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Renato Athias1
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Preâmbulo
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tórias orais, recitos mitológicos em uma narrativa audiovisual para ser
visualizada em meios digitais. Uma demanda do que podemos chamar
cinema antropológico, do ponto de vista da pesquisa e do envolvimen-
tos de grupos dos interesses de grupos indígenas e pesquisadores no
campo da etnologia.
O cinema indígena, ou Etnoficção como estamos classificando,
nesse texto é um filme cujo texto está sendo narrado em primeira pes-
soa com atores indígenas. Então os indígenas participam na construção
do texto que foi transformado em imagens e que são visualizados em
diferentes espaços.
Devo dizer que a primeira “etnoficção” como chamamos aqui
neste texto foi realizada por Edward S. Curtis e por membros da etnia
Kwakwaka’wakw, da região do Estreito Queen Charlotte, na costa cen-
tral de British Columbia, Canadá. O filme foi intitulado: “In the Land
of the Head Hunters”, porém, também conhecido “In the Land of the
War Canoes”. Esse filme foi exibido pela primeira vez em 1914, com o
som ao vivo de uma orquestra. Em 1999, foi selecionado pela Bibliote-
ca do Congresso para preservação no National Film Registry dos EUA
como sendo “culturalmente, historicamente e esteticamente significa-
tivo”. Pode-se dizer que este filme foi o primeiro longa-metragem cujo
elenco consistiu inteiramente de indígenas da América do Norte. Esse
é o primeiro longa-metragem feito na British Columbia, é o filme mais
longo e mais antigo realizado no Canadá. O segundo filme, oito anos
mais tarde, foi o Nanook do Norte de Robert Flaherty, que, creio, é
mais conhecido por estar sempre presentes nos cursos introdutórios
de antropologia Visual.
O filme “In the Land of the Head Hunters” foi exibido em Nova
York, Seattle, Washington, em dezembro de 1914, com uma orquestra
ao vivo de uma obra musical de John J. Braham. Pois, ele teve acesso
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a gravações musicais em cilindros de cera de músicas originais dos
Kwakwaka’wakw, e a campanha promocional na época sugeriu que sua
partitura era de sons originas do referido dos Kwakwaka’wakw. Embora
elogiado pela crítica na ocasião, o filme foi um fracasso comercial.
Em 1911, Edward Curtis tinha já muita experiência com o ci-
nema, pois anos antes ele havia criado uma apresentação com slides/
imagens e a música, como acompanhamento ao vivo das imagens. Ele
chamou de “The Indian Picture Opera”. Ele usava projetores estereoscó-
picos, onde dois desses projetores estavam estrategicamente colocados
passando as imagens em uma única na tela. Esse foi, talvez, o prelúdio
para Curtis entrar na era do cinema.
No Brasil, acredito que foi a partir da década de 1990 que a
organização “Vídeo nas Aldeias” começou a produzir esse gênero de
filmes e trabalhar especificamente com narrativas orais indígenas, com
a participação de indígenas na produção do filme e das performances.
Poderíamos aqui registrar o filme de Dominique Galois e Vicent Car-
relli intitulado “Segredos da Mata”, que mostra as histórias orais trans-
formadas em narrativas imagéticas.
Considerações etnográficas
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rikuli e também por Kuwai. Esse processo de territorialização é muito
comum entre os povos indígenas dessa região, onde o transformador
do mundo organiza cada povo, cada grupo e subgrupo (chamado tam-
bém de fratria) em um lugar determinado nesse imenso território. Por-
tanto, cada fratria, além de ter um nome próprio, está territorializada,
ou seja, suas terras estão associados aos irmãos ancestrais, fundadores
míticos das fratrias e dos clãs, e a organização que Nhiãperikuli criou
para serem seguidas pelos atuais Baniwa e Kuripako.
Todos esses povos têm suas organizações sociais voltadas para
um território determinado e possuem uma noção peculiar de hierarquia
que se faz presente no cotidiano, em geral dada pela ordem de nasci-
mento dos irmãos. Em cada aldeia encontram-se todos os irmãos com
suas mulheres, estas, por sua vez, são provenientes de outras aldeias e
de outros clãs, indo morar na aldeia de seu marido. Essa característica
mostra um grupo social que faz parte de um sistema patrilinear, cada
um com um nome próprio, altamente hierarquizado e territorializado.
O conhecimento, o saber, é específico e pertence a cada da um
dos clãs. São compartilhados com outros apenas em situações deter-
minadas. O conjunto de histórias que compõe o entendimento cos-
mogônico dos grupos Baniwa e Kuripako está associado a vários mitos
envolvendo as aventuras dos heróis míticos Nhiãpiriculi e Kuwai nesse
mundo. Essas narrativas mitológicas dão base ao conhecimento e ao
entendimento desses povos. E essas narrativas são muito específicas de
cada grupo, havendo sempre mudanças na ordem dos acontecimentos
dependendo daquele que está narrando.
O filme Procurando o sono é a representação do entendimento
dos Baniwa e dos Kuripako sobre o aparecimento da noite no mundo
atual. Essas histórias possuem várias versões, e cada um dos grupos
tem a sua própria, de modo que não existe uma versão “canônica” desse
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mito. Assim, cada grupo procura difundir, contar, narrar utilizando
elementos que fortalecem o clã daquele que narra. Para realizar o filme,
os alunos Kuripako e Baniwa, que participaram da produção, passaram
muitas horas reunidos, procurando uma versão comum que iria ser re-
presentada e, posteriormente, filmada. Esse aspecto é interessante, pois
na versão filmada percebem-se principalmente os elementos comuns
às diversas narrativas. Em relação a esse processo de negociação das
versões para se chegar a uma narrativa comum, é interessante refletir
sobre a questão da identidade, levando-se em consideração o que Car-
los Brandão já assinalava em Somos as águas puras (1994):
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plamente conhecidos, poderiam se enquadrar nessa categoria “mídia
indígena”. Certamente, esse movimento do cinema indígena tem a ver
com as novas tecnologias, com as possibilidades atuais, como alguns
antropólogos têm colocado em suas observações. No caso do Brasil,
penso que está, sobretudo, associado às possibilidades de se manifes-
tarem publicamente que surgiram depois da Constituição Federal de
1988. Essa, talvez, seja a principal motivação para o crescimento das
produções indígenas no Brasil.
A produção de filmes por índios também tem sido analisada atra-
vés de paradigmas dos estudos culturais, em que o foco central recai
sobre as questões relacionadas à globalização (KNOPF, 2008). São
também objeto das Ciências Sociais e mesmo da Comunicação Social,
aspecto que não nos interessa debater aqui. Interessa menos ainda com-
parar essas produções umas com as outras, o que não é, evidentemente,
o caso – tarefa que, aliás, acredito ser realmente de difícil realização,
sobretudo quando as produções são de povos completamente diferen-
tes linguística e culturalmente.
Chamo a atenção para o debate em torno do Cinema Navajo, já
amplamente comentado por Worth e Adair (1972), e as perspectivas
que essas produções puseram para a antropologia visual a propósito de
um cinema em primeira pessoa. Talvez a categorial Cinema Indígena
esteja mais associada à produção de imagens em primeira pessoa, a
uma discussão sobre o que os índios colocam para eles mesmos. Daí a
necessidade de ver tais produções dentro da perspectiva de “Narrow-
casting”. Na realidade, são produções fílmicas que têm um endereço, e
são feitas muito mais para dentro do que para serem visualizadas fora
do espaço social do grupo.
Assim, nosso principal argumento é que as produções compar-
tilhadas indígenas, categorizadas em cinema indígena ou etnoficção,
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estão voltadas para o interior do grupo. Discutem ideias, visões e enten-
dimentos entre os indígenas que participam da produção, e, sobretudo,
negociam as versões e o entendimento através das imagens. Pode-se
dizer que as etnoficções são propriamente organizadas e desenvolvidas
para dentro, com uma linguagem apropriada dos processos de nego-
ciação de versões e visões sobre um contexto e sobre um aspecto do
cotidiano que merece uma discussão mais ampla.
Tais produções colocam-nos, ainda, a possibilidade de discutir
o que entendemos por “ponto de vista”, ou a perspectiva indígena na
produção visual. Nesse ponto, nos aproximamos da concepção discuti-
da por Cliford Geertz (1989) no capítulo intitulado “Pessoa, tempo e
conduta em Bali”, que integra o famoso Interpretação das Culturas. Nele,
o autor insiste no “ponto de vista dos nativos”, e inicia o capítulo dis-
cutindo a “natureza social do pensamento”. Como ele mesmo assinala,
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“Procurando o sono”
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nos encontrávamos na aldeia, não teria sido melhor do que o escolhido,
dando, assim, vida aos animais.
Ainda considerando a dimensão da performance, acredita-se que
a imagem em movimento, o filme, é um instrumento mais apto para dar
conta de uma discussão e provocar reações nas pessoas que o assistem.
E a narrativa dramática do tema do filme permite colocar os obser-
vadores, a audiência, em uma posição de compreender o que se está
propondo na narrativa negociada, nesse caso, da história mitológica da
separação entre o dia e a noite.
Após assistir várias vezes o filme, percebi que a narrativa imagéti-
ca construída pelos Baniwa e Kuripako permite registrar e, sobretudo,
reconstituir uma delimitação espaço-temporal de um continuum em
que as manifestações se dão, através dos gestos, das palavras, do cenário,
criando um diálogo com o que Geertz designa como “entendimento do
entendimento cultural”. E esse aspecto é perceptível nas imagens que
integram Procurando o sono. A descrição, a imagem daquele que é filma-
do, adquire uma interlocução e põe em evidência aspectos simbólicos
presentes na sequência fílmica. O importante, diz Geertz (1997, p. 89),
“é descobrir junto com eles, que diabo eles estão fazendo”.
Os filmes produzidos por índios que contam uma história basea-
da em um mito, tal como esse que estamos analisando, evidenciam a
abertura de uma nova relação na troca de informações entre os pares.
Isso graças às potencialidades do novo “meio”, que, segundo Claudine
de France (1998), dá origem a uma nova proposta na “chamada antro-
pologia exploratória”, possibilitando o entendimento das performances
segundo três fatores.
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local da filmagem, o exame da imagem, ou seja, a
observação diferida do processo estudado (FRAN-
CE, 1998, p. 342).
Filme e Performance
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Procurando o sono não foram muitas, isso porque todos conheciam a
história e possuíam um conhecimento acumulado sobre esse mito.
Uma consideração importante se refere às filmagens deste gêne-
ro de documentário, que deve possibilitar que qualquer movimento
do cinegrafista esteja associado à narrativa, melhor dizendo, aos mo-
vimentos dos seres participantes dela. São procedimentos que o fotó-
grafo deve adotar como observador da performance. Logo, decisões,
acertos e erros são deliberações do grupo com qual se está trabalhando.
Jean Rouch (1975) já havia mencionado esse aspecto ao discutir seus
filmes, principalmente aquele voltado para o rito de circuncisão.
Estar com a câmara na produção de Procurando o sono foi pos-
sível, especialmente, por ter conhecimento dos detalhes da história e
ter visto as repetições. A câmara ficou solta, buscando enquadrar os
personagens e o desenvolvimento da performance tal como havia sido
discutido na elaboração roteiro. Nesse caso, privilegiou-se o ritmo, os
momentos, a forma de encadeamento e ordenamento da representa-
ção do mito. Isso nos levou realizar certos registros que permitissem
mostrar todos os agentes, impedindo a fragmentação e as sequências
espetaculares. Procuramos fazer coincidir o tempo fílmico com o tem-
po da narrativa, de forma a dar uma possibilidade de interpretação, em
outras palavras, os cortes foram mínimos.
Não foram feitas muitas observações sobre o impacto desse
filme numa audiência indígena. O que pudemos perceber, quando da
primeira exibição, foi um grande silêncio, que mostrou o interesse geral
da audiência em relação à narrativa da separação entre a noite e o dia. É
possível imaginar o interesse, pois era a primeira vez que uma narrativa
oral, que sempre fora contada por uma pessoa, tinha os personagens
animados. Esse fato suscitou muitos comentários sobre como se con-
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seguiu fazer com que um grupo de adultos e crianças permanecesse em
silêncio durante a construção imagética de uma história mitológica.
Produção Antropológica
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de filme pode captar as sutilezas, e estas poderiam ser apreendidas por
todos aqueles que conheciam a narrativa negociada para a encenação. De
outra parte, a filmagem permite a preservação da integridade dos gestos,
das atitudes, das reações, e dos ritmos.
Com essa produção, ficou demonstrada também a maneira como
as imagens animadas apresentam os diversos espaços onde os animais,
representados pelos atores, se situam no mundo humano, enfatizando
as relações sociais presentes nos comportamentos animais, pois, no
mundo mítico, animais e humanos utilizam-se das mesmas estratégias,
não havendo, portanto, uma “separação” entre comportamento animal
e humano. Nesse sentido, a filmagem garante o registro que a observa-
ção direta, não instrumentalizada, dificilmente poderia realizar. E isso
nos lança para a discussão sobre as vantagens da observação fílmica
comparada ao resultado de uma observação direta, o que não significa
desprezar a observação direta. Entretanto, a câmera e o trabalho com
ela, juntamente com o grupo com o qual se está trabalhando, leva-nos a
uma profundidade que “um informante” não teria como superar.
Talvez outro aspecto importante sobre o qual essa produção
visual me levou a pensar diga respeito aos desdobramentos provoca-
dos pela narrativa imagética em questão. Esse registro visual põe em
evidência uma versão consolidada de um mito que tem muitas versões.
Assim, da mesma forma que a escrita do mito se limita a uma única
versão, uma produção visual sobre um mito pode levar a um congela-
mento de uma única versão.
Essas são algumas das questões suscitadas pelo filme Procurando o
sono, e que nos pareceram ser importante compartilhar a fim de contri-
buir para o debate sobre o cinema indígena e a produção antropológica.
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Filme Renato Athias
VÍDEO: https://youtu.be/2giYHf8dYFk
Referências
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missora. In: Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Trad. Marcius S. Freire.
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