsificam.
Popper não abandonou ou eliminou a metafísica, mas como Kant, busca-
delimitar os campos de atuação desta e da ciência criticando a maneira de pro-
ceder por indução, pois acreditava que a indução possibilitaria apenas uma se-

capítulo 4 • 115
melhança de regularidade, que, por sua vez, proporcionaria uma coletânea de
fatos, impossibilitando a refutação de uma teoria. Em sua obra Conhecimento
Objetivo, afirma que a indução por repetição não existe (POPPER, 1974). A in-
dução deveria ser abandonada para evitar o irracionalismo e o dogmatismo,
pois não seria possível justificar logicamente a indução, por esta ser sempre
circular, não ultrapassando a comprovação empírica, quando deveria ir o mais
além possível da evidência.
Mas o que exatamente Popper estava criticando?
Criticava o que o filósofo grego Aristóteles apresentava como indução. A in-
dução é um raciocínio que parte de premissas particulares para chegar a uma
conclusão universal, comum. Todavia, não é suficiente que um raciocínio ini-
cie com premissas particulares e termine com uma conclusão universal para
que seja considerado um raciocínio indutivo. É necessário que a verdade apre-
sentada nas premissas sirva como evidência para a verdade da conclusão.
Não é muitofácil determinar com exatidão quando isso ocorre, mas uma
ideia bastante intuitiva é de que o raciocínio indutivo ocorre quando aspremis-
sas expressam algum tipo de repetição. Assim, seo raciocínio for deste modo: o
dado deu três no primeiro lance, logo o dado dará três em qualquer lance, este
raciocínio nãoserá indutivo, embora parta de uma premissa particular e chegue
auma conclusão universal.
Em contrapartida, se existe um raciocínio no qual há um número regular
de premissas que enunciama ocorrência repetida de certo estado de coisas, e
uma conclusão que enuncia que aquele estado de coisas sempre ocorre, então
há indução.
No raciocínio seguinte, por exemplo, tem-se um caso de indução:
O dado deu três no primeiro lance
O dado deu três no segundo lance
O dado deu três no terceiro lance
Logo, o dado dará três em qualquer lance

Popper, como destacamos anteriormente, esclarece que “indução por re-


petição não existe” (POPPER,1974, p.18), pois a doutrina da primazia das re-
petições é falsa, uma vez que a repetição dos resultados suscita a crença na
conclusão, as repetições induzem a expectativas e crenças e não a resultados
plausíveis cientificamente falando.
Os cientistas poderiam, e deveriam, chegar à enunciação de suashipótese

116 • capítulo 4
ou teorias atravésde caminhos vários e inesperados. Entretanto, no entender
de Popper, o caminho da indução por repetição certamente não deveria ser um
deles. Para o autor, por exemplo, Newton não precisou observarreiteradas vezes
que os corpos se atraem com uma força inversamente proporcional ao quadra-
do da distância entre eles para, então, fazer uma inferência e enunciar a lei da
gravitação universal. O argumento popperiano descreve que, em geral, não se
crê que leis estruturais são corretas por que essa crença é induzida pela obser-
vação de relações que se repetem, não se apóia em repetições.
Diante disso, Popper formulou o que podemos chamar de novo método, o
modelo hipotético-dedutivo. Segundo o autor, o seu modelo pressupõe um in-
teresse ou empenho do sujeito em conhecer determinada realidade cujas su-
asreferências já não mais satisfazem. Assim, a mera observação não é conside-
rada, mas sim uma observação intencional, devidamente orientada e seletiva,
com o intuito de elaborar um novo quadro de referências para a compreensão
de uma dada realidade. A partir da seleção do objeto a ser observado, econsta-
tada a insuficiência do quadro de referências, o cientista formula uma hipótese
geral da qual se deduzem consequências que admitem a probabilidade de uma
experiência. Neste ponto, não é mais precisoaveriguar para atribuir significa-
do, isto é, verdade ou falsidade, mas a tentativa é de refutar a teoria que permite
o estabelecimento de um conhecimento e a possibilidade de seu desenvolvi-
mento, é o critério da Falseabilidade.

ATENÇÃO
Popper elabora a noção de falsificação, afirmando que uma teoria deveria ser considerada
“boa” e válida, se seus métodos e teorias possam ser falseados. Quanto mais aberta estiver
a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e conceitos em que se baseava melhor
será uma ciência.

Para Karl Popper, a busca pelo conhecimento não deve ocorrer a partir da
observação de fatos e inferência de enunciados. Para a falseabilidade proposta
por Popper, o método científico processa-se de outro modo, numa tentativa de
provar a falsidade, e não a verdade, das hipóteses de que parte, verificando até
que ponto elas resistem a hipóteses contrárias. A falseabilidade insiste que a
pesquisa científica deve falsificar as teorias estabelecendo a verdade dos enun-
ciados observados que são incompatíveis com elas para que a aceitação de uma
teoria seja sempre provisória e, por outro lado, a rejeição de uma teoria sempre

capítulo 4 • 117
concludente. Grosso modo, podemos dizer que Popper apresenta a substitui-
ção do método indutivo por um método hipotético-dedutivo.
Esse critério, segundo ele, auxiliaria na diferenciação das teorias científicas
dos discursos não científicos, pois uma teoria se mantém verdadeira até que seja
refuta, até que seja demonstrada sua falsidade, seus limites. Assim, Um conceito
para ser considera científico deve ser refutável ou falseável, deve ser desmentido,
deve permitir a possibilidade de sua possível negação pela experiência. As teorias
que não admitem a sua negação pela experiência não seriam, para Popper, cien-
tíficas (BUNGE, 1976).
Podemos concluir que a tematização do método científico avançada por Po-
pper é solidária de uma imagem da ciência que se foi consolidando desde o sé-
culo XVIII e que tende a identificar a cientificidade com a racionalidade – senão
com a racionalidade “no seu todo”, pelos menos com a racionalidade “no seu
melhor”. A falseabilidade aparece como um momento de transição entre uma
visão clássica e uma visão nova de ciência.
Cabe destacar que alguns filósofos da ciência, dentre eles Thomas Kuhn, bus-
caram destacar o absurdo da posição adotada por Popper. Para estes filósofos,
não houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos
científicos. Não houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência
de uma teoria, bastando impor a ela mudanças totais, pois cada vez que novos
fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, essas mudanças não
foram feitas com o objetivo de abandoná-las por uma outra. O papel do fato cien-
tifico não serio o de falsear ou falsificar uma teoria, mas o de provocar o surgi-
mento de uma nova teoria verdadeira.Overdadeiro e não o falso que deveria guiar
o cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre ideia e coisa,
seja entendida como coerência interna das ideias (CHAUÍ, 2006, p. 226).

ATENÇÃO
Método Indutivo (Galileu e Bacon, século XVII): Descoberta de princípios gerais a partir de
conhecimentos particulares (Micro para o Macro);
Método Dedutivo (Descartes, século XVII): Aplicação de princípios gerais a casos particula-
res (Macro para o Micro);
Método Hipotético-Dedutivo (Popper, século XX): A partir das hipóteses formuladas deduz-
se a solução do problema.

118 • capítulo 4
4.2  GastonBachelard

Gaston Bachelard (1884 – 1962) foi um dos principais filósofos do século XX,es-
tendendo sua influência e também suas contradições por vários âmbitos do
pensamento filosófico e não liderar nenhuma escola filosófica.

CONEXÃO
Falsificação X revoluçãohttp://www.ghtc.usp.br/server/Sites-HF/Egont-Schenkel/10_imp.
htm

Bachelard focalizou boa parte do seu trabalho no estudo da filosofia e da


história das ciências, suas teses de doutorado e suas primeiras publicações tra-
tam dessas questões. É considerado por muitos o pai da epistemologia contem-
porânea. Lançou as bases do novo racionalismo ou racionalismo aberto, funda-
mentado na crítica da epistemologia tradicional e na renovação da história das
descobertas científicas. Entretanto, sua vasta obra não se restringe a reflexão
sobre as ciências, inclui escritos sobre a poética dos quarto elementos naturais,
sobre a psicanálise, os símbolos, os sonhos e uma investigação do imaginário
humano. Não foi um filósofo, apesar de um tanto quanto revolucionário, que
fugiu muito ao que seu tempo exigia, como não poderia deixar de ser. Traba-
lhou em oposição ao substancialismo de muitas teorias contemporâneas, em
“A formação do espírito científico” aborda o substancialismo como barreira,
como obstáculo epistemológico.
As obras epistemológicas de Bachelard, como O pluralismo coerente da quí-
mica moderna, 1932; As instituições atomistas, ensaio de classificação, 1933; O
novo espírito científico, 1934; A dialética da duração, 1936; A formação do espíri-
to científico; contribuições para uma psicanálise do conhecimento, 1938;A filoso-
fia do não, 1940, aparecem em um momento em que a filosofia da ciência se
apresentava como concepção antimetafísica e a história. O pensamento de sua
época já tinha como elementos básicos e fundamentação na experiência e a va-
lorização da razão como critério ultimo, não foi, portanto, tão inovador nessa
área. A epistemologia de Bachelard ultrapassa a filosofia da ciência de seu tem-
po justamente por opor-se ao neopositivismo.
Em O Novo Espírito Científico (1934) e A Formação do Espírito Científico (1938)

capítulo 4 • 119
apresenta as consequências epistemológicas provocadas pelas mudanças funda-
mentais da ciência do século XX. A Física relativista de Einstein substituiu a new-
toniana, os esquemas mentais extraídos do mecanismo já não eram válidos. Nes-
te contexto, Bachelard apresenta noção de “corte” ou ruptura epistemological, os
avanços da ciência não requerem uma acumulação, requerem uma ruptura com
os hábitos mentais do passado. Os avanços se produzem vencendo resistências
e prejuízos. Esta noção corresponde aproximadamente ao que Kuhn dirá sobre
as trocas de paradigma. Em alguns momentos a ciência se via obrigada a negar
algo fundamental de sua própria constituição. A teoria da Relatividade e a teoria
quântica, representam algumas das mais claras confirmações da ideia de rup-
tura epistemológica proposta por Bachelard. Tais noções podem parecer pouco
perturbadoras ao primeiro olhar, mas foram capazes de causar uma verdadei-
ra revolução no pensamento epistemológico, a partir do momento que passou
a afirmar que a história da ciência se dava não por evolução, mas por rupturas,
somente as rupturas eram capazes de inquietar o pensamento científico, e o obs-
táculo epistemológico era o que imperrava as inquietações do espírito e impedia
o desenvolvimento de uma mentalidade verdadeiramente científica. Bachelard
afirma que entre o final do século XIX e o início do XX não ocorreu apenas avanço,
mas a instauração de um “novo espírito científico”, pois as ciências foram prati-
camente obrigadas a rever, a reconsiderar seus elementos de base, daí o autor ter
como apoiar suas afirmações.
Seus esforços foram sempre voltados para que o senso comum não penetras-
se o espírito científico, assim, a ciência deveria ir contra a natureza, contra o es-
pírito não científico. Não cansou de afirmar que a “ruptura com o senso comum
trata-se nada mais nada menos que da primazia da reflexão sobre a percepção da
preparação numeral dos fenômenos tecnicamente constituídos” (BACHELARD,
1984 , p. 19). Ao contrário do Popper, Bachelard sustenta que também existe rup-
tura entre senso comum e conhecimento científico. Há ruptura entre o que ele
chama de “conhecimento sensível” e conhecimento científico. As noções e os
conecitos da ciência só existem como tais enquanto se opõem aos conceitos e
noções do conhecimento vulgar, dessa forma, nada mais são do que decorrência
de opiniões e idéias pré-concebidas. A aliada do senso comum é a opinião, para
o autor em questão a opinião não pensa, traduz necessidades de conhecimento.
O obstáculo epistemológico, a ideia que impede e bloqueia outras idéias,
essa inércia, esse verdadeiro dogmatismo, seria superado, destruído, através da
pesquisa realmente envolvente, que eliminaria as pesquisas vagas e estimula-

120 • capítulo 4
ria a união entre experiência e a razão. Segundo Gaston Bachelard, a tradicional
divisão entre teoria e prática ignorava a necessidade desta união, desprezava a
necessidade de incorporar as condições de aplicação na própria essência da te-
oria. Mas não é apenas a destruição do obstáculo epistemológico e a percepção
de que as rupturas conduzem ao melhor encaminhamento do desenvolvimen-
to científico, devemos ter claro que o envolvimento filosófico também contri-
bui para tal.
Na obra A formação do espírito científico, Bachelard apresenta a sua noção de
obstáculo epistemológico e quais seriam os principais entraves ao desenvolvi-
mento do espírito verdadeiramente científico. Segundo ele, o obstáculo episte-
mológico pode ser visto ao analisarmos o desenvolvimento histórico do pensa-
mento científico e a prática educacional, dessa forma, veremos os empecilhos
que apareceram no decorrer do progresso do espírito científico.
O obstáculo mais imediato seria colocado pela experiência primeira, sendo
esta uma base totalmente insegura. As primeiras experiências deveriam ser acei-
tas com outros olhos pelos cientistas mais atentos, assim, o espírito científico
caminharia em um ritmo mais acelerado, visto que perderia menos tempo com
observações infundadas e regras muito gerais. A experiência primeira, as primei-
ras apreensões que fazemos ao estudar nosso objeto de pesquisa são observações
que necessitam de certos aprimoramentos para que a clareza apareça. O que Ba-
chelard chama de “conhecimento de segunda aproximação” prova que as obser-
vações posteriores, mais detalhada e até mesmo mais sérias, demonstram que o
conhecimento se valoriza, que o conhecimento científico se alarga. Na introdu-
ção de sua Psicanálise do fogo também apresenta a questão afirmando que a “a
objetividade científica só é possível se abstrairmos primeiro o objeto imediato, se
recusarmos a sedução da primeira escolha, se travarmos e contrairmos os pensa-
mentos da primeira observação” (BACHELARD, 1972, p. 9)
Devemos compreender o que ainda não havíamos compreendido através de
um novo olhar, mais apurado, apenas esse olhar é que conduziria ao verdadeiro
espírito científico. Para que as primeiras que as primeiras experiências conduzis-
sem rapidamente as observações mais fecundas ao progresso científico, a ciência
deveria ser mais objetiva e essa objetividade teria que ser diretamente aplicada a
um objeto, que não poderia ser confundido com um “objeto imediato”.
O segundo obstáculo seria o que Bachelard denominou de conhecimento
geral. Afirma que a generalização apressada e fácil é muito prejudicial ao de-
senvolvimento do espírito científico. Para que a questão da generalização fosse

capítulo 4 • 121
minimamente resolvida, seria necessário incorporar novas provas experimen-
tais que conseguissem deformar os conceitos primitivos e incorporar as con-
dições de aplicação de um conceito no próprio sentido do conceito. “É nesta
última necessidade que reside, a nosso ver, o caráter dominante do novo ra-
cionalismo, correspondente a uma estreita união da experiência com a razão”
(BACHELARD , 1996, p. 76). A generalização é uma característica do espírito
pré-científico, que não sabe limitar seu objeto e não faz criticas a si mesmo. A
universalização, a generalização conduz fatalmente ao conhecimento vago. De
acordo com Bachelard, o que deve caracterizar o verdadeiro espírito científico é
a limitação de seu campo experimental e não a universalização.
O terceiro entrave do espírito científico é o obstáculo verbal, extensão abu-
siva das imagens usuais. Bachelard utiliza o exemplo da esponja para aludir
a tal obstáculo. Critica basicamente a concentração de certos conhecimentos
objetivos em torno de objetos privilegiados, em torno de instrumentos simples
que trazem a marca do homo faber.
A necessidade apresentada por algumas ciências de elaborar um conhe-
cimento unitário e pragmático é também uma característica do espírito pré-
científico. Essa necessidade leva a resolver todas as dificuldades de acordo com
uma visão geral do mundo, por simples referencia a um princípio geral da natu-
reza. “Para o espírito pré-científico, a unidade é um princípio sempre desejado,
sempre realizado sem esforço”(BACHELARD, 1996, p. 107).
O substancialismo também é apresentado pelo autor como um obstáculo a
ser superado pela ciência, afirma que é quase natural ao espírito pré-científico
condensar em apenas um objeto todos os conhecimentos em que tal objeto de-
sempenha um papel, “sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos”
(BACHELARD, 1996, p. 121) A substancialização pode atrapalhar os futuros pro-
gressos do pensamento científico por permitir explicações breves e peremptó-
rias. A diferença nessa questão entre o espírito pré-científico e o científico é que
propriedadades indiretas para o espírito científico são imediatamentes substan-
tivas para a mentalidade não-científica. Um dos sintomas mais claros da sedução
substancialista e o acúmulo de adjetivos para um mesmo substantivo. Segundo
Bachelard, o fascínio pela substância pode ser buscado até no inconsciente, no
qual se formam as preferências indestrutíveis. “O melhor meio de fugir das dis-
cussões objetivas é entrincheirar-se por trás das substâncias, é atribuir às subs-
tâncias as mais variadas matizes”(BACHELARD, 1996, p. 184).

122 • capítulo 4
A crença de que tudo foi elaborado pela vida carrega um valor indiscutível é en-
carado como um empecilho, como um obstáculo animista, pois aos animismos
generalizados podem passar por filosofias geniais, isso ocorre porque o caráter
físico da vida é confirmado por certas intuições tiradas dos fenômenos físicos e
em alguns estágios do desenvolvimento científico são os fenômenos biológicos
que servem de meio de explicação aos fenômenos físicos, o que não pode signifi-
car que a imagem animista é a mais natural e conveniente à pesquisa científica.
A grande aliada do espírito científico seria a razão, visto que esta tende a
completar-se com a prática, com a experiência. A reflexão racional seria uma es-
pécie de catalisador da ruptura, do corte epistemológico, que levaria a exclusão
das primeiras impressões do objeto a ser estudado. “O racionalismo integral
deveria ser, portanto, um racionalismo dialético que decide qual a estrutura em
que o pensamento se deve integrar para informar uma experiência”(BACHE-
LARD, 1984, p. 116) Vejamos a Relatividade, nasceu de uma reflexão sobre os
conceitos iniciais, de uma contestação das idéias evidentes, a reflexão da idéia
anterior conduziu a uma idéia nova que rompeu com sua anterior. “Com a Re-
latividade, o espírito científico fez-se juiz de seu passado espiritual.”(BACHE-
LARD, 1979, p. 117) Em suma, podemos afirmar que Bachelard defendeu uma
nova concepção do racionalismo, um racionalismo setorial e aberto. Pregou a
necessidade de uma nova razão, dotada de liberdade, análoga à que o surrealis-
mo instaurou na criação artística.
Acreditamos que os cortes epistemológicos, as rupturas apresentadas por Ba-
chelard são formas de racionalização distintas, inovadoras, que pretendem instau-
rar uma nova ordem na pesquisa científica. “O racionalismo pertence a ordem do
recomeço. O racionalismo só tem de considerar o universo com tema de progresso
humano, em termos de progresso de conhecimento” (BACHELARD, 1984, p. 34).
A questão da “problemática” que muito inquietou nosso pensador, foi abor-
dada com muito cuidado. Segundo ele, a “problemática” deve receber atenção
especial dentro da investigação científica, pois é fundamental para o amadureci-
mento do espírito científico. O levantar de questões, a dúvida bem colocada faz
com que as rupturas sejam vistas como necessidade para o avanço das pesquisas,
o sentido e a construção do problema são características peculiares ao verdadeiro
espírito científico. Todo o conhecimento deve ser uma resposta a uma questão,
se não houver questionamento não haverá conhecimento científico. “Em resu-

capítulo 4 • 123
mo, o homem verdadeiramente científico (movido pelo espírito científico) deseja
saber, mas para, imediatamente, melhor questionar” (BACHELARD, 1996, p. 21).

É preciso antes de tudo, saber formular problemas. É precisamente o sentido do pro-


blema que dá marca do verdadeiro espírito científico. Se não houver questão, não pode
haver conhecimento científico. Nada é natural. Nada é dado. Tudo é construído (BA-
CHELARD, 1984, p. 166).

Entretanto, o problema, a questão a ser resolvida deve ser muito bem colo-
cada, é o espírito pré-científico que escolhe grandes problemas e acaba fazen-
do pequenos livros. Para que a problemática encontre a coerência, um método
minimamente adequado precisa ser adotado. Atrelada a questão da problemá-
tica deve estar a metodologia, esta orienta toda e qualquer pesquisa realmente
científica, para Bachelard sem teoria não há ligação entre o ver e o sentir, não há
separação entre o senso comum e o saber científico. O método é necessário para
que a precisão seja alcançada. Na obra “A epistemologia” trabalha claramente
a noção de método científico, afirmando que, apesar de já ter passado o tempo
do Discurso do Método, as regras gerais do método cartesiano são regras óbvias.
Porém, faz questão de deixar claro que os métodos científicos têm um tempo de
vida determinado, podendo durar muito ou pouco. Por outras palavras, o méto-
do científico deve estar sempre em risco, colocando sua própria constituição em
jogo. Assim, podemos notar que a troca, a adoção de novos métodos, também é
importante para o desenvolvimento do espírito científico, as crises profundas do
método ajudam a ciência a se reorganizar. Quanto mais clara for a metodologia
adotada, mais bem definido é o produto científico, a mudança de método é ne-
cessária, a reflexão sobre o método deve continuar sempre ativa. “Um discurso
científico será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma consti-
tuição definitiva do espírito científico.” (BACHELARD, 1976, p. 173)
Bachelard, além das inúmeras contribuições que deixou para o pensamen-
to científico, também desviou sua atenção para o ensino, pois o mesmo como
grande auxiliar no desenvolvimento científico. Segundo José Américo Mota
Pessanha, que faz uma análise da vida e obra em uma coletânea de textos, Ba-
chelard insistira ao longo de suas obras e de seus cursos na tese de que a filoso-
fia das ciências deve ser também uma pedagogia das ciências. Acreditamos que
para Bachelard a escola era um braço de apoio para o desenvolvimento cientí-
fico, auxiliaria na destruição de muitos entraves impostos pelo senso comum.

124 • capítulo 4
É necessário que a cultura científica se integre na escola. “As forças culturais
visam a coerência e a organização dos livros. Existir através do livro já é uma
existência tão humana, tão solidamente humana” (BACHELARD, 1984, p. 148).
Entretanto, a pedagogia com intuito de ampliação do espírito científico deve
sempre ser uma pedagogia de atitudes objetivas para facilitar a assimilação do
conhecimento e tornar a ciência mais social. Em várias de suas obras que con-
sultamos e até na “Psicanálise do fogo”, o autor aborda a tal questão. Desejava
que a pesquisa e o ensino, deixassem a superficialidade de lado, costumava
afirmar que “mais vale a ignorância do que um conhecimento esvaziado de seu
princípio fundamental”(BACHELARD, 1996, p. 50).
Ao propor uma nova posição ao espírito científico, ao exigir que o pesquisador
realmente envolvido com seu estudo distanciado da paixão realize seu trabalho
driblando os obstáculos surgidos dentro do próprio pensamento e não temen-
do as rupturas que por ventura possam surgir, Bachelard nada mais fez do que
propor uma nova filosofia das ciências. Propões como necessária uma nova filo-
sofia, dispersiva, aberta, diferencial e móvel. Para que essa nova filosofia surja, o
filósofo deve penetrar nas práticas científicas e não julgá-las do exterior, deve ser
ele próprio um cientista. Segundo Bachelard, o filósofo da ciência fundaria uma
filosofia científica diferencial que estivesse em harmonia com a filosofia integral
dos filósofos. Assim, Bachelard exige que seja uma filosofia específica para o pen-
samento científico contemporâneo, uma filosofia instruída pela ciência.
Como a proposta de Bachelard é apresentar a dinâmica do desenvolvimento
científico, é essa dinâmica que a história das ciências elaborada por ele deve
necessariamente descrever, utilizando-se dos erros científicos do passado para
comparar e apresentar os progressos alcançados, deve mostrar o próprio de-
senvolvimento do pensamento. Para que a história da ciência funcione é preci-
so uma abordagem que atente sempre para o nível atual da ciência, a consciên-
cia de modernidade e a consciência de historicidade devem ser proporcionais.
O conhecimento que o historiador tem sobre determinadas teorias científicas
é imprescindível para que ele possa estabelecer com segurança o grau de racio-
nalidade que um conhecimento vem alcançando através de diferentes épocas.
Em síntese, a história das ciências proposta por nosso autor, não pode se limi-
tar a assumir um caráter meramente empírico, narrando fatos, mas seu propó-

capítulo 4 • 125
sito principal será a compreensão do progresso do espírito científico.

Bachelard inaugura uma atitude de cunho anti-positivista, anti-formalista. A sua im-


portância está justamente em lançar uma nova atitude, mostrar uma nova concepção
de ciência. Baseou-se nas crises do início do século XX, a crise da relatividade, do
determinismo, da teoria dos conjuntos, para apoiar suas informações sobre as noções
de obstáculo epistemológico e ruptura. O seu contributo fundamental foi constatar e
analisar os obstáculos epistemológicos existentes no interior do pensamento científico
que o impediam de caminhar. Assim, é preciso lembrar que a obra bachelardiana é uma
reestruturação incessante, sempre um questionar do pensamento que o precede.

4.3  Thomas Kuhn

O norte-americano Thomas Samuel Kuhn iniciou sua carreira acadêmica como


físico e voltou-se, posteriormente para o estudo da história das ciências. Ob-
jetivando transmitir aos seus alunos uma visão de como as teorias científicas
surgiram no passado, suas concepções básicas sobre a natureza da ciência e
de seu sucesso começaram a mudar. Kuhn se deu conta de que a concepção de
ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se
desenvolve ao longo do tempo.

ATENÇÃO
O filósofo e físico norte-americano Thomas Kuhn elaborou sua teoria sobre a história da ci-
ência compreendendo-a não como um processo unidimensional e evolutivo, mas como uma
sucessão de paradigmas que se confrontam entre si. Os paradigmas seriam as normas e
tradições dentro dos quais as ciências se movem, durante um determinado período e em
certo contexto sociocultural.

Quando foi convidado a passar um ano entre cientistas sociais, no Center


for Advanced Studies in the Behavioral Sciences pode concluir um de seus mais
importantes conceitos, o chamado paradigma. Para isso analisou que o núme-
ro de desacordos expressos entre os cientistas sociais no que se refere à nature-

126 • capítulo 4
za dos métodos e dos problemas científicos evocaram-lhe controvérsias sobre
o fundamento de diferentes ciências.
Em 1962, Thomas Kuhn publica a sua principal obra, A Estrutura das Revoluções
Científicas, onde defende a sua concepção da dinâmica da ciência e destaca que as
questões de filosofia da ciência, tal como eram avaliadas até então, não considera-
vam seus aspectos históricos. Esse trabalho exerceu uma influência decisiva nos
rumos da filosofia da ciência.
Em A Estrutura das Revoluções Científicas, desenvolveu os conceitos de para-
digma e de ciência normal. O paradigma seria um mapa ou um roteiro de uma
determinada ciência, fornecendo critérios para a seleção de seus problemas e
das propostas para as soluções desses problemas. O que ele chamou de ciência
normal buscaria solucionar os problemas científicos com os com os conceitos,
pressupostos metodológicos e instrumentais que são compartilhados pela co-
munidade cientifica, o conjunto de cientistas que constroem uma determina-
da ciência, e que constituem o paradigma.
Para Kuhn alguns conceitos tidos como fundamentais por gerações de fi-
lósofos não poderiam ser sustentados após serem submetidos a uma análise
historiográfica, uma vez que seriam duramente desarticulados. A história da
ciência o seguinte percurso: atividades desorganizadas, ciência normal, época
de crise, ciência extraordinária, revolução científica e, por fim, um novo perío-
do de ciência normal e o conseqüente reinício cíclico do mesmo percurso.

CONEXÃO
http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/structure-sintese.htm

Durante o período em que predomina a chamada ciência normal, a ativi-


dade exercida pelos cientistas está dirigida para a articulação dos fenômenos
e teorias fornecidas por um determinando paradigma. Esse paradigma é, ba-
sicamente, um conjunto de suposições teóricas e realizações exemplares que
guiam a atividade científica, impondo-lhe modelos, padrões e também limi-
tes. A pesquisa científica ao fomentar leis, teorias, explicações e aplicações cria
sempre modelos que estruturam as tradições científicas e, para Kuhn, os para-
digmas são exatamente as realizações cientificas integralmente reconhecidas
que, durante algum tempo, fornece problemas e soluções para uma comunida-
de de praticantes de uma ciência (Kuhn, 2007, p.13).

capítulo 4 • 127
A educação de um cientista normal é desenvolvida principalmente com
base em manuais. A rigidez de suas crenças é comparável, dentre aos empre-
endimentos teóricos, talvez, somente à teologia. Conforme destaca Kuhn, o
cientista em períodos de ciência normal está preocupado com três apenas com
três de problemas, a determinação do fato significativo, a harmonização dos
fatos com a teoria e articulação da teoria (Kuhn, 2007). Os cientistas partidários
de uma determinada tradição da ciência normal têm como atividade normal
ou ordinária a resolução de enigmas. Para encontrar as respostas necessárias,
se detêm em problemas com soluções asseguradas, enigmas cujas soluções já
possuem um caminho determinado.
Todavia, muitas vezes na busca por respostas através da chamada atividade
ordinária, os cientistas encontram comportamentos da natureza que não se en-
caixam nas orientações apresentadas e oferecidas pelo paradigma em vigor. Es-
ses comportamentos “desconhecidos” são chamados por Kuhn de anomalias.
Essas anomalias, quando não solucionadas pelo paradigma vigente e geram in-
segurança dentre os cientistas e são desastrosas, pois iniciam uma crise dentro
do paradigma vigente por revelarem a sua fraqueza ou incapacidade.
Com a constatação da incapacidade de um determinado paradigma inicia-
se o que Kuhn chama de estado de crise, estado este que pode acabar se o para-
digma conseguir solucionar ou ignoram os problemas colocados, ou, ainda, se
emergir um novo candidato a paradigma. A elaboração de um novo candidato
a paradigma vigente inaugura também um novo período o período de atividade
da chamada ciência extraordinária. Neste período as atividades dos cientistas
centralizam-se na habilitação de um novo paradigma.
Os cientistas utilizariam durante o período da ciência extraordinária, todos
os seus recursos metodológicos e também conceituais para fortalecer e favore-
cer o velho ou o novo paradigma, o que Kuhn denomina de diálogo de surdos
(KUHN, 2007). Porém, apenas a solução dos problemas colocados no momento
de crise e fatores de natureza sociocultural são capazes de fazer com que um
novo conjunto de teorias, ou seja, que um novo paradigma conquiste espaço
dentro da comunidade científica.
Assim, Kuhn esclarece que apesar de parecer cumulativo, o progresso cien-
tífico ocorre na verdade nos momentos de crise, que impõem aos cientistas ver-
dadeiras revoluções a partir da busca de soluções divergentes as apresentadas
pelo paradigma em vigor. O motor das ciências, portanto, seria a constante dis-
puta entre modelos explicativos, entre teorias e concepções, segundo o autor o

128 • capítulo 4
desenvolvimento da científico caracteriza-se pela contínua competição entre
diversas concepções de natureza distintas (Kuhn, 2007, p.22).
Assim, o desenvolvimento e o progresso do conhecimento ocorrem quando o
paradigma vigente não consegue mais fornecer respostas e instrumentos para a ci-
ência e a comunidade científica que a estrutura, ocasionando uma crise, que pode
originar uma revolução científica, concluindo que os enunciados científicos são
sempre provisórios e que a ciência não opera por verdades irrefutáveis, mas pela
instabilidade de seus paradigmas.

CONEXÃO
Progresso científico e incomensurabilidade em Thomas Kuhn http://www.scielo.br/pdf/ss/
v5n2/a02v5n2

4.4  Michel Foucault

A densidade do trabalho de Foucault faz com que dissertar sobre a sua obra
transforme-se em uma empreita difícil, justamente porque muito já foi escrito
sobre ele e sobre seu pensamento, muitas polêmicas já foram criadas e desfei-
tas, outras permanecem. Michel Foucault (1926 – 1984) pode, sem dúvida, ser
considerado um dos mias influentes intelectuais franceses contemporâneos.
Inicialmente influenciado pelo estruturalismo 1, desenvolveu um pensamen-
to próprio, com hipóteses ousadas, análise inovadora, contestador e extrema-
mente original e criativo. A obra de Foucault teve grande importância nos anos
70 e 80, influenciando diferentes vertentes, inclusive no Brasil, a partir da me-
todologia que propôs, a arqueologia e a genealogia.
A filosofia elaborada por Foucault apresentadauma crítica ao indivíduo, dono
de seu saber e de seu fazer, questiona a ideia de verdade única e acabada, questio-
na as práticas que permitem definir o que são as coisas e situar o uso das palavras.

ATENÇÃO
1 Estruturalismo: doutrina filosófica que considera a noção de estrutura essencial como conceito teórico e meto-

dológico. Concepção metodológica que tem como procedimento a determinação e a análise de estruturas (JAPIAS-

SÚ; MARCONDES, 2006, p. 96).

capítulo 4 • 129
O filósofo e historiador Michel Foucault forma, ao lado de Louis Althusser, Pierre Bourdieu,
Jean Paul Sartre, Edgard Morin entre outros, o grupo dos pensadores franceses mais signi-
ficativos na história do pensamento contemporâneo. A obra legada por Foucault ultrapassa o
campo da filosofia e influenciando as mais distintas áreas do conhecimento como a sociolo-
gia, a antropologia, a linguística, a psicanálise, a história, a educação e, o direito.

Partindo do conceito de episteme, que classifica como uma rede de signi-


ficados que influencia e caracteriza uma determinada época nos diversos do-
mínios da sociedade, empreendeu uma significativa análise epistemológica
do surgimento das ciências humanas e de seu papel na cultura ocidental, bem
como uma crítica a noção tradicional de sujeito.
Foucault (1999) destaca, que a episteme moderna opera uma ruptura na his-
tória do pensamento ocidental, caracterizado anteriormente pelo saber dos clás-
sicos. Para entender as diferentes configurações dos saberes clássico e moderno,
e a ruptura entre eles, Foucault utiliza o processo da análise arqueológica, focali-
zando múltiplas transformações no espaço do saber e inferindo sobre a criação
de novas formas de racionalidade (MOTTA, 2005).
Para o intelectual francês, a episteme clássica é caracterizada pela represen-
tação e a moderna marcada pela dupla experiência do homem como sujeito e ob-
jeto do saber. O saber clássico está situado numa dimensão na qual existem seres
e coisas organizados e classificados de acordo com as semelhanças e diferenças.
Deste modo, a episteme dos séculos XVII e XVIII tem como característica mar-
cante a classificação e ordenação das representações, sendo que representar sig-
nifica comparar as estruturas visíveis das coisas da natureza e relacioná-las por
meio de um princípio ordenador.
Entre os séculos XIX e XX organizou-se outra positividade distinta da clássica.
Foucault (1999) considera que, apesar de se poder reconhecero homem no clas-
sicismo, essa ordem não se configura com umaconsciência epistemológica do
homem como fundamento e objeto. Com a modernidade que o homem como
ser, como objeto desse novo saber, foi vinculado aos aspectos que o constituem
como homem. Neste momento, o homem apontado por Foucault nasce na bio-
logia, na economia política e na filologia e é pensado como um objeto a ser des-
coberto e desvendado, como um objeto que tem um corpo físico com estrutura
e funcionamento que devem ser explorados. A linguagem fará parte dessa busca
por entenderqual homem é esse, que se constitui também pela fala. Enquanto

130 • capítulo 4
um serque trabalha, as condições que circulam nesse espaço serão pensadas co-
moconstitutivas dele próprio.

ATENÇÃO
Segundo Foucault, o homem, saiu da inércia objetiva do cartesianismo que até então os
mantinha. Dentro desse ínterim e respetivamente ao aparecimento do homem na esfera do
saber, ocorreu um movimento no sentido do Outro do homem, o qual é denominado por Fou-
cault de o impensado

Em sua importante obra As palavras e as coisas (1966), reconhecendo a influ-


ência de Nietzsche, Foucault elabora uma arqueologia do pensamento, mostrando
o que faz com que as ciências humanas, contemporaneamente, tornarem-se pos-
síveis. Discute, nesta obra de caráter metodológico, a arqueologia como método
de análise crítica do discurso. Crítica, porém, não no sentido de partir de um ideal
de conhecimento e de verdade, mas enquanto método adequado para explicar os
elementos subentendidos em um determinado saber e de examinar seus efeitos e
consequências, implicações e aplicações práticas (MARCONDES, 2007, p.277).
No Capítulo X da referida obra, intitulado “As ciências humanas”, o pen-
sador mostra o processo de formação destas. A organização, ou nascimen-
to das ciências humanas como profere o autor francês, ocorreu no momento
sociocultural em que o homem enquanto sujeito homem surgiu no plano do
pensamento, todavia, não como privilégio das ciências humanas. As ciências
humanas por ter o homem como objeto não as distingue dos demais saberes,
mas sim a maneira como tais ciências tematizam o homem, ocupando um novo
lugar que se situa entre a distância que separa o empírico e o transcendental
Segundo Foucault, as ciências humanas não podem ser compreendidas
como as responsáveis pela simples análise do que o homem é por natureza,
mas como as responsáveis pela análise do que há entre o que o homem é, ser
que vive, trabalha, fala, e o que o permite saber o que é a vida, qual a essência do
trabalho e como pode falar (1987, p. 488). O homem, como elemento das ciên-
cias humanas, está ligado à biologia, à filologia e à economia.
Assim, Foucaut apresenta o homem como sujeito que está inserido e como
sujeito que elabora o conhecimento de si mesmo, transpondo métodos e concei-
tos das ciências empíricas e dedutivas, e num movimento transcendental, pen-
sando em si como objeto do conhecimento por meio das reflexões filosóficas.
O autor enfatiza que quatro segmentos teóricos estabeleceram, através do

capítulo 4 • 131
pensamento filosófico, uma nova forma de apreensão do homem, que servi-
riam como alicerce, juntamente com as disciplinas empíricas, para a constitui-
ção das ciências humanas. Trata-se da finitude do homem, do homem como
duplo-empírico-transcendental, da relação entre o cogito moderno e o impen-
sado e, finalmente, do distanciamento e do retorno da origem do ser.
Cabe destacar que, Foucault não supervaloriza uma cientificidade matema-
tizada, ao defender que as ciências humanas surgem como discursos científi-
cos na modernidade, a partir das ciências empíricas e da filosofia.Partindo-se
da ideia do homem como coisa empírica e objeto de um saber filosófico, esta-
belecendo sua premissa do a priori histórico e o homem passa a ser considera-
do como representação.
Abandonando o idealismo as ciências humanas e voltam-se ao concreto, ao
real,considerando nele a organização abstrata, da profundidade, ou seja,inau-
gura um método, um saber, completamente diferente da tradição da constitui-
ção do saber clássico. Acontece, então, o que Foucault chama de ruptura com a
história natural.
A partir de então não seria mais necessário classificar “seres da natureza”
a partir apenas dos critérios estabelecidos ao nível da visibilidade e da repre-
sentação, mas relacionar o visível com o invisível (FOUCAULT, 1987, p. 130).
Seria a transformação do saber superficial em um conhecimento que capaz de
penetrar verticalmente no domínio das coisas. Percebe-se aí o método arque-
ológico proposto por Michel Foucault cujo objeto é a epistemologia, ou seja, o
conhecimento e a história dos saberes.
O método arqueológico é definido pelo autor como uma forma de análise que
não seria propriamente histórica e nem epistemológica, mas a descrição do arquivo.
Sendo o arquivo o conjunto de discursos efetivamente pronunciados, ou seja, jogos
de regras que determinam numa cultura o aparecimento e o desaparecimento dos
enunciados, sua permanência e sua extinção, sua existência paradoxal de aconteci-
mentos e coisas (FOUCAULT, 1987).
A arqueologia traz consigo o sentido de escavação do passado que Foucault deter-
mina em dois sentidos: o que se refere ao tema da origem, a busca pelo “início”, ou
melhor, pelas transformações dos saberes; e o que está relacionado à escavação pro-
priamente dita, mas esta última não quer dizer a busca por algo secreto, escondido,
o que o pensador pretende é dar visibilidade ao que já está dito e se encontra invisível
por alocar-se na superfície dos discursos.
O método arqueológico elaborado por Foucault, possibilita analisar as redes

132 • capítulo 4
de relações entre o discurso e outros domínios, que são as instituições, acon¬te-
cimentos políticos, práticas e processos econômicos (GREGOLIN, 2004). Deste
modo, a arqueologia constitui-se, segundo o próprio filósofo, como uma teoria
para uma história do saber empírico, já que essas ciên¬cias têm grande profusão
na sociedade e na história dos homens.
Ao se interrogar sobre como os discursos e práticas se relacionam, surgem e se
transformam, Foucault pretende, na verdade, questionar a cultura e a sociedade so-
bre o nascimento de sua história, impondo a esta os limites da própria cultura, das
con¬dições de produção, “vai em busca da estru¬turação dos saberes, das epistemes
que fun¬cionam como o solo de possibilidade para os saberes que coexistem em um
certo momento histórico” (GREGOLIN, 2004)
Segundo Foucault, sua arqueologia não é uma história do conheci¬mento,
e sim dos movimentos de uma experiência. A história da loucura, por exemplo,
é a história da experiência da loucura, das noções, instituições, conceitos e prá-
ticas fundados nessa experiência, que se constitui além do próprio saber sobre
ela. Em seu livro sobre a história da loucura, o autor recons¬titui o arquivo de
enunciados efetivamente pronunciados sobre o que é a loucura, o que é ser lou-
co, concluindo que as práticas discursivas da atua¬lidade (psicologia, psiquia-
tria, psicanálise, arte) narram o louco não mais como o desatinado, o insensato
e sim como o alienado. A arqueologia de Foucault pretende elucidar o fato de
que as ciên¬cias humanas se constituem pela articulação com um conjunto de
discur¬sos que possibilitaram sua insurgência. Sua temática é a autotematiza-
ção do homem, enquanto objeto e sujeito da ciência, no contexto da historici-
zação da cultura ocidental (GREGOLIN, 2004).
O homem é o centro da experiência da modernidade, os discursos científicos
e artísticos têm o homem como elemento central de seus saberes. O saber sobre
o homem não é um privilégio das ciências humanas. Foucault desconstrói, por-
tanto, a ideia de causalidade da história tradicional, mostrando ser possível haver
ruptura entre duas epistemes, entre dois pen¬samentos, deixando de lado a ideia
de continuidade histórica como uma linha sem falhas ou interrupções.
O método de análise proposto por Foucault se pretende crítico de maneira
diferente do que podemos verificar ao analisarmos a filosofia de Kant ou da
Escola de Frankfurt, uma vez que busca explicar o implícito e demonstrar as
relações entre os saberes e as formas de e exercer o poderem nossa cultura até
então não detectados. Seu trabalho, portanto, pode ser definido como história
das ideias ou da cultura, como ele mesmo reconhece, do que como vinculado à

capítulo 4 • 133
filosofia em seu sentido mais tradicional por envolver um conhecimento mais
profundo de história, uma análise documental, e uma pesquisa de campo, que
comumente não pertencem à metodologia filosófica. Esse tipo de análise se ca-
racteriza exatamente por sua interdisciplinaridade e por romper com os limites
das disciplinas e áreas do saber.

ATIVIDADE
1. Caracterize o que se entende atualmente por ciência.

2. Em que sentido podemos dizer, juntamente com Gaston Bachelard, que a física newto-
niana constituiu um obstáculo epistemológico para os cientistas?

3. Explique os conceitos de paradigma e revolução científica em Thomas Kuhn.

REFLEXÃO
Observamos ao longo deste capítulo que a análise epistemológica contemporânea tem con-
duzido à compreensão do fazer científico como um procedimento que aceita falhas, erros.
Esse questionamento tem relativizado o conhecimento científico com relação aos outros
tipos de conhecimento e colocado luz sobre o processo de conhecer, que independe da
atividade lógica.

LEITURA
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas.São Paulo: Perspectiva,2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. A Epistemologia. Lisboa: Edições 70, 1984._______________. A filosofia
do não;

O novo espírito científico; A poética do espaço. Seleção de textos de José Américo

134 • capítulo 4
Motta Pessanha. São Paulo: Abril cultural, 1979.

A formação do espírito científico. Contribuição para uma psicanálise do conmhecimen-


to. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

Filosofia do novo espírito científico. A filosofia do não. Lisboa: Editorial Presença,


1972.

BUNGE, Mário. La Investigación Científica. Barcelona: Ariel, 1976.

CASTAÑON, Gustavo. Introdução à Epistemologia. São Paulo: Ed. E.P.U., 2007

CHAUÍ, M. Para Compreender a Ciência. Ed. Ática. São Paulo, 2006

ERIBOM, D. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


editor, 1996.

FELÍCIO, V.L.G. A imaginação simbólica nos quatro elementos bachelardianos.


São Paulo: Edusp, 1994.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense. Universitária,


1987.

As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciênciashumanas. 8.ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1999.

GREGOLIN, M. R. V. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subje-


tividade. São Carlos: Claraluz, 2004.

JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4ª ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas.São Paulo: Perspectiva,2007.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgens-

capítulo 4 • 135
tein. Rio de Ja¬neiro: Jorge Zahar, 2007.

MOREIRA, Marco Antônio. Epistemologia do Século XX. Ed. E.P.U. São Paulo, 2011

MOTTA, M. B. da. Apresentação. In: FOUCAULT, Michel Arqueologia das ciências e his-
tória dos sistemas de pensamento —. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense.Universitária, 2005.

POPPER, Karl. Conocimiento Objetivo: un enfoque evolucionista. Madrid: Editorial Tec-


nos, 1974.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No último capítulo de nosso livro vamos analisar a influência do movimento estruturalista na So-
ciologia ao longo do século XX com destaque à Teoria da estruturação de Giddens, à Teoria da
prática de Bourdieu e ao conceito de ação comunicativa de Habermas.

136 • capítulo 4
5
A sociologia de
Bourdieu, Giddens e
Habermas
5  A sociologia de Bourdieu,
Giddens e Habermas

Ao longo do século XX, a Escola Estruturalista, fundamentada nos conceitos lin-


guísticos de Saussure, ocupou grande parte da cena intelectual francesa. Seus
autores influenciaram a Filosofia, a Sociologia, a Psicanálise, a Psicologia, dentre
outras disciplinas das Ciências Humanas. Os estruturalistas questionavam, de
forma geral, se a realidade concreta e seus conteúdos seriam apenas uma “pelí-
cula” determinada por raízes universais. A realidade poderia ser comparada a um
prédio que, caso fossem retirados seus acabamentos – azulejos, pisos, adereços
–, estaria reduzido aos seus mais importantes elementos – estruturas e vigas – e
sem os quais não é possível sua manutenção. Aplicando-se este raciocínio às cul-
turas, para o antropólogo francês Lévi-Strauss, nas sociedades intituladas “pri-
mitivas”, as relações de parentesco, aliança, reciprocidade, etc., embora fossem
aparentemente diferentes entre cada grupo étnico, seriam determinadas por có-
digos e fatores universais. O conceito de estrutura e seus derivados, aos poucos,
foi alvo de críticas por parte de intelectuais do pensamento francês e anglo-saxão,
dentre eles, Derrida. Seriam as estruturas despidas de qualquer aspecto históri-
co? Qual a lógica interna à manutenção do conceito de estrutura? Embora Derri-
da, dentre outros autores, não componham uma escola de pensamento à parte,
o conceito de desconstrução e as críticas dirigidas ao Estruturalismo, levaram
estes acadêmicos a serem designados “pós-estruturalistas”.
Adiante, você estudará as principais ideias destes movimentos!

OBJETIVOS
•  Apreender as ideias gerais da Escola Estruturalista.
•  Conhecer os princípios fundamentais da Teoria da estruturação de Giddens.
•  Apreender os princípios gerais da Teoria da prática de Bourdieu.
•  Refletir sobre o conceito de ação comunicativa de Habermas.
•  Compreender as críticas de Derrida ao Estruturalismo.

138 • capítulo 5
REFLEXÃO
Você alguma vez ouviu falar do papel dos signos na formação do nosso pensamento e da
nossa linguagem? Um bebê, por exemplo, apenas depois do primeiro ano começa a bal-
buciar suas primeiras palavras e após ter aprendido a apontar para as coisas que deseja.
Aos poucos, ele aprende como dizer a palavra bola, mãe, pai, casa, dentre outras. Qual o
papel da estrutura na formação da linguagem? Trata-se do que você estudará a seguir!

5.1  Contendas do século XX: estruturalismo e pós-estruturalismo

O estruturalismo nasce com a publicação do livro “Curso de linguística geral”


de F. Saussure, em 1916. No entanto, coube à Antropologia, em particular à
Claude Lévi-Strauss, com a publicação das obras “As estruturas elementares do
parentesco”, em 1952, e “Antropologia estrutural”, em 1958, utilizar em pro-
fundidade seus pressupostos teóricos que, aos poucos, difundiram-se na Psi-
canálise, com os trabalhos de Lacan; na Teoria Literária, por meio da obra de
Barthes e, no campo da Filosofia, em 1966, com a publicação de “As palavras e
as coisas” escrito por Foucault (ARRUDA, 2007).
Enquanto movimento originado na linguística, o estruturalismo procurou
evidenciar de que modo conceitos e métodos desta disciplina podem ser uti-
lizados em diversas questões discutidas pelas Ciências humanas e sociais. A
linguística estrutural tem como conceito fundante a diferença entre langue
(língua) e parole (fala) (GIDDENS, 1999).

A distinção afasta o estudo da “língua” da esfera do contingente e do contextual. Na


qualidade de forma estrutural ampla, a língua deve ser isolada dos usos múltiplos dos
atos particulares de fala. Parole é o que Saussure chama de “lado executivo da língua”,
ao passo que langue é “um sistema de signos onde o elemento essencial único é a
união de significados com imagens acústicas” (Saussure, 1974). Portanto, a língua é
um sistema idealizado, inferido dos usos particulares da fala, mas independente deles.
Os conteúdos sonoros da língua são, de certa maneira, irrelevantes para análise da
langue, porque o que importa são as relações formais entre os sons, ou marcas, e não
sua substância real (GIDDENS, 1999, p. 283).

capítulo 5 • 139
Para Saussure, segundo Dosse (2007), “um signo não tira sua significação
de sua relação com o objeto que ele representa, mas de sua oposição aos outros
signos” (p. 12). Desta forma, a língua seria “um sistema fechado de formas em
mútua oposição e não um conjunto de conteúdos, de noções ou significações”
(p. 12). Ainda conforme o referido autor, transpondo esta ideia para as Ciências
Humanas, caberia a elas, a rigor, investigar os sistemas formais e suas relações,
retirando as substâncias e seus conteúdos. Sendo a língua um fenômeno social
cujas normas independem do sujeito, as Ciências Humanas deveriam pautar
suas análises nos determinismos sociais visando a excluir qualquer forma de
percepção consciente do indivíduo. Os estruturalistas tinham como intenção
perscrutar “um nível de realidade que não é imediatamente visível” (p. 12),
postulando o inconsciente como instância da verdade. Esta posição é clara,
por exemplo, na Antropologia, cujo interesse se volta mais ao código da mensa-
gem do que ao seu conteúdo; ou na Psicanálise, quando postula o inconsciente
como resultado da linguagem (DOSSE, 2007).
A Antropologia Estrutural, proposta por Lévi-Strauss, é um claro exemplo
de aplicação dos princípios estruturalistas na análise das sociedades “ditas”
primitivas. Lévi-Strauss demonstrou que as estruturas das referidas sociedades
fundamentam-se segundo o princípio da equivalência que possibilita a circu-
lação de determinados elementos de modo a organizar as relações sociais. Por
exemplo, a circulação de mulheres, formalizada pelo sistema de aliança – casa-
mento –, constitui o parentesco em variadas sociedades etnicamente diferen-
tes e, portanto, com distintos costumes (CHAUÍ, 2006). Ou seja, ainda que cada
sociedade primitiva tenha um modo específico de organizar o parentesco e o
próprio ritual de aliança (grosso modo, “casamento”), os vínculos de descen-
dência, consanguinidade e aliança fundamentam-se no princípio estrutural da
“troca de mulheres” baseado na proibição do incesto.

140 • capítulo 5
Em outras palavras, o que seria estrutura? Para Chauí (2006), “a concepção estrutu-
ralista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de
sistemas que criam seus próprios elementos dando a eles sentido pela posição e pela
função que ocupam no todo. As estruturas são totalidades organizadas segundo princí-
pios internos ou que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu
modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica.
Nelas, o todo não é a soma das partes nem um conjunto de relações causais entre
elementos isoláveis, mas um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma
estrutura é uma totalidade dotada de sentido” (p. 229-230).

Em síntese, o estruturalismo fundamenta-se nos princípios descritos a se-


guir: (1) Prioridade dada ao sistema: o procedimento estruturalista prioriza o
sistema, a sincronia e a lógica formal em detrimento da particularidade, da
diacronia, da história e do conteúdo; (2) Separação do sistema em relação ao
empírico: as estruturas representam formas que se preservam independente
de conteúdos específicos que as concretizam; (3) Recusa da natureza e origem
do sentido: o sentido é formado estruturalmente, isto é, concebido de forma
relacional à linguagem; o significado de uma expressão depende das relações
de diferença, proximidade e oposição estabelecidas por esta em relação à proxi-
midade ou distinção de outras expressões da língua; (4) Diminuição da impor-
tância dada ao sujeito: as estruturas são impostas ao homem e comandam suas
ações e comportamentos de modo inconsciente. As motivações e justificativas
atribuídas pelo indivíduo e pelas forças sociais aos seus costumes, usos e ações
são apenas superficiais, visto que a lógica das estruturas inconscientes deter-
mina nossas condutas; (5) Corte epistemológico: o sujeito deve ser objetivado,
isto é, as causalidades que atribui a si próprio devem ser relegadas em busca da
estrutura subjacente aos seus motivos (HOTTOIS, 2008).

capítulo 5 • 141
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo francês, pioneiro na aplicação dos prin-
cípios estruturalistas na Antropologia, realizou uma parte de seu trabalho de campo com
grupos indígenas, no Brasil, na década de 1930.
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b8/Levi-strauss_260.jpg

Os filósofos franceses, deparando-se com a tradição e com o conservadoris-


mo das humanidades clássicas, procuraram institucionalizar o estruturalismo
junto ao Collège de France. No entanto, no início da década de 1980, muitos dos
seus autores haviam falecido e, com isso, suas obras são “esquecidas”. Não se
trata de um luto, diante de ideias tão ricas e prolíficas, mas, sobretudo, de no-
vas proposições e configurações aglutinadas no chamado “Pós-estruturalismo”
(DOSSE, 2007). De fato, desde fins da década de 1960, os próprios propositores
do estruturalismo, em face às críticas recebidas, revisaram determinadas con-
cepções, ainda que tenham mantido os fundamentos básicos da escola. Com a
publicação de “Gramatologia” (1973) e “A escritura e a diferença” (1974), obras
de Jacques Derrida, inaugura-se o período da “desconstrução” (ARRUDA, 2007).
De acordo com Salih (2012), embora o termo “pós-estruturalismo” seja bastan-
te contestado, pensadores associados a este “movimento” criticam as bases da
metafísica ocidental, “ao questionar e dissolver as oposições binárias, colocando
em evidência o seu caráter idealista e mostrando o quanto elas dependem de um
centro ou de uma presença essencial” (p. 34).

142 • capítulo 5
5.2  Contendas sociológicas e psicológicas:
indivíduo versus sociedade?

Durante o século XX e ainda hoje no século XXI, as Ciências Humanas e, em


particular, a Sociologia, a Psicologia e a Psicanálise discutiram de que forma os
elementos da sociedade influenciam a constituição do indivíduo e vice-versa.
Autores como Giddens e Bourdieu, por exemplo, no bojo do Estruturalismo e
de outras correntes teóricas, como a Sociologia de Marx e Weber, depararam-se
com esta questão e tinham como norte rompê-la, isto é, tornar esta dicotomia
estéril. Para tanto, propuseram um sofisticado programa teórico e empírico
capaz de explicar como aspectos subjetivos e objetivos da constituição social
estão emaranhados, ou seja, de que forma o agente social ao atuar na sociedade
pode, simultaneamente, ser constrangido por suas forças e transformá-las em
determinados contextos. Estas temáticas serão discutidas ao longo do presente
capítulo. Antes de apresentar as propostas de Giddens e de Bourdieu, convém
explicitar de que forma outros autores estão enfrentando o infindável ou findá-
vel debate: indivíduo versus sociedade.
Gaulejac (2004/2005) propõe que as fronteiras disciplinares, sobretudo
entre Psicologia e Sociologia, sejam revistas, a fim de perscrutar os processos
sociopsíquicos que fundamentam a existência do indivíduo, sua subjetivida-
de, identidade e “suas maneiras de ser no mundo” (p. 68). Ao considerar que o
social e o psíquico entrelaçam-se de modo complexo, o autor intenta discutir
tais questões e propõe uma “sociologia do indivíduo” que deveria “analisar a
dialética permanente entre os diferentes processos de construção do indiví-
duo, suas influências recíprocas, suas complementaridades e suas oposições”
(p. 68). Para esse pesquisador, a relação entre indivíduo e sociedade pauta-se na
historicidade, na inscrição em um passado e na projeção em um futuro diferen-
te do presente. Dessa forma, o sujeito não seria redutível à capacidade de con-
tar sua história (narratividade), como também seria capaz de inventar outras
veredas para si (reflexividade), transformando o mundo em que vive e, assim,
sua própria existência, argumentos também presentes nas formulações de Gi-
ddens (2002), apesar de Gaulejac não citá-lo.
A “questão do sujeito” norteia-se na confluência de quatro universos teóricos,
que aludem a diversos campos disciplinares, devendo-se apontar suas concordân-
cias e oposições. Em síntese, a subjetividade envolveria: (a) “o universo cognitivo da
reflexividade”, ligado à capacidade do indivíduo em pensar, nomear e relacionar-se

capítulo 5 • 143
com o mundo; (b) “o universo da lei, das regras, das normas” em que o sujeito con-
fronta-se com as leis, valores e códigos prescritos; (c) “o universo do inconsciente,
das pulsões, das fantasias”, em que o sujeito se vê diante de seu desejo e do desejo
do outro; (d) “o universo da sociedade, cultura, economia, instituições” que reme-
tem às relações sociais e posições de classe, demarcando a natureza sócio-histórica
do indivíduo (GAULEJAC, 2004/2005). Conforme esse autor: “se o indivíduo é pro-
duto de uma história, esta condensa, de uma parte, o conjunto dos fatores sociais
e históricos que intervêm no processo de socialização e, de outra, o conjunto dos
fatores intrapsíquicos que determinam sua personalidade” (p. 70).
Adiante, serão apresentadas as proposições de Anthony Giddens a respeito
da estruturação da sociedade.

5.3  A teoria da estruturação de Anthony Giddens

Anthony Giddens, nascido em 1938, sociólogo inglês, propositor da “Teoria da


estruturação”, é um dos pensadores mais influentes da teoria social contem-
porânea. Suas proposições debatem com as principais escolas sociológicas do
século XX, dentre elas, o funcionalismo e o estruturalismo, e tendem a superar
a “velha” dicotomia subjetividade versus objetividade.

Anthony Giddens (1938), sociólogo inglês, um dos pioneiros da terceira via, conceito utili-
zado no campo da política.
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/05/Anthony_Giddens_at_the_Pro-
gressive_Governance_Converence%2C_Budapest%2C_Hungary%2C_2004_October.jpg

144 • capítulo 5
Para Giddens (1989), a teoria social tem como tarefa primordial “a elucida-
ção de processos concretos da vida social” (p. XIV) e, embora o debate com fi-
lósofos possa auxiliar neste intento, a sociologia deve oferecer conceituações
sobre a atividade social humana que se prestem ao trabalho empírico. Neste
sentido, as proposições de Giddens, embora tributárias a correntes sociológi-
cas como o Funcionalismo, o Estruturalismo e a Hermenêutica, objetivam “pôr
fim” à contenda que de um lado dá primazia ao sujeito (Hermenêutica) e de
outro dá primazia ao objeto social (Funcionalismo e Estruturalismo).
De acordo com Giddens (1989), no senso comum, a expressão “sociedade”
designa dois significados principais, um relacionado aos membros componen-
tes da “alta sociedade”, outro relacionado à “conotação generalizada de inte-
ração ou ‘associação social’; [além da] noção de que ‘uma sociedade’ constitui
uma unidade, com fronteiras que a distinguem de outras que a circundam” (p.
134). O fato é que as totalidades sociais muitas vezes não apresentam frontei-
ras concretamente demarcadas ainda que estejam localizadas em determinado
espaço geográfico (GIDDENS, 1989). Por exemplo, em um shopping center na
cidade de São Paulo, por mais que a maior parte dos consumidores sejam bra-
sileiros, o tipo de serviço ou produto comprado depende não apenas da renda,
mas também do gosto e dos recursos culturais de cada um que, por sua vez, são
fruto do padrão material e de consumo da camada social a que pertencem. Des-
te modo, é impossível afirmar que a sociedade brasileira é homogeneamente
formada em termos de classe social.

Todas as sociedades são sistemas sociais e, ao mesmo tempo, constituídas pela in-
terseção de múltiplos sistemas sociais. Estes podem ser totalmente “internos” às so-
ciedades ou transpor as linhas divisórias entre o “interior” e o “exterior”, formando uma
diversidade de possíveis modos de conexão entre totalidades sociais e sistemas inter-
sociais [...]. Em suma, as “sociedades” são, pois, sistemas sociais que “se destacam” em
baixo-relevo de um fundo constituído por toda uma série de outras relações sistêmicas,
nas quais elas estão inseridas (GIDDENS, 1989, p. 134-135).

A sociedade é composta por uma série de instituições identificáveis, por


exemplo, no caso da sociedade contemporânea, pode-se mencionar: a família,
a escola, a mídia, as religiões, dentre outras. Giddens (1989) detalha quais ca-
racterísticas, além das supracitadas, compõem-na: (1) “Uma associação entre o

capítulo 5 • 145
sistema social e um local ou território específico. Os locais ocupados por socie-
dades não são necessariamente áreas fixas. As sociedades nômades erram em
percursos tempo-espaço” (p. 135); (2) “A existência de elementos normativos
que envolvem a pretensão de legítima ocupação do local. Os modos e estilos de
tais pretensões de legitimidade podem, é claro, ser de muitos tipos” (p. 135); “A
preponderância, entre os membros da sociedade, de sentimentos de que pos-
suem alguma identidade comum, como quer que esta se expresse ou se revele”
(p. 135). Destaca-se que o termo “sistema social” não significa apenas um con-
junto de relações sociais cujos limites são claramente percebidos, visto que o
nível de sistematicidade é bastante variável.
Na teoria da estruturação, a estrutura compõe os sistemas sociais, pois se
manifesta nas ações humanas reproduzidas e repetidas em determinada di-
mensão espaço-temporal. Os sistemas sociais estão formatados verticalmente
e horizontalmente no interior da sociedade, sendo também compostos por um
conjunto de instituições articuladas cujas divisões de poder assimétricas ba-
seiam variadas repreensões normativas que podem ser infligidas àqueles que
não cumprem certas regras e normas.
O centro da Teoria da estruturação fundamenta-se nos seguintes conceitos:
“estrutura”, “sistema” e “dualidade de estrutura”. Ao tratar do conceito de estru-
tura, Giddens (1989) visa romper com a ideia de que esta representa um elemento
externo que constrange a ação do sujeito, espécie de fonte que inibe sua livre ini-
ciativa, conforme proposto pelo Funcionalismo e, concomitantemente, objetiva
romper com o legado estruturalista segundo o qual o referido conceito possibili-
ta analisar os códigos latentes presentes nas expressões concretas da realidade.

Assim, a estrutura refere-se, em análise social, às propriedades de estruturação que


permitem a “delimitação” de tempo-espaço em sistemas sociais, às propriedades que
possibilitam a existência de práticas sociais discernivelmente semelhantes por dimen-
sões variáveis de tempo e de espaço, e lhes emprestam uma forma “sistêmica”. Di-
zer que estrutura é uma “ordem virtual” de relações transformadoras significa que os
sistemas sociais, como práticas sociais reproduzidas, não têm “estruturas”, mas antes
exibem “propriedades estruturais”, e que a estrutura só existe, como presença espaço-
-temporal, em suas exemplificações em tais práticas e como traços mnêmicos orien-
tando a conduta de agentes humanos dotados de capacidade cognoscitiva (GIDDENS,
1989, p. 13-14).

146 • capítulo 5
Adiante, na mesma obra, Giddens (1989) define estrutura não apenas como
as normas relacionadas à produção e reprodução dos sistemas sociais, mas, so-
bretudo, como os recursos que garantem a existência das instituições. Os siste-
mas sociais onde a estrutura está implicada dizem respeito às ações dos atores
sociais repetidas no tempo e no espaço. Para estudar a estruturação dos siste-
mas sociais, é importante analisar como estes, baseados nas ações conscientes
de agentes sociais, são reproduzidos e produzidos ao longo das interações so-
ciais. A dualidade da estrutura refere-se ao fato de que as características dos
sistemas sociais são concomitantemente o instrumento e o fim das práticas
organizadas estruturalmente. “Estrutura não deve ser equiparada à restrição, à
coerção, mas é sempre, simultaneamente, restritiva e facilitadora” (p. 20).
A seguir, apresentam-se estas definições conforme propostas por Giddens
(1989). Estrutura: “regras e recursos, ou conjunto de relações de transformação,
organizados como propriedades de sistemas sociais” (p. 20); Sistema: “Relações
reproduzidas entre atores ou coletividades, organizadas como práticas sociais re-
gulares” (p. 20); Estruturação: “Condições governando a continuidade ou trans-
mutação de estruturas e, portanto, a reprodução de sistemas sociais” (p. 20).
Segundo Cohen (1999), Gi-
ddens dá grande relevância às
ações humanas consistentemen-
te repetidas e reproduzidas em
determinado sistema social, pois
propõe uma “teoria institucional
da vida cotidiana”. Por institui-
ções entenda-se as “práticas ro-
tinizadas que são executadas ou
reconhecidas pela maioria dos
membros de uma coletividade” (p. 427). As ações humanas rotineiras incluem
desde a coordenação dos ritmos mensurada pelo relógio e pelo calendário, a uti-
lização do dinheiro, até rituais políticos, convenções sociais, etc.
Para a teoria da estruturação, as práticas sociais rotineiramente reproduzi-
das pelos agentes são reguladas por estruturas que acabam por coordenar, por
exemplo, o horário do almoço.
Para Giddens (1989), as práticas sociais são organizadas reflexivamente de-
vido à capacidade dos agentes sociais de monitorar suas ações, pois são seres
intencionais, capazes de justificar discursivamente suas atividades. Neste senti-
do, os atores sociais não apenas “controlam e regulam continuamente o fluxo de

capítulo 5 • 147
suas atividades e esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas
também monitoram rotineiramente aspectos, sociais e físicos, dos contextos em
que se movem” (p. 4). De acordo com o autor, mesmo as formas mais simples de
pensamento expressam a capacidade cognitiva dos agentes sociais, pois esta se
fundamenta antes de tudo mais na consciência prática do que na consciência
discursiva. A cognição manifesta-se, por exemplo, no conhecimento das regras
sociais e na percepção de si mesmo. Este pressuposto contrapõe-se ao princípio
estruturalista de que os sujeitos desconhecem as razões de sua ação e que estas
devem ser buscadas em fenômenos por eles ignorados. Deste modo, para teoria
da estruturação, quando os atores sociais agem, reproduzem as circunstâncias
que possibilitaram esta ação. No plano da consciência discursiva, os agentes so-
ciais “sabem o que estão fazendo” (p. 21), embora nos demais planos descritivos,
por exemplo, no nível científico, eles não sejam capazes de explicar suas ações.
No entanto, a capacidade cognitiva dos agentes sociais é limitada, visto que o de-
correr das variadas ações acarreta consequências não previsíveis, isto é, que ini-
cialmente não constavam nas intenções dos indivíduos.

O domínio básico de estudo das ciências sociais, de acordo com a teoria da estrutura-
ção, não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de tota-
lidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo. As atividades
sociais humanas, à semelhança de alguns itens autorreprodutores na natureza, são
recursivas. Quer dizer, elas não são criadas por atores sociais, mas continuamente re-
criadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam como atores.
Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem as condições que tornam
possíveis essas atividades (GIDDENS, 1989, p. 2).

Para Giddens (2002), modificações no plano da vida íntima e pessoal estão


diretamente relacionadas às transformações sociais, dado o caráter reflexivo das
instituições modernas, isto é, a permeabilidade de grande parte da atividade so-
cial e das práticas sociais à mudança de acordo com novos conhecimentos ou no-
vas informações difundidas pelos sistemas especializados (tecnologia e conhe-
cimento científico). Os sistemas especializados não se restringem à tecnologia,
visto que se disseminam em torno das relações sociais e da intimidade do eu. “O
médico, o analista e o terapeuta são tão importantes para os sistemas especializa-
dos da modernidade quanto o cientista, o técnico ou o engenheiro” (p. 24).

148 • capítulo 5
Ainda segundo Giddens (2002), o caráter reflexivo da modernidade afeta as
instituições modernas, suas práticas e concomitantemente modifica a própria
constituição subjetiva, por exemplo, se no mundo pré-moderno as transições ge-
racionais eram marcadas pelos ritos de passagem e a identidade era claramente
determinada por este tipo de ordem; atualmente, o “eu” constrói-se e é explorado
como parte do processo reflexivo sendo instado a continuamente “construir/re-
construir um sentido de identidade coerente e satisfatório” (p. 74). A modernida-
de viola “o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituin-
do-as por organizações muito maiores e impessoais” (p. 38) em que a influência
da família, por exemplo, não determina integralmente as escolhas pessoais (por
exemplo, quando e com quem casar, em que lugar viver, a quantidade de filhos e
como educá-los).

CONEXÃO
De que forma o Serviço Social tem lidado com as transformações da sociedade contem-
porânea, em particular, com os efeitos da globalização? Quais os desafios e as demandas
colocadas aos assistentes sociais diante da modernidade? Partindo da literatura sociológica,
dentre elas, das proposições de Giddens a respeito da sociedade de risco, Ramalho (2012)
discute estas implicações para o Serviço Social enquanto profissão e teoria aplicada.
Artigo disponível no link: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n110/a07n110.pdf

Conforme se pode apreender do exposto, as proposições de Giddens objeti-


vam romper com a contenda subjetivismo versus objetivismo, reiteradamente
presente nas teorias sociológicas e psicológicas ao longo do século XX. Além
disto, o autor busca conciliar conceitualmente de que modo as condutas huma-
nas rotineiramente reproduzidas, desde as mais prosaicas até as mais comple-
xas, compõem-se estruturalmente com base em regras e recursos de sistemas
institucionalizados e, concomitantemente, são reflexivamente percebidas com
base em esquemas cognitivos.

capítulo 5 • 149
5.4  A Teoria da Prática de Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, é autor de vasta e monumental


obra em que analisa desde a alta costura francesa até os costumes dos povos
berberes, na Cabília, região montanhosa localizada no norte da Argélia, passan-
do pela formação dos gostos, conforme a divisão por grupos sociais, na França,
e pelo papel conservador da escola quando esta se pauta nas prerrogativas da
educação familiar “burguesa” para avaliar seus alunos. Além disto, Bourdieu
causou polêmica quando, em meados da década de 1990, publicou “A domina-
ção masculina”, obra em que analisa o papel da virilidade na formação e inci-
tação à masculinidade, contrapondo-se, parcialmente, a algumas consagradas
feministas. No final de sua vida, Bourdieu teve uma atuação política intensa na
França ao difundir críticas veementes ao programa neoliberal.
No Brasil, a obra deste sociólogo é citada, principalmente, na área da Educa-
ção e na própria Sociologia. Embora seja um autor consagrado em nosso país,
seus conceitos ainda hoje são constantemente criticados por serem considera-
dos “difíceis” ou por darem, à primeira vista, a impressão de que os agentes so-
ciais não detêm qualquer margem de manobra para superação das limitações
sociais que os constrangem, crítica controversa quando se analisa a fundo as
propriedades do habitus. A teoria de Bourdieu tem sido bastante estudada por
sociólogos da família, da educação, dentre outros profissionais.

Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, um dos intelectuais mais importantes da


segunda metade do século XX.
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c1/Pierre_Bourdieu.jpg

150 • capítulo 5
Segundo Peters (2013), o arcabouço teórico metodológico proposto por
Bourdieu objetivava superar a oposição subjetivismo versus objetivismo por
meio da integração dos recursos analíticos dispostos por ambas vertentes.
Para Peters, Bourdieu elaborou uma teoria fundamentada na prática cujo fun-
damento é dialética entre as “condutas individuais propelidas por disposições
socialmente adquiridas e reunidas em um habitus, de um lado, e estruturas ob-
jetivas ou ‘campos’ de relações entre agentes diferencialmente posicionados e
empoderados, de outro” (p. 47).
Bourdieu, de forma geral, objetivava analisar a intrincada relação entre as
dimensões subjetivas e objetivas da vida social com base na articulação entre
dois conceitos específicos: campo e habitus (PETERS, 2013). Segundo Bourdieu
(2006), a teoria geral dos campos “permite descrever e definir a forma específica
de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais
(capital, investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionis-
mos, a começar pelo economicismo” (p. 69). Segundo o referido sociólogo, para
análise dos campos, é fundamental compreender a crença que o sustenta, isto
é, “o jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em
jogo que nele se geram, é explicar [...] os atos dos produtores e as obras por eles
produzidas” (p. 69).
De acordo com Peters (2013), campo refere-se aos espaços objetivos de relações
entre agentes sociais localizados diferencialmente conforme os capitais simbóli-
cos e materiais que detêm em determinado espaço social. Por meio do conjunto
de capitais coligidos, cada agente social ocupará diferentes posições num campo
específico, o que lhes possibilita gozar de maior ou menor prestígio social.

capítulo 5 • 151
fino requintado
magro leve
boi
cru grelhado peixe
frutas

rico
saudável forte-gorduroso-salgado
rebuscado natural-adoçado especiarias
exótico laticínios vinhos-álcoois

Cap. Cult. + suco de fruta aperitivos Cap. Cult. –


Cap. Eco – compostas confeitaria Cap. Eco +
Tempo livre – congelado Tempo livre +–
Estatuto + Estatuto +
cons. alim. – cons. alim. –
cons. cult. + cons. cult. –

salsicharia
carne de porco
pot au feu
pão
salgado – gorduroso – pesado – forte – cozido
em fogo lento – barato – nutritivo

Cap. Cult. –
Cap. Eco –
Tempo livre +–
Estatuto –

A figura descreve o campo do consumo alimentar conforme pesquisa realizada por


Bourdieu sobre o gosto alimentar de diferentes grupos sociais franceses. Observe que a
predileção por alimentos requintados manifesta-se entre aqueles que detêm maior capital
econômico e cultural.
Fonte: Bourdieu (2007, p. 178)

152 • capítulo 5
Neste sentido, vale mencionar o conceito de habitus como instrumento para
compreensão do processo socializador e de construção das identidades sociais.
Trata-se de uma noção cunhada por Bourdieu a partir de referências à Filosofia
(Aristóteles) e à Sociologia (Durkheim), sendo aplicado nos estudos do pesquisa-
dor em diferentes campos empíricos (DUBAR, 2005). Ao criá-lo, e em relação com
sua teoria da prática, o autor busca a articulação entre estrutura e prática, já que
enquanto matriz de referências culturais, o habitus é fruto das condições sociais
de existência ao mesmo tempo em que opera como estrutura incorporada, dotada
de práticas, disposições e esquemas de percepção que dão sentido ao mundo e às
ações do agente social.
A seguir, apresentam-se duas formulações de Bourdieu sobre o conceito em
questão, a primeira na obra “A distinção: crítica social do julgamento” (2007), em
que discute a constituição do gosto e estilo de vida na sociedade francesa conforme
sua divisão por classe. A segunda, no artigo “Futuro de classe e causalidade do prová-
vel” (1998a), onde analisa o papel da família e da escola na reprodução social, além
de outras estratégias que as classes e suas frações utilizam para manter ou aumentar
seu patrimônio econômico e cultural.

Necessidade incorporada, convertida em disposição geradora de práticas sensatas e


de percepções capazes de fornecer sentido às práticas engendradas dessa forma, o
habitus, enquanto disposição geral e transponível, realiza uma aplicação sistemática e
universal, estendida para além dos limites do que foi diretamente adquirido, da neces-
sidade inerente às condições sociais de aprendizagem (BOURDIEU, 2007, p. 163).
Princípio gerador de estratégias objetivas, como sequências de práticas estruturadas
que são orientadas por referência a funções objetivas, o habitus encerra a solução dos
paradoxos do sentido objetivo sem intenção subjetiva, entre outras razões porque – a
própria palavra diz – ele propõe explicitamente a questão de sua própria gênese cole-
tiva e individual [...] as práticas que o habitus engendra e que são comandadas pelas
condições passadas da produção de seu princípio gerador já estão previamente adap-
tadas às condições objetivas todas as vezes em que as condições nas quais o habitus
funciona tenham permanecido idênticas (ou semelhantes) às condições nas quais ele
se constituiu (BOURDIEU, 1998a, p. 84, grifo do autor).

capítulo 5 • 153
Como se nota em ambos os trechos, o habitus constitui-se objetiva e subje-
tivamente, ao estruturar práticas e representações do agente social, orientando
sua aplicação nas diversas situações do mundo social. Bourdieu propõe a ho-
mologia entre origem e aplicação do habitus, que apesar de deter certa plastici-
dade entendida como sua adaptação aos campos sociais, como argumenta Set-
ton (2002), também carrega as marcas da origem social em que foi construído,
restringindo as expectativas do agente àquilo que é historicamente alcançado
e forjado por sua classe.
Para Peters (2013), o conceito de habitus diz respeito aos recursos simbólicos
“subjetivamente internalizados” capazes de originar e organizar as ações práti-
cas dos agentes sociais, “esquemas que tomam a forma de disposições mentais
e corporais, isto é, modos potenciais socialmente adquiridos e tacitamente ati-
vados de agir, pensar, sentir, perceber, interpretar, classificar e avaliar” (p. 48).
Ao analisar esse conceito no conjunto da obra do autor, Butler (1999) afirma que
habitus refere-se aos rituais cotidianos a partir dos quais uma determinada cultura
produz e sustenta a crença de sua própria obviedade, ao compor-se por uma série
de disposições que inclinam o sujeito a agir em certa direção, não determinando
casualmente sua ação diante da conjuntura de um campo social específico. Práti-
cas pressupõem crenças, que por sua vez são geradas pelo habitus, especificamen-
te pelas disposições que o compõem.
Em contrapartida a essa caracterização aparentemente subjetivista do concei-
to, Bourdieu irá afirmar que o campo limita e “instrui” as práticas em uma direção
objetiva. Butler (1999a) aponta também que o habitus é constituído continuamen-
te, o que dá margem para o fortalecimento da “crença na realidade” de um campo
social em que ele opera. As convenções sociais avivam/vitalizam os corpos, que por
sua vez, as reproduzem e ritualizam em práticas. O habitus não é apenas instância
de reprodução da crença da realidade de determinado campo, mas também origi-
na disposições que inclinam o sujeito a agir em relativa conformidade às deman-
das objetivas do campo.
A mutualidade subjetiva/objetiva do habitus é também analisada por Du-
bar (2005), para quem Bourdieu especifica “a um só tempo o mecanismo de
interiorização das condições objetivas e o mecanismo de exteriorização das
disposições subjetivas” (p. 90), ou seja, por meio dele o agente social compõe
determinadas práticas e representações de seu universo social, que constituem
sua subjetividade, via incorporação das condições objetivas de sua posição no
espaço social, leia-se, a estrutura, distribuição e hierarquia dos diversos capi-
tais de acordo com os campos de atuação.

154 • capítulo 5
Assim, o habitus é fruto das condições objetivas incorporadas (posição e traje-
tória social do grupo em que o sujeito é socializado), como também das práticas
que levam a consequências “objetivas” (pertencimento à posição de um grupo). O
habitus é definido como incorporação de uma posição social (alta/ média/ baixa)
em um determinado campo social, que por sua vez reflete a percepção do campo
social operada pelo sujeito, ao orientar e organizar suas expectativas em relação às
práticas, o que redunda na tendência em perpetuar sua própria condição, em res-
tringir subjetivamente suas possibilidades futuras ao que é esperado de seu grupo
social, embora trajetórias alternativas sejam possíveis. A reprodução de determi-
nada posição social, assim como sua percepção subjetiva, confere ao habitus o ca-
ráter de “identidade social” “definida como identificação a uma posição (relativa)
permanente e às disposições que lhes são associadas” (DUBAR, 2005, p. 91). Assim,
de acordo com esse pesquisador, tal formulação possibilita garantir a constância
das identidades individuais concomitante à reprodução das estruturas sociais.
Partindo dessa problemática, Bourdieu estuda o papel de instituições sociais,
como a família e a escola, na reprodução social, isto é, na constituição dos habi-
tus dos imaturos e jovens, a partir da difusão de códigos específicos, que possi-
bilitam a orientação de suas práticas e representações, de acordo com a posição
ocupada por sua família no espaço social. A partir das disposições incorporadas
pelo habitus, em certa posição social, a criança incorpora e detém determinado
conjunto de capitais, que devem ser compreendidos como “o conjunto de pro-
priedades atuantes” capazes de garantir a seus agentes poder sobre determinado
campo (BOURDIEU, 2006).
O capital econômico define-se pelo patrimônio material/financeiro da fa-
mília, já o capital social diz respeito às relações que o sujeito estabelece com
pessoas que gozam de prestígio, permitindo acentuar os ganhos decorrentes
da posse do capital econômico e cultural (BOURDIEU, 1998a). O capital cultu-
ral refere-se à incorporação dos códigos capazes de tornar inteligível a cultura
legítima, por meio da educação familiar; em seu “estado institucionalizado”,
compreende a obtenção do diploma escolar, que permite receber rendimentos
condizentes a esse no mercado de trabalho (BOURDIEU, 1998b, 1998c).

capítulo 5 • 155
O incentivo à frequência de museus, teatros, cinemas, etc., depende do gosto estético e
dos costumes da família em que criança é educada, ou seja, do montante de capital cultural
detido pela geração, segundo Bourdieu

A difusão dos capitais entre gerações se dá a partir do habitus compartilhado


por aqueles que ocupam certa posição social, fruto da interiorização das estrutu-
ras sociais (BOURDIEU, 1983). Dessa forma, a família é instituição fundamental
na reprodução social, visto que por meio da transmissão dos diversos tipos de ca-
pitais (econômico, cultural, social) aos filhos, a ordem social é mantida, já que o
montante e a forma dos capitais instrumentam os agentes que os detêm a ocupar
determinada posição no espaço social, compartilhada entre aqueles que estão
sujeitos a condicionamentos semelhantes (BOURDIEU, 2006).

CONEXÃO
Para conhecer mais a respeito do conceito de capital cultural e seus efeitos na educação
familiar e formal, assista ao vídeo “Capital cultural”. Nesta obra, didaticamente, exemplifica-se
como o montante de capital cultural apreendido pelo aluno influencia os métodos emprega-
dos na avaliação escolar, por exemplo. Nestes termos, a escola, longe de ser instituição de-
mocrática, acaba por conservar as diferenças de classe e cultura e seus imperativos. Acesse
o link: https://www.youtube.com/watch?v=a3eO6-D4nHo

A reprodução social se traduz nas estratégias, práticas que as famílias


empregam com vistas a manter ou elevar sua posição no espaço social e que
permitem a perpetuação do grupo. Dentre elas, podem-se citar as estratégias

156 • capítulo 5
matrimoniais, educativas, de sucessão, de fecundidade, havendo diferenças
qualitativas no modo como cada fração de classe as emprega, conforme garan-
te sua manutenção ou ascensão no espaço das posições sociais (BOURDIEU,
1998a). Cabe ressaltar que as estratégias educativas incluem o investimento na
escolarização dos filhos e na educação familiar, qual seja a transmissão paulati-
na dos meios de apreensão dos bens legítimos, ou seja, dos códigos simbólicos
e linguísticos capazes de decifrar a cultura legítima (BOURDIEU, 1983).
Conforme se apreende do exposto, embora inicialmente o paradigma estru-
turalista marque as primeiras pesquisas de Bourdieu, em particular o trabalho
de campo realizado na Argélia, aos poucos, partindo deste enfoque, Bourdieu
deparou-se com seus limites e passou a conceber recursos teóricos próprios.
Cumpria o autor a intenção de investigar as estratégias e práticas sociais coti-
dianas de modo a ultrapassar as estruturas simbólicas inconscientes típicas da
Antropologia de Lévi-Strauss (PETERS, 2013).

A articulação entre agência e estrutura delineada na praxiologia relacional de Bourdieu


é infensa ao postulado de que as condutas dos agentes humanos podem ser direta-
mente deduzidas de estímulos exteriores instantâneos derivados de seus ambientes
de atuação, dado o papel fundamental do habitus, como repositório sedimentado de in-
fluências societárias passadas, na configuração de ações no presente, repositório que,
como tal, possui uma autonomia relativa vis-à-vis as coações externas imediatamente
vigentes em um determinado contexto de comportamento social (p. 54).

Em síntese, a obra de Bourdieu intenta “fugir” dos reducionismos objeti-


vistas ou subjetivistas típicos das abordagens sociológicas e psicológicas do sé-
culo XX. Para isto, o sociólogo francês propõe dois conceitos, habitus e campo,
dentre outros, aplicáveis diretamente à pesquisa empírica. O campo pode ser
concebido como espaço em que diferentes agentes ou grupos sociais “jogam”
suas peças conforme a quantidade e a qualidade dos capitais (econômico, cul-
tural, social) que detêm. Do conjunto de capitais disponíveis para cada classe
social, em determinado campo específico, seus integrantes gozarão de maior
poder e de maiores prerrogativas ou não. Por outro lado, este “jogo” de forças,
institui-se com base no habitus, espécie de “guia” prático das ações humanas
que “alimenta” em cada agente social um conjunto de representações e refe-
renciais específicos provenientes de seu pertencimento de classe e geracional.

capítulo 5 • 157
O conceito de campo proposto Bourdieu presta-se, por exemplo, à análise das lutas
travadas entre intelectuais no âmbito acadêmico. As bases do conhecimento não se
fundam apenas em uma epistemologia, mas também em uma sociologia capaz de in-
vestigar as disputas travadas no campo da produção do saber. Para tanto, é preciso
analisar as estratégias empregadas pelos acadêmicos e pelas instituições universitárias
no palco da disputa por recursos e prestígio. Neste sentido, é importante avaliar qual
o montante de capital cultural, escolar e social disposto pelos intelectuais de determi-
nadas disciplinas científicas e o grau de prestígio e reconhecimento acarretado por
estes. Para Bourdieu (2006) “construir um objeto cientifico é, antes mais e, sobretudo,
romper com o senso comum, quer dizer, com as representações partilhadas por todos,
quer se trate dos simples lugares-comuns da existência vulgar, quer se trate das repre-
sentações oficiais, frequentemente inscritas nas instituições, logo, ao mesmo tempo, na
objetividade das organizações sociais e nos cérebros” (p. 34).
Por exemplo, no campo da saúde, os médicos, por gozarem de reconhecimento social,
têm força política para regulamentar práticas de saúde realizadas por enfermeiros, psi-
cólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, etc., posição que desagrada estes profissionais
que lutam por maior independência em sua atuação. O projeto de lei do Ato médico e
as lutas simbólicas e políticas travadas em seu entorno ao longo da década de 2010 é
um claro exemplo das condições desiguais de poder e prestígio auferidas pelos capitais
incorporados por cada profissão.

5.5  Jürgen Habermas e o papel da ação comunicativa

Jürgen Habermas, sociólogo e filósofo, nasceu em 1929, na Alemanha, é reco-


nhecido como um dos intelectuais mais proeminentes do mundo contemporâ-
neo. Associado com a Escola de Frankfurt, Habermas se insere na tradição da
teoria crítica da sociedade e pragmatismo, sendo mais conhecido por suas teo-
rias sobre a ação comunicativa e a esfera pública. Dentre suas obras traduzidas
para o português estão “Conhecimento e interesse”, “O futuro da natureza hu-
mana”, “Mudança estrutural da esfera pública” e “Ética da discussão e a ques-
tão da verdade”. Adiante, a obra deste autor é apresentada de forma bastante
ampla, destacando-se o papel da ação comunicativa e da ideologia tecnocrática
na constituição do Estado e da sociedade contemporânea.

158 • capítulo 5
Jürgen Habermas (1929), sociólogo e filósofo alemão, expoente da Escola de Frankfurt, é
um dos mais importantes intelectuais do século XX.
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4d/JuergenHabermas.jpg

O tema da mediação entre a teoria e a prática está presente em todo o pen-


samento de Habermas, embora a forma como essa questão é tratada varie ao
longo de sua obra. Assim, Freitag e Rouanet (1993) analisam a obra do referido
autor em torno de três perspectivas ou temas principais: a perspectiva episte-
mológica, a perspectiva político-cultural e a teoria da competência comunicati-
va (FREITAG; ROUANET, 1993).
O pensamento epistemológico está presente em diversos livros e ensaios des-
de sua conferência inaugural em Frankfurt (“Conhecimento e interesse”). Em “A
lógica das ciências sociais”, Habermas reconstitui a história da reflexão metodo-
lógica sobre as Ciências Humanas e procura demonstrar como as limitações do
empirismo puro (Nagel, Carnap) dão lugar a outros tipos de reflexão que reduzi-
ram o enfoque objetivante do cientista social. Ou seja, o sociólogo não se situaria
como um observador neutro à parte de seu objeto de estudo – enfoque objetivan-
te –, pelo contrário, o cientista estaria imerso em seu objeto de estudo, na cultura,
na medida em que dela participa (FREITAG; ROUANET, 1993).
Em “Conhecimento e interesse” encontram-se os fundamentos de sua teoria
dos interesses cognitivos. Habermas parte do postulado de que o conhecimento
e o interesse formam uma unidade inseparável, tanto para as ciências naturais
como para as ciências histórico-hermenêuticas, contrapondo-se a Weber que de-
fendia enfaticamente a neutralidade das ciências, inclusive das ciências sociais.

capítulo 5 • 159
Para Habermas, o conhecimento está sempre arraigado em determinados inte-
resses e pressupostos, posição contrária à neutralidade weberiana. Por exemplo,
nas ciências naturais, há o interesse técnico de dominação da natureza que se
enraíza nas estruturas da ação instrumental, baseada em regras técnicas pelas
quais o homem se relaciona com a natureza e a submete ao seu controle. No caso
das ciências histórico-hermenêuticas, há o interesse da comunicação enraizado
nas estruturas da ação comunicativa pelas quais o homem se relaciona com os
outros homens. Por fim, ambas as formas de conhecimento serviriam ao interes-
se mais fundamental de emancipação da espécie humana. O conhecimento ins-
trumental permite ao homem satisfazer suas necessidades ajudando-o a liber-
tar-se da natureza exterior. O conhecimento comunicativo motiva o homem a se
libertar da repressão social – seja ela concreta ou internalizada (intra-psíquica).
Esta reflexão revela como as ciências estão motivadas por um interesse, e somen-
te a partir dessa crítica baseada em autoquestionamento é que os momentos do
conhecimento, antes distorcidos pelo processo histórico, podem ser recupera-
dos e reelaborados a partir da ótica de que servem ao interesse fundamental de
emancipação (FREITAG; ROUANET, 1993).
Neste sentido, é importante situar o conceito de ação comunicativa, pois a par-
tir dele os sujeitos podem chegar a um consenso coordenado sobre suas ações.

[...] Para Habermas, a ação comunicativa surge como uma interação de, no mínimo dois
sujeitos, capazes de falar e agir, que estabelecem relações interpessoais com o objetivo
de alcançar uma compreensão sobre a situação em que ocorre a interação e sobre os
respectivos planos de ação com vistas a coordenar suas ações pela via do entendimen-
to. Neste processo, eles se remetem a pretensões de validade criticáveis quanto à sua
veracidade, correção normativa e autenticidade, cada uma destas pretensões referin-
do-se respectivamente a um mundo objetivo dos fatos, a um mundo social das normas
e a um mundo das experiências subjetivas. [...] Existe uma correlação direta entre ação
comunicativa e mundo da vida, já que cabe à primeira a reprodução das estruturas
simbólicas do segundo (cultura, sociedade, pessoa). Assim, sob o aspecto do enten-
dimento mútuo, a ação comunicativa serve para transmitir e renovar o saber cultural;
sob o aspecto de coordenar a ação, ela propicia a integração social; e sob o aspecto da
socialização, ela serve à formação da personalidade individual (PINTO, 1995, p. 80-81).

160 • capítulo 5
Já o pensamento político-cultural de Habermas se baseia na crítica ao Estado e
à sociedade. As principais obras neste contexto, concebidas ainda no início de sua
maturidade, são: “As mudanças estruturais do espaço público” e a introdução teó-
rica do estudo sobre “O estudante e a política” (FREITAG; ROUANET, 1993).
Ao refletir sobre a sociedade e o Estado, Habermas define o espaço público
como o ambiente em que se formam as opiniões: os salões do século XVIII, os
livros e os jornais. Nesta época, a opinião tinha uma função crítica em relação ao
poder, no entanto, mais tarde, essa função teria sido modificada para canalizar o
assentimento dos governados. Trabalhos tidos como de maior peso dentro dessa
temática são: “Técnica e ciência como ideologia”, “Os problemas de legitimação
do capitalismo tardio”, alguns ensaios contidos na coletânea “Cultura e crítica” e
em “Reconstrução do materialismo histórico” (FREITAG; ROUANET, 1993).
O tema central desses trabalhos é a caracterização do capitalismo tardio e
de suas sociedades cuja sobrevivência dependeria de uma intervenção cada vez
maior do Estado na estrutura econômica, seja por meio da manutenção e am-
pliação da infra-estrutura (transportes, comunicação, sistemas de saúde e edu-
cação), seja por meio de investimentos diretos em áreas de alto custo e baixa
rentabilidade (indústria espacial, atômica, etc.). Habermas enfatiza a existên-
cia de grandes centros de pesquisa pertencentes ao Estado, o que permitiria a
socialização dos altos custos envolvidos na pesquisa e no desenvolvimento de
tecnologias, que, por outro lado, são fundamentais para o crescimento econô-
mico. Nessa perspectiva, o Estado, ao controlar a ciência e a técnica, se trans-
forma em um promotor do progresso e do bem-estar coletivo, mas também
encontra uma nova forma de legitimar sua existência, e com isso, a ciência e a
técnica assumem um papel de ideologia (FREITAG; ROUANET, 1993).
A ideologia tecnocrática, como todas as ideologias prévias, tem como fun-
ção impedir a discussão dos fundamentos do poder, mas o faz não pela legi-
timação das normas – como ocorre com as demais ideologias – mas sim por
meio da supressão dessas normas. O poder seria legítimo não por que obedece
a normas legítimas, mas sim por que segue regras técnicas que não precisam
ser legitimadas e, assim, não precisam ser tematizadas e tampouco podem ser
alteradas por decisões políticas. A ideologia tecnocrática seria muito mais ra-
dical que as do passado porque nega a própria estrutura da ação comunicativa,
baseada em normas justificáveis ainda que por meio de falsas legitimações, na
medida em que se assimila à ação instrumental cujas regras não exigem justifi-
cação (FREITAG; ROUANET, 1993).

capítulo 5 • 161
A ideologia tecnocrática fundamenta ações do Estado nas áreas de saúde, educação,
habitação, transporte, segurança, etc. de modo a eliminar o caráter político destas esferas e
a restringi-las à execução de normas técnicas.

Consequentemente, as decisões políticas que afetam a coletividade são


transformadas em problemas técnicos a serem resolvidos por uma minoria
que detém o conhecimento necessário: a nova elite dos tecnocratas. A redução
das decisões políticas à minoria dos tecnocratas significa simultaneamente o
esvaziamento da atividade prática em todas as instâncias da sociedade – políti-
ca, social e econômica – e a penetração crescente do Estado, instância política,
nas duas outras, submetidas cada vez mais à administração. A despolitização
das massas se torna consequência e requisito dessa nova forma de dominação
(FREITAG; ROUANET, 1993).
Por fim, para Habermas, da mesma forma que a autocompreensão objetivista
da ciência reprime a estrutura de interesses que condiciona a objetividade dos
seus enunciados, a autocompreensão tecnocrática do poder reprime o substrato
político das ações praticadas em nome de uma racionalidade técnica. Também
à semelhança do que ocorre na ciência, a crítica revelaria esses momentos repri-
midos e, nesse processo, revelaria a interpenetração da falsa teoria (positivismo)
com a falsa práxis (capitalismo tardio) (FREITAG; ROUANET, 1993).

162 • capítulo 5
5.6  Jacques Derrida e a crítica ao Estruturalismo

Jacques Derrida (1930-2004), nascido na Argélia, radicado na França, é um dos


principais expoentes intelectuais do século XX. Autor de inúmeros livros, al-
guns deles publicados em português, tais como “Gramatologia”, “A escritura e
a diferença” e “Margens da filosofia”.

Jacques Derrida (1930-2004), filósofo franco-argelino, crítico do Estruturalismo, é um dos


pioneiros dos conceitos relacionados à desconstrução.

Segundo Nascimento (2004), o nome de Derrida está ligado à geração de


intelectuais franceses mundialmente renomeados a partir da década de 1960,
dentre eles: Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard. Em geral,
estes filósofos são designados “pós-estruturalistas” ou pensadores da diferen-
ça, embora deva-se tomar cuidado com esta nomenclatura, pois nenhum deles
agrupou-se em uma corrente de pensamento ou compuseram um grupo coeso.
Derrida e Deleuze, por exemplo, criticam o movimento estruturalista e estipu-
lam suas limitações.
Para Dosse (2007), Derrida ocupa posição paradoxal no conjunto do referi-
do movimento, pois se localiza simultaneamente em seu interior e exterior em
face às críticas por ele endereçadas aos vestígios do logocentrismo presentes
neste paradigma. Segundo Costa (2006), o logocentrismo baseia-se em diferen-
ças binárias, por exemplo, eu versus outro, sujeito versus objeto, que compõem
os fundamentos das estruturas de dominação moderna. Para Derrida, o proces-

capítulo 5 • 163
so de significação não se resume e tampouco se organiza segundo estas polari-
dades logocêntricas.
Neste sentido, Derrida propõe um novo modo de escrever que ultrapasse as
distinções entre a Filosofia e a Literatura. De acordo com Nascimento (2004):

O que conta para Derrida é a leitura como função em certo sentido “pragmática”, ou
seja, o ato de fala ou de discurso como prática de um sujeito que fala, escreve, agencia
valores, desloca sentidos, redimensiona estruturas etc. Em outras palavras, em vez da
noção de leitura tanto como relação passiva de mero consumo de um ou mais sentidos
já prontos no texto de um outro autor; quanto como simples explicação do que seria
essa significação pré-dada, em Derrida, o sentido é algo sempre por ser elaborado,
remanejado, deslocado etc. em função dos sujeitos relacionados aos atos de fala e/ou
de escrita (p. 14).

Segundo esta perspectiva, para Nascimento (2004), “a leitura é antes de


tudo um ato, um modo de acesso à linguagem que implica efeitos discursivos
mais ou menos mensuráveis dentro de certos contextos” (p. 14-15). Ao longo do
procedimento interpretativo, as concepções de sujeito e objeto como entidades
fixas e idênticas são questionadas. Além disto, o próprio contexto não é conce-
bido como elemento externo à comunicação. O texto representaria, então, uma
espécie de tecido heterogeneamente composto por inúmeros fios que entrela-
çados acarretam várias possibilidades interpretativas e de leitura.
De acordo com Eagleton (2006), para Derrida, qualquer sistema de pen-
samento dependente de um fundamento inatacável deve ser considerado
“metafísico”, pois baseia-se em princípios inquestionáveis diante dos quais é
impossível realizar variadas interpretações. Embora o autor admita que é prati-
camente impossível despir-se destes fundamentos, visto que a história do pen-
samento está impregnada deles, caso sejam analisados de perto, nota-se que
podem ser “desconstruídos”. “Pode-se mostrar que são antes produtos de um
determinado sistema de significações, do que algo que os sustenta de fora para
dentro” (p. 182). De primeiro, estes princípios são formados por “oposições bi-
nárias”, típicas do paradigma estruturalista. Por exemplo, na sociedade patriar-
cal, o homem localiza-se no centro do sistema de pensamento e de organização
da sociedade ao passo que a mulher é excluída desta ordem. Nesta conjuntura,
a mulher é a negação do homem, o não-homem. Enquanto este parâmetro for
conservado, o sistema funciona de modo eficaz.

164 • capítulo 5
A desconstrução, portanto, compreendeu que as oposições binárias, com as quais o
estruturalismo clássico gosta de trabalhar, representam uma maneira de ver típica das
ideologias. Estas tendem a traçar as fronteiras rígidas entre o que é aceitável e o que
não é, entre o eu e o não-eu, a verdade e a falsidade, o sentido e o absurdo, a razão e a
loucura, o central e o marginal, a superfície e a profundidade (EAGLETON, 2006, p. 183).

ATENÇÃO
A lógica binária diz respeito a categorias opostas e excludentes que abolem qualquer forma
de ambiguidade ou de gradação entre si. Este “modelo de pensamento”, ainda sistematica-
mente utilizado em diversas disciplinas das Ciências Humanas, propõe oposições do tipo:
feminino versus masculino, sexo versus gênero, homossexualidade versus heterossexuali-
dade, dentre outras.

Embora esta ordem de pensamento esteja dada e seja relativamente inevi-


tável, por meio de uma análise desconstrutivista, pode-se inferir as oposições
típicas de um texto e evidenciar como uma ideia oposta está escamoteada em
uma ideia evidente. De modo geral, o paradigma estruturalista restringiu seus
fundamentos aos pares binários: natureza versus cultura, claro versus escuro,
alto versus baixo, etc. “A desconstrução tenta mostrar como tais oposições, para
se manterem como tais, por vezes traem-se a si mesmas, invertendo-se ou de-
saparecendo, ou precisam colocar à margem do texto certos detalhes insignifi-
cantes que podem voltar e perturbá-las” (p. 184). O procedimento típico empre-
gado por Derrida consiste em eleger um ponto marginal de um texto ou de uma
obra, por exemplo, uma nota de rodapé, um termo, uma imagem, de modo a
analisá-lo e a explicitar as oposições que organizam todo o texto.
Em suma, a posição intelectual de Derrida é concomitantemente crítica e
tributária ao estruturalismo. Para ele, o pensamento ocidental muitas vezes
fundamenta-se em pares binários que acabam por compor o quadro teórico
das Ciências Humanas. Basta lembrar dos constantes antagonismos presentes
nas obras sociológicas e psicológicas, por exemplo: indivíduo versus sociedade,
capitalismo versus socialismo, feminismo versus patriarcado. Ao desconstruir a
lógica binária presente nas obras científicas, filosóficas e literárias, é possível
interpretá-las de forma múltipla e questionar suas ideologias.

capítulo 5 • 165
ATIVIDADE
1. Discuta como o conceito de estrutura influenciou Giddens e Bourdieu na tentativa de
superar a dicotomia indivíduo versus sociedade.

2. Explique qual a relação entre estrutura e ação humana para Giddens.

3. Os conceitos de habitus e campo são fundamentais para teoria da prática de Bourdieu.


Defina cada um deles e, a seguir, explique como ambos estão relacionados entre si.

4. Qual a importância da ação comunicativa na tentativa de minorar as consequências da


tecnocracia?

5. Derrida critica o logocentrismo das ideias estruturalistas. Explique esta afirmação.

REFLEXÃO
As ideias estruturalistas não se restringiram à Linguística ou à Filosofia, conforme você es-
tudou, a Sociologia, a Psicanálise e a Psicologia apreenderam o conceito de estrutura e
utilizaram-no de acordo com seu objeto de estudo específico: a sociedade, o inconsciente e
o comportamento humano, respectivamente.
O Serviço Social, por ser uma área do conhecimento aplicada, ou seja, voltada para ques-
tões práticas, quando questiona os reflexos da questão social no cotidiano dos grupos sociais
e, sobretudo, no acesso aos direitos garantidos constitucionalmente, deve considerar que
tanto o indivíduo quanto a sociedade não podem ser reduzidos a entidades independentes.
Muito pelo contrário, conforme você estudou, o conceito de estrutura possibilita conciliar
aspectos subjetivos e objetivos presentes nas práticas humanas. Desta forma, é importante
que você considere que as demandas e dificuldades apresentadas pelos grupos assistidos
são fruto da imbricação estrutural dos referidos aspectos. Por exemplo, a análise das queixas
de uma mulher em situação de violência doméstica não deve se restringir aos fatores da sua
individualidade, pois aspectos sociais, como as relações de gênero, de classe, dentre outras,
estão presentes em sua vulnerabilidade.

166 • capítulo 5
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SETTON, M. G. J. Família, escola e mídia: um campo com novas configurações. Educação e


Pesquisa, v. 28, n. 1, p. 107-116, 2002.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
Capítulo 1

1.  O que foi o tomismo e o neotomismo?


Na baixa idade média, as transformações econômicas políticas e sociais ameaçavam o
poder da Igreja Católica e, como forma de combater estas ameaças a Igreja buscou racio-

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nalizar as explicações divinas. Para isto São Tomás de Aquino foi muito importante porque
ele conseguiu comprovar a existência de Deus por meio da razão. Esta doutrina recebeu
o nome de Tomismo.
No século XIX houve um resgate da doutrina tomista para entender e solucionar os
problemas sociais contemporâneo. A adequação da doutrina tomista para a realidade
contemporânea recebeu o nome de neotomismo.

2.  “Era necessário para a salvação dos homens que houvesse uma dou¬trina
revelada por Deus, além das disciplinas filosóficas que investigam a razão
humana”. Com base nesta frase de São Tomás de Aquino explique:
a) Qual a relação entre a fé e a razão?
Para São Tomás de Aquino esta relação é complementar porque, se a razão é uma forma
de analisar fenômenos observáveis, ela pode ajudar a elucidar e melhor explicar os dog-
mas religiosos como, por exemplo, a existência de Deus. Já a fé, por ser a obtenção do
conhecimento por meio das crenças ela acaba orientando e norteando a razão,

b) Como São Tomás de Aquino usou a razão para provas a existência de Deus? (as
cinco vias)
As 5 vias foram desenvolvidas por meio de um raciocínio analítico com base na razão
Aristotélica, ou seja, para Aristóteles, o verdadeiro conhecimento não surge por acaso,
ele surge de experiências sensíveis. Desta forma, a razão não está apenas nas ideias,
mas também no mundo sensível. Foi isto que São Tomás de Aquino fez: explicou a exis-
tência de Deus não apenas com base na fé, mas, também com base na razão.

3.  Como o humanismo de Maritain está presente na profissão de serviço social?.


Para responder esta pergunta é preciso lembrarmos de que o serviço social objetiva
promover o bem estar comum. Para isto ela precisa entender os problemas sociais e
propor mudanças.
Os estudos de Maritain se faz presente na profissão de serviço social porque ele propõe
uma filosofia democrática que leve a uma sociedade capaz de proporcionar uma vida dig-
na, fornecendo-lhes bem estar e segurança material.

4.  Quais são as principais características do positivismo?


Entre as principais características do positivismo estão:
1) Os fenômenos sociais devem ser analisados de forma semelhante a análise dos fe-
nômenos naturais, ou seja, devem ser analisados de forma racional e sistemática, encon-
trando as relações entre os fatos.

capítulo 5 • 169
2) Aceitação apenas o conhecimento científico
3) O conhecimento deve ter utilidade para o progresso da vida em sociedade.

5.  Para você é possível a ciência ser neutra?


Este é uma resposta pessoal no qual o aluno poderá se identificar com duas correntes:
1)A corrente dos que acreditam que a ciência é neutra. Neste caso os alunos deverão
apresentar os seguintes argumentos:
Tese da neutralidade temática: O pesquisador não sofre influência da sociedade ao esco-
lher os temas e problemas a serem investigados.
Tese da neutralidade metodológica: a ciência é neutra porque procede de acordo com o
método científico, segundo o qual a esco¬lha racional entre as teorias não deve envolver, e
de maneira geral não tem envolvido, valores sociais.
Tese da neutralidade factual: a ciência é neutra porque não envolve juízos de valor; ela
apenas descreve a realidade, sem fazer prescrições; suas proposições são puramente fac-
tuais.
E a corrente dos que não acreditam que a ciência pode ser neutra.
Neste caso os alunos argumentarão que a ciência está subordinada aos interesses da
classe dominante, aos valores sociais e a cultura de uma sociedade.

Capítulo 2

1.  Descreva as diferenças entre a conceituação da dialética por Hegel e por Marx.
Aluno deve considerar as dimensões idealistas na conceituação da dialética por Hegel
e a perspectiva de Marx da dialética a partir de sua concepção materialista histórica,
invertendo os pressupostos de Hegel que via na História o processo de realização do
Espírito Absoluto, mas mantendo a perspectiva da realidade como história e marcada
por contradições.

2.  Defina o que é alienação para Marx.


Aluno deve considerar dois aspectos fundamentais do conceito de alienação em Marx: a
ideia do trabalhador desprovido dos meios de produção, não tendo o controle do proces-
so produtivo e não tendo mais o direito pelo produto do trabalho, sendo assim a atividade
do trabalho e o produto do trabalho se tornam estranhos a ele.

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3.  Explique o que significa o conceito marxiano de mais-valia.
Mais-valia é a apropriação do excedente de valor do trabalho produzido pelo trabalhador
pelo capitalista. O aluno deve considerar a incorporação da tese do valor-trabalho por
Marx, incluindo a visão da exploração do trabalhador pelo capitalista como dimensão es-
sencial à acumulação capitalista.

4.  Disserte sobre a relação entre infraestrutura e superestrutura na teoria de Marx


e Engels.
Na perspectiva materialista histórica de Marx e Engels há preponderância às relações
materiais, ou seja, que se realizam na esfera da produção, garantindo as condições de
existência dos seres sociais. A superestrutura, sendo a esfera das ideias, da cultura, da
política, do jurídico, etc., é fortemente influenciada pela infraestrutura (baseada), e, neste
sentido, não independe dos aspectos da esfera da produção, mas também exerce influên-
cia retroativa sobre ela, em uma relação de mão dupla (dialética).

5.  Escreva um texto sobre as definições de ideologia em Marx e como esta é rea-
valiada em Gramsci e Lukács.
O aluno deve considerar a definição de Marx sobre ideologia em sua complexidade e abor-
dar como ela é reconfigurada na discussão sobre reificação em Lukács e redimensionada
no conceito de hegemonia de Gramsci.

6.  Defina indústria cultural.


Indústria cultural é um conceito de Theodor Adorno que versa sobre a produção de cul-
tura dentro de engrenagens industriais próprias do capitalismo. Ela se caracteriza pela
massificação e uniformização, tendo como objetivo a busca de retorno econômico. Produz,
portanto, alienação, em vez de aprimoramento espiritual e intelectual dos consumidores.
Funciona assim como instrumento de reprodução social inerente ao capitalismo. Como
exemplo, cita-se a indústria fílmica, marcada pela atrofia da capacidade do espectador, e a
indústria fonográfica que promove a regressão da audição.

7.  Compare as perspectivas de Gramsci e Althusser no que diz respeito à “socie-


dade civil” e os “aparatos ideológicos do Estado”.
O aluno deve considerar as semelhanças e diferenças na abordagem dos conceitos de
Gramsci e Althusser, considerando a valorização da esfera superestrutural na aborda-
gem de ambos e a dimensão histórica na abordagem de Gramsci em contraste com a
dimensão estrutural caracterizadora da obra de Althusser.

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Capítulo 3

1.  Leia o texto abaixo:

O homem da multidão
Edgar A. Poe.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande jane-
la do Café D. em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca
convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito, no
qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa a sua condição di-
ária. O simples respirar era-me um prazer, e por isso sentia um calmo, mas inquisitivo interesse
por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, diverti-me durante a maior parte
da tarde, ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão,
ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Essa que era uma das artérias principais da cidade, que regurgitava de gente durante o
dia todo. Até que ao aproximar-se o anoitecer a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas
se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele
momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso,
o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita.
Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na
contemplação da cena exterior.
De início minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os
transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no
entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras
variedades de figuras, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar
apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos
moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, mas sem mos-
trar sinais de impaciência; pois recompunham-se e continuavam, apressados, o seu caminho.
Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enru-
bescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários
em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço,
interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com
um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se
alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.

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Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes, além do que já observei. Seus
trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida,
nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas — os eupátridas e os lugares-co-
muns da sociedade —, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, que
dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Eles que não excitaram muito a minha
atenção.

Apresente um comentário sobre o texto e relacione com o conteúdo desse capítulo.

Resposta: O objetivo dessa atividade é que o aluno elabore um texto livre de forma a
demonstrar que compreendeu o conteúdo desse capítulo.

Capítulo 4

1.  Caracterize o que se entende atualmente por ciência.


Aluno deve considerar que para a epistemologia da ciência contemporânea o fazer cien-
tífico tem conduzido à compreensão da atividade científica como um processo que aceita
falhas. Estamos mais próximos das questões éticas relacionadas à pesquisa científica e
seus resultados.

2.  Em que sentido podemos dizer, juntamente com Gaston Bachelard, que a fí-
sica newtoniana constituiu um obstáculo epistemológico para os cientistas?
Aluno deve considerar que as teses apresentadas por Bachelard podem ser tidas como
um obstáculo epistemológico porque lançou as bases do novo racionalismo ou racionalis-
mo aberto, fundamentado na crítica da epistemologia tradicional e na renovação da histó-
ria das descobertas científicas.

3.  Explique os conceitos de paradigma e revolução científica em Thomas Kuhn.


Aluno deve apontar:
• Paradigma é um conjunto de normas e tradições dentro do qual a ciência se
nove, durante um determinado período e em certo contexto cultural. Porém,
em determinado momento o paradigma se altera, provocando uma revolução,
que abre caminho para um novo tipo de desenvolvimento científico. É como se
ocorresse uma nova reorientação da visão científica, na qual os elementos de
um problema são inseridos em novas relações.

capítulo 5 • 173
Capítulo 5

1.  Discuta como o conceito de estrutura influenciou Giddens e Bourdieu na


tentativa de superar a dicotomia indivíduo versus sociedade.
Tanto Giddens quanto Bourdieu, embora tenham criticado o Estruturalismo, utilizam o con-
ceito de estrutura como recurso teórico para articulação dos conceitos de subjetividade
e sociedade. Em outras palavras, inspirados no conceito de estrutura, Bourdieu por meio
do conceito de habitus e Giddens, por meio do conceito da institucionalização da vida
cotidiana, buscam explicar de que modo os agentes sociais continuamente reproduzem
as estruturas sociais (condições sociais) e, simultaneamente, conforme as circunstâncias,
podem modificá-las ainda que de forma restrita ou constrangida.

2.  Explique qual a relação entre estrutura e ação humana para Giddens.
Os sistemas sociais onde a estrutura está implicada dizem respeito às ações dos atores
sociais repetidas no tempo e no espaço. Para estudar a estruturação dos sistemas sociais,
é importante analisar como estes, baseados nas ações conscientes de agentes sociais,
são reproduzidos e produzidos ao longo das interações sociais. As características dos
sistemas sociais são concomitantemente o instrumento e o fim das práticas organizadas
estruturalmente.

3.  Os conceitos de habitus e campo são fundamentais para teoria da prática


de Bourdieu. Defina cada um deles e, a seguir, explique como ambos estão
relacionados entre si.
Campo refere-se aos espaços objetivos de relações entre agentes sociais localizados di-
ferencialmente conforme os capitais simbólicos e materiais que detêm em determinado
espaço social. Por meio do conjunto de capitais (capital econômico, cultural, escolar e
social), cada agente social ocupará diferentes posições num campo específico, o que lhes
possibilita gozar de maior ou menor prestígio social. Habitus representa uma espécie de
“guia comportamental”, isto é, as práticas sociais são guiadas por meio de uma série de
disposições e representações transmitidas e incorporadas no processo de socialização,
de modo que o agente social, em um campo específico (universitário, profissional, social,
esportivo), age conforme padrões esperados e rotineiros. Em cada campo específico, os
agentes sociais, segundo o montante de capitais inscritos em seus habitus, posicionam-se
hierarquicamente e disputam prestígio e poder.

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4.  Qual a importância da ação comunicativa na tentativa de minorar as conse-
quências da tecnocracia?
A ação comunicativa representa a possibilidade do diálogo franco e aberto entre os sujeitos
de modo que cada possa ouvir ao outro de forma relativamente igualitária e com o objeti-
vo de alcançar uma compreensão sobre a situação em que ocorre a interação e sobre os
respectivos planos de ação com vistas a coordenar suas ações pela via do entendimento,
conforme propõe Pinto (1995).

5.  Derrida critica o logocentrismo das ideias estruturalistas. Explique esta afir-
mação.
Derrida argumenta que as Ciências humanas fundamentam-se em pares opostos (mascu-
lino versus feminino, capitalismo versus socialismo) cuja presença e ausência dos termos
acaba por essencializar estas ideias e por torná-las inquestionáveis. Para o autor, as ideias
não estão prontas, muito pelo contrário, podem ser deslocadas, divididas, de modo a multi-
plicar seus sentidos.

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