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Tendências da Fecundidade dos Kaiabi, Povo de Língua Tupi do

Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil Central. Uma


proposta de análise longitudinal e transversal1
Heloisa Pagliaro2
Jade Cury Martins3
Sofia Mendonça4

Palavras-chave: demografia indígena, fecundidade de mulheres indígenas, povos Tupi


do Brasil, Kaiabi.

Resumo
O trabalho analisa as tendências da fecundidade das mulheres Kaiabi, etnia de língua
Tupi do Parque Indígena do Xingu, Brasil Central. Métodos. Análise transversal ou de
momento e longitudinal ou de coortes dos indicadores clássicos de fecundidade, com
base em informações do registro de eventos vitais dos Kaiabi, gerados pelo programa de
saúde da UNIFESP no Xingu, apoiados por levantamento etnográfico e de histórias
reprodutivas. Resultados. O contato dos Kaiabi com a sociedade nacional desde a
década de 1920 deu origem à depopulação por confrontos e epidemias e à emigração de
parte do grupo o Parque Indígena do Xingu a partir da década de 1950. Atualmente
somam 1250 habitantes, sendo o maior contingente populacional de língua Tupi do
Parque. Entre 1970 e 2007 essa população cresceu aproximadamente 5% ao ano. A
conjugação de queda dos níveis da mortalidade, principalmente a infantil, e manutenção
ou elevação dos níveis da fecundidade foram responsáveis pelo expressivo crescimento
observado. Atualmente, a TFT é de 7,8 filhos por mulher. As estimativas de indicadores
de fecundidade atual por períodos, entre 1970 e 2007, e das parturições médias e médias
acumuladas das mulheres de diversas coortes de nascimento acompanhadas desde 1965,
permitiu identificar, além das mudanças de níveis, as modificações de padrões etários,
que sugerem as transformações culturais em curso nessa sociedade indígena. Destaca-se
a importância da coleta sistemática de dados demográficos e de saúde para populações
indígenas, a construção de registro civil, além da dificuldade de análise de indicadores
para populações de pequena escala.

1
“Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em
Caxambu – MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010”.
2
Demógrafa, Pesquisadora do Projeto Xingu, Unidade de Saúde e Meio Ambiente, Universidade Federal
de São Paulo, Bolsista PQ do CNPq.
3
Médica Residente, Universidade Federal de São Paulo.
4
Médica e Antropóloga, Projeto Xingu, Unidade de Saúde e Meio Ambiente, Universidade Federal de
São Paulo.
Tendências da Fecundidade de Povos de Língua Tupi do Parque
Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil Central. Uma proposta de
análise longitudinal e transversal5
Heloisa Pagliaro6
Jade Cury Martins7
Sofia Mendonça8
Introdução

Os Kaiabi são um dos quatro povos de filiação linguística Tupi, além dos Yudjá,

Kamaiurá e Aweti, que habita o Parque Indígena do Xingu (PIX). Até meados do

século XX ocupavam a região do Alto Teles Pires, desde a confluência do rio Verde até

o rio Peixoto de Azevedo, além de parte da bacia do rio dos Peixes, afluente da margem

direita do Arinos (MT). O contato desse povo com a sociedade nacional desde a década

de 1920 deu origem à depopulação por confrontos e epidemias e à emigração de parte

do grupo para o Parque Indígena do Xingu, num movimento migratório iniciado em

1952 com duração aproximada de vinte anos.

O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961 com a intenção de preservar as

comunidades indígenas da região da especulação de terras que estava ocorrendo em

Mato Grosso desde o declínio do terceiro ciclo da borracha, em 1945. O Parque conta

atualmente com 14 povos, pertencentes aos quatro mais relevantes troncos lingüísticos

do Brasil: Aruak, Karib, Jê e Tupi, além dos Trumai de língua isolada.

Em 1970, os Kaiabi do Xingu somavam 204 indivíduos (PAGLIARO, 2005).

Em 2007 possuíam 20 aldeias, com 1.162 habitantes. Somados aos que viviam nas

aldeias de outros povos do PIX (18 indivíduos) e aos que residiam em áreas urbanas

como Sinop e Canarana (45 indivíduos), onde participam da gestão do Distrito Especial

5
“Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em
Caxambu – MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010”.
6
Demógrafa, Pesquisadora do Projeto Xingu, Unidade de Saúde e Meio Ambiente, Universidade Federal
de São Paulo, Bolsista PQ do CNPq.
7
Médica Residente, Universidade Federal de São Paulo.
8
Médica e Antropóloga, Projeto Xingu, Unidade de Saúde e Meio Ambiente, Universidade Federal de
São Paulo.
Indígena do Xingu (DSEI-XINGU) e da Associação Terras Indígenas do Xingu (ATIX),

os Kaiabi da região, totalizavam 1225 indivíduos. Entre 1970 e 2007, a taxa de

crescimento médio da população foi próxima de 5% ao ano (PAGLIARO, 2010). Nesse

período, a mortalidade geral declinou de 11,4 para 3,5 óbitos por mil habitantes; a

fecundidade se manteve alta e ascendente até 1999 (9,5 filhos por mulher em 1990-99),

declinando a seguir para 7,8 filhos por mulher, em 2000-07.

O crescimento populacional que se seguiu a períodos de contato com as frentes

de expansão nacional, observado entre diversas sociedades indígenas no Brasil nas

últimas décadas, e a necessidade de compreender em maior profundidade como o

processo se desenvolveu entre os povos de língua Tupi do Xingu, representados pelos

Kaiabi, etnia mais numerosa deste tronco lingüístico no PIX - nortearam a presente

investigação, cujo objeto central é a analise das tendências da fecundidade dessa

população entre 1962 e 2007.

O trabalho destaca a importância da coleta sistemática de dados demográficos e

de saúde para populações indígenas, além da dificuldade de análise de indicadores para

populações de pequena escala.

Metodologia

A análise sob a perspectiva longitudinal ou de coortes levada a efeito neste

trabalho considerou seis coortes de mulheres nascidas entre 1950 e 1970, excluídas as

mulheres afetadas pela mortalidade e pela migração, que entre os 12 e 44 anos estavam

expostas ao “risco” de dar à luz a filhos nascidos vivos (fenômeno renovável). Para

neutralizar o efeito perturbador da mortalidade e da migração, extraiu-se do efetivo das

coortes as mulheres que faleceram, entraram ou saíram da população durante o período,

, reprodutivo, ficando as coortes com um número constante de mulheres (WELTI,

1998).
Teoricamente, a origem de uma coorte de fecundidade se dá no momento em

que as mulheres de uma mesma geração iniciam a vida reprodutiva, geralmente aos 15

anos de idade, e o seu término, quando completam 45 ou 50 anos. Para se obter a

estimativa da descendência média final de cada mulher e o calendário dos eventos ou a

forma como os nascimentos se produziram durante sua vida reprodutiva é necessário

acompanhar a coorte por um período que pode durar entre 30 e 35 anos, em média. Os

dados utilizados mostraram que as mulheres Kaiabi têm, geralmente, seu primeiro filho

antes dos 15 anos de idade e o último antes dos 45 anos, sendo de cerca de 30 anos o

seu período reprodutivo.

A descrição das coortes construída pode ser observada na tabela 1.

TABELA 1

As medidas de fecundidade utilizadas na análise das coortes são: as parturições

médias e acumuladas; as idades médias das mães ao nascimento de todos os seus filhos,

do primeiro filho vivo e o intervalo médio entre os nascimentos. Para as coortes com

fecundidade completa (1, 2 e 3), além destas medidas, calculou-se a descendência média

final (Dx) ou o tamanho da família completa. A idade média das mães ao nascimento de

seus filhos, que representa a média do calendário da fecundidade na ausência de

mortalidade e migração. A duração média de tempo que separa o nascimento das mães

do nascimento de seus filhos, denominada intervalo entre as gerações sucessivas,

também é dada pela idade média das mães ao nascimento de seus filhos (PRESSAT,

1973).

Os indicadores foram calculados por idade da mãe, dado que se possui a

informação de nascimentos ocorridos em diferentes anos segundo a idade da mãe no

momento do parto, conforme recomendado por Welti (1998).


As fontes de informações foram os registros de eventos vitais dos Kaiabi, ou

seja, o ano de nascimento das mulheres e de seus filhos, gerados pelo programa de

saúde da Unifesp no Xingu. As informações quantitativas foram coletadas em 2009,

sendo a data de referência, os nascimentos ocorridos até dezembro de 2007.

Além dessas fontes de dados, procedeu-se a um levantamento etnográfico a

respeito dos valores e costumes da cultura dos Kaiabi do Xingu, principalmente no que

concerne à sua saúde sexual e reprodutiva.

Aspectos Culturais da Reprodução Biológica entre os Kaiabi

Adolescentes Kaiabi, de ambos os sexos, passam, geralmente, por ritos de

iniciação – a reclusão pubertária ou ayopot, em sua língua. Entre as meninas, a reclusão

se dá após o aparecimento da primeira menstruação. Conforme Grunberg (2004)

antigamente, durante a reclusão as meninas permaneciam em pé sobre uma pedra

colocada no interior da maloca, sem falar, comendo apenas algumas espécies de peixe e

bebendo chincha de milho preto. Ao sair, banhavam-se e permaneciam deitadas por três

dias. Após o recolhimento, eram tatuadas em cerimônia dirigida por um pajé e recebiam

novos nomes. Entre os Kaibi do Xingu, as moças permanecem deitadas no interior da

maloca, sem mexer em fogo, tecer algodão e conversar. São banhadas pelas mães no

interior da casa e obedecem a restrições alimentares. Depois desse rito ganham novos

nomes (OAKDALE, 1996). Já sendo consideradas adultas, podem ter relações sexuais

e assumir os compromissos do casamento, que, geralmente, já estão combinados pela

família em obediência ao sistema de classificação de parentes.

Os casamentos entre os Kaiabi são regidos por um sistema de parentesco

conhecido na literatura antropológica como Iroquês ou bifurca e mescla (JUNQUEIRA


1991; GRÜNBERG, F., 1970). Este sistema distingue primos cruzados e primos

paralelos, aqueles considerados parentes classificatórios e estes consangüíneos. Em

nível da geração de uma determinada pessoa, a qual é chamada de ego, primos cruzados

são os filhos das irmãs de seu pai e dos irmãos de sua mãe, que recebem o tratamento de

tio e tia. Primos paralelos, por sua vez, são os filhos dos irmãos de seu pai e das irmãs

de sua mãe, a quem ego trata como seus pais. Os parceiros conjugais preferidos são os

primos cruzados ou os primos cruzados bilaterais, ou seja, os filhos da irmã do pai e do

irmão da mãe. Isto significa que o sistema mescla os irmãos do mesmo sexo dos pais de

ego e bifurca os irmãos de sexo diferente de seus pais (JUNQUEIRA, 1991).

O levirato ou o casamento entre tios e sobrinhas maternas, é recomendado,

ocorrendo, em geral, entre homens de grande prestígio, como destaca Grünberg (2004).

Entre as gerações mais velhas moradoras do PIX, alguns casamentos deste tipo foram

observados. A poliginia sororal ou o casamento de um homem com duas ou mais

irmãs, também é prescrita. Diversos casamentos deste tipo foram observados entre os

Kaiabi do Xingu, mesmo recentemente, sendo mais freqüentes entre os homens de

prestígio político ou religioso.

As relações sexuais entre os Kaiabi são em geral livres. Mas, quando há intenção

de casamento, o homem dirige-se à mãe da parceira escolhida ou preferencial, que

informa sua filha. Durante o período de “namoro” deve presentear a sogra com caça,

pesca e outros alimentos, além de objetos artesanais, como cestos e colares de tucum e

inajá. O casamento não é precedido de nenhuma cerimônia. Ao casar, o rapaz se muda

para a casa da esposa, onde ao novo casal é destinado um local para pendurar suas

redes, utensílios e fazer seu fogo, configurando-se, assim, a regra de residência

conhecida como matrilocal, que tem sua exceção entre os filhos de chefes de famílias
extensas, que trazem as esposas para a casa do pai. O casal passa por um “período de

adaptação” antes que venham os filhos, podendo, na ocasião, mudar de nome.

A idade de início das uniões conjugais nas sociedades indígenas é, geralmente,

muito jovem. Quando as regras sociais são obedecidas, as mulheres Kaiabi têm seus

filhos, geralmente, aos 15 anos de idade. Mas, há casos em que as mulheres iniciam a

vida reprodutiva antes de completar esta idade, sendo o período reprodutivo dessas

mulheres de cerca de trinta anos, nascendo o último filho, geralmente, antes dos 45 anos

de idade da mulher (PAGLIARO 2002).

Segundo Oakdale (1996), entre os Kaiabi a concepção está relacionada ao calor

e à energia do sol, sendo o pajé intermediário no encontro entre a mãe e o bebê, pois é

ele quem introduz a alma da criança em sua mãe, através de seus sonhos. As crianças

podem escolher entre que casais querem nascer e o pajé pode trabalhar para influenciar

suas escolhas. A influência deste pode ser observada, também, na escolha do nome da

criança. Mas, os Kaiabi jovens acreditam ser o pai que faz a alma da criança, sendo a

mãe sua receptora (OAKDALE, 1996).

A sociedade Kaiabi utiliza diferentes práticas contraceptivas, como ervas

anticoncepcionais de efeito temporário ou definitivo, apesar de seu uso não ser livre e

indiscriminado. Para evitar a concepção os Kaiabi usam uma beberagem preparada com

raízes de plantas, que é ingerida pela mulher durante vários dias, após as relações

sexuais. Para suspender o seu efeito elas ingerem nova beberagem preparada com outros

tipos de plantas, recuperando, assim, a capacidade de conceber. A anticoncepção

definitiva é obtida por meio da ingestão de outro tipo de infusão à base de ervas. Para

obter as ervas, a interessada é levada pelo pajé, acompanhada por sua mãe, ao local

onde as ervas ou raízes nascem o que institucionaliza o ato de anticoncepção (IEFUKÁ

KAIABI, 1999). Uma outra versão da anticoncepção definitiva é relatada por Oakdale
(1996). Assim como o sol nascente está relacionado à concepção, o poente liga-se à

anticoncepção. Para não conceber mais, o pajé prepara um banho de folhas aromáticas,

que é espalhado sobre o corpo da mulher, estando esta voltada para o sol poente. O

aroma das folhas penetra o seu corpo, mudando o seu sangue.

Durante a gravidez, como em algumas outras ocasiões, os pais obedecem a

restrições alimentares, nutrindo-se de vegetais e de algumas espécies de aves, peixes e

animais silvestres. A relação sexual cessa nos últimos meses da gravidez e se reinicia

quando a criança começa a andar. A mulher continua cuidando de seus afazeres, sendo

poupada do transporte de cargas pesadas.

O nascimento da criança se dá com o auxílio de mulheres mais velhas,

geralmente, em casa. Ao nascer, a criança é lavada com água; o cordão umbilical é

cortado com um pedaço de uma espécie de taquara, que auxilia o estancamento do

sangue; o umbigo é atado com uma fibra de embira e untado com a seiva de uma

espécie vegetal em caso de sangramento. Depois de seco, o cordão é pendurado no

pescoço da criança para protegê-la, sendo, mais tarde, enterrado.

Os pais ou o pajé dão o nome à criança. Ao passar da infância para a

adolescência ela recebe outro nome, assim como ocorre em outras fases de sua vida.

Algumas restrições alimentares dos pais são mantidas até que a criança se

mantenha em pé ou ande. A mãe amamenta as crianças até que comecem a caminhar.

Entre os Kaiabi do rio dos Peixes, o infanticídio era praticado em caso de

nascimento de gêmeos, sendo a primeira criança a nascer preservada e as demais

sacrificadas por serem consideradas filhas de outros pais (GRUNBERG 2004). Os

recém-nascidos com deficiências físicas eram igualmente sacrificados. Entre os Kaiabi

do Xingu atualmente há gêmeos e mesmo trigêmeos sobreviventes, sendo alguns já

adultos. Quanto aos deficientes físicos não são mais sacrificados.


Tendências da Fecundidade

Análise transversal ou de momentos

A evolução dos níveis de fecundidade das mulheres Kaiabi pode ser observada

por meio das Taxas de Fecundidade Total (TFT) estimadas para os períodos 1970-79,

1980-89, 1990-99 e 2000-07. Entre 1970 e 1990, a TFT dessas mulheres aumentou de

5,7 para 9,5 filhos nascidos vivos, em média, por mulher, declinando para 7,8 filhos no

período 2000-2007 (Tabela 2).

TABELA 2

Na década de 1970, a estrutura da fecundidade identificava-se com o padrão

“jovem”, com maior concentração entre as mulheres de 15 a 24 anos de idade (Figura

1). A partir da década de 1980, o padrão etário da fecundidade assume um perfil mais

“tardio”, com concentração nas idades de 20 a 29 anos. Consistente com a mudança de

padrão etário da fecundidade de “jovem” para “tardio”, observou-se que a contribuição

das mulheres < de 30 anos de idade para a fecundidade total passou de 80%, na década

de 1970 para, aproximadamente, 60% nas décadas seguintes. A média de idade ao

nascimento do primeiro filho vivo, que se manteve entre os 15 e 15,8 anos, de 1970 a

1999, aumentou para 16,5 anos em 2000-07. No conjunto do período 1970-2007, o

intervalo médio entre os nascimentos vivos oscilou entre 2,4 e 2,8 anos (Tabela 2).

FIGURA 1

Análise por coortes

A análise das tendências da fecundidade se deu também pelo acompanhamento

de seis coortes de mulheres nascidas entre 1950 e 1979, sendo três com fecundidade

completa e as demais ainda em fase reprodutiva. As medidas de fecundidade estimadas


mostram como as mulheres de cada coorte distribuíram os nascimentos de seus filhos ao

longo do período reprodutivo e qual foi a intensidade da fecundidade até as idades em

que puderam ser acompanhadas.

Destaca-se que as coortes foram construídas com o universo das mulheres

Kaiabi, que todas as mulheres casaram-se ao menos uma vez e todas tiveram filhos.

A primeira coorte constitui-se de 12 mulheres com fecundidade completa,

nascidas entre 1950 e 1954, que sobreviveram até o final do período reprodutivo e que

tinham entre 53 e 57 anos em 2007 (Tabela 1). Todas as mulheres desta coorte casaram-

se ao menos uma vez e tiveram, no mínimo, 2 filhos nascidos vivos e, no máximo, 11.

As mulheres desta coorte tiveram 84 filhos nascidos vivos, ou 7,0 filhos, em média, o

que se convencionou denominar na linguagem demográfica de descendência média final

(D44). A última mulher a ter filhos, o fez aos 44 anos. O espaçamento médio entre os

filhos destas mulheres foi de 2,9 anos e a média de idade ao nascimento do primeiro

filho foi de 18,7 anos, o que pode estar indicando que perderam muitos filhos antes do

primeiro nascimento vivo.

A coorte 2 conta com 9 mulheres nascidas entre 1955-59, que em 2007 tinham

entre 48 e 52 anos e já haviam encerrado o período reprodutivo. Todas as mulheres se

casaram ao menos uma vez, tendo, no mínimo 2 e, no máximo 12 filhos nascidos vivos.

A sua descendência média final foi de 8,9 filhos; a média de idade ao nascimento do 1º

filho foi de 16,8 anos e o intervalo médio entre os nascimentos de 2,8 anos.

A coorte 3 é formada por 16 mulheres nascidas entre 1960-64 que em 2007

tinham entre 43 e 47 anos, podendo provavelmente ter encerrado o período reprodutivo,

com uma parturição final de 9,3 filhos. Todas se casaram ao menos uma vez, tendo, no

mínimo 5 e, no máximo, 11 filhos nascidos vivos. A média de idade ao nascimento do


1º filho foi de 15,4 anos e o intervalo médio entre os nascimentos de seus filhos até que

completassem 43-47 anos foi de 2,5 anos.

A coorte 4 possui 11 mulheres nascidas entre 1965-69, cuja idade em 2007

estava entre os 38 e 42 anos. Todas se casaram ao menos uma vez e tiveram no mínimo

2 e no máximo 8 filhos nascidos vivos. A parturição média acumulada até os 38-42 anos

foi de 5,7 filhos, em média, sendo o intervalo médio entre eles de 3,1 anos e a idade

média ao nascimento do 1º filho de 17,5 anos.

A coorte 5 é formada por 23 mulheres com , sendo 20 Kaiabi nascidas no Xingu,

duas Kaiabi nascidas fora do Parque e uma Kamaiurá. Estas 23 mulheres sobreviveram

até 1999, quando tinham idades entre 25 e 29 anos. A única mulher que faleceu foi

excluída da coorte. Todas se casaram ao menos uma vez e todas tiveram filhos. Num

tempo médio de 15 anos de vida reprodutiva tiveram 105 filhos nascidos vivos ou 4,5,

em média, com intervalos médios estimados em 2,4 anos. A média de idade ao

nascimento do 1º filho foi de 17 anos.

A coorte 6 é formada por 31 mulheres nascidas entre 1975 e 1979, que

sobreviveram até 1999, atingindo idades entre 20 e 24 anos. Três das 34 mulheres

nascidas neste período faleceram e foram excluídas da coorte. Duas das 31 mulheres

não nasceram no Xingu: uma é Nambiquara e a outra é Kaiabi do rio dos Peixes. Até

1999 estas 31 mulheres já estavam casadas e tinham ao menos 1 filho nascido vivo cada

uma. O número de nascimentos vivos das mulheres desta coorte até 1999 foi de 92, o

que resultou numa média de 3 filhos por mulher com idade até 24 anos. A média de

idade ao nascimento do 1º filho vivo foi de 16 anos e o intervalo entre os filhos que

tiveram até os 24 anos foi de 2,5 anos.

FIGURA 2
A Figura 2 mostra as parturições médias acumuladas das seis coortes de

mulheres Kaiabi até a idade em que foram acompanhadas. Esses dados revelam que os

níveis de fecundidade aumentaram progressivamente entre a primeira e a terceira coorte,

ou seja, entre as mulheres nascidas em 1950-54 e 1960-64. A descendência final das

coortes 1, 2 e 3 que já encerraram o período reprodutivo, são, respectivamente, de 7,0,

8,7 e 9,3 filhos, em média, até os 40-44 anos, como mostra a Tabela 3. A diferença da

parturição média final entre a coorte 1 e a 3 é de 2,3 filhos a mais.

TABELA 3

A observação das coortes seguintes, com fecundidade incompleta, indica

tendência de declínio da fecundidade nas idades completas (Tabela 3). A comparação da

coorte 3 (de mais alto nível de fecundidade) com a coorte 5 aponta para a redução de 1,1

filhos em média até os 30-34 anos, e com a coorte 6, de 0,9 filhos até os 25-29 anos

(Tabela 3).

A média de idade ao nascimento do primeiro filho das coortes flutuou muito,

apresentando tendência de declínio progressivo a partir da coorte 4 (17,5 anos) com

mulheres nascidas entre 1965-69, atingindo 16 anos na coorte 6 e apontando para o

rejuvenescimento do padrão etário da fecundidade. Os intervalos entre os nascimentos

têm padrão definido, variando entre 2,5 e 3 anos.

Assim como verificado na análise da fecundidade por períodos, a avaliação das

parturições médias das coortes de mulheres, até a idade em que puderam ser

acompanhadas, também aponta para um aumento da fecundidade (coortes 1,2 e 3),

seguido de declínio (coortes 5 e 6). No entanto, diferentemente do observado na análise

transversal, o acompanhamento de coortes mostrou uma pequena alteração no

calendário, no sentido de rejuvenescimento da fecundidade. Entre as coortes 1 e 3, as


proporções das parturições médias das mulheres < de 30 anos aumentaram de 61 para

65%.

Considerações Finais

O trabalho avaliou as tendências da fecundidade das mulheres Kaiabi do Parque

Indígena do Xingu durante um longo período de tempo (1962-2007), sob o prisma de

dois enfoques metodológicos: transversal ou de momento e longitudinal ou por coortes.

As análises da fecundidade por momentos e por coortes permitiram acompanhar, além

das mudanças de níveis, as modificações dos padrões etários da fecundidade, que

sugerem as transformações culturais em curso nessa sociedade indígena.

A análise da fecundidade dessa população por períodos de tempo mostrou a

tendência de aumento das TFTs de 5,7 para 9,5 filhos nascidos vivos, em média, por

mulher, de 1970 a 1999 e de declínio no período 2000-07 para 7,8 filhos, em média. O

elevado nível de fecundidade das Kaiabi na década de 1990 (9,5) foi próximo do

registrado entre mulheres com fecundidade natural, como as Hutterites da América do

Norte (LERIDON, 1977). A melhoria das condições de saúde e de sobrevivência da

população como um todo, e das mulheres em particular, foi fator importante no aumento

da fecundidade registrado até a década de 1990. Neste sentido, a atenção voltada para a

saúde da mulher, com programas específicos, principalmente para o período pré-natal,

contribuiu para aumentar as possibilidades das mulheres conduzirem suas gestações a

termo. O declínio da mortalidade em ambos os sexos proporcionou também maior

duração das uniões conjugais, antes interrompidas com freqüência pela morte de um dos

cônjuges, principalmente dos homens, cujos níveis de mortalidade são mais altos. A

aquisição de maior equilíbrio entre os sexos na população também contribuiu para o

aumento da estabilidade das uniões. Deve-se considerar também a possibilidade de

melhora da qualidade das informações a partir da década de 1980, principalmente no


tocante às idades e aos óbitos de recém-nascidos, como fator que contribuiu para o

aperfeiçoamento das estimativas de fecundidade.

A introdução do conceito de planejamento familiar e de métodos

anticoncepcionais hormonais, sob demanda, à população do PIX, no início da década de

2000, teria contribuído para a redução dos níveis de fecundidade das Kaiabi no período

2000-07, para 7,8 filhos em média.

O presente estudo mostrou também que a partir da década de 1990 houve um

envelhecimento do padrão reprodutivo das mulheres Kaiabi, evidenciado pela

diminuição dos níveis de fecundidade das mulheres com até 24 anos e aumento nas

idades superiores a 30 anos. A fecundidade passou a se concentrar nas idades de 20-29

anos tanto na década 90, como no início dos anos 2000, o que também foi registrado

entre as mulheres Kamaiurá, a partir da década de 1990 (PAGLIARO, JUNQUEIRA,

2007) diferentemente do que vem ocorrendo entre as Suyá, que apresentam um

rejuvenescimento da fecundidade (PAGLIARO, 2009). O envelhecimento do padrão

reprodutivo das Kaiabi se confirma com o aumento da média de idade ao nascimento do

primeiro filho vivo, estável até a década de 1990, em torno dos 15 anos, para 16,5 anos

nos anos de 2000-2007. O intervalo entre os nascimentos vivos (intergenésico) se

manteve curto, em torno de 30 meses, sendo semelhante ao encontrado em outras

sociedades indígenas no Brasil, como os Mekranotire (WERNER, 1983), os Karitiana

(MEIRELLES, 1988), os Yanomama do rio Mucajai (EARLY, PETERS, 1991), os

Xavante (COIMBRA et al. 2002; SOUZA, 2008), que também se caracterizam por

curtos intervalos de tempo entre os nascimentos e aleitamento prolongado, podendo

atingir até três anos.

A análise da fecundidade por coortes de nascimento das mulheres Kaiabi

apontou também para o aumento da fecundidade por meio das descendências finais das
coortes 1, 2 e 3 e para a tendência de declínio da fecundidade a partir das coortes 5 e 6,

mais jovens, acompanhadas até os 30-34 anos e 25-29 anos, respectivamente.

Concluindo, as análises das tendências da fecundidade dessas mulheres

realizadas sob os enfoques transversal e longitudinal apontaram: 1) para o aumento da

fecundidade até a década de 1990 (transversal) e entre as mulheres das coortes de

nascimento de 1950 a 1964 (longitudinal); e para uma tendência de declínio a partir dos

anos 2000 (transversal) e para as mulheres nascidas de 1970 a 1079 (longitudinal). Este

exercício metodológico só foi possível dada a existência de dados de registro de eventos

vitais acumulados ao longo de um período de mais de quarenta anos, o que destaca a

importância da coleta sistemática de dados demográficos e de saúde para populações

indígenas.

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..........................................................................
Tabela 1 - Descrição da história reprodutiva das mulheres Kaiabi por coortes de nascimento
Características das coortes Coorte Coorte Coorte Coorte Coorte Coorte
1 2 3 4 5 6
Ano de nascimento das mulheres 1950-54 1955-59 1960-64 1965-69 1970-74 1975-79
Número de mulheres 12 9 16 11 23 31
Número de mulheres que tiveram filhos 12 9 16 11 23 31
Número de filhos nascidos vivos 84 78 137 58 105 92
Média de filhos nascidos vivos até idade x 7,00 8.67 8,56 5,72 4,52 2,97
Idade no final do acompanhamento da coorte 45-49 40-44 35-39 30-34 25-29 20-24
Média de idade ao nasc. do 1º fiho vivo (anos) 18,7 16,8 15,4 17,5 17,0 16,0
Intervalo médio entre os nascimentos (anos) 2,94 2,83 2,64 3,10 2,40 2,53
Fonte de dados brutos: USMA - UNIFESP/EPM

Tabela 2 - Resumo dos Principais Indicadores Demográficos dos Kaiabi (MT, Brasil)
no período 1970-2007
Indicadores 1970-79 1980-89 1990-99 2000-07
Taxa Bruta de Natalidade (por mil) 46,3 52,9 55,9 51,0
Taxa de fecundidade total (média de filhos nascidos vivos por mulher) 5,7 8,4 9,5 7,8
Contribuição das mulheres < de 30 anos p/ a fecundidade total (%) 80 60 59,3 60,4
Média de idade ao nascimento do 1º filho vivo (em anos) 17 15,5 15,5 16,5
Intervalo médio entre os nascimentos vivos (em anos) 2,8 2,7 2,4 2,5
Taxa de crescimento médio anual (por cem) 3,3 4,8 5,3 4,4
Fonte de dados brutos: Projeto Xingu/DMP/UNIFESP/EPM

Tabela 3
Parturições médias, parturições médias acumuladas, descendência final, segundo a idade e taxas brutas de reprodução
por coortes de nascimento de mulheres Kaiabi observadas até 2007
Grupos Etários Coorte 1 Coorte 2 Coorte 3 Coorte 4 Coorte 5 Coorte 6
fx fx ac. fx fx ac. Fx fx ac. fx fx ac. fx fx ac. fx fx ac.
12 a 14 0,17 0,17 0,22 0,22 0,44 0,44 0,09 0,09 0,22 0,22 0,13 0,13
15 a 19 0,83 1,00 1,44 1,67 1,63 2,06 1,18 1,27 1,39 1,61 1,68 1,81
20 a 24 1,58 2,58 1,89 3,56 1,94 4,00 1,36 2,64 1,87 3,48 1,77 3,58
25 a 29 1,75 4,33 1,89 5,44 2,06 6,06 1,55 4,18 1,61 5,09 1,58 5,16
30 a 34 1,17 5,50 1,33 6,78 1,56 7,63 1,55 5,73 1,39 6,48
35 a 39 1,08 6,58 1,22 8,00 1,38 9,00 1,09 6,82
40 a 44 0,42 7,00 0,89 8,89 0,31 9,31
45 a 49 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Descendência Final _ 7,00 _ 8,89 _ 9,31 _ _ _ _ _ _
TBR 3,4 _ 4,3 _ 4,5 _ _ _ _ _ _ _
Fonte de dados brutos: Projeto Xingu, Universidade Federal de São Paulo
Figura 1- Distribuição percentual das taxas específicas de fecundidade das mulheres Kaiabi, por
períodos, entre 1970-2007

25,0

20,0
Proporções

1970-79
15,0
1980-89
1990-99
10,0
2000-07

5,0

0,0
12-14 15-19 20-24 25-29 30-34 35-39 40-44 45-49
1970-79 13,5 23,0 23,5 20,0 7,9 10,7 1,4
1980-89 3,6 15,9 18,8 21,7 16,9 14,6 8,5
1990-99 3,5 17,2 19,2 19,4 17,2 13,7 9,8
2000-07 3,3 15,3 21,0 20,8 19,2 13,0 7,5
Grupos Etários

Figura 2- Parturições m édias acum uladas de seis coortes de nascim ento de m ulheres Kaiabi
(MT, Brasil) observadas em 2007

10,00

9,00
Parturições Médias Acumuladas

8,00
7,00 Coorte 1
Coorte 2
6,00
Coorte 3
5,00
Coorte 4
4,00
Coorte 5
3,00 Coorte 6
2,00
1,00
0,00
12 a 14 15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49

Coorte 1 0,17 1,00 2,58 4,33 5,50 6,58 7,00


Coorte 2 0,22 1,67 3,56 5,44 6,78 8,00 8,89
Coorte 3 0,44 2,06 4,00 6,06 7,63 9,00 9,31
Coorte 4 0,09 1,27 2,64 4,18 5,73 6,82
Coorte 5 0,22 1,61 3,48 5,09 6,48
Coorte 6 0,13 1,81 3,58 5,16
Grupos Etários

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