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1-Sobre a pesquisa:
Utilizo como principal objeto de análise as maneiras pelas quais essa realidade
foi construída, pensada, dada a ler,1 através dos subsídios disponíveis como: a
correspondência particular de Isabel Gondim e manuscritos inéditos, gentilmente
cedidos pelos seus descendentes, os jornais da época e seus livros em prosa e em
verso.
Entendo que uma investigação deste porte só tem sentido quando relacionada
à comunidade de leitores e leitoras, que pretendo configurar e associar ao estudo da
produção, da transmissão e da apropriação dos textos2 que caracterizavam essa
sociedade. O que pretendo evidenciar é a maneira pela qual os indivíduos
produzem o mundo social, aliando-se ou afrontando-se, através das dependências e
tensões que os unem e que os opõem, tomando como ponto de partida uma situação
bem particular: o papel de Isabel Gondim, a literata e « a veterana do magistério
norte-rio-grandense 3 ».
Justifico essa escolha em virtude da sua vasta produção literária, num contexto
desfavorável para que as mulheres desenvolvessem essa prática.
O belo sexo (1862), jornal editado no Rio de Janeiro, redigido por várias
senhoras, publicava a carta de um leitor anônimo:
Na opinião de Câmara Cascudo (1976), ela era « a única mulher que tinha
coragem de concorrer na produção intelectual ao lado dos homens, ciosos do
privilégio antigo6 ». Comprovando o seu mérito de escritora, desde 29 de julho de
1928 tornava-se sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte, « única mulher admitida em seu grêmio, por força de seus grandes
merecimentos 7 »
« Foi com grande prazer que recebi a carta de 24 de setembro, que V. Ex.
serviu-se dirigir-me. Com ela recebi os três exemplares do seu poemeto O
Preceptor. Li com vivo interesse e distribui os outros como V. Ex. determinou14 ».
•
Hoje, no ano 2000, Natal é uma cidade em ebulição com todos os atributos de cidade que se pretende
moderna ou em vias de modernização. O turismo instalou-se com força total, modificando os hábitos da então
pacata cidade do inicio do Descobrimento e também do período em que viveu Isabel Gondim.
6
30
dignas de séria atenção, principalmente para a mulher mãe ». Conforme os
códigos de moral da época, as indicações de leitura, para as incautas jovens
donzelas, consistiam em leituras de conteúdo religioso, de cunho moral e sobre a
educação da mulher, futura mãe e esposa. 31
A preocupação da mais antiga escritora residente no Estado32 consistia em
orientar a educação da mocidade. Notando a falta de um livro em língua
portuguesa, destinado à educação da mulher, resolveu aproveitar-se dos conceitos
do Sr. Padre Roquette e Visconde d’Almeida Garrett, « esses dois grandes vultos da
33
literatura moderna, distintos amigos da humanidade » e escreveu Reflexões às
minhas alunas. Esse livro destina-se à Educação nas escolas primárias do sexo
feminino, oferecida ao governo dos Estados Unidos do Brasil, para o qual a autora
pede a atenção dos senhores pais de família.
Trata-se de um manual de orientações ao sexo feminino, abordando temas
como a menina escolar, a moça em sua puberdade, a moça em sua juventude ou
nubilidade, a mulher casada e a mulher mãe. Severino Bezerra, educador e escritor
bastante conhecido em Natal, considera essas reflexões como seu principal livro.34
4- Livros e edições
« Criada fora do bulício da sociedade, no retiro de modesta e aprazível casa,
após o tirocínio escolar na mesma, sob a direção dos meus progenitores, tomei por
distração a leitura que pouco a pouco foi-me conduzindo ao estudo das matérias
mais necessárias ao desenvolvimento das idéias, e ao qual seguiu-se logo o da
acanhada literatura que então me podia ser acessível 35 ».
Assim Isabel Gondim começava o prefácio do seu livro A lira singela.
Através desse prefácio, refere-se à sua formação literária. Contava 73 anos naquela
época e fazia uma espécie de avaliação do que foi a sua juventude. Todos os
gêneros da poesia portuguesa lhe atraíam, sem a preocupação com regras de
versificação. Somente mais tarde aprofundaria esse estudo: o que lhe valeu a
produção de inúmeras poesias (com datas variadas). Por exemplo, aos 24 anos
escreve O meu retrato36, dedicada ao irmão Manoel Urbano d’Albuquerque
9
Gondim, na qual ela se apresenta no auge da sua juventude. Imortalizou sua cidade
através do poema Adeus Papari37 onde ela exalta a paisagem e a beleza de uma
cidade do interior brasileiro.
O Sítio Ribeiro era a « modesta e aprazível casa » no Município de Papari,
local que presenciava seus primeiros contatos com a leitura. Filha do professor
Urbano Egidio da Silva Costa Gondim de Albuquerque e de Isabel Deolinda de
Melo Gondim de Albuquerque, pode-se dizer que teve formação intelectual
privilegiada para o seu contexto: tinha acesso ao mundo dos livros, « a acanhada
literatura » conforme ela mesma falava.38
Entretanto, Isabel Gondim considerava o magistério mais importante do que a
poesia. Ela enfatiza a importância da educação, através dos seus manuscritos
(1885) Elementos de educação escolar - para uso nas escolas primárias de um e
outro sexo. Trata-se de manuscritos com noções de educação moral e de aspectos
relativos à religião, higiene e ao amor pela pátria. Na sua concepção, a educação « é
a formação do homem, seu fim é torná-lo membro útil e feliz da sociedade. Seu
objeto, formar o corpo, o coração e o espírito do educando • ».
Com essa convicção, dedicava-se inteiramente à tarefa de educar gerações.
Quando tornou-se professora primária em Natal, viu-se « constrangida, a
abandonar, quase que inteiramente, as lucubrações literárias, abstraindo-se de tudo
quanto não fosse concernente à profissão39 », conforme ela mesma explicava. Um
exemplo disso é o seu livro Reflexões às minhas alunas, cuja primeira edição data
de 1874 e a segunda 1879, escrito em plena atividade docente. Entretanto, torna-se
difícil registrar quando a professora deixa o cenário pedagógico e entra em cena a
literata.
A segunda edição desse livro (1879), com cinco mil exemplares, estava
esgotada! Saliento que o seu conteúdo é de cunho pedagógico, aplicado a
determinados usos específicos, o que justifica a sua popularidade.
•
Cópia dos manuscritos Elementos de educação escolar, gentilmente cedida pela professora Jacira Gondim.
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«...há livros que, qualquer que seja o seu preço, sendo bem aceitos, não podem
ter mais de 300 a 400 compradores, e outros até menos; dos populares não se
podem vender no primeiro ano 600 a 800; conheço bem o mercado no Brasil43 ».
mesmo assim não se deve deduzir dessa análise a ausência de leitura no Brasil
e em particular em Natal. O livro de Isabel Gondim, em 1874, estava esgotado,
com uma tiragem de 5000 exemplares e caminhando, em 1910, para a terceira
edição.
«visto não me ser mais possível escrever todo o meu testamento devido ao meu
estado de doença », conforme explicava.
À irmã, D. Maria Urbana de Albuquerque Gondim, legava a incumbência da
divulgação das suas composições literárias, convicta de que « nenhum dos meus
encarregados consentirá em qualquer nuliificação dos meus esforços, durante a vida
laboriosa que tenho levado, e cuja difusão faço o maior empenho, especialmente
por achar-se como estampada parte da mesma minha vida em algumas dessas
composições».As referidas composições estão aqui relacionadas, embora não tenha
a preocupação, neste ensaio, em analisar uma a uma a história das respectivas
edições:
Reflexões às minhas alunas. A primeira e a segunda edições publicadas no
Rio de Janeiro em 1874 e 1879 e a terceira edição, revista e aumentada
consideravelmente, impressa em Natal, em 1910. Apesar de Walter Wanderley52
registrar a segunda edição como publicada em Natal, dentro do próprio livro está a
confirmação de que a segunda edição foi publicada no Rio de Janeiro. Infelizmente,
até o momento, não pude saber o nome do editor ou editores nem da primeira, nem
da segunda edições;
A lira singela. livro de poesias, publicado no Rio de Janeiro em 1933 pela
Editorial Duco, no ano do falecimento da autora;
Brasil- poema histórico do país. Primeira edição em Natal (1903) e a segunda
edição no Rio de Janeiro (1913) pela Papelaria Americana;
O sacrifício do amor. Drama histórico, em cinco atos. Rio de Janeiro, 1909;
Sedição de 1817 na Capitania ora Estado do Rio Grande do Norte. Publicado
em Natal, pela tipografia da Gazeta do Comércio em 1908;
O preceptor. Pequeno poema consagrado à educação escolar. Publicado em
Recife, pela Imprensa Industrial, em 1923.
A revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte53,
registra que ela deixava cinco obras em condições de publicar: Rio grande do
Norte; noções históricas; resumo da História do Brasil; elementos de educação;
15
curso primário de caligrafia. Entretanto, essa revista não faz referência ao texto
Romance Familiar, constante do testamento da referida escritora.
Isabel Gondim, ciosa das obras e consciente de que o livro muda conforme as
edições, os leitores e as maneiras de ler, através do seu testamento recomendava
«sumo cuidado na edição das minhas composições, a fim de não ser o texto
alterado, nem o sentido de algum período ». Neste aspecto, reside a modernidade de
Isabel Gondim. A preocupação sobre a instabilidade da obra e o risco que esta corre
ao atravessar gerações, em várias comunidades de leitores e leitoras.
O livro O Brasil- poema histórico do país foi editado com vários títulos. No
prefácio à primeira edição, a autora explica que o jornal A República publicou « O
54
Brasil- em sua primeira fase ».Na capa da segunda edição consta o título O
Brasil- poema histórico do país e dentro do livro: O Brasil- poema histórico em
três cantos, segunda edição mais correta e aumentada e O Brasil- resumo de traços
históricos do país. A primeira edição desse livro foi publicada com o título O
Brasil- pequeno poema. No seu testamento ela fala desse livro como Brasil,
pequeno poema de traços da história do país em todas as principais fases.
Segundo Roger Chartier, a maneira como um texto é nomeado em tal ou tal
edição é o primeiro indício sobre a sua forma de transmissão. Tomo como exemplo
a sua análise da história das edições da comédia de Molière intitulado Le festin de
Pierre55, com a comparação que pode ser feita entre duas edições parisienses de
1682, com a publicação feita em Amsterdan pelo livreiro Wetstein, em 1683.
Interrogar-se sobre a história da transmissão dos textos não é simplesmente
uma questão bibliográfica, mas são também importantes as significações históricas,
estéticas e culturais das obras. O prestígio social que Isabel Gondim desfrutava no
seu mundo social, confirma a análise de Norbert Elias (1985) de que « nenhum ser
humano normalmente constituído aceita a opinião que tem de si próprio se não a vê
confirmada na forma como é tratado pelos outros56 ».
Essa interdependência, « constitutiva de juízos de valor», reafirma seu próprio
valor aos olhos dos outros. Embora isolada e sem repercussão, conforme afirmava
16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Tradução por Maria Manuela
Galhardo. Lisboa: difel, 1990, p. 16-17.
2
___. Le livre en révolutions: entretiens avec Jean Lebrun. Paris: Textuel, 1997. p.19.
3
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1980, p. 176.
4
Brado conservador, RN, 12 de nov. de 1881.
5
Belo sexo, Rio de Janeiro: 28 set. 1862. p.1.
6
CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte. 1976. p .8.
7
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. V. XXIX e XXXI- Natal (RN) :
Tipografia Santo Antônio, 1938. p.289-292.
8
CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Op., cit., p. 383.
9
Ibid., p. 376.
10
A República, Natal, (RN) 13 de julho de 1933. p. 1.
11
Correspondência de 21 de agosto de 1931.
12
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. In: Revista da academia norte-
rio-grandense de letras. Natal, n.09. Ano XX, 1971. p. 205.
13
GONDIM, Isabel. O preceptor. Poemeto consagrado à educação escolar e dedicado àquele. Recife :
Imprensa Industrial, 1923, p. 6.
14
Correspondência de 15 de dezembro de 1923.
15
BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994. p.88.
16
ELIAS, Norbert. La société de cour. Traduit de l’allemand par Pierre Kamnitzer et par Jeanne Etoré.
Préface de Roger Chartier. Paris: Flammarion, 1985. p. 19.
17
MARSHALL, Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução para o
português por Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L.Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 15.
18
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro:
IBGE, 1986. 3 v. em 6.
19
CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Op., cit., p. 281.
20
Ibid. p. 173.
21
Ibid. p. 173.
22
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 204.
23
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil (1500-1889).
Tradução por Antônio Chizzotti. São Paulo: EDUSP, Brasília, INEP/MEC, 1989, p. 117.
24
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 12. ed. São Paulo: Ática, 1993. p.80.
25
___.A mão e a luva. Rio de Janeiro: Garnier, p. 83-84.
26
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Para educação nas escolas primárias do sexo feminino
oferecida ao Governo dos Estados Unidos do Brasil. 3. Ed. (revista e aumentada consideravelmente) Natal:
Tipografia de A. Leite, 1910, p.25.
27
Ibid. p.25.
28
Ibid. p. 25.
29
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p.25.
30
Ibid. p. 63.
31
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. A leitura de romances no século XIX. In: ABRAMOWICZ, Anete
(Org.). Histórias de mulheres e práticas de leituras. Campinas: Cadernos CEDES, ano XIX, n. 45, jul.,
1998.
32
CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras. Op., cit., p. 7.
33
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 9.
34
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 206.
17
35
GONDIM, Isabel. A lira singela. Rio de Janeiro: Editorial Duco, 1933, p.3.
36
Ibid., p. 23.
37
Ibid., p. p.7.
38
WANDERLEY, Walter. Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 205.
39
GONDIM, Isabel. A lira singela. Op., cit. 4.
40
___. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 7.
41
Ibid. p. 8.
42
CONCEIÇÃO, F. Os livros e a tarifa das alfândegas. Revista Brasileira. Rio de Janeiro: N. Midosi
(25). 1(1): 607-610. jun. 1879.
43
SENNA, Ernesto. O velho comércio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: (1915?) p.22.
44
GONDIM, Isabel. Reflexões às minhas alunas. Op., cit., p. 7.
45
___.O Brasil: poema histórico do país. 2. Ed. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1913. p. 9.
46
Ibid., p. 11.
47
Ibid., p. 5.
48
Walter Wanderley.Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense. Op., cit., p. 205.
49
POMBO, Rocha. História do Brasil. (revista e atualizada por Hélio Vianna). 14. Ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1967. p. 400.
50
GONDIM, Isabel. A lira singela. Op., cit,. P.94.
51
___. O Brasil- poema histórico do país. Op. cit.
52
WANDERLEY, Walter.Isabel Gondim e a literatura norte-rio-grandense, Op., cit., p. 205.
53
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Op., cit., p.289-292.
54
GONDIM, Isabel. O Brasil: poema histórico do país. Op., cit., p. 11.
55
CHARTIER, Roger. Texto apresentado durante os Seminários do Ano Universitário 1998/1999 na École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Paris, le 11 mars 1999.
56
ELIAS, Norbert, La société de cour. Op., cit., p. 59-60.