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EMÍLIO

O U Da Educação

J.-J. Rousseau

Tradiivào
u<)iii:in<) i.KAi. | - I ; K U I : I I Í A

Martins Fontes
São Paulo 1999
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assunto, não entram em meu plano. O u t r o s poderão, se qui-


serem, ocupar-se delas, cada qual para o país ou Estado que
tiver c m vista. Para m i m , basta que em toda parte onde nas-
ceram homens se possa fazer deles o que proponho; e que,
tendo feito deles o que p r o p o n h o , se tenha feito o que há LIVRO I
de melhor, tanto para eles próprios quanto para os outros.
Se não c u m p r i r este comprtimisso, sem dúvida terei erra-
do; se porém cumpri-lo, será errado também exigir mais T u d o está bem quando sai das mãos do autor das coi-
de m i m , pois é só isso que prometo. sas, tudo degenera entre as mãos do h o m e m . E l e força u m a
terra a alimentar as produções de outra, u m a árvore a car-
regar os frutos de outra. M i s t u r a e confunde os climas, os
elementos, as estações. M u t i l a seu cão, seu cavalo, seu es-
cravo. Perturba tudo, desfigura tudo, ama a deformidade
e os monstros. N ã o quer nada da maneira c o m o a natureza
o fez, nem mesmo o h o m e m ; é preciso que seja domado
por ele, como u m cavalo adestrador; é preciso apará-lo à
sua maneira, como u m a árvore de seu j a r d i m .
Sem isso, tudo iria ainda pior, e nossa espécie não quer
ser moldada pela metade. N o estado em que agora as coisas
estão, u m h o m e m abandonado a si mesmo desde o nasci-
mento entre os outros seria o mais desfigurado de todos.
O s preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo,
todas as instituições sociais em que estamos submersos aba-
fariam nele a natureza, e nada p o r i a m em seu lugar. Seria
como u m arbusto que o acaso faz nascer no meio de u m
caminho, e que os passantes logo fazem morrer, atingindo-o
em todas as partes e dobrando-o em todas as direções.
E a t i que me dirijo, terna e previdente m ã e * , que sou-

* A primeira educação é mais importante e cabe incontestavelmente às mu-


lheres. Se o autor da natureza liouvesse desejado que ela coubesse aos homens, ter-
Ihes-ia dado leite para alimentar as crianças. Assim, falai sempre de preferência às
mulheres em vossos tratados sobre a educação, pois, além de estarem em condições
de tratá-la mais de perto do que os homens e de influírem sempre mais, o êxito tam-
bém lhes interessa muito mais, já que a maior parte das viúvas se acha como que
à mercê dos filhos e eles então lhe fazem sentir vivamente, no bem e no mal, o efei-
to da maneira como foram criados. Sempre muito ocupadas com os bens e pouco
com as pessoas, por terem como objeto a paz e não a vinude, as leis não dão bastan-
te autoridade às mães. Todavia, sua condição é mais segura do que a dos pais e seus
deveres são mais duros; seus cuidados são mais importantes para a boa ordem da
família e, geralmente, elas têm maior apego às crianças. Ocasiões há em que um
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beste afastar-te da estrada principal e proteger o arbusto nas-


nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação
cente do choque das opiniões humanas! C u l t i v a , rega a jo-
dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência so-
vem planta antes que ela m o r r a ; u m dia, seus frutos serão
bre os objetos que nos afetam é a educação das coisas.
tuas delícias. I ' o r m a desde cedo um cercado ao redor da al-
A s s i m , cada u m de nós é formado por três tipos de mes-
ma de teu filho; outra pessoa pode marcar o seu traçado,
tres. O discípulo em quem suas diversas lições se opõem
mas apenas tu podes colocar a cerca*.
é mal educado e jamais estará de acordo consigo mesmo;
Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela edu-
aquele em quem todas elas recaem sobre os mesmos pon-
cação. Se o h o m e m nascesse grande e forte, a estatura e a
tos e tendem aos mesmos fins vai sozinho para seu objeti-
força ser-lhe-iam imiteis até que tivesse aprendido a servir-
vo e vive consequentemente. Só esse é bem educado.
se delas; ser-lhe-iam prejudiciais, pois impediriam que os ou-
O r a , dessas três educações diferentes, a da natureza não
tros pensassem em socorrê-lo** e, entregue a si mesmo, mor- depende de nós; a das coisas, só em alguns aspectos. A dos
reria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades. homens é a única de que somos realmente senhores; mes-
Q u e i x a m o - n o s da condição infantil e não vemos que a raça mo assim, só o somos por suposição, pois quem pode espe-
humana teria perecido se o homem não tivesse começado rar dirigir inteiramente as palavras e as ações de todos os
por ser criança. que rodeiam u m a criança?
Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos caren-
Portanto, u m a vez que a educação é u m a arte, é quase
tes de tudo, precisamos de assistência; nascemos esttípidos,
impossível que ela tenha êxito, já que o concurso necessá-
precisamos de juízo. T u d o o que não temos ao nascer e de rio a seu sucesso não depende de ninguém. T u d o o que po-
que precisamos quando grandes nos é dado pela educação. demos fazer à custa de esforços é nos a p r o x i m a r mais ou
Essa educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou menos do alvo, mas é j ) r e c i s o sorte para atingi-lo.
das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculda- Q u a l é esse alvo? E o mesmo da natureza, isso acaba
des e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que de ser provado. J á que o concurso das três educações é ne-
cessário para a perfeição delas, é para aquela quanto à qual
l i l l l d que ilfsifspcit.l o p.ii P ( K ) C tK- .tlmim i i K n l d sfr (li-M.lilp.ulo; sc, porem, ein qu.ll-
illlcr iK.lsi.1n qiu- scj.t, um tilllo t i i N s f t . l o i l i - s ( i . i ( l u . u l c i .1 pnlllo ile (lesiespi-ilJl %U4 nada podemos que c preciso dirigir as duas outras. Mas tal-
m.ie, »quela que o ciiriegou cni seu seio, que o alimentou com seu leile e, durante vez o termo natureza tenha u m sentido vago demais. C u m -
anos, esqueceu-se de si mesma para só se ocupar dele, dever-se-ia ler pressa em es-
trangular esse miserável como um monstro indigno de ver a luz. Dizem que as mães
pre determiná-lo aqui.
mimam os filhos. Neste ponto, sem dúvida, cias erram, mas erram menos do que D i z e m que a natureza é apenas o h á b i t o * . Q u e signifi-
vós, talvt'/, que os depr.iv.tis. A iii.íe iiuci que sfu lilho seja feliz, e isto desde agor.t. ca isso? N ã o existem hábitos que só se contraem pela força
Kla tem razão; se se engana quanto aos meios, devemos esclarecê-la. A ambição, a
avareza, a tirania, a falsa previdência dos pais, sua negligência, sua dura insensibili-
e jamais abafam a natureza? A s s i m é, por exemplo, o hábi-
dade são cem vezes mais funestas para as crianças do que a cega ternura das mães. to das plantas cuja orientação vertical é contrariada. Posta
De resto, é preciso explicar o sentido que dou à palavra mãe, e é o que farei em em liberdade, a planta conserva a inclinação que a força-
seguida.
r a m a tomar, mas nem por isso a seiva muda sua direção
* Garantem-me que o sr. Formey achou que eu queria aqui falar de minha mãe,
e que disse isso em algum livro. Isso equivale a zombar cruelmente do sr. Formey
ou de mim. * o sr. Formey garante-nos que não se diz exatamente isso. Todavia, isso me
Semelhante a eles pelo exterior e sem a palavra e as ideias que ela exprime, parece exatamente o que está dito neste verso a que me propunha responder:
estaria sem condições de lhes comunicar a necessidade que teria de seu auxílio, e A natureza, acredite, não é nada além do hábito.
nada nele lhes manifestaria esta necessidade. O sr. Formey, que não pretende orgulhar seus semelhantes, modestamente nos
apresenta a medida de seu cérebro como a do entendimento humano.
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p r i m i t i v a e, se a planta continuar a vegetar, seu prolonga- estrangeiros: são apenas homens, nada são a seus o l h o s * .
mento voltará a ser vertical. O mesmo ocorre c o m as incli- Esse inconveniente é inevitável, mas é fraco. O essencial
nações dos homens. E n q u a n t o permanecemos na mesma é ser bom com as pessoas c o m quem se v i v e . F o r a , o espar-
condição, podemos conservar as que resultam do hábito e tano era ambicioso, avaro, iníquo, mas o desinteresse, a eqiii-
nos são menos naturais; mas, assim que a situação muda, dade e a concórdia reinavam em sua cidade. Desconfiai des-
o hábito cessa e a natureza retorna. A educação certamen- ses cosmopolitas que vão procurar longe nos livros os de-
te não é senão um hábito. O r a , não há pessoas que esque- veres que desdenham cumprir ao seu redor. T a l filósofo ama
cem ou perdem a educação, e outras que a conservam? D e os tártaros para não ser obrigado a amar seus v i z i n h o s .
onde v e m essa diferença? Sc é para restringir o nome de O h o m e m natural é tudo para si mesmo; é a unidade
natureza aos hábitos conformes à natureza, podemos pou- numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo
par este galimaiias. mesmo ou com seu semelhante. O h o m e m c i v i l é apenas
Nascemos sensíveis e, desde o nascimento, somos afe- uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cu-
tados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam. jo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo so-
A s s i m que adquirimos, por assim di/.er, a consciência de cial. A s boas instituições sociais são as que melhor sabem
nossas sensações, estamos dispostos a procurar ou a evitar desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para
os objetos que as produzem, em p r i m e i r o lugar conforme dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade co-
cias sejam agradáveis ou desagradáveis, depois, conforme a m u m , de sorte que cada particular não se julgue mais co-
mo tal, e sim como u m a parte da unidade, e só seja percep-
conveniência ou inconveniência que encontramos entre nós
tível no todo. U m cidadão de R o m a não era nem C a i u s ,
e esses objetos, e, e n f i m , conforme os juízos que fazemos
nem L u c i u s ; era u m r o m a n o e até mesmo amava exclusiva-
sobre a ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos
mente a sua própria pátria. Regulus pretendia-se cartaginês,
dá. Essas disposições estendem-se e firmam-se à medida que
quando se t o r n o u propriedade de seus senhores. N a quali-
nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; forçadas,
dade de estrangeiro, recusava-se a participar do senado de
porém, por nossos hábitos, cias se alteram mais ou menos
R o m a ; foi preciso que u m cartaginês lho ordenasse. Indig-
segundo nossas opiniões. Antes dc t.il alteração, cias são o
nava-se por quererem salvar-lhe a vida. V e n c e u e, triunfan-
que chamo em nós a natureza.
te, retornou para m o r r e r no suplício. Isso, ao que me pare-
Portanto, é com essas disposições primitivas que deve- ce, não tem m u i t o a ver com os homens que conhecemos.
ríamos relacionar tudo, e isso seria possível se nossas três
O lacedemônio Pedareta apresenta-se para ser admiti-
educações fossem apenas diferentes; que fazer, porém, se
do no conselho dos trezentos, é rejeitado e volta m u i t o fe-
são opostas, se, em vez de educar uin homem para si mes-
liz por haver em Esparta trezentos homens que valem mais
mo, queremos educá-lo para os outros? Este acordo torna-
do que ele. Suponho que era u m a demonstração sincera,
se, então, impossível. Forçado a combater a natureza ou
e cabe acreditar que o fosse: eis o cidadão.
as instituições sociais, é preciso optar entre fazer u m ho-
u m a m u l h e r de Esparta t i n h a cinco filhos no exército
m e m ou u m cidadão, pois nao se podem fazer os dois ao
mesmo tempo.
* Assim, as guerras das repúblicas são mais cruéis do que as das monarquias.
T o d a sociedade parcial, quando é pequena e muito uni- Mas, se a guerra dos reis é moderada, terrível é a sua paz — mais vale ser seu inimigo
do que seu súdito.
da, aliena-se da grande. T o d o patriota é duro para com os
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N a ordem social, onde todos os postos sào marcados, portanto, sào três coisas tâo diferentes n o que se refere ao
cada u m deve ser educado para o seu. Se u m particular for- seu objeto quanto a governanta, o preceptor e o professor.
mado para seu posto v e m a deixá-lo, já não serve para na- Estas distinções, porém, não são bem compreendidas e, pa-
da. A educação só é útil na medida em que a fortuna se har- ra ser bem dirigida, a criança deve seguir u m só guia.
monize c o m a vocação dos pais; em qualquer o u t r o caso, D e v e m o s , pois, generalizar nossas ideias e considerar
ela é nociva ao aluno, ao menos pelos preconceitos que lhe em nosso aluno o h o m e m abstrato, o h o m e m exposto a to-
i n c u l c o u . N o E g i t o , onde o f i l h o era obrigado a abraçar dos os acidentes da vida h u m a n a . Se os homens nascessem
a profissão do pai, pelo menos a educação t i n h a u m objeti- presos ao solo de u m país, se a mesma estação durasse o
vo garantido; mas entre nós, onde apenas as posições so- ano todo, se cada h o m e m estivesse unido à sua f o r t u n a de
ciais permanecem e os homens mudam sem parar, ninguém modo a nunca poder mudá-la, a prática estabelecida seria
sabe se, ao educar o f i l h o para a sua profissão, não está tra- boa sob certos aspectos; a criança educada para a sua con-
balhando contra ele. dição, sem jamais sair dela, não poderia estar exposta aos
N a ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua inconvenientes de u m a outra. D a d a , porém, a mobilidade
vocação c o m u m é a condição de h o m e m , e quem quer que
das coisas humanas, dado o espírito agitado e inquieto des-
seja bem educado para tal condição não pode preencher mal
te século que perturba tudo a cada geração, pode-se conce-
as outras relacionadas c o m cia. P o u c o me i m p o r t a que des-
ber u m método mais insensato do que educar u m a criança
tinem meu aluno à espada, à igreja ou à barra. A n t e s da
como se nunca tivesse de sair do seu quarto, c o m o se tives-
vocação dos pais, a natureza o ch.iina para a vida h u m a n a .
se de estar sempre rodeada pelos seus? Se a infeliz der u m
V i v e r é o ofício que quero ensinar-lhe. A o sair de minhas
só passo pela terra, se descer u m só degrau, estará perdida.
mãos, concordo que não será nem magistrado, nem solda-
N ã o se trata de ensiná-la a suportar as dificuldades, mas de
do, nem padre; será h o m e m , em p r i m e i r o lugar; tudo o que
exercitá-la para senti-las.
u m h o m e m deve ser, ele será capaz de ser, se preciso, tão
bem quanto qualquer outro; e, ainda que a fortuna o faça Só se pensa em conservar o filho; isto não é suficiente;
mudar de lugar, ele sempre estará no seu. Occupavi te, For- é preciso ensiná-lo a se conservar enquanto h o m e m , a su-
tuna, atque cepi; omnesque aditus tuos interdusi, ut ad me portar os golpes da sorte, a desafiar a opulência e a miséria,
aspirare non posses.^ a viver, se preciso, nos gelos da Islândia o u sobre o ardente •
N o s s o verdadeiro estudo é o da condição h u m a n a . rochedo de Malta. P o r mais que tomeis precauções para que
Aquele de nós que melhor souber suportar os bens e os ma- ele não m o r r a , morrerá, no entanto, necessariamente; e,
les desta vida é, para m i m , o mais bem educado; donde se mesmo sua morte não sendo obra de vossos cuidados, eles
segue que a verdadeira educação consiste menos em precei- seriam mal compreendidos. Trata-se menos de impedi-lo de
tos do que em exercícios. C o m e ç a m o s a nos instruir quan- morrer do que de fazê-lo viver. V i v e r não é respirar, mas
do começamos a viver; nossa educação começa junto co- agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de
nosco; nosso primeiro preceptor é a nossa ama-dc-leite. A s - nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos
s i m , a palavra educação tinha entre os antigos u m sentido dão o sentimento de nossa existência. O h o m e m que mais
diferente, que já não lhe damos: significava alimentação. viveu não é o que contou maior número de anos, mas aquele
Educit obstetrix, diz Varrão; educat nutrix, institua paedago- que mais sentiu a v i d a . T a l h o m e m f o i enterrado aos cem
gus, docet magister^. A educação, a formação e a instrução. anos e estava m o r t o desde o nascimento. M e l h o r seria i r
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para a t u m b a na juventude, se pelo menos tivesse v i v i d o A inação, o constrangimento em que se mantêm os


até essa idade. membros de u m a criança só podem dificultar a circulação
T o d a a nossa sabedoria consiste cm preconceitos ser- do sangue, dos hiimores, impedir que a criança se torne mais
vis, todos os nossos costumes não passam de sujeição, em- forte, cresça, e alterar sua constituição. N o s lugares em que
não se têm essas precauções extravagantes, todos os homens
baraço e constrangimento. O h o m e m c i v i l nasce, vive e
são grandes, fortes, bem proporcionados. O s lugares em que
morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana,
se enfaixam as crianças estão cheios de corcundas, de man-
está acorrentado por nossas instituições.
cos, de cambaios, de raquíticos, de pessoas deformadas de
D i z e m que muitas parteiras pretendem, ao moldar a ca-
todo tipo. T e m e n d o que os corpos se deformem com os
beça das crianças rccém-nascidas, dar-lhes u m a forma mais
movimentos livres, apressam-se em deformá-los pondo-os
conveniente, e isso é tolerado! Nossas cabeças não estariam entre prensas. D e b o m grado os tornariam paralíticos para
bem à maneira do autor de nosso ser; precisamos tê-las mo- impedi-los de se estropiarem.
deladas por fora através das parteiras e por dentro através dos
Poderia u m constrangimento tão cruel deixar de influir
filósofos. O s Caraíbas são pela metade mais fehzes do que nós:
no h u m o r e no temperamento.' O p r i m e i r o sentimento das
" M a l a criança saiu do ventre da mãe e mal gozou da
crianças é u m sentimento de dor e de sofrimento; só encon-
liberdade de movimentar e esticar seus membros e já lhe tram obstáculos em todos os movimentos de que precisam;
dão novos laços. Põem-lhe fraldas, deitam-na com a cabeça mais infelizes do que u m criminoso agrilhoado, fazem vãos
presa e c o m as pernas esticadas, com os braços pendentes esforços, irritam-se, gritam. D i z e i s que seus primeiros sons
ao lado do corpo; é e n v o k a cm panos e bandagens de toda são choros? A c r e d i t o , vós as contrariais desde o nascimen-
espécie, que não lhe permitem mudar de posição. F e l i z da to. O s primeiros presentes que recebem de vós são corren-
criança sc não a apertaram a ponto de impedi-la de respi- tes; os primeiros cuidados que recebem são torturas. N ã o
rar, e se tiveram a precaução de deitá-la de lado, para que tendo nada de livre a nao ser a v o z , c o m o não se serviriam
as águas que deve devolver pela boca pensam cair por si mes- dela para se queixarem? G r i t a m pela dor que lhes provocais:
mas! Pois ela não teria a liberdade de voltar a cabeça para garroteados do mesmo modo, gritaríeis mais forte ainda.
o lado a f i m de facilitar seu escoamento."^ D e onde v e m esse costume insensato? D e u m costume
A criança recém-nascida precisa esticar e mover os mem- desnaturado. Desde que as mães, desprezando seu primei-
bros para tirá-los do entorpecimento em que, unidos co- ro dever, não mais quiseram alimentar seus filhos, foi pre-
m o n u m novelo, permaneceram por longo tempo. É ver- ciso confiá-los a mulheres mercenárias que, vendo-se assim
dade que os esticamos, mas os impedimos de se m o v e r e m ; mães de filhos alheios, por quem a natureza nada lhes di-
chegamos até a prender-lhe a cabeça a testeiras: até parece zia, só p r o c u r a r a m furtar-se ao incómodo. T e r i a sido pre-
que temos medo de que ela pareça estar v i v a . ciso ze ar continuamente por u m a criança em liberdade;
A s s i m , o impulso das partes internas de u m corpo que mas, quando ela está bem amarrada, jogam-na a u m canto
tende ao crescimento encontra um obstáculo insuperável para sem se preocuparem com seus gritos. Contanto que não haja
os movimentos que tal impulso requer dele. C o n t i n u a m e n - :)rovas sobre a negligência da ama-de-leite, contanto que o
te a criança faz esforços inúteis que esgotam suas forças ou jebê não quebre nem o braço, nem a perna, que importa
atrasam seu progresso. E l a estava menos apertada, menos em- que ele m o r r a ou permaneça doente o resto da vida? C o n -
servam-se seus membros à custa de seu corpo e, aconteça^
baraçada, menos comprimida no âmnio do que entre os cuei-
o que acontecer, a ama-de-leite é desculpada.
ros; não percebo o que ela ganhou ao nascer.
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Apenas ob.servarei, contra a opinião c o m u m , que o pre-


de exemplos, até o que diz de realizável permanecerá sem
ceptor de uma criança deve ser jovem, e até mesmo tão jo-
uso se não mostrar sua aplicação. •
vem quanto pode sê-lo um homem sábio. Gostaria que ele
A s s i m , tomei o partido de tomar u m aluno imaginário,
próprio fosse criança, se fosse possível, para que pudesse
de supor em m i m a idade, a saúde, os conhecimentos e todos
ser um companheiro de seu aluno, e conquistar sua con-
os talentos convenientes para trabalhar em sua educação e
fiança ao compartilhar suas diversões. N ã o há muitas coi-
conduzi-la desde o momento do seu nascimento até que, já
sas em c o m u m entre a infância e a maturidade para que se
h o m e m , não mais precise dc outro guia que não cie mesmo.
possa formar um apegt) muito sólido a tal distância. A s ve-
Este método me parece útil para impedir que u m autor que
zes as crianças fazem agrados aos velhos, mas jamais os
desconfia de si se perca em visões; pois, a partir do m o m e n -
amam.
to em que se afasta da prática ordinária, ele só tem de dar
Deseja-se que o preceptor já tenha conduzido uma edu-
provas do valor de sua prática em seu aluno, e logo sentirá,
cação. E demasiado. U m mesmo h o m e m não pode condu-
ou o leitor sentirá por ele, se está seguindo o progresso da
zir mais do que u m a ; se fossem necessárias duas para ter
infância e a marcha natural do c(jração humano.
êxito, íom que direito se empreenderia a primeira?
E i s o que procurei fazer em todas as dificuldades que
C o m mais experiência saber-se-ia agir melhor, mas não
SC apresentaram. Para não engrossar inutilmente o l i v r o ,
se conseguiria mais. Aquele que realizou este ofício bastan-
contentei-me em colocar os princípios, cuja verdade cada
te bem para perceber todas as suas dificuldades não tenta
qual deve perceber. Mas, quanto às regras que podiam pre-
novamente, e, se o tiver realizado mal na primeira vez, trata-
cisar de provas, apllquei-as todas ao meu Emílio ou a ou-
se dc um mal prognóstico para a segunda.
tros exemplos, e mostrei cm pormenores bastante exten-
C o n c o r d o que é muito diferente actmipanhar um ra-
sos c o m o podia ser realizado o que eu estabelecia; este, pe-
paz durante quatro anos, ou conduzi-lo durante vinte e cin-
lo menos, é o plano que me propus a seguir. Cabe ao leitor
co. Dais u m preceptor para vosso filho quando já está for-
julgar se me saí bem.
mado; eu quero que ele tenha u m antes de nascer. Vosso
Disso resultou que inicialmente pouco falei de Emílio,
homem pode trocar de aluno a cada cinco anos; o meu não
pois minhas primeiras máximas de educação, embora con-
terá mais do que u m . Distinguis o preccptcur do gouver-
trárias às cjue estão estabclccitlas, sào de uma evidência a
neitr*: outra loucura! Distinguis o discípulo do aluno? Só
que é difícil para todo hoinem razoável recusar o consenti-
há uma ciência a ensinar às crianças, que é a dos deveres
mento. Mas, à medida que avanço, meu aluno, orientado
do h o m e m . E.ssa ciência é una c, diga Xenofonte o que dis-
dc mancna diferente daquela dos vossos, já não é uma crian-
ser da educação dos persas, ela não se divide. D e resto, pre-
ça c o m u m ; torna-se necessário um regime especial para ele.
firo chamar de gouverneur e não de precepteur o professor
Então ele aparece com mais frequência em cena, e perto
dessa ciência, pois trata-se menos, para ele, de instruir do
do final não o perco de vista em n e n h u m momento, até
de dirigir. N ã o deve dar preceitos, e sim fazer com que
que, diga ele o que disser, não tcnlia mais nenhuma neces-
sejam encontrados^,.
sidade de m i m .
Se é preciso escolher com tanta atenção o preceptor,
N ã o falo aqui das qualidades de u m bom preceptor; eu
é permitido a este também escolher o seu aluno, sobretudo
as suponho, e me suponho dotado de todas essas qualida-
quando se trata de u m modelo a propor. A escolha não po-
des. A o ler esta obra, verão de que liberalidade usei a meu
tlc recair nem sobre o génio, nem sobre o caráter da crian-
respeito.
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ro à mancheia; erguei baterias de canhões; montai cadafal- O h o m e m sábio sabe permanecer em seu lugar, mas a
sos e rodas; promulgai leis e éditos; multiplicai os espiões, criança que não sabe o seu não será capaz de permanecer
os soldados, os carrascos, as prisões, as cadeias; pobres ho- nele. J u n t o a nós, existem m i l lugares por onde a criança
menzinhos, de que vos serve tudo isso? N ã o sereis melhor 5ode sair de seu lugar; cabe aos que a educam mantê-la ne-
servidos, nem menos roubados, nem menos enganados, nem e, e esta não c uma tarefa fácil. E l a não deve ser nem um
mais absolutos. Continuareis a dizer: nós queremos, e con- animal, nem u m h o m e m , e sim criança.' É preciso que ela
tinuareis a fazer o que os outros quiserem. sinta a sua fraqueza e não que a sofra; é preciso que ela de-
O único que faz a sua vontade é aquele que não precisa penda, e não que obedeça; é preciso que ela peça, e não que
para tanto colocar o braço de outrem na ponta dos seus. mande. A criança só está submetida aos outros em razão
Segue-se daí que o p r i m e i r o de todos os bens não é a auto- de suas necessidades, e porque vêem melhor do que ela o
( ridade, mas a liberdade. O h o m e m verdadeiramente livre que lhe é útil, o que pode c o n t r i b u i r ou prejudicar a sua
só quer o que pode e faz o que lhe agrada. E i s a m i n h a má- conservação. Ninguém tem o direito, nem mesmo o pai,
x i m a fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, de ordenar à criança o que não lhe serve para nada.
e todas as regras da educação decorrerão dela. Antes que os preconceitos e as instituições humanas te-
A sociedade enfraqueceu o h o m e m não apenas lhe to- nham alterado nossas inclinações naturais, a felicidade das
lhendo o direito que t i n h a sobre suas próprias forças, mas crianças e dos homens consiste no uso de sua liberdade. Mas,
sobretudo tornando-as insuficientes. E i s por que seus dese- nos primeiros, esta liberdade é limitada pela fraqueza. Q u e m
jos se m u k i p l i c a m junto c o m sua fraqueza, e eis o que faz faz o que quer é feliz quando basta a si mesmo: é o caso
a fraqueza da infância relativamente à idade madura. Se o do homem que vive no estado dc natureza. Q u e m faz o
h o m e m é u m ser forte e a criança é u m ser fraco, não é que quer não é feliz quando suas necessidades ultrapassa-
porque o p r i m e i r o tem mais força absoluta do que o se- rem suas forças: é o caso da criança no mesmo estado. A s
gundo, mas porque o p r i m e i r o pode naturalmente bastar crianças, até mesmo no estado de natureza, só gozam de
a si mesmo e o outro não. Portanto, o homem deve ter mais uma liberdade imperfeita, semelhante àquela de que gozam
vontades e a criança mais fantasias, termo pelo qual enten- os homens no estado c i v i l . C a d a u m de nós, não podendo
do todos os desejos que não sejam verdadeiras necessidades dispensar os outros, volta a ser, a esse respeito, fraco e m i -
e que só podemos satisfazer c o m o auxílio de o u t r e m . serável. Éramos feitos para sermos homens; as leis e a so-
ciedade voltaram a mergulhar-nos na infância. O s ricos, os
E u disse a razão desse estado de fraqueza. A natureza
grandes, os reis, todos sào crianças que, vendo que se em-
a supre pelo apego dos pais e das mães. N o entanto, esse
penham em remediar sua miséria, tiram desse mesmo fato
apego pode ter seu excesso, sua falta e seus abusos. Pais que
uma vaidade pqeril, e se envaidecem c o m os cuidados que
v i v e m n o estado c i v i l levam para ele a criança antes da ida-
não teriam para c o m elas se fossem homens feitos.
de. Dando-lhe mais necessidades do que ela tem, não reme-
diam sua fraqueza, mas a aumentam. T a m b é m a aumen- Essas considerações são importantes e servem para re-
tam exigindo da criança o que a natureza não lhe exigia, solver todas as contradições do sistema social. E x i s t e m dois
submetendo às suas próprias vontades as poucas forças que tipos de dependência: a das coisas, que é da natureza, e a
a criança tem para servir às suas, transformando completa- dos homens, que é da sociedade. N ã o tendo nenhuma mo-
mente em escravidão a dependência recíproca em que a man- ralidade, a dependência das coisas não prejudica a liberda-
tém sua fraqueza e em que os mantém seu apego. de e não gera vícios; a dependência dos homens, sendo de-
78 EMÍLIO LIVRO II 79

sordcnada*, gera todos os vícios, e é por ela que o senhor seus movimentos são necessidades de sua constituição, que
e o escravo depravam-se mutuamente. Se há u m meio de procura fortalecer-se. Devemos, porém, desconfiar do que de-
sejam sem que possam fazê;;lo elas mesmas, sendo outros
remediar esse m a l na sociedade, esse meio é substituir o
obrigados a fazê-lo por elas. É preciso, então, distinguir com
h o m e m pela lei e armar as vontades gerais de u m a força
cuidado a verdadeira necessidade, a necessidade natural, da
real, superior à ação de qualquer vontade particular. Se as
necessidade de fantasia que começa a nascer, ou então da-
leis das nações pudessem ter, c o m o as da natureza, u m a
quela que provém da superabundância de vida de que falei.
inflexibilidade que nunca alguma força humana pudesse
vencer, a dependência dos homens voltaria então a ser a J á disse o que se deve fazer quando u m a criança chora
das coisas; reunir-se-iam na república todas as vantagens do para conseguir isto ou aquilo. Apenas acrescentarei que, a
estado natural e do estado c i v i l ; juntar-se-ia à liberdade que partir do momento em que ela pode, falando, pedir o que
deseja e, para obtê-lo mais rapidamente ou para evitar uma
mantém o h o m e m sem vícios a moralidade que o educa
recusa, faz c o m que o choro acompanhe o pedido, deve ter
para a virtude.
o seu pedido irrevogavelmente recusado. Se a necessidade
Conservai a criança unicamente na dependência das coi-
a fez falar, deveis sabê-lo e fazer imediatamente o que ela
sas e tereis seguido a ordem da natureza no progresso de
pede, mas ceder algo pelas lágrimas é provocá-la para que
sua educação. N u n c a ofereçais a suas vontades indiscretas
as derrame, é ensinar-lhe a duvidar de vossa boa vontade
senão obstáculos físicos ou punições que nasçam das pró-
e a acreditar que a importunidade pode mais sobre vós do
prias ações, de que se lembrem quando oportuno; sem lhe que a benevolência. Se ela não acreditar que sois b o m , logo
proibir de agir m a l , basta que seja impedida. Só a experiên- se tornará má; se acreditar que sois fraco, logo se tornará
cia e a impotência devem ser lei para a criança. N a d a con- teimosa. É importante que sempre concedais ao p r i m e i r o
cedei a seus desejos porque ela o pede, mas porque precisa. sinal o que não quereis recusar. N ã o sejais pródigo na recu-
Q u e ela não saiba o que é obediência quando age, nem o sa, mas não a revogueis jamais.
que é dominação quando agem por ela. Q u e sinta de igual
E v i t a i principalmente dar à criança vãs fórmulas dc po-
modo a sua liberdade em sua próprias ações e nas vossas.
lidez, que se necessário lhe servem de palavra mágica para
Supri a força que lhe falta exatamente na medida em que
submeter à sua vontade tudo o que a rodeia e para o iter
tem necessidade dela para ser livre, e não imperiosa; que,
imediatamente o que lhe agrada. N a hipócrita educação dos
recebendo vossos serviços com u m a espécie de humilhação,
ricos, nunca se deixa de torná-los polidamente imperiosos,
ela aspire ao momento em que poderá dispensá-los e terá
prescrevendo-lhes os termos de que devem scrvir-se para
a honra de servir a si mesma.
que ninguém ouse resistir-Ihes; seus filhos não têm nem
Para fortalecer o corpo c fazc-lo crescer, a natureza dis- tons, nem maneiras suplicantes; todos eles são tão arrogan-
põe de meios que nunca devemos contrariar. N a o devemos tes, e até mais, ao pedir quanto ao mandar, por estarem mui-
obrigar u m a criança a ficar quando quer sair, ou a sair quan- to certos de serem obedecidos. Vemos em p r i m e i r o lugar
do quer ficar. Q u a n d o a vontade das crianças não está m i - que s'ií vous plaít significa em sua boca il me plait, e que
mada por nossa culpa, elas nada querem inutilmente. Elas je vous prie significa je vous ordonne^. Admirável polidez,
devem pular, correr, gritar quando têm vontade. T o d o s os que para eles só acaba mudando o sentido das palavras e
não permitindo que se fale de uma maneira que não seja
• Nos meus Princípios do Direito Político fica demonstrado que nenhuma von-
tade particular pode ser ordenada no sistema social.
imperiosa! D e m i n h a parte, eu, que temo menos que E m i -
106 EMÍLIO LIVRO II 107

mir algum compromisso, ele tenha sempre u m interesse-pre- A criança, que nao conhece nada disso, não pode ler ne-
sente e sensível em c u m p r i - l o ; e que, se porventura lhe fal- n h u m mérito ao dar; dá sem caridade, .sem beneficência;
tar, a m e n t i r a atraia sobre ele males que perceba decorre- ficará quase envergonhada [)or dar se, baseaila no seu exem-
rem da própria ordem das coisas, c não da vingança de seu plo e no vosso, acreditar que somente as crianças dão, e que
preceptor. Mas, longe de precisar recorrer a tão cruéis ex- não damos mais esmolas quando nos tornamos adultos.
pedientes, lenho qu.Lse certe/a de que l''m!lio aprenderá mui- Observai que só se fazem as crianças d.trem coisas cujo
to tarde o que seja mentir, e de que, ao aprende-lo, I içará valor elas ignoram, moed.ts tie metal que ela carrega nos bol-
muito surpreso, não podendo imaginar para que a mentira sos e que só lhe servem para isso. U n u i criança preferiria dar
pode ser boa. É claro que, quanto mais torno seu bem-estar cem luíses a dar u m doce. Mas fazei com que esse pródigo
independente tanto das vontades como dos juízos dos ou- distribuidor dê as coisas dc que gosta, brinquedos, balas, sua
tros, mais afasto dele todo interesse por mentir. merenda, e logo saberemos sc o tornastes realmente liberal.
Q u a n d o não se tem pressa de instruir, não se tem pres- Há outro recurso para isso, que c devolver bem depressa
sa de exigir, e ocupa-se o tempo em não exigir nada que à criança o que ela deu, de maneira que ela se acostume a
não seja pertinente. A criança, enião, forma-se sem ficar mi- dar tudo o que sabe que llic vai ser devolvido. Quase que
mada. Mas, quando u m preceptor aturdido, nào sabendo s('> vi nas ciiaiiças ess.is dii.is espécies de generosidade: dar
o que fazer, faz a todo instante c o m que ela prometa isto o que não lhes .serve para nada, ou dar o que têm cerle/a
ou aquilo, sem distinção, sem escolha, sem medida, a criança, de que lhes será devolvido. 1 a/ei com que, diz L o c k c , as
aborrecida, sobrecarregada de todas essas promessas, des- crianças sejam convencidas pela experiência de que o mais
denha-as, esquece-as, deixa-as dc lado, e n f i m , c, consideran- liberal sempre é o mais dotatio. Isso torna a criança liberal
do-as como fórmulas vazias, transforma nuin jogo prome- na ap.tiência e avara de lato. D i / ele também (lue assim ,\
ter e não c u m p r i r . Se quereis, então, que ela seja fiel à pala- crianças ct)nirairão o hábito lia liberalidade. S i m , mas tie
vra dada, sede discreto ao exigi-la. uma liberalidade usurária, que dá um ovo para ter um boi.
O pormenor em que acabo de entrar a respeito da men- Mas, quando se m u a r de dar simplesmente, adeus hábito;
tira pode sob muitos aspectos aplicar-se a todos os outros quando se deixar de lhes devolver, logo cias deixarão de dar.
deveres, que só prescrevemos às crianças para torná-los, além 1: preciso considerar mais o hábitij da alma do que o das
de odiosos, irrealizáveis. P a r a parecer que lhes pregamos mãos. Todas as outras virtudes que ensinamos às crianças
a virtude, fazemo-las amar todos os vícios. Damo-los a elas parecem-se com essa. E é pregando-lhes essas sólidas virtu-
ao p r o i b i r m o s que os tenham. Q u e r e m o s torná-las piedo- des que gastamos seus jovens anos na trústeza! Essa não é
sas e as levamos à igreja para se aborrecer; fazendo-as res- u m a educação sábia!
mungar orações, forçámo-las a aspirar à alegria de não mais Mestres, deixai os fingimentos, sede virtuosos e bons
rezar a D e u s . P a r a inspirar-lhes a caridade, fazemo-las dar e que vossos exemplos se gravem na memória de vossos alu-
esmola, como se desdenhássemos dá-la nós mesmos. A h ! nos, enquanto esperamos que possam entrar em seus cora-
Nãf) é a criança que deve dar, é o mestre; tenha o apego ções, jím v e / tie me .tpress.u .i exigir do iiieii aluno .tlgims
que tiver por seu aluno, deve disputar c o m ele essa honra, atos de caritlade, prehro la/.ê-ios e m sua presença e l i i a i -
deve fazê-lo pensar que na sua idade ainda não se é digno llie até mesmo os meios de nie imitar naquilo, como mna
ilisso. A esmola é ação de u m homem que conhece o valor honra que não pertence à sua idade, pois é importante que
do que dá, e a necessidade que seu semelhante tem daquilo. ele não se acostume a eonsiilcT.ir os di-vi-res dos homens ape-
90 _ _ EMILIO LIVRO II 91

Estabeleçamos como máxima incontestável que os pri- ver que vos causou aborrecimentos; agi exatamente como
meiros movimentos da natureza sejam sempre direitos: não se o móvel tivesse se quebrado por si mesmo; e n f i m , julgai
liá perversidade original no coração l i u m a n o . N ã o se en- ter feito muito se podeis não dizer nada.
contra nele um só vício de que não possamos dizer como Ousarei expor aqui a maior, a mais importante, a mais
e por onde entrou. A única paixão natural ao homem c o útil regra de toda a educação? N ã o se trata de ganhar tem-
amor de si mesmo, ou o amor-próprio tomado em sentido po, mas de perdê-lo. Leitores vulgares, perdoai meus para-
amplo. Este amor-próprio, em si ou relativamente a nós, doxos, é preciso cometê-los quando refletimos; e, digam o
é bom e útil, e, como não tem relação necessária como ou- que disserem, prefiro ser homem de paradoxos a ser ho-
trem, c a esse respeito naturalmente indiferente. Só se tor- mem de preconceitos. O mais perigoso intervalo da vida
na bom ou mau pela aplicação que se faz dele e pelas rela- humana é o que vai do nascimento até a idade de doze anos.
ções que se dão a ele. Até que o guia do amor-próprio, que li o tempo em que germinam os erros e os vícios, sem que
tenhamos ainda algum instrumento para destruí-los. E ,
é a razão, possa nascer, é portanto importante que u m a
quando chega o instrumento, as raízes são tão profundas,
criança não faça nada porque é vista ou ouvida, nada, nu-
que já não é tempo de arrancá-las. Sc as crianças saltassem
ma palavra, por causa dos outros, mas apenas o que a natu-
de uma vez das tetas para a idade da razão, a educação que
reza lhe pede. Nesse caso, nada fará que não seja b o m .
lhes damos poderia ser-lhes convenientes. Mas, segundo o
N ã o quero dizer que nunca fará estragos, que não se
progresso natural, precisam de uma educação totalmente
ferirá, que porventura não quebrará u m móvel caro que
contrária. Seria preciso que nada fizessem de sua alma até
se encontre ao seu alcance. E l a poderia fazer muito mal
que ela estivesse de posse de todas as suas faculdades, pois
sem agir m a l , pois a má ação depende da intenção de pre-
é impossível ela perceber a chama que lhe mostrais enquanto
judicar, e ela jamais terá essa intenção. Se a tivesse uma
é cega, e seguir, em meio à imensa planície das ideias, uma
única vez, tudo já estaria perdido; ela seria má quase inevi-
estrada que a razão traça ainda tão levemente para os me-
tavelmente.
lhores olhos.
U m a coisa é má aos olhos da avareza e não o é aos olhos
t i l la/.io. Deixando-se as ciianças em plena liberdade de pra- Portanto, a p r i m e i r a educação deve ser puramente ne-
ticar suas travessuias, convém tirar de seu alcance tuilo o gativa. Consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade,
que poderia toiná-las custosas, e não deixar nada de frágil mas em proteger o coração contra o vício e o espírito con-
ou de precioso. Q u e seu quarto tenha móveis grosseiros e tra o erro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar que fizes-
s(')lidos; naila ilc espelhos, naila ile poicelanas, nada ile ob- sem, se pudésseis levar vosso aluno são e robusto até a ida-
jetos de l u x o . Q u a n t o ao Emílio, que educo no campo, seu de de doze anos sem que ele soubesse distinguir a mão es-
quarto não terá nada que o distinga daquele dc um campo- querda da direita, desde vossas primeiras lições os olhos de
nês. Para que enfeitá-lo com tanto esmero, se deve perma- seu entendimento se abririam para a razão; sem preconcei-
necer ali por tão pouco tempo? Mas estou enganado: ele tos, sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar
o efeito de vossos trabalhos. L o g o se tornaria em vossas
próprio o enfeitará, e logo veremos c o m quê.
mãos o mais sábio dos homens e, começando por nada fa-
Se, apesar de vossas precauções, a criança vem a fazer
zer, teríeis feito u m prodígio de educação.
alguma desordem, a quebrar algo de útil, não a castigueis
pela vossa negligência, não a repieendais; não ouça ela uma Fazei o contrário do que é o costume e quase sempre
só palavra de reprimenda; não a lieixeis nem mesmo entre- agireis bem. C^omo nào se quer fazer de u m a criança uma
92 EMÍLIO LIVRO 11 93

criança, mas sim um doutor, nunca é cedo demais para os avaro que perde m u i t o por não querer perder nada. Sacri-
pais e os mestres repreenderem, c o r r i g i r e m , admoestarem, ficai na infância u m tempo que ganhareis c o m juros n u m a
adularem, ameaçarem, prometerem, instruírem, argumen- idade mais avançada. O médico sábio não dá estouvadamen-
tarem. Fazei melhor do que isso: sede razoável e não racio- te receitas à primeira vista, mas p r i m e i r o estuda o tempe-
cineis c o m vosso aluno, sobretudo para fazê-lo aprt)var o ramento do doente antes de lhe prescrever qualquer coisa;
que não quer, pois levar assim sempie a razão para as coi- começa a tratá-lo tarde, mas cura-o, ao passo que o médico
sas desagradáveis só faz torná-la aborrecida e desacreditá-la apressado demais o mata.
bem cedo n u m espírito que ainda não está em condições Mas onde colocaremos essa criança para assim educá-la
dc ouvi-la. 1'xercitai seu corpo, seus órgãos, seus sentidos como um ser insensível, como um autómato? Guardá-la-
e suas forças, mas conservai sua alma no ócio tanto tempo emos no globo lunar, n u m a ilha deserta? Afastá-la-emos de
quanto possível. T e m e i todos os sentimentos anteriores ao todos os humanos? N ã o terá ela no mundo continuamente
juízo (]ue os aprecia. I r e a i , relentle as impressões alheias o espeláculo e o exemplo das paixões dos outros? N ã o verá
c, para impedir que o mal nasça, não vos apresseis e m fazer nunca outras crianças de sua idade? N ã o verá seus pais, seus
o bem, pois ele só é tal quando a razão o i l u m i n a . Conside- vizinhos, sua ama, sua governanta, seu Kicaio, o próprio pre-
rai como vantagens todas as demoras: ganha-sc muito quan- ceptor, que afinal nào será um anjo?
do se avança para o final sem naila perder. D e i x a i que se Esta objeção é forte c sólida.^ Mas terei dito que era coi-
am.tdureça a inf.incia nas crianç.is. F.ntim, iaz-se necessária sa fácil uma educação natural? O homens! Será m i n h a cul-
para elas alguma lição? F.viíai dá-l.i hoje, se pmlcis ailiá-la pa se tornastes difícil tudo o que é bom? Percebo essas difi-
para amanhã sem perigo. culdades, concordo; talvez sejam insuperáveis, mas também
O u t r a consideração que c o n f i r m a a utilidade deste mé- é verdade que nos esforçando para preveni-las, prevenimo-
todo é o do génio particular da criança, que se deve conhe- las até certo ponto. Mostro o alvo que devemos propor-
cer para saber que regime m o r a l lhe convém. C a d a espírito nos; não digo que possamos alcançá-lo, mas sim que aquele
tem a sua l o r m a própria, segundo a qual precisa ser gover- q u e m a i s se a p r o x i m a r dele será o mais bern-snerdidn
nado, e é importante para o êxito de nossos trabalhos que Lerhbrai-vos de que, antes de ousar empreender a for-
se ileicrmlne que ele seja goveinado tlessa l o r m a e nao de mação de u m h o m e m , é preciso ter-se feito h o m e m ; é pre-
outra. F4oinein prudente, considerai por longo tempo a na- ciso ter em si o exemplo que se deve propor. E n q u a n t o a
u n c z a , observai bem vosso aluno antes de lhe dizer a pri- criança ainda não tem conhecimento, temos o tempo de
meira palavra; deixai p r i m e i r o o germe de seu caráter em preparar tudo o que a rodeia para só impressionar seus pri-
plena liberdade para se mostrar, não o constranjais a seja meiros olhares c o m objetos que lhe convém v e r . T o r n a i -
o que for, para melhor vê-lo por i m e i r o . julgais que esse vos respeitável diante de todos, começai por vos fazer amar,
tempo de liberdade seja perdido para ele? Pelo contrário, para que cada qual procure agradar-vos. N ã o sereis senhor
sciá o melhor empregado, pois é assim que ensinareis a não da criança se não o fordes de tudo o que a cerca, e essa au-
perder u m só momento de um tempo precioso; mas, se co- toridade nunca será suficiente se não estiver baseada na es-
meçardes a agir antes de saber o que é preciso fazer, agireis tima pela virtude. N ã o sc trata de esvaziar a bolsa e dar di-
ao acaso. Sujeito a vos enganardes, será preciso voltardes nheiro à mancheia; nunca vi que o dinheiro fizesse alguém
atrás. Estareis mais afastado do f i m do que se tivésseis sido ser amado. Não se deve ser avaro e duro, nem lamentar a
menos apressado para aiingl-lo. A s s i m , não façais como o miséria que se pode remediar; mas ainda que abrais vossos
96 EMÍLIO LIVRO n 97

veis que a impressionam e a forçam a prestar atenção. A tadas de maneira que ela possa v i r a reconhecê-las. U m a gar-
cólera, principalmente, é tão ruidosa em seus arroubos que galhada indiscreta pode estragar o trabalho de seis meses
c impossível não percebê-la estando por perto. N ã o nos de-
e causar u m dano irreparável para toda a vida. N u n c a é de-
vemos perguntar se esta é uma oportunidade para u m pe-
mais repetir que, para ser o mestre da criança, é preciso ser
dagogo p r o n u n c i a r u m belo discurso. A h ! Nada de belos
mestre de si mesmo. Imagino o pequeno E m í l i o , no auge
discursos, nada mesmo, nem uma palavra. D e i x a i que ve-
de uma briga entre duas vizinhas, dirigindo-se para a mais
nha a criança: espantada com o espetáculo, ela não deixará
furiosa e lhe dizendo n u m t o m de comiseração: Minha ca-
de vos fazer perguntas. A resposta é simples, vem dos pró-
ra, a senhora está doente, eu lamento. C o m certeza, esta tira-
prios objetos que atingem seus sentidos. A criança vê u m
da não ficará sem efeito entre os espectadores, nem talvez
rosto excitado, olhos brilhantes, u m gesto ameaçador, ou-
entre as vizinhas. Sem r i r , sem repreendê-lo, sem aplaudi-
ve gritos; são todos sinais de que o corpo não vai bem. Dizei-
lo, eu o levo dali antes que possa dar-se conta desse efeito,
Ihe isso, tranqiiilamente, sem mistério: este pobre h o m e m
ou pelo menos antes que se ponha a pensar sobre ele, e
está doente, sofre u m acesso de febre. Podeis aproveitar a
apresso-me em distraí-lo c o m outros assuntos que o façam
ocasião para lhe dar, mas em poucas palavras, u m a ideia
esquecer-se rapidatnente daquilc). —
sobre as doenças e seus efeitos, pois isso também é da natu-
reza, e é u m dos laços da necessidade aos quais ela deve Meu objetivo não é entrar em todos os pormenores, mas
sentir-se submetida. apenas expor as máximas gerais e dar exemplos para as oca-
siões difíceis. Considero impossível que em meio à sociedade
N ã o pode ser que com esta ideia, que não é falsa, ela não
se possa levar u m a criança até a idade de doze anos sem lhe
enniraia logo c e n a repugnância por se entregar aos excessos
dar alguma ideia das relações de homem para homem e da
das paixões, que considerará c o m o doenças? E acreditais que
moralidade das ações humanas. Basta que lhe forneçamos es-
tal noção, dada convenientemente, não produzirá u m efeito
sas noções necessárias o mais tarde possível e que, quando elas
tão salutar quanto o mais tedioso sermão de moral? Mas ve-
se tornarem inevitáveis, nós as limitemos à utilidade presen-
de no futuro as consequências dessa noção! E i s que estareis
te, apenas para que ela não se julgue senhora de tudo e não
autorizado, se alguma vez fordes obrigado a isso, a tratar u m a
faça mal aos outros, sem escriípulos e sem o saber. E x i s t e m
criança rebelde como uma criança doente, a trancá-la no quar-
temperamentos mansos e tranqiiilos que podemos sem peri-
to, na cama se preciso for, a mantê-la em regime, a apavorar
go conservar por muito tempo em sua primeira inocência,
a ela mesma c o m seus vícios nascentes, a torná-los odiosos
mas também existem naturezas violentas cuja ferocidade ce-
e temíveis para ela, sem que nunca ela possa encarar c o m o
do se desenvolve, e devemos apressar-nos em torná-las ho-
u m castigo a severidade de que talvez sejais forçado a usar
para curá-la. E , se vos acontecer, em algum momento de en- mens, para não sermos obrigados a acorrentá-las.
tusiasmo, perder o sangue-frio e a moderação com que deve- Nossos primeiros deveres são para com nós mesmos;
ríeis formar vosso estudo, não procureis disfarçar vosso er- nossos sentimentos primitivos concentram-se em nós mes-
ro, mas dizei-lhe francamente, com uma reprimenda carinho- mos; todos os nossos movimentos naturais relacionam-se
sa: meu amigo, tu me lizeste m a l . primeiramente com nossa conservação e nosso bem-estar.
A s s i m , o p r i m e i r o sentimento da justiça não vos v e m da-
D e resto, é importante que todas as ingenuidades que
quela que nós devemos, mas sim da que nos é devida, e esse
pode p r o d u z i r n u m a criança a simplicidade das ideias que
é mais u m dos contra-sensos das educações comuns, que,
lhe dão nunca sejam comentadas em sua presença, nem ci-
falando primeiramente às crianças de seus deveres e nunca
98 EMÍLIO LIVRO II 99

de seus direitos, começam por lhes dizer o contrcário do que quer criar, imitar, p r o d u z i r , dar mostras de potência e de
é preciso, o que elas não são capazes de entender e não lhes atividade. N à o terá visto duas vezes lavrarem u m jardim,
pode interessar. semearem, germinarem e crescerem os legumes, e quererá
P o r t a n t o , se eu tivesse de educar uma destas crianças também cultivar u m j a r d i m .
que acabo de mencionar, diria para m i m mesmo: uma crian- Pelos princípios acima estabelecidos, não me oponho
ça não ataca as pessoas''", mas sim as coisas, e cedo aprende ao seu desejo; pelo contrário, favoreço-o, compartilho seu
pela experiência a respeitar quem quer que a supere em idade gosto, trabalho com ela, não por seu prazer mas pelo meu,
c em força, mas as coisas nào se defendem por si mesmas. é isso pelo menos que ela acha; torno-me seu jardineiro aju-
A p r i m e i r a ideia, portanto, que lhe devemos dar é menos dante; enquanto ela não tem braços para isto, lavro a terra
a de liberdade do que a de propriedade, e, para que possa para ela; ela toma posse dessa terra plantando u m a fava, e
ter essa ideia, é preciso que ela tenha algo de seu. F a l a r de c o m certeza essa tomada de posse é mais sagrada e mais res-
suas roupas, seus móveis e seus brinquedos não significa na- peitável do que a de Nuííes Balboa sobre a América meri-
da, pois, embora disponha dessas coisas, não sabe nem por dional em nome do rei da E s p a n h a , plantando seu estan-
que nem c o m o as tem. D i z e r - l h e que as tem porque lhe fo- darte nas costas do mar do S u l .
ram dadas pouco adianta, pois para dar é preciso ter: eis, V i m o s todos os dias regar as favas, vemo-las germinar
pois, uma propriedade anterior à sua, e é o princípio de pro-
entre arroubos de alegria. A u m e n t o ainda mais essa alegria
priedade que lhe queremos explicar. Isso sem falar que o
dizendo-lhe: isto lhe pertence. E , explicando-lhe então a pa-
dom é u m a convenção, e a criança ainda não pode saber
lavra pertencer, faço-a perceber que colocou ali seu tempo,
o que é u m a convenção''*. Leitores, peço-vos que obser-
seu trabalho, seu sofrimento, sua pessoa, enfim; que naquela
veis neste exemplo e em cem m i l outros como, pondo na
terra existe algo que é dela mesma, que ela pode exigir con-
cabeça das crianças palavras que não têm nenlumi sentido
tra quem quer que seja, da mesma f o r m a c o m o poderia re-
acessível para elas, acreditamos tê-las instruído muitíssimo
tirar seu braço da mão de u m outro h o m e m que quisesse
bem.
retê-la contra a sua vontade.
Trata-se, pois, de voltar à origem da propriedade, pois
U m belo dia ela chega apressada, de regador na mão.
é de lá que a primeira ideia deve nascer. V i v e n d o no cam-
Ó espetáculo! Ó dor! T o d a s as favas foram arrancadas, to-
po, a criança terá lido alguma noção dos trabalhos campes-
tres; para i.sso, só é preciso lazer e olhos, e ela terá essas do o terreno está revirado, nem se reconhece o lugar. A h !
coisas. E m todas as idades, e sobretudo na sua, a criança Q u e aconteceu c o m meu trabalho, c o m m i n h a obra, o do-
ce fruto de meus zelos e de meus suores? Q u e m me t i r o u
^ N ã o d e v e m o s j . i n n i s tolerar que u i i i . i urianva se c o m p o r t e c o m os . i J u l t o s co- o que era meu? Q u e m me t o m o u minhas favas? O jovem
m o c o m seus i n f e r i o r e s , c n e m i m - s i r . o c o m o c o m seus igu.iis. Sc e l . i « u í s . r r b.iler s e r n -
coração se revolta; o p r i m e i r o sentimento da injustiça v e m
m e n t e c m a l g u m a d u l t o , m e s m o que seja seu l.ic.tio. m e s m o que sej.i o c a r i a s c o , ta/.ei
c o m que s e m p r e lhe d e v o l v a m os golpes c o m j u r o s , de m a n e i r a a lhe tirar a vontade verter nele seu triste amargor; as lágrimas c o r r e m como ria-
de repetir o que fez. V i imprudentes preceptores encoi-.ij.trem .1 relx-kli.t de uma cri.tnv-t. chos; a criança consternada enche o ar de gemidos e de gri-
i n c i t a r e m - n a a bater, deix.irem-se eles m e s m o s bater e r i i e m dos golpes ir.icos. sem
pensar que caiia u m deles er.i l u u .iss.issíniu na inteiiv.to do p e q u e n o t u r i o s o . e que
tos. C o m p a r t i l h a m o s sua dor, sua indignação; procuramos,
aquele que quer bater q u a n d o j o v e m vai q u e i e r m.ttar q u a n d o gi.nuie. informamo-nos, fazemos perquisições. F i n a l m e n t e , desco-
* * His por que a m a i o r i a das c i i a n ç . t s quer r e a s e r o que deu e c h o r a quandtt
n ã o lhes q u e r e m d e v o l v e r . Isso nào . i c ( n n i ' c e r , í mais tjuando c o m p r e c m l e r e n i bem
brimos que foi o jardineiro quem fez aquilo: mandamos
o que é u m d o m ; só que e í U . u t elas s e r . i o i n . i i s c i r c u n s p e c t a s .lo d.rr. chamá-lo.
100 LMÍUO LIVRO II 101

Mas eis que estávamos m u i t o enganados. A o ficar sa- Jean-]acques


bendo do que nos queixávamos, o jardineiro começa a se N ã o poderíamos propor u m acordo para o b o m R o -
queixar mais alto do que nós. C^omo! Senhores, foste vós bert? Q u e ele nos ceda, a meu amiguinho e a m i m , u m can-
que estragastes m i n h a obra. E u havia semeado ali alguns to do seu jardim para cultivá-lo, c o m a condição de receber
melões de M a l t a cuja semente me fora dada como u m te- metade do produto.
souro e c o m os quais queria presentear-vos quando estives-
sem maduros; mas eis que, para plantar ali vossas miserá- Robert
veis favas, destruístes meus melões já todos germinados, que E u o cedo sem condição. Mas lembrai-vos de que irei
não substituirei nunca. Causastes-me u m dano irreparável, lavrar vossas favas, se tocardes em meu melões.
e vos privastes do prazer de comer melões finíssimos.

Jean-JacqiiCí Neste ensaio da maneira de inculcar nas crianças as no-


ções priinitivas, vemos como a ideia da propriedade remonta
Desculpa-nos, meu pobre R o b e r t . Puseste ali teu tra-
naturalmente ao direito do p r i m e i r o ocupante pelo traba-
balho, teu esforço. Percebo que erramos ao estragar tua
lho. Isso é claro, límpido, simples e está sempre ao alcance
obra, mas te encomendaremos outras sementes de M a l t a e
da criança. Daí até o direito de propriedade e as trocas não
não trabalharemos na terra antes de saber se alguém não
é mais que u m passo, depois do qual devemos simplesmen-
a lavrou antes de nós.
te nos deter.
Robert V e m o s também que urna explicação que aqui coloco
O h , meus senhores, podeis ficar descansados, pois há em duas páginas de escrita talvez seja, na prática, u m traba-
muito poucas terras baldias. E u trabalho a que meu pai be- lho de u m ano, pois, n o curso das ideias morais, nunca po-
neficiou. C a d a qual, por sua vez, faz a mesma coisa e todas demos avançar c o m demasiado vagar, n e m nos f i r m a r bem
as terras que vedes estão ocupadas há muito tempo. demais em cada passo. Jovens mestres, peço-vos que pen-
seis nesse exemplo e vos lembreis de que em todas as coisas
E/nílio
vossas lições devem consistir mais em atos do que e m pala-
Senhor Robert, então é frequente se perder a semente
vras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disse-
do melão?
ram e do que lhes dissemos, mas não do que fizeram e do
Robert que lhes fizemos.
Desculpa, meu menino, pois não é sempre que encon- Tais instruções devem ser dadas, como disse, mais cedo
tramos sennorezinhos tão avoados como t u . Ninguém to- ou mais tarde, conforme o caráter tranquilo o u turbulento
ca no j a r d i m do v i z i n h o ; cada qual respeita o trabalho do do aluno acelere o u retarde a necessidade; sua utilidade é de
outro, para que o seu fique em segurança. u m a evidência claríssima, mas, para nada o m i t i r de impor-
tante iquanto às coisas difíceis^aí vai mais u m exemplo.
Emílio
V o s s õ l i l h o díscolo estraga tudo o que pega. N ã o vos
Mas eu não tenho jardim. aborreçais. Ponde fora de seu alcance o que ele puder estra-
gar. E l e quebra os móveis que usa; não vos apresseis em
Robert
lhe dar outros, deixai que sinta o prejuízo da privação. E l e
Q u e me importa? Se estragares o m e u , não te deixarei
quebra as janelas de seu quarto; deixai que o vento sopre
mais passear por ele, pois não quero perder o meu trabalho.
112 EMÍLIO
LIVRO II 113

deve ser assim, pois, n u m a idade em que o h o m e m ainda da fazer. C o m o ! N ã o é nada ser feliz? N ã o é nada saltar,
não tem n e n h u m a verdadeira ideia, toda a diferença entre brincar, correr o dia todo? E m toda a sua vida, nunca esta-
quem t e m génio e quem não o tem é que o ú h i m o só admi- rá tão ocupada. Platão, em sua República, considerada tão
te ideias falsas, ao passo que o p r i m e i r o , só encontrando austera, só educa as crianças em festas, jogos, canções, pas-
ideias falsas, não admite n e n h u m a ; ele se parece, portanto, satempos; dir-se-ia que ele t e r m i n o u quando lhes ensinou
c o m o estúpido na medida em que u m não é capaz de nada a se d i v e r t i r e m bem, e Séneca, falando da antiga juventude
e ao outro nada convém. O único sinal que pode distingui- romana, disse: ela estava sempre de pé; não lhe ensinavam
los depende do acaso, que pode oferecer ao último alguma nada que ela devesse aprender sentada. T e r i a por isso vali-
ideia ao seu alcance, ao passo que o p r i m e i r o é sempre o do menos, quando chegou à idade viril? N ã o admireis mui-
mesmo em toda parte. O j o v e m Catão, durante a infância, to, portanto, essa pretensa ociosidade. Q u e diríeis de u m
parecia u m imbecil dentro de casa. E r a taciturno e teimo- h o m e m que, para aproveitar toda a vida, nào quisesse dor-
so, eis o que pensavam dele. F o i somente na antecâmara mir nunca? Diríeis: este homem é louco; não desfruta o tem-
de Sila que seu tio aprendeu a conhecê-lo. Se não tivesse po, mas perde-o; para fugir do sono, corre para a morte.
entrado naquela antecâmara, talvez fosse considerado u m Considerai, pois, que neste caso ocorre a mesma coisa, e
bruto até a idade da razão. Se César não tives.se v i v i d o , tal- a infância é o sono da razão.
vez sempre se tivesse considerado esse mesmo Catão como
A aparente facilidade para aprender é causa da perda
u m visionário, ele que compreendeu seu funesto génio e
das crianças. N à o vemos que essa mesma facilidade é a pro-
previu todos os seus projett)s de tão longe. C o m o os que
va de que elas nào aprendem nada. Seu cérebro liso e poli-
julgam tão precipitatlamente as crianças estão sujeitos ao
do reflete c o m o u m espelho os objetos que lhes apresenta-
engano! N ã o raro são mais crianças do que elas. E u v i , nu-
mos, mas nada fica, nada o penetra. A criança retém as pa-
ma idade bastante avançada, u m h o m e m que me honrava
lavras, as ideias são refletidas; aqueles que a escutam enten-
c o m sua amizade passar em sua família e entre os amigos
dem-nas, só ela não as entende.
por u m espírito limitado; aquela excelente cabeça amadu-
recia em si êncio. D e repente, ele se revelou filósofo, e não E m b o r a a memória e o raciocínio sejam duas faculda-
tenho dúvidas de que a posteridade lhe assinalará u m lugar des essencialmente diferentes, u m a nào se desenvolve real-
honrado e distinto entre os melhores pensadores e os mais mente sem a outra. A n t e s da idade da razão, a criança nào
profundos nietafísicos de seu século-*. recebe ideias, apenas imagens, e a diferença entre umas e
/ " Respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la, quer outras é que as imagens são apenas pinturas absolutas dos
para bem, quer para mal. D e i x a i as exceções se revelarem, objetos sensíveis, e as ideias são noções dos objetos deter-
se p r o v a r e m , se c o n f i r m a r e m muito tempo antes de adotar minadas por relações. U m a imagem pode estar sozinha no
para elas métodos particulares. D e i x a i a natureza agir bas- espírito que a imagina, mas toda ideia supõe outras ideias.
tante tempo antes de resolver agir em seu lugar, temendo Q u a n d o imaginamos, não fazemos nada além de ver; quan-
contrariar suas operações. D i z e i s que conheceis o valor do do concebemos, comparamos. Nossas sensações são mera-
tempo e não quereis perdê-lo. N ã o vedes que o perdeis mui- mente passivas, ao passo que todas as nossas percepções ou
to mais empregando-o mal do que não fazendo nada, e que ideias nascem de u m princípio ativo que julga. Isso será de-
u m a criança mal instruída está mais distante da sabedoria monstrado em seguida.
do que aquela que não foi absolutamente instruída. Ficais A f i r m o pois que, não sendo capazes de julgamento, as
alarmados por vê-la consumir seus primeiros anos sem na- crianças não têm verdadeira memória. R e t ê m sons, figuras,
sensações, raramente ideias, e ainda mais raramente as liga-
114 EMÍLIO LIVRO II 115

ções entre elas. A o me objetarem que elas aprendem alguns tas, palavras estas que, dirigidas a seres carentes de toda pre-
elementos de geometria, crêem estabelecer u m a p r o v a con- vidência, nào significam absolutamente nada para eles. O r a ,
tra m i m e, pelo contrário, é para m i m que estabelecem es- todos os estudos forçados desses pobres infelizes tendem
sa prova; demonstram que, longe de saberem raciocinar por a esses objetos inteiramente alheios a seus espíritos. Imagi-
si mesmas, elas não sabem nem reter os raciocínios de ou- nai a atenção que lhes podem prestar.
tra pessoa, pois, se seguirdes o método desses pequenos geó- Os pedagogos que nos exibem c o m grande pompa as
metras, logo vereis que retiveram apenas a exata impressão lições que dão a seus discípulos são pagos para dizerem ou-
de figura e os termos da demonstração. À menor objeção tras coisas; no entanto, vemos pela sua própria conduta que
nova, elas não compreendem mais; invertei a figura, elas pensam exatamente c o m o eu. Pois o que lhes ensinam, afi-
não compreendem mais. T o d o o seu saber está na sensa- nal? Palavras, mais palavras, sempre palavras. D e n t r e as di-
versas ciências que se vangloriam de lhes ensinar, evitam
ção, nada passou para o entendimento. Sua própria memó-
escolher as que seriam realmente úteis para as crianças, por-
ria é pouca coisa mais perfeita que suas outras faculdades,
que seriam ciências de coisas e as crianças não se dariam
já que quase sempre é preciso que reaprendam, ao cresce-
bem. N o entanto, escolhem as ciências que parecemos sa-
rem, as coisas cujos nomes aprenderam durante a infância.
ber quando sabemos os seus termos: a heráldica, a geogra-
N o entanto, estou muito distante de achar que as crian-
fia, a cronologia, as línguas, e t c , todos estudos tão distan-
ças não tenham nenhuma espécie de raciocínio*. Pelo con-
tes do h o m e m , e sobretudo da criança, que será u m a mara-
trário, vejo que raciocinam muito bem em tudo o que co-
v i l h a se algo de tudo isso lhe puder ser útil u m a só vez e m
nhecem e que se relacione com seu interesse presente e sen-
sua vida.
sível. É , porém, sobre seus conhecimentos que nos engana-
Ficareis surpresos que eu conte o estudo das línguas en-
mos, ao lhes atribuirmos os que elas não têm e fazendo-as
tre as inutilidades da educação, mas lembrai-vos de que es-
raciocinar sobre o que não são capazes de compreender.
tou falando aqui apenas dos estudos da p r i m e i r a idade e,
Enganamo-nos ainda ao querer torná-las atentas a conside-
diga-se o que for, nào acredito que até a idade de doze o u
rações que não lhes dizem respeito de maneira nenhuma, quinze anos alguma criança, c o m exceção dos prodígios, te-
como a de seu interesse futuro, de sua felicidade quando nha realmente aprendido duas línguas.
homens, da estima que se terá por elas quando forem adul-
C o n c o r d o que, se o estudo das línguas nào fosse o das
palavras, isto é, das figuras o u dos sons que as e x p r i m e m ,
* Ao escrever, fiz cem vezes a reflexão de que é impossível numa obra longa
dar sempre os mesmos sentidos às mesmas palavras. Não existe língua bastante rica esse estudo poderia c o n v i r às crianças; mas as línguas, m u -
para fornecer tantos termos, expressões e frases quantas são as modificações que nossas dando os signos, modificam também as ideias que eles re-
ideias p<tdem ter. O método de definir todos t)s termos c de substituir sem parar
presentam. A s cabeças formam-se sobre as linguagens, os
o definido pela definição é belo, mas impraticável, pois como evitar o círculo.^ As
definições poderiam ser boas se não empregássemos palavras para lazêlas. Apesar pensamentos t o m a m o aspecto dos idiomas. Só a razão é
dissíí, estou convencido de que podemos .ser claros mesmo na pobreza de nossa lín- c o m u m , o espírito em cada língua tem sua f o r m a particu-
gua, não dando sempre as mesmas acepções às mesmas palavras, mas sim agindo de
lar, diferença esta que bem poderia ser e m parte a causa o u
tal sone que, toda vez que se emprega uma palavra, a acepção que lhe damos esteja
suficientemente determinada pelas ideias que se relacionam com ela, e que cada pe- o efeito dos temperamentos nacionais, e o que parece con-
ríodo em que essa palavra se encontre lhe sirva, por assim dizer, de definição. Ora firmar esta conjectura é que em todas as nações do m u n d o
digo que as crianças são incapazes dc raciocínio, ora as faço raciocinar com bastante
finura. N ã o creio coniradiz«r-me nisso nas ideias, mas não posso deixar de concor-
a língua segue as vicissitudes dos costumes e se altera o u
dar que não raro me contradiga em minhas expressões. se conserva como eles.
126 EMÍLIO LIVRO II 127

lhor papel; é a escolha do amor-próprio, u m a escolha mui- Transijamos, senhor de L a F o n t a i n e . P r o m e t o , de m i -


to natural. O r a , que horrível lição para a infância! O mais nha parte, que vos lerei c o m discernimento, que vos ama-
odioso de todos os monstros seria u m a criança avara e du- rei, que me instruirei c o m vossas fábulas, pois espero não
ra, capaz de saber o que lhe pedem e o que recusa. A for- me enganar sobre seu objeto; mas, quanto ao meu aluno,
miga v a i ainda mais longe, já que ensina a zombar enquan- )ermiti que não o deixe estudar n e n h u m a de vossas fábu-
to r e c u s a ^ _ _ _ _ - - V as, até que me houverdes provado que é b o m para ele apren-
'T^írTtodãs as fábulas em que o leão é u m dos persona- \ der coisas de que não compreenderá n e m u m quarto, e que,
gens, c o m o geralmente é o mais brilhante, a criança não \ naquelas que puder compreender, nunca se enganará e não
deixa de se fazer de leão e, quando preside a alguma parti- imitará o malandro em ugar de se corrigir c o m o pateta.
lha, bem instruída por seu modelo, tem m u i t o cuidado pa- Suprimindo assim todos os deveres das crianças, supri-
ra se apoderar de tudo. Mas, quando o mosquito abate o m o os instrumentos de sua maior miséria, os livros. A leitu-
leão, a coisa é diferente: a criança já não é o eào, e s i m o ra é o flagelo da infância, e é quase a única ocupação que
mosquito. Aprende a u m dia matar a golpes de ferrão aque- lhes sabem dar. A s s i m que completar doze anos, E m í l i o sa-
les que não ousaria atacar de pé f i r m e . berá o que é u m livro. Mas pelo menos, dirão, é preciso que
N a fábula do lobo magro e do cão gordo, em vez da l i - ele saiba ler. C o n c o r d o , é preciso que ele saiba ler quando
ção de moderação que se pretende dar, ela toma u m a aula a leitura lhe for útil; até então, só servirá para aborrecê-lo.
de licença. N u n c a esquecerei ter visto chorar muito u m a me- Se não devemos exigir nada das crianças p o r obediên-
nina que haviam desolado c o m essa fábula, ao mesmo tem- cia, segue-se que elas não podem aprender nacia de que não
po que continuavam a lhe pregar a docilidade. F o i difícil sa- sintam a vantagem atual e presente, tanto para a diversão
ber a causa daquele choro, mas acabaram conseguindo. A po- quanto para a utilidade; caso contrário, que m o t i v o as le-
bre criança estava aborrecida pt>r estar acorrentada, e sentia varia a aprender? A arte de falar c o m os ausentes e de ouvi-
o pescoço em carne viva; chorava por não ser lobo. los, a arte de lhes c o m u n i c a r à distância, sem mediador, os
A s s i m , pois, a m o r a l da p r i m e i r a fábula citada é u m a nossos sentimentos, as nossas vontades, os nossos desejos,
lição da mais baixa adulação; a da segunda, u m a lição de é u m a arte cuja utilidade pode ser mostrada a todas as ida-
desumanidade; a da terceira, u m a lição de injustiça; a da des. Através de que prodígio essa arte tão útil e tão agradá-
quarta, u m a lição de sátira; a da quinta, u m a lição de inde- vel transformou-se n u m tormento para a infância? Porque
pendência. E s t a última lição, por ser supérflua para m e u a forçaram a se aplicar nisso contra a vontade, e a utilizam
aluno, não deixa de ser inconveniente para os vossos. Q u a n - de u m modo tal que ela nada compreende. U m a criança
do lhes dais preceitos que se contradizem, que f r u t o espe- nào tem muita curiosidade de aperfeiçoar o instrumento
rais de vosso trabalho? Mas talvez, c o m exceção disso, toda c o m o qual a t o r t u r a m , mas fazei c o m que esse instrumen-
essa moral que me serve de objeção contra as fábulas for- to sirva aos seus prazeres e logo ela se aplicará a ele apesar
neça outras tantas razões para conservá-las. É preciso u m a de vós.
m o r a l nas palavras e u m a m o r a l em ações na sociedade, e Tem-se m u i t o trabalho para buscar os melhores méto-
essas duas morais não se assemelham. A p r i m e i r a está no dos de ensinar a ler; inventam-se escrivaninhas, mapas; faz-
catecismo, onde a deixam; a outra está nas fábulas de L a se do quarto da criança u m a oficina gráfica. L o c k e preten-
F o n t a i n e , para as crianças, e em seus contos, para as mães.
de que a criança aprenda a ler c o m os dados. N à o é u m a
O mesmo autor basta para tudo.
invenção bem pensada? Q u e pena! U m meio mais seguro
128 EMÍLIO LIVRO II 129

do que tudo isso é aquele que sempre é esquecido: o desejo aprende de vós, aprenderá com outros. Se não prevenirdes
de aprender. D a i esse desejo à criança, e depois deixai vos- o erro c o m a verdade, ele aprenderá mentiras; os precon-
sas escrivaninhas e vossos dados, pois qualquer método lhe ceitos que temeis lhe dar, ele os receberá de tudo o que o
servirá. rodeia, eles entrarão por todos os seus sentidos, ou c o r r o m -
O interesse presente, eis o grande m o t i v o , o línico que
perão a sua razão antes mesmo que ela esteja formada, o u
leva com segurança e longe. A s vezes Emílio recebe de seu
então seu espírito, embotado por u m a longa inação,
pai, de seus parentes, de seus amigos, alguns convites para
absorver-se-á na matéria. A falta de hábito de pensar na i n -
jantar, para u m passeio, para u m a diversão na água, para
fância suprime a faculdade de fazê-lo pelo resto da vida.
ver alguma festa pública. Esses convites são curtos, claros,
A c h o que poderei responder facilmente a essas objeções.
nítidos, bem escritos. É preciso encontrar alguém que os
Mas por que sempre respostas? Se meu método responde
leia para ele; esse alguém ou não se encontra sempre que
preciso, ou retribui à criança a pouca complacência que re- por si mesmo às objeções, ele é b o m ; se não, não vale nada.
cebeu dela no dia anterior. A s s i m , a oportunidade, o mo- Prossigo.
mento, passa. Finalmente lêem-lhe o bilhete, mas já não é Se, no plano que comecei a traçar, seguis regras direta-
tempo. A h ! Se soubesse ler por si mesmo! O u t r o s são rece- mente contrárias às que sào estabelecidas; se, e m vez de le-
bidos; são tão curtos! O assunto é tão interessante! B o m var para longe o espírito de vosso aluno; se, em vez de
seria tentar decifrá-lo; ora se encontra ajuda, ora recusa. desorientá-lo continuamente em outros lugares, em outros
C o m insistência, finalmente é decifrada a metade de u m bi- climas, em outros séculos, nas extremidades da terra e até
lhete; trata-se de ir amanhã comer creme... não se sabe on- nos céus, vos aplicardes a mantê-lo sempre em si mesmo,
de nem com quem... Quantos esforços para ler o resto! N ã o atento ao que o toca imediatamente, então o vereis capaz
acredito que Emílio precise de escrivaninha. Falarei agora de percepção, de memória e até de raciocínio: é a ordem
de escrita? N ã o , tenho vergonha de me divertir com essas da natureza. A medida que o ser sensitivo torna-se ativo,
ninharias n u m tratado de educação. adquire u m discernimento proporcional às suas forças, e
Acrescentarei somente esta frase, que dá u m a máxima é somente c o m a força que excede aquela de que precisa
importante: geralmente obtemos c o m muita segurança e para conservar-se que se desenvolve nele a faculdade espe-
muita rapidez o que não temos pressa de obter. T e n h o quase culativa própria para empregar esse excesso de força em ou-
certeza de que Emílio será perfeitamente capaz de ler e es- tros usos. Quereis, então, cultivar a inteligência de vosso
crever antes dos dez anos, justamente porque é m u i t o pou- aluno; cultivai as forças que ela deve governar. E x e r c i t a i de
co importante para m i m que ele o saiba antes dos quinze. contínuo seu corpo; tornai-o robusto e sadio, para torná-
N o entanto, eu preferiria que ele nunca soubesse ler a com- lo sábio e razoável; que ele trabalhe, aja, c o r r a e grite, este-
prar essa ciência à custa de tudo o que pode torná-la útil: ja sempre em m o v i m e n t o ; que seja h o m e m pelo vigor, e
de que lhe servirá a leitura se o tiverem afastado dela para logo o será pela razão.
sempre? Id imprimis cavere oportebit, ne studia, qui amare Vós o embruteceríeis, é verdade, c o m esse método, se
nondum potest, oderit, et amaritudinem semel perceptam
sempre o dirigísseis, se sempre lhe dissésseis: v a i , v e m , fica,
etiam ultra rudes annos reformidet*
faz isso, não faças aquilo. Se vossa cabeça sempre conduz
Q u a n t o mais insisto sobre o meu método inativo, mais seus braços, a dele tornar-se-á inútil. Mas lembrai-vos de nos-
percebo que as objeções se reforçam. Se vosso aluno nada so trato: se sois apenas u m pedante, não vale a pena ler-me.
152 EMÍLIO
LIVRO 11 153

to ele, o u quase; tem o gosto igualmente sensível, embora


tes dimensões, que. escolha entre massas de diferentes di-
menos delicado, e distingue da mesma maneira os odores,
mensões e de diferentes matérias: ela deverá comparar seus
embora não lhes i m p r i m a a mesma sensualidade.|As pri-
pesos específicos. V i u m jovem muito bem educado que não
meiras faculdades que se f o r m a m e se aperfeiçoam em nós
quis acreditar, a não ser após o experimento, que u m balde
são os sentidos. São, portanto, as primeiras faculdades que
cheio de grossas lascas de carvalho fosse menos pesado do
seria preciso cultivar; são as únicas que são esquecidas, ou
que o mesmo balde cheio de água.
as mais desdenhadas.
Não somos igualmente senhores do uso de todos os nos-
/ E x e r c i t a r os sentidos não é apenas fazer uso deles, mas
sos sentidos. Há u m deles, o tato, cuja ação nunca é sus-
aprender a bem julgar através deles é aprender, por assim
pensa durante a vigília; ele foi espalhado por toda a super-
dizer, a sentir; pois nós não sabemos nem tocar, nem ver,
fície de nosso corpo, como uma sentinela contínua para nos
n e m o u v i r a não ser da maneira como aprendemos.
advertir sobre tudo o que possa ofendê-lo. E também o sen-
Existe um exercício puramente natural e mecânico que
tido cuja experiência, queiramos ou não, adquirimos mais
serve para tornar robusto o corpo sein dar nenhuma maté-
cedo por esse exercício contínuo e o qual, por conseguin-
ria ao julgamento: nadar, correr, saltar, chicotear o pião,
te, temos menos necessidade de cultivar particularmente.
jogar pedras. T u d o isso é muito b o i n , mas teremos só bra-
N o entanto, observamos que os cegos têm u m tato mais
ços e pernas? N ã o temos olhos e ouvidos tainbém? E serão
seguro e mais fino do que nós, porque, não sendo orienta-
esses órgãos supérfluos par.i o uso dos primeiros? Portan-
lios pela visão, são forçados a aprender a tirar unicamente
to, não exerciteis apenas as forças, exercitai lodos os senti-
do p r i m e i r o sentido os juízos que a visão fornece. P o r que,
dos que as dirigem; tirai de cada u m deles todo o partido
então, não treinamos para andar c o m eles no escuro, para
possível, e depois verificai a impressão de u m pelo outro.
conhecer os corpos que podemos alcançar, para avaliar ob-
Medi, contai, pesai, comparai. N ã o useis de força senão de-
jetos que nos rodeiam, para fazer, n u m a palavra, de noite
pois de ter calculado a resistência; agi sempre de tal sorte
e sem luz tudo o que e es fazem de dia e sem olhos? E n -
que o cálculo do efeito preceda o emprego dos meios. F a -
quanto o sol brilha, temos vantagem sobre eles; nas trevas,
zei com que a criança tenha interesse em nunca fazer esfor-
eles são, por sua vez, nossos guias. Somos cegos a metade
ços insuficientes ou supérfluos. Se a acostumais assim a pre-
da vida, com a diferença de que os verdadeiros cegos sabem
ver o efeito de todos os seus moviínentos e a corrigir seus
sempre se orientar, e nós não ousamos dar u m passo no
erros pela experiência não é claro que, quanto mais ela agir,
meio da noite. Dir-me-ão que nós temos a l u z artificial.
mais se tornará judiciosa?
Q u a l ! Sempre máquinas! Q u e m vos garante que elas vos
Trata-se de deslocar u m a massa? Se ela pegar u m a ala-
seguirão por toda parte, sempre que necessário? Q u a n t o a
vanca longa demais, gastará m o v i m e n t o demais; se pegar
m i m , prefiro que Emílio tenha olhos na ponta dos dedos
uma curta demais, não terá força suficiente; a experiência
a q u e o s j e n h a na loja de u m vendedor de velas.
pode ensinar-lhe a escolher c o i n precisão o bastão de que
Q u a n d o estiverdes fechado n u m a casa no meio da noi-
precisa. Portanto, esse saber não está acima de sua idade.
te, batei as mãos; percebereis, pela ressonância do lugar, se
Trata-se de carregar u m fardo? Se ela quiser pegá-lo com
o espaço é grande ou pequeno, se estais no meio ou n u m
o peso que tem sem correr o risco de não conseguir levantá-
canto. A meio pé de u m a parede, o ar menos ambiente e
lo, não será obrigada a calcular o peso c o m a visão? Se sou-
mais refletido vos dá u m a outra sensação no rosto. F i c a i
ber comparar massas feitas da mesma matéria e de diferen-
parado e girai o corpo sucessivamente em todas as direções;
164 EMÍLIO LIVRO I! 165

tamanho e de l u z , não poderíamos avaliar nenhuma distân- interessá-las por medir, conhecer e avaliar as distâncias. E i s
cia, ou melhor, não haveria distância para nós. Se de duas uma cerejeira m u i t o alta, c o m o faremos para colher as ce-
árvores iguais aquela que estivesse a cem passos de nós rejas? A escada da granja servirá para isso? E i s u m riacho
parecesse-nos tão grande e tão nítida quanto a que estivesse bem largo, como faremos para atravessá-lo? U m a das pran-
a dez, nós as situaríamos uma ao lado da outra. Se perce- chas do pátio poderá apoiar-se nas duas margens? Gostaría-
bêssemos todas as dimensões dos objetos pela sua verdadei- mos, de nossas janelas, de pescar nos fossos do castelo; quan-
ra medida, não veríamos n e n h u m espaço e tudo nos pare- tas braças deve ter a nossa linha? G o s t a r i a de pôr u m ba-
/Xfta=.,£StâL.Íu"to^^os nossos olhos. lanço entre estas duas árvores; u m a corda de duas toesas
Para julgar o tamanho dos objetos e sua distância, o sen- será suficiente? Disseram-me que na outra casa nosso quar-
tido da visão só tem u m a medida, a abertura do ângulo que to terá vinte e cinco pés quadrados; você acha que servirá
eles produzem em nosso olho, e c o m o esta abertura é u m para nós? Será maior do que este aqui? Estamos c o m muita
efeito simples de uma causa composta, o juízo que ela pro- fome; ali estão duas aldeias; em qual das duas poderemos
duz em nós deixa cada causa particular indeterminada, ou chegar mais depressa para jantar?, etc.
se torna necessariamente erróneo. Pois como distinguir uni- E r a preciso treinar para a corrida u m menino indolen-
camente com a visão se o ângulo pelo qual vejo u m objeto te e preguiçoso, que não se entregava por si mesmo a esse
menor do que outro é assim porque este p r i m e i r o objeto é exercício nem a nenhum outro, embora o destinassem à car-
de fato menor ou porque está mais afastado? reira militar; não sei c o m o , ele se convencera de que u m
Portanto, deve-se seguir neste caso u m método contrá- h o m e m de sua condição não precisava fazer n e m saber na-
rio ao precedente. E m vez de simplificar a sensação, dupli- da, e que sua nobreza lhe devia servir de braço, de pernas
cá-la, verific.i-la sempre com auxílio de outra, subordinar e também de todo tipo de mérito. Para fazer de u m tal f i -
o órgão visual ao órgão tátil e r e p r i m i r , por assim dizer, dalgo u m A q u i l e s de pés ligeiros a habilidade do próprio
a impetuosidade do p r i m e i r o sentido pelo m o v i m e n t o len- Q u í r o n dificilmente seria suficiente. A dificuldade era tan-
to e ordenado do segundo. Q u a n d o não nos sujeitamos a to maior quanto eu não lhe queria prescrever absolutamente
esta prática, nossas medidas por estimativa são muito i m - nada; eu banira de meus direitos as exortações, as promes-
precisas. N ã o dispomos de n e n h u m a exatidão no golpe de sas, as ameaças, a rivalidade e o desejo de b r i l h a r . C o m o
vista para julgar as alturas, os comprimentos, as p r o f u n d i - lhe dar vontade de correr sem lhe dizer nada? C o r r e r eu
dades, as distâncias, e a p r o v a de que isso não se deve tanto mesmo teria sido u m modo pouco seguro e sujeito a i n -
aos sentidos quanto a seu emprego é que os engenheiros, convenientes. D e resto, tratava-se também de tirar daquele
os agrimensores, os arquitetos, os pedreiros e os pintores exercício algum tema de instrução para ele, a f i m de habi-
em geral têm u m golpe de vista muito mais seguro do que tuar as operações do corpo e as do juízo a andarem sempre
nós, e avaliam as medidas da extensão com mais exatidão, em harmonia. E i s c o m o agi, eu, isto é, aquele que fala nes-
porque, dando-lhes sua profissão neste ponto a experiência te exemplo. J ^ —— —-
que desdenhamos adquirir, eles suprimem o equívoco do A o ir passear c o m ele de tarde, às vezes eu p u n h a no
ângulo pelas aparências que o acompanham, e determinam bolso dois doces de u m tipo que ele gostava muito. C a d a
c o m maior exatidão a relação das duas causas deste ângulo. u m de nós c o m i a u m durante o passeio*, e voltávamos
T u d o o que dá movimento ao corpo sem forçá-lo é sem- * Passeio campestre, como logo se verá. Os passeios públicos das cidades sio
pre fácil de obter das crianças. E x i s t e m m i l maneiras de perniciosos para as crianças de ambos os sexos. É ali que elas começam a se
172 EMÍLIO LIVRO II 173

lliasse a atenção que o objeto merece. A s s i m , cada u m de Se pretendo medir u m ângulo de sessenta graus, des-
nós aspira à honra da moldura simples, c, quando um quer crevo do vértice desse ângulo, nào u m arco, mas u m círcu-
fazer pouco de u m desenho do outro, condena-o à moldu- lo inteiro, pois c o m as crianças nunca devemos deixar na-
ra dourada. A l g u m dia talvez esses quadros dourados da subentendido. Descubro que a parte do círculo com-
it)rnem-se entre nós c o m o provérbios, e ficaremos admira- preendida entre os dois lados do ângulo é a sexta parte do
dos com a quantidade de homens que fazem justiça a si mes- círculo. Depois disso, descrevo do mesmo vértice u m ou-
jiios_ao_.se enqiiadrarem assim. tro círculo maior, e vejo que esse segundo arco também é
l i u disse que a geohietria não estava ao alcance das crian- a sexta parte de seu círculo. Descrevo u m terceiro círculo
ças, mas é culpa nossa. N ã o percebemos que o método das concêntrico, sobre o qual faço a mesma coisa, e continuo
crianças não é o nosso, e o que para nós é a arte de racioci- fazendo novos círculos, até que E m í l i o , chocado c o m m i -
nar deve ser para elas apenas a arte de ver. E m vez de lhes
nha estupidez, faça-me observar que cada arco, grande o u
dar nosso método, agiríamos melhor adotando o delas, pois
pequeno, compreendido pelo mesmo ângulo, será sempre
nossa maneira de ensinar geometria é tanto u m assunto de
a sexta parte de seu círculo, etc. E há pouco estávamos usan-
imaginação quanto de raciocínio. Q u a n d o a proposição é
do o transferidor!
enunciada, é preciso imaginar a sua demonstração, isto é,
Para provar que os ângulos adjacentes sào iguais a dois
descobrir de que proposição já conhecida a outra deve ser
conseqiiência e, de todas as consequências que podem ser ti- retos, descrevemos u m círculo; eu, pelo contrário, faço com
radas dessa mesma proposição, escolher exatamente aquela que E m í l i o observe isso p r i m e i r o no círculo, e depois lhe
de que se trata. digo: Se suprimíssemos o círculo e as linhas retas, será que
os ângulos m u d a r i a m de grandeza?, etc.
Dessa maneira, o raciocinador mais exato, se não for i n -
Desdenhamos a exatidão das figuras, supomo-la e nos
ventivo, não irá muito longe. A s s i m , o que acontece depois?
E m vez de nos fazerem descobrir as demonstrações, elas nos prendemos à demonstração. E n t r e nós, pelo contrário, nun-
são ditadas; em vez de nos ensinar a raciocinar, o professor ca se tratará de demonstração. N o s s o trabalho mais impor-
raciocina por nós e só exercita a nossa memória. tante será traçar linhas bem retas, bem exatas, bem iguais,
Fazei figuras exatas, combinai-as, colocai-as umas sobre fazer u m quadrado bastante perfeito, traçar u m círculo bem
as outras, examinai suas relações; encontrareis toda a geo- redondo. Para verificar a exatidão da figura, examiná-la-emos
metria elementar indo de observação em observação, sem através de todas as suas propriedades sensíveis, e isto nos
que se trate de definições, nem de problemas, nem de qual- permitirá descobrir a cada dia novas propriedades. D o b r a -
quer outra f o r m a demonstrativa a não ser a simples super- remos pelo diâmetro os dois semicírculos; pela diagonal,
posição. D e minha parte, não pretendo ensinar geometria as duas metades do quadrado; compararemos as nossas duas
a Emílio, será ele quem ma ensinará; procurarei relações figuras para ver qual delas tem as bordas que concordam
e ele as encontrará, pois eu procurarei de tal maneira que mais exatamente e, conseqiientemente, é a mais bem feita;
ele as encontre. Por exemplo, em lugar de me servir de u m discutiremos se tal igualdade de divisão deve continuar ocor-
compasso para traçar u m círculo, traçá-lo-ei com uma ponta rendo nos paralelogramas, nos trapézios, etc. Tentaremos
amarrada a u m fio que gira sobre u m eixo. A s s i m , quando algumas vezes prever o resultado da experiência antes de
eu quiser comparar os raios entre si, Emílio zombará de fazê-la; procuraremos achar razõeSj^tc^
m i m e me fará compreender que o mesmo fio sempre esti- Para meu ãIuno,~ã geometria é apenas a arte de bem
cado não pode ter traçado distâncias diferentes. servir-se da régua e do compasso. N ã o deve confundi-la com
180 EMÍLIO LIVROII 181

dó e C são sempre a mesma coisa, o que não é n e m deve de de transformar outras substâncias na nossa própria, a es-
ser, pois então para que serviria C ? A s s i m , a maneira de colha não é indiferente; n e m tudo é alimento para o ho-
solfejarem é de u m a dificuldade excessiva, sem ser de ne- m e m , e, das substâncias que podem sê-lo, há aquelas que
n h u m a utilidade, sem trazer n e n h u m a ideia clara ao espíri- são mais ou menos convenientes, conforme a constituição
to, já que, por esse método, as duas sílabas dó e mi, p o r de sua espécie, conforme o clima e m que habite, conforme
exemplo, podem igualmente significar uma terça maior, me- seu temperamento particular e conforme a maneira de v i -
nor, supérflua ou diminuída. P o r que estranha fatalidade ver que sua condição lhe prescreva.
o país do mundo onde se escrevem os mais belos livros so- Morreríamos de fome o u envenenados se fosse preciso
bre a música é precisamente aquele em que a aprendemos esperar, para escolher os alimentos que nos convêm, que
com maior dificuldade.' a experiência nos tivesse ensinado a conhecê-los e a escolhê-
Adotemos c o m nosso aluno u m a prática mais simples los. A suprema bondade, porém, que fez do prazer dos se-
e mais clara; que ele só tenha para si dois modos, cujas rela- res sensíveis o instrumento de sua conservação, adverte-nos,
ções sejam sempre as mesmas e sempre indicadas pelas mes-
através do que agrada ao nosso paladar, sobre o que con-
mas sílabas. Q u e r cantando, quer tocando u m instrumento,
vém ao estômago. Naturalmente, não há para o homem mé-
que ele saiba estabelecer seu modo em cada u m dos doze tons
dico mais seguro do que seu próprio apetite, e, tomando-o
que lhe podem servir de base e que, quer se module e m D ,
em seu estado p r i m i t i v o , não tenho dúvida de que os ali-
em C , e m G , e t c , o final seja sempre lá ou dó, conforme
mentos que achava mais agradáveis eram também os mais
o modo. Dessa maneira, ele sempre vos compreenderá; as re-
saudáveis para ele.
lações essenciais do modo para cantar e tocar estarão sempre
presentes em seu espírito, sua execução será mais clara e seu H á mais. O autor das coisas não provê apenas às neces-
progresso mais rápido. N ã o há nada mais esquisito do que sidades que nos dá, mas também àquelas que nós próprios
aquilo que os franceses c h a m a m de solfejar ao natural; isso nos damos, e é para que nosso desejo esteja sempre ao lado
equivale a afastar as ideias da coisa para substituí-las por ideias de nossa necessidade que ele faz c o m que nossos gostos m u -
alheias que só confundem. N a d a é mais natural do que sol- dem e se alterem c o m as maneiras de v i v e r . Q u a n t o mais
fejar por transposição, quando o modo é transposto. Mas bas- nos afastamos do estado de natureza, mais perdemos de nos-
ta quanto à música; ensinai-a c o m o quiserdes, contaiito^iifi. sos gostos naturais, o u antes, o hábito f o r m a para nós u m a
jemptE_sg^ajipejaaj uma diversão. segunda natureza, que substituímos de tal modo à primei-
liis-nos bem informados acerca do estado dos corpos ra, que ninguém de nós conhece mais essa primeira.
alheios c o m relação ao nosso, de seu peso, de sua figura, Segue-se daí que os gostos mais naturais devem ser tam-
de sua cor, de sua solidez, de sua grandeza, de sua distân- bém os mais simples, pois são aqueles que se transformam
cia, de sua temperatura, de seu repouso e de seu m o v i m e n - mais facilmente, ao passo que, ao se aguçarem, ao se irrita-
to. Estamos instruídos sobre aqueles que convém aproxi- rem c o m nossas fantasias, eles assumem u m a forma que não
mar ou afastar de nós, sobre a maneira como nos devemos muda mais. O homem que ainda não é de n e n h u m país adap-
portar para vencer sua resistência, ou para lhes opor u m a tar-se-á sem dificuldades aos costumes de qualquer país, mas
resistência que nos preserve de sermos ofendidos, mas não o h o m e m de u m país nãojBais se j o r n a o de u m o u t r o p a í s ^
é o bastante; nosso próprio corpo esgota-se sem cessar, pre- Isso me parece verdadeiro e m todos os senti^bs^e mais
cisa ser renovado sem cessar. E m b o r a tenhamos a faculda- ainda quando aplicado ao gosto propriamente dito. N o s s o
192 EMÍLIO LIVRO II 193

Resta-me falar nos livros seguintes da cultura de u m a seu aspecto. V e n d o assim renascer a natureza, nós mesmos
espécie de sexto sentido, chamado senso c o m u m , menos por sentimo-nos reanimar; a imagem do prazer rodeia-nos; aque-
ser c o m u m a todos os homens do que por resultar do uso las companheiras da volúpia, as doces lágrimas sempre pron-
bem regrado dos outros sentidos, e por nos instruir a res- tas a se juntar a todo sentimento delicioso, já estão às bor-
peito da natureza das coisas c o m o auxílio de todas as suas das de nossas pálpebras, mas o aspecto das vindimas, por
aparências. Esse sexto sentido, por conseguinte, não tem mais que seja animado, v i v o e agradável, sempre o vemos
órgão particular; reside apenas no cérebro, e suas sensações, c o m os olhos secos.
puramente internas, chamam-se percepções ou ideias. A ex- P o r que essa diferença? E que, ao espetáculo da prima-
tensão de nossos conhecimentos mede-se pelo número des-
vera, a imaginação soma o das estações que se lhe devem
sas ideias, e é sua nitidez, sua clareza que faz a justeza do
seguir; aos tenros brotos que o olho percebe, ela acrescen-
espírito; é a arte de compará-las entre si que chamamos ra-
ta as flores, os frutos, as sombras das folhagens e às vezes
zão humana. A s s i m , o que eu chamava de razão sensitiva
os mistérios que elas possam esconder. E l a reúne n u m só
ou pueril consiste em formar ideias simples c o m o auxílio
ponto tempos que se devem suceder, e vê os objetos menos
de várias sensações, e o que chamo de razão intelectual o u
humana consiste em formar ideias complexas c o m o auxí- c o m o serão do que c o m o os deseja, porque depende dela
lio de várias ideias simples. escolhê-los. N o outono, pelo contrário, só temos para ver
o que existe. Se quisermos chegar à p r i m a v e r a , o i n v e r n o
Supondo, pois, que meu método seja o da natureza e
nos detém, e a imaginação enregelada expira sobre a neve
que não me tenha enganado em sua aplicação, levamos nosso
e a geada.
aluno pelo país das sensações até as fronteiras da razão pue-
Essa é a fonte do encanto que experimentamos na con-
r i l ; o p r i m e i r o passo que daremos adiante deve ser u m pas-
so de h o m e m . Mas, antes de entrar nesta nova vertente, con- templação de u m a bela infância, de preferência à perfeição
templemos u m pouco o que acabamos de percorrer. C a d a da maturidade. Q u a n d o experimentamos u m real prazer ao
idade, cada estado da vida tem sua perfeição conveniente, ver u m adulto? Q u a n d o a memória de suas ações faz-nos
o tipo de maturidade que lhe é própria. O u v i m o s falar mui- recuar em sua vida e o rejuvenesce, por assim dizer, aos nos-
tas vezes de u m homem feito, mas consideremos u m a crian- sos olhos. Se somos reduzidos a considerá-lo tal c o m o é,
ça feita: o espetáculo será mais novo para nós, e talvez não ou a supô-lo tal c o m o será na velhice, a ideia da natureza
venha a ser menos agradável. em dec ínio mata todo o nosso prazer, pois não há qual-
A existência dos seres finitos é tão pobre e limitada que,
quando só enxergamos o que existe, nunca nos comovemos. mo ao
\r prazer emtúmulo,
ver u m ehomem
a imagem da morte
avançar enfeia
a passos tudo.
largos ru- — /
A s quimeras enfeitam os objetos reais e, se a imaginação " Q u a n d o , porém, imagino uma criança de dez ou doze
não soma algum encanto ao que nos impressiona, o estéril anos, sadia, forte, bem formada para a idade, ela não pro-
prazer que então recebemos limita-se ao órgão e sempre dei- voca em m i m qualquer ideia que não seja agradável, quer
x a f r i o o coração. O r n a d a c o m os tesouros do outono, a para o presente, quer para o f u t u r o ; vejo-a ardente, v i v a ,
terra ostenta u m a riqueza que o olho admira; no entanto, animada, sem preocupações, sem u m a longa e penosa pre-
tal admiração não é comovente, e v e m mais da reflexão do vidência, inteiramente entregue a seu ser atual, gozando de
que do sentimento. N a p r i m a v e r a , o campo quase n u ain- u m a plenitude de vida que parece querer estender-se para
da não se c o b r i u de nada, os bosques não oferecem sombra fora dela. Prevejo-a em outra idade, exercitando o juízo,
alguma, a verdura apenas desponta e o coração é tocado por o espírito e as forças que nela se desenvolvem todos os dias,
200 EMÍLIO

nando pipas. D e passagem, o pai diz ao f i l h o : Onde está a


pipa cuja sombra está ali? Sem titubear, sem erguer a cabe-
ça, a criança d i z : Na estrada. E , de fato, acrescentava m i l o r -
de H y d e , a estrada ficava entre o sol e nós. Diante da res-
posta, o pai beija seu filho e, terminando ali seu exame, vai LIVRO III
embora sem nada dizer. N o dia seguinte, enviou ao pre-
ceptor os papéis para uma pensão vitalícia, além dos seus
ordenados. E m b o r a até a adolescência todo o curso da vida seja u m
Q u e h o m e m , esse pai! Q u e filho lhe estava prometido! tempo de fraqueza, há u m momento na duração desta p r i -
A pergunta é precisamente para a idade; a resposta é m u i t o meira idade em que, tendo o progresso das forças ultrapas-
simples. Mas vede que clareza de julgamento infantil ela su- sado o das necessidades, o a n i m a l que cresce, ainda absolu-
põe! F o i assim que o aluno de Aristóteles domou o célebre tamente fraco, torna-se forte relativamente. N e m todas as
ginete que n e n h u m escudeiro pudera montar. suas necessidades estando desenvolvidas, suas forças atuais
são mais do que suficientes para satisfazer às que possui.
C o m o h o m e m , ele seria fraquíssimo; c o m o criança, é m u i -
to forte.
D e onde provém a fraqueza do homem? D a desigual-
dade existente entre a sua força e os seus desejos. Nossas
paixões tornam-nos fracos, pois para satisfazê-las precisa-
ríamos de mais forças do que as que a natureza nos deu.
Diminuí, pois, os desejos, e será c o m o se aumentásseis as
forças; quem pode mais do que deseja tem forças de sobra
e certamente é u m ser m u i t o forte. E i s o terceiro estado
da infância, aquele de que falarei hoje. C o n t i n u o a chamá-
lo de infância, na falta de u m t e r m o apropriado para de-
signá-lo, pois essa idade está próxima à adolescência, sem
ser ainda a da puberdade.
A o s doze o u treze anos, as forças da criança desenvol-
vem-se bem mais rapidamente do que suas necessidades. O
mais violento, o mais terrível ainda não se lhe revelou; o
próprio órgão permanece imperfeito e, para sair desse esta-
do, parece aguardar que sua vontade o force a isso. P o u c o
sensível aos castigos do ar e das estações, ela os enfrenta sem
sofrer, pois seu calor nascente serve-lhe de vestimenta; seu
apetite é seu tempero; tudo o que pode alimentar é b o m
para a sua idade; se tem sono, deita-se n o chão e dorme;
por toda parte vê-se cercada de tudo o que lhe é necessário;
LIVRO III 203
202 EMÍLIO

idade.' Tentará empregá-lo em trabalhos que lhe possam ser


n e n h u m a necessidade imaginária a atormenta; nada pode
proveitosos quando preciso. P o r assim dizer, lançará para
sobre ela a opinião; seus desejos não vão mais longe do que
o futuro o supérfluo de seu ser atual; a criança robusta fará
seus braços; não apenas pode bastar a si mesma c o m o tam-
provisões para o adulto fraco, mas não fará seus depósitos
bém tem mais forças do que precisa; é o único tempo dc
nem em cofres que lhe podem ser roubados, n e m em celei-
sua vida em que isso acontecerá.
ros que não são seus; para .se apropriar realmente de sua
Prevejo a objeção. N ã o dirão que a criança tem mais
aquisição, armazená-la-á em seus braços e em sua cabeça.
necessidades do que as que lhe concedo, mas negarão que te-
É, portanto, o tempo dos trabalhos, da instrução, dos estu-
nha a força que lhe atribuo; não se darão conta de que falo de
dos; observai que não sou eu quem faz arbitrariamente es-
meu aluno, e não dessas bonecas ambulantes que viajam de
sa escolha, mas é a própria natureza q u e m a indica.
u m quarto para o outro, que l a v r a m dentro de u m caixote
e carregam fardos de papelão. Dir-me-ão que a força v i r i l A inteligência h u m a n a tem seus limites. N ã o somente
só se manifesta c o m a virilidade, que os espíritos vitais, ela- u m h o m e m não pode saber tudo, c o m o n e m pode saber
borados em vasos adequados e espalhados por todo o cor- completamente o pouco que sabem os outros homens. J á
po, são os únicos que podem dar aos músculos a consistên- que a contraditória de cada proposição falsa é u m a verda-
cia, a atividade, o t o m , a m o l a de que resulta u m a verdadei- de, o número das verdades é inesgotável, assim c o m o o dos
r a força. E i s a filosofia de gabinete; eu, porém, recorro à erros. H á , portanto, u m a escolha das coisas que devemos
experiência. V e j o em nossos campos jovens que lavram, bi- ensinar, assim c o m o do tempo próprio para ensiná-las. D o s
n a m , seguram o arado, enchem u m tonel de v i n h o , guiam conhecimentos que estão ao nosso alcance, uns são falsos,
u m carro c o m o seus pais; considerá-los-íamos adultos, se outros são inúteis e outros servem para alimentar o orgu-
o som de suas vozes não os traísse. E m nossas próprias c i - lho de quem os t e m . O s poucos que realmente c o n t r i b u e m
dades, jovens trabalhadores, ferreiros, cuteleiros, ferrado- para o nosso bem-estar são os únicos dignos das pesquisas
res, são quase tão robustos quanto os mestres, e seriam pou- de u m h o m e m sábio e, portanto, de u m a criança que quei-
co menos hábeis se os tivessem treinado a tempo. Se há di- ramos tornar sábia. N ã o se trata de saber o que existe, mas
ferença, e concordo que há, ela é m u i t o menor, repito, do apenas o que é útil.
que a que existe entre os desejos fogosos de u m h o m e m e Desses poucos conhecimentos, devemos ainda suprimir
os desejos limitados de u m a criança. D e resto, não estamos as verdades que para serem compreendidas requerem u m
falando aqui apenas de forças físicas, mas sobretudo da for- entendimento já inteiramente formado, as que supõem o
ça e da capacidade do espírito que as completam ou as conhecimento das relações do h o m e m que u m a criança não
dirigem. pode adquirir e as que, embora verdadeiras e m si mesmas,
dispõem u m a alma inexperiente a pensar de modo falso so-
Esse intervalo em que o indivíduo pode mais do que bre outros assuntos.
deseja, embora não seja o período de sua maior força abso-
Eis-nos reduzidos a u m círculo bem pequeno relativa-
luta, é, c o m o já disse, o de sua maior força relativa. É o
mente à existência das coisas; mas c o m o esse círculo ainda
tempo mais precioso da vida, tempo que só aparece u m a
f o r m a u m a esfera imensa para a medida do espírito de u m a
vez; tempo m u i t o curto e, por ser tão curto, c o m o vere-
criança! T r e v a s do entendimento h u m a n o , que mão teme-
mos a seguir, é importante que seja bem empregado.
rária ousou tocar em vossos véus? Q u a n t o s abismos vejo
A s s i m , que fará ele desse excedente de faculdades e de
abrirem-se por nossas vãs ciências ao redor desse j o v e m de-
forças que tem a mais agora, e que lhe fará falta em outra
204 EMÍLIO 205
LIVRO III

safortunado! Ó t u que vais guiá-lo por essas perigosas t r i - de, princípio natural ao coração h u m a n o , mas cujo desen-
lhas e estender diante de seus olhos a cortina sagrada da na- v o l v i m e n t o só se faz proporcionalmente a nossas paixões
tureza, treme! P r i m e i r o assegura-te bem de sua cabeça e da 6 a nossas luzes. Suponde u m filósofo relegado a u m a ilha
tua, teme que u m a ou outra se confunda, ou talvez as duas. deserta c o m alguns instrumentos e alguns livros, certo de
T e m e a especiosa atraçào da mentira e os embriagantes va- passar nela, sozinho, o resto de seus dias. E l e já não se preo-
pores do orgulho. L e m b r a , lembra sempre que a ignorân- cupará c o m o sistema do m u n d o , c o m as leis da atraçào e
cia jamais causou m a l , que só o erro é funesto e que nào do cálculo diferencial; talvez durante toda a vida não abra
nos perdemos por não sabermos, mas por crermos saber. u m único l i v r o , mas n u n c a deixará de visitar sua ilha até
Seus progressos na geometria poderiam servir-vos de o último recanto, por maior que ela seja. Suprimamos, pois,
p r o v a e de medida certa para o desenvolvimento de sua i n - de nossos primeiros estudos também os conhecimentos cujo
teligência; mas, assim que ele consegue distinguir o que é gosto nào é natural ao h o m e m , e limitemo-nos àqueles que
útil do que não é, importa usar de muita cautela e de arte o instinto nos leva a procurar.
para conduzi-lo aos estudos especulativos. P o r exemplo, se A ilha do género h u m a n o é a terra; o objeto mais i m -
quereis que ele busque u m a média proporcional entre duas pressionante para os nossos olhos é o sol. A s s i m que come-
linhas, começai por agir de tal modo que ele sinta necessi- çamos a nos afastar de nós, nossas primeiras observações
dade de achar u m quadrado igual a u m retângulo dado; se devem recair sobre u m a o u outro. A s s i m , a filosofia de quase
se tratasse de duas médias proporcionais, seria preciso pri- todos os povos selvagens trata unicamente de imaginárias
meiro tornar interessante para ele o problema de duplica- divisões da terra e da divindade do sol.
ção do cubo, etc. Vede c o m o nos aproximamos aos poucos
Q u e desvio, dirão talvez. H á pouco estávamos ocupa-
das noções morais que distinguem o bem e o m a l . Até ago-
dos com o que nos toca, c o m o que nos cerca imediatamen-
ra não conhecemos outra lei que não a da necessidade; agora
te; de repente eis-nos a percorrer o globo e a saltar até as ex-
deparamo-nos c o m o que é útil; logo chegaremos ao que
tremidades do universo! Esse desvio é o efeito do progresso de
é conveniente e b o m .
nossas forças e da inclinação de nosso espírito. N o estado
O mestDo instinto anima as diversas faculdades do ho-
de fraqueza e de insuficiência, o cuidado c o m a nossa con-
mem. A atividade do corpo, que prt)cura desenvolver-se,
servação concentra-nos dentro de nós mesmos; no estado de
segue-se a atividade do espírito, que procura instruir-se. N o
potência e de força, o desejo de ampliar nosso ser leva-nos
c o m e ç o , as crianças são apenas irrequietas, depois tornam-
além e faz c o m que nos arremessemos tão longe quanto pos-
se curiosas; e essa curiosidade, quando bem dirigida, é o mo-
sível. Porém, c o m o o m u n d o intelectual ainda nos é desco-
t i v o da idade a que chegamos. Distingamos sempre as incli-
nhecido, o pensamento nào vai mais longe do que os olhos,
nações que vêm da natureza daquelas que vêm da opinião.
e o entendimento só se amplia com o espaço que mede.
E x i s t e u m ardor de saber que só se baseia no desejo de ser
Transformemos nossas sensações em ideias, mas nào sal-
considerado instruído; existe outro que nasce de u m a cu-
temos de repente dos objetos sensíveis para os objetos inte-
riosidade natural ao h o m e m por tudo o que pode dizer-lhe
lectuais. É pelos p r i m e i r o s que devemos chegar aos outros.
respeito de perto ou de longe. O desejo inato do bem-estar
N a s primeiras operações do espírito, sejam os sentidos sem-
e a impossibilidade de satisfazer plenamente tal desejo fa-
pre seus guias: n e n h u m l i v r o além do l i v r o do m u n d o , ne-
z e m c o m que ele procure sem cessar novos meios de con-
n h u m a instrução a nào ser os fatos. A criança que lê não
t r i b u i r para isso. Este é o p r i m e i r o princípio da curiosida-
pensa, só lê; não se instrui, aprende palavras.
206 EMÍLIO LIVRO III 207

T o r n a i vosso aluno atento aos fenómenos da natureza resiste; u m espetáculo tão grande, tão bonito, tâo delicioso
e logo o tornareis curioso; mas, para alimentar sua curiosi- não deixa ningtiém indiferente.
dade, n u n c a vos apresseis em satisfazê-la. C o l o c a i questões C h e i o de entusiasmo, o mestre quer comunicá-lo à
ao seu alcance e deixai que ele as resolva. Q u e nada ele sai- criança; acredita emocioná-la fazendo-a prestar atenção às
ba porque lho dissestes, mas porque ele próprio compreen- sensações com que ele próprio se emociona. P u r a bobagem!
deu; não aprenda ele a ciência, mas a invente. Se alguma E no coração do h o m e m que está a vida do espetáculo da
vez substituirdes em seu espírito a razão pela autoridade, natureza; para enxergá-lo, é preciso senti-lo. A criança per-
ele não raciocinará mais e não será mais do que o joguete cebe os objetos, mas não pode perceber as relações que os
da opinião dos outros. ligam, não pode o u v i r a doce h a r m o n i a de seu concerto.
Quereis ensinar geografia a essa criança, e lhe ofereceis E preciso u m a experiência que ela ainda não adquiriu, sen-
globos, esferas, mapas; quantas máquinas! P o r que todas es- timentos que não experimentou, para sentir a impressão
sas representações? P o r que não começais por lhe mostrar composta que resulta ao mesmo tempo de todas essas sen-
o próprio objeto, para que ela saiba pelo menos do que es- sações. Se ela nào percorreu por muito tempo planícies ári-
tais falando? das, se areias ardentes não queimaram seus pés, se a rever-
U m a bela tarde vamos passear n u m lugar favorável, on- beração sufocante dos rochedos batidos pe o sol jamais a
de o horizonte bem descoberto deixa ver por inteiro o sol o p r i m i u , c o m o saboreará o ar fresco de u m a bela manhã?
poente, e observamos os objetos que t o r n a m reconhecível C o m o o perfume das flores, o encanto da verdura, o vapor
o lugar onde se põe. N o dia seguinte, para respirar ar fres- limido do o r v a l h o , os passos macios e mansos sobre a gra-
co, voltamos ao mesmo lugar antes que o sol se levante. ma encantarão seus sentidos? C o m o lhe causará o canto dos
V e m o - l o anunciar-se de longe pelos raios de fogo que lança pássaros u m a emoção de voltipia, se os acentos do amor e
à sua frente. O incêndio aumenta, o oriente parece todo do prazer ainda lhe são desconhecidos? C o m que transpor-
em chamas; p o r seu fulgor esperamos o astro bastante tem- tes verá ele nascer u m tão lindo dia, se a sua imaginação
30 antes que ele se mostre; a cada instante acreditamos vê- não sabe representar aqueles c o m que se pode preenchê-la?
o aparecer; vemo-lo, finalmente. U m ponto brilhante par- E n f i m , como se enternecerá c o m a beleza do espetáculo da
te como u m raio e imediatamente preenche todo o espaço; natureza se ignora que mão cuidou de enfeitá-la?
o véu das trevas apaga-se e cai. O h o m e m reconhece seu
N ã o digais à criança palavras que ela não possa enten-
lugar e o acha mais belo. A verdura durante a noite ganhou
der. N a d a de descrições, nada de e oquência, nada de figu-
novo vigor; o dia nascente que a ilumina, os primeiros raios
ras, nada de poesia. N ã o se trata agora de sentimento n e m
que a d o u r a m , revelam-na coberta de uma brilhante renda
de gosto. C o n t i n u a i a ser claro, simples e f r i o ; não tardará
de o r v a l h o , que reflete para os olhos a l u z e as cores. O s
o tempo de se adotar u m a outra linguagem.
passarinhos em coro reiinem-se e saiídam unanimemente
Educada no espírito de nossas máximas, habituada a t i -
o pai da vida; nesse momento, n e n h u m deles se cala; seus
rar todos os seus instrumentos de si mesma e nunca recor-
gorjeios, ainda fracos, são mais lentos e mais doces do que
rer a outra pessoa a não ser depois de ter reconhecido sua
no resto do dia, ressentindo-se da languidez de u m desper-
incapacidade, a cada novo objeto que vê, ela o examina bas-
tar tranquilo. O concurso de todos esses objetos dá ao sen-
tante tempo sem dizer nada. E pensativa e não questiona-
tido u m a impressão de frescor que parece penetrar até a al-
dora. Contentai-vos c o m lhe apresentar de modo correto
ma. E meia hora de encantamento a que n e n h u m h o m e m
os objetos; depois, quando virdes a sua curiosidade suficien-
208 EMÍLIO LIVRO III 209

temente ocupada, dirigi-lhe alguma pergunta lacónica que J á que o sol gira ao redor do m u n d o , ele descreve u m
a coloque no c a m i n h o da resposta. círculo, e todo círculo deve ter u m centro; isso já sabemos.
Nessa ocasião, depois de ter bem contemplado c o m ela N ã o se pode ver esse centro, pois ele está no coração da
o sol nascente, depois de tê-la feito observar do mesmo la- terra, mas podemos marcar na superfície dois pontos que
do as montanhas e os outros objetos vizinhos, depois de correspondem a ele. U m espeto que passe pelos três pon-
tê-la deixado falar à vontade sobre isso, conservai durante tos e se prolongue até o céu de ambos os lados será o eixo
alguns momentos o silêncio, c o m o u m h o m e m que medi- do mundo e do m o v i m e n t o diário do sol. U m pião redon-
ta, e depois lhe direis: Estava pensando que ontem à tarde do girando sobre a sua ponta representa o céu que gira so-
o sol se pôs ali, e nasceu lá esta manhã. C o m o é que isso bre seu eixo; as duas pontas do pião são os dois pólos; a
pode acontecer? N ã o acrescenteis mais nada; se ela vos f i - criança terá vontade de conhecer u m ; eu l h o mostrarei na
zer perguntas, não respondais e falai de outra coisa. Deixai-a cauda da U r s a M e n o r . E i s u m a diversão para a noite; pou-
entregue a si mesma e podeis estar certo de que pensará a co a pouco nos familiarizamos c o m as estrelas e daí nasce
respeito. o p r i m e i r o gosto por conhecer os planetas e observar as
constelações.
Para que u m a criança se acostume a estar atenta e seja
bem receptiva a alguma verdade sensível, é preciso que essa V i m o s o nascer do sol no dia de São J o ã o . V a m o s tam-
verdade a inquiete durante alguns dias antes que a descu- bém vê-lo nascer no N a t a l ou em algum outro belo dia de
bra. Se ela não a compreender suficientemente dessa ma- inverno, pois é sabido que não somos preguiçosos e para
neira, há u m meio de torná-la ainda mais sensível, e esse nós é u m a brincadeira enfrentar o f r i o . T e n h o o cuidado
meio é inverter a questão. Se ela não sabe c o m o o sol vai de fazer esta segunda observação no mesmo lugar em que
de seu poente ao seu nascente, sabe pelo menos c o m o ele fizemos a p r i m e i r a , e, c o m alguma habilidade para ensejar
vai do nascente ao poente, já que seus olhos lhe ensinam a observação, u m o u outro não deixará de exclamar: O h !
isso. Esclarecei, portanto, a p r i m e i r a questão pela segunda; Q u e engraçado! O sol não nasce mais no mesmo lugar! A q u i
ou vosso aluno é absolutamente estúpido, ou a ana ogia é estão nossas antigas indicações, e agora ele nasceu a l i , etc...
clara demais para lhe poder escapar. E i s a sua p r i m e i r a aula E x i s t e m , portanto, u m oriente de i n v e r n o e u m oriente de
de cosmografia. verão, etc... J o v e m mestre, estais no c a m i n h o . Esses exem-
plos devem bastar-vos para ensinardes c o m m u i t a clareza
C o m o sempre procedemos lentamente, de ideia sensí- a esfera, tomando o m u n d o como mundo e o sol c o m o sol.
vel a ideia sensível, como nos familiarizamos durante bas-
tante tempo c o m ela antes de passar a u m a outra e c o m o , E m geral, nunca substituais a coisa pelo signo, a não
e n f i m , n u n c a forçamos nosso aluno a prestar atenção, há ser quando é impossível mostrá-la, pois o signo absorve
muita distância entre essa p r i m e i r a aula e o conheciinento a atenção da criança e faz c o m que esqueça a coisa repre-
do curso do sol e da figura da terra. C o m o porém todos sentada.
os movimentos aparentes dos corpos celestes se relacionam A esfera armilar parece-me u m a máquina m a l feita e
c o m o mesmo princípio, e a p r i m e i r a observação leva a to- executada em más proporções. A q u e l a confusão de círcu-
das as outras, é preciso menos esforço, embora seja preciso los e as figuras esquisitas que nela se assinalam dão-lhe u m
mais tempo, para se chegar de uma revolução diurna ao cál- aspecto de coisa ininteligível que i n t i m i d a o espírito das
culo dos eclipses do que para compreender bem o dia e a crianças. A terra é pequena demais, os círculos são grandes
noite. demais, numerosos demais; alguns, c o m o os coluros, são
210 EMÍLIO LIVRO III 211

perfeitamente inúteis; cada círculo é maior do que a terra; a Apesar disso, sem dúvida, será preciso guiá-la u m pou-
grossura do papel confere-lhes aspecto de solidez que faz com co, mas m u i t o pouco, sem que pareça. Se ela se enganar,
que sejam tomados por massas circulares realmente existen- deixai estar, não corrijais os seus erros, aguardai em silên-
tes, e, quando disserdes à criança que esses círculos são imagi- cio que ela esteja em condições de enxergá-los e de corrigi-
nários, ela não saberá o que vê e não entenderá mais nada. los por si mesma, o u , no máximo, n u m a ocasião favorável,
N u n c a sabemos colocar-nos no lugar das crianças; não empreendei alguma operação que faça c o m que ela os per-
penetramos suas ideias, mas lhes emprestamos as nossas e, ceba. Se nunca se enganasse, nào aprenderia tão bem. D e
seguindo sempre os nossos raciocínios, junto com as cadeias resto, nào sc trata de saber exatamente a topografia do l u -
de verdades acumulamos em suas cabeças apenas extrava- gar, mas o meio de se instruir a respeito; pouco importa
gâncias e erros. que ela tenha mapas na cabeça, contanto que compreenda
Discute-se sobre a escolha entre a análise e a síntese pa- bem o que representam e tenha u m a ideia nítida sobre a
ra estudar as ciências; nem sempre há necessidade de se es- arte de traçá-los. Podeis ver já a diferença que há entre o
colher. Algumas vezes podemos resolver e compor nas mes- saber de vossos alunos e a ignorância do m e u ! Eles sabem
mas pesquisas, e guiar a criança pelo método i n f o r m a t i v o os mapas e ele o faz. E i s alguns novos enfeites para o seu
enquanto ela acredita que está apenas analisando. E m p r e - quarto.
gando, então, u m e outro método ao mesmo tempo, eles L e m b r a i sempre que o espírito de m i n h a educação não
serviriam de prova u m para o outro. Partindo a u m só tem- é ensinar à criança muitas coisas, mas não deixar jamais en-
po dos dois pontos opostos, sem pensar estar fazendo o mes- trar em seu cérebro ideias que não sejam claras e justas. Mes-
m o c a m i n h o a criança ficaria surpresa ao se encontrar, e m o que ela nào saiba nada, pouco me i m p o r t a , contanto
essa surpresa só poderia ser muito agradável. E u gostaria, que nào se engane, e só coloco algumas verdades em sua
por exemplo, de tomar a geografia por esses dois pontos cabeça para preservá-la dos erros que aprenderia em seu l u -
e juntar ao estudo das revoluções do globo a medida de suas gar. A razão e o juízo vêm lentamente, os preconceitos acor-
partes, começando pelo lugar onde habitamos. E n q u a n t o r e m aos montes; é deles que é preciso protegê-la. Mas, se
a criança estuda a esfera e assim se transporta até os céus, considerais a ciência em si mesma, entrais n u m mar sem
trazei-a de volta à divisão da terra e mostrai-lhe p r i m e i r o fundo, sem margens, cheio de recifes; jamais escapareis de-
sua própria morada. le. Quando vejo u m h o m e m apaixonado pelos conhecimen-
Seus dois primeiros pontos de geografia serão a cidade tos deixar-se seduzir por seus encantos e correr de u m para
onde m o r a e a casa de campo de seu pai; depois, os lugares outro sem saber parar, é como se visse u m a criança na praia
intermediários, os rios dos arredores e finalmente o aspec- colhendo conchinhas e começando p o r guardá-las; depois,
to do sol e a maneira de se orientar. Esse é o ponto de en- tentada pelas outras mais que vê, deixá-las de lado, voltar
contro. Q u e ela faça por si mesma o mapa de tudo isso, a pegá-las, até que, esgotada pela multidão de conchas e j á
mapa m u i t o simples e formado inicialmente por dois úni- nào sabendo o que escolher, acaba jogando tudo fora e vol-^
cos objetos, aos quais ela acrescenta pouco a pouco os ou- tando de mãos vazias. .
tros, à medida que v a i conhecendo ou avaliando suas dis- D u r a n t e a p r i m e i r a idade, o tempo era longo; procurá-
tâncias e suas posições. Podeis agora ver a vantagem que vamos apenas perdê-lo, temendo empregá-lo m a . A g o r a
lhe proporcionamos antecipadamente ao lhe colocar u m acontece exatamente o contrário, e não temos tempo sufi-
cotnpasso nos olhos. ciente para fazer tudo o que seria útil. C o n s i d e r a i que as
222 EMÍLIO LIVRO III 223

as inteligências. T u d o o que se relaciona c o m a ordem mo- impossível ensiná-lo mais cedo, pois nossos verdadeiros mes-
ral e c o m os costumes da sociedade nào lhes deve ser apre- tres sào a experiência e o sentimento, e o h o m e m só sente
sentado tào cedo, pois não estão em condições de compreen- bem o que convém ao h o m e m nas relações em que se acha.
dê-lo. E u m erro exigir delas que se apliquem a coisas que U m a criança sabe que deve tornar-se adulta, todas as ideias
dizemos vagamente serem para o bem delas sem que sai- que pode ter sobre a condição de adulto são oportunidades
bam qual é esse bem, e das quais lhes garantimos que tira- de instrução para ela; porém, sobre as ideias dessa condi-
rão grandes proveitos quando crescerem, sem que elas te- ção que não estão ao seu alcance, ela deve permanecer n u -
n h a m n e n h u m interesse agora por esse pretenso proveito ma ignorância absoluta. T o d o o meu livro não passa de u m a
que não são capazes de compreender. prova contínua desse princípio de educação.
N ã o faça a criança nada sob palavra; nada c bom para A s s i m que chegamos a dar ao nosso aluno u m a ideia
ela, a não ser o que ela sente que é b o m . Lançando-a sem- da palavra útil, temos mais u m grande meio para educá-lo,
pre à frente de seu entendimento, acreditais usar de previ- pois essa palavra o impressiona m u i t o , dado que tem para
dência, mas ela vos falta. Para dotá-la de alguns vãos instru- ele apenas u m sentido relativo à sua idade e que ele vê cla-
mentos de que talvez não faça uso nunca, vós lhe subtraís ramente a sua relação c o m seu bem-estar atual. Vossas crian-
o mais universal instrumento do h o m e m , que é o bom sen- ças nào se impressionam c o m essa palavra porque não t i -
so; vós a acostumais a sempre se deixar levar, a ser apenas vestes o cuidado de lhes dar u m a ideia que esteja ao seu al-
u m a máquina nas mãos de outra pessoa. Quereis que ela cance e porque, outras pessoas sempre se encarregando de
seja dócil quando pequena; é o mesmo que querer que ela seja a r r u m a r o que lhes é i l t i l , elas nunca precisam encarregar-
crédula e enganada quando grande. Dizeis-lhe sempre: Tu- se disso por si mesmas e não sabem o que seja utilidade.
do o que te peço épara o teu proveito, mas nào tens condições Para que serve isto? E i s , doravante, a palavra sagrada,
de sabê-lo. A mim, o que importa que faças ou não o que exi- a palavra determinante entre ele e m i m e m todas as ações
jo? E só para ti mesmo que trabalhas. C o m todos esses belos de nossa vida; eis a questão que de m i n h a parte segue-se i n -
discursos que agora lhe fazeis para torná-la sábia, preparais falivelmente a todas as suas perguntas, e que serve de freio
o sucesso das palavras que algum dia lhe dirá u m visioná- àquele amontoado de interrogações tolas e aborrecidas c o m
rio, um charlatão, u m patife ou u m louco qualquer para que as crianças cansam sem cessar e sem resultados todos
pegá-la em sua armadilha ou para fazer c o m que adote a os que as cercam, mais para exercer sobre eles algum tipo
sua loucura. de domínio do que para tirar algum proveito. A criança
È importante que u m adulto saiba muitas coisas cuja a quem, c o m o sua mais importante lição, ensinamos a só
utilidade u m a criança não é capaz de entender; mas será pre- querer saber coisas úteis interroga c o m o Sócrates; não faz
ciso e possível u m a criança aprender tudo o que é impor- n e n h u m a pergunta sem dar a si mesma a razão que sabe
tante que u m adulto saiba? P r o c u r a i ensinar à criança tudo que lhe pedirão antes de respondê-la.
o que é lítil para a sua idade e vereis que todo o seu tempo Vede que poderoso instrumento coloco entre vossas
estará ocupado. P o r que quereis, à custa dos estudos que mãos para agir sobre vosso aluno. N à o sabendo a razão de
lhe convêm hoje, que se ocupe c o m aqueles de u m a idade nada, ei-lo quase reduzido ao silêncio quando quiserdes; e
que é tão pouco certo que ela alcance? Mas, direis, será tem- vós, pelo contrário, que vantagem vossos conhecimentos
po de aprender o que se deve saber quando chegar a hora e vossa experiência vos dão para lhe mostrar a utilidade de
de empregá-lo? N ã o sei; mas o que sei é que para m i m é tudo o que lhe propondes! Pois, não vos enganeis, fazer-
224 EMÍLIO
LIVRO III 225

lhe essa pergunta é ensinar-lhe a fazê-la a vós por sua vez,


se ela nào o for, c o m u m pouco de atenção logo encontra-
e eleveis estar certo de que, sobre tudo o que lhe propuser-
reis u m a oportunidade de tornar perceptível para ele a sua
des daí e m diante, ele, seguindo vosso exemplo, nào deixa-
utilidade.
rá de dizer: Para que serve isto?
N ã o gosto das explicações e m f o r m a de discurso. O s
T a l v e z seja essa a armadilha mais difícil de se evitar para
jovens prestam pouca atenção nelas e não as retêm. A s coi-
u m preceptor. Se, diante da pergunta da criança, p r o c u -
sas! A s coisas! N u n c a terei repetido suficientemente que da-
rando somente vos sairdes bem, lhe derdes u m a única ra-
mos poder demais às palavras. C o m nossa educação tagare-
zão que ela nào esteja e m condições de entender, vendo
la, só criamos tagare as.
que raciocinais c o m vossas ideias e não c o m as suas, ela
Suponhamos que, enquanto estudo c o m meu aluno o
acreditará que o que lhe dizeis seja b o m para a vossa ida-
curso do sol e a maneira de se orientar, de repente ele me
de, e nào para a sua; não confiará mais em vós, e tudo es-
interrompe para me perguntar para que serve tudo aquilo.
tará perdido. Mas onde está o professor que consente em
Q u e belo discurso irei fazer-lhe! D e quantas coisas apro-
ficar sem resposta e confessar os seus erros diante de seu
aluno? T o d o s eles têm c o m o lei não admitir nem mesmo veitarei a oportunidade para instruí-lo em resposta à sua
os que têm; e eu, de m i n h a parte, teria c o m o lei admitir pergunta, sobretudo se tivermos testemunhas para a nossa
até os que não tivesse, se não pudesse colocar as minhas conversa*. Falar-lhe-ei sobre a utilidade das viagens, sobre
razões ao seu alcance; assim, a m i n h a conduta, sempre cla- as vantagens do c o m é r c i o , sobre os produtos particulares
ra em sua mente, nunca lhe será suspeita, e conservarei para a cada c i m a , sobre os costumes dos diferentes povos, so-
m i m mais crédito admitindo alguns erros do que eles, que bre o emprego do calendário, sobre o cálculo do retorno
escondem os seus. das estações para a agricultura, sobre a arte da navegação,
Primeiramente, vede bem que raramente cabe a vós pro- sobre a maneira de se guiar no mar seguindo exatamente
por o que ele deve aprender; cabe a ele desejá-lo, procurá- a rota, quando nào se sabe onde se está. A política, a histó-
lo, encontrá-lo; cabe a vós colocá-lo ao seu alcance, fazer ria natural, a astronomia, a própria m o r a e o direito das
habilmente nascer esse desejo e fornecer-lhe os meios de gentes entrarão em m i n h a explicação, dando ao m e u aluno
satisfazê-lo. Segue-se daí que vossas perguntas devem ser pou- uma grande ideia de todas essas ciências e u m intenso dese-
co frequentes, mas bem escolhidas; e, c o m o ele terá mais jo de aprendê-las. Q u a n d o tiver dito tudo, terei feito u m a
perguntas a vos fazer do que vós a ele, estareis sempre me- exibição de verdadeiro pedante, da qual nào terá compreen-
nos a descoberto e mais vezes em condições de lhe dizer: dido u m a única ideia. E l e teria c o m o antes vontade de me
Em que isso que me perguntas é útil de se saber? perguntar para que serve orientar-se, mas não ousa, temen-
Além disso, como é pouco importante isto ou aquilo, do aborrecer-me. Prefere fingir que entendeu o que o for-
contanto que ele entenda bem o que aprende e o uso d o çaram a e s c u t a r . Assini^sg j a z e n w s ^ e l a s educações^
que aprende, quando não tiverdes de lhe dar sobre o que — - — W ã s õ n o s s o E m í l i o , educãdÕcle u m a maneira mais rús-
lhe dizeis n e n h u m a explicação que seja boa para ele, não tica, e ao qual demos c o m tanto trabalho u m a concepção
deis explicação nenhuma. Dizei-lhe sem escrúpulos: N à o te- dura, nào escutará nada disso. Q u a n d o o u v i r a p r i m e i r a pa-
n h o resposta certa para te dar; eu estava errado, deixemos
isso de lado. Se vossa instrução for realmente fora de pro- * M u i t i s vezes observei que, nos doutos ensinamentos que damos às crianças,
p«nsamos menos em nos fazer ouvir por elas do que pelos adultos que estio presen-
pósito, nào haverá mal algum em abandoná-la totalmente; tes. Tenfio certeza disso, pois observei-o em mim mesmo.
240 EMÍLIO LIVRO /// 241

bém se sinta bem, por ter compreendido bem para que ser- e converteram-se esses metais em moeda para poupar a me-
ve o que faZ;_____ dição ou a pesagem a cada troca; pois a marca da moeda
/^~S~sõcIéHãde das artes consiste em trocas de indústria, não é mais do que um atestado de que a peça assim marca-
/ a do comércio em trocas de coisas, a dos bancos em trocas da tem tal peso, e apenas o príncipe tem o direito de cu-
/ de signos e de dinheiro; todas essas ideias se hgam, e as no- nhar moedas, dado que só e e tem o direito de exigir que
ções elementares já foram adquiridas; lançamos os funda- seu testemunho tenha autoridade junto a todo um povo.
mentos de tudo isso desde a primeira infância, com o auxí-
O emprego dessa invenção assim explicada torna-se cla-
lio do jardineiro Robert. Só nos resta agora generalizar es-
ro até para o mais estúpido. É difícil comparar imediata-
sas mesmas ideias e estendê-las a mais exemplos, para fazer
mente coisas de naturezas diferentes, por exemplo, pano
com que ele compreenda o funcionamento do comércio em
com trigo; quando, porém, achamos uma medida comum,
si mesmo, que se torna sensível pelos detalhes da história
a moeda, é fácil para o fabricante e para o lavrador relacio-
natural que dizem respeito às produções próprias de cada
nar com essa medida comum o valor das coisas que que-
país, pelos detalhes das artes e das ciências que dizem res-
rem trocar. Se tal quantidade de pano vale tal soma de di-
peito à navegação, enfim, pela maior ou menor dificuldade
nheiro e se tal quantidade de trigo também vale a mesma
do transporte, conforme a distância entre os lugares, segun-
soma de dinheiro, segue-se que o mercador, recebendo aque-
do a posição das terras, dos mares, dos rios, etc.
le trigo pelo seu pano, está fazendo uma troca equitativa.
Nenhuma sociedade pode existir sem troca, nenhuma Assim, é pela moeda que os bens de espécies diferentes
troca sem medida comum, e nenhuma medida comum sem tornam-se comensuráveis e se podem comparar.
igualdade. Assim, toda sociedade tem por primeira lei al- Não avanceis mais do que isso e não entreis na explica-
guma igualdade convencional, quer entre os homens, quer ção dos efeitos morais dessa instituição. Em todas as coisas,
entre as coisas. é importante expor bem os usos antes de mostrar os abu-
A igualdade convencional entre os homens, muito di- sos. Se pretenderdes explicar às crianças como os signos fa-
ferente da igualdade natural, torna necessário o direito po- zem com que se deixem de lado as coisas, como nasceram
sitivo, isto é, o governo e as leis. Os conhecimentos políti- da moeda todas as quimeras da opinião, como os países ri-
cos de uma criança devem ser nítidos e limitados; ela deve cos em dinheiro devem ser pobres de tudo, tratareis essas
conhecer do governo em geral apenas o que se relaciona crianças não apenas como fi ósofas, mas como homens sá-
com o direito de propriedade, de que jitem alguma ideia. bios, e pretendeis fazer com que entendam o que até pou-
A igualdade convencional entre as coisas fez com que cos filósofos compreenderam bem.
se inventasse a moeda, pois a moeda é apenas um termo Para quantos objetos interessantes não podemos diri-
de comparação para o valor das coisas de diferentes espé- gir assim a curiosidade de um aluno, sem jamais abandonar
cies. Neste sentido, a moeda é o verdadeiro laço da socie- as relações reais e materiais que estão ao seu alcance, nem
dade. Tudo, porém, pode ser moeda; antigamente o gado permitir que ponha na sua mente uma única ideia que não
o era e ainda hoje as conchas o são entre diversos povos; possa conceber! A arte do mestre consiste em nunca deixar
o ferro foi moeda em Esparta, o couro o foi na Suécia, o que suas observações se entorpeçam sobre minúcias que não
ouro e a prata o são entre nós. se relacionam com nada, mas em aproximá-lo continuamen-
Por serem de transporte mais fácil, os metais geralmente te das grandes relações que um dia deverá conhecer para
foram escolhidos como termos médios de todas as trocas. bem julgar sobre a boa e a má ordem da sociedade civil. É
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preciso saber combinar as conversas com que o divertimos do tantos trabalhos concorrerem para aprontar o seu jan-
com o tipo de espírito que lhe demos. Uma pergunta que tar. Se pressentirdes esse raciocínio, podeis facilmente evitá-
não poderia nem mesmo tocar a atenção de um outro irá lo antes que ele ò faça, ou pelo menos apagar imediatamen-
atormentar Emílio durante seis meses. te a impressão que ele deixe. Ainda só sabendo apropriar-
Vamos jantar numa casa rica; encontramos os prepara- se das coisas para um gozo material, ele não pode avaliar
tivos de um banquete, muitas pessoas, muitos lacaios, mui- se são convenientes ou não para ele, a não ser por relações
tos pratos, um serviço elegante e fino. Todo esse aparato sensíveis. A comparação de um jantar simples e rústico, pre-
de prazer e de festa tem algo de embriagador que sobe à parado pelo exercício, temperado pela fome, pela liberda-
cabeça quando não estamos acostumados a ele. Pressinto de, pela alegria, com aquele banquete tão magnífico e tão
o efeito de tudo aquilo em meu jovem aluno. Enquanto o ordenado bastará para fazer com que perceba que, lodo o
banquete se prolonga, enquanto os pratos se sucedem, en- aparato do banquete nao lhe tendo dado nenhum proveito
quanto reinam ao redor das mesas mil conversas barulhen- real, e saindo seu estômago igualmente satisfeito da mesa
do camponês e daquela do financista, não havia nada mais
tas, aproximo-me de seu ouvido e lhe digo: Por quantas
em uma do que na outra que ele pudesse chamar de verda-
mãos achas que tenha passado tudo o que vês sobre esta
deiramente seu.
mesa antes de chegar até aqui? Que quantidade de ideias
desperto em seu cérebro com estas poucas palavras! Ime- Imaginemos o que em caso semelhante um preceptor
diatamente, eis que todos os eflúvios do delírio são abati- lhe poderá dizer. Lembra-te bem destas duas refeições e de-
dos. Ele pensa, reflete, calcula, inquieta-se. Enquanto os fi- cide dentro de ti mesmo qual delas te deu maior prazer;
lósofos, alegres por causa do vinho e talvez de suas vizi- em qual delas observaste maior alegria? E m qual das duas
nhas, falam bobagens e parecem crianças, ei-lo ali, filoso- comeu-se com maior apetite, bebeu-se com maior alegria,
fando sozinho em seu canto; faz-me perguntas; recuso-me riu-se com mais gosto? Qual delas durou mais tempo sem
a responder e adio para outra hora; ele se impacienta, es- aborrecer, e sem precisar ser renovada por outros pratos?
quece a comida e a bebida, morre de vontade de estar fora No entanto, repara a diferença: este pão cinzento que achas
da mesa para conversar comigo à vontade. Que objeto pa- tão bom vem do trigo colhido por este camponês; seu vi-
ra a sua curiosidade! Que texto para sua instrução! Com nho negro e rude, mas que mata a sede e é sadio, é de seu
vinhedo; a toalha vem de seu cânhamo, filado durante o
um juízo são que nada pôde corromper, que pensará ele
inverno por sua mulher, por suas filhas, por sua emprega-
do luxo, quando descobrir que todas as regiões do mundo
da; mão nenhuma que não fosse de sua família fez os pre-
contribuíram para aquilo, que vinte milhões de mãos tal-
parativos de sua mesa; o moinho mais próximo e o merca-
vez tenham trabalhado por muito tempo, que aquilo talvez
do vizinho são para ele os limites do universo. E m que, en-
tenha custado a vida de milhares de homens, e tudo isso
tão, tiveste realmente prazer com tudo o que forneceram
para lhe apresentar pomposamente ao meio-dia o que ele
a mais a terra distante e a mão dos homens na outra mesa?
vai devolver à noite em seu banheiro.
Se tudo isso não te fez ter uma melhor refeição, o que ga-
Observai com atenção as conclusões secretas que ele ti- nhaste com essa abundância? O que havia ali que tivesse
ra em seu coração de todas essas observações. Se o tiverdes sido feito para ti? Se fosses o dono da casa, poderá acres-
vigiado menos bem do que suponho, ele poderá ser tenta- centar, tudo aquilo te seria ainda mais estranho, pois a preo-
do a desviar suas reflexões para uma outra direção e cupação de ostentar diante dos outros o teu prazer acaba-
considerar-se um personagem importante no mundo, ven- ria com ele; terias tido o trabalho, e eles, o prazer.

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