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ISABEL GONDIM: UMA VIDA PELA EDUCAÇÃO

MARIA ARISNETE CÂMARA de MORAIS/UFRN

GT: História da Educação

1-Sobre a pesquisa:

Este trabalho tem o objetivo de analisar a produção textual de Isabel Urbana


de Albuquerque Gondim, mulher que dedicou toda a sua vida às letras, à educação
e à história. Busco não apenas configurar uma época mas, inclusive, compreender a
sua parcela de contribuição à história da educação brasileira, particularmente em
Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, durante as últimas décadas do
século XIX (a partir de 1870) e inicio do século XX.

Utilizo como principal objeto de análise as maneiras pelas quais essa realidade
foi construída, pensada, dada a ler,1 através dos subsídios disponíveis como: a
correspondência particular de Isabel Gondim e manuscritos inéditos, gentilmente
cedidos pelos seus descendentes, os jornais da época e seus livros em prosa e em
verso.

Entendo que uma investigação deste porte só tem sentido quando relacionada
à comunidade de leitores e leitoras, que pretendo configurar e associar ao estudo da
produção, da transmissão e da apropriação dos textos2 que caracterizavam essa
sociedade. O que pretendo evidenciar é a maneira pela qual os indivíduos
produzem o mundo social, aliando-se ou afrontando-se, através das dependências e
tensões que os unem e que os opõem, tomando como ponto de partida uma situação
bem particular: o papel de Isabel Gondim, a literata e « a veterana do magistério
norte-rio-grandense 3 ».

Justifico essa escolha em virtude da sua vasta produção literária, num contexto
desfavorável para que as mulheres desenvolvessem essa prática.

O brado conservador (1881), jornal editado no Rio Grande do Norte,


transcrevia o seguinte texto, assinado pela leitora Felisbela N. da G. Machado:
2

« Em furiosa mania desandam hoje as cabeças femininas, querendo abandonar


os privilégios de seu sexo e algumas cobrir-se com o capelo de advogado e de
doutor4».

O belo sexo (1862), jornal editado no Rio de Janeiro, redigido por várias
senhoras, publicava a carta de um leitor anônimo:

« Tendo-me sido enviado o n. 2 do Belo Sexo, chega hoje às minhas mãos o


n.4; não é esse porém o motivo que me determina devolvê-los. Sou muito
pensionado na minha profissão, e não tenho tempo para ler publicações nem
mesmo de primeira ordem (...) Quereria que se me dissesse onde estão no sexo
feminino esses luzeiros que ofuscam Lamartine, Victor Hugo, Camões, Garret,
Dante, etc. 5 ».

Embora Isabel Gondim não vestisse o capelo de advogada ou de doutora, no


sentido de que falava Felisbela N. da G. Machado, e não ofuscasse tanto quanto
Lamartine, Victor Hugo, Camões, Garret e Dante, ainda assim era doutora das
letras, escrevia livros e projetava-se entre as mulheres do seu tempo.

Na opinião de Câmara Cascudo (1976), ela era « a única mulher que tinha
coragem de concorrer na produção intelectual ao lado dos homens, ciosos do
privilégio antigo6 ». Comprovando o seu mérito de escritora, desde 29 de julho de
1928 tornava-se sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte, « única mulher admitida em seu grêmio, por força de seus grandes
merecimentos 7 »

Quando da fundação da Academia norte-rio-grandense de Letras, em 14 de


novembro de 1936, três anos após sua morte, constava o seu nome na cadeira de
número oito, como patrona de um dos fundadores, o escritor Matias Carlos de
Araújo Maciel Filho, ao lado de escritoras e escritores como: Nísia Floresta,
patrona de Henrique Castriciano, cadeira número dois; Auta de Souza, patrona de
Palmira Wanderley, cadeira de número vinte; Carolina Wanderley, cadeira de
número seis que tem como patrono Luís Carlos Wanderley8.
3

Apesar de Câmara Cascudo (1980) considerar que essa professora,


historiadora e literata trabalhava sempre « isolada, sisuda, sem repercussão,
escrevendo até morrer9 », questiono, no entanto, a afirmativa sem repercussão do
nosso ilustre historiador: as evidências observadas nos textos vasculhados mostram
outra verdade.

A República (1933), jornal editado no Rio Grande do Norte, registrava uma


carta de pesar por « essa velhinha que acaba de desaparecer » (referindo-se a Isabel
Gondim) com a epígrafe Uma nobre figura de mulher potiguar. Essa carta
evidencia o prestígio de Isabel Gondim, ainda no final da vida: o texto, que o jornal
publicava em Natal, era uma transcrição do Diário de Pernambuco:

« Chegou-me a notícia do falecimento da poetisa potiguar d. Isabel Gondim,


quase ao mesmo tempo em que me vinha às mãos, de sua autoria, A lira Singela,
lançada a lume, numa linda plaqueta10 ».

Trata-se de um livro em verso, cujo conteúdo gira em torno de temas


dedicados à sua cidade Natal, à família, à pátria, à mulher e auto-retrato. Segundo o
prefácio, ela havia preparado esse livro em 1912 e a publicação data de 1933. Um
mês antes da sua morte (1933), circulava o convite para o lançamento do seu livro
Lira Singela. Nele a escritora solicitava às pessoas que aceitassem o exemplar do
seu livro, « mediante pequena esportula », a fim de ajudar ao Asilo para crianças
órfãs. Consta do seu testamento ajuda financeira para fundação e manutenção de
um asilo de órfãos pobres, em idade escolar, de seis a oito anos, na vila de Paparí,
cuja denominação será Asilo Isabel. Apesar de fragilizada pela idade, não esquecia
a preocupação central da sua vida: a educação das meninas e das moças, futuras
mães e esposas, como ela sempre aludia.

A sua importância e repercussão comprovam-se, também, através da sua


correspondência particular, gentilmente cedida pela professora Jacira Gondim.
Tavares de Lira, político importante nesse contexto, que foi Governador do Rio
Grande do Norte e Senador da República, escrevia-lhe do Rio de Janeiro:
4

« Vivamente penhorado, agradeço a V. Ex. a delicada oferta que se dignou a


fazer-me de dois exemplares do poemeto O Preceptor, que li com o maior
interesse11 ».

Nessa correspondência, está o registro da circulação do livro O preceptor,


publicado em Recife, capital do Estado de Pernambuco. Entretanto Walter
Wanderley (1971)12 registra um erro de anacronismo histórico fixando a data da
impressão desse livro em 1933 em lugar de 1923. Trata-se do poemeto consagrado
à instrução e ao professor primário « como testemunho imorredouro de
reconhecimento e gratidão pelas lições transmitidas à autora13 », de acordo com o
prefácio escrito em 1922.

O Senhor Gabriel de Piza, « patrício admirador » de Isabel Gondim, conforme


ele mesmo se denomina, também escrevia de Paris, referindo-se ao livro O
preceptor:

« Foi com grande prazer que recebi a carta de 24 de setembro, que V. Ex.
serviu-se dirigir-me. Com ela recebi os três exemplares do seu poemeto O
Preceptor. Li com vivo interesse e distribui os outros como V. Ex. determinou14 ».

As referidas correspondências possuem datas distintas, demonstrando


períodos e locais diferentes de circulação desse livro: a correspondência datada de
1931, no Rio de Janeiro, onde quase todas as suas obras foram publicadas, e a de
1923, em Paris, extrapolando as fronteiras do Rio Grande do Norte.

Analisar a circulação desses textos e tentar compreender o movimento de


Isabel Gondim nessa configuração é também evitar cair no senso comum de
percebê-lo como uma trajetória, um percurso orientado com princípio meio e fim,
como se o real fosse estático e linear. Segundo Pierre Bourdieu (1994), tentar
compreender uma vida como uma série única, por si só, suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outra ligação que não seja a do nome próprio, é
quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diversas estações.15
5

Com esta compreensão, pretendo vincular o nome próprio Isabel Gondim à


estrutura das relações objetivas que permeiam o seu contexto social, levando em
conta as incessantes transformações que a sociedade brasileira vivia naquele
momento histórico. Significa configurar a sociedade natalense, considerando que o
comportamento de muitas pessoas separadas enreda-se de modo a formar estruturas
entrelaçadas, tensas, mutáveis. Norbert Elias (1985) afirma que « todas as unidades
e formas de integração social são sempre unidades de seres humanos, ligados uns
aos outros por uma rede de interdependência e por diferentes motivos16 ».
Qual a importância de Isabel Gondim nessa configuração? É a indagação que
permeia este ensaio, num período em que o prenúncio da modernidade apontava
favoravelmente para os que dominavam os escritos, nos espaços sociais que
freqüentavam. Prenúncio da modernidade entendido como a « experiência de
tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida,
compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo17». Ou seja, as
possibilidades e, ao mesmo tempo, os perigos da leitura dos impressos que
circulavam, seja nos livros seja nos jornais.
2- A modernidade em Natal
O cenário dessa experiência de tempo e de espaço, compartilhada por homens
e mulheres, é a cidade do Natal, localizada no nordeste brasileiro. Banhada pelo rio
Potengi, que deságua no oceano atlântico, proporciona aos olhos dos viandantes e
nativos uma vasta extensão de mar sinalizada pelo Farol de Mãe Luísa•. Conforme
os dados censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,18 a população
de Natal, em 1872, podia ser estimada em torno de 20.392 habitantes,
correspondendo a 8.71% da população total do Estado do Rio Grande do Norte, em
torno de 233.979 habitantes. En 1920, com 537.135 mil habitantes no Estado a
população de Natal girava em torno de 30.696, seja 5.71 % da população total. A


Hoje, no ano 2000, Natal é uma cidade em ebulição com todos os atributos de cidade que se pretende
moderna ou em vias de modernização. O turismo instalou-se com força total, modificando os hábitos da então
pacata cidade do inicio do Descobrimento e também do período em que viveu Isabel Gondim.
6

população concentrava-se na zona rural, não existindo ainda o êxodo em massa


para as grandes cidades.

A então pacata cidade começava a receber os sinais do progresso, a nova


experiência partilhada. Por exemplo, os primeiros passos para a iluminação pública
datam de 1851, com os lampiões de reverbo colocados nos pontos mais
convenientes 19.

A modernidade instalava-se em Natal não apenas através da iluminação


pública, mas também através do campo educacional, embora muito lentamente.
Conforme análise de Câmara Cascudo (1980), todo o século XVII escondia a figura
do professor, escondendo assim um elemento chave para essas mudanças. Os
homens que se sobressaíam na política « riscavam uma cruz no livro de registro de
atas. E sem saber ler e escrever respondiam, ombro a ombro, a el-rei nosso senhor,
com liberdade, consciência e valor que o letrado, cheio de códigos e memórias de
cotas, não se atrevia20». Esta afirmação denota a lentidão da sociedade para se
firmar no mundo letrado. Lentidão que condizia com as próprias características de
um vilarejo que ainda não se preocupava com as necessidades de ler o mundo
através das letras do alfabeto.

O século XVIII presenciava mudanças em Natal, em relação aos seus


primeiros passos em busca da apropriação do mundo letrado. Câmara Cascudo
(1980) explica que os oficiais do Senado da Câmara, em carta de 26 de agosto de
1728, escreveram a D. João V, solicitando que « fizesse erigir na cidade um
Hospício em que residissem alguns religiosos para ensinarem gramática aos filhos
dos moradores que desejassem seguir a carreira eclesiástica21».

Com três anos de espera, surge a primeira cadeira de ensino público na


Capitania do Rio Grande do Norte, na qual o clérigo Mateus Duarte ensinava a ler,
escrever e a gramática latina para os futuros eclesiásticos da Província. A sociedade
ainda estava longe de pensar o ensino dessas matérias de forma indiscriminada para
homens, mulheres e negros.
7

Em 1866, Isabel Gondim prestava concurso para a cadeira de ensino primário.


Foi um longo período dedicado ao magistério: nasceu no dia 5 de julho de 1839,
em Papari, hoje município de Nísia Floresta, e aposentava-se em 02 de março de
1891, já sexagenária.22 Mesmo assim, não abandonava as atividades literárias,
preocupação que levava consigo até os últimos momentos da sua vida.
3- A prática da leitura na sociedade letrada
No bojo da modernidade que se instalava, havia o projeto de construir a
sociedade letrada, (brasileira e natalense) no qual a educação era entendida como
elemento essencial de mudanças e transformações, comprovado através dos
discursos oficiais. Tomo como exemplo a fala do Conselheiro Imperial Paulino
José Soares de Souza: ao afirmar que « a distribuição da instrução em todos os seus
graus é a base mais segura do desenvolvimento de uma nação 23 ».
Neste sentido, valorizava-se a leitura como símbolo de instrução e como
forma de socialização, conforme registra Machado de Assis. No romance Quincas
Borba (1891), a personagem Maria Benedita consentia em aprender francês « que
24
era indispensável para conversar, para ir às lojas, para ler um romance », uma vez
que era de bom tom aprender a ler e a falar francês. No romance A mão e a luva
(1874), a personagem Guiomar « lia um romance francês recentemente publicado
em Paris e trazido pelo último paquete 25 ».
Na opinião de Isabel Gondim (1910), o cultivo das línguas estrangeiras é
muito importante, principalmente a francesa, uma vez que nela « estão escritas
26
excelentes obras de literatura, de ciências e de educação ». Revestida da
autoridade de quem conhece bem literatura, aconselhava suas alunas a ilustrar o
27
espírito « na leitura dos bons livros », tendo o cuidado para não ler obras
consideradas « perniciosas... 28 ».
Essas obras « perniciosas » são os romances da escola realista, verdadeiros
29
«incendiários do coração da mocidade ». Em seu lugar indicava a leitura de obras
sobre a educação dos filhos, visto que os livros de Madame Campan, Almeida
Garret, Jean Jacques Rousseau e Padre Roquette « apresentam considerações
8

30
dignas de séria atenção, principalmente para a mulher mãe ». Conforme os
códigos de moral da época, as indicações de leitura, para as incautas jovens
donzelas, consistiam em leituras de conteúdo religioso, de cunho moral e sobre a
educação da mulher, futura mãe e esposa. 31
A preocupação da mais antiga escritora residente no Estado32 consistia em
orientar a educação da mocidade. Notando a falta de um livro em língua
portuguesa, destinado à educação da mulher, resolveu aproveitar-se dos conceitos
do Sr. Padre Roquette e Visconde d’Almeida Garrett, « esses dois grandes vultos da
33
literatura moderna, distintos amigos da humanidade » e escreveu Reflexões às
minhas alunas. Esse livro destina-se à Educação nas escolas primárias do sexo
feminino, oferecida ao governo dos Estados Unidos do Brasil, para o qual a autora
pede a atenção dos senhores pais de família.
Trata-se de um manual de orientações ao sexo feminino, abordando temas
como a menina escolar, a moça em sua puberdade, a moça em sua juventude ou
nubilidade, a mulher casada e a mulher mãe. Severino Bezerra, educador e escritor
bastante conhecido em Natal, considera essas reflexões como seu principal livro.34

4- Livros e edições
« Criada fora do bulício da sociedade, no retiro de modesta e aprazível casa,
após o tirocínio escolar na mesma, sob a direção dos meus progenitores, tomei por
distração a leitura que pouco a pouco foi-me conduzindo ao estudo das matérias
mais necessárias ao desenvolvimento das idéias, e ao qual seguiu-se logo o da
acanhada literatura que então me podia ser acessível 35 ».
Assim Isabel Gondim começava o prefácio do seu livro A lira singela.
Através desse prefácio, refere-se à sua formação literária. Contava 73 anos naquela
época e fazia uma espécie de avaliação do que foi a sua juventude. Todos os
gêneros da poesia portuguesa lhe atraíam, sem a preocupação com regras de
versificação. Somente mais tarde aprofundaria esse estudo: o que lhe valeu a
produção de inúmeras poesias (com datas variadas). Por exemplo, aos 24 anos
escreve O meu retrato36, dedicada ao irmão Manoel Urbano d’Albuquerque
9

Gondim, na qual ela se apresenta no auge da sua juventude. Imortalizou sua cidade
através do poema Adeus Papari37 onde ela exalta a paisagem e a beleza de uma
cidade do interior brasileiro.
O Sítio Ribeiro era a « modesta e aprazível casa » no Município de Papari,
local que presenciava seus primeiros contatos com a leitura. Filha do professor
Urbano Egidio da Silva Costa Gondim de Albuquerque e de Isabel Deolinda de
Melo Gondim de Albuquerque, pode-se dizer que teve formação intelectual
privilegiada para o seu contexto: tinha acesso ao mundo dos livros, « a acanhada
literatura » conforme ela mesma falava.38
Entretanto, Isabel Gondim considerava o magistério mais importante do que a
poesia. Ela enfatiza a importância da educação, através dos seus manuscritos
(1885) Elementos de educação escolar - para uso nas escolas primárias de um e
outro sexo. Trata-se de manuscritos com noções de educação moral e de aspectos
relativos à religião, higiene e ao amor pela pátria. Na sua concepção, a educação « é
a formação do homem, seu fim é torná-lo membro útil e feliz da sociedade. Seu
objeto, formar o corpo, o coração e o espírito do educando • ».
Com essa convicção, dedicava-se inteiramente à tarefa de educar gerações.
Quando tornou-se professora primária em Natal, viu-se « constrangida, a
abandonar, quase que inteiramente, as lucubrações literárias, abstraindo-se de tudo
quanto não fosse concernente à profissão39 », conforme ela mesma explicava. Um
exemplo disso é o seu livro Reflexões às minhas alunas, cuja primeira edição data
de 1874 e a segunda 1879, escrito em plena atividade docente. Entretanto, torna-se
difícil registrar quando a professora deixa o cenário pedagógico e entra em cena a
literata.
A segunda edição desse livro (1879), com cinco mil exemplares, estava
esgotada! Saliento que o seu conteúdo é de cunho pedagógico, aplicado a
determinados usos específicos, o que justifica a sua popularidade.


Cópia dos manuscritos Elementos de educação escolar, gentilmente cedida pela professora Jacira Gondim.
10

No prefácio à terceira edição (1910), a escritora agradecia aos « Ilustrados


Conselhos de Instrução Pública » das províncias que o adotaram como livro de
reflexões para as jovens:
« Achando-se quase esgotada a segunda edição, representada por 5000
exemplares cartonados, mandamos ao prelo esta terceira. Assim revista e bastante
aumentada a apresentamos ao público, esperando a continuação do benévolo
acolhimento com que nos há distinguido, e que assaz nos tem penhorado,
especialmente os ilustrados Conselhos de Instrução pública das ex-províncias do
Ceará, do Piauí e da Bahia, assim como do Estado de Pernambuco, que se dignaram
aprovar esse nosso livro para leitura nas escolas a que se destina 40 ».
Na advertência à segunda edição (1879) ela também falava da boa acolhida do
seu livro:
« Apresentando ao público a segunda edição deste opúsculo, mais correta e
aumentada, é do nosso restrito dever agradecer o benigno acolhimento com que
tanto nos penhorou, e consagramos um voto de gratidão à distinta Assembléia desta
Província no biênio de 1873 a 1874 por haver unanimemente favorecido o nosso
imperfeito trabalho 41 »
Embora disponha apenas do texto da terceira edição de 1910, percebo, através
dos prefácios, o empenho da escritora não só com a integridade da obra mas
também com as formas de apropriação do seu conteúdo pelas leitoras, seu público
específico. Havia a preocupação em corrigir as imperfeições observadas nos textos,
pensando, tão somente, naquela leitora para quem destinavam-se esses escritos.
Se o número das edições de um livro for indício de prestígio, posso afirmar,
com base nos 5000 mil exemplares cartonados que circulavam na segunda edição,
que o livro de Isabel Gondim foi um best seller.
Embora F. Conceição (1879) publicasse no Rio de Janeiro que:
«...as edições são insignificantes, raramente excedem a 1000 exemplares, o
que torna o livro mais caro 50 por cento. Com pequenas exceções, esse mesmo
limitado número de exemplares só em um prazo muito longo é consumido, tendo
11

acontecido que, obras importantíssimas, até de interesse local, em 10 anos estejam


ainda na sua primeira edição 42 ».

e o livreiro e editor francês radicado no Rio de Janeiro, Baptiste-Louis Garnier


confirmasse que:

«...há livros que, qualquer que seja o seu preço, sendo bem aceitos, não podem
ter mais de 300 a 400 compradores, e outros até menos; dos populares não se
podem vender no primeiro ano 600 a 800; conheço bem o mercado no Brasil43 ».

mesmo assim não se deve deduzir dessa análise a ausência de leitura no Brasil
e em particular em Natal. O livro de Isabel Gondim, em 1874, estava esgotado,
com uma tiragem de 5000 exemplares e caminhando, em 1910, para a terceira
edição.

Ao argumento de F. Conceição de que « há obras que em dez anos ainda está


na sua primeira edição », acrescento que a primeira edição das Reflexões às
minhas alunas é de 1874 e a segunda é de 1879, ambas publicadas no Rio de
Janeiro. Em menos de dez anos editou-se esse livro duas vezes, o que demonstra
uma exceção. Isto porque os livros escolares proporcionam uma linha segura e
permanente de vendas.

Entretanto, observando a data da terceira edição de 1910 e a segunda de 1879,


com trinta e um anos de distância de uma para outra, surge a indagação: por que
tanto tempo para se reeditar as Reflexões às minhas alunas, uma vez que se tratava
de um livro bem aceito? Isabel Gondim explica no prefácio à terceira edição:

« Circunstâncias imprevistas retardaram empreendermos a tiragem da terceira


edição do nosso opúsculo, particularmente exigida depois da transformação política
que houvera no país, cujas novas instituições ficaram em desacordo com a parte
relativa à época em que foram publicadas a primeira e a segunda edições. Para
atenuar essa falta acostamos a cada exemplar dos que ainda nos restavam uma
página de observações sobre os tópicos alterados pelas vigentes instituições, assim
procurando corrigi-los »44.
12

Infelizmente, não tive acesso ao exemplar com « essa página de observações


sobre os tópicos alterados », nem tampouco aos tópicos alterados pelas instituições
vigentes. Vale o registro de que a transformação política pela qual o Brasil passava
(Proclamação da República em 15 de novembro de 1889) não ocorria calmamente
sem tensões e transtornos para toda a sociedade.
Desta forma, através da autora configura-se a historicidade dos seus próprios
textos, da publicação e das edições. Por exemplo, o seu livro O Brasil - poema
histórico do país também teve bastante aceitação. O exemplar que analiso pertence
à tiragem da segunda edição, datada de 1913, com publicação no Rio de Janeiro.
Trata-se de um texto em três cantos e em verso sobre a história do Brasil: O Brasil
na sua primeira fase (1500 - 1822); O Brasil em sua segunda fase – o dia 7 de
setembro (1822-1863); O Brasil em sua terceira fase- a guerra conta o Paraguai- os
voluntários da Pátria (1864 - 1889).
No prefácio dessa edição, a autora assinala:
« Achando-se inteiramente esgotada a primeira edição deste poemeto,
resolvemos revê-lo e emendar algumas faltas devidas à inadvertência, bem como as
tipográficas que logo buscamos corrigir nos exemplares que podemos haver à mão,
visto não ter sido possível notá-las em páginas erratas. Empreendemos tirar a
segunda edição, esperando que o público sensato continue a dispensar-nos o
lisonjeiro acolhimento com que nos distinguiu dentro e fora do nosso caro
Brasil45».
Entretanto, não há indícios do número da tiragem das edições, apesar de
esgotadas. O que posso inferir desse prefácio é o cuidado da escritora em
aperfeiçoar e atualizar a sua obra, que circulava dentro e fora do Brasil. Mais um
livro de Isabel Gondim que ultrapassava as fronteiras, (O preceptor circulava em
Paris ) embora não fique claro em que mundos sociais circulava fora do país.
Essa escritora, ainda em vida, teve a satisfação de escrever a introdução da
primeira e da segunda edições desse livro e perceber a circulação do seu nome em
várias comunidades de leitores e leitoras. « Em uma imponente sessão literária »,
13

esse texto circulava em avant-première, nos salões da sociedade fina de Natal, em


comemoração ao quarto centenário do Descobrimento do Brasil, que coincidia
também com a virada do século. No prefácio à primeira edição (1900) Isabel
Gondim registra que vem com esse livro, « trazer um grão de areia para o edifício
de nossa literatura (...) ao dar publicidade a este pequeno poema- Brasil (...) 46 ».
Esse livro O Brasil- poema histórico do país, circulou quase tanto o referido
reflexões às minhas alunas. Afonso Celso (1902), « respeitoso confrade e
admirador » da escritora registrava que:
« O poema Brasil, que V. Ex. teve a gentileza de submeter a minha
desautorizada apreciação é um simpático e interessante trabalho, revelador de
talento, cultura e patriotismo47 ».
Esse era o período em que o sentimento de amor à Pátria se exteriorizava mais
explicitamente. Walter Wanderley48 assinala que Afonso Celso, « no seu ufanismo
pelas coisas do Brasil », escrevia de Petrópolis seu comentário acerca do livro. Esse
sentimento nacional aliado ao conteúdo histórico do livro, talvez explique o seu
sucesso, « revelador de talento, cultura e patriotismo ».
Segundo o historiador Rocha Pombo (1967), o fim da Guerra contra o
Paraguai assinalava um período novo de renascimento, em todas as esferas da vida.
Reavivam-se o sentimento nacional e a consciência do nosso valor enquanto
povo.49
Isabel Gondim imortalizou, através de um poema, o retorno à Natal (1870)
dos voluntários da Pátria após a guerra conta o Paraguai50, onde ela exalta a
coragem dos soldados e seu amor pela pátria. Também no seu livro O Brasil-
poema histórico do país ela mostra bem esse sentimento. O mesmo é dedicado « ao
meu país, aos meus concidadãos e à história pátria51 », conforme consta na capa do
livro.
Essa escritora tinha plena consciência do seu valor e importância da obra que
deixava à posteridade. Com extrema lucidez, aos 92 anos, em 1931, escrevia, ou
melhor, ditava o seu testamento ao Alferes Galdino Apolônio dos Santos Lima,
14

«visto não me ser mais possível escrever todo o meu testamento devido ao meu
estado de doença », conforme explicava.
À irmã, D. Maria Urbana de Albuquerque Gondim, legava a incumbência da
divulgação das suas composições literárias, convicta de que « nenhum dos meus
encarregados consentirá em qualquer nuliificação dos meus esforços, durante a vida
laboriosa que tenho levado, e cuja difusão faço o maior empenho, especialmente
por achar-se como estampada parte da mesma minha vida em algumas dessas
composições».As referidas composições estão aqui relacionadas, embora não tenha
a preocupação, neste ensaio, em analisar uma a uma a história das respectivas
edições:
Reflexões às minhas alunas. A primeira e a segunda edições publicadas no
Rio de Janeiro em 1874 e 1879 e a terceira edição, revista e aumentada
consideravelmente, impressa em Natal, em 1910. Apesar de Walter Wanderley52
registrar a segunda edição como publicada em Natal, dentro do próprio livro está a
confirmação de que a segunda edição foi publicada no Rio de Janeiro. Infelizmente,
até o momento, não pude saber o nome do editor ou editores nem da primeira, nem
da segunda edições;
A lira singela. livro de poesias, publicado no Rio de Janeiro em 1933 pela
Editorial Duco, no ano do falecimento da autora;
Brasil- poema histórico do país. Primeira edição em Natal (1903) e a segunda
edição no Rio de Janeiro (1913) pela Papelaria Americana;
O sacrifício do amor. Drama histórico, em cinco atos. Rio de Janeiro, 1909;
Sedição de 1817 na Capitania ora Estado do Rio Grande do Norte. Publicado
em Natal, pela tipografia da Gazeta do Comércio em 1908;
O preceptor. Pequeno poema consagrado à educação escolar. Publicado em
Recife, pela Imprensa Industrial, em 1923.
A revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte53,
registra que ela deixava cinco obras em condições de publicar: Rio grande do
Norte; noções históricas; resumo da História do Brasil; elementos de educação;
15

curso primário de caligrafia. Entretanto, essa revista não faz referência ao texto
Romance Familiar, constante do testamento da referida escritora.
Isabel Gondim, ciosa das obras e consciente de que o livro muda conforme as
edições, os leitores e as maneiras de ler, através do seu testamento recomendava
«sumo cuidado na edição das minhas composições, a fim de não ser o texto
alterado, nem o sentido de algum período ». Neste aspecto, reside a modernidade de
Isabel Gondim. A preocupação sobre a instabilidade da obra e o risco que esta corre
ao atravessar gerações, em várias comunidades de leitores e leitoras.
O livro O Brasil- poema histórico do país foi editado com vários títulos. No
prefácio à primeira edição, a autora explica que o jornal A República publicou « O
54
Brasil- em sua primeira fase ».Na capa da segunda edição consta o título O
Brasil- poema histórico do país e dentro do livro: O Brasil- poema histórico em
três cantos, segunda edição mais correta e aumentada e O Brasil- resumo de traços
históricos do país. A primeira edição desse livro foi publicada com o título O
Brasil- pequeno poema. No seu testamento ela fala desse livro como Brasil,
pequeno poema de traços da história do país em todas as principais fases.
Segundo Roger Chartier, a maneira como um texto é nomeado em tal ou tal
edição é o primeiro indício sobre a sua forma de transmissão. Tomo como exemplo
a sua análise da história das edições da comédia de Molière intitulado Le festin de
Pierre55, com a comparação que pode ser feita entre duas edições parisienses de
1682, com a publicação feita em Amsterdan pelo livreiro Wetstein, em 1683.
Interrogar-se sobre a história da transmissão dos textos não é simplesmente
uma questão bibliográfica, mas são também importantes as significações históricas,
estéticas e culturais das obras. O prestígio social que Isabel Gondim desfrutava no
seu mundo social, confirma a análise de Norbert Elias (1985) de que « nenhum ser
humano normalmente constituído aceita a opinião que tem de si próprio se não a vê
confirmada na forma como é tratado pelos outros56 ».
Essa interdependência, « constitutiva de juízos de valor», reafirma seu próprio
valor aos olhos dos outros. Embora isolada e sem repercussão, conforme afirmava
16

o historiador Câmara Cascudo, é evidente que ela dialogava com a comunidade de


leitoras e leitores, através dos seus escritos, sua prática pedagógica e literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1
CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Tradução por Maria Manuela
Galhardo. Lisboa: difel, 1990, p. 16-17.
2
___. Le livre en révolutions: entretiens avec Jean Lebrun. Paris: Textuel, 1997. p.19.
3
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1980, p. 176.
4
Brado conservador, RN, 12 de nov. de 1881.
5
Belo sexo, Rio de Janeiro: 28 set. 1862. p.1.
6
CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte. 1976. p .8.
7
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. V. XXIX e XXXI- Natal (RN) :
Tipografia Santo Antônio, 1938. p.289-292.
8
CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Op., cit., p. 383.
9
Ibid., p. 376.
10
A República, Natal, (RN) 13 de julho de 1933. p. 1.
11
Correspondência de 21 de agosto de 1931.
12
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. In: Revista da academia norte-
rio-grandense de letras. Natal, n.09. Ano XX, 1971. p. 205.
13
GONDIM, Isabel. O preceptor. Poemeto consagrado à educação escolar e dedicado àquele. Recife :
Imprensa Industrial, 1923, p. 6.
14
Correspondência de 15 de dezembro de 1923.
15
BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994. p.88.
16
ELIAS, Norbert. La société de cour. Traduit de l’allemand par Pierre Kamnitzer et par Jeanne Etoré.
Préface de Roger Chartier. Paris: Flammarion, 1985. p. 19.
17
MARSHALL, Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução para o
português por Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L.Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 15.
18
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro:
IBGE, 1986. 3 v. em 6.
19
CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Op., cit., p. 281.
20
Ibid. p. 173.
21
Ibid. p. 173.
22
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 204.
23
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil (1500-1889).
Tradução por Antônio Chizzotti. São Paulo: EDUSP, Brasília, INEP/MEC, 1989, p. 117.
24
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 12. ed. São Paulo: Ática, 1993. p.80.
25
___.A mão e a luva. Rio de Janeiro: Garnier, p. 83-84.
26
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Para educação nas escolas primárias do sexo feminino
oferecida ao Governo dos Estados Unidos do Brasil. 3. Ed. (revista e aumentada consideravelmente) Natal:
Tipografia de A. Leite, 1910, p.25.
27
Ibid. p.25.
28
Ibid. p. 25.
29
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p.25.
30
Ibid. p. 63.
31
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. A leitura de romances no século XIX. In: ABRAMOWICZ, Anete
(Org.). Histórias de mulheres e práticas de leituras. Campinas: Cadernos CEDES, ano XIX, n. 45, jul.,
1998.
32
CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras. Op., cit., p. 7.
33
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 9.
34
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 206.
17

35
GONDIM, Isabel. A lira singela. Rio de Janeiro: Editorial Duco, 1933, p.3.

36
Ibid., p. 23.

37
Ibid., p. p.7.

38
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 205.

39
GONDIM, Isabel. A lira singela. Op., cit. 4.

40
___. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 7.

41
Ibid. p. 8.

42
CONCEIÇÃO, F. Os livros e a tarifa das alfândegas. Revista Brasileira. Rio de Janeiro: N. Midosi
(25). 1(1): 607-610. jun. 1879.

43
SENNA, Ernesto. O velho comércio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: (1915?) p.22.

44
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 7.

45
___.O Brasil: poema histórico do país. 2. Ed. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1913. p. 9.

46
Ibid., p. 11.

47
Ibid., p. 5.

48
Walter Wanderley.Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 205.

49
POMBO, Rocha. História do Brasil. (revista e atualizada por Hélio Vianna). 14. Ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1967. p. 400.

50
GONDIM, Isabel. A lira singela. Op., cit,. P.94.

51
___. O Brasil- poema histórico do país. Op. cit.

52
WANDERLEY, Walter.Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense, Op., cit., p. 205.

53
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Op., cit., p.289-292.

54
GONDIM, Isabel. O Brasil: poema histórico do país. Op., cit., p. 11.

55
CHARTIER, Roger. Texto apresentado durante os Seminários do Ano Universitário 1998/1999 na École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Paris, le 11 mars 1999.

56
ELIAS, Norbert, La société de cour. Op., cit., p. 59-60.

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