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EDITORA KELPS

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Copyright © 2013 by Luiz; Silva; Freitas

Capa: José Carlos Guimarães


Diagramação: Victor Marques

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Conselho editorial (UEG)
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Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão (UNICAMP)
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Profa. Dra. Adriana Carvalho Pinto Vieira (Unesc)
Prof. Dr. Luiz Henrique Dreher (UFJF)
Prof. Dr. Horacio Gutiérrez (USP)
Prof. Dr. Marcos Menezes (UFG)

Revisão
Juliana Macedo Silva
Carlos Alberto O. Neiva Júnior
Nayara Porto Ferreira
Isabella Galvão Cardoso
Bianca Alencar Vellasco

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a
autorização prévia ou sem citação de fonte. A violação dos direitos autorais (Lei n. 9610/98) é crime
estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Projeto gráfico, paginação e capa: José Carlos Guimarães

CIP — Catalogação na fonte


Biblioteca

Luiz, A; Silva, C. A; Freitas, E.


Uma antologia do conto goiano contemporâneo/Luiz; Silva; Freitas.
Goiânia: Editora Kelps, 2012.
xxx p.

ISBN:
1. Antologia — Ensaios. 2. Contos. I. II. Título.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2013
Ademir Luiz
Carlos Augusto Silva
Ewerton Freitas

(Organizadores)

Uma antologia do conto goiano


contemporâneo

A partir de uma proposta de


Miguel Jorge
Agradecimentos

Agradecemos ao escritor Heleno Godoy, pelos conselhos e ajuda valiosa.


A Universidade Estadual de Goiás (UEG), na pessoa do magnífico reitor
Haroldo Reimer. Antonio Almeida, da editora Kelps, por acreditar no pro-
jeto. José Carlos Guimarães que, após ser convidado a participar com um
conto, com extremo desprendimento colocou-se à disposição para produ-
zir a capa. Einstein Augusto que nos apresentou o trabalho do professor
Ciro Flamarion S. Cardoso. Simone Schmaltz que gentilmente permitiu
a inclusão de um conto de sua mãe, Yêda. Edival Lourenço, presidente
da UBE — GO, pelo auxílio na concretização de alguns contatos. Victor
Marques pelo trabalho de diagramação. Roberta Ribeiro, Pedro Henrique
Rosa, Nillo Barbosa da Silva, Túlio Almeida de Ázara e Thalita Gabriele que
participaram do processo de recuperação dos textos. Aos revisores Juliana
Macedo Silva, Carlos Alberto O. Neiva Júnior, Nayara Porto Ferreira, Isa-
bella Galvão Cardoso e Bianca Alencar Vellasco. E, principalmente, a todos
os autores que aceitaram participar do projeto.
Índice

11. Apresentação
Adelice da Silveira Barros
17. Só porque era sexta-feira treze
20. Encontros e desencontros amorosos em “Só porque era
sexta-feira treze”
Valdivino Braz
23. Quem matou o coronel? (Conjecturas em
torno do cadáver)
28. A angústia da influência em “Quem matou o coronel?
(Conjecturas em torno do cadáver)”
Maria Lúcia Félix Bufáiçal
31. Arminda
34. O ciúme feminino em “Arminda”
Ciro Flamarion S. Cardoso
37. Meryt
56. História e literatura em “Meryt”
Maria Helena Chein
59. Gorda canção de amor
67. Decepção e obsessão amorosa em “Gorda canção de amor”
Augusta Faro
71. A friagem
75. Frio e calor em “A friagem”
José Fernandes
79. Os agregados
84. A resistência do regionalismo em “Os agregados”
Ewerton Freitas
87. A última tarde / O passado e o tempo
91. A incomunicabilidade em “A última tarde” / “O passado
e o tempo”

Heleno Godoy
95. Escurinho
112. Erotismo e alta literatura em “Escurinho”
J. C. Guimarães
117. Civilização
121. Cultura e barbarismo em “Civilização”
Miguel Jorge
125. Que mais digo ao senhor?
132. O problema da linguagem em “Que mais digo ao senhor?”
André de Leones
135. Todas as coisas doces demais
139. Um instantâneo da juventude em “Todas as coisas
doces demais”
Edival Lourenço
143. A fazenda de pedra
146. O realismo mágico de “A fazenda de pedra”

Ademir Luiz
149. Walquíria Wagneriana
162. A contramão da literatura contemporânea em
“Walquíria Wagneriana”
Carlos Fernando Magalhães
165. a primeira coisa ao ver
168. Exterior e interior em “a primeira coisa ao ver”

Antônio José de Moura


171. Magrinha
182. Repressão política e vingança pessoal em “Magrinha”

Moema de Castro e Silva Olival


185. A sombra infortunada
187. Crítica literária e amor materno em “A sombra infortunada”

Flávio Paranhos
191. Doença
197. Um encontro com Kafka em “Doença”
Wesley Peres
201. Xícara de chá cheia de café
202. O prazer do texto em “Xícara de chá cheia de café”
Itamar Pires
205. O Uzífur
216. Loucura, sonho e realidade em “O Uzífur”
Yêda Schmaltz
219. Amor, humor e tumor
223. Cinema e literatura em “Amor, humor e tumor”

Lêda Selma
227. Estresse divino
230. Um encontro com Deus em “Estresse divino”

Delermando Vieira
233. O Chapéu
238. Mistério e horror em “O chapéu”
À memória de Carlos Fernando Magalhães
Apresentação

Ademir Luiz

Certos contos valem por obras completas. As poucas páginas de “Os Mortos”,
“Bartleby, o escrivão”, “Três Mortes” e “Um coração simples” bastariam para dar
imortalidade literária a Joyce, Melville, Tolstói e Flaubert, independentemente
dos caudalosos romances Ulisses, Moby Dick, Guerra e Paz e Madame Bovary.
Hegel definiu o romance como “a epopeia da classe burguesa”, enquanto o
modelo de conto desenvolvido por Guy de Maupassant foi comparado ao soneto,
em função do rigor com que era construído para conseguir criar o efeito desejado
no leitor. O cientista social e crítico Fábio Lucas observou, no ensaio “O Conto

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no Brasil Moderno”, que “o romance pode distribui-se em contos. Teremos uma
estrutura englobante, totalizadora, formada de unidades com relativa autono-
mia narrativa”. Aponta Vidas Secas, de Graciliano Ramos, como um dos exemplos
mais notórios. O livro, que tinha como título de trabalho O mundo coberto de
penas, desenvolve-se a partir de um conto fechado sobre a cadela Baleia. Dele
surgiram mais doze contos que foram designados como capítulos. Em comum,
alguns personagens e a paisagem.
Já Julio Cortázar, um mestre do conto, numa entrevista para o The New York
Time Book Review, definiu o conto como “uma espécie de esfera na qual procu-
ramos incluir algumas percepções, alguns sentimentos”. Declarou que “às vezes,
quando estou escrevendo um romance, penso em alguma coisa que não lhe per-
tence, mas que tem vida própria. Então, paro e faço um conto, se for possível.
O conto se parece mais com um poema do que com um romance”. Para além de
reforçar a perspectiva de Maupassant, Cortázar também compara o romance a
um rio, enquanto o conto é um lago. Um pode derivar do outro, mas não se mis-
turam na geografia literária.
A opção pela narrativa curta pode ocorrer por razões estéticas, filosóficas ou
ainda por economia de forças. O contista e poeta Jorge Luis Borges declarou ser
“excessivamente preguiçoso para escrever um romance. Além do que, acho que
se tem que pôr muito recheio em um romance, de modo que, antes de chegar
ao terceiro capítulo, estaria tão cansado que nunca chegaria a escrevê-lo”. Por
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

outro lado, alguns dos trabalhos mais extensos de Thomas Mann, como A Mon-
tanha Mágica, foram concebidos originalmente como projetos de contos. Como
explicar tal fenômeno? A narrativa tornou-se uma entidade fora de controle? As
pesquisas e as ideias transbordaram, transformando 10 páginas em 10 vezes 10
vezes 10 páginas? Ou simplesmente, escapou de Mann o desejo de concluir?
Segundo o crítico norte-americano Harold Bloom, “contos não são parábo-
las, nem compilações de sábios provérbios, e, portanto, não podem ser meros
fragmentos; do conto esperamos obter o prazer da conclusão”. A cena final deve
reforçar ou iluminar pontos obscuros do conjunto, no que Tomachevski desig-
nou de “desfecho regressivo”. Um conto não é uma anedota, mas deve algo a
sua estrutura. Porém, observa Fábio Lucas, “haverá a anedota de feição aberta,
reticente, apoiada em estados líricos, em zonas de indefinição. Teremos, desse
modo, a anedota de desvendamento de um mistério com solução (conto policial,
folhetim etc); e a anedota de desvendamento de um mistério sem solução (conto
de atmosfera, metafísica, existencialista etc)”. Mesmo uma situação de impasse,
de “suspensão moral” sem a possibilidade do deus ex machina, pode ser o fecha-
mento ideal, como mostrou Tchekhov em “A dama do cachorrinho”.
Em todos os casos, de final fechado ou aberto, da conclusão depende o êxito
do conto. Parece-me sempre fácil perdoar bons romances com finais decepcio-
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nantes, a exemplo de O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, e parte considerável


da obra de José Saramago e Italo Calvino, ao passo que é impossível que contos
mal concluídos sobrevivam. Ainda que seja tacanho esperar que a ficção curta se
reduza a uma unidade estanque com começo, meio e fim, as exceções fortalecem
e confirmam a regra. Afinal, faz-se a grande literatura dialogando com a tradição
ou desafiando-a, jamais na tentativa de encaixar-se em fórmulas.
Sendo as possibilidades infinitas, surgiram no Brasil notáveis contos e con-
tistas: Machado de Assis e seu “A causa secreta”, João do Rio e “Dentro da noite”,
Lima Barreto e “O homem que sabia javanês”, Monteiro Lobato e “Negrinha”,
Rachel de Queiroz e “Tangerine-Girl”, Clarice Lispector e “Felicidade clandesti-
na”, Bernardo Elis e “A enxada”, Dalton Trevisan e “O vampiro de Curitiba”, Caio
Fernando Abreu e “Aqueles dois”, J. J. Veiga e “O galo impertinente”, Guimarães
Rosa e “A outra margem do rio”, Rubem Fonseca e seus passeios noturnos. A
lista poderia prosseguir longamente. Se a riqueza brasileira no gênero é inegável,
também é certo que se encontra espalhada por todo território. Somente nessa
pequena lista de autores e textos citados quase ao acaso encontramos cariocas,
mineiros, paulistas, paranaenses, cearenses, gaúchos, ucranianas naturalizadas
e, é certo, goianos.
Segundo o crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux, “a literatura é a
expressão máxima da vida espiritual de uma nação; sobretudo nas civilizações jo-
vens”. Jovem como o Brasil. Nesse espírito, o escritor e crítico Gilberto Mendon-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ça Teles, no artigo Roteiro do conto goiano, publicado originalmente no número 1


dos Cadernos de Estudos Brasileiros, de 1963, escreveu que “a grande integração
do conto no espírito do povo brasileiro só se deu mesmo com o Regionalismo”.
Em Goiás, segue Mendonça Telles, “podemos imaginar duas linhas nítidas de
desenvolvimento do nosso conto; uma, com tendências eruditas e refinamento
literário, tendo as suas origens na obra de Hugo de Carvalho Ramos; outra mais
popular e com menores possibilidades literárias, com os seus inícios nos causos
de Pedro Gomes”. Nessa fase pioneira, o folclore, os temas rurais e as tentati-
vas de reproduzir literariamente a dicção característica do sertanejo eram pre-
dominantes. Exemplos notáveis são “Quem semeia vento colhe tempestades”,
que Crispiniano Tavares publicou em 1910, e “Romãozinho, o filho maldito”, de
Mário Rizério Leite, datado de 1951.
A expansão urbana provocada pela construção da nova capital, na década
de 1930, ajudou a modificar essa realidade. Para Fábio Lucas, o grande marco
da transição foi a obra de José. J. Veiga, que estreou na literatura em 1959, com
Os Cavalinhos de Platiplanto. “Temos com o contista goiano, o meio rural revo-
lucionado, a ruína de uma instância mitológica contaminada pela mitologia da
era moderna. Já não se trata do regionalismo atualizado de Bernardo Élis”. O
conto “A máquina extraviada”, que J. J. Veiga publicou em 1968, é significati-

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vo, na medida em que representa uma engenhoca urbana perdida na zona rural,
transformando-se em objeto de curiosidade e diversão para as crianças. Todos
reconheciam a imponência da máquina, mas ninguém sabia ligá-la ou para o que
servia. O velho dilema da diferença entre modernidade sócio-cultural e moder-
nização técnica, que nem sempre caminham juntas.
Goiânia, construída para representar o ideário moderno varguista, foi con-
cebida por Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima para ser uma cidade das artes.
Até seu nome foi inspirado em um poema, o épico Goyania, publicado em 1896,
na cidade do Porto, em Portugal, por Manuel Lopes de Carvalho Ramos, pai de
Hugo. Tendo a pedra fundamental sido lançada em 24 de outubro de 1933, sua
verdadeira fundação ocorreu em 05 de julho de 1942, sob o título de Batismo
Cultural. O ambiente art decó tropical de Goiânia inspirou novas perspectivas li-
terárias, mas, como notou Luís Augusto Fischer, “nem por isso o mundo interio-
rano deixou de existir”. Ao longo das décadas surgiram na nova capital autores
que repensaram ou claramente se contrapuseram ao regionalismo.
Dentre os primeiros destacam-se nomes como Bariani Ortêncio e Anatole
Ramos. Sem abandonar a cartilha regionalista, produziram paralelamente obras
que os levaram a outras direções criativas. Por exemplo, o monólogo interior que
Anatole Ramos desenvolveu no conto “Minhas queridas formigas” é notável e,
certamente, muito “moderno”. Bariani Ortêncio aventurou-se em escrever con-
tos policiais, gênero eminentemente urbano, conforme estabelecido pelos pio-
neiros Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle. Ao mesmo tempo, autores como
Carmo Bernardes mantiveram-se como guardiões da tradição.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O segundo grupo é ainda mais heterogêneo. Não se caracterizou pela con-


cordância, mas pelo debate. No início da década de 1960, surgiram em Goiás
diversos escritores jovens com forte postura crítica ao regionalismo. Mais do que
com a produção caseira, dialogavam com a literatura universal. Nesse ímpeto
ampliaram as temáticas, mostraram redobrada preocupação com a linguagem,
realizaram experimentos estéticos etc. Formou-se pelo menos um movimento
organizado importante: o Grupo de Escritores Novos (GEN). De acordo com
Moema de Castro e Silva Olival, em O Espaço da Crítica, “O GEN marca seu nas-
cimento, ocorrido em 1963, com um tom de polêmica, reflexões críticas, deba-
tes acalorados, num ideal de atualização em busca de renovação. Tom que vai
distingui-lo até sua dissolução em 1968-1969”. De acordo com Moema, “alguns
dos integrantes não passaram do primeiro fôlego”, mas outros “acabaram se con-
sagrando como referências nos gêneros que cultivaram e cultivam atualmente:
a) Maria Helena Chein; b) Heleno Godoy; c) Yêda Schmaltz; d) Miguel Jorge”.
Paralelamente ao GEN, escritores como Valdivino Braz e Antônio José de Moura
também se destacaram, compondo obras sólidas e premiadas.
Esses primeiros movimentos de vanguarda literária em Goiás abriram as
portas para que sucessivas levas de escritores surgissem no cenário desde a dé-
cada de 1980 até nossos dias. Alguns se firmaram, enquanto outros não. Como
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também é natural ocorrer, muitos deles se posicionaram abertamente como dis-


cípulos da geração de 1960, antes de se tornarem artisticamente emancipados.
Nesse sentido, não se pode falar de ruptura entre gerações, mas de continuidade,
ainda que, majoritariamente, sobretudo a partir da virada do século, os novos es-
critores tendam a se declararem como independentes, tanto de influências locais
quanto de filiações a propostas estéticas definidas. Resultado talvez da falta de
um movimento com a força que o GEN possuiu.
Sabe-se que a produção contemporânea de contos em Goiás caracteriza-se
pela multiplicidade temática e estilística. Como observou a professora Vera Ma-
ria Tietzmann Silva, no estudo introdutório do segundo volume da ótima Antolo-
gia do Conto Goiano que organizou no início da década de 1990, em parceria com
Darcy França Denófrio e Maria Zaira Turchi, produzimos “uma ficção múltipla,
variada, que abriga o tradicional e o moderno, o regional e o universal, o rural e o
urbano, o realista e o psicológico, o alegórico e o fantástico”. Em Goiás se produz
tanto o conto quanto o anticonto. Nas palavras de Wendel Santos, “o conto, em
sua realização positiva, quer um herói com o qual o leitor se sinta identificar-se
(...) o anticonto produz, como processo substituto, um certo distanciamento en-
tre leitor e herói”. Em suma, a despeito de todos os desdobramentos das últimas
décadas, em Goiás, ainda se escreve sobre a aldeia para a aldeia ao mesmo tempo
em que se escreve sobre a aldeia para o mundo e sobre o mundo para a aldeia e há
até quem escreva sobre o mundo visando o mundo.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O principal objetivo desse livro é realizar uma ilustração desse momento de


nossa literatura em prosa curta. Não temos a pretensão de mapear o cenário
ou esclarecer contradições. Tampouco pretendemos fazer uma seleção definitiva
do que seriam os melhores ou mais importantes contos produzidos por nossos
autores contemporâneos. O crítico Wilson Martins, em O Ano Literário 2000 —
2001, refletindo sobre a arte e a ciência de se produzir antologias concluiu que
“a melhor antologia é a que fazemos para nós mesmos”. Nesse espírito, optamos
pelo título Uma Antologia do Conto Goiano Contemporâneo. Reconhecendo as múl-
tiplas variações possíveis de autores e trabalhos selecionáveis, propomos UMA
perspectiva da questão.
Selecionamos vinte e três escritores, cada um contribuindo com uma peça.
Foi um processo polêmico, mas, acreditamos, gerou um conjunto representativo
do panorama. Estão presentes autores consagrados como Heleno Godoy, Miguel
Jorge, Edival Lourenço, Valdivino Braz, Delermando Vieira, José Fernandes e
Antônio José de Moura. Jovens autores em ascensão nacional como Wesley Pe-
rez e André de Leones. Intelectuais públicos com respeitável produção no gê-
nero, como Flávio Paranhos, Itamar Pires e José Carlos Guimarães. A literatura
feminina está muito bem representada por sete ótimas autoras: Maria Lúcia Fe-
lix Bufáiçal, Augusta Faro, Adelice da Silveira Barros, Maria Helena Chein, Yêda

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Schmaltz, Lêda Selma e a decana da crítica literária goiana Moema de Castro e
Silva Olival, em sua estreia literária. Também especialmente convidado para par-
ticipar dessa antologia foi o historiador Ciro Flamarion S. Cardoso, um dos mais
respeitados intelectuais brasileiros, que escreve ficção há décadas, sem preten-
sões de publicação, mas que gentilmente atendeu nosso pedido de revelar aqui
essa faceta de sua produção. Ficamos honrados em homenageá-los, reconhecen-
do a inestimável contribuição que deram para cultura brasileira. O escritor e pós-
doutor em Literatura Brasileira Ewerton Freitas e eu também comparecemos
com trabalhos. Essa antologia é dedicada à memória de um dos mais notáveis
autores presentes no livro, o scholar Carlos Fernando Magalhães; brutalmente
assassinado em 2009.
Concluímos que cada conto, sendo uma peça literária única e complexa, deve
ser analisado separadamente e não de modo rápido, en passant, numa buscar
por tendências gerais. Desse modo, depois das narrativas, incluímos pílulas crí-
ticas examinando-as à luz de suas propostas, estruturas e contexto dentro da
produção do autor. Assumimos essa tarefa dentro do espírito da crítica cultural,
conforme compreendida por José Guilherme Merquior: “o pensamento crítico
que anima estas páginas não busca apenas analisar ideias e formas — procura
surpreender as ideias e as formas, e também captar a forma das ideias”. Nosso
objetivo é auxiliar o leitor a penetrar nas entrelinhas da criação do conto, partin-
do de nossas experiências de leitura ou conhecimento técnico. Destacando que,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

conscientes da exiguidade do espaço, não temos nenhuma pretensão de esgotar


os assuntos abordados. Pretendemos, sim, iniciar debates, que podem e devem
continuar para além dessa antologia.
Convém salientar que, da mesma forma que os contos, essas pílulas críticas
também podem se mostrar multifacetadas, em termos de estilo e intenção. A
crítica literária não é, nem poderia ser uma ciência exata. Pode-se afirmar que,
tradicionalmente, existem duas tendências dominantes das quais todas as ou-
tras derivam: de um lado a concepção platônica de que a literatura deve ser com-
preendida como fonte de conhecimento sobre o homem, do outro Aristóteles e
sua percepção de que literatura é arte, e sendo arte deve servir, primeiramente,
para promover o prazer estético. É bem verdade que, atualmente, as duas escolas
encontram-se ineditamente próximas, mas não necessariamente fundidas, o que
contribuiu para a ampliação do foco.
Mas é preciso saber medir-se. Carpeaux lembra-nos de que “antigamente ti-
vemos muitos críticos sem teoria alguma. Agora temos muita teoria, uma flores-
ta tão densa que ninguém mais consegue distinguir as árvores”. O fundamental
é, adverte Harold Bloom, não perder de vista que antes da crítica existe a obra:
“caso pretenda desenvolver a capacidade de formar opiniões críticas e chegar a
avaliações pessoais, o ser humano precisará continuar a ler por iniciativa pró-
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pria”. Seja num alto nível acadêmico ou erudito, onde o leitor poderá tornar-se
um profeta da literatura, com autoridade para pregar, ou como leitor interessan-
do apenas na diversão, prazer estético, conhecimento ou evolução pessoal que
poderá adquirir.

Referências:
BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos: 1942 — 1978 — vol. I. Rio de Janeiro: Editora da Cidade /
Topbooks, 1999.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura brasileira — modo de usar. Porto Alegre: L&PM, 2008.
LUCAS, Fábio. O conto no Brasil Moderno. In: PROENÇA FILHO, Domício. O livro do seminário. São Paulo: L.
R. Editores, 1983. p.103 — 164.
MARTINS, Wilson. O ano literário 2000 — 2001. Rio de Janeiro: Top Books, 2005.
MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
MORICONI, Italo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica — panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998.
SILVA, Vera Maria Tietzmann; DENÓFRIO, Darcy França. Antologia do conto goiano I — dos anos dez aos
sessenta. Goiânia: CEGRAF, 1993.
SILVA, Vera Maria Tietzmann; TURCHI, Vera Maria. Antologia do conto goiano II — o conto contemporâneo.
Goiânia: CEGRAF, 1994.
SANTOS, Wendel. Crítica — uma ciência da literatura. Goiânia: Editora da UFG, 1983.
TELES, Gilberto Mendonça. Estudos Goianos II — A crítica e o princípio do prazer. Goiânia: Editora da UFG,
1995.
Adelice da Silveira Barros

Só porque era sexta-feira treze

É calor constante, incômodo. Ininterruptas labaredas comendo suas


costas feridas. Seria simples, um gesto apenas. O braço esticado, o dedo
em riste e o fim do mal-estar. Antes, era assim, agora, o aparelho de ar
quebrado.
Faz quase uma semana que ela vive naquele inferno e não tem ânimo
para chamar o técnico. Resolve ir à cozinha tomar um pouco de água bem
gelada. Passando pela sala de jantar, vê as horas no relógio de parede: 3:13.
Tinha que ter um treze. Na geladeira, o vidro vazio. Assim já é exagero,

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Gláucia, antes o vidro de água estava sempre cheio, agora é esse transtor-
no, pensa. Do mais esquecido fundo, seu lado genuinamente mulher põe a
cabeça para fora cobrando choro. Está para capitular, quando vê a porta do
banheiro. Entra. Faz um longo e ruidoso xixi em vez de chorar.
Três dias tentando escrever sua crônica semanal. Parece mentira, antes
eu escrevia numa sentada. Olha aí o antes outra vez. Antes não tivesse
conhecido o Matheu, teria evitado isso: minha vida dividida em antes e
depois dele.
Lembra-se de cada detalhe. Era um fim de tarde apressado como eles
são no jornal. O pessoal da impressão cobrando, exigindo agilidade. Uns
fechando a matéria, outros atrasados; aquele que nem chegou da rua, com
o furo do dia. Gritaria do chefe que se espuma em suor e banha. Entra e sai.
Máquinas trabalhando a todo vapor.
Como de costume, ela já havia entregado sua matéria. Sem pressa, pega
dentro da bolsa o estojo de maquilagem. Retoca o batom, aprovando a ima-
gem refletida no espelho. Não que acredite totalmente na verdade dos espe-
lhos. Em momentos de grandes reflexões, duvida deles. Não é esse o caso,
agora. Tem um encontro, daqueles sossegados, quase rotineiros.
Vê, primeiro, a mão estendida num gesto de cumprimento. Depois o
tórax que vai-se alargando até terminar em ombros quadrados. Saindo de
dentro da camisa de malha azul-marinho (adora camisas escuras), o pes-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

coço vigoroso. Antes não tivesse encarado aquele sorriso aberto, o olhar
penetrante.
Deveria ter-se precavido, era uma sexta-feira treze. Em vez disso, olhou.
E viu. E era o mais sedutor dos sorrisos. — Gláucia, pois não? — Pois sim. E
o senhor, quem é? — Ah, não, sem essa de senhor, pareço assim tão velho?
Ai, ai, ai, tanta beleza num dia aziago era para desconfiar. Desconfiou,
mas ficou ali parada, os joelhos trêmulos. Moreno, olhos claros, mãos vigo-
rosas. Se não é visão, só pode ser casado e bem. Sente um arrepio: E se for
soropositivo?
Era casado sim, disse que mal. Como é que ela ia saber se ele mentia, ou
pior, se era ou não aidético?
Vinha da sucursal de Recife. Ficaria três dias na cidade colhendo dados
sobre o escândalo da penitenciária. Ela tinha sido designada para acompa-
nhá-lo naqueles dias.
Não foram setenta e duas horas. Foi o tempo petrificado em momen-
tos de amor. Usou de seu prestígio para lhe abrir portas. Ele abriu para ela
portas de carro, elevador, apartamento. À medida que abria, ia fechando.
Garante que abriu também o coração. Falou da infelicidade no casamento.
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Da incompatibilidade generalizada. Ele era da lua, ela do sol. Não acredito


numa única palavra do que ele está dizendo. Não falou. Ficou quieta, ouvin-
do, imaginando. Ficou quieta ainda quando ele começou a desabotoar seu
vestido. Mente quando diz que não ama a esposa. Mente quando diz que
tem carinho por mim.
Calada, foi dele quantas vezes ele quis. No elevador, no carro, na cozinha,
no banheiro da penitenciária. A última vez, foi na cela abandonada de onde
os presos tinham fugido (misteriosamente) pouco antes de metralharem
meio mundo lá fora (a liberdade de uns é gaiola de outros). Havia uma barra
de ferro no chão. Exageraram e ela feriu as costas na barra enferrujada.
Ele se foi, não deixando endereço, telefone, nada. Entre carícias afoguea-
das, prometeu que voltaria. Ela não acreditou. Não disse não ter acreditado.
Nem por isso deixou de sofrer.
Deu para pensar em como seria a mulher que o aguardava no aeroporto.
Flashes rápidos (um olhar disfarçado para o vestido vermelho na vitrine,
um comentário casual sobre determinado perfume) possibilitavam a forma-
ção de pedaços de imagem. Deve ser morena, caso contrário ele não levaria
um vestido vermelho. Calèche: como eu, ela tem preferência por perfumes
secos. Pensava também em quadrantes de outros amores perdidos.
O tempo voltou a andar em ritmo de tartaruga. Só ficou o cheiro dele
entrançado em sua vida, e aquela desorientação na cabeça.— E a crônica,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Gláucia?— Amanhã.— Ontem você prometeu pra hoje. Gláucia, você nunca
foi assim!
Nunca, nunquinha mesmo. Estou na contramão do tempo, no contrário
de mim. O calor aumentando, labaredas engolindo aquele ponto nevrálgi-
co em suas costas. Resolve olhar no espelho. Pega um pequeno, ficando de
costas para o grande, do banheiro. Assusta-se. A ferida tinha aumentado.
Estava vermelha como uma rosa. Foi a verdadeira declaração de amor que
ele me deixou. Viva. Sei que as rosas têm vida curta. E essa? Não faz nada,
nem coloca mercurocromo.
Mais tarde, o braço, muito quente, começa a doer. Tem um nódulo na axi-
la. Com a ajuda do espelho pequeno, olha a ferida nas costas. Parecia ainda
maior e mais vermelha. Minha rosa de amor! Dói menos que a outra dor.
Dor de amor dói mais que as outras. Mais que qualquer ferida.
Não dormiu nem foi ao jornal. Não comeu. Ou comeu? Não sabe. Sente
uns calafrios estranhos e o queixo batendo descontroladamente. Sem o ca-
lor fica mais fácil dormir. Dorme, não dormindo. Por quanto tempo? Não
sabe dizer. Só sabe que a temperatura voltou a subir. É dia ou noite? Como
saber, se seus olhos não vêem mais que uma penumbra indecisa? Antes de

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se deitar, tinha fechado as cortinas, cuidadosamente. Aciona o interruptor.
A luz, milhões de fogos de artifício, explode em suas retinas. Devo estar
fazendo uma conjuntivite, não suporto a luz.
Permanece deitada (de lado), pensando nele (de frente), a dor repisada,
doendo uma dentro da outra. O coração batendo nas costas, no ritmo do
sofrimento, irrigando a ferida-flor-de-amor. Mas o que é a dor senão a con-
firmação da vida?! E a morte, não seria o não à dor? Então o que é a morte,
um ato de coragem ou covardia? Viver ou morrer, eis a questão... A campai-
nha. O braço estendido (como o dele) treme (o dele nunca tremeu). A chave
escapa de seus dedos enrijecidos, indo cair, sem ruído, na maciez do tapete.
Procura, em vão. Insiste, ainda, a campainha. Antes eu sabia onde fica a
chave reserva, mas agora... Deitada sobre o tapete, respira fundo, tentando
alcançar o ar que foge, em divagações... ou não? O cheiro do Matheu nunca
esteve tão próximo, é como se ele estivesse ali, detrás daquela porta! Ainda a
campainha. Amanhã eu encontro as chaves, amanhã, agora o sono é maior
que a vontade.
A última coisa que ela haveria de lembrar (se é que lembraria), antes de
cerrar para sempre as pálpebras, era o som de passos afastando-se em dire-
ção ao elevador e o cheiro dele sendo levado pelo ar inclemente.
Encontros e desencontros amorosos em
“Só porque era sexta-feira treze”
Ewerton Freitas

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás, Adelice da Sil-


veira Barros, goiana de Caçu, há muito tempo dedica-se a trabalhar artistica-
mente com as palavras. É de 1999 seu livro de contos Salada de capitães, ao qual
se seguiram outras obras e, também, alguns prêmios literários. “Só porque era
sexta-feira treze”, conto sobre o qual serão aqui tecidas algumas breves consi-
derações, foi originalmente publicado em Prisioneiros do vento sul, obra de 2002.
O tema do conto é o amor, sentimento retratado desde as primeiras mani-
festações literárias de que se tem notícia e posto em posição de destaque na Era
Romântica. Nesse aspecto, Gonçalves Dias, um dos poetas mais conhecidos do
Romantismo brasileiro, criou um poema — talvez um dos mais ternos dentre
todos os de sua obra — cujo título é “Se se morre de amor”, e cujo primeiro verso
constitui, em si mesmo, por parte do sujeito poético, uma pergunta indireta ime-
— 20 —

diatamente seguida de uma resposta, qual seja: “Se se morre de amor! — Não,
não se morre”. Assim se inicia o poema, em cujo desdobramento o poeta de-
monstra a sutil diferença entre uma paixão, que não passa de um “delírio” vivido
de forma pouco discreta, e a vivência de um amor verdadeiro, a qual só acontece
quando o indivíduo que ama, em relação à pessoa amada, não pode “fitar seus
olhos”, tampouco “ousar dizer” que ama. De acordo com a cosmogonia do poema,
o amor profundo, o verdadeiro amor, só pode ser vivido na plenitude de um mis-
tério, na profundidade de um segredo, pois “Isso é amor, e desse amor se morre!”.
É desse amor — ou seria melhor dizer da imensidão desse amor? — que nos
fala “Só porque era sexta-feira treze”. Ao contrário do que ocorre no poema de
Gonçalves Dias, porém, em que se vislumbra a possibilidade de os dois seres que
se amam terminarem juntos, vivenciando o gozo e a ventura da reciprocidade
de seu sentimento, nesse conto de Adelice parece não haver espaço para o surgi-
mento de um encontro sentimental genuíno — embora isso, como probabilida-
de, seja sugerido em determinado momento pela instância narrativa —, uma vez
que a protagonista prefere entregar-se à força centrífuga de seu amor, um abis-
mo secreto e individual ante o qual — e em razão do qual — acaba por sucumbir.
Narrado em terceira pessoa, tem-se, no conto, o relato de um encontro e de
um desencontro amoroso vivenciado por Gláucia, uma cronista de jornal que
sempre foi muito cumpridora de suas obrigações, até o dia em que conhece Ma-
theu, um repórter que viera do Recife para cobrir uma reportagem. Com ele a jo-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

vem cronista vive alguns encontros amorosos, até o momento em que ele retorna
para sua cidade e ela se vê sozinha e incapaz de trabalhar como antes ou, mesmo,
de lutar contra a imensa prostração a que se vê submetida logo depois de aquele
moreno de “olhar penetrante” ter retornado para sua cidade.
Quanto tempo passa até que Gláucia se veja no mais completo estado de
letargia? O ar condicionado pifou e ela não chama o técnico; prefere suar em
bicas ante o calor escaldante. Sente vontade de tomar uma água geladíssima e
o vidro d’água está vazio na geladeira. Não se sabe, no entanto, quanto tempo
dura esse lastimoso estado de miséria — ou autocomiseração — da protagonis-
ta, uma vez que uma das poucas indicações de tempo cronológico na narrativa
indica apenas o horário em que a mulher se dirige até à geladeira e se depara
com a garrafa vazia: eram 3:13, o que a faz se lembrar de que conhecera Matheu
numa sexta-feira 13.
Depois que se lembra disso, seu sentimento de autocomiseração — o qual
parece derivar de sua natureza pessimista — aumenta, até o ponto em que, em
determinado trecho da história, citando indiretamente Shakespeare, a narrado-
ra afirma: “Viver ou morrer, eis a questão...”. É da morte, então, que este conto
fala? Ou é sobre a vida que se tece o material narrado? É de um e de outro: assim

— 21 —
como na obra do criador de Romeu e Julieta, que trata tanto da morte quanto da
vida — com seus inusitados intercambiamentos —, neste conto de Adelice narra
a vida e — indiretamente — a morte de Gláucia, já que, presumivelmente, ela,
ao ouvir alguém batendo à porta, mesmo sentindo o cheiro do amado por detrás
dessa mesma porta, prefere entregar-se ao calor que lhe toma o corpo e ao inelu-
tável desejo de “cerrar para sempre as pálpebras”.
Se na obra do bardo inglês, porém, as personagens apaixonadas lutam para
viver a plenitude do seu sentimento — no que nem sempre alcançam êxito, ver-
dade seja dita —, neste conto da escritora goiana a protagonista prefere se entre-
gar sem reservas à morte, posto que opta por se entregar ao abraço de um sono
eterno ante a possibilidade de abrir a porta e reencontrar o seu grande amor.
Talvez faça isso porque deseja morrer antes do que o seu Romeu, digo, do que
o seu Matheu.
Certamente faz isso porque um amor, quando é profundo e secreto, como já
declarou Gonçalves Dias há quase duzentos anos, sim, “... desse amor se morre!”.


Referências:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.
GOTLIB, Nádia Battela (Org.). A mulher na literatura, vol. 2 e 3. Belo Horizonte: UFMG/ANPOLL,1990.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8. ed. São Paulo: Ed. Almedina, 2004.
Vadivino Braz

Quem matou o coronel?


(Conjecturas em torno do cadáver)

Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não. Deus
esteja. Guimarães Rosa é o cara e Grande sertão: veredas a prosa poética,
a obra-prima imbatível e perene, porquanto única. E o que temos, aqui e
agora, são meras conjecturas em torno de um cadáver já frio e rijo, em pleno
gozo do rigor mortis; o repouso do guerreiro no reino dos mistérios gozo-
sos e dolorosos da matéria em decomposição. Um morto feito de ficção e
realidade, donde semelhanças com pessoas e fatos reais não serem mera
coincidência, antes o corpo de delito — fato material em que se baseia a

— 23 —
prova de um crime — com os penduricalhos do discurso, tais como ainda
grafar-se conjetura com “c” no entremeio, a exemplo de veredi(c)to, a conso-
ante como um piercing de micção dos termos processuais, espumijando-se
nos mictórios dos tribunais do júri, senão quando em forma de adereço nos
anais do ânus, se o senhor me entende o artesanato verbal em referência
a uma geração tatuada e metálica, com perfurações de agulhas e balas em
toda parte do corpo, até nas partes pudendas. Sabido e consabido que nos
tribunais a sorte às vezes é lançada num jogo de dados viciados, de cartas
marcadas, e não me venham com a pecha de heresia jurídica. Genit (alea
jacta est). Até porque a sorte é fruto do acaso e este não consta dos autos do
processo.
Nhor não. Tiros ouvidos também não foram emissários de balas perdi-
das, oriundas de alguma famigerada favela, feito “marimbondos de chum-
bo querendo morder carne”, como se escreveu numa história de detetive
naqueles pockets books da década de 60. Alvejei mira no peito do coronel
Coronha, que não era nenhum ator global, Toni Tarântula, mas era o meu
coronel e não haveria de ser de mais ninguém. Metia-se em mim e me apa-
ziguava os grilos cotidianos com o Judiciário brasileiro, esse moroso emara-
nhado de labirintos que é a minha área de atuação, por onde ando e empino
meus glúteos e minhas glândulas mamárias e utilitárias, profissionalmente
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

falando, bem entendido, pois não sou de trajes sumários como tantas por aí,
umas tontas que, em se tratando de obter favores dos bastidores da Justiça,
só raciocinam e se sujeitam com os seus odoríficos orifícios. Ossos do ofício,
dizem elas. Pois sim. Do ofício, uma pitomba! Buracos sulfúricos da falta de
dignidade ou da pura sem-vergonhice, isso é que é. Putaria jurídica.
Nhor sim. Mirei o peito broncopeludo do meu coronel, ele com a visão e
a truculência características da caserna, tanto na disciplina de comandantes
e comandados quanto em suas vidas privadas, com as garras aduncas de
suas carícias e o jeitão brucutu de seus amplexos e acochos, peito com peito,
coxa com coxa, saliência com reentrância e assim a fome com a vontade
animalesca da querência. Vida e morte cabeludas, seu Severino. Mirei como
Deus mira seus raios no dia da ira e mandei bala com o som e a fúria de um
Faulkner atolado no álcool, que nem uma égua no brejo. É vero que também
cultivo a minha cultura etílica, inobstante o preço que se paga por sair da
linha de vez em quando, pois ninguém é só CDF do comando, como resmun-
gava o meu amado Coronha, lá com os cadarços de seus coturnos.
Por acerto de contas, tiros que o senhor ouviu foram de ciúmes que dele
eu tinha, e ódio que me deu aquela voz de mulher na secretária eletrônica
— 24 —

dele. E foi bem feito. Quem mandou ele me usar feito um CD, Lado A, Lado
B, e daí me trair, me trocando pela primeira traíra vagabunda que encontrou
e nem sei quem é? Porque, se soubesse — ah, se eu soubesse! Em primeira
instância, consoante os artigos, incisos e parágrafos em situações passio-
nais, acabava com ela só com arrancar-lhe os cabelos, como de praxe em
briga de mulher, ou então pegava ela no tiro certeiro, via telefônica mesmo.
Apertava o gatilho e metia bala na boca do fone pela linha afora até o ouvido
dela, pra ela nunca mais se meter, stricto e lato sensu, com o meu homem.
Em última instância, eu capava a piranha e enfiava-lhe a periquita fedorenta
no reto. E nem me releve, meritíssimo, por conta do meu estado emocional,
os termos de baixo calão, mas é que estou mesmo fula com a fulana, estou
pra lá de tiririca da vida com aquela sirigaita duma figa, se dando de ofere-
cida. Periquita que muito se oferece, não vale o preço duma birita ordinária.
Reconheço que agi ao calor do furor uterino enciumado, abraçada ao meu
rancor, parafraseando o saudoso João Antônio, que escreveu o conto sobre
afinação da arte de chutar tampinhas. Vai daí que atirei, mas não matei o co-
ronel Coronha, que não era o Bira do Jardins da paulicéia desvairada, mas era
o tantã-tumtum do meu coração desnudado, como diria o poeta Baudelaire.
E a Polícia Civil, se viu o que não viu, concluiu que Carlina Cipollia matou
o amante, coronel Guimatan Bira, aquele que, no que tinha de Guimarães,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

de Rosa não tinha nada, mas arrasou com os revoltosos da farra do Cariru,
torou no tiro cento e onze homens-números da escória social, que disso cer-
tamente não passavam aos olhos da sociedade; cento e onze elementos pa-
ridos pelas contradições do Sistema e por seus próprios distúrbios psíquicos
ou desvios de caráter, por má índole mesmo, própria do indivíduo, herança
da ferocidade ou do instinto primordial. Cento e onze reclusos, um atrás do
outro, como diria o debochado Clovildo, deputado debutante no covil das
serpentes, egresso de vida pregressa, pelo viés do cós do costureiro, e agora
inserido pela greta da urna, recipiente cívico que muitos ainda confundem
com penico. E que importa se Carlina Cipollia matou ou não matou? Claro
que importa, mas há problemas muito mais sérios afligindo o país, além
dos banais crimes passionais da vida em comum. A opinião pública é cínica
e já não liga muito pra fatos banais, embora se ligue em boatos, e se ainda
se liga é porque liga a televisão e se alimenta da titica cotidiana da mídia no
vídeo, ou então se deixa levar mais pela curiosidade própria do ser humano
e menos por qualquer outra razão ou nobreza de caráter. E já não liga muito
até porque a douta mãe de Carlina Cipollia, meio que sisuda e categórica,
sem nenhuma lágrima de cebola para o álibi da filha, disse que ela era ino-

— 25 —
cente, enquanto o presidente da República insistia que não viu e não sabia
de nada. De resto, inocentada foi, a priori, pela justiça, a ré em questão, mas
esperam-se novos desdobramentos para o caso. Plimplim! Assistam, agora,
ao Jornal Nacional.
Além do quê, meu nome é Vulvagina e meu caso aqui é outro e nem é
tripudiar sobre a dor dos outros; vá-se medir a dor alheia e ver se não é
maior do que a minha nesse país de lixões e urubus, surubas e bundalelês;
essa terra de cachorras preparadas do Tigrão, de gente patética e ridícula,
a par com urbanas turbulências e chagas purulentas. O mais é que os fatos
se deram conforme foram por mim relatados, e mais não digo nem me seja
perguntado. Posto o quê, peço deferimento e aumento de proventos. In du-
bio pro reu. Ao acusador o ônus da prova. Quem matou não fui eu, como diz
o Paraíba a fazer piada pra cima do delegado: Eu não mato não, doutor; eu
só faço o furo com a peixeira; quem mata é Deus. Aquela mesma conversa
do malandro engabelando a moça zelosa de seu hímen, dividida entre deixar
ou não deixar e com medo de doer. Deixa eu pôr só a cabecinha, que o resto
é só pra levar e trazer a cabeça. Olha só a conversa do moço. É mole? Não. É
duro. E o certo é que não matei. O Paraíba é minha testemunha. Quem ma-
tou o coronel Coronha foi a bala que saiu da minha arma. Eu apenas apontei
e apertei o gatilho. Se matou, foi porque Deus não interferiu, não desviou a
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

trajetória da benedicta bala, e a bala entrou. Se não entrasse, não mataria.


Uma vez disparada, a bala sempre encontra o seu alvo — o coração, a tampa
da caneta no bolso ou a medalha da santa que a pessoa usa. Quem ama, não
mata, e se mata é com bala de chumbo mentolado. Por outro lado, aplican-
do-se a homens truculentos, cabe aqui a pergunta do personagem de Horace
McCoy: Mas não se mata cavalo?
Elementar, meu caro Watson. E ahora el coronel no tiene quién le es-
criba. No hay quién escriba al coronel. Pois não se escreve para os mortos,
antes são eles que escrevem para os vivos, por meios psicográficos, uma
mina de ouro dos mortos pra muita gente viva, se me acompanham o du-
plo sentido. Ninguém escreve ao coronel. Também não se dá bom-dia aos
defuntos, embora um belo dia tenha-se dado o título ao romance do pe-
ruano Manuel Scorza. E gastar-se tinta pra quê, por causa de um coronel,
a essas alturas do irremediável, a essas horas da matéria pútrida, de uma
pátria em decomposição? A importância do morto é mais por conta do
alvoroço da imprensa e decorre da ligação do de cujus quando vivo com o
massacre do Cariru, caso contrário nem haveria suíte em novas edições,
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senão que e somente ao palato da necrofilia impressa, falada e televisiva.


Portanto, aos vermes o lauto banquete. Aos mortos, o silêncio e a solidão.
A tediosa eternidade. Ao final das contas, quem mata, mesmo, é Deus,
pois não está dito que Deus dá e Deus tira? Calha-nos dizer que o que tiver
de ser será ao deus-dará. E não nos venham com a válvula de escape ou
desculpa esfarrapada do livre-arbítrio para justificação dos crimes. Haveis
de convir com a defesa, senhores jurados, que, se é Deus quem mata, nin-
guém tem culpa de nada. Ninguém matou nem está matando essa gente
toda aí pelo mundo afora. Carnificinas, massacres, genocídios, tudo isso é
com o andar de cima. Somos todos inocentes sobre a face da Terra. Tanto
é que já libertaram Carlina Cipollia, e ainda que agora a acusação pretenda
recorrer dessa decisão. Sabiam que carlina é o nome que se dá a cada uma
das travessas que seguram as longarinas na construção de pontes? Carlina
Cipollia é um anagrama que se queria de mãos dadas, travessa e longarina,
com o seu coronel. A vida como ela é, diria Nelson Rodrigues. Cariru é um
vegetal, e brotos de cariru se comem refogados.
Quanto ao coronel da paulicéia, a ir-se pelo massacre do Cariru e pela Bí-
blia, o inverso é similar e a recíproca é verdadeira: quem confere ferro, com
ferro será conferido. Está escrito. Se a muitos matou no sangrento episódio
do Cariru, foi morto pelo ódio nos jardins do amor. Um conto é um conto.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Quem conta um conto, acrescenta um ponto. Se nos permite o leitor levá-lo


até o fim da linha, verá que o fim da linha sempre se encerra com um ponto
final, ainda que numa frase reticente.
Pelo exposto, é visto que Deus cria homens como quem engorda por-
cos, para matá-los. Assim, senhoras e senhores, ajuizadas as nossas míseras
conjecturas em torno do cadáver, é de supor-se, e este é o veredicto, que a
ré Vulvagina Quadrilábios de Oliveira — se há uma ré aqui —, é inocente.
Com um esforço do esfíncter, certamente ela mesma dirá à sua consciência
que, ao atirar no coronal Coronha, nada mais fez do que prestar-se a instru-
mento de Deus. Se alguém contrapor que ela agiu pelas mãos do demônio, é
bom lembrar que também o demônio é fruto da criação divina. Nada poderá
mudar isso, por mais que neguem, por mais que tentem, e a menos que des-
mintam as Sagradas Escrituras e mudem o que está milenarmente escrito,
inspirado, como dizem, pelo Espírito Santo. Donde se conclui que, se temos
um demônio, foi do céu que ele nos caiu. Caso encerrado.

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A angústia da influência em
“Quem matou o coronel?
(Conjecturas em torno do cadáver)”
Ademir Luiz

Não importa quanto tempo passe, Valdivino Braz segue sendo o enfant terri-
ble da literatura goiana. Nascido em Buriti Alegre (GO) em 1942, é figura polêmi-
ca, conhecida pelo senso de humor sarcástico. Orgulha-se de ser pedantemente
humilde, “almeja apenas o Prêmio Nobel”. Autodenominado O Pequeno Polegar
das Letras de Goiás, esforça-se para alcançá-lo. Poeta de envergadura, autor de
Trompa de Falópio, desenvolve desde 1966 seu work in progress, um grande ro-
mance, em dimensões e pretensões artísticas, do qual foi extraído As dores da
Terra Antiga, que se tornou O gado de Deus.
A principal característica de sua prosa é a polifonia. Escreve entrecruzan-
do diversas vozes narrativas, que expressam-se em primeira ou terceira pessoa,
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algumas vezes simultaneamente, por meio de citações difusas, piadas, ditados


populares, idiomas babélicos, redundâncias, metalinguagem, onomatopeias etc.
Nada é tabu ou previamente proibido. Valdivino Braz mantem seu leitor con-
tinuamente em teste, seja colocando em xeque sua inteligência, seu humor ou
sensibilidade moral. Às vezes, deliberadamente o ofende ou coloca-o no limite
da paciência. Impossível tê-lo como “autor de cabeceira”, pois não pretende ser
relaxante e muito menos ajudar a dormir. Sua intenção é perturbar, se possível
gerar insônia. Para Braz, a peça literária não pode trazer comodidade, deve ser
um desafio.
Um bom exemplo desse método está no conto “Quem matou o coronel?
(Conjecturas em torno do cadáver)”, integrante do livro Morcegos Atacam o Vam-
piro, de 2007, e, segundo consta, baseado numa história real, diretamente saída
das páginas policiais. A primeira linha já é uma bofetada. Valdivino Braz abre seu
texto escrevendo “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem
não. Deus esteja”. Exatamente a mesma abertura do clássico Grande sertão: vere-
das. Passado o impacto inicial, o leitor é constrangido a se perguntar como é pos-
sível que aquela frase tão conhecida esteja, sem aspas, em algum lugar que não
seja no romance de Guimarães Rosa. Terá Braz encarnado Pierre Menard, que
reescreveu o Quixote? Ou essa citação indireta que não poderia ser mais direta
sugere uma homenagem à Rosa? Ou será um amigável desafio ao mesmo Rosa?
Dependendo do perfil do leitor, qualquer uma das hipóteses pode gerar tanto
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

interesse quanto repulsa. O fundamental é que não se fica isento. Uma vez tendo
sido feita a provocação, resta a opção de entrar ou não no jogo.
Aposto na terceira opção, ainda que a frase imediatamente seguinte à citação
seja um festivo “Guimarães Rosa é o cara e Grande sertão: veredas a prosa poéti-
ca, a obra-prima imbatível e perene, porquanto única”. Contudo, quem almeja o
Nobel não se permite ficar na apologia pura e simples. Para o crítico norte-ameri-
cano Harold Bloom, em seu A angustia da influência, o jovem poeta sempre tenta
“matar” e superar o velho poeta que foi sua influência. É o Complexo de Édipo
aplicado à Literatura.
Superficialmente, “Quem matou o coronel? (Conjecturas em torno do cadá-
ver)” trata do julgamento de uma mulher amaldiçoada com o estranho nome de
Vulvagina Quadrilábios de Oliveira, acusada do assassinato de certo Coronel Co-
ronha. Ela se declara inocente, pois “quem matou o coronel Coronha foi a bala
que saiu da minha arma. Eu apenas apontei e apertei o gatilho. Se matou, foi
porque Deus não interferiu, não desviou a trajetória da benedicta bala, e a bala
entrou”. A voz narrativa é uma mistura de falas da ré, do advogado de defesa, do
promotor e do juiz, vindos de um sistema judiciário digno do País das Maravi-
lhas, tecendo um arrolamento surreal do caso. A conclusão é pela absolvição da

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ré, uma vez que não se pode barrar o destino de todo mortal que é morrer, “Deus
cria homens como quem engorda porcos, para matá-los”. Ajudar, não custa.
Porém, lendo nas entrelinhas, quando o conto se assume como “meras con-
jecturas em torno de um cadáver já frio e rijo, em pleno gozo do rigor mortis”, se
evoca o cadáver do homenageado: Rosa, “um morto feito de ficção e realidade”.
Algo que o leitor semântico pode entender como uma referência aos toques de
ficção e realidade presentes em toda investigação policial, que a rigor é uma es-
pécie de reconstituição de uma “história”, mas ao leitor estético não escapa que
talvez se esteja evocando a ficção e a realidade extraída da vida (realidade) e da
obra (ficção) do grande escritor mineiro. É um modo de interpretar sua onipre-
sença nessa narrativa tão pouco roseana.
De acordo com Laurent Jenny, a intertextualidade baseia-se na mistura dos
textos existentes, o citado e o que se está criando, estabelecendo ao mesmo
tempo novas possibilidades de leitura. Para ele, “o olhar intertextual é, então,
um olhar crítico”. Nesse sentido, freudianamente, Braz homenageia Rosa,
conspirando pelo seu lugar no panteão. Harold Bloom explica que quando colo-
camos “o precursor, em nossa própria obra, que determinados trechos da obra
dele parecem ser não presságios de nosso advento, mas antes devedores de
nossa realização”.
Vulvagina avisa que “tiros que o senhor ouviu foram de ciúmes que dele eu
tinha, e ódio que me deu aquela voz de mulher na secretária eletrônica dele”.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Trata-se de um crime passional. Todo amor extremado é produto de sentimento


de posse, avesso a concorrência, mesmo quando se admira o rival. “Aquela voz de
mulher” pode ser o murmúrio de Melpômene, a musa grega da poesia (da escri-
ta), nos ouvido de Rosa, inspirando-o a criar suas obras-primas. Sem essa voz o
que se têm é um medíocre Coronel “Guimatan Bira, aquele que, no que tinha de
Guimarães, de Rosa não tinha nada”.
O que se deseja aqui é ser o Rosa que têm tudo de Guimarães. Pretensão?
Sim, muita. Mas, diria Braz, “modéstia à parte, sem falsa modéstia e enviando
às favas a escrota humildade”, para que escrever se não for para ganhar o Nobel?

Referências

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Rio de Janeiro: Imago, 2002.


BRAIT, Beth. Guimarães Rosa — literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982.
BRAZ, Valdivino. Morcegos atacam o vampiro. Goiânia: Ed. da PUC — GO, 2007.
BRAZ, Valdivino. Agora que os dias e as andorinhas se foram. Goiânia: Ed. da PUC — GO, 2011.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica — panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril cultural, 1983.
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Maria Lúcia Félix Bufáiçal

Arminda

Gaio já não tinha forças contra aquilo. Aliás, há muito já não tinha for-
ças contra nada. Porém, aquela dormência na cabeça era demais: começa-
va na nuca, uma coisa estranha, meio fria, uma cãibra. O olho direito não
mais enxergava e qualquer luz era insuportável ao olho que lhe restava.
Às vezes parecia estar sonhando, nada era real. Metade de sua cabeça não
existia e ele estranhava o mundo, estranhava a si mesmo.
Gaio tinha medo de morrer, mas se pudesse se transformaria noutra
coisa, até num bicho, só para continuar existindo sem ser ele, sem sentir,

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sem lembrar. Queria, por exemplo, estar vivo quando nascesse o filho de
Aída, para ver Aída feliz, cheia de leite nos peitos. Sua filha era a única que
ainda o olhava como antes.
Um monstro, era o que diziam. Não se sentia um monstro, mas devia
ser. Sentia-se infeliz, não tinha mais prazer em nada, nada. Talvez fosse
um monstro que sentia cãibras na cabeça, como se a cabeça fosse um bra-
ço, uma perna, a mão.
Antes não. Antes fora um homem silencioso, calmo, que sofria de gas-
trite, ia à missa com Arminda, sua mulher, visitava os parentes. Nunca
chegava em casa esbravejando, como muitos; nunca reclamava, separava a
pimenta no prato por causa do estômago, tomava leite e comia pão ama-
nhecido antes de ir para a loja trabalhar.
Naquele dia (29 de agosto, quarta-feira, como ficara sabendo depois, no
julgamento), o pretinho Osnier não aparecera depois do almoço. E Gaio
lutava com a pior crise de gastrite de sua vida. Parecia que mão poderosa
torcia seu estômago na base, ele não conseguia respirar direito. A comida
queimava feito brasa em suas entranhas. A dor o curvava para a frente.
Às duas horas, não aguentou mais. Puxou cambaleante as portas de
aço da loja e foi caminhando devagar para casa, encostando-se de vez em
quando nos muros quentes de sol.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

No alpendre fresquinho o gato dormia. A porta da frente estava tranca-


da. Deu a volta pelo lado da casa e virou o trinco da porta da cozinha. Os
pratos ainda sujos estavam empilhados na pia. Sentou-se num banquinho
para descansar. A dor não cedia. Deixou o corpo cair para frente e lhe veio
uma vontade louca de chorar, desistir de tudo. Deitar naquele chão frio e
nunca mais levantar.
Caminhou para o quarto para tomar o remédio. Arminda estava deita-
da, quieta, o quarto parecia morno e escuro. Ela falou baixinho: “Quê que
foi, Gaio? Cê tá doente?” Parecia doente ela também, ali deitada, com a
coberta puxada até o queixo. Ele fez que sim com a cabeça e foi até a cô-
moda meio empoeirada, encostada à janela. Olhou para fora sem querer e
viu a cabeça de Gregório logo abaixo do parapeito, do lado de fora. Parecia
agachado. Era o Gregório mesmo, o cabelo liso, ralo, meio claro, a camisa
de um azul desbotado, quase branco, a não ser nas costuras mais azuis.
Gaio entendeu tudo. Lembrou-se da filha perguntar para Arminda: “Mãe,
a senhora acha seu Gregório bonito?” “Que nada, menina, né nada, só o
ôlho é que é bonito demais.”
O olho é que é bonito demais... Gaio pulou por cima da cômoda, Gre-
— 32 —

gório teve só o tempo de desviar o corpo e correr. Gaio ouviu o grito da


mulher enquanto puxava a camisa do outro. Gregório escapuliu e correu
para o fim do quintal.
O quintal era grande e sombrio, mesmo em dias de muito sol. Algu-
mas árvores eram bem antigas e haviam sido plantadas sem nenhuma si-
metria. O chão vivia sempre coberto de folhas que, nos feriados, Gaio às
vezes rastelava só pelo prazer de ficar no meio das plantas, fazendo tudo
bem devagar, olhando de vez em quando para cima quando ouvia um pas-
sarinho. E havia muitos sempre. De manhã cedinho, ele chegava na porta
da cozinha e observava aqueles voos rápidos que balançavam os galhos,
sacudiam as folhas. Frutas também havia muitas.
A três metros mais ou menos do muro do fundo, para além do qual
havia outro quintal, o chão era liso e sem vegetação. Lá é que as folhas
eram queimadas e o lixo da casa muitas vezes jogado, um pouco antes do
muro. Foi para lá que Gregório correu, na tentativa talvez de pular para
o outro lado.
O olho é que é bonito demais... Gaio corria enquanto sentia um amargo
na boca e seus olhos pareciam lavados em sangue. Via tudo vermelho no
sol quente. Gregório estava perto do muro, ele o agarrou, sentia uma força
imensa. Ficou cara a cara com Gregório, quis puxar seu nariz, arrancá-lo
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

do rosto. Puxava os cabelos, batia a cabeça de Gregório no muro, uma,


duas, muitas vezes, alguma coisa machucara sua mão, sentia um fogo por
dentro, um calor, ouvia o outro gritar: “Seu Gaio, pelo amor de Deus, tem
dó!” A boca de Gaio se encheu de cuspe, babava, gemia de ódio. Via a cara
do outro, via o suor escorrendo em seu pescoço, via os olhos cheios de
medo: duas fendas azuis.
Gaio arranhava a cara de Gregório, enfiava fundo a unha comprida na
carne do outro, sentia a pele ir se melando de sangue, os olhos apertados
aterrorizados... Ouvia gritos vindo de muito longe, muitos gritos. Via os
tijolos sem reboco, a cabeça de Gregório meio pendida e ele, Gaio, ferindo,
arrancando pedaços daquela cara maldita, enfiando sua unha na face, na
boca de Gregório. Não viu a hora em que enfiou a ponta da unha na fenda
estreita de um olho, no canto de dentro, forçou a entrada, o dedo entrou
num buraco úmido e estreito e veio trazendo uma bola molhada de lágri-
mas e sangue. Lembra-se de que urrou com uma espécie de júbilo. Gregó-
rio caía para o chão, mas uma das mãos de Gaio o segurava e puxava para
cima outra vez. A unha procurou o outro buraco, o outro canto, onde um
vão cedia à pressão do dedo. Era como se pegasse um passarinho dentro

— 33 —
de um oco de uma árvore e sua mão voltasse com aquela coisa tremente,
viva, redonda. Gritava de quase alegria. Enxergava tudo, sentia o sol em
suas costas, a camisa ensopada de suor. Seu estômago já não doía, suas
pernas não tremiam, só seus dedos estavam curvos, duros. Sentiu dificul-
dade para abrir a mão e deixar cair o segundo olho que ainda segurava.
Gaio foi andando de volta para casa. Sentia-se exausto, mas forte.
Nenhuma dor. Nenhuma dor. Só uma estranha dormência na cabeça.
O adultério feminino em
“Arminda”
Ewerton freitas

No conto “Arminda”, Maria Lúcia Felix Bufáiçal arma uma teia narrativa que
aborda um tema muito explorado na tradição literária ocidental — principal-
mente a partir do advento do Realismo —, qual seja o do adultério feminino.
Entrevisto, no entanto, pela ótica do marido traído, a qual é filtrada pelo discurso
de um narrador heterodiegético — para valer-me da tipologia narrativa proposta
por Gérard Genette —, esse tema, tão universal, é particularizado por meio do
retrato de um drama individual.
Nesse sentido, o texto da autora — uma carioca que é goiana da gema, posto
que apenas nasceu no Rio de Janeiro, e que é poetisa, contista, cronista, ensaísta,
memorialista, uma pensadora que estudou em Detroit, Estados Unidos —, é fiel
exemplar das considerações que o famoso poeta, ensaísta e crítico literário T. S.
Eliot tece em ‘Tradição e talento individual”. Segundo o crítico norte-americano
— 34 —

naturalizado inglês, o bom escritor é aquele que recorre à tradição e, a partir


dessa recorrência, inaugura o novo, que é novo não por ser necessariamente ori-
ginal, mas por fornecer novas possibilidades de leitura de algo que já pertence à
tradição.
Ora, nesse aspecto, em “Arminda”, Maria Lúcia recorre a um tema tradicional
a partir de uma abordagem nova e conferindo-lhe, por conseguinte, uma nova
roupagem, afinal não se tem a figura de um marido que remastiga sua dor, como
em D. Casmurro de Machado de Assis, nem a de homens de certo modo ingênu-
os, como em O primo Basílio ou Madame Bovary de Eça de Queiros e de Gustave
Flaubert, respectivamente, ou, mesmo, o retrato de um homem — apaixonado e
enciumado — que se equivoca, como em Otelo de Shakespeare.
Não. O que se tem, no conto de Maria Lúcia, é a história de Gaio, um homem
que, sendo muito pacato e ordeiro, um dia sente de um modo mais intenso sua
costumeira dor no estômago — dor que é metáfora e reflexo de tudo o que ele “en-
gole” em seu viver de homem extremamente calmo e silencioso — e, tendo voltado
mais cedo para casa, encontra a mulher, Arminda, sob as cobertas, aparentemente
enferma. Essa ilusão, no entanto, dura pouco, pois logo ele se dá conta de que,
rente à janela, do lado de fora, tinha um homem agachado: era Gregório, homem
que, segundo Arminda — disso Gaio se lembra muito bem —, é feio, tendo de belo
“só o ôlho é que é bonito demais.” Perseguido pela visão da cena presente e pela
memória auditiva dessa afirmação da esposa, o protagonista se esquece da dor no
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

estômago e, num átimo, pula a janela e consegue encurralar o amante de sua mu-
lher no fundo do quintal, onde, imerso em grande frenesi, acaba por arranhar o
rosto e arrancar, com dedos implacáveis, os dois olhos — claros, belos — do rival.
Interessante pontuar que não há a menção, por parte da narradora, de mur-
ros, socos, pontapés ou, mesmo, recorrência a armas, sejam de fogo sejam bran-
cas; o que se tem é a atitude de um homem que, em essência, acaba lutando como
uma mulher, já que “enfiava fundo a unha comprida na carne do outro, sentia a
pele ir se melando de sangue, os olhos apertados aterrorizados...”, o que parece
evidenciar que se trata de uma personagem que, mais que os brios de macho,
teve a vaidade ferida e, desse modo, ao cegar o rival, destrói o que sua esposa,
nesse mesmo rival, considerava mais belo.
Todavia, como apregoa a antiga lei do Código de Hamurabi, a “Lei de Talião”,
com o passar do tempo Gaio acaba perdendo a visão, visto que, logo no início
da narrativa, o narrador afirma, acerca do protagonista, que seu “... olho direito
não mais enxergava e qualquer luz era insuportável ao olho que lhe restava”, de
maneira que ele se vê privado, inexoravelmente, daquilo que privou no outro: a
capacidade de ver a luz, de contemplar o dia, as coisas, a vida.
E em que época do ano Gaio perpetra o seu crime? Segundo uma marcação

— 35 —
cronológica do texto, esse fato fatídico acontece no dia “29 de agosto”. Conforme
já vaticinara Maria Valéria, uma das principais personagens de O tempo e o vento
de Erico Veríssimo, “agosto, mês de desgosto”. E o desgosto de Gaio, em seu des-
gostoso agosto, vem pelos olhos, do mesmo modo que pelos olhos ele se vinga.
Sua única sorte nisso tudo — se é que se pode chamar de sorte — é que a dor
que sente no estômago o abandona, substituindo-a uma “dormência na cabeça”,
acompanhada da sensação de que parte de si não vivia com os pés fincados no
real. Seria essa dormência a metáfora da memória da traição? Talvez, conside-
rando-se o local onde — também metaforicamente — os chifres nascem...

Referências:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.
GOTLIB, Nádia Battela (Org.). A mulher na literatura, vol. 2 e 3. Belo Horizonte: UFMG/ ANPOLL,1990.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8. ed. São Paulo: Ed. Almedina, 2004.
Ciro Flamarion S. Cardoso

Meryt

O professor Carlos Fernandes Canhedo chegou ao campus da Univer-


sidade Federal Fluminense. Pagando o táxi — normalmente ia a pé, mas
havia-se atrasado para uma entrevista —, encontrou-se com um colega do
Departamento de História que trancava seu próprio carro ao lado de onde
Carlos descera no estacionamento. Era uma clara tarde de agosto: a baía
de Guanabara e, ao longe, o Rio e suas montanhas formavam um contraste
agradável com o azul profundo de um céu de inverno sem nuvens.
— Oi, Carlos — saudou o colega.

— 37 —
— Oi.
— Não é todo dia que vemos um carro daqueles por aqui: um Porsche,
nada menos!
O professor Carlos jamais aprendera a dirigir e, em matéria de carros, só
conseguia distinguir o fusca e a kombi. Podia notar, no entanto, que o au-
tomóvel vermelho tão vistoso designado por seu colega devia custar muito
dinheiro. Talvez pertencesse ao desconhecido que telefonara à sua casa pela
manhã, pedindo-lhe tão insistentemente que o recebesse.
Ao chegar ao quarto andar do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
onde ficava o seu gabinete, viu um homem de talvez trinta anos que olhava
a paisagem por uma das janelas que davam para o mar, perto dos eleva-
dores. Sim, devia ser o dono do carro vermelho. Vestia calça, camisa polo
e mocassins nada pretensiosos mas evidentemente caros. E segurava uma
maleta de couro de tamanho médio.
Deixando a janela e voltando-se para ele, o desconhecido viu um senhor
de estatura média, calvo, de óculos, com jeito de solteirão. O que correspon-
dia bem à descrição que lhe fizera o amigo comum em cujo nome telefonara
ao professor.
— Professor Carlos?
— Sim.
— Sou Cristiano de Sousa Moutinho. Muito prazer.
— Igualmente.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Bonita paisagem vocês têm aqui — comentou o visitante enquanto


caminhavam até a sala de Carlos.
— É... E é também a única coisa boa que ganhamos quando nos muda-
mos do centro de Niterói para este campus.
— Quando? Há uns dez anos, suponho?
O professor riu.
— Isso parece, não é? O prédio dá a impressão de já estar meio arruinado,
mas tem a metade do tempo que você supôs, até um pouco menos. Material
de construção de qualidade inferior, falta de acabamento, pífia manutenção...
Chegando à sala, Cristiano notou que era isso mesmo. A metade do teto
não tinha forro, deixando ver uns canos. E a maioria das lâmpadas fluores-
centes não acendia. Disse:
— Que pena que o seu gabinete dê para o outro prédio e não para a baía!
— Também acho. A distribuição das salas de professores, quando viemos
para cá, não seguiu critérios acadêmicos, naturalmente: foi feita “democra-
ticamente”, por sorteio. Com o resultado — previsível em nossa república
corporativa universitária — de que muitas das salas situadas do lado “certo”
ficam fechadas, sem uso, por meses a fio às vezes. Há algumas, mesmo, que
nunca vi ocupadas. Esta sala não é só minha: eu a divido com dois colegas.
— 38 —

Quando um de nós está reunido com um grupo de alunos, os outros às ve-


zes não têm para onde ir.
— Oh.
— Muito diplomático de sua parte limitar o seu comentário a um mero
“Oh”. Mas você não veio ver-me para conversarmos sobre as mazelas de
uma universidade federal que, como as outras do país, perdeu quase de
todo o rumo e os meios, não é mesmo?
— Como lhe disse pelo telefone, queria pedir a sua ajuda numa questão
egiptológica. Jaime Gadelha, que me deu o seu telefone, garantiu-me que
era a única pessoa que poderia ajudar-me. Agradeço-lhe ter-me recebido
tão prontamente.
— O Gadelha é um bom amigo. Espero que não se ofenda, mas você
não parece alguém que tenha algo a ver, de longe ou de perto, com o Egito
antigo.
Cristiano riu. Ambos estavam já sentados dos dois lados de uma das
escrivaninhas vagabundas — havia duas na sala estreita, cujo mobiliário
formavam com algumas cadeiras, dois armários de qualidade inferior e um
velho fichário de metal enferrujado.
— Eu sei... Pareço o que sou: um playboy rico! E, até pouco tempo atrás,
de fato minha relação com o Egito dos faraós limitou-se a gostar vagamente
de sua arte. Há dois meses, porém, entrei na posse da herança de um tio-avô
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

de Petrópolis, um colecionador de bugigangas. Percorrendo sua casa para


ver o que continha, achei algo interessante em meio a um montão de obje-
tos sem valor. Veja.
Abrindo a maleta, tirou e depositou sobre a escrivaninha algo que arran-
cou do professor uma exclamação involuntária de surpresa.
Era um tabernáculo de madeira coberta de estuque, brilhantemente
pintado de cores vivas, com inscrições perfeitamente conservadas. Mas as
surpresas não haviam terminado ainda. Cristiano levantou a porta do ta-
bernáculo, que se encaixava em dois sulcos laterais, e Carlos viu diante de
si a estatueta sorridente de uma bela mulher, também de madeira coberta
de estuque pintado, cuja base encaixava-se numa concavidade retangular
na parte de baixo do tabernáculo, evidentemente escavada para recebê-la.
O tabernáculo teria uns quarenta e cinco centímetros de altura; a estatueta,
talvez trinta.
Após terem ambos contemplado, embevecidos, o sorriso ao mesmo tem-
po maroto e misterioso da imagem de lábios carnudos e sensuais, Cristiano
comentou (e o professor reparou que falava em voz baixa, como que respei-
tosamente):
— Adorável, não acha? Veja o corpo esbelto e perfeito, modelado pela

— 39 —
roupa semitransparente, o largo colar, os olhos enormes, a peruca pesada...
Sacudindo o estupor que o acometera à vista daquelas maravilhas, o pro-
fessor balbuciou:
— XVIIIa dinastia, século XIV antes de Cristo, provavelmente da época
do faraó Amenhotep III, um dos períodos mais elegantes da arte egípcia.
— Autêntica?
— Oh, sim. Sabe, é quase impossível falsificar peças estucadas. E basta
olhar para esta... maravilha para se ter segurança de sua autenticidade.
— Eu sabia! — exultou Cristiano.
— Só não entendo como algo de tanto valor pôde ser contrabandeado
para fora do Egito. Sabe como o seu tio-avô adquiriu o tabernáculo com a
estatueta?
— Não... eu visitei meu tio poucas vezes. Ele me mostrou muitas coisas,
mas nunca estas. Sei, porém, que esteve no Egito uma única vez, na déca-
da de quarenta, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Professor... sem
abusar de sua paciência, pode me dar uma ideia do que dizem os textos
hieroglíficos do tabernáculo?
— Vamos ver... Repare, os hieróglifos na porta do tabernáculo e na base
da estatueta são idênticos.
— O que dizem? — a voz de Cristiano soava ansiosa.
— Espere um pouco...
O professor tirou uma folha de papel e uma caneta esferográfica da pasta
que trouxera consigo. Disse:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Tenha um pouco de paciência enquanto copio o texto e o traduzo.


Passaram-se uns minutos enquanto Carlos trabalhava. Por fim, passou
a folha a Cristiano. Este viu no papel uma linha de hieróglifos desenhados
e, abaixo, uma linha de caracteres um tanto estranhos e, por fim, a seguinte
tradução:

Repetir a vida, pela venerável conhecida do rei, sacerdotisa de Hathor,


Meryt, justificada.

Carlos explicou:
— Os hieróglifos estão desenhados verticalmente, de cima para baixo
numa única coluna, na porta, e em quatro colunas, da esquerda para a di-
reita, na base da estatueta; mas, como lhe disse, o texto é o mesmo. Eu o
copiei numa linha horizontal para poder pôr debaixo a transcrição fonética
e a tradução.
— O nome dela é Meryt!
— Sim. Significa “amada”. Um nome bastante comum.
— Mas... o que quer dizer esta frase, afinal?
— Eu a traduzi o mais literalmente que pude. O sentido seria, numa
— 40 —

tradução mais livre, que Meryt voltaria a viver, ressuscitaria. “Venerável” e


“justificada” (entenda-se: justificada diante do tribunal de Osíris, o deus dos
mortos) são formas respeitosas de referir-se às pessoas falecidas. “Conhe-
cida do rei” é título honorífico: quer dizer que Meryt, quando viva, tinha
acesso à corte faraônica. Também em vida, ela foi sacerdotisa da deusa Ha-
thor — a deusa do amor e das coisas agradáveis para os egípcios.
— Meryt... — repetiu Cristiano baixinho.
Após um silêncio, pediu, voltando-se ansiosamente para o professor:
— E os outros textos?
— Bem, posso traduzir agora o que se repete, idêntico, dos dois lados do
tabernáculo. O do fundo do mesmo, porém, é muito longo, levaria horas. Só
poderei traduzi-lo se você me emprestar a peça por uns dias...
Vendo a expressão consternada do outro, Carlos sorriu e continuou:
— ...ou me mandar uma fotografia nítida da inscrição.
— Farei isso, sem falta! — garantiu Cristiano, aliviado.
— Está bem. E agora, espere um pouco e lhe farei a tradução da inscrição
repetida dos dois lados do tabernáculo. Dê-me aqui o papel...
Quando o recebeu de volta, Cristiano percebeu, abaixo do texto que vira
antes, outra linha de hieróglifos acompanhados do que agora ser uma trans-
crição fonética dos mesmos e, por último, a tradução:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Uma oferenda que o rei faz a Amon-Ra, senhor de Karnak, (para


que) ele dê invocações e oferendas (em) pão, cerveja, gado, aves, (vasos de)
alabastro, tecidos, incenso, unguento, todas as coisas boas e puras de que
vive um deus, para o ka da venerável Meryt, justificada.

Notando o ar um tanto perplexo de Cristiano ao ler aquilo, Carlos expli-


cou-lhe, antes que perguntasse:
— Esta é uma fórmula para garantir ao ka da morta — sendo o ka um
dos componentes da personalidade para os egípcios antigos — os elemen-
tos rituais e de subsistência sem os quais ela não poderia viver para sem-
pre, segundo as crenças da época. Em princípio, tais elementos decorreriam
de oferendas materiais feitas a intervalos regulares na capela da tumba, ou
recebidas num templo onde fosse instalada a sua estátua para partilhar o
recebido todos os dias pelos deuses. Esta inscrição é uma espécie de ga-
rantia: como os egípcios acreditavam que as palavras eram as coisas que
representavam, esta inscrição traria a Meryt em forma mágica o benefício
das oferendas mesmo se, materialmente, elas cessassem por alguma razão.
A fórmula de oferenda era feita segundo velha tradição em nome do rei,
mesmo quando não fosse ele quem, de fato, garantisse o culto funerário do

— 41 —
defunto em questão.
Depois de reler ambos os textos, Cristiano pôs-se de pé.
— Fico-lhe imensamente grato, professor. Eis o meu cartão. Pode me
dar o seu? Assim, eu lhe enviarei pelo correio dentro de poucos dias a foto
da inscrição do fundo do tabernáculo. O senhor me avisará quando tiver a
tradução e virei buscá-la.
— Não tenho cartão. Escreverei o endereço no papel que lhe dei com as
traduções.
Feito isto, Cristiano perguntou, vendo que Carlos também se preparava
para partir:
— O senhor tem carro, ou posso deixá-lo em algum lugar?
— Se quiser mesmo... Moro perto daqui, no Ingá.
— Será um prazer.
Enquanto dirigia seguindo as indicações de Carlos quanto à rota, em
dado momento Cristiano perguntou:
— Professor Carlos, o senhor poderia dar-me aulas particulares de lín-
gua egípcia? Eu lhe pagaria o que quisesse cobrar.
— Hum, que interesse tão súbito é esse? Parece até que se apaixonou pela
bela Meryt, morta há três mil trezentos e poucos anos...
Cristiano ruborizou-se.
— Bom, o que diz?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Eu não dou aulas particulares, Cristiano. Mas, se quiser, você poderá,


no próximo semestre, assistir como ouvinte ao meu curso regular de língua
egípcia, na pós-graduação, se até lá o seu entusiasmo não arrefecer.
— O senhor quer dizer a partir de março do próximo ano?
— Não: quero dizer a partir do mês que vem. Estamos em agosto, mas
ainda no primeiro semestre letivo, devido a uma greve que durou mais de
quarenta dias. O próximo semestre letivo irá de fins de setembro até janeiro.
— Como podem trabalhar assim? — espantou-se Cristiano — Instala-
ções abaixo da crítica, greves longas que devem ligar-se a salários ruins...
— Trabalhamos precariamente, claro! O curioso é que, mesmo assim,
muitas coisas válidas são feitas, por incrível que pareça.
— E os políticos, já que querem o voto de vocês, não poderiam fazer
algo pelas universidades públicas? Vi tantas faixas e cartazes no campus!
Suponho que a campanha eleitoral deste ano tenha começado lá antes do
que em outros lugares.
O professor riu.
— Você não leu as faixas e cartazes que percebeu no campus, ou teria
notado que são propaganda de meia dúzia de candidatos a reitor, numa
eleição que breve ocorrerá.
— 42 —

— A reitor? Mas...
— É, eu sei. E você não viu as casas e salas alugadas pelos comitês elei-
torais.
— Numa eleição para reitor?! Mas... por que, o que justifica isso? Quem
financia e com que finalidade?
— Eis aí perguntas que eu prefiro não fazer. Tenho certeza de que as res-
postas não me agradariam. Vire aqui, por favor.

2.
Três dias depois, o professor Carlos recebeu pelo correio uma excelente
fotografia da inscrição da parte de trás do tabernáculo de Meryt, acompa-
nhada de uma carta de Cristiano:

“Professor Carlos:

Como sou fotógrafo amador, eu mesmo tirei e revelei a foto. Fiz vá-
rias tentativas: envio-lhe a que saiu mais nítida.
Peço-lhe que não me mande a tradução pelo correio. Quando a ti-
ver completado, por favor avise-me pelo telefone e combinaremos uma
entrevista, segundo sua conveniência, para que eu a vá buscar. Deste
modo poderei contar com as suas explicações acerca do texto. Pelo que
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

pude constatar a partir das inscrições menores, sem tais explicações eu


provavelmente o entenderia muito pouco.
Sou perfeitamente consciente de todo o trabalho que lhe estou dan-
do. Fico-lhe imensamente grato, ao seu dispor para o que precisar.

Até breve,
Cristiano.”

“P.S. — Além das suas próprias obras, comprei o que pude achar nas livrarias do
Rio em matéria de livros sobre o antigo Egito, em inglês e francês na sua maioria. Já
comecei a lê-los. C.”

O professor pensou: “Vamos ver até quando vai durar a mania deste ra-
paz pelo Egito... Normalmente desaparece ao primeiro contato com uma
língua morta tão difícil quanto a egípcia. Já veremos...”
Naquele mesmo dia e no seguinte, devido às obrigações na universidade,
não pôde ocupar-se com o longo texto, escrito em hieróglifos miúdos que
formavam numerosas linhas. No fim de semana, porém, trabalhando com
persistência, pôde concluir a tradução. Telefonou, então, a Cristiano no do-

— 43 —
mingo à tarde:
— Já tenho a tradução.
— Que bom! Pode adiantar-me do que se trata, em linhas gerais?
— Posso, claro. Trata-se de uma variante do encantamento número
64 do Livro dos mortos. O título é: “Encantamento para conhecer os en-
cantamentos que permitem sair à luz do dia, reunidos num único tex-
to”. Segundo acreditavam os egípcios da época, este capítulo permitiria
ao morto visitar o mundo dos vivos, nele permanecendo ou voltando ao
mundo dos mortos quando quisesse, além de propiciar-lhe assumir qual-
quer forma que desejasse e garantir-lhe que o seu próprio espírito não
conheceria uma segunda morte.
— Tudo isso num único texto?! Escute, professor, eu estou sobre brasas,
aflito para ler a sua tradução e ouvir as suas explicações acerca do que tra-
duziu. São quatro da tarde. Será que abusaria demais de sua paciência se o
convidasse para jantar hoje e o senhor então me desse o que escreveu?
O professor Carlos, um solteirão pacato, não tinha qualquer compromis-
so aquele domingo. Por outro lado, não apreciava imprevistos que afetas-
sem a sua rotina. Notara, porém, real ansiedade na voz de Cristiano, fazen-
do com que se lembrasse de seus próprios entusiasmos intelectuais quando
mais jovem, por vezes exigentes e impetuosos. Respondeu, então:
— Está bem, Cristiano. Como faremos?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Muito obrigado por aceitar assim em cima da hora, professor! Passa-


rei de carro para buscá-lo às sete e meia, está bem? Iremos ao restaurante
de sua escolha.
— Combinado. Toque o interfone ao chegar e descerei sem demora.

***
Apesar da impaciência que sentia em conhecer o texto do tabernácu-
lo, ao se instalarem num restaurante especializado em frutos do mar em
São Francisco, bairro praieiro de Niterói, Cristiano sugeriu que deixassem
aquilo para depois de comer. Assim, até então conversaram sobre assuntos
gerais, sobretudo as diversas viagens ao exterior que cada um deles havia
feito. Carlos ficou sabendo, ainda, que Cristiano era órfão há vários anos,
morava sozinho no Cosme Velho na velha casa onde antes vivera com os
pais e tinha uma noiva, Rosana: planejava casar-se no ano seguinte. Havia
iniciado o curso de Engenharia uns anos antes, mas não chegara a formar-
se, tendo desistido de uma carreira que, na verdade, não o atraía.
Depois do café, o professor tirou sem mais delongas de um grande en-
velope e passou ao outro várias folhas de papel, juntamente com a foto da
inscrição. Explicou:
— 44 —

— A inscrição está escrita em linhas que neste caso, como as nossas, de-
vem ser lidas de cima para baixo; da direita para a esquerda, porém. Como
eu queria pôr em baixo a transcrição fonética e a tradução, tive de rede-
senhar os hieróglifos, nestas folhas de papel, da esquerda para a direita.
As linhas estão numeradas segundo a mesma numeração que marquei na
própria fotografia usando uma caneta.
— Quanto trabalho teve, professor! — a voz soara contrita —. Bem, se
me dá licença...
— Sim, claro, leia!
Aquele texto era bastante longo. E, como não o ignorava Carlos, pouco
menos que ininteligível para quem não conhecesse a religião e a magia egíp-
cias. Mesmo assim, Cristiano leu até o fim. Sacudiu então a cabeça, assobiou
baixinho e comentou:
— Meu Deus, que coisa mais alucinada, mais sem pé nem cabeça! O
título e esta parte do final que o senhor pôs em maiúsculas...
— Chama-se rubrica — interrompeu-o o professor para explicar.
— Bem, essas partes mostram as finalidades do texto — que o senhor já
havia explicado ao telefone — e são claras. Mas o próprio texto não parece
concatenar-se com tais finalidades. Por exemplo, não vejo o que possam
ter a ver com o desejo de sair à luz do dia frases como estas.
Cristiano leu:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

“Quem é, pois, aquele que morde no reino oculto? Eu sou aquele que
preside sobre Rosetau, que entrou em seu nome e saiu como aquele que
procura, senhor dos milhões da terra, que fez o seu próprio nome.

— É, eu sei. Ainda assim, os egípcios antigos, que acreditavam na magia


das palavras, achavam que o próprio som dos textos mágicos contidos no
que nós chamamos de Livro dos mortos — para eles eram os Capítulos de
sair à luz do dia — de alguma maneira surtiria os efeitos desejados, ao se-
rem tais textos pronunciados pelo morto renascido ou por outra pessoa em
seu nome. E, embora esses textos de fato pareçam loucos, não deixam de
encerrar algum sentido para os que conheçam a mitologia egípcia.
Cristiano encarou-o, sério.
— O que devo fazer para vir a conhecer essa mitologia, professor? Além
de estudar a língua egípcia como seu aluno ouvinte a partir do mês que
vem, quero dizer.
— Já que está tão decidido, façamos assim: eu selecionarei alguns livros e
artigos que deverá ler. Você os pegará comigo na universidade e os copiará.
É preciso, já que são textos difíceis de conseguir, alguns já esgotados. Não
os posso emprestar por longo tempo mas, desde que os copie rapidamente...

— 45 —
— No mesmo dia, professor, nem que ponha várias pessoas a copiá-los
para mim em diversas máquinas. Quando quer que eu passe para buscá-los?
— Quarta-feira pela manhã está bem?
— Está ótimo. De novo, agradeço-lhe muito por tudo o que tem feito e
ainda vai fazer por mim.
— Tudo bem. Só não entendo um empenho tão grande e repentino por
algo que antes não lhe chamava a atenção.
— Professor, aquela estatueta se tornou a minha obsessão. Pelo menos de
momento, é o única coisa em que penso. Minha noiva está até aborrecida
por tal ideia fixa. Tentei interessá-la no assunto, sem conseguir... Eu decidi
aprender tudo o que puder sobre Meryt, os textos de sua estatueta e taber-
náculo, sua civilização. E o senhor verá que sou muito persistente: quando
decido fazer alguma coisa, vou até o fim.
— Como no caso do curso de Engenharia? — brincou Carlos.
— Oh, não: aquilo havia sido ideia de meu pai, não minha. Ele já estava
doente ao encasquetar que eu deveria ser um engenheiro e não quis ir con-
tra um desejo seu. Logo que ele faleceu, deixei o curso. O senhor verá que
não estou brincando quanto à Egiptologia.
— Pois muito bem. Estarei esperando que venha pegar os textos e copiá
-los na quarta-feira, para começar.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

3.
Na quarta-feira, bem como nos meses seguintes, Cristiano cumprira
tudo o que havia prometido. E mais: apesar de ouvinte, foi o melhor aluno
do curso de egípcio. Terminado este, fez uma viagem à Europa e outra aos
Estados Unidos especialmente para adquirir, sob a orientação de listas pre-
paradas pelo professor Carlos, uma verdadeira biblioteca especializada em
Egiptologia, atualizando-a a seguir através de compras feitas por catálogo
e assinaturas de revistas. Tal biblioteca foi instalada em sua casa do Cos-
me Velho para a continuação de seus estudos. Como Cristiano não tinha
limitações de dinheiro, seu acervo de publicações tornou-se, mesmo, mais
completo do que o do próprio professor. Este, a convite do dono, passou a
usar a nova biblioteca com alguma frequência. Na grande sala onde a mes-
ma foi montada, estava exposta em lugar central a estatueta de Meryt em
seu tabernáculo.
Foi para lá que, uma tarde, após trabalharem ambos por algumas horas,
Cristiano trouxe um gostoso café espresso que tomaram enquanto conver-
savam.
Cristiano perguntou de súbito, os olhos fixados no sorriso de Meryt:
— O que são, de verdade, esta estatueta e seu tabernáculo, professor?
— 46 —

— Saber com certeza eu não sei. Vou lhe dar a opinião que aceito. No
terceiro milênio antes de Cristo, as estátuas dos mortos ou às vezes sim-
plesmente representações de suas cabeças, postas na tumba, eram vistas
como eventuais substitutos da múmia, se esta fosse destruída por qualquer
circunstância, para servirem de receptáculo ao ka e outros elementos ou
componentes da personalidade do defunto, permitindo de tal modo que ele
renascesse mesmo sem a múmia, que era o receptáculo... natural, digamos
assim. Embora para o período bem posterior em que viveu Meryt tenhamos
menos dados explícitos sobre isto, eu acho que a sua estatueta foi feita para
cumprir uma função similar. Daí que, neste caso específico, se escolhesse,
para o fundo do tabernáculo, reproduzir o encantamento número 64 do
Livro dos mortos — talvez o mais importante de todos, posto que de certo
modo resume o conjunto total dos encantamentos: é como um concentrado
da magia daqueles textos. Assim, a estatueta se necessário poderia substi-
tuir a múmia perdida e o texto do tabernáculo supriria, por sua vez, a perda
eventual do Livro dos mortos escrito em papiro, cujo rolo certamente foi
depositado na tumba de Meryt, como em todas as tumbas importantes.
— Em outras palavras, o tabernáculo e a estatueta bastariam para garan-
tir a sua ressurreição.
— Um egípcio antigo provavelmente pensaria assim.
Após um silêncio aproveitado para terminar de saborear o excelente
café, Cristiano anunciou:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Professor, pretendo me especializar no problema da vocalização da


língua egípcia faraônica. O fato de os egípcios grafarem só as consoantes e
semiconsoantes nos impede de saber como soavam de fato as palavras, mas
será mesmo impossível reconstituir o som destas?
— Bem, nesta biblioteca você tem o suficiente para familiarizar-se com
os elementos indispensáveis para o tentar: por exemplo a forma copta, tar-
dia, do egípcio, escrita com caracteres gregos e portanto contendo as vogais;
e as teorias a respeito da vocalização do egípcio faraônico elaboradas por
vários egiptólogos, em especial o egípcio Abd-el-Mohsen Bakir.
O professor pensou subitamente em algo:
— Ei, espere aí! Por que tal preocupação com o som real das palavras
egípcias? Você não está pensando, por acaso, em testar a eficácia da magia
funerária do antigo Egito, está? Isto não seria científico. Seria algo... insano,
tão louco quanto os delírios dos “piramidólogos” ou dos que julgam serem
reencarnações de sacerdotes ou de faraós — curiosamente, nunca de pesso-
as do povo, no entanto bem mais numerosas...
Cristiano desconversou, mas de um modo que fez com que o professor
permanecesse com a pulga atrás da orelha.
Alguns meses depois, o noivado de seu aluno preferido foi rompido, pois

— 47 —
Rosana não pôde continuar suportando a competição de uma morta e o
envolvimento quase maníaco do noivo com a Egiptologia. Carlos lamentou
a ruptura, pois vira-a várias vezes em casa de Cristiano e ela lhe parecera
uma moça excelente. O próprio Cristiano ficou abalado por aquilo, embora
ele mesmo, em meses passados, houvesse sucessivamente adiado a boda.
Decidiu então fazer uma viagem ao Egito que há muito vinha planejando,
de modo que, por algum tempo, ele e o professor Carlos não se viram.

4.
Envolvido por um período de trabalho estafante causado por grande
número de seus orientandos de pós-graduação estar em fase de redação
das teses e dissertações, o que, todas as semanas, o obrigava a ler, anotar e
criticar centenas de páginas que produziam tais alunos, o professor Carlos
quase se esquecera de Cristiano.
Até que, uma tarde, pouco depois de voltar a casa do Instituto, tocou o
telefone. Suspirou, pensando: “Aposto que é mais alguém anunciando que
vai me entregar capítulos para eu ler...”
— Alô, professor. É Cristiano, se ainda se lembra.
— Oi, Cristiano! Já voltou do Egito, pelo que vejo.
— Voltei há algum tempo. Desculpe não lhe falar antes, mas estive...
muito envolvido com algumas questões.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

A voz soara contrita. Mas nela houvera algo mais, um timbre estranho,
inédito, que o professor não sabia definir: parecia indicar uma espécie de
exaltação.
Falaram por algum tempo da viagem de Cristiano ao Egito. Em seguida
o ex-aluno abordou o assunto central do telefonema:
— Professor, estou telefonando principalmente para convidá-lo a vir jan-
tar aqui em casa no próximo sábado. Estou noivo outra vez e gostaria que o
senhor conhecesse Samira, a minha noiva.
— Samira?! Então ela é...
— Filha de imigrantes egípcios — atalhou o outro, de novo com aquele
timbre diferente na voz —. E então, o senhor pode vir? Eu o irei buscar de
carro, se aceitar o meu convite.
— Muito bem, Cristiano: irei, sim. Obrigado por convidar-me.
— Passarei às seis horas: assim teremos tempo de sobra para conversar.

***

Após falarem por algum tempo de assuntos inconsequentes, ao ocorrer


uma pausa na conversa quando já atravessavam a ponte, indo para o Rio,
— 48 —

Cristiano hesitou e então disse:


— Professor Carlos... queria falar-lhe sobre Samira, minha noiva, antes...
antes que o senhor a veja.
— Ela é tão feia que precise me preparar para um susto? — brincou o
professor.
Cristiano riu, mas foi um riso breve cujo som mostrou quão tenso estava.
— Não, não é isso. Pelo contrário: ela é uma das mulheres mais bonitas
que já vi. Acho que o senhor estará de acordo comigo quanto a isso ao conhe-
cê-la. Mas... Samira atravessa um período difícil no momento.
— Como assim?
— Sofreu uma crise de personalidade acompanhada de perda radical da
memória. Tão grave que, agora, está reaprendendo a falar. Com rapidez, cla-
ro, já que é adulta e inteligente.
— Nunca soube de um caso de perda de memória tão drástico assim!
Como conheceu Samira, Cristiano?
— Eu a conheci em Petrópolis, durante umas semanas que passei lá, re-
centemente, na casa que foi de meu tio-avô.
— Ela é de Petrópolis?
— Não, de... de São Paulo, creio.
Carlos olhou-o, uma expressão incrédula no rosto:
— Você não sabe ao certo de onde é a sua noiva?! Bom — e os pais dela?
Não bastaria entrar em contato com eles para ficar sabendo?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Ela não se lembra dos pais. Acho... acho que é órfã.


— Como sabe que é descendente de imigrantes egípcios, então?
— Não tenho certeza: acredito que seja devido à sua aparência física.
Aquilo parecia muito esquisito. Sentindo que, agora que lhe havia dado o
aviso a respeito de Samira, Cristiano preferia que deixassem o assunto, Car-
los disse:
— Está bem, Cristiano, tratarei de não causar embaraço à moça fazendo-
lhe perguntas que não possa responder. Diga-me, comprou muitos livros em
sua última viagem?
Aliviado, Cristiano embarcou de boa vontade no assunto dos livros e mais
em geral da viagem — tema que sustentou a conversa até chegarem ao Cos-
me Velho.
A curiosidade do professor quanto à noiva de seu ex-aluno, grande desde
que fora informado de sua existência, era ainda maior agora. Ela os esperava
na biblioteca e levantou-se ao chegarem. Carlos viu que sua intuição não
falhara. Como supusera, Cristiano havia acabado por conseguir uma noiva
que se parecesse com Meryt: a mesma silhueta magra e elegante, seios relati-
vamente pequenos, imensos olhos negros muito brilhantes, a boca petulante
de lábios carnudos e sensuais. Seu vestido branco era ao mesmo tempo mui-

— 49 —
to simples e de corte impecável; num relance se podia perceber que custa-
ra caríssimo. Obviamente, Samira não trazia à cabeça uma peruca como a
de Meryt: seus longos e sedosos cabelos negros caíam-lhe sobre os ombros.
Também não usava joias ou cosméticos. Sua pele perfeita, de um moreno
escuro, fazia um contraste adorável com o vestido branco. Aparentava ter uns
vinte e cinco anos de idade. Cristiano não havia exagerado: tratava-se, sem
dúvida, de uma exótica beldade.
O anfitrião fez as apresentações:
— Samira, este é o professor Carlos, de quem lhe falei tanto. Professor,
apresento-lhe Samira, minha noiva.
— Muito prazer, professor — disse a moça, sorrindo e estendendo a mão.
Falara lentamente. Seu sorriso combinava boa dose de mistério com um
irresistível ar maroto, como o que poderia ter uma criança. Toda a sensuali-
dade de Samira era implícita e inconsciente — mais forte ainda por tal razão.
O professor apertou a mão estendida.
— O prazer é todo meu em conhecer uma moça tão bonita, ainda mais
em se tratando da noiva de um amigo.
Sentaram-se nas poltronas que rodeavam a grande mesa da biblioteca.
Fez-se um silêncio. Carlos olhou para o dono da casa; o olhar indicava sua
expectativa de que Cristiano comandasse a conversa, em função do que lhe
contara, no carro, sobre Samira. No entanto, como o outro aparentemente
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

também não soubesse o que dizer, o silêncio, ao se prolongar, fez-se incômo-


do. O professor perguntou por fim, tendo olhado em torno:
— Onde estão a estatueta e o tabernáculo, Cristiano?
— Em Petrópolis, professor. Eu os levei comigo quando fui passar uns dias
na casa que herdei de meu tio-avô e deixei-os lá ao voltar.
Assim, dispondo agora de uma noiva de carne e osso semelhante a Meryt,
aparentemente Cristiano podia dispensar a estatueta!
Carlos virou-se para a jovem.
— Soube por Cristiano que foi em Petrópolis que se conheceram.
— Sim — disse ela com um sorriso.
“Vai ser uma longa noite” — pensou Carlos.
Tomou então a decisão de deixar Samira por conta do noivo o mais que
pudesse, já que sua capacidade de participar de uma conversa parecia das
mais limitadas.
Cristiano remexeu-se na poltrona e perguntou:
— Posso servir-lhe um aperitivo, professor?
— Se vocês me acompanharem...
— Samira não bebe: a não ser vinho; e só durante as refeições. Ela tomará
uma limonada. Eu o acompanharei num uísque com gelo. Venha comigo por
— 50 —

um momento, professor. Vamos até o bar da sala pegar os uísques e a limo-


nada. Não demoraremos, Samira.
A moça sorriu e assentiu com a cabeça.
Na sala, enquanto preparava as bebidas e depois as dispunha numa ban-
deja para as levar à biblioteca, Cristiano disse:
— Espero que não se sinta constrangido, professor. Eu lhe expliquei o
problema de Samira. Garanto-lhe que ela entende quase tudo o que dizemos
e está contente com a sua visita. Só não fala mais devido à lentidão com que
ainda enuncia as palavras. Mas isto vem melhorando notavelmente a cada
dia: estou seguro de que não demorará a falar como qualquer pessoa.
— Seria estranho eu não lhe dirigir a palavra estando ela presente...
— Oh, fale-lhe à vontade: ela gostará de ouvir o que lhe tiver a dizer. Só
não espere que suas respostas sejam longas ou elaboradas.
— Está bem.
Caminhando com Cristiano de volta à biblioteca, Carlos pensava: “Como
é possível um namoro com alguém que apenas balbucia algumas palavras?”
Mas, ao surpreender a troca de olhares e sorrisos entre os noivos quando
Cristiano passou a Samira a sua limonada e depois lhe beijou de leve os ca-
belos, viu que o que pensara havia sido uma enorme bobagem: o que têm as
palavras a ver com algo assim, afinal de contas? Há outras formas de comuni-
cação; e aqueles dois claramente se entendiam muito bem. Contente por eles,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

o professor acomodou-se melhor, a partir daquele momento, ao que havia de


bizarro ou inusitado naquela reunião social.
Foi após o gostoso jantar — servido na sala pela empregada de Cristiano e
acompanhado de um excelente vinho tinto — que, surpreendendo o profes-
sor, ao se instalarem de novo na biblioteca para o café (tomado só pelos dois
homens), Samira levantou-se e, pousando por um momento uma leve mão
sobre o seu braço, disse-lhe lentamente, no que foi a mais longa frase que lhe
ouviu Carlos aquela noite:
— Tentarei falar melhor usando aquilo — e designou uma harpa.
O instrumento sempre estivera ali na biblioteca. Muitos meses antes,
quando Carlos nela trabalhara pela primeira vez e mencionara quão bela era
aquela harpa, Cristiano lhe explicara ter sido sua mãe uma harpista.
Por algum tempo, sentando-se num banco junto à harpa e atraindo-a para
si, a jovem tratou de apurar-lhe a afinação. Carlos estudara piano, no pas-
sado, por muitos anos. Nunca tocara harpa; pôde perceber, porém, que o
instrumento que dedilhava Samira estava afinado de maneira insólita, o que
tornava suas escalas estranhas aos cânones da música ocidental.
Satisfeita por fim com os detalhes da afinação, Samira começou a tocar.
A surpresa de Carlos se intensificou, ao mesmo tempo que se deixava inva-

— 51 —
dir por um intenso prazer estético. Ela era, sem dúvida, uma grande artista,
mesmo sendo a música que fazia — de improviso segundo parecia, tecendo
padrões sempre novos de trama melódica e harmônica —, se bem que vaga-
mente oriental, diferente de tudo o que ouvira o professor em sua vida.
Inclinando-se para ele, Cristiano cochichou:
— Incrível, não é?
— Absolutamente extraordinário! É óbvio que ela não pode ter aprendido
a tocar assim após perder a memória...
— Não, claro. É uma coisa que, segundo se vê, não esqueceu. Quando ela
terminar, não aplauda: isso a assustaria.
A música continuou. Falava de paisagens fantásticas sob um outro céu.
Por alguma razão, evocava na mente de Carlos o Egito: não o Egito atual, mas
como o imaginava sob os faraós. Tendo fechado os olhos, via o Nilo sob um
céu azul sem nuvens; o Sol implacável, atenuado pelo vento constante que
sopra do norte, iluminava tamareiras cujas frondes sussurravam, campos ir-
rigados, templos imponentes, extensas cidades, velas de barcos... Mas aquilo
devia ser só a sua imaginação reagindo àquela música potente executada por
mãos exímias.
Quando a jovem parou de tocar e voltou à sua poltrona, o professor lhe
disse:
— Você é uma grande música, Samira.
Ela sorriu e disse em sua fala pausada:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— A música... acontece.
Uma hora depois, Carlos despediu-se da moça. Cristiano o levaria de vol-
ta a Niterói. Samira caminhou com eles até o Porsche vermelho, enlaçando a
cintura do noivo. Este, antes de deixá-la e entrar no carro, trocou com ela um
beijo longo e apaixonado.

5.
Na quarta-feira seguinte, após uma tarde tediosa passada em intermi-
nável reunião do Departamento de História, o professor esperava, em seu
apartamento, a chegada de Cristiano. Este telefonara na véspera pedindo
para vê-lo. Carlos o convidara a jantar, sugerindo que trouxesse a noiva,
mas Cristiano preferira vê-lo a sós.
Como sempre haviam feito ao almoçarem ou jantarem juntos, deixaram
os assuntos importantes para depois de comer.
Ao se instalarem na sala para o café, Cristiano abordou a razão pela qual
quisera encontrar-se com Carlos:
— Professor, eu lhe devo uma desculpa.
— Por que, Cristiano?
— 52 —

— Eu faltei à verdade ao falar-lhe de Samira: e não tinha o direito de o


fazer depois de ser tão ajudado pelo senhor durante tanto tempo. Perdoe-
me. É que...
Vendo que hesitava, Carlos perguntou:
— É que o quê? Desembuche!
— É que o senhor é tão... racional!
— Sou, sim. E daí?
— O que tenho a relatar-lhe não pode ser explicado racionalmente.
— Acho que sei o que vai me dizer. E se for isso, será mesmo uma lou-
cura. Você acredita que Samira, além de parecer-se com Meryt, seja a sua
reencarnação. Acertei?
Cristiano negou veementemente com a cabeça antes de protestar:
— Não, professor, de jeito nenhum!
— Uf, que alívio!
O outro sorriu.
— Do seu ponto de vista, o que vou dizer soará ainda mais louco... Sami-
ra nem se parece com Meryt, nem é a reencarnação dela. Samira é a própria
Meryt rediviva.
O professor o olhou com olhos arregalados.
— Ora, Cristiano, isso...
Atalhando-o com um gesto, Cristiano pediu:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Por favor, professor, vamos fazer assim: eu lhe direi o que tenho a di-
zer. Não interrompa o meu relato, deixe para comentá-lo, se quiser, quando
eu terminar. Está bem?
Carlos deu de ombros.
— Se você quer desse jeito... Fale, então: estou escutando.
— Antes de eu viajar ao Egito, o senhor havia desconfiado de que eu
pretendesse pôr à prova a magia funerária dos antigos egípcios para tentar a
ressurreição de Meryt. Eu desconversei naquela ocasião; mas era exatamen-
te o que tinha em mente.
Minha viagem ao Egito não se deveu à ruptura com Rosana — embora,
na época, aquilo me tivesse afetado —, muito menos ao desejo de ver os
monumentos (se bem que não deixasse de vê-los e os apreciasse muito).
O que eu de fato queria era conhecer em primeira mão o estado atual das
tentativas de vocalização da língua egípcia, em especial a da XVIIIa dinas-
tia, já que os especialistas do Cairo estão mais avançados nesse campo do
que quaisquer outros. Consegui entrevistar-me com todos eles, adquiri e li
todas as publicações que me indicaram, além de textos ainda inéditos de
que gentilmente me forneceram cópias. Ao sair do Egito, há quatro meses,
eu estava tão preparado quanto jamais poderia estar para aquilo que ten-

— 53 —
cionava fazer.
De volta ao Brasil, não perdi tempo. Levando comigo o tabernáculo e a
estatueta, fui para a casa que herdei em Petrópolis: ela não está situada na
cidade propriamente dita, e sim, em zona semirrural, no centro de um ter-
reno tão extenso que é quase um sítio. Lá eu teria o isolamento que queria.
Ao chegar, o caseiro — que mora numa casinha à entrada da propriedade
— me fez saber que a cerca havia sido derrubada em dois pontos por uma
forte tempestade. Para consertá-la, pediu-me que comprasse os materiais
necessários, mas eu não pretendia adiar mais o experimento que decidira
empreender. Assim, dei-lhe férias e financiei uma viagem sua à Paraíba, seu
estado natal, para que deixasse a sua casa por várias semanas. Disse-lhe que,
à sua volta, trataríamos da questão da cerca.
Totalmente só, fiz por fim o que planejava, na primeira noite após a sua
partida. Em suma, como o senhor já deve ter adivinhado, eu estava partin-
do dos princípios de que a estatueta poderia substituir a múmia de Meryt
— da qual não dispunha — no ritual de ressurreição e de que o encanta-
mento número 64 do Livro dos mortos, na versão inscrita na parte de trás
do tabernáculo, por constituir um resumo do conjunto, seria eficaz por si
só. Tratava-se, para mim, de recitar tal encantamento em voz alta, ritual-
mente, diante da estatueta: encantamento que, na versão do tabernáculo,
continha o nome de Meryt nos lugares adequados. Teria de o fazer diversas
vezes, seguindo, em cada oportunidade, uma das hipóteses de vocalização
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

avançadas pelos especialistas, esperando que uma delas restituísse o som


original das palavras egípcias contidas no encantamento e, assim, permitis-
se à magia operar.
O professor sacudiu a cabeça em reprovação mas nada disse. Após um
momento, Cristiano continuou:
— Foi o que fiz aquela noite, vezes sem conta, tentando acertar. Já de ma-
drugada, como nada ocorresse, dei-me por vencido e fui deitar-me, exausto
e desesperançado.
Após ter dormido por algumas horas, acordei com um ruído que parecia
vir da sala principal da casa, onde eu fizera as leituras em egípcio diante da
estatueta de Meryt. Corri para lá. Amanhecia. O que vi foi uma mulher que,
para cobrir a sua nudez, arrancara uma das cortinas da sala — fora este o
ruído que me despertara —, enrolando-se nela.
— Samira?
— Sim, embora este não passe de nome posteriormente escolhido por
mim e aceito por ela, para que tivesse um nome moderno. Quem estava lá
era Meryt, professor.
— Cristiano...
— Deixe-me prosseguir. Depois de constatar aquela presença em minha
— 54 —

casa, o primeiro que fiz foi olhar para o tabernáculo — dentro do qual con-
tinuava a estatueta. Eu até então julgara que, se a experiência funcionasse,
a estatueta desapareceria, tendo sido a base, a matéria-prima se se pode
dizer, para o reaparecimento de Meryt. Era evidente, porém, que as coisas
não haviam funcionado assim. A estatueta, ao conter as formas de Meryt e,
no pequeno pedestal, o seu nome, deve ter operado como uma espécie de
foco para que a magia pudesse cumprir-se: fora do próprio simulacro de
madeira, entretanto. Como, eu não sei.
Logo verifiquei que aquela jovem não guardava qualquer recordação de
sua vida pretérita. Nem mesmo sabia falar. Só bem depois é que descobri
que algo, pelo menos, lhe restara: o seu talento musical. No mais, ensinar-
lhe era como escrever num papel em branco; mas só em certo sentido, pois
sua personalidade e inteligência eram bem definidas. Como já lhe havia
dito, professor — pondo a coisa, porém, num falso contexto —, ela apren-
deu a falar e a orientar-se neste mundo com espantosa rapidez. Quando
pudemos comunicar-nos de verdade, eu lhe declarei o meu amor e tive a
sorte de ser aceito.
Eis aí o que tinha a relatar, professor Carlos. O que lhe parece?
— Qualquer coisa, menos o que você acha que aconteceu, Cristiano, já
que isso é totalmente impossível. Você mesmo disse que a cerca da sua pro-
priedade estava caída em dois pontos. Aposto que alguma das portas ou
janelas da casa estava aberta ou, pelo menos, não estava trancada...
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Não sei dizer. Pode ser.


— Pois aí está.
— Aí está o quê?! Como explica o surgimento em minha sala, no meio
da madrugada, de uma mulher nua idêntica a Meryt?
— Idêntica é um modo de dizer. Mesmo porque, como você sabe, a arte
egípcia só em aparência é realista: vista mais em detalhe, revela-se cheia de
exageros, convenções, idealizações... Em todo caso, ainda prefiro crer numa
tremenda coincidência, seja qual for a origem de Samira, à versão absurda
em que você acredita.
Cristiano suspirou.
— Eu sabia que não iria convencê-lo. Achei, ainda assim, que era minha
obrigação contar-lhe a verdade.
— O que você acha que é a verdade. Agradeço-lhe por isso, de qualquer
modo.
Fez-se uma pausa. O professor a rompeu ao perguntar:
— E agora, Cristiano, quais são os seus planos?
— Estou usando meu dinheiro e minha influência para conseguir papéis
de identidade para Samira. Assim que os tiver, poderemos casar-nos. Talvez
a leve ao Egito em nossa lua de mel... Tenho curiosidade em observar a sua

— 55 —
reação ao Egito contemporâneo — e às ruínas do Egito antigo.
— Desejo-lhes felicidade e muita sorte, com toda a sinceridade. Você
sabe que isto independe do que eu ache da história que me contou, não é?
— Sei, sim, professor Carlos. Obrigado.

6.
Convidado para a cerimônia simples, o professor assistiu, poucos meses
depois, ao casamento (civil) de Samira e Cristiano. A moça agora falava
normalmente e, como o noivo, parecia radiante. Assim sendo, no fundo im-
portava muito pouco ser ela uma jovem brasileira desmemoriada, descen-
dente de orientais, cuja identidade se perdera; ou, como pretendia Cristia-
no, Meryt, conhecida do faraó e sacerdotisa de Hathor, “repetindo a vida”,
como diriam os antigos egípcios, mais de três mil anos após ter morrido.
História e literatura em “Meryt”

Ademir Luiz

O historiador e ensaísta Ciro Flamarion Santana Cardoso é um dos mais res-


peitados intelectuais brasileiros, alcançando renome internacional. Nascido em
Goiânia em 1942, muito jovem mudou-se para o Rio de Janeiro, formando-se
em História em 1965, pela antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro. Doutorou-se na França, na Universidade de Paris X. De
formação Marxista, sua vasta produção intelectual inclui trabalhos sobre Histo-
riografia, Metodologia, Escravismo Colonial, História da América e Antiguidade
Oriental, com especialidade em egiptologia. No âmbito dos estudos sobre a Idade
Antiga, escreveu obras de referência, como Trabalho Compulsório na Antiguidade
(1984) e Sete Olhares Sobre a Antiguidade (1994).
De mesma forma que outros grandes historiadores brasileiros, como Gilberto
Freyre e Nelson Werneck Sodré, Ciro Flamarion Cardoso escreveu literatura. Ao
— 56 —

longo de décadas, produziu diversos contos e romances. Algumas peças se desta-


cam no conjunto, como “A Última Pítia [363 a. C.]”, narrativa de composição eru-
dita enfocando a ascensão do cristianismo sob a perspectiva de uma sacerdotisa de
Apolo. O conto de ficção científica “Um mundo não é o bastante”, escrito na década
de 1960, é atual e instigante. O romance Brincando com Velhas Cinzas, escrito em
1997, é, em suas palavras, “sobre adolescentes e talvez para adolescentes”, na tradi-
ção de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. Até então, todos inéditos.
Um dos mais interessantes trabalhos literários de Ciro Flamarion Cardoso
é o conto “Meryt”. Ele sintetiza as principais características de seu estilo. Apre-
senta a erudição histórica de “A Última Pítia [363 a. C.]”, a inventividade de Um
mundo não é o bastante e a narrativa limpa e cadenciada de Brincando com Velhas
Cinzas. Diferentemente de outros egiptólogos, como C. W. Ceran, que roman-
ceou o processo de exploração arqueológico do Egito Antigo, ou Christian Jacq,
que constrói romances históricos a partir de seu conhecimento acadêmico, Ciro
Flamarion Cardoso utilizou a História Antiga como ponto de partida para o de-
senvolvimento de um enredo que se passa nos tempos atuais.
“Meryt” não é facilmente definível. É uma história de amor, mas engloba ele-
mentos do realismo fantástico, da ficção histórica e da fantasia pura. Superficial-
mente, seu tema principal é a magia. Porém, uma leitura mais atenta revela que
sua verdadeira preocupação é discutir os limites entre o racional e o irracional. O
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

amor romântico pode fazer alguém crer no impossível? Ou, pelo contrário, a for-
ça primeva desse amor pode tornar real o que, racionalmente, parece impossível?
O protagonista de “Meryt” é um símbolo do racionalismo. Trata-se do alter
ego borgeano do autor, Carlos Fernandes Canhedo, professor do Departamento
de História Antiga da Universidade Federal Fluminense. Não por acaso, autor e
personagem possuem as mesmas iniciais C, F, C. Homem cerebral, as banalidades
seculares lhe interessam pouco: “O professor Carlos jamais aprendera a dirigir e,
em matéria de carros, só conseguia distinguir o fusca e a kombi”. Mas é de um
caríssimo Porsche que desce o homem que vai colocar em cheque suas sólidas
perspectivas de mundo, o playboy Cristiano de Sousa Moutinho.
O visitante apresenta-lhe um tabernáculo egípcio, “herança de um tio-avô
de Petrópolis, um colecionador de bugigangas”. Dentro “a estatueta sorridente
de uma bela mulher”. O catedrático indica que se trata de uma peça do cerimo-
nial fúnebre egípcio, da “XVIIIa dinastia, século XIV antes de Cristo, provavel-
mente da época do faraó Amenhotep III, um dos períodos mais elegantes da
arte egípcia”. Hieróglifos indicam a função do artefato e o nome de sua antiga
dona: “Repetir a vida, pela venerável conhecida do rei, sacerdotisa de Hathor,
Meryt, justificada”. Difícil de impressionar, Carlos acrescente que Meryt sig-

— 57 —
nifica “amada”, e que esse era “um nome bastante comum” no Egito Antigo.
Cristiano, pelo contrário, entusiasma-se com sua “amada”, a ponto do profes-
sor notar que “parece até que se apaixonou pela bela Meryt, morta há três mil
trezentos e poucos anos”.
Os nomes das personagens representam excelentes chaves interpretativas
para as intenções do autor. Se Meryt é “amada”, Cristiano evoca cristão. O exo-
tismo do Egito sempre foi objeto do interesse turístico e científico dos homens
de posses do Ocidente cristão. O Imperador Pedro II é um exemplo notório. Ao
mesmo tempo, esse fascínio alimentou os “delírios dos ‘piramidólogos’”, que ne-
gavam a mística cristã, pretendendo substituí-la pela matemática mágica (quiçá
alienígena) dos egípcios antigos. O racionalismo dos séculos XIX e XX ajudou a
frear essa onda mistificadora. Darwin, Freud e Einstein foram alguns de seus
principais representantes. Karl Marx também. Correndo o risco de cair na arma-
dilha da super interpretação, no conto, Carlos repete a função de Karl, a versão
germânica do nome. É um representante da razão numa narrativa mística.
Apesar de muito diferentes, os dois homens estreitam amizade. Tornam-se
mestre e discípulo. Sob a tutela de Carlos, Cristiano aprende tudo o que pode
sobre o Egito Antigo, dedicando especial atenção para a vocalização da língua e
seus rituais fúnebres. Aprende sobre o “encantamento número 64 do Livro dos
mortos. (...) Segundo acreditavam os egípcios da época, este capítulo permitiria
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ao morto visitar o mundo dos vivos, nele permanecendo ou voltando ao mundo


dos mortos quando quisesse”.
O professor Carlos pode ser definido como um protagonista passivo. Apesar
de não ser a voz narrativa, o enredo se desenrola a partir de seu ponto de vista.
A rigor, seu cotidiano quase não se altera ao longo do conto. Continua dando
aulas, recebendo alunos, lendo monografias, brigando com a politicagem acadê-
mica etc. Sua função dramática é dar testemunho das peripécias vividas a certa
distância por Cristiano. O autor usa-o para emprestar credibilidade à trama e as
informações dadas. Não é um narrador onisciente quem diz, mas uma autorida-
de acadêmica. Equivale a usar o testemunho de um brigadeiro do ar como com-
provação do aparecimento de um OVNI. O que não significa que o alto oficial da
aeronáutica acredite que seja um disco voador pilotado por extraterrestres. Sua
experiência indica que o Objeto Voador Não Identificado pode ser muitas coisas.
Inclusive nada.
Foi exatamente isso que Carlos pensou quando, após meses de viagens pelo
exterior, Cristiano lhe apresentou sua noiva: Samira. Uma mulher desmemoria-
da, falando poucas palavras, tocando harpa com “escalas estranhas aos cânones
da música ocidental”, e estranhamente parecida com a estatueta de Meryt. Para
— 58 —

espanto do mestre, o aluno confessa que fez um ritual místico de ressurreição dos
mortos e que “Samira nem se parece com Meryt, nem é a reencarnação dela. Sami-
ra é a própria Meryt rediviva”. O professor, seja para preservar sua sanidade ou a
amizade com o excêntrico jovem, não entra no jogo. Opta por não investigar. Não
é um aventureiro, não é Indiana Jones. Esse não é seu tipo de pesquisa históri-
co-arqueológica. Simplesmente aceita o convite para o casamento, embora “ainda
prefiro crer numa tremenda coincidência, seja qual for a origem de Samira”.
“Meryt” revela-se uma obra aberta. Para Umberto Eco esse conceito estabele-
ce que “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma plu-
ralidade de significados que convivem em um só significante”. Acreditar ou não
na ressurreição de Meryt vai depender das inclinações pessoais do leitor. Ciro
Flamarion não pretende ajudar nisso.

Referências:
CARDOSO, Ciro Flamarion. Entrevista. In: MORAES, J. G. V; REGO, J. M (Orgs.). Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 211 — 238.
CERAN, C. W. Deuses, túmulos e sábios. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
JACQ, Christian. O Egito dos Grandes Faraós — história e lenda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
Maria Helena Chein

Gorda canção de amor

— Não, seu Delegado, vamos deixar dessas coisas. Vamos resolver


tudo aqui mesmo, em seu gabinete de trabalho. A história de me convidar
para jantar não é muito original. E além de tudo, como muito, a conta
será alta, e o senhor ficará chateado. Depois dos comes e bebes, haverá
a famosa esticadinha que só me dará enjoos. Vê lá se vou para a cama de
barriga cheia. E outra coisa, quando me solto das roupas, meu corpo pede
espaços. A barriga se avoluma, meus seios são grandes e flácidos, a cintura
cresce para os lados, para frente, e o traseiro, Deus me livre, é tão imenso,

— 59 —
que dá vexame! Isso sem contar as varizes, sempre escondidas nas meias e
calças compridas. Por tudo isso e mais uma porção de banhas, é melhor o
senhor parar com esses convites. Além do mais, sou mulher direita, de um
homem só, mesmo que esse tirano nem ligue pra mim.
— Mas os fatos provam o contrário.
— O tapa que ele me deu? Ora, um tapinha de nada, e fui eu que pro-
voquei tudo. Mas valeu. Não que goste de apanhar, isso não. Estou é que-
rendo chamar a atenção de meu marido, das pessoas que passam por mim.
Viu minha pose quando o fotógrafo do jornal tirou as fotos? Bem, rosto
bonito eu tenho. Deve ter tirado umas dez fotos. E vim preparada para
acontecer. Fiz uma maquilagem caprichada, com blushes, sombra, rímel, e
arrematei tudo com um batom vermelho vivo e muito brilho. E esta blusa
transparente é obra de Deus, perdão, não vamos colocar Deus nessa histó-
ria, essa blusa é divina, assim pode, e me faz sentir mais leve, moderninha
mesmo. Amanhã, vou comprar uns jornais e mandar para amigos e paren-
tes. O senhor viu minhas respostas aos jornalistas?

— Dona Zuleide, o que levou seu marido, Dr. Sandoval de Menezes, a


agredi-la?
— Ciúmes, meu filho, mas vamos sentar ali, é mais confortável. Ci-
úmes. Você sabe que marido apaixonado não pode suportar olhares de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

outro macho para a esposa. O caso é que somos casados há seis anos, não
temos filho, incompetência dele, é claro, e nossa renda é razoável. Não
permite que eu trabalhe fora, aliás, certa vez, uma amiga e eu abrimos
uma loja de cosméticos, tudo fino, produtos importados, mas a clientela
masculina era maior, os homens estão muito vaidosos, querem produtos
para a pele, cabelo, loções de barba, colônias, e com isso meu esposo, o Dr.
Sandoval de Menezes, ficou uma fera. Até que fui obrigada a me retirar do
negócio, que ia muito bem. Viajamos com frequência, ele é geólogo, parti-
cipa de encontros e reuniões por esse Brasil todo.
— E a agressão, teve um motivo, isto é, a senhora deu motivo?
— Como disse, os ciúmes de meu marido são infundados. Mesmo uma
mulher vistosa, sou honesta. Uma vez, em Alagoas, num jantar oferecido
por uma empresa estatal, acho que é isso mesmo, um senhor muito dis-
tinto, do Rio Grande do Norte, me fazia a corte, elogiando meu sotaque,
e Sandoval puxou-me pelo braço, sem pedir licença, nem nada, como um
tupiniquim, e fomos embora. Aliás, de vez em quando, acontecem cenas
ridículas entre mim e ele. Como não temos filhos, todo o seu amor e aten-
ção caem sobre mim. Às vezes, sinto-me sufocada, mas ainda não conse-
gui fazê-lo ver que tudo é muito simples, eu sou dele, ele é meu, mas não
— 60 —

podemos nos afastar das pessoas.


— E ele já havia agredido a senhora antes?
— Com tapas e murros, foi a primeira vez.
— Como reagiu?
— Eu? Bem, isso foi em casa, em nossa sala de visitas. A única coisa
que me passou pela ideia foi pegar um jarro de cristal e ameaçar quebrá
-lo em sua cabeça. Mesmo assim, ainda me deu um soco no ventre. Esse
ventre que nunca carregou um bebê, e jamais conhecerá a maternidade.
Recebeu, sim, golpes duros e cruéis.
— O ciúme de seu marido teve algum fundamento?
— Olhe, meu rapaz, ou melhor, meus rapazes, vocês são quatro, fun-
damento mesmo nunca houve. Uma mulher vistosa, que sabe conversar e
rir, que dá opiniões seguras a respeito de política, futebol e novelas da tevê,
deixa o marido pra escanteio, mesmo ele sendo um bom papo. E tenho
muito humor, coisa que nem chega perto de Sandoval, que está sempre
sério, como se a vida fosse um limão dos mais azedos. Vocês terão oportu-
nidade de vê-lo. Agora, há uma coisa, gosta de livro policial, tem todos os
exemplares de Aghata Cristhie e Simenon. Lê, às vezes, até de madrugada.
Enquanto não termina o livro, não dorme. Mas não publique isso, porque
não gosta que as pessoas saibam desse detalhe. Tem vergonha de confes-
sar que adora os mistérios do crime. Na literatura, bem explicado. Eu já
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

não aprecio a leitura, só leio o jornal, que é rápido, objetivo, nem sempre
honesto, me perdoem, mas vocês sabem melhor que eu. Gosto mesmo é de
ir a um boteco, com um grupo de amigos, saborear uma cervejinha gelada,
e conversar futilidades. Mas Sandoval me desestimula, boteco e mulher
de classe não combinam, diz ele, e me leva pra jantar em ambientes mais
finos. E isso me dá tédio. Chegamos, jantamos, pagamos, vamos embora.
A última vez, convidei um casal conhecido há pouco. Tomei aquele banho,
coloquei um vestido de renda verde, sandália também verde e um grande
brinco dourado. Caprichei na maquilagem, e fomos para o Agreste, vocês
sabem que é uma casa de pasto maravilhosa, com as paredes espelhadas e
um som delicioso. Resultado: meu marido e a mulher do amigo não disse-
ram uma palavra. Só Rubens e eu dialogamos. Depois, Sandoval falou que
eu estava provocando, que não dirigi uma palavra a Glorinha e, finalmen-
te, que fiz muito charminho.
— Mas não agrediu a senhora?
— Só com palavras.
— Agressão física foi apenas agora?
— Apenas.
— Por causa de algum admirador?

— 61 —
— Estava cheia de ficar em casa. Telefonei para Grace e ela havia saído.
Aurora tinha viajado. Então, resolvi: aprontei-me, peguei o carro, e saí.
Uma sensação de beleza me envolveu, a tarde estava limpa, cheirosa, esti-
quei o pescoço, levantei a cabeça, e andei pela cidade, gastando gasolina,
é verdade, mas recebendo olhares positivos, benfazejos. Respirava fundo,
via homens e mulheres andando, numa atitude de quem vivia realmente.
Os olhares dos homens me estimulavam, e eu levantava mais a cabeça,
esboçava sorrisos, mostrava dentes brancos numa boca saudável. Cheguei
em casa feliz, cantarolando. Sandoval já estava lá. Olhou para mim com
tanto ódio, fez perguntas, levantou acusações, começou a me agredir. Es-
tava possesso.
— O que ele dizia?
— Que eu parecia uma puta, a me oferecer, toda sem-vergonha. Agora,
me respondam, vocês, que estudaram na universidade, são inteligentes,
qual a mulher que não gosta de ser olhada com admiração? Todas, meus
rapazes, sem exceção. A que não se importa em se sentir valorizada, está
doente.
— E agora?
— Volto para casa, como saí. E tenho certeza, Sandoval me espera.
— Vocês se amam?
— Muito.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— E se agridem?
— Nem sempre.

— Foi desse jeito, seu delegado, que respondi às perguntas dos repór-
teres. Ficaram contentes, porque vai dar uma reportagem e tanto. Esque-
ci de dizer que gosto demais de música, adoro o Fagner! Tenho todos os
discos dele. Sandoval detesta, vive me dizendo “isso lá é cantor?” Sabe,
acho que é ciúme. Da mesma maneira, se ouvisse a Rita Lee, diria que eu
estava com frescuras, me fazendo de mocinha, quando as pelancas diziam,
sem erro, minha idade. Ele não suporta minhas adaptações, evoluções, o
espírito jovial.
— E então, janta comigo?
— O senhor não tem vergonha, mesmo. Minha vida é limpa, sem pas-
sado. Sandoval sabe.

Naquela tarde, você se sentia mais só que todos os dias. A casa respira-
va silêncio. Telefonou para a empresa, Sandoval estava em reunião. Era o
presidente perfeito, obedecido, respeitado e temido. Depois, ele ligou, dis-
se-lhe que chegaria mais tarde, que cancelasse a visita à tia Débora. Você
— 62 —

se espreguiçou, olhou o relógio, deu dois telefonemas, e tomou um banho.


Tinha que comprar umas toalhas, aproveitaria o momento. No banheiro,
tirou a roupa e se olhou no espelho; realmente, estava muito gorda, ba-
nhuda, os peitos caídos sobre o estômago. As coxas grossas mostravam
varizes azuladas. Teve um gesto de desespero. De nada adiantavam re-
gime, massagens, ginástica. Não tinha solução, melhor seria morrer. Os
pés cresceram e o rosto bonito era como uma grande bolacha. A boca e os
dentes sobressaíam, numa perfeição que destoava do conjunto. Fez um
sorriso, desses forçados, só para ver o efeito, olhando nos olhos casta-
nhos, de fartos cílios negros. E pensar que foi a moça mais bonita da sua
cidade, a disputada pelos rapazes, a invejada pelas colegas. Nos bailes, não
parava de dançar, num bamboleio de quadris e meneio que davam gosto.
Namorava um e outro, sem gostar de nenhum, até que apareceu Sandoval
de Menezes, o geólogo cobiçado por todas as zinhas do lugar. Naturalmen-
te, você foi a escolhida. Após cinco meses, estavam casados. Depois, vie-
ram residir na capital, fazer novas amizades, participar de jantares, viajar,
num amor que só fazia crescer. Você se entristecia com a infelicidade dos
outros, chorava quando lia nos jornais sobre a morte de alguma criança,
temia pela sorte dos habitantes daqueles países atingidos pelos canhões
e metralhadoras, mas tudo isso ficava tão longe, que um dia pensou “não
adianta nada”, e parou de se deixar envolver. Era até negativo, refletiu,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

“sofrer por alguma coisa que nada tem a ver comigo”. Valente, firme, nun-
ca mais chorou.
A gravidez, que não vinha, deixava você e seu marido sem graça, e res-
pondiam às indagações dos amigos, com evasivos “ainda não”, “vamos es-
perar mais um pouco”, até que o médico lhes deu o resultado dos exames.
Sandoval era estéril. Abaixaram a cabeça, deram-se as mãos, e procuraram
aceitar a realidade. Foi então que começou a comer, a engordar, sem se
dar conta de que a balança é taxativa e não perdoa. Devorava pudins e
lasanhas, e se engasgava com milk-shakes de chocolate. Os centímetros
aumentaram nas roupas, os modelos se modificaram e as calças-cintas fo-
ram compradas às dezenas.
Começou o suplício, a ida a endocrinologistas, dietas milagrosas e o
peso não cedia. Já não se despia perto do marido, suprimiu os banhos
juntos, sob o chuveiro, entre risos e mordidas, antes, a delícia dos dois. Na
cama, agora, ele se sufocava entre suas banhas, quando a febre do amor
era mais de quarenta e dois graus.
Para trás, as viagens e os encontros profissionais, aonde você quase
não ia, para esconder ao máximo, o corpo imenso.
O medo maior começou a povoar sua mente: perder o amor do marido.

— 63 —
E cada vez que se olhava ao espelho, surpreendia-se ao pensar como seria
difícil alguém apreciar aquela figura. E na angústia, atolava-se nas tortas
e sorvetes, bebia litros de refrigerantes, a fome era insaciável, o pavor do
amanhã crescia ante cada travessa de macarrão.
Os dias marcavam seus temores, com uma lentidão que chegava a de-
sesperar. O médico receitou-lhe moderadores de apetite, cremes emagre-
cedores, banhos de parafina, de algas, duchas geladas, sem encontrar no
seu organismo qualquer origem para a gordura excessiva.
Agora, tratava-se com psicólogo, que opinou: necessidade de gerar.
E, com o endocrinologista, registrou novos caminhos e percorreram,
juntos, os três. Para começar, você tinha que sair de si mesma, falar, se
desinibir, fazer amizades, participar de reuniões, enfeitar-se, sentir-se
como uma pessoa normal. Quem sabe, fazer um curso sobre um tema de
sua preferência.
O marido estava de pleno acordo. E você partiu para uma nova vida.
Viajou com uma amiga, comprou lindos vestidos, que não vestiu, livros,
que não leu, perfumes exóticos, e voltou mais triste que antes.
Nova investida dos médicos, do esposo adorado, e, aos poucos, melho-
rou o ânimo, passou a ler jornais, a conversar, a pintar o belo rosto. Mas
tudo seu tinha medida, nada em excesso, com exclusão da gordura, sua
inibição a impedia de ser verdadeira.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Sandoval trocou com você a preocupação e o complexo de não ter filho,


por uma atitude firme, por uma alegria e humor inesgotáveis. Você disse
não a muitas viagens, a inúmeras festas, mesmo tendo dezenas de belas
roupas, joias e sapatos. A gordura lhe cobrava preços altos. A fama de mu-
lher bonita dava lugar a uma ridícula realidade. Sentava-se frente à televi-
são, e devorava pacotes de bolachas, picadinhos de carne, com guaraná e
bombons de uva.
O coração oprimia-se quando via a foto de uma mulher nua nas re-
vistas; você dava puxões em seus seios, como para arrancá-los; jogava
talco entre as pernas, para refrescar-se, e passava pomadas nas virilhas.
O pior é que sentia o espírito desassociado do corpo, a alma fugindo do
tabernáculo.
Outra tarde, você se olhou mais uma vez no espelho do banheiro. Saiu
dali cheirando a lavanda, os cabelos limpos e soltos em ondas pelo corpo.
Vestiu-se, pintou os olhos e a boca, e saiu pela cidade, dirigindo com satis-
fação seu carro, agradecia Deus pela vida gorda que lhe dera. Conversou
com desconhecidos, num linguajar comum, despachado, rindo satisfeita.
Olhou-se no espelho do carro e gostou da imagem solta, à vontade, de
uma gatona decidida.
— 64 —

Assim, chegou a casa. Alvoroçada, fantasiosa, abraçou o marido, caíram


os dois no sofá, ele sem entender a mulher que gargalhava. Não pediu ex-
plicações, e você simplesmente disse “que tarde maravilhosa!”. Lembrou-
se das palavras do psicólogo: “volte-se para fora de si mesma e encontrará
liberdade”. Era isso que lhe faltava, a liberdade. Cultivou esta palavra, es-
creveu-a, com batom, no espelho do banheiro, na porta do guarda-roupa,
na capa de seus discos.
À noite, falou ao marido que gostaria de trabalhar em qualquer coisa,
para que pudesse dar-se um pouco. E contou nos dedos o que sabia fazer.
Era pouca coisa, foi fácil escolher. Decidiu-se: locução em rádio. O marido
quase engasgou com a própria saliva. Mas os contatos foram mantidos,
por meio de sua boa convivência com chefes em diversas áreas de traba-
lho. Um teste “obrigatório” aprovou-a de imediato. Sua voz era realmente
bonita e, das duas às cinco da tarde, Sandoval Menezes ligava o seu FM e
ouvia a esposa anunciar músicas e agradecer ouvintes.
Após um mês de trabalho, você se cansou e disse “não quero mais”.
Na tarde seguinte, viu o marido entrar no carro de uma mulher boni-
ta, magra, de óculos escuros. O coração bateu-lhe forte, quando os dois
se beijaram, e o carro saiu veloz. Você andou a pé, qual sonâmbula, até
chegar em casa. Então, tirou a roupa, os sapatos, lavou o rosto, olhou-se
de frente, lado e costas no espelho. Riu daquele corpo ridículo, deu-lhe
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

beliscões até arroxearem coxas e anca. Bebeu um litro de refrigerante, e


comeu dois pacotes de batatas fritas.
Quando Sandoval de Menezes chegou, você o recebeu nua, fazendo
com que ele se assustasse ligeiramente. Desfilou, provocante, gingou o
corpo, sacudiu os cabelos, e ele lhe gritou:
— Pare com isso, você está ridícula!
Você parou. E, com todo o desdém do mundo, cuspiu-lhe na cara, jogou
fora o ódio reprimido, a inveja da moça magra e o despeito pelo que era
naquele momento. Um tapa avermelhou seu rosto e a acordou de vez. En-
tão, ficou uma fera. Chegou bem perto do marido, e falou, cheia de ódio:
— Eu só tenho vinte e seis anos.
— Não tenho culpa.
— Você vai me pagar!
— Com quê?
— Você vai me pagar!
Colocou no toca-discos todas as músicas de Maria Bethânia, bem alto,
para incomodar mesmo. Ele não gostava de músicas cantadas, só das ins-
trumentais e, para chateá-lo, foi alteando o volume do som, até que ele
berrou “abaixe esta porcaria!”. Você nem ligou. Chupou um pacote de ba-

— 65 —
las de amendoim e outro de balas de coco. Eram três da madrugada, quan-
do, sonolenta, abaixou o som, e dormiu no sofá da sala, pelada e só.
De manhã, saiu logo cedo, depois de duas horas de aprontação, perfu-
mando-se e jurando baixinho “ele me paga, hoje só volto à noite. Vou ao
cinema à tarde, me viro por aí, nem quero saber de lar doce lar”. E você
sabia bem o que desejava, senhora Sandoval de Menezes, mulher de brios,
consciente de suas limitações e audácias. Cantarolando, entrou no carro,
saiu buzinando, contente por ser olhada. Pôs uns chicletes na boca, e co-
meçou a mascar como uma cabra velha.

O que me dói agora, Sandoval, é saber que você leu o jornal, viu minhas
fotos, minhas declarações absurdas, e se conservou sereno, calmo como
um santo. Chegou para almoçar, hoje quis comer em casa, me olhou com
pena, e perguntou “viu os jornais de hoje?”.
O que me dói é saber que todas as asneiras que disse, e foram publi-
cadas, não o atingiram, não lhe disseram nada. Você é duro, homem, não
se abate, nem se debate em desconfiança. Não me perguntou onde fui ar-
ranjar as mentiras, as calúnias, nem desejou verificar se eu estava sendo
amada por outro, ou se queria ser feliz com um tipo qualquer.
O que me dói é ver seu cansaço por mim, como se meu grande peso o
atingisse apenas num lado de seu ego. Não se indaga por meus atos, por
minhas saídas constantes, nem pelo perfume estranho.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

E eu que me fiz de palhaça, ontem, na delegacia, representando um pa-


pel bem diferente do real, usando uma linguagem vulgar, expondo ideias
absurdas e fatos mentirosos. O delegado quis ir comigo para a cama, quan-
do o meu desejo era atirar-lhe na cara o cinzeiro cheio de tocos e cinzas.
Os repórteres se deliciavam com meu jeito de ser, e não viam a hipocrisia
em cada palavra do meu descabido vocabulário. Em uma sala da delegacia,
fui a estrela de uma manhã inteira. E tudo para nada. Você sabe que aquele
foi meu momento de loucura, e se compraz como um padre misericordioso
ante uma pecadora acidental. Não desconhece meu ramo de boa família,
de moça bem educada. Espera que eu cumpra sempre o dever de esposa e
dona de casa, que conviva com minha gordura e pelancas, meu rosto boni-
to acima de uma flacidez sem limites.
Já não chego em você. Nem das acusações ridículas se defende, e, para
os amigos e subalternos, dirá apenas que não estou bem de saúde. Não
farão perguntas, sacudirão a cabeça afirmativamente, concordando, afi-
nal, você não erra, é seguro, sabe o que diz. É o marido compreensivo, que
nada cobra, porque nada quer pagar.
O que me dói, Dr. Sandoval de Menezes, é sua indiferença e, por isto,
meus vinte e seis anos estão gritando, pedindo, e continuarei a represen-
— 66 —

tar o papel de desabusada, de gorda feliz, sem participar de suas festas,


viagens e encontros. Vou promover minha liberdade, minha vida, meus
amores, porque, quando se é gorda e jovem, o melhor é rir, contar piadas,
sentar no colo do vizinho.
Olho-me no espelho pela milésima vez, ponho o vestido de seda ama-
rela, o batom vermelho, com muito brilho, e saio para a tarde que logo vai
virar noite.
— Senhor delegado, a reportagem foi um estouro, meu marido está
morto de raiva, com ciúmes, o senhor leu e viu como é ciumento, falou,
brigou e saiu com uns amigos para se acalmar um pouco. Os companheiros
são um santo remédio. É só ficar perto e tudo sara.
— Tudo sara.
— Quero retirar a queixa. Ele já está sofrendo muito.
— Os rapazes dos jornais gostaram de você. Acharam-na desinibida,
moderna e dona de uma cara muito bonita. E, além do mais, a reportagem
foi completa.
— Aceito o convite para jantar. Mas só para isso, porque sou uma mu-
lher honesta.
Decepção e obsessão amorosa em
“Gorda canção de amor”
Ewerton Freitas

Dona de procedimentos narrativos singulares, Maria Helena Chein, artista


goiana, professora aposentada de Português e Literatura do Instituto de Ciências
Humanas e Letras da UFG e uma das fundadoras do Grupo de Escritores Novos
de Goiás (GEN), tece, em “Gorda canção de amor”, os fios de uma história con-
tada por uma voz narrativa que se desdobra em duas: uma que inicia e finaliza
o conto mantendo o relato em primeira pessoa e outra que, no meio do enredo,
constitui, aparentemente, um relato em terceira pessoa, posto que o foco narra-
tivo se distancia da personagem com o intuito de (lhe) afirmar verdades sobre
ela mesma.
Desse modo, o conto tem início e fim com a descrição que a protagonista, D.
Zuleide, faz das supostas agressões físicas cometidas por seu marido, o Dr. San-

— 67 —
doval de Menezes, contra ela; no meio da narrativa, porém, o leitor é informado,
por meio do discurso de um narrador que aparenta estar em terceira pessoa, acerca
da real personalidade da protagonista, acabando por descobrir a verdade que se
esconde por detrás de sua história, ensaiada para denegrir o marido, já que tinha
se sentido desprezada por ele. Nesse trecho, a instância narrativa dirige-se à refe-
rida protagonista tratando-a por “você”, ao mesmo tempo em que lhe descortina
a realidade de sua vida. Essa instância narrativa ambígua, que oscila entre um dis-
curso autodiegético (o narrador falando sobre si mesmo) e um heterodiegético (o
narrador falando de outra personagem que não ele mesmo), parece constituir a
metáfora da consciência de D. Zuleide, que lhe apregoa, por vias indiretas, doloro-
sas verdades de que ela talvez quisesse fugir.
Mulher que outrora havia sido muito bela, D. Zuleide casou-se cedo com Dr.
Sandoval de Menezes, transformando-se numa exemplar dona de casa. Com a
monotonia do casamento e a falta de filhos — o marido era estéril —, todavia,
ela começa a padecer de uma grande ansiedade — ou seria uma espécie de té-
dio matrimonial? —, motivo pelo qual começa a comer de forma desregrada,
nos horários mais improváveis. Como decorrência disso, torna-se uma mulher
obesa, flácida, que, apesar de alegre e de gostar da vida, acaba sendo traída pelo
marido. Ao gritar-lhe que tinha sido traída, leva um tabefe e, como vingança,
inventa para o delegado e a imprensa que foi espancada e que o marido era ex-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

tremamente ciumento. Embora diga isso, a verdade surge pelo discurso de outra
voz narrativa — possivelmente a voz da consciência da protagonista — que lhe
diz verdades inquestionáveis: vivia o tédio de um matrimônio, quisera chamar
a atenção do marido e não conseguira, projetava na comida sua ansiedade e seu
desejo por uma vida mais plena de significados. O que surge do enfrentamento
dessa verdade? Uma nova mulher, não no sentido de que ela aprendeu algo, mas
no sentido de que não será mais a mesma: sentindo-se anulada pelo esposo — e
o desprezo machuca mais do que o ódio —, ela aceita o convite do delegado para
jantar fora, “Mas só para isso, porque sou uma mulher honesta”, declara enfati-
camente...
Interessante notar que Maria Helena Chein costura, em seu conto, algumas
relações intertextuais com pelo menos dois consagrados poetas brasileiros: Ma-
nuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Cita o primeiro, por vias indire-
tas, aludindo às obras Estrela da manhã e Estrela da vida inteira, no momento em
que a protagonista menciona, acerca de seu depoimento ao delegado, que “Em
uma sala da delegacia, fui a estrela de uma manhã inteira”. Já Drummond tem
um verso de seu poema “José” trazido à baila — também por vias indiretas, como
— 68 —

toda boa relação intertextual — no momento em que a protagonista afirma, so-


bre o marido, o seguinte: “Você é duro, homem...”, o que evidencia o cuidado da
autora com o processo de criação de seu texto, rico em referências intertextuais
e poético no trato com a linguagem, afinal D. Zuleide, no início, não fala que está
gorda, mas que seu “corpo pede espaços”...
Construído também com extremo bom-humor — um humor que é ao mes-
mo tempo engraçado e trágico, como uma peça de Alfonso Vallejo, ou como a
condição em que se encontra Winnie, protagonista de “Dias felizes”, de Samuel
Beckett —, este conto cristaliza, no retrato da vida de D. Zuleide, o drama de sua
própria condição: o de uma mulher que, ao invés de ser literalmente soterrada,
como o que ocorre com Winnie, em “Dias felizes”, deixa-se soterrar não por areia,
mas pela pressão que sente em seu cotidiano cerceador e monótono. Ao contrá-
rio também do que faz uma personagem de um conto de Clarice Lispector, intitu-
lado “A menor mulher do mundo”, que faz compras e mais compras para si e para
o filho na vã tentativa de disfarçar a angústia de viver e de ver a vida acontecendo
em torno dela — quem nunca passou por um processo de sublimação? —, D.
Zuleide se entope de salgados, frituras, refrigerantes, doces e balas, ficando, com
isso, cada dia mais “gorda”.
“Gorda canção de amor” apresenta, por fim, um enredo condizente com
seu título: no auge de seu desespero, para afrontar o marido, que só gostava de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

“músicas instrumentais”, D. Zuleide “Colocou no toca-discos todas as músicas


de Maria Bethânia, bem alto, para incomodar mesmo”. Além disso, sua fixação
cada vez mais intensa por comida, pelo marido ou por afrontá-lo, degradando-
se a si mesma — seja do ponto de vista físico, seja do ponto de vista moral —,
tudo isso, de modo enviesado, é feito por amor: um amor pulsante, um amor
que grita, em compasso — ou descompasso, quem sabe — com a voz, em alto
volume, de Maria Bethânia.

Referências:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.
GOTLIB, Nádia Battela (Org.). A mulher na literatura, vol. 2 e 3. Belo Horizonte UFMG/ANPOLL,1990.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8. ed. São Paulo: Ed. Almedina, 2004.

— 69 —
Augusta Faro

A friagem

Tudo começou após um longo período de chuvas. Choveu tanto que


os ribeirões cresceram, sumindo as pedras grandes e pequenas e a água
alargou a medida do corpo do rio e se espalhou pelos lados como se qui-
sesse sair daqueles lugares. Depois destas chuvas todas, o tempo mudou
para um frio constante, o que não era costume ali, neblinoso, e custava a
amanhecer. A noite encompridou ao ponto de os galos cantarem muitas
vezes, pensando que a madrugada estava continuando fora das medidas
costumeiras. As roupas nunca secavam e a umidade era tanta, que o cheiro

— 71 —
de mofo impregnou até as flores e os animais. O ar diáfano e sutil foi ade-
rindo às plantas e pessoas e, em pouco tempo, um lodo esverdeado cobria
a pele das gentes e o semblante delas empalidecera como se uma pátina
cobrisse todas as coisas expostas. O sol aparecia desbotado, sem convic-
ção, nada lembrando ser o Sol, mas apenas um clarão não definido e frágil.
Por esse tempo, Nina começou a sentir uma friagem que lhe trincava os
ossos das pernas e braços e as pessoas, que estavam por perto, ouviam os es-
talidos das juntas e tendões. Mesmo assim, ela não sentia dor alguma e, após
os ataques de friagem, continuava lépida e ativa como sempre fora. Mas de
repente esses episódios friorentos ficaram mais frequentes. Alguns coberto-
res enrolavam os agasalhos de lã (pois só estes não valiam), mas pouco adian-
tavam. Muito no início, todos pensavam que o frio fosse um resto do tempo
estranho que atravessaram, mas o clima mudara, havia esquentado, o céu lim-
pou a cara e nada mais recordava a época chuvarenta e frio. Esses tempos já
estavam afastados, mas Nina continuava com os surtos friorentos.
Toda manhã a moça era colocada sentada numa cadeira de couro, na
parte cimentada do quintal, onde havia muito sol e, ainda assim, ela batia
queixo e as forças fugiam das pernas, e não conseguia caminhar. Resolve-
ram acender duas fogueirinhas, uma de cada lado da moça, de modo que
ela recebesse mais calor, além do que chegava direto do sol ardente.
Nina foi perdendo o apetite, porque era difícil comer, o frio que sentia
lhe vinha das entranhas, de tal forma malignamente e com tanta força
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que, além de aborrecê-la, os alimentos todos esfriavam bastando chegar


próximo ao seu hálito.
De modo constante ela se queixava que o frio tinha vida e se movimen-
tava dentro dela, iniciando a caminhada na nuca, para descer por todos
os ossos, juntas e articulações, depois, saindo do coração caminhava por
todos os órgãos através das artérias e veias, então, ela sentia tudo dentro
de si latejar de tanto frio. O médico, com a cara de ganso velho, chegou e
queixou-se da friagem que sentira perto da doente, e nada entendendo,
pediu ajuda de outros colegas, que também reclamaram nada poderem
fazer com o frio a atrapalhar seus exames. Eles ficaram com expressão
de estátuas, perplexos, sem atinar com o fenômeno estranho que viram.
O caso foi relatado e enviado à capital e logo vieram dois cientistas para
examinar por que tanto frio a jovem sentia e qual a natureza desse frio.
O calor grande, o clima ensolarado não ajudava em nada. Nina quei-
xava que o frio entrava nos cabelos, e cada fio ressentia, como se fossem
muitos cordõezinhos de gelo a lhe cobrirem a cabeça qual um capacete. À
Nina, que era u’a moça forte, muitas vezes faltavam forças, quando ten-
tava segurar o tremor de seu corpo, dos ossos estalando, a ponto de os
passantes na rua ouvirem o chocalhar deles.
— 72 —

Embora viessem médicos experientes, com suas seringas esterilizadas,


retirar sangue para exames, nada conseguiam, após horas de tentativas. O
sangue congelava dentro dos vidros das seringas e tomava uma cor esver-
deada, como deveria ser o sangue de répteis e outros animais de sangue
frio. Os instrumentos, contendo sangue gelado, eram aquecidos em estu-
fas apropriadas, por tempo medido e cronometrado, mas nunca liquefa-
zia, continuando gelado como pedra e verde como musgo que medra entre
as pedras dos muros da casa.
Por esse tempo, o abatimento da moça era visível e toda a cidade co-
meçou em romaria a visitá-la e orar junto aos familiares, condoídos com a
sua sorte muito esquisita.
Alguma coisa vinha mudando dentro da moça, alguma coisa de muito
triste passava-se dentro de seu coração, pois seu olhar nublado mostrava
uma solidão enorme e desconhecida, que escorria e penetrava nas pessoas
que fitassem nos olhos.
A mãe e o pai de Nina ficavam sempre dentro de um quartinho nos
fundos, onde improvisaram um altar com flores e velas, ali oravam e cho-
ravam sempre limpando os olhos com panos, para que as pessoas não per-
cebessem seus prantos diários. Resolveram, por isto, marcar as horas de
preces e as horas para as lágrimas, porque assim poderiam receber os pa-
rentes e amigos e, mais ainda, para que a moça não se assustasse.
Às vezes o trincar dos ossos era tão alto, que na rua de cima as pessoas
perdiam o sono, porque elas ouviam os ossos partindo e se dividindo por
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

muitos, por dentro. O pior mesmo foi quando a cadelinha de Nina, que a
acompanhava desde menina, resolveu ficar aos pés da dona. De tal forma
o corpo da moça era gelado e espargia friagem, que em três dias a cachorri-
nha amanheceu morta. O que causou um choro enorme na combalida Nina,
e suas lágrimas caíram duras no ladrilho, que pensavam que fossem boli-
nhas de gude. Houve dias de as visitas rarearem, mesmo estando sempre
curiosas, porque era impossível sair dali como entraram, o frio que exalava
a jovem pregava, grudava nas roupas e passava para os corpos das pessoas,
que, muitas vezes, mesmo permanecendo a tarde toda no sol escaldante,
levavam uns três dias para voltar-lhes a temperatura normal. E as roupas,
por não terem sangue e vida como gente, demoravam muitos dias geladas.
Nina emagrecia a olhos vistos, pois a dificuldade de engolir era grande,
por causa da garganta e do esôfago empedrados.
Um dia um menino, por nome de Pedro, apareceu ali com uma borbo-
leta presa pelas asas, para mostrar à Nina. Para surpresa geral, ela quis e
apeteceu o inseto e, sem asco nem receio, conseguiu engolir a borboleta,
que não se congelou e Nina se sentiu melhor. A borboleta era lindíssima
e muito colorida. Logo outros meninos do grupo escolar resolveram sair
pelos campos buscando as variadas borboletas, para que a doente se ali-

— 73 —
mentasse. Daí em diante, ela deu uma fortalecida boa e, alimentada de
tantas cores de borboletas, seus lábios perderam aquela aparência de fuli-
gem de cal, suas faces a brancura cinzenta de pratos esmaltados e antigos.
Alimentando-se só de borboletas, o trabalho dos parentes, para caçar os
insetos, ocupava grande parte do dia, e o número delas diminuía, absurda-
mente, voejando pelos campos. Mas a friagem ainda a incomodava muito.
Por isto, resolveram construir uma lareira redonda onde colocavam Nina
durante a noite, e recostavam a cabeça dela, de modo que cochilasse por
algum tempo. O consumo de madeira deu para acabar com o bosque per-
to do rio, infelizmente tiveram que abater as árvores para acudir ao frio
noturno da jovem. Aconteceu que alimentado o fogo, este nem sempre
conseguia debelar a friagem, que nascia de dentro, mas de qualquer forma
abrandava a sua violência.
Tia Nocença veio de longe visitar a sobrinha e conseguiu que ela to-
masse colheradas e mais colheradas de uma poção feita com gengibre, cra-
vo, canela, carrapicho e alho. Essa mistura era a ração líquida, pois como
as borboletas, não congelava ao aproximar dos lábios gelados e do hálito
de Nina. O povo era muito solidário, até os das cidades vizinhas ajuda-
vam, só não fazendo mais, pois, percebendo que o frio, que morava dentro
da menina, passava para as pessoas e os velhos, muitos demoravam a se
aquecer novamente e, nessa angústia de friagem, muitos ficaram acama-
dos e alguns não resistiram.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O rosto da moça cada dia mais ficava impassível, embora no começo


ainda conversasse, se queixasse e até ria; depois de algumas semanas, ela
estava ali, mas parecia que estava fora do corpo e mantinha os olhos e a
boca fechados a maior parte do tempo.
A situação estava nesse desespero e a impotência de resolver o proble-
ma prolongava. Foi assim quando chegou na cidade, numa tarde quentís-
sima, um jovem de cabelos longos e vestes brancas como as de um monge.
Ninguém conhecia o rapaz e nunca o tinham visto por ali.
Quando Raimundo entrou no bar da esquina e pediu um copo de leite,
ao segurar a vasilha, o leite ferveu no mesmo instante. As pessoas, que
assistiram ao acontecimento, pensaram o mesmo pensamento — levá-lo
até Nina. Assim que ele entrou no quintal cheio de sol e cumprimentou a
moça, a mão que foi tocada perdeu a rigidez gélida. Naquela noite a mão
da menina não estava congelada, como na noite anterior. Buscaram o ra-
paz de novo e ele permaneceu mais tempo, conseguiu alisar o cabelo de
Nina e abraçou-a demoradamente. Ela dormiu melhor, porque o frio di-
minuíra. Daí pra frente, muitos dias seguidos, Raimundo vinha conversar
com Nina, tocar-lhe o rosto e dar comida em sua boca. As borboletas já
não eram necessárias. Durou quase um mês o rapaz ajudando a família
— 74 —

a aquecer a jovem, que devagar, como se nascesse de novo, foi aprenden-


do a lidar, segurando os objetos, a andar devagarinho e, constantemente,
aumentava a temperatura do corpo. A friagem estava sendo vencida. Os
sinos não paravam de tocar e as procissões entravam e saíam das ruas,
sempre com cânticos de graças e louvores. Um fato foi notado por todos:
Do lado esquerdo da veste de Raimundo o coração aparecia, sob o tecido
grosso, como uma fornalha vermelha que pulsava, tamanho o calor que
se acendia ali. Passados mais dias, as pessoas, os médicos viram que Nina
voltara a cor e à temperatura de u’a moça de sua idade. A friagem, que a
havia atormentado até quase a morte, desaparecera por completo.
Os pais mandaram buscar músicos, mágicos, dançarinos nas cidades
vizinhas e prepararam um churrasco que consumiu 3 000 vacas, barris
de cerveja, muitos quilos de arroz e mandioca cozida e mais farofa com
queijo e azeitonas. A festa era para não ser esquecida nunca mais. Tudo
preparado, uma comissão familiar foi até a pensão buscar Raimundo, o
responsável pela volta à tranquilidade daquele povo, mas lá não estava,
não conseguiram encontrá-lo.
Ninguém soube de onde viera, nem para onde foi aquele moço de
cabelos longos. Algumas velhinhas, que viviam nas janelas olhando o
ermo do tempo, disseram que um bando de colibris seguiu o vulto de um
rapaz até que sumisse na estrada, mas não garantiam se fora Raimundo
quem partira.
Frio e calor em “A friagem”
Ewerton Freitas

Em “A friagem”, conto originalmente publicado em seu livro homônimo, a


escritora goiana — e mestre em literatura pela UFG — Augusta Faro utiliza-se
do fantástico como recurso expressivo que evidencia a tenuidade das fronteiras
entre o real (ou pseudo-real) e o imaginário, entre o natural e o insólito, mas sem
perder de vista o horizonte da vida que nos assiste e ao qual nós assistimos.
Se as narrativas de molde e extração realista compartilham o princípio do
Classicismo segundo o qual a vida seria racional e caberia ao escritor desven-
dar, por meio de suas obras, a lógica que subjaz ao comportamento humano
em sua dinâmica social, as narrativas que se filiam à corrente do Realismo fan-
tástico contestam essa falsa certeza, destacando — por meio do ilógico, do
improvável, do absurdo — o que muitas vezes é cruel e desumano na realidade

— 75 —
individual e social.
Assim é que — com diferentes modulações — Jorge Luis Borges, Franz Ka-
fka, Júlio Cortázar, Miguel Angel Astúrias, Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Mar-
quez, Carlos Fuentes, Guimarães Rosa e Augusta Faro, dentre outros, construí-
ram obras cujos enredos criam pontes que ligam o universo do real e do irreal, da
realidade e do sonho, do crível e do absurdo.
Se em sua obra Kafka tematiza o absurdo do viver social, se Jorge Luis Bor-
ges destaca as categorias do tempo e do espaço narrativos como modos de co-
nhecimento da realidade, se Júlio Cortázar constrói “labirintos literários” em
que narrador, personagem e leitor se sentem perdidos, se Miguel Angel Astúrias,
tributário da estética surrealista, luta contra as diversas ditaduras que assola-
ram seu país, a Guatemala, se o cubano Alejo Carpentier se vale do fantástico e
de técnicas da música para retratar o medo humano e as tentativas de se fugir
dele e de se enfrentá-lo, se Gabriel Garcia Marquez mescla história e lenda para
plasmar personagens que ascendem à categoria de símbolos das lutas e aspira-
ções humanas, se o mexicano Carlos Fuentes, seguindo Joyce, retrata a pros-
peridade da burguesia por meio da técnica do fluxo da consciência e, seguindo
Kafka, demonstra o absurdo de várias situações sociais ou se Guimarães Rosa,
principalmente em Primeiras estórias, lança mão de acontecimentos insólitos que
muitas vezes encontram eco no absurdo de que muitas vezes a nossa existência
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

se reveste, Augusta Faro se vale do realismo mágico como elemento estruturador


— mas não uniformizador — dos seus contos, uma vez que, em seus textos, o
fantástico pode tanto dialogar com a configuração de um contexto — individual/
social — que oprime o indivíduo quanto pode interligar o real ao onírico ou, ain-
da, metaforizar o silencioso confronto entre a aridez do cotidiano e a liberdade
da fantasia, lembrando que, em Augusta, tanto a fantasia quanto o sonho são
aspectos menos abstratos do que concretos e palpáveis da realidade.
Nina, protagonista do conto “A friagem”, exemplifica o que afirmei acima:
presa de uma terrível doença que a faz tremer de frio, uma frialdade tão intensa
que chega a contagiar as pessoas que se aproximam dela, inclusive matando algu-
mas, e que também lhe estala os ossos, o que produz sons que se ouvem da rua:
terríveis ruídos do “trincar dos ossos” da pobre moça. Como medida paliativa,
Nina come borboletas, o que lhe alivia, momentânea e parcamente, os terríveis
sintomas dessa inexorável frialdade que lhe tomara conta do corpo.
O termo grego psyche continha dois significados originais: um era “alma” e
o outro era “borboleta”, e simbolizava a imortalidade do espírito; tanto que, na
mitologia grega, a personificação da alma deixava-se representar pela efígie de
— 76 —

uma mulher com asas de borboleta, isso sem falar que o mito de Cupido e Psique
alude a esses elementos: ele, o filho de Vênus, o deus que voava com suas asas e
que desencadeava paixões irrefreáveis com suas flechadas e, ela, uma mortal de
rara beleza que, em razão da paixão que despertara em Eros, após muitos con-
tratempos e peripécias, alça a condição de deusa, constituindo, nas palavras de
Keats, a “[...] derradeira imagem / Da estirpe celestial, da olímpica linhagem!”.
O ato de Nina comer borboletas, portanto, parece metonimizar a interiorização
do imortal no mortal, o ingresso do que é eterno e incorruptível no que é fugaz,
efêmero e venal. Ao ingerir borboletas, Nina ingere partículas de vida inexaurível
e, talvez por isso, sinta-se levemente aquecida, levemente reconfortada, ainda
que por efêmeros instantes.
Não obstante esse diminuto alívio que lhe proporciona ao corpo quase con-
gelado o ato de deglutir borboletas, o padecimento de Nina só chega ao final
quando chega à cidade Raimundo, um moço cujo “coração aparecia, sob o tecido
grosso, como uma fornalha vermelha que pulsava, tamanho o calor que se acen-
dia ali”, um moço que, ao segurar um copo de leite, fez com que o líquido branco
fervesse “no mesmo instante”. Conduzido à presença de Nina, tem-se início um
tipo de tratamento por meio do qual o rapaz toca a protagonista, fazendo com
que sua extrema friagem se dissipe e que ela se veja na condição de uma moça
cuja temperatura corporal se encontra dentro da normalidade. O resultado? A
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

exemplo do que ocorre ao final da história de amor entre Cupido e Psique, tem-
se uma enorme festa, regada a muita comida, a muitas danças, a muita alegria,
enfim. Mas ao contrário da história mitológica, a festa de “A friagem” não é uma
festa nupcial: é apenas a comemoração do término da inexplicável doença de
Nina, à qual Raimundo nem chega a comparecer, pois — presumivelmente —
partira da cidade logo ao amanhecer. Em Augusta Faro, mesmo com o fantástico
permeando suas narrativas, as soluções para os dilemas e os impasses dos seres
humanos não são mágicas e nem as coisas terminam como nos contos de fada.
Isso porque seus contos falam de fantasia e de sonho, mas são calcados na vida e,
por isso, muito mais próximos do universo de seus leitores.

Referências:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.
GOTLIB, Nádia Battela (Org.). A mulher na literatura, vol. 2 e 3. Belo Horizonte: UFMG/ ANPOLL,1990.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8. ed. São Paulo: Ed. Almedina, 2004.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva 2007.

— 77 —
José Fernandes

Os agregados

Domingos, agregados iam à cidade. Viam missa. Ouviam rezas.


Sermões. Acertavam contas com o além. Compravam subsistência.
Meninos barrigudos e sujos alimentavam migalhas de jornal, sobrantes
das contas inexplicadas do homem. Estudavam na escola da fazenda.
Rabiscavam letras, nomes. Aprendiam esfumadas verdades. As da
obediência ao patrão. Códigos de Oipila, o homem, o louco, dono de terras,
escolas e desmandos.
Subsistência de adultos se operava em gamelas: couve arroz feijão

— 79 —
angu. Tudo pro mesmo destino. Carne, viam em dia de matança de
porcos. Sentiam o cheiro evolado das penelas. Pobre tem gosto, não!
Nem trabalham o merecimento da comida! Carne, só refinados apetites!
Peões, agradecimentos de caças, permissão minha! Domingos, não
trabalhavam, não comiam. Lambiscavam as terças partes mal contadas
das roças. Quando.
Zé Coeio e Maria Antonha, sem domingos. Todo dia era dia. Segunda a
segunda. acordavam nos escuros do canto do galo. Levantavam os doídos
corpos das camas-de-vara. Antonha executava labutas de cozinha. Areava
panelas vasilhas. Esfregava roupas dos muitos patrõezinhos. Mais, não
fazia. Não sabia. Desaprendida. Avoada. Zé Coeio tangia vacas, bezerros.
Apertava tetas ubres. Expulsava leite. Tratava porcos galinhas. Cortava
mandioca inhame cará chuchu. Partia lenha para fogão tacha rapadura.
Zé e Maria não tinham tempo para pecar. Não careciam acertos de contas
com o além. Com os homens, talvez... Muitos juros a receber... Para que
rezar? Ver missa? Não entendiam falas de palavras. Não sabiam. Deus ou
demônio. Executavam ordens de senhores dadas. Nem roupas de missa
tinham. Vestiam os remendos dos remendos. Só escondiam as vergonhas.
Se. Eu, menino ainda, via-lhes as polpas de fora. Assustavam-me os pobres
do Zé. Desremendos. Para que irem à cidade? Bater pernas... Isso é coisa
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

de vagamundos! Que batam pernas no serviço! Se não, como vou manter


este pessoal? De graça é que não será!
Os meninos, dois bobos, babentos. Descrescidos. Vivam nos arredores
da tacha. Distantes das vistas dos patrõezinhos. Não de­viam ver os
abortos. Comiam angu de cachorro. Lavagem. As ra­pas das panelas,
quando sobravam minutos para Maria Antonha levar. Se não levasse,
não reclamavam. Não tinham lágrimas nem falas. Não podiam ter. Não
deviam. Se reclamavam dores, gripes, levavam tapas lambadas. Carinhos
de patroa mãe avoadas. Inco­modar Santinha, não podiam. Muito menos a
esfrega das roupas e o polimento de panelas vasilhas.
Em um frio de julho, Zé preparou palhas lenha. Dia seguinte começaria
moagem de cana. A rapadura já estava nos fins. Os mela­dos de Santinha
haviam terminado. Madrugada, Zé Coeio deixou os meninos nos costumes
dos lugares. Foi acender fogo fogão. Aguardar café de Maria Antonha.
Tocar vacas. Amarrar bezerros. Tirar leite.
Oipila saíu. Levava tição às mãos. Tudo estava seco. De re­pente, o fogo
esquentou os inferiores da tacha. Sentiram cheiro de carne queimada.
Pensaram algum gambá escondido do frio. Nin­ guém deu falta dos
— 80 —

meninos. A lavagem do almoço foi para os cachorros. Maria Antonha nada


não falou. À noite, reclamou ausên­cia à desencomodada patroa.
— Esses preguiçosos devem ter ido prá casa, mode não aju­dá no
engenho! Dê-lhes umas boas lambadas quando chegar! Amanhã, estarão
reinando na tacha, interrompendo andamento do serviço. Você precisa
educar estes meninos! São bobos por conve­ niência. Para atrapalhar.
Amanhã quero eles tocando e candeando bois cavalos burros! Quero
meninos em trabalho: carregando cana lenha bagaços, varrendo engenho
tacha!
Em casa, ninguém não estava. Maria Antonha e Zé Coeio tiveram
certeza. Não houve lágrimas. Nem enterro. Nem falas ou­tras em dias
seguintes. As cinzas foram estercar hortas de Oipila, o generoso.

******

Tempos.
— Opila, infanticida! Viu bobinhos meus em fornalhas de tacha. Botou
fogo nos sãos da consciência, mode ver livre deles. Desculpa fria de que
gambá se escondido. Tirava leite nos momen­tos do crime. Não vi estampas
de face. Mas, voltas da noite senti ares de alegria nos vãos da cara. Você
explorou as bobices deles, os lunares de Antonha e minhas nenhumas
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

falas. Entaguidos nos trapos, fugiram dos ventos madrugueiros nos


secos da lenha. Você, malvado! Carrega risos infernosos. Contas muitas
em arquivos de existência. Saldos nos vermelhos. Volumes de números
e nomes: horácios e juvenais. Não pense quireras, não! Você, medido nos
percentuais negros do câmbio.
— O que é isso, preto safado?! Tu não é homem de falar. Só de
ouvir. Vê se te enxerga. Salafrário. Nunca te dei estas confian­ças. Nem
linguagem tu tinha. Onde aprendeu falas de gente? Tu tá quereno cobrar
contas vencidas?! O tempo passou, negro! Tudo prescrito. Pensa que
tenho medo?! Você é que vai prá cadeia, mal agradecido. É essa a paga pela
terra que mora há tantos anos, pela comida que come todos os dias, você
e toda a família, seu ingrato!? Se pensa que vai me botar na prisão, está
enganado. Cadeia não é lugar de fazendeiro. Tu é que vai apodrecer, nego
sem vergonha.
— Engano, seu Opila! Tempo vencido, vivido nos conformes de
existência. Passei. Aqui, espíritos. Sempre pensei nos silêncios da labuta.
Nos ocultos do tempo. Agora, sou senhor de fala e pala­vra. Ninguém
me caça. Des-sujeito de desmandos. Não tremo ame­aças. Hoje, falo os

— 81 —
silêncios. Colho frutos de vida. Plantas não vistas nos comuns dos olhos.
Desmemoriado. Reclamo dó meninos, não! Você deslembrado de fim meu.
Nas minhas velhas desforças, botou estricnina em caneco.
— É sim, seu Opila. Dia nossa morte, vancê viu nóis encolhi­dos em
fornalha. Nos fundos. Batidos queixos. Consoante frios gea­das. Vancê
chegou, tição vermelho de brasa. Vancê olhou nos la­dos dos costumes.
Nada não viu. Ares de infernos, olhou nos interio­res. Sorriso de indivíduo.
Falou de vez última de nossas vistas, de empates de serviços. Atiçou fogo
em palhas esturricadas e em nos­sos sustos. O fogo espalhou na rapidez
das secas lenhas. Ares, não havia. Gritamos berramos desesperos. Botou
tora tampar vento. Foi? Gritos desouvidos. Altos assobios nos despistes
de gritos. De­pois, pessoal de engenho sentiu cheiros. Carne queimada.
Nossa. Dos bobos desfalados. Mudos nos medos diários. Vancê disse: Tal­
vez gambá escondido dos frios madrugueiros. Contra-argumentos não
houve. Experiências de medo. Dias de fome. Desumanos casti­gos. Não
podiam perder gordas terras de plantio. As meias terças. As terças quartas
partes incontadas. Insabidas explorações. Números inscientes. Plantavam
terças, recebiam quintos. Assassino! Ladrão!
— Seus negrinhos fedorentos. Debilóides. Não sabiam falas. Grunhiam
latiam porcos cachorros. De repente, insolentes. Afron­tamento. Sempre
mandei Zé Coeio e Maria Antonha passar ilhapa. Educação. Lambadas
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

cabrestos, sem efeito. Nos choros, arregalas de olhos, valeram!? Lágrimas


engolidas. Lembram?!
— Estamos nos deslados da vida. Almas voantes. Vancê, no fim. Não
perde espera. Quem espera? Já dou lição.
— O que isso, Oipila? Você, agitado. Mexendo revirando em pesadelo.
Soco em têmporas minhas dado. Passa mal?! Fora dos assentos de
costumes! Chamo Antonho. Precisa de cuidados medicinais.
— Sonho só. Ameaças desaparecidas. Mortas falas.
Nos escuros madruguentos, Oipila tomou direções de enge­nho. Enxame
de deslembradas passagens. Mortas verdades. Nos repentes de hora,
meninos apareceram em imagem vista. Tremidos de Oipila. Conversas
não houve. Esfumaram-se imagens. Que que­rem mal agradecidos? Morte
de pobre, bênção. Gozam felicidade dos céus. Prefiro aqui, nos certos da
terra. Opiiiiiiiiiiila. Diabos que­rem enlouquecimento meu! Terão não! Vou
cuidar dia. Lidas. Não penso bobos, nem velho Zé Coeio. Maria Antonha
mastigando pa­lavras, vejo. Até ela, palavras em pedaços. Fuzila olhos em
descon­formes. Fere miolos meus. Quem dizendo, Maria Antonha!
Nos internos da cozinha, eles. Perfeitos em corpo cara. Zé e Maria
— 82 —

Antonha juntos. Alucinação?! Não! Horácio e Juvenal con­luiados. Nunca


pensei mortas vinganças. Morreu, os fins. Pronto. Engano? Posso matutar
não. Loucura espreita. Matei. Precisava de casas. Ia alimentar pessoas não
trabalhadas?! Outras gentes. No­vas. Sangue novo. Multiplicadas colheitas.
Fiz mal?! Passaram vi­das em terras minhas. Nada não cobrei.
Dias todos, camaradas. Mortos, vivos em encontros, nos cos­tumes dos
lugares. Até em intimidades de quartos banheiros. Quando não de corpo.
Olhos agarrados pelas paredes. Vendo. Acusando. Cobrando dívidas
vencidas. Arquivadas prescritas. Por que cobram agora e, não, nos vividos
dos tempos? Nada não diziam em conveniências de jornal. Subsistência.
Loucura assolando nos dias todos não quero ver olhos prega­dos chão
tetos paredes cobertas em bamboleios linguagens cozen­do cérebro suando
todos nos juntos motivos em conluios nos dentros da cabeça roendo
rodando sem descanso noite dia lugares to­dos de luzes escuros todos me
olham dos desconfiados querendo me pôr em camisa de força.
— Doutor, Oipila esquisito nos hojes de casa. Acorda nos sustos. Nada
quer falar. Leio aflições. Sonhos pesadelos. Nos pri­meiros, contou visões
de meninos agregados. Mortos em fornalhas de tachas. Mais, não disse.
Meninos agregados camaradas Zé Coeio Maria Antonha Ju­ venal
Horário Expedito nos meus caminhos sonhos visões vistas ta­chas casebres
taperas morantes tempos antigos segui lições de pai vistas aprendidas
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

em idos de escravidão só em rabiscos de princesa nos gerais dos sertões


ninguém não vê não conhece lei mais forte trabalham subsistência
coisas passadas querem me matar vingan­ças mortas morreu acabou não
quero hospital médicos querem di­nheiro não curam não doente eles em
azucrinamentos dia noite sonho acordado luzes de noites dias.
Oipila matei meninos camaradas Zé Horácio tirante de leite casas
tantas terras lugares morantes arantes terras despencando em abismos
serras carretões descontroles nos bois cabecando candeeiros nas salas
sem rumos Oipila assassino assado assumido sumido sonso sem
sono sonâmbulo sozinho saindo sonoro solozi­nho correndo concorde
conjunto compras cargas comidas camara­d as caseiros rapa rapadura
rato ratoeira roendo puxa puxa puxan­do ralando rolando rola rolada
rua lorota ruela dos cacaus das cacauetas tacha tucha tacha tição fogo
fogando babas pretinhos.
— João Bello, sabe de novidade? Santinha pediu adjutório de
enterro. Oipila suicidado. Morto em cordame. Cumeeira paiol tulha.
Beiços comidos. Formigas. Grandes. Vindas de mundos infe­riores. Pretas
formigas. Muitas. Quase impedindo entranças de tu­lha. Fome antiga.

— 83 —
Devoravam comiam em abrir não fechar de olhos. João, medo tive do sujo.
Oipila, homem ruim, dizem! Matou gentes camaradas agregados terceiros
meeiros Zé Coeio Horácio Juvenal Maria Antonha Rimunda Expedito.
Ouvi nos escondidos das falas que queimou meninos em fornalhas.
— Sei não, tio Quinca. Morei em grotas próximas. Nunca vi nem espiei
coisas. Vou em enterro não. Estou nos avançados da idade. Nos antigos
de juventude, tudo enfrentava. Hoje, vivo nos entocados de casa. Conte
desculpas minhas prá comade Santinha. Lamentos meus e de Efigênia.
Pêsames.
A resistência do regionalismo em “Os agregados”
Ademir Luiz

A hegemonia da literatura regionalista em Goiás foi a Bastilha que a


Revolução promovida pelo GEN – Grupo de Escritores Novos – teve que invadir
na década de 1960. Nomes fortes como Hugo de Carvalho Ramos, Afonso Félix
de Souza e o futuro imortal Bernardo Élis definiam o que eram as letras goianas
de então. O crescente mito de Cora Coralina, considerada por muitos mais uma
figura literária do que propriamente uma poetisa, confirmava a força simbólica
dessa perspectiva estética. Ao mesmo tempo, eventualmente surgiam autores de
inegável brilho fortalecendo as fileiras. Foram muros difíceis de transpor.
Ainda que o tempo tenha mostrado que as propostas de inovações estéticas
e temáticas, de raiz mais urbana do que rural, apresentadas por escritores como
Heleno Godoy, Miguel Jorge, Yêda Schmaltz etc, tenham se estabelecido como a
— 84 —

nova tendência dominante, ainda é possível reconhecer a presença de escritores


que preservam a essência do regionalismo como norte. Porém, como afirma
o crítico Luís Augusto Fischer, “entre as questões mal resolvidas na cultura
brasileira está aquela que atende pelo nome de Regionalismo”. Antonio Candido
foi quem melhor diagnosticou o problema. Para ele, durante o Romantismo, os
registros artísticos do mundo rural brasileiro obedeciam a uma “consciência
amena do atraso”. Os artistas não iam além de uma descrição condescendente e
ufanista da paisagem. O atraso era compreendido como sinônimo de pureza. Para
Candido, apenas a partir da década de 1930 foi possível adquirir a “consciência
catastrófica do atraso”, onde o “atraso” foi despido de sua aura ingênua e ganhou
contexto e relevo de problema social. Esse novo senso crítico tornou possível
o surgimento de obras de exceção, de valor universal, como as produzidas por
Graciliano Ramos e Erico Verissimo. Mas tais nomes representam o refinamento
extremo da proposta. Candido reconhece que na maioria dos casos o que persiste
é um circulo vicioso de “literaturas nacionais atrofiadas”, onde o meio rural é
repetidamente representado por seus estereótipos, como se tal opção estética
fosse apologética e não redutora.
O avanço do mundo urbano sob o rural, impondo-se consequentemente
como tema literário, tornando obsoletas e anedóticas as “literaturas nacionais
atrofiadas”, fez surgir o chamado super-regionalismo, caracterizado pela
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

elaboração extrema da linguagem. O maior expoente do gênero é Guimarães


Rosa, autor da catedral Grande sertão: veredas. Outros representantes seriam
José Cândido de Carvalho, de O coronel e o lobisomem, Ariano Suassuna e,
mais recentemente, João Ubaldo Ribeiro, sobretudo em Sargento Getúlio,
sua novela de 1971. Para Fischer, “misturando fala popular sertaneja com
cuidada elaboração, o livro expõe com clareza insuportável o choque entre dois
mundos”. Entenda-se, o mundo tradicional e o mundo moderno, digladiando-
se numa região de fronteira, onde os limites entre barbárie e civilização, legal e
ilegal, não são bem definidos.
É por meio dessa tradição que deve ser compreendido o conto “Os agregados”,
do prosador, poeta e crítico José Fernandes. Nascido em 18 de março de 1946, em
Alto Rio Doce, Minas Gerais, José Fernandes é professor da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Goiás e autor de Dimensões da Literatura Goiana,
lançado em 1992. Demonstrando interesse acadêmico com o alcance e difusão
das novas linguagens, em 2011 publicou Poesia e Ciberpoesia, onde analisa poesia
concreta e poesia visual.
Em “Os agregados”, José Fernandes utiliza todo um arsenal de referências

— 85 —
tradicionais do regionalismo, como o “dono de terras explorador”, “os roceiros
explorados”, uma situação trágica, suicídio, uma pitada de sobrenatural etc,
para desenvolver um trabalho de linguagem focado na sobreposição do léxico
caipira, buscando a essência do coloquialismo, com construções estilísticas
de sonoridades complexas. A abertura do conto demonstra essa preocupação:
“Domingos, agregados iam à cidade. Viam missa. Ouviam rezas. Sermões.
Acertavam contas com o além. Compravam subsistência. Meninos barrigudos
e sujos alimentavam migalhas de jornal, sobrantes das contas inexplicadas
do homem. Estudavam na escola da fazenda. Rabiscavam letras, nomes.
Aprendiam esfumadas verdades. As da obediência ao patrão. Códigos de Oipila,
o homem, o louco, dono de terras, escolas e desmandos”. Ao mesmo tempo se
apresenta os personagens em suas características de submissão ou autoridade,
o ambiente, a rotina e o imaginário. O ritmo das frases é rápido, mas concebido
numa velocidade cadenciada, quase musical, planejada para evocar imagens
especificas. Daí o destaque para palavras ou expressões fortes, marcadas entre
pontos ou vírgulas: “sermões”, “compravam subsistência”, “o louco”. Cada uma
delas surge impregnada de significados prévios que transbordam em múltiplos
sentidos o ambiente simples que num olhar superficial o conto parece descrever.
Representam a força das palavras chegando num mundo onde até então valia
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

apenas o material, o bruto, o físico. A metafísica do verbo é uma intrusa que


acossa e enlouquece os homens que a desconhecem.
Esse é o sentimento de Oipila, o coronel dono de terras, dono da vida e da
morte de seus agregados, diante de uma acusação de negligência que vitimou
duas crianças especiais. Ele não sabia que podia ser acusado disso, ou de qualquer
outra coisa. O acusador fala “É sim, seu Opila. Dia nossa morte, vancê viu nóis
encolhi­dos em fornalha. Nos fundos. Batidos queixos. Consoante frios gea­das.
Vancê chegou, tição vermelho de brasa. Vancê olhou nos la­dos dos costumes. Nada
não viu. Ares de infernos, olhou nos interio­res. Sorriso de indivíduo”. Como pode
a ideia de lei, de justiça, de acusação, o conceito de “crime de responsabilidade”
ter chegado até suas terras? Sua resposta é um desagravo racista e de classe,
desprovido de qualquer argumentação lógica: “O que é isso, preto safado?! Tu
não é homem de falar. Só de ouvir. Vê se te enxerga. Salafrário. Nunca te dei estas
confian­ças. Nem linguagem tu tinha. Onde aprendeu falas de gente?”
Destacando o final do trecho: “Nem linguagem tu tinha. Onde aprendeu
falas de gente?”. No super-regionalismo, os personagens são elevados ao épico.
Em Grande sertão: veredas, o protagonista narrador Riobaldo, um mestre de
— 86 —

letras de uma currutela mineira, se expressa com a verve de um catedrático.


Os jagunços, que falam por meio de sua memória, também. Não se trata de
inverossimilhança, mas de uma idealização da realidade. De fato, se Bernardo
Elis e Anatole Ramos escreveram ficção científica e Bariani Ortêncio compôs
contos policias, as fronteiras do que se pode designar como “regional” são muito
mais fluidas do que se costuma estabelecer. No caso especifico de “Os agregados”,
tanto quanto a fixação de uma trincheira de resistência da literatura regional,
trata-se de uma homenagem a sua tradição secular; virtualmente superada, mas
fundamental para as letras goianas.

Referências:
FERNANDES, José. Dimensões da literatura goiana. Goiânia: CERNE, 1992.
FERNANDES, José. Poesia e Ciberpoesia. Goiânia: Kelps, 2011.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura brasileira – modos de usar. Porto Alegre: L&PM, 2008.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica – panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998.
Ewerton Freitas

A última tarde & O passado e o tempo

I
A última tarde

Será de linha tecida em devaneio esse meu olhar ausente que se debru-
ça sobre algum vazio?
E este rosto assim magro, assim macilento, assim amassado… Onde
estão aqueles olhos que não os vejo quando os procuro correndo-os pelo
espelho embaçado?

— 87 —
E, no espaço de sombra que entremeia o meu sonho pretérito e os frios
contornos da minha realidade presente, o murmúrio de algum vácuo, de
alguma saudade, de algum arrependimento, de alguma lembrança ao re-
lento. E tenta me falar de alento essa memória de mim? Um sussurro que,
no silêncio, se faz ouvir: eu vou te amar para sempre, vou te amar até o dia
da minha morte. Havia sido ontem? Havia sido em alguma tarde? Havia
sido em algum dia ausente? E, sim, acreditei na minha crença, sorvendo
a presumível verdade dessas palavras entrelaçadas com algum desespero.
Por que quase sempre se ama em desespero, como se a maior prerrogativa
do ato de amar fosse esta: fazer-se em ato de amar sempre em alegria e em
dor e em temor?
A consciência da finitude de todas as coisas deveria ser um incentivo a
viver com intensidade todas as coisas, e não uma fonte de perene receio. E
esse trinta e um de dezembro, será que concorda com a certeza dos meus
lábios? Em sussurro, eu me sussurro sorria, foi melhor assim, essa chuva
que caiu há pouco não encontra correspondência em seu peito, que ele
está seco e é um cacto e esse cacto espeta e espeta e espera.
Não, essa chuva anuncia que não se deve esperar, que não devo espe-
rar, que toda espera é uma chuva vã, uma chuva de desalento. E me fala
de algum passado também esse vento, pois era noite e sentíamos a brisa
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

em nossos rostos de sorrisos e de alguma esperança. A brisa foi a mesma


para nós dois? Posso dizer de mim, pois sei que senti aquela brisa como
quem sente uma carícia fugaz e terna e almejada. E ele? Será que recebeu
com o mesmo enleio o toque invisível daquela brisa de uma noite em céu
desprovido de estrelas? E o cotovelo? Meu cotovelo fino e frágil e descar-
nado, como lembrança inolvidável daquela noite, ainda dói em diferentes
noites de mesmo frio. Como se houvesse sido ontem, lembro-me da dor
sentida quando intentei pular do carro em movimento e ele me segurou
pelo pulso, bem desta maneira: eu, com a porta do meu lado aberta, for-
çando meu corpo para fora do carro e, ele, dirigindo com uma mão e me
segurando com a outra, muito forte, pelo pulso fino. Depois que serenei
foi que senti, abraçada a ele, o cotovelo dolorido, latejando, lembrando-me
de que amor e fúria e ódio são tão próximos como são próximos o sorriso
e o choro e os lábios.
Eu, sozinha, no último dia do ano, porque um ano que se passa é,
para sempre, um ano que se foi. E um amor que passa é um amor que
personifica a presença de um amor recordado. E esta chuva que retorna,
fazendo-me presenciar, pela vidraça, uma ventania que sacode a copa
— 88 —

verde e encharcada das árvores plantadas sob o cimento das calçadas.


Por um breve instante, diviso uma cena suja e bela: oriundas de algum
lugar, centenas de sacolas brancas, de plástico, vazias, passam voando,
ao sabor da ventania. Se eu fosse uma sacola de plástico, também pode-
ria voar ao sabor do vento, e não só ao sabor de algum gosto sentido e
ressentido e jamais esquecido.
Exatamente. A chuva torna a cair, na minha última tarde do meu últi-
mo ano. Cai forte, cai certeira, cai implacável como é implacável o voo de
uma águia que mira sua presa. Teve uma vez que chovera muito. Chovera
tanto e tanto que a água invadira calçadas e o interior de algumas casas.
Chovera tanto que o carro em que estávamos enguiçou. Então ele me ti-
rara do carro e me levara, nos braços, até um local seco e seguro. Ambos
ficáramos muito molhados. Mas eu havia me molhado apenas com a água
transparente da chuva, não com a água barrenta do chão. Esta, limitara-
se aos joelhos dele. Agora, quem… Quem me tiraria do carro ilhado? Por
isso é que minha casa passou a ser um abrigo. Por isso é que eu, em mim
mesma, tornei-me um abrigo. Como querer correr o risco e a ventura e a
desventura de me molhar outra vez?
Mas agora sou, no abrigo de minha casa, ao abrigo de mim mesma,
uma segurança que se faz seca e segura e inacessível e seca. Muito seca.
Sou mesmo um cacto: essa nova mulher, que passou a se refazer a cada ano
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

depois dos anos em que ousou compartilhar o ouro mais brilhante de sua
opaca vida. Porque ir vivendo foi a única maneira de viver que encontrei
para seguir adiante, sozinha. Ir vivendo foi o que me permitiu seguir uma
vida que se simulava, sutilmente, a cada dia, portadora de algum sentido.
Ir vivendo passou a ser o meu objetivo buscado e único e último.
E sim, eu, tão seca, tão à procura de algum olhar que me devolvesse a
mim mesma, e a chuva dessa tarde, tão apta a também ser recordada para
sempre. Sim. Forma-se uma tarde de trinta e um de dezembro. Um ano a
mais após o encerramento de tantos anos. E, na última tarde deste ano,
ainda sou um passado.

II
O passado e o tempo

Eu me revelo marcado pelo estigma de um desejo. Mas é que eu tinha


pouco tempo de vida e ainda não sabia que, em algum ponto, os tucanos
comiam os frutos no ponto. Não. Não creio que eu domine todas as nuan-
ces do assunto de que quero tratar, porque eu sou moderno, embora não

— 89 —
saiba o que seja modernidade. Não verdade, eu não sou, eu estou; e mi-
nha complexidade me sonda como uma sombra, e também sei que sou tão
transcendental que não me transcendo, pois me transcender seria jamais
me transcender. Porque é assim: quando eu estou é que não estou. Talvez
porque negar-me seja meu modo de não me negar. E afirmo também que o
meu dia a dia é um corpo-a-corpo ao lado de uma espera: pelo sol, pela lua,
pelas estrelas, pelo sol, pela lua, pelas estrelas, pelo sol... Pois é assim que
a vida que passa me passa. Mas eu estou aqui, embora eu não esteja aqui,
já que estar aqui é não estar aqui. Então, pergunto-me, por que estou aqui
se não estou aqui? Porque os meus dias não me contemplam, os meus dias
me correm, me percorrem, me transcorrem, me decorrem, me morrem.
Ah, essa vida que passa me trespassa.
Ou também pode ser assim: porque quando eu era feliz, eu tinha um
desejo, e o meu desejo se deixava traduzir na expressão de um gesto, na
contundência de um pensamento, na vertigem de um desejo, na audácia
de um olhar que encontrava, à sua frente, alguma sombra de reciprocida-
de. Quando eu era feliz, ah, na claridade daqueles dias eu tinha um so-
nho que me aproximava de mim mesmo; mas hoje, hoje que me tenho,
aprisionado na amplitude deste presente, hoje eu me tenho quando me
abraço e me constato assim: em mim, só, em mim, distante de mim. Por-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que quando eu sorria, ah, quando eu sorria... Eu nunca chorei de modo


tão profundo como chorei naquela época em que sorria. Porque naquela
época... Naquela época eu era um poço seco em cujo fundo gotejava, de
vez em quando, alguma água. Mas hoje, sim, é que eu sou uma profundi-
dade realmente seca. E o meu desafio é uma incerteza lançada ao vento.
E a minha incerteza é uma poeira, um conjunto de átomos muito unidos.
E muito certos de sua grande inutilidade. Quanto a mim, eu só seria útil
se obedecesse a algo. Eu só seria útil se abaixasse minha cabeça de modo
afirmativo, eu só seria útil se me escravizasse no ato mesmo de me anular.
Mas minha inutilidade grita em mim eu sou uma sirene, eu sou uma re-
beldia, eu sou uma boca que proclama, eu sou uma inutilidade, sim, pois
eu nasci com a marca do desejo, eu nasci sob o signo do desencanto que se
segue a uma enorme ilusão.
Porque foi assim: quando eu nasci era dia e eu olhei a luz do dia com
olhos débeis e me decepcionei. Quando eu nasci eu vivi o contexto diurno
de minha primeira desilusão. Mas a noite, ah, a noite com seus sortilégios
haveria de descer sobre a claridade do meu primeiro dia vivido em choro e
em desventura. Mas a cor, que é vermelha, me lembra do desejo que habi-
— 90 —

tou em mim, me faz, isso, me faz recordar dos dias que vivi enquanto eu,
projeção de mim mesmo, vivia a vida que me habitava.
Sabia que quando eu te conheci eu nasci de novo? E o processo foi o
mesmo, em tudo.
E hoje o que eu tenho é uma lembrança que metaforiza a sombra de
um copo vazio. Hoje, eu, que sempre fui uma sombra, hoje eu persigo sen-
do uma sombra de mim. Mas no dia em que eu mais sorri, nesse dia eu fui
a sombra do desejo que me visitava. E esse desejo me deixou, inscrito sob
a pele, a xilogravura de uma possibilidade. E a única certeza talvez seja a
que se desdobre em duas constatações: trago nos olhos o espectro de um
passado. E, em mim, enquanto ainda me recordo dos teus passados sorri-
sos e do peso do teu corpo, seja querendo saltar do carro em movimento,
seja em meus braços sob a chuva, o tempo combate o passado.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

A incomunicabilidade em
“A última tarde” & “O passado e o tempo”
Ademir Luiz

Umberto Eco conta que quando lançou O Nome da Rosa, estando próximo
dos cinquenta anos, depois de décadas pesquisando literatura na universidade,
sentiu-se como um crítico de teatro subindo pela primeira vez no palco, expon-
do-se à luz para ser julgado por seus até então cúmplices na escuridão da plateia.
A imagem é forte, mas, na verdade, não é incomum que acadêmicos abracem o
fazer literário. Não faltam exemplos, indo do professor convidado em Harvard
Edmund Wilson até o Doutor em Química Elias Canetti, passando pelos bra-
sileiros Silviano Santiago, Davi Arrigucci Jr. e Milton Hatoum. Essa estirpe de
escritores caracteriza-se, sobretudo, pelo pragmatismo. Procuram aplicar seus
conhecimentos técnicos na carpintaria artística. A literatura que produzem ja-
mais é resultado de pura inspiração, mas de transpiração e, sobretudo, reflexão.

— 91 —
Procuram não dar chance ao acaso. Se há acerto ou erro o resultado deriva das
escolhas conscientes que fizeram, não de desconhecimento das regras do jogo.
O escritor sul-mato-grossense radicado em Goiás, Ewerton Freitas, pós-doutor
em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista, pode ser identificado
com esse grupo de escribas. Seu romance de estreia, As Metades Invisíveis, não dei-
xa dúvidas. Especialista em Literatura Feminina, Ewerton Freitas tem desenvolvi-
do seu estilo em franco diálogo com a escritora Clarice Lispector. Não se trata de
mera influência ou imitação, mas de desenvolver uma práxis acerca do que desven-
dou pesquisando a mestra ucraniana radicada no Brasil. Essa intencionalidade de
filiação estilística também pode ser notada no livro de contos O Discurso e a Coisa
ou o espelho na esquina, onde Ewerton Freitas apresenta uma série de narrativas
em espelho, trabalhando o ponto de vista feminino em contraponto ao masculino.
O título desse livro é definidor. Não por acaso evoca o discurso acadêmico
estruturalista. A influência do cientista social francês Michel Foucault, autor do
clássico As Palavras e as Coisas, é evidente e assumida. Nesse livro, Foucault inau-
gura a metodologia de investigação filosófica que chamou de “arqueologia dos
saberes”, baseada no ato de cavar nas entrelinhas dos discursos e das práticas em
busca de seu sentido, como se faz em um sítio arqueológico, peneirando, sepa-
rando e catalogando os vestígios encontrados. Em seu livro, Ewerton Freitas de
fato separou e catalogou, na forma de títulos, suas narrativas. Mas não explicitou
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

para o leitor quais contos se complementam. Moldou um espelho para, em segui-


da, esmigalhá-lo; transformando-o em um projeto de mosaico que pode ou não
ser montado, dependendo da vontade e do esforço do leitor. Cada conto funciona
sozinho, mas o desafio lançado pelo livro só é plenamente cumprido quando se
consegue estabelecer essas relações.
Os contos “A última tarde” e “O passado e o tempo” representam bem a pro-
posta. O tema conjunto é a incomunicabilidade. Cada um mostra uma perspecti-
va da dificuldade que um casal encontra para se entender, para compreender as
demandas um do outro, transformando pequenas coisas em grandes obstáculos,
que acabam por separá-los. A voz narrativa do primeiro é feminina, do segundo
masculina.
A personagem narradora de “A última tarde” encontra-se só em sua casa,
numa tarde de ano novo, remoendo as lembranças de um romance que acabou.
Seu desejo é que aquela noite de 31 de dezembro sele o fim de um ciclo, que
abra possibilidade para um novo começo, mas as lembranças são mais fortes.
Transformam-se num fantasma não representado, mas ainda assim muito pró-
ximo da aparição de Um Conto de Natal, de Dickens. Ela vive seu “Um Conto do
— 92 —

Réveillon”, com o passado assombrando-a de forma quase palpável, ainda que


indefinida. Ela própria se torna o veículo de seu susto. Acostumada a ser bela,
o sofrimento transformou-a numa criatura medonha, com “rosto assim magro,
assim macilento, assim amassado”. Tortura-se se lembrando repetidamente de
“quando intentei pular do carro em movimento e ele me segurou pelo pulso”.
Não se desprende, seu luto freudiano estende-se continuamente, obrigando-a a
admitir que “na última tarde deste ano, ainda sou um passado”.
O conto termina exatamente com essa palavra, “passado”, dando a deixa para
a voz masculina de “O passado e o tempo” começar sua narração. Trata-se de um
homem tradicional, criado no seio de uma sociedade machista, lutando para ser
moderno. “Porque eu sou moderno, embora não saiba o que seja modernidade.
Não verdade, eu não sou, eu estou”. É um homem do passado que deseja entrar
no novo tempo, mas sem fazer concessões. Está sempre fazendo perguntas e
esboçando respostas. “Por que estou aqui se não estou aqui? Porque os meus dias
não me contemplam, os meus dias me correm”. Seu orgulho o impede de viver
sem verdades precisas. Não conseguiu conviver com, para lembrar Nietzsche, a
força da fraqueza, a autoridade moral das lágrimas de sua ex-amante. Sentiu que
se cedesse ao que achava ser caprichos de mulher mimada acabaria perdendo
seu amor próprio. Acreditava que para ela, “eu só seria útil se me escravizasse
no ato mesmo de me anular”. Preferiu abdicar do amor. Lamenta, mas não cede,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

pois orgulha-se de ser “uma profundidade realmente seca”. Impediu-a de “saltar


do carro em movimento”, mas não a impediu de saltar de sua vida. Para ele, “o
tempo combate o passado”; para ele, fantasmas não existem.

Referências:
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FREITAS, Ewerton. As metades invisíveis. São Paulo: Ixtlan, 2010.

— 93 —
Heleno Godoy

Escurinho

E esse não-saber hostil ao saber, no qual a beleza, como que


para proteger sua delicadeza e fragilidade, envolve-se e até
precisa envolver-se, porque a unidade dos mundos criada
por ela é mais fugaz, mais perecível, mais atacável do que
a do conhecimento, mas, além disso e muito ao contrário
desta, pode qualquer momento ser lesada pelo saber...

Herman Broch, A Morte de Virgílio

Pode-se muito bem começar com informações preliminares e conven-


cionais, embora necessárias, sobre seu passado e seu presente: o pai é alto,

— 95 —
moreno e mendigo. Moram os dois num barraco pequeno, no fundo da
casa de um velho e de sua filha solteira. A mãe, de quem não se lembra,
era preta. Ele também é escuro, mais que o pai. Não tão alto, mas forte
de braços e de mãos grandes. Seus dezoito anos incompletos podem ser
divididos em cinco, talvez seis, mais ou menos esquecidos; cinco, durante
os quais o pai o obrigou a mendigar com ele e deu-lhe surras frequentes;
quatro, quando trabalhou numa máquina de beneficiamento de arroz e
adquiriu sua musculatura e força; dois, quando passou a trabalhar como
ajudante de pedreiro; o último, ainda na mesma função.
Calado, não tem amigos nem sai à noite, quando chega da construção.
Toma banho três vezes por semana e possui apenas duas trocas de roupa,
com uma vai trabalhar, a outra ele veste de vez em quando. O ordenado
que recebe sai dividido em vales, ao longo de cada mês. Reparte-o com o
pai em forma de garrafas de pinga ordinária. Os dois bebem juntos, sem
falarem, dentro do barraco, as portas e as janelas fechadas. Quando sai
para o trabalho, de manhã, a cabeça dói. Sempre se curva ao seguir a linha
reta do muro que os separam da casa da frente, até o portão que dá para a
rua. Ali, roupa rasgada e suja, os músculos altos do peito abrindo mais os
buracos da camisa, as coxas grossas apertadas nas calças justas, anda ere-
to e firme. Não tem o ventre volumoso, seus ombros são largos e os pés,
enormes. Não olha para frente, segue em frente de cabeça baixa.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O pai também se levanta cedo. A mesma roupa de todos os dias sobre


o corpo volumoso, ele arrasta uma perna, cujos ossos se colaram mal, de-
pois de um acidente com uma colhedeira, em uma fazenda. Com um filho
pequeno e a mulher morta, a perna quebrada e o saco escrotal enorme,
por causa de uma hérnia, ele deixou de trabalhar para mendigar na cidade.
Por isso sai cedo e só volta quando é noite. Come o que lhe dão, bebe de
qualquer torneira, senta-se sob qualquer sombra.
O filho arranja-se como pode, em algum bar. O dinheiro que ele ganha
como ajudante de pedreiro nem é suficiente, dá para a pinga, o café de vez
em quando, o pão velho comprado à noite, antes de voltar para a casa, a
garrafa de querosene para o fogareiro. Fazem chá de ervas-doce quando
não têm pão pela manhã, dois biscoitos de queijo ou uma coxinha de ga-
linha ou duas empadas ao meio-dia, com um copo de leite, uma dose de
pinga às quatro da tarde, algum resto de arroz, feijão, carne, às vezes, ou
macarronada, à noite, que o pai ganha de porta em porta e guarda para
ele. E a pinga, que eles bebem aos poucos. O pai olha para o filho e não
diz nada. Ele fica bêbado, não presta atenção no que o pai faz, como se
arrasta. Havendo comida, recebe o prato de metal que o pai lhe estende e
— 96 —

come com as mãos, alternando os bocados que leva à boca com a pinga na
caneca de alumínio.
Antes de dormir, nos dias em que toma banho, lava sua roupa no tan-
que do outro lado do barraco. Faz isso, assim como apanha folhas de erva-
doce, porque a solteirona da casa da frente deixa, só que à noite. Ela não
permite que ele fique de calção no fundo do quintal e evita ver seu pai com
o grande volume do saco escrotal entre as pernas.
Ele trabalha pesado, bebe muito, come pouco e dorme profundamente.
Não se lembra dos sonhos quando acorda cedo, nem chega atrasado ao
emprego, mas sente maior cansaço agora, amassando barro e carregando
tijolos ou telhas, do que quando carregava sacos de arroz, milho e feijão.
Arredio, quando e enquanto um diálogo qualquer é travado, durante o ho-
rário de serviço, e diz respeito ao que ele faz, mantém-se de lado. Em tudo
em sua vida há essa tendência em ficar na distância, ou de se conservar
impassível, de aceitar o que lhe acontece ou o que lhe preparam e orde-
nam. Pode-se dizer que ele não pensa ou que é desprovido de sentimentos.
Obedece, simplesmente, como daquela vez em que o chefe de obras apro-
ximou-se deles lá na construção e deu uma ordem simples “O empreiteiro
disse que tem novo serviço pra gente. E que têm pressa lá. É no cassino,
eles querem o anexo pronto até o fim do mês.” Os outros pedreiros até se
alvoroçaram, um chegou a gritar um “Ôba!” meio desajeitado, mas sem
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

tempo de se alegrar, pois o chefe de obras olhou duro para ele, dizendo
que o que eles encontrariam lá seria muito serviço e nenhuma diversão.
Um dos pedreiros ainda quis contra-argumentar, dizendo que um mês só
era pouco. O homem ficou vermelho e gritou um “Cala a boca, porra! Já
disse e está dito. Terminem aqui rápido e amanhã já vão para lá. Não quero
saber de mas nem de mais. E tem que ficar pronto lá. Em um mês!”
Se sua história é convencional, pode-se indagar de que outro modo
abordá-la, senão através de um relatório frio e distanciado de tudo o que
passou a lhe acontecer daí em diante. Afinal, ele passou a sair de casa mais
cedo para chegar ao cassino, quase do outro lado da cidade, na hora certa.
Acordava, passava a escova no sabão escuro e depois nos dentes, água no
rosto e debaixo dos braços. Vestia-se e saía. Era apenas uma nova rotina,
um adiantar de seu relógio biológico, ter de se acostumar com mais cami-
nhadas, sair de casa mais cedo e retornar mais tarde. Como se acostumava
calmamente, e sem reclamações, a tudo o que lhe ordenavam, estranhou
um pouco o início, principalmente por causa da ausência de um bar ou
uma lanchonete por perto, onde pudesse comer sua coxinha de galinha ou
sua empada ou, ainda, seus pães de queijo. E, também, tomar sua pinga,

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pois passou a levar alguma coisa de casa, comprada no dia anterior. Peque-
na alteração, a ser logo seguida por outras.
O cassino era calmo durante o dia. Nenhum carro vinha, nenhum fre-
guês aparecia. As mulheres, sim, pela do almoço, quando começavam a
acordar, andavam lá por dentro, ele ouvia. E via, por uma janela, uma ou
outra passando. Não logo assim de início, mas já ao fim da primeira se-
mana, elas vinham conversar um pouco. Os três pedreiros, experientes e
desinibidos, falavam, batiam um papo com elas. Ele e o menino ficavam
distantes e mantinham-se ocupados. As mulheres olhavam enquanto eles
cinco continuavam com o serviço. Davam palpites, trocavam ideias, ima-
ginavam como o anexo ficaria depois de pronto. Planejavam detalhes de
uma festa especial de inauguração, o tom de cor de uma parede. Bem à
tarde, quase noite, é que um carro, um outro e depois vários (ou poucos,
dependendo do dia, se mais no início, no meio ou no fim da semana) co-
meçavam a aparecer.
Ele não ficava até quando o movimento aumentava. O serviço acabava
às seis horas, os pedreiros e o menino iam embora, ele demorava mais,
guardando pás, enxadas e o carrinho. Era nessa hora, também, que a músi-
ca começava. E ele, mais lentamente ainda, por isso, terminava de guardar
o resto das coisas, até ficar quieto, ouvindo, de pé ou sentado em alguma
pilha de tijolos. Não significavam muito para ele todos aqueles sons, nem
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

os detalhes desimportantes da vida ou do que acontecia por lá. Pode-se


dizer o mesmo em relação à sua percepção da duração dos dias gastos na
construção do anexo, o tempo não era sentido ou visto por ele como algo
mensurável. Já sabia que era preciso andar depressa com a construção.
Apenas cumpria a rotina que lhe fora imposta.
Um dia, quando os outros já haviam ido embora, ouvindo aquela músi-
ca, ele chegou até o fundo, até a grande parede a ser depois derrubada para
que a construção nova fosse unida à velha, e onde havia uma porta. Ten-
tou ver de onde vinha aquela música, o que se passava lá dentro, através
do buraco de uma fechadura ou uma fresta naquela porta sempre fechada.
Mas ele não viu nada, porque ela não dava para nenhuma sala, nenhum
salão ou quarto, só para um corredor que levava até a sala maior, um salão
de festas, e o bar. Ele não conhecia as divisões do cassino, nunca estivera
lá dentro, nem sabia o que se podia fazer lá. Depois, não distinguiu vulto
algum. O corredor era estreito e as pessoas passavam muito rente à porta.
Continuou como sempre seu serviço de todos os dias na construção,
peneirando areia, misturando-a ao cimento, preparando argamassa para
os pedreiros e empilhando tijolos. Demorou a reparar que uma das mu-
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lheres de lá começou a aparecer e a ficar muito mais tempo que as outras,


conversando com os pedreiros. Ele a seguia de longe, desviando cabeça
e olhos quando ela olhava em sua direção. Se era bonita? Claro que era
bela, é o que se imaginar que ele pensava, todas as vezes em que ela se
aproximava dele. Ele sempre se assustava com isso. Mesmo quando a pro-
ximidade dela já era notada até pelos pedreiros. “Aí, hein, Escurinho?” “A
dona tá até interessada, Escurinho!” Ele continuou calado de cabeça baixa.
E assim ainda ficou naquele dia em que ela o olhou bem de frente e disse
que conhecia o pai dele. “Não é aquele mendigo?” a mão fazendo um gesto
a indicar o volume entre as pernas. “De vez em quando aparecia por aqui,
pedindo comida. Tem tempos que não vem.” Ele continuou a empilhar te-
lhas, olhando de lado. “Que isso, Escurinho, responde à dona!” “É, sim,
senhora.” respondeu, a voz um fio abafado. “Eu sabia que era, você é cara
dele, mas é bonito. Ele, não.”
O vestido dela era bem decotado. Continuou conversando com os ou-
tros, embora permanecesse mais perto dele. Chegou a se assentar num
caixote e puxar o vestido, levantando a barra da saia, deixando as pernas
à mostra, as coxas redondas e claras que ele via. Depois saiu, levando o
menino. Os pedreiros riam para ele. “Que é que você tem que ela quer,
hein, Escurinho?” Ele continuou de cabeça baixa, peneirando areia e assim
ainda estava quando o menino voltou, dizendo que, se ele quisesse, era
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

para ir lá dentro buscar um prato de comida para o almoço”Ela que disse.”


Ele não respondeu. Parou de peneirar a areia para reboco das paredes,
foi até a bica d`água, lavou as mãos e contornando a construção, entrou
no outro prédio pelos fundos. Uma velha estendeu-lhe o prato “Come aí
mesmo. Olha o tamborete.” Quando acabou de comer, pediu água e a velha
deu. Ia saindo do que parecia ser a cozinha da casa, quando a mulher apa-
receu “De hoje em diante você vem comer aqui. O menino também, pois
vocês não trazem comida.”
Eles passaram a ir, em separado. Primeiro o menino, depois ele, ou o
contrário. A velha entregava o prato, a mulher aparecia, ficava olhando. A
velha estava lá sempre. E ninguém dizia nada. Ele comia e voltava para a
construção. Às vezes, outras mulheres apareciam. Ele abaixava a cabeça,
continuava a comer e não gostava de sentir-se observado. Não era, em
verdade. Não pelas outras, só por ela. Ele não notava a diferença em razão
de ela vir poucas vezes, demorando-se pouco, olhando-o só quando ele
não estava atento.
Um dia mandou que ficasse para o jantar “Aposto que seu pai não
guarda comida para você, de noite.” “Guarda, sim, senhora.” “Assim

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mesmo, fica para jantar aqui, tem mais comida. Você trabalha muito e
precisa comer melhor.” E ele passou a chegar mais tarde em casa. Não
diminuiu a quantidade de pinga que tomava, apenas não ficava bêbado
tão rapidamente.
De uma vez, ao devolver o prato de comida do almoço e tomar o copo
d`água todo, de um só gole, ouviu da velha, que aguardava “Passa pelo
corredor e entra no quinto quarto à direita. Ela quer falar com você.” Ele
olhou para a velha, parado, os olhos abertos. “Quer mais água?” Ele ba-
lançou negativamente a cabeça, os olhos ainda bem abertos. “Vai.” a velha
repetiu e ele caminhou apressado, olhando à direita e à esquerda. Ficou
parado em frente à porta do quarto, indeciso. Estava certo, era o quinto
quarto, havia contado as portas. Bateu de leve. “Entra!” ele ouviu e afastou
a porta, colocando a cabeça dentro do quarto, depois o resto do corpo, a
porta afastada para a direita, a mão mantendo-a lá, com o braço estendi-
do. Abaixou a cabeça e ficou olhando os próprios pés descalços e imundos.
“Entra mais. Só estou eu aqui, e fecha a porta.”
Obedeceu e voltou-se para ela. “Seu pai é aquele mendigo mesmo.”
Seus olhos continuaram em direção ao chão. Ele levantou e abaixou a ca-
beça, naquele movimento de confirmação, mantendo-a curvada quando
terminou. “Ele tem aquele saco grande.” Olhou para ela, mas não precisou
confirmar outra vez, ela não esperou “Não é?” ele continuou parado. “O
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

seu também é grande?” Um silêncio curto e, depois “O saco?” perguntou.


E ela “Não.” “O quê?” perguntou, por não saber o que dizer. “O...” Ela não
completou a frase e estendeu a mão, indicando. Ele olhou em direção ao
volume visível entre suas pernas. A calça justa arredondava-o para baixo,
cilíndrico para a direita. Levantou o braço e esfregou a manga da camisa
na boca. Não respondeu. Ela aproximou-se dele, estendeu o braço e apal-
pou-o com a mão aberta. Ele não se mexia, braços e mãos ao longo do
corpo. “Abre a calça.”
As mãos dele tremeram ao desabotoar os três únicos botões. Apenas
abriu a braguilha da calça, afastando os lados, não abaixou o calção que
usava por baixo. Olhou de novo para a mulher. O coração batia forte, a ca-
misa levantando-se e abaixando-se naquele ritmo, a garganta seca, muito
seca. Ela enfiou a mão dentro de seu calção e pegou-o entre os dedos. Ele
ficou olhando de lado, a cabeça voltada um pouco para cima. “É grosso. O
saco também é grande.” Ouviu-a calado, enquanto ela retirava a mão de
lá e, com a ajuda da outra, fez a calça escorregar até o chão. Abaixou-lhe
o calção em seguida, deixando-o seminu. Ficou olhando. “Deve ficar bem
grande, duro.” Ele continuou a olhar para o lado. Ela estendeu as duas
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mãos. Com a direita ficou aparando-lhe o saco, com a esquerda começou a


massageá-lo. Ele continuou com a cabeça de lado meio levantada. Não via
que estava ficando duro e cada vez maior. “É grande sim. Muito grande. O
maior que já vi até hoje. Isso é muito bom, menino.” ela dizia, enquanto
continuava pegando-o e rolando-o entre os dedos. Ele gozou em muito
pouco tempo, um minuto, a respiração entrecortada e acelerada. Ela riu,
ele ficou mais quieto ainda. Ela pegou uma toalha de cima de uma cadeira,
sem tirar a outra mão de seu saco e, com o polegar e o indicador pressio-
nando-o por cima e por baixo, foi apertando em direção à ponta. Aí lim-
pou-se a última gota e afastou-se, sentando-se numa cadeira e olhando
para ele. Estava ainda muito duro. Ela só olhava naquela direção, para seu
corpo marrom, liso e firme. Pelos, só ali em volta, uma pequena moita de
cabelos bem engrenhados. “Você é gostoso. É preto, mas é gostoso. Seu
corpo é muito gostoso. Com um ponto grande desse jeito...” ela nem ter-
minou a frase.
Ele baixou-se devagar para arrumar o calção e a calça. Continuava duro
sob a roupa. Ela ficou parada, ainda sentada na cadeira. Quando ele ter-
minou de se arrumar, fixou os olhos no rosto dele. “Olha, depois que você
for embora hoje, toma banho na sua casa e volta. Lá pela meia-noite. A
velha vai aguardar você na porta da cozinha. Eu vou ficar aqui, esperando
por você.” Ele ainda estava duro quando recomeçou a trabalhar. Não havia
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ficado lá dentro mais do que quinze minutos. O menino olhou para ele
espantado, os olhos esbugalhados para o volume abaixo de sua barriga,
aquela elevação. Um dos pedreiros deu uma cotovelada em outro “Que é
que você viu lá dentro, Escurinho?” Os outros pedreiros caíram na garga-
lhada. Ele voltou-lhes as costas e começou a peneirar mais areia e cimento.
Saiu quase correndo, quando chegou a hora de ir para casa, e voltou
mais cedo do que ela havia pedido. Entrou na construção, foi até a porta
fechada daquela parede do fundo, olhou para dentro, tentou adivinhar o
que se passava por lá. Depois, foi à porta da cozinha. Estava fechada.
Esperou um pouco e depois voltou à construção, sentando-se num dos
cavaletes que usava em serviço. A roupa era a que estava limpa. Ele estava
limpo também. Tinha demorado muito para tomar banho e quase nem
tinha amolecido, desde que saíra do quarto dela. Saiu de casa com a mão
no bolso, segurando-se por baixo da roupa, tentando disfarçar aquela ele-
vação sob a perna direita da calça. Esperava.
Foi até à porta fechada e olhou pela fresta mais uma vez. Ouviu o ba-
rulho de alguém andando. Abaixou-se atrás de um monte de tijolos. Um
homem veio até perto da construção, aproximou-se de uma parede, abriu

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a calça e urinou. Depois que o barulho acabou e o homem afastou-se, ele
foi outra vez até a porta da cozinha. Estava entreaberta. Devagar, empur-
rou-a com a mão esquerda, tentou ver quem estava lá dentro. A velha ter-
minou de abrir a porta e mandou que ele entrasse, com um gesto de mão.
Não disse nada, apenas indicou-lhe a direção do quarto com a cabeça. Ele
foi, já sabia onde ficava.
Não viu ninguém no corredor. O som da música e das pessoas conver-
sando vinha da sala além. Não teve tempo de ficar parado. Quando empur-
rou a porta do quarto, a mulher puxou-lhe a mão e trouxe-o para dentro.
O quarto estava escuro, mas pela luz que entrava pela janela ele pôde ver
que ela, com o dedo indicador da mão direita sobre o lábios em bico, pe-
dia-lhe para não falar, ficar quieto. Ele ficou esperando. Estavam frente a
frente outra vez. Ele duro já havia muito tempo, mas quieto. Ela acendeu
a lâmpada de um abajur pequeno perto da cama, olhou para as pernas dele
sorriu alegre. Ele ficou olhando para a roupa leve que ela usava, transpa-
rente, os seios grandes com os bicos escuros, o tufo de cabelos lá em baixo,
mais compactos, embora mais esparramados que os seus.
Ela desabotoou-lhe a camisa. Ele levou a mão direita até um dos seios
dela. Apenas encostou a mão. Não sabia o que podia fazer. “Tira a calça.”
Ele despiu-se depressa e ficou nu diante dela, parado. Ela sorriu mais uma
vez, colocou os braços em volta do pescoço dele, aproximou os lábios e
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

beijou-lhe a boca. Os lábios dele ficaram unidos, imóveis. Era a primeira


vez que fazia tudo aquilo. Seu primeiro beijo e sua primeira mulher. Ela
afastou-se, livrou-se da roupa e deitou-se na cama, os braços estendidos.
Ele foi até a cama, pousou o joelho esquerdo do lado direito dela, passou
a outra perna para o lado esquerdo e ficou ajoelhado. Ela, sorrindo sem-
pre, deitada entre as pernas dele, passava-lhe as mãos sobre as coxas e a
barriga lisas. Não quis tocar-lhe como durante a tarde, depois do almoço,
apenas acariciava-lhe as pernas, os contornos dos pelos, subia as mãos até
seu peito. Ele esperava ainda de joelhos.
Ela demorou muito a descer a mão e toca-o lá, onde sua carne disten-
dia-se para frente e para o alto. Os movimentos da mão dela, para diante
e para trás, foram ficando mais e mais rápidos. Ele apertou o corpo dela
entre as coxas e começou a respirar fundo. Daí uns segundos, gemeu e go-
zou. Dois espirros o líquido grosso e branco que saíram dele foram dar de
encontro à cabeceira da cama. Outro caiu sobre o rosto dela, outros dois
sobre seus seios, um último, abaixo dos seios. Quando ela apertou a mão e
trouxe os dedos até a ponta, um pouco mais do líquido saiu pelo pequeno
furo e escorregou pela mão dela. Ele não viu nada. Tinha se ajoelhado
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sobre ela, tinha dado um gemido, tinha gozado. Quando abriu os olhos e
olhou para baixo, ela estava limpando-se e a ele com uma toalha. A outra
mão ainda segurava-o. “Deita em cima de mim.” Ele demorou a ajeitar-
se sobre ela, tão duro quanto antes. Ela abriu as pernas para que ele se
acomodasse. Ficou quieto. Ela é que se contorcia sob ele, esfregava-se. A
cabeça sobre o ombro dela, o rosto junto ao seu pescoço, ela é que lhe aca-
riciava as costas, a bunda, a nuca. Foi ela que passou a mão direita sob o
corpo dele, buscou-o, trouxe-o até a entrada, ele espantado com a umida-
de. “Empurra.” Ele empurrou com força e ela gemeu alto. “Devagar, é gran-
de demais.” Ele estranhou o caminho estreito e apertado. Empurrou mais.
Ela cerrou os dentes e gemeu baixo. Ele penetrou mais ainda. Ela gritou
um “Ai!” abafado e aparou o corpo dele com as duas mãos, levando-o para
trás. Ele apoiou-se com as duas mãos na cama levantou o corpo sem sair
de dentro dela. “Vai mais devagar, depressa machuca.” Ele obedeceu. Ficou
olhando para o rosto dela e empurrando devagar. Ela mantinha os olhos
fechados. Empurrou mais, penetrou mais, viu que ela virava a cabeça para
o lado direito e apertava os olhos já fechados e abria a boca, a respiração
aos arrancos “Ah!” Ele empurrou quase tudo. “Ai!” um grito dela, pois era
evidente que sofria. Parou de empurrar e tentou afastar-se. Ela segurou-o
com as duas mãos, apertou-o bem, levou seu próprio corpo na direção do
dele, abriu mais as pernas e elevou-se um pouco para completar a pene-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

tração. Ele via, pelo rosto dela, que estava doendo. Sentia-se prensado,
moído, completamente mergulhado no corpo dela “Não tira não, aperta.”
Ela havia decidido ensinar-lhe todos os truques, posições e segredos.
Ele conheceria os detalhes, a melhor forma, o melhor ritmo. Já havia pla-
nejado prepará-lo bem.
Ele continuou trabalhando na construção à tarde e encontrando-se
com a mulher à noite. Às vezes tinha de esperar por muito tempo. A velha
é quem continuava a abrir a porta “Espera um pouco, ela tem um freguês.”
Ele esperava, e era a mesma coisa todos os dias. Ela gemia, cerrava os den-
tes, ele ia devagar, como pedido. Ele gozava, mal terminada a penetração.
Ela continuava, insistia com ele, pedia, e ele voltava a participar, ir e a vir.
Terminavam, ele primeiro que ela. Gozava duas vezes antes que ela gozas-
se a primeira, uma depois da outra, sem amolecer, sem tirar. Ficava quieto
quando terminavam, saía dela, deitava-se de costas. Ela permanecia como
estava, molhada de suor, as pernas abertas, a boca aberta, os olhos aber-
tos, fixos no teto do quarto. Dormiam algum tempo. Acordava com ela a
acariciá-lo, ele já ficando duro de novo. Faziam mais umas duas vezes.
Passou a chegar em casa de madrugada. O pai acordava, olhava para

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ele, resmungava alguma coisa que ele entendia, virava-se para o outro
lado e voltava a dormir. Ele deixou de beber. Chegava em casa cansado
e nem tirava a roupa. Caía na cama, dormia logo e, logo também, já era
hora de se levantar. Seu trabalho passou a não render, ele estava sempre
cochilando, escorado em algum cavalete ou parede. “Ei, Escurinho, anda
depressa, tá me faltando massa e tijolo!” Ia para casa, tomava banho, fi-
cava impaciente para voltar. Pouco tempo antes de a obra estar termina-
da, as paredes pintadas, apenas uns poucos detalhes a serem concluídos
ou corrigidos aqui e ali, ela já não gemia quando penetrada: ele chegava,
entrava no quarto, deitava-se sobre ela, dava início aos movimentos. Ela
passou a gozar mais cedo, mais depressa, ele achava que ela já não era
tão apertada como antes. Um aprendizado rápido e ele agora sabia como
fazer e como participar do jogo. Ela não sentia mais dor e buscava seu
prazer com gosto. Aos poucos, passou a nem pensar nele. Até tarde da
noite atendendo seus fregueses, quando ele entrava em seu quarto, ela
nem queria saber se ele queria gozar com ela. Deitava-se sobre ele ou
mandava que ele se deitasse sobre ela. Tanto fazia como começassem,
ele foi aprendendo tudo rapidamente, sabia bem o que ela queria, como
devia fazer, onde colocar a mão, como e quando apertar mais ou afastar-
se um pouco. Ela sentava-se sobre seu corpo ou cravava as unhas em
suas costas, ele apressava o ritmo ou ficava quieto.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Ela dispunha dele na cama, os pedreiros usavam-no na construção. Pe-


neirava areia, misturava terra ou cimento com areia, amassava o barro e
o reboco, carregava o carrinho e distribuía a massa entre os pedreiros. O
serviço estava quase concluído. Ele começou a calcular para onde iria de-
pois, qual a distância que teria de percorrer ao voltar à noite para o quarto
dela. Ir até seu barraco, tomar banho e voltar; ir para casa, dormir um
pouco e voltar para o trabalho.
Algumas vezes, ele entrava no quarto dela, faziam e ela mandava que
ele saísse, para que pudesse receber algum freguês “Depois você volta. Es-
pera lá fora, não fica n cozinha não.” Ele saía e voltava, ela procurava seu
prazer. Ele não terminava e ela queria que ele saísse de cima dela, que
tirasse de dentro. “Depois a gente faz outra vez. Estou cansada, já fui com
seis, hoje.” e dormia. Ele continuava duro, esperando. Aos poucos, em al-
guns dias, ele nem gozava. Voltava duro para casa. Duro e cansado, o saco
doendo, as pernas bambas. Nem conseguia dormir e já tinha de se levan-
tar, voltar ao trabalho. Outras vezes, dormia sobre os tijolos, madrugada
quase. A velha passou a dar-lhes gemadas, o leite bem quente. Ele bebia e
queimava a língua, voltava ao trabalho e ia para casa tomar banho; deita-
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va-se em sua cama e dormia um pouco; levantava-se e ia se encontrar com


ela. Sabia que podia trepar com aquela mulher, que ela era bonita, que não
lhe cobrava nada, que eles faziam tudo do jeito que ela queria. Iniciativas
ele não tinha. Obedecia ao que ela ordenava, lambia, passava a mão, bei-
java, apertava, ia até o mais fundo. Era isso que ela queria e era isso o que
ele fazia. Já mendigara com o pai, já carregara sacos de cereais, agora car-
regava tijolos e telhas, e também preparava a argamassa, penetrava nela e
fazia com que ela gozasse.
A construção do anexo estando no fim, as mulheres vinham ver como
tinha ficado, se as cores estavam como elas haviam determinado. A festa
da inauguração estava programada e os barris de chope já haviam che-
gado, ele mesmo ajudara a carregá-los para dentro do quarto que servia
de depósito, além de cozinha. Aqueles últimos dias foram cheios do que
fazer, limpar, retocar. Ela também andou mais ocupada. Um dia antes da
inauguração, ele estava desmontando cavaletes, ela se aproximou e pediu
que a acompanhasse. Ele parou o que fazia, esfregou as mãos nas penas
da calça, olhou para um dos pedreiros. O homem sorriu “Vai, Escurinho!”
Os outros olhavam divertidos, o menino também. Ele andou devagar. Ela
já estava na cozinha, quando ele contornou a construção. A velha também
estava lá. “Agora, não. E só para conversar.” Ficou parado e esperou. Nunca
sabia o que fazer, junto dela, se só conversassem. “É o seguinte: por que
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

você não vem morar aqui?” Ele ficou esperando. E o barraco, o pai? “Não
precisa se assustar não, você fica morando aqui com a gente. As outras já
descobriram tudo mesmo. Fica lá no depósito, dá lugar. E fica trabalhan-
do aqui, ajudando a gente.” O plano era simples para ela e parecia muito
complicado para ele. Não entendeu por que ela queria que ele viesse morar
ali, por que ele devia deixar de trabalhar e vir morar com ela. Ela explicou
que não era bem morar com ela, mas morar lá, na casa, junto delas. Não no
quarto dela, pois ela tinha seus fregueses, mas no depósito. Assim, ele não
sairia dali e eles poderiam continuar se encontrando “Pra que ir embora?
Você fica aqui, não tem importância nenhuma. Todo mundo aqui sabe que
a gente deita junto. O que é que tem?” Ele não respondeu. Voltou ao traba-
lho porque ela o mandou de volta. “Amanhã é o último dia mesmo, vocês
não vão terminar hoje, a gente decide amanhã. Mas você vai ficar aqui,
isso vai. Eu quero.”
Ele estava espantado demais, mas se acostumou rapidamente com
mudança. O quarto do barraco em que dormia junto ao pai não era maior
do que aquele depósito. Um colchão no chão e algum lençol. Era tudo seu.
Ali ele passou a morar. De vez em quando, ela lhe dava algum dinheiro,

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cigarro, pinga. Mas ele já não bebia como antes, procurava era levar para o
pai alguma garrafa que comprava com o dinheiro que ela lhe dava. De ou-
tra vez, ela podia dar uma camisa ou uma calça, mas eram coisas desneces-
sárias. Ele ficava o tempo quase todo deitado em seu colchão de espuma
estreita sobre um estrado, usando apenas seu calção. Alimentava-se quan-
do a velha chamava, ia para o quarto dela quando ele mandava chamar.
Faziam e ele às vezes gozava, outras vezes, não. Voltava para seu depósi-
to e dormia. Foi-se acostumando. De manhã, lavava o salão, arrumava as
mesas e cadeiras, empilhava engradados de garrafas. Era dócil, calado, não
dizia não. E obedecia sempre.
Mesmo naquele dia em que estava deitado, como costumava fazer to-
das as tardes, e ela mandou chamá-lo. Não era a hora comum, mas foi, pois
já tinham feito umas poucas vezes durante a tarde. Não se preocupou em
se vestir. Poupava tempo apenas o calção. Mas não era para fazerem mais
uma vez que tinha mandado chamar. Não com ela, em todo caso. Outra
das mulheres estava lá. “Escurinho, ela quer provar também, você faz?”
Virou-se para a outra mulher com os olhos arregalados. Não disse nada.
Ficou olhando para a outra e para ela. Ela ria, a outra estava de cabeça
baixa, como se envergonhada “Como é, você topa ou não topa?” Ele conti-
nuou sem dizer nada, ali em pé. “Deita na cama, mulher.” ela ordenou e a
outra tirou a roupa, obedecendo. Ela se aproximou dele “Você faz, não faz?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Ela quer. Veio me pedir se eu deixava.” Estendeu a mão para seu calção e
apalpou-o. “Faz sim, ela quer ver se é grande mesmo, como eu disse.” e
abaixou-lhe o calção, que foi até os pés. Virou-se para a outra, para mos-
trá-lo “Olha!” Era grande, mas estava murcho. A mulher viu, um brilho
intenso nos olhos. Voltou a se sentar na cama. Ela segurava-o com a mão
esquerda e foi puxando-o em direção à outra. Ele deu três passos até a bei-
rada da cama,, os pés atrapalhados pelo calção. A cabeça da outra mulher
ficou bem à altura da mão que o segurava. A mulher olhou por algum tem-
po, afastou a mão e segurou-o ela mesma. Apenas o tempo de aproximar a
boca e tomá-lo entre os lábios, outra iniciação a que ele se submeteu sem
dizer nada. E excitou-se, endurecendo aos poucos, mas continuou a olhar
para o alto, como sempre. A novidade não lhe permitiu ver que ela deixara
o quarto. Tudo ficava igual, quando ele endurecia: as mesmas posições, os
mesmos gemidos de quando se iniciara com ela, o mesmo gozo, a mesma
dor aparecendo no rosto da outra mulher.
Foi assim que passou a se deitar com todas. Cedo, à tarde ou à noite,
ele estava mesmo em disponibilidade, já que não sabia se podia fazer mais
alguma outra coisa. Achava que estava ali só pra isso. Não tinha mais nada
— 106 —

a fazer. Arrumar o salão, cadeiras e mesas era um passatempo. Tinha é de


se alimentar bem e disso a velha estava encarregada: carne, ovos, leite,
pão, rapadura, gemada todos os dias, ao acordar e ao dormir. Ele nunca
estava fraco, podia dar três, quatro, cinco, em seguida. Nunca dizia nada.
Uma delas vinha, chamava ou mandava chamar. Ele ia e o ritual se repetia.
Passou foi a pedir mais pinga, estava sempre meio zonzo, mas cumpria
com que lhe ordenavam e passou a encarar aquilo como um outro empre-
go. Carregara sacos de arroz ou tijolos, agora fazia com que elas gozassem.
Ele, não. Ficava duro, penetrava em qualquer uma delas. Era o que tinha
de fazer. Podia descansar, às vezes. Dias havia em que não era chamado
por nenhuma delas, dias de mais movimento, com mais fregueses, ou dias
mais calmos, em que elas queriam apenas descansar. Ele não era mais no-
vidade e já se habituara à rotina de entrar e sair de algum quarto, deitar-se
com uma e depois com outra. Para ele dava no mesmo, com qual deitava-
se primeiro, ele já não tinha seu próprio prazer. Poucas vezes gozava. Ti-
nha aprendido a se poupar, pois poderia ser chamado logo em seguida, ter
de fazer de novo com outra. Mas mesmo que o gozo tivesse sido atingido,
não interferia, já que era capaz de manter-se duro mais tempo, mesmo
entre uma e outra, um quarto e outro.
Uma vez uma delas estava com um freguês quando ele chegou, depois
de chamado. Não se espantou. Pensou que fossem pedir-lhe para buscar
alguma bebida, pois ele ainda ajudava nos afazeres da casa. “Ele quer ver.”
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

a mulher disse. Espantou-se. “Que cara é essa? Ele só quer ver se é tão
grande mesmo. Mostra pra ele.” Ficou parado, sem saber o que fazer. Ela
veio, abaixou-lhe o calção, ficou de lado, o homem olhando. “Está mur-
cho.” a voz dele era rouca. “Mas fica muito grande quando endurece. Olha
a grossura. E o tamanho do saco!” Ela começou a massagear-lhe. “Endu-
rece, Escurinho. Deixa o homem ver.” Mas foi preciso que ela o chupasse
para que endurecesse. O homem abriu bem os olhos, quando ela o triou da
boca, afastando a cabeça. “Olha, não fale?” O homem veio, estendeu a mão
aberta. Não tocou nele, apenas estendeu a mão, abriu os dedos e mediu.
Ele ultrapassava a distância entre a ponta do polegar e a ponta do dedo
mínimo daquela mão enorme mais ou menos seis ou sete centímetros.
Depois de alguns segundos, o homem levantou a cabeça e olhou para ele.
Com raiva, ódio,e saiu depressa, batendo a porta.
De outra vez, outro homem queria ver se uma delas aguentava aquilo
tudo que dizia ser tão grande. Ele já tinha sido exibido por uma ou por
outra, umas poucas vezes. Não se importou quando teve de transar com
aquela mulher diante daquele homem de meia idade, nariz muito grande
e rosto esburaco. Fez o que sempre fazia, olhando para o lado oposto ao

— 107 —
que homem estava, para a parede. “Não faz depressa não, dá tempo para
o homem ver.” Ele sabia que homem andava de um lado para o outro, que
ia até os pés da cama, olhando. A mulher levantou as pernas para que
ele pudesse ver melhor. Quanto a ele, continuou indo e vindo, saindo e
entrando, sentindo o homem ao redor deles. Só tirou os olhos da parede
quando o homem começou a gritar “Vai! Vai! Entra tudo!”. “Faz, Escuri-
nho, faz como ele tá mandando.” Ela fingia que estava bom, que estava
gostando. Ele sabia que ela estava fingindo. Já estava acostumado com o
jeito de cada uma delas. Aquela estava fingindo prazer. Ele não entendeu,
mas continuou. Olhou para o homem, que se desabotoava. Viu que ele
também estava duro e que se segurava com as mãos, fazendo ir e vir o bra-
ço “Vai, vai, depressa, mais depressa!” O homem continuou gritando e ge-
mendo, a mulher continuou fingindo, ele continuou seus movimentos. Ela
fingiu que estava gozando, quando o homem espirrou seu líquido branco
no chão, da cadeira onde tinha se assentado. Depois, ele saiu da mulher,
vestiu o calão e deixou o quarto. Não tinha terminado. Naquela noite a
mesma mulher foi ao depósito e quarto e lhe deu dinheiro, algumas notas
“Aquele homem deixou pra você. Disse que você merecia, que você é bom
de serviço.”
Assim ele tinha passado a considerar sua posição ali dentro. Quase não
saía, ficava semanas sem ver o pai. Não tinha mesmo muito a conversar
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

com ele, tanto fazia se eles se vissem poucas vezes ou não. No princípio,
quando o pai procurava por ele, ele ainda aparecia, dava dinheiro, se ti-
nha, ou pinga, pois sempre pegava um pouco lá no bar. Depois, passou a
não aparecer. Mandava a velha entregar dinheiro ou dar-lhe um pouco de
pinga. Continuava deitado “Diz que eu estou ocupado.” e o pai ia embora.
Ele não sabia explicar o porquê, mas queria que o pai pensasse que estava
trabalhando. E seu pai pensou assim por muito tempo.
— Escurinho, seu pai tá lá fora. Diz que quer falar com você hoje, de
qualquer jeito.
Levantou-se depressa, pensou que alguma coisa tinha acontecido. O
pai estava lá na porta da cozinha, olhando para o chão. Eles ficaram para-
dos em silêncio muito tempo, perto um do outro. O pai demorou a falar.
— Eu custei a adivinhar de quem é que eles falavam, aqueles homens
no bar lá na praça.
— O quê?
O pai ficou calado mais algum tempo. Continuou, como se não tivesse
sido interrompido pela pergunta dele, a voz calma e grave.
— Pensei que era mentira. A velha ali é que confirmou tudo.
— 108 —

Ele não entendia de que o pai estava falando. Outro silêncio. Mas não
perguntou nada, ficou esperando que o pai voltasse a falar.
— Eu não sabia que você fazia isso aqui. Isso agora eu sei. Era de seu
novo serviço que o pai falava. Entendeu que era sobre isso.
— Eu sou mendigo, preto e pobre, sem eira nem beira, mas tenho ver-
gonha na cara. Não é pra isso que um homem de verdade vive, só morre.
Ele abaixou a cabeça e esperou que o pai dissesse outra coisas, mas
seu pai já se arrastava lá adiante, quando entendeu. O pai, contornando a
construção nova, desapareceu. Ele virou-se para a porta. A velha abaixou
a cabeça, quando olhou para ela. Entrou na casa devagar, foi para o quarto
de depósito e deitou-se na cama. Muito tempo depois, já noite alta, uma
das mulheres mandou chamá-lo. Ele gritou que não iria. Bateu a porta,
que estava sempre encostada, e passou-lhe a chave.
— Que que deu no Escurinho?
— Sei lá.
— A velha disse que o pai dele esteve aqui.
— Eles brigaram? O pai fez alguma coisa com ele?
— Sei lá, a velha não disse nada mais. Disse apenas que eles conversa-
ram alguns minutos.
— O quê?
— Já disse que não sei, mulher.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Quem viu se ele saiu do quarto antes de ontem?


— A velha disse que ele foi lá no salão e pegou quatro garrafas de pin-
ga. Foi antes de ontem de tardezinha.
— Nossa, tá bebendo há três dias? Sem parar e sem comer?
— Que será que houve?
— Não sei, menina, isso tá me cheirando esquisito.
— Sei não.
— Já chamei ele muitas vezes. Será que ele não saiu mesmo do quarto?
— Onde é que tá urinando?
— Também já fui lá. Disse que queria conversar com ele. Ontem ele me
xingou uns palavrão, hoje nem resmungou.
— Deve tá bêbado que nem gambá. Quatro garrafas de pinga!
— Vocês têm certeza de que ele não saiu?
— Claro, você acha que a gente ia mentir?
— Sei não...
— Não sei, uma ova, tá?
— Olha, sua merda, não se esqueça de que fui eu que achou ele.
— E ficou escondendo por muito tempo. Se a velha não conta, a gente

— 109 —
não sabia até hoje.
— Velha linguaruda.
— Será que ele está cansado, será?
— De quê? De trepar? Essa é boa, o maior homão que eu já vi!
— Não é disso que eu estou falando. É de tudo.
— De que, então?
— Dessa pouca vergonha toda.
— Pouca vergonha? Do que é que você está falando?
— De tudo que a gente faz com ele.
— Olha só quem está falando. Gemeu que gemeu, mas aguentou tudo.
Gostou mais ainda! E foi uma das que mais trepou. Tá reclamando do quê,
agora?
— Cala a boca você, ela até tem razão. Essa história de ter deixado ou-
tras pessoas ficarem sabendo é que não foi bom. Bem que eu avisei.
— Foi aquela ali que contou!
— E você precisava ver a cara do homem quando saiu daqui. Ficou
humilhado. Nunca mais deu as caras. Também, com um pinto daquele ta-
manho que ele tem. Bem feito, vai trepar só com a mulher dele, agora. Se
der conta de ficar duro de novo.
— Cala a boca você também, isso não tem nada a ver com a história do
Escurinho.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Ah, bem feito mesmo! Já estava cansada de dar praquele cara. Acha-
va que era o maior machão. Quando viu o do Escurinho, saiu correndo.
— Deixa de lorota, você vivia se esfregando nele, quando ele aparecia
por aqui.
— É mesmo, eu lembro.
— Ah!
— Vocês três, parem com isso. O que interessa é o Escurinho. O que é
que vamos fazer?
— É mesmo, o quê? Eu não quero ficar sem dar minhas trepadas com
ele não.
— Nem eu, adoro trepar com ele, é tão gostoso.
— Vocês são umas vagabundas.
— Você também, minha filha, do mesmo tanto.
— Será que ele ficará trancado no quarto por muito tempo ainda?
— Eu vou lá chamar.
— Não, não vai não. Manda a velha ir.
— Por que a velha? Ele tem alguma coisa contra a gente?
Ele acordo com o barulho na porta, mas não responde. Fica deitado
— 110 —

onde está e não se importa com o cheiro de vômito ao redor. Está bêbado,
mas está lúcido, sabe o que se passa, em que estado se encontra, como
se sente. Está deitado e está esperando. Também pensando. Agora sabe
fazer isso, pensar. E ele está pensando há três dias já. E espera. Volta a
dormi porque ainda não é a hora de se levantar. Sabe muito bem quando
deverá se levantar, como sabe que elas vão chamá-lo outras vezes, que ele
vai dormir outras vezes e acordar de novo com novos chamados. Sabe que
dispõe de muito tempo ainda, muito tempo antes que a música pare, o
movimento diminua, os fregueses vão-se embora. Ele sabe que pode pla-
nejar devagar, pensar bem e esperar. E ele pensa e espera, espera e pensa
por muito tempo.
O barulho acaba e ele ainda está acordado. Não há mais nenhum som
de carro ou de copos sendo quebrados. A madrugada em silêncio, ele se
levanta devagar, veste sua calça, sua camisa, calça seu sapato. Não precisa
de luz para localizar seus objetos no quarto. Sabe onde estão todas as coi-
sas. Apenas estende as mãos para dentro do caixote no canto à esquerda
da cama, depois da prateleira, e apanha a corda. Não é grande, mas sabe
que será o suficiente, como sabe para onde tem de ir, aquela casinha sepa-
rada, no fundo do quintal. É uma velha privada que ninguém mais usa. Só
a velha vai lá, só ela não usa qualquer dos cinco banheiros da casa. Sabe
também que ela é quem vai encontrá-lo lá.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Por isso, não tem pressa em sair do quarto. Quando abre a porta, em-
purra-a devagar, sai vagarosamente e abre a porta da cozinha sem fazer
nenhum ruído. Levanta o rosto para o alto, quando deixa a cozinha, fecha
os olhos e respira fundo. Depois, anda sem pressa para a casinha. Só che-
gando lá é que se dá conta de ser grande para a altura da casa. Tem de se
curvar para atravessar a porta aberta. Vê que pode ficar de pé, mas que
não pode ficar dependurado. À medida que amarra a corda, por uma das
pontas, num dos caibros do telhado, vai pensando em como deverá fa-
zer para terminar tudo. Decide passar a corda no pescoço, depois de dar-
lhe um outro nó na ponta solta, e forçar seu corpo para baixo. Faz isso e
nota que não adianta, que continua respirando, embora com dificuldade.
Então decide levantar o pé esquerdo e segurar-se pelo tornozelo. Expe-
rimenta, segura-se, levanta o outro pé do chão, vê que pode dar certo.
Ainda continua com a mão no tornozelo, respira fundo e, com impulso,
também levanta o outro pé por trás e agarra o tornozelo com a mão livre.
Segura-se firme, seu corpo se joga para frente para trás, mas vê que dá
certo, que a cabeça começa a ficar quente. Solta a respiração aos poucos
e sente o pescoço ficar dolorido, assim repuxado, mas segura as mãos fir-

— 111 —
mes ainda em volta dos tornozelos. O corpo vai e vem, a velocidade fica
cada vez menor. Ele tenta respirar e não pode. Aperta ainda mais as mãos.
Fica pensando naquele homem mendigo, moreno alto. “É por isso que um
homem morre” ainda se lembra. Seu corpo demora a ficar parado. A velha
só o encontra às onze da manhã, quando tem vontade de usar a casinha
pela primeira vez no dia.
Erotismo e alta literatura em “Escurinho”
Ademir Luiz

No primeiro volume de O espaço da crítica, Moema de Castro e Silva Olival intitu-


lou seu artigo dedicado ao escritor Heleno Godoy, no qual analisa o volume de poe-
mas Trímeros, como “Estrela da Renovação”. Refere-se ao fato de que sendo “profes-
sor, poeta, romancista, crítico, um dos mais atuantes e expressivos representantes
do GEN, Heleno Godoy é expressão da marca da modernidade”. Estrela da geração
que renovou a literatura feita em Goiás. Em três frentes: criando, estudando e ensi-
nando literatura.
Nascido em Goiatuba (GO), em 1946, sendo pioneiro do movimento Práxis
goiano, foi artista plástico premiado antes de dedicar-se às Letras. Graduou-se
pela então Universidade Católica de Goiás, tornou-se Master of Arts in Modern
Letters pela Universidade de Tulsa, Oklahoma (EUA) e doutor em Estudos Lin-
— 112 —

guísticos e Literários em Inglês pela USP. Professor da Universidade Federal de


Goiás e da PUC/GO, instituição que concedeu-lhe o título de Doutor Notório
Saber. Pesquisa atualmente literaturas africanas de Língua Inglesa, com especial
enfoque na poesia do Zimbábue.
Heleno Godoy conseguiu o feito notável de produzir em alto nível em todos os
gêneros literários nos quais se aventurou. Escreveu, no mínimo, uma obra-prima em
cada um deles. Para citar alguns, Fábula fingida (1985) em poesia, As lesmas (2002)
no romance e Relações (1981) na arte da narrativa curta. Nessa trajetória, chama
atenção sua capacidade de transmutar seu estilo de escrita, sem perda de essência au-
toral. É capaz de dialogar com os mais diversos estratos de leitores. Como professor
de grandes recursos didáticos que é, sabe que a sedução estética é um dos melhores
caminhos para o aprendizado. Aplicou esse princípio em sua literatura.
Se a prosa poética das narrativas de Relações é complexa e sutil, exigindo aten-
ção e maturidade, a leveza e um fino senso de espetáculo dominam os contos de O
amante de Londres (1996) e A feia da tarde (1999), cujo título é por si só uma anedo-
ta cinéfila. Nessas coletâneas encontramos enredos acessíveis e divertidos, mas que
nada têm de superficiais. Mantêm nas entrelinhas a profundidade psicológica dos
personagens, o experimentalismo linguístico e a erudição que caracterizam a obra
do autor. Notadamente, longe de estarem escondidas, essas entrelinhas são portas
deixadas entreabertas. Representam um explícito convite para que o leitor menos
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

maduro suba de nível. Por exemplo: o enredo do polêmico e hilário conto Vícios e
Virtudes, de A feia da tarde, é tecido por centenas de referências a filmes e artistas de
cinema. Assim que perceber as referências mais populares, como ao capitão Kirk ou
ao assassino onírico Freddy Krueger, automaticamente, de modo irresistível, o leitor
vê-se instigado a procurar outras, como se estivesse em um jogo. Notará que expres-
sões como “O enigma de Andrômeda” e “No tempo das diligências” não aparecem
por acaso. Dessa forma, o neófito pode ampliar seus horizontes de leitor sem sequer
dar-se conta do salto. Talvez até ser acometido pela “doença da cultura”, como falava
Jorge Luis Borges.
O conto “Escurinho”, publicado originalmente em O amante de Londres, é
outro excelente exemplo. Seu teor erótico, estrategicamente, é um forte cha-
mariz. O início simples e direto, algo frio e quase jornalístico, acende ainda
mais o interesse: “Pode-se muito bem começar com informações preliminares
e convencionais, embora necessárias, sobre seu passado e seu presente: o pai
é alto, moreno e mendigo. Moram os dois num barraco pequeno, no fundo da
casa de um velho e de sua filha solteira. A mãe, de quem não se lembra, era
preta. Ele também é escuro, mais que o pai. Não tão alto, mas forte de braços

— 113 —
e de mãos grandes”. A apresentação do personagem título segue nesse tom de
distanciamento emotivo. Nem mesmo o verdadeiro nome do apelidado Escuri-
nho é revelado. Somos convidados a olhá-lo de cima, sem ranço de melodrama.
Conhecemos seu cotidiano de trabalho, solidão e bebedeiras, higienicamente
afastados. Emocionalmente blindados pelo autor, percebemos que Escurinho
não vive, apenas existe. E não lamenta. Essa existência limitada pela pobreza
e ignorância é tudo o que conhece. Espécie de Bom Selvagem roussoneano,
sequer saberia almejar algo diferente.
A epígrafe citando um trecho de A Morte de Virgílio, de Hermann Broch, trata
exatamente da inevitável destruição dessa inocência pela chegado do conhecimento.
A relação com o mito de Adão e Eva e a descoberta da árvore do bem e do mal, que
levou à expulsão do casal primevo do paraíso, é imediata. Até porque esse trecho do
Gênesis é, inegavelmente, uma história sobre sexo.
No início da narrativa, Escurinho não é um homem completo, é um pênis. É jus-
tamente seu órgão sexual que se torna a mola mestra da narrativa. Imensamente
dotado, Escurinho é adotado por um grupo de prostitutas de um bordel onde tra-
balhava como servente de pedreiro. Sua iniciação sexual, seus dias de descobertas,
sua transformação em escravo erótico e, finalmente, exibição como anomalia para os
clientes, desenha o arco dramático do personagem, que termina tragicamente. Eros
e Thanatos, mais uma vez, juntos.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O erotismo possui uma milenar tradição nas artes. Já estava discretamente


presente no mais antigo texto literário conhecido: A epopeia de Gilgamesh. Sur-
ge com esplendor no Cântico dos Cânticos. Modernamente, escritores de talento
abraçaram sem pudores o estilo, como George Bataille, Anaïs Nin e Henry Miller.
Ao mesmo tempo, gênios como James Joyce e Marcel Proust foram acusados de
pornográficos. A ensaísta norte-americana Camille Paglia, no livro Personas Se-
xuais, defende que não é possível estabelecer fronteiras claras entre a grande arte
e a pornografia. Para ela, o igualmente famoso e infame Marquês de Sade é um
exemplo clássico dessa dicotomia. “Escurinho”, embora pudico em comparação
com alguns dos citados, pode ser incluído nessa tradição: trata-se de um conto
erótico que é também alta literatura.
Pornografia é a exibição mecânica do ato sexual, sem objetivos estéticos ou
filosóficos. Nas narrativas eróticas sofisticadas o coito em si não é a preocupação
principal do escritor. O sexo é uma chave para acessar o íntimo dos personagens
e produzir situações que os revelem. Na segunda metade da narrativa, Escurinho
deixa de ser um pênis e passa a ser um homem. Seu falo gigantesco torna-o her-
deiro patropi do rol de personagens trágicos do romantismo, como Quasimodo,
— 114 —

de O Corcunda de Notre Dame, e a Fera, de A Bela e a Fera. Figuras, cada qual a seu
modo, fisicamente deformadas, mas espiritualmente nobres ou inocentes. Neles
o interior “puro” sempre prevalece sobre o exterior disforme. Quando o pai de
Escurinho lhe diz “eu sou mendigo, preto e pobre, sem eira nem beira, mas tenho
vergonha na cara. Não é pra isso que um homem de verdade vive, só morre”, ele
entra numa crise moral e isola-se do mundo, recusando-se a cumprir seu papel
de garanhão. O bordel entra em polvorosa. As prostitutas brigam entre si, tro-
cando acusações. Porém, no auge da confusão, uma delas diz: “Vocês três, parem
com isso. O que interessa é o Escurinho. O que é que vamos fazer?”. A preocupa-
ção parece genuína, embora motivada e fortalecida por interesses lúbricos.
Leitores mais cínicos podem questionar a verossimilhança do desfecho do
conto. Uma crise moral seria suficiente para fazer com que um homem que sem-
pre viveu em ambientes amorais se matasse? Por que ele não aproveita a vida em
seu harém? Por que não começa uma carreira de ator pornô ou michê? Por que
não capitaliza seu dom? Por que simplesmente não foi embora do bordel?
Heleno Godoy não é um autor de soluções fáceis. Complexificando sua condi-
ção de Bom Selvagem, Escurinho também se revela uma versão sem Shakespeare
d’O Selvagem de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Não foram as situa-
ções imediatas que os conduziu ao suicídio por enforcamento. Foi o contexto, a
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

impossibilidade, somada a falta de vontade, de se integrarem ao (sub) mundo


pouco admirável nos quais estavam exilados. O suicídio, como acreditavam os
romanos antes da dominação cristã, nem sempre é um ato de covardia ou deses-
pero. Pode ser prova de definitiva coragem. Coisa para “homem de verdade”.

Referências:
GODOY, Heleno. Relações — narrativas. Goiânia: Cerne, 1981.
GODOY, Heleno. A feia da tarde. Goiânia: Editora da UCG, 1999.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Abril, 1974.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica — panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998.
PAGLIA, Camille. Personas sexuais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

— 115 —
J. C. Guimarães

Civilização

Centro de Goiânia. Estou chegando ao trabalho e me ocorre um incidente


de consequências funestas, ainda na rua. São 8h da manhã. Contra o reló-
gio, minha cabeça está a mil. Sinto os primeiros sintomas da enxaqueca.
Avanço com os nervos à flor da pele na procissão automobilística do ho-
rário de pique. Ainda de posse do meu juízo, quem sabe eu devesse come-
çar reclamando das autoridades municipais, porque já não se consegue um
lugar onde deixar o carro. (Nem me dou conta de que falta espaço é para
mim, a pessoa de carne e osso.) Quando Goiânia foi planejada ninguém

— 117 —
imaginou que teria o tamanho de metrópole que tem agora, com suas ma-
zelas de adulto. A miniatura de Versalhes acabou atropelada pelos carros
de passeio e suas manadas multicoloridas, prestes a devorar o primeiro
pedestre distraído. Seria pedir muito que o interventor do estado previsse
nos anos 30 que a nova capital assumiria na idade madura o aspecto de
sanatório que tem agora, em dois mil. Ele estava internado numa terra de
índio há mil quilômetros do litoral, onde o Brasil se concentrava, ainda,
com reprimidas saudades de uma Metrópole projetada na alma. Ninguém
sabe para onde vai, nem o Ludovico sabia. E eu não sei aonde vou parar na
via estreita de mão única em que me encontro agora, nem a quem pedir
ajuda. Chefes, com estacionamentos exclusivos no subterrâneo, não que-
rem saber das dificuldades dos seus empregados. Tampouco vou reclamar
ao síndico, que nunca responde lá do alto. Alto demais, para me ouvir.
Contorno o anel externo da Praça Cívica e desço a rua dezesseis. Dou
uma volta no quarteirão para resolver o seu problema “pós-moderno” [é
por que é chique falar assim?] e nada. E nada de vaga nem de busu que
presta, lembrou por associação involuntária o ex-usuário do transporte
coletivo, queimando seu estoque de stream of consciousness. Cada um tem
o seu, e não acha que a técnica modernista que os literatos descobriram há
tanto tempo e ainda na moda é um monopólio, porque não a inventaram;
não fica nunca datada e ele pode viajar na maionese de carona com os
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ídolos de Paris e Dublin, que tiveram ousadia o bastante para transladar


a mina sempiterna para os seus cadernos de notas. Mas a verdade é que
meu estilo é não ter estilo nenhum: não tenho mais modelos a quem se-
guir. Sou eclético como os quadros de Luiz Zerbini e hora dessas escreverei
contos de um realismo brutal, sem ligar qualquer coerência preestabele-
cida comigo mesmo: serei apenas um reflexo do meu estado de espírito,
variegado como as luzes sobre a Catedral de Rouen. Posso ser borgiano se
me der na teia, porque já começo a duvidar da tangibilidade deste mundo
de virtualidades bem concretas, em que Matrix de pouquinho em pou-
quinho insinua-se em nossa realidade minimamente palpável, prestes a
evolar-se. Não receio tampouco encarnar os doidos de Yoknapatawpha,
borboleteando sem nexos claros de um detrito a outro, como agora. Eu,
útil na maior parte dia, procuro apenas um estacionamento onde deixar
o carro no centro dessa cidade maluca com espírito de fazenda, e no in-
tervalo de alguns metros circulando a esmo, ensaiei essa enciclopédia de
inutilidades, que me preenche muito mais do que as metas da S.A. Poderia
publicar quantos La recherche du temps perdu, hem? Tais questões agora
parecem antigas, de um tempo em que o antiquário Romain Rolland podia
— 118 —

escrever impunemente seus livros infinitos. Ufa!, pista desinterditada!...


Mas eu, quebra-galho, não tenho mais tempo para bolar projetos de er-
mitão. Apenas procuro, na medida do possível, resignar-me à platitude e
não consumirei com meu talento altamente discutível mais de duas pá-
ginas com essa lengalenga que estimula o bocejo dos meus amigos mais
dedicados. Todos eles morrem de preguiça de ler e o aspirante a escritor
está condenado a não ter mais nem leitores nem sucesso. Precisa urgente-
mente esquecer a imortalidade e ganhar o pão nosso de cada dia, assumin-
do sem revoltas consequentes sua condição de tubo digestivo. Precisa se
acostumar às pílulas para sobreviver; aprender a escrever textos tão pro-
lixos quanto as matérias da revista semanal, cujo ideal é ser uma imagem
sem arestas, um artifício de photoshop, e não palavras palavras palavras
palavras palavras. Deve contentar-se com lições comprimidas em hai-kais
sem densidade e abismo, motivado pela urgência que a última descoberta
tecnológica requer, com suas promessas de redenção que nunca, nunca
se cumprem. Mas confessa que não está bem adaptado ao ritmo dos bits;
tenho imensas dificuldades de entrarnoliquidificadoreesmiuçar-mecomo-
pedradegelonavitaminaeperder-se. Ainda quer reconhecer-me no espelho
e se debate por uma nesga de personalidade, em meio a leitores de auto-
ajuda que nunca entenderão suas pretensões literárias de uma incomuni-
cabilidade por vezes intragável, como esta. Até parece que quero tornar as
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

coisas difíceis, para mim. Adequado seria que me dedicasse a escrever con-
tos de 140 caracteres, com um vocabulário primário e palavras decepadas
ao meio. Tudo muito rápido, literatura fast food para não cansar os miolos
vazios de uma geração de navegantes que não desce às águas profundas,
à caça de Moby Dick. Cadê, cadê?... Seria coerente com minha vida de exi-
gências práticas e de receitas prontas de sucesso, descendo em velocidade
no torvelinho das horas, cada vez mais comprimidas para que eu me faça
um ser humano de verdade (puta que pariu! não sei se freio ou se acelero!).
Não se pode mais ganhar tempo com reflexões antissociais de uma chatice
tremenda, que perturbam esse big brother onde os pretos continuam sen-
do logo gongados, depois de uma exposição protocolar para fazer média
com minorias decadentes. Ali, talvez? É tarde!... Tudo é pressa e eu tenho
na carne a pressa instintiva dos meus semelhantes, mas ainda quero saber
por que, inspirado nas lições de um bacurau. Fui educado entre pessoas re-
beldes que questionavam tudo, como aqueles tipos ideais que conheciam
o abecedário do camarada Bertolt Brecht e insistiam: “Você tem que assu-
mir o comando!” Ainda posso exumar os restos mortais do marxismo e ter
um restolho de fé? Talvez sim, sem muita convicção mas com os nervos

— 119 —
contaminados pelo sonho entubado de uma profilaxia universal que mais
parece o sintoma de uma grave alucinação. Vamos ver se até lá, é claro, os
robôs não desbancam o pueril e ignorante sujeito da história, para a rea-
bilitação do ludismo e de Arnold Schwarzenegger... Uma vaga, finalmente!
O nefelibata cede ao prático, ao quase autômato que presta atenção
ao trânsito e às chamadas do celular, com suas cansativas exortações à
produtividade. O radialista informa os números positivos da economia
no segundo trimestre, no Brasil. A federação dos bancos está rindo à toa,
deste o início deste governo, hô, hô, hô, hô. Sou obrigado a dar outra volta,
a literalmente rodar em círculos para competir o meu espaço, outra vez em
débito. Já me infernizam as cobranças que querem tudo para ontem, só
não me liga a CAIXA para dizer que se eu ganhei o último prêmio da Mega
Sena, e quem sabe a liberdade de um canário. Será mesmo? Acredito mes-
mo nisso? Tem horas que eu acredito em qualquer fantasia que me compre
uma ilha no calmo Pacífico das tripas, bem longe do tumulto adstringente
da fúria mundana.
Gradativamente elíptico, mãos sobre o teclado, tento reconstituir o
episódio, mas tenho enorme dificuldade em me concentrar nos detalhes.
Saem truncados. O letreiro no portão adverte: “sujeito a guincho”. Mes-
mo assim eu paro em frente, resolvido a descer e reclamar o meu direito
ao menos presumido, porque não é possível! Caminho sobre a mangueira
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que se estende pela calçada até me aproximar do estranho; ele entende o


motivo e se levanta. Vira-se e me olha com cara de poucos amigos; é parru-
do e deve acreditar nos seus músculos. Eu, como se ainda acreditasse nos
idílios de Rousseau, pergunto se posso estacionar “alí”, indicando-lhe os
cones. “Pode se o dotô tirá eles e depois colocá eles de volta.”, ele fala. De
terno e corola, o “dotô” desconfia de sua hostilidade, de suas condições.
E se eu der as costas e ele riscar a pintura? Não vai pensar nunca o que
realmente estou pensando: que se apropriou da rua e que isto está errado.
Ao ouvir a negativa ele dá um passo adiante e me ameaça. Grita, fala
palavrões. Os carros continuam passando, herméticos, levando homens
enlatados. O celular toca para lembrar o paliativo da gastrite. O sangue
sobe à cabeça, meus pelos eriçam e eu, o mais insuspeito dos homens, o
mais pacato e gentil – os amigos não acreditariam: ele realmente fez isso?
-, saco a pistola e raspo fogo em Ruberval dos Santos, 32, como nos filmes
de far west. O flanelinha cai sobre a calçada, agonizante, e morre. Sinto o
inchaço dos meus testículos, The good, the bad and the ugly. Amanhã cedo
minha cara irá aparecer estampada nos jornais e minha fama vai correr a
cidade. Ah, se eu fosse ignorante!...
— 120 —
Cultura e barbarismo em “Civilização”
Ademir Luiz

José Carlos Guimarães é um dos mais atuantes intelectuais públicos de Goiás.


Escreve com maestria sobre Política, Literatura e Artes Plásticas. Sua produção
literária é pequena, mas cuidadosa. Reescreve muito mais do que escreve. Um
vício bastante positivo, considerando a multidão de praticantes da “escrita auto-
mática” que povoa o cenário literário contemporâneo. O autor leva muito a sério
o ensinamento de João Cabral de Melo Neto de que: “Catar feijão se limita com
escrever:/joga-se os grãos na água do alguidar/e as palavras na folha de papel;/e
depois, joga-se fora o que boiar”. Assim como o mestre pernambucano, J. C. Gui-
marães mais corta do que adiciona palavras.
O resultado é que, apesar de muito trabalhado, o estilo de J. C. Guimarães é
econômico e coloquial, a despeito das inúmeras inserções de citações eruditas

— 121 —
ou pop. Não se furta de usar gírias, frases feitas ou palavras de baixo calão. Em
“Civilização”, por exemplo, há expressões como “nada de busu que presta”, “len-
galenga”, “Pode se o dotô tirá” etc. Mas nada é gratuito. Essas banalidades foram
meticulosamente inseridas para sublinhar a condição na qual (sobre) vive o pro-
tagonista: um “civilizado” habitando entre “bárbaros”.
O enredo em si é muito simples: numa segunda-feira de manhã um homem
tenta estacionar sem sucesso no centro da cidade. No auge da irritação mati-
nal, encontra uma vaga ocupada por cones e baldes de um lavador de carros,
que a reserva para seus clientes. Os dois discutem e o motorista mata a tiros o
lavador. Fim.
Essa situação ao mesmo tempo cotidiana, uma vez que é comum encontrar
episódios parecidos nos jornais, e bizarra, considerando que não se pode justificá
-la racionalmente, serve como ponto de partida para discutir nossos parâmetros
civilizacionais. Somos mesmos civilizados? A cultura reprime a violência? O con-
to de J. C. Guimarães dá cores locais para o debate infindável, desenvolvido por
autores como Heinrich Böll e Günter Grass, que procura refletir sobre como foi
possível que na terra de Goethe e Bach florescesse o nazismo.
O cenário é a cidade de Goiânia, que já foi definida inúmeras vezes como “fa-
zenda asfaltada”. Construída na década de 1930 para ser um símbolo da moder-
nidade, Goiânia segue fortemente influenciada pela tradição rural, hegemônica
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

no estado de Goiás. Não por acaso, ao sacar a pistola o atirador relembra os “fil-
mes de far west. Sinto os meus testículos crisparem, The good, the bad and the
ugly”. Essa frase é a chave interpretativa do texto. Ao matar um “troglodita” ao
mesmo tempo em que cita mentalmente Sérgio Leone, o protagonista estabelece
sua superioridade e, por conseguinte, seu direito de apertar o gatilho. Orgulha-
se de que “amanhã minha cara irá aparecer estampada nos jornais e minha fama
vai correr a cidade.”
Sua foto nos jornais, emulando os cartazes de “procura-se” do Velho Oeste, é
um troféu, não motivo de vexame. Os conhecidos dirão “nunca imaginei que um
rapaz tão bom andava armado” ou “com certeza foi atacado, a arma era só para
defesa”. O motorista atirador admira os fora da lei Jesse James e Billy The Kid,
mas não abdica da respeitabilidade ostentada pelo xerife Wyatt Earp. Asseme-
lha-se a Doc Holliday, que jamais deixou de se apresentar como dentista, embora
tenha feito fama como pistoleiro e jogador de pôquer. Mesmo em zonas de fron-
teira o status social é tudo.
Convêm esclarecer que não matou por sentir-se socialmente superior a ví-
tima. O motorista era um “ex-usuário do transporte coletivo”. Possivelmente
— 122 —

ex-estudante de alguma das Ciências Humanas, simpático em teoria às lutas


populares, uma vez que reconhece que o lavador de carros bem poderia querer
“dar umas pancadas logo cedo num desgraçado que chega humilhando, só porque
anda de carro”. Em outras circunstâncias, talvez até participasse de uma passeata
estudantil em prol dos direitos dos lavadores de carros. O que os separavam não
era o dinheiro, era a cultura.
Matou não por ser ignorante, mas por acreditar que tendo transcendido
essa condição tornou-se uma espécie de Super-Homem Nietzschiano. Uma
criatura além do bem e do mal. O mesmo que pensou os jovens assassinos da
peça teatral “A Corda”, de Patrick Hamilton, que inspirou o filme Festim Diabó-
lico, dirigido por Alfred Hitchcock. Enquanto procura a vaga para estacionar, o
protagonista pensa em Romain Rolland e em Bertolt Brecht, cita no original La
recherche du temps perdu, indicando que talvez tenha lido a série de romances
de Proust em francês.
Ele sabe que as ruas em asterisco do centro de Goiânia são “a Versalhes em
miniatura” de Atílio Correia Lima, tendo sido projetada para cinquenta mil pes-
soas, hoje encontra-se abarrotada por mais de um milhão de almas; a maioria
indesejável e dispensável. A profundidade da denúncia J. C. Guimarães está jus-
tamente na percepção que, apesar da postura elitista, ele, sendo um homem de
pensamento, atirou sem pensar, num ato reflexo típico de quem anda armado
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

motivado charme antiquado da coisa. Não se considera um fascista, sequer co-


gita a possibilidade. Condena T.S. Eliot por ter apoiado Franco na Guerra Civil
Espanhola, rechaça a admiração de Ezra Pound por Mussolini e acha monstruoso
Céline reclamar que o Füher era muito delicado com os judeus. Sua causa é uma
questão de conforto. Quer apenas mais espaço. Andar nas ruas de sua Versalhes
sem trombar com quem nunca leu um livro. Não reflete sobre as implicações éti-
cas mais profundas da questão.
No que se assemelha ao delinquente juvenil Alex, o Largo, do romance A La-
ranja mecânica, de Anthony Burgess, que escutava música erudita antes de sair
para roubar, espancar, estuprar e destruir. A alta cultura não apenas não restrin-
ge seus instintos violentos como cumpre o papel de catalisador. No ensaio “Por
que é que os revolucionários foram reacionários”, Burgess relembra que “certa
vez, George Steiner expressou seu assombro porque um comandante de um cam-
po de concentração podia passar o dia todo enviando judeus ao incinerador, e de-
pois ir à sua casa as lágrimas de pura alegria com o Beethoven que sua filha mais
velha tocava ao piano”. Como respeitar quem não escuta Beethoven? Isso chega
a ser um dilema? Seu grau de civilidade pode ser medido pela resposta.

— 123 —
Referências:
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BURGUESS, Anthony. A laranja mecânica. São Paulo: Aleph, 2009.
MELO NETO, João Cabral de. Educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Miguel Jorge

Que mais digo ao senhor?

Sabe o senhor, desde que cheguei a esta prisão, minha vida mudou. Já
tinha mudado, mas na alma. Agora mudou no corpo. O senhor sabe, não
deixei de ser homem, não, senhor. É que aqui as coisas se aprendem e se
ensinam, e os mais espertos se arranjam. O sol não dá para todos. A lua, a
gente nem vê mais. Só imagina. É preciso olhar a solidão de frente, porque
senão ela entra goela abaixo, come o espírito da gente e Deus não acode.
Dia desses, no pátio, pude reparar na brancura e no pretume daqueles
corpos. A mesma coisa que não estivesse vendo nada. Um bando de bichos

— 125 —
espichados ao sol, em volta do muro. Outros encolhidos nas pilhas de tijo-
los. Os mais perigosos se escondiam entre as árvores. Minha vida, o se-
nhor sabe, sem sal nenhum. Sou sozinho, ninguém para conversar, expio
minha própria culpa, fico somando a de todos aqueles homens brutos pela
convivência. Histórias caminham depressa, tanto quanto ratos e baratas.
O senhor sabe, estou catando coisas aqui, coisas ali, para tentar lhe dizer
o que o meu peito esconde. Paciência, vou chegar lá. Sabe, os presos mais
antigos, os que trucam e retrucam entre si, me davam avisos de que, cedo
ou tarde, iria me engraçar com algum condenado, assassino ou ladrão. É a
lei da cela. Por vezes me apontavam um tipo. Praga. Praguejavam contra
minha recusa. Temia que isso fosse acontecer. Pois foi então, no pátio,
num dia de tomar sol, que eu botei os olhos no 704. Não que ele tivesse
jeito, isso não. A imagem dele era de gente que constrói. Pele bonita, no-
velada ao redor dos lábios, rijo de fala, de gestos, músculos. Nos olhamos
poucas vezes, e palavras, se trocamos, foram duas ou três, nem mais. Mas
a amizade veio chegando entre os poucos momentos de folga e continuava
depois que a gente se apartava. No começo, a coisa era pouca, cheia de
importunações no virar das horas. Depois é que veio a angústia do bem-
querer, que era só meu. Um coração discordando do outro, uma voz não
batendo com a outra. Nem sei se o senhor compreende, ou se já me culpa
por mais isso. O senhor já me vê de modo diferente, sem muitas afeições.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Vejo isso nos seus olhos. Posso até estar enganado. O senhor é que vai me
provar. Vou lhe contar que sou homem de muitas mulheres. Fodi todas
que queriam e me desejavam, sem vacilação. Por todas as partes. Até no
meio do pasto, que hora certa não tinha. As vacas berrando desconfiadas.
Cheiro de estrume, moscas por perto. Formiga botando ácido no rabo da
gente. Fui também com uma índia, na ponta do canavial. O vento sopran-
do sacudido, as cobras se mexendo pelos cantos, e ela me dizendo para não
ter medo, que era mulher dada a rezas, a feitiços e benzições. E me chama-
va de rambu-nirricam, dioraça, dionandu matan. Uarron-ron lubu. Gosta-
va de estar assim no fuc-fuc de muitas horas, com presença de corpo, no
arremate de surpresas, ainda mais se fosse mulher casada. Os chifrudos
mandando a capangada no meu rastro, que nem fosse boi fugido da inver-
nada. Veja, senhor, estou lhe mostrando o meu retrato por inteiro, e não é
3x4, é a alma, o corpo e os desejos de um homem, um homem mesmo,
valente, com três mortes nas costas, que nunca poderia pensar numa coisa
dessas. Por dentro, eu até lutei. Tinha medo que os outros pensassem er-
rado de mim. Que descobrissem o que se passava comigo. Eu seria obriga-
do a matar mais um ou dois. Viajava muito por essas ideias. Mas por mais
— 126 —

que fosse durão, meu peito apertava, tinha fogo por dentro, ficava que
nem fera enjaulada. E não é pra dizer que ele é bonito. Não, senhor, não é.
Um condenado como eu, nem sei ao certo que crime cometeu. Às vezes,
quando tiro um cochilo, sonho que estou no campo preparando o chão pra
o plantio, meu coração se alegra, pois minha mulher vem chegando, dando
a impressão de menina nova. Depois eu acordo e no meio da noite só vejo
fumaça, neblina e escuridão. Fico louco de tristeza. Vou continuar com a
minha história, não se preocupe. Havia um sofrimento, uma parecença
com Cristo ou São José, no rosto, na barba e nos olhos dele. Tinha tam-
bém aquele ar perdido, distante. Bateram muito nele, eu sei. Por uma se-
mana, passou a pão e água, o senhor sabe. De nada reclamou. Aquele que
mais parecia um santo estava sendo o demônio da minha vida. Duro mes-
mo de amaciar. Homem que não se pode segurar pelo braço. Daqueles que
não se afrouxavam por nada, que se preocupa só com sua vida. Eu não ti-
rava ele da cabeça. Chegava, escutava, indagava dos fatos. Muitos malda-
vam das minhas interrogações. Outros, por não me quererem bem mes-
mo, zombavam de mim, de jeito debochado. Eu aguentava, não abria a
boca. O que haveria de fazer? Cheios de afeto eram os meus sentimentos,
que me bastavam. Queria ele junto de mim, na mesa, no pátio, em todos
os lugares. Mas nada dizia para que as zombarias não aumentassem. Para
que não atirassem pedras pesadas na minha cara. Tinha receio de que ele
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

se afastasse sem dizer palavra. Guardei essa emoção de bem-querer por


muito tempo. Por que isso estava acontecendo comigo? Não vou ser eu
quem vai responder. O senhor sabe, aqui todo mundo tem um bem ou um
mal querer. Morte e amor andam de calcanhar junto, e um pode tropeçar
no outro. Melhor ter um bem-querer, que faz bem para a alma carente de
aquecimento. Fosse um dia me lavar com ele naquele rio, depois que todos
os outros tivessem se afastado, nem sei para que lado olharia, se para ele,
se para o coração disparado. Era como se apanhasse de relho no escuro,
sem saber que parte do corpo doía mais. Não, eu não estou tomando seu
tempo com bobagens. Estou mais é deixando escapar as coisas guardadas
no peito, se o senhor tiver um pouco mais de cuidado para me ouvir, se
não rir dos meus apegos, se não espalhar boatos por aí. Faça de conta que
é conversa de confissão, tudo muito sagrado. Aqui nós precisamos de ter
uma felicidade, por mais pequena, senão a noite não passa e as sombras
nos arrastam para o lado do demônio. Os pensamentos se soltam perigo-
sos. Sinto vergonha de estar me expondo assim, diante do senhor, que
parece arregalar os olhos, para ver mais claro. O que fazer? Só ao senhor
posso confiar o meu segredo. Já passei madrugadas acordado, de perder

— 127 —
conta. Tenho duas prisões, uma para o corpo e outra para a alma. Sabe,
dei-lhe até alguns presentes, só por dar, para agrado dele: cigarros, pente,
canivete, um anel que eu mesmo fiz dum caroço de jatobá, uma carteira de
couro, que era pra ele guardar documentos, lembranças boas de mim. Sou
homem, o senhor sabe, forte e decidido. Desaforo e maus tratos não aceito
e nem levo para casa. Já deixei alguns na saudade por causa desse meu
jeito. E nunca me aconteceu na vida uma viagem dessas. Tantas vias retas
para se amar e eu fui logo entrando numa curva perigosa dessas. É como
estar solto no mundo e todos os demais contra. A gente tem que virar he-
rói, comer do amargoso. Eu sempre soube dar meia-volta na vida e me
safar de tudo, com sabedoria. Mas agora não. Agora o mundo ficou dife-
rente, se perdeu ou se alargou um pouco. Tem certas coisas que a gente
não consegue esconder, por mais que faça força. No ímpeto desse momen-
to, eu queria era estar com ele naquela solitária. Ele não fala nada, eu sei.
Não reclama, por isso sofre mais. Vai sair de lá mais santo do que quando
entrou. Não sei por que o atazanam tanto. Ele cada vez mais se fecha nos
pensamentos lá dele. Aqui, eu sei, nós sabemos, reinam os crimes de cri-
minosos dos mais pesados. A sem-vergonhice, a malandragem, a droga, a
fornicação sincera, ou aquela que é só para curtir com os desejos. Conve-
niente é não se saber de nada. Mas, esses aí que falam com voz fina, cheios
de denguices, eu nem olho, que não são do meu agrado. Homem tem que
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ser homem, sem afetações de fêmea. Mas o que o senhor está atento para
saber é de mim. Conferindo tento por tento, as minhas palavras. Não pre-
cisa dizer nada, que eu sei. Dá para perceber, mesmo que, no princípio, o
senhor se mostrasse desinteressado. Agora não. O senhor me olha de
modo diferente. Santo eu não sou. Nem árvore, nem pedra, nem edifício.
Assentam-me bem os desejos da carne. Ficar parado, só vigiando, cria
lodo, e o lodo cria bichos nos miolos. Se não se fica atento, pode até endoi-
decer de vez. Se estou falando devagar, é de propósito, porque essas coisas
exigem cuidado, e não se fala tudo de uma só vez. Daqui a pouco ficará
pensando que não estou bom do juízo. Pode até achar que é por causa de
bebida. Já faz um tempo que não coloco álcool na boca e nem provo de
mulher rapariga. Então, é por causa dessas mazelas da alma e do espírito,
que andam soltas dentro de mim, cavalgando que nem cavalo bravo, vai
ver, acenderam o fogo da carne. Sabe, acho que penso nele porque penso.
Sem culpa, sem pecado nenhum, desses que a igreja bota na cabeça da
gente. Não tem outro jeito e não adianta remar contra. Sem-vergonhice de
homem barbado, até podem pensar e dizer, eu vou me calar. Na verdade é
muito mais do que isso. É uma coisa que estala aqui dentro da gente e a
— 128 —

gente escuta. Não tem macieza de voz, não. É tudo muito forte, muito
bruto. Não sei onde vou buscar palavras para falar com ele. Burro não sou.
Sei ler e escrever, direitinho. Talvez por isso ele me escuta. Gosto dele as-
sim como é. Um gostar que vem fino, furtado, do meio para dentro do
peito. Ele soube bem depressa que dei um jeito dele ficar comigo na mes-
ma cela. A gente tem que se virar, dar um jeito em tudo. Até na sorte. O
dinheiro ajuda. Tenho algum comigo. O senhor sabe, a gente só furta do
homem, que de Deus é impossível. E ele eu queria, nem que fosse no fur-
tado. Então, foi que ele me encarou. Encarou o meu desejo enrodilhado.
Notei aquele olhar de desconfiança, ainda fazia mais segredo de suas pala-
vras, pensando talvez que o vigiasse. Que queria saber mais de sua vida.
Pois não queria. Não queria nada. Aceitei aquele desafio como provação.
Foi então que ele ficou me espiando meio sem jeito, sem querer espiar.
Uma outra noite, nem sei bem por quê, resolveu destravar a língua. Falava
demais, como se o não-falar o arrebentasse por dentro. Fiquei sabendo
muito e mais de sua vida. O crime cometido por ele não é igual aos nossos,
gente comum. Então, tudo não tinha resposta e tudo era segredo. Até o sol
queimava diferente a pele de seu corpo. O meu corpo sucumbia, suado, e
já nem podia mais me esconder. A vida tinha um outro lado. Achava de
não sair do lugar, de ficar no meu canto, meio abobalhado, perdido nos
tormentos que ele me passava. Então, ele puxou o retrato de uma mulher
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

e me mostrou. É minha noiva, falou. Minha companheira dos dias e das


noites. Bonita mulher, não tinha como negar. Acho que os seios dela, as
curvas do corpo, da bunda, não saíam de sua memória. Ficou assim, es-
piando o retrato por mais de dez minutos, pedindo para eu olhar e admi-
rar também. Pois olhei e me interessei pela beleza dela. Era como se ele
dissesse: olhe para ela e olhe para você. A diferença era tanta que meu
rosto se cobria de vergonha. A desvantagem estava comigo. Aí eu apanhei
o retrato da minha mulher. Uma morena sacudida, com cheiro de mato,
seios pesados, os cabelos pretos escorridos, os olhos transbordando rios e
matas verdes. Bonita mulher, ele falou. Eu olhava a dele e ele a minha.
Depois ele começou a rir. Riu muito. Eu, por minha vez, ria também, de
acordo com ele, sem procurar o motivo da graça. Rimos até ele ter um
acesso de tosse. Depois limpamos o riso e ele voltou ao que era. A noite
bulia com os nervos da gente, fazia calor. Mais ainda no meu corpo. Eu
olhava para ele com vontade de bater a cabeça e dizer que sim, que não
podia esconder por muito tempo mais o meu bem-querer. Acendi um ci-
garro para ele e outro para mim. Não falamos mais. Só as baforadas fala-
vam. Demos um tempo, um espiando o cigarro do outro se acender e se

— 129 —
apagar. Como dizer para ele? Como não dizer? Fazer um gesto, espichar a
mão para tocá-lo no braço, eu já fizera. Na perna? Não. Os toques de mão,
assim de leve, às vezes, quando se queria mostrar um antigo ferimento,
uma cicatriz. Convinha guardar distância. Pudor. Batia o coração, preso e
descompassado. O senhor sabe o que é coragem? Não estou falando des-
sas de pegar boi pelo rabo, de bater com onça de frente, não, senhor. Falo
de outra, dessa de ser macho, de não desistir de ser e de ser atacado pelo
demônio. Quanto mais eu pensava nisso, mais me causava uma dor na
boca do estômago. Eu já nem queria comer. Emagrecia. Medo? Claro. O
medo dos olhos dele não entenderem o que os meus queriam dizer. O
medo que o coração pudesse sair para fora, despertar, mostrar as suas ra-
zões... O cigarro ajudava. Mal apagava um, acendia outro. Agradecia com
um sorriso. Com uma boa palavra. Os meus dedos tocavam de leve nos
dedos dele. Assim é que se fazia. Não podia mostrar a minha estima de
uma vez só. Sabedoria se aprende com o tempo. A gente passava tudo a
limpo. As histórias, os acontecimentos do dia. Fugir da prisão, eu não fu-
gia. Nem carecia. Só se ele quisesse. Se um morresse, o outro morreria
também. Foi então, no meio de uma dessas conversas, como se quisesse
deixar uma folga na cama, que ele se afastou para um lado. O da parede. O
outro ficou vazio, como se apanhado em surpresa. E era como se dissesse:
Por que não vem? Cabem dois. Vem logo. Tremedeira nas pernas. Bom que
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ele não via. A cama ficou lá, larga de um lado. A chama do cigarro acenden-
do e apagando. As minhas mãos calosas suando barato. E aquilo foi au-
mentando. Dei uns suspiros, assim meio desconsolados. Ele quieto, tes-
tando a minha coragem. Dizia nada, não. Mas a cama falava por nós dois.
O vazio que não se preenchia. Por que a natureza providenciava aquelas
coisas? Botava a gente em provação? Feito um bicho que sai da sua toca
para entrar em outra, saí da minha e escorreguei para a dele. Assim deva-
gar, camaleão mudando de cor, cobra de pele. Ele abaixou os braços e am-
parou a minha cabeça. Afundou os dedos nos meus cabelos. Devia ser
mesmo outro homem que estava ali, daquele jeito, não eu. Mas estava e
continuava. A boca emitia ruídos pequenos, aflitos, de uma aflição de li-
berdade, alívio, quase de reza, perdão. Não me furtei em reconhecer as
espertezas daquele corpo não diferente do meu. O calor já não era tanto e
a noite ganhara encanto.
Depois... Depois, ele tirou um retrato da carteira e me mostrou um
moleque de olhos arregalados, profundos. Tenho o retrato comigo, pen-
sando que a gente poderia ter se encontrado por aqueles lugares, brincando
nos campos, como todos os meninos fazem. O senhor conversa com retra-
— 130 —

to? Pois eu converso. Cuido do meu corpo, mais agora. Limpo a cara com
gilete. Aparo as unhas com tesoura ou canivete. Faço força para agradar.
Pois olha, já falei e vou repetir. O que eu tenho no meio das pernas só foi
regalo de mulheres de boa vida, de má fama. Das vezes que chegava no
bordel de Maria Bentinha, a festa estava armada. Levava duas, até três
para o quarto. E elas se entendiam com o peso do meu corpo, me rendiam
entre as suas pernas. Não tinha escapatória. A noite era do amor. O amor
que a gente faz com braveza de garanhão. Se falo isso, é para o senhor não
pensar que sou um qualquer, desses que se viram por aí. Isso não. Há uma
diferença. Foi uma coisa estranha o que aconteceu. Bateu forte o gostar.
Nunca em minha vida havia pensado em tais coisas. Posso até jurar. E
mangava dos que tinham esses ideais por sina. Mas a coisa aconteceu, sem
que a gente contribuísse. A primeira vez fiquei tão sem jeito que nem sabia
por onde começar. Se abria ou se fechava as mãos. Se tirava ou não tirava
a roupa. Se tapava os olhos para não ver o que queria ver. Depois fui me
acostumando. Aqui a gente se acostuma. Ou se vive ou se fica de barriga
vazia. O meu coração e o dele batiam juntos. Mas agora a gente está apar-
tado. Levaram ele. Castigo de quinze dias. O motivo, não sei. Denúncia,
vingança ou falação de delator. Que inveja e maldade campeiam juntas,
por todos os lados. Perdi o sono e tenho sonhos loucos. Alguém andou
espalhando que não estou bom do juízo. Tenho medo de que me levem
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

para o pavilhão 9. Não peço que o senhor seja um amigo, isso não, que é
pedir o impossível. Amizade não se compra. Peço apenas um favor. Um
favor que vou pagar com dinheiro, cigarro, droga, o que o senhor desejar.
E, se possível, longe da vista dos outros. O bom a gente guarda pra sem-
pre e não deixa mofar. Mas se não tiver jeito, que os olhos daqui enxer-
gam longe, mesmo atrás das grades, espero que pelo menos respeitem os
meus sentimentos, guardando silêncio. Porque nesse corredor tudo acaba
se tornando comum, pelo jeito natural mesmo, pela força das armas ou
pelo peso do dinheiro. Sabe, eu vou lhe deixar. Não se impaciente mais. Eu
queria mesmo é que o senhor levasse esse cordão para ele, naquela cela,
a última do corredor. Basta levar lá, que ele sabe para que é. A essa hora,
tenho certeza, ele está excitado, pensando em mim. O senhor deve acredi-
tar. Meu coração e o dele batendo juntos, a gente se sabe assim. Veja, se-
nhor carcereiro. Essa ponta do cordão, feita em laço, ele vai colocar lá nele.
Essa outra ponta fica comigo, que é para eu fazer os movimentos de puxar
para cima e para baixo, do jeito que só a gente sabe. Meus pensamentos
se cumprindo no corpo dele, num vaivém auxiliado pelo cordão. É o que
de melhor se pode fazer. Fico assim, a boca ressecada, os olhos fechados,

— 131 —
a alma e os sentidos lá com ele. Quando ele gemer de lá, eu gemerei de
cá. Tudo na mesma hora exata. Poderemos até chamar pelo nome um do
outro. Eu vou escorar na parede ou rolar pelo chão, feito bicho. Depois de
um tempo, vem o alívio para cima de nós e poderemos dormir e sonhar
sonhos bons. O senhor vai fazer isso por mim, senhor carcereiro, não vai?
Eu sei que vai. Pode deixar que eu pago. Dinheiro, droga, cigarros, o que o
senhor quiser e desejar.
O problema da linguagem em
“Que mais digo ao senhor?”
Carlos Augusto Silva

Miguel Jorge é um patrimônio da cultura goiana. Em Goiás, vê-se Miguel


Jorge como símbolo de arte e movimento. Seu campo de atuação é a literatura,
seja na poesia, no teatro, no romance ou conto, mas sua figura pública transcen-
de a do escritor, tornando-se símbolo de inteligência e engajamento.
Sua contribuição é vastíssima e de peso, tanto pela quantidade, como pela
qualidade, pela pluralidade de sua temática e forma. Mas mesmo assim, como
acontece com todo competente escritor, há em sua literatura uma unidade: ela se
funda e se estabelece na busca do moderno, do presente, da linguagem como en-
grenagem da edificação de sua obra. O conto “Que mais digo ao senhor?”, do livro
Lacraus, de 2004, é uma peça assim: moderno em sua estrutura, ousado em sua
temática, mas ligado a uma tradição da modernidade literária, desde o seu início,
— 132 —

até os limites dessas experiências modernas, que desaguaram na subversão de


gêneros e tiveram seu clímax no século XX. Nessa literatura do século XX a busca
da linguagem, de uma forma singular de expressão artística, é recorrente, daí
surgirem técnicas como o fluxo de consciência, técnica cinematográfica, noveau
roman, entre outros.
Na esteira dessa filiação de inovação e reconfiguração da literatura, a orali-
dade também encontrou o seu lugar, e sua expressão mais contundente, no que
diz respeito à experiência brasileira, é o romance Grande sertão: veredas, de João
Guimarães Rosa.
Neste romance de Guimarães Rosa, talvez um dos três maiores da literatura
brasileira, e por que não dizer, um dos mais inventivos do século XX em todo o
mundo, um sujeito conta a um interlocutor, cuja voz não aparece, suas experi-
ências, e guarda, dentro da narrativa explícita, um segredo que se revela apenas
no final do livro, dando à tradição oral uma perspicácia especial na construção
de seu enredo. Lá em Grande sertão: veredas, um dos temas é o amor metafísico
que Riobaldo, um velho homem sertanejo, sentiu por Diadorim, que ele acredi-
tava ser um de seus parceiros de bando. O problema da sexualidade é fortemente
apresentado, já que Riobaldo jamais desejara outro homem, tendo tido até ali
uma vida plenamente resolvida em sua heterossexualidade. Riobaldo percebe
haver por parte de Diadorim a mesma apreciação por sua pessoa, mas velado
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

permanece esse amor, velado permanece esse desejo. Ao final, revela-se que Dia-
dorim na verdade era uma mulher vestida de homem, e a heterossexualidade de
Riobaldo, colocada em jogo durante toda a narrativa, é elevada a uma categoria
de extrassensorial, pois pode ele perceber, nos olhos de Diadorim — que Riobal-
do exaustivamente contempla durante o livro, sendo a única parte do corpo do
personagem que é objeto de seu desejo a ser descrita e contemplada com louvor
—, a mulher que habitava aquele corpo de homem.
O conto “Que mais digo ao senhor?”, de Miguel Jorge, apresenta o relato de
um presidiário que descobre, dentro da prisão, a possibilidade de busca pelo pra-
zer na figura de outro homem. Ele narra ao carcereiro toda a sua trajetória vivida
com seu antigo companheiro de cela, e como foram separados. Ao final, pede-lhe
um favor: que este leve ao outro um cordão através do qual eles se comunicaram
durante o ato sexual, podendo assim compartilhar o gozo solitário de suas ativi-
dades sexuais. Este conto estabelece profundo contato com a narrativa de João
Guimarães Rosa, tanto pela forma, como pelo conteúdo.
Pela forma, em primeiro lugar, por se tratar de um discurso oral que se des-
tina a um interlocutor cuja personalidade podemos identificar pela profissão so-

— 133 —
mente, e que não se manifesta durante toda a projeção do discurso do persona-
gem que se apresenta pela fala. Pelo conteúdo, em segundo lugar, porque dialoga
com as temáticas da sexualidade e suas variantes nas vertentes heterossexual e
homossexual, e de como a posição do personagem em afirmar recorrentemente
ao seu interlocutor que ele “é um homem” deixa clara a ideia de que há uma pro-
blematização da ocasião que o leva à relação com seu companheiro de cela, e que
esta problematização deixa este personagem em uma fronteira densa e particu-
lar do lugar de sua orientação sexual.
Esta relação é óbvia e facilmente percebida, logo, é apenas a cortina na qual
se funda a narrativa de Miguel Jorge. O seu problema, tanto como em João Gui-
marães Rosa, é outro.
Engana-se quem identifica nesse conto a temática homoerótica como mola
mestra, leitmotiv ou mote principal do tema. O que funda a narrativa de “Que
mais digo ao senhor?” é o problema da comunicação, da expressão de um senti-
mento, da sua transubstanciação corporal e material, tanto que, na ausência do
corpo, um cordão substitui a presença, a pele, a linguagem.
Esses personagens, periféricos em suas essências, tal como são a maior par-
te dos personagens de Louis-Ferdinand Céline, vivem um dos mais explorados
dramas da literatura moderna: a solidão e a liberdade. Essa situação limite — o
cerceamento da liberdade de ir e vir (o que mais resta a um homem que perdeu
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

isso?) — leva as figuras aos escombros de suas personalidades, e nesse contexto


de carências e essências expostas, o outro como afirmação da vida parece ser a
única senda através da qual o que lhes resta de humanidade pode se manifestar.
Aqui, o cordão que une também possibilita a existência do prazer compartilhado.
Solidão e linguagem. Gozo e sobrevivência. Exaustão e encantamento.

Referências:
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção — o desenvolvimento de um conceito crítico. São Paulo:
Revista USP, 2002.
— 134 —
André de Leones

Todas as coisas doces demais


The waiting drove me mad
You’re finally here and I’m a mess
Pearl Jam, Corduroy.

Algo precisava ser dito, mas talvez já fosse tarde demais.


Estavam à sombra, ele sentado observando uma mulher gorda que
passava com um golden retriever e ela deitada de costas, os olhos bem
abertos. Estavam ao mesmo tempo muito próximos e a uma enorme dis-
tância um do outro. O céu começava a fechar, o cinza-concreto aos poucos

— 135 —
preenchendo tudo.
— Vai chover — ela disse, embora não acreditasse nisso. As nuvens
que via não eram tão escuras ou carregadas. — Não sei. Talvez mais tarde.
Ele permaneceu calado. A mulher e o cachorro desapareceram na dis-
tância e ele já não fitava nada em particular. Com um gesto, levou a gar-
rafinha de água mineral à boca e tomou um gole, depois outro; reteve o
terceiro e, virando o corpo, debruçou-se levando a boca até a dela. No mo-
mento em que os lábios se tocaram, ela abriu a boca e, em seguida, ele
também. A água desceu direto, um gole inteiro, e então eles se beijaram
prolongada e ruidosamente.
— Isso foi bom — ela disse quando o beijo terminou. Ele voltou à po-
sição anterior; ela continuou deitada. — Eu estava pensando.
— No quê?
— Acho que não quero tomar hoje, não.
Virou um pouco a cabeça e fitou as pernas dela, esticadas.
— Por quê? — perguntou. Os joelhos ou os pés talvez soubessem. Ou
a grama ali debaixo. — Pensei que a gente fosse tomar junto.
— Não sei. Hoje é domingo. Sei lá.
Ele levantou a cabeça, voltou a olhar para frente. O parque se esva-
ziava. Respirou fundo, pensando na viagem de ônibus no dia seguinte. Ir
embora. Não ter vindo.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Eu vou tomar — decidiu. — Você se importa?


Agora o céu restava inteiramente concretado. Ela fechou os olhos, vi-
rando a cabeça para o lado como se tentasse pegar no sono. O vento frio
parecia vir a meio centímetro do chão, deslizando. Se eu me importo?
Abriu os olhos. As costas dele ao alcance da mão esquerda. Pensou em aca-
riciá-las, mas não se mexeu. Chegou a ver a mão percorrendo os ombros, a
coluna. Não. A mão pequena e muito magra e branca, as costas largas, a ca-
miseta amarela. Não, não. Odiava aquela camiseta amarela. Solar. Olhou
para cima e sorriu para a ausência do sol. O espaço deixado por um e não
preenchido pelo outro. Por nada, por ninguém. Coisa alguma.
— Se você for tomar, eu também vou.
Não pensou no que dizia até ser tarde demais. Por que eu me importo?
Sentou-se quando ele levou a mão a um dos bolsos e puxou a carteira. Por-
ra. Estava ali dentro, ela sabia.
— Fica — ela disse, forçando um sorriso. — Vai ter doce.
Um quarto do troço dividido entre os dois, depois ele guardou o resto
na carteira e a carteira no bolso, dois gestos tão rápidos que ela mal pôde
acompanhar. Quase que um só gesto. Sim, um só gesto maior, mais exten-
— 136 —

so, dividido em dois gestos menores.


Ela voltou a se deitar.
Concreto armado sobre as nossas cabeças, pensou. Fechou os olhos.
Concreto armado prestes a despencar. Ele permaneceu sentado. Uma chu-
va de concreto arrebentando quem estivesse no caminho. Ela o ouviu res-
pirar fundo mais uma vez.
— Acho que não vai chover agora — disse.
Ele concordou: — É. Acho que não.
Então, eles esperaram por quase uma hora, mas o troço não bateu.

O que eles disseram (enquanto esperavam que o troço batesse) quando


já era tarde (ou cedo) demais —
(ela) eu estou aqui por você;
(ele) eu sei, mas;
(ela) mas o quê?;
(ele) eu não sei, eu;
(ela) eu estou aqui, mas e você, onde é que você está?;
(ele) eu não sei onde é que eu estou, e esse é o problema;
(ela) mas eu estou aqui (por você), e isso devia bastar (por enquanto);
(ele) eu não estou pronto, eu não sei (eu não sei);
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

(ela) pois é. a desgraça é que eu sei. eu sei muito bem. eu sei direitinho;
(ele) então me diz o que é;
(ela) você também sabe. você finge que não, mas eu sei que você sabe,
e eu sei que você sabe que eu sei.
(ele) (olhando para cima) acho que vai chover.
(ela) já está chovendo. cala essa boca.
Algo foi dito, e então era tarde ou cedo demais.
Eles resolveram ir embora, muito próximos e a uma enorme distância,
e só quando chegaram à Paulista tomada por uma horda de corinthianos
é que começou a bater. A avenida sangrava luzes natalinas de uma ponta
a outra e o colorido tornou-se ensurdecedoramente intenso. O vermelho
e o amarelo, ela parecia senti-los por sob a língua, derretendo, e era como
se tudo brotasse de seus próprios globos oculares, como se fossem ema-
nações deles, ondas e mais ondas indo e vindo, escorrendo, arrastando-se
pelos concretos acima e abaixo, céu e asfalto.
— Caralho — disse. — Acho que bateu.
— Bateu? — ele sorria.
— Caralho. Nossa. Bateu, sim. Caralho.

— 137 —
Seguiram pela calçada, lerdos e imprecisos. Na esquina com a Pamplo-
na, viram um policial montado. Ela se aproximou. O cavalo era de um mar-
rom borrado, como se tivesse sido colorido por uma criança manuseando
um giz de cera sem ponta. As mãos brancas e finas acariciaram de leve o
animal. Perguntou qual era o nome dele.
— Conhaque — respondeu o policial.
Aquilo era realmente engraçado, um cavalo chamado Conhaque. Ela
começou a rir bem alto e ele a puxou, seguiram viagem.
Ainda estava rindo, e agora ele também, quando, uns poucos quartei-
rões acima, um moleque se aproximou pedindo que pagassem um lanche.
O amarelo de um McDonald’s resplandecia à direita e, sem pensar, ela en-
trou na lanchonete. As cores todas pareciam recém-inventadas e se movi-
mentavam à sua frente, efusivas. Fez o pedido o mais rápido que pôde, o
amarelo caindo sobre ela feito uma falange de espartanos. Aquilo não era
jeito de ver as coisas. Era cansativo e exigente demais. Talvez se eu fechar
os olhos. Entregou o lanche para o moleque, ouviu um agradecimento dis-
tante e saiu da lanchonete.
Ele esperava lá fora, na calçada. Por alguma razão, sentiu-se decepcio-
nada. Por que você ainda está aqui? Por que você veio? Dois sistemas autô-
nomos, isolados, incomunicáveis, inintercambiáveis: próximos e distantes
ao mesmo tempo.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Voltaram a caminhar, a calçada apinhada de outros sistemas isolados.


Não entrem naquele McDonald’s, ela pensou em dizer a todo mundo em
quem esbarrasse dali até a Augusta, e pela Augusta abaixo, até a Dona
Antônia, não entrem no maldito McDonald’s, aquele amarelo é capaz de
matá-los. Os globos oculares explodindo ou implodindo, um pipoco seco e
já era — não vejo mais, nunca vi nada. No entanto, olhou para o lado. Ele
caminhava cabisbaixo, as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda. Por que
ainda te vejo aqui? Aqui, comigo? Não. Como se você estivesse aqui. Não,
não. Seu grandessíssimo filho-da-puta.
Dobraram à direita na Augusta e desceram em silêncio até a esquina
com a Antonio Carlos, quando ele:
— Do que é mesmo que a sua amiga te chama?
— Oi?
— Aquele apelido engraçado.
Ela abaixou a cabeça e sorriu. Não queria sorrir. Nunca mais.
Respondeu:
— Bebê Grunge.
Ele riu, depois pediu desculpas. Carros e mais carros e mais carros. Ele
— 138 —

riu mais um pouco. Os faróis deixavam uns riscos finos, arranhões numa
vidraça. Uma mesma nota musical, aguda e branca, impossivelmente sus-
tentada por um tempo demasiado longo. Eu queria te dizer uma coisa. Eu
queria não te dizer nada. Eu queria não te dizer mais nada, nunca mais. Eu
queria não ter dito porra nenhuma.
O sinal aberto para eles.
Ela apertou o passo, mas ele fez o mesmo.

[São Paulo — primavera/verão — 2011/12]


Um instantâneo da juventude em
“Todas as coisas doces demais”
Ademir Luiz

André de Leones é um dos escritores goianos de maior destaque no atual


cenário literário brasileiro, ao lado de nomes como Wesley Peres e Flávio Car-
neiro. Nascido na capital do estado, Goiânia, em 1980, é um artista jovem e pre-
miado, tido como uma das promessas da nova geração de prosadores. Venceu a
edição 2005 do Prêmio SESC de Literatura com o romance Hoje está um dia morto
(2006), publicado pela Record. Pela mesma editora saiu o volume de contos Paz
na terra para os monstros (2008). Lançou pela Rocco Como desaparecer comple-
tamente (2010), escrito durante sua participação no polêmico projeto Amores
Expressos, da Companhia das Letras, e o romance pós-apocalíptico Dentes negros
(2011). Atua com regularidade na imprensa cultural, escrevendo críticas literá-
rias e cinematográficas.

— 139 —
Vive atualmente em São Paulo, metrópole onde se passa o conto “Todas as
coisas doces demais”. Essa narrativa curta pode ser resumida como um instan-
tâneo da juventude contemporânea. Destacadamente, a juventude urbana. Um
olhar sobre alguns minutos, ou horas, da vida de um casal de adolescentes de
classe média que vagam pela capital paulista. O conto reúne dois temas recor-
rentes na obra de Leones: o universo jovem e o cenário cosmopolita da cidade
de São Paulo. O primeiro esteve presente, com tintas autobiográficas, em Hoje
está um dia morto, que enfoca o cotidiano sufocante de uma turma de amigos que
vivem numa cidade pequena. O segundo é o cenário do mosaico de histórias de
amores que se intercruzam em Como desaparecer completamente. Essa mistura
rendeu uma narrativa concisa, um tanto irônica e pessimista, mas que flerta com
o onírico. É como o jogo de deitar na grama e observar nuvens mudando de for-
ma, sendo que nesse caso “o céu começava a fechar, o cinza-concreto aos poucos
preenchendo tudo”. O cinza-concreto das nuvens somando-se com o cinza-con-
creto dos prédios, ruas e calçadas de São Paulo.
O jovem casal procura colorir esse mundo em tons de cinza consumindo alu-
cinógenos. Não se trata aqui de substâncias psicotrópicas usadas para abrir “as
portas da percepção”, como no livro de Aldous Huxley que leva esse nome. Não
pretendem ter voos criativos, experiências filosóficas ou estéticas. Tampouco se
drogam como bandeira política. Não estão na década de 1960. São jovens total-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

mente contemporâneos, que nasceram conectados na internet; tudo o que que-


rem é tornar o domingo menos monótono. Se Huxley considerava que a explosão
cromática gerada pela mescalina representava a abertura da mente para dimen-
sões mais sutis do universo, para eles “o amarelo de um McDonald’s resplandecia
à direita e, sem pensar, ela entrou na lanchonete. As cores todas pareciam recém
-inventadas e se movimentavam à sua frente, efusivas. Fez o pedido o mais rápi-
do que pôde, o amarelo caindo sobre ela feito uma falange de espartanos”. Essa
viagem não é de descoberta intelectual ou de autoconhecimento ao estilo “paz e
amor” hippie; é uma “batida” violenta, solitária e cansativa. Melhor apenas do
que o tédio.
O “doce demais” do título indica justamente que o excesso de qualquer coisa
mina seu poder de encantamento. Até o gosto doce perde a graça quando inserido
no cotidiano. O Dicionário do século XXI, de Jacques Attali, define no verbete “Dro-
ga” que, para as novas gerações, ela é uma “forma especial de distração e viagem,
(...) com o tempo, desaparecerá a fronteira entre drogas legais e ilegais”. Concor-
dando ou discordando é uma tendência.
Apesar de pessimista, André de Leones não condena, demoniza ou transfor-
— 140 —

ma seus protagonistas em caricaturas. Não os tacha de alienados ou perdidos. As


frases quase desconexas que trocam são fruto mais da incomunicabilidade que
enfrentam do que de futilidade ou estupidez. “Todas as coisas doces demais” é
escrito simultaneamente em primeira e terceira pessoa. Num trecho compos-
ta em Skaz, expressão russa que designa literatura escrita em primeira pessoa
num estilo que lembra a linguagem oral, lemos: “Eu queria te dizer uma coisa.
Eu queria não te dizer nada. Eu queria não te dizer mais nada, nunca mais. Eu
queria não ter dito porra nenhuma”. Drogam-se juntos para não encarar que es-
tão muito distantes um do outro, que “algo precisava ser dito, mas talvez já fosse
tarde demais”. O paliativo para não olharem para si mesmos é rir de tudo: dos
passantes, do nome de um cavalo e de estranhos apelidos.
Não se trata de um texto de inspiração beat. A presença de alucinógenos pode
induzir equivocadamente a esse cacoete crítico. Como Leones afirmou numa en-
trevista: “nunca li Bukowski”. Se existe um ponto de convergência com os mes-
tres da contracultura, ocorre de modo tangencial, via Thomas Pynchon, decano
do romance pós-moderno e uma influência reconhecida. De fato, não parece que
os jovens de “Todas as coisas doces demais” sejam dois perdidos numa noite suja.
Lembram mais Holden Caulfield, com tintas modernosas. Alucinados de final de
semana, que frequentam a escola e fazem trabalho voluntário; afinal, até paga-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ram um lanche para um menino de rua. Nada demonstra que sejam junkies de
sarjeta, ao estilo dos tipos marginais onipresentes nas obras de autores como
Lourenço Mutarelli e Marcelo Mirisola. André de Leones, talvez por sua forma-
ção goiana mais tradicional, não demonstra comungar com o encantamento pelo
submundo, tão comum na literatura contemporânea. Seus personagens podem
até transitar pelos guetos, mas não são definidos por eles.

Referências:
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
HUXLEY, Aldous. As portas da percepção & O céu e o inferno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

— 141 —
Edival Lourenço

A fazenda de pedra

O fenômeno é de deixar qualquer geólogo com a cuca fervendo e não


há estudioso que consiga explicá-lo razoavelmente. Conjectura tem de so-
bra. Até tese de doutor. Tudo umas potocas. Nem merecem menção. Fato
é que, estudioso ou não, cientista ou mero empírico, a fazenda Lajeado,
no extremo norte no vale do Bingueiro, município de Mundocaia, deixa a
todos com suas indagações em suspenso.
Como é que pôde se formar 3 mil hectares de pura laje tapiocanga,
numa região de terra maciça, onde não existia pedra nem pra fazer sopa?

— 143 —
E o que é mais intrigante: o lajedo se formou no exato limite da fazenda
Boidemais. Fora dali não há pedra daquela. Nem levada. A pedra exala,
se for retirada de seu local. Caso alguém quebre um naco e o atire pro ar
com estilingue, bodoque ou mesmo com o açoite do braço, ele evapora.
Deixando no ar apenas uma débil e fugaz fumaça. Sem cheiro nem conse-
quências. Não cai no chão.
Outra coisa terrível: o local de onde se retira um pedaço regenera ime-
diatamente, não deixando nenhuma sutura. A laje cresce de todos os lados
feito massa de fazer rapadura e fecha a cicatriz. Se se deixar ferramenta
ou qualquer objeto sobre a imensa pedra, seja de metal, madeira, couro,
pano, papel, osso, chifre, plástico, ele desaparece de um dia para outro. De
forma que a paisagem permanece intocada. Apesar da romaria de ávidos
turistas que ali vão diariamente.
Mais outra coisa terrível: o lajeamento não se limitou ao rés do chão.
Tudo ali se empederniu, numa fossilização acelerada. As coisas miúdas
como capim e a vegetação herbácea desapareceram, cedendo lugar ao es-
tranho calçamento. Entretanto as árvores e os arbustos mantiveram a sua
forma nas minúcias mínimas. Não com seus corpos vegetais. Mas tudo de
pedra parda. Já os animais não houve distinção entre pequenos e grandes.
Desde uma formiga até um boi, tudo ficou intacto na posição em que foi
alcançado pelo fenômeno.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

A antiga fazenda Boidemais, hoje Lajeado, é simplesmente uma de-


solada e assombrosa escultura de 3 mil hectares, rodeada de terra fértil
por todos os lados. Uma paisagem dura, pardacenta, hostil, instigante e
medonha.
Com um detalhe ainda mais perturbador: nada disso sai em fotografia.
Nenhum fotógrafo até hoje logrou êxito. Na hora de revelar, para desespe-
ro dos profissionais de grau e norrau, tudo o que aparece é uma bucólica
fazenda. Digna de um calendário classe média-baixa.
Na verdade a fazenda de pedra ganhou esboço nas entranhas do im-
ponderável na manhã em que o misto de feiticeiro, mágico e paranormal
Xambá foi molestado pelos arrogantes filhos do proprietário. Após um
pernoite relativamente tranquilo, que sempre pedia por caridade, o velho
Xambá foi duramente provocado pelos três rapazes. Ainda na mesa do
café da manhã, o mais moço começou a insultá-lo. Retirou o revólver da
cinta, apontou para o ouvido do velho e ficou dando meia contagem, com
o tambor repleto de munição, enquanto proferia achincalhes:
— Dizem que você faz misérias com sua reza braba. Quero ver, ve-
lho vadio. Faz um feiticinho aí e degringola o meu Smith. Isso aqui não é
— 144 —

máquina pro seu bico não. Dizem que você tem o corpo fechado, que faz
parabelo cuspir saliva, que faz punhal cabeça-d‘alho virar uma lingueta de
cera, que faz porrete virar fumaça. Velho cascateiro!
— Vou te dar uma tunda, velho safado — gritou o mais velho. Fica aí
com essa onda de feiticeiro bacana. Me dá um pouso por caridade. Uma
janta pelo amor de Deus. Não vai trabalhar não, seu Cruz de Caravaca
de Araque.
— São Cipriano farsante — bradou o moço do meio, já um tanto exal-
tado, metendo-lhe a mão na cara. Você é o bom, não é? Reage. Dizem que
você faz pobre ficar rico, rico ficar pobre. Faz a gente ficar pobre, seu em-
busteiro. Faz essa cultura toda do pai virar pedra. Você é o bom.
Nessas alturas o pobre velho, prostrado no chão da sala, suava sangue
feito um bicho esfolado por cães de caça. Suspeitaram que havia morrido.
Saíram em busca da padiola de pesar capado para retirar o corpo. Qual
não foi a surpresa quando voltaram com o indigno objeto. O a ser retirado
desaparecera. No chão, onde pousava o corpo desfalecido, estavam apenas
as marcas indeléveis que nem soda cáustica conseguiu retirar. Um estra-
nho sudário. Não no lençol de linho branco de Verônica, mas no cimento
encardido e rústico.
Surpresa maior estava por vir. Trinta dias depois, na noite do velório
do senhor Henoc — o rico fazendeiro e pai dos três rapazes —, exata-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

mente quando os galos puxaram a barra da manhã, o sudário de Xambá


impresso no cimento começou a vomitar continuamente aquela massa
parda, um concreto de ferrugem, alastrando, revestindo tudo quanto há
com uma camada de pedra tapiocanga. Podia se ouvir o ruído surdo da
massa rompendo com voracidade em todas as direções.

Atabalhoados, os presentes corriam sem rumo, às vezes esquecendo
para trás os seus velhos e suas crianças entregues à fúria da pedra-vômica.
O próprio defunto virou pedra para quem quiser ver.
Menos para fotografar.

— 145 —
O realismo mágico de “A fazenda de pedra”
Ademir Luiz

O aristocrático escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa escreveu


em seu genial romance póstumo O Leopardo que “as coisas precisam mudar para
continuar as mesmas”. Referia-se a conturbada política europeia do século XIX,
mas, em livre interpretação, essa é uma boa definição para a obra em prosa do
poeta e ficcionista Edival Lourenço. Nascido em Iporá (GO), em 1952, estreou no
gênero em 1992, com o romance satírico de ficção científica A Centopeia de Neon,
vencedor do Prêmio Nacional de Romance do Estado do Paraná. Uma obra em
quatro atos e quatro vozes narrativas. Em 2003 lançou Mundocaia, uma coleção
de “Estórias” influenciadas pela estética do realismo mágico. Dois anos depois,
exercitou-se na arte do micro conto com Os Carapinas do Sri Lanka. Em 2011 mu-
dou completamente de registro lançando o romance histórico Naqueles Morros,
Depois da Chuva — Jogo do Diabolô; um livro contemplativo, realista, poético,
— 146 —

usando um vocabulário repleto de expressões arcaicas; fruto de intensa pesquisa


filológica. Com essa obra ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance brasileiro
do ano e o Troféu Jaburu, de mérito cultural goiano. Contudo, apesar de passar
por fases tão distintas, Edival Lourenço não mudou. O estilo em si, muitas vezes,
não é reconhecível à primeira vista de livro para livro, mas sua assinatura artís-
tica permanece intocada. O que pode ser percebido pelos leitores mais atentos.
Um dos principais elementos de sua alquimia literária é o uso da comédia.
Pode variar da fina ironia até o humor negro à britânica. Sempre pautando uma
situação extremamente inventiva. Sem dúvida, Edival Lourenço é um dos mais
criativos escritores goianos. Vale notar que existem autores imaginativos com
pouca capacidade de narrar, mas também bons narradores com pouca imagina-
ção. Ele consegue unir as duas habilidades, com a vantagem de não ser refém da
própria inventividade. Costura com maestria no enredo os eventos mirabolan-
tes que cria, evitando que se transformem em muleta, cacoete ou exibicionismo.
Podem ser explícitos ou discretos. Vide os exemplos da inusitada aparição do
disco voador que dá nome A Centopeia de Neon e a sugestão de feitiçaria indígena
em Naqueles morros, pepois da chuva. Seus mundos ficcionais nunca são vulgares,
são sempre incomuns, mesmo que exista a sugestão de que o aparentemente
inexplicável possa ser explicado, seja um ardil ou que não passe de projeções ou
alucinação dos personagens.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Os contos de Mundocaia, publicados semanalmente no jornal Diário da Ma-


nhã, entre 1990 e 1992, representam muito bem a riqueza humorística e imagi-
nativa da prosa de Edival Lourenço. Mundocaia é o nome de uma vila que não se
encontra no mapa. Seria a Macondo de Edival Lourenço. Gabriel García Márquez,
no romance Cem Anos de Solidão, apresentou Macondo como “uma aldeia de vinte
casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que
se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos
pré-históricos”. No primeiro conto do livro, Herói de pequenos feitos, o autor tam-
bém apresenta sua vila, seu rio e sua criatura pré-histórica. “Uma cascuda risca,
fazendo marola, a água lamacenta do rio Guariba. Salta para a margem escarpa-
da, fora daquele godó hostil formado pelos detritos industriais e fezes humanas,
para morrer com dignidade”. A tartaruga morreu envenenada pelo progresso.
Mundocaia inteira padece. Os contos do livro abarcam duas temporalidades, o
passado e o presente. No passado somos apresentados às tradições e lendas lo-
cais, a mística idade de Ouro de Mundocaia, cheia de magia e personagens fas-
cinantes. Uma espécie de livro das Mil e Uma Noites com sabor sertanejo. No
presente, testemunhamos a difícil adaptação dos habitantes ao mundo contem-

— 147 —
porâneo, que, cada vez mais, nega o fantástico.
No conto “A fazenda de pedra”, é patente a influência do realismo mágico ca-
racterístico dos autores do boom da literatura latino-americana, das décadas de
1960 e 1970: García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuen-
tes etc. Nele somos informados como teria se dado a transformação da próspera
fazenda Boidemais na terra desolada que os sertanejos chamam, ironicamente,
de fazenda Lajeado, que é “simplesmente uma desolada e assombrosa escultura
de 3 mil hectares, rodeada de terra fértil por todos os lados. Uma paisagem dura,
pardacenta, hostil, instigante e medonha”. Essa estranha “desertificação” acon-
teceu como resultado dos desmandos dos filhos do dono da fazenda, que mata-
ram um feiticeiro chamado Xambá. Seu cadáver transformou-se numa mancha
“que nem soda cáustica conseguiu tirar”. Na noite do velório de Henoc, o dono de
Boidemais, “o sudário de Xambá impresso no cimento começou a vomitar conti-
nuamente aquela massa parda, um concreto de ferrugem, alastrando, revestindo
tudo quanto há com uma camada de pedra tapiocanga”.
Lajeado tornou-se curiosidade turística. “Menos para fotografar”. A paisa-
gem pétrea não é captada pelas lentes das máquinas. “Na hora de revelar, para
desespero dos profissionais de grau e norrau, tudo o que aparece é uma bucólica
fazenda”. É ver, ao vivo, para crer. E não contar para ninguém, para não ser ta-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

chado de louco. Em tempos de simulacro, diria Deleuze, o que os olhos não vêem
em fotografia o coração não sente.
Mas o realismo mágico, antes de ser mágico é realismo. Existe em Goiás, ter-
ra onde talvez Mundocaia se localize, um equivalente real à Lajeado. A chamada
Cidade de Pedra, descoberta em 1871, e redescoberta em 2001, pelo historiador
Paulo Bertran: cerca de 500 hectares em Pirenópolis, na Serra dos Pirineus, ocu-
pados por impressionantes e imponentes formações rochosas, uma verdadeira
paisagem lunar. A arte imita a vida? Inspiração? É possível e até provável, com a
importante diferença que, ao inverso de Lajeado, na Cidade de Pedra as fotogra-
fias estão liberadas.

Referências:

LLOSA, Mario Vargas. Dicionário amoroso da América Latina. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
LOURENÇO, Edival. Mundocaia. Goiânia: Asa, 2003.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Gosto de goiaba. Rio de Janeiro: Record, 1993.
— 148 —
Ademir Luiz

Walquíria Wagneriana

“Foi então que a olhei. Uma linha de Willian Blake fala


de moças de suave prata ou de furioso ouro, porém em
Ulrica estava o ouro e a suavidade.”
Jorge Luis Borges

No epílogo de seu Livro de Areia, o velho Borges observou que o tema


do amor, tão comum em sua poesia, é muito raro em sua obra em prosa.
Exemplo único é o conto Ulrica. Em meu entender, nas parcas quatro pá-
ginas desta narrativa, o gênio do mestre argentino, talvez compensando o

— 149 —
desinteresse anterior, criou uma obra-prima literária. Ao mesmo tempo,
gerou um fantasma que passou a assombrar o sono dos homens cultos do
mundo todo. A sua bela Ulrica, norueguesa feminista, alta e leve, vestida
de negro, de olhos cinzentos, ar tranquilo e sorriso fácil, que parecia afas-
tá-la, citando a Völsunga Saga passeando na neve, não pode ser menos do
que uma imagem da perfeição. E é ainda mais perfeita porque nega se dar.
Seu abraço é fugidio como se os próprios braços lhe faltassem, qual a Vê-
nus de Milo; existem apenas para proteger os lábios, estes tão inacessíveis
quanto os da Vitória da Samotrácia.
Para o bem ou para o mal, acredito que todos os homens algum dia de
suas vidas se verão repentinamente na mesma condição de Javier Otárola,
o colombiano celibatário que Ulrica chamou de Sigurd, para quem foi por
uma manhã apenas sua Brunhild. Esta é a maldição e a dádiva que pesa
sobre o gênero masculino. Todos nós, de mil maneiras diferentes, inexo-
ravelmente, teremos o nosso encontro com as irmãs da linda bruxa escan-
dinava engendrada por Borges. Afirmo isto porque eu mesmo encontrei a
minha. Minha Ulrica.
O inevitável deu-se em uma noite de ópera. No programa, Wagner.
O libreto, O Anel de Nibelungos. Dezoito horas de música, divididas em
quatro concertos, quatro noites: O Ouro do Reno, A Walquíria, Siegfried e O
Crepúsculo dos Deuses.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Os primeiros movimentos da primeira noite foram de uma monoto-


nia massacrante. Boa música, péssima execução. Plateia pretensiosa, algo
sonolenta. No intervalo fiquei tentado a ir embora. Por amor a Wagner
decidi que ficaria.
Fiz muito bem em permanecer, ainda que isso tenha significado meu
aprisionamento perpétuo. No feliz retorno, os músicos, antes sofríveis,
tornaram-se virtuoses. Tocavam como se tivessem sido iluminados pela
musa. O primeiro violino igualou-se a Paganini, o modesto regente reve-
lou-se superior a Karajan, o conjunto suplantava a melhor das formações
da Filarmônica de Berlim. Movidos por aquela inusitada inspiração, exe-
cutavam tão perfeitamente sua arte que pareciam capazes de, se assim o
desejassem, transportar as estruturas de concreto do teatro, por passe de
mágica, as antigas terras nórdicas pagãs que evocavam.
A beleza incomum dos acordes parecia anunciar um grande aconteci-
mento, antevê-lo.
A orquestra tocava lindamente quando, na penumbra do teatro, al-
guém ocupou a poltrona, até então vazia, à minha esquerda. Era com cer-
teza uma mulher. Mesmo sem olhar os homens sempre sabem fazer a dis-
— 150 —

tinção. Não demorou a que o agradável aroma de seu perfume confirmasse


a impressão. Olhei-a de soslaio e, mesmo no escuro, percebi que era lindís-
sima. Meu primeiro pensamento foi o de que combinava com o estilo da
música: era de uma beleza tipicamente escandinava, loura e imponente.
Admirava-a, quando ela, talvez percebendo minha descompostura, tirou a
atenção por um segundo do palco e encarou-me. O azul dos olhos foi mais
forte do que o negrume do ambiente, gelaram-me. Acho que enrubesci,
baixei a cabeça e só tornei a levantá-la quando, uns bons segundos depois,
o som de um bater de pratos permitiu. Daí em diante, sem muito sucesso,
procurei ignorar a presença espectral a meu lado e concentrar-me no con-
certo. O perfume é a música duelaram até o fim da apresentação. Confesso
que a certa altura, hipnotizado, não escutava mais nada.
Quando finalmente acenderam as luzes do teatro pude vê-la de fato.
Fingindo observar o farfalhar da cortina fechada no palco, esperei que a
loura se levantasse. Fiquei estupefato. Era a mulher mais bela que já havia
visto. Bela, não meramente bonita. Ser bonita é uma qualidade tão so-
mente estética, carnal, ao passo que ser bela é algo mais, algo que inspira
a transcendência, a imaterialidade. Não exibia a postura afetada de uma
femme fatalle ao estilo francês, ou de uma pin-up platinada hollywoodiana;
não, de modo algum, ao contrário, tinha algo de menina: menos por ins-
pirar inocência do que frescor. Estado de espírito que ficava explicito nas
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

roupas leves que vestia e na pouca maquiagem que usava; unhas curtas,
pintadas de um rosa muito claro, e nenhum batom. Evocava a imagem de
perfeição virginal de uma Walquíria do mito nórdico. Suave, delicada, mas
poderosa como um exército a postos para batalha.
Não pude deixar de pensar que Wagner compusera O Anel de Nibelun-
gos em sua homenagem. O fogoso compositor que criou a maravilha que
é Tristão e Isolda para sua muito amada Matilde Wesendonk, fez, indubi-
tavelmente, seu épico maior para alguém que nasceria mais de um século
depois. Que ninguém duvide que diante daquela mulher, daquela Walquí-
ria Wagneriana, a lógica do tempo se esvazia de significado.
Concerto encerrado, ela, sem falar, apenas com um sorriso e um leve
movimento de mãos, pediu-me passagem pelo corredor estreito entre as
fileiras. Encolhendo as pernas, um tanto constrangido, concedi. Passando,
sem poder evitar tocar seu vestido colegial em meu joelho, a loura agrade-
ceu gentil:
“Obrigada.”
E sua voz me soou como um epílogo da ópera, pois sim, era tam-
bém música. É quase vergonhoso usar uma metáfora tão pobre e banal

— 151 —
como esta, mas, garanto-lhes, é também inevitável. Ainda sentido o
aroma de seu perfume, observei-a desaparecer em meio ao público que
deixava o teatro, comentando a excelência inusitada da segunda parte
da apresentação.
Hoje, protegido pela distância do tempo, julgando racionalmente o de-
senrolar da situação, não acho que tenha sido seu de imediato. A verdade
é que naquele primeiro contato impressionou-me sua beleza, mas de um
modo vago, não muito diferente do que se sente quando lemos sobre a lou-
ra Ingeborg Holm, no Tonio Kroeger, de Thomas Mann. Na realidade, até
então, sempre fui um homem totalmente racional, nada emotivo, e, posso
dizer, com certo orgulho até, frio. Jamais compreendi como, por exemplo,
um gênio da estatura do grande Nietzsche deixou-se enfeitiçar pela tal Sa-
lomé. Achava ridículos os tão falados sofrimentos do jovem Werther pela
moçoila aguada Carlota. Ainda mais sabendo que seu criador, Goethe, foi
um notório conquistador, e abandonador, de donzelas. A verdade é que
antes daquela noite de ópera, daquela sublime interpretação d’O Ouro do
Reno, simpatizava sim com o bom e velho Dorian Gray. Teria o retrato dele
sobre minha lareira. Mas, não me entendam mal, nunca fui um insensível.
Eu, como de resto todo adolescente, tive meus momentos de Romeu. So-
mente não me refiro a Romeu e Julieta, mas Romeu e Rosalina. A questão é
que somente perceberia o que tinha diante de mim na segunda noite, não
por acaso a noite d’A Walquíria.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Quando cheguei ao teatro faltava ainda meia hora para o início do con-
certo. O saguão estava tomado por homens magros de casaca e mulheres
gordas com peles. Nenhuma sílfide, nenhuma Walquíria Wagneriana. Era
bem possível que ela não fosse naquele dia. Na verdade era possível que
eu nunca mais a visse, que aquele houvesse sido um encontro meramente
fortuito, irrepetível.
Mas não foi o que aconteceu. Quando entrei na sala de concertos a vi
sentada, sozinha, na mesma poltrona da noite anterior. Uma nuvem de me-
lancolia parecia envolvê-la. Vê-la ali, solitária, sublinhou a primeira impres-
são que tive sobre sua evidente singularidade.
Fui até lá e, procurando não hesitar, ocupei meu lugar à sua direita.
A Walquíria Wagneriana não se moveu. Eu tampouco. Apenas respirava,
economia nos gestos. Somente quando os primeiros acordes musicais co-
meçaram a ressoar, relaxei.
Nisto, um inconveniente casal de jovens, sentados nas poltronas ime-
diatamente adiante das nossas, conversava incessantemente durante a
apresentação. A certa altura, indignado com o desrespeito, comentei sufi-
cientemente alto para que ouvissem, mas tão discreto e elegante quanto
— 152 —

possível, que não escutava violinos e sim motosserras. A dupla tomou ten-
to e parou de falar. A Walquíria Wagneriana sussurrou um agradecimento.
“Obrigada.”
No intervalo, não deixamos nossos lugares. Creio que esperamos, mu-
tuamente, que o outro se levantasse primeiro. Claro que nenhum dos dois
admitiria isto. Ela começou o diálogo. Em voz baixa, educada pelo peso
ritual do ambiente, falou:
“O cavalheiro sempre fica aqui, nesta poltrona, ou este encontro foi
apenas um mero acaso?”
Falso inocente, comentei que, de fato, me lembrava dela da noite an-
terior, mas, fosse como fosse, eu poderia fazer-lhe a mesma pergunta. Ela
não discordou. Ao contrário. Disse:
“É verdade.”
Somente depois vim a perceber que esta frase de singela parcialidade
era seu cacoete verbal, repetido exaustivamente sempre que cabível. Nem
sempre significava concordância. Tanto é assim que, na sequência, ela de-
clarou que:
“De minha parte foi um mero acaso.”
Compreendendo que estava diante de uma mente aguda, decidi jogar
seu jogo e rebati dizendo que fazia minhas suas palavras. Ambos manipu-
laram a verdade.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Em seguida nos apresentamos. Disse-lhe primeiramente que era pro-


fessor, depois, num desses pensamentos rápidos que duram uma fração
de segundo, conclui que por mais nobre que seja tal ofício, ele não é sufi-
cientemente dramático, não impressiona, e emendei dizendo que era pro-
fessor e escritor. Apesar de alguns espíritos bárbaros não serem capazes
de perceber o sentido desta sutileza, existe algo de enigmático e atraente
em confessar-se escritor. É como se sugerisse nas entrelinhas que partilha
um segredo com Shakespeare. Ela por sua vez disse que:
“Por hora sou aluna e leitora.”
Seguiu-se um tão breve quanto desconfortável silêncio constrangedor.
Felizmente, antes que este instante se prolongasse demais, a ponto de
ser irreparável, as luzes foram apagaram e a cortina abriu-se anuncian-
do o reinício do espetáculo. Antes que a orquestra recomeçasse a tocar,
iluminado pela graça do improviso, perguntei o nome de seu perfume. A
Walquíria Wagneriana alegou que não se lembrava. Algo pouco comum em
uma mulher, suas preocupações, certamente, eram mais transcendentes
do que estas pequinesas de vaidade. Falei de Alexandre, o Grande, que, se-
gundo a lenda, exalava um perfume perene. Ela sorriu e disse que não era

— 153 —
o caso. Nisto, calamo-nos e começamos a escutar, antes que recebêssemos
uma vingativa repreensão dos tagarelas em nossa frente.
Ao final da segunda noite, na saída, a Walquíria Wagneriana indagou:
“Se é escritor, o que escreveu?”
Esclareci que ainda era virtualmente inédito. Depois, falei de meu li-
vro, um romance, ainda em originais, esperando retoques na gaveta de
minha escrivaninha. Acrescentei que, mesmo incompleto, faltando poli-
mento, podia garantir que tratava-se de uma pequena pérola. Diante de
um comentário deste calibre, ela observou:
“Pelo visto você não sofre do mal da falsa modéstia.”
Concordei, citando a famosa profecia adolescente de Salvador Dali:
“Vou ser um gênio. Talvez incompreendido e desprezado, mas um gênio
grandioso”. Ela afastou uma mecha de cabelos diante dos olhos, com ex-
pressão de quem não acredita que ouviu o que ouviu, e replicou:
“Como todo escritor comecei como gênio e terminei como eu mesmo,
Borges.”
Estivesse o argentino em meu lugar diria que “o nome foi articulado”.
Movido por indisfarçável entusiasmo, tolamente perguntei se conhecia
Borges.
“Quem não conhece?”
Em seguida, como que ordenando, de uma forma muito própria das
escandinavas, mais incisiva do que persuasiva, deu-me a incumbência de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

trazer-lhe uma cópia deste rascunho de meu livro na noite seguinte. Que-
ria lê-lo. Impossível negar tal pedido. Prometi que traria, com todo prazer.
Não poderia ser diferente, porque dedicar-se a leitura de um autor equi-
vale e dedicar-se a conhecê-lo. E se existia algo que eu desejava naquele
momento era dar-me a conhecer a ela.
O saguão do teatro se esvaziava. Perguntei-lhe se poderia acompanhá
-la. A resposta foi um não, “não, obrigada”, seguido de um “boa-noite”, um
toque leve de nossos dedos indicadores e sua saída fluida, sem olhar para
trás. Neste momento, fulminado pela ideia, pensei em Ulrica. Soube que
era chegada a minha hora de encarar o fantasma da bruxa escandinava
borgiana. Fui embora com a cena de sua partida repetindo-se continua-
mente, ao som da abertura d’A Cavalgada das Walquírias, em minha mente.
Inevitável associação. Pedi misericórdia a Odin.
A terceira noite era a noite de Siegfried e Brunhild. Encontrei a Walquí-
ria Wagneriana ainda no saguão do teatro. Trazia comigo um volumoso
maço de papéis: meu livro. Nosso comprimento, que se tornaria habitual,
embora um tanto tolo e adolescente, foi, novamente, um leve toque de
indicadores. Não falamos nada. Estendi-lhe o pacote. Ela abriu a primeira
— 154 —

página e percebeu que, abaixo do título, escrita a caneta, estava uma de-
dicatória. Leu-a.
Era algo mais ou menos assim: “Walquíria Wagneriana: quero crer que
o único fato inevitável de toda criação, do esfriamento da Terra e o desa-
parecimento dos grandes lagartos à grande aventura humana, tenha sido
seu encontro com essas páginas. Quanto a mim, eu fui apenas um arauto”.
Ficou claro que àquela cópia era dela, um presente. Um presente pre-
cioso, pois, como se sabe, para um escritor nada pode existir de mais valio-
so do que seus originais. Ela, certamente, percebeu isto, mas se manteve
muda. Ainda calados, entramos juntos no salão de concertos.
Citar literatura sempre me salvou da mudez nos momentos cruciais.
Ao ocuparmos nossos lugares cativos, com ares líricos, quebrei o silêncio
evocando Neruda: “Me gustas cuando callas porque estás como ausente...”.
Ela, espirituosa, talvez antecipando o que nos esperava, completou:
“... y me oyos desde lejos y mi voz no te toca”.
Sem reação, pego desprevenido em minha própria armadilha, cai no-
vamente no silêncio. Ela, satisfeita com a vitória, colocando as mãos sobre
meus originais, perguntou por que escolhi chamá-la de “Walquíria Wag-
neriana”. Respondi que eu não escolhi, que ela mesma escolheu ao nascer.
Ponto! Desta vez, foi ela quem enrubesceu, baixou os olhos e calou-se.
Um bom momento. Coloquei minha mão sobre as suas, que afastou-as
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

delicada, ao mesmo tempo em que abriu meu manuscrito em uma página


qualquer. Algumas coincidências estão além de nossa filosofia. Era uma
cena entre o casal de protagonistas.
Li um trecho em voz alta: “Foi então que cruzamos a última fronteira.
Muitas pessoas acreditam que a última fronteira entre um homem e uma
mulher é a cópula. Estão errados. O beijo é de fato a última fronteira. O
beijo, e, sobretudo, o primeiro beijo trocado por um casal, é um ato trans-
cendente. Existe todo um jogo erótico, de sugestão e negação, antes de sua
consumação. E depois dele tudo é possível. O beijo é, enfim, uma dança de
espíritos. A cópula ao contrário é um ato eminentemente carnal”.
Depois, lembrando-me de Borges, aproximei-me e disse-lhe que a de-
dicatória de um livro é um ato mágico, o modo mais grato e mais sensível
de pronunciar um nome. E pronunciei seu nome, seu verdadeiro nome,
e lhe ofereci aquele livro, não enquanto objeto, algo que já estava feito,
mas enquanto obra, enquanto obra do espírito. Seguiu-se um momento
de tensão em que qualquer coisa poderia acontecer. Virando o rosto, ela
murmurou acossada:
“Você não me conhece, não fantasie.”

— 155 —
Repliquei que fantasiava porque não a conhecia e pedi-lhe que me
mostrasse quem era. Silêncio. Nisso, o espetáculo recomeçou, interrom-
pendo, quebrando, destroçando o clima tão arduamente criado. Pela pri-
meira vez, achei Wagner antipático.
No intervalo, a Walquíria Wagneriana apressou-se em se levantar e
sair ao saguão. Acompanhei-a. Afogados no burburinho da multidão, não
conversamos. O objetivo deveria ser mesmo este. Ela parecia querer pen-
sar. Fazia-o andando. Ia de um lado para o outro, indo e vindo a minha
frente. A certa altura parou diante de mim, me encarou para em seguida
se voltar dizendo, com a voz abafada:
“Não me olhe assim.”
Eu não sabia do que ela falava. Esperei. Ela repetiu:
“Não me olhe assim.”
Apenas quando retornamos aos nossos lugares, segundos antes do re-
começo do espetáculo, ela disse:
“Você é muito diferente do que pensei que fosse.”
Antes que pudesse articular qualquer frase a música começou. Mas
guardei aquela frase até o fim da noite. Na saída, antes que ela partisse,
sozinha, como na noite anterior, perguntei-lhe o que quis dizer com aque-
la observação. A Walquíria Wagneriana hesitou, procurando palavras, e,
em seguida, respondeu:
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

“Você me parecia inofensivo, passava algo de melancólico, deprimido.


Mas se revelou espirituoso e sarcástico.”
Eu, claro, um tanto confuso, perguntei se isso era negativo ou positivo.
Ela não pôde responder com precisão. Creio que menos por não querer se
revelar do que por qualquer outro motivo. Só admitiu que:
“Não é bom ou ruim, mas diferente.”
Resposta pouco crível, mas que não parecia deslocada em sua boca
orácular. Então, dito isto, apressada, tocou meu indicador, agradeceu o
presente, meu livro, prometeu que o leria e daria sua opinião, despediu-se
e partiu.
Do teatro fui a um café. Refleti sobre o que estava acontecendo. Achei-
me ridículo por estar me relevando um aprendiz de Werther. Ao mesmo
tempo, reconhecia ser inevitável. Por algum motivo tolo, pensei em Ro-
ger Vadim. Eis alguém que deve ser respeitado. Não como artista, pois foi
um cineasta medíocre e um pastiche de escritor, mas como homem. Não,
como homem não; isso é para Napoleão ou César. Como macho, sim é essa
a palavra: macho. No fundo, nosso gênero sofre de incapacidade congêni-
ta de amadurecer. Não tenham dúvida que o sonho secreto do Papa é ser
— 156 —

James Bond. Seja como for, Vadim possuiu não uma, mas três diferentes
versões de Ulrica: Bardot, Deneuve e Fonda. Ou por outra, observando a
situação de diferente ângulo, não as possuiu, mas encontrou-as para, em
seguida, perdê-las, ainda que ficasse com a fama do triplo feito, para mui-
tos sendo o que interessa. Não, não poderia ser só isto. Então, inspirado
pelo magro exemplo, ergui os punhos e bradei de mim para mim, entre
dentes: “serás minha!”
Lamentável! Lamentável o que um homem civilizado pode pensar sob
efeito combinado de cafeína e de suas próprias fantasias.
Seja como for, cheguei ao teatro, na noite seguinte, com um texto de-
corado. Os homens, todos eles, sempre tem a ilusão de que as palavras
certas, ditas da maneira correta, podem representar a diferença entre o
fracasso e o sucesso sentimental. Essa é a única razão pela qual a poe-
sia romântica não é um gênero literário extinto. Sobrevive na cultura oral
masculina, com o status de arma.
Minha Walquíria Wagneriana ainda não havia chegado. Ainda era cedo,
restava aguardar. O tempo passou devagar, como passa para todos que es-
peram. Faltando poucos minutos para o início do espetáculo o tempo ace-
lerou-se, fortalecendo, a cada segundo perdido, a certeza de que ela não
viria. O saguão já estava vazio quando decidi entrar na sala de concertos.
Ao longe, vi que nossos lugares tradicionais estavam ocupados, usurpados
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

por duas velhas caquéticas. Sentei-me na última poltrona da última fila.


Os músicos tocaram pessimamente. Ainda pior do que no início da
primeira noite. O título belo e agourento d’O Crepúsculo dos Deuses jamais
fizera tanto sentido.
No intervalo, considerei a possibilidade de ir-me embora. Não fui. Des-
ta vez não sei se por amor a Wagner ou seguro pela esperança do encontro,
gesto tão comum no patético arsenal de atitudes humanas. Se for verdade
que nossa mentalidade é, fundamentalmente, grega, sua fábula sobre a
Caixa de Pandora é uma de nossas obsessões mais claras.
O recomeço do concerto, seu desenvolvimento e final foram, para
mim, tempos mortos. Não me lembro deles. Não posso opinar sequer de
modo genérico, afirmar se foram sublimes, medíocres ou ruins. Simples-
mente não sei, não ouvi. Estava com a mente em outro lugar, imaginando
possíveis explicações para a ausência de minha Walquíria Wagneriana, de
tragédias a mal-entendidos, de esquecimento a perca de hora.
De nada adiantou meus esforços de imaginação diante da realidade da
ausência. Terminado o espetáculo, não aplaudi e fui o primeiro a deixar a
plateia. Caminhava pelo gramado do jardim, diante do teatro, desabotoan-

— 157 —
do as mangas da camisa, quando, atrás de mim, uma voz feminina falou:
“O cavalheiro vai sempre por aqui ou este reencontro trata-se de mero
acaso?”
Era ela. Soube antes mesmo de me virar. Os homens sempre sabem.
Estava a quatro metros de mim, iluminada por um feixe de luz circular,
vinda de um poste baixo, art decó, como em um palco. Usava tranças nos
cabelos. Fetiche, fetiche. Lembrei-me de Silvia Saint e tive a certeza de que
existem os tais “momentos mágicos”, que Sartre anunciou em A Náusea.
Aquele, sem dúvida, era um deles.
Antes que eu falasse qualquer coisa, ela adiantou-se e começou a expli-
car, confusamente, nosso pretenso desencontro. Desistiu no meio, perdi-
da nas palavras, pois suas hesitações e malabarismos narrativos tornavam
obvio o fato de que ela não quis me ver; mas em seguida, por algum moti-
vo, mudou de ideia. Em resposta, eu, simplesmente, ergui meu indicador,
esperando seu toque. A Walquíria Wagneriana entendeu que não preci-
sava explicar nada e aproximou-se, cumprimentando-me a nossa moda:
indicador em indicador. O que disse em seguida nunca saberei se foi ou
não extraído do final de Casablanca:
“Tenho certeza que teremos uma ótima amizade intelectual.”
Surpresa. O que significaria aquela frase? O que seria uma amizade
intelectual? Não, eu não sabia e não poderia saber. Tudo o que sabia era
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que Sartre e o Castor, sua cúmplice Simone, não tiveram uma amizade
intelectual. Abelardo e Heloísa tampouco. Nem mesmo Harry e Sally tive-
ram uma amizade intelectual. Quanto a mim, certamente, não alimenta-
ria uma inexplicável amizade intelectual com a quintessência da perfeição
feminina. Não e não, algo estava errado.
Ainda sentindo o leve toque de sua pele, mudei o tom do diálogo. Per-
guntei-lhe se conhecia a lenda do Zahir. Ela olhou-me incrédula, como
que indagando se eu estava brincando. Não estava. Como já mencionei,
citar literatura sempre me livrou da mudez nos momentos cruciais. Na-
quele instante especificamente citava, sem declarar a fonte, o onipresente
Borges, um dos contos de seu O Aleph, O Zahir. Mais uma narrativa onde
Borges era o Outro.
Impassível, como que ausente, como talvez dissesse Neruda, minha
Walquíria Wagneriana ouviu-me discursar sobre o Zahir, palavra que sig-
nifica evidente, visível em árabe, peça misteriosa da criação, um dos no-
venta e nove nomes de Deus, que de tempos em tempos surge na Terra,
nunca mais de um por vez, para não deixar que os seres humanos se es-
quecessem do universo, em formas variadas, que podem ir desde um tigre
— 158 —

a um astrolábio a uma moeda. Uma vez visto o Zahir é impossível esquecê


-lo, o que levou muitos ao enlouquecimento, assombrados por sua visão,
presente mesmo quando não está. Uma vez conhecido o Zahir, ele torna-
se parte de sua essência pessoal, amalgama-se de tal modo a sua memória,
a sua identidade que é possível afirmar que se torna você e você ele. Bela
metáfora, sem dúvida. Ideal para o discurso amoroso à Barthes. Ou eu
assim pensei. Eu, diante de uma pétrea Walquíria Wagneriana, olhando
em seus olhos, como prega as regras de Casanova, apresentei-a como meu
Zahir, meu inevitável, sublime e mortal Zahir. Entreguei meu espírito em
suas mãos.
A Walquíria Wagneriana permaneceu calada, imóvel, distante, fria, in-
tensamente escandinava, tão Ulrica quanto nunca, por longos e longos
segundos. Quando finalmente falou, o fez como se toda a autoridade do
mundo repousasse em sua cabeça. Disse:
“Eu não sei o que quero e você não pode saber por mim.”
Virou-se e foi embora.
Fiquei no jardim por muito tempo ainda, tentando compreender o que
havia se passado. O que, obviamente, era impossível. As razões femininas
estão muito além da compreensão pobre dos homens. Ou por outra, não
há razões, não há nenhum método. O coração feminino é o verdadeiro
coração das trevas. Tudo o que pude fazer foi imaginar que saindo dali, ela
foi banhar-se na Fontana di Trevi.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Neste dia quis muito ser Werther, para que pudesse verter uma lágri-
ma. Não pude.
Passou-se muito tempo sem que eu tivesse notícias dela, os verdadei-
ros acasos não me brindaram. Durante este período fiz-me homem, pus
barba na cara. Não a esqueci por certo. Não se esquece o Zahir. Tanto que,
como prometi, estando finalmente pronto para publicação, dediquei-lhe
meu livro. Um escritor não pode se entregar mais do que isto. Nele não
está impresso seu nome verdadeiro, mas o que lhe dei: “Walquíria Wagne-
riana”. O que ela é de fato.
Vezes sem fim, peguei-me lendo esta dedicatória. Abria o volume e,
quase sem perceber, quase que mecanicamente, procurava a página prati-
camente em branco, maculada pelas palavras: “Para minha Walquíria Wag-
neriana”. Parecia justificar as centenas que viriam depois.
Justamente na noite do lançamento de meu romance, em meio a um
salão repleto de homens magros de casaca e mulheres gordas com peles,
senti o delicado odor de um perfume conhecido. Parei o movimento da
caneta que autografava um exemplar de meu livro e, mesmo sem erguer a
cabeça, soube que era ela. Os homens sempre sabem.

— 159 —
Estava mais bela do que nunca. Os anos passados não tiraram seu ar
de menina, tampouco manchou seu título vitalício de guerreira Walquíria.
Usava as mesmas tranças do encontro no jardim. As diferenças eram su-
perficiais. Visíveis, talvez, no estilo das roupas, um tanto mais sóbrias, na
cor do esmalte, em tom neutro, mas permanecia sem batom. Ainda uma
imagem de perfeição fetichista.
Mas minha Walquíria Wagneriana estava em uma fila, cheia de pessoas
apressadas, preocupadas com suas casacas e suas peles, segurando livros
como se segura taças de champanhe, e, por isto, falamos pouco. Lembro-
me de cada palavra:
“Pode, por favor, autografar essa pequena pérola, cavalheiro?”
“Ofereço para quem?”
“Para Walquíria Wagneriana.”
“Para ‘minha’ Walquíria Wagneriana?!”
“Sim.”
“Isto já esta escrito.”
“É verdade.”
“Ocorreu-me uma bela poesia e...”
“Não. Só escreva de novo.”
Obedeci. Ia devolver-lhe o livro quando decidi incluir outro trecho,
abaixo do rabisco sub-reptício. Escrevi algo assim: “Vou lhe esperar. Leia
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O Amor nos Tempos do Cólera”. Entreguei-lhe o volume, olhando o fundo


de seus gelados olhos azuis, citando O’hara, dizendo que, enfim, amanhã
seria outro dia. Ela leu a dedicatória, sorriu e agradeceu:
“Obrigada.”
Repetida a primeira palavra que a ouvi pronunciar. Nada poderia asse-
melhar-se mais com uma despedida definitiva. Sobretudo porque, em se-
guida, ela afastou-se. Fiz menção de levantar-me e ir atrás dela, dizer-lhe
qualquer coisa, citar alguém, Borges, Neruda ou eu mesmo, agora podia
citar a mim mesmo. Não o fiz, olhei para a fila repleta de pessoas seguran-
do o livro que pertencia a ela e não o fiz.
Nunca mais vi minha Walquíria Wagneriana. Sonhei com ela todas as
noites, durante muitos anos. Não apenas dormindo. A maldição do Zahir,
a maldição de Ulrica.
Existiram outras mulheres? Sim, claro. Muitas. Muitas. Esperei à moda
de O Amor nos Tempos do Cólera. Da maior parte eu sequer guardei o nome.
Do restante, paguei para não saber.
Resta contar que, eventualmente, tornei-me um escritor recluso. Fe-
lizmente, obtive sucesso crítico e editorial suficiente para que as pessoas
— 160 —

considerassem meu exílio voluntário como algum tipo de excentricidade


de artista e acabaram me respeitando por isso. Meu afastamento do mun-
do ajudou a vender livros, tornou-se parte de minha humilde lenda. Meus
detratores costumam dizer que imito J. D. Salinger. Estão errados, nossos
motivos são diferentes. Não sou um amargurado. Pelo contrário. Evito,
sim, a incerteza do acaso. Apenas espero, espero no mesmo lugar.
Algum tempo atrás, concedi uma entrevista, depois de vários anos de
silêncio. Exigi que o jornal mandasse um estagiário. Não queria um jorna-
lista experiente manipulando minhas palavras. Atenderam meu pedido.
A jovem que bateu em minha porta estava visivelmente inibida, mas fez
bem o seu trabalho. Não duvido que a tenham amedrontado na redação,
dizendo-lhe que se encontraria com um casmurro.
As primeiras perguntas foram as mais tradicionais possíveis. Indagou
minha opinião sobre a literatura moderna, sobre os novos autores, sobre a
crise política, sobre a Copa do Mundo e coisas do tipo. Apenas ao final ela
ousou perguntar algo pessoal. Uma pergunta que ninguém nunca havia fei-
to e pela qual, admito, sempre esperei, embora não soubesse exatamente o
que responderia. Perguntou quem era a tal “Walquíria Wagneriana”, a quem
dediquei meu primeiro livro.
Consciente de que nem a repórter nem a média de seus leitores conhe-
ciam o mito nórdico, decidi ser didático. Fui até o aparelho de som e colo-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

quei a clássica gravação da abertura d’A Cavalgada das Walquírias, feita pela
Orquestra Sinfônica de Berlim, regida pelo maestro Stores Niverson. Pedi
que escutasse com toda atenção. A estagiária, creio, obedeceu. Talvez me
chamando mentalmente de louco.
Em seguida, expliquei-lhe a natureza fantástica das guerreiras Walquí-
rias: filhas imortais da deusa da morte do panteão escandinavo, Hela, as
Walquírias, montadas em cavalos alados, percorriam os campos de bata-
lha recolhendo as almas dos guerreiros valorosos e dignos, tombados em
combate. Conduzia-os ao Palácio de Valhala, onde os guerreiros passariam
à eternidade se fartando de carne e vinho e lutando entre si, em jogos de
guerra. O sonho de todo guerreiro viking era o de estar entre os escolhidos
das Walquírias. O meu também, confessei.
A aprendiz de repórter, sem entender muito bem o que eu dizia, sem
compreender que desnudava minha alma diante de si, perguntou se eu já
tinha visto algumas dessas, em suas palavras, “fantasmas”. Respondi que
sim, uma vez, muito tempo atrás, e aguardava seu retorno desde então.
Cada vez mais confusa, a pobre menina indagou se eu esperava que ela
aparecesse no momento de minha morte, para que me levasse ao tal pa-

— 161 —
lácio do vinho e da carne. Pensei um pouco antes de responder. Por fim,
disse que era justo que fosse desta forma: que em meus últimos instantes
de vida eu sussurrasse com minhas derradeiras forças seu nome, seu ver-
dadeiro nome, e que antes de partir definitivamente sentisse o toque leve
de nossos dedos indicadores.
A contramão da literatura
contemporânea em “Walquíria Wagneriana”
Carlos Augusto Silva

A literatura contemporânea, depois do aparecimento de Franz Kafka, Marcel


Proust e James Joyce, passou por um processo de reafirmação permanente — no
que diz respeito à prosa —, do que seriam os novos paradigmas da arte literária.
Após a experiência fragmentária e labiríntica do autor de O processo, da singular
viagem psicológica implementada pelo criador de Em busca do tempo perdido, e de
todas as subversões praticadas pelo mais valente dos escritores — parafraseando
Jorge Luís Borges —, o inventor de Ulisses, ficou difícil dizer como se deve narrar
no ocidente.
Diante dessa dificuldade, tudo passou a ser vigente e possível, exceto o cami-
nho de antes das composições limites que marcaram, de forma diferente, o início
do século XX. Podia-se tudo em narrativa, menos contar uma história. Os auto-
res que assim procediam passaram a receber as piores alcunhas, a serem tratados
— 162 —

como escritores de segunda ordem, como se a ausência de peripécias formais, de


inventividades e neologismos incorresse em uma inadequação ou praga anacrô-
nica formal que escamoteava esse autor a outra época que não dialogava com a
sua. Uma das raras exceções que se salvou dessa paranoia da modernidade e se
firmou como gênio indiscutível foi Thomas Mann.
Narrar, contar uma história, como fez Gustave Flaubert ou Émile Zola, Ma-
chado de Assis ou Fiódor Dostoievski, Miguel de Cervantes ou Leon Tolstói, pas-
sou a ser caminhar na direção contrária. Nesse sentido, o autor do conto “Wal-
quíria Wagneriana” é um autor na contramão da contemporaneidade.
Ademir Luiz é uma das figuras públicas representativas da intelectualidade
goiana, tanto por sua atuação como romancista e contista, como, especialmente,
por sua performance de alta qualidade na imprensa, atuando como ensaísta, crí-
tico de cinema e analista dos mais variados assuntos que dizem respeito à cultura
e sociedade, além ainda da sua atuação como pesquisador na área da História
Medieval, campo no qual possui o título de Doutor, atuando como professor da
Universidade Estadual de Goiás.
Se sua erudição variada e sólida o faz ser capaz de caminhar por diversos
setores do saber e atuar como homem de opinião e de ideias, sua lavra literária
também demonstra dialogar com o seu mundo, e se não o faz pela forma, como
querem os radicais da estética contemporânea, o faz pelo conteúdo, transitando
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

com leveza e competência da seara mais refinada da cultura erudita ao mais pop
dos elementos contemporâneos: o cinema.
Seu romance, Hirudo Medicinallis, de 2002, vencedor do Prêmio Cora Coralina,
demonstra toda a gama de informação acumuladas nas experiências acadêmicas,
cinematográficas e culturais que formam seu menu temático. Essa experiência
da variedade de temas ocorre também em Pequenas estórias da grande história, de
2004, volume de contos nos quais temos um preâmbulo de sua forma de ensaísta,
já que os contos que compõem o livro falam desde os Beatles a Ayrton Senna ou
religião. Essa qualidade pluralística e ensaística confirmou-se no seu livro Arquivo
de Heresias, de 2011.
O conto “Walquíria Wagneriana”, que compõe o conjunto do livro Pequenas
estórias da grande história, é uma peça de alta elegância estilística. Sua riqueza voca-
bular em momento algum esbarra no pedantismo, sendo altamente coerente com
o requinte do narrador, que é um professor, escritor e sujeito de gosto refinado
no que diz respeito às artes e às letras. Sua narrativa de amor estabelece diálogo
direto com a obra de Jorge Luís Borges, a ponto de a mulher contemplada quase
que platonicamente pela voz que nos conduz pelo texto receber a alcunha de Ul-

— 163 —
rica, mesmo nome usado por Borges em conto com temática parecida com a sua.
Mas há outro diálogo dentro do conto, este menos declarado, mas perceptível se o
lemos de maneira cuidadosa e conhecemos a obra de Thomas Mann. Não me refiro
exclusivamente às narrativas de Morte em Veneza e Tônio Kröger, mas a todo o es-
pírito que rege o estilo de narrar do grande alemão. Em um conto com a finalidade
clara de reproduzir a voz de um intelectual elitista e sofisticado, petrificado diante
da beleza, nada mais natural que o seu arcabouço de linguagem dentro da tradição
literária seja a figura de Mann.
Nos momentos em que o narrador fala da beleza da mulher, fica difícil não
nos lembrarmos dos momentos em que Mann faz isso, não apenas na famosa
novela adaptada para o cinema, como também na tetralogia de José e seus irmãos.
O tema de superfície desse conto de Ademir Luiz, grosso modo, é o amor,
mas o que lhe rodeia e dá sustentação é o problema do fugidio da beleza ine-
fável, intocável e inapreensível, e da relação do artista com essa beleza. Tan-
to é assim que por vários momentos o narrador entrega a uma competência
extrassensorial masculina a capacidade de perceber a presença de sua Ulrica:
“Os homem sempre sabem”, diz o narrador em mais de duas ocasiões, como
se esse ser de encanto extraordinário não carecesse de aparência física para
ser apreciado, existindo, antes e sobretudo, nas suas propriedades imateriais,
abstratas: cheiro, aura, sensação.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Durante toda a narrativa, mais que se colocar como homem encantado pela
beleza, o enredo nos faz perceber que “um escritor” se encanta com o belo. Parece-
nos que, caso fosse ele um “homem comum”, não poderia abstrair daquela fêmea
todas as nuances de graça que consegue captar, como se ele estivesse mais do que
percebendo a perfeição em questão, mas sim criando-a em sua mente artística,
refinada, erudita, emprestando-lhe uma densidade que não sabemos se de fato ela
tem. Não se trata de dizer, pífia e facilmente, que o narrador se ilude, engana-se,
fantasia o real. Não. Ele acresce ao real, com sua erudição e sensibilidade, que ja-
mais deixa de perceber o caminho pelo qual sua psicologia o está levando — sendo
por exemplo capaz de reconhecer que em outros tempos criticava e não imaginava
como homens de espírito deixaram-se enredar por desditas de amor — e dialoga
com essa situação de modo a extrair dela um elemento estético.
Esse é o esteticismo manniano que nos parece tão evidente no conto de Ade-
mir Luiz: a vida se torna pretexto para a arte, e a beleza, se é conseguida ou
não, pouco importa, já que ela lhe rendeu a dedicatória poética de seu primeiro
romance. Ulrica, de contemplada, torna-se matéria para a arte, e sendo o conto
narrado pelo próprio narrador-personagem, a maior serventia de sua musa passa
— 164 —

a ser a própria narrativa que se apresenta.


O final da trama é emblemático no sentido de evidenciar os rumos da peça na
direção de traçar um perfil de escritor: todo o cenário que cerca o narrador não é
mais voltado a qualquer pátina romântica ou de flerte, mas sim de realização en-
quanto artista: é a entrevista, o lançamento, são as pessoas que estão presentes
no lançamento e se vestem como a alta aristocracia, a fila de pessoas que aguarda
o autógrafo. Até onde não podemos supor que essa experiência fracassada — se
é que se pode dizer isso — não influenciou a carreira desse escritor, interferindo
em suas obras futuras, já que definiu seu destino de casmurro e eremita?
Não é um conto sobre um amor que não deu certo, mas sobre a relação de um
escritor com a beleza. De certa forma há ali uma poiesis, um modo de fazer, como
se esta narrativa deixasse clara que, sendo o artista aquele que inventa, alimenta
e enriquece a beleza, somente se sacrificando de possuí-la em realidade, poderá
alimentá-la no plano superior das ideias.

Referências:
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção — o desenvolvimento de um conceito crítico. São Paulo:
Revista USP, 2002.
Carlos Fernando Magalhães

a primeira coisa ao ver

parar na banca de jornais, série divulgada entre tantos pormenores, letras


e signos, talvez o melhor fosse aceitar o dia como lhe foi dado; em direção
às estrelas, ao dia de um todo averiguado, incansável na maioria de suas
tentativas. O fato desnudo, mergulhado na profundidade onde as coisas
acontecem, a vida rotineira surgia-lhe a cada manhã com ou sem a banca
de jornais, tanto se a morte de Marilyn Monroe ou Mao, um acontecimen-
to e outro, ao nível da balança, era um ajustar-se a cada sentimento do
que havia de mais profundo ou superficial: simplesmente acontecia uma

— 165 —
manhã. Da escada, a rua corria-lhe na gradação de cores e dos muros, as
crianças na calçada, a banca de jornais na esquina e, se me lembraria a
memória, o amarelo na árvore era um outro exemplo. Aguardado o movi-
mento das manchetes, o olho corria rápido, pois, sintetizar-se era assumir
a forma do novo dia, a claridade superpondo-se daguerreótipo, estava ali.
Sem querer hás de suspender tua visita, ignorar o que foi dito ou escri-
to, magnífica decisão, pois forçosamente notarás aquele olhar. Não podes
pensar que a forma adquire em anatomia ou suspeita; e se de novo dia
(como tu hás de chamar de novo ou moderno ou qualquer coisa que queres
nomear-te) a única surpresa, no fundo, é redescoberta de tudo isto que
se dispõe em tua frente e, principalmente, aquele olhar. Verás como ele
se fixa e decompõe a coisa vista, o organismo torturado. O olhar do que
vês, a face tranquila que te observa em frente, o fio negro e repartido, a
barba, assim destacados através de jornais e revistas. Sabes quanto seria a
rapidez, a fugacidade melhor, tensão, maluquices ou coisas assim, daquele
olhar. Se se deparasse somente com a casa, a primeira verdade de ter sido
casa ou qualquer flor, algum quintal escondido (quem sabe o porão?) ou
mesmo o jornal que olhas condignamente, vês como a figura sustenta o
teu olhar (agora podes considerá-lo como teu) desenha na casa o outro
lado da nova perspectiva de onde te achas colocado: o olhar que sustentas
e o que apreendes, o tornar-se próprio de seu ser de estar, mesmo ainda
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

não sendo. Tudo isso era um preparo lento e minucioso: tornar-se o olhar.
O ser do mundo, assim, pensarás. O corpo se desloca em sua direção, a
casa penetra nesta atitude que convém a tudo, a passividade de qualquer
um mesmo objeto. Talvez sua vida o fosse, à sua maneira. Mas o olhar que
verias, despretensioso e jovem, não poderá mais restituí-lo. Pensar assim,
livros e revistas, deformando-se, minuto e sofrimentos que talvez não lhe
chegariam a dizer nada, pelo menos naquele fim de manhã: a guerra lon-
gínqua, a obstinação da existência lhe exigindo a cada passo, a moeda,
o grão vivo do seu suor e de sua fome, apagados pelo olhar que te joga
no rosto aquele olhar. O corpo apaga-lo-á perdido nas roupas, a moda no
tempo, a curvatura dos ombros ou a saliência do rosto na penumbra das
árvores: o olhar. Mas levantarás a cabeça e novos transeuntes se cruzam
e todos lêem a mesma notícia surrada, condensada entre a possibilidade
do acontecer — o olhar jovem (por tua ligeira distração) haverá de sumir,
assim: dois toques de dedos. Recortados na penumbra e suas árvores, o
mover das pessoas e carros interceptam-lhes a visão e tu procuras o olhar
(não seria bem os olhos, mas a maneira do olho), à brevidade da sensação
entre o retido e o derivado. E tu te propões a procurá-lo, sempre o dia, a
— 166 —

hora mesma ao fim de uma banca de esquina. Procurar o olho ou a fron-


te, a dúvida de tantos outros olhares, os amigos, a desordem em que sua
vida ficaria, por causa de uma insignificância feita aquela, mudar de rua
ou nome, esconder-se em tudo, a mesma outra rua, os ônibus ignorados,
jornais, tão assim: deixara crescer a barba e, às vezes, perdia muito tempo
ao olhar o espelho, ao se confundir com a imagem ou visão do que fora
dado. Em casa, foram notadas pequenas diferenças. Primeiro, a contradi-
ção do espírito, o realismo que pedirás, tal qual o mundo, a volta à coisa
primitiva. Se a significação do que lhe achava em volta, o olhar do jovem
colocado entre as revistas, mesmo peculiar, deu-lhe uma relação do que
não conseguia escapar. Começaram as viagens, as longas rotas percorridas
em cada manhã, a banca de jornais na esquina, a casa defronte sem a figu-
ra e seu olhar destacados na penumbra das árvores; era silêncio no ruído
dos carros e, certamente, pouco adiantaria a procura. Percorrera lugares,
didática pessoal e conhecida e, por vezes, insone e irritado,os longos ca-
belos ou o fio espesso de sua barba denunciavam-lhe uma nova forma de
ser. Dir-se-ia a fonte da vida procurada, o pavoroso olhar humano e, de-
sagregado, a lenta restituição dos fatos, a família discutindo escondida
sua transformação. De tanto, a procura e o cansaço. Das inúmeras vezes
do espelho, o pincel ensaboado a manchar-te a barba escura, integras-te
na profundidade do olhar que não verás e, sem condição, os vasos azuis
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

na face lateral do pescoço te cedem na integração primitiva de um mesmo


sangue e desse olhar, a decisiva apreensão do que fora a vida toda: o golpe
com que levas (agora decidido), o irado olhar apagando a imagem e tudo é
sangue, sem o grito que acompanha o próprio dia, a família batendo à por-
ta, o desespero que agora te cobre entre revistas e notícias, a monstruosa
perda deste olhar, este mesmo.

— 167 —
Exterior e interior em
“a primeira coisa ao ver”
Ademir Luiz

Ao longo das últimas décadas, Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães,


nascido na Bahia em 1940, destacou-se como um verdadeiro scholar no cenário
cultural goiano. Formado em medicina pela Universidade Federal de Goiás, de-
dicou-se a construção de uma obra artística rica e multifacetada. Escreveu po-
esia com Matéria-prima (1968), Eros (1986), Quarks (1994) e Perau (2004). Em
dramaturgia publicou O jogos dos reis (1978) e Lampião (2002). Aventurou-se no
romance com Via Viagem (1970) e no conto com Daniel (1976). Dirigiu filmes e
montagens teatrais, foi ator e desenhista, produzir inúmeros ensaios e críticas.
Escreveu diversos volumes da história da arte em Goiás.
Um exemplo prático de sua notável erudição está na edição crítica que reali-
zou da comédia em um ato O Cometa, de Joaquim Sebastião de Bastos, possivel-
— 168 —

mente o primeiro exemplar do teatro de costumes em Goiás, datada de 1880. De


quatorze páginas de O Cometa, Carlos Fernando Magalhães extraiu um volume
de 636 laudas de análise filológica, antropológica, sociológica, histórica etc. Um
trabalho hercúleo de pesquisa que caracteriza a personalidade do autor.
Esforços semelhantes eram despendidos na produção de sua obra em pro-
sa. Embora tenha produzido um único romance e um único volume de contos,
ambos são imprescindíveis por demarcarem novos territórios estéticos e apon-
tar novas direções possíveis para a literatura goiana moderna, que ressignificava
suas relações com o Regionalismo na década de 1970. Carlos Fernando Maga-
lhães foi o principal difusor do movimento Práxis em Goiás. Segundo Moema
de Castro e Silva Olival, “Via Viagem é um romance que flagra os dois lados da
realidade, o exterior e o interior, em síntese dialética, instaurando técnica capaz
de revelar um novo processo de narrar: o processo práxis de compor”.
É essa mesma complexa relação entre exterior e interior que encontramos no
conto “a primeira coisa ao ver”, integrante do livro Daniel. Para o escritor Hele-
no Godoy, a quem o conto é dedicado, a prosa de Carlos Fernando Magalhães é
marcada pela “agudeza dialética de suas proposições, seu rompimento extremo
com um tradicionalismo ficcional esclerosado, a sua urgência em correr o risco
de uma nova tomada de posição”. Esse rompimento de convenções, em forma e
conteúdo, é explicitado a partir da organização gráfica da página. O monólogo
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

interior em prosa poética dialoga com a composição em bloco, a opção em não


abrir parágrafo, o título em letras minúsculas e o início sem maiúscula.
A narrativa constrói-se a partir da diferença entre o macro e o micro, o longe
e o perto, o inerte e o movimento. Estabelece um cenário: uma banca de jornal
de esquina. Sugere personagens: a própria voz narrativa é o primeiro, em seguida
o homem que trabalha na banca e os inúmeros passantes semifantasmagóricos,
que vão e vêm em fluxo continuo. A partir disso, tudo é imaginação. As revistas,
pôsteres e textos pendurados na banca, na forma de signos de múltiplos signi-
ficados, alimentam-na indefinidamente. Imagens que valem por mil palavras e
palavras que formam mil imagens. Esse trabalho de Carlos Fernando Magalhães
encaixa-se na descrição de Wendel Santos de que “há o conto que, de início, re-
vela um mínimo suficiente para despertar a curiosidade leitora e, em seguida,
numa ordem de crescimento constante, encobre seu objeto até o ponto em que é
necessário outra vez revelá-lo”.
O título do conto, “a primeira coisa ao ver”, é uma chave interpretativa. Olhar
não é o mesmo que ver. Podemos olhar mecanicamente para algo, sem, contudo,
ver. É o que muitas vezes ocorre quando passamos repetidamente pelo mesmo

— 169 —
caminho, tornando-nos insensíveis ao cenário e suas pequenas variações. “A vida
rotineira surgia-lhe a cada manhã com ou sem a banca de jornais, tanto se a mor-
te de Marilyn Monroe ou Mao, um acontecimento e outro, ao nível da balança,
era um ajustar-se a cada sentimento do que havia de mais profundo ou super-
ficial: simplesmente acontecia uma manhã”. A escolha de figuras tão dispares
como Marilyn Monroe e Mao Tse Tung para representar a mesmice massacran-
te do cotidiano não é aleatória. O artista plástico Andy Warhol, em sua célebre
coleção de pinturas de ícones pop, igualou seus apelos simbólicos ao da garrafa
da Coca-cola e do Mickey Mouse. Embora tanto a atriz norte-americana quanto
o político chinês sejam, virtualmente, personalidades poderosas, suas fotos na
capa de uma revista, expostas para venda a baixo custo, representam tão somen-
te o simulacro dessa realidade, no sentido definido por Deleuze. São produtos.
Alienados pela alucinante variedade visual da metrópole moderna, raramen-
te algo chama nossa atenção. Porém, quando menos se espera “verás como ele se
fixa e decompõe a coisa vista, o organismo torturado. O olhar do que vês, a face
tranquila que te observa em frente, o fio negro e repartido, a barba, assim des-
tacados através de jornais e revistas”. O homem que trabalha na banca de jornal
observa àqueles que passam, através das frestas entre os produtos pendurados.
Alguém, um dos transeuntes, notado pela voz narrativa, olha de volta. A cultura,
quase sempre a baixa cultura, nesse caso, flutua entre eles. Um de passagem, o
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

outro fixo. O desespero é perceptível. Todo um universo de notícias os cercam,


mas a situação de passagem de um e a imobilidade do outro, transforma-as em
mero refugo cultural que acaba por lhes negar seus quinze minutos de fama de
direito. Se conhecimento é poder, excesso de informação inútil é prisão.
Embora pouco atraente, o trágico-patético daquela imobilidade encanta o
transeunte, que se esforça para transformar-se num simulacro de seu objeto de
curiosidade/desejo: “deixara crescer a barba e, às vezes, perdia muito tempo ao
olhar o espelho, ao se confundir com a imagem ou visão do que fora dado”. Foi
a primeira vez que olhou e viu e não queria perder esse sentimento diferente,
mesmo que os resultados fossem terríveis. E foram. Incapaz de suportar o peso
de viver fora da caverna de Platão, mata-se: “o irado olhar apagando a imagem
e tudo é sangue, sem o grito que acompanha o próprio dia, a família batendo à
porta, o desespero que agora te cobre entre revistas e notícias, a monstruosa per-
da deste olhar, este mesmo”. Não é mesmo incomum encontrarmos nas páginas
policiais de certos pasquins fotos de cadáveres encobertos por folhas de jornais.
Em quantos desses casos esses frágeis cobertores de papel estiveram igualmente
no início e no fim da tragédia?
— 170 —

Referências:

MAGALHÃES, Carlos Fernando Filgueiras de. O Cometa — edição crítica. Goiânia: Instituto Casa Brasil de
Cultura, 2007.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica — panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998.
SANTOS, Wendel. Crítica — uma ciência da literatura. Goiânia: Editora da UFG, 1983.
Antônio José de Moura

Magrinha

A BOLA ROLA

Há seis dias o general Zarastru assumiu o governo da República, abo-


cando a parte de leão no acordo previamente selado com o diminuto e
misterioso comando da ditadura de revezamento de generais no poder.
De óculos escuros montados no narigão de pêra, durante a posse Za-
rastru presidiu solenidades e festejos castrenses, sempre escondido atrás
de vidros à prova de bala e protegido por aparato de segurança digno do

— 171 —
bunker de todos os ditadores, caso eles se agrupassem para formar um
único centro de decisão na Terra. Cercava-o quantidade quase inverossí-
mil de homens e de armas, capaz de guardar a cordilheira dos Andes e aba-
ter até mesmo um inseto que sem sua permissão quisesse voar sobre ela.
No domingo posterior à assunção do casca-grossa que detivera a che-
fia do exército, aproveitamos o telão recém-instalado no Cascatinha Bar
Show Dançante para permanecermos em relativo sossego e por algum
tempo juntos sob o pretexto de assistir à que, dependendo do resultado,
seria a partida final do campeonato carioca de futebol. Vasco e Flamengo,
o clássico dos milhões. A maioria tinha televisão em casa, mas delibera-
mos nos reunir em torno da 24 polegadas do Cascatinha porque ela nos
permitiria, antes e após o jogo, conversar de assuntos prazerosos — pei-
xes, mulheres, cardumes de uns, escassez de outras, caça, imponderabili-
dades climáticas — e confraternizar, apesar das emoções dentro e fora de
nós exasperadas, tão exasperadas quanto as cigarras de um poeta de que
esqueci o nome. Refiro-me às emoções soltas em campo, nos pés dos arti-
lheiros e no berro da torcida, cujo contágio e pressão mantínhamos como
panela a custo tampada, enquanto, à guisa de água, deitávamos cerveja
na fervura, fosse rubro-negra ou cruzmaltina. No grupo, felizmente não
havia nenhum pinguço, somente homem de conceito e respeito.
Na tela e no Maracanã tremendo de gritos e de gente, um jogo de ar-
repiar. Final: 1 a 1 — resultado que transferiu a decisão do campeonato
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

para o próximo domingo. E que acabou nos deixando satisfeitos, pois viví-
amos naqueles dias entorpecidos de medo, atormentados por imprevistos
e sobressaltos, de modo que um Vasco e Flamengo caía do céu como uma
espécie de comoção compensadora e talvez providencial para os nossos
nervos exauridos.
O Cascatinha Bar Show Dançante fica defronte à Praia da Farofa, um
nome que lhe veio a calhar, devido encontrar-se ela ulteriormente infesta-
da de turistas, do cocô e da promiscuidade dos turistas. Com o tempo, de
tal sorte as águas ali foram afetadas que mudaram de cor e ainda se veem
obrigadas a aguentar a impostura dos jet-skis e da cáfila de imbecis pen-
durados em telefones celulares e outras engenhocas eletrônicas. Naquela
época, porém, nem a fedentina decidira-se a empregar radicalmente — o
que ocorreria daí a meses — todas as armas na guerra bacteriológica e de
extermínio contra a saúde e o olfato, nem o ar se achava tão emporcalha-
do. Do Cascatinha, construído sobre uma elevação, descortinava-se o in-
tenso movimento do porto de Aruanã, já então meio frenético na tempo-
rada, mas algo calmo, quase tranquilo, nos mais períodos do ano. A vista
se fazia divinamente magnífica. Tanto que, debruçada de uma das janelas
— 172 —

num cair de tarde, a imaginação se deixava levar rio abaixo ou rio acima,
até se perder na linha do horizonte, a crepitar no incêndio de crisântemos
e begônias de pura substância etérea, celestial — um incrível, verdadeiro
espetáculo de cores projetadas do paraíso original, antes da queda do ho-
mem: o pôr-do-sol do Araguaia. Também o nascer do astro-rei não diferia
do sol-posto, exceto que em vez do lento mergulho parecia levantar-se
devagarinho e no entanto poderosamente das águas, noutra metáfora de
luz ampliando-se em bola de fogo colossal — quiçá o olho de Deus.
Antes de transladarem o lixo e a loucura do que julgam progresso para
cá, representado inclusive por boates e discotecas que enchem o ar e as
madrugadas de relinchos à laia de música, a cidade oferecia lazer noturno
natural, sadio, que não degradava a paisagem nem o sono das gaivotas.
Aruanã era a réplica do Éden. Sem tirar nem pôr.
O Cascatinha Bar Show Dançante tinha muito de bar e nada de show
dançante, salvo de tempos em tempos um bailezinho-família no salão
alugado a preço simbólico por ranchos de rapazes e moças determinados
a angariar fundos para algum evento de peso nas efemérides da cidade,
incluindo as religiosas. Pertencia a Arióbulo Trinchinchelo, alcunhado
o Jacaré. Entre os naturais da terra, ninguém compreendia por que lhe
pespegaram e Arióbulo sustentava o sáurio apelido, que assentaria me-
lhor em sua grandalhona cara-metade, a senhora Adrianola. De outro
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

lado, bem consideradas as coisas, nenhum mortal teria peito para chamar
a jacaroa de jacaroa, mesmo tratando-se visivelmente de uma espécie de
arurá gigante de saia, braba como dez leoas, de traseiro que nem dois bra-
ços longos dariam conta de abarcar, as narinas salientes, convulsionárias,
resfolegantes, ruidosas, e os bugalhos do globo ocular lembrando limões
galegos, e dos graúdos, dando a impressão de plantados no cocuruto e
não perto do septo nasal, se vistos no lusco-fusco da noite ou da manhã.
Pondo de parte os dentes preênseis, fortes como palhetas de aço e cortan-
tes feito facas. Enfim, uma crocodilona, uma calangona d’água das mais
ferozes e temíveis.
Virago? Mulher-macho?
Já excogitaram que sim, porém sem um fiapo de prova a favor. Con-
tudo, tirante este aspecto, saltava aos olhos que Adrianola ilicitamente
se livrara da alcunha aderida ao marido, ao passo que nele cairia — justo
como dois dedos no nariz — o apelido de Camaleão; além de poltrão, ou
da impressão de poltronice que emitia, percebia-se que o mimetismo do
mocorongo moleirão derivava das oscilações de caráter da distinta: de ma-
nhã, quando ela amanhecia com a cara fresca das hortaliças no meio das

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quais se metia, regando, estercando, exterminando lagartas e outras pra-
gas, Arióbulo Trinchinchelo se disfarçava em verde, contemplando-a com
olhos esgazeados; de tarde, geralmente, Arióbulo punha-se todo cinzento,
imitando o humor de folha seca da patroa. Por conseguinte, noutras ho-
ras, a cada hora, o paspalhão assumia a inevitável cor correspondente às
disposições e tonalidades de espírito da robustona, inclusive a cor negra,
logo que a noite caía ou quando a alma dela se fingia de enlutada.
Arióbulo Trinchinchelo merecia a coroa de imperador das criaturas
que desembarcam no mundo com a finalidade única de não incomoda-
rem nem se verem incomodadas, pois tudo o que pediram a Deus foi um
lugar em que se encostar, uma árvore com muita sombra a ignorar-lhes
a presença, não ligando a mínima se se contorcem um pouquinho para
apanhar qualquer restiazinha de sol refratado dos galhos. E com a cabeça
tomada de gorda e lassa aspiração: que à noite podem com tato escalar-
lhe o tronco, trepar nela, em busca da forquilha na qual vão se enganchar.
Dona Adrianola era a árvore que abrigava Arióbulo Trinchinchelo, o —
sob protestos — Jacaré. E ela, com efeito, o deixava em paz a um canto,
pela recíproca razão de que ele não a estorvava em seu objetivo feminino,
embora vigoroso, de mandar.
Não obstante o jeitão, não obstante as exterioridades de jacaroa, ou
machona, que infundia medo despistado em respeito ao redor, sobre-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

tudo nas crianças e nos adventícios, dona Adrianola encarava vários


aspectos da existência com brandura, e às vezes os envolvia em afeto,
conquanto fossem afeto e brandura de tal maneira ásperos por fora que
invariavelmente permaneciam impercebidos aos olhos que a observas-
sem apressados.
E posto que falar sem pensar é atirar sem apontar, falemos com cuida-
do e devagar: sem pôr a mão no fogo, porque as aparências não se cansam
de iludir, no fundo dona Adrianola nada tinha de lésbica, mulher-homem
ou fanchona.
Durona até dizer chega pros demais, Adrianola se tomou de amores
— um amor terno e derretido de mãe — pela sobrinha-neta Mágora, a
Magrinha.
Mágora, a Magrinha, nasceu aqui, à beira do Araguaia, fez o primário
no antigo Grupo Escolar Modelo e depois se mandou pra capital, onde
estudou tanto quanto um doutor de Salamanca. Ou mais. E como quem
muito lê, treslê, desde o ginásio Mágora, a Magrinha, principiou a mani-
festar ideias esquisitas, arauta de utopias, porta-voz de verdades e coisas
tiradas a proféticas — destoantes; Gogó de Ouro, eis o epíteto que lhe
— 174 —

aderira à identidade como o sol à flor, o verde à água do mar; os jornais a


chamavam assim, exaltando-lhe os méritos nas artes oratórias, nas quais
Mágora ganhara inúmeros concursos e largos espaços na mídia. Achava
língua para tudo, e tão bonitas palavras. Aliás, as palavras lhe acudiam
com uma presteza de súditas, uma obediência carola, parecia que Mágo-
ra, a Magrinha, nem precisava chamá-las à cuca, visto se encontrarem ali,
prontas a sair pela boca, ordenadas, ordeirinhas, cada qual em seu lugar,
encaixando-se umas nas outras, como flores num buquê. Daí por que em
fulgurações de metáforas as frases cascateavam em sua voz idênticas a
gorgolões de água que se derrama em cachoeira a compor cenário que não
parece deste mundo, refratando o arco-íris; e de fato ditas por ela possuí-
am cores, as palavras, cores fortes e harmonia, e extraordinário vigor. Em
resumo: poesia.
Deus, vê-la discursando em praça pública equivalia a ver uma aurora
ou pôr-de-sol no Araguaia, impossível descrever tal fenômeno de emoção
irisada.
E aí, na volúpia da empolgação, ela se transfigurava, e tarari, tererê,
que queremos pão e justiça, que a terra é de quem trabalha e não de quem
a domina, e liberdade, e oportunidades, e igualdade de direitos para todos,
e não sei mais o quê. Ainda que versando matéria de vasta controvérsia, a
maioria dela se encantava.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Singularmente meiga e fragilzinha, nestes momentos Mágora, a Ma-


grinha, se agigantava, feita de seiva e calor. Tinha olhos e cabelos casta-
nhos claros, rosto ovalado e lindo, mamilos que se adivinhavam durinhos
e róseos sob a blusa encarnada, um delta-de-vênus que por nunca exposto
acendia sonhos de posse e de imaginação pictórica, tez de um branco con-
ducente ao diáfano, corpo bem-proporcionado e belo, apesar de carecer de
um acrescimozinho de suculência. E lábios nem demasiado finos nem ex-
cessivamente carnudos, os quais se abriam em sorrisos que qualquer um
gostaria de sequestrar e guardar como tesouro ou talismã. Dela os homens
se agradavam, pois nascera pra agradar.
Tornada insigne em altos estudos e altíssimas virtudes, Mágora, a Ma-
grinha, comandava a liga dos universitários, na capital da província.
Mal os generais instauraram a tirania de farda, que engordou à farta os
lambe-botas civis, Mágora, a Magrinha, viu-se dentro de um torvelinho,
privada até à morte de um minuto de sossego. Primeiro, prenderam-na e
a conduziram a uma fortaleza militar distante, a Fortaleza de Lages, em
pleno Atlântico, mas decorridos seis meses de muita lábia e artimanhas,
ela com alguns companheiros, e outrossim com a cumplicidade do chefe

— 175 —
da guarda e de dois barqueiros, conseguiu render as sentinelas e pisar fu-
gitiva em terra firme, no Rio de Janeiro.
No curso de seis anos, percorreu labirintos, socada em ocos de perigos
clandestinos, sempre procurada pela Organização dos Vigilantes de Mil
Olhos (OVMO), a rede de espionagem criada em 1964 pelo braço armado
e tentacular do regime. Por milagre, e porventura outros pretextos que
produzem os milagres, oculta no breu de certa noite de setembro, enquan-
to os de Mil Olhos a supunham no estrangeiro, Mágora, a Magrinha, veio
ter novamente a essas plagas, metida em disfarces de transformismo de
atriz. A tia Adrianola a recebeu e a enlapou em locais sobremaneira igno-
tos, invioláveis, julgando-a trancadinha a sete chaves, a ponto de afiança
-la invisível. Céus! Que chinelada, que rasteira o destino lhe aplicou! Pois
no quarto ano de esconderijo araguaiano, Mágora, a Magrinha, caiu nas
unhas dos opressores, por artes de um infame delator, alcunhado ulterior-
mente de Judas Dedo-Duro. A Judas Dedo-Duro coube sina em essência
igual à do avô dele Iscariotes, o que ao enforcar-se assistiu ao derrama-
mento das próprias entranhas e cujas trinta moedas da traição serviram
apenas para comprar campo de sangue, consoante o evangelista e a predi-
ção do profeta Jeremias. Ignora-se se morrendo ou não de remorso, mas
decerto já picado de remorso, e desprezado de todos, num beco escuro
Judas Dedo-Duro amanheceu certo dia promovido a defunto, e de forma
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

ignominiosa: a boca cheia de formiga, a cabeça espatifada por paulada se-


melhante em efeito a dez cachamorradas de feroz borduna xavante. Há
simulacros de conjecturas rebuçando a identidade do que desferiu o golpe
desta morte em sumo grau odienta e talvez necessária. Sabemos de tudo
e conhecemos muitíssimo bem o homem que a executou e a mulher que
nos mínimos detalhes a premeditou: o mesmo homem e a mesma mulher
que em breve mandariam também de presente ao porco sujo do inferno o
chefe de beleguins que entregara o pecúlio da delação ao imundo e execra-
do Dedo-Duro.
Mágora, a Magrinha, morreu por excesso de suplícios — ou descuido,
sofisma a que davam outro nome, “erro técnico”, coisa comum em tal qua-
dra de terror.
Mágora, a Magrinha, que os algozes preferiam chamar de subversiva,
padeceu e sobreviveu às várias modalidades de tortura institucionali-
zadas, começando pelo pau-de-arara, em que põem a vítima — joelhos
dobrados, abraçados e amarrados — dependurada de uma barra de ferro
entre dois cavaletes, submetendo-a a espancamentos e mais formas com-
plementares de interrogatório que não prescindem nem da eletricidade
— 176 —

nem de sevícias primariamente animalescas. Repetidas vezes, Mágora,


a Magrinha, sobreviveu ao limite máximo do pau-de-arara — três horas
—, findo o qual é impossível evitar a morte, o que pasmou inclusive os
seviciadores. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às descargas elétricas da
máquina de choque chamada triplicemente de pimentinha, manivela e
perereca, de cujos terminais se alongam fios ligados ao corpo da vítima,
inventada, segundo se sabe, pela Gestapo, no apogeu do nazismo, e apri-
morada nesses trópicos.
Mágora, a Magrinha, sobreviveu à polé ou roldana, entre contorções
e gritos de dor que lembravam os inimigos da Inquisição na Idade Média:
pés amarrados por corda que passa pela polia presa ao teto, a bela nudez
maltratada suspensa do chão, de cabeça para baixo, espancada, chutada,
queimada com pontas de cigarros, retalhada a gilete e navalha, e ainda
por cima bombardeada pelos disparos elétricos da máquina de numerosos
volts. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às torturas químicas, ao pentotal
sódico, o soro da verdade, às torturas em cuja composição entram o éter e
o amoníaco, ao torniquete que é o círculo de folha de aço ajustado ao crâ-
nio mediante mecanismo de roscas e parafusos, os quais, à medida que são
apertados, produzem dilaceração encefálica e afundamento que obrigam
o globo ocular a saltar para fora. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à cadei-
ra-do-dragão, poltrona tosca de madeira revestida de metal eletrificado,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

em que se viu amarrada despida inúmeras vezes, por correias, enquanto,


ao elevar o volume da voz através do dispositivo ligado aos eletrodos e
apodado por gracejo carcereiro de “microfone dos shows” — o das per-
guntas de respostas impossíveis —, o torturador aumentava a voltagem
das descargas da energia doida por eletrocutar a prisioneira. Mágora, a
Magrinha, sobreviveu ao inferno de ruídos e gelidez de nevasca no negro
cubículo dito geladeira, onde os encarcerados enlouquecem sem arbitrar
ou sequer se situar no tempo. Um invento de tortura, este, dos ingleses,
conquanto bastante aperfeiçoado pelos milicos do Brasil, para desfrute
e deleite dos pinochets do continente. Mágora, a Magrinha, sobreviveu
ao telefone das manzorras em concha de gorilas que lhe arrebentaram os
tímpanos. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à palmatória, aos chicotes, so-
breviveu aos pedaços de madeira, às cordas molhadas, aos cassetetes de
borracha recheados com cabo de aço — os infames e infamantes “pênis-
de-boi” — que lhe introduziram na vagina, no ânus e em outras partes.
Mágora, a Magrinha, sobreviveu a mil formas de tortura, incluindo velas
e cigarros acesos para a pele dela apagar, sobreviveu aos socos e pontapés,
às agulhas e aos estiletes penetrando e cortando fundo a carne. Mágora, a

— 177 —
Magrinha, sobreviveu à infinidade de métodos inomináveis de esfolamen-
to e fraturas, físicas e morais.
No entanto, Mágora, a Magrinha, cujo calvário por ineptas as pala-
vras se recusam a descrever —, Mágora, a Magrinha, veio entregar a alma
ao Criador exatamente na mais primária das práticas de suplício — a do
afogamento. No poço — o nosso poço, ou o que pelo menos deveria ser o
nosso poço. Adicionaram-lhe pedras aos pés. Amarrada à corda de náilon
deslizando por roldana pendente de um galho de árvore a sombrear o rio
— remanso de afluente do Berocan-Araguaia —, calcula-se que durante
horas imergiam e içavam-na das águas já no último limite do fôlego, com
o fito de que confessasse o que eles inventaram para ela confessar; logo,
o inconfessável. Decerto — e isso é dedução, talvez lógica irrefutável —
Mágora, a Magrinha, pedia a morte, suplicava pela morte, desde que lhe
pusesse fim aos padecimentos sem termo. Contudo, quase morta de sofri-
mento, a vida de Mágora, a Magrinha, relutava em abandoná-la.
Num tempo contado em séculos, descontrolados, ensandecidos, os
verdugos continuaram infligindo a Mágora, a Magrinha, as imersões te-
merárias, os naufrágios compulsórios. Até que, Cristo, vupt! quando a
içaram, numa dessas imersões homicidas, para nova rodada de perguntas,
deram-se conta de que o sopro vital cessara naquela estampa de menina
nua. Machucada e nua. Mágora agora não passava de massa neutra, im-
prestável: um corpo todo empanzinamento hidráulico e hematomas, um
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

corpo que vagamente lembrava a inquilina que o habitara.


Conforme a praxe em imprevistos do gênero, simularam e propalaram
um suicídio a tal ponto inverossímil que nem os jornais sob censura acha-
ram jeito de veicular a versão oficial.
De modo solertemente análogo ao empregado na prisão, os esbirros
converteram na calada da noite a pequena igreja da fé líquida das beatas
ribeirinhas em cenário do autocídio forjado e levado a efeito de maneira
tão ou mais absurda que a utilizada para a expedição e conhecimento pú-
blico do atestado de óbito ultrajante e inverídico.
De crocodilo ou autêntica, ambas inconcebíveis em matrona de têm-
pera assim de ferro, dona Adrianola jamais deixara escapar uma lágrima.
A mulher que nunca chora — oxalá esta lhe calhasse como definição exa-
tíssima.
Pois ao recolher o cadáver desfigurado da sobrinha-neta — e ela o
buscou sozinha, junto ao altar, apesar de ter a cidade em peso ao redor,
solidária —, não escondeu o pranto que os olhos vertiam. Talvez fossem
lágrimas de uma existência inteira, represadas só Deus sabe por quê. Ao
romper os primeiros passos, com os frágeis despojos da suicida de fabrica-
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ção nos braços, cingindo-os como se acalentasse uma criancinha de peito,


a mulherona parou três vezes e por três vezes volveu o rosto a fim de enca-
rar a Virgem e o Cristo crucificado nos olhos; tombaram-lhe dois pares de
cordas grossas dos cantos das órbitas, que intensificaram o choro regular
e agora solto, enquanto os lá¬bios mussitaram algo que somente ela e a
consciência divina lograram captar e entender.
Ao transpor o umbral da igrejinha e ganhar a rua, o marido de um salto
colocou-se a seu lado, executando-lhe doravante as ordens com uma pres-
teza e vigor de que ninguém antes o julgaria capaz.
— O castigo vem a pé. Mas fatalmente chega. E, quando chegar, não
restará um canalha para contar o caso do outro canalha — tia Adrianola
rugiu, após o enterro.
Sem poder esperar pelo padre, que nos acudia de raro em raro em de-
sobriga, o féretro desceu à sepultura debaixo de nossas rezas e cânticos. A
melodia que mais subiu às alturas, porque mal a encerrávamos alguma voz
a puxava de novo, foi Segura na Mão de Deus:
Se as águas do mar da vida
quiserem te afogar,
segura na mão de Deus e vai.
Se as tristezas desta vida
quiserem te sufocar,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

segura na mão de Deus e vai.


Segura na mão de Deus,
segura na mão de Deus,
pois ela te sustentará.
Não temas, segue adiante
e não olhes para trás:
segura na mão de Deus e vai.
Ao final, de mamando a caducando, a multidão chorava, dando-se as
mãos e cantando
Segura na mão de Deus e vai.
Ao sairmos da missa de sétimo dia, que a nosso chamado padre Zezi-
nho de bom grado oficiou, Arióbulo Trinchinchelo, tão diferente do Ja-
caré que conhecêramos no Cascatinha Bar Show Dançante, levou a mão
à garganta. Tomamos este gesto ritualístico de quem decepa o pescoço,
à maneira maçônica, como a chancela do carrasco à sentença exarada e
inelutável.

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FESTA DE 7º DIA

De modo que ainda nos encontrávamos no bar de Arióbulo e Adrianola


— uns, renitentes, abordando lances do clássico dos milhões; os demais
conversando de pescaria e outros leves assuntos — quando o homem che-
gou perguntando por um tal Anterino. Dissemos que não sabíamos, mas o
homem não se conformava. Sobre a sua real identidade, porém, tínhamos
certeza — uma certeza que o homem ignorava.
Apesar do tempo e dos diferentes disfarces, manifestamente inúteis,
que agora ostentava, apesar da ausência da antiga careca e dos remotos
bigodes grisalhos, o que ante olhos comuns fariam dele um perfeito des-
conhecido, não havia dúvida de que nos defrontávamos com o chefe dos
capturadores que supliciaram e remeteram pro outro mundo Mágora, a
Magrinha.
— Quero que me informem onde está o Anterino.
— Que Anterino, meu? Aqui não mora nenhum Anterino.
— O Anterino, um que tem olho de vidro. Mora nessa rua — o homem
insistiu.
— Nessa rua, não — alguém protestou.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Nessa rua, sim — o homem falou, limpando a boca com as costas


da mão.
— Aqui não mora nem Anterino nem João Quirino — outro compa-
nheiro contestou. — Conheço todo mundo e posso garantir pro senhor
que não tem nenhum Anterino na rua.
— Fazendo gracinha, é? Se falei que mora, é porque mora; tão queren-
do acoitar? — o presumido forasteiro gritou; e bateu o copo de dose no
balcão.
Fregueses distanciados assustaram-se e dois que jogavam sinuca, co-
mentando o empate que adiara a decisão dos cariocas, quiseram ir embora.
— Não vai sair ninguém, sem minha ordem — disse o homem, sacan-
do ao mesmo tempo dois revólveres. — Fechem as portas.
Avaliei a situação, evitando no entanto encarar o homem que pro-
curava por Anterino. Olhava-o de banda e, quando sentia-lhe os olhos a
queimarem-me o rosto, disfarçava com o pé, de um jeito bobo, esfregando
qualquer coisa invisível no chão. Mas quando o homem olhava para o ou-
tro lado, examinava-o com um rabo de olho. Não conheço hipnotizadores,
contudo penso que o homem era um deles. E os dois revólveres em suas
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mãos também brilhavam.


— Fila indiana. Agora, contra a parede! — o homem ordenou, os dedos
ágeis brincando com as armas, como se fora caubói.
Obedecemos maquinalmente e houve quem exagerasse, ajoelhando-se
com as mãos na nuca, o que parece tê-lo irritado ainda mais.
— Não sei o que faço que não apago logo vocês — ganiu, acertando
uma cusparada na eletrola.
Deu um tempo e voltou a lembrar-se do Anterino.
— Vão ou não vão dizer onde está o jovem? — gritou, colocando com o
polegar um dos revólveres no descanso e apontando-o para nós.
Um silêncio de casa sem ninguém.
O falso desconhecido tirou o dedo do gatilho e depositou a arma no
balcão.
Sacou a latinha do bolso e conversou em código.
— Câmbio! — concluiu.
Cinco minutos depois, homens armados de escopeta punham as por-
tas no chão. Varejaram tudo. Nem uma agulha teria escapado à revista.
— Concluída com êxito, Grande Chefe, a Operação Viver-em-Ordem!
— o homem soprou na latinha.
— Câmbio!
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

E, virando-se, advertiu que se alguém ali abrisse o bico, para insinuar


que eles andaram atrás do Anterino, iria parar no poço.
O poço, ora, o poço! Por alguma razão, o homem cometera um erro —
e talvez não somente um “erro técnico”, para usar a nomenclatura deles —
ao mencionar o poço no qual, além de outras vítimas, há anos imolaram
Mágora, a Magrinha, porque, não sendo adivinha nem mentirosa, ela não
pudera fornecer detalhes, pretendidos pelos desalmados, acerca de certo
e inexistente Comando Revolucionário de Resgate do Ideário Trotskista,
em cuja direção fictícia igualmente a encastelaram.
De qualquer modo, por mais perdido no tempo e sossegado no rio, era
de causar arrepios para que servira o poço.
— Ou então será esfolado vivo — o homem avisou, antes de ir-se com
os outros, lembrando que o que acabavam de fazer era coisa banal, sem
importância: mero exercício de rotina, para manter os rapazes em forma.
Antes, porém, de eles se irem, de um ponto do corredor que dava para
a copa, dona Adrianola olhava com fixidez absurda o homem da latinha
falante. Quando ele se retirou com os outros e suas ameaças, ela escarrou
satisfeita e chamou o marido para uma conferência. Os dois sumiram de

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nossas vistas, lá pros fundos, na cozinha.
Repressão política e vingança
pessoal em “Magrinha”
Ademir Luiz

Ao longo de décadas de fazer literário, produzindo uma obra múltipla, que


abarca desde poesia até novelas picarescas, o jornalista e escritor Antônio José
de Moura, nascido em Mambaí (GO), em 1944, estabeleceu-se como um dos
principais analistas do regime militar brasileiro, um de seus temas recorrentes.
Essa faceta de sua produção não pode ser tachada meramente de literatura enga-
jada. Não emula ou procura reinventar o ultrapassado realismo socialista. Longe
disso. Evita enfocar a política partidária em si, mas as pessoas que de algum
modo se envolveram com ela. Seu interesse é o confronto, sempre desigual, entre
indivíduo e poder estabelecido.
Não apenas durante o período que se sucedeu ao golpe de 1964, como visto
no romance Dias de Fogo (1983), mas de maneira mais ampla. Tanto que um de
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seus principais trabalhos, Sete Léguas de Paraíso (1989), narra uma versão misti-
ficadora da resistência messiânica de Santa Dica, uma espécie de Jacobina goia-
na, contra os coronéis da Velha República. De um lado pessoas que acreditavam
em anjos. Do outro lado, pessoas que acreditavam na ordem, no progresso, na
tradição, na família e na propriedade. Ambos armados e falando em nome da fé.
Numa situação dessa complexidade, Moura não se rende a simplificações. Mais
do que dos meandros da política, trata do animal político. O que ele pode fazer,
mesmo quando não sabe em nome do quê.
Encontramos essa dicotomia no conto “Magrinha”, publicado em 2003 no
livro Mulheres do Rio. No começo da narrativa somos apresentados a Arióbulo
Trinchinchelo, apelidado Jacaré, e sua robusta e enfezada esposa Adrianola, pro-
prietários do Cascatinha Bar Show Dançante, um familiar estabelecimento co-
mercial em Aruanã, à beira do Rio Araguaia. A sobrinha-neta do casal, uma jovem
chamada Mágora, apelidada Magrinha, vai estudar na capital e retorna cheia de
“ideias esquisitas, arauta de utopias”. Corriam os Anos de Chumbo e, fatalmente,
ela é denunciada por um Judas Dedo-Duro genético. É presa, torturada e morta.
Tempos depois, os responsáveis por seu martírio são assassinados. Os responsá-
veis foram os pacatos comerciantes Seu Jacaré e Dona Adrianola. E a vida con-
tinua. A primeira vista trata-se de uma história sobre repressão política, mas,
numa observação mais cuidadosa, conclui-se que o tema central é a vingança.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

É quase certo que Mágora engrossou a fileira dos jovens estudantes que se
envolveram na Guerrilha do Araguaia. Estrategicamente, nada melhor do que
uma nativa para fazer guerra de guerrilha. Entretanto, assim como no evento
real, os camponeses pouco se interessaram. Da mesma forma que a imensa maio-
ria dos brasileiros, os frequentadores do Cascatinha Bar Show Dançante não pa-
reciam preocupados com a situação política do Brasil. O fato de viverem numa
ditadura era algo distante para sua percepção imediata do cotidiano. No máximo
assistiam pela TV a posse de outro general qualquer, enquanto esperavam por
mais uma dose do ópio do povo na forma de um Vasco contra Flamengo.
Apenas quando a estudada Mágora voltou da capital bradando que “tarari,
tererê, que queremos pão e justiça, que a terra é de quem trabalha e não de quem
a domina, e liberdade, e oportunidades, e igualdade de direitos para todos, e não
sei mais o quê” é que começaram a prestar alguma atenção. Nem tanto no que
ela falava, mas em suas poucas e belas carnes e no seu carisma de moça “sin-
gularmente meiga e fragilzinha”. A Rosa Luxemburgo de Aruanã “nascera para
agradar”. Notemos que se o nome Mágora evoca a ágora da polis grega, local de
debates e disputas retóricas, onde se exercia a cidadania, na ágora do Araguaia a

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jovem revolucionária pregava para o vento.
Moura trata com sutil ironia as supostas habilidades oratórias e intelectu-
ais de Mágora. Pregando para uma plateia composta por pessoas muito simples,
aquela estudante recém-formada lhes pareceria muito articulada e erudita, um
“doutor de Salamanca”, mistura de Lênin e Iara, a Mãe D’água. Não inflamava os
ribeirinhos o suficiente para tirá-los da inércia, mas eles gostavam de ouvir as
palavras “poéticas” da bacharel com anel no dedo. Essa visão irônica da obsessão
brasileira pelo bacharelismo, observada pelo historiador Sérgio Buarque de Ho-
landa, perpassa todo o estilo empregado no conto.
Normalmente, a escrita de Moura é enxuta, ágil, sem acessos; mas em “Ma-
grinha”, para espelhar a retórica barroca da protagonista, ele adotou uma forma-
lidade jocosa, com alguma semelhança com o que José Cândido de Carvalho fez
no romance O Coronel e o Lobisomem. É exemplar a apresentação do casal de tios
-avós de Magrinha: “Entre os naturais da terra, ninguém compreendia por que
lhe pespegavam e Arióbulo sustentava o sáurio apelido, que assentaria melhor
em sua grandalhona cara-metade, a senhora Adrianola”.
Apesar de lhe ser simpático, Moura não poupa sua personagem título. De-
pois de aplicar-lhe diversas técnicas de tortura, fruto de intensa pesquisa sobre o
tema, mata-a de modo humilhante, “na mais primária das práticas de suplício”.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Afoga uma mulher do rio. Mais do que ser irônico, ou exercitar justiça poética,
Moura lembra ao leitor que de moça brejeira, criada na beira d’água, Mágora se
metamorfoseou numa mulher da cidade grande, envolvida com política estudan-
til, luta armada, cultura acadêmica, marxismo, trotskismo etc. Tornou-se, para
usar uma imagem óbvia, um peixe fora d’água. Sabe-se o destino deles. Alguns
desaprendem a nadar.
Apesar de tudo, para seus tios-avos, Mágora ainda era a muito querida me-
nina Magrinha; talvez criada por eles, talvez filha de Boto (não se fala sobre pai
e mãe). Não podiam tolerar o destino ingrato da infeliz. Fecharam o bar durante
meses e planejaram uma sequência de crimes perfeitos, eliminando um por um
seus algozes, independente de contatos, fadas e patentes. Motivações políticas
não entraram na equação. Não vingavam uma correligionária, vingavam uma
parenta. Mostraram que muito mais perigosos do que estudantes-guerrilheiros,
motivados por complexas ideologias políticos, são os ribeirinhos com sede de
sangue, defendendo suas famílias. Sertanejos de beira d’água, são fortes antes
de tudo. Motivados, independentes de bandeiras, transformam-se em forças da
natureza.
— 184 —

Referências:

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.
MOURA, Antônio José de. Mulheres do Rio. São Paulo: Global, 2004.
MOURA, Antônio José de. Dias de fogo. São Paulo: Global, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
Moema de Castro e Silva Olival

A sombra infortunada

— Imagem cotidiana na agenda de nossos dias. E por isso, incrivel-


mente desfigurada de sua dimensão. Um mulher, sentada ao meio fio,
sombrinha aberta mas inclinada para proteger algo coberto à sua frente,
estendido no asfalto.
Busquei a manchete que a noticiava. Sem grande interesse, afinal nos-
sos jornais, televisão, rádios, fazem dos acidentes de trânsito a sua maté-
ria preferida, na tentativa, até agora, inútil de evitá-los .Por isso, vistas ou
ouvidas por leitores, expectadores, de maneira quase automática. Parece

— 185 —
que até pelos responsáveis por esta calamidade, infelizmente!
Mas, naquela, havia uma aura que me tocou. Mulher de costas, senta-
da no meio fio, uma sombrinha que recobria pela metade algo coberto à
sua frente. Que estranha força impregnava aquela cena!...A sombra saía de
sua cabeça, para proteger o que se estendia aos seus pés .
Quanta força tinha aquela imagem.!...
E a nota, objetiva e fria: — “Mulher protege o corpo de seu filho, mor-
to em acidente de moto, à espera de providências..”.
— Não transparecia, ali, nenhum gesto consciente de espera, de dor, de
expectativas. O que dominava a cena era o impacto atordoado de uma mãe
em transe. Seu raciocínio e sua sensibilidade pareciam anestesiados.
Mais tarde, quando este sentimento se racionalizasse, certamente pensaria:
trânsito tresloucado!..Onde a sinalização, onde os guardas? Falta de habili-
tação, de consciência cívica dos utilitários dessa coqueluche do momento?
— Pressa para quê? — Sempre ensinava a seus filhos que o relógio da
vida devia ser acionado com os badalos da prudência, da percepção aguda
do momento, do bom senso.
— Pressa, tensão, barbeiragem — dele ou do outro —, morte..
— E a notícia continuava: “Paulo, funcionário da firma Nuto, teve sua
moto abalroada pelo chevette cinza que tentou ultrapassagem. O motoris-
ta fugiu do flagrante”.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— E, então, aquela mãe se lembrará, infortunadamente, daquela ma-


nhã—Ah, se tivéssemos o dom de segurar ou afastar a memória —carras-
ca, e só alimentar a memória afetiva, construtiva?
— E reviu Paulo, apressado sair naquela manhã luminosa... Estudante
de Letras ,— dedicado às suas pesquisas,— Paulo ainda era poeta, con-
dição que lhe facilitava a percepção emocional da vida.. Bem posicionado
no seu emprego, recebera ordem de seu chefe, Sr Arlindo, de, logo cedo,
entregar determinado material, importante, para dr Bretas, presidente da
firma concorrente.
— Não chegue fora do horário, hem Paulo. Sim senhor, sim senhor!..
No seu vai-e-vem, estudante, funcionário cumpria zelosamente suas
obrigações , mas muitas vezes, se pegava fora da realidade, sintonizado
com as suas angústias e sonhos... Atribuía-os, não tanto ao agito do corpo,
mas ao agito da alma. Buscava, na verdade — às vezes com deliberação,
às vezes, angustiado — seus mitos interiores, que lhe dariam força para
recuperar o seu tempo “perdido”, ou o seu tempo sonhado...
Hoje, teria aula de Literatura e de Filosofia. As que mais lhe interessa-
vam. O professor Lima, doutor em Teoria Literária, estimulava os questio-
namentos, espaço em que Paulo se distinguia. Realçava a visão da crítica
— 186 —

moderna, relevando o papel fundamental das matérias interdisciplinares


— filosofia, sociologia, história psicologia, entre elas — abrindo, para o
leitor, os horizontes da obra, esboçados numa perspectiva , crítica, univer-
sal e ontológica e dentro dos preceitos estético — literários que a caracte-
rizavam como obra literária.
Queria expor, na classe, quase formando que era, suas pesquisas sobre
Grande Sertão veredas — de Guimarães Rosa — e discutir a visão dada
aos personagens como Ser/ser.
De suas leituras, concluíra que um caminho fértil para seu projeto,
seria “um aprofundamento na linguagem, e a possibilidade de se criar
um metatexto estético, filológico”, ao mesmo tempo que uma releitura
de interpretação estético — metafísica, discutindo as relações entre os
dois processos.
Entregara a pesquisa ao seu professor que pretendia discuti-lo na sua
aula de hoje. Estava cheio de expectativa. Era um dos bolsistas mais esfor-
çados da turma.
Mas tinha uma missão a cumprir. Levar, no prazo certo, a encomenda
de seu chefe.
Vai com Deus, meu filho, fora a despedida carinhosa de sua mãe. Orgu-
lho e amor pelo filho era o que não lhe faltava.
— E ali estava ela, perdida, alma ensombreada, sentada no meio fio,
sombrinha aberta para proteger do sol o corpo exangue de Paulo, seu
primogênito.
Crítica literária e amor materno em
“A sombra infortunada”
Carlos Augusto Silva

Impossível ler qualquer texto de Moema de Castro e Silva Olival sem se repor-
tar à sua honrosa trajetória de intelectual erudita, que a fez símbolo — juntamente
com Wendel Santos — da crítica literária no Estado de Goiás. Mesmo diante de um
livro de contos, percebemos que se trata de alguém que por todo o seu itinerário es-
teve ligada à atividade intelectual, acadêmica e, mais do que isso, assumindo uma
postura de militante da arte, especialmente da literatura, quando se dispôs, em seu
trabalho, a falar, com propriedade magistral, dos escritores de Goiás.
Sua obra Espaço da crítica, em três tomos, é uma verdadeira aula de estilo e
elegância da prática crítica. Tem uma dicção muito particular a produção de Mo-
ema, e esta dicção aparece também em seus contos que agora vem, para benefício
dos leitores, enriquecer a carta de escritores de narrativas curtas do nosso Esta-

— 187 —
do, já tão bem representada por nomes como os de Heleno Godoy, Miguel Jorge
e Edival Lourenço, André de Leones, Wesley Peres e Ademir Luiz.
Há uma autenticidade emblemática na obra de Moema, uma dicção própria,
um estilo. Se toda arte deve estar ligada a uma tradição, sendo com o objetivo de
negá-la ou continuá-la, este contos de Moema livro está confortável.
Certa vez escrevi um artigo sobre o romance de George Eliot, Middlelmarch,
presente em meu livro Opção Crítica, no qual comecei falando a respeito da ques-
tão que foi para a crítica literária saber e dissertar a respeito da literatura feita
por mulheres. Há um estilo feminino na literatura? Existe uma forma de narrar
ou versejar que seja característica da mulher? Essa pergunta já se fez reboar pe-
las palavras de Virgínia Woolf em seu livro Um teto todo seu, mas ainda se faz
pertinente. Fiz essa pergunta no artigo sobre George Eliot — uma mulher que
assinava suas obras com nome de homem — porque por um tempo se disse dela
que escrevia como um homem.
Ora, o que é escrever como um homem? Conferir traços e estruturas narra-
tivas mais sólidas? Criar personagens mais densos e carregados de ação menos
que de subjetividade? Creio que seriam levianas tais afirmações, tanto a respeito
da literatura feita por homens, como na feita por mulheres. Se existe algo de fe-
minino na arte de narrar ou versejar está longe de serem essas características, e
isso é facilmente provado por muitas escritoras.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Os contos de Moema são, sobretudo, bem escritos, cuidadosos, demonstran-


do um domínio muito sólido de técnica narrativa. São de mulheres? Não sei. Mas
são de uma intelectual. Isso eu posso afirmar sem receio, tateando pelo incerto
terreno das certezas. Seus temas (como poderia ser diferente?) estão arraigados
na sua trajetória acadêmica. Se é esperado, também não poderia ser mais ousado.
Um crítico que se atreve a escrever literatura está saindo da condição de juiz
para a de réu. Tomo emprestada essa metáfora do julgamento de ninguém menos
que Edmund Wilson, um dos maiores críticos de todos os tempos. Para ele, um
crítico é um juiz, e uma obra, um réu que aguarda julgamento. Moema, depois
de por tantos anos, e com maestria, ser uma juíza da suprema corte, senta-se no
banco daqueles que serão julgados, e o faz como sempre fez, com estilo, sabedo-
ria e cautela daqueles que tem responsabilidade pelo que escreve. No caso dela,
uma responsabilidade maior ainda, pois além de crítica, trata-se de uma perso-
nalidade singular, respeitada e com uma linhagem difícil de carregar.
Moema de Castro e Silva Olival é uma das figuras mais lendárias e emblemá-
ticas da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, é também filha de
Colemar Natal e Silva, fundador da UFG e seu primeiro reitor, neta de Eurídice
— 188 —

Natal e Silva, fundadora, em 1904, da Academia de Letras de Goiás, que foi refun-
dada por seu pai, Colemar, na década de 30, em Goiânia. Moema, com a publicação
desses escritos, carrega consigo toda a sua história de produção e mais, a tradição
da cultura no Estado de Goiás. Por isso é mesmo um ato de bravura imensa que se
lance nesta seara.
O conto que veremos aqui chama-se “A sombra infortunada”. Nele a mulher,
a intelectual, o ser humano se apresentam de forma despida e corajosa. Numa
referência quase bandeiriana, o acionar desta narrativa é uma notícia de jornal.
Uma mãe, sentada no meio fio, protege o corpo do filho estirado no chão depois
de um atropelamento.
Numa estratégia narrativa que optou pelo início em finis res, o narrador volta
à vida do personagem que foi vitimado. Com sensibilidade e delicadeza comoven-
tes a sua trajetória é apresentada. Sujeito simples, honesto, trabalhador e mes-
mo assim dedicado às coisas da universidade, Paulo era poeta. Isso é significati-
vo: o poeta é, no imaginário coletivo, a pessoa que observa a vida com cuidado,
dando ao despercebido pela maioria das pessoas valor de significação maior. É o
que rompe o tecido do conceitual e estabelece nova forma de conceber a realidade
inventando-a e acrescentando a ela uma significação nova. Esse era Paulo. Dedi-
cado aos estudos de literatura e de filosofia, tinha como paixão o romance maior
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, citado mais de uma vez em todo
o livro de Moema. O narrador faz questão de apresentar as nuanças da pesquisa
que Paulo pretende empreender a respeito do romance de Guimarães Rosa, e se
engana quem pensa que ele o faz por necessidade de demonstrar conhecimento a
respeito do tema. A ideia é mostrar que, para além das elucubrações, da erudição,
do conhecimento, da arte e da ciência, a morte nos espera, estreita, rasteira, de
mãos dadas com o acaso que sempre nos surpreende.
Essa dicotomia entre a vida erudita e simples aparece em todo o conto, e a
morte é apenas a culminância dessa demonstração contrastante. São apresen-
tados o vai e vem do personagem, o cotidiano ordinário a todos nós e o ser do
sujeito que é poeta tendo que lidar com ele nos remete a muitos momentos do
livro de Heleno Godoy, A ordem da inscrição, no qual a situação do poeta nesses
dias modernos é posta em questão.
Fica para o final da estória a confirmação de que o maior vínculo de Paulo
com a vida simples e cotidiana se dava também em sua porção mais poética e
simples: a do amor de sua mãe por ele. Ela, que lhe era tão comum na ordem na-
tural e ordinal dos dias, é também a que mais sente e o protege, vivo ou morto,

— 189 —
com um guarda-chuva, morto, estirado na rua, do sol que aplaca a todos nós,
individualizando-o em sua proteção maternal, singularizando-o com delicado
amor poético de mãe.

Referências:

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.


FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção — o desenvolvimento de um conceito crítico. São Paulo:
Revista USP, 2002.
Flávio Paranhos

Doença

Mais ou menos na mesma época em que dei pra rabiscar uns poemas,
comecei a sentir um comichão, uma coceira gostosa na mão direita. Na-
quela região que, ao se esticar o polegar, transforma-se em um pequeno
poço que chamam “tabaqueira anatômica”. Em pouco tempo, virou ferida.
Quanto mais coçava, mais feria. Não cicatrizava. Experimentei uns cre-
mes e pomadas, só que não adiantou e nem parou por aí. Logo me apare-
ceu uma outra lesão roxo-avermelhada na parte externa de meu tornozelo
direito. Descamava, era uma nojeira. Depois outra, e outra e mais outra,

— 191 —
até que fiquei parecendo um tratado de dermatologia. Asqueroso. Manda-
ram-me então para uma clínica na Suíça, famosa por curar o que não tinha
cura. Foi lá que conheci Franz. Impossível deixar de notá-lo, com seu físico
miúdo, pálido, magro, dava dó. Não que eu próprio também não inspirasse
tal sentimento, que vinha sempre depois das náuseas. Mas ele só inspira-
va isso mesmo: dó. Encontramo-nos pela primeira vez no grande jardim
da clínica, passado um mês de minha chegada. Eu ainda não havia coloca-
do minha cara para fora, com medo da reação dos outros internos, apesar
de tranquilizado pelos doutores. O clima estava ameno, o sol sem nuvens
para atrapalhar, os Alpes longe, com sua neve no topo. Franz escrevia algo
em um caderninho puído. Aproximei-me:
— Olá.
Ele levantou os olhos para ver quem o interrompia.
— Olá.
— Posso me sentar ao seu lado?
— Fique à vontade.
— O que escreve?
Depositou o lápis sobre o caderno e deu de ombros.
— Nada de especial. Coisas.
— Coisas?
— Para me distrair.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Estiquei o pescoço e, apesar da caligrafia nada fácil, reconheci:


— É alemão?
Ele esboçou um sorriso.
— Sou tcheco.
— Mas escreve em alemão.
— Hábito.
— Sei…
Calei-me. Nada mais me ocorria. Franz também não ajudava, não era
de muitas palavras. Percebendo minha hesitação, voltou a escrever. Com-
preendi que dava por terminada nossa conversa. Resignei-me e me afastei
para deixá-lo só com sua distração.
No dia seguinte, em novo passeio pelo jardim, lá estava ele escrevendo.
Arrisquei me aproximar.
— Olá. Escrevendo, como sempre?
— Sim.
— Incomodo se me sentar ao seu lado?
— Em absoluto.
Sentei-me e esperei alguns minutos, na esperança de que ele puxasse
— 192 —

conversa. Nada. Permanecia absorto no que escrevia. Então, tomei a


iniciativa:
— Curioso como você não pergunta o que são minhas chagas.
Franz olhou para mim como se pela primeira vez percebesse meu esta-
do lastimável, mas não pareceu se importar.
— O que são suas chagas?
— Não sei.
— O que dizem os médicos?
— Parece que também não fazem a menor ideia.
— Não me surpreende.
— Por quê? Acha que são ruins? Ouvi dizer que são os melhores.
— Não existe tal coisa.
— O quê?
— Médicos melhores, chagas piores.
— Desculpe, mas acho que não o compreendo.
— Médicos são todos iguais. Chagas também.
— Inclusive as minhas?
Mostrei meu antebraço, como um doloroso exemplo.
— Inclusive as suas.
Ele se calou, olhando na direção dos Alpes. Esperei que continuasse,
mas retornou aos seus escritos. Desta vez não o importunei. Precisava di-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

gerir o que dissera. Ainda não sabia se se tratava de um consolo ou maldi-


ção. Se os médicos são todos iguais, o que estava fazendo eu ali, torrando
o dinheiro de minha família na Suíça? E se minhas lesões asquerosas de
pele são como qualquer outra, por que davam mais nojo?
— Você está sangrando — ele me avisou.
Ao me coçar, distraidamente, arranquei uma casquinha das lesões — a
primeira que surgiu, da tabaqueira anatômica — e sangrava. Constran-
gido, pedi desculpas, perguntando em seguida, para desviar sua atenção:
— E você, o que tem?
— Tísica.
— A doença dos escritores.
— E dos apaixonados.
— Apaixonados? — perguntei, surpreso. — Você não parece um.
— É verdade. Não pareço. Talvez eu não seja mesmo um apaixonado.
Com isso ele voltou a escrever. Estava mais uma vez encerrada a conver-
sa. Não tive coragem de confessar que eu também rabiscava alguma coisa.
Não sei por que, mas aquele indivíduo franzino me intimidava bastante.
Passaram-se alguns dias sem que eu pudesse sair do quarto. Minas le-

— 193 —
sões pioravam. Já estava para ficar louco vendo aquelas coisas — pareciam
ter vida própria — me comerem, enquanto eu arriscava uns poemas e ou-
tros arroubos freneticamente. Alimentavam-se de minha pele, de minha
carne, de mim. Como poderiam ser todas as chagas iguais? Franz estava
errado. As minhas eram muito piores.
Quando finalmente obtive permissão para tomar um ar fresco no jar-
dim, todo enrolado por gazes e ataduras, não foi sem uma pontada de
angústia que o fiz. Temia não encontrar o novo amigo. Para meu alívio,
entretanto, lá estava ele, no mesmo lugar, escrevendo como sempre.
— Olá — ele me cumprimentou.
— Olá — eu retribuí, satisfeito por ter sido dele a iniciativa.
— Você sumiu.
— Pois é.
— Está melhor?
— Na verdade não. Os médicos é que acharam melhor eu sair um pouco.
— Isso é bom.
Franz se calou e já ia voltar a escrever. Não deixei:
— E você, está melhorando?
— Acho que sim. Tenho escrito bastante.
— Você é escritor?
— Sou funcionário público.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Eu sou advogado.
— Deve ter uma excelente clientela.
— Por que diz isso?
— Parece-me.
— Consegue ver através de minhas feridas?
Não pude conter um riso nervoso que delatava minha auto-piedade. De
fato, eu tinha uma grande e fiel clientela. Até que… Bem, até que aquelas
feridas começaram a tomar o meu corpo e quase todos se afastaram. Con-
tei isso a ele, mencionando inclusive a curiosa coincidência com minha
crescente compulsão em escrever poemas. Franz não pareceu surpreso:
— Sei. Somos todos doentes. Por isso estamos aqui. Padecemos do
mesmo mal.
— Certo. São todas iguais, as chagas, não é mesmo? — Eu o fiz lembrar
de sua enigmática opinião, esperançoso de que a explicasse melhor.
— Padecemos todos do mesmo mal — ele repetiu. — A mediocridade.
Ou o pavor dela.
Clareza, definitivamente, não era seu forte. Insisti:
— Como assim?
— 194 —

— Sou um funcionário público medíocre. Sou medíocre. Eu me encaixo


perfeitamente no perfil do que chamam por aí de perdedor.
— Ora, não diga isso.
— Tenho um físico ridículo, não sou atraente. Um emprego idiota. Vivo
adoecendo…
— Franz... — tentei protestar.
— Por outro lado, essas coisas tornam-se pequenas enquanto escrevo…
Aproveitei a deixa:
— E sobre o que escreve?
— Coisas sem importância para os outros, para a maioria das pessoas,
preocupadas em continuarem a ser medíocres, mas que para mim são o
oxigênio que respiro. Talvez por isso eu seja tísico.
Rindo-se da própria ironia, teve um acesso horrível de tosse, que o fez
manchar a grama com seu escarro repleto de rajas de sangue. Senti alívio.
Senti-me igual. Quem sabe ele não tinha mesmo razão, pensei. Franz to-
mou novo fôlego e continuou:
— Tenho pesadelos todas as noites — e dias também, pois estou sem-
pre sonhando — que me consomem tanto quanto suas chagas, pode acre-
ditar. Labirintos sem saídas e, o que é pior, sem minotauros. Não consigo
enxergar o inimigo, mas sei que ele existe e é muito mais forte do que eu.
— Quem?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Não sei. Todos e ninguém. Sinto uma permanente asfixia que quan-
do tento pôr para fora, sai como um espesso catarro sanguinolento, para,
em seguida, voltar a me asfixiar.
— É que você é tísico — eu lembrei.
Ele sorriu, condescendente, e continuou:
— Não há saída. Para onde quer que se vire, há sempre uma curva e
outro caminho que leva à outra curva e outro caminho. Não há salvação.
— Ainda assim você escreve…
— Preciso expulsar o catarro que me incomoda, mesmo que ele conti-
nue sempre e mais.
— E eu?
Franz me fitou melancolicamente.
— Você, meu amigo, eu não sei. É possível que suas feridas o consu-
mam. É possível que não.
Aparentando extremo cansaço — como era frágil o meu amigo — Franz
voltou a escrever e decretou, mais uma vez, o fim de nosso diálogo. Se eu
soubesse que seria o último, teria insistido. Infelizmente, nunca mais o vi.
Sumiu de seu habitual ponto no jardim. Perguntei a uma das enfermeiras

— 195 —
o que havia acontecido e ela me informou, consternada, que o paciente
viera a falecer no próprio leito.
— Dizem que o coitado morreu na mesma noite em que queimou todos
aqueles cadernos que guardava.
Não acreditei.
— Ele queimou os cadernos?
— Dizem que sim. Pilhas e pilhas jogadas na lareira de seu quarto. Vi-
rou tudo cinza.
— Não sobrou nada?
— Nada.
Aquilo não era possível. Franz não tinha esse direito. Fui tomado por
uma vontade incrível de me coçar até fazer um furo em minha mão. Ou de
mim próprio um imenso buraco.
— Ah, sim. — A enfermeira já ia saindo, quando se lembrou de algo.
— O que é — perguntei aflito, na esperança de que ela dissesse que
havia restado pelo menos um caderno.
— Sobrou um.
— Um caderno? Sobrou um caderno?
— Não um inteiro, mas pedaços de um deles. O senhor quer que eu
traga?
— Por favor.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Mal pude me conter. Enquanto esperava, rabiscava qualquer coisa como


um autômato, e a tinta da caneta misturava-se com o sangue das feridas,
agora abertas todas. Quando enfim chegou a funcionária carregando com
cuidado o pedaço meio esfarelado de papel, eu era todo uma chaga. Aproxi-
mou-se com nojo, atirou o caderno sobre a cama e saiu. Cheguei a conside-
rar não abri-lo, deixar que Franz permanecesse para mim apenas como uma
vaga lembrança. Sem revelações finais. Definitivas. Entretanto, sucumbi à
curiosidade. Como um cachorro faminto que lambe sofregamente as miga-
lhas que lhe atiram ao chão, pintei com ansiedade extática as páginas em
branco do caderno com o sangue e pus que me escapavam por entre os de-
dos. Nem uma linha sequer. Nem uma palavra. Páginas e páginas em branco
chamuscadas. Decepcionado e exausto, adormeci.
Uma semana depois, o tratamento na clínica começou a fazer efeito.
Parei de escrever depois e atirei meus próprios cadernos com o que restou
de Franz na lareira de meu quarto. Em um mês estava de volta a minha
casa, à minha rotina de advogado com uma carreira promissora. Estava
curado.
— 196 —
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Um encontro com Kafka em “Doença”


Ademir Luiz

Longe de ser uma regra, parece não ser incomum que médicos tornem-se
escritores. Existe uma longa tradição na Literatura Universal, destacando-se
Tchekhov, Céline, Conan Doyle e, mais recentemente, António Lobo Antunes.
No Brasil podemos citar Guimarães Rosa, Manuel Antônio de Almeida, Pedro
Nava e Moacyr Scliar. Em Goiás, Flávio Paranhos é um destacado representante
da estirpe.
Nascido de pais goianos na cidade de Belo Horizonte, em 1967, Paranhos é
duplamente doutor: em Medicina Oftalmológica e Filosofia. Estreou na ficção
em 2003, com o volume de contos Epitáfio, onde exercitou um estilo de escrita
rápido, ágil, calcado em diálogos dinâmicos, repletos de niilismo e humor negro.
Um dos contos, sintomaticamente, intitula-se “Doença”. Narra o encontro e ar-

— 197 —
remedo de amizade travada entre dois pacientes de uma clínica suíça em meados
da década de 1920. O primeiro é um advogado com pendores literários, vítima de
coceiras que transformaram sua pele num asqueroso “tratado de dermatologia”.
Não é nominado. O segundo paciente é chamado apenas de Franz. Paranhos não
vai além desse nome, mas sua descrição é explícita. É um tcheco de “físico miúdo,
pálido, magro, dava dó”. Convalescendo de tísica, passa os dias escrevendo em
alemão num caderno puído. Trata-se, obviamente, de Kafka; Franz Kafka.
O sentido último do conto necessita do prévio reconhecimento do leitor da
identidade do personagem principal. Do contrário, a narrativa não funciona, tor-
na-se inverossímil o narrador reconhecer que “aquele indivíduo franzino me inti-
midava bastante”. Kafka morreu praticamente anônimo. Sua obra, a despeito de
algumas publicações esporádicas e mal-sucedidas, ainda não havia sido reconhe-
cida como um marco do modernismo. Ainda que fosse considerado gênio pelo
bom amigo Max Brod, ele não impressionava a maioria de seus contemporâneos.
Nem fisicamente, nem como escritor.
No ensaio “Meus encontros com Kafka”, publicado no livro Reflexo e Realida-
de, o crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux escreveu que, após encontrar
Kafka em uma festa de escritores, “ao sair do apartamento, perguntei a meu ami-
go e introdutor: ‘Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?’ Respondeu: ‘É de
Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância’”. Terá
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

mesmo o tímido Kafka chamado a atenção de Carpeaux? Ou será uma reorga-


nização de memória, buscando um efeito dramático, a partir de sua celebridade
póstuma? Apesar de tecnicamente ser um ensaio, “Meus encontros com Kafka”
possui um claro sabor narrativo. Não é impossível que Carpeaux tenha, delibe-
radamente, se deixado seduzir pela própria escrita ao contar seu encontro com
um dos maiores escritores do século XX. Assim como Paranhos. Com a diferença
que ele não partiu da memória pessoal, mas do inconsciente coletivo para criar
em Franz seu Kafka. Em ambos os casos, a aura mitológica de Kafka move a nar-
rativa. Ela é capaz de transformar o que foi, aparentemente, insípido e inodoro
numa representação de inquietante e inexplicável carisma. Nesse sentido, o per-
sonagem narrador parece realizar um desejo do contista. Para um homem culto,
não seria estranho responder “Kafka” diante dessa pergunta que bem poderia
estar em um Questionário Proust: qual célebre escritor do passado gostaria de
ter conhecido?
O Advogado de “Doença” é um personagem sem nome. É identificado por
sua função profissional, algo comum na galeria de tipos criados por Kafka. Apro-
ximou-se de Franz motivado por um interesse mútuo: a escrita. Via-o escrever
— 198 —

compulsivamente, mas jamais leu nenhuma linha. A rigor, nada fazia crer que
aquele “funcionário público medíocre” poderia ser melhor do que ele mesmo. Na
verdade, o orgulho típico de todo escritor iniciante deveria fazê-lo refutar essa
possibilidade. Todavia, ao saber que seu amigo de ocasião queimou seus cadernos
antes de morrer, “pilhas e pilhas jogadas na lareira de seu quarto. Virou tudo cin-
za”, sentiu-se doentiamente instigado a lê-lo. Homem de posição social superior,
estava disposto a recolher restos para saciar esse desejo. Sentiu-se imensamente
feliz quando uma funcionária da clínica lhe entregou um caderno semidestruído,
o único que escapou das chamas. Porém, não encontrou “nem uma linha sequer.
Nem uma palavra. Páginas e páginas em branco chamuscadas”.
No estudo “A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka”, apêndice de
O mito de Sísifo, Albert Camus escreveu que “toda a obra de Kafka consiste em
obrigar o leitor a reler. Seus desenlaces, ou sua falta de desenlace, sugerem ex-
plicações, mas essas não se revelam com clareza e exigem, para parecerem bem
fundamentadas, que se releia a história com um novo enfoque”. O conto de Pa-
ranhos também pede esse exercício. Cabe perguntar: a qual doença se refere o
título do conto? Trata-se apenas de um mal físico? A clínica é apenas uma casa
de repouso ou uma “montanha mágica” de encontros literários, que captura, ele-
vando ou destruindo, vocações?
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Diferente do decepcionado Advogado, sabemos que o fiel Max Brod salvou par-
te considerável da produção do amigo tísico, garantindo sua imortalidade literária.
O Advogado desiludiu-se: “Parei de escrever depois e atirei meus próprios cadernos
com o que restou de Franz na lareira de meu quarto. Em um mês estava de volta
a minha casa, à minha rotina de advogado com uma carreira promissora. Estava
curado”. Curado não só da doença de pele, mas, sobretudo, do orgulho intelectual
que debilmente o fazia “rabiscar uns poemas”. O homem sem real vocação literária
pode destruir uma boa vida burguesa com essas excentricidades. Para Franz era
o contrário. Quando lhe perguntaram sobre o que escrevia, respondeu que eram
“coisas sem importância para os outros, para a maioria das pessoas, preocupadas
em continuarem a ser medíocres, mas que para mim são o oxigênio que respiro.
Talvez por isso eu seja tísico”. “Doença” é o seu epitáfio.

Referências:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

— 199 —
CARPEAUX, Otto Maria. Reflexo e realidade. São Paulo: Fontana, 1976.
PARANHOS, Flávio. Epitáfio. São Paulo: Nankin Editorial, 2003.
SCHNAKENBERG, Robert. A vida secreta dos grandes autores. São Paulo: Ediouro, 2008.
Wesley Peres

Xícara de chá cheia de café

Ele pensa que isso de ele dizer que o natal não significa nada para ele
é e não é verdade, pensa isso e olha para a xícara de chá cheia de café, e
pensa que, talvez, isso seja uma boa metáfora para ele mesmo, continente
em desacordo com seu conteúdo, forma supostamente ateia que anda, dali
para mais ali, de cá para mais aquém, forma ateia impregnada de afetos
infantis, dentre eles este afeto que agora o envergonha e o espia a partir da
xícara de chá cheia de café, e que é o afeto, bem, vá lá, o afeto natalino que,
no caso dele, se configura na forma mental da onipresença mnemônica

— 201 —
dos seus mortos, que não são poucos. Que, na verdade, são todos. Todos
os que valiam a pena estão mortos, pensa, e beberica o café e nem chora.
Porque se chorasse, o caralho que se sentiria melhor, diz isso, de si para
si, porque não se lembra, mas por observações muito duvida, ele, de que
bebês se sentem melhor com seus infinitos infernozinhos só pela causa de
que choram e choram. Pensa em bebês e pensa que é muito triste mesmo
isso de saber para si mesmo que aqueles que lhe interessam afetivamen-
te estão mortos, mesmo tendo um filho vivo, é isso o que é muito triste
mesmo, ele tem um filho vivo e nadinha de afeto por ele, assumiu a pater-
nidade e pagou pensão enquanto teve de pagar, tudo porque tem respon-
sabilidade, é um homem de princípios e tal. Um homem de princípios e de
precipícios, pensa, agora, lavando a xícara de chá cheia de café.
Terminará de lavar a xícara, na verdade já terminou, mas continua com
a torneira ligada e, quando puder fechá-la, fechará e sairá a seguir em seu
Fiesta Sedan cinza-metálico e irá e irá e entrará na livraria do Shopping
Flamboyant e ficará com aquela cara de olhar água saindo da torneira de
frente para a vendedora de livros que lhe perguntará “Pro seu filho? Mas,
assim, de que tipo de livro ele gosta mesmo”?
O prazer do texto em “Xícara de chá cheia de café”
Carlos Augusto Silva

O goiano Wesley Peres já não é uma promessa da nova Literatura Brasileira.


É uma confirmação, uma presença, um escritor na acepção mais certeira da pa-
lavra, na medida em que a palavra é, para a sua obra, algo de valor inestimável.
Pródigo em prêmios e grandes livros (como o irretocável Casa entre vérte-
bras — Prêmio SESC de Literatura 2006), em muito pouco tempo trouxe para
a literatura feita em Goiás um patamar novo e de alta qualidade. Seja no verso
ou na prosa, ou nos seus prosemas, temos na obra de Wesley Peres um escritor
que sabe ser a linguagem algo substancial em literatura. Sua escrita é uma busca
da colocação exata da palavra. Revela uma atitude diante da linguagem, e inves-
tigando-a, subverte-a, numa relação de extrema intimidade: o prazer do texto.
Em “Xícara de chá cheia de café” as sutilezas da linguagem ficam escamotea-
— 202 —

das na aparência por uma preocupação aparente com a relação paradoxal que um
sujeito cético apresenta diante da comemoração do Natal e de todas as relações
que essa data desperta em sua subjetividade. Mas não se engane o leitor se pensa
estar diante de um conto que não é parte do sistema da obra de Wesley Peres. A
comunicação, o entendimento diante de uma palavra, uma data e sua significa-
ção na psicologia de um personagem estão, aqui, também, e muito, em voga.
O início do conto não deixa questão quanto ao aspecto acima mencionado:
“Ele pensa que isso de ele dizer que o natal não significa nada para ele é e não é
verdade, pensa isso e olha para a xícara de chá cheia de café, e pensa que, talvez,
isso seja uma boa metáfora para ele mesmo, continente em desacordo com seu
conteúdo, forma supostamente teia que anda, dali para mais ali, de cá para mais
aquém, forma teia impregnada de afetos infantis, dentre eles este afeto que ago-
ra o envergonha e o espia a partir da xícara de chá cheia de café, e que é o afeto,
bem, vá lá, o afeto natalino que, no caso dele, se configura na forma mental da
onipresença mnemônica dos seus mortos, que não são poucos.” (Grifo nosso)
Vejamos que os eixos nos quais o texto vai se organizar se dão nos problemas
de significação, forma, estratificação semântica infiltrada na vida do persona-
gem. Seus problemas dar-se-ão em decorrência do que significa o Natal diante de
uma consciência, e por essa busca de compreensão e adequação do que seja essa
compreensão da data natalina é que o conto vai se desenvolver.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

A palavra Natal passa a ter um valor de símbolo para o conto, pois não à toa a
relação com o filho dará matéria narrativa, envergadura de acontecimento (filho
— nascimento [ato natalino] — presente / memória — morte [contrário de ato
natalino] — passado) ao enredo apresentado, sendo este o transito entre o passado
que torna o Natal afeto e o filho que torna o Natal sem sentido. A subversão dos va-
lores engloba de forma harmônica sujeito e data: este se comove com o Natal pelas
memórias afetivas embora seja cético, e vê com fleuma o filho que lhe é indiferente.
A “xícara de chá cheia de café” é metáfora das mais contundentes. O fato de o
narrador chamar de xícara de chá e afirmar em seguida estar esta cheia de café mos-
tra o lugar de inadequação permanente daquele que ousa ressignificar aquilo que o
mundo cristão, com seus padrões, já significou para ele, e metáfora, sabemos, nasce
do empréstimo de sentido de uma palavra para a outra, ampliando-lhes o sentido e
o seu valor poético. Há aqui um esforço de compreensão se vemos que, segundo Paul
Ricoeur, em Metáfora Viva, falando das concepções de Aristóteles, a metáfora vem
após a dianoia, ou após o pensamento: ela pode ser a comparação de uma coisa com
outra que revela uma essência permanente e nova de significação. Em um escritor
que valoriza e substancializa a linguagem, nada mais comum e natural que um dos

— 203 —
recursos utilizados e elencados de modo referencial seja à metáfora que se utiliza de
três coisas concretas, cabralinamente concretas: xícara, chá e café.
Seu narrador abre mão de uma onisciência tradicional. Como queria Henry
James, busca a história que se conte a si mesma, que oculte ao máximo a presen-
ça do narrador, não deixando esse obstáculo (o autor/narrador) entre o texto e
o leitor, mas fazendo com que suas observações nasçam junto da história que se
conta. Norman Friedman, em O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de
um conceito, fala-nos de uma voz que faça com que a “história seja contada como
que por um dos personagens dela mesma, mas na terceira pessoa.” (Grifo nosso)
E quem poderá nos garantir que essa voz do conto “Xícara de chá cheia de
café” não é, se não um dos personagens, o maior personagem desse conto — já
que é o narrador o detentor da linguagem — de um escritor que busca, em seu
conjunto de obra, desembrulhar a linguagem embrulhando-a de novo?

Referências:

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.


FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção — o desenvolvimento de um conceito crítico. São Paulo:
Revista USP, 2002.
Itamar Pires Ribeiro

O Uzífur

ELA SORRIU E ACARICIOU MEU CORPO, gata através da penumbra,


em breve os jogos recomeçariam, pele contra pele, o fogo. Um trovão, dois,
se misturaram ao solo de saxofone, ao piano que trespassa. A tempestade
tomava o céu da noite. Teríamos tempo. E a observar as nuvens conver-
gindo para o centro do céu também nós nos aproximaríamos e comparti-
lharíamos esse vento forte que suspende as cortinas e embaralha as cartas
sobre a mesa. Duas pesadas massas de nuvens avançam do leste e do oci-

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dente, esgrimem relâmpagos, contorcendo-se em arabescos. Luziam as úl-
timas estrelas da noite, apagadas pela tormenta. Adriana vibrava e rolava
pelo chão, queimando, peixes vorazes dentro de um lago escuro. A chuva,
quente, pesada, serpenteou pela cidade, brincando, em fuga.
Pela sexta vez o sonho se repetia, uma aproximação, uma vertigem.
No meio da noite eles vieram. Protestei contra a invasão. Arrastaram-
me a uma delegacia. Dois agentes sorriam, de vez em quando me esbo-
feteavam. Alguém mastiga bolachas, outro canta uma modinha antiga.
Homens de bigode retorcido olham dos quadros.
Adriana dorme tranquila. Não quero tocá-la. Não seria justo fazê-lo.
O homem gordo se levanta. Antes de falar sua mão pende no espaço, fisga
a palavra exata. Mãozinha de moça beata tresanda perfume enjoativo. Mão
gorda, rósea. O perfume se une ao hálito de tabaco ruim. Seus olhos descem e
sobem, avaliando.
Falei. O homem ouviu atentamente, sem interromper. Brincava com dois
clips. Terminei. Ele ergueu-se. Sorriu de novo, ri muito o tipo. Ajeitou os ca-
belos. Como prova de boa vontade, disse, fez com que comprasse uma folha de
selos, para dar início imediato ao inquérito. Ofereceu-me uma xícara fumegan-
te de chá e uma piorra, dúzias de bolas de gude, que se assemelhavam a olhos
castanhos, muito abertos,olhos de sampaku, que rolaram e se esconderam sob
a escrivaninha.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Um oficial alto, manco da perna direita, trouxe um papel com mi-


nhas declarações anotadas. Pendia de seu pescoço uma gravata larga,
amarela, com manchinhas vermelhas. O homem gordo examinou o pa-
pel e guardou-o, envolto em folhas de eucalipto e bolinhas de naftalina.
Girou. Levantou-se. Abriu janela e gritou com alguém que dormia. As
manchinhas vermelhas eram de sangue.
Dois pássaros tentaram arrancar meus olhos. São vermelhos. As pa-
redes em volta encolhem-se rapidamente, estou numa cela e escurece.
Adriana remexe-se, seus cabelos roçam meu braço, respira forte e mur-
mura alguma coisa.
Rápido a cena muda. O oficial alto, que coxeia de uma perna, trouxe
uma xícara de café e contou uma história a princípio engraçada, mas
logo interminável, sobre a própria sogra. Rimos bastante e dois cava-
los pequenos, menores que um gato grande, entraram pela sala. Ajoe-
lhados, embaixo de um banco, eles analisam cada detalhe do cômodo,
olham tudo com calma e aceitam com expressão neutra um desajeitado
carinho. Alguns, iguais a eles giram a galope pelo pátio, deitam as ore-
lhas pra trás, espremem os olhinhos escuros e relincham alto e compas-
— 206 —

sadamente. A grama amacia o som de suas patas. Tudo no pátio parece


normal, cotidiano, exceto uma pedra amarela em seu centro, da qual flui
um contínuo filete de sangue.

Gritei por uma palavra, uma chave. Buscando como sempre nesses
sonhos, uma porta que me devolvesse a Adriana, à noite numa cidade
humana.
Os cavalinhos voltaram para mim seus olhos infinitamente piedosos

Adriana se levantou e tomou água, fechou uma das janelas, por onde
soprava o vento frio da noite, veio e alisou minha testa, fumou um cigarro
e ligou o rádio. Enquanto eu gritava por um nome, uma chave e eles vi-
nham, solícitos, e olhavam-me com desprezo.
Desde então conjuro a vermelhidão do uzífur. O sol chega, retorno, acor-
do.Agarro-me às primeiras horas da manhã insone, não consigo me mover,
como se o sonho estivesse à espreita, e meu corpo a qualquer movimento
pudesse ser novamente aviltado pelo pesadelo. Adriana caminha pelo quar-
to, aproxima-se, beija-me delicadamente, correspondo ao beijo de modo
automático. Levanto enfim. A sensação continua. Uma sensação agradável
como a de um rato que tem de atravessar um cômodo que sabe cheio de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

gatos. Uma vibração que persiste, enquanto tomamos o café e bebemos um


pouco de leite e preparamos as malas, conferimos as passagens: Lisboa, o
porto, o passaredo. Mas é como se permanecesse imóvel num tempo fixo,
um tempo noturno, banhado por luzes avermelhadas e alarmes.
No meio da noite o sonho irrompe, mistura-se e possui a realidade.
Conjuro a vermelhidão do uzífur, é um modo seguro de livrar-me de aten-
tados, como o que destroçou o oficial alto, que coxeava. Sinto-me imune
a suas lamúrias. Noite após noite depositam-me aos pés caudalosos pre-
sentes azuis. Recolho-os e levo-os ao túmulo da Princesa de Solibur. O
nome surgiu. Enfim, sei onde estou. Solibur já é quase familiar. Penso que
a qualquer momento encontrarei Adolfo Gouveia, talvez Dallago, ou mes-
mo Liminha, não é improvável.
A Princesa arde encerrada num manto de fogo-fátuo, joão-galafoice
eterno. A princesa arde, e odeia, e sonha, assemelha-se a uma minúscu-
la estatueta suspensa no vazio. Por sua vontade homens e reinos foram
despedaçados, a crônica macabra de um reino de fadas. Talvez fosse jus-
tamente isso, um conto de fadas, apropriado a este tempo. Ela, soterrada,
sonha, bamboleando como uma serpente suspensa em uma linha. Uma

— 207 —
aranha que destila um elaborado veneno, e que se entocaia e num instante
irrompe sobre a presa e a subjuga.

Os cavalos aproximam-se, são pequenos, azulados, assemelham-se aos


cães em seu trejeito de pedir carinho. São os descendentes das hordas de
guerra que serviram à Princesa. Difícil crer, juram. Dizem que se perderam
por culpa de um vício vindo da Ásia Menor e que incluía grandes doses
de sal condimentado e os olhos dos cavaleiros. Olhos que eram colhidos
durante o sono, ou no escuro dos bosques, em cerimônias ao luar. Os exér-
citos da Princesa foram devastados, na corte seus inimigos tramavam, re-
clamando velhos privilégios de casta, ironizando as derrotas.

Uma nova noite surge, cumprindo um dia de preparativos. Possuo


Adriana, beijo seu sexo, seus pés, seu sorriso. Ouvimos música. Dormi-
mos. A noite é longa e Adriana está chorando. Não há mais música. A tele-
visão foi ligada e ilumina o quarto e a sala com seus espectros cambiantes.
E ela olha para mim e não quer me acordar, e aqui faz tanto frio.

*
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Os cegos e os loucos infestaram as estradas e as cidades do reino, os sú-


ditos rumorejavam, odiando os cavalos e a Princesa. Indiferente, ela con-
templava a lua, as cores do fogo, refugiada nos labirintos, praticava suas
artes e magias, nos subterrâneos da muralha. Adriana cantava e fingia
estar alegre enquanto abria outra garrafa de vinho, indo e vindo de um
canto a outro do quarto, e Adriana ligava para Márcia, que, com uma voz
pastosa, cortada pelo sono, dava respostas automáticas. Depois Adriana
remexeu nos livros da estante, depois gritou, encolheu-se sobre a cama.

Passa o tempo. Abro os olhos, ela está dormindo. Ouço a história conta-
da por dois cavalinhos azuis. Apago a televisão e sento-me à janela. Altas
piras em forma de cubo ardem junto ao horizonte longínquo; o vento frio
traz um cheiro acre de ferro em brasa.
— A Princesa, por fim, reagiu, mandou reprimir os conspiradores e for-
mou um exército para exterminar nossos imprudentes ancestrais. No en-
tanto nenhum exército humano conseguia resistir a nosso impacto, desfa-
zia-se, pó que a cavalgada eleva e o vento espalha. Vencemos doze batalhas
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e chegamos, ao cabo de um ano, junto às muralhas de Solibur.


Se Adriana acordasse talvez pudesse vê-los, desceríamos as escadas cor-
rendo e iríamos direto para o aeroporto e Lisboa e além, qualquer lugar,
longe das torres, longe desses espectros. Mas, acordada, ela não me ouve,
ouve apenas o que soa normal, e que, quase sempre, não tem importância.

A Princesa forjou uma finíssima adaga. Para disfarçá-la dos inimigos


fez com que a adaga assumisse a forma de uma mulher, tinha os olhos
escuros, e sua voz era fria e seu corpo perfeito, foi encerrada numa cela
recoberta de chapas de cobre, abaixo da linha central da muralha.
— A horda de cavalos sitiou Solibur em janeiro, época de grandes inun-
dações. Em torno da cidade brincavam e corriam, levantando pó e relin-
chavam alegremente quando grupos compactos de soldados partiam para
atacá-los. Por fim arrombaram a muralha de Solibur e perderam-se em
corridas em ziguezague pelos becos, despencando nas armadilhas esca-
vadas pelas ruas, estraçalhados pelas pesadas espadas de bronze. Solibur
venceu.
— A Princesa quis a paz. Convocou dois dos melhores guerreiros ca-
tivos e lhes ofereceu o sal condimentado e os olhos de uma bela escrava.
Eles aceitaram e puseram a perder toda sua raça. Uma intrincada rede de
poderes mágicos foi desencadeada.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Não sei, é o que contam — interrompe-se o cavalinho, um tanto


entediado.
Depois de uma breve pausa, quando golpeou o assoalho, como se esca-
vasse impacientemente , ele retomou sua narração, ainda com menos en-
tusiasmo que antes, sua voz era pouco mais que um sussurro, cadenciado
e continuo como um escorrer de água sobre a pedra:
— Os olhos da mulher seriam o gume da adaga mágica. Meus ancestrais
foram expulsos. Julgo que essa é uma história fantasiosa, forjada para jus-
tificar a derrota, amenizar o exílio e a morte. Já é suficiente ser derrotado,
não é necessária a adaga, ainda mais se disfarçada em uma mulher... Mas.
Somos assim, nossas histórias se perdem em exageros, metáforas, somos,
decididamente, barrocos. É isso: ninguém atura as histórias que não tem
assombro. Através dos oceanos meus ancestrais encontraram exílio nu-
mas ilhas ao sul da América. Lá se tornaram pacíficos e justos, diminuíram
progressivamente de tamanho até alcançarem a estatura de bibelôs. E
assim, como bibelôs, foram vendidos e serviram de adorno para a morada
dos nobres, vivendo misturados com aqueles cãezinhos sem cérebro, como
ratazanas domésticas, hamsteres, lêmures de estimação. Apesar de tudo

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preservamos algo de nossos costumes guerreiros. Assim é que, chegados a
uma casa, vagávamos em busca de um canto inacessível — tanto faz se um
porão, um simples quarto abandonado, um sótão, algum monte de pedre-
gulho no fundo do quintal, e lá, em certas noites propícias, celebrávamos
e corríamos e chorávamos, dividindo as escassas doses de uzífur, o vene-
no a que fomos condenados. E acariciávamos com os olhos a imagem da
lua, indiferente, sempre tão indiferente a nosso destino miúdo... Imagem
que se refletia em bacias rituais, em alguma poça d’água, quando faltavam
mesmo as bacias. Nossa decadência foi brusca, longa, interminável. Se é
que houve, de fato, decadência. Se é que não fôramos, desde sempre, desse
mínimo porte. Mas, é certo, que chegamos ao cúmulo de temer os gatos,
chegamos a compartilhar com as galinhas a mesma odiada ração, a mesma
imunda torrinha. Esperávamos. Tornamo-nos calculadamente dóceis. No
sul da Argentina aqueles bárbaros nos utilizaram como iguaria, moqueada
e servida com muito sal e vinho, recomendável para a frieza do tempo e
do amor. Nossas patas foram usadas como amuleto contra o mau olhado.
E assim ele narrava de modo indiferente, monocórdico, como se ele mes-
mo não participasse da história, como se falasse de uma espécie estranha a
sua, que prosseguia insensatamente ao longo de desgraças e tédio em um
exílio insolúvel. Olhei-o, compreendi. Éramos muito parecidos. Ele, a essa
altura, descrevia suas peles finas, físseis, mas que pelo menos os pouparam
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

da cobiça dos caçadores, mas não do frio. Quando o frio é muito se empi-
lham uns sobre os outros, os que ficam por cima quase sempre adoecem.
Mantêm por toda a vida o rosto com que nascem e nascem semelhantes a
velhos. Imitam com perfeição a voz humana, cantam alto com belas vozes
de mezzosoprano. Têm grandes olhos escuros, inexpressivos, como os olhos
dos insetos, joias negras, encravadas entre o pelo branco.
Nascem transparentes, após quatorze meses de inquieta gestação. Tra-
zem, ao nascer, uma pedra encravada na testa, pedra que cai quando se
tornam adultos; os recém-nascidos são cegos, se alimentam exclusiva-
mente do leite escuro de duas mães e têm a capacidade de planar. Os pais
inquietam-se ao ver suas crias assim jogadas, temem a força dos ventos
e ficam melancólicos, às vezes violentos, enquanto os bebês elevam-se e
mergulham ao sabor das correntes do ar. Alguns, então, sobem tanto que
nunca mais são vistos, outros despencam de mau jeito, ferem-se, morrem,
mas a maioria mantém um voo inseguro e desajeitado, sobrevivem, enfim,
para deixar de voar definitivamente aos dois anos de idade. Mesmo com
todos os riscos é necessário que os bebês planem, por isso os cavalos mais
velhos encarregam-se de arremessá-los do alto de penhascos, do cume de
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casas e prédios altos, da copa de árvores, se, acaso, têm a má sorte de viver
em planícies de fraca vegetação, sem árvores e nem morros, os cavalinhos
crescem soturnos, talvez por que sua natureza careça daqueles primeiros
voos. Batizei-os com pomposos nomes gregos e latinos, olharam-me com
seu tom neutro habitual e foram-se, abanando as cabeças em silêncio. Dei
o nome Ariadne a uma potrilha com uma estrela escura na testa. Acom-
panho-a durante o dia, zelo de seu pelo, protejo-a e quase nunca lhe bato,
ou melhor, nunca, apenas palmadinhas amistosas, para tirá-la do sol, que
pode ofender sua pele, em troca ela vigia as noites. É gentil como um pe-
queno pássaro.
Os cavalinhos dizem que a adaga mágica nunca foi destruída. Com ela
poderiam quebrar o desvario, com ela libertaria Adriana das ameaças des-
te mundo de espectros. É uma esperança louca, crer na existência de uma
mulher que é também uma adaga, que uma adaga assim possa ter sido
forjada por uma velha Princesa, que tais bruxedos existam, que tais bruxe-
dos durem, que possam romper esse mundo. A adaga é uma peça recurva e
leve, seu cabo é ornado de letras hostis, é escuro de prata envelhecida. Sei
descrevê-la com detalhes. Toma meus sonhos. Sorri. Dança. Crava-se em
mim. Tem o rosto de Adriana. Sei que existe. Sei que é impossível.
Adriana arruma o café, diz coisas engraçadas e tem tantas sardas em
torno do nariz. No início da noite embarcaremos. Eu permaneço duplo,
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

falando com Adriana sobre os sonhos da noite passada, evito dizer que vi
quando ela chorava, falamos do vento e do vinho português. Bebo o leite
quente e digo que ela deve se arruma mais rápido. A viagem, há tanto tem-
po planejada, valerá enfim a pena.

Ariadne relincha satisfeita com o sol que nasce, ela corre ao rio, irma-
nando-se a outras potrilhas azuladas, prenhes.
Há um grupo de cavalos, oito ao todo, detestam milho, reúnem-se e
relincham em sua própria língua. Adoram fazer discursos e uivam quando
passo com os baldes cheios de espigas, carregados de aveia e uzífur. Sei
que tramam, exercitam-se, crescem. Treinam coices e mordidas. Destroça-
ram um calmo vira-lata que me ajudava, não pude provar que foram eles,
continuam impunes. Provocam. Em resposta trago à cintura um facão,
que trato de amolar quando estão por perto, canto e olho direto em suas
caras zombeteiras. Por dentro do casaco guardo uma pistola carregada.

Adriana está atrasada, saiu. Debruço-me à janela enquanto cuido da


ração de Ariadne, o telefone toca e chamam-me para comemorar a viagem:

— 211 —
cerveja, uma feijoada, que me esperam. Digo que vou depois e desligo,
dois cavalos atacam-me. A luta é rápida. Arranco o facão a tempo de matar
um deles, dois outros se adiantam. Derrubam-me. Um gruda-se a meu
braço, degolo-o. Tremo, ajoelhado, perto do telefone. Em torno giram as
casas, os campos de Solibur. Preciso chamar Adriana. Uivo por Ariadne,
que está longe. Tentam quebrar minhas pernas com coices, saco a pistola.
Descarrego-a. Eles agonizam. Eu galopo disparando a esmo, disparando a
esmo. Galopo até quase estourar. Sinto-me transformado. Não mais um
homem encerrado num sonho alheio, mas outra coisa, mais una e terrível,
que sonha o homem e o cavalo e Solibur e seus campos de desterro.
Seis cavalos estão mortos. Ergo uma pira em forma de cubo, incinero os
mortos. O sangue escuro e o fogo tingem o céu e a noite chega.

O ócio de uma prolongada licença, minha curiosidade inclinada para


assuntos inúteis, um volume da História dos Celtas e um presente de Cín-
tia, contribuíram para que eu descobrisse Solibur. Num dos sebos da cida-
de encontrei um volume de Los Demônios, intacto, ainda que editado em
1909. O livro pertencera a um certo Juan Dallago. A capa e os capítulos
iniciais correspondiam ao livro de Dostoievski, muitas páginas estavam
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

em branco e outras tantas cobertas com abreviaturas e símbolos, 63 delas


foram impressas num alfabeto estranho. O vendedor quis subir o preço do
livro alegando sua raridade, contra-argumentei canhestramente que era
raro e ilegível. Discutimos durante meia hora, ele concordou comigo e, em
troca, paguei o que queria.
Seis capítulos manuscritos contavam a história do livro e de Dallago.
Os dois primeiros falavam de avós, bisavós, incertas datas, casamentos,
anedotas de família. Uma pequena escultura em pedra vermelha, pesada,
fosca e descrita até a exaustão no terceiro capítulo era, novamente, anali-
sada no quarto capítulo acrescentando-se que a estatueta fora adquirida
num lugar chamado Cotiella, junto à fronteira francesa. Ao fim dos capí-
tulos duas datas: 1º de Junho de 1914 e 10 de março de 1915. A Europa
explodira em sangue e fúria nesse intervalo, mas tais fatos bélicos não
interessaram o Sr. Dallago, que seguira tranquilamente falando de avós,
primos, primas e historietas domésticas.
O quinto capítulo, quase ilegível, fora datado, com uma letra aguda,
apenas como o ano 1919, e nele tratava-se de formular e reformular a
ideia de um tempo circular, erguendo contra-argumentos pelo prazer de
— 212 —

desnorteá-los, desmontá-los e vencê-los. Um círculo ou, mais precisamen-


te, uma espiral, na qual nem todas as coisas se repetissem exatamente,
mas onde, por inevitável confusão, o sonhado e o feito se unissem, inex-
trincáveis. A tortura de uma caligrafia exótica unia-se a um bizarro es-
panhol. Góngora pareceria simples em face de algumas passagens do Sr.
Dallago. Num texto como aquele se tornava árduo discernir o que era e o
que não era uma metáfora. Com custo e tédio avancei, saltando trechos in-
teiros que pareciam escritos apenas para serem detestados, o que era a re-
gra de muitas páginas, enfim, já no sexto capítulo, esclarecia-se algo. Com
uma prosa surpreendentemente simples Dallago contava como, em 1908,
herdara algumas propriedades, velhas casas atulhadas de objetos de vaga
ou esquecida utilidade, entre os quais a pedra vermelha. Era um homem
velho, sem filhos e religioso. Seu catolicismo peculiar buscava menos a
responsabilidade de tentar alcançar a graça divina que o assombro e o ter-
ror da crença na punição, no Diabo e em todas as tolices a ele associadas.
Embarafustara-se em estudos de magia, se encantara com os velhos deu-
ses da natureza, presenças tão próximas e concretas, em oposição ao seu
próprio e distante deus celestial. A pedra vermelha fascinou-o de imedia-
to. Tratava-se de um ex-voto pré-histórico. Na base da estatueta uma ins-
crição lamentava o tempo circular, do tempo como uma espiral de fumo,
onde somos a tênue carnadura da fumaça, onde os séculos não apenas
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

sucedem-se, mas podem unir-se, misturar-se; onde, enfim, permanecem


zonas indefinidas, latentes. Para enxergar a inscrição era necessário um
ângulo obtuso de luz, as letras então surgiriam, projetadas pela sombra.
Em 1912 Dallago comprou o exemplar de Los Demônios onde encon-
trou, escrita em sua própria língua e alfabeto, a lenda de Solibur. Com a
lenda, a inscrição na base da estatueta e meia página de alemão medieval,
um amigo germanista e muitíssimo tempo disponível, Dallago começou a
tarefa de decifrar o texto e a inscrição. Ainda havia uma citação, em he-
braico, feita pelo dever da contradição, de uma velha e bárbara crença que
comparava os homens a uma espiral de fumaça, ou a uma coluna de fuma-
ça em torno da qual giram pássaros escuros. A citação encontrava-se nos
escritos de um cabalista de Gerona e era atribuída a Azriel, discípulo indi-
reto de Isaac Luria, dito O Cego. Entre o hebraico, o manuscrito medieval
e o ex-voto com suas letras de sombra perderam-se os anos.
Os símbolos bailavam em seus sonhos, Dallago consumia os dias na-
quele desvario. Entrelaçados a rostos de mulheres e de homens, repousan-
do sobre os objetos nos cômodos da ampla casa desabitada, nas chamas
do incêndio que consumiu a casa, nas mudanças e nas longas caminhadas

— 213 —
solitárias, os signos espreitavam. Tornaram-se um peso insuportável, pri-
meiro esvaziaram sua vida, já não pródiga em fatos ou paixões, depois fo-
ram preenchendo-a com uma matéria alheia e longínqua, como os grandes
rios que vão assoreando sua foz e compondo intrincados deltas onde todo
tipo de ser prolifera. Em Cádiz Dallago optou entre o suicídio, Madrid ou o
mar, acabou aninhando-se em um casarão arruinado em São Paulo. Come-
çou a traduzir toda a lenda, mas esse trabalho se perdeu. Estava doente,
estava só. Datou de agosto de 1925 o que terminara de escrever, daí por
diante não há registros, não há notícias.

Três anos atrás Adolfo Gouveia foi assassinado. Há dois meses alguns
parentes de Gouveia, ressuscitados de um lugarejo na Zona da Mata de
Minas Gerais, resolveram livrar-se de suas quinquilharias e apurar algum
dinheiro com a venda de terrenos que ele possuía na cidade. Uma imobili-
ária comprou sua velha casa, que já foi demolida, num leilão arrematei, a
preço de nada, alguns livros, junto com os livros comprei a pedra verme-
lha. É pequena e muito pesada, coloquei-a sobre a mesa. Os sonhos daque-
la noite foram vermelhos. A manhã surgiu benfazeja, mas não os dissipou
de todo. Trouxe alguma sensação de segurança e distância.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Sensação de segurança que não durou. O fascínio da língua, da história


de Dallago, seu destino associado àquele ex-voto que, impossivelmente,
chegara a minhas mãos, deixaram-me abalado. À luz de um dourado sol de
crepúsculo posicionei a pedra vermelha em um ângulo propício e contem-
plei sua desditosa inscrição. Naqueles dias distraía-me com frequência,
enredando-me num mundo de atrozes desejos e deuses imperfeitos e ma-
lévolos. Durante uma operação perdi-me a devanear sobre a semelhança
entre as veias, o sangue e o pulsar do corpo e algumas palavras e letras da
língua de Solibur. O paciente, uma mulher de seus setenta e tantos anos
terminou morrendo, não inteiramente por minha culpa, mas pouco fiz
para salvá-la. Eu estava paralisado, estava aproximando-me de Solibur. A
esquisita devoção que ainda existe em relação aos médicos e o precário
estado de saúde da idosa mulher, com um histórico de doenças e sofri-
mentos, terminaram evitando maiores problemas profissionais, mas não
o peso da consciência e nem a sensação de estar inelutavelmente deslizan-
do, como num sonho do qual não é apenas impossível despertar, mas que
segue contaminando a própria vigília. Investiguei o assassinato de Adolfo
Gouveia, tudo parecia encaixar-se na versão apressada da Polícia: um rou-
— 214 —

bo seguido de morte. O latrocida nada tocara exceto os cofres de dinheiro


e jóias, meio-saqueados apenas, e o infeliz crânio de Gouveia. A cena re-
composta pela Polícia exigia que Gouveia tivesse surpreendido o gatuno e
que este, como reação, o matasse, mas não explicava o curioso cuidado de
cobrir todos os espelhos e superfícies que pudessem refletir imagens em
toda casa.
Adriana voltou, mas não entende o que fazem os pequenos cavalos aba-
tidos sobre o tapete. A lua afunda-se, enorme, entre as estrelas. Está na
hora de pegar o avião. As colinas ásperas são batidas por um vento frio.
Dobro ruas desertas. Galgo torres e uivo alto. Adriana me desperta, mas
apenas para também ser tragada pela realidade mais forte e mais áspera
de Solibur. As torres de Solibur são escuras, cobertas de limo, as escadarias
de degraus irregulares impedem que eu mantenha um ritmo de subida.
Trago nas mãos uma adaga, não sei se é mágica ou não, sei que Adriana me
segue, lentamente, passo a passo, ginga sobre as escadarias apodrecidas.
Estou pronto para sacrificar Ariadne, dar vida à Princesa, romper essa fina
membrana que separa o tempo, unir todas as voltas da espiral de fumaça.
Os cavalos giram pela planície, atropelam, incólumes, dois grupamentos
de infantaria, logo romperão as muralhas. Por vezes confundo o focinho
de Ariadne e o rosto de Adriana. E o rosto de Adriana purifica-se, sobrepõe
sua imagem ao sangue que escorre de minhas mãos e coagula na lâmina de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

bronze. A adaga desabrocha num sol ardente. Uma brisa morna e úmida
lambe os calcinados campos de Solibur. Chove e preparamo-nos para repe-
lir outro ataque. Afivelamos os cintos, agradecemos à simpatia padroniza-
da da aeromoça, abaixo da linha central da muralha Adriana canta, canta
e sobe. E vemos as luzes do avião que corre para Lisboa, o outro lado do
mar, o porto além do negro Atlântico. Tomamos uma garrafa de vinho. E
colho uma lágrima no rosto de Ariadne e olhamos os outros passageiros
com uma expressão neutra, habitual. Em qualquer dos dois mundos nosso
destino é fundamentalmente o mesmo, por isso descansamos as costas
enquanto o avião descreve seu giro, enquanto o excesso de chuva retarda
a última carga do inimigo, enlaçamos as mãos, Adriana/Ariadne, não sei,
brilha, como se fosse, de fato, uma adaga, pronta a romper entre a carna-
dura atroz do pesadelo.

Julho 1981 — Junho 1986 — Março 1992

— 215 —
Loucura, sonho e realidade em “O Uzífur”
Ademir Luiz

O ditado “diga-me com quem andas que te direi quem és” tornou-se clichê,
mas é uma máxima de valor universal. Nascido em Goiânia, em 1960, o escritor
Itamar Pires Ribeiro, autor do volume de poemas Livro de Heitor (1990), das His-
tórias da Terra Vazia (2008) e do romance Lygia entre os dragões (2011), explicitou
suas “companhias” no que chamou de Kabala Pessoal, um “amuleto de nomes”
publicado na primeira edição dos Contos de Solibur, obra vencedora do Prêmio
Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos de 1993. O primeiro nome da
extensa lista é um mito grego: Ariadne, talvez representação do fio de ouro que
liga e guia todos os outros. Na sequência encontramos poetas, músicos, cidades,
entidades religiosas, personagens fictícios etc. Um amplo mosaico de influências
culturais que vai de Marx até Marylin Monroe, passando por Zumbi dos Palma-
— 216 —

res e Hegel.
Alguns dos nomes citados destacam-se por representarem criadores de mun-
dos. Cito dois: Jorge Luis Borges e Tolkien. Do primeiro a Kabala contêm seus
países imaginários Tlön e Ukbar, do livro Ficções de 1944. Do segundo, encontra-
mos Frodo Baggins, o protagonista de O Senhor dos Anéis. Tanto o poeta argenti-
no quanto o acadêmico inglês propagavam a ideia de que o fazer literário e, antes
de tudo, um fato cosmológico. Em seu Pós-escrito a O Nome da Rosa, influenciado
pela dupla, Umberto Eco explica que “para narrar é necessário primeiramente
construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores”.
Itamar Pires também é confesso entusiasta dessa perspectiva. A coleção de nar-
rativas de Contos de Solibur não são peças isoladas, formam um conjunto que, em
primeiro lugar, estabelecem as bases do reino de Solibur. Sua arquitetura é bor-
geana, “as torres de Solibur são escuras, cheias de limo, as escadarias de degraus
irregulares”. Assim como a Terra Média, Solibur é um reino com língua própria,
habitado por criaturas fantásticas e encontra-se em guerra.
Longe de ser um pastiche da literatura fantástica ao estilo do subestimado
Robert E. Howard, criador da Era Hiboriana de Conan, Itamar Pires escreveu
“a crônica macabra de um reino de fadas. Talvez fosse justamente um conto de
fadas, apropriado a este tempo”. Não é por acaso que também encontramos em
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

sua Kabala Pessoal o nome de Lewis Carol, autor de Alice no País das Maravilhas,
principal marco do conto de fadas moderno. Um conto da carochinha que vai
muito além das lições de moralidade, deixando-se impregnar pelos mistérios dos
sonhos e do inconsciente, configurando-se num precursor da psicanálise freu-
diana. Solibur é um reino do onírico. Ninguém entra em suas fronteiras estando
consciente, nem totalmente inconsciente. Ele não está em nosso mundo, mas
o toca. Às vezes toca-o perigosamente, podendo gerar violência ou insanidade.
O ponto de convergência entre os dois universos parece ser uma pedra ver-
melha conhecida como “O Uzífur”, também título do principal dos Contos de
Solibur. Nesse conto somos apresentados a pelo menos dois níveis de enre-
do, que se cruzam e se separam continuamente, unidos pela mesma voz nar-
rativa. Numa delas, o protagonista vive uma intensa história de amor com a
bela Adriana. Amam-se na cama, na mesa e no banho enquanto esperam o
momento de embarcar num avião para Lisboa. Paralelamente, ele imagina que
sua amada está sob “ameaça deste mundo de espectros” governado por uma
princesa voluntariosa que mandou forjar uma “mulher que é também uma ada-

— 217 —
ga”. Nesse devaneio que ameaça invadir sua realidade a qualquer momento, ele
luta em “doze batalhas” e adota um pequenino cavalinho azul falante. É fêmea
e lhe dá o nome de Ariadne. Precisa mesmo um guia. Está perdido, no tempo
e no espaço, “por vezes confundo o focinho de Ariadne é o rosto de Adriana”.
Não tem certeza de quase nada, apenas que “três anos atrás Adolfo Gouveia foi
assassinado”. Comprou de seus herdeiros “alguns livros, junto com os livros
comprei a pedra vermelha. É pequena e muito pesada, coloquei-a sobre a mesa.
Os sonhos daquela noite foram vermelhos”.
Objetos místicos geradores de sonhos ou visões são recursos tradicionais em
narrativas fantásticas. O Um Anel, penosamente carregado pelo portador Frodo
Baggins, é um dos exemplos mais célebres. Para ficar em outro nome da Kabala,
Borges, no conto “O Outro”, publicado em O Livro de Areia (1975), usou uma
nota de dólar. A sanguínea pedra Uzífur vem integrar-se à galeria.
A palavra Uzífur parece derivar de Uzífuro, um sulfeto vermelho substrato do
mercúrio. O que leva de volta a Lewis Carroll. A criação do personagem Chapelei-
ro Louco, de Alice no País das Maravilhas, foi inspirada na expressão “você é louco
como um chapeleiro”, um insulto bastante popular na Inglaterra do século XIX.
Aparentemente, sua origem vem da utilização que se fazia de um tipo de cola
com mercúrio na confecção de chapéus. O contato prolongado com a substância
e a inalação de seus vapores provocava problemas neurológicos e alucinações.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Alguns fabricantes de chapéu morriam intoxicados. Não era incomum que apre-
sentassem comportamento excêntrico.
Itamar Pires não relacionou diretamente sonho e loucura, mas seu protago-
nista não separa realidade e imaginação. “Em qualquer dos dois mundos, nosso
destino é fundamentalmente o mesmo”. O sacrifício ritual do cavalinho azul fa-
lante Ariadne, com uma adaga que “não sei se é mágica ou não”, pode ser também
o assassinato de Adriana. Essas mortes devem “romper essa fina membrana que
separa o tempo”. Solibur vai invadir nosso mundo, tornando sua história, nossa
História.

Referências:
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas — vol. 2. São Paulo: Globo, 2000.
CAROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.
COHEN, Morton N. Lewis Carroll — uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998.
ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
PIRES, Itamar. Contos de Solibur. Goiânia: Kelps, 1994.
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Yêda Schmaltz

Amor, humor e tumor

“De nada adianta quereres sair da tua solidão. Tens que


nela ficar toda a vida. O vácuo só desaparecerá momenta-
neamente, a espaços. A espaços!”
D. H. Lawrence

Era um desses cinemas ao ar livre que ela tinha muita curiosidade de


conhecer, mas que, não sabia bem o por que, um lugar que nunca tinha
ido. Eles consultaram o jornal do dia e tinha um filme com a Catherine
Deneuve. Então ela quis ir e não teve outro jeito: ele fazia tudo o que ela

— 219 —
queria por que era muito gordo. Antes de sair, ele pôs o olho no caleidos-
cópio e perguntou: pra que serve um caleidoscópio? E ela impaciente da
cegueira dele: pra ficar olhando. Este é do Roberto. E o cego: engraçado,
pra que que o Roberto quer um caleidoscópio? E mais impaciente: pra ficar
olhando. E a frase gorda: vocês têm uns vazios de utilidades!
Eles chegaram já atrasados, tudo escuro, caro, doze cruzeiros a inteira
e mais seis de estacionamento. Ele andava sempre duro, o que não consti-
tuía muita desvantagem. Mas o problema mesmo era o carro. O dele esta-
va na oficina e agora ele mal cabia no voquinho dela.
Enfim entraram, assim, vendidos, pela primeira vez, sem saber como
fazer em cinema ao ar livre, cinema parecendo os que a gente vê no cine-
ma, o povo comendo hot-dog, ela barberando seguindo um muro alto de
bambus, que coisa esquisita! Daí, ela olhou os outros carros estacionados
meio de esgueio, perto de um negócio preto parecendo telefone público,
mas sem a orelha do orelhão e estacionou igualzinho. O filme já havia co-
meçado: era um carrossel que rodava caleidoscópio, rodava e tocava uma
musica bonita, bonita, que ela ouvia, não sei de onde é que sai esse som
e no carrossel tinha umas figuras indecifráveis porque afinal ele rodava
muito depressa, igual o disco de Newton. Mas deu pra ver que tinha uma
mulher rodando e que ela tinha um rabo muito grande. Era um rabo azul.
O nome do filme era “O amor vale tudo” ou “Vale tudo no amor”, ou algo
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que o valha ou não vale nada. Um amontoado de pequenas estórias pica-


rescas, eróticas e pitorescas — casais, duos, na maioria, trios. Mas não
tinha muita graça, eram gralhas de americano rir, esses negócios de abrir
a porta e ficar com a maçaneta na mão. A primeira estória, da Catherine
Deneuve, eles mostrando o rosto dela em close, como sempre. Catherine
bonita, bonita, danada! E ela falou pra ele trocar de lugar com ela, ficar do
lado da direção, pelo menos ela não se sentiria assim, hominho ao lado
dele, dirigindo, e ele falou que só se ela pulasse para o banco da direita,
porque ele ficava sem graça da sair do carro, trocar, todo mundo vendo,
rindo, mas ninguém não vai ver, tá escuro! Então eu não troco, ele dizia,
e pedia para ela pular. Então ela passou as pernas por cima dele, pulou e
ficou bem imprensadinha junto à porta da direita, uma perna ainda meio
por cima da perna dele: passa logo pro banco da direção! E chegou o guar-
da falando que queria arrumar o som e olhando os dois pensando que, e
ele começou a rir por que ficou imprensado, a gordura não conseguindo
passar pelo cambio e ele vermelho pimentão e o guarda olhando com a
maldade vermelha na alma e ela rindo como se fosse na cabeça do guarda
a própria puta, ela rindo, rindo, o guarda falando com a maior au-to-ri-
— 220 —

da-de: precisa manobrar o carro, chegar mais perto do som orelhão; ela
tentando abrir a porta da direita e não abria, ele entalado, a Deneuve sen-
do sonâmbula, a porta não abrindo de jeito nenhum, aquela situação de
poderia não ter acontecido, tanta coincidência assim, puxa, que merda,
ele avançou o braço para fora da janela direita, braço igual o do homem
borracha e abriu a porta por fora, ela saiu do carro, tropeçou na perna do
guarda com a cara de bobo-sabido, deu a volta, ele, como não passava mes-
mo pelo câmbio, voltou para a direita que nela praticamente já estava, ela
manobrou, o guarda pôs o som que ficou numa altura demais, eles então
saíram cada um agora na sua porta e ficaram como queriam: ele na direção
e ela no banco da direita. Eu acho que o guarda pensou. O som num inglês,
que engraçado, inglês de perto assim, a gente até que entende. E aquela
tradução miserável escrita na tela: o som dizia good e vinha escrito “mas
que ótimo meu amor!” O marido da Deneuve muito gordo, que respeitava
ela demais, não dava o que ela queria, chegava em casa gritando angel! e
a tradução vinha “anjinho!” e a Deneuve em close pensando “o meu baleia
chegou” e ele falando para ela não aprender a chamar ele de baleia, só por
que ele imprensou no carro afinal, olha aqui, minha barriga diminuiu, a
direção pode ate rodar. Você é um gordinho sexi. Ele viu os outros fazendo
e acendeu a luz do farolete, chegou então o cara do bar que ele pediu duas
Escol — quer Escol, bruxa? Você devia me chamar era de angel; é gel eu
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

guel? Quero. Você, capeta? Você é uma caixinha de surpresas. Não, eu sou
um poço de sonhos. E acho você tão sem romantismo! Sei. Amor pra você
tem que ser igual os antigos filmes da Pelmex: Sangue! Pasión! Desgracia-
da! Descobri uma coisa, eureka, descobri que você é muito engraçado. Eu-
reka, parece que eu conheço esse nome, é indígena? Ô cultura brasileira,
é o grito que um grego deu na hora de tomar banho, meu baleia. A água
devia de estar pelando, mas tenho certeza que alguém também deu o “gri-
to de Eureka” no Brasil. Grito não sei, também não vou discutir no limbo,
tô pensando no pulo: pra que é que fui pular? Agora to com vergonha do
guarda que fica pensando e passando olhando. A Catherine andando pelo
telhado das casas, sonâmbula de mentira, encontrando com o mais magro
e lá embaixo o marido baleia preocupado: não acordem ela, pelo amor de
Deus, ela pode cair, não acordem ela! E ela, inocente: o que foi que aconte-
ceu, amor? Nada, você sujou o pezinho e ele limpa o pé dela, a lata de Escol
molhada e ele limpando com o guardanapo de papel, a bandeja caindo, ele
todo atrapalhando, onde vou firmar a bandeja, meu Deus, não sei mexer
nos botões do seu carro, que vexame, e o garçom olhando ao lado fingindo
distraído, ele ficando com vinte mãos, de repente, buzinando. Psssiu! E

— 221 —
de novo o carrossel rodando, o rabo azul, outra estória a mão dele escor-
regando, aqui não, amor, mas ela, mão, voltando estabanada, vinte! Era a
Anita Ekberg em decotes e a mão dele no decote da Anita, aqui não, amor,
olha o guarda, tá escuro boba, a Anita só de combinação, o vizinho olhan-
do pelo buraquinho. Eu quero ir no banheiro. Aqui não dá, todo mundo
vai ver e você de longo. Pra que você está de longo? Você sabe que eu não
posso tomar cerveja, cada uma, vou três vezes no mínimo e o banheiro da
Anita Ekberg estragou a torneira e era água, ela molhada, a roupa colada,
o corpo eriçado, para amor! Botões atrapalhados, vinte, banheira cheia e
muita água, ela cruzou as pernas, eu não aguento, quero fazer xixi. Mi-
jona! Não me faz rir que eu não posso. Então vamos embora. Que droga,
vamos. Onde é que eu vou fazer xixi? Oitenta por hora. Defeito de mulher
é não poder ir no poste. O que você quer ganhar de presente no seu ani-
versário? Quero você todinha. Esse presente é muito caro e leva tempo.
Pois eu quero você pelo preço das casas do BNH. Entraram no parque, ela
de longo, correndo, todo mundo olhando, quase tudo escuro, o banheiro
um breu, ela empurrou a porta, caiu algo pesado e barulhento. Você fica
esperando e vigiando aqui na porta, me dá o isqueiro que não tem luz.
Ela de bolsa, isqueiro acesso, saia longa, ai que medo banheiro parecendo
trem fantasma, e se tiver alguém ou alguéns aí dentro? Ai que alívio. Vol-
taram mais devagar, o parque todo parado, mas ela olhou o carrossel e o
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

viu rodando com uma mulher de grande rabo. Era um rabo azul. Mas no
disco de Newton o azul fica branco. E no seio dela, o coração, um tumor
do tamanho da Anita Ekberg, um tumor apodrecido. Ela olhou os próprios
braços e viu vestígios neles. Algo, alguém estava faltando. Então ela ficou
muito triste e ele não entendeu. Ela voltou pra casa como uma sonâmbula.
— 222 —
Cinema e literatura em “Amor, humor, tumor”
Ademir Luiz

Yêda Schmaltz (1941-2005), artista pernambucana radicada em Goiás,


gostava de ser chamada de poeta, não de poetisa. Considerava-se poeta, como
Drummond e Bandeira eram poetas, e também Cecília Meireles. Nesse caso, não
admitia a formal diferenciação de gênero que, de maneira disfarçadamente mi-
sógina, escamoteava a recorrente teoria de que homens e mulheres apresentam
diferentes níveis de capacidade de produção artística. Pode parecer militância
exagerada, mas não foram poucos os pensadores respeitáveis que defenderam
essa perspectiva; indo de Aristóteles até Schopenhauer; passando por Nietzsche
e Borges. Mas, como escreveu Lya Luft, “não existe isso de homem escrever com
vigor e mulher escrever com fragilidade”, e Yêda Schmaltz foi uma das muitas
artistas que provaram isso, ao lado de nomes como Teresa D’Ávila, Anaïs Nin,

— 223 —
Marguerite Yourcenar e, significativamente, George Eliot, pseudônimo masculi-
no que usava Mary Ann Evans.
Segundo Moema de Castro e Silva Olival, em O Espaço da Crítica III, “Yêda
Schmaltz busca a identidade feminina por meio de sua literatura”. Busca que
passava pelos caminhos da psicanálise. A crítica Darcy França Denófrio, ao ana-
lisar os livros A alquimia de nós e Atalanta, identificou forte influência de Jung na
escrita de Yêda Schmaltz. Importante destacar que o primeiro livro é de poesia,
o segundo de prosa. De fato, parece evidente que a prosa de Yêda Schmaltz é
um desdobramento de sua poesia. Em ambos os gêneros Denófrio encontrou de
modo recorrente a presença de dois arquétipos femininos em “diferentes etapas
de seu crescimento psicológico”: a rainha Penélope, a abnegada esposa de Ulis-
ses, e a caçadora Atalanta, que foi abandonada num monte pelo pai que queria
um filho homem, mas sobreviveu acolhida por uma ursa, tornando-se forte e
ágil, vencendo infindáveis corridas e lutas.
A protagonista do conto “Amor, humor e tumor”, publicado em 1980, no li-
vro Miserere, também é uma amalgama dessas duas figuras femininas. Uma mu-
lher que por um lado se submete às pequenas misérias do cotidiano, mas que
espera muito mais da vida do que ela lhe tem oferecido, sendo esse seu dilema. O
título faz referência ao poema Amor/Humor de Oswald de Andrade. Trata-se, na
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

superfície, de um conto de humor quase pastelão, que acaba por desencadear a


eclosão de “tumores” escondidos sob camadas de risos nervosos.
A diferença entre comédia e tragédia é definida pela distância. Se um especta-
dor distante testemunhar alguém escorregar numa casca de banana, o efeito será
cômico. Se estiver próximo o suficiente para ver a expressão de dor causada pelo
impacto, a comicidade desaparece; sendo substituída por pena, por preocupação,
pelo sentimento de urgência em ajudar ou ainda pelo sentimento de culpa por
não ter conseguindo aparar a queda. Em “Amor, humor e tumor”, Yêda Schmaltz
consegue afastar e aproximar sua lupa narrativa de modo a transformar uma
situação prosaica numa experiência de descoberta psicológica perturbadora. Um
dos recursos que usa para isso é a presença do cinema.
Os escritores sempre tiveram uma relação dúbia com a arte cinematográfica.
Alguns trabalharam no cinema, como Sartre e Fitzgerald, mas sem acréscimo de
prestígio por conta disso. Pelo contrário. Não é por acaso que Holden Caulfield,
protagonista de O apanhador no campo de centeio, considera seu irmão escritor,
que foi trabalhar como roteirista de Hollywood, um traidor. Ao mesmo tempo,
o deslumbre audiovisual representado pelo cinema encantou grandes autores.
— 224 —

Máximo Gorki, em 1896, relembra que quando “vi o cinematografo de Lumière,


as fotografias animadas. Este espetáculo cria uma impressão tão complexa que
eu duvido poder descrevê-la em todas suas matizes”. Anos depois, Marcel Proust
refletiu sobre o fato de que “alguns queriam que o romance fosse uma espécie de
desfile cinematográfico” em O Tempo Redescoberto, último volume de Em Busca
do Tempo Perdido. Em A Montanha Mágica, de Thomas Mann, “eles levaram Karen
Karstedt, uma tarde, ao cinema Bioscope, porque ela gostava infinitamente de
tudo isso”. A lista segue com D.H. Lawrence, Nabokov, Paul Valéry, Dylan Tho-
mas, Céline etc. Todos foram ao cinema.
Da mesma forma que os personagens de Yêda Schmaltz. Que não mataram a
família e foram ao cinema, simplesmente foram ao cinema. Esse é o problema, a
vida é medíocre assim. Um dos temas do conto é o que ocorre quando a percep-
ção desse fato acomete uma pessoa cheia de sonhos, fantasias e expectativas?
Em “Amor, humor e tumor”, a personagem feminina, e principal, por pura
inércia, namora um homem sem grandes atributos físicos ou intelectuais. Uma
noite, ela decide ir a um cinema ao ar livre, estilo drive-in, “e não teve outro jeito:
ele fazia tudo o que ela queria porque era muito gordo”. Vão assistir uma comédia
romântica em episódios. Um deles é estrelado pela elegante Catherine Deneuve,
o outro por Anita Akberg, uma atriz famosa pelos seios fartos.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Suas personagens passam por pequenas peripécias domésticas: uma fica “an-
dando pelo telhado, sonâmbula de mentira”, na casa da outra “a torneira que-
brou, e era água, ela molhada, a roupa colada, o corpo eriçado, para o amor”. Para
elas, no mundo de fantasia cinematográfica, o cotidiano não é composto por tor-
turantes tempos mortos, mas de episódios que fatalmente levam ao final feliz.
Não há espaço para aborrecimento nos parcos minutos de projeção que devem
representam a vida inteira daqueles tipos. Sem convencer ninguém, Catherine,
“bonita, bonita, danada!”, e Anita “em decotes”, fingem ser mulheres comuns
e não musas celebérrimas. A beleza constrangedora que exibem salienta ainda
mais a discrepância entre elas e os mortais na plateia. Na tela, o amor é possível,
a felicidade de conto de fadas é possível. “Aquela situação de poderia não ter
acontecido, tanta coincidência assim”.
Na plateia, dentro do carro, o casal também vive seus problemas, que não
rendem gags simpáticas de comédias românticas, mas pequenas humilhações
que vão se somar a outras no banco de constrangimentos que levamos para o
túmulo. Ela reclama que ele não é romântico como o galã do filme. Ele minimiza,
dizendo que “amor pra você, tem que ser igual os antigos filmes da Pelmex: San-

— 225 —
gue! Pasión! Desgraciada!”. A linguagem coloquial usada pela voz narrativa para
desdobrar os diálogos e tecer o enredo salienta a sensação de normalidade. Ação,
aventura e romantismo, apenas na tela.
Saindo da sessão antes do fim, ela se vê obrigada a entrar em um banhei-
ro público imundo e escuro. “Ai que medo, banheiro parecendo trem fantasma”.
Ao sair, repentinamente, se dá conta que sente seu coração como se fosse “um
tumor do tamanho da Anita Akberg, um tumor apodrecido”. A mediocridade é
um tumor que cresce perigosamente. A mediocridade se retroalimenta. O amor
burguês e o humor fácil das comédias românticas são paliativos, mas não são
soluções.

Referências:

CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
PRIEUR, Jerôme. O espectador no futuro — escritores e o cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica III. Goiânia: Ed. da UFG, 2009.
SCHMALTZ, Yêda. Miserere. Brasília: INL, 1980.
Lêda Selma

Estresse Divino

Baita susto tomei

Mesmo sem lhe pedir permissão, aproveitei uma deixa do João Ubal-
do — que abrasileirou, de vez, Deus, e o trouxe à terra — e convidei
o Criador para ficar um tempinho mais por aqui. Queria que visse os
desdobramentos que deram à Sua criação. Deus me livre, ou melhor, Ele
me livre de colocá-Lo em perigo! Uma espiadinha, pensei, não Lhe fará

— 227 —
mal algum. Além do mais, Ele saberá proteger-Se, naturalmente. Apesar
disso, não me omiti, ao contrário, disse-Lhe das distorções que o homem
impingiu a seus feitos e também dos riscos que rondam o ser humano
permanentemente. “Não sou humano, sou Divino e Onipotente”, lem-
brou-me, o que, de certa forma, me tranquilizou.
Baita susto tomei quando soube de sua intenção: um passeio noturno,
a bordo de uma camioneta preta, cabine dupla. De pronto, desaconselhei
tão arriscado desejo; e o fiz sob os argumentos conhecidos por qualquer
brasileiro. Desatendida, cruzei os dedos, fechei os olhos, rezei à Virgem
(mãe é mãe!) e, na falta de um substituto do porte dEle, já que ainda esta-
va em férias — que situação! —, o jeito, apelar aos orixás, até por conve-
niência própria: seria eu a cicerone...
— Assalto! — vociferou o bandido.
— O quê? — perguntou a voz Divina.
— Além de idoso é surdo ou sonso, hem?!
Tentei interferir, claro!, mesmo petrificada pelo tremendo susto de
carne, osso e revólver em riste. Afinal, onde já se viu falar de modo zom-
beteiro com Sua Divindade!? Mas só tentei: a voz escondeu-se atrás do
medo que, não tardou, escorreu-me pernas abaixo.
— Não foi para isso que o criei, filho!
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Filho?! O senhor é de outro planeta ou é azuretado?! E pode alfor-


riar a alma, porque já vou despachar a tal pra Deus...
— Pra mim...?! Francamente! Você é meu filho, sim, tenho certeza!
Mesmo distanciado de minha imagem e semelhança. E quem vai ter a
alma despachada é você. E o detalhe: sem burocracia!
Infarto?! Quase. No meu caso, bem-entendido. Também, pudera: além
do diálogo perigoso, Ele, ou seja, Deus, num átimo, virou as costas ao me-
liante, pode? Não me perguntem de que forma, mas o certo é que nos
safamos da terrível situação. Milagre?! Sabe Deus...
Um pouco à frente, bela igreja. De bom tom visitá-la, pensei. Afinal,
depois de tanto sufoco... Logo, um falso cego pediu: “Uma esmolinha, pelo
amor de Deus!”.
— Pelo amor de quem...? Isso é demais! Que situação a minha: metido
em picaretagem! — esbravejou o Todo-Poderoso. Mal entramos e o cele-
brante: “Falo em nome do Senhor. Coloquem na sacola o dinheiro, e Deus
lhes pagará em dobro!”.
— Em meu nome?! Por acaso, passei alguma procuração a alguém? E,
— 228 —

ainda por cima, eu às voltas com dívida e, pior ainda, com agiotagem?!
Resolvi, para desanuviar o Pai, levá-lo a um barzinho — a ideia, reco-
nheço, foi estapafúrdia —. Já à entrada, o garçom alardeou:
— A casa oferece, como cortesia, aquela cachaça especial, a melhor da
cidade. E, olhem, até um pileque compensa, tamanha a gostosura.
— Não, obrigado, não bebo, respondeu-lhe Deus.
— Escute, doutor, se é por causa da religião, pode ficar tranquilo, Deus
não faz conta desses pecadinhos.
— Não me faltava mais nada: beber cachaça, ficar de pileque e, para
arrematar, fazer vistas grossas a ‘pecadinhos’! Chega! Voltarei ao céu. A
terra não é meu lugar. Partirei na primeira estrela disponível.
Realmente, não foi uma boa ideia, não, não foi, aliás, péssima, confes-
so. Então, para me livrar do desconfortável constrangimento, lembrei-me
de que era domingo, dia de ir ao estádio, e sugeri-Lhe assistirmos a algum
jogo, um jeito esportivo de distrair minha Divina companhia.
— Ao jogo? Nem pensar! Mesmo à paisana, seria logo reconhecido, in-
vocado e, de imediato, tentariam o tal tráfico de influência, pois cada qual
me tem por conterrâneo e torcedor do seu time. Além disso, a depender
das circunstâncias e do time, só mesmo um milagre e dos grandes! E estou
em férias! Deus, isto é, eu próprio, me livre de tamanha enrascada! Tenho
uma Onipotência a zelar, ora! Estou de partida.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

— Então, até um dia, Senhor, e não tenha pressa, pressa nenhuma,


nenhuma, em promover esse nosso reencontro, certo? Vá com Deus, isto
é, acompanhe-Se, amigo!
— Ah! É bom que saiba: amigos, amigos, alma à parte. O Paraíso? Só
por merecimento, ouviu bem? E não tente suborno ou conchavo com meus
auxiliares, está me ouvindo? Senão, facilitarei tudo para a concorrência. E
aí, ficará do jeito que o Diabo gosta.

— 229 —
Um encontro com Deus em “Estresse Divino”
Ewerton Freitas

Em toda sua obra, Lêda Selma — baiana de nascimento, professora forma-


da em Letras e pós-graduada em Linguística —, mescla, na medida certa e com
grande leveza, bom humor e seriedade em relação aos temas de que trata, do que
resultam textos que conduzem os leitores tanto ao riso quanto à reflexão. É o que
acontece, por exemplo, em livros como Nem te conto, Até Deus duvida e Hum... sei
não! O mesmo, claro, não poderia deixar de acontecer em “Estresse divino”.
Esse texto, narrado em primeira pessoa, segue alguns moldes da crônica jor-
nalística — subgênero literário em cuja confecção a autora é exímia —, consis-
tindo, portanto, em uma narrativa breve, que recorta poeticamente um instante
cotidiano — ainda que improvável — e que, em relação ao assunto abordado,
apresenta-se como um relato leve e bem humorado, porém jamais isento de um
— 230 —

caráter mais profundo e reflexivo.


A história se inicia com uma referência a João Ubaldo Ribeiro, autor do conto
“O santo que não acreditava em Deus”, que foi adaptado para o cinema com o
título de Deus é brasileiro, sob a direção de Carlos Diegues. Na narrativa fílmica,
Deus resolve tirar férias e vem para o Brasil, a fim de convidar um santo que não
acreditava n’Ele para substituí-Lo, durante Suas férias, em Suas tarefas divinas.
Aproveitando-se do fato de o Criador já estar em terras brasileiras, a narradora
de “Estresse divino” convida-O “para ficar um tempinho mais por aqui”.
O espanto da supracitada narradora se inicia quando Ele aceita seu convite e
lhe manifesta o desejo de fazer “um passeio noturno, a bordo de uma camioneta
preta, cabine dupla”. Mesmo ela tendo desaconselhado tal passeio, valendo-se
para tanto de argumentos racionais — embora tais argumentos contrariassem
o princípio da fé, já que estando ao lado de Deus não haveria o que temer —, o
Criador mostra-se irredutível e, a bordo do veículo escolhido, saem pelas ruas
da cidade, num processo deambulatório que, de certa forma, lembra os passeios
do flâneur parisiense do século XIX, o qual caminhava pelas ruas de Paris numa
relação de amor e admiração pela sua moderna cidade.
No conto de Lêda Selma, no entanto, não se verifica a presença desse senti-
mento de amor e aconchego em relação à cidade, que, nem sequer, é mostrada em
sua faceta diurna: trata-se, nesse conto, da exposição de uma aventura urbana de
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

dois flanadores que transitam não a pé, mas de carro — uma camionete preta de
cabine dupla, nunca é demais frisar — pelas ruas de uma cidade semi-encoberta
pela escuridão da noite.
E com o que esses dois “flanadores tropicais” se deparam nessa sua aventura?
Com coisas desagradáveis, ainda que esperadas nos dias de hoje: primeiro sofrem
um assalto; logo depois, em frente a uma “bela igreja”, um “falso cego” pede “uma
esmolinha, pelo amor de Deus!”, o que acaba por exasperar o Todo-Poderoso.
Essa exasperação, contudo, é aumentada quando, ao adentrarem a igreja, ouvem
o “celebrante” dizer: “Falo em nome do Senhor. Coloquem na sacola o dinheiro, e
Deus lhes pagará em dobro!”. Após isso, a narradora-cicerone conduz Seu acom-
panhante a um barzinho, onde ouvem o dono do estabelecimento afirmar, ante a
recusa do Criador por uma bebida alcoólica, o seguinte: “Escute, doutor, se é por
causa da religião, pode ficar tranquilo, Deus não faz conta desses pecadinhos”.
Embora isso não seja explicitado na narrativa, nesse instante o leitor pressente
o desejo divino de antecipar o prometido advento de Seu fogo consumidor sobre
a face da terra...
Por último, a narradora convida seu acompanhante para irem a um jogo de

— 231 —
futebol, mas a esse local Ele não se digna ir, alegando que seria invocado por am-
bos os times, cujo desempenho, talvez, não fosse melhorado nem mesmo com o
auxílio de um milagre. Depois disso? Depois disso o Criador decide retornar ao
Seu paraíso, mas não sem antes fazer um alerta à narradora, que o chamara de
amigo, dizendo-lhe que “amigos, amigos, alma à parte. O Paraíso? Só por mereci-
mento, ouviu bem? E não tente suborno ou conchavo com meus auxiliares, está
me ouvindo? Senão, facilitarei tudo para a concorrência. E aí, ficará do jeito que
o Diabo gosta”.
Após essa admoestação divina, o conto chega ao seu final. Ao leitor fica a
sensação de que realmente a coisa — cidade violenta, homens religiosos deso-
nestos, pessoas mentirosas e enganadoras — está do jeito que o diabo gosta. À
narradora, que almejou mostrar a cidade para Deus e acabou, mesmo sem querer,
por espantá-Lo, fica a sensação de que, se não se preservar em meio a essa cidade
que bem poderia ser Babilônia ou Babel, pode passar a eternidade em um lugar
presumivelmente bem pior...
Mas... Nem te conto! Se no filme Deus é brasileiro o Criador sobe aos céus com
uma impressão não de todo negativa do povo brasileiro, em “Estresse divino” Ele,
após presenciar coisas das quais até Deus duvida, ou melhor, das quais até Ele
mesmo duvida, sobe para Sua glória estarrecido, irritado e, no limite, estressado
com os desatinos da humanidade que criou. Além de deixar uma narradora —
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

que tão bem o recepcionou — com uma preocupação a mais: a de agradá-Lo até
o fim, caso não queira ser acompanhante da “concorrência”, ou seja, do capeta.
Será que Deus voltará a andar de camionete preta cabine dupla pelas ruas obscu-
ras de alguma cidade brasileira? Hum... sei não!

Referências:

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.
GOTLIB, Nádia Battela (Org.). A mulher na literatura, vol. 2 e 3. Belo Horizonte: UFMG/ANPOLL,1990.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8. ed. São Paulo: Ed. Almedina, 2004.
— 232 —
Delermando Vieira

O Chapéu

“E quisera morrer, uma tarde,


sob um céu rosado, murmurando
palavras formosas por uma
formosa causa”.
Edmond Rostand

No dia 29 de junho de 1971, Luccio Borges rodava em seu Gordini ama-


relo pela rodovia Lafaiete Moura, quando sobre a relva ruiva, queimada
pelos sopros do vento da seca, do inverno, avistou um chapéu de abas

— 233 —
largas, vermelho arroxeado, caído junto ao pé de um velho cipreste. Achou
interessante, uma vez que não havia ninguém por perto. Recuando, então,
o veículo a uns vinte metros, parou, desceu e apanhou-o, colocando-o, em
seguida, na cabeça, e lá se foi. Quem perdera-o ele não sabia, sequer tinha
ideia, mas que ele era lindo, ah, isso era. No seu interior, bem percebera
Luccio, havia uma almofada negra, com um endereço de uma loja para ves-
timentas de defuntos e, também, um símbolo retratando uma serpente se
enroscando num laminado e rústico tridente, onde em altos relevos desta-
cavam palavras bordadas em latim, dizendo: Morsus Doloris. Às custas de
muita pesquisa, após um certo e moroso prazo de tempo, pôde ele saber
que tais palavras latinas nada mais diziam que vivo pesar.
Luccio Borges era meu amigo e, por ele mesmo e nossa amizade, preo-
cupei-me em acompanhar de perto os fatos que envolviam aquele chapéu.
Não fora muito tempo o uso desse chapéu notável por parte de Luccio.
Ele, por certo, chamava muito atenção, devido a sua estranha e bela apa-
rência, sendo, no entanto, magnético, chamativo e inevitável.
Quem se apossava dele, certamente em poucos meses haveria de nota-
bilizar-se, enriquecer-se. Sim, não fora muito tempo o uso desse chapéu
por parte do meu jovem e sincero amigo, posto que alguma coisa longe do
natural passou a existir em sua vida.
Luccio Borges era arquiteto moderno. No espaço de seis meses, logo
que havia projetado o enorme e arquitetônico Arpias, edifício de 60 an-
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

dares, todo de acrílico e vidraças chumbadas de placas e granitos róseos,


ficara famoso e, no decorrer de poucos anos, vários trabalhos em sua área
foram lhe aparecendo, a tal ponto que ele se tornara muito rico, tendo,
porém, o incrível desgosto de nunca mais encontrar alguém para ser seu
verdadeiro amor.
Num feriado de setembro, fora ele pescar no rio das Almas. Em dado
momento, sem que nada houvesse de contrário, a canoa virou e as águas
finalmente o engoliram. Vários dias depois seu chapéu, que tinha descido
rio abaixo, fora recolhido por um fiscal da floresta, cujo nome era Ivan.
Ivan não tinha ninguém, vivia sozinho na floresta densa, vasta, quase
impenetrável, isolado do mundo. Não se preocupou em examinar aquele
chapéu, e também não era de seu feitio examinar coisas raras, confusas.
Um mês depois, buscou ele a sorte na loteria e acertou. Como num
estalar de dedos ficara rico, e tantos amigos, entre aspas, também fiscais,
passaram a visitá-lo frequentemente. Também como Luccio, o amor lhe
faltara. Nunca mais teve nos braços uma pessoa que realmente nutrisse
por ele algum amor. Cansado, então, de seu ofício, intentou o repouso,
isto é, pôs-se a largar para sempre aquele serviço. Antes, porém, de aban-
donar o lugar, que ele tanto vivera e trabalhara, achou por bem sair para
— 234 —

pescar, viver, com sabor seus últimos dias naquela região.


Num período passado, diria eu que acompanhei seu caso dentro de dois
meses, fora ele encontrado comido pelas formigas. Durante uma noite
chuvosa, caminhando pela floresta fechada, caíra ele num poço seco e es-
curo, fundo, uma espécie de vala desconhecida por muitos ali no posto po-
licial. E o chapéu, que àquela hora estava na sua cabeça, onde caíra? Esse,
no despencar do corpo de Ivan, voara, indo prender-se entre as galhas de
uma toicera agreste. Recolhendo o corpo do fiscal, tenente Flamarion vis-
lumbrou sobre a toicera agreste o chapéu. Gostou muito dele e, por isso,
daquele dia em diante com certeza passaria a usá-lo; e fora o que afinal
acontecera.
O verão chegara. Flamarion, com cinco anos usando o chapéu, de repen-
te viu que sua vida mudara totalmente. Jovem, solteiro, não tinha irmãos.
Era filho único; e seu pai, viúvo. Com a insanidade de súbito agredindo a
mente, o espírito, do velho, ele em obediência à lei, passou a gerenciar,
dirigir, toda a fortuna que seu progenitor possuía; e, por isso mesmo, não
hesitou muito para interná-lo num manicômio público, de subúrbio. Por
sorte sua, ou quem sabe?, por azar mesmo, arrumou um amor, uma bela e
dócil italiana. O amor, após tantos anos, enfim batera à sua porta.
O enterro do tenente Flamarion acontecera num fim de semana enso-
larado. Ninguém o acompanhou no seu derradeiro passo, além do pessoal
da polícia. Fora um enterro discreto, fugidio, coisa de quem nada tem no
mundo, nem mesmo o amor que pensara ter de alguém.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

Ao casar-se com Paola, casara-se com comunhão universal de bens e,


devido a isso, ela, ciente então da fortuna dele, executou o planejado: co-
locou no seu ensopado pó de vidro moído.
Fugindo de seu crime, a jovem italiana levara consigo aquele chapéu,
pois sempre o achara muito lindo, estranho. Várias vezes pediu ele ao te-
nente Flamarion. Na verdade, não durou muito para que ela falecesse. Em
poucos meses, teria gastado por meio de subterfúgio todo o dinheiro do
marido morto, assassinado, que por um lapso da lei ainda estava em seu
poder; contraíra no correr de meses uma doença maligna, séria, ignorada,
na época, por vários doutos no assunto. Morreu seca, miúda e esquelética.
Efetuada a extrema unção, padre Nelson solicitou à funerária a crema-
ção do corpo, uma vez que já avisara à família da moça na Europa. A pedi-
do dessa, o corpo deveria ser cremado.
Antes de fechar a casa de Paola, organizar com esmero suas coisas, após
enviar quase tudo à família dela, padre Nelson, revirando novamente o
que de menos importância havia ficado naquele ambiente, distinguiu en-
tre roupas e sapatos velhos aquele chapéu vermelho-arroxeado já gasto
pelo tempo, interessante. À primeira vista, encantou-se com a beleza dele.
Assim, rapidamente, enfiou-o na cabeça e saiu.

— 235 —
Padre Nelson, naquela quarta-feira de muito inverno, acabara de cele-
brar a missa, ali na Paróquia dos Aflitos, naquele bairro escabroso em suas
ruas, suas casas e calçadas. Vinha ele solitário, engolfado no seu passado,
tão longe por sinal, pela avenida Rebouças, movimentada por caminhões,
automóveis, motocicletas, carroças, alunos que àquela hora saíam do Co-
légio Julio Milagro.
Quando fora atravessar a rua, um cavalo e sua carroça disparam pela
avenida. Houve uma correria enorme, pessoas buscando abrigo, prote-
ção. Não houve tempo para o velho sacerdote proteger-se. O cavalo e
a carroça atropelaram-no em cheio. Foram arrastando seu corpo pelo
asfalto afora, quebrando-o, esfregando contra o solo suas partes, seu
rosto, seu pescoço, a espinha, a cabeça retorcida. Os transeuntes ficaram
nervosos, apavorados, ali, ante o corpo do padre esmagado, a cabeça vi-
rada para trás, às costas.
Nesse ínterim, o chapéu, que antes estava na sua cabeça, voara e fora
cair lá longe na calçada, rente à porta de uma loja funerária. Foi, então,
que uma linda criança loura, dos olhos azuis, inocentes, puros, apanhou
na calçada o chapéu. No interior da loja, Fabíola, a criança, aproximando-
se daquela senhora, que era sua mãe, disse num tom adocicado: “Veja,
mamãe, não é lindo? Lembra-se? Onde vamos colocá-lo?” A senhora gor-
da, duma feição austera, pesada, respondeu: “Onde você quiser, filhinha.
Afinal, há muito o esperávamos, não?”
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

No ano de 1978, passando eu em frente àquela loja, pude perceber que


ele ainda estava lá sobre a cabeça daquele antigo manequim negro chama-
do Tatiane. Ventava muito naquele dia. Umas nuvens obumbras e metáli-
cas pairavam no ar, nos céus da cidade. Preocupado, pois estava eu ciente
de sua história, busquei a parte interna da loja. Entrei. Não havia nin-
guém. Somente o proprietário apareceu, entre os ataúdes e as vestimentas
do fundo. Achegando-se pálido, mirrado e corcunda, perguntou-me, entre
um soluço e outro: — Que foi? Em que posso servi-lo? Deseja alguma rou-
pa, algo para funeral?
— Não. O senhor é o proprietário? Indaguei.
E ele, reflexivo, franzindo o cenho: — Sou, e por que não?
Procurei, curioso, sobre a senhora, ex-proprietária do estabelecimento
e sua filha Fabíola.
Buscando a luz nas vitrines, o ancião respondeu-me: — Venderam-me
e foram embora.
Olhando para os lados, fixando inteiramente meu olhar sobre o cha-
péu, interroguei: —E aquele chapéu, é pra venda?
E ele: — Ah, não, aquele sempre foi daquela menininha loura e sua
mãe. Era relíquia delas. Gostavam demais dele. Antes de eu adquirir a loja,
— 236 —

trabalhei durante anos para a senhora Thamur, mãe de Fabíola. Elas brin-
cavam muito acerca deste chapéu. Por ter enquanto ramo de trabalho esta
loja, diziam repetidas vezes que este chapéu é o chapéu dos mortos. Ago-
ra, ultimamente, ele está aqui esquecido. Não sei se voltarão por cá mais,
uma vez que se foram há bastante tempo. Nem sinal deram-me a respeito
de sua volta. Desde que ele retornou aqui, nunca alguém se interessou por
obtê-lo.
Num relance, antes que ele concluísse, perguntei convicto de que a res-
posta seria a esperada: — Mas, ele havia desaparecido daqui?
Solícito e abotoando lentamente o paletó, falou-me: — Sim, alguém o
furtou da loja. Mas isso foi há sete anos. Ele somente voltou a esta loja no
dia em que aquele sacerdote foi atropelado aqui na Rebouças. Até então
ele está aqui. Parece-me que Fabíola e sua mãe Thamur têm interesse em
passá-lo para frente. Acaso, o senhor deseja, pretende mesmo comprá-lo?

(“Julgas tu, por acaso,


que as cinzas dos mortos
se preocupam com os
assuntos terrenos”)
Virgílio
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O senhor pode fazer um bonito embrulho, é para a minha esposa, disse


eu ao proprietário da loja de vestimentas para defuntos.
Depois de embrulhado e guardado em uma caixa enorme, oval, dourada
e prateada, paguei-o. Em seguida, dirigi-me ao correio. Com muito gosto,
salutar prazer de quem vai enterrar o inimigo, enviei o chapéu, juntamente
com um cartão de aniversário, à minha querida esposa. Certamente ficará
feliz, pensei. Faltava, dali em diante, pouco tempo para eu ficar inteiramen-
te livre, liberto de todo. Após comprar uma belíssima corbeille de gerânios
e cravos vermelhos, passar em uma cervejaria, na parte central da cidade, e
ali ingerir uns quatro copos de cerveja, dirigi-me à casa de Clarissa, minha
amante, meu amor. Fazia frio, ventava mole nas copas das árvores. Uma
chuva lenta começou a cair sobre as casas, os telhados antigos. Um cão ga-
nia doído debaixo dum pé de castanheira abandonada, na esquina. Era tar-
de de sexta-feira. Nenhum pardal nos fios, nos telhados, nas ruas. Só no dia,
naquela rua, eu e o ganido do cão, duas almas estranhas demais para a vida.

— 237 —
Mistério e horror em “O Chapéu”
Ademir Luiz

Henry James foi um prosador que jamais publicou um verso. Ted Hughes
era um poeta que eventualmente escreveu alguns contos. Diferentemente, Jorge
Luis Borges foi poeta e contista em igual medida, embora tenha sido mais reco-
nhecido por suas narrativas curtas. O inverso cabe para o escritor Delermando
Vieira. O goiano de Caldas Novas, nascido em 1950, costuma ser mais lembrado
como poeta, mas dedicou-se de maneira sólida à construção de sua obra em pro-
sa. O livro A dor de amar demônios, vencedor do Prêmio Bolsa de Publicações Cora
Coralina de 1996, testemunha esse esforço.
Trata-se de um livro temático. Os treze contos que compõem seu conjunto
dialogam com o misterioso, o mágico, o demoníaco. Não se trata, porém, do hor-
ror sanguinolento, escatológico, ao estilo de Clive Barker ou Stephen King. Filia-
— 238 —

se tampouco a tradição do horror de ficção científica na linha do cosmicismo de


H. P. Lovecraft, onde a presença de criaturas anti-humanas revela o universo
físico como um abismo a ser explorado. Os contos fantásticos de Delermando
Vieira flertam mais com as narrativas de Edgar Allan Poe, onde o estado psico-
lógico dos personagens é tão importante quanto os eventos mirabolantes que
eles vivenciam. Em A dor de amar demônios, o inexplicável tanto pode ser fruto de
uma maldição quanto de simples coincidência. O que gera um medo ainda mais
sutil, pois, implicitamente, significa que qualquer um pode passar pelas mesmas
situações que os desgraçados protagonistas das treze histórias.
Ao lado de Poe, nota-se uma nítida influência da mística borgeana, tão carac-
terizada pela presença de objetos miraculosos: o Aleph, o Livro de Areia, o Disco
Invisível etc. Todos eles, de algum modo, são Zahir.
Segundo Borges, “a crença no Zahir é islâmica e data, ao que parece, do sé-
culo XVIII (...) chamava-o de ‘os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser
inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas’”. Em Buenos Aires
dos anos de 1940, o Zahir era uma moeda de vinte centavos, mas “em Guzerat,
em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir”. No Brasil da década de 1990 deve ter
sido um “chapéu de abas largas, vermelho arroxeado”, o legitimo protagonista do
conto intitulado justamente de “O Chapéu”, de Delermando Vieira.
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

O primeiro a ter contato com o chapéu / Zahir na narrativa foi um arquite-


to chamado Luccio Borges. O nome Luccio é uma variação latina de Lux, Luz;
justamente o que faltava ao escritor cego Jorge Luis Borges, arquiteto artístico
de mundos inteiros, como no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Testius”, de O jardim de
veredas que se bifurcam, ou mesmo da infinita “Biblioteca de Babel”. Vale destacar
que o narrador do conto “O Zahir”, que o gênio argentino publicou na coletânea
O Aleph, de 1949, é seu recorrente alterego também chamado Borges.
No interior do chapéu leem-se “palavras bordadas em latim, dizendo: Morsus
Doloris”, ou seja: “vivo pesar”. De fato, Luccio Borges em pouco tempo “se torna-
ra muito rico, tendo, porém, o incrível desgosto de nunca mais encontrar alguém
para ser seu verdadeiro amor”. Morre sugado por um redemoinho, durante uma
pescaria. Um fiscal da floresta chamado Ivan encontrou o chapéu e ficou com ele.
Logo ganhou na loteria e logo morreu. Seu colega, tenente Flamarion herdou o
chapéu, herdou a fortuna do pai e morreu assassinado pela jovem esposa italiana
Paola, num crime perfeito. A viúva negra pouco pôde desfrutar dos bens do fale-
cido, pois contraiu uma doença maligna e “morreu seca, miúda e esquelética”. Fi-
nalmente, padre Nelson, organizando os pertences da assassina para enviar para

— 239 —
família, encontrou o chapéu “já gasto pelo tempo, interessante. À primeira vista,
encantou-se com a beleza dele. Assim, rapidamente, enfiou-o na cabeça e saiu”.
Não tardou para cobiça do clérigo ser castigada. O voto de pobreza deve tê-lo
impedido de enriquecer, mas sua fé não o salvou de ser atropelado diante da loja
de “vestimentas para defuntos” da qual o chapéu foi roubado sete anos antes.
Ao introduzir na ação um personagem que até então havia sido um narrador
passivo, Delermando Vieira insere de modo inusitado, no meio do texto, uma
segunda epígrafe. Depois de Edmond Rostand, autor da tragicomédia român-
tica Cyrano de Bergerac, cita uma ode mortuária de Virgílio, o primeiro guia de
Dante em sua busca por Beatriz. Virgílio, na Divina Comédia, personifica a razão.
É preciso ser racional, e até mesmo maquiavélico, para conseguir ultrapassar as
barreiras do inferno e do purgatório e merecer alcançar o paraíso amoroso. De
natureza dantesca, “alma estranha demais para a vida”, o novo personagem não
é como os anteriores.
Da mesma forma que o Borges que narra “O Zahir”, o narrador de “O Cha-
péu” conhece a natureza extraordinário daquele acessório vermelho arroxeado
unissex e imune as mudanças na moda. Desde que seu amigo Luccio faleceu,
rastreou-o, estudou-o. Seu objetivo é usá-lo como uma indetectável arma de de-
samor, enviando-o em “um bonito embrulho” como presente a esposa. Ciente do
Uma antologia do conto goiano contemporâneo

perigo, não se deixou tentar pelo desejo de posse. Talvez por já ter encontrado
“Clarissa, minha amante, meu amor”. O amor verdadeiro blindou-o contra a fas-
cinação agourenta do chapéu.

Referências:

BORGES, Jorge Luis. Obras completas — vol. I. São Paulo: Globo, 2000.
TIMPONE, Anthony (Org). Stephen King / Clive Barker — Mestres do terror. São Paulo: Editora Unicórnio
Azul, 1998.
VIEIRA, Delermando. A dor de amar demônios. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1997.
— 240 —
Organizadores

Ademir Luiz - Doutor em História pela Universidade Federal de


Goiás (UFG) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Vencedor do Prêmio Bolsa de Publicações Cora Coralina de 2002
(categoria romance). Seu trabalho de doutoramento foi indicado
ao Prêmio Capes de Teses 2009. Membro da ABREM (Associação
Brasileira de Estudos Medievais). Bolsista pesquisador do Institu-
to Camões de Portugal (2002). Docente do programa de mestrado
interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado.
Faz estágio de pós-doutorado em Poéticas Visuais e Processos de
Criação na Faculdade de Artes Visuais / UFG. Correio eletrônico:
ademir.hist@bol.com.br

Carlos Augusto Silva: Mestrando em Estudos Literários pelo Pro-


grama de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). Publicou em
2009 o livro Dicionário Proust: as personagens de Em busca do tem-
po perdido. No mesmo ano organizou a antologia dos quarenta
anos de carreira poética de Heleno Godoy, A ordenação dos dias,
e em 2011 publicou o livro Proust e a História: ensaios sobre Em
busca do tempo perdido. Escreve, desde 2006, artigos de crítica li-
terária em jornais impressos e revistas da internet. Correio ele-
trônico: carlosliteratum@yahoo.com.br

Ewerton Freitas: Escritor e cronista. Doutor em Literaturas em


Língua Portuguesa - UNESP (2008) com estágio pós-doutoral em
Literatura Brasileira - UNESP (2011). Atualmente é professor ti-
tular da Universidade Estadual de Goiás/Anápolis, onde coordena
o Curso de Letras e também atua junto ao MIELT - Mestrado In-
terdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias. Editor do
periódico acadêmico Via Litterae. Membro do Comitê Interno de
Pesquisa da UEG. Coordenador do projeto de pesquisa Figurações
da cidade na literatura brasileira contemporânea, financiado pelo
CNPq (2012). Líder do Grupo de Pesquisa ERUDIO. Correio ele-
trônico: ewertondefreitas@uol.com.br
Em apoio à sustentabilidade, à preservação
ambiental, a Asa Editora Gráfica/ Kelps, declara
que este livro foi impresso com papel produzido
de florestas cultivadas em áreas não degradadas e
que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Asa Editora Gráfica/


Kelps, no papel: Off-set 75g, composto na fonte
Chaparral Pro, corpos 8,10,12 e 16
Janeiro, 2013

A revisão final desta obra é de responsabilidade do autor

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