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Perfil de Morbimortalidade entre os Índios Hupdäh da Região

do Alto Rio Negro: uma Proposta de Pesquisa∗


Marina Machado♣

Palavras-chave: Hupdäh; metodologia de pesquisa; índios da América do Sul; Amazonas

Resumo
O objetivo deste trabalho é expor a metodologia de pesquisa que será utilizada em
estudo descritivo sobre os níveis de saúde e padrões da morbimortalidade entre os
índios Hupdäh, que vivem na área de abrangência do Distrito Sanitário Especial
Indígena do Rio Negro (Dsei-RN), no estado do Amazonas. O objetivo geral da
pesquisa para a qual esta metodologia será utilizada é obter um panorama da situação
de saúde do povo Hupdäh, para propor medidas de intervenção considerando suas
especificidades culturais. Os serviços de saúde para os povos indígenas no Brasil têm
se caracterizado por ações esporádicas, ligadas ao processo de contato com a
sociedade envolvente. Em 1999, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) iniciou a
implantação de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) em todo o país com
a finalidade de organizar os serviços de saúde. Os índios Hupdäh da região do Alto
Rio Negro, fazem parte de um complexo cultural com outros 21 povos diferentes, que
compartilham uma mesma visão do universo. Existe uma forte relação interétnica
entre os Hupdäh e os índios Tukano que tem sido descrita como de escravidão,
assimétrica, simbiótica ou como de patrão-cliente. Observa-se que os Hupdäh detém
os piores índices de saúde da região, apresentando quadros graves de desnutrição,
tuberculose e tracoma, associados a precárias condições de vida.


Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-
MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004.

Universidade Federal de São Paulo.

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Perfil de Morbimortalidade entre os Índios Hupdäh da Região
do Alto Rio Negro: uma Proposta de Pesquisa∗
Marina Machado♣

Introdução
Os serviços de saúde para as populações indígenas no Brasil têm se caracterizado por ações
esporádicas, historicamente ligadas ao processo de contato e às frentes de desenvolvimento
econômico, levadas a cabo desde o início do século XX (Ministério da Saúde, 2000). As
iniciativas oficiais, no sentido de prover assistência à saúde desses povos, representadas pelo
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910 e extinto em 1967 e da Fundação
Nacional do Índio (Funai) no período de 1968 até 1999 não obtiveram êxito em oferecer
serviços adequados, capazes de contemplar a diversidade sociocultural, regional e
epidemiológica dos 210 povos indígenas, atualmente, existentes no país. No ano 1999, o
Ministério da Saúde (MS), através da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), definiu, por
meio do Decreto 3156 de 27/8/99, a Política Nacional de Saúde para os Povos Indígenas que
está se concretizando mediante a implantação de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(Dsei) com a finalidade de organizar os serviços de saúde. Apesar das dificuldades e
deficiências dos serviços oficiais têm-se quase 100 anos de atividades governamentais em
saúde para os povos indígenas e três anos com uma política nacional voltada para o tema.

Como reflexo disso, os registros sobre a situação de saúde desses grupos são principalmente
os demográficos, na grande maioria das vezes precários e descontínuos, o que dificulta uma
análise mais aprofundada das reais condições de vida e de saúde para estes grupos. Além dos
históricos registros de eventos vitais e epidemiológicos do SPI e de levantamentos pontuais
de campo, o único serviço que dispõe de informações básicas e sistemáticas, ao longo de 38
anos, agrupadas em fichas individuais, atualizadas a cada quatro meses, é o da Unidade de
Saúde e Meio Ambiente (Usma), do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), que atua na Terra Indígena Xingu (TIX), desde 1965.
Conseqüentemente, a literatura sobre a saúde dos povos indígenas, especialmente no que
tange a estudos sobre os indicadores de saúde, ainda é restrita.

A Funasa, a partir do ano 2000, criou o Sistema de Informação da Saúde Indígena (Siasi) cuja
promessa subjacente é a organização de uma base de dados das comunidades indígenas
brasileiras. Entretanto esse sistema ainda não é capaz de oferecer ao público, informações
específicas que permitam conhecer a real situação de saúde dos povos indígenas.


Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-
MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004.

Universidade Federal de São Paulo.

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A Região do Alto Rio Negro e os Índios Hupdäh
A região do Alto Rio Negro, com destaque para o município de São Gabriel da Cachoeira,
está localizada a noroeste do estado do Amazonas, cerca de 800 km em linha reta desde a
cidade de Manaus, em área de fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Nela vivem, de
acordo com as estatísticas oficiais da FUNASA, 27.394 índios pertencentes a 22 etnias, que
falam 19 línguas diferentes, agrupadas nos troncos lingüísticos Tukano, Arawak e Maku.

O município de São Gabriel da Cachoeira tem 109.669 Km2 de extensão, sendo a sua maior
parte constituída por Terras Indígenas (TI) demarcadas e contíguas que medem 106.103 km2.
A população indígena do município equivale a 85% da população total, distribuída em 610
comunidades e pequenos sítios. Outro aspecto relevante em termos populacionais é o fato dos
índios da região do Alto Rio Negro representarem quase 10% do total dos índios do Brasil. A
população Hupdäh está estimada em 1.500 pessoas, vivendo em cerca de 40 comunidades, na
região interfluvial dos rios Uaupés e Tiquié, enquanto que os indígenas do tronco lingüístico
Tukano, na mesma área, perfazem cerca de 7.000 pessoas distribuídas em cerca de 200
comunidades.

Os Hupdäh vivem na região interfluvial dos rios Uaupés, Tiquié e Papuri, afluentes do Rio
Negro e pertencem ao tronco lingüístico Maku o qual tem outros cinco grupos étnicos: os
Yohupdäh, os Kákua, os Nukak, os Nadöb e os Döw.

A relação entre os Hupdäh e os índios do grupo Tukano vem sendo objeto de observação e de
estudos por parte de missionários, viajantes e antropólogos, tendo sido descrita como de
escravidão, assimétrica, simbiótica ou como de patrão-cliente (Ramos, 1980).
Entretanto, como pontuam os etnólogos que estudaram os Maku em maior profundidade,
esses adjetivos não são capazes de exprimir com fidelidade a qualidade da relação existente
entre os dois grupos.

Os estudos de Silverwood-Cope (1990), o primeiro antropólogo a estudar os Maku, fornecem


dados etnográficos detalhados sobre a adaptação ecológica, organização social e cosmologia
dos Bara-Maku moradores da Colômbia, destacando-lhes a característica de caçadores
profissionais.

As investigações de Reid (1979) feitas entre os Hupdäh da região do rio Tiquié permitiram o
conhecimento sobre a mobilidade, economia, organização social e cosmologia desse povo.
Reid também forneceu subsídios para o entendimento das mudanças que estavam ocorrendo
com os Hupdäh no final da década de 60, quando os missionários iniciaram o processo de
catequese.

Pozzobon (1991) estudou o aspecto das variações demográficas e suas implicações na


alteração da regras de casamento entre os Yohupdäh e, finalmente, Athias (1995) contribuiu
na reflexão sobre as relações interétnicas entre os grupos Hupdä´h e Tukano, sob o pano de
fundo da cultura Arawak e suas implicações no equilíbrio da organização social existente.

Do período final da década de 60 até 1995, portanto, desvendou-se boa parte da vida dos
Hupdäh: sua língua, suas tradições, suas especialidades técnicas, o aspecto da alta mobilidade
e o que pensam sobre o universo, sobre este mundo, sobre os Tukano e, principalmente, sobre
si mesmos.

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No aspecto da saúde as observações tanto de missionários, como de antropólogos e os
registros mais atuais, coletados pelos profissionais de saúde que atuam com este povo,
demonstram que eles detém os piores índices de saúde da região do Alto Rio Negro. Os
Hupdäh apresentam quadros graves de desnutrição, tuberculose, associados a condições de
vida precária (Oliveira et al. 1996). Em estudo realizado para a confirmação da presença de
tracoma entre os Hupdäh, observou-se que a doença é hiperendêmica na região e os Hup
apresentam os maiores índices de tracoma ativo. Dos 267 Hup examinados em duas
comunidades, 2,4% apresentavam opacificação de córnea por tracoma (Ximenes et al. 2001).
No ano de 2000, cerca de 22% dos encaminhamentos de pacientes, para o centro urbano,
provenientes das áreas dos rios Tiquié e Uaupés foram de índios Hupdäh (SSL,2000).

Metodologia

Coleta das Informações Demográficas e Epidemiológicas

Trata-se de um estudo descritivo que pretende analisar os dados de morbimortalidade do


povo Hup, referentes ao período de 2000 a 2003, considerando o aspecto de suas relações
sociais com o povo Tukano e o processo de transformações culturais advindo do contato com
a sociedade envolvente.

O estudo será realizado a partir dos dados existentes no Dsei-RN, relativos ao povo Hup, que
foram coletados e sistematizados nos anos 2000 e 2001 pelas equipes de saúde da Associação
Saúde Sem Limites (SSL), entidade na qual a autora desenvolve suas atividades profissionais.
Em relação ao período de 2002 e 2003, os dados estão sendo coletados e sistematizados pela
equipe técnica de saúde da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)
que tem utilizado e aperfeiçoado a técnica de coleta e sistematização outrora adota pela SSL.
Como fontes complementares para obtenção e confrontação das informações, serão
pesquisados os registros da Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira,
município de referência do Dsei Rio Negro, os registro de cadastro das famílias adscritas no
Dsei Rio Negro, além dos registros existentes nas paróquias da Missão Salesiana localizadas
na área de abrangência do estudo. Será também considerada como fonte de informação
complementar, o relato, quando possível, de índios Hupdäh sobre dados, por vezes, não
disponíveis nos instrumentos de informação oficiais, como por exemplo o processo de
adoecimento e de morte de determinadas pessoas visando aclarar a causa do óbito.

Os dados primários advêm dos relatórios de viagem a campo das equipes de saúde que atuam
na área dos rios Tiquié e Uaupés. Estes relatórios são realizados ao término de cada viagem
das equipes, sendo que a cobertura assistencial é, em média, de 20 dias por mês. As equipes
que atendem a população Hup são formadas por médicos, enfermeiros, técnicos de
enfermagem e por agentes indígenas de saúde. Após o retorno de cada viagem, os relatórios
das equipes são analisados em conjunto com a coordenação técnica do Dsei Rio Negro, a qual
sistematiza e atualiza as informações com freqüência bimestral. Após o procedimento de
atualização as informações são repassadas à chefia local da Funasa que, por sua vez as
repassa, para o Sistema de Informação da Atenção a Saúde Indígena (SIASI).

Fontes de Informação

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1) Relatórios de Atividades das equipes de saúde: estes relatórios foram elaborados de
forma a organizar o trabalho das equipes de saúde e uniformizar as informações
referentes a situação de saúde da população. Constam destes relatórios as seguintes
informações de interesse ao presente estudo:
a) Censo Populacional: realizado anualmente, por comunidade, de acordo com
o sexo e as faixas etárias, que foram agrupadas de quatro em quatro anos.
b) Dados de Morbidade: organizados em grupos de doenças, de acordo com a
faixa etária.
c) Registros de Nascimentos: os quais explicitam a identificação da mãe, o sexo
do recém-nascido, o local de nascimento, a comunidade onde vive a mãe, o
pólo-base e o rio.
d) Registro dos Óbitos: explicitam as informações como o nome, idade, sexo,
etnia, comunidade, pólo-base, rio, causa provável da morte e local de
ocorrência do óbito.
2. Fichas de Acompanhamento Mensal da Funasa: Estes instrumentos contém as
informações sistematizadas pela coordenação técnica do Dsei Rio Negro. Os dados de
interesse para o estudo são os nascimentos, os óbitos e a morbidade, por pólo-base.
3. Dados Consolidados para o Relatório Técnico Anual da Funasa: Estes dados
demonstram o consolidado dos registros do ano relativos aos nascimentos, óbitos e
morbidade. Da mesma forma que as Fichas de Acompanhamento Mensal, o Relatório
Técnico Anual é feito por profissionais de saúde de nível universitário.

Fontes de Informação Complementares

1. Declarações de Nascidos Vivos e Declarações de Óbitos: Além de fornecer


informação para alimentar o SIASI, as equipes de saúde preenchem as Declarações de
Nascidos Vivos e as Declarações de Óbitos que são repassadas para a Secretaria
Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira para fins de registro no SINASC e
no SIM. A análise desses documentos permite a confrontação das informações.
2. Registros de Nascimentos e Óbitos das Missões Salesianas: Esses documentos
permitirão também comparar e complementar as informações colhidas nas fontes
anteriormente citadas.

Variáveis de Estudo

As doenças e os óbitos serão estudados segundo o sexo, idade, tipo de causa, sendo agrupadas
de acordo com as definições e regras internacionais de codificação da Classificação
Internacional de Doenças (CID), 10 ª Revisão, da Organização Mundial de Saúde (OMS). A
população será avaliada segundo sua composição por idade e sexo.

Medidas Utilizadas
As medidas utilizadas serão as seguintes:
Estimativas de Morbidade
a) Taxa de Incidência:
b) Taxa de Prevalência:

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Estimativas de mortalidade
a) Taxa Bruta de Mortalidade
b) Taxa de Mortalidade Infantil
c) Taxa de Mortalidade Específica por idade e sexo
d) Razão de Sexo dos óbitos

Análise das Informações Demográficas e Epidemiológicas


A dificuldade em obter informações sistemáticas e confiáveis sobre os povos indígenas tem
sido reportada por diversos estudiosos. Santos et al. (2003) resumem os problemas causados
pela precariedade de informações chamando atenção para a danosa invisibilidade
demográfica e epidemiológica (p.16) relacionada às estatísticas de saúde dos povos indígenas
brasileiros.

A presente pesquisa busca contribuir para o aumento da visibilidade demográfica e


epidemiológica dos povos indígenas, ainda que em âmbito bastante restrito tendo em vista
que é o estudo de um único povo. O desafio posto pela pesquisa situa-se nas bases de dados
disponíveis e o tratamento dessas informações em se tratando de grupos com tamanho
pequeno de população. Isto exige cautela e rigor na tanto nos procedimento de coleta quanto
no momento da análise.

No sentido de evitar distorções, as informações demográficas serão explicitadas para todos os


anos e analisadas pelos valores médios obtidos no período 2000 a 2003.

Dinâmica Populacional

A análise da dinâmica dessa população se fará por meio de estimativas das taxas médias de
crescimento anual e de crescimento vegetativo, além da estrutura populacional, avaliada
quanto ao sexo e grupos etários. Dadas as características de alta mobilidade dos Hupdäh no
interior de seu território, dos casamentos ocorrerem entre pessoas do mesmo povo e das
saídas reduzidas para outras regiões, o aspecto da migração não será destacado na pesquisa.

Níveis e Padrões de Mortalidade

A mortalidade será estudada mediante a obtenção de estimativas das taxas brutas observadas
e padronizadas, da mortalidade proporcional e das taxas específicas de mortalidade por sexo e
grupos etários. A análise das taxas de mortalidade infantil terá especial atenção, dadas as
possíveis flutuações decorrentes do número reduzido da população, para as explicações das
tendências reveladas considerando o processo de organização dos serviços de saúde na
região, em curso desde o ano 2000.

Referências Bibliográficas

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