Você está na página 1de 237

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

MANUELA MACHADO RIBEIRO VENANCIO

OS KARIRI-XOCÓ DO BAIXO SÃO FRANCISCO:


organização social, variações culturais e retomada das terras do território
de ocupação tradicional

Niterói
2018
2

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Manuela Machado Ribeiro Venancio

OS KARIRI-XOCÓ DO BAIXO SÃO FRANCISCO:


organização social, variações culturais e retomada das terras do território
de ocupação tradicional

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Doutora, sob a orientação da Prof.ª Doutora
Eliane Cantarino O’Dwyer.

Niterói
2018
3
4
5

Aos Kariri-Xocó, com afeto.

Bocuwiá! Vamo-nos!
6

AGRADECIMENTOS

Aos Kariri-Xocó. Em especial: pajé Júlio Queiroz Suíra, Kayrrá e família, Pawanã,
Nary, Denizia, Nhenety e Neto;

À Eliane Cantarino O’Dwyer, por sua valiosa contribuição e dedicação em me


orientar;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa


de doutorado. “O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento
001”;

Aos Pataxó: Tamikuã, Twry, Arassari e Pacari;

À Sheila Potiguara;

À Alik Wunder;

Ao Lamarks;

À Leila;

Aos amigos Rodrigo e Breno;

Às amigas Cinthia, Luiza e Mariana;

Às demais amigas do coração;

Ao meu primo Fábio;

Às minhas irmãs e ao meu irmão;

À Capoeira Angola que na “volta que o mundo dá” trouxe-me a amizade de Roberta e
o amor de Filipe Bico Fino;

Ao Filipe pelo companheirismo, respeito, carinho e compreensão;

À vida por ser tão generosa comigo, sobretudo, por ser filha de pessoas tão especiais:
Magda e Marco Antonio;
7

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APOINME: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e


Espírito Santo.
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
CIMI: Conselho Indigenista Missionário.
CODEVASF: Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba.
FUNAI: Fundação Nacional do Índio.
FUNASA: Fundação Nacional de Saúde.
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
SPI: Serviço de Proteção aos Índios.
SUVALE: Superintendência do Vale do São Francisco.
8

RESUMO

VENANCIO, Manuela Machado Ribeiro. Os Kariri-Xocó do Baixo São Francisco:


organização social, variações culturais e retomada das terras do território de ocupação
tradicional. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.

Esta tese é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada junto aos Kariri-Xocó, grupo
indígena do Baixo Rio São Francisco. A aldeia Kariri-Xocó localiza-se no município de Porto
Real do Colégio, estado do Alagoas. Uma aldeia com uma população numerosa estimada em
três mil e quinhentos índios, segundo informação da Funai. A dispersão da população Kariri-
Xocó é sistemática, uma vez que há indígenas que vivem de modo permanente na aldeia;
outros, contudo, migram para fora da reserva indígena indo morar em cidades dos estados de
Sergipe, da Bahia, do Distrito Federal (Brasília) e de São Paulo. Assim, a pesquisa etnográfica
realizada nos anos de 2016 e 2017 foi desenvolvida tanto no âmbito da aldeia como fora dela,
ao realizar observação participante com indígenas que se encontram na capital paulista. O
objeto de estudo da tese foram as interações sociais intra-aldeia e intergrupos, isto é, as
relações sociais entre os próprios Kariri-Xocó e as relações sociais oriundas do contato
interétnico entre Kariri-Xocó e cabeças secas. Este termo que é empregado pelos indígenas
serve para adjetivar o “homem branco”. Para os Kariri-Xocó, os cabeças secas não detêm o
saber sobre o “regime do índio”, ou seja, da “ciência do índio” que se apresenta no Ouricuri,
espaço sagrado interditado ao não indígena. Por meio da observação participante constataram-
se variações e disputas internas que configuram a existência de um faccionalismo Kariri-
Xocó. As relações entre esses indígenas baseiam-se em um sistema classificatório do
parentesco, disputas políticas, situações rituais e organização para retomada de suas terras. As
interações sociais entre esses indígenas e os cabeças secas podem ocorrer por meio do
matrimônio, mas também em situações sociais diversas, a exemplo do “toré público”
realizado em instituições de ensino – escolas e universidades –, entre outros espaços
frequentados por não indígenas. Em outros contextos, o contato interétnico se dá de maneira
conflitante, configurando uma situação de “fricção interétnica”, como nos conflitos de terra
que compõem o território de ocupação tradicional Kariri-Xocó, em que indígenas,
“fazendeiros” e/ou “posseiros”, inclusive com episódio de violência, travam acirradas
disputas fundiárias. Esta tese é uma contrapartida à expectativa dos Kariri-Xocó de
textualização das suas experiências de vida e pretende igualmente contribuir com os estudos
antropológicos voltados às populações indígenas do Nordeste.

Palavras-chave: Povos indígenas do Nordeste. Etnicidade. Territorialização. Organização


social. Variações culturais.
9

ABSTRACT

VENANCIO, Manuela Machado Ribeiro. The Kariri-Xocó of Baixo São Francisco (Saint
Francis Lowlands): social organization, cultural variations and repatriation of occupied
traditional territories. 2018. Thesis – Doctorate Degree in Anthropology – Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense (Institute of Human
Sciences and Philosophy, Fluminense Federal University), Niterói, 2018.

This thesis is the result of an ethnographic study about the Kariri-Xocó, an indigenous group
from the Baixo Rio São Francisco (Saint Francis River Lowlands). The Kariri-Xocó village is
situated in the county of Porto Real do Colégio (Royal Port College), in the State of Alagoas,
Brazil. The indian village Kariri-Xocó is located in the town of Porto Real do Colégio, state
of Alagoas. A village with a large population estimated at three thousand five hundred
Indians, according to Funai. The dispersion of the Kariri-Xocó population is systematic, given
that there are Indians who live permanently in the village and others who migrate away from
the reservation to live in cities in the States of Sergipe, Bahia, the Federal District of Brasilia
and São Paulo. Therefore, the ethnographic study realized in the years 2016 and 2017 was
developed as much within the village as out with it, in order to observe the Indian participants
who lived in the city of São Paulo. The objective of the study of the thesis were the social
interactions within the village and other groups, namely, the social relationships of the Kariri-
Xocó themselves and the social relationships originating from interethnic contact between the
Kariri-Xocó and cabeças secas (dry heads). This term is used by the Indians to describe the
“white man”. To the Kariri-Xocó, the cabeças secas (dry heads),don’t possess the knowledge
of the “Indian regime”, that is, the “science of the Indian” that is presented in the Ouricuri, the
sacred space banned to non-Indians. By means of the participant observation, internal
variations and disputes were found that showed the existence of a Kariri-Xocó factionalism.
The relationships among these Indians are based on a ranking system of parentage, political
disputes, ritual situations and organization to take back their land. The social interactions
between these Indians and the cabeças secas (dry heads) can occur due to marriage, but also
in diverse social situations, such as public gatherings taking place in institutes of education –
schools and universities – and other places frequented by non-Indians. In other contexts, the
interethnic contact manifests in a conflicting way, setting up a situation of “interethnic
friction”, such as the conflict over the land that is the traditional territory occupied by the
Kariri-Xocó, where the Indian “farmers and/or “squatters” wage fierce land disputes,
including episodes of violence. This thesis is a counterpart to the expectation of the Kariri-
Xocó in the textualization of their life experiences and equally intends to contribute to the
anthropological studies focused on the indigenous populations of the Northeast of Brazil.

Keywords: Indigenous people of the Northeast. Ethnicity. Territorialization. Social


organization. Cultural variations.
10

RÉSUMÉ

VENANCIO, Manuela Machado Ribeiro. Les Kariri-Xocó du Baixo São Francisco:


organisation sociale, variations culturelles et la reprise des terres du territoire d’
occupation traditionnelle. 2018. Thèse (Doctorat d’Anthropologie) – Institut de Sciences
Humaines et Philosophie, Université Fédérale Fluminense, Niterói, 2018.

Cette thèse est le résultat d’une recherche ethnographique qui s’est tenue ensemble aux Kariri-
Xocó, groupe indigène du Baixo Rio São Francisco. Le village Kariri-Xocó se situe dans la
municipalité du Porto Real do Colégio, dans l’état d’Alagoas. C’est un village où il y a une
population nombreuse avec environ trois mille cinq cents d’indiens, selon les informations de
la Funai. La dispersion de la population Kariri-Xocó est systématique, puisque il y a des
indigènes qu’habitent d’une manière permanente dans le village, des autres, néanmoins,
migrent hors de la réserve indigène et ils vont habiter en ville de Sergipe, de la Bahia, du
Distrito Federal (Brasília) et de São Paulo. Ainsi, la recherche ethnographique réalisée
pendant les années 2016 et 2017 a été développée tant dans le cadre du village qu’au-delà, en
réalisant des observations participante avec les indigènes qui sont à la ville de São Paulo. Les
objets d’étude de cette thèse ont été les interactions sociales dans le village et intergroupe,
c’est-à-dire, les relations sociales entre les propres Kariri-Xocó et les rapports sociaux
originaires du contact interethnique entre Kariri-Xocó et « Tête Sèche ». Ce terme utilisé par
les indigènes il qualifie les «Homme Blancs». D’accord les Kariri-Xocó, les têtes sèches ne
détiennent pas le savoir sur le « regime de l’indigène », c’est-à-dire, de la «science de
l’indigène» qui a lieu sur l’Ouricuri, lieu sacré interdit au non indigène. Parmi de
l’observation participante ont constaté des variations et de conflits internes que configurent
l’existence d’un factionnalisme Kariri-Xocó. Les rapports entre les indigènes se basent sur un
système classificatoire des rapports de parenté, querelles politiques, situations rituelles et
organisation pour la reprise de ses terres. Les interactions sociales entre ces indigènes et les
têtes sèches peuvent se passer parmi du mariage, mais aussi dans des situations sociales
diverses, par exemple au «Toré Public» réalisé dans les institutions d'enseignement – écoles
et universités –, entre des autres espace fréquenté pour non-indigène. Dans d’autres contextes,
le contact interethnique se passe de manière contradictoire, en configurant une situation de
“friction interethnique”, comme aux conflits de terre que composent le territoire d’occupation
traditionnel Kariri-Xocó, où des indigènes, “fermiers” et/ou “occupants”, inclus avec des
épisodes de violence, avec des luttes féroces foncières. Cette thèse est une contrepartie à
l’expectative des Kariri-Xocó avec l’objectif d’enregistrer ses expériences de vie et elle a
l’intention d’également contribuer avec les études anthropologiques branchés aux populations
indigènes du Nord-est.

Mot-clé: Peuple indigène du nord-est brésilien. Ethnicité. Territorialisation. Organisation


Sociale. Organização social. Variations culturelles.
11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1 – KARIRI-XOCÓ: PROCESSOS SÓCIO-HISTÓRICOS NA
CONFIGURAÇÃO DE FRONTEIRAS ÉTNICAS ................................................................ 25
1. 1 Relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em Porto Real do Colégio ........... 32
1.2 As narrativas Kariri-Xocó .............................................................................................. 42
CAPÍTULO 2 – ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PARENTESCO ............................................ 50
2.2 Parentesco e lideranças ................................................................................................... 69
2.3 Parentesco e religião: legitimidade para liderar ............................................................. 78
2.4 Esferas de autoridade em Kariri-Xocó ........................................................................... 83
2.5 Parentesco e eleições 2016 ............................................................................................. 91
2.5.1 Resultados das eleições ........................................................................................... 96
CAPÍTULO 3 - OURICURI E TORÉ KARIRI-XOCÓ ........................................................ 101
3.1 Fronteiras étnicas no espaço sagrado do Ouricuri ........................................................ 114
3.2 O Toré Kariri-Xocó ...................................................................................................... 119
3.3 Andar no meio do mundo: a difusão do Toré Kariri-Xocó fora da aldeia.................... 129
3.4 O Toré Kariri-Xocó e suas “distintas plateias” ............................................................ 137
3.4.1 “Aldeia vertical” e o calçadão em Copacabana ..................................................... 140
3.4.2 Lumiar ................................................................................................................... 149
3.4.3 “Festival de cultura indígena” ............................................................................... 152
CAPÍTULO 4 – TERRITÓRIO DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL KARIRI-XOCÓ......... 156
4.1 Conflitos territoriais e retomadas das áreas de ocupação tradicional ........................... 162
4.2 A Retomada da Sementeira .......................................................................................... 168
4.3 Em direção à Sementeira .............................................................................................. 170
4.4 Documentos oficiais e a reivindição indígena ao território tradicional ........................ 172
4.5 Socioespacialidade da aldeia Kariri-Xocó: à época da Fazenda Modelo (Sementeira) e
no presente etnográfico ....................................................................................................... 176
4.6 Retomada do Cercado Grande ...................................................................................... 192
4.7 Retomadas no Povoado Sampaio ................................................................................. 194
4.8 Divisão de gênero na Retomada ................................................................................... 208
4.9 Retomada Menina do Rio ............................................................................................. 211
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 218
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 224
DOCUMENTOS DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS (SPI): ............................. 230
“RELATÓRIO DE DENÚNCIA” DO CONSELHO INDÍGENA MISSIONÁRIO: ............ 231
SITES CONSULTADOS: ...................................................................................................... 232
ANEXO: DISCURSO DE PAWANÃ A ALUNOS DE UMA ESCOLA NO ESTADO DE
SÃO PAULO .......................................................................................................................... 234
INTRODUÇÃO

A tese intitulada “Os Kariri-Xocó do Baixo São Francisco: organização social,


variações culturais e retomada das terras do território de ocupação tradicional” foi
desenvolvida a partir de pesquisa etnográfica sobre os Kariri-Xocó, população indígena da
beira do Baixo Rio São Francisco, no município de Porto Real do Colégio, Alagoas.
Inicialmente, previa-se um estudo antropológico voltado às crianças Kariri-Xocó, tendo como
referência os estudos da antropologia das crianças indígenas. Contudo, na experiência do
trabalho de campo, o antropólogo “participa da vida dos grupos” em que “a sociedade que
acolhe faz da estada do pesquisador em seu seio um acontecimento que transcorre dentro do
jogo do momento, dentro da história local” (BENSA, 1998, p. 48). Ao iniciar a observação
participante (segundo semestre de 2016) na denominada Aldeia Kariri-Xocó1 fui inserida em
um contexto etnográfico marcado de modo intenso pelas eleições municipais, nas quais os
Kariri-Xocó apresentaram cinco vereadores indígenas. Durante um mês (setembro), a vida dos
Kariri-Xocó voltou-se às campanhas eleitorais na aldeia. Como era impossível desviar os
olhos a tal situação de campo e conversar sobre outros assuntos com eles, optei por realizar
uma análise situacional que passou a orientar as minhas descrições etnográficas. A análise
situacional privilegia os processos sociais (VAN VELSEN, 1987) em que os eventos
observados em campo “devem ser apresentados situacionalmente” (p. 369), isto é, em seu
contexto social. A análise situacional, diferentemente do estruturalismo que enfatiza a
“uniformidade” social, está atenta à variação, à mudança e aos conflitos (ibidem, p. 355).
Nas condições de trabalho de campo, observo que a política Kariri-Xocó é
internamente organizada em um sistema de parentesco em que os candidatos indígenas e seus
cabos eleitorais mantêm entre si filiações de descendência matrilinear ou patrilinear. Isso faz
com que a política Kariri-Xocó esteja envolvida em uma lealdade entre parentes
(GLUCKMAN, 1981 [1940]) de um mesmo tronco. Defino tronco a partir das explicações
Kariri-Xocó que ao empregarem tal termo referem-se à construção das linhas de descendência
que são seus bisavós e avós maternos ou paternos; e desses antepassados herdam os nomes de
família. O termo tronco igualmente se refere às origens étnicas dos ascendentes, tais como
Kariri, Xocó, Fulni-ô, Pankararu, Natú e Karapotó.

1
Ao longo desta tese apresento categorias, frases e expressões Kariri-Xocó que serão grafadas em itálico.
Citações e termos referentes à bibliografia consultada virão entre aspas.
13

A formação da aldeia Kariri-Xocó está envolvida em processos étnico-históricos


complexos que vão desde a atuação das missões religiosas à ordem fundiária estabelecidas no
“Vale do São Francisco” (HOHENTHAL, 1960). Segundo relatos orais Kariri-Xocó,
determinadas populações indígenas do Nordeste tiveram suas terras expropriadas por
fazendeiros e se refugiaram em Porto Real do Colégio, compartilhando assim do mesmo
espaço territorial formado, no caso, pela aldeia Kariri-Xocó. Dentre as populações indígenas
que foram acolhidas pelos Kariri-Xocó estão, segundo visão deles próprios, os Pankararu,
Karapotó, Fulni-ô e Tingui-Botó. Cada um desses troncos estabeleceu alianças matrimoniais
com os Kariri-Xocó gerando novas linhas de filiação na aldeia. Ao conversar com os Kariri-
Xocó sobre suas genealogias sempre recorreram ao termo tronco como uma metáfora do
parentesco (ARRUTI, 1996). Assim ao explicarem a formação dos grupos familiares Kariri-
Xocó se referem a um antepassado em comum de descendência materna ou paterna. O
emprego da terminologia nativa do parentesco pelo vocábulo tronco é a forma encontrada
pelos Kariri-Xocó para fazer referência a formação de cada grupo familiar por eles
identificados como moradores da aldeia. Os troncos são aqueles ascendentes (homens e
mulheres) que estabeleceram relações exogâmicas entre uma ou diversas etnias (Kariri com
Kariri, Kariri com Xocó, Kariri com Pankararu, Kariri com Fulni-ô e assim por diante), dando
origem aos seus descendentes que atualmente vivem na aldeia Kariri-Xocó. O tronco é um
grupo familiar que se iniciou com a aliança entre dois antepassados do sexo masculino e
feminino, cuja reprodução do grupo familiar é feita pelos mais novos, ou seja, os
descendentes. O tronco é utilizado como uma espécie de sobrenome que os Kariri-Xocó
portam. Por exemplo, o sobrenome do pajé Júlio Queiroz Suíra faz menção ao tronco paterno
ao qual ele pertence: os Suíra. Todos os seus filhos (homens e mulheres) recebem esse
sobrenome (Suíra). Portar o nome desse tronco significa adquirir um status de pajelança, pois
os ascendentes paternos de Júlio foram pajés Kariri.
No caso dos índios Pankararu da aldeia Brejo dos Padres (Pernambuco) empregam a
categoria “Troncos Velhos” para se referirem aos seus antepassados. Acontece que o emprego
de tal categoria não apresenta similitude com a forma como os Kariri-Xocó utilizam a
categoria tronco. Enquanto os indígenas de Porto Real do Colégio relacionam a noção de
tronco a grupos familiares Kariri-Xocó de descendência materna e/ou paterna observados em
sua aldeia, os Pankararu estabelecem uma correlação entre a categoria “Troncos Velhos” e
“Pontas de Rama” (ARRUTI, 1996, 2004) com relações políticas e territoriais. O etnônimo
Pankararu é resultado da “mistura” que formou “historicamente o grupo” em que uma série de
etnônimos se associam aos Pankararu, como os Pankararé, os Kambiwá e os Kapinawá. Ainda
14

segundo Arruti, há grupos indígenas originados dos Pankararu, de acordo com os termos das
“pontas de rama” entendida como a constituição de um “um novo grupo” étnico (ARRUTI,
1996, p. 50) formado por indígenas que se retiraram da aldeia Brejo dos Padres para
constituírem, por exemplo, os Geripancó. É a partir dessa situação que as categorias “Troncos
Velhos” e “Pontas de Rama” são empregadas, ou seja, os Pankararu são vistos como “Troncos
Velhos”, pois os Geripancó se constituíram como uma “ponta de rama” deste primeiro grupo
(ARRUTI, 1996, 2004).
Na aldeia Kariri-Xocó, a noção de tronco abrange (i) a unidade social resultante das
trocas matrimoniais entre etnias indígenas do Nordeste; (ii) e a unidade social composta de
indígenas relacionados por filiação unilinear materna e/ou paterna e por afinidade, na qual é
incorporada a entrada de não indígenas ao grupo familiar.
A organização social do parentesco Kariri-Xocó funde-se à esfera política. M. Fortes e
E.E. Evans-Pritchard (1981 [1940]), já consideraram “o papel desempenhado” pelo sistema de
parentesco na “estrutura política” de alguns grupos africanos. Na disputa eleitoral à Câmara
de Porto Real do Colégio, candidataram-se cinco Kariri-Xocó de diversos troncos em disputa
e aliança entre si. Assim, dos cinco candidatos indígenas, dois se definem do mesmo tronco
familiar e se tratam entre si como primos, pois, segundo eles, suas avós são do mesmo tronco
familiar. Há ainda candidatos que se definem, pelas relações de afinidade, como cunhados.
Esses laços de descendência e/ou de afinidade estão imersos nas situações sociais e nos
acontecimentos que mobilizam a vida na aldeia, o que fez com que eu investigasse a
organização social do parentesco Kariri-Xocó para entender o funcionamento da política
eleitoral na aldeia.
Por conseguinte, no contexto da pesquisa de campo, pode-se dizer que o domínio da
“política” assume diversas conotações: (i) disputas eleitorais com participação dos candidatos
indígenas; (ii) divisões e conflitos internos (iii) em que a política funciona como um princípio
de cisão e fusão informados pelas regras e estratégias de parentesco, entre outros; (iv) “[...]
formas de liderança [...] associados aos diferentes papéis reconhecidos socialmente [como
pajé e cacique], bem como a interrelação entre tais papéis” (OLIVEIRA, 2015, p. 131). 2
Na aldeia Kariri-Xocó, o poder é centralizado nas mãos do pajé e do cacique, embora
haja o Conselho Tribal formado por anciãos pertencentes aos diversos troncos familiares. Às

2
“Existem dois tipos principais de fatores ordenadores da vida política: as formas de liderança mais
propriamente políticas existentes, referindo-se isso a conteúdos atribuídos e às regras e contextos associados aos
diferentes papéis reconhecidos socialmente, bem como a interrelação entre tais papéis [“capitão” e “chefe de
grupo vicinal”]; segundo, ação de unidades políticas (facções) por meio das quais interesses divergentes e
diferentes projetos sociais se expressam e se articulam.” (OLIVEIRA, 2015, p. 131-132)
15

autoridades pajé e cacique são atribuídos poderes contrastantes, embora complementares.


Segundo os Kariri-Xocó, o pajé é um líder espiritual e o cacique é o chefe político. Contudo,
essas esferas de autoridade atuam conjuntamente e até mesmo se confundem entre si, uma vez
que o pajé Júlio Queiroz Suíra afirma que qualquer decisão que pese sobre o seu povo é
preciso de sua avaliação. A atuação religiosa do pajé se confunde com a dimensão política,
pois conforme Júlio Queiroz Suíra, os Kariri-Xocó têm um espaço sagrado (denominado
Ouricuri) em que praticam seus rituais. Previamente a qualquer escolha política (a exemplo de
uma retomada de terra), pajé Júlio afirma consultar a religião praticada no Ouricuri que,
segundo ele, dirá qual conduta deverá seguir.
O direito de sucessão de pajé e de cacique ocorre por linhas de descendência paterna
e/ou materna. A ascensão ao cargo de líder só se dá quando do falecimento da liderança
anterior, já que esse papel de autoridade é considerado para toda a vida. Contudo, o direito de
sucessão não é a única garantia para que um homem se torne pajé ou cacique. Pelo menos
essa é a explicação fornecida por pajé Júlio Queiroz Suíra para legitimar seu filho Cícero
Queiroz Suíra como cacique Kariri-Xocó. Para Júlio, o cacique precisa ter conhecimento de
oitenta por cento da religião para que possa governar a aldeia a partir de um “regime de
índio”, que na concepção deles é oposta ao regime do branco. Por “regime de índio” entende-
se um saber particular atrelado ao Toré e ao Ouricuri, vistos como “ciência do índio, aqui
entendida como um corpo de saberes dinâmicos sobre o qual fundamenta-se o segredo da
tribo. São saberes proibidos aos estrangeiros – principalmente os civilizados, mas também,
em um certo grau, a índios de outros grupos. [...]” (GRÜNEWALD, 2004, p. 166-167, grifo
do autor).
A pesquisa etnográfica revelou variações internas (BARTH, 2000 [1969]) na aldeia
Kariri-Xocó em que esses indígenas não compartilham das mesmas ideias e dos mesmos
comportamentos. Assim, existe um faccionalismo instaurado por diferentes “unidades
políticas (facções) [...] das quais interesses divergentes e diferentes projetos sociais se
expressam e se articulam” (OLIVEIRA, 2015, p. 132). Essas facções são observadas de
sobremaneira nos momentos das retomadas das terras Kariri-Xocó.
O/a antropólogo/a ao estar em trabalho de campo é envolvido em situações em que
seus informantes atribuem ao observador determinados papéis (BENSA, 1998, p. 48) 3. No
meu caso, cheguei à aldeia Kariri-Xocó não somente em um contexto de eleições, mas

3
Segundo Alban Bensa, “[...] o que é mostrado e dito [pelo pesquisador] tece progressivamente uma história, a
dos lugares e dos papéis sucessivos atribuídos ao observador, e também a das estratégias retóricas dos
informantes.” (1998, p. 48)
16

também em um momento de retomada da terra, na qual era muito difícil deixar escapar esses
eventos do registro etnográfico. Minha primeira ida à aldeia esteve condicionada à
autorização do pajé Júlio Queiroz Suíra e em ser acompanhada por um índio Kariri-Xocó, no
caso, Kayrrá. Este último levou-me a uma recente retomada de terra, localizada em um
povoado conhecido como Sampaio, cuja localização limita-se ao perímetro demarcado da
Terra Indígena Kariri-Xocó. A ida à retomada possibilitou que eu ampliasse a rede de
interlocutores em campo, ao ponto de ser convidada a dormir no espaço da terra
reconquistada, sendo assim inserida em uma disputa territorial entre indígenas e cabeças
secas (isto é, os brancos). Contudo, por meio da pesquisa etnográfica pude constatar conflitos
entre os Kariri-Xocó que discordam entre si sobre a retomada no povoado Sampaio.
Considero que as disputas Kariri-Xocó geram processos de fissão e fusão (ERIKSEN, 2001) e
variações internas (BARTH, 2000 [1969]).
Na retomada no povoado Sampaio, mais especificamente no período noturno, os
Kariri-Xocó realizaram o Toré. Isso levou-me a registrar o ritual. Porém, tal prática ritual
ultrapassa fronteiras geográficas e sociais, em que os Kariri-Xocó formam grupos de
apresentação ritual do Toré para serem exibidos em contexto urbano, isto é, fora da aldeia.
Esses grupos são formados por linhas de descendência matrilinear e/ou patrilinear. A pesquisa
etnográfica evidenciou diferenças entre os grupos de apresentação ritual do Toré. Cabe dizer
que Toré significa cantos sagrados, sendo que observei os grupos de apresentação ritual
cantarem músicas diferentes, vestirem indumentárias diversas e pintarem o corpo de maneira
distinta entre si.
Conheci os Kariri-Xocó por meio desses grupos de apresentação ritual do Toré,
especificamente, o Caça Feita. Para discorrer sobre isso é necessário um recorte diacrônico
que remete à minha atuação profissional prévia e à vida de Kayrrá fora da aldeia Kariri-Xocó.
A formação da aldeia Kariri-Xocó esteve envolvida em processos etno-históricos de
enorme complexidade instituídos na região do “Vale do São Francisco” (HOHENTHAL,
1960). As missões religiosas engendraram um “processo histórico de aldeamento” (MATA,
2014, p. 41) dos povos indígenas do Nordeste. Em relação à atuação das frentes missionárias
no Baixo São Francisco, particularmente, no município de Porto Real do Colégio, houve a
construção de um aldeamento conhecido como Urubumirim. A fundação desse aldeamento foi
viabilizada por uma doação de terra de Sebastião de Castro Caldas, então governador de
Pernambuco, ao Colégio dos Jesuítas do Recife em 1708 (cf. MATA, 2014, p. 46).
Em trabalho de campo, estabeleci diálogo duradouro com Nhenety Kariri-Xocó, tendo
sido o principal interlocutor da pesquisa etnográfica. Nhenety é um intelectual indígena, pois
17

além de recorrer à memória social dos Kariri-Xocó, utiliza documentos e estudos e faz uso da
escrita para transmitir textualmente o conhecimento indígena. Nhenety é “especialista”
(GOODY, 1995) na transmissão de conhecimento relativo à cultura e à organização social
Kariri-Xocó. Essa transmissão de saber se dá tanto pela oralidade quanto pela escrita. Ao
conversar com ele, contava muitas histórias sobre a formação do povo Kariri-Xocó, suas
genealogias e tradições, ao mesmo tempo em que citava fontes bibliográficas produzidas por
estudiosos, cujas pesquisas referem-se aos Kariri-Xocó e às demais populações indígenas do
Baixo São Francisco. Desse modo, Nhenety afirma que no aldeamento Urubumirim foram
reunidos indígenas Kariri, Karapotó, Aconã, dentre outros (NHENETY, 2013, p. 16).
Transcorridos meio séculos, em 1758, Marquês de Pombal anula o poder das ordens religiosas
sobre os aldeamentos (MATA, 2014, p. 54).4 Em 1850 é promulgada a Lei da Terra (ibidem,
2014, p. 63) que legitima uma política de venda dos lotes de terras devolutas, muitas
localizadas no território de ocupação tradicional indígena. Assim, mais uma vez, os indígenas
de Porto Real do Colégio viram suas terras serem ocupadas e/ou usurpadas por não índios.
O mesmo ocorria com os Xocó da Ilha de São Pedro (Sergipe) que no ano de 1882
tiveram suas terras expropriadas pelas mãos do coronel João Fernandes de Brito. Conforme os
relatos ouvidos em trabalho de campo, os Xocó retiraram-se desse território de ocupação
tradicional e ao navegarem em canoas no rio São Francisco aportaram em Porto Real do
Colégio. Kariri e Xocó possuem denominadores culturais em comum, no caso, o Toré e o
Ouricuri. Mas, a partir do momento em que os Kariri acolheram os Xocó, houve a ocupação
de um mesmo território e o estabelecimento de alianças matrimoniais. À época (período
anterior aos anos 1980), os Kariri e os Xocó viviam em uma rua periférica denominada “Rua
dos Caboclos” ou “Rua dos Índios”.
É interessante observar que em situações sociais contemporâneas, os trabalhadores
rurais de engenhos e usinas açucareiras de Pernambuco e outras do Nordeste brasileiro, ao
serem expulsos das grandes propriedades em um processo sistemático de expropriação,
sobretudo, nos anos 1970, 1980, vão morar nas “pontas de ruas” dos núcleos urbanos vizinhos
(SIGAUD, 2005). No caso da Rua dos Índios era evidente que essa “ponta de rua”
simbolizava aqueles que situavam-se em posições mais baixas da hierarquia social de Porto
Real do Colégio (ibidem, p. 259), no caso, os caboclos, termo estigmatizante dado aos índios,

4
Parece haver uma divergência histórico-temporal, uma vez que Arruti (1996) afirma: “No último quartel do
séc. XVIII a política e a administração estatais passam por transformações relacionadas ao projeto iluminista
imposto por Pombal que produzem eco na política de conquista colonial. Em função das disputas entre jesuítas e
fazendeiros de um lado (principalmente no Maranhão e Grão Pará), e das tentativas de reordenar as formas
econômicas na colônia de outro, é extinta a escravidão indígena e, em 1775 é retirado o poder temporal dos
missionários sobre os aldeamentos [...]” (p. 31).
18

pois eram vistos como “misturados” à população regional e sem identidade própria, nem
brancos e nem índios, e o termo Rua dos Índios começa a ser utilizado em processo de
afirmação identitária. O final da Rua dos Índios encontra-se com a beira do rio São Francisco
que indica o término da cidade de Porto Real do Colégio, já que as águas do rio delimitam a
estrema da cidade.
Enquanto moravam na Rua dos Índios, os Kariri e os Xocó foram atingidos por uma
política econômica desenvolvimentista voltada à agricultura e à irrigação do Baixo São
Francisco, mais especificamente, às vargens de arroz em que os índios passaram a trabalhar
como parceleiros (MATA, 2014) nas áreas que antes lhe pertenciam. Assim, tais áreas de
plantação de arroz localizavam-se no território de ocupação tradicional indígena e as
atividades de plantio eram supervisionadas por fazendeiros (denominados “donos das lagoas”)
e pela empresa pública CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco), responsável pela implantação e pelo manejo do projeto de irrigação da região
(MATA, 2014). Dentre as propriedades localizadas no território de ocupação tradicional
Kariri-Xocó encontrava-se a Sementeira (nome dado pelos locais de Porto Real do Colégio)
ao “Campo Experimental das Sementes” (MATA, 2014, p. 87-88), supervisionado pela antiga
SUVALE (Superintendência do Vale do São Francisco, 1967), posteriormente substituída
pela CODEVASF em 1974 (ibidem, p. 208, nota de rodapé 5).
Os relatos dos Kariri-Xocó, coletados em trabalho de campo entre 2016 e 2017,
remetem ao período em que esses indígenas trabalharam nos arrozais, sendo por eles
adjetivado como uma vida sofrida. Além do trabalho nas vargens em que homens, mulheres e
crianças Kariri-Xocó empregavam sua mão de obra, as mulheres produziam cerâmica
indígena que era vendida nas cidades vizinhas a Porto Real do Colégio. Esse cenário tende a
se modificar em 1978, ano em que os Kariri e os Xocó unificam-se em um só etnônimo
(Kariri-Xocó) e decidem reivindicar uma parte de suas terras, especificamente, a Sementeira.
Para tanto, realizam um ato de retomada da Sementeira, considerado por esses indígenas
como bem sucedido, uma vez que houve negociação da área com a Funai, o Ministério do
Interior e a CODEVASF para a criação da aldeia Kariri-Xocó.
À época em que trabalhavam a meia nos arrozais da CODEVASF e viviam na Rua dos
Índios, os Kariri-Xocó e a CODEVASF mantinham uma relação de conflito, uma vez que os
indígenas estavam acostumados ao plantio tradicional e não às novas técnicas de plantação
introduzidas pela empresa estatal (MATA, 2014, p. 218). Em 1986, já vivendo na aldeia
19

Kariri-Xocó, os índios resolveram não mais trabalhar nas plantações de arroz5, buscando
assim novas formas de trabalho. A alternativa Kariri-Xocó na falta de terra e visando
contornar a falta de emprego no município de Porto Real do Colégio é a saída temporária da
aldeia para outros estados como Sergipe, Bahia, São Paulo e Brasília. As atividades
prevalentes desenvolvidas fora da aldeia são: como operários em fábricas têxteis, pedreiros na
construção civil, vendedores ambulantes de artesanato indígena e na formação dos grupos de
apresentação ritual do Toré em que são “contratados” por escolas de Ensino Fundamental e
Médio. Esse é o caso de Kayrrá ao ter formado seu grupo Caça-Feita que se apresenta
inclusive no estado de São Paulo.
Em um determinado momento de sua vida, Kayrrá deixou Porto Real do Colégio para
morar em São Paulo, segundo ele, com o objetivo de ajudar financeiramente sua família. Saiu
acompanhado por seu tio paterno que, posteriormente, decidiu retornar a Porto Real do
Colégio. Essa situação fez com que Kayrrá se encontrasse sozinho e o motivou a sair da
capital paulista rumo ao interior do estado. Bragança Paulista foi o destino, mesmo que
Kayrrá não tivesse contato algum na cidade. Um dia, Kayrrá foi surpreendido por uma moça
moradora da cidade de Atibaia (cidade vizinha a Bragança Paulista) que indagou se ele era
índio. Kayrrá reconheceu tal atribuição étnica e aproximou-se dessa mulher que o contratou
para o elenco de uma novela chamada Cidadão Brasileiro. Kayrrá “interpretou” o índio da
telenovela. Ao ter conhecido essa cabeça seca e antes de se fixar em São Paulo por definitivo,
Kayrrá morou e trabalhou uma temporada em Atibaia, sendo acolhido pela Organização Não
Governamental Projeto Curumim. Kayrrá relembra que diariamente percorria a cidade à
procura de escolas que contratassem seu trabalho de apresentação de cantos e danças Kariri-
Xocó e a venda do artesanato indígena. Nessas andanças deparou-se em frente à Escola Terra
Brasil e solicitou uma conversa com a diretora que se interessou pelo trabalho de Kayrrá. Foi
neste contexto que o conheci, quando recebi um convite inusitado desta instituição privada de
Ensino Infantil e Ensino Fundamental (Escola Terra Brasil – Atibaia) para desenvolver um
projeto de interculturalidade entre as crianças da Escola e as crianças indígenas. O convite
tinha mão dupla, pois de um lado, neste mesmo ano de 2010 obtive meu mestrado em
Antropologia e, por outro, como filha da diretora da Escola fui encarregada de desenvolver o
projeto, cujo título era “Os de cá e os de lá” em que as crianças do 4º e 5º anos desta
instituição de ensino trocaram cartas com crianças indígenas, especificamente, as Kayapó da
escola Mebôktire, no estado do Pará e as Kariri-Xocó no estado de Alagoas. O projeto visava

5
Informação disponível em “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 30 de setembro de 2017.
20

a comunicação infantil, os aprendizados interculturais, o protagonismo das crianças no


processo de ensino-aprendizagem e o apreço pela diversidade.6
A partir do desenvolvimento deste projeto de troca de cartas, iniciei uma amizade com
Kayrrá que me convidou inúmeras vezes para conhecer a aldeia Kariri-Xocó. Comentei com
ele sobre o meu interesse de desenvolver pesquisa de doutorado na aldeia, até porque eu havia
mediado a troca de cartas das crianças Kariri-Xocó com as crianças não indígenas. Kayrrá
respondeu-me:

Você tem a carta branca para fazer o que você quiser. Está autorizada a fazer as
suas pesquisas, tanto aqui em São Paulo, como lá na minha aldeia. Fica tranquila,
fica à vontade! Eu Kayrrá, cacique do grupo Caça Feita/Conhecimento, eu estou
autorizando.

Todavia, como a organização política Kariri-Xocó se dá por meio de autoridades


socialmente legitimadas, Kayrrá pediu permissão ao pajé Júlio Queiroz Suíra para que eu
pudesse comparecer na aldeia. Apesar de já ter sido autorizada por essa liderança, ao chegar
na aldeia, tive que reforçar o pedido em que solicitei a autorização do pajé que demonstrou ser
favorável ao desenvolvimento desta pesquisa de doutorado: eu autorizo você fazer seu
trabalho, disse o pajé Júlio Queiroz Suíra.
Anterior à minha inserção na aldeia, encontrei Kayrrá em São Paulo. Nesse dia, ele
quis fazer uma pintura corporal em mim, na qual dizia transmitir uma mensagem. Vejamos a
pintura:

Figura 1 - Grafismo indígena feito por Kayrrá

Foto de Manuela Venancio.

6
Para tanto, houve duas frentes de atuação: uma parceria da Escola Terra Brasil com a Associação Floresta
Protegida Mẽbêngôkre/Kayapó. A equipe foi formada por biólogos que atuam com essa população indígena,
além do professor Kayapó, as pedagogas da Escola Terra Brasil e as crianças indígenas e não indígenas. Ambos
os lados – “os de cá e os de lá” – enviaram uns aos outros, cartas, desenhos, fotos e vídeos elaborados pelas
próprias crianças. A segunda parceria se deu entre a Escola Terra Brasil e o indígena Kayrrá. Neste caso, Kayrrá
compareceu à Escola Terra Brasil para entregar as cartas das crianças Kariri-Xocó.
21

Disse-me ele que o lado direito do desenho representa minha entrada na aldeia e o lado
esquerdo a saída. Na parte central, os dois triângulos não preenchidos pela cor do jenipapo
significam o meu caminhar na aldeia. A aldeia é representada pelos dois triângulos em preto.
Ainda na parte central, os três desenhos em preto têm um significado hierárquico. Segundo
Kayrrá, o desenho menor do lado direito é sua representação, o desenho central, a sua mãe e o
desenho do lado esquerdo, o seu pai. Abaixo da parte central há triângulos desenhados e que
não foram pintados. E eles representam a aceitação ou não dos Kariri-Xocó mediante a minha
presença na aldeia. Conforme Kayrrá, se por acaso os Kariri-Xocó simpatizassem comigo, o
meu retorno à aldeia seria viabilizado. Isso é representado na parte superior do desenho, com
os triângulos em branco que sinalizariam a minha volta para a aldeia Kariri-Xocó. Caso
contrário, isto é, se os Kariri-Xocó não gostassem de mim, seria interditado o meu regresso à
aldeia.
Ainda na parte superior do desenho, os triângulos em preto representam proteção
divina. Entre a parte superior e a central do lado esquerdo há um pequeno triângulo que
significa a minha ida para outras aldeias.
A minha inserção em trabalho de campo foi mediada por Kayrrá. A pesquisa
etnográfica foi desenvolvida ao longo dos anos de 2016 e 2017, tendo sido realizada
observação participante na aldeia Kariri-Xocó e fora dela ao acompanhar grupos de
apresentação ritual do Toré nas cidades de Campinas, Rio de Janeiro e Lumiar (RJ). O
trabalho de campo teve início em julho de 2016, sendo finalizado em julho de 2017; porém, a
permanência na aldeia Kariri-Xocó foi intermitente, assim como a observação participante
realizada fora desse espaço de reserva indígena ao acompanhar os grupos rituais.
Em 09 de setembro de 2016, às 10h45min, embarquei no Aeroporto Internacional de
Guarulhos para Aracaju. Apesar da aldeia Kariri-Xocó estar localizada no estado de Alagoas,
Porto Real do Colégio faz divisa com o estado sergipano; portanto, o acesso em quilômetros à
aldeia é mais rápido por Aracaju ao invés de Maceió. Por volta das 14h desembarquei. Ao
desembarcar, Kayrrá e seu pai Antônio estavam à minha espera. Kayrrá se ausentaria de São
Paulo por um mês para ajudar na campanha política de seu primo materno, candidato a
vereador indígena e, portanto, foi neste contexto que se dispuseram a me receber.
De Aracaju partimos em direção a Porto Real do Colégio. No caminho, Kayrrá
mostrou os campos de futebol em que jogou, inclusive, como profissional. Para irmos a Porto
Real do Colégio trafegamos pela BR101 via Maceió. Cerca de uma hora e meia alcançamos a
divisa dos dois estados nordestinos e atravessamos a ponte ferroviária que liga a cidade de
Propriá (SE) a Porto Real do Colégio (AL). A “ponte ferroviária” foi construída sobre o Rio
22

São Francisco nos anos 19707 e atualmente é utilizada apenas para automóveis e motocicletas,
uma vez que a estrada de ferro está desativada. Segundo Kayrrá e seu pai, o rio São Francisco
está seco. Kayrrá nos mostrou, ao longe em meio a paisagem, um cano que retira água do rio
para abastecer cidades de ambos os estados. Poucos metros após a ponte, entramos na cidade
de Porto Real do Colégio. Kayrrá exclamou e apontou: lá é a aldeia, dando como referência
as casas azuis que se destacam em meio a paisagem.
Para chegarmos à aldeia passamos pelo centro da cidade de Porto Real do Colégio.
Assim, Kayrrá mostrou as casas de duas de suas irmãs que não moram na aldeia, uma vez que
são casadas com não indígenas que preferem viver na área urbana. Em seguida, beirávamos à
margem do rio São Francisco seguindo pela rodovia estadual AL 225 que corta o território
indígena e que nos levaria para a aldeia Kariri-Xocó. A aldeia tem três portões de entrada,
sendo o principal identificado com os dizeres: “Aldeia Kariri-Xocó”, ilustrado com desenhos
indígenas feitos à mão. As ruas da aldeia são de terra, sendo proibido o asfaltamento.
Conforme dito por um jovem Kariri-Xocó: aqui não pode calçar, porque nós índios, a gente
gosta assim de ficar junto com a natureza. No entanto, conforme Nhenety Kariri-Xocó (2013,
p. 38), a aldeia “está organizada no aspecto urbano em diversas ruas”, além de “energia
elétrica, saneamento básico, água tratada”. Ao entramos na aldeia vemos casas de alvenaria,
carros, motos, bicicletas, carroças, cavalos, cachorros, caminhões que transportam materiais
para a construção de novas casas do Minha Casa Minha Vida, pessoas sentadas em suas casas
ou andando pela aldeia, crianças a brincar, uma igreja e pequenos estabelecimentos
comerciais como mercadinhos.
Os meus anfitriões foram os integrantes da família de Kayrrá, sobretudo, os genitores:
sua mãe Maria do Carmo, conhecida como Dona Carminha, tendo predileção que eu a chame
de mainha, e seu pai Seu Antônio, conhecido como Pilão, mas chamado por mim de painho,
assim acabei adotada e me fazendo adotar pela família de Kayrrá.
A chegada de pessoas alheias à aldeia era vista com entusiasmo pelas crianças
indígenas que permaneciam horas do dia na casa de Dona Carminha e Seu Antônio. Um de
meus informantes falou que elas estavam ali à espera de presentes e curiosas com as
lembranças que seriam entregues no dia do Primeiro Desfile Mirim Kariri-Xocó. Esse
informante estava certo, já que depois da ocorrência de tal evento de grande importância na
aldeia, as crianças deixaram de comparecer diariamente na casa de meus anfitriões. Durante
minha permanência essas crianças em sua visita corriam para o quintal de mainha e painho

7
Disponível no site do DNIT: http://www.dnit.gov.br/noticias/ponte-sobre-rio-sao-francisco-segue-em-ritmo-
acelerado, acessado em 29 de novembro de 2016.
23

para fazerem fogueiras, produzirem tinta com carvão e, assim, se pintarem para apresentação
do Toré aos adultos que estavam na casa, entre os quais a pesquisadora. O protagonismo das
crianças (meninos e meninas) era evidente, uma vez que faziam tudo sozinhas, sem
interferência dos adultos. Desse modo, transmitiam para mim conhecimento indígena
aprendido entre gerações e atualizavam para a professora da escola paulista a
interculturalidade dos saberes indígenas.
A numerosa população da aldeia Kariri-Xocó, mais de três mil indígenas, acaba por
impedir que a pesquisadora possa entrar em contato, conversar e estabelecer relações
interpessoais com todos os integrantes da aldeia. Como Kayrrá foi o responsável por minha
entrada em campo e como me hospedei na casa de seus pais, fui conduzida à “criação” de
uma rede social formada por seus parentes (sobrinhos/as maternos, primos/as maternos, tio/a
maternos, ao sogro e a sogra de Kayrrá), bem como por amigos que moram fora da aldeia. Na
primeira ida a Porto Real do Colégio, Kayrrá solicitou ao seu sobrinho materno (Wythaia) que
me levasse para conhecer a aldeia e que estivesse a minha disposição. Aos poucos fui me
familiarizando com alguns indígenas. Apesar de eu não ter conhecido todos os Kariri-Xocó,
eles sabiam quem eu era. Conforme eu andava pela aldeia, saía cumprimentado aqueles que
estavam em suas portas.
Procurei estabelecer relações no trabalho de campo ao solicitar a Kayrrá que me
apresentasse a determinados Kariri-Xocó, próximos a sua rede de interação. Do mesmo modo,
percebi quais indígenas assumem posições de lideranças, a exemplo de Pawanã e procurei
aproximar-me dele. Pawanã (assim como Kayrrá) formou um grupo de apresentação ritual do
Toré em que se apresenta anualmente na cidade de Campinas. Após a minha primeira ida à
aldeia Kariri-Xocó, retornei a São Paulo e meses depois encontrei com Pawanã que estava
acompanhado por sua esposa, filho, irmãos, tias maternas, prima e sobrinho. Ao conhecê-los
ampliei minha rede de relações Kariri-Xocó, o que me introduziu a outras relações no
trabalho, que possibilitaram um importante panorama das disputas internas, sobretudo, entre
Pawanã e o pajé Júlio Queiroz Suíra. Procurei ouvir ambos os lados, isto é, quem acusava
quem, como as facções Kariri-Xocó são formadas e quais as diferenças nos seus projetos e
ações sociais.
A presente tese objetiva investigar as interações intra e entre grupos: (i) as relações
internas à aldeia Kariri-Xocó; (ii) aquelas configuradas no contato entre etnias indígenas do
Nordeste; (iii) bem como o contato interétnico de grupos distintos, os Kariri-Xocó e os não
índios. Esta tese também tem como intuito contribuir com as pesquisas etnológicas acerca dos
24

Kariri-Xocó e colaborar, bem como somar, com os estudos antropológicos referentes às


populações indígenas do Nordeste
O texto que se apresenta é composto de quatro capítulos. A saber: o capítulo 1,
intitulado “Kariri-Xocó: processos sócio-históricos na configuração de fronteiras étnicas” em
que são apresentados os múltiplos processos envolvidos na formação do etnônimo e da aldeia
Kariri-Xocó. Para a elaboração deste capítulo foram coligidas narrativas orais Kariri-Xocó,
fontes bibliográficas referentes aos povos indígenas do Nordeste e documentos oficiais, como
os relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O capítulo 2. “Organização social e
parentesco” aborda as relações Kariri-Xocó em que a noção de tronco é apresentada em
detalhes, como forma de pensar a composição interna da aldeia, as relações interpessoais
baseadas no sistema de parentesco e as formas como os Kariri-Xocó organizam-se política e
ritualmente. O capítulo 3. “Ouricuri e Toré Kariri-Xocó” discorre sobre a organização ritual
desta população indígena, o papel do ritual para a construção de fronteiras e pertencimentos
étnicos. O capítulo 4. “Território de Ocupação Tradicional Kariri-Xocó” discute sobre as
antigas áreas do território Kariri-Xocó ocupadas por não indígenas, ocasionando a redução do
mesmo. Apresenta a mobilização indígena para as retomadas das suas terras e os processos
jurídico-administrativos na identificação, delimitação e demarcação da Terra Indígena Kariri-
Xocó, ainda à espera de homologação pelo estado brasileiro.
CAPÍTULO 1 – KARIRI-XOCÓ: PROCESSOS SÓCIO-HISTÓRICOS NA

CONFIGURAÇÃO DE FRONTEIRAS ÉTNICAS

O etnônimo Kariri-Xocó é resultado de processos etno-históricos complexos


estabelecidos no Vale do São Francisco desde o período da “Conquista do Brasil”. O rio que
leva o seu nome foi “descoberto” no ano de 1501 em uma viagem empreendida por Américo
Vespúcio (HOHENTHAL, 1960, p. 37) ao “Novo Mundo”, sob os auspícios de Portugal.
Conforme fonte bibliográfica consultada8 sobre as tribos “do Médio e Baixo São Francisco”,
grupos indígenas que viviam na “embocadura” do rio São Francisco, a exemplo dos Caetés,
lutaram na tentativa de impedir a colonização portuguesa (ibidem, p. 38). Em décadas
posteriores (1573-1578), outras expedições de conquista foram realizadas. Assim, no ano de
1590, “muitos índios locais [atual estado de Sergipe] abandonaram suas terras e fugiram,
atravessando o Rio São Francisco para Alagoas”9. Hohenthal faz um levantamento dos grupos
indígenas que habitavam os estados de Sergipe e de Alagoas no período Colonial. Em Sergipe
encontravam-se os Aramurú, Boime, Caxagó, Tupinambá e Romarís ou Omarís. Em relação
aos Romarís, Hohenthal cita Martius10 que os classifica “como sendo Carirí” (p. 48). No
Estado de Alagoas: os Aconã, Carapotios, Moriquitos, Natú, Prakió e Prarto. Alguns desses
grupos citados em fontes documentais já não existiam mais com essas denominações no
período do “levantamento etnográfico” durante trabalho de campo nessa região do Vale do
Rio São Francisco em 1951-1952. Em Alagoas, o autor encontrou descendentes de índios que
se chamavam Wakóna ou Shucurú-Carirí em Colégio e Palmeira dos Índios e também os
Kariri-Xocó. Em relação aos Carirís, Hohenthal afirma:

Existem muitas versões deste nome, Cayrirí, Kareriz, Kaririz, Kirirí e Quirirí. Por
exemplo, na aldeia de São Brás, perto da Vila da Lagoa Comprida, Termo da Vila de
Penedo, no ano de 1749, existiam índios chamados Kaririz, que estiveram sob a
tutela dos jesuítas. (HOHENTHAL, 1960, p. 48-49)

Esta informação é importante, uma vez que o território de ocupação tradicional Kariri-
Xocó localiza-se nos municípios de Porto Real do Colégio e de São Brás, ambos contíguos no
estado de Alagoas. A aldeia Kariri-Xocó em que vivem atualmente estes índios está
estabelecida no município de Colégio, enquanto que os pedaços de terra que totalizam o
8
HOHENTHAL, Jr. em “As Tribos Indígenas do Médio e Baixo São Francisco” (1960).
9
HOHENTHAL, loc.cit.
10
Martius, Carl Friedrich Von 1867 – Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerika’s, zumal
Brasiliens. Vol I, Ethnographie; vol. II, Sprachenkunde. Leipzig.
26

Território Indígena Kariri-Xocó demarcado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) estão
identificados igualmente em São Brás, inclusive a denominada Fazenda, área que os Kariri-
Xocó retomaram há aproximadamente três anos.
Hohenthal ao citar os “Carirís” considera que:

[...] representava uma família linguística bastante dispersa, contendo um número


impressionante de dialetos falados por muitas tribos da região. Mas, faltando um
método de comparação, não se pode classificar grosseiramente qualquer tribo da
região como Carirí, com base puramente impressionística, o que se fêz repetidas
vezes na literatura. Assim, achamos o nome Carirí e suas variantes aplicados
repetidamente a grupos indígenas aldeados em várias missões. [sic] (1960, p. 57)

Tal observação de Hohenthal possibilita que se considere que “Carirí” é termo de


origem etno-linguístico aplicado aos grupos aldeados pelas missões religiosas no São
Francisco, sob a tutela dos jesuítas. Desse modo, o etnônimo Kariri utilizado para designar o
grupo indígena Kariri-Xocó tem sua origem referida inclusive pela memória social aos que
viviam no aldeamento jesuítico de Porto Real do Colégio.
Nos anos de 1951 e 1952, como já citado, Hohenthal realizou um “levantamento
etnográfico” nos estados de Pernambuco, Sergipe, Bahia e Alagoas cortados pelo rio São
Francisco. O pesquisador visitou vários grupos indígenas, cujas observações de campo
possibilitaram tecer as seguintes considerações sobre os “Xokó de Colégio” que são
denominados por Hohenthal como “tribo de índios de canoa” (1960, p. 61), porque vivem às
margens do rio e desenvolvem atividades pesqueiras; manufaturam “arcos e flechas, mais para
uso nas suas danças cerimoniais do que para outro fim” (ibidem, p. 62); ainda, segundo as
observações do autor, “os Xokó têm muito pouca terra, possuindo só cinqüenta hectares o
Pôsto Indígena [...]” [sic] (HOHENTHAL, p. 62).
No que tange à presença dos Xocó no Estado de Alagoas, Hohenthal cita que estes
“sobreviventes índios” (ibidem, p. 58) eram conhecidos pelo Serviço de Proteção aos Índios
(SPI) como “Karirí”. No entanto, sobre os Xocó, Hohenthal considera que esses
“sobreviventes índios” do Baixo São Francisco “são as únicas tribos verdadeiramente
identificadas pelos dados linguísticos como pertencendo a êsse grupo”, enquanto a origem
etno-linguística Kariri “não mostra semelhança alguma com a língua Cariri clássica segundo o
linguista Max H. Boudin”, citado pelo autor (p. 58).
“O intelectual indígena” Nhenety Kariri-Xocó, no livro Fulkaxó: Ser e Viver Kariri-
11
Xocó (2013) , considera que os Kariri de Porto Real do Colégio, em tempos de outrora,
“mantinham uma relação cultural e política com outros grupos indígenas do Baixo São
11
Livro organizado por FERNANDES, Ulysses.
27

Francisco” (p. 21), a exemplo dos Xocó que viviam na Ilha de São Pedro, localizada em
Sergipe. Conforme este autor indígena, os Xocó foram expulsos da Ilha em um conflito
fundiário datado do período de 1882. Com a expropriação do território indígena, os Xocó
desceram em canoas as águas do rio São Francisco em direção a Alagoas, mais
especificamente, rumo a Porto Real do Colégio para “buscar abrigo” (ibidem) com os Kariri.
Porém, a criação do etnônimo Kariri-Xocó se deu apenas no momento em que ambas as etnias
decidiram em final dos anos 1970 lutar por uma área indígena em comum conhecida como
Fazenda Modelo ou Sementeira, na qual atualmente encontra-se localizada a Aldeia Kariri-
Xocó. Portanto, até então, antes da ocupação e formação da aldeia comum havia uma
separação das nominações étnicas em Kariri e Xocó, sobretudo, quando antes viviam em uma
“aldeia urbana” e posteriormente reconhecida como Posto Indígena (no ano de 1944) na
cidade de Porto Real do Colégio. Esse espaço territorial urbano era conhecido localmente
pelos moradores da cidade e instituições governamentais como Rua dos Caboclos ou dos
Índios, sendo que o termo caboclo, considerado como uma designação estigmatizante pelos
Kariri-Xocó, deixa de ser utilizado a partir do reconhecimento étnico dessa área pela Funai,
dimensionada “em cerca de 10 hectares de terra” (MATA, 2014, p. 82). Ao compartilharem o
espaço territorial urbano comum, os Kariri e os Xocó conjugaram tradições de conhecimento
indígenas como o Toré e estabeleceram alianças “com os casamentos interétnicos” entre as
duas etnias (NHENETY, 2013, p. 21).
Outras fontes documentais produzidas por estudiosos como Nimuendajú (1944) e
Siqueira (1978) caracterizam os Kariri e os Xocó, separadamente. Curt Nimuendajú em Mapa
Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes (1981 [1944]) 12 identifica as regiões nas quais
os “Karirí” habitavam: perto do rio Itapicuru, na Bahia, no ano de 1759. Além desse grupo
local, Nimuendajú identifica outros grupos Kariri na mesma região e no mesmo ano. Também
são localizados Kariri no Piauí em 1700; no Ceará em que são identificados dois locais de
habitação em datas distintas: os Kariri vivendo contíguos ao rio Salgado no ano de 1780 e um
pouco mais afastados desse rio em 1875. Nimuendajú nomina alguns grupos Kariri a partir de
uma distinção linguística, portanto, identifica os “Dzubukua – Karirí” em Pernambuco, nos
anos de 1688 e 1746; os “Kamurú – Karirí” em 1740 e 1886 na Bahia; os “Sapuya” em 1740
e 1819, também no Estado da Bahia; os “Kipea – Karirí” em 1705 na Paraíba.
Em relação aos “Chocós”, Nimuendajú localiza-os no Estado de Alagoas em 1746 e
1816; em Pernambuco e Ceará no ano de 1802. Conforme o autor, os Chocós apresentavam

12
Disponível em Biblioteca Digital Curt Nimuendajú: http://www.etnolinguistica.org/biblio:nimuendaju-1981-
mapa, acessado em 26 de julho de 2017.
28

uma “língua isolada”. Já Hohenthal JR. (1960) se refere aos “Xokó” afirmando que “existiam
pelo menos dois, talvez três, bandos com estê nome e seus variantes” [sic]: “Chocaz”,
“Chocó” e “Shocó” (p. 49).
No livro Os Cariris do Nordeste (1978), Baptista Siqueira afirma: “[...] ser o Cariri
resultado de grupos etnológicos da mesma origem, embora encontrados esparsos no território
nacional” (p. 19). Consideramos assim a existência de grupos locais da etnia Kariri vivendo
amplamente disseminados na região do Nordeste do país: em relevos sertanejos, Caatinga,
Serra da Borborema que abrange o interior da Paraíba, de Pernambuco, Alagoas e do Rio
Grande do Norte e “nas ribeiras de rios tributários do São Francisco” (ibidem, p. 53).
Também foram encontrados Kariri no estado da Bahia e de Sergipe. Ou ainda aldeados na
região do Baixo Rio São Francisco (ibidem, p. 57).13 Conforme o autor, pautado em uma
ordem cronológica e histórica, isto é, de acordo com o aparecimento secular de cada grupo
Kariri em determinadas regiões nordestinas, poderíamos classificá-los em: “Cariris-de-Fora”,
“Cariris-Velhos” e “Cariris-Novos”. Os Cariris-de-Fora compreendiam aqueles grupos Kariri
que se encontravam formados fora do âmbito “do altiplano da Borborema”; os Cariris-Velhos
eram aqueles encontrados justamente nesse Altiplano; os Cariris-Novos eram vistos na região
da Terra Nova – Pernambuco (SIQUEIRA, 1978, p. 57).
Por fim, a conjugação dos termos Kariri-Xocó utilizados atualmente para designar este
grupo indígena é resultado de complexos processos sócio-históricos de construção de
fronteiras que resultam nesta autoidentificação étnica. Tal configuração étnica ocorre a partir
de processos de territorialização que envolvem diferentes grupos indígenas dessa região do
Rio São Francisco, formando os chamados índios “misturados” do Nordeste. Segundo Vera
Lucia Calheiros Mata (2014, p. 41) “três formas de penetração territorial e de conquista
podem, [...], ser identificadas na colonização do Baixo São Francisco”: (1) as entradas; (2) a
expansão pecuária; (3) a catequese. Conforme João Pacheco de Oliveira (1998, p. 56), as
populações indígenas da região do Nordeste do país “foram envolvidas em dois processos de
territorialização com características bem distintas: um verificado na segunda metade do século
XVII e nas primeiras décadas do XVIII, associado às missões religiosas; o outro ocorrido
neste século e articulado com a agência indigenista oficial”.
Em relação à população indígena de Porto Real do Colégio houve um deslocamento
territorial para situações de aldeamento engendradas por missões religiosas. Conforme Mata

13
Esta parte do Rio São Francisco compreende os estados de Alagoas e Sergipe. Informação disponível em
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio são Francisco: http://cbhsaofrancisco.org.br/a-bacia/, acessado em 25 de
julho de 2017.
29

(2014, p. 46), a fundação de um aldeamento localizado em Porto Real do Colégio foi


proveniente do Colégio dos Jesuítas do Recife que receberam em 1708 uma doação de terra
pelas mãos do governador de Pernambuco: Sebastião de Castro Caldas. Entretanto, a atuação
missionária nesta localidade do Baixo São Francisco é anterior a doação pública de terra para
a catequização indígena, uma vez que nesse período já havia missões inacianas atuantes na
região (ibidem)14. A presença desses missionários tinha como objetivo não somente a
evangelização dos nativos, mas também a finalidade pecuária, uma vez que criavam gados em
grandes propriedades de terras doadas por devotos. Dentre essas fazendas, havia sido doada a
de Urubumirim em 1675 (NHENETY, 2013, p. 16). Nessa propriedade foi construída uma
“Residência” conhecida também como “Colégio” que “centralizava a administração inaciana
no Baixo São Francisco” (MATA, 2014, p. 48). O controle do aldeamento indígena em Porto
Real do Colégio estava sob a responsabilidade dos párocos de tal Residência. A finalidade da
criação de um aldeamento sob a égide missionária “era [criar] um lugar para civilizar os
índios” (L’ESTOILE, 2011, p. 94). Tal aldeamento conhecido como Urubumirim, localizado
em Porto Real do Colégio, foi formado a partir da “homogeneização cultural” mediante a
tutela missionária sobre múltiplas etnias indígenas do Nordeste, como os Kariri, os Karapotó
e os Aconã (NHENETY, 2013, p. 16), reunidos forçosamente em um mesmo aldeamento.
As missões religiosas tinham “uma intenção inicial explícita de promover uma
acomodação entre diferentes culturas, homogeneizadas pelo processo de catequese e pelo
disciplinamento do trabalho” (OLIVEIRA, 1998, p. 57). Para Mata (2014, p. 44), “a condição
de ‘aldeados’ mascarava a proibida escravização do gentio [isto é, dos indígenas] legitimando
a expropriação de suas terras e a exploração de seu trabalho”. Conforme a autora, os indígenas
vivendo em aldeamento eram vistos pelos religiosos “como um grupo homogêneo sem
diferenças significativas, quer quanto à língua, quer quanto aos costumes” (ibidem, p. 53).
Esses indígenas ainda sob a ordem dos missionários desenvolviam a rizicultura, “principal
cultura das áreas inundáveis do Baixo São Francisco” (ibidem, p. 52).
As aldeias deixam de estar sob total controle religioso e passam a ser de
responsabilidade da Diretoria Geral dos Índios desde 1845 (MATA, 2014).15 Com a

14
Isto é: os eclesiásticos da Companhia de Jesus, conhecida como Ordem dos Jesuítas, fundada por Inácio de
Loyola. A Companhia de Jesus foi legitimada pelo Papa Paulo III no ano de 1540. Informação disponível em
jesuitasbrasil.com: http://www.jesuitasbrasil.com/newportal/institucional/quem-somos/, acessado em 11 de
dezembro de 2017.
15
Em 1758, por meio de um alvará, o estadista português Marquês de Pombal, revoga o poder das ordens
religiosas sobre os aldeamentos (MATA, 2014, p. 54). Conforme Mata: “Os jesuítas são os mais atingidos pela
medida, que se contempla com a expedição, em três de outubro de 1759, da lei que extingue a Sociedade ‘nos
reinos de Portugal’ ” (ibidem, p. 55).
30

implantação deste Diretório foi instaurada uma nova ordem de controle em que cada uma das
aldeias estava sob a administração de um Diretor Parcial (ibidem, p. 62). A atuação tanto de
missionários quanto do Diretório visava “civilizar” os indígenas vistos como “selvagens”,
“primitivos” e “pagãos”. Houve uma política estatal assimilacionista em que os indígenas
deveriam aprender crenças religiosas e a língua oficial do colonizador, além da atribuição de
nomes portugueses em detrimento das nominações nativas (MATA, 2014; L’ESTOILE, 2011;
LOPES, 2011; OLIVEIRA, 1998). Essa política colonizadora visava na prática “fundir
diferentes raças num só povo” (MAYBURY-LEWIS, 1983, p. 108), como no caso em
questão da fusão de diferentes etnias indígenas na região do São Francisco ao modo de vida
do “homem branco”, visto como padrão ideal de civilidade. Além disso, pode-se dizer que a
fusão de diferentes etnias nessa política assimilacionista visava a construção de uma única
nação: a brasileira, na qual a “indianidade” das populações nativas do país deveria ser abolida
(ibidem, p. 106).
Segundo Sidnei Peres (2004) que analisa a ação indigenista no Nordeste, entre os
períodos de 1910 a 1967, “nacionalizar e civilizar [os indígenas] eram sinônimos,
significavam impor um conjunto de dispositivos governamentais sobre a população,
vinculados à rede política nacional” (p. 50, grifo do autor). Segundo Oliveira (2011, p. 659)
estava em pauta um “novo projeto de nação, o objetivo da atuação governamental deveria ser,
[...], a promoção da civilização dos índios e sua consequente incorporação como parte do
povo brasileiro”. Para tanto, havia “um controle geral, feito pelo Estado por meio de uma
repartição específica, a diretoria de Civilização dos Índios, vinculada ao Ministério do
Interior, e uma administração local, na qual se priorizava o trabalho de missionários católicos”
(ibidem, p. 659). Ainda conforme Oliveira (1998, p. 57), em relação a atuação do Diretório
dos Índios, uma política de assimilação acabou “estimulando os casamentos interétnicos e a
fixação de colonos dentro dos limites dos antigos aldeamentos”. Fátima Martins Lopes (2011,
p. 263) refere-se:

Ademais, não se pode esquecer que a introdução de colonos em terras anteriormente


de índios missioneiros também contribui para o quadro de empobrecimento dos
índios vilados se agravasse, pois diversas partes produtivas do território foram
ocupadas por colonos, fazendo com que muitos índios ficassem sem terras e,
portanto, livres para atender exatamente à demanda colonial por mão de obra barata.

Durante o meu trabalho de campo etnográfico, em 2016 e 2017, os Kariri-Xocó


mencionam a atuação dos missionários e do Diretório dos Índios, referindo-se a um passado
idealizado, anterior à atuação dos jesuítas. Assim, segundo Nhenety:
31

Nós tínhamos a nossa própria religião, a nossa própria cultura, a nossa língua. E
quando os jesuítas chegaram, os capuchinhos, eles introduziram outra religião,
outra língua. Desestruturou a nossa organização social […], a aldeia era redonda,
em círculo [e atualmente] é linear, de ruas. [Além disso], a gente no passado
morava em casas coletivas, malocas grandes, [sendo que os jesuítas ao chegarem
em Porto Real do Colégio ordenaram] cada casal uma casa. Então foi mudando
tudo.

Deste modo, houve mudança na configuração espacial das aldeias nas suas formas de
organização social. Ainda no presente etnográfico, os Kariri-Xocó referenciam a catequização
dos jesuítas a partir das interdições dos missionários em relação ao Ouricuri e a língua
indígena. Referindo-se em termos explicativos a um tempo histórico de longa duração,
Tawanã Kariri-Xocó diz-se que a região Nordeste foi o berço do descobrimento do Brasil: [da
Bahia] começou tudo, veio rasgando de lá para cá e descendo para cá para chegar a
Sergipe, Alagoas, Minas Gerais. Então, nós fomos os povos mais arrasados. Todavia,
considera que nós resistimos esses quinhentos e dezesseis anos, aqui. Foi quem atrapalhou as
chegadas dos jesuítas, dos bandeirantes. Tal resistência à colonização é mencionada pela
bibliografia compulsada em relação ao período da Companhia de Jesus e do Diretório dos
Índios, no qual as populações indígenas mantiveram uma postura “de contínua resistência aos
preceitos culturais, morais e religiosos introduzidos pelos colonizadores” (LOPES, 2011, p.
243). Desse modo, os Kariri-Xocó afirmam nunca terem abandonado o ritual do Ouricuri.
No relato de Tawanã:

Os padres na época, os jesuítas colocavam os índios [para trabalhar durante o dia,


sendo que ao entardecer os indígenas] tinham que se recolher, [todavia, os Kariri-
Xocó esperavam os párocos e] os senhores de engenho dormirem. Saiam escondido,
iam praticar o seu ritual no mato e quando era três horas da manhã para quatro,
tinham que estar de volta para quando amanhecesse o dia, eles estarem vendo os
índios lá [no aldeamento].

Ainda segundo Lopes (2011, p. 264), a “figura do ‘índio passivo’, assim como a do
‘índio indolente’ é uma construção textual colonial usada para favorecer a dominação e o
controle sobre a população indígena, mas não pode ser encarada como representativa de um
povo que continuava lutando por direitos e respeito”.
Com a promulgação da Lei da Terra em 1850 (MATA, 2014, p. 63) que permitia a
venda de lotes de terras devolutas, os indígenas de Porto Real do Colégio viram suas terras do
território tradicional continuarem sendo ocupadas por não índios. Além disso, a ocupação do
território indígena ocorreu pela via do arrendamento na época do Diretório dos Índios, o que
viabilizou o domínio da terra pelas mãos dos posseiros (ibidem, p. 87). Em consequência
32

dessa conjuntura econômica e política, os Kariri tiveram suas terras expropriadas, sendo cada
vez mais deslocados para outras áreas da cidade de Porto Real do Colégio, a exemplo da Rua
dos Índios. Segundo Mata, “a rua dos índios, assim, se evidenciou, durante longo período,
como marco diferenciador entre índios e não índios” (ibidem, p. 128). Conforme Jacó Kariri-
Xocó: [nesse logradouro] só morava índio, entendeu. Não morava outra pessoa, era colado
com a cidade. Portanto, Nhenety afirma que essa rua “era nossa aldeia, onde o povo morava,
onde era possível viver como índio” 16. No entanto, havia uma abertura territorial no sentido
de que havia circulação de não indígenas em situações específicas. Segundo Nhenety (2013,
p. 21): “alguns brancos passavam por ali, negociantes para vender a prestação, fazendeiros
atrás de gente para trabalhar no campo a preço abaixo do mercado; também tinha aqueles com
laço de amizades” e eventuais alianças matrimoniais entre Kariri-Xocó e não índios. Observa-
se segundo essa narrativa, a construção de fronteiras étnicas mesmo em espaço urbano de
ocupação relativamente recente (mais de quarenta anos), no qual se mantém uma
exclusividade étnica mediante trocas matrimoniais e atualização de formas de pertencimentos.

1. 1 Relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em Porto Real do Colégio

Em 14 de fevereiro de 1944, o Serviço de Proteção aos Índios instala em Porto Real do


Colégio, o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, construído ao final da Rua dos Índios.
Segundo relatório produzido em 31 de dezembro de 1944, por Cícero Cavalcante de
Albuquerque, auxiliar do Posto Indígena, havia duzentas e trintas pessoas vivendo no
aldeamento, composto por cinquenta e três casas de taipas. Nesse espaço delimitado à
população indígena, Albuquerque destaca a existência de “mamelucos”, “cafusos” e
“particulares civilizados” vivendo entre os Kariri e os Xocó. No Posto Indígena eram
lecionadas disciplinas como Geografia, Português (divisão silábica e alfabeto) e Matemática
(tabuada), nos turnos matutino e diurno. Dentre os itens adquiridos pelo Posto constam no
relatório: uma bandeira nacional, uma “Moldura com o retrato do sr. Presidente da Republica
gunto a um índio” [sic], uniforme para os meninos da escola indígena, materiais escolares,
“roupas costuradas para os índios”, construções residenciais, equipamentos de roças como
foices, machados, facões e enxadas, apesar da observação enfatizada por Albuquerque (autor
do relatório) de que não havia terra para os “Carirís” plantarem. A leitura desse relatório traz

16
Informação disponível no blog “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 29 de setembro de 2017.
33

evidências das ações do Estado para a inclusão desses indígenas no denominado processo de
integração nacional brasileiro.
A partir da memória social, Nhenety refere-se à introdução juntos aos Kariri-Xocó do
“esporte do vôlei, a quadrilha junina, o forró, o desfile de 7 de Setembro” (2013, p. 29). Em
relação à festividade junina na escola, Nhenety lembra da sua infância em que “as carteiras
eram tiradas da sala e às 8 horas começava o toré, que durava a noite toda, até amanhecer”
(ibidem, p. 29). Havia assim indícios de fluxos culturais (HANNERZ, 1997), isto é,
elementos até então de uma cultura exógena (vôlei, quadrilha, forró e desfile social)
atravessaram uma fronteira social em que simultaneamente era vivido o Toré como um
diacrítico étnico indígena. Atualmente, os Kariri-Xocó ainda celebram festas juninas, cuja
denominação nativa passa a ser Toré Junino. Desse modo, em situações específicas, a
alteridade é permanentemente produzida e comunicada pelos Kariri-Xocó. Em junho de 2017
acompanhei uma noite de São João na aldeia da Sementeira: os Kariri-Xocó construíram
fogueiras em frente as suas casas e as acenderam em homenagem ao santo; soltaram rojões e
as crianças ensaiaram quadrilhas. Além do Toré Junino, os Kariri-Xocó frequentam os
festejos juninos que ocorrem no centro da cidade de Porto Real do Colégio com apresentações
de bandas de forró.
O primeiro Posto Indígena estabelecido no Nordeste foi em Águas Belas, povo Fulni-
ô, por influência do sacerdote Padre Alfredo Dâmaso17. Conforme a história oral nativa havia
entre os Kariri e Fulni-ô uma relação [...] muito antiga [em que] os Fulni-ô vinham para cá
para o ritual, nos anos 20, nos anos 30. E segundo os Kariri foram indagados pelos Fulni-ô se
eles tinham reconhecimento étnico pelo Serviço de Proteção aos Índios: “E vocês, [...] não
são reconhecidos não? Não, a gente não é reconhecido não pelo SPI”. Assim, conforme a
narrativa Kariri-Xocó, o cacique e o pajé Fulni-ô mediaram o contato dos Kariri com o padre
Alfredo. A formação do Posto encontra-se registrada na memória social do povo a partir do
seguinte relato: o cacique e o pajé Fulni-ô mediaram o contato dos Kariri com o padre
Alfredo. Nhenety define o religioso: [Alfredo Dâmaso era] um capelão também do Exército e
muito respeitado em Pernambuco; portanto, poderia ter papel decisivo para a criação do Posto
Indígena em Porto Real do Colégio. Ainda conforme Nhenety, o pároco morava em Bom
Conselho (Pernambuco), o que exigiu do pajé Francisco Queiroz Suíra (Kariri), acompanhado
por outros índios, o deslocamento até essa localidade. Ao estarem com o padre, o mesmo

17
Informação disponível no blog “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”.
Dentre as diversas informações sobre este povo indígena, faz um breve relato da Fundação do Posto Indígena
Kariri: http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 17 de fevereiro de 2017.
34

indagou ao pajé Francisco Queiroz Suíra sobre a presença de algum estudioso em Porto Real
do Colégio, ao que responderam positivamente: Carlos Estevão de Oliveira. A partir da
comprovação pelos estudos da indianidade Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio foi erigido
o Posto Indígena nos anos quarenta.
Segundo Marcondes Secundino (2011):

[...] no que tange à política indigenista, sua colaboração [isto é, de Carlos Estevão de
Oliveira] se deu no sentido de “descobrir” politicamente populações indígenas e
justificar a atuação do Estado em assisti-las e protegê-las. E em relação aos próprios
índios, a luta para mediar a relação que mantinham com o Estado, a fim de que, nas
primeiras décadas do século XX, pudessem ter direitos, proteção e assistência.
(SECUNDINO, 2011, p. 633)

18
Posteriormente à extinção da Diretoria Geral dos Índios (1757-1798) , os índios do
Nordeste que “ainda viviam em aldeias históricas foram abandonados ao seu destino”,
segundo Hohenthal, sofrendo “exploração [...] e audaz usurpação de suas terras pelos neo-
brasileiros” (HOHENTHAL, 1960, p. 41). Ainda conforme o autor, “uns poucos cidadãos
interessados no assunto ergueram suas vozes em protesto, chamando a atenção para os antigos
tutelados do governo, e incidentalmente irritando os latifundiários locais, que haviam lucrado
com a usurpação de terras indígenas” (ibidem, p. 41). Entre os expoentes “dessa campanha”
estava o Monsenhor Alfredo Dâmaso, de Bom Conselho, citado nas narrativas dos Kariri-
Xocó. Segundo Hohenthal, os “esforços” de homens como o padre Alfredo Dâmaso não
teriam sido efetivos “se não houvesse prèviamente criado [em 1910] uma repartição federal
para assuntos indígenas” [sic] (ibidem, p. 41) denominada de Serviço de Proteção aos Índios.
19
Nhenety ainda refere-se a Carlos Estevão de Oliveira : um grande estudioso que
esteve aqui em nossa aldeia em 1935 e ele falou com a minha bisavó. Carlos Estevão
produziu um artigo – O Ossuário da “Gruta-do-Padre”, em Itaparica e algumas notícias sobre
remanescentes indígenas do Nordeste (1942) –, em que discorre brevemente sobre sua ida a
Porto Real do Colégio e a situação em que encontrou “os caboclos”, como se referiam aos
índios:

[...] sem que valesse o direito de posse já muitas vezes secular, vira, pouco a pouco,
os “civilizados” tomaram-lhes as terras em que faziam lavoura e as lagoas aonde

18
Informação disponível em Coordenação Geral de Gestão de Documentos – Coged. Mapa Memória da
Administração Pública Brasileira, escrito por Dilma Cabral em 13 de julho de 2016:
http://linux.an.gov.br/mapa/?p=9759, acessada em 04 de janeiro de 2017.
19
Para visualização do material imagético do Posto Indígena localizado na Rua dos Índios, acessar virtualmente
a Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira Museu do Estado de Pernambuco:
https://www.ufpe.br/carlosestevao/museu-virtual-fotoetno-busca.php. Acervo fotográfico com imagens feitas por
Oliveira acerca dos Kariri-Xocó. Acessado em 17 de fevereiro de 2017.
35

pescavam e de onde extraiam barro para a fabricação de sua admirável cerâmica.


Expatriados dentro de sua própria pátria, é num verdadeiro estado de miséria em que
vivem. Pois bem, naquele miseravel estado, conservam bastante puras suas
primitivas crenças e realizam periodicamente suas festas tradicionais. [...]. A cultura
espiritual dos “caboclos” de “Colégio”, cai na mesma extratificação da do “Brejo-
dos-Padres” e de “Águas-Belas”. A material está quase sufocada. Impossibilitados
de cultivar algodão, por falta de terrenos, já não fabricam as redes que antigamente
fabricavam. E sua bela cerâmica está também ameaçada de desaparecer. Parece
fantasia, mas a verdade é que, para fabricarem hoje qualquer peça, precisam comprar
barro aqueles que lhes tomaram as lagoas. (ESTEVÃO, 1942, p. 173) [sic].

No relatório do SPI 1948, no Posto Indígena (na Rua dos Índios), Agenôr da Silva
Guédes, agente do SPI, afirma que a cerâmica indígena era “a base principal das atividades
dos índios deste Posto” Indígena em Porto Real do Colégio. Segundo Guédes, “por falta de
terra, desde 1943, que os índios abandonaram o trabalho agrícola”, mas no ano de 1948, por
meio de uma negociação entre agentes do Posto Indígena e o agrônomo do Campo de
Sementes do Ministério da Agricultura, localizado em parte do antigo território de ocupação
tradicional Kariri-Xocó, adquiriu-se uma pequena faixa de terra de vinte e quatro hectares
para os indígenas plantarem feijão, milho e algodão. Contudo, o agente indigenista enfatiza no
relatório um processo em que o SPI tramitava com a direção do Campo de Sementes, a
demarcação de cinquenta hectares de “terras arável para entrega definitiva aos índios Carirís”.
Desse modo, o Campo de Sementes estava localizado no território de “posse imemorial
indígena”, onde foi instalada “a sede do Centro Agrícola, que deveria orientar os agricultores
da região” (MATA, 2014, p. 87):

A Sede do Centro Agrícola, proposta em 1914 é mantida, com a finalidade de criar


um Campo Experimental. Numa área de 495,4 hectares, localizada o montante de
Porto Real do Colégio e a cerca de um quilômetro e meio de distância da sede
municipal, instala-se o Serviço das Plantas Têxteis. Esta área, denominada a partir
de 1914 “Campo Experimental das Sementes”, passa a ser conhecida pela população
local como Sementeira. (MATA, 2014, p. 87-88).

Em março de 1949, Agenor da Silva Guedes emite documentos ao Sr. Dr. Raimundo
Dantas Carneiro, chefe da 4ª. Inspetoria Regional do SPI (Recife) em que confirma “o termo
de entrega de 50 hectares de terras do Campo de Sementes”, localizado a dois quilômetros da
Rua dos Índios.
Conforme Nhenety, essa parte de cinquenta hectares do território ficou conhecida
como Colônia Indígena, sendo habitada “por cerca de vinte e cinco famílias” (NHENETY,
2013, p. 37). Antes de sua ocupação, os Kariri e os Xocó viviam na cidade na Rua dos Índios
em Porto Real do Colégio e na localidade chamada Alto do Bode, onde eram realizados os
rituais do Ouricuri. A partir da incorporação de uma área do Campo de Sementes, os
indígenas que moravam tanto na Rua dos Índios, como no local do Ouricuri, passaram a viver
36

igualmente na Colônia. Desse modo, esse novo local de morada indígena representou a
conquista de uma importante área para a construção de uma fronteira étnica, uma vez que
segundo os relatos coligidos no trabalho de campo, os Kariri-Xocó que não queriam contato
com o branco, ficavam lá na Colônia isolados. Na Colônia “tinha escola com 72 alunos, casa
de farinha [...], um chafariz de água encanada e muitos pés de fruteiras” (ibidem, p. 37), além
de animais de criação. Conforme Nhenety, os indígenas que se mantiveram na Rua dos Índios
faziam uso da Colônia para a agricultura em que “cada família tinha [delimitada] três tarefas
de terra” (ibidem, p. 37). 20
Em 28 de maio de 1952, Francisco Sampaio, inspetor do SPI emite documento oficial
ao chefe da 4ª. Inspetoria Regional do SPI para se posicionar favoravelmente à extinção do
Posto Indígena na Rua dos Índios. Segundo o inspetor, a localização do Posto favorecia os
“índios em promiscuidade com os civilizados, sem quintal para criar uma galinha, expostos
ainda ao perigo de assimilarem os vícios e outros defeitos dos que preferem os lugares mais
afastados da vigilancia policial” [sic]. Assim, Sampaio defendia que os mesmos deveriam ser
transferidos em definitivo para a área de cinquenta hectares (a Colônia) que, segundo o agente
indigenista, possibilitaria aos índios cultivarem árvores frutíferas, praticar a agricultura e
criação de animais. À época, conforme consta no relatório, os Kariri estavam sob as
lideranças do pajé Francisco Queiroz Suíra e do cacique Otávio Queiroz Suíra que, segundo o
inspetor indigenista, demonstraram algum entusiasmo pela proposta. Nessa direção, os índios
solicitaram “auxílio, para construírem as casas [...], no terreno cedido pelo Campo de
Sementes”. Além desse pedaço de terra, o inspetor do SPI relata no documento oficial sobre a
ocupação indígena de uma área territorial de cento e noventa e seis hectares destinados “ao
culto religioso denominado Ouricuri”, distante a seis quilômetros do centro da cidade de Porto
Real do Colégio, localizada ao lado da Colônia em substituição ao antigo local do Alto do
Bode, onde antes eram praticados os rituais do Ouricuri. Em 3 de junho de 1952, Raimundo
Dantas Carneiro, chefe da 4ª. Inspetoria Regional do SPI envia ofício de número 79 ao diretor
do SPI em que solicita “a transferência do Pôsto Padre Alfredo Dâmaso para o terreno que os
índios possuem (Campo de Sementes) dependendo de receber alguma verba para tal”. [sic].
A nova área indígena Kariri-Xocó localizada na Colônia era cortada pela estrada de
ferro da Rede Rodoviária do Nordeste. Para a construção da linha de trem foi empregada mão
de obra indígena, segundo a memória social Kariri-Xocó. Conforme consta no relatório do
SPI produzido por Francisco Sampaio em 1952, o trilho da ferrovia passava no “centro” do

20
Conforme Nhenety, uma tarefa é um terço do hectare. O hectare é equivalente a 10.000 m². Portanto, cada
família tinha 10.000 m² de terra para plantar.
37

terreno de cinquenta hectares, correspondente à Colônia. Esse trilho era uma ameaça aos
Kariri-Xocó, tendo acometido fatalmente um indígena. Após a morte desse índio, alguns
Kariri-Xocó decidiram não viver mais na Colônia e muitos regressaram à Rua dos Índios.
Os Kariri-Xocó, inclusive os que vivem atualmente na aldeia da Sementeira, dizem
que nasceram na Rua dos Índios. De acordo com os relatos, até o final dos anos 1970, os
Kariri-Xocó não tinham acesso ao barro para produzirem a cerâmica indígena, porque as
lagoas que forneciam essa matéria prima localizavam-se em áreas controladas por
proprietários “das lagoas de arroz” (MATA, 2014, p. 103). Além disso, a então propriedade
estatal denominada Fazenda Modelo do Ministério da Agricultura dispunha naturalmente de
lagoas que forneciam o barro para a fabricação da cerâmica, no entanto, impediam os
indígenas de adentrarem a fazenda para retirada do barro. Para tanto, os Kariri-Xocó
precisavam ultrapassar as barreiras impostas pelos não índios, segundo a história oral nativa.
Desse modo, Buru Kariri-Xocó diz que os indígenas adentravam escondidos [nas fazendas,
já] que o dono não deixava de jeito nenhum terem livre acesso.21 Ao morarem na Rua dos
Índios, os Kariri-Xocó estavam relativamente distantes do Ouricuri, local sagrado em que o
ritual indígena era praticado. Assim, para que pudessem chegar à mata do Ouricuri era
necessário que cruzassem a Fazenda Modelo, mas como essa estava sob o controle do
Ministério da Agricultura que proibia a entrada dos Kariri-Xocó, necessitavam tangenciar a
área lateral de fora da fazenda para chegar ao Ouricuri. Os Kariri-Xocó eram assim
interditados e usurpados do território de ocupação tradicional indígena.
Esse fechamento do acesso às lagoas deve ter ocorrido já nos anos de 1960, pois
segundo Hohenthal que esteve em Porto Real do Colégio na década anterior em 1951 e 1952,
menciona a existência de “descendentes” dos Xocó vivendo nessa cidade anterior à formação
da Colônia e da Sementeira. Os Xocó de Porto Real do Colégio dispunham de “muito pouca
terra” (1960, p. 62), mesmo assim a cerâmica de barro era ainda “a indústria mais importante
dos Xokó de Colégio” (HOHENTHAL, p. 62), sendo vendida nas localidades vizinhas como
São Brás (município vizinho a Porto Real do Colégio), São Pedro e Pacatuba, ambas em
Sergipe. Essas informações são convergentes com os depoimentos indígenas ouvidos durante
o trabalho de campo que realizei na aldeia Kariri-Xocó. Esses depoimentos foram feitos pelos
Kariri-Xocó que viveram na Rua dos Índios e mudaram para a aldeia. Eles comentaram que
(i) antigamente faltava terra para viver e roçar; (ii) sobre a produção de potes de barros
trocados por alimentos como farinha e galinha, sendo que essa troca era feita diretamente com

21
Ver Mata, Vera Lucia Calheiros (2014).
38

os não índios que viviam em Porto Real do Colégio e cidades vizinhas. A troca da cerâmica
indígena por bens alimentícios também faz parte da memória social dos não índios. Assim,
quando conversei com um não indígena que vive em Palmeira dos Negros (Alagoas),
recordou de sua época de criança em que caboclos (isto é: os Kariri-Xocó) apareciam em
Palmeira dos Negros para trocarem cerâmica por alimentos. No entanto, havia um comércio
com pagamento em dinheiro pelo artesanato indígena. Agenor da Silva Guedes em relatório
do SPI referente ao Posto Indígena em Porto Real do Colégio, ano de 1948, cita que a
cerâmica indígena era vendida “por baixo preço” e era considerada “a fonte de maior
rendimento para êles” [sic] indígenas. Em 28 de maio de 1952, o relatório do SPI redigido por
Francisco Sampaio afirma que “os índios se servem da canoa grande para fazerem comércio
de ceramica na margem do rio São Francisco, de Própria a Penedo, parando em todos os
lugarejos, levam vários dias na viagem de ida e volta” [sic].
Esse tempo passado está na memória social Kariri-Xocó. A índia Maria Isabel se
recorda dos tempos de outrora em que afirma: a gente trabalhava para sobreviver. A minha
mãe era uma mulher que trabalhava de artesanato de pote [...]. Minha mãe mesmo criou os
filhos dela tudinho foi à custa do barro. A gente trabalhava no barro, várias caboclas, como
assim se referiu a si própria e às mulheres Kariri-Xocó no contexto dessa produção para a
venda do artesanato do barro.
As famílias Kariri-Xocó trabalhavam também nos arrozais pertencentes aos patrões
brancos. Conforme Ayrama Kariri-Xocó: nós plantávamos [arroz] para o branco. Índio
nenhum tinha nada. Índio era só trabalhador dos brancos. Tais plantações de arroz
localizavam-se no território de ocupação tradicional Kariri-Xocó, ocupado por pretensos
proprietários, sendo que os Kariri-Xocó só tinham acessos a essas áreas, uma vez que eram
contratados para trabalhar nas lagoas das fazendas produtoras de arroz.22 A mão de obra
indígena gerou renda aos fazendeiros da região do Baixo São Francisco. São inúmeros os
relatos de Kariri-Xocó que trabalharam nos arrozais dos patrões. A família de Kayrrá é um
exemplo, sendo que esse período de trabalho nas plantações de arroz faz parte da memória
social desse grupo familiar. Assim, Maria do Carmo (a matriarca) relembra tanto da época em
que trabalhou nos arrozais, quanto do período em que vendia cerâmica. Esse tempo é visto por
Maria do Carmo como sofrido. Recorda frequentemente da dificuldade que tinha em
alimentar os filhos e que, portanto, era necessário sair de madrugada para caçar passarinhos.
Como indicativo do máximo de privação vivida. Todos os integrantes da família eram

22
Ver Mata, Vera Lucia Calheiros (2014) que afirma: “[...] havia duas alternativas de acesso à terra, postas em
prática pelos Kariri-Xocó: trabalhar na Sementeira ou trabalhar em terra particular” (p. 90).
39

envolvidos no trabalho, os filhos acompanhavam a mãe e o pai ao arrozal e na venda dos


potes de cerâmica. Uma das filhas de Maria do Carmo afirma que o trabalho no arrozal
representava perigo, uma vez que havia cobras. Silvania e Wythaia Kariri-Xocó contam que o
trabalho nas plantações de arroz era dividido em etapas: limpava-se o terreno, plantava-se a
semente do arroz, colhia, separava o grão do arroz da casca, empilhava o produto e colocava-
o sobre o caminhão. Segundo José Nunes de Oliveira, o pagamento pela mão de obra
indígena:

[...] era dar metade da safra [de arroz produzida] e o trabalho [era arcado pelas]
índias; o proprietário ficava com a outra metade da produção sem o trabalho,
despesa alguma com o arroz; só o uso da terra pelos índios; dava direito ao dono da
lagoa a 50,00% do lucro a custo zero. (OLIVEIRA, 2000, p. 284, grifo do autor)

Esse trabalho de meação era considerado pelos Kariri-Xocó como extremamente


árduo. Relembram que nessa época, a caça [já] era pouca em função do desmatamento para a
implantação da agricultura e da agropecuária. Por isso, comiam um “ratinho” típico dos
arrozais. A índia Helena Tinga trabalhava na vargem de arroz nas cidades de Porto Real do
Colégio (Alagoas) e Propriá (Sergipe), além disso, produzia pote de cerâmica e trabalhava na
“enxada”, isto é, na agricultura. Refere-se a essa época como sendo triste, inclusive nas
situações de trabalho por diárias em troca de alimentos fornecidos pelo patrão:

Essa época era triste, era triste. Porque era assim: a gente ia trabalhar pelo dia
para quando ir lá para tarde, receber aquele dinheiro. Quando chegasse, comprar
uma quarta de carne, meia limpa de açúcar, um litro de farinha. Se tivesse muito
filho botava tiquinho para um. Minha mãe que era casa cheia de filhos... Aí, um
tiquinho para um, um tiquinho para outro. Muitas e muitas vezes, a gente ia comer e
não tinha o que comer. (HELENA TINGA)

Este depoimento refere-se ao trabalho na denominada “Fábrica de Beneficiamento de


Arroz”, localizada na Rua dos Índios, cujo proprietário era um não indígena. Os Kariri-Xocó
trabalharam nesta fábrica carregando saco. Pegava cem, duzentos sacos [...], afirmou Helena
Tinga. Segundo Nhenety, “muitos indígenas trabalharam na fábrica, como estivadores” 23.
A partir da ocupação da Sementeira (final dos anos de 1970), os Kariri-Xocó não
trabalham mais nos arrozais, quando foi fechada a fábrica de arroz. E a oferta de empregos é
mínima na cidade de Porto Real do Colégio, inclusive com o fechamento da Fábrica.
Contudo, os Kariri-Xocó dependem dos “empregos” gerados pelo processo de
territorialização na relação com o Estado brasileiro. Conforme uma índia Kariri-Xocó: a vida

23
Informação disponível em “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 30 de setembro de 2017.
40

na aldeia é difícil para quem não tem emprego. A atuação dos indígenas nesse caso se dá
como professoras/es indígenas, merendeiras e varredeiras na escola e na creche indígenas,
pedreiros, carpinteiros, pescadores/as, vendedores/as nas vendinhas da aldeia, revendedoras
de produtos cosméticos, moto-táxi, artesãos/ãs, motorista de ônibus da prefeitura de Porto
Real do Colégio e funcionários públicos nas instituições como Funai e Funasa. Há aqueles
que têm aposentadoria e os pais aposentados ajudam os filhos que precisam. Além de
auxílios governamentais, como o Bolsa Família.
Segundo um adulto Kariri-Xocó: a gente vê uma necessidade grande, principalmente,
pela falta de trabalho e renda que faz com que alguns índios se mobilizem em termos
empregatícios igualmente nos espaços fora da aldeia, nos quais atuam até como operários.
Este é o caso de Bismarck (neto de Maria do Carmo) que trabalha em uma fábrica de tecido
em Neópolis (Sergipe). Antes de Bismarck, seu pai era operário dessa fábrica e morava na
vila operária construída pela empresa. Com o falecimento do patriarca, o filho do casal
substituiu o pai na posição que ocupava na família, vindo a ser operário da fábrica. Porém, ele
não é o único indígena a trabalhar nesse local. Segundo informações, moram uns dez índios
aqui na Vila da Fábrica.
Apesar de morarem distantes da aldeia Kariri-Xocó, esses indígenas mantêm relações
estreitas com a aldeia: frequentam o Ouricuri; visitam seus parentes e realizam jogos de
futebol entre o time da fábrica e os times da aldeia. Isto motivou que eu viajasse com alguns
Kariri-Xocó para ver uma partida de futebol entre um dos times da aldeia contra o time de
futebol da Vila da Fábrica. Os jogadores indígenas da aldeia Kariri-Xocó vestiam uniforme de
futebol, a camisa do time continha o nome do vereador indígena Uilio da aldeia Kariri-Xocó.
Bismarck jogou no time da Vila da Fábrica, tendo sido motivo de críticas de uma Kariri-
Xocó: não pode jogar [contra a aldeia], ele é índio. Enquanto o jogo era disputado, alguns
Kariri-Xocó observavam a partida, entre eles, Luís que mora há mais de vinte e seis anos em
Neópolis. Conforme Luís, a situação atual da aldeia melhorou bastante [se comparada com
décadas atrás em que] a coisa lá era precária. Nesse período da denominada “precariedade
da aldeia”, Luís tinha aproximadamente treze anos e trabalhava em plantação de arroz, porém,
o serviço manual foi substituído pela máquina de cortar arroz e o desemprego foi gerado,
conforme palavras dele próprio. Luís sentiu o impacto da industrialização do campo e decidiu
sair da aldeia à procura de emprego em outro Estado. O fato, segundo disse, de ter família
vivendo em Neópolis fez com que saísse da aldeia com destino a Sergipe, lá continuou a
trabalhar na agricultura, dessa vez, de coco, banana e mamão. Com o passar dos anos e a
maioridade, Luís foi trabalhar na fábrica de tecidos, onde permanece até hoje à espera da
41

aposentadoria que chegará daqui a quatro anos. Essa espera é ansiada, uma vez que sente
enorme vontade de regressar a aldeia Kariri-Xocó.
Os parentes Kariri-Xocó de Luís, seus irmãos e irmã também trabalham na fábrica
têxtil, tendo acesso como todo funcionário a uma casa na vila. O fato de morar fora da aldeia
fez com que Luís conhecesse uma não indígena, com quem é casado: conheci ela aqui, aí eu
me casei com ela. Apesar de viver em outro Estado, Luís afirma que frequenta
constantemente a aldeia Kariri-Xocó, sobretudo, para participar do ritual-religioso: eu ando lá
direto. Vou de quinze em quinze, vinte, vinte [dias para o Ouricuri]. Luís viaja acompanhado
de seu filho que, assim como o pai, participa do ritual sagrado. O fato de a esposa de Luís não
ser indígena faz com que tenha sua participação vetada ao Ouricuri; portanto, permanece na
vila da fábrica enquanto seu marido e filho viajam a Porto Real do Colégio. No caso de
Bismarck (neto de Maria do Carmo) frequenta a aldeia nos dias de ritual, mas diz, assim como
Luís, que pretende regressar em definitivo para a aldeia. Também Bismarck tem um
relacionamento conjugal com uma não indígena que mesmo frequentando com ele a aldeia em
outras ocasiões, não participa do Ouricuri. Além dele, trabalham e moram na fábrica de
tecido, seus tios, tias e primos/as (todos Kariri-Xocó), sendo que os tios são casados com
mulheres não indígenas e as tias casadas com homens não indígenas. Por conseguinte, os
Kariri-Xocó que trabalham na fábrica, a partir de seus vínculos de parentesco contraem suas
relações de casamento fora do grupo indígena.
A auto-atribuição de uma identidade étnica Kariri-Xocó na situação da Vila Operária
não se dá sem o questionamento pelos brancos das características fenotípicas indígenas.
Assim, segundo Luís, sua identidade étnica foi questionada no início de seu trabalho na
fábrica:

Quando chega aqui, logo fala que você não é índio, porque o seu cabelo não é
escorrido. Meu amigo, mas o índio não está na fisionomia, em cabelo, não. Índio
está no sangue. [...]. Aí, antigamente... hoje, nós temos a Carteira Indígena, né.
Antigamente, nós andávamos para levar era sangue. Então, está certo. Aí, fui para o
Posto [Indígena], vai ter declaração. [...]. Aí, eu ando com a declaração. Agora,
você é índio. Você tem documento dizendo de onde é a sua origem.

Nesse caso, o reconhecimento da identidade Kariri-Xocó e a legitimação do


pertencimento étnico passam pela confirmação da identidade por um documento emitido pelo
Estado brasileiro. Desse modo, antes se exigia “uma questão de ‘sangue’”, portanto, uma
consanguinidade que se manifestava em um fenótipo indígena (REESINK, 2000, p. 370). Os
órgãos governamentais, na década de 80, estabeleceram os denominados indicadores da
indianidade:
42

[...] a Funai, em 26 de janeiro de 1981, através da Instrução Técnica Executiva nº 12,


estabelece o sangue como um dos “Indicadores da Indianidade”. Se os índios usam a
expressão dentro dos princípios de uma possível consanguinidade, o órgão tutelar
pretendia determinar a indianidade através de grupos [con]sanguíneos (MATA,
2014, p. 147)

Contemporaneamente, a emissão da Carteira de Identidade Indígena apresenta-se


como documento indispensável para o reconhecimento étnico perante os órgãos públicos e
utilizado nas situações em que os Kariri-Xocó têm sua identidade questionada: “você não é
índio” (depoimento de Luís Kariri-Xocó). Desse modo, muitos Kariri-Xocó atualmente
recorrem à emissão de documentos tutelares, considerados oficialmente comprobatórios da
etnicidade.

1.2 As narrativas Kariri-Xocó

Edward M. Bruner (1986, p. 139) defende que as etnografias são guiadas por uma
estrutura narrativa implícita, por uma história que o antropólogo conta a respeito das pessoas
por ele estudadas.24 Conforme o autor, os trabalhos da antropologia americana constroem uma
etnografia da mudança cultural. Desse modo, em 1930 e 1949, a narrativa contada sobre a
cultura nativa americana era: o presente como uma desorganização, o passado como glorioso
e o futuro como uma assimilação. Posteriormente, foi construída uma nova narrativa em que o
presente é visto como movimento de resistência, o passado uma exploração e o futuro uma
resistência étnica (tradução nossa)25. Não pretendo realizar uma etnografia da mudança
cultural Kariri-Xocó, mas considero válida a ideia de Bruner da etnografia enquanto narrativa,
para atentarmos em como os Kariri-Xocó elaboram e relatam a sua história que,
inevitavelmente, incidirá na maneira como construo minha etnografia.
A narrativa histórica Kariri-Xocó pode ser pensada em três tempos: passado, presente
e futuro. Cabe dizer que é construída por meio de fontes documentais, relatos nativos e
experiências Kariri-Xocó. O passado é dividido em períodos: (i) à época dos aldeamentos
estabelecidos pelas missões religiosas e a atuação dessas frentes missionárias sobre a
população indígena é vista, em sua maioria, de maneira negativa nos textos antropológicos.
Na visão Kariri-Xocó, uma tentativa dos religiosos de destruição do modo de vida nativo. Em
contraponto, os Kariri-Xocó também constroem um discurso de resistência, sobretudo em

24
Tradução livre do original: “[...] my thesis is that ethnographies are guided by an implicit narrative structure,
by a story we tell about the peoples we study.” (BRUNER, 1986, p. 139).
25
Tradução livre do original: “In the 1930s and 1940s the dominant story constructed about Native American
culture change saw the present as disorganization, the past as glorious, and the future as assimilation. Now,
however, we have a new narrative: the present is viewed as a resistance movement, the past as exploitation, and
the future as ethnic resurgence.” (BRUNER, 1986, p. 139).
43

relação ao Ouricuri. Assim, afirmam que apesar da tentativa de interdição dos eclesiásticos
sobre o ritual, permaneceram praticando. Conforme Nhenety: nunca deixamos de praticar o
nosso ritual do Ouricuri; (ii) posteriormente à ação missionária, quando já viviam na Rua dos
Índios, os relatórios do SPI e as falas dos Kariri-Xocó referem-se a esse período como sendo
de dificuldade, sem terra para plantar, sem barro para a produção da cerâmica indígena, um
período de crise, precariedade, sofrido e triste, porém, esses adjetivos nativos são construídos
a partir de uma relação diretamente atrelada a expropriação do território indígena ocupado por
fazendeiros e posseiros que não somente dominaram o modo de uso da terra, como
estabeleceram a forma como esse espaço deveria ser utilizado pelos indígenas, ou seja, por
meio de uma mão de obra Kariri-Xocó empregada nos arrozais e pela interdição dos Kariri-
Xocó às lagoas. Como consequência dessa política econômica praticada no Baixo São
Francisco, que visava a ocupação do território indígena para fins da agricultura e da
agropecuária, os Kariri-Xocó alegam que não havia terra disponível para o plantio indígena,
nem lagoas ao livre acesso nativo para a extração do barro para a produção da cerâmica. Além
disso, com o desmatamento de áreas verdes para a agropecuária e a agricultura, os animais
foram morrendo e a oferta de caça sendo reduzida; (iii) particularmente, os anos 1970 é
denominado pelos índios como sendo o tempo da fome. Segundo Pawanã: os anos 70 nesta
tribo é o tempo da fome, sabe, muita necessidade.
Segundo os meus interlocutores, antigamente, isto é, antes da construção da barragem
de Sobradinho (nos anos de 1970) o rio São Francisco era volumoso. A atividade pesqueira
indígena é destacada nos relatórios do SPI e nas falas dos Kariri-Xocó. O rio São Francisco é
nativamente denominado rio Opara (que significa rio grande como o mar, segundo Nhenety).
Helena Tinga relembra que pescava no rio durante a noite. Era a pescaria de caniço já
descrita por Hohenthal:

Uma fila de mulheres, com água à altura do peito, avança vagarosamente em direção
à margem [do rio], levando os peixes para uma zona onde há canas; ali são os peixes
capturados com pequenas rêdes manuais e também com uma espécie de armadilha
chamada kuvú, que é uma cesta hemisférica ou forma cônica truncada, posta
ràpidamente na água com sua base aberta descansando no fundo; o peixe assim
apanhado é removido por meio de uma pequena abertura na parte superior. [sic]
(HOHENTHAL, 1960, p. 62, grifo do autor)

Na pesca de caniço entre os Kariri-Xocó, segundo os relatos, ao entrarem no rio


estavam à sorte das piranhas, inclusive, alguns Kariri-Xocó mostraram-me marcas das
mordidas em seus corpos. Muitos são os qualitativos nativos para se referirem ao rio São
Francisco e a importância do mesmo na vida indígena. Ayrama considera o rio como sendo a
44

nossa riqueza [...] desse território que nós moramos. Recorda-se com alegria e nostalgia do
tempo de outrora (há trinta anos) em que havia abundância de peixes que enchiam os balaios,
muita riqueza para todos nós. Relembra que morava na Rua dos Índios e um grupo de
mulheres Kariri-Xocó se reunia para ir pescar no rio São Francisco, à canoa, na altura dos
povoados de Tibiri e Sampaio (contíguos a Porto Real do Colégio). O pagamento ao canoeiro
era feito em quilos de peixe pescado. Chegavam a pescar vinte quilos. O grupo feminino era
numeroso: até vinte mulheres que pescavam coletivamente com o caniço. [Era peixe]
correndo nas pernas da gente, e batia nos peitos, e batia na cara. [...]. Era uma vida rica. Os
índios tinham barriga cheia naquela época. [Contudo], hoje em dia acabou tudo isso. Dá é
tristeza. Os Kariri-Xocó afirmam que o rio São Francisco secou.
O índio José Bonfim recorda da época em que se banhava no rio cheio, de seu pai que
pescava com o kuvú, “artifício de pesca dos Kariri-Xocó, feitos de vara do arbusto maçãzeira,
tipo funil, com uma abertura em cima para colocar a mão e capturar o peixe” (NHENETY,
2013, p. 96). Bonfim também lembra de sua mãe que lavava as roupas no rio. Define como
sendo o tempo que o rio enchia e matava gente. Paradoxalmente, era um tempo de riqueza, do
alimento fornecido pela própria natureza, pelo ecossistema do rio Opara. Hoje em dia, os
Kariri-Xocó afirmam e lamentam que se alimentem de produtos industrializados, apesar de
alguns ainda desenvolverem a pesca, inclusive com o kuvú e o jereré (armação que funciona
como uma rede de pescar). As atividades de pesca na atualidade seguem uma legislação
federal, sendo que no período da desova são interditados da prática pesqueira, sob fiscalização
do Ibama que proíbe a pesca no rio São Francisco ao longo de quatro meses. Durante esse
período proibitivo, os pescadores Kariri-Xocó recebem um “seguro defesa” pago pelo
Governo. Se nesse tempo desenvolverem a pesca são presos, como já ocorreu mais de uma
vez com os desavisados, tendo sido necessária a intervenção do chefe do posto indígena.
Segundo Lourdinha Kariri-Xocó, presidente da Associação de Pescadores Kariri-Xocó,
existem aproximadamente trezentos índios pescadores (homens e mulheres). Para essa
indígena que se define como tarrafeira, tendo aprendido a pescar com seu pai, o rio São
Francisco é sacro, sendo sua água santa, água sagrada. Além disso, a gente vive dele para
pescar, lavar roupa e obter alimento para consumo próprio. Como estas atividades correm
risco de serem suprimidas, caso o rio venha a secar integralmente, Lourdinha afirma: peço ao
meu ritual [Ouricuri que] não deixe o rio secar.
A relevância social e o significado mítico do rio São Francisco na vida dos Kariri-
Xocó é parte fundante das suas narrativas como elemento responsável do ecossistema aos
45

grupos étnicos caracterizados como “índios fluviais” ou “índios de canoa” (HOHENTHAL,


1960).
Em outras situações do trabalho de campo, o rio torna-se um objeto central das
narrativas Kariri-Xocó. Como no dia seguinte a minha chegada à aldeia Kariri-Xocó. Nessa
ocasião fui à carreata política de Dadá, candidato indígena a vereador. A carreata saiu da
aldeia Kariri-Xocó em direção ao centro da cidade de Porto Real do Colégio. Para se chegar a
cidade é preciso percorrer as margens do rio São Francisco; assim, ao mesmo tempo em que
eu observava a carreata, também olhava o rio. Neste momento fui surpreendida por um jovem
Kariri-Xocó que se aproximou de mim e espontaneamente iniciou uma conversa em que
lançou um olhar crítico a respeito daquilo que ele considera ser a situação atual da aldeia
Kariri-Xocó, em consequência do contato do índio com o branco. Atenta ao seu discurso
procurei conversar com ele em outros momentos, como no dia a dia da aldeia, o que fez com
que ele desse vazão ao posicionamento previamente aludido no dia em que o conheci em
frente ao rio. O jovem Kariri-Xocó advertiu: rio São Francisco é para os brancos, mas o
nome verdadeiro do rio: rio Opara. Em seu discurso focou as transformações do São
Francisco, como a redução do volume de água, sendo que antigamente o São Francisco batia
nesse cais, ó. [...]. Esse rio era tipo um mar. A condição atual do rio é motivo de infelicidade
para esse Kariri-Xocó que estabelece uma relação espiritual com o rio, ao dizer que seus avós
que já se foram, que eles não vão para o céu, ficam na terra, eles se transformam em água,
em um peixe, uma árvore. Portanto, afirma que a partir do momento em que se altera a
natureza, está agredindo seus parentes: machucando eles, que eles estão sentindo. Outra
correlação indígena associada ao rio é a cura de doenças. Afirma que em tempos de outrora
quando algum índio adoecia, o pajé dizia e orientava: o seu filho está doente por causa disso e
a sua cura está no rio. [...]. Se pegue com os encantos da aldeia, da natureza. A justificativa
desse jovem Kariri-Xocó para a atual condição do rio São Francisco é a ação humana: hoje, o
rio está assim pela mão do branco. Quem está controlando não é Deus, o mundo hoje, é o
branco, é a gente, é o índio, é o homem, é humano. Por sua vez, esse controle do homem
sobre a natureza tem raiz em projetos desenvolvimentistas na região do Rio São Francisco,
conforme afirmam os Kariri-Xocó: fazem barragens lá para cima. Fazem as comportas para
gerar muitas energias, fora a transposição do rio.
A construção da Usina Hidroelétrica de Sobradinho em 1973, sendo operada em
197926, atinge diretamente a população do Baixo São Francisco. Na tentativa de mitigar o

26
Informação disponível em Sistema Chesf Sobradinho: www.chesf.gov.br, acessado em 03 de outubro de 2017.
Chesf é “A Companhia Hidro Elétrica do São Francisco”.
46

impacto do projeto hidroelétrico, que de um lado inundaria hectares de terra, sendo necessária
a desapropriação de povoados, e do outro a interrupção das águas do rio que naturalmente
irrigavam as plantações, foi criado o II Plano Nacional de Desenvolvimento em 1975,
coordenado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF).
Conforme Mata (2014, p. 208): “o plano ainda se baseia na política de irrigação, criação de
projetos de colonização” e em uma “reformulação fundiária [que], na realidade, tenta resgatar
as Várzeas Inundáveis que não mais seriam atingidas pelo fluxo do rio” (ibidem, p. 210).
Dentre as ações do II Plano Nacional de Desenvolvimento estava a implantação do chamado
Projeto Itiúba, em Porto Real do Colégio. Itiúba é um dos afluentes do rio São Francisco
(ibidem, p. 215). Para que o projeto viesse a cabo houve desapropriação de terras,
posteriormente, loteadas e divididas aos parceleiros. Esse nome é atribuído aos agricultores
que foram previamente selecionados e treinados para o Projeto Itiúba e que receberam área
cultivável para a irrigação (ibidem, p. 213, nota de rodapé 11). Segundo Nhenety: “foram
cadastrados 300 parceleiros (pequenos proprietários) brancos e 40 indígenas. [...]. Os
parceleiros índios resolveram abandonar o projeto, ou vender seus lotes, a partir de 1986”.27
Segundo Mata, as queixas dos parceleiros eram inúmeras: havia conflito entres esses e os
agrônomos da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco em relação à forma
do plantio e ao uso de adubos, além disso, “o parceleiro se encontrava confuso diante da
diversidade das técnicas de plantio a tradicional, a que se acostumava, e aquela introduzida
pelo sistema de irrigação e controlada pelos técnicos do governo” (ibidem, p. 218).
Na corrente dos projetos desenvolvimentistas do Estado brasileiro para a região
Nordeste do país está o Projeto de Integração do Rio São Francisco com a transposição do rio
iniciada em 2007 até os dias atuais, sendo parte do Programa de Aceleração e Crescimento
(PAC) do governo federal28. Segundo o relatório de denúncia: Povos Indígenas do Nordeste
Impactados com a Transposição do Rio São Francisco 29, elaborado pelo Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), a transposição afeta diretamente as populações indígenas que vivem no
território entrecortado pelo rio São Francisco: Kariri-Xocó, Xocó, Anacé, Truká, Tumbalalá,
Pankararu, Tuxá, Pipipã e Kambiwá. Os dados contidos no relatório afirmam que os “[...]
Kariri-Xocó, que se vêem privados da pesca de alguns peixes nativos por causa dos impactos

27
Informação disponível em Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia... :
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 30 de setembro de 2017.
28
Informação disponível em: www.pac.gov.br, acessado em 03 de outubro de 2017.
29
Relatório disponível em: https://www.cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/relatorio_impactados-
transposicao-sao-francisco.pdf, acessado em 11 de dezembro de 2017.
47

das barragens, que mexeram gravemente na vazão do rio e provocaram o avanço desmedido
do mar sobre o rio, o que ameaça também o acesso a água potável” (p. 34-35).
O relatório aponta para a inexistência da consulta prévia aos povos indígenas da região
(p. 20), inclusive, com citação ao pajé Júlio Queiroz Suíra (Kariri-Xocó) que afirmou: “já
tiveram aqui diversos pessoal com as organizações sociais. O governo mesmo não veio aqui
fazer audiência, o Governo nunca esteve não.” (ibidem, p. 27). Segundo o relatório, “ao
longo das últimas quatro décadas, o Rio São Francisco vem sofrendo uma série de
intervenções, sobretudo a partir dos anos de 1970, marcados por grandes projetos
desenvolvimentistas” (ibidem, p. 12), como a construção das Usinas de Sobradinho, Três
Maria, Moxotó, Itaparica, Paulo Afonso I, II, III e IV, Xingó, Hidrelétrica do São Francisco e
a construção das hidrelétricas de Riacho Seco e Pedra Branca (ibidem, p. 7-12). Para a
construção das hidrelétricas houve desapropriação de terras, inclusive, de povos indígenas
como os Tuxá de Rodelas (ibidem, p. 13). O relatório enfatiza a importância do rio São
Francisco para as populações indígenas no que tange à agricultura de vazante, à pesca
artesanal e à “manutenção de seus rituais e cultura (os encantados da água, a história do povo,
as ruínas, os cemitérios, as pinturas, etc).” (ibidem, p. 10). 30
A diminuição do volume das águas do rio São Francisco é constantemente afirmada
pelos Kariri-Xocó que, simultaneamente, relembram de enchentes passadas que alagaram a
aldeia. Hoje em dia, por mais que chova quase que torrencialmente nos meses de inverno,
dificilmente o rio São Francisco transbordará a ponto de atingir a aldeia Kariri-Xocó. A cheia
do rio São Francisco que ocorre no período de inverno, isto é, das chuvas coincidiu com
minha segunda etapa do trabalho de campo em maio e junho de 2017 em Porto Real do
Colégio. Esse período foi de muitas tempestades, diariamente as ruas de terra da aldeia
enlameavam (para a diversão das crianças que brincavam na chuva). No entanto, o rio São
Francisco em frente à aldeia não recuperou o seu volume de água, pelo contrário, assim que a
chuva cessava, o rio voltava ao nível anterior de baixa densidade hídrica. As águas do rio
abastecem a aldeia Kariri-Xocó, sendo que, nesse período de chuva, a coloração da água
chegava às torneiras das casas em um tom terroso. Receosos em utilizá-la, alguns Kariri-Xocó
compraram água potável para beber, até que a água do rio voltasse à coloração anterior
(transparente). Nesse período, as lagoas da aldeia se encheram. Os períodos de chuva e de
estiagem interferem diretamente nas atividades dos Kariri-Xocó. Em minha primeira ida à

30
Assim, segundo Eliane Cantarino O’Dwyer: “O projeto modernizador do estado nação no Brasil, mediante a
construção de barragens [...] têm produzido impactos socioambientais que afetam grupos e populações em suas
formas de viver.” (2014, p. 85).
48

aldeia, no segundo semestre de 2016, era tempo de seca e sol a pino. Os Kariri-Xocó
queixaram-se da falta de chuva que naquele ano não veio. Alguns indígenas haviam preparado
o solo para o plantio de sementes, como as de feijão de corda, mas não choveu e perderam a
safra. Nesse tempo, ao caminhar pela aldeia, não vi nenhum roçado, mas contrariando esse
cenário, no primeiro semestre de 2017, mais especificamente, nos meses de maio e junho,
observei outra condição: devido a intensa chuva, algumas famílias Kariri-Xocó aproveitaram
para plantar. Acordavam logo cedo e seguiam para a suas roças localizadas na parte média e
alta da aldeia, permaneciam por lá o dia todo cuidando da terra. O plantio era diversificado:
feijão, arroz, mandioca, melancia e milho (que seria aproveitado para os festejos juninos).
Portanto, os Kariri-Xocó seguem um tempo ecológico (EVANS-PRITCHARD, 1978) que
estrutura as suas atividades.
O tempo presente é qualificado a partir de narrativas distintas que priorizam a
materialidade da vida e a cultura indígena. O primeiro discurso é adjetivado em condições
materiais de existência: então, se antigamente, os Kariri-Xocó não possuíam bens materiais,
hoje em dia têm carro, moto, casa, cama, televisão e luz. No entanto, a experiência de vida
pretérita (isto é, dos antigos) é comparada à experiência de vida atual. Portanto, Van Kariri-
Xocó recorre à categoria índio nativo para se referir a um passado idealizado Kariri-Xocó.
Segundo afirmou:

Índio nativo é aquele índio que vive, não tem a mistura, está entendendo. Só é índio
com índio mesmo. Tem sua cultura, sua tradição. Vivi nu, está entendendo. É aquele
índio que não tem o branco envolvendo a sua cultura. É o índio que tem seus filhos
na mata, está entendendo.

Considera que os seus parentes indígenas não vivem como um índio nativo. Esta
noção é diretamente associada ao Ouricuri. Conforme Van Kariri-Xocó:

O índio ele não está vivendo hoje, é... como um índio nativo, mas nós temos nossa
reserva que é a mata que é uma tradição. [...]. Porque eu tenho minha cultura, eu
tenho os meus particulares lá, tá entendendo. É algo, o meu particular é algo
espiritual. Assim, não tem a ver com coisas materiais, está entendendo. É uma
preservação, é uma cultura, é uma palestra, está entendendo. De ouvir, de aprender
para não deixar que venha adormecer.

O Ouricuri é reiterado nas narrativas Kariri-Xocó como sendo um item cultural


marcadamente indígena, referência do modo de vida dos antepassados e uma especificidade
cultural mantida até os dias de hoje. Para isso dependem da existência de uma mata, mesmo
que restrita ao local sagrado do Ouricuri que possibilita a relação espiritual com os ancestrais.
Conforme Pawanã:
49

Eu quero viver no mato, né. Eu sonho em ter minhas ocas, né. Minha casa de palha,
minha casa de taipa, né. Quero acordar ao som dos pássaros, assim como é no
Ouricuri, né. Ainda, a sorte da gente é que a gente tem o Ouricuri. Porque se não
tivesse, a gente estaria ainda mais ferido. Fazia mais falta ainda esse mundo, né.
Então, assim, faz muita falta mesmo como nossos antepassados viviam, né. Faz
muita falta.

Atualmente, os Kariri-Xocó vivem em sua maioria na aldeia da Sementeira, havendo


ainda indígenas moradores na Rua dos Índios. Segundo o chefe do Posto Indígena da Funai,
ocupado por um Kariri-Xocó, esta população está estimada em três mil e quinhentos índios
(3.500), sendo oitocentas e cinquentas famílias morando no âmbito da aldeia e cento e
cinquenta (150) na cidade de Porto Real do Colégio. Dado quantitativo que difere do Instituto
Brasileiro de Geografia (IBGE, 2010), cuja população da aldeia é quantificada em duas mil e
dezenove pessoas31. A aldeia Kariri-Xocó situada na Sementeira e a Rua dos Índios têm sido
considerada, segundo as entrevistas realizadas durante o trabalho de campo, um espaço
exíguo, inclusive para abrigar o crescimento populacional das três últimas décadas
impulsionados pelo reconhecimento de direitos e da autoidentificação étnica. Tal processo de
afirmação étnica longe de levar a um “fechamento monopolista” (WEBER, 2002 [1922]) das
fronteiras do grupo tem resultado na expansão do ciclo do desenvolvimento das unidades
familiares domésticas formadas pelos casamentos entre os próprios Kariri-Xocó e entre
Kariri-Xocó e não índios. Apesar das críticas às trocas matrimoniais com brancos, na medida
em que alguns Kariri-Xocó consideram negativa a permanência dos cabeças secas na aldeia,
este tipo de matrimônio ocorrido, como dizem, mais frequentemente nas novas gerações, tem
levado a incorporação dos mesmos no sistema de designação do parentesco e nas dinâmicas
de organização social. Contudo, os cabeças secas de dentro encontram-se de fato excluídos
das práticas rituais e do segredo propriamente dito da cosmologia Kariri-Xocó que envolve o
Ouricuri.

31
Informação disponível no site do Instituto Brasileiro de Geografia, acessado em 28 de agosto de 2017:
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_dos_Indigenas/pdf/tab_3_01.pdf.
CAPÍTULO 2 – ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PARENTESCO

Os Kariri-Xocó constroem um discurso metafórico do parentesco para explicar a


formação da aldeia em que vivem. Desse modo, frases e/ou termos nativos como: aldeia mãe,
berço, tronco e rama, além de adjetivos como acolhedora, são recorrentes nas falas desses
indígenas. Estas palavras, por sua vez, referem-se a uma visão nativa da constituição social do
próprio grupo étnico. Assim, segundo Wytaiha: Kariri-Xocó é a aldeia mãe. Ela acolhe todas
essas aldeias que não tem terra para circular. As populações indígenas do Nordeste foram
expulsas em sua grande maioria dos territórios de ocupação tradicional e, consequentemente,
saíram em busca de novos locais de habitação, muitas vezes junto a outras etnias. De acordo
com Wytaiha: Kariri-Xocó é um povo acolhedor e os Karapotó e os outros [indígenas]
vinham sendo perseguidos por fazendeiros para tirar o índio da sua própria terra. Aí,
expulsavam eles, faziam conflito, aí os Kariri-Xocó acolhiam. Em decorrência, alianças foram
estabelecidas por meio do matrimônio. Conforme Wytaiha: a tribo Kariri-Xocó é acolhedora,
aí vinha, é… outras aldeias refugiadas de conflito com fazendeiro, aí situavam aqui. Aí, sim,
o povo se agrupava, tipo: casava um com outro e vice-versa. Essas retiradas indígenas do
território tradicional, em função de conflitos de terras, e o estabelecimento de alianças por
meio do casamento não eram restritas aos casos citados dos Karapotó e dos Kariri-Xocó.
Segundo Tawanã, a aldeia Kariri-Xocó é o tronco da região nordestina. Nesse contexto, a
noção de tronco está diretamente atrelada aos casamentos interétnicos encontrados na aldeia e
à ideia de que todos os grupos indígenas do Nordeste são formados na aldeia berço Kariri-
Xocó. Tawanã explica sobre as relações de alianças interétnicas: nós temos mistura aqui:
Fulni-ô, Tingui-Botó, Karapotó, Vassu, tudo na aldeia Kariri-Xocó. É por isso que nós somos
considerados o tronco da região.32
É importante destacar que apesar do topônimo da aldeia de Porto Real do Colégio
como Kariri-Xocó, esta não é composta somente de descendentes de Kariri e/ou de Xocó, mas
também de outros indígenas cuja descendência é plural em termos étnicos. Os Kariri-Xocó
traçam linhas de descendências que perpassam vastas categorias étnicas da ampla região do
Nordeste do país. Torna-se relevante dizer que o termo “Carirí”, segundo Hohenthal (1960)
tem sido aplicado a vários grupos étnicos aldeados por missões religiosas no Vale do São
Francisco. O que de certo modo converge com as narrativas dos atuais Kariri-Xocó sobre

32
Fulni-ô (Pernambuco), Tingui-Botó (Alagoas), Karapotó (Alagoas) e Vassu Cocal (Alagoas).
51

aldeia como berço das diversas etnias, inclusive porque até os Xocó, segundo eles, se
agregam à criação do Posto Indígena aos Kariri.
Nas condições de trabalho de campo, os Kariri-Xocó quando perguntados sobre os
casamentos na aldeia, deram uma explicação à pesquisadora tomando por referência as
relações entre brancos, supostamente para minha melhor compreensão do que me diziam.
Assim, segundo contam, para os Kariri-Xocó existe uma diferença entre estar casado e estar
junto. Casar refere-se à consagração pelo poder divino congregado em uma Igreja e/ou pela
via cartorial (casamento civil). Desse modo, um casal Kariri-Xocó pode se relacionar há anos,
ter filhos, morar juntos, mas não se definir como casado, uma vez que não houve cerimônia
religiosa, nem oficialização em cartório. Portanto, a noção de união entre duas pessoas do
sexo oposto pode assumir apenas a condição do “estar junto”, sem que para isso seja preciso
estar casado, conforme o nosso senso comum nos tempos atuais. Neste capítulo para fazer
referências às “uniões afetivas indígenas”, faço uso do termo casamento, conforme a
terminologia antropológica dos sistemas de parentesco (AUGÉ, 1975) 33.
Assim, sobre descendências e pertencimentos, a indígena Shinaré afirma: eu sou de
três etnias. Descendência materna Kariri, descendência Fulni-ô por parte do avô materno e
descendência paterna Pankararu (Pernambuco). Os casamentos interétnicos ocorrem há
gerações: a avó materna de Shinaré era Kariri e foi casada com um Fulni-ô. Pelo lado paterno,
os avós são Pankararu, originários da aldeia Brejo dos Padres – Pernambuco (HOHENTHAL,
1960, p. 54). Contudo, as descendências e misturas interétnicas não configura uma identidade
liminar, isto é, “betwixt and between” (TURNER, 2005 [1967]), porque a autoatribuição
identitária se constrói pelo local de nascimento e moradia. Shinaré se autodefine Kariri-Xocó:
porque eu nasci e estou me criando aqui na aldeia Kariri-Xocó. Portanto, o local de
nascimento e a aldeia onde vivem são variáveis decisivas para a construção da identidade
étnica. Mesmo assim, a descendência e os vínculos de filiação são considerados estratégicos
para a definição da pessoa Kariri-Xocó. Desse modo, o pai da Shinaré, Dioclecio Tenório
constrói a seguinte árvore genealógica ao se referir aos seus antepassados paternos: seu bisavô
era denominado José Lutero Tenório e Dioclecio não recorda o nome de sua bisavó, o que
pode ser uma evidência de uma linha de descendência patrilinear Pankararu. Desse casamento
nasceu Francisco Tenório (avô de Dioclecio). Por sua vez, Francisco Tenório casou com

33
O casamento pode ser definido como “um complexo de normas sociais que sancionam as relações sexuais
entre um homem e uma mulher e que os liga por um sistema de obrigações e direitos mútuos; por meio desta
união, os filhos que a mulher dá à luz são reconhecidos como a progenitura legítima de ambos os pais” (AUGÉ,
1975, p. 41). O casamento cria “laços” de ordem social, econômica e jurídica entre os grupos de parentesco que
estabelecem filiação. (ibidem, p. 42).
52

Joana, igualmente de origem Pankararu. Nasceram os filhos: Sebastião Francisco Tenório (pai
de Dioclecio), João Tenório, Joaquim Tenório e Neco Tenório. Sebastião Francisco Tenório e
Maria Anunciada dos Prazeres, ambos de origem Pankararu, tiveram Lindaura Tenório,
Dioclecio Tenório, Aparecida Tenório, José Francisco Tenório e Maria José Tenório.
Todavia, Sebastião Tenório teve mais de uma mulher. Entre elas, Celestina, de origem Kariri.
Desse “casamento secundário” (AUGÉ, 1975, p. 43) nasceram Benedito Tenório e Maria
Valdecir Tenório. A vinda dos Pankararu à aldeia Kariri-Xocó, dizem que foi motivada por
conflitos dos índios Pankararu com os brancos. Assim, conforme Dioclecio, os Pankararu não
aceitaram a invasão do branco [nas suas terras], por isso desaguaram [para] outras tribos,
[para] outras etnias. Ainda conforme o relato: os Pankararu que não aceitaram revelar o
Ouricuri – a tradição para o branco – foram para outras tribos. Essa metáfora do desaguar
do rio parece configurar as relações entre os “índios fluviais” do Nordeste (HOHENTHAL,
1960) e a indianidade que os une no Ouricuri.
Os Kariri-Xocó usam como designação do parentesco termos como tronco e família,
sendo que tronco se refere à construção das linhas de descendência, bisavós e avós, e desses
antepassados herdam os nomes de família. O termo tronco igualmente se refere às origens
étnicas dos ascendentes, tais como Kariri, Xocó, Fulni-ô, Pankararu, Natú, Karapotó, entre
outras. Os nomes das famílias são dados aos descendentes desses antepassados comuns, os
filhos/as filhas desses ancestrais. Entretanto, a definição étnica desses pertencimentos
depende não apenas da linha de descendência, mas do lugar de origem e do topônimo da
aldeia em que o ego vive. No caso de Dioclecio, ele afirma que o tronco do seu lado paterno,
denominado Tenório, é de origem Pankararu, mas ele próprio se define como Kariri-Xocó.
A filha de Dioclecio, Shinaré traça sua linha de descendência duplamente: paterna e
materna, justapondo-se nesse caso duas filiações unilineares. Assim, a mãe de Shinaré,
chamada Ivonete e sua irmã Maria do Carmo formam uma linha de descendência constituída
pelos primos paralelos, entre os quais o casamento parece interdito, como no caso de Shinaré
e o filho da irmã da sua mãe, chamado Kayrrá. Segundo os Kariri-Xocó, os filhos de duas
irmãs e/ou de dois irmãos são considerados primos carnais, isto é, primos paralelos, entre os
quais costuma haver uma proibição do casamento, segundo as regras do modelo Crow-Omaha
(primos cruzados), cujo casamento preferencial se dá entre primos cruzados.

Aqui, nós chamamos primo carnal quando a minha mãe tem uma irmã que tem um
filho, aí, o filho da irmã da minha mãe é meu primo carnal. [...]. Um primo carnal é
aquele que descende de uma família igual a nossa [parentesco consanguíneo]:
nossos pais são irmãos. Então, nós somos carnais.
53

Ainda com referência aos primos paralelos (primos carnais), Shinaré e Kayrrá, a mãe
deste, Maria do Carmo é considerada do tronco Porroncó, cuja origem é Kariri. A mãe de
Kayrrá não sabe o nome das suas bisavós e dos seus bisavôs, se recorda apenas do nome de
sua avó materna: Maria Rosa, origem Kariri. E o de seu avô materno: Antônio da Cândida
Porroncó, origem Fulni-ô. Dessa aliança matrimonial nasceram Maria Lúcia Taré, mãe de
Maria do Carmo que se casou com José Índio, cuja origem é Fulni-ô34. Assim procriaram:
Maria do Carmo, Ivonete, Edileusa, Maria José e João Batista. Edileusa é casada com José
Lino, origem Tingui-Botó. Maria José vive com Pedro Luciano, origem Pankararu e Ivonete
com Dioclecio, origem Pankararu.
Maria do Carmo casou com Antônio José Santos, cuja família é de origem Pankararu.
Assim, geraram os filhos e as filhas: Silvania, José Cícero (in memoriam), Silvanio
(conhecido como Kayrrá), Lucilvanio, Erivania, Eritânia e Antônio. Desses, apenas Kayrrá é
quem mora em São Paulo. Silvania vive com um Kariri-Xocó. José Cícero viveu com Lucélia
Kariri-Xocó. Kayrrá é casado com Delma Kariri-Xocó. Lucilvanio com Edilene Kariri-Xocó.
Erivania é casada com Batista (não indígena), assim como Eritânia. Antônio mantém laços
afetivos com Gilmara Kariri-Xocó. Todos os filhos de Maria do Carmo e Antônio moravam
com eles. Das três filhas, a primeira a sair de casa foi Silvania, porém, quando conheceu seu
marido, ambos viveram um tempo na casa de sua mãe Maria do Carmo, até conseguirem um
local para morarem sozinhos. As duas outras filhas de Maria do Carmo, ao casarem com não
indígenas foram morar na casa da sogra, no centro da cidade em Porto Real do Colégio. Dos
filhos da matriarca, o primeiro a estabelecer união afetiva foi José Cícero (in memoriam).
Maria do Carmo afirma: esse morou junto com o meu irmão [...]. Carregou [a esposa] para
lá e ficou lá com tio. Aí, depois arrumaram um cantinho e foram viver [juntos] também. Ou
seja, houve inicialmente uma forma de residência avuncolocal35. Em seguida, Kayrrá se uniu
a Delma Kariri-Xocó, tendo levado a esposa para morar na casa da sogra e do sogro: viveu um
tempão aqui, depois alugaram uma casa na aldeia. Assim como Kayrrá, seu irmão Antônio
ao casar com Gilmara Kariri-Xocó, levou-a para morar na casa da mãe dele: aí depois foi que
fizeram o barraquinho dele[s], afirmou Maria do Carmo.

34
Maria do Carmo não soube construir sua árvore genealógica paterna. Afirma não recordar dos nomes de sua
avó e de seu avô paternos.
35
Conforme o Diccionario de Antropología – Thomas Barfield [Ed], a residência avuncolocal é um padrão de
residência pós-marital em que o casal recém-formado vai residir com um dos seus tios, geralmente com o irmão
da mãe do marido (2001, p. 537, tradução nossa). Disponível em:
https://bibliotecavecina.files.wordpress.com/2015/06/barfield-thomas-ed-diccionario-de-antropologia.pdf,
acessado em 10 de agosto de 2017.
54

Após o casamento, com o nascimento de seus filhos, os descendentes de Maria do


Carmo que estabeleceram relações de alianças conseguiram suas próprias residências na
aldeia, relativamente afastadas da residência dos pais. Como já havia casas construídas ao
lado da residência de Maria do Carmo, os filhos construíram suas casas em outros locais da
aldeia. Tomando ainda como referência as relações de parentesco, Kayrrá é dono de uma casa
contígua à de seu sogro. Mas, Antônio e Silvania (irmãos de Kayrrá) têm suas casas bem
afastadas da casa de sua mãe que mora relativamente próxima à entrada da aldeia. As
residências que Antônio e Silvania habitam é fornecida pelo Programa Minha Casa Minha
Vida. Tais habitações foram construídas praticamente no alto da aldeia, uma vez que os
demais locais, isto é, o início e a parte central estavam ocupados por outras construções
residenciais.
As residências da aldeia apresentam configurações familiares diversas: (i) família
nuclear composta pelo pai, pela mãe e pelos filhos/as; (ii) família extensa formada pelos avós,
filhos/as e netos/as; (iii) família formada por avós e netos/as; (iv) família composta pelos
avós, filhos/as, netos/as e os cônjuges dos filhos/as e/ou dos netos/as; (v) tios/as e
sobrinhos/as. Podemos citar como exemplo de família formada por avós e netos/as, Maria do
Carmo e sua filha Silvania: por um período, a primogênita viveu em Aracaju, porém seus
filhos/as permaneceram na aldeia, sendo criados pelos avós maternos. Por este fato, os
netos/as corriqueiramente referem-se aos avós pelos termos mãe e pai. Anos decorridos,
Silvania retornou para a aldeia. Atualmente, vive apenas com seu marido. Seus filhos (do sexo
masculino) dividem a mesma residência, não sendo casados, nem com filhos. Já Itainãn (única
filha de Silvania) vive com um indígena e tem sua própria casa na aldeia onde cria seus
filhos/as. Itainãn mora nas moradias feitas pelo Minha Casa Minha Vida. Essas residências,
segundo informação obtida em campo, foram destinadas para aqueles que precisam, aqueles
que têm casa de taipa, aqueles que mora[vam] com os pais, e que constituíram suas próprias
famílias. Deste modo, constituir família, isto é, casar-se dá direito ao acesso a uma casa
mesmo que fornecida por um programa governamental. A dispersão residencial não coincide
com a transmissão do direito e uso da terra para cultivo que é regulado pelas relações de
alianças nos lotes dos pais ou dos sogros.
55

Figura 2 - Tronco Porroncó (Kariri)

Antônio da
Cândida Maria
Porroncó Rosa

José Maria Antônio


Índio Lúcia Fernandes
Fulni-ô Taré Taré

Antônio Maria Dioclecio Ivonete Edileusa Maria João


do José Batista
Carmo

Maria Ivaldo Ivaneide José Shinaré Ivone Ivani


Ivanilde Francisco Carlos
José Silvania Silvanio Lucilvanio Eritânia Antônio Erivania
Cícero

Em relação à Silvania e Itainãn, apesar de morarem nas casas azuis do Minha Casa
Minha Vida, ambas permanecem o dia todo fora de suas residências, uma vez que trabalham
em uma banquinha comercial dentro da aldeia. Contudo, esta “banquinha” fica em frente à
casa dos filhos de outro casamento de Silvania e próxima a casa de Maria do Carmo. Cabe
lembrar que Maria do Carmo é mãe de Silvania e avó de Itainãn. O local do trabalho de
ambas, Silvania e Itainãn, favorece o contato diário da família na casa da mãe e na casa dos
filhos de Silvania. Assim que amanhece, mãe e filha já aparecem nessas residências e só
retornam para as suas próprias casas à noite. Esse fato faz com que frequentem a casa de
Maria do Carmo em diversos horários do dia. Os filhos/as de Itainãn vivem livremente pela
aldeia, enquanto a mãe trabalha. Assim como as demais crianças, circulam por toda a área
indígena e entre diversas casas. Os bisnetos/as de Maria do Carmo frequentam a casa da
bisavó a maior parte do tempo. Só retornam para suas casas quando a mãe (Itainãn) os chama.
Maria do Carmo agrega a família, portanto, sua residência é o local de encontro entre os
irmãos/as, seus respectivos filhos/as, além das cunhadas da matriarca, dos sobrinhos/as, dos
genros e das noras.
56

Os Kariri-Xocó têm as residências como locais de encontro, assim é muito comum


observar grupos de pessoas aparentadas sentadas em frente às casas, conversando durante
todo o dia e à noite. Os vizinhos (sejam parentes próximos ou não) também costumam
conversar entre si nas varandas das casas. Maria do Carmo e Antônio costumeiramente
sentam debaixo da sombra de uma árvore localizada em frente à sua residência. Neste local
permanecem parte do dia com aqueles que aparecem para dialogar com o casal: vizinhos,
crianças (netos e amigos dos netos), o sogro de Kayrrá, o chefe do Posto Indígena, os filhos e
as filhas do casal e pessoas não indígenas que mantêm relações de proximidade com essa
família.
Ao lado da casa de Maria do Carmo vive seu cunhado, casado com uma índia Fulni-ô.
Ele frequenta quase que diariamente a casa desta sua parente. Fora isso, a residência de Maria
do Carmo tem movimento constante, uma vez que o marido dela vende produtos para seu
sustento. Para Seu Antônio é uma importante forma de complementar a renda familiar, visto
que depende de aposentadoria irrisória. Maria do Carmo também é aposentada, com o
dinheiro do INSS ajuda financeiramente a família, isto é, filhos e filhas. Em frente à sua casa
tem um bar em que os Kariri-Xocó jogam sinuca, sendo assim, o movimento ao redor da
residência é frequente. Aqueles que comparecem ao bar, muitas vezes, mantêm conversas
paralelas com Antônio e Maria do Carmo que ficam sentados em sua varanda.
O período da noite também é um horário de visitas entre os Kariri-Xocó. Ao andarmos
pelas ruas sob a luz da lua e/ou das estrelas, vemos as famílias sentadas do lado de fora de
suas residências proseando entre si. Nas residências que frequentei, sobretudo, de Maria do
Carmo e Antônio, e do jovem casal Pawanã e Nary, sempre havia visitas ao entardecer e ao
anoitecer. A residência de Pawanã e Nary era muito frequentada por familiares: irmãos,
primos, sobrinha, entre outros. Esta família formou um grupo de apresentação ritual em que
viajam a diversas cidades do Brasil, com o intuito de ensinar ao não índio a cultura Kariri-
Xocó. No caso, realizam apresentação do Toré, fazem pajelança, venda do artesanato indígena
e oficinas de cerâmica Kariri-Xocó, atividade tipicamente feminina (MATA, 2014, p. 101). O
grupo é composto pelos integrantes desta família, mais especificamente, pai, mãe, filhos,
irmãos, tias, primos e sobrinhos. Como Pawanã é o responsável pelo grupo de apresentação
ritual, sendo comumente contratado para realizar atividades fora da aldeia Kariri-Xocó, sua
residência é o local em que os integrantes deste grupo se reúnem para programarem as
próximas viagens a trabalho. Outro motivo para a casa de Pawanã ser bastante movimentada é
que ele é uma liderança indígena na aldeia Kariri-Xocó; logo, sua residência é um espaço para
discutir política entre aqueles indígenas que compartilham dos ideais de Pawanã. Esta
57

residência também recebe visitas de índios que vivem em outras aldeias do Nordeste. Em uma
ocasião específica, um jogo de futebol entre Kariri-Xocó e Fulni-ô, lembro-me de ter ido à
casa de Pawanã para conversar com sua esposa Nary. Ao chegar à residência havia índios
Fulni-ô. Estes, por sua vez, estavam prontos para acompanhar Pawanã a terra Kariri-Xocó
recém retomada no Povoado Sampaio, para realização do Toré. Assim, as relações entre estes
grupos étnicos (Kariri-Xocó e Fulni-ô) é realizada de diversas formas e com múltiplos
elementos sociais e culturais: por meio do Toré, do Ouricuri, das alianças interétnicas e
partidas de futebol.
Conforme Waré, etnia Kariri-Xocó, o esporte possibilita contatos interétnicos entre
aldeias. No seu caso, afirma que ao ir à aldeia Karapotó, em Alagoas, para jogar bola, teve a
oportunidade de encontrar pessoas, entre elas, a sua atual mulher que é a filha do cacique [in
memoriam] de Karapotó Terra Nova. Atualmente, Waré vive entre os Karapotó, mas
frequenta sua aldeia de origem Kariri-Xocó.
Mas, voltemos ao exemplo de Maria do Carmo tomada ainda como ego das relações
de parentesco. Sua mãe teve filhos com mais de um homem. Dessa relação nasceu um dos
irmãos de Maria do Carmo, nomeado Francisco Sampaio da Silva. Esta família morava na
entrada da aldeia, em frente às casas das irmãs de Maria do Carmo. Porém, há seis anos,
Francisco Sampaio mudou-se para a parte alta da aldeia. A decisão de se deslocar da parte
baixa para a alta foi do patriarca da família que se sentia incomodado com determinados
acontecimentos. Conforme afirmou uma das filhas de Francisco Sampaio, que define seu pai
como sendo um índio, um homem muito reservado para cultura, para crença, para tradição.
Aí, ele vê a invasão, que ele não estava tendo mais aquelas, é... aquele… aquela liberdade.
Ele achou por bem tirar a gente de lá para cá. A obtenção do terreno para a elevação de uma
nova casa para Francisco Sampaio e sua família se deu no período em que o patriarca morava
na residência anterior, mas possuía um terreno na parte alta da aldeia para a roça em que
plantava milho e feijão. O local atual de habitação da família de Francisco Sampaio da Silva é
denominado Sítio Alegre Aracaré Parrancó36. Cabe dizer que não são todas as residências
Kariri-Xocó que dispõem de espaço para o plantio, desse modo, aqueles que desejam ter um
roçado precisam se deslocar para outra área da aldeia a fim de produzir alguns bens
alimentícios. Este foi o caso da família de Francisco Sampaio da Silva. Tendo esta área
exclusivamente reservada para uso da sua unidade familiar, Francisco pôde delimitar este
espaço como seu. Como a situação na antiga moradia estava trazendo problemas de

36
Parrancó e Porroncó são sinônimos, no entanto, a pronuncia da palavra é dita diferentemente entre os membros
da família. Maria do Carmo diz Porroncó. Seus sobrinhos/as falam Parroncó.
58

sociabilidade, inclusive gerando desentendimento com pessoas de fora, Francisco decidiu agir
de modo que pudesse permanecer residindo na aldeia Kariri-Xocó, mas afastado daquela área
específica que lhe trazia descontentamento. A partir do momento em que se mudou para o
Sítio, Francisco estabeleceu um limite social, uma vez que se afastou daquela zoada,
posicionando-se de modo antagônico a tudo aquilo que ocorria no espaço da entrada da aldeia.
Por fim, impôs de certa forma, um fechamento monopolista37 da fronteira étnica circunscrita
ao espaço do Sítio ao censurar casamentos entre índios e brancos, recorrentes na aldeia Kariri-
Xocó. Assim, segundo Caboclo – filho de Francisco –, no Sítio Alegre Aracaré Parrancó: nós
vamos fazer um grupo, uma família vai ser um grupo, composto por irmãos, irmãs, sobrinhos,
sobrinhas, netos, netas e afins. Casamentos entre Kariri-Xocó e outras etnias indígenas são
permitidos. Atualmente existem no Sítio dezessete casas formadas por novos casais sendo
tudo índio com índio. Só serão permitidas neste espaço territorial e familiar, construções de
novas casas para aqueles que sejam da família: só vai fazer da família mesmo da gente: os
meus netos, sobrinhos, só família. Nós não queremos de jeito nenhum [outras pessoas],
afirmou a filha de Francisco Sampaio da Silva. Pelo fato do ascendente da família (Francisco)
ter falecido, houve uma substituição da liderança masculina pela feminina, assim, quem
assume a chefia desta família é a esposa de Francisco: ela quem resolve, ela quem toma de
tudo. [...]. Ela quem decide.
A família de Kayrrá é mais uma exemplificação de como as relações interétnicas
formam o povo Kariri-Xocó. Seu pai tem descendência Pankararu, sua mãe descendência
paterna Fulni-ô e descendência materna Kariri. A mãe de Kayrrá explica: [seu marido
Antônio] chegou pequenininho aqui [em Kariri-Xocó] mais a família dele. Os pais dele
vieram de lá para cá, aí ficou aqui junto com nós. Aí, foi crescendo, crescendo, junto com nós
e nós nos conhecemos. Variáveis como idade e local de criação são imprescindíveis para a
autoidentificação de Antônio como Kariri-Xocó. O fato de ter vindo de Brejo dos Padres
(Pernambuco) para Porto Real do Colégio desde muito cedo e, portanto, ter sido criado em
Kariri-Xocó, é substancial para que Antônio se autoidentifique como Kariri-Xocó: eu me criei
aqui [...]. Eu me cadastrei como Kariri, como Kariri-Xocó. Contudo, não deixa de afirmar
sua origem Pankararu. Assim, ao estar frente a frente com sua prima Marciana que vive em
Karapotó Plak-Ô (Alagoas), Antônio falou para mim: ela é da minha aldeia. Ao que Marciana
respondeu orgulhosamente: nascida e criada [em Pankararu]. Marciana é um exemplo da
circulação dos índios do Nordeste nas aldeias da região: é da aldeia Pankararu, já morou em

37
Ver Max, Weber (2002 [1922]).
59

Kariri-Xocó, atualmente vive em Karapotó Plak-Ô. Afirma, apenas não conhecer Águas
Belas. [...]. Só falta esta aldeia para a índia Marciana ir lá. E Vassu Cocal [...]. Só faltam
estas duas. Mas as outras todinhas, a Marciana já esteve lá.
O lado materno de Antônio é Pankararu, seu avô fora conhecido como Anjo Valério.
Sua avó como Maria Joana Valério. Ambos geraram: Ana Maria da Conceição (mãe de
Antônio), Maria das Dores Valério, Maria Joana Valério, João Anjo Valério e Ercília Valério.
Ana Maria casou com José de Guinga, com quem teve o filho Antônio José Santos (pai de
Kayrrá) e Antônia Santos. O nome deste tronco é Valério que designa os ascendentes de
Antônio. Sua irmã, cujo nome é Antônia Santos casou-se com Antônio Cândido, irmão de
Maria do Carmo. Também houve outros casamentos entre as famílias de Maria do Carmo e
Antônio: Maria das Dores, tia materna de Antônio com José Francisco, tio materno de Maria
do Carmo.
O lado paterno de Antônio também é originário do povo Pankararu. Seu avô, cujo
nome é Joaquim Serafim era o pajé dos Pankararu. Sua avó era Emília, o sobrenome não é
recordado pelo neto. Desse relacionamento nasceram José de Guinga (pai de Antônio), Danda
de Guinga e Cícero de Guinga. O nome deste tronco é Serafim, segundo Antônio.
Os diagramas de parentesco são exemplos da diversidade étnica formada na aldeia
Kariri-Xocó em que troncos de origens diversas se cruzam entre si. Pawanã, que se define
Kariri-Xocó, traça sua linha de descendência a partir dos Xocó, dos Fulni-ô e ao povo de
Pacatuba de Sergipe. Seu avô materno é do aldeamento de Pacatuba. Conforme Pawanã: [...]
em Sergipe não tinha só os Xocó, existia outras tribos também, como os Pacatuba. [...].
Agora, Pacatuba tem poucos e foi ele só que restou. Tem outras famílias, mas é bem
pouquinho, porque foi extinta mesmo essa aldeia. Do lado paterno de Pawanã, a avó vive em
Fulni-ô e o avô é Kariri-Xocó. Pawanã nasceu em Kariri-Xocó e é casado com Nary Kariri-
Xocó.
Ao conversar com as ascendentes de Pawanã, isto é, sua mãe Marinita e a irmã de sua
mãe, Helena Tinga, ambas traçam a seguinte árvore genealógica do lado materno: tataravó
Antônia Rosa, porém não se recordam do nome do bisavô, trata-se neste caso de uma filiação
matrilinear? Até porque, Pawanã é do grupo da sua mãe. Antônia Rosa gerou Maria Lotera
(bisavó de Helena e Marinita). Por sua vez, Maria Lotera se casou com Mané Grosso. Desse
casamento nasceu Maria Josefa Lotera (avó de Helena e Marinita). Maria Josefa Lotera
nasceu em Ilha de São Pedro - Sergipe, local em que vivem os Xocó. Porém, Maria Josefa
Lotera foi criada em Porto Real do Colégio. Conheceu José Felipe Santiago (não índio), com
quem teve Maria das Dores da Silva Soya (mãe de Helena e Marinita). Já Maria das Dores
60

com Antônio Pedro Tinga, origem Xocó, nasceram: Maria Helena38, José Bonfim (sogro de
Kayrrá), Valdete, Valdice, Marinita (mãe de Pawanã), Antônia (in memoriam), Elenusia,
Helenildo e Antônio (in memoriam). Este tronco é denominado Soya. E Kayrrá tem relações
de aliança, isto é, pelo casamento com o tronco Soya, ao qual pertence por relações de filiação
Pawanã.
Contudo, além de ter se relacionado com Maria Josefa Lotera (avó de Helena e
Marinita), José Felipe Santiago teve mais uma mulher: Benedita, conhecida como Bita. Desse
casamento nasceu Cícero de Souza Santiago, conhecido como Cícero Daruanda, ex-cacique
Kariri-Xocó. Assim, Cícero Daruanda é irmão da mãe de Marinita Tinga Silva, sendo tratados
como tio e sobrinha pela matrilinearidade. Esta informação é importante, uma vez que será a
partir deste laço de parentesco que vincula tio e sobrinha pelo lado matrilinear que a
reivindicação de cargos de lideranças, mais especificamente, cacique e pajé da aldeia Kariri-
Xocó serão legitimados por integrantes desta família.
O lado paterno de Marinita e Helena tem ascendência em Pedro Paulo Tinga, origem
Xocó e Maria Celestina, também de origem Xocó. Ambos são avós de Marinita e Helena.
Desse casamento nasceram: Antônio Pedro Tinga (in memoriam, pai de Marinita e Helena),
Teresinha (in memoriam), Maria Roca (in memoriam) e Pedrinho. Antônio Pedro Tinga casou
com Maria das Dores da Silva Soya (mãe de Marinita e Helena). Helena casou com Júlio
Queiroz Suíra, o pajé da aldeia Kariri-Xocó. Deste casamento nasceu Helenice da Silva
Tinga. Atualmente, Helena e Júlio não estão casados. Ambos casaram com outras pessoas.
Helena conheceu Zé Gordão (não índio) com quem teve filhos. Marinita casou com João
Batista Taré, origem Xocó. Além dele, Marinita casou com Manuel Nunes, origem Xocó com
quem teve José Nilton Tinga da Silva, José Edenilton Tinga da Silva (conhecido como
Pawanã), Edicarlos Tinga da Silva (in memoriam), Kayke Tinga da Silva (in memoriam),
Rubis Tinga da Silva, Edicarlos Tinga da Silva (conhecido como Kajaby) e Flávio Silva
Nunes. Estes homens compõem o grupo de apresentação ritual liderado por Pawanã. Além
desses filhos, Marinita teve mais três com Ademir Nunes, origem Xocó, que é tio de Manuel
Nunes, com quem Marinita casou anteriormente.

38
Conhecida na aldeia Kariri-Xocó como Helena Tinga.
61

Figura 3 - Tronco Valério (Pankararu)

Anjo Maria
Valério Joana

José Maria Maria Ana João Ercília


de das Joana Maria Anjo
Guinga Dores

Maria
Antônio do Antônia
José Carmo

José Silvania Silvanio Lucilvanio Eritânia Antônio Erivania


Cícero (Kayrrá)

Figura 4 - Tronco Serafim (Pankararu)

Joaquim Emília
Serafim

José Danda Cícero Ana


de de de Maria da
Guinga Guinga Guinga Conceição

Antônia Antônio
José dos
Santos
62

Figura 5 - Tronco Soya (Xocó)

Antônia
Rosa

Mané Maria
Grosso Lotera

José Maria
Felipe Josefa
Santiago Lotera

Antônio Maria das


Pedro Dores da
Tinga Silva Soya

Maria José Valdete Valdice Marinita Antônia Elenusia Helenildo Antônio


Helena Bonfim

Na aldeia Kariri-Xocó, no presente etnográfico, observam-se processos de fissão e


fusão (ERIKSEN, 2001) a partir da organização do parentesco. É o caso de troncos familiares
que se dividiram e se reagruparam para a formação de um novo agrupamento tribal
denominado por eles como Fulkaxó. Formado por oitenta e oito famílias provenientes de
outros troncos. O nome Fulkaxó é composto pelos prefixos dos etnônimos Fulni-ô, Kariri e
Xocó. Segundo Tawanã: Ful que é de Fulni-ô, Ka é de Kariri e Xó que é de Xocó. Os Fulkaxó
perpetraram uma ação na Procuradoria de Aracaju para que a Fundação Nacional do Índio
disponibilize uma área em Sergipe para a construção de uma aldeia Fulkaxó. Para tanto,
houve uma mobilização interna dos integrantes Fulkaxó com a esfera pública em busca da
formação de um novo território indígena. Tawanã afirma que os Fulkaxó reivindicam um
registro próprio, mas continuam sendo reconhecidos como parte da etnia Kariri-Xocó, tanto
que Tawanã que é integrante do grupo Fulkaxó diz que com o reconhecimento do novo
63

território irão se mudar para a nova aldeia, mas continuarão a frequentar o ritual do Ouricuri
na aldeia Kariri-Xocó.
Casos como os do Tingui-Botó, Aconã, Karapotó e Fulkaxó ilustram: (i) uma nova
divisão étnica engendrada por indígenas que viviam na aldeia Kariri-Xocó; (ii) a busca de
reconhecimento étnico de novos territórios e/ou a reivindicação étnica-territorial por meio de
retomadas do antigo território tradicional de ocupação indígena.
A metáfora nativa berço utilizada para se referir à aldeia Kariri-Xocó remete à ideia de
origem, ou ainda, a um ponto de partida que possibilita continuidades e desdobramentos. Em
relação à aldeia Kariri-Xocó, esta é vista por Tawanã como sendo referência para várias
outras aldeias do Nordeste: a maioria das outras aldeias, como tinham perdido uma boa parte
da sua cultura, então, se espelhou no povo Kariri, Kariri-Xocó. Então a maioria, se você
andar em todas as aldeias aí, você vai ver influência do povo Kariri. A influência cultural a
que se refere Tawanã é na parte ritual, especificamente, o Toré. Segundo Tawanã, os cantos
do Toré da aldeia Kariri-Xocó e os cantos do Toré em outras aldeias são diferenciados.
Tawanã afirma:

[Algumas] aldeias não sabiam como era aquele canto, [portanto, foi preciso dos]
troncos mais velhos [representados] pelos Pankararu, Kariri e Fulni-ô para que as
outras aldeias que estavam perdidas se despertassem todinhas, [uma vez que] índio
existia, mas estava esquecido na cultura.

Conforme Tawanã, havia uma relação sobrenatural entre vivos e mortos para que
houvesse um ressurgimento musical indígena em determinadas aldeias: [esses índios de
outras] aldeias não sabiam como era aquele canto. Vinham vozes, alguém vinha dizer, os
antepassados vinham dizer, mas eles faltavam se juntar para: como é isso, então precisou das
aldeias matrizes [como Pankararu, Kariri e Fulni-ô]. 39
Portanto, o Toré “revitalizado”
(REESINK, 2000, p. 359) não somente comprova a indianidade (REESINK, loc.cit) desses
grupos, como é o elemento sociocultural utilizado por esses índios para afirmarem e
fortalecerem seu pertencimento étnico, bem como manterem e estreitarem relações entre si.
Conforme Tawanã, os Xocó que em séculos anteriores saíram de Sergipe, expulsos de seu
território, seguindo em retomada a Porto Real do Colégio trouxeram a parte religiosa [...],

39
Jack Goody (1995) ao prefaciar o livro de Fredrik Barth (1995 [1987]) referente à variação interna do ritual e
da cosmologia da população Ok (Nova Guiné), considera os anciãos “comunicadores privilegiados” na
transmissão oral do conhecimento. Conforme Goody, as pessoas mais velhas ao falecerem levam consigo para o
“mundo dos ancestrais” o conhecimento adquirido ao longo da vida. Porém, mesmo que estejam mortos, esse
conhecimento pode ser revelado por meio do culto aos ancestrais em que o falecido transmite o seu saber para os
vivos. Ao que parece, este foi o caso de algumas populações indígenas do Vale do São Francisco, conforme
podemos considerar, segundo as informações dadas por Tawanã.
64

espiritual, veio tudo, todos para cá. Em Porto Real do Colégio e em contato com os Kariri
houve uma manutenção dos cantos indígenas. O tempo passou, os Xocó reivindicaram o
território tradicionalmente ocupado em Ilha de São Pedro e a homologação foi realizada,
sendo definida como Terra Indígena regularizada pela Fundação Nacional do Índio. 40 Com
isso, houve um retorno de alguns Xocó ao antigo território; porém, segundo Tawanã, esses
Xocó que regressaram não recordavam alguns cantos. Como o conteúdo cultural musical foi
mantido em Kariri-Xocó, esses indígenas compareceram em Ilha de São Pedro para uma
iniciação de cânticos. Tawanã afirma: quer dizer que hoje existe os Xocó lá, mas eles, nós
tivemos que ir para lá, passamos alguns cantos também.
Dentre os Xocó que vieram no século XIX para Porto Real do Colégio estava a bisavó
de Tawanã: com seis meses ou foi de nascida ou foi na barriga da mãe dela de São Pedro,
quando foi expulsa de lá. Disse Tawanã. Este indígena não é o único a lembrar e referenciar
um ente antigo; desse modo, a memória dos Kariri-Xocó às gerações passadas legitima a
herança étnica e a busca por garantia dos direitos originários deste povo.
Mais uma vez, a diversidade das origens étnicas constitutiva dos Kariri-Xocó é
destacada no discurso nativo. Nhenety, ao traçar sua linha de descendência, refere-se a sua
bisavó Maria Tomásia, origem Natu. Para asseverar a veracidade de sua fala, Nhenety recorre
ao texto produzido por Carlos Estevão (1942) sobre remanescentes indígenas do Nordeste em
que cita justamente o nome de Maria Tomásia:

Pelas investigações realizadas naquela cidade [Porto Real do Colégio], constatei que
alí vivem descendestes das tribus “Natu”, “Chocó”, “Carapotó”, e, possivelmente,
“Prakió” e “Naconã”, que, segundo me declarou a velha cabocla “Natú”, Maria
Tomázia, foram, também, aldeadas em Colégio. [sic] (ESTEVÃO, 1942, p. 172).41

Conforme Nhenety, sua bisavó é descendente de Maria Pirigipe, origem Natu e de


Manuel Altanásio dos Santos, origem Kariri. Do casamento de Manuel e de Maria nasceram
Maria Tomásia, João Baca e Antônia Baca. Maria Tomásia deu à luz a Manuel Filinto
Pirigipe, filho de Manuel Caetano de origem Fulni-ô. Em um segundo casamento, com João
Pereira, origem Kariri, Maria Tomásia engravidou, tendo duas meninas: Maria Pureza
Pirigipe (avó de Nhenety) e Ervira Pirigipe. Maria Pureza casou com Euclides Ferreira dos
Santos, origem Botó e tiveram os seguintes filhos/as: Jurandir Ferreira dos Santos, Maria de
Lurdes (mãe de Nhenety), Maria José, Maria do Carmo e Jandira. Maria de Lurdes e Alírio

40
Informação disponível em Fundação Nacional do Índio, acessado em 07 de agosto de 2017:
http://www.funai.gov.br/terra_indigena_2/mapa/index.php?cod_ti=7901.
41
Conforme Carlos Estevão: “[...] as investigações etnográficas e arqueológicas por mim realizadas, em 1935 e
1937, nos sertões de Pernambuco, Baía e Alagoas” (1942, prefácio do artigo).
65

Nunes de Oliveira, origem Xocó, geraram: Marinalva, Lindinalva, Maria Hélia, Alírio Júnior
(falecido), Antônio Carlos, Maria de Lurdes Filha, José Nunes de Oliveira (conhecido como
Nhenety) e Erílio Nunes. Esta formação é nativamente denominada tronco Baca, cujo início
se deu pela aliança entre um Kariri e uma Natu. O tronco Baca corresponde ao lado materno
de Nhenety. O lado paterno é o tronco Soyré. João Nunes Soyré e Maria Tomásia42, ambos de
origem Kariri estabeleceram um casamento do qual nasceram: Manuel Nunes Soyré (avô de
Nhenety) e Cícero Nunes Soyré. Manuel Nunes Soyré conheceu Júlia Pires Muirá, origem
Xocó, com quem formou uma família: Alírio Nunes (pai de Nhenety), Edite Pires, Antônio
Nunes, Ivete Pires, Paulo Nunes, Josival Nunes e Neci Pires.
Vimos anteriormente as distinções nativas entre tronco e família. O primeiro termo
refere-se aos antepassados, enquanto família são os descendentes desses anciãos. A noção
nativa de família envolve duas categorias: família de casa e família de fora. Conforme uma
senhora Kariri-Xocó (que prefere que o seu nome não seja revelado), a categoria família de
casa abarca pai, mãe, irmão/ã, tio/a, sobrinho/a, primo/a. Enquanto família de fora refere-se à
nora e ao genro que não são o mesmo sangue. Além de relações de filiação matrilinear e
patrilinear, os Kariri-Xocó estabelecem laços de compadrio. Assim, Maria do Carmo tem
como padrinho e madrinha o ex-pajé Francisco Queiroz Suíra e sua esposa. Por sua vez, existe
uma reciprocidade em que Maria do Carmo é madrinha de um dos filhos do pajé Júlio
Queiroz Suíra que é filho do ex-pajé Francisco Queiroz Suíra.

42
Este nome não tem referência alguma com a Maria Tomásia do tronco Baca, portanto, são nominações iguais,
mas mulheres indígenas pertencentes a troncos distintos, sendo esta última Soyré.
66

Figura 6 - Tronco Baca (Natu e Kariri)

Manuel
Altanásio Maria
dos Santos Pirigipe

Maria João Antônia


João Manuel Tomásia Baca Baca
Pereira Caetano Pirigipe

Euclides Maria Ervira Manuel


Ferreira Pureza Pirigipe Filinto
dos Santos Pirigipe Pirigipe

Jurandir Alírio Maria de Maria Maria Jandira


Ferreira Nunes de Lurdes Ferreira José do
dos Santos Oliveira dos Santos Carmo

Marinalva Lindinalva Maria Alírio Antônio Maria de José Erílio


Hélia Júnior Carlos Lurdes Nunes de Nunes
Filha Oliveira

Figura 7 - Tronco Soyré (Kariri)

João
Nunes Maria
Soyré Tomásia

Manuel Cícero Júlia


Nunes Nunes Pires
Soyré Soyré Muirá

Alívio Edite Antônio Ivete Paulo Josival Neci


Nunes Pires Nunes Pires Nunes Nunes Pires
Soyré
67

Em relação às nominações dos troncos, estes têm equivalentes na Língua Portuguesa,


como resultado, segundo afirmou Tawanã: [de] uma influência de antes, que o não índio
botava, ia para o cartório ser registrado e não aceitava, às vezes, nomes indígenas. Em
relação à recusa do cartório em cadastrar nomes indígenas, segundo relatos durante o trabalho
de campo, os Kariri-Xocó portavam nominações registradas em cartório que oficializava
nomes e sobrenomes em Língua Portuguesa, dados por religiosos. Em contraposição, o Posto
Indígena tinha um número de cadastro em que o chefe do posto passou a registrar os Kariri-
Xocó por meio de nominações nativas. Segundo Tawanã, as nominações dos troncos são
equivalentes a sobrenomes que nomeiam os troncos do lado materno ou do lado paterno.
Vejamos a tabela a seguir em que constam alguns nomes dos troncos Kariri-Xocó e suas
designações em Português43:

Nominações nativas dos troncos Sobrenomes na Língua Portuguesa

Tononé (Xocó) Francisco

Ibá (Kariri) Santana

Parroncó (Kariri) Cândido

Taré (Kariri) Fernandes

Baca (Kariri) Pirigipe

Tibiriçá (Pankararu) Tenório

Soyá (Xocó) Lotera

Soyré (Kariri) Nunes de Oliveira

Poité (Kariri) Roberto

Botó (Kariri) Ferreira

Tinga (Xocó) Felizmino

Muirá (Xocó) Pires

Em termos semânticos, cada um desses troncos tem significados próprios. A tabela


abaixo ilustra os nomes dos troncos na língua Kariri e suas traduções em Português.
Entretanto, Nhenety adverte que nem todas as palavras estão seguindo fielmente seu
significado, por motivos de nossa tradição do Ouricuri que os mantêm em segredo.

43
Informações obtidas com Nhenety, durante trabalho de campo, em 09/06/2017.
68

Nomeações dos troncos na língua nativa Traduções em Língua Portuguesa


Ibá Pescador
Soyá Peixe de um só lado
Botó Besouro que fere
Tibiriçá Tibiri (formiga) + çá
Tinga Branco, claro
Soyré Cantadores
Pirigipe Nadador
Poité Ancora
Suíra Criadores de abelha
Tononé Aqueles que são acolhedores
Muirá Arco
Parrancó Margem do rio
Taré Ta (fogo) + ré (sagrado) = fogo sagrado
Nidé Arara Azul
Baca Povo da floresta

Cada um desses troncos apresenta habilidades específicas que podem representar


especificidades socioculturais. Os Ibá seriam os canoeiros (pesca, canoa, lancha); os Poité:
pescadores; os Soyré: cantador (Toré e Rojão); os Soya: fabricação de cerâmica; os Tibiriçá:
viajantes; os Tinga: cantadores e estivadores; os Baca: criadores de abelhas e agricultores; os
Parrancó: rezadores e conhecedores das ervas; os Suíra: pajés; os Tinga: cantadores e
coletores de tauá para pintura da cerâmica; os Binga: agricultores; os Botó, os Muirá e os
Serafim: cacicado – cacique.
Os Kariri-Xocó na contemporaneidade estabelecem contatos e alianças com povos
indígenas da Amazônia. Assim, conforme Tawanã: nós temos índios aqui na nossa tribo, [...]
casado com uma Gavião. Ele trabalhou de chefe de posto lá, [...] conheceu essa índia [...] e
veio embora com ela e hoje tem a mistura. Além de alianças entre indígenas, uniões entre
Kariri-Xocó e não índios são recorrentes. As irmãs de Kayrrá, respectivamente, Erivania e
Eritânia, são casadas com cabeças secas, portanto, sem conhecimento e participação no
Ouricuri. Erivania mantém matrimônio com Batista, com quem tem duas filhas. Eritânia é
casada com um branco, com quem tem três filhos. Apesar desses exemplos se referirem a
pessoas distintas que se uniram e que vivem fora da aldeia, existem não índios que moram
69

com seus parceiros/as no interior da aldeia, sendo motivo de críticas por parte de alguns
Kariri-Xocó. A permanência dos não indígenas na aldeia segue normas sociais impostas pelos
Kariri-Xocó. Conforme Tawanã: nós índios [...] podemos fazer em certas ocasiões [...]
nossas próprias leis e os brancos não podem ter na aldeia o mesmo comportamento que eles
têm na cidade. Assim, tempos atrás, os Kariri-Xocó mais jovens instituíram uma norma que
estabelecia o horário em que os não indígenas poderiam circular pela aldeia. Era autorizado
aos brancos que namoravam as Kariri-Xocó estarem na aldeia das seis horas às vinte e duas
horas (6 horas às 22 horas). E aqueles que moram com as Kariri-Xocó na aldeia seguiam a
seguinte norma: chegando na hora que ele entrar, seja dez horas, dependendo do que ele está
trabalhando, [chega às] 10 horas, 11 ou 12 [horas da noite], [...], só pode sair no outro dia
de manhã. Desse modo, depois das vinte e duas horas, o portão da aldeia era fechado com
cadeado para que nenhum cabeça seca entrasse ou saísse da aldeia depois do horário
estipulado. Esta regra só era transgredida em caso de doença. Contudo, o cadeado foi
quebrado e atualmente o portão fica aberto. Segundo Tawanã, tal norma foi estabelecida para
limitar a atuação dos não indígenas, uma vez que:
O cara que não era índio [...] namorava com uma índia, vinha a hora que queria,
bebia a hora que queria, trazia outras pessoas, fumavam droga, pegava uma moto ou um
carro […], enquanto isso, o índio não estava fazendo isso.
Do mesmo modo que os não indígenas devem seguir normas ao estarem na aldeia, os
Kariri-Xocó consideram que têm regras a serem seguidas ao estarem na cidade. Assim, no
Primeiro Desfile Mirim Kariri-Xocó realizado na aldeia, duas bandas se apresentaram: uma
delas formada por Kariri-Xocó e cabeça seca e a outra banda formada só por não indígenas. A
festa adentrou a madrugada, com som alto, tendo sido motivo para uma Kariri-Xocó comentar
que se isto tivesse acontecido na cidade, a polícia teria interpelado e mandado os índios
pararem. Mas, como a festa acontecia na aldeia, com permissão do pajé Júlio Queiroz Suíra,
os Kariri-Xocó puderem se divertir até tarde sem haver maiores interferências. Nessa noite do
desfile, muitos brancos frequentaram a festa e não foram impedidos de participarem até o
final do evento.

2.2 Parentesco e lideranças

Em pesquisa etnográfica desenvolvida entre os anos de 1979 a 1983, Mata afirmava


sobre a existência de “instâncias de organização do poder” (p. 139) na população Kariri-Xocó.
70

Para entendermos o contexto atual das lideranças cacique e pajé em Kariri-Xocó é necessária
uma cronologia sócio-histórica para a construção de uma genealogia das liderenças. Para isso
privilegiarei o relato de Nhenety que é considerado na aldeia o historiador do povo Kariri-
Xocó, mesmo que negue esse cargo e assuma o status [de] guardião da história oral, o
contador de histórias Kariri-Xocó. Nhenety, além de ser um estudioso, foi cabeleireiro e
barbeiro dos anciãos, como o ex-pajé Francisco Queiroz Suíra e o ex-cacique Otávio Queiroz
Suíra. Assim, histórias nativas eram contatadas por esses antepassados a Nhenety que ouvia
atentamente os ensinamentos dos mais velhos enquanto fazia seus cortes com navalha e
tesoura. Além dessas lideranças, Nhenety manteve extrema proximidade com o ex-cacique
Cícero Daruanda, com quem dialogava constantemente. O enredo dessas histórias eram
genealogias indígenas e a vinda, no século vinte (XX), de famílias Xocó da Ilha de São Pedro
para Porto Real do Colégio. Entre elas: Maromba, Muirá, Soya, Tinga, Rosário e Felizmino.
Assim, Nhenety adquiriu conhecimento sobre a formação da organização social e política
Kariri-Xocó. Cícero Daruanda solicitava a Nhenety que registrasse por escrito aquilo que
estava lhe contando. Havia, portanto, uma preocupação do ex-cacique Cícero Daruanda, por
uma história oficial contada por um ancião nativo e escrita entre pares.
Conforme Nhenety, no século XIX, existiu em Porto Real do Colégio um capitão-mor
chamado Pedro Lolaço: era índio [e] ele era pajé. Capitão Lolaço, origem Kariri, transferiu o
cargo de pajé para seu irmão Ludovico que era tronco dos Suíra. Ludovico é conhecido como
o último pajé do Alto do Bode, antigo local em que era praticado o Ouricuri dos Kariri-Xocó.
Quando Ludovico morreu, assumiu o cargo de pajé o seu filho Manuel Baltazar44. Este nome
ganhou importância histórica devido ao seguinte fato: segundo a tradição oral, em 16 de
outubro de 1859, Dom Pedro II esteve em Porto Real do Colégio, sendo que quem o recebeu
foi justamente Manuel Baltazar. No centro da cidade de Porto Real do Colégio, em frente às
margens do rio São Francisco há uma placa reverenciando este encontro histórico de índios
aldeados em Porto Real do Colégio, com o rei de Portugal. Na placa é destacada a seguinte
fala proferida por Dom Pedro II: “Apareceram-me bastantes descendentes dos índios de raça
já bastante cruzada trazendo alguns cocares de penas com seus arcos e frechas” (sic).
Conforme explicações contidas na placa: “Dom Pedro II, em Porto Real do Colégio, visitou a
Matriz Nossa Senhora da Conceição. Foi recebido também pelos indígenas. Era o povo Cariri-
Xocó, que trazia consigo a cultura dos cocares e flechas [...]” (sic) 45.

44
Ludovico gerou filhos: Manuel Baltazar e Manoel Atanásio.
45
Informação obtida in loco.
71

Com o falecimento de Manuel Baltazar, sucedeu-o como pajé, seu filho Manuel Paulo
que veio a óbito em 1910. Manuel Paulo teve apenas uma filha chamada Martinha, mas que
não pôde assumir como pajé, por ser do sexo feminino. Porém, Martinha gerou um filho, cujo
nome era Manoel Joaquim de Santana Emurá, também conhecido como Dunga. Este assumiu
a posição de pajé, enquanto seu filho Jonas Santana Ibá foi cacique. Jonas Santana
apresentava duas descendências: (i) Xocó pelo lado paterno, seu avô era conhecido como Zé
Maromba; (ii) e Kariri pelo lado materno, sua avó chamava-se Martinha, justamente a filha de
Manuel Paulo que era o chefe tribal de Kariri. Dunga foi pajé até o ano de 1927. No período
em que foi pajé, interrompeu o Ouricuri por dois anos. A motivação para a interrupção do
Ouricuri é justificada por conflito interno, discussão com o finado Gabriel. Gabriel é definido
por Nhenety, como uma liderança quase política. Era fazendeiro e provia os índios com
alimentos e outras formas de assistência. Gabriel era de origem Xucuru-Kariri, aldeia
Palmeira dos Índios (Alagoas), casado com Luzia que era irmã de Manuel Paulo. Em Boletim
do Museu Nacional, Carlos Estevão relata sucintamente a sua ida a Porto Real do Colégio no
ano de 1935. Em seus escritos, o autor menciona Gabriel como sendo “ ‘Caboclo de Colégio’
e que morreu chefe daquela antiga aldeia.” (p. 173). Conforme Nhenety, Gabriel contestou a
liderança de Dunga, cuja reação foi interromper o ritual do Ouricuri por dois anos.
Todavia, pajé e cacique não se apresentam como únicas lideranças Kariri-Xocó. Desse
modo, existem outras esferas de autoridades, sendo uma delas representada pelo Conselho
Tribal formado pelos [indígenas] mais velhos, segundo Nhenety. O Conselho Tribal, frente
ao conflito interno entre Dunga e Gabriel, posicionou-se da seguinte forma: primeiramente
indagou a Dunga sobre a continuidade ou não do Ouricuri, a resposta foi a da permanência da
interrupção do ritual. Diante disso, o Conselho Tribal tomou a decisão de substituir Dunga
como pajé. Para tanto, escolheram Francisco Queiroz Suíra (conhecido também como
Francisquinho) que era sobrinho materno de Dunga. Dunga era irmão de Maria Serafim, mãe
do pajé Fransciquinho. Para Francisquinho assumir como pajé, era preciso ter conhecimento
do Ouricuri. Esse conhecimento foi transmitido de tio materno para o sobrinho que desde
cedo aprendeu sobre a tradição. Conforme os Kariri-Xocó, o Ouricuri é uma tradição nossa.
Assim, aos dezesseis anos de idade, Francisco Queiroz Suíra foi consagrado pajé Kariri. Mais
uma vez, a sucessão de pajé se deu por linha matrilinear, isto é, a descendência do líder
ocorreu pela via feminina. Em 1928, Francisquinho assumiu a liderança de pajé. Em
contraposição e para permanecer com autoridade e honra política, o pajé Dunga escolheu seu
filho Jonas para ser cacique. Portanto, havia duas lideranças de origem Kariri: pajé
Francisquinho e cacique Jonas Santana Ibá.
72

No entanto, torna-se impossível pensar a organização atual das lideranças Kariri-Xocó,


sem relacioná-la ao contexto histórico prévio dos Xocó. Assim, conforme Nhenety havia na
Ilha de São Pedro (em 1630) um chefe tribal conhecido como Pindaíba, mas não há maiores
informações a respeito. Já no final do século XVIII para o início do século XIX, existiu um
capitão-mor na Ilha de São Pedro, cujo nome era José Serafim de Souza. Além de capitão-
mor, Serafim também era pajé. Conforme Nhenety, Serafim teve desentendimento com um
clérigo em Ilha de São Pedro, motivo para ter sido afastado do cargo de capitão-mor e de pajé.
Serafim foi substituído por um índio de nome Antônio Virtuoso, também conhecido como
Antônio Binga, cujo pai era Luís Binga. Dentre os filhos de Luís Binga havia Luiza Binga,
casada com João Tenório (origem Pankararu), tendo gerado José Tenório que já foi cacique da
atual aldeia Kariri-Xocó. Em 1882, os Xocó vieram para Porto Real do Colégio, mas não
foram todos os indígenas que saíram da Ilha de São Pedro. Entre eles, permaneceram Manuel
Lapada e Inocêncio Pires, com o objetivo de lutarem pelo território indígena. Contudo, em
1898, apareceu em Ilha de São Pedro, um soldado brasileiro que havia recebido ordens
superiores para retirar Inocêncio da Ilha, com o objetivo de deixar o território indígena livre
para a atuação do coronel e intendente João Fernandes de Brito, conforme relatou Nhenety.
Para que Inocêncio Pires saísse da Ilha de São Pedro foi utilizada uma canoa que
navegou o Baixo São Francisco. Na canoa também estava Manuel Lapada. A mãe de Manuel
Lapada era irmã da mãe de Inocêncio Pires; portanto, Manuel e Inocêncio eram primos
paralelos. Segundo Nhenety, Manuel Lapada orientou Inocêncio a deixar essa terra [Xocó]
para lá. Manuel e Inocêncio ao se retirarem da Ilha de São Pedro escolheram lugares distintos
para morar, tendo Manuel Lapada seguido para Porto Real do Colégio, enquanto Inocêncio
Pires rumou para o povoado Carrapicho, atualmente conhecido como Santana de São
Francisco (Sergipe). Inocêncio Pires se relacionou com Maria Tertuliana, origem Xocó, com
quem teve filhos/as. Além de Maria Tertuliana, Inocêncio casou com Antônia Rosa, filha do
capitão-mor e pajé José Serafim de Souza. Deste envolvimento afetivo nasceu Leopoldino de
Souza, conhecido como Leopoldo. Este por sua vez, era estivador em Maceió, cidade onde
conheceu Maia (não índia). Leopoldino e Maia tiveram duas filhas: Benedita e Maria.
Benedita era mãe do ex-cacique Kariri-Xocó Cícero Daruanda. Já Maria era mãe do ex-pajé
Kariri-Xocó José Bonifácio.
Em suas reminiscências, Nhenety recorre à década de setenta (1970) para esboçar um
cenário de possível separação Kariri-Xocó. Nesse período havia rumores de que os Xocó
sairiam de Porto Real do Colégio para retornarem à Ilha de São Pedro. Na tentativa de retorno
a Sergipe para lutar pelo território Xocó, o indígena Cícero Daruanda (origem Xocó) foi
73

extremamente atuante. Pelo envolvimento direto na tentativa de reconquista do território


Xocó, Daruanda foi escolhido para ser o cacique desta etnia. De modo geral, os Kariri e os
Xocó se posicionaram contrários à ideia dos Xocó regressarem a Ilha de São Pedro, uma vez
que já havia sido construída uma relação de aliança étnica entre os troncos Kariri-Xocó. Nesse
tempo, Kariri e Xocó viviam na Rua dos Índios, sob a liderança do cacique Otávio Queiroz
Suíra e de seu irmão o pajé Francisco Queiroz Suirá, ambos de origem Kariri. No entanto, o
cacique Otávio apresentava sinais da idade (idoso) e não tinha mais forças para lutar,
segundo Nhenety. À época, Cícero Daruanda era uma importante liderança entre os Xocó,
enquanto Otávio era líder espiritual dos Kariri. Ambos se reuniram: Francisquinho sugeriu a
Cícero que permanecesse em Porto Real do Colégio para juntos lutarem por uma causa só,
como afirmou Nhenety. Desse modo, os Xocó permaneceram em Porto Real do Colégio para
com os Kariri enfrentarem essa “causa só” que seria a conquista da Fazenda Modelo,
nativamente denominada Sementeira, localizada no território tradicional de ocupação Kariri,
até então sob posse dos não índios. Foi justamente durante a luta por esse pedaço de terra que
Cícero Daruanda se destacou como cacique Kariri-Xocó. Nos dizeres de Nhenety, Cícero
Daruanda conhecia um pouco do SPI, era alfabetizado e aposentou-se como professor do
município de Porto Real do Colégio.
Esse evento de ocupação da Sementeira é um fato que representa importante mudança
na configuração das lideranças. Anterior à ocupação da Sementeira, quem liderava era o lado
Kariri: cacique Otávio e pajé Francisquinho, sendo irmãos por parte de pai. Francisquinho era
de origem Xocó por parte paterna e origem Kariri por parte materna. O nome da mãe de
Otávio era Umberlina e a mãe de Francisquinho era irmã do antigo pajé Dunga, lado Kariri. O
pai de Otávio e Francisquinho chamava Manuel Queiroz, origem Xocó. Manuel Queiroz foi
filho de Gregório Maromba46. Gregório teve um irmão chamado Zé Maromba (pai do antigo
pajé Dunga). Durante a conquista da Sementeira, destacaram-se o pajé Francisquinho e o
cacique Cícero Daruanda. Segundo Nhenety: Francisquinho abençoou e apoiou a liderança
de Cícero. Ainda conforme Nhenety: Cícero Daruanda foi quem negociou a Sementeira com
o Ministério do Interior. À época, Rangel Reis era quem estava à frente deste Ministério. Para
a ocupação da Sementeira, os indígenas decidiram unificar os etnônimos Kariri e Xocó,
oficializando uma só etnia: Kariri-Xocó. Todavia, após a conquista, os conflitos internos
surgiram com alguns Kariri ordenando o retorno dos Xocó para a Ilha de São Pedro. Contudo,

46
Gregório Maromba é Xocó pelo lado materno e de Pacatuba pelo lado paterno. Em Pacatuba havia diversos
grupos indígenas, entre eles, os Natu.
74

segundo Nhenety, a situação foi apaziguada, uma vez que se levou novamente em
consideração a aliança entre indígenas de ambas as etnias.
Na Sementeira, cacique Cícero Daruanda e pajé Francisquinho foram líderes. Otávio
ainda era vivo. Quando adulto, Otávio Queiroz Suíra, conhecido também como Otávio
Queiroz Nidé foi o primeiro cacique Kariri-Xocó oficialmente reconhecido pelo SPI. Apesar
do ex-pajé Cícero Daruanda ser de origem Xocó e o ex-cacique Otávio Queiroz Suíra ser de
origem Kariri, havia um laço de proximidade entre ambos, uma vez que Otávio era da família
da esposa de Daruanda. Além desse laço, Otávio tinha parentesco com Jonas Santana Ibá
(filho do ex-pajé Dunga). Otávio e Jonas eram primos carnais. Otávio e seu irmão
Francisquinho eram filhos de Manuel Queiroz e netos de Gregório Maromba. Este, por sua
vez, era irmão de Zé Maromba, avô de Jonas.
Na década de oitenta (1982-1983) ocorreu uma briga na comunidade, nesse cenário de
conflito interno houve uma nova configuração no quadro das lideranças cacique e pajé. Na
tentativa de isolar o cacique Daruanda do cenário político da aldeia, o pajé Francisquinho
alçou Ernani Tononé como cacique de 1986 a 1991. Conforme Ernani Tononé: antigamente, a
opção de cacique era por herança. Então, a herança de cacique pertence a minha família
[...], minha família que tem o direito. Ernani Tononé era neto de Dunga, o ex-pajé Kariri.
Dunga gerou uma filha cujo nome era Euridice. Esta, por sua vez, teve filhos com José
Francisco Tononé, entre eles, Ernani Tononé. Além disso, Ernani era sobrinho materno do
pajé Francisquinho e do cacique Otávio Queiroz Suíra. Segundo Ernani Tononé, na década de
1990, precisou se ausentar da aldeia para ir a São Paulo, portanto, solicitou a José Tenório que
assumisse sua função de cacique. Ernani e José não são parentes consanguíneos, porém,
conforme Ernani: a gente considera assim um índio com o outro, sendo irmão. [...]. Meu
parente [por]que é índio. Segundo Ernani, ambos eram muito próximos, trabalhavam juntos,
José Tenório conhecia a Funai, viajava a Brasília em busca de benefício para a comunidade.
A pedido de sua mãe, Ernani afirma ter deixado o cargo de cacique para seu suplente,
no entanto, após o falecimento da matriarca, Ernani tentou retomar ao posto de cacique, mas
foi interpelado por José Tenório que respondeu que entregaria o cargo posteriormente. Com
esta resposta, Ernani Tononé dirigiu-se ao pajé Júlio Queiroz Suíra, na tentativa de retomar
sua função de cacique; todavia, conforme Ernani, a resposta de pajé Júlio foi de que esse
negócio de herança acabou. Quem faz cacique agora é a comunidade. A comunidade que vai
agora nomear o cacique. Ernani Tononé não objetou.
75

Em contrapartida, o cacique Xocó Cícero Daruanda, por sua vez, decidiu fazer um
pajé do lado Xocó: José Bonifácio, filho de Maria do Curi que era filha do ex-cacique Xocó
Inocêncio Pires.
Na década de 1990, Francisquinho apresentava sinais de cansaço devido à idade
avançada, consequentemente, seu filho Júlio assumiu a liderança de pajé aos dezesseis anos
de idade. Em 1994, Francisquinho veio a óbito. Portanto, modificou-se novamente a
composição das lideranças em duas metades: do lado Xocó estavam pajé Júlio Queiroz Suíra
e cacique Ernani Tononé. Do lado Kariri: pajé José Bonifácio e cacique Cícero Daruanda.
Segundo Nhenety, em meados da década de 90: 1995, teve um desentendimento de Júlio e
Ernani, por isso, pajé Júlio apoiou José Tenório para a liderança de cacique. José Tenório
tinha parentesco com Otávio Queiroz Suíra. A avó materna de José Tenório, conhecida como
Maria das Neves era irmã de Umberlina (que era a mãe de Otávio Queiroz Suíra). Portanto,
José Tenório e Otávio eram tio e sobrinho matrilineares. José Tenório é filho de Luiza Binga,
cujo pai era Luís Binga. O bisavô de José Tenório chamava-se Antônio Binga, uma liderança
de chefia na Ilha de São Pedro. Portanto, José Tenório tem descendência Kariri e Xocó.

Figura 8 - Tronco Emurá (Xocó)

Manoel Joaquim Maria


de Santana Felismina de
Emurá (ex-pajé) Souza Ibá

José Eulina Jonas Santana Euridice


Francisco Santana Emurá Maruiba
Tononé Emurá (ex-cacique)

José Eduardo Edgar Ernani Jonas Antônia Luciene Iraci


Tononé Tononé Tononé Tononé Tononé Lúcia Tononé Tononé
(ex-cacique) Tononé

Todavia, José Tenório abdicou do cargo de cacique. A justificativa para a renúncia


está diretamente relacionada ao Ouricuri. Existem critérios culturais para que um Kariri-Xocó
seja cacique e/ou pajé. Assim, às futuras lideranças é exigido que sejam conhecedoras do
Ouricuri: o cacique, ele tem que ser uma pessoa que ele tenha conhecimento da religião
76

oitenta por cento, afirmou pajé Júlio Queiroz Suíra, enquanto que ao pajé é exigido
conhecimento total do Ouricuri. A obrigatoriedade do cacique em ter conhecimento do
Ouricuri é que este precisa ser um cacique para a religião também, conforme dito por Júlio
Queiroz Suíra. Desse modo, o papel social do cacique não se restringe ao espaço social da
aldeia, sendo necessária sua atuação no âmbito religioso. Ao explicar o porquê do afastamento
de José Tenório e José Bonifácio como lideranças (cacique e pajé), Júlio Queiroz Suíra
recorre à religião:

[A] religião [que] tirou. Disse que não tem condições, não. Não podia ser, não.
Porque para a religião não existe dividimento [divisão]. A religião só aceita todo
mundo em um corpo só. É a lei da religião: é ser um por todos e todos por um. Não
pode aceitar dividimento de jeito nenhum. A religião não permitiu quatro
lideranças, porque se permanecerem quatro lideranças está demonstrando que são
dois povos. Aqui não existe dois povos. Aqui é um povo só: Kariri-Xocó.

O ex-pajé José Bonifácio em conversa menciona a existência de duas categorias:


cacique regular e pajé irregular. Cacique regular é aquele escolhido pelas tradições e os
nossos costumes, [isto é], pela nossa religião. [Se o cacique] for escolhido por vontade do
povo [...], ele não é um cacique regular. A mesma condição é atribuída ao pajé: se não for
escolhido pela tradição, isto é, pelo Ouricuri, ascende a categoria pajé irregular. Segundo
José Bonifácio, o pajé não é escolhido como política, ou seja, eleito pelo povo Kariri-Xocó. A
ascensão de José Bonifácio como pajé está diretamente relacionada a sua ascendência Xocó e
ao conflito entre os índios mesmos, entre lideranças mesmo, afirmou o ex-pajé. José
Bonifácio afirma ter ficado do lado Xocó, porque é a parte que me pertence mais. Portanto,
assumiu como pajé Xocó. Considera que a sua indicação a pajé foi resultado de sua conduta e
convivência dentro da comunidade [Xocó]. [Afirma ter sido] escolhido pelo grupo Xocó.
Contudo, a religião é prevalente, pois mostrou que eu não estava no meu lugar certo, disse
Bonifácio que apresenta um discurso análogo ao de Júlio Queiroz Suíra quanto a composição
política da aldeia: de que a permanência de quatro lideranças (dois pajés e dois caciques)
divide os Kariri-Xocó e que para a religião só cabe um pajé e um cacique.
Por sua vez, o ex-cacique José Tenório apresenta parentesco com o ex-cacique Otávio
Queiroz Suíra, sendo que a mãe de Otávio era irmã da avó de José Tenório. Assim, afirma que
Otávio era seu tio de sangue. Mas há também um laço de afinidade entre José Tenório e o ex-
pajé Francisco Queiroz Suíra, pois este último foi avô da esposa de José Tenório. Aliás, o ex-
pajé Francisquinho é quem fez José Tenório como cacique. José Tenório afirma ter sido
cacique por mais de trinta anos. Com o afastamento de José Bonifácio e José Tenório da
esfera política, pajé Júlio Queiroz Suíra e cacique Cícero Daruanda tornaram-se as únicas
77

lideranças. Júlio representando o lado Kariri e Cícero, o lado Xocó; porém, ambos afirmam
que governavam para o povo Kariri-Xocó. Em setembro de 2016, em minha primeira ida à
aldeia, Cícero Daruanda apresentava sinais de adoecimento, motivo para ter sido
hospitalizado na cidade de Arapiraca no estado de Alagoas. A condição de saúde do cacique
inviabilizou que eu o conhecesse. Em dezembro do mesmo ano, após dois meses de meu
retorno a São Paulo, recebi a notícia de que ele havia falecido. Com a morte de Daruanda,
Júlio Queiroz Suíra elevou seu filho Cícero Queiroz Suíra ao cargo de cacique Kariri-Xocó.
Todavia, a família de Cícero Daruanda reivindicou o direito de sucessão por laços de
consanguinidade. Como afirma Nhenety: na época das brigas, recorre aos direitos
consanguíneos [...] de lideranças antepassadas. Assim, algumas famílias Xocó indicaram
Nadinho, um dos filhos de Cícero Daruanda para suceder a posição de liderança do pai. Mas
um cacique não pode liderar seu povo sozinho, sendo assim, alguns integrantes das famílias
Xocó, Tinga, Soya e Lotera, elegeram Pawanã para pajé. Com isso foi instaurado, mais uma
vez, um conflito interno: de um lado o pajé Júlio Queiroz Suíra e o cacique Cícero Queiroz
Suíra. Do outro: cacique Nadinho e pajé Pawanã. Nadinho e Pawanã são tio e sobrinho
maternos, isto é, Cícero Daruanda (pai de Nadinho) e a avó materna de Pawanã eram
considerados irmãos.
Vejamos o quadro a seguir que apresenta de modo cronológico as sucessões entre
liderenças:
Quadro cronológico das sucessões de pajés e caciques Kariri-Xocó
Na Rua dos Índios Na Sementeira
Cacique Otávio Queiroz Suíra e pajé Lado Xocó: cacique Cícero Daruanda.
Francisco Queiroz Suíra. Lado Kariri: pajé Francisco Queiroz Suíra.
Cacique Otávio Queiroz Suíra é Cacique Cícero Daruanda é denominado “cacique
denominado “cacique velho”. Liderou de novo”. Liderou de 1967 a 2016.
1944 a 1985.
Pajé Francisco Queiroz Suíra liderou de
1928 a 1994.
Lado Kariri: pajé Francisco Queiroz Suíra e
cacique Ernani Tononé.
Ernani Tononé liderou de 1986 a 1991.
Lado Xocó: pajé José Bonifácio e cacique Cícero
Daruanda.
78

José Bonifácio liderou de 1986 a 2015.


Na Rua dos Índios Na Sementeira
Lado Kariri: pajé Júlio Queiroz Suíra e cacique
Ernani Tononé.
Júlio Queiroz Suíra lidera desde 1994 até os dias
atuais (2017).
Lado Xocó: pajé José Bonifácio e cacique Cícero
Daruanda.
Lado Kariri: pajé Júlio Queiroz Suíra e cacique
José Tenório.
José Tenório lidera de 1995 a 2015.
Lado Xocó: pajé José Bonifácio e cacique Cícero
Daruanda.
Lado Kariri: pajé Júlio Queiroz Suíra.
Lado Xocó: cacique Cícero Daruanda.
Lado Kariri: pajé Júlio Queiroz Suíra e cacique
Cícero Queiroz Suíra.
Cícero começa a liderar em 2017.
Lado Xocó: pajé Pawanã e cacique Nadinho.
Ambos começam a liderar em 2017.

2.3 Parentesco e religião: legitimidade para liderar

No presente etnográfico da aldeia Kariri-Xocó, variáveis como herança dos troncos e


direito de sucessão baseados na filiação matrilinear ou patrilinear ou bilateral são utilizadas
para legitimar as posições daqueles que se definem como caciques e pajés e reivindicam tais
funções. Desse modo, Júlio Queiroz Suíra afirma ser pajé pela origem. Essa categoria nativa é
significada de duas formas: (i) nascido e criado de tronco. Quando é nascido e criado dos
troncos. Quando a descendência é dos troncos [matrilineares ou patrilineares]; (ii)
consanguinidade para se referir ao parentesco biológico. Para explicar essa noção de origem,
segundo pajé Júlio:
[...] tem outros aqui dessa família, desse povo que tem aí [...], que diz ser Xocó, mas
não tem etnia de Xocó de jeito nenhum. [...]. Foi criado pelo um tio dela, um irmão do pai
dela. Foi criado, não foi de sangue, aí não tem origem.
79

O pajé Júlio recorre ao período de outrora em que antigamente só era Kariri, mas com
a vinda, com a expulsão dos Xocó para aqui, os troncos velhos, aqui os Kariri, aceitou-os e
eles ficaram muitos anos [...], se casaram aqui [...]. Inclusive, a minha esposa, ela é Xocó
legítima. Pajé Júlio recorre a duas categorias: Xocó legítimo e Kariri-Xocó legítimo. Para ser
considerado Xocó legítimo é preciso ter sangue Xocó pelo lado paterno e materno. Enquanto
que para ser definido como Kariri-Xocó legítimo é necessário o sangue Kariri e Xocó. Para
ilustrar o conceito de Kariri-Xocó legítimo, pajé Júlio Queiroz Suíra cita como exemplo o
caso de seus filhos, que segundo ele, possuem sangue Kariri pelo lado paterno e sangue Xocó
pelo lado materno. Conforme Júlio, a família de sua esposa é Xocó da Ilha de São Pedro: o
pai dela nasceu lá. E o avô dela foi o último guerreiro que saiu, que foi expulso de lá da área.
Esse último guerreiro é o antigo cacique Inocêncio Pires, já falecido. Assim como seu pai
Júlio, o cacique Cícero Queiroz Suíra recorre a essa herança consanguínea para legitimar sua
atual posição de líder. Afirma: nós temos a origem [...]. Sou Kariri legítimo e sou Xocó
legítimo. Além dessa condição, Cícero reivindica sua legitimidade por duas outras esferas:
direito de herança dos antepassados matrilineares ou patrilineares e a religião, isto é, o
Ouricuri. Quanto ao direito de sucessão, Cícero se apropria do fato de seu bisavô materno
Inocêncio Pires ter sido cacique dos Xocó. E de seu tio paterno Otávio Queiroz Suíra ter sido
cacique Kariri. Portanto, considera: eu estou dentro da minha casa. Eu estou herdando [a
chefia] da parte do meu pai, como da parte da minha mãe. Eu tenho origem.
Assim, ter origem dos troncos é ter ascendentes tanto Kariri (patrilinearidade) quanto
Xocó (matrilinearidade). Assim, no caso do pajé Júlio que descende do tronco Suíra, pelo lado
paterno, é formado pelo Xocó Gregório Maromba (bisavô de Júlio) e pela índia Severa, cuja
origem é Kariri. Desse relacionamento nasceu Manoel Queiroz Suíra, avô de Júlio. Manoel
era Kariri-Xocó e conheceu Maria Serafina (Kariri). Ambos geraram Francisco Queiroz Suíra
(ex-pajé e pai de Júlio Queiroz Suíra), Jovelina e Laudelina. Porém, Manoel Queiroz Suíra
teve mais de uma mulher, entre elas, Umberlina Nidé. Dessa relação foi concebido Otávio
Queiroz Nidé, ex-cacique, tio paterno de Júlio Queiroz Suíra. Seu irmão, Francisco Queiroz
Suíra e Doralice47 procriaram os filhos Miguel, Júlio Queiroz Suíra e a filha Espercília.
Dentre as mulheres com quem Júlio se relacionou está Vandete Pires, neta do ex-cacique
Inocêncio Pires. Júlio e Vandete têm inúmeros filhos e filhas. Cabe citar Cícero Queiroz
Suíra, atual cacique da aldeia Kariri-Xocó e Francisco Queiroz Suíra Neto. Segundo pajé

47
Segundo Nhenety, não se sabe [ao certo] a descendência de Maria Doralice. Existe uma mistura e possível
descendência Pankararu.
80

Júlio, Francisco está cotado para substituí-lo como pajé. Aliás, em reuniões na aldeia e fora da
aldeia, Francisco (também conhecido como Chiquinho) representa o pai como pajé.
As funções de pajé e de cacique dependem dos vínculos de filiação, mas também são
legitimadas pela esfera ritual-religiosa. Assim, o pajé Júlio e seu filho cacique Cícero Queiroz
Suíra constroem um discurso de distintividade para enfatizar que cacique e pajé são lideranças
feitas pela religião. Cícero Queiroz Suíra afirma ter assumido como cacique em 30 de janeiro
de 2017, após ter saído do Ouricuri. Segundo ele: fui apresentado a toda minha comunidade
pela religião. Nesse momento, o cacique Cícero recorre à esfera religiosa para legitimar sua
ascensão a líder e questiona a forma como Pawanã e Nadinho emergiram a lideranças de pajé
e cacique, respectivamente, o que, segundo Cícero, se dá pela via cartorial. Ao consultar esse
documento cartorial observa-se o nome de Pawanã escrito em Português como José Edenilton
Tinga Silva. Assim como o nome de Reginaldo de Souza, conhecido entre os Kariri-Xocó
pelo codinome Nadinho. A nominação Cícero de Souza Santiago refere-se ao ex-cacique
Cícero Daruanda. Pawanã ao defender seu cargo de pajé e de Nadinho como cacique, elabora
um discurso que distingue duas esferas de ações: a ritual (restrita ao Ouricuri na mata) e a
pública que abrange o espaço coletivo de dentro e de fora da aldeia. Para Pawanã, o espaço
ritualístico e o da aldeia são sistemas diferentes, apesar do ritual interferir no cenário social da
aldeia. Das quatro lideranças, Pawanã afirma que apenas o pajé Júlio Queiroz Suíra é
legitimado pelo ritual: essa liderança pelo ritual, nós só temos uma, que, segundo Pawanã,
também é reconhecido pelos órgãos competentes, como a Secretaria de Educação e
instituições judiciais. Diferentemente do pajé Júlio, Pawanã considera que as demais
lideranças (ele como pajé, Nadinho e Cícero como caciques) encontram-se em uma etapa de
preparação [que ainda não] foi concretizada pelo ritual. No entanto, a atuação de cacique
não se restringe à aldeia, pelo contrário, é entrar em contato com os de fora, isto é, com a
esfera pública. É preciso que esteja em constante diálogo com a Funai, Funasa (Fundação
Nacional de Saúde), Secretaria da Educação e o Ministério Público. Assim, segundo Pawanã,
era necessário comunicar, dar o conhecimento a esses órgãos federais sobre a existência de
novas lideranças Kariri-Xocó. Se pela religião ainda não é reconhecida a posição de Pawanã
como pajé e de Nadinho como cacique, o meio para legitimá-los foi pela via cartorial que é
reconhecida pelos órgãos públicos.
Porém, estamos diante de um cenário sociopolítico construído por versões e pontos de
vistas distintos sobre um mesmo fato. Devemos considerar que as histórias contadas por cada
uma dessas quatro lideranças são estruturadas em narrativas de poder. Conforme Bruner
(1986): narrativas não são apenas estruturas de significado, mas também estruturas de poder
81

(tradução livre do original, 1986, p. 144).48 Em trabalho de campo, ouvi que tais lideranças ao
disputarem o status de autoridade tribal se envolvem em conflitos e brigas políticas que
também atingem a esfera ritual-religiosa. Cícero Queiroz Suíra afirma: a liderança é feita
pela religião, não é pelo cartório [...]. Nunca houve liderança autenticada em cartório [...].
Pode existir para os órgãos, mas não manda em Kariri-Xocó. Portanto, para os Suíra, a
religião tem uma função política (RADCLIFFE-BROWN, 1981 [1940], p. 21): é o meio de
outorgar e legitimar os papéis de cacique e pajé. Portanto, existe entre essas lideranças uma
disputa não somente pela autoridade política, mas também pelos mecanismos em que se
ascende à liderança. Além disso, há uma disputa pela autenticidade do discurso em o que é
dito pelo oponente é avaliado pelo adversário como mentira e/ou verdade. Assim, são
construídos pelos opositores discursos acusatórios, na medida que deslegitimam com uma
inverdade o discurso do oponente.
Sobre a legitimidade para ascensão de cacique e pajé, conforme Nhenety: na época
das brigas, [se] recorre aos direitos consanguíneos [...] de lideranças [antepassadas]. O
opositor do pajé Júlio, o cacique Nadinho recorre à noção de direito hereditário para defender
sua posição de cacique: quando meu pai [Cícero Daruanda] faleceu, nós ficamos esperando
eu assumir no lugar de meu pai, né, mas o pajé [Júlio Queiroz Suíra] brigado comigo e fez o
filho como cacique no meu lugar. Diante desta situação houve uma mobilização de famílias
Xocó, entre elas, as oriundas do tronco Souza, referente ao ex-cacique Cícero Daruanda e ao
ex-pajé José Bonifácio; e o tronco do lado materno de Pawanã, sendo sua mãe Marinita
sobrinha materna de Daruanda. Essas famílias se reuniram para debater quem assumiria como
pajé do lado Xocó, uma vez que pajé Júlio é do lado Kariri. Conforme Nadinho: era para José
Bonifácio assumir de volta, mas ele não quis. Desse modo, a partir dessa reunião familiar dos
troncos Xocó, decidiram que Pawanã seria o pajé. José Bonifácio é tio materno de Pawanã.
No entanto, suponho que para Pawanã ter sido eleito pajé por sua família, foi evocado o
Ouricuri. Tal suposição parte de um momento do diálogo que estabeleci com Nadinho e
família para procurar investigar como se deu essa formação atual de dois pajés e dois caciques
na aldeia Kariri-Xocó. Assim, me foi dito: tem coisas que não podem ser relatadas [...],
porque sempre daqui da gente, sempre sai da religião, entendeu. E tem coisas que a gente
não pode revelar. As decisões são tomadas a partir da religião. [E como o Ouricuri é
secreto], não tem nem como explicar. Conforme mencionado, os integrantes da aldeia
também podem participar das decisões, mas ser legitimado pela religião é o que prevalece.

48
“Narratives are not only structures of meaning but structures of power as well” (p. 144).
82

Nadinho e seu tronco familiar Souza enaltecem os feitos do ex-cacique Cícero


Daruanda (pai de Nadinho) que assumiu como cacique aos dezoito anos de idade, tendo
falecido com oitenta e seis anos. Conforme Madja, neta de Daruanda, este aos dezesseis anos,
ele já andava na luta, mas ele se consagrou cacique com dezoito anos. Daruanda e o ex-pajé
Francisquinho atuavam conjuntamente, sendo citada pela família de Nadinho, a ida de ambos
os líderes ao Posto Indígena do SPI, em Pernambuco, para conversarem com o padre Alfredo
Dâmaso. A escola indígena na Sementeira é vista como obra do ex-cacique Cícero Daruanda,
apesar de receber o nome de Escola Indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra. Além disso,
segundo Nadinho, ele acompanhou seu pai Cícero Daruanda a Brasília para reivindicar a
demarcação da Terra Indígena Kariri-Xocó. Afirma que a reunião foi realizada com o ex-
presidente José Inácio Lula da Silva em seu último mandato. Assim, Nadinho atribui ao pai a
conquista da demarcação do território de ocupação tradicional Kariri-Xocó. Esta foi uma das
inúmeras viagens que Nadinho afirma ter feito com seu pai para tratar de assuntos do povo
Kariri-Xocó. Conforme Madja, seu avô Cícero estava preparando [o filho Nadinho] para ser
o sucessor dele, [por isso, Nadinho] tinha que ir às viagens.
Mas há quem discorde das nomeações das atuais lideranças na aldeia, sobretudo, do
cacique Cícero. As justificativas utilizadas são: de que o pajé Júlio Queiroz Suíra deveria
convocar as pessoas da aldeia para o povo nomear o cacique. [...]. Que o povo não apoia esse
tipo de situação, sem haver consulta popular. Assim, existem Kariri-Xocó que consideram
que cacique e pajé deveriam ser escolhidos pela participação do povo indígena por meio de
uma votação na aldeia. Opostamente, há quem diga que só o pajé Júlio Queiroz Suíra pode
legitimar o cacique pela religião e que, portanto, Nadinho e Pawanã estão exercendo
irregularmente essa função (via registro cartorial). Deste modo, existem Kariri-Xocó que
somente reconhecem pajé Júlio Queiroz Suíra e cacique Cícero Daruanda como lideranças.
Enquanto outros Kariri-Xocó afirmam que para ser cacique é preciso seguir uma linha
sucessória e que, portanto, Nadinho deveria substituir o seu pai, o ex-cacique Cícero
Daruanda. Os Kariri-Xocó que não reconhecem a linha sucessória afirmam que:

Para cacique não se faz filho. Ele tem que preparar ou alguém da comunidade que
se destaca ou alguém da família mesmo, mas não é uma questão de você dizer: eu
tenho o direito. [...]. O pajé ele prepara o seu filho mesmo, como o Seu Júlio
preparou dois filhos e esses dois podem assumir, mas tudo isso vai depender muito
do ritual. Não é uma questão que: eu quero e eu vou. Não é isso. É uma questão... o
ritual que decide também.

Todavia, a maioria dos Kariri-Xocó são reticentes quanto a esse assunto, assim, ao
serem indagados sobre a situação atual, que se apresenta com dois caciques e dois pajés,
83

hesitam em dar opiniões. Deve-se destacar, contudo, que nenhum Kariri-Xocó deslegitima a
liderança de pajé Júlio Queiroz Suíra, inclusive seus oponentes. A crítica de muitos na aldeia
é de que existem conflitos, brigas e disputas de poder entre os troncos familiares das
lideranças. As alegações são: o problema é ele [tal liderança] querer só para si e para os
membros do tronco familiar dele. E o fato de que essas lideranças por disputarem cargos
políticos estão criando conflitos, atritos [na aldeia]. Para esses críticos o ideal era não ter
divisão, era ter união novamente, como era no passado.

2.4 Esferas de autoridade em Kariri-Xocó

Nhenety Kariri-Xocó (2013, p. 38)49 afirma que a organização social Kariri-Xocó é


“estruturada com lideranças, caciques, pajés, conselho tribal, chefes de família, chefes de casa
e a comunidade”. Conforme o ex-cacique José Tenório que, aliás, integra o Conselho Tribal, a
função desse Conselho, como diz o próprio nome, é para aconselhar aquelas pessoas que
andam fazendo coisas que não dão certo [como por exemplo]: vai para a rua e bebe, [...]a
polícia lhe pega e vai para a cadeia. O Conselho Tribal é uma gerontocracia formada por oito
homens anciãos. Segundo Nhenety, a formação do Conselho Tribal se deu inicialmente pelos
troncos Ibá, Baca, Botó e Suíra, todos de origem Kariri. Segundo Pawanã, os integrantes do
Conselho são eleitos pelo Grande Espírito [acessado no Ouricuri]. Eles oito ainda são mais
fortes que o pajé.
A questão da chefia entre os Kariri-Xocó é exercida ao nível da aldeia, mas também
nas unidades familiares e troncos. Cada família tem seu chefe de casa, no entanto, esses não
são a autoridade máxima quanto a assuntos importantes que incidem sobre todos os
integrantes de um determinado tronco. Quem assume o papel de chefe da família é o homem
mais velho, no caso, o ascendente do tronco. Já o chefe de casa é o responsável pela sua
família, restrita à esfera doméstica. Nas reuniões da aldeia, os chefes de casa comparecem,
porém, na ausência do marido, por motivo de falecimento, a mulher é quem assume a
liderança de chefe e, portanto, comparece à reunião. No entanto, esse papel de chefe de casa
pode ser assumido pelo filho homem mais velho, apesar da mãe ainda ter o direito de estar
presente na reunião. Portanto, as lideranças são formadas no seio das próprias famílias.
Assim, há uma delimitação da atuação das chefias Kariri-Xocó no espaço público e no espaço

49
No livro Fulkaxó: ser e viver Kariri-Xocó / Organizado por Ulysses Fernandes; Serviço Social do Comércio. –
São Paulo: Edições SESC SP, 2013.
84

doméstico: no espaço comum da aldeia, as lideranças são exercidas pelo cacique e pajé,
porém na esfera doméstica, em cada casa e família a oportunidade é exercida pelo ascendente
mais antigo (mãe ou filho mais velho). Inclusive os Kariri-Xocó para falarem dessa chefia na
esfera doméstica recorrem à categoria cacique de família. No caso de Pawanã, este afirma: eu
sou o cacique da minha família. Kayrrá se define como cacique de sua família nuclear
(esposa, filho/a e neto) e de sua família extensa (pai, mãe, irmãs/os, sobrinhos/as). Ao
conversar com o pai e uma das irmãs de Kayrrá é justificado o fato do mesmo ter sido
nomeado cacique da família, porque na nossa linguagem, [Kayrrá é o] mais desenvolvido.
Neste caso, a chefia de Kayrrá se dá com o pai ainda em vida, porém muito debilitado pela
idade para assumir essa função. Do mesmo modo, as habilidades conquistadas por Kayrrá nas
relações com os brancos na experiência de vida fora da aldeia faz dele um sucessor
consensualmente aprovado na família. Mesmo assim é o pai de Kayrrá que outorga ainda em
vida a chefia ao filho. Neste caso, deve-se destacar que Kayrrá mora em São Paulo, vindo a
aldeia anualmente. Mesmo distante, o papel de chefe de família é exercido por ele, na medida
em que assume as responsabilidades de provedor deste grupo familiar, pois envia recursos
financeiros para seus familiares obtidos com a venda do artesanato indígena e a dança ritual
do Toré. Segundo as suas irmãs, quando há necessidade em tomar uma decisão, seus parentes
na aldeia procuram escutá-lo, sendo a opinião dele sempre decisiva, o que é indicativo do
prestígio da chefia.
O cacique (tuxaua, termo nativo, segundo Nhenety) é definido como um chefe político
da aldeia. Lida com todo tipo de burocracia, com os trâmites da esfera pública, com os órgãos
federais como a Fundação Nacional do Índio e o Ministério Público para reivindicar direitos
constitucionais dos povos originários. O cacique precisa ter conhecimento [...], que saiba
resolver as coisas, que saiba chegar lá, em qualquer órgão [...] e dizer as necessidades que o
nosso povo está precisando, as prioridades, segundo o ex-cacique Ernani Tononé. Para o pajé
Júlio, o cacique precisa de oitenta por cento de conhecimento da religião, isto é, do Ouricuri.
Se ele não tiver esse conhecimento, ele não tem condições de trabalhar com a comunidade da
aldeia. Porque passa a trabalhar com o conhecimento branco, aí sai do esquema da religião
do Ouricuri. Ainda conforme pajé Júlio, o cacique é o guerreiro, o chefe da comunidade da
aldeia. No entanto, pajé Júlio afirma que o cacique precisa trabalhar conjuntamente com o
pajé, no sentido de que qualquer decisão que seja tomada pelo cacique em relação à aldeia é
necessário comunicar o pajé para que ele possa visar [ no Ouricuri] se vai dar certo ou não.
Porque são coisas que eu observo, disse o pajé, por meio da vidência se vai haver confusão.
85

Segundo ainda Júlio Queiroz Suíra, o pajé tem vidências ao acessar a ordem espiritual,
considerada a ordem superior. Por isso, todos têm que respeitar a minha ordem.
Diferentemente do cacique, o pajé é considerado pelos Kariri-Xocó como o pai de nós
todos. O pajé está aqui para orientar, nos indicar para o bem; o pajé é o chefe espiritual; o
pajé, ele manda, ele manda não, ele é forte e a responsabilidade dele é no mundo espiritual.
Conforme pajé Júlio, seu papel é trabalhar pela doutrina da religião, não pela doutrina do
branco. Por isso, é imprescindível que o líder espiritual tenha cem por cento de conhecimento
do Ouricuri, tradição do povo Kariri-Xocó interditada ao não índio. Júlio Queiroz Suíra
afirma que o pajé é um vidente [e que a] vidência é o dom que Deus dá e bota na mente da
pessoa. Afirma que nasceu com a vidência. Assim, conforme Nhenety, o pajé é o porta voz
entre o homem e Deus.
O Chefe do Posto Indígena, segundo os Kariri-Xocó, já vem por uma parte da lei. Esta
função pode ser desempenhada tanto por um indígena, como por um não indígena. No período
em que estive em trabalho de campo, o cargo era ocupado por um Kariri-Xocó. Conforme
pajé Júlio, o chefe do posto indígena é o setor judiciário, aquele que trabalha diretamente com
a esfera pública, ou seja, em órgãos como a Funai e a Funasa. Os chefes de posto são pessoas
de entendimento, [isto é], precisam conhecer o regime do branco. Mas, se por acaso, o chefe
do posto indígena não for da etnia Kariri-Xocó, o conhecimento dele é justamente regime de
branco [e, portanto, é um] branco [que] tem que trabalhar com a liderança [cacique e pajé].
Porque ele vem de fora, não conhece [o regime de índio], afirmou pajé Júlio. Ainda conforme
pajé Júlio Queiroz Suíra, as documentações legais são de sua esfera e, portanto, exigem sua
aprovação e a do cacique.
Desse modo, uma situação decorrida durante meu trabalho de campo ilustra a
obrigatoriedade do crivo dos pajés e dos caciques sobre documentos oficiais. Além disso,
sinaliza que as quatro lideranças Kariri-Xocó (dois caciques e dois pajés) são coletivamente
reconhecidas em situações específicas. Assim, em abril de 2017, a Secretaria de Estado da
Educação (Alagoas) lançou o EDITAL/SEDUC Nº 022/2017 para a contratação temporária de
professores e monitores indígenas. Aos candidatos foi exigida a coleta de doze assinaturas,
sendo quatro das lideranças pajés e caciques; quatro dos membros do conselho escolar e
quatro da comunidade. Segundo informações, o documento exigia no mínimo oito assinaturas.
Constava no texto do edital:
3. DA ANUÊNCIA DA COMUNIDADE INDÍGENA
86

3.1. Cada candidato deverá apresentar uma carta de anuência da comunidade indígena, contendo no
mínimo 04 (quatro) assinaturas das lideranças e as outras 04 (quatro) de membros do conselho escolar, conforme
modelo do Anexo I, deste edital;50
3.2. A Carta de Anuência deverá ser devidamente assinada pelos membros da comunidade local, sendo
requisito essencial que habilita o candidato participar deste processo de seleção simplificada, devendo ser
apresentada posteriormente a inscrição, antes do resultado preliminar;
Concorreram a esse concurso público, homens e mulheres de diversas famílias Kariri-
Xocó. Conforme relatos ouvidos no trabalho de campo, algumas candidatas solicitaram
apenas assinaturas ao pajé Júlio, ao cacique Cícero e a quatro membros do conselho escolar.
O fato de terem deixado em branco os campos reservados às assinaturas das lideranças
Pawanã e Nadinho, indica que há uma deslegitimidade dos mesmos como cacique e pajé.
Ainda segundo informações obtidas em campo, essas candidatas não atingiram o número de
rubricas requisitadas pelo edital, diferentemente dos demais candidatos que recolheram as
assinaturas das quatro lideranças (Júlio, Cícero, Nadinho e Pawanã) e as rubricas dos
membros da comunidade e/ou do conselho escolar, portanto, atingiram a quantidade exigida
de assinaturas pelo edital.
Na divulgação do resultado do concurso, aqueles que não seguiram as regras
referentes ao mínimo de assinaturas foram desclassificados. Esses tentaram recurso no
Ministério Público. Como o concurso envolveu a comunidade indígena, a ida ao Ministério
Público, conforme informações, ocorreu com a presença de Cícero Queiroz Suíra, seu irmão
Francisco (que representou o pajé Júlio Queiroz Suíra), Pawanã e Nadinho. Durante semanas
o assunto que circulou pela aldeia foi justamente o resultado do edital. Muitos dos candidatos
afirmavam depender financeiramente desse emprego de professor e/ou monitor indígena.
Assim, segundo informações, houve uma reclassificação dos candidatos, o que parece
confirmar que a autoridade está nas mãos do pajé Júlio e de seu filho Cícero que, aliás,
afirmam não reconhecer Pawanã e Nadinho como lideranças. Vejamos a seguir o modelo da
carta de anuência:

50
Edital disponível virtualmente em: https://static-files.folhadirigida.com.br/uploads/pdfs/edital/seduc-al.pdf,
acessado em 07 de setembro de 2017.
87

Fonte: Secretaria de Estado da Educação (Alagoas), 2017.


Gregório Severa
Maromba

Manuel
Umberlina Maria de
Felizmina Queiroz

Otávio Francisco Jovelina Laudelina


Queiroz Nidé Queiroz Suíra Maria
(ex-cacique) (ex-pajé) Doralice

Miguel Especília Júlio Vandete


(pajé)
Figura 9 - Tronco Suíra (Kariri)

Gilberto José Carlos Francisco Vandélia Maria Cícero José Sueli Eriberto
Júlio Júlia (cacique) Cláudio
88
José Serafim
de Souza
(ex-pajé)

Inocêncio
Pires Antônia
(ex-cacique) Rosa

Mané Maria Leopoldo


Grosso Lotera de Maia
Souza

Maria
Josefa
Lotera
José Benedita José Maria Maria
Filipe de Luiz de do Josefa
Santiago Souza Souza Curi Lotera

Cícero Antônio Adelson Arnaldo José Gilvan Frederico Maria das Jarciline
Antônio Dores da Jacivaldo
Daruanda Frade Bonifácio Pedro
Anália Silva Soya Maria
(ex-cacique) (ex-cacique) Tinga
Amália
Figura 10 - Tronco Souza (Xocó)

José Antônio José Lenivaldo Nadinho Rosa Júlio Maria José Valdete Valdice Manuel Marinita Antônia Elenusia Helenildo Antônio
Heleno Cícero (cacique) Queiroz Maria Helena Bonfim Nunes
Suíra (pajé) Helena

Helenice
Kaony Paw anã Edicarlos Kayke Rubis Flávio Edicarlos
(pajé)
89
90

Figura 11 – Documento cartorial que reconhece Pawanã como pajé e Nadinho como cacique Kariri-Xocó

Fonte: imagem fornecida por Pawanã. Sua reprodução é proibida.


91

2.5 Parentesco e eleições 2016

Em 2016 ocorreu em âmbito nacional as eleições para prefeitos e vereadores das


cidades brasileiras. Os Kariri-Xocó estavam imersos no processo de candidaturas para
vereadores indígenas e no “tempo da política”51. Na tentativa de arregimentar o maior número
de eleitores, os cinco candidatos indígenas se mobilizaram de inúmeras formas que não
diferem dos aparatos eleitorais utilizados pelos candidatos não indígenas: carros de som,
arrastões e carreatas, santinhos, concentração em frente as suas casas, com direito à bebida e
comida à vontade para os eleitores, bandeiras com os nomes dos candidatos, o soltar de rojões
e toques de celular com jingle político. Parecia uma festa, no entanto, toda essa mobilização
indicava a relevância social das eleições na vida do povo Kariri-Xocó. Só houve interrupção
das campanhas eleitorais no dia em que uma jovem índia faleceu. Nesse dia, só se ouvia o
carro de som que comunicava a data e o local do enterro. Segundo Wytaiha, quando alguém
falece, existe na aldeia um período de silêncio em respeito à família do falecido/a. Por quase
uma semana, não se ouve nenhum tipo de ruído (seja carro de som, seja música alta vindo das
casas). Posterior ao período de luto, as campanhas eleitorais foram retomadas. Candidataram-
se para vereadores indígenas: Uilio (50 anos), Dadá (40 anos), Chiquinho (51 anos),
Alcivânio (33 anos) e Lourdinha (53 anos). Os candidatos são divididos por família, mas pode
haver sobreposição entre candidatos pertencentes a um mesmo tronco familiar. Para um
Kariri-Xocó se lançar politicamente é preciso que comunique aos mais velhos de sua família
que avaliarão se é oportuno ou não que o seu parente adentre a arena política local. Assim,
conforme Tawanã, o futuro candidato indígena comunica primeiro as famílias, aí as famílias
vão e aceitam, ou não. O apoio da família é imprescindível, até mesmo porque cada candidato
terá durante sua campanha uma equipe eleitoral formada por parentes, sendo que os
vereadores indígenas eleitos mantêm essa equipe ao longo de seu mandato. Portanto, “a
lealdade política tende a coincidir com a filiação de parentesco” (GLUCKMAN, 1981 [1940],
p. 69).
Em tempos anteriores, os Kariri-Xocó já se envolveram na política local de Porto Real
do Colégio. Antônio Taré foi vereador indígena da aldeia Kariri-Xocó em dois períodos
consecutivos: 1979 a 1982 e de 1983 a 1986. No presente etnográfico Uilio da Aldeia (nome

51
Segundo Moacir Palmeira e Beatriz M. de Heredia (2010): “[...] tempo da política, época da política ou
simplesmente política corresponde grosso modo ao período eleitoral. Mas se trata apenas de uma aproximação.
Seus limites cronológicos não necessariamente coincidem e o tempo da política não envolve apenas candidatos e
eleitores, mas toda a população, cujo cotidiano é subvertido.” (p. 8)
92

eleitoral), se elegeu pelo Partido Republicano Progressista (PRP), com a coligação política
“Com a Força do Povo”52. Uilio estudou Ciências Contábeis em Propriá (Sergipe), com bolsa
de estudo paga pela Fundação Nacional do Índio. Sua inserção no campo político foi iniciada
logo cedo, aos vinte e seis anos de idade, quando se candidatou pela primeira vez a vereador.
Posteriormente, se reelegeu por influência do ex-prefeito de Porto Real do Colégio, conhecido
como José Reis [in memoriam]. Os Kariri-Xocó referem-se de modo estimado a este antigo
político não indígena que formou um eleitorado indígena. Segundo Uilio, José Reis foi o
primeiro prefeito da cidade de Porto Real do Colégio que abriu as portas para os Kariri-
Xocó. Conforme Uilio, o ex-prefeito afirmava que tinha muita fé na nossa religião, no nosso
setor religioso, da tradição nossa do Ouricuri, apesar de ser proibida sua entrada no ritual.
Além dessa influência não indígena, Uilio afirma que os próprios Kariri-Xocó pediram a ele
para ser candidato para ajudar o nosso povo. Desse modo, decidiu se candidatar. Uilio
disputou um total de seis eleições, tendo sido eleito cinco vezes. O grupo eleitoral de Uilio é
formado pelos seus irmãos, tios e filhos, cada um desses parentes é responsável por uma
determinada [...] demanda, afirmou Uilio. Esta equipe elabora as propostas da campanha
eleitoral e projetos que beneficiem a aldeia.
Dadá da Aldeia (nome eleitoral) afiliou-se ao Solidariedade, coligação “Com Deus e o
Povo Venceremos”. Há quatro anos, ingressou no meio político por conta de um grande
amigo que o ajudou em um momento de doença. Nesse período, um dos irmãos de Dadá
apresentava sérios problemas de saúde, tendo sido encaminhado ao Hospital das Clínicas em
São Paulo. A mediação hospitalar foi realizada por esse amigo não índio que mantinha
contato com médicos da capital paulista. Sanado o problema de saúde, tal amigo pediu
politicamente que eu desse um voto de confiança ao candidato dele que à época era Sérgio
Reis, ex-prefeito de Porto Real do Colégio. Então, eu fiz minha palavra com ele. Falei que
estava firmado, disse Dadá. A proposta era que se candidatasse a vereador. De início houve
uma resistência por parte do candidato que afirma que nunca havia pensado em se envolver
em política, porém se candidatou, mas sem ter sido eleito. Em 2016, Dadá afirma ter sido
apoiado pela sua família e por um grupo formado por famílias [Kariri-Xocó] diferentes,
jovens indígenas e também indígenas que o incentivaram a se recandidatar. Em cada uma
dessas famílias indígenas existe um representante, isto é um “cabo eleitoral”, um membro que
faz parte do meu grupo, que me representa. Segundo ele, sua decisão em se lançar
politicamente como representante indígena está diretamente relacionada com o sofrimento do

52
As informações sobre os candidatos: idade, partidos eleitorais, coligações e os número de votos computados
foram consultadas em Eleições 2016: https://www.eleicoes2016.com.br/, acessado em 07 de setembro de 2017.
93

meu povo, [...] meu povo tão esquecido, uma aldeia tão carente, uma aldeia tão grande, de
tantos eleitores, no qual os políticos depois de eleitos [...] esqueceram o povo [...]. Então,
isso me incentivou estar nessa luta. Conforme Dadá, sua proposta política inicial seria
desenvolver a minha cultura Kariri-Xocó, [com a construção de uma] casa de artesão à beira
do Rio São Francisco para atrair turistas. Por meio de um comércio étnico local, procurar-se-á
diminuir a oferta de viagens dos Kariri-Xocó à cidade grande, arriscando a vida ao saírem da
aldeia com o objetivo de vender o artesanato indígena para terem uma fonte de renda, afirmou
Dadá.
A única mulher indígena a se candidatar foi Lourdinha da Aldeia, tendo se afiliado ao
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), coligação “Colegiense Unido pela
Mudança”. Mas Lourdinha é igualmente presidente da Associação de Pescadores Kariri-
Xocó; no entanto, obteve apenas 125 votos e não conseguiu se eleger.
Alcivânio Professor (nome eleitoral), partido Solidariedade, coligação “Com Deus e o
Povo Venceremos”, é graduado em Pedagogia e pós-graduado em Letramento, Alfabetização
e Educação Especial e Exclusiva. Além disso, foi presidente da Associação Jovens Produtores
Indígenas Kariri-Xocó, mas também não foi eleito. Segundo Alcivânio, ele não tinha intenção
de se candidatar a político, porém, por influência de amigos, considerou válida a tentativa.
Seu grupo de apoio político era uma equipe que eu formei com a minha família e amigos.
Aqui dentro na política, para poder entrar numa política tem que ter família em primeiro
lugar. Alcivânio recorre à categoria família de casa formada pelos genitores, irmãos e primos.
A família de casa atuaria por laço de fraternidade, no sentido de que não envolveria interesses
financeiros eleitorais: eles não iam cobrar nada. Eles iam fazer por vontade própria. À
família de casa são distribuídos cargos, funções para poder ajudar o candidato a eleição. No
entanto, membros de uma mesma família podem compor outros grupos políticos. Assim,
Alcivânio é primo de Uilio, uma vez que as avós de ambos são do mesmo tronco familiar.
Além disso, a irmã de Alcivânio é casada com Chiquinho que também se candidatou a
vereador indígena. Se nesta família somente Alcivânio tivesse se candidatado, teria tido
chances de vitória já que haveria transferência de votos de seu primo Uilio e de seu cunhado
Chiquinho. Mas em função dos laços de parentesco e afinidade entre candidatos, acaba por
existir uma divisão de votos nos próprios troncos familiares.
Chiquinho, filho do pajé Júlio Queiroz Suíra, candidatou-se pelo Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), coligação “A Esperança de Colégio”, mas não
se elegeu. Mesmo sendo agente de saúde da aldeia. Desse modo, tudo indica que o filho é
sucessor dos poderes curativos do pai na esfera pública institucional. Sua entrada no meio
94

político se deu a convite de Lobão que era candidato a prefeito de Porto Real do Colégio.
Chiquinho e Lobão se conhecem desde pequenos, uma amizade entre um indígena e um
cabeça seca. Os apoiadores de Chiquinho foram os membros de sua família mais próxima:
pai, mãe, irmãos e primos. Chiquinho é primo materno do candidato Uilio. Assim, segundo
Chiquinho: quando eu me lancei candidato, a família não [tinha] mais outro meio [que não
fosse estar ao seu lado]. Chiquinho recebeu 199 votos. Segundo ele: todos da aldeia. Uma
das justificativas de Chiquinho ter se candidato é que em sua visão, mesmo que haja órgãos
indigenistas como a Fundação Nacional do Índio, a Fundação Nacional de Saúde, a Comissão
Indígena Missionária (Cimi) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), existe um meio hoje, que tudo o que
está comandando o nosso país é a política. Por isso, considera importante os Kariri-Xocó se
envolverem na política nacional.
O candidato indígena para ser eleito a vereador necessita de votos de pessoas de dentro
e de fora da aldeia (cidades localizadas no município de Porto Real do Colégio). Ao serem
eleitos por votos também oriundos de não indígenas, os vereadores Kariri-Xocó precisam
governar simultaneamente, ou seja, implementar projetos no âmbito da aldeia e da cidade.
Conforme Wythaia, a aldeia Kariri-Xocó é o segundo maior curral eleitoral [do município].
A sua frente está a cidade de Porto Real do Colégio. Segundo Tawanã existem cerca de 1.700
eleitores indígenas. Dadá afirma que as eleições sempre são decididas aqui na aldeia. Assim,
segundo os Kariri-Xocó, somente por meio dos votos da aldeia seria possível eleger de dois a
três vereadores indígenas, mas como houve cinco candidatos, os votos de fora eram
imprescindíveis. Esse movimento de articulação exógena e endógena, isto é, dos de fora da
aldeia para com os de dentro da aldeia e vice-versa, perpassou todo o período eleitoral, uma
vez que os candidatos à prefeitura de Porto Real do Colégio dependiam enormemente dos
votos dos eleitores indígenas. Os Kariri-Xocó que disputavam a Câmara coligaram-se aos não
indígenas que concorriam ao cargo de prefeito. Essas alianças políticas dividiam a aldeia,
como podemos ver na tabela abaixo:
Candidatos indígenas a vereadores Candidatos a prefeitos
Uilio da Aldeia (44444) Sergio Reis dos Santos
Dadá da Aldeia (77777) Dr. Eliseu
Chiquinho da Aldeia (15444) Lobão
Alcivanio Professor (77123) Dr. Eliseu
Lourdinha da Aldeia (45222) Aldo Popular
95

Assim, os aspirantes à prefeitura de Porto Real do Colégio realizavam arrastões e/ou


carreatas eleitorais na aldeia. Arrastões são formados pelos eleitores que seguem o candidato
a pé. Durante o trajeto procura-se arrastar o maior número de pessoas possíveis. As carreatas
ocorrem com os eleitores a pé, de carro e de moto. Essas manifestações eleitorais são
importantes estratégias tanto dos proponentes à prefeitura quanto daqueles Kariri-Xocó que
disputavam vagas na Câmara, uma vez que era o momento de estarem frente aos seus
eleitores: os candidatos batiam de casa em casa na aldeia para solicitar votos aos moradores e
distribuir chapinhas (santinhos).
Laços familiares, de amizade e interesses pessoais em ocupar cargos públicos orientam
a política em Porto Real do Colégio. Por exemplo: Kayrrá era cabo eleitoral de Dadá, ambos
são primos paralelos, suas mães são irmãs. Kayrrá se ausentou de São Paulo por um mês para
ajudar na campanha eleitoral de seu parente. No entanto, discordavam quanto à candidatura
para prefeito. Dadá votaria em Dr. Eliseu, uma vez que esses candidatos mantêm laços de
afinidade que se definem pelo fato de considerarem, Dr. Eliseu e Dadá como irmãos de mãe
de leite, porque a mãe de Dadá amamentou Eliseu. Além disso, a questão fundiária também
envolve assuntos políticos. Conforme Dadá, Dr. Eliseu (advogado) é sobrinho de ocupantes
da Terra Indígena Kariri-Xocó, todavia, segundo Dadá, Eliseu é contra os parentes e a favor
dos Kariri-Xocó. Além disso, existe uma relação clientelista entre índios e nãos índios. Desse
modo, as irmãs de Eliseu atuam na área médica e já atenderem alguns Kariri-Xocó.
Diversamente, Kayrrá fazia campanha para Lobão como candidato a prefeito. Segundo
Kayrrá, ambos são amigos desde a infância quando jogavam futebol. Kayrrá foi cabo eleitoral
de Lobão e este, caso fosse eleito, nomearia Kayrrá para a Secretaria de Esportes, posto que
Kayrrá chegou a ser jogador de futebol em times profissionais. Relações trabalhistas também
estão ligadas à política em Porto Real do Colégio. Desse modo, um dos irmãos de Dadá
apoiou a campanha política de seu patrão Aldo Popular. Aldo é proprietário do Supermercado
Aldo Popular, localizado no centro da cidade de Porto Real do Colégio e se candidatou à
prefeitura da cidade, tendo sido eleito.
A divergência da escolha dos candidatos incidia de modo conflitivo sobre a esfera
familiar. Assim, surgiam comentários de que um grupo eleitoral adversário estava fazendo
bullying com determinada família por apoiar Dadá. Ou de que os parentes de um candidato
indígena específico nem olhavam na nossa cara e agora querem que se unam a eles. Portanto,
a relação que se estabelecia tinha apenas objetivos políticos, uma vez que a lealdade era com
o parente que disputava a eleição. Assim, em Kariri-Xocó, parentesco e política são
interdependentes. Como disse Wythaia em relação a quem votar: todo canto que você puxa é
96

parente. Isso levava a questionamentos e tensões nas escolhas sobre quem apoiar no âmbito
das relações de parentesco. Citemos o caso de uma jovem mulher indígena que do lado
paterno tem parentesco com o candidato Uilio e do lado materno com Dadá, portanto,
afirmava não saber em quem votar, uma vez que tomada a decisão, geraria até mesmo
possíveis desentendimentos familiares. Mas os Kariri-Xocó utilizam de estratégicas políticas
para distribuir os apoios entre os membros da família e evitar rupturas internas ao grupo de
parentesco. Assim, na escolha dos candidatos, inicialmente há uma fase de persuasão em que
os membros da família tentam convencer um ao outro a votar em determinado candidato. Se
em uma mesma família há três candidatos, os mais próximos a eles, como pai, mãe, irmão
e/ou primo argumentam com os demais parentes para que deem o voto a determinada pessoa.
Outra estratégia é a divisão de votos, como exemplifica Tawanã:

Aqui na aldeia é assim: sempre quando tem cinco votos em casa, aí as pessoas
fazem o quê: dá três [votos] a um [candidato] ou dá dois [votos] a um [candidato] e
divide um [voto] para cada um. Aí, um ganha mais e o outro é dividido para poder
agradar ambas as partes.

2.5.1 Resultados das eleições

Em dois de outubro de dois mil e dezesseis, os Kariri-Xocó foram as urnas para


elegerem seus vereadores e o prefeito de Porto Real do Colégio. Como Maria do Carmo era
quem me recebia na aldeia, acompanhei-a ao colégio em que votaria, localizado no centro da
cidade. Tal instituição escolar disponibilizada para as eleições estava repleta de Kariri-Xocó a
espera para votar. Aqueles indígenas que moram fora da aldeia, em localidades como o
Distrito Federal e em estados como Sergipe e Pernambuco, compareceram a Porto Real do
Colégio no dia da votação. Desse modo, os índios em cidades fora de Porto Real do Colégio e
do próprio estado de Alagoas continuam a vincular seus títulos eleitorais à aldeia. Segundo
informações, um juiz despachou pedido judicial para que a Prefeitura da cidade
disponibilizasse ônibus para transportar eleitores indígenas que vivem fora de Porto Real do
Colégio. Assim, esse meio de transporte trouxe alguns Fulni-ô (Águas Belas, Pernambuco)
que votam em Porto Real do Colégio. Esses índios moraram na aldeia Kariri-Xocó e seus
títulos de eleitores correspondem ao município de Porto Real do Colégio, portanto, votam
nessa sede municipal. Mas houve também mobilização dos cabos eleitorais que se
disponibilizaram a buscar de carro demais eleitores indígenas e inclusive não indígenas que
vivem em outras localidades, mas que votam em Porto Real do Colégio.
97

Transcorrido o dia intenso de votação, era hora de esperar o resultado da eleição.


Alguns Kariri-Xocó aguardaram em frente ao Cartório Eleitoral de Porto Real do Colégio,
enquanto os demais ficaram na aldeia. Na casa do candidato Uilio havia uma concentração de
pessoas. Na residência de Dadá, contígua à de Uilio, as portas estavam fechadas à espera do
desfecho da eleição. De boca em boca o resultado da votação se espalhou pela aldeia. Um
menino gritou: Dadá e abraçou outro menino na rua da aldeia. Cinco mulheres indígenas
comemoraram a vitória de Dadá que foi eleito com 538 votos. As vizinhas de Maria do Carmo
deram a ela a notícia de que Dadá e Uilio haviam vencido: os dois índios. Uilio foi eleito em
quarto lugar com 616 votos e Dadá em sexto. Conforme Kayrrá, esse resultado é inédito na
aldeia Kariri-Xocó, uma vez que nunca na história dois Kariri-Xocó haviam sido eleitos a
vereadores. A comoção era enorme: para nós índios é muita emoção. É muita emoção para
nós índios. Era preciso comemorar: vamos dançar [o Toré], exclamou uma Kariri-Xocó. A
pesquisadora também foi chamada a participar deste Toré. Ao longe, logo no início da entrada
da aldeia era possível escutar um canto vibrante, com dezenas de Kariri-Xocó a pisar
fortemente no chão de terra da aldeia. Era o Toré da celebração, com uma letra adequada ao
contexto: É Uilio e Dadá. É Uilio e Dadá. Conforme o Toré avançava as ruas da aldeia, cada
vez mais Kariri-Xocó se juntavam ao grupo que iniciara o canto. Homens, mulheres e
crianças formavam um só corpo no cantar e dançar. Rodearam toda a aldeia e seguiram em
direção à estrada estadual AL 225 que corta o território indígena. De volta para dentro da
aldeia, Uilio e Dadá discursaram brevemente, mas só audível aos que estavam muito
próximos a eles.
A inserção dos Kariri-Xocó na política brasileira é motivada, segundo eles próprios,
pelo fato de considerarem que estão desassistidos pelo Estado brasileiro. Criticam a falta de
ação da Fundação Nacional do Índio para com suas demandas. Há, inclusive, indígena que
questione a existência da Funai, uma vez que é vista de modo inoperante. Assim, a questão da
representatividade política é considerada central para que os Kariri-Xocó se mobilizem
politicamente, já que a representação política tem se dado de modo hegemônico pelos
brancos. Conforme Pawanã: esses representantes são brancos, não são indígenas. São
deputados que são brancos. [...]. Imagine um indígena. Ia ser diferenciado, né. Esta frase foi
proferida por esse indígena à época da PEC 21553. Ainda segundo Pawanã, os deputados em

53
Conforme informação disponível no site da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC 215/2000): “Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação
das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo
que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”, acessado em 08 de fevereiro de
2018, http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562 .
98

sua maioria eram a favor da aprovação dessa Proposta de Emenda Constitucional, considerada
pelos Kariri-Xocó, contrária aos interesses indígenas. Por isso, Pawanã afirma: então, hoje, a
gente percebe que a gente precisa, necessita de um representante nosso dentro da política. O
ideal para os Kariri-Xocó é um representante indígena que se articule politicamente com a
esfera local e nacional. Para os Kariri-Xocó existem degraus políticos a serem percorridos e
superados, assim, consideram que o primeiro passo para ingressarem no cenário político
brasileiro é a candidatura a vereador, posteriormente, à prefeitura, sendo [que] um prefeito
tem contato com um deputado, com o governador de Alagoas e o governador de Alagoas tem
uma influência com os deputados, com o presidente, afirmou Tawanã. Na visão deste Kariri-
Xocó, uma articulação política como essa poderia ajudar para uma terra do índio sair mais
rápido, a exemplo da homologação da área indígena Kariri-Xocó que é ansiada por esse povo
indígena há décadas. Tawanã enfatiza que os indígenas são políticos, sim. E assim como os
não índios da cidade nos dominam, dominaram há muito tempo, então hoje, nós temos que
dominar. Mas, não esqueça quem você é: você é um índio, você tem o Ouricuri, o que os
diferencia dos brancos qualificados como cabeças secas, que como a própria expressão
indica, vazia do conhecimento cosmológico indígena.
Assim, Pawanã e Tawanã compartilham do mesmo projeto étnico-político indígena.
Assim, segundo Pawanã, os Kariri-Xocó estão no meio político como indígenas para
atenderem suas próprias demandas. Essa demarcação de uma fronteira étnica é vista, por
exemplo, na divulgação dos nomes dos candidatos Kariri-Xocó ao associarem o termo aldeia:
Uilio da Aldeia, Dadá da Aldeia, Chiquinho da Aldeia e Lourdinha da Aldeia. Pode ser vista
também nas músicas eleitorais em que algumas começam ao som do Toré. Essas músicas
utilizadas nas campanhas são escritas pelos Kariri-Xocó, mas podem ter contribuições de
outros índios, como dos Fulni-ô ou até em alguns casos de pessoas não índias. Apresento a
seguir dois jingles políticos de candidatos concorrentes:
A primeira música eleitoral é a do vereador indígena Dadá da Aldeia. O ritmo
musicado é do Arrocha, gênero musical amplamente ouvido no Nordeste e na aldeia Kariri-
Xocó:

Meus amigos, meus irmãos, vamos votar,


Vem aí mais um índio, com Eliseu para melhorar 54.
Vamos lá, digitar para ganhar.
Vamos lá, confirmar para ajudar.
Meus amigos, meus irmãos, vamos votar,
Vem aí mais um índio para a cidade melhorar.

54
Eliseu, candidato não indígena, concorreu ao cargo de prefeito de Porto Real do Colégio, mas não foi eleito.
99

Meus amigos, meus irmãos, vamos votar,


Vem aí mais um índio, com Eliseu para melhorar.
No dia 02 de outubro vote para vereador Dadá da aldeia,
Com o número 77777, sempre junto com o povo.

A segunda música refere-se à campanha política do vereador indígena Uilio da aldeia.


O ritmo escolhido para o jingle político foi o Forró, cujo gênero musical é muito escutado
pelos Kariri-Xocó:

Viva o Sérgio Reis, Porto Real do Colégio vai azular55.


Já faz tempo que ele vive cuidando da nossa aldeia,
Uilio é da nossa gente, todos podem confiar.
Índio bom, índio guerreiro, coração grande, valente,
Lutador e competente, nele eu voto para ganhar.
44444, esse é o voto da vitória do índio guerreiro.
O povo pulando grita: “o meu voto não tem preço”.
Kariri-Xocó de berço, só briga para ganhar.
Nossa luta não tem fim, a cultura é uma beleza.
Dois de outubro, com certeza é Uilio que eu vou votar.
Na beira do Velho Chico56, Kariri-Xocó sou índio e para me representar, para lutar
pelo meu povo e se quiser grito de novo: é Uilio que eu vou votar.
Simbora, meu povo! Olha o furacão azul chegando aí gente.
Já faz tempo que ele vive cuidando da nossa aldeia,
Uilio é da nossa gente, todos podem confiar.
Índio bom, índio guerreiro, coração grande, valente
Lutador e competente, nele eu voto para ganhar.
44444, esse é o número do povo Kariri-Xocó.
O povo pulando grita: “o meu voto não tem preço”.
Kariri-Xocó de berço, só briga para ganhar.
Nossa luta não tem fim, a cultura é uma beleza.
Dois de outubro, com certeza é Uilio que eu vou votar.
Na beira do Velho Chico, Kariri-Xocó sou índio e para me representar, para lutar
pelo meu povo, se quiser grito de novo: é Uilio que eu vou votar.
Grande Uilio, o orgulho do povo Kariri-Xocó. Mais uma vez, na defesa do seu povo
junto com Sérgio Reis.
Olha o furacão azul chegando aí gente.
.
A questão da luta desses indígenas pelo território de ocupação tradicional Kariri-Xocó,
assume uma centralidade na vida e na reprodução deste povo indígena; portanto, é um assunto
de extrema relevância a ser considerado na hora de escolher um vereador. A escolha de
Pawanã para eleger um representante político indígena, nesse caso, Dadá da Aldeia, esteve
diretamente relacionada ao envolvimento deste candidato na retomada das terras Kariri-Xocó
liderada por Pawanã. Por isso, este último compôs a equipe política de Dadá, sem a existência
de relação de parentesco entre eles, como costuma ser a regra dos Kariri-Xocó para apoio às
candidaturas. Se fosse levar em consideração o laço de parentesco, seu candidato teria sido
Uilio. Mas para Pawanã, Dadá é um cara jovem, né, conhecedor de todo o sofrimento da

55
Sérgio Reis, candidato não indígena, disputou as eleições para a Prefeitura de Porto Real do Colégio. Azul era
a cor da sua coligação política, porém, não conseguiu se eleger.
56
A expressão “Velho Chico” refere-se ao rio São Francisco.
100

gente, de toda a luta, esteve envolvido com a gente em todas as lutas [...], inclusive da
retomada. Por fim, os Kariri-Xocó creditam aos vereadores indígenas a possibilidade da
implantação de projetos que beneficiem a aldeia, como por exemplo, reivindicam a
construção de uma oca para vender artesanato, a criação de um centro cultural, a existência
de cursos de formação ministrados na própria aldeia para que assim os Kariri-Xocó não
precisem se deslocar à cidade, entre outras.
Deste modo, as regras até então prevalentes na constituição das candidaturas indígenas
pelas relações de parentesco parecem no contexto da retomada das terras Kariri-Xocó se
ampliar na construção de um novo projeto étnico-político indígena.
CAPÍTULO 3 - OURICURI E TORÉ KARIRI-XOCÓ

Os rituais são de extrema relevância na vida social, política e cultural dos Kariri-Xocó,
mais especificamente, o Toré e o “culto aos ancestrais” (MATA, 2014, p. 180) no espaço
sagrado do Ouricuri. Em minha primeira ida a campo na aldeia Kariri-Xocó, fui recebida pela
família de Kayrrá, tendo permanecido por um mês na casa de sua mãe Maria do Carmo.
Todas as noites, algumas crianças da aldeia compareciam a casa da índia Maria do Carmo
para apresentarem o Toré a mim e aos demais adultos Kariri-Xocó que lá compareciam. Estou
certa de que essas crianças não dançavam e cantavam o Toré à toa durante a minha presença,
pelo contrário, aprenderam com os mais velhos que pessoas de fora da aldeia (no caso,
pesquisadores e/ou autoridades públicas) devem ser recebidas com o Toré que, igualmente,
comunica àquelas pessoas as diferenças entre “nós” e “eles”.57 Enquanto os que vêm de fora
levam presentes (brinquedos) às crianças Kariri-Xocó, essas as “presenteiam” com o Toré.
Nessa troca está a sinalização e a comunicação de uma especificidade cultural indígena em
que o Toré é um sinal diacrítico da identidade étnica.58
Discorrerei primeiramente sobre o Ouricuri e o Toré dos Kariri-Xocó na situação de
índios aldeados na Sementeira, Aldeia Kariri-Xocó. Neste caso, veremos que Ouricuri e Toré
podem se interligar quando a esfera ritual é dimensionada unicamente ao espaço do território
indígena. Digo isto, uma vez que o Toré é amplamente praticado fora da aldeia sendo que,
nesse contexto, os Kariri-Xocó não o definem como ritual, mas como uma apresentação
cultural.
Desse modo, cabe definir a noção Kariri-Xocó de “ritual”: uma maneira de se conectar
ao sagrado. Os Kariri-Xocó atribuem as seguintes nominações ao termo “sagrado”: Deus,
ancestrais ou encantos. Conforme pajé Júlio Queiroz Suíra: o ritual serve para tudo. Para
nós é um modo de amar a Deus. Esta correlação entre ritual e sagrado é destacada no
depoimento a seguir:

57
O Toré Kariri-Xocó é produzido e comunicado em contextos sócio-históricos específicos, sobretudo, na busca
do reconhecimento étnico. No século XVI, os indígenas de Porto Real do Colégio apresentaram o Toré a um
público formado apenas por jesuítas. Em 1859 foi a vez de Dom Pedro II assisti-lo em sua ida a Porto Colégio do
Colégio. Em 1935, o Toré Kariri-Xocó foi apresentado a Carlos Estevão de Oliveira. Em 1944, os Kariri-Xocó
apresentaram o Toré a Cícero Cavalcante de Albuquerque, agente do Serviço de Proteção aos Índios
(NHENETY, 2013, p. 64). Nessas situações, o Toré é “como uma performance política, [...] que se realiza mais
plenamente como uma demarcação identitária” (OLIVEIRA, 2005, p. 10).
58
Ver livro organizado por Rodrigo de Azeredo Grünewald, cujo título é Toré: regime encantado do índio do
Nordeste (2005).
102

Tudo é sagrado para nós. Tudo para nós é um ritual. A gente vive vinte e quatro
horas a espiritualidade. É claro que com limite, porque a gente não vai viver só da
espiritualidade. Quem vive só da espiritualidade são os nossos ancestrais. Queira
ou não, nós somos filhos do pecado. E para a gente seguir o espiritual, a gente tem
que estar purificado. [...]. O ritual para nós é sagrado, é o sagrado. (PAWANÃ)

Para os Kariri-Xocó, o sagrado está associado à pureza e às entidades sobrenaturais,


consideradas por esses índios como seres livres do pecado, por isso mesmo, relativos à
bondade, virtude e proteção. A categoria ancestral é definida por Pawanã em oposição à
categoria antepassados. Assim, segundo dito por ele: os ancestrais não têm pecado. Eles não
pecam. São espíritos sempre bons, sempre foram bons, nunca pecaram. Os antepassados são
que nem nós, nós já temos pecado. Indaguei Pawanã sobre as nominações Kariri-Xocó acerca
dos seres ancestrais, tendo afirmado que não poderia revelar, já que estão diretamente
relacionadas ao Ouricuri. Todavia, considerou: você pode pensar que é a árvore, são os
pássaros, é a terra, é o fogo, é a água, é o mar, é o arco-íris, é o relâmpago, o trovão. Pela
resposta de Pawanã, considero que esses seres ancestrais são os “encantados” tão recorrentes
na literatura antropológica sobre os povos indígenas do Nordeste. Conforme Marco Tromboni
de S. Nascimento:

Os encantos, encantados [...] são entidades sobre-naturais em princípio benéficas,


que auxiliam os índios de diversos modos. Enfatiza-se sobremodo seu caráter de
entidades ‘vivas’, isto é, que já são da natureza ou que, tendo sido humanos, não
passaram pela experiência da morte [...] (NASCIMENTO, 2005, p. 43-44, grifo do
autor).

A noção dos encantos como entidades vivas é destacada na fala do índio Kariri-Xocó
Zé Bonfim:

Nós temos o nosso ritual vivo. É coisa de Deus, é coisa limpa. [...]. Se eu não
confiasse, não tivesse amor no coração por meu ritual, eu não ia ser índio mais não,
eu ia me entregar ao mundo. Mas eu conheço de perto que o nosso ritual é feito por
bem, é o poderoso, abaixo de Deus, né. Ele não traz nada [de] ruim para nós, só
traz o que é bom. [...] Nosso ritual não é morto, é vivo. Agora: é encanto, é gente de
Deus. É a verdade, não é mentira. [...] Deus e o nosso ritual tem aquelas
penitências, tem aquele amor, não faz nada errado. [...] Dentro do nosso ritual, né,
quer dizer que tem as pessoas... não é morto, é vivo. Agora, gente que é coisa de
Deus, que se encanta, de se encantar.

Ao dizer que encanto é gente de Deus, Zé Bonfim atribui sacralidade a esses seres
espirituais que são “vivos”, já que se comunicam e transmitem mensagens aos Kariri-Xocó
que as têm como um valor axiomático, isto é, o que é dito por essas entidades é considerado
verdade absoluta que fará com que esses indígenas guiem suas ações por meio da palavra
sagrada, conforme dito por pajé Júlio. As mensagens desses encantos recebidas pelos Kariri-
103

Xocó se dá no Ouricuri. Conforme Clarice Novaes da Mota (2007) que desenvolveu trabalho
etnográfico sobre os Kariri-Xocó em 1983, considera que o Ouricuri pode ser definido como
mata sagrada e ritual (2007, p. 69). Assim, a autora afirma: “Este pedaço especial de terra
sempre foi conhecido por eles como ‘o Ouricuri’, assim como o próprio ritual também se
chama” (ibidem, p. 75). Tais considerações convergem, até certo ponto, com a definição que
pajé Júlio Queiroz Suíra deu a mim sobre o Ouricuri em que confirma o mesmo como sendo
um local sagrado, também nomeado de Taba (MATA, 2014): lugar especial para nossos
deveres, nossos rituais. Ritual ao nosso modo: religião. O pajé constantemente diz: nós temos
nosso ritual religioso. Contudo, não o define como Ouricuri. Vejamos o trecho do diálogo
que estabeleci com esta autoridade espiritual Kariri-Xocó:

Pesquisadora: A religião não pode ser definida como Ouricuri?


Pajé: Não, não, não, não!
Pesquisadora: E por que em alguns lugares eu escuto as pessoas falarem: “o ritual
do Ouricuri”, sendo que Ouricuri é o local?
Pajé: É o local. É errado!
Pesquisadora: É errado?
Pajé: É! [...]
Pesquisadora: Mas, ali no Ouricuri que é esse local específico, vocês praticam o
Toré?
Pajé: Praticamos todos os nossos deveres.

Ao falar em religião, pajé recorre ao termo doutrina, por ele definida como sendo o
que fazer, uma vez que a doutrina regula o comportamento Kariri-Xocó. Essa doutrina,
segundo pajé Júlio, é baseada em leis que conduzem as obrigações espirituais Kariri-Xocó. A
definição de lei dada pelo pajé é a de que é uma ordem, é uma ordem que é obrigatório a
pessoa cumprir e ela só pode ser passada lá no Ouricuri.
Para pajé Júlio, o Ouricuri é um lugar especial para nossos deveres, nossos rituais.
Pajé Júlio associa esse espaço sagrado a uma noção pragmática, isto é: (i) ir ao Ouricuri é uma
ação obrigatória, realizada a cada quinze dias; (ii) no Ouricuri, os Kariri-Xocó acessam
entidades espirituais que orientam os comportamentos indígenas fora da aldeia. O fato de ser
o líder espiritual do povo Kariri-Xocó faz com que pajé Júlio assevere ter conhecimento do
modo de trabalho de cada pessoa da sua aldeia, ou seja, afirma saber qual é a conduta
individual e o trabalho espiritual que cada Kariri-Xocó deve ter pela religião. Desse modo,
segundo pajé Júlio: a doutrina nos orienta. A religião diz como nós podemos seguir.
Considera ainda que as más condutas individuais serão punidas pela própria religião. Ainda
conforme o pajé, a doutrina é originária dos primitivos e, portanto, não deve ser interrompida
ou modificada pelos Kariri-Xocó que a praticam nos dias atuais: [...] não tem mudança, uma
vez que a doutrina é a mesma. Mas a geração muda. [...] Eu sou o sexto pajé, mas minha
104

doutrina é do meu primeiro pajé, não posso mudá-la. [A minha doutrina] é dos meus
primitivos.
A doutrina é ensinada a todos os Kariri-Xocó que por meio dela consideram haver
mais garantia de vida: [a pessoa] está mais garantida pela doutrina indígena, afirmou pajé
Júlio. Esse termo “garantida” é sinônimo de proteção, sobretudo, das influências negativas
que porventura podem advir do contato com o não índio. Conforme ouvi durante o trabalho de
campo, o Ouricuri está relacionado à verdade, o que difere das várias relações que os Kariri-
Xocó estabelecem com os nãos índios, muitas vezes adjetivados pelos Kariri-Xocó, como
mentirosos. Assim, afirmam: o Ouricuri nunca mentiu para a gente. Tudo é verdadeiro. O
Ouricuri é o morão. É tão positivo que não vai outra pessoa que não sejamos nós. É tão
respeitado. O termo “morão”, conforme explicações de uma índia Kariri-Xocó, significa:
pessoa certa, pessoa verdadeira.
A definição de “ritual” dada por Victor Turner ajuda-nos a entender a dimensão
simbólica dos rituais Kariri-Xocó. Turner define:

Por “ritual”, entendo o comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas
à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos. O
símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades específicas
do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura específica em um contexto
ritual (2005, p. 49).

O autor analisa os símbolos rituais dos Ndembu da Zâmbia. Assim, define os símbolos
como “objetos, atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais em uma situação
ritual” (TURNER, 2005, p. 49). Considera que existem símbolos dominantes que:

[...] aparecem em muitos contextos rituais diferentes, presidindo, algumas vezes, a


totalidade do procedimento, outras, certas fases particulares. O conteúdo semântico
de certos símbolos dominantes possui um alto grau de constância e consistência, que
perpassa o sistema simbólico inteiro. (TURNER, 2005, p. 63)

Os símbolos dominantes rituais podem ser classificados em “três propriedades”: (i)


condensação; (ii) unificação de significados díspares; (iii) polarização do significado. Neste
último, o autor afirma que os símbolos rituais dominantes Ndembu apresentam “dois pólos
claramente distinguíveis de significado”, nomeados por Turner de “pólo ideológico” e “pólo
sensorial” (ibidem, p. 59). Ao polo ideológico “encontra-se um agregado de significata que se
referem aos componentes da ordem moral e social Ndembu, a princípios de organização
social, a tipos de agrupamentos corporativos, ou às normas e valores inerentes às relações
estruturais” (TURNER, loc.cit, grifo do autor). Em oposição: “No pólo sensorial, concentram-
105

se aqueles significata dos quais se pode esperar que suscitem desejos e sentimentos; no pólo
ideológico, encontramos um arranjo de normas e valores que guiam e controlam as pessoas,
enquanto membros de grupos e categoriais sociais” (TURNER, loc.cit, grifo do autor).
É muito difícil fazer uma análise dos símbolos dominantes dos rituais Kariri-Xocó
praticados no Ouricuri, uma vez que estes são cercados de segredo. Conforme pajé Júlio: o
segredo é o ritual que não pode ser apresentado. Todavia, temos indicativos dos símbolos
rituais dominantes Kariri-Xocó ao recorrermos ao trabalho de Mota que em sua pesquisa
antropológica entre os Kariri-Xocó, se aproximou sobretudo do ex-pajé Francisco Queiroz
Suíra que a levou para conhecer o Ouricuri. Mota apresenta alguns símbolos rituais
dominantes Kariri-Xocó diretamente relacionados à esfera botânica, a Jurema em especial:
árvore utilizada de modo enteogênico pelos Kariri-Xocó em um de seus rituais – o culto da
Jurema.59 Esta espécie botânica é da ordem do sagrado, associada a uma divindade espiritual
denominada Sonsé: “o dono/zelador” (MOTA, 2007, p. 82). A Jurema é o modo de acessar
Sonsé que transmite mensagens aos Kariri-Xocó (ibidem, p. 131-132) que serão levadas a
sério pelos indígenas que procurarão agir de acordo com aquilo que ouviram da entidade
espiritual. Ainda de acordo com Mota: “Acima de tudo, jurema é uma árvore que significa o
princípio criador [...]” (ibidem, p. 121).
Durante o trabalho de campo, ouvi os Kariri-Xocó referirem-se a Deus por meio de
duas nominações nativas: Warakidzã e Tupã. No entanto, na etnografia de Mota, Deus é
relacionado a Sonsé. Ao discorrer sobre o “mito da criação”, o ex-pajé Suíra relaciona-o com
a ingestão da Jurema. O pajé contou a Mota que devido a uma seca, nove pessoas (três de
origem branca e seis de origem indígena) foram transportadas para dentro da mata, sendo que
a situação em que se encontravam fez com que “Tupã, ou Jurema, ou Sonsé”, sentisse pena
dessas pessoas e, por isso, “fez um remédio que eles beberam e ficaram tudo bêbado,
dormindo muito”. Contudo, dentre essas pessoas, havia uma índia que fez “esse mesmo
remédio que era do pé da jurema” e deu para alguns índios tomarem. Os brancos não a
ingeriram. Conforme Suíra, a mulher indígena e seu primo ao tomarem o remédio ficaram
“bêbados”, tendo gerado um filho. Isto “[...] foi o começo das tribos de índio. Aquela mulher
formou as tribos com seu primo e com a jurema que ela preparou” (MOTA, 2007, p. 122). Em
relação aos brancos e a alguns índios que não ingeriram a bebida feita pela índia, pajé Suíra
respondeu à Mota:

59
Siqueira refere-se ao ritual do Warakidzã: “uma festa primitiva de caráter religioso, que praticavam os Cariris
dos diferentes grupos” (1978, p. 95).
106

Ah, filha, os branco nunca beberam da jurema, só os índio. Os brancos saíram pra
fazer suas tribos e os outros quatro índios saíram para fazer outras tribos de índio.
Aquele mulher e seu primo são nossos avó e avô. As fadas começaram a entrar na
mata, a trazer o encanto para as matas, e as fadas deram nome a cada tribo com a
linguagem antiga. A família original ficou aqui onde ainda é a nossa aldeia. Assim
começou o mundo (MOTA, 2007, p. 122-123).

Este mito da criação ajuda-nos a compreender a noção Kariri-Xocó, conforme dito em


trabalho de campo, de que a “religião indígena” e o espaço sagrado do Ouricuri datam de
antes da criação do Cristianismo. Assim falou pajé Júlio:

No conhecimento do branco que não tem conhecimento [de] nada do que é religião.
Porque cada um tem a sua religião. O Deus é um só, mas cada um ama a Deus ao
modo que ele quer. Eu respeito todas as religiões e seitas. Existe religião, existe
seita. Seita, qual é a seita [?] A seita é aquela que é criada pelo homem. Se junta
aquele grupo de gente, tem aquela pessoa que conviveu, que eles tiveram
conhecimento que ele viveu em sofrimento e coisa, é uma boa pessoa, eles criam
aquela religião em nome daquela pessoa. É uma seita, isso não é religião. Agora a
minha é religião [pajé bate a mão na mesa], eu tenho religião [bate novamente a
mão na mesa, como forma de afirmar o que está sendo dito]. Eu desafio qualquer
outra no mundo. Eu tenho religião. Que a minha religião é mais velha do que Cristo
[bate novamente com as mãos na mesa]. Quando Cristo nasceu, meu povo, minha
religião já existia, é pelo pai eterno [Deus]. Essa é religião.

Aqui assenta uma questão importante entre três palavras-chave: religião, território e
direito originário. Ao falar que sua religião existe A.C, pajé Júlio está a afirmar que os Kariri-
Xocó vivem desde os primórdios e que sua religião é praticada muito antes do “Período Pré-
Cabralino”. Isto quer dizer, que anteriormente à “descoberta” europeia, havia um vasto
território ocupado por populações Kariri e Xocó que atribuíam (e atribuem) a esse espaço
geográfico símbolos próprios de uma cosmologia indígena. Sendo assim, não é apenas um
espaço geofísico, mas, sobretudo, um território sagrado. Isso deve ser considerado, segundo
os Kariri-Xocó, no processo de homologação do Território Indígena Kariri-Xocó.
Apesar dos Kariri-Xocó não revelarem o nome de sua religião, ela está diretamente
relacionada à Jurema e obviamente ao espaço sagrado do Ouricuri em que bebidas
enteogênicas são preparadas com o uso de plantas nativas, ingeridas para entrarem em contato
com os encantados60. Segundo Pawanã, se fosse para dar um nome à religião Kariri-Xocó,
este seria Ouricuri:

O Ouricuri ele já parte para um lado mais religioso, né. Que se falasse: “qual é o
nome da sua religião?”. Eu preferia falar Ouricuri. Que quando a gente pensa em
religião, a gente pensa que a pessoa tem um lugar para ter o contato com o... tem o
templo sagrado para ter contato com o Warakidzã. Quando se fala em religião é

60
Segundo Mota existem várias bebidas enteogênicas, a exemplo da waluá “feita de mandioca fermentada”
(2007, p. 112, nota de rodapé 55).
107

aquela pessoa que segue aquela doutrina e isso nós temos. Então para nós seria
Ouricuri, é o nome da nossa religião. Eu não digo espírita, eu não digo outro nome,
falava Ouricuri.

De acordo com a frase acima, podemos tecer duas considerações: (i) o espaço do
Ouricuri é o próprio templo sagrado em que rituais são praticados para se ter contato com
Warakidzã (entidade divina) e demais encantados; (ii) a segunda é que os Kariri-Xocó têm
divisões espaciais no Ouricuri que incidem sobre a esfera sagrada e a divisão de gênero.
Assim, durante o trabalho de campo ouvi que há espaços separados entre mulheres e homens
no Ouricuri. Conforme Mota (2007), o espaço do Ouricuri é formado pelo “círculo da
vegetação, lugar dos encantados e dos homens”, em que também se encontram “os altares,
com os objetos secretos [e sagrados] que dão à tribo o seu poder mágico e reforçam sua
identidade” (p. 114). O segundo círculo é o das casas, reservado às mulheres e às crianças,
mas que os homens podem frequentar para se alimentarem. O terceiro círculo é o dos rituais.
Esse círculo compreende a “praça central, localizada no meio das casas” (MOTA, loc.cit).
Antes de qualquer ida ao Ouricuri, os Kariri-Xocó necessitam de provimentos, entre
eles, alimentos que serão ofertados aos encantados. Segundo Mota, os alimentos são
preparados pelas mulheres Kariri-Xocó e só podem ser primeiramente consumidos pelos
homens e pelos meninos que os oferecem aos encantos. Posteriormente e se sobrar alimentos,
as mulheres e as meninas podem comê-los (MOTA, 2007, p. 114). Ao finalizar meu trabalho
de campo, recebi ligações de duas famílias Kariri-Xocó solicitando ajuda financeira para que
pudessem comprar mantimentos para serem levados ao Ouricuri. Na primeira ligação, um
homem Kariri-Xocó havia perdido seu irmão e era preciso cumprir obrigações ao morto que
são pagas pelo Ouricuri. O segundo pedido foi feito por uma senhora Kariri-Xocó que iria ao
Ouricuri dos Fulni-ô (Pernambuco).
Todo início de ano, no mês de janeiro, os Kariri-Xocó permanecem quinze dias no seu
Ouricuri. Aqueles Kariri-Xocó que moram fora da aldeia, retornam a Porto Real do Colégio
para participarem dos rituais prolongados. Nos demais meses do ano, os Kariri-Xocó
permanecem quatro dias no Ouricuri. Foi-me dito que já aconteceu no mês de janeiro de anos
anteriores, os Kariri-Xocó terem recebido uma doação de alimentos de um não índio, à época
um prefeito da cidade de Porto Real do Colégio que os presenteou com um boi.
O panteão Kariri-Xocó é composto por outros deuses além de Sonsé. No livro Os
Cariris do Nordeste (1978), Baptista Siqueira apresenta alguns nomes atrelados “ao mundo
invisível dos mitos ancestrais” (p. 108):

a) Badzé – Pai – Padzu – Deus do fumo, das florestas e do sonho;


108

b) Poditã – Filho – Nhú – formoso mancebo mará que exigia enfeites e


plumagem, nos momentos da luta;
c) Warakidzé – companheiro, amigo, símbolo do grupo que luta ao lado, na
defesa da terra e da tribo vizinha;
d) Popó – irmão maior substituto eventual do pai;
e) Byrae – irmão menor símbolo da inconstância;
d) Crorobae – mito dos gêmeos, não incorporável;
e) Nhinhó – origem dos índios Cariris (Deus).
(SIQUEIRA, 1978, p. 109, grifo do autor).

A árvore Ouricuri que empresta o nome ao território sagrado dos Kariri-Xocó também
tem relação direta com um “encanto”. Assim, segundo Mota:

No início da era pré-colonial, num passado lendário envolto pelas brumas do tempo,
o Ouricuri – ou Varakidra\Warakidza – tinha lugar na época em que os frutos de
uma palmeira chamada ouricuri (Cocos coronata M.) amadureciam. Considerando o
sistema de crenças atual, é possível pensar que a árvore ouricuri era a incorporação
de uma deidade conhecida como Warakidza. Na época, que ainda é presente, aliás,
na percepção tribal dos eventos, consultas ou adivinhações tomavam lugar em uma
cabana nova, feita de palmas frescas do Ouricuri. Segundo Siqueira, a cabana tinha
de ser construída para que a deidade principal, Poditan, pudesse se manifestar. No
entanto, não se explica como tal manifestação acontecia: se era um fenômeno de
incorporação ou apenas a ingestão de substâncias de origem botânica, como a
jurema e outras plantas. O que se sabe é que eram três os poderes mágicos:
Warakidza, Bizamu, Bizamye. Eles supostamente eram desatados durante os rituais,
pois Bizamu era um ser espiritual, ou “encanto”, para o qual o pajé apelava através
de uma invocação sapiente e eficaz. [...] Bizamu ensinava a seus seguidores como
localizar os melhores lugares para caça e pesca, assim como ganhar guerras ou
disputas de qualquer sorte. [...] (MOTA, 2007, p. 79, grifo da autora)

Em relação a Badzé, os Kariri-Xocó explicaram-me que todos os rituais que nós


fazemos, nós fumamos o cachimbo, e a fumaça é a mensageira que vai ao Grande Espírito. O
cachimbo, na língua Kariri é denominado “paewí” ou “paiáwi” (SIQUEIRA, 1978, p. 317).
Segundo Pawanã, o ato de fumar é sagrado, consequentemente, o paewí assume a condição de
objeto sacro. Como a fumaça deve ser enviada à divindade, não se deve tragar e sim puxá-la
para em seguida soltá-la, do contrário, bloqueia-se o contato com a entidade.
Conforme pajé Júlio, existe uma maneira específica de acessar o sagrado que só cabe
aos Kariri-Xocó:

Cada religião não tem o seu modo de amar a Deus? E Deus não é um só? Todo
mundo diz que ama a Deus. Agora, cada um tem o seu modo. Nós também temos o
nosso modo de amar a Deus. Essas outras religiões declaram o modo que eles
amam a Deus e nós amamos a Deus sem declarar para ninguém, ao nosso modo.
(JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)
109

Nós conversamos com ele [Deus] na mente durante o Ouricuri. Deixou tudo escrito
na mente da gente. Para o branco deixou na bíblia, para nós deixou escrito na
mente. (MARIA DO CARMO)61

Portanto, há uma alteridade pragmática do sagrado, ou seja, os Kariri-Xocó e os


cabeças secas têm maneiras diferentes de entrarem em contato com o divino, o que confere
“diferenças em termos de costume e identidade” (BARTH, 2005, p. 26) 62. O aprendizado de
como acessar Deus é desde que os índios são pequenos. A inserção no Ouricuri segue uma
classificação etária, sendo que a criança indígena deve ser levada a esse espaço sagrado até no
máximo cinco anos de idade, depois disso sua entrada é proibida. Conforme explicações do
pajé Júlio, a criança adquire conhecimento religioso indígena até os cinco anos, após essa
idade, já passou do conhecimento da origem. Dos zero aos cinco anos, a criança é
considerada pura: ela tem que entrar enquanto ela está inocente. Ela vai aprender antes de
aprender outras coisas, vai aprender já a doutrina de lá. Aí, ela fica mais garantida. Se
garante lá na religião. O essencial é que a criança aprenda primeiramente a doutrina indígena
para posteriormente adquirir o conhecimento do branco. Desse modo, afirma o pajé: a gente
acha que a nossa religião tem um futuro muito melhor para aquela criança. Além dessa
explicação, podemos considerar que a entrada da criança até os cinco anos de idade no
Ouricuri possa ser um ritual de iniciação ao modo de vida Kariri-Xocó63. Conforme os Kariri-
Xocó, o principal critério de atribuição étnica é o Ouricuri. Vejamos as frases a seguir:

[...] o verdadeiro Kariri-Xocó para nós é aquele que entra no Ouricuri. Então, ele
tem que ser conhecedor do Ouricuri, do ritual, entendeu. […] É o ritual. Então,
todos [nós] vamos para lá. [...]. (TAWANÃ)

Tudo o que nós sabemos do nosso ritual foi Deus que deixou. Tudo o que sabemos
foi ele quem ensinou. Tudo o que Deus deixou para a gente é sagrado. O Ouricuri
também deixou para nós, só para nós índios. (TAWANÃ)

Somos um povo diferenciado. Pela nossa religião, nós somos diferenciados. (PAJÉ
JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)

Tudo o que Deus deixou para a gente é sagrado. O Ouricuri também deixou para
nós, só para nós índios. (MARIA DO CARMO)

Além disso, podemos considerar que a inserção no Ouricuri desde a idade tenra está
associada a uma noção de pessoa (MAUSS, 2003 [1950]) em que a criança aprenderá um
modo particular de ser e de estar no mundo, cuja relação com o sagrado perpassa toda a
formação da pessoa Kariri-Xocó. Ao escrever um texto intitulado: “Um pouco da minha

61
Desse modo, o conhecimento é guardado na mente, diferente dos cabeças secas que o retém em registro
escrito (GOODY, 1995).
62
Ver o artigo Etnicidade e o conceito de cultura. Tradução: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (2005).
63
Ver Vera, Lucia Calheiros Mata (2014, p. 194).
110

vida”, publicado no livro Índios do Nordeste: temas e problemas – II, organizado por
Almeida, Galindo e Elias (2000), Nhenety64 discorre sobre o Ouricuri e a importância do
mesmo na formação da pessoa Kariri-Xocó:

Antes, os índios faziam o percurso numa trilha estreita, com mata de ambos os
lados, partindo da aldeia para o Ouricuri: a Taba Sagrada. O começo do caminho
está nos primeiros passos da criança seguindo a cultura indígena e termina no dia de
sua morte, quando para de andar nesta vida. Quem tem uma visão comum, percebe
apenas uma estrada de barro; empoeirada no verão e lamacenta na estação das
chuvas de inverno. Ladeiras e curvas sem sentir o verdadeiro significado desses
caminho sagrado que vai além por tempo indeterminado pelos passos de uma pessoa
dentro da ordem cultural do povo Kariri-Xocó. Para permanecer como índio, deve
zelar os seus costumes, suas tradições, sem abandonar o que lhes identificam como
povo organizado socialmente nas origens ancestrais, o trono da nação [...]
(OLIVEIRA, 2000, p. 297-298)

Os Kariri-Xocó disseram-me que dentre as ações rituais para entrar em contato com as
entidades espirituais, há o ato da penitência que pode ser relacionado à (i) privação de atitudes
cotidianas, como o ato de comer e de dormir; (ii) e o disciplinamento ritual visando a
salvação:

Ama a Deus com penitência, não é com divertimento. Não temos horas para comida,
não temos horas para dormida, lá [no Ouricuri] não é divertimento, é penitência. A
penitência é a pessoa se disciplinar: passar sono, passar fome, se deitar mal
dormido, não ter canto para dormir, para se deitar, não ter cama boa, nem colchão
bom, nem coisas boas. [...] A pessoa recebe aquele conforto de Deus e nada sente de
maldade, de ruindade. (JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)

Penitência é a gente dormir no chão, não comer bem, se disciplinar. [...] Nosso
ritual é uma penitência de a gente sofrer. À noite ninguém pode dormir. [Nesse
momento, a esposa de Bonfim interpelou e disse: “se quiser alcançar alguma coisa,
né”]. [...] Uma penitência muito forte para eles serem salvos. [...] Nosso ritual é de
Deus. É um negócio sério. É uma visão que Deus já deixou para nós fazermos. É
coisa de Deus. É a verdade, nada de mentira. [...] A penitência traz tudo de bom
para nós. (ZÉ BONFIM)

Como dito nas citações acima, a penitência não é em vão: é uma das formas de entrar
em contato com Deus que recompensará todo o sofrimento por meio da purificação espiritual.
Como afirmado por pajé Júlio, Deus gratifica por meio da purificação [que] é a gratificação
pela penitência prestada. Conforme Mota (2007, p. 108), no período noturno no Ouricuri, os
Kariri-Xocó realizam os cantos e as danças dos “torés das obrigações”. O Toré da obrigação é
antagônico ao Toré como folguedo (MOTA, 2005, p. 173), ou seja, de “divertimento”, como
dito por pajé Júlio. No Ouricuri é realizado o Toré não revelado, restrito aos Kariri-Xocó.
Segundo pajé Júlio: [o Toré] do Ouricuri é mais garantido, porque só é para nós, existe mais
64
No presente artigo, o nome de Nhenety é grafado em Língua Portuguesa como José Nunes de Oliveira.
111

força, mais cobertura, a gente está em um canto próprio. Está em um canto sem poluição,
sem maus olhos, sem maldade. Esse maniqueísmo, que também pode ser visto como uma
moralidade assentada no bem e no mal, é mediado por dois mundos: (i) o do Ouricuri, como
espaço sagrado; (ii) e o de fora do Ouricuri, como espaço profano (MOTA, 2007), da vida
mundana. Desse modo, são dois contextos: (i) o da pureza; (ii) e o da impureza (DOUGLAS,
1991 [1966]). Os Kariri-Xocó contrapõem três áreas por onde circulam: (i) o Ouricuri; (ii) a
aldeia; (iii) e fora da aldeia. O Ouricuri é um lugar ausente de impurezas, uma vez que os
Kariri-Xocó o consideram como um espaço sagrado. Aqui é relevante a definição de Mary
Douglas, em Pureza e Perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu (1991 [1966]), que
afirma:

“A impureza é uma ofensa contra a ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto


negativo; pelo contrário, esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio”. (p. 6-7)

[...] o impuro é o que não está no seu lugar, devemos abordá- lo pelo prisma da ordem.
O impuro, o poluente, é aquilo que não pode ser incluído se se quiser manter esta ou aquela
ordem. Só reconhecendo este enunciado poderemos começar a compreender o que é a
poluição. (p. 33)

Para os Kariri-Xocó, a aldeia é um espaço de mistura em que a presença do branco


acarreta problemas. De modo antagônico ao Ouricuri em que é interditada a inserção do não
indígena, bem como a proibição da ingestão de bebidas alcoólicas, assim como a prática
sexual, na aldeia circulam índios e não índios, o consumo etílico é expressivo, há conflitos
internos, roubo e festas. Utilizando a linguagem indígena, a aldeia é um mundo material e não
espiritual como observado no Ouricuri. O mundo espiritual, segundo os Kariri-Xocó, é puro,
diferentemente do material que é impuro, gerador da desordem. Conforme ouvi de um adulto
Kariri-Xocó, ao estarem fora do Ouricuri, os índios se desentendem, brigam e disputam entre
si. Contrariamente, ao estarem no Ouricuri, afirma existir uma união. Ao espaço do Ouricuri
também é atrelada uma noção de pureza corporal:

No nosso Ouricuri, lá não existe casado, não existe noivo, não existe namorado, lá
existe uma família. Minha esposa aqui é minha esposa, mas lá não. Ela tem o local
dela, eu tenho o meu. Lá ela passa a ser uma pessoa conhecida minha, uma amiga,
uma filha, uma neta. (JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)
112

A ideia de estarem todos como uma família no Ouricuri implica em uma forma de
proibição do incesto. Quanto às práticas sexuais, pajé Júlio recorre a duas definições: sexo
sujo e sexo limpo. Segundo ele, sexo sujo é praticado por não casais, enquanto que sexo limpo
é feito por pessoas casadas, garantido por Deus, casal registrado pelo Pai: Deus. Para pajé
Júlio, o corpo é sujo, diferentemente do espírito que é limpo. Assim, como o Ouricuri é um
local de responsabilidade espiritual, um ambiente garantido por Deus, realizar atos sexuais
nesse espaço sagrado seria crime. Como consequência, viria uma má recompensa, o oposto do
que se busca que é a purificação e a proteção espiritual. Ainda conforme o pajé, o Ouricuri é
disciplina: porque lá não é dança, não é brincadeira, é disciplina que exige ordem,
diferentemente da desordem atrelada à diversão que pode ser vivida no espaço da aldeia e fora
dela. Desse modo, o Ouricuri como espaço “sagrado precisa estar forçosa e continuamente
delimitado por interdições” (DOUGLAS, 1991 [1966], p. 20).
O ambiente fora da aldeia é visto com desconfiança pelos Kariri-Xocó que consideram
os centros urbanos perigosos. Ouvi relatos de indígenas que foram assaltados em suas viagens
para fora do Estado de Alagoas; ou de serem parados por policiais ao estarem na “cidade
grande”. Kayrrá já vivenciou essa experiência negativa: relatou-me que um dia ao estar em
São Paulo com outro Kariri-Xocó foram abordados por policiais que ao virem ambos
pintados, os consideraram suspeitos. A famigerada abordagem policial: armados, ordenando
“mãos na cabeça” e apresentação de carteira de identidade. Às vezes que andei pela cidade de
Porto Real do Colégio acompanhada de Wytaiha, este jovem indígena alertava-me sobre os
lugares que considerava seguros para andarmos, ou seja, livres de assaltos. Desse modo, há
uma contraposição do espaço da aldeia e do espaço da cidade, sendo que na aldeia os Kariri-
Xocó se sentem seguros enquanto que, na cidade, o medo do perigo parece ser constante.
Além disso, Pawanã considera que ao estar fora da aldeia é necessário lidar com a cultura do
branco que para ele é diferente: o costume e a educação dentro de nós são diferentes [do não
indígena].
O Território Kariri-Xocó sofre constantes invasões, seja de posseiros, seja de
fazendeiros. Atualmente, as alianças matrimoniais estabelecidas entre Kariri-Xocó e não
índios é maior do que nos tempos de outrora. Conforme dito por pajé Júlio, um de seus filhos
fez um levantamento na aldeia do número de famílias compostas pela união de índios com
não índios: um total de oitenta e duas famílias. Isso gera preocupação ao pajé que afirma que
na época de seu avô era menos mistura. Ao se referir a essa “mistura”, pajé recorre a duas
noções: (i) origem certa e (ii) origem dominada. A primeira seria resultado das alianças
matrimoniais de índios com índios, o que geraria um sangue original. De modo oposto, a
113

origem dominada é a mistura de índio com não índio, gerando um sangue mentiroso. O termo
“dominada” refere-se, principalmente, à relação estabelecida entre uma índia Kariri-Xocó e
um homem branco que, segundo pajé Júlio, tentaria aviltar a condição étnica dessa mulher.
Além disso, considera que o branco pode agir de má fé, acarretando graves consequências a
aldeia. Assim, afirma que a atuação de seu avô em tempos de outrora e a atuação que ele, pajé
Júlio tem na atualidade são diferentes:

Muda e muito. Dá trabalho, porque aquilo ali já não fica a origem certa, já ficou a
origem dominada, misturada. Aí, modifica o meu trabalho, a minha confiança,
porque a mistura branca pode enganar. Pode vir para destruir com mentira e
depois pode enganar. Aí, entrou um sangue mentiroso com o original. Aquilo ali me
dá preocupação. Porque não é todo branco que casa com uma índia e vive a vida
toda. Que respeita a origem dela e que tenha fé na origem dela. Não é todo branco
que faz isso, não. E aquele que não tem fé em nada e se mistura com uma índia,
tanto derruba o poder dela e também dá trabalho para mim. Dá preocupação para
mim, porque pode atingir todos nós. (JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)

O Ouricuri é o único local do Território Indígena Kariri-Xocó que está “a salvo” da


invasão do homem branco, além de ser um espaço em que não há mistura de índio com
cabeça seca. Pajé Júlio define o Ouricuri como canto de apoio, no sentido de que é nesse
espaço restrito aos Kariri-Xocó que ele doutrina seu povo: se eu vejo a comunidade um pouco
rebelde, eu marco a viagem, passo três, quatro noites lá com eles [para] eu doutrinar, porque
é o canto de apoio, [...] mas quando eu alcanço coisas perigosas, eu levo eles para lá para
prevenir. Assim, o Ouricuri é o local em que os Kariri-Xocó vão se acobertar contra o
homem branco. Conforme pajé Júlio, qualquer decisão indígena que incida sobre os Kariri-
Xocó é preciso que seja comunicada a ele, que consultará se a religião é contra ou a favor. Se
for favorável haverá proteção divina, se não, haverá prejuízo. Por isso, o pajé afirma que o
Ouricuri é garantia para o nosso povo. No mês de janeiro em que os Kariri-Xocó
permanecem quinze dias no Ouricuri, o pajé afirma fazer uma vidência em que prevê o que
ocorrerá ao longo de todo o ano, comunicando ao seu povo e orientando como eles devem
proceder e se proteger dos acontecimentos futuros. Desse modo, o Ouricuri é um espaço do
exercício e da manutenção do poder, no caso, da autoridade do pajé sobre os Kariri-Xocó.
Esse espaço é seguro, uma vez que ali as esferas do Estado brasileiro não podem intervir, já
que é a lei do índio, da religião indígena, que impera. Os Kariri-Xocó confiam nas mensagens
que recebem das entidades sagradas acessadas nos rituais que ocorrem no Ouricuri. Além
disso, eles têm o pajé Júlio como o grande líder espiritual, sendo que o que é dito por ele é
levado em extrema consideração pela maioria dos Kariri-Xocó. Como na aldeia há uma
disputa por cargos de autoridades de pajé e de cacique e como o espaço do Ouricuri é tido
114

como verdadeiro pelos Kariri-Xocó, o pajé atual assume alta hierarquia político-religiosa.
Assim:
[...] As suas legítimas pretensões apóiam-se nas crenças em poderes extraordinários
que emanam da sua pessoa, das insígnias da sua função ou das palavras que
pronunciam. Do mesmo modo, a ordem ideal da sociedade é mantida graças aos
perigos que ameaçam os transgressores. Estes pretensos perigos são uma ameaça que
permite a um homem exercer sobre outro um poder de coerção. (DOUGLAS,
1991 [1966], p. 7)

3.1 Fronteiras étnicas no espaço sagrado do Ouricuri

O Ouricuri é uma prática cultural amplamente realizada pelos denominados “índios do


Nordeste”, porém até entre essas populações indígenas há restrições rituais, como no caso dos
Kariri-Xocó que impõem uma fronteira étnica (BARTH, 2000 [1969]) ao permitirem apenas a
entrada dos Fulni-ô (Pernambuco), Karapotó (Alagoas), Tingui-Botó (Alagoas), Aconã
(Alagoas) e Xucuru-Kariri (Alagoas) em seu Ouricuri.65 O que acontece entre essas
populações indígenas que frequentam o Ouricuri dos Kariri-Xocó é que compartilham do
mesmo conhecimento e segredo. Assim como Clarice Mota, sentia-me intrigada pelo fato dos
Xocó da Ilha de São Pedro não participarem do ritual dos Kariri-Xocó. À época de sua
pesquisa etnográfica sobre os Kariri-Xocó, Mota estabeleceu diálogos com o então pajé
Francisco Queiroz Suíra (seu filho Júlio ainda estava sendo preparado para assumir o cargo do
pai) que forneceu as seguintes respostas para que os Xocó sejam proibidos de estarem no
Ouricuri dos índios de Porto Real do Colégio: “[...] o grupo de São Pedro havia perdido o
conhecimento dos rituais e de medicinas que eram cruciais para a realização das
performances. [...]” (MOTA, 2007, p. 83). A perda desse conhecimento está relacionada em
saber “lidar com o segredo do culto da Jurema [...]” (ibidem, p. 92). Assim, apesar do
Ouricuri ser um denominador comum entre as populações indígenas do Nordeste, é errôneo
generalizarmos a forma como é praticado, uma vez que cada etnia guarda sua particularidade
quanto à Jurema e aos Torés cantados e dançados no Ouricuri. 66
Hohenthal (1951-1952) aponta para as diferenças rituais entre o Ouricuri dos Xocó de
“Ôlho d’Àgua do Meio” e dos Xocó de Porto Real do Colégio:

65
Ver Reesink, Edwin (2000, p. 366-368).
66
Ver livro organizado por Grünewald, Rodrigo de Azeredo (2005).
115

[...] os desenhos variam para as várias danças, sendo que os Xocó de Ôlho d’Àgua
do Meio pintam-se com desenhos ainda diferentes; também a indumentária de baile
destes difere um pouco da usada pelos seus congêneres de Colégio. (HOHENTHAL,
1960, p. 64)

O autor destaca o lado secreto do Ouricuri em que “os neo-brasileiros não assistem
essas danças cerimoniais nem os ritos relativos ao culto de jurema. Os brancos do local só
podem assistir os torés ou seja danças públicas de natureza social” (HOHENTHAL, 1960, p.
64). O fato do Ouricuri ser secreto deve-se à época da catequização dos índios aldeados que
eram proibidos pelos padres de exercerem seus rituais sagrados (MOTA, 2005). Na visão dos
missionários, os rituais indígenas pertenciam à esfera pagã67, ao passo que os Kariri-Xocó
dimensionavam e ainda os dimensionam à esfera sagrada. Como os religiosos europeus
atrelavam ao profano, era preciso afastar o estrangeiro que condenava a prática ritual
indígena. Além disso, era preciso manter em segredo o conhecimento indígena diretamente
associado à Jurema. Assim:

A esses estrangeiros não mais se lhes pode dar acesso a sua forma de misticismo, a
suas crenças derivadas e atadas à natureza, já que [os Kariri-Xocó] se percebem
como parte dessa natureza privada de seu território através da qual encontram o
sentido de sua posse sobre a terra e etnia. (MOTA, 2005, p. 179)

Desse modo, território, ritual e etnicidade são indissociáveis. O Ouricuri enquanto


exclusivo das populações indígenas do Nordeste é desenvolvido “dentro dos limites do espaço
sacralizado pela tradição, ou seja, é o ritual que sacraliza o espaço e não o contrário” (ibidem,
p. 181). A categoria “segredo” (HOHENTHAL, 1960; MOTA, 2007; MATA 2014) é
importante ser pensada em termos da etnicidade, isto é, o segredo enquanto signo étnico “[...]
desempenha um papel óbvio, o de separar os de dentro e os de fora, os participantes do saber
específico e os externos sem conhecimento” (REESINK, 2000, p. 391). No momento do
Ouricuri, os Kariri-Xocó se apresentam como um grupo social fechado ou como uma
sociedade secreta (MOTA, 2007, p. 82), sendo que o acesso a esse universo ritual é restrito a
condição de pertencimento étnico. O segredo se apresenta como um valor primário
(TONKIN, 1995 [1992], p. 28, tradução nossa68) para esta população indígena. Conforme
Mota (ibidem, p. 81): “para os Kariri-Xocó, plantas e rituais do Ouricuri sempre pertenceram
ao império do segredo que valida a existência do grupo como sendo indígena”. Assim, quando
procurei indagar Nhenety e Kayrrá sobre a Jurema, não deram continuidade ao assunto.

67
Conforme Siqueira, Baptista: os padres, “apesar de terem banido totalmente a festa do Warakidzã, por estar
relacionada com um deus pagão, jamais conseguiram o mesmo com a cabana do Ouricuri, interligada ao totem
das nações Cariris” (1987, p. 110).
68
Segundo Tonkin: “For the Vai of Western Liberia, ‘secrecy’, not ‘openness’, is a prime value” (p. 28).
116

Portanto, “de fato, as plantas estão igualmente sob o segredo, [...], de modo que esse segredo
assume ao mesmo tempo um significado étnico e sagrado” (NASCIMENTO, 2005, p. 58).
Interessante é a interpretação fornecida por Pawanã para justificar o nome do espaço sagrado
Kariri-Xocó como Ouricuri. Segundo ele, o fruto oriundo da árvore Ouricuri representa
pureza e resistência, sendo esta última relacionada àquilo que é hermético e difícil de
desfazer. O fato do Ouricuri Kariri-Xocó ser fechado (assim como o fruto dessa árvore),
remete à noção de ser um local reservado apenas para os “entendidos”, no caso, os índios que
detêm o conhecimento dos encantos e que não pode ser violado pelo branco.
Conforme pajé Júlio: Ouricuri é o nosso conhecimento. A valorização e o zelo pelo
próprio saber têm implicações concretas na vida Kariri-Xocó. Assim, segundo o pajé: tudo
tem que sair de lá, se não sair de lá [do Ouricuri], para a gente nada tem valor. Dizer “nosso
conhecimento” implica em uma coletividade, um conhecimento exclusivo do povo Kariri-
Xocó. Podemos considerar que aquilo que ocorre no Ouricuri é um “conhecimento que só os
entendidos têm, [...], essa é a sua ciência, e é sobre isso que não podem falar”
(NASCIMENTO, 2005, p. 59). Essa ciência é a do índio que difere da ciência do branco.
Mas cabe uma ressalva: os modos de conhecimento ritual Kariri-Xocó não são iguais
para todos esses índios. Digo isto, pois pajé Júlio afirma: o conhecimento não é para todo
mundo. A doutrina, ela pode ser transmitida para todo mundo, o conhecimento não. Tem
coisa do meu conhecimento que eu não posso dar para ninguém. O pajé ainda afirma que os
Kariri-Xocó têm capacidades diferentes, sendo que a pessoa recebe a sua capacidade ao
nascer. A capacidade do pajé é a vidência, definida por ele como: [o] dom que Deus dá e bota
na mente da pessoa. Já nasci com ela. No seu caso, essa vidência pode ser vista como um
conhecimento religioso que passa a adquirir um sentido político. O mesmo ocorre com o seu
filho, o cacique Cícero que, segundo pajé, precisa ter conhecimento da religião para assumir
tal autoridade indígena. Assim para ascender ao cargo de cacique é necessário conhecer:

Oitenta a noventa por cento da religião do Ouricuri, se não tiver conhecimento, ele
não tem condições de ser um cacique, porque tem que doutrinar o povo dele [...]
dentro da origem. E se ele não tiver conhecimento, ele vai determinar o povo dele
com a origem de quem? Do branco. Aí, não tem condições. (JÚLIO QUEIROZ
SUÍRA)

Para ser pajé é preciso que se conheça toda a religião. Contudo, o status de líder
espiritual também está atrelado a uma “linhagem da pajelança” (MOTA, 2007, p. 86) em que
os ascendentes de Júlio Queiroz Suíra já assumiram como pajés Kariri-Xocó. A essa herança
não há como fugir. Tanto pajé Júlio, como seu filho cacique Cícero, afirmaram-me que estão
117

em uma função de autoridade que não queriam, mas conforme Cícero Queiroz Suíra: a gente
não tem o querer. Quem decide é a nossa religião. No caso do pajé Júlio, “[...] quando a
Jurema lhe disse que ele seria o herdeiro de seu pai e que ele deveria servir seu povo como um
pajé, ele simplesmente teve de obedecer” (MOTA, 2007, p. 87). Assim, ao ser questionado
sobre como se emerge ao status de pajé, Júlio Queiroz Suíra respondeu-me: (i) isso é pela
origem. A origem é a religião. Cabe dizer que a primogenitura não é o princípio organizador
da ascensão ao cargo de pajé. Júlio Queiroz Suíra é filho caçula e assim assumiu como pajé.
Em conformidade, afirma: eu tenho sete filhos homens, mas eu não posso designar nenhum
como pajé. A origem é que vai indicar ele. [...] Pajé, além da família, sai mais da origem, da
religião, do Ouricuri.
Importante ressaltar que mulheres Kariri-Xocó não podem ser pajés. Ao que parece, há
um conhecimento ritual restrito aos homens, uma vez que no Ouricuri há uma espacialidade
definida por gênero, em que o espaço masculino é interditado às mulheres (HOHENTHAL,
1960; MOTA, 2007; MATA, 2014). Nesse local unicamente masculino há uma separação
entre pessoas detentoras de certos saberes rituais: “especialistas”, “iniciados” e “não
iniciados”:

Dentro deste espaço masculino, há uma outra divisão: especialistas e iniciados


podem entrar em qualquer dos quartos, enquanto não-iniciados ou crianças menores
estão proibidos de entrar nos lugares considerados mais secretos e sagrados.
(MOTA, 2007, p. 114)

Apesar dos Kariri-Xocó afirmarem que o Ouricuri é sinônimo de união, já que


consideram que neste local as brigas vividas na aldeia e as divisões internas acabam sendo
suspensas durante o período ritual, os dados obtidos por Mota fazem que consideremos que a
união no Ouricuri é constituída mediante divisões pautadas no gênero, em faixas etárias e no
grau de aquisição de conhecimentos rituais.
O Ouricuri é considerado pelos Kariri-Xocó como um local da aquisição de saberes
indígenas:

O Ouricuri tem que ter mato, ele foi o que sobrou do nosso território, mas tudo era
mato. É lá onde a gente aprende, reaprende a caçar, pescar, [...], quando chega na
mata, aí eu vou relembrar, eu lembrei que os mais velhos falavam que essa planta
serve para isso. Eu vou andar na mata, aí eu pergunto: “Que canto é aquele?”;
“Que pássaro é aquele?”. “Esse pássaro é tal”, “o nome dele... é esse pássaro”; aí
eu digo: “Que rastro é esse aqui?”. “Esse aí é rastro de tatu”, “esse aqui é rastro
de teiú”, andando na mata, né. Então, os mais velhos vão ensinando a gente como é
a nossa vida mesmo, nossa vida tradicional. Reconhecer o rastro das plantas, os
rastros das caças, os cantos dos pássaros, a autorização das ervas, que bicho é
esse, que tipo de bicho é, o mel. Lá a gente vai de novo aprender as nossas coisas
118

indígenas mesmo. A gente nunca esquece por causa disso. Porque se não tivesse a
mata, a gente era impossível aprender. Mas é lá na mata que a gente, os mais
velhos ensinam a nós qual é a nossa verdadeira vida, a vida indígena mesmo.
(NHENETY)

Devemos considerar que para Nhenety, cultura é conhecimento, uma maneira


particular de pensar, sentir e agir no mundo. Na definição de Fredrik Barth (1995, p. 66),
conhecimento é o que as pessoas empregam para interpretar e agir no mundo: sentimentos,
pensamentos, habilidades incorporadas, palavras, taxonomias e outras modalidades verbais. 69
Por meio do trabalho de campo na população Ok (interior da Nova Guiné) formada pelos
Baktaman, Bimin-Kuskusmin e Bolovip, Barth observou a tradição do conhecimento ritual
desse povo. O autor define tradição de conhecimento como uma corrente formada por um
conglomerado de ideias e símbolos representativos de uma pluralidade de comunidades Ok,
70
geneticamente relacionadas e que se intercomunicam entre si. Desse modo, Barth pesquisa
as variações da cultura, mais especificamente, a diversidade de ideias em torno do ritual de
iniciação masculina que é realizado de maneira diversa entre a população OK.
O trabalho de Barth é relevante no contexto Kariri-Xocó, uma vez que nos auxilia a
olhar de maneira atenta para as variações internas Kariri-Xocó, em que o conhecimento ritual
é distribuído de maneira diferente entre os membros da aldeia. Como asseverou pajé Júlio, há
um tipo de conhecimento que só cabe a ele, que os demais Kariri-Xocó desconhecem. Assim,
para ser pajé (como dito anteriormente) é preciso conhecimento total da religião; já para ser
cacique não é necessário saber de modo integral sobre a religião, mas é preciso ter maior
conhecimento religioso do que os demais indígenas; há Kariri-Xocó que são “especialistas
rituais”, enquanto outros são “iniciados” (MOTA, 2007); ao passo que as crianças Kariri-
Xocó ainda não têm o mesmo conhecimento religioso que os adultos, mas já foram iniciadas.
Além disso, na aquisição do conhecimento religioso indígena, deve ser levada em
consideração a experiência ritual de cada Kariri-Xocó que implica em um contato com as
entidades sagradas que difere entre esses índios. Por mais que a penitência e a ingestão da
Jurema sejam largamente utilizadas por eles, cada índio receberá uma mensagem espiritual.
Essa mensagem será interpretada de maneira única, a partir da experiência individual do
ritual. Se for autorizada a revelar a um outro índio aquilo que sentiu, viu e ouviu (do encanto),
a pessoa utilizará recursos próprios (palavras, sentimentos, sensações, expressões corporais e

69
Tradução nossa: “Using knowledge (referring to what people employ to interpret and act on the world:
feelings as well as thoughts, embodied skills as well as taxonomies and other verbal models) as our prototype for
culture allows us to construct rather different models of culture [...]”. (BARTH, 1995, p. 66)
70
Tradução nossa: “[...] the conglomerate stream of ideas and symbols of a plurality of genetically related and
intercommunicating communities.” (BARTH, 1995 [1987], p. 1)
119

ideias) que produzirão novos saberes a respeito do ritual (BARTH, 1995 [1987]; GOODY,
1995).
Podemos considerar a existência de diferentes tipos de conhecimento Kariri-Xocó
(BARTH, 1995)71 que podem ser classificados em: (i) saberes da fauna; (ii) saberes botânicos;
(iii) saberes alimentares, isto é, da caça e da pesca; (iv) saberes rituais; (v) saberes sagrados;
(vi) saberes secretos. Os saberes botânicos têm grande valia, tanto para a identidade étnica,
quanto para a mediação com o sagrado (MOTA, 2007, p. 22-23). Ouvi uma mulher Kariri-
Xocó tecer crítica a uma família da aldeia por não me mostrar ervas nativas: aquela família
[...] não é índio legítimo. Não te deram uma erva. Ao estar na casa de Maria do Carmo pude
vê-la ministrar algumas plantas para serem usadas de maneira medicinal em uma de suas
filhas que estava seriamente doente. De modo semelhante, a cunhada de Maria do Carmo
percebeu que eu estava muito cansada, segundo ela, tal fadiga era provocada por mau-olhado.
Para afastá-lo fez uma reza com uso de folhas e preparou um líquido medicinal com diversas
plantas para que eu ingerisse ao longo dos dias em que permaneceria na aldeia.
Os conhecimentos Kariri-Xocó são plurais e utilizados de diversas formas, inclusive,
na relação com os não índios. O conhecimento secreto dos rituais que ocorrem no Ouricuri é
utilizado pelos Kariri-Xocó para a construção de uma fronteira étnica. O saber ritual produz
uma distintividade cultural, uma diferenciação entre nós (Kariri-Xocó) e eles (cabeças secas)
que não tem inteligibilidade da “ciência do índio”. Mas, os Kariri-Xocó também aplicam o
conhecimento indígena para aproximarem-se dos brancos: pajé Júlio recebe em sua casa
inúmeros cabeças secas à procura de cura para seus males; fora da aldeia, Kayrrá realiza
trabalho espiritual nos não índios e ensina-os a fazer maraca72. O Toré é o principal conteúdo
cultural transmitido aos não indígenas, sendo que os Kariri-Xocó consideram que por meio da
apresentação ritual do Toré é possível ensinar os cabeças secas sobre uma parte da cultura
Kariri-Xocó e sensibilizá-los à causa indígena (como veremos mais adiante).

3.2 O Toré Kariri-Xocó

O toré é um conjunto de cantos e danças indígenas que expressa acontecimentos


históricos e culturais, apresentando em formas de arte os fenômenos naturais do
universo tribal. O canto conectado com a dança, harmonizado no espírito coletivo,
praticado na energia nativa, derrama o suor no chão; os movimentos dos braços
trazem a chuva refrescante do inverno. O instrumento musical maracá é tocado de
acordo com os batimentos cardíacos do coração, respeitando e seguindo o ritmo da
vida. Quem traz o maracá na mão está com o planeta Terra em miniatura,

71
Tradução nossa: “[...] the different kinds of knowledge that are produced [...]” (BARTH, 1995, p. 67).
72
Instrumento musical indígena.
120

simbolizada no coité. Girar esse instrumento na mão é movimentar o mundo,


trazendo o dia, a noite, a mudança das estações. Os círculos dos movimentos da
dança representam a circunferência da Terra, do Sol e da Lua, a aldeia, a maloca, o
círculo da vida. (NHENETY KARIRI-XOCÓ, 2013, p. 65)

A citação acima é extraída do livro Fulkaxó: ser e viver Kariri-Xocó, escrito por
Nhenety que define o Toré e seu simbolismo. Porém, como adverte Rodrigo de Azeredo
Grünewald (2005): “[...] os sentidos do toré são múltiplos e constituídos a partir de muitos
posicionamentos narrativos” (p. 18). No caso dos Kariri-Xocó definem o Toré de maneira
“multissemântica” (ibidem, p. 13), sendo:
(i) tradição;
(ii) cultura;
(iii) canto sagrado;
(iv) dança;
(v) identificação do povo;
(vi) resistência;
(vii) união;
Os Kariri-Xocó consagram o Toré como uma “[...] manifestação por excelência de
uma indianidade imemorial, que é anterior [...] à toda realidade imediata (ARRUTI, 2006,
sem paginação)73. Desse modo, segundo Pawanã: [no] Toré está o nosso tempo de existência.
[...]. O canto pode nascer agora, como pode ter nascido há anos. Ele já nasce desde o
começo do mundo. O fio dessa linha temporal chegou aos dias atuais, com o Toré sendo
transmitido de geração em geração. Desse modo, afirma Ryakonã:

Essa cultura nossa [...], ela já vem de geração em geração. Passada a mais de
quinhentos e dezessete anos, dias e horas, minutos, segundos. Tudo isso no nosso
conhecimento conta. [...]. E a gente ainda continua forte. [...]. Que é uma cultura
milenar que até hoje a gente mantém ela viva.

Na visão de Wyray: [o] mais importante da nossa cultura é o Toré. O mais


importante. Porque são cantos e danças. É de onde nasce toda a cultura indígena: é dos
cantos e das danças. Essa cultura é baseada em uma cosmologia própria em que o Toré é
considerado uma dádiva ancestral. Segundo Pawanã: o Toré, a gente recebe dos nossos
ancestrais. Se traduzido da língua indígena para o português, o vocábulo Toré significa canto
sagrado. Conforme explicou Pawanã: to=canto + ré=sagrado. A atribuição de sacralidade está

73
A citação desta frase é extraída do artigo intitulado: A produção da alteridade: o Toré e as conversões
missionárias e indígenas (ARRUTI, 2006). O texto sem paginação foi obtido em www.academia.edu, postado
por J. Arruti, acessado em 19 de janeiro de 2018.
121

diretamente relacionada à representação de uma divindade, no caso, Deus74. Essa figura


onipotente teria dado a dádiva do Toré aos Kariri-Xocó. Desse modo, segundo Maria do
Carmo: Deus já deixou essa inteligência para a gente. De acordo, o índio Zé Bonfim afirma
que o Toré é: dado por Deus. Por ser uma inteligência dada por Deus e, especificamente, aos
Kariri-Xocó, o Toré é um “regime de índio [...] capaz de, pela práxis, torná-los manifestos
como índios” (GRÜNEWALD, 2005, p. 14, grifo do autor). De acordo com o cacique Cícero
Queiroz Suira: o Toré é uma segurança para nós todos. É a nossa força. Toré é ligação com
Deus. Por conseguinte, sua prática se volta ao divino em que os cânticos entoados são canais
de comunicação com Deus: cada canto do Toré que a gente canta, nós estamos louvando ao
nosso Deus. Nós estamos nos pegando com ele, pedindo que ele livre a gente de tudo o que
for ruim, afirmou Wyasury.
Em relação ao Toré enquanto dança sagrada, há uma definição indígena emblemática.
Segundo Wyray: o Toré é uma dança que representa tudo, como por exemplo: o ar, a terra, o
fogo, as árvores, os pássaros. Então, o Toré que a gente fala é que envolve isso tudo. Então,
esse é que é o Toré, porque ele representa o planeta. Esta noção do Toré como representativo
do planeta, pode ser associada a uma cosmologia indígena que concebe a natureza de modo
animista. Conforme ouvi durante o trabalho de campo: nós falamos com a natureza. A
natureza é espírito. As danças do Toré são formas de adoração e reverência a esses espíritos.
Na retomada da Fazenda, observei os Kariri-Xocó dançarem o Toré todas as noites, dentre os
cânticos há aqueles que reverenciam pássaros. Na dança, os corpos dos índios Kariri-Xocó em
balanceio e de braços abertos remetem ao voo de uma ave. Algumas músicas entoadas fazem
menção ao som dos animais em que os homens assobiam o canto de determinadas aves. Os
cânticos se referem ao periquitinho, ao urubu de Serra Negra e a ave Acauã ou Akauã. Os
Kariri-Xocó cantam: As asinhas da Cauã. E as costelas da Cauã. Em conformidade, Siqueira
(1978) refere-se a “aves totens” Kariri, sendo a Acauã definida como “totem da vida noturna,
ligado, ao que tudo indica, à idéia que tinham os Cariris do mocho (moxô)” (p. 110).
Referem-se também ao Caracará (o Carcará) que representa “o totem do chefe supremo”
(SIQUEIRA, loc.cit).
De acordo com Nhenety: cada canto do Toré, ele conta uma história de uma época.
Dentre esses cantos, criou-se um que é muito cantado pelos Kariri-Xocó, tendo como pano de
fundo um indígena conhecido como Maruanda e o período marcante da presença missionária

74
Pawanã o denomina como Warakidzã.
122

no Baixo São Francisco em que os Kariri-Xocó foram aldeados pelos religiosos que
simultaneamente tentaram proibir as práticas rituais no Ouricuri:

Maruanda foi um cara, que na época dos jesuítas, importantíssimo. Na época dos
jesuítas, Maruanda ele ficava de vigilante. Os índios iam praticar o ritual,
Maruanda ficava vigiando os jesuítas, se eles vinham para o ritual. Quando os
jesuítas vinham para cá para o ritual, sempre Maruanda assobiava, fazia alguma
coisa para os índios pararem, para os jesuítas não verem. Aí, quando foi um dia, aí
Maruanda estava debaixo de um pé de Juazeiro, ali olhando... os índios dançando,
fazendo o ritual deles, né, e o Maruanda olhando para o horizonte, aí foi embora
dormir. Aí, os jesuítas chegaram, pegaram os índios: “desça tudo para o Colégio”.
Aí, foram, apanharam. Aí, os índios tiraram esse toré: “Vadiemos Maruanda”.
Maruanda estava vadiando, brincando, brincou [de] dormir. (NHENETY)

Ouvi muitas vezes esse Toré do Maruanda, uma vez que ele é aberto ao não indígena.
Cabe aqui uma distinção entre Toré público e Toré privado75 que classificarei como Toré não
oculto e Toré oculto. Utilizo essas taxonomias com base em uma conversa que estabeleci com
Lulu Taruanã:

Lulu Taruanã: O Toré são cantos que a gente canta. Têm cantos que podem você vê
e outros que não.
Pesquisadora: E esses cantos são sagrados?
Lulu Taruanã: Sagrados.
Pesquisadora: Mesmo os abertos?
Lulu Taruanã: É oculto, é oculto. Os abertos a gente canta, por exemplo, chega
[em] uma escola pública ou particular, a gente canta esses cantos. Agora existem
outros cantos que são bem profundos que nem você vê, Manuela!
[...]
Lulu Taruanã: [O sagrado] é coisa oculta. Só pode receber, só entre nós. Não pode
ser revelado.

O Toré oculto é restrito ao espaço do Ouricuri em que são proferidas palavras e cantos
falados só entre nós. Idiomas fechados. Pajé Júlio afirma: palavras e cantos falados só entre
nós. Só ocorre no Ouricuri, não pode ser em outro canto de jeito nenhum. Como considerou
Kawyratã: [Toré é] o canto que vem da nossa religião, [...] já faz parte do nosso ritual. Aliás,
existe um Toré que é cantado da seguinte maneira: a tribo Kariri-Xocó tem grande religião,
vou pedir a Deus do céu que abençoe todos os meus irmãos.
O fato de haver cabeças secas morando na aldeia Kariri-Xocó é motivo de crítica de
um homem Kariri-Xocó que alega que nem no espaço aldeado (que em princípio seria
somente para a população indígena) é possível realizar o Toré de modo privado, já que estará
sob os olhares do branco. Para haver a participação de não índios no Toré, sejam os realizados

75
Ver Grünewald, Rodrigo de Azeredo (2005).
123

na aldeia, nas retomadas da terra indígena e fora do espaço aldeado, é necessária a autorização
Kariri-Xocó. Desse modo, todas as vezes em que dancei o Toré foi com o aval dos mesmos.
Uma das questões em torno do Toré é defini-lo enquanto ritual. No caso dos Kariri-
Xocó, o classificam como ritual apenas no contexto sagrado do Ouricuri. Fora desse território
ritualizado, o Toré assume outra condição, conforme as explicações dos índios Kariri-Xocó:

Pesquisadora: Agora o Toré é um ritual?


Pajé Júlio Queiroz Suíra: Não! Ele é o ritual também, porque o Toré, nós temos o
Toré, a dança do Toré para muitos fins, compreende. Temos para apresentar para o
branco, dança; temos para chamar chuva, temos para a guerra, temos para decidir
alguma determinação nossa. O Toré ele representa tudo isso. Agora, no momento
que a gente esteja precisando, sabemos definir: canto, dança e tudo. [...]. [O Toré]
é o que nós podemos apresentar. Agora, o ritual da gente mesmo [praticado no
Ouricuri], não podemos apresentar nada. Nem dar nome de nada. [...]. Isso é para
nosso conhecimento. (JÚLIO QUEIROZ SUÍRA)

O Toré, a gente não pode definir como um ritual, porque o ritual que nós chamamos
é para onde nós vamos: para a mata. Então, o Toré é o tipo de dança que a gente
apresenta que faz parte da nossa cultura. E pode ser chamado também de ritual.
Não tem problema. Pode ser chamado de ritual. Mas que a palavra certa mesmo é
Toré. É a palavra-chave, a última palavra-chave: Toré. Ritual é quando a gente fala
assim: nós vamos fazer um ritual, como por exemplo, uma vivência, uma pajelança.
O que é que aquele grupo fala? “Nós vamos fazer um ritual”. O ritual é o quê? Nós
vamos fazer o ritual, quer dizer o quê? Nós vamos fazer uma roda de Toré. Então
isso é que se chama ritual. [...]. Para não falar: “vamos fazer uma volta de Toré”,
aí eles falam: “vamos fazer um ritual”. (WYRAY)

O Toré lá fora, nós estamos apresentando para divulgar o nosso trabalho e dar o
conhecimento para os alunos [...]. E dentro da aldeia nós estamos nos pegando... o
nosso ritual. Tem essa diferença, mas sabendo que todos os Toré são um só, mas lá
fora a gente é de uma maneira e dentro da aldeia a maneira é outra. O Toré faz
parte do nosso ritual. (WYASURY)

Na segunda etapa do meu trabalho de campo realizado no primeiro semestre de 2017,


dormi algumas noites em uma fazenda retomada pelos Kariri-Xocó no povoado Sampaio.
Conforme os Kariri-Xocó, o Território Indígena Kariri-Xocó é oficialmente demarcado,
porém, ainda não homologado, o que favorece a presença de ocupantes não indígenas que
construíram suas propriedades em tal área. Na tentativa de retirarem os não indígenas de seu
território e de pressionarem a esfera judiciária para a homologação, os Kariri-Xocó decidiram
retomar um pedaço de terra denominado por eles de Fazenda. Esta área foi retomada há cerca
de três anos. Todas as noites, os Kariri-Xocó realizam o Toré, sendo que ouvi cânticos
sagrados entoados somente neste local. Isto é, às vezes que acompanhei os Kariri-Xocó fora
da aldeia, nunca havia ouvido tais canções. Considero que os Torés entoados e dançados
nessa retomada de terra não são folguedos ou diversão, pelo contrário, são Torés que
assumem uma dimensão ritual que nesse caso é permitido ao não indígena (como eu e aqueles
cabeças secas casados com Kariri-Xocó) assistir. O Toré no contexto dessa retomada atinge a
124

esfera ritual, pois segundo os Kariri-Xocó, é uma forma de pedir a Deus e as demais entidades
sagradas resistência e força para lutar por suas terras. É pedir proteção divina para que
nenhum mal ocorra, como por exemplo, a morte de algum Kariri-Xocó por parte de forças
opressoras e/ou contrárias à retomada.
Como pude ver o Toré da retomada, descrevo algumas “cenas rituais”:
CENA 1:
A maraca anuncia que o Toré irá começar. Dois círculos são formados: o primeiro, só
por homens; o segundo, por mulheres que circundam o grupo masculino. Dois homens se
posicionam, são os puxadores que comandam o canto que será respondido em coro pelos
demais índios na roda. O toque da maraca, as vozes e os pés batidos no chão do terreiro é que
dão o ritmo. Os puxadores é que guiam a dança: os círculos são desfeitos e forma-se uma fila
em que homens e mulheres seguem em direção a uma fogueira. Ao redor do fogo formam um
novo círculo, em seguida desfazem o movimento para em fila retornarem ao ponto em que o
iniciaram. Um novo círculo é formado. Minutos depois finalizam.
CENA 2:
A formação vista na cena anterior é desfeita, isto é, mudam-se os puxadores e o
tocador da maraca, mas o movimento circular é mantido, sempre com os homens no círculo
interno (sinalizado no desenho abaixo com o número 1) e as mulheres e as crianças no círculo
externo (número 2). Não são todos os Kariri-Xocó que nesse momento querem participar do
Toré, portanto, ficam sentados contemplando a apresentação. Aqueles que estão cantando e
dançando formam uma fila em direção às pessoas sentadas em frente aos barracos da
retomada. Os anciãos são cumprimentados, alguns se levantam em forma de respeito. O grupo
que dança e canta se concentra por alguns segundos ao redor ou à frente dos antigos. Após a
reverência aos mais velhos, seguem em fila em direção a outros barracos para cumprimentar
os demais Kariri-Xocó. Posteriormente vão em direção à fogueira, circundam-na. Em seguida
desfazem o círculo para formarem outra vez uma fila que seguirá em direção ao ponto em que
foi iniciado o Toré. Novamente, dançam em círculo. Minutos depois encerram.

CENA 3:
125

Novamente em círculos. Som da maraca e assobios masculinos que imitam os cantos


dos pássaros anunciam assim o Toré que será cantado: periquitinho avoa pelo ar. Pés
fortemente batidos no chão seguem em círculos. As mulheres abrem os braços e simulam o
voo do pássaro.
CENA 4:
Posição circular e assobios semelhantes aos cantos de pássaros. Desta vez, a
reverência é ao Urubu de Serra Negra. Desfeito o círculo, forma-se uma fila em direção à
fogueira. Adiante, voltam à posição inicial e o Toré é finalizado:

Urubu de Serra Negra


Não a limpa mais a pena
Se comer mangaba verde, ô lê
Na baixada Jurema
Ô lê Cauã
Na baixada Jurema.

Conforme os Kariri-Xocó, o Toré é de extrema importância em uma retomada, uma


vez que possibilita a ligação indígena com Warakidzã. Assim sendo, afirma Cícero Queiroz
Suíra: o Toré é uma segurança para todos nós. A gente canta aquele Toré, a gente se sente
mais seguro. [No] Toré está a nossa força. Em momentos de luta como as retomadas das
terras, força e resistência são imprescindíveis, sendo que essas qualidades são garantidas pelo
Toré. O termo “resistência” também assume uma conotação étnico-política, uma vez que é
preciso comunicar ao não índio (posseiros, fazendeiros e todas as demais forças adversas) que
os Kariri-Xocó não sucumbiram: Toré para nós mostrarmos para os brancos que nós não nós
apagamos de vez, nós não estamos parados. Para dizer que nós estamos dando continuidade,
nós não estamos parados, afirmou cacique Cícero Queiroz Suíra. De acordo com o índio
Raminho: na visão desses posseiros que tem aí, eles diziam o quê? “Não existe índio, não vi
mais dançando um Toré”. Assim, no momento de uma retomada, a produção da alteridade via
Toré é uma resposta indígena ao cabeça seca que deslegitima a identidade étnica Kariri-Xocó.
Ainda, segundo relatos ouvidos durante o trabalho de campo, a retomada de terra fortaleceu
os cantos do Toré que existiam, mas estavam se acabando. Foi na retomada que as crianças
[começaram a aprender] o que é um Toré, já sabe tirar [um canto], foi através dessa
retomada. Além disso, a retomada é um espaço de criação de novos Torés em que homens,
mulheres e crianças Kariri-Xocó inventaram novas letras do canto sagrado.
Ao estar na Fazenda retomada, observei somente os homens puxarem o Toré, porém,
ao conversar com algumas mulheres e homens Kariri-Xocó, disseram-me que pessoas do sexo
feminino e crianças também passaram a conduzir o Toré nessa retomada. Ao que parece, a
126

retomada possibilita novas configurações do Toré, em que papéis, que eram exclusivamente
masculinos, agora podem ser ocupados por mulheres. Pelo menos é o que pode ser deduzido
da frase a seguir:

Os homens são sempre quem puxam e as mulheres sempre elas são para responder.
[...]. Com essas lutas, as mulheres, elas se empolgaram muito e não é querendo
fazer o papel do homem, mas eu acho que participar. Também diferenciar um
pouco. Mostrar que ela também é capaz. [...]. Acho que é um incentivo e é bonito
também. Mas, só que eles estão acostumados a ver o homem tirar, puxar o Toré.
Mas de um tempo desses para cá, a gente começou também a puxar, a gente mulher,
né. [...]. Eu gosto também de pegar a maraca, começo, puxo. [...]. Nós [mulheres]
que criamos, né, isso. Porque a gente sabe [que] quem tirava eram os homens e as
mulheres sempre eram para responder. (IRACEMA)

Observei a seguinte formação do Toré Kariri-Xocó no contexto dessa retomada: são


dois puxadores ou dois mestres de canto. Um puxador de voz alta e um puxador de voz baixa.
A gente fala que é alto e baixo. Ou se não a gente fala: a prima e o baixão, afirmou Kajaby.
A prima é a voz alta, o baixão é a voz baixa. Os dois puxadores tocam a maraca, mas o
puxador de voz alta é quem vai conduzir o Toré. Em minhas observações de campo, vi que o
Toré na retomada era puxado de sobremodo por aqueles homens indígenas que se
mobilizaram como líderes na reconquista da terra. Apesar da Fazenda também ter sido
retomada com o intuito dos Kariri-Xocó pressionarem os órgãos governamentais em relação
ao processo homologatório da Terra Indígena Kariri-Xocó, este encontra-se ainda paralisado;
desse modo, o Toré é uma forma desses líderes da retomada permanecerem na luta e na terra.
Em relação ao simbolismo do Toré, segundo Kajaby, a motivação para que sejam
feitos círculos em que o masculino é envolto pelo feminino se dá por meio da noção Kariri-
Xocó de que as mulheres têm uma energia mais forte, no sentido de proteção. Ao estarem no
círculo de fora, as mulheres protegeriam os homens que estão no círculo de dentro:

A mulher por ter a energia mais forte do que a do homem, então, ela fecha [o
círculo]. Como ela é uma mãe, a gente filho tem que estar sempre dentro dela, por
dentro dela que a gente fica [...]. A mulher mesmo, principalmente, a que já é mãe
ou que vai ser, ela tem essa energia de mãe mesmo, de mãe de todos. Então, por
isso, ela fica por fora. É como se a gente se sentisse na barriga dela. (KAJABY)

Já o fato das crianças permanecerem com as mulheres no círculo de fora é justificado


por uma noção de pureza espiritual atribuída às crianças Kariri-Xocó que reforçam a proteção
sagrada. A circularidade também representa sintonia, no sentido de todos estarem em um
mesmo movimento. Para os Kariri-Xocó, em meio a tantas desavenças internas vivenciadas
na aldeia, o Toré vem representar a união. No momento da dança e do canto sagrados, todo
mundo está lá junto, afirmou a índia Iracema. O círculo no Toré é a união: todos ali estão
127

olhando em um olhar só, um olhando para o outro e a união e o amor, tudo junto, tudo em
um pensamento só. Dentre os simbolismos do Toré, tem-se a maraca ou o maracá,
instrumento que conforme os Kariri-Xocó também denota união:

A maraca é que forma a união do nosso povo. Nós estamos aqui conversando, se em
um certo momento eu me levanto, pego um maracá e começo a balançar aqui, eu
estou dando sinal para todos os meus parentes que alguma coisa eu quero. Ou
então, eles rapidamente já pensam: “olha, ali parece que vai ter um Toré”.
(RYAKONÃ)

A maraca também representa liderança, a gente tem a maraca como se fosse um


mundo em nossas mãos, afirmou Kajaby. Apesar de simbolizar união, a maraca estabelece
uma hierarquia, uma vez que só pode ser tocada por aquele índio que domina o seu toque. O
tom da maraca é igualmente cercado por segredos. Assim, ouvi dizer:

Nós temos um canto só da maraca. Nós temos, mas ele não é aberto. A gente faz
uma parte do canto da maraca aberto. No Ouricuri é fechado tudo, [...] mas aqui
[fora do Ouricuri], a gente tem algumas coisas que fecha também, porque a gente
não pode... a gente vê que quanto mais a gente revela, mais fraco a gente fica. Tem
coisas, como é que fala? “O segredo é a alma do negócio”. O nosso segredo, se é
para a gente, é para a gente mesmo. Nem tudo a gente pode revelar. (KAJABAY)

Desse modo, há um constante controle do conhecimento ritual, daquilo que pode ser
apresentado ao branco e o que deve permanecer em sigilo. Outro simbolismo do Toré,
observado na retomada, é que a dança é um modo de reverenciar e agradecer pessoas
importantes. Assim, ao desfazerem o movimento circular para formarem filas que seguem em
direção aos espectadores, os Kariri-Xocó sinalizam suas relações interpessoais, sobretudo, o
puxador que é quem conduz o Toré:

Quando a gente recorda de alguém que já se foi e aquela pessoa está fazendo com
que o mestre de canto ou o mestre de Toré que está puxando aquele momento, se
recorda de alguma coisa que aquela pessoa fez. Que às vezes é uma família, às
vezes é um primo, às vezes era um amigo que está bem próximo a ele, aí a gente vai
fazer uma homenagem a ele, a quem se foi e até aquele mesmo que está em vida.
Esteve um pessoal ali que nos fortifica, a presença dele ali nos fortifica para a luta.
Então, a gente vai lá, faz uma volta em volta dele, depois sai. Aí, vai dependendo do
mestre de canto que queira fazer. (KAJABY)

O Toré também reverencia os povos do passado, os ancestrais, a natureza, a paz, o


amor, afirmou Pawanã. Os Kariri-Xocó evocam o Toré em inúmeros contextos, por eles
denominados de alegria e de tristeza. Momentos de alegria referem-se ao nascimento de uma
criança, a conquista de uma luta, como por exemplo, a retomada de terra, ou ainda, ao simples
fato de gostar de cantar. Um dos cantos do Toré é letrado de uma maneira que conota o bem-
128

estar que o Toré traz: Tô cantando o meu Toré, porque gosto de cantar. E quem gosta do
Toré, faça o favor de entrar.
Este canto estabelece a ideia de união, uma vez que independente dos Kariri-Xocó
manterem relações hostis entre si, na hora do cantar não se deve levar em consideração tais
desavenças, uma vez que a condição vigente para participar do Toré é nutrir apreço pela
tradição. A relação entre Toré e tristeza pode ser ilustrada em situações de sepultamento,
como pude observar na aldeia Kariri-Xocó. Um determinado dia, uma senhora indígena veio a
óbito. Sempre que um índio falece, um carro de som percorre a aldeia para anunciar o nome
do morto, bem como o de sua família. Nesse sepultamento, Maria do Carmo e eu estivemos
na casa da falecida que morava na aldeia. Ao chegarmos no local, havia um número enorme
de pessoas aglomeradas na rua em frente à casa da finada. Maria do Carmo decidiu entrar na
sala da casa, pois o corpo da falecida estava sendo velado ali. Não pude entrar, já que Maria
do Carmo sinalizou que era para eu ficar do lado de fora. Apesar de não ser possível ver o que
ocorria dentro da casa, ouvi cantos do Toré. Conforme explicaram-me, ao haver a morte de
um índio, os demais que permanecem vivos cantam três Torés. O Toré que chega na mente,
canta na hora. Ou se canta aquele Toré que o morto gostava ao estar em vida. Mas, há um
Toré para todos os índios que falecem que é o Toré da despedida, cantado por último, em que
é dito: Vamos embora, vamos embora para Belém.
Assim, enquanto eu permanecia do lado de fora da casa da falecida à espera de Maria
do Carmo, os Torés eram cantados. Indaguei o motivo do velório ocorrer no âmbito da aldeia,
dentro da casa do falecido. A resposta dada é que o caixão fica dentro da casa com ele [o
morto] assistindo. Na casa dele, porque é onde ele fica, onde ele está. Só depois é que o
caixão é levado ao cemitério no centro da cidade de Porto Real do Colégio. O trajeto é feito a
pé.
Para os Kariri-Xocó, as pessoas adultas têm pecado e o Toré é uma forma de
purificação. Assim, ao cantar-se o Toré, a pessoa falecida irá aos pés de Deus com a alma
limpa, sem mágoas dos que ficaram. Deus é quem vai julgar a pessoa lá em cima. Essa é uma
das justificativas para que seja realizado o canto sagrado no momento da morte. A segunda
justificativa é que se por acaso o Toré não é feito no falecimento, a pessoa não vai embora e
vem cobrar. Se não canta o Toré, a pessoa vem no sonho e fala com a gente: “Por que não
cantou o Toré?”. Aí, o Toré de despedida é feito. Ao cantar o Toré, a pessoa vai embora feliz
para onde Deus quiser colocar ela.
Não tenho informações sobre o processo de enlutamento Kariri-Xocó: como é
realizado, o período de duração e procedimentos específicos. Mas, o sepultamento que
129

observei na aldeia, assim como as situações que vivenciei na Fazenda retomada, evidenciam a
relevância do Toré na vida dos Kariri-Xocó.

3.3 Andar no meio do mundo: a difusão do Toré Kariri-Xocó fora da aldeia

Agora, esse canto que eu vou fazer, é quando eu saí da minha tribo, eu pedi
permissão para o meu pajé para sair no meio do mundo para aprender e ensinar a
minha cultura, ensinando para o não índio e aprendendo também as coisas do não
índio. Mais ou menos assim: “Quando saí da minha tribo pedi licença para meu
pajé. Nesse mundo de Deus, aprendi e ensinei, mostrando a tradição e fazendo a
união. Canta índio, eu sou um índio Kariri-Xocó”. (KAYRRÁ)

A epígrafe acima refere-se à letra de um canto indígena Kariri-Xocó entoado por


Kayrrá. As palavras que compõem tal canto sinalizam a presença de uma norma social, isto é,
os Kariri-Xocó ao decidirem sair da aldeia solicitam a permissão e/ou comunicam ao pajé sua
retirada do espaço aldeado. Para os Kariri-Xocó, o pajé é o pai de nós todos. O pajé está aqui
para orientar, indicar nós para o bem. O pajé libera, explica como é, como andar no meio do
mundo, né. Tem o apoio dele. Porque ele [índio] chega lá [na cidade], ele vai trabalhar, né,
em benefício da nossa [aldeia].
No caso de Kayrrá pediu “permissão ao seu pajé” ao ir morar no estado de São Paulo.
Kayrrá, assim como muitos outros Kariri-Xocó que moram fora da aldeia, alegam que a saída
temporária de Porto Real do Colégio é com o objetivo de trabalhar para melhorar de vida e
assim poder ajudar a família. Ao sair da aldeia, Kayrrá, além de ter tido licença do líder
espiritual indígena, necessitou da Fundação Nacional do Índio para expedir uma Carteira de
Identidade Indígena que legitima oficialmente a condição étnica de Kayrrá, com os dizeres: (i)
“cacique Kayrrá” na parte frontal do documento e o nome de Kayrrá em Português; (ii) os
nomes não indígenas de sua mãe e seu pai; (iii) e a assinatura do Chefe do Posto Indígena,
também denominado “Coordenador Subst. Téc. Local Porto Real do Colégio – AL”. A
atribuição do termo “cacique” é justificada: segundo Kayrrá, ele é cacique de sua família
nuclear (esposa, filho/a e neto) e de sua família extensa (pai, mãe, irmãs/os, sobrinhos/as).
Ainda segundo ele, o termo “cacique” é utilizado no sentido de ele ser o grande responsável
por seu grupo de apresentação ritual do Toré, cuja denominação é Caça Feita.76 Cabe dizer

76
Apesar dos Kariri-Xocó afirmarem que o Toré “público” não pode ser definido como “ritual”, emprego a frase
“apresentação ritual do Toré” em contexto urbano, baseada na definição de Mariza Peirano (2003) em que define
os rituais como “eventos especiais e não-cotidianos”, o que é o caso do Toré apresentado em escolas e
universidades, ou seja, é um Toré realizado pelos Kariri-Xocó apenas ao estarem fora da aldeia, o que ocorre,
sobretudo, no mês de abril em comemoração ao “Dia do Índio”. Deve ser considerado que no Território Indígena
Kariri-Xocó, estes indígenas praticam um Toré diferente do apresentado ao cabeça seca. Ainda segundo Peirano,
o ritual pode ser dimensionado pela esfera religiosa, profana e/ou festiva, sendo esta última cabível ao Toré fora
da aldeia apresentado como “folguedo”.
130

que os Kariri-Xocó formam inúmeros grupos de apresentação ritual em que o Toré é


apresentado em escolas, universidades, feiras de artesanato, entre outros espaços formados
majoritariamente por pessoas brancas. Alguns desses grupos são formados por Kariri-Xocó
que moram em São Paulo, mas também por indígenas que permanecem anualmente na aldeia
e viajam no mês de abril (em função da “comemoração do Dia do Índio”) a diversos estados
brasileiros. É inviável quantificar o número de grupos de apresentação de canto e dança
Kariri-Xocó, uma vez que nem os próprios índios sabem dizer o total, apenas afirmam que são
muitos.
Ao estar na aldeia Kariri-Xocó, procurei conversar com pessoas que têm o seu próprio
grupo, cuja formação se dá por meio da filiação unilinear (matrilinear ou patrilinear) em que
irmãos/as, primos/as, tios/as, sobrinhos/as, pais e filhos/as constituem os grupos de
apresentação ritual do Toré. Procurei fazer um levantamento dos nomes de alguns desses
grupos:

Nomes dos grupos de apresentação ritual do


Significado
Toré
Pessoa adulta com conhecimento espiritual e
Caça-feita
medicinal Kariri-Xocó.
Dikanguiqueré Cantigas mágicas.
Os Kariri da Ribeira, isto é, do Baixo São
Dzubukuá
Francisco.
Kaxagó Nome de uma etnia indígena.
Para = rio; tinga = sobrenome do cacique do
Paratinga
grupo.
Sabuká Galinha ou galo.
Subatekié Conhecimento.
Subatekié Grupo do conhecimento.
Soyré Povo de tradição: cantos, rezas e artesanato.

As atribuições dos nomes dos grupos de apresentação ritual são justificadas de


maneiras diversas. Por exemplo: no caso do grupo Caça Feita, segundo Wythaia, sobrinho
materno de Kayrrá, que integra este grupo ritual, o termo Caça Feita era um dizer do pajé
velho (Francisco Queiroz Suirá) para se referir às crianças que ao crescerem, ao se formarem
131

como adultos, já estavam preparados para os trabalhos de reza, das doenças encostadas, isto
é, já tinham aprendido sobre práticas espirituais e medicinais Kariri-Xocó. Outras nominações
são dadas por Nhenety que afirma desenvolver um trabalho de resgate da língua Kariri,
assim, muitos índios ao formarem seus grupos de Toré recorrem a Nhenety. Contudo, há
quem justifique o nome do seu grupo por meio da esfera religiosa, como é o caso de Pawanã,
cujo grupo de apresentação ritual é denominado Sabuká, criado por ele em 1997. Segundo
Pawanã, o nome Sabuká foi uma mensagem recebida ao estar no Ouricuri, o grupo foi
batizado [por] um espírito que deu para nós [esse nome]. Recebe na espiritualidade. Ainda
segundo Pawanã, o grupo Sabuká é uma reencarnação espiritual muito forte. Tal noção é
atrelada aos antepassados. Assim, de acordo com Pawanã, seu avô materno era compositor: a
maioria dos cantos foi ele quem fez. Aí, eu fiquei com esse dom de cantar dele. [...] Meu pai
também cantava muito, era apelidado de Manuel Galo, sendo que Sabuká pode ser traduzido
para a Língua Portuguesa como galo ou ave.
Por meio do trabalho de campo, pude constatar que os grupos Kariri-Xocó de
apresentação ritual do Toré mostram diferenças entre si. Se o grupo Caça Feita foca,
sobretudo, na venda dos artesanatos e no Toré, o grupo Sabuká constrói um discurso étnico-
político marcante para reivindicar o direito às retomadas das terras Kariri-Xocó.77 Pawanã,
como cacique do Sabuká e liderança proeminente nas retomadas das terras Kariri-Xocó,
mostra-se um importante articulador político. Assim, ao estar em escolas e universidades para
exibir o Toré e falar sobre a cultura Kariri-Xocó, Pawanã sempre dialoga com os cabeças
secas sobre a luta indígena pela homologação do território de ocupação tradicional Kariri-
Xocó. Inclusive, o traje do Sabuká denota um posicionamento político indígena, isto é, o
grupo tem uma camiseta com os seguintes dizeres estampados: “Na luta pela retomada das
terras, aldeia Kariri-Xocó”. Em todos os lugares em que se apresentam, os integrantes vestem
esta camiseta, sendo que no momento do Toré, as mulheres permanecem vestidas com esta
veste, enquanto os homens a retiram para pintarem o peito com pinturas indígenas. As
mulheres e os homens do Sabuká utilizam vestimentas diferentes na apresentação do Toré: o
corpo feminino é coberto pela camiseta, saias e pinturas; os homens fazem uso de shorts nas
cores preta e vermelha, pintam o corpo na cor preta, cada um tem seu cocar e prendem em
suas pernas e braços cordões amarelos e vermelhos, cujo simbolismo é o da proteção. A
paleta de cor amarela, vermelha e preta carrega igualmente o seu simbolismo. Conforme
Pawanã, as cores definem as aldeias Kariri e Xocó que antigamente eram separadas e

77
Remeter aos anexos para ler na íntegra o discurso étnico-político de Pawanã proferido em uma escola.
132

posteriormente se juntaram: assim, o amarelo e o vermelho representariam os Xocó e a cor


preta os Kariri-Xocó.
A formação do Sabuká se dá por meio do tronco matrilinear de Pawanã: sua mãe
Suynara, sua tia materna Dé, sua prima materna Saynara, seus irmãos maternos: Kaony
(considerado o pajé do Sabuká), Kajaby, Yarú, seu sobrinho Crody, seu filho Kayã e sua
esposa Nary. As mulheres deste grupo tem um papel importante na “divulgação” da cultura
Kariri-Xocó, uma vez que desenvolvem atividades tipicamente femininas. Assim, promovem
oficinas de cerâmica indígena em que ensinam aos não índios a produção desse artesanato
Kariri-Xocó. Outra atividade cultural são as apresentações do Rojão, canto entoado pelos
Kariri-Xocó durante trabalhos coletivos. O Sabuká tem CDs de Toré e de Rojão que são
vendidos em suas viagens a trabalho fora da aldeia. O grupo Sabuká faz a manutenção de
Torés originários de seus antepassados, como também cria novos cantos, a exemplo do citado
abaixo, cuja composição é de Pawanã:

Xocó Sabuká:
Joga Sabuká,
Ô lê-lê.
Ô lê a lê, rei a rá.
Joga Sabuká,
Ô lê-lê.
Ô lê a lê, rei a rá.

Ao conversar com alguns Kariri-Xocó é transmitida a ideia de que cada grupo de


apresentação ritual do Toré tem seu próprio “cacique” e “pajé”, no entanto, não elimina o
papel político do cacique geral, nem o papel espiritual do pajé geral do povo Kariri-Xocó.
Conforme um jovem Kariri-Xocó que participa de um dos grupos de Toré que se apresenta
fora da aldeia: aqui na cidade, ele [cacique do grupo] é superior a mim. Na aldeia não,
porque tem o cacique. Segundo outro relato indígena é preciso ter cacique de grupo [para
haver] uma hierarquia cultural. Tem que ter alguém responsável. Enfatiza que esses caciques
são caciques de grupo para viajar. Ao chegarem na aldeia não são reconhecidos aqui como
cacique. São reconhecidos como índio. Agora lá fora [é] para poder o branco entender que o
cacique é aquele que está ali. Esta citação dá margem para considerarmos que a lógica da
organização sócio-política Kariri-Xocó é pensada a partir de contextos específicos, sendo que
a ascensão de um Kariri-Xocó a cacique (fora do cenário sociocultural da aldeia) só pode ser
emergida enquanto líder de um grupo de apresentação ritual. Sendo que imediatamente ao seu
regresso à aldeia, perde esse posto – “deixa de ser cacique” –, portanto, é uma condição de
liderança provisória, porém, imprescindível para o funcionamento do grupo de apresentação
133

ritual, uma vez que é o cacique quem o coordena. Além disso, a figura do cacique do grupo de
apresentação ritual é importante para uma comunicação interétnica, no sentido de que é esse
líder que transmite aos nãos indígenas informações sobre a cultura Kariri-Xocó.
Em relação aos grupos Kariri-Xocó que se apresentam ritualmente fora da aldeia, a
possibilidade de substituição de caciques e pajés foi afirmada por um jovem indígena que
realiza viagens por diversos estados do Brasil. Tive a oportunidade de conhecê-lo em uma
viagem em que foi acompanhado por seu tio para realizarem trabalho de pajelança e venda de
artesanato indígena no interior de São Paulo. Conforme esse jovem Kariri-Xocó, ele pode
exercer no grupo de apresentação ritual, a função de seu tio, como cacique. Isso ocorre
quando seu tio é solicitado para um trabalho espiritual em que terá que atuar como pajé.
Segundo ele, o cacique é aquele que sabe falar a respeito do povo Kariri-Xocó e ele possui
esse conhecimento para ser transmitido aos não indígenas. Desse modo, os papéis de cacique
e pajé são intercambiáveis dentro desse contexto ritual urbano. Cabe dizer que o responsável
pelo grupo de apresentação ritual pode exercer as duas funções: a de líder espiritual e a de
cacique. Esse fato pôde ser observado na viagem em que acompanhei um dos grupos de
apresentação ritual em contexto urbano. O cacique do grupo em um determinado momento
assumiu o papel de pajé, tendo logo retomado ao posto de chefia após o trabalho espiritual.
Ainda pode acontecer do cacique ser substituído por outro indígena em momentos dramáticos,
como ocorreu em uma situação em que o cacique de um grupo de apresentação ritual do Toré,
perdeu fatalmente um de seus irmãos, sendo preciso comparecer à aldeia no momento
fúnebre. Desse modo, a função de cacique ficou ao encargo de outro Kariri-Xocó digno de sua
confiança. Assim como no decorrer dos séculos, o pajé não é o mesmo, [e] o cacique não é o
mesmo para o povo Kariri-Xocó, por motivo de falecimento em que se torna necessária a
sucessão de autoridades espiritual e/ou política desta população indígena, os grupos Kariri-
Xocó de apresentação ritual também precisam de substituições de seus líderes, no caso, trocas
temporárias dos papéis de pajé e cacique motivadas por questões diversas.
Procurei indagar aos Kariri-Xocó sobre a escolha do cacique do grupo de apresentação
ritual do Toré em contexto urbano, tendo obtido a resposta de que a seleção é entre eles
mesmo, porém há determinados critérios. O perfil do cacique, segundo os Kariri-Xocó, é
aquela pessoa inteligente que leva o grupo com êxito em alguma coisa. A função do cacique
é a de angariar recursos para seu povo, como alimentos e roupas para a aldeia. Assim, os
grupos de apresentação ritual do Toré ao retornarem para a aldeia Kariri-Xocó costumam
trazer alimentos e roupas doadas por cabeças secas. Ao conversar com os Kariri-Xocó e ao
observar alguns grupos de Toré (especificamente, o Caça Feita e o Sabuká) pude ver que
134

cada membro grupal tem a sua responsabilidade: há aquele que é responsável pelo preparo da
tinta, outro pelo paewí, outro por conduzir o canto e o toque da maraca (normalmente o
cacique do grupo), entre outras.
Conforme Pawanã, antigamente os Kariri-Xocó formavam grupos para caçadas e
pescarias, sendo que havia uma seleção por parte do cacique geral sobre aqueles indígenas
que seriam os líderes de tais atividades. Os critérios para as escolhas dos líderes eram: “o que
escutava melhor, o que percebia melhor, o que atirava mais ligeiro, o que podia se defender,
entendeu? Então, ele ia pegando de cada espécie, uma, entendeu. Tal forma de seleção é
atualizada conforme as demandas sociais, isto é, se hoje em dia os Kariri-Xocó necessitam
realizar viagens de trabalho, a forma de seleção dos indivíduos que participam dos grupos de
apresentações rituais ainda é como nossos antepassados. Desse modo, Pawanã afirma
escolher um indígena que tenha conhecimento das ervas, uma vez que esses grupos de
apresentação ritual do Toré também realizam curas espirituais e pajelanças. Ao formar seu
grupo que irá andar no meio do mundo, Pawanã procura selecionar um Kariri-Xocó dentro do
seu tronco familiar que tenha percepção aguçada, porque a cidade grande é muito perigosa…
que consiga perceber que ali pode [acontecer] algo ruim com a gente.
Ao “andarem no meio do mundo”, os membros dos grupos de apresentação ritual do
Toré recorrem a marcadores diacríticos que os diferenciem dos não índios em termos de
pertencimento étnico: pinturas corporais, cocares, vestimentas, cantos, danças e palavras no
idioma indígena.78 As nominações indígenas são importantes enquanto símbolo identitário
étnico. Ao conhecer Kayrrá, eu não sabia que ele tinha sido registrado em cartório com o
nome Silvanio, só vim a ter conhecimento disso posteriormente. Este fato chamou minha
atenção em termos da etnicidade, isto é, Kayrrá se autodenomina “índio Kariri-Xocó”; desse
modo, ao estar fora da aldeia era preciso portar uma nominação étnica em vez de seu nome
cartorial que é igual a tantos não indígenas. Durante trabalho de campo na aldeia Kariri-Xocó,
ouvia esses indígenas chamarem uns aos outros por meio de apelidos e/ou por nomes em
Língua Portuguesa. A nominação indígena era dita (e mesmo assim não era uma postura
unânime) nos momentos em que eu os entrevistava ou ao se referirem aos grupos de
apresentação do Toré em contexto urbano. Os nomes na Língua Portuguesa são motivos de
críticas entre os Kariri-Xocó, uma vez que se referem ao idioma do colonizador, às missões
religiosas e aos órgãos indigenistas que batizavam os indígenas com nomes em Português.
Ainda segundo Nhenety:

78
Sobre sinais diacríticos ver Barth (2000); Mitchell (1956).
135

[...] Muitos nomes tradicionais desapareceram por ocasião do SPI. O agente do posto
exigiu o registro de todos os índios no Cartório de Registro Civil; na aquisição de
Certidão de Nascimento e Casamento, muitas das famílias mudaram de nome por
exigência do escrivão do Cartório de não considerar vocabulário ameríndio na
denominação das pessoas. (NHENETY, 2000, p. 280)

Atualmente, apesar de ainda depararem-se com a resistência de escrivães que


questionam a atribuição do nome indígena, há pais e mães Kariri-Xocó que nominam seus
filhos apenas no “vocabulário ameríndio”:

Isso aí [nomes na Língua Portuguesa] foi uma influência de antes: que o não índio
botava [tal nome em Português]. [O indígena] ia para o cartório ser registrado e
não aceitava, às vezes, nomes indígenas. O meu eu tenho como Tawanã, mas não
está lá [no cartório] registrado como Tawanã. Já meus filhos, eu coloquei tudo com
nome indígena. E quando eles [no cartório] diziam: “não, nós não sabemos
escrever”, nós já íamos com o nome escrito [na língua indígena]. (TAWANÃ)

Eu não gosto muito não desse nome assim branco. [...]. Me sinto mais forte [usando
o nome indígena], eu me sinto mais protegido, eu me sinto como eu fosse mais
reconhecido com nome indígena do que o nome em registro [cartorial]. Vem da
natureza, né, é a natureza que nos fortalece. O nome também é importante, o nome
ele é forte, ele mexe com a alma da gente. Então, por conta disso, a gente se sente
mais forte. (RYAKONÃ)

A escolha do nome indígena se dá de maneira diversa: (i) os pais podem decidir por tal
nominação; (ii) a pessoa ao sair da aldeia para trabalhar opta por determinado nome; (iii) ou
solicita sugestão a um outro índio. Além disso, os Kariri-Xocó dão a entender que as escolhas
de alguns nomes indígenas podem estar relacionados ao Ouricuri, mas quanto a isso, não
permitiram que eu investigasse o assunto. Fora as nominações em Português e/ou língua
indígena, os Kariri-Xocó fazem uso corrente da atribuição de apelidos entre si. Podemos
considerar que é uma influência do não indígena, até porque esses codinomes Kariri-Xocó
são, em sua maioria, em Língua Portuguesa. Segundo Nhenety (2000), a atribuição de
apelidos aos indígenas era uma atitude recorrente do ex-cacique Otávio Queiroz Nidé que:

Através de sua observação social, dava nomes às pessoas da aldeia de acordo com a
característica comportamental do indivíduo a denominar. Por exemplo, um menino
que tomava banho no rio e era muito veloz na habilidade de nadar, o cacique dava-
lhe logo o apelido de piaba (peixe do rio) e logo todas as pessoas reconheciam
socialmente a identificação, denominação do indivíduo. (NHENETY, 2000, p. 293).

Desse modo, apresento a seguir um quadro com a identificação de nomes de índios


Kariri-Xocó que foram registrados em cartório; nomes indígenas adquiridos ao saírem da
aldeia para trabalharem em grupos de apresentação ritual do Toré; e apelidos. O quadro está
dividido em nominações indígenas, nominações em cartório e apelidos. Como será visto, há
136

nominações apenas na língua indígena, indicativo de uma nova geração em que seus pais
fazem questão de registrar seus filhos na língua indígena.
Nominações em
Nominações indígenas Apelidos
cartório
Dé: mãe. Valdete. Dé.
Erauã: grilo com rã. Heraldo.
Girikotoá: Giriko (uma erva) + toá (cor
Antônio. Pilão.
branca de um barro).
Inayra: conselheira. Maria Aparecida.
Mangueira, Chefe ou
Ytay: pequeno guerreiro. Josevaldo.
Vadinho.
Kajaby: filho das águas correntes. Edicarlos. Edinho.
Kayrrá: aquele que ocupa o céu entre as
Silvanio. Cocão.
estrelas.

Kawyratã: claridade florestal. Claudemir. Boiada.

Myrá: guerreiro que batalha pela vida, sai no


Lucilvanio. Jacó.
meio do mundo.
Nary: protetor das matas.
Nhenety: tradição. José Nunes. Zé Nunes.
Pawanã: mestre de canto forte. José Edenilton. Velho.
Kazu: canto sagrado. José Eldes. Zé.
Pacoá: caça. Manuel Santos. Gabina.
Rayká: a última estrela do amanhã.
Roxitã: guerreiro. Antônio. Pitoco.
Ryakonã: pequeno rio. Rya.
Takayoa: sempre estar bem. Aramis.
Taruanã: um grande cacique. Elenildo. Lulu.
Tawanã: índio que tem ligação com pinturas
Euzani. Casco.
de todas as tribos.
Tidzy: mulher guerreira. Nany.
Wythaia: respeito. Eryclenes. Oséia.
Wyasury: índio guerreiro da mata. Reginaldo. Gatinha.
137

Wyray: gato do mato. Vanduir.


Yamaru: guerreiro da floresta. Talvanio. Tico-Tico.
Yapori: pássaro guiador. Helivelton. Chumbinho.
Ynoraia: flores. Iracema. Cema.

3.4 O Toré Kariri-Xocó e suas “distintas plateias”

Tomo emprestada de Edmundo Pereira (2011), a frase “distintas plateias” para


discorrer a respeito da plasticidade (ibidem, p. 583) do Toré, isto é, os Kariri-Xocó em
diversos contextos sociais e políticos fazem uso dessa especificidade cultural para afirmarem
sua identidade étnica. Se pudermos datar com precisão o período e o contexto mobilizador
para a criação de grupos de apresentação ritual do Toré Kariri-Xocó, devemos recorrer: (i) ao
tempo do Serviço de Proteção aos Índios e (ii) às formas de contato dos Kariri-Xocó com os
“de fora” nos anos de 1970. Segundo Nhenety, esses grupos começaram a surgir nos anos de
1970 quando vinham autoridades indigenistas “visitar” os índios de Porto Real do Colégio,
ou seja, a produção de uma etnicidade na relação com o Estado brasileiro. Outro marco
importante para a divulgação do Toré Kariri-Xocó é o ano de 1973 em que foi televisionado
pela “TV Sergipe”. Aqueles que compareceram à rede de televisão, ao chegarem na Rua dos
Índios, Porto Real do Colégio contaram como era o mundo lá fora. Esse acontecimento teve
repercussão, uma vez que despertou o interesse de outros Kariri-Xocó em conhecer esse
“outro mundo”. Além disso, os não indígenas também sentiam curiosidade em saber como era
a vida Kariri-Xocó. Para que pudesse ser dito ao cabeça seca como é a vida indígena, muita
gente [isto é, muitos Kariri-Xocó] também viajaram para fora da aldeia. Essas viagens são
vistas pelos Kariri-Xocó como uma alternativa que os índios arrumaram para melhorar a
situação da aldeia, já que ao viajarem traziam um alimento, afirmou Nhenety. Esta
justificativa deve ser considerada ainda se recordarmos que o ano de 1970 é definido pelos
Kariri-Xocó como o tempo da fome, restritos ao espaço da Rua dos Índios, antes da ocupação
da Sementeira. O segundo motivo dado a essas viagens indígenas é que os Kariri-Xocó
afirmam que ao estar fora da aldeia para a apresentação do Toré transmitem ao branco
conhecimento sobre a cultura indígena. Ao conversar comigo, Ryakonã e Pawanã afirmaram:
Quando a gente apresenta o nosso canto lá fora, a gente apresenta de uma forma
conscientizando o não índio, ver e sentir que nós fazemos parte de uma cultura, né,
por ser índio. Que essa cultura ela é antiga, ela vem de geração em geração.
(RYAKONÃ)
138

O que a gente ensina é um pouco do nosso costume que lá na cidade a sociedade


perdeu, né, já não tem mais. Que é o amor ao próximo, é o confiar, é o amar a
natureza, preservar, cuidar, proteger; o amor aos animais, aos anciãos [...] E ensinar,
educar também no mundo espiritual que é importante. (PAWANÃ)

Apesar das dificuldades de se trabalhar fora da aldeia, alguns Kariri-Xocó veem isso
de maneira positiva, uma vez que consideram que houve o valorizar da própria identidade
étnica. Assim, ouvi um homem Kariri-Xocó dizer que por meio da apresentação ritual do
Toré, o indígena começou a sentir o valor que ele tem, uma vez que antigamente, a gente
tinha medo de dizer: eu sou indígena, já que o preconceito e a perseguição aos Kariri-Xocó
foram muito grandes. Ao estarem nos centros urbanos, os Kariri-Xocó expressam a etnicidade
por meio de diversos signos étnicos, como pude observar ao estar com Ytay e seu sobrinho
Pataká na cidade de Campinas. Ambos foram chamados para trabalho de pajelança no interior
paulista e para venderem artesanato em uma festa; contudo, o organizador do evento não
pagou a quantia em espécie que havia sido acordada com esses indígenas. Como eu moro em
uma cidade do estado de São Paulo, Ytay ligou para mim, relatou o que havia acontecido e
solicitou minha ajuda, por isto, fui encontrá-los em Campinas. Ao andar com eles por entre
ruas e terminais rodoviários, até a chegada em um centro cultural, Ytay utilizou em todo este
trajeto um cocar, uma bolsa indígena e seu corpo estava todo pintado. O modo encontrado
para ajudar esses dois Kariri-Xocó foi a mobilização de uma rede de apoio formada por
pessoas que já conheciam Ytay, entre elas, uma moça branca que mantém amizade com
alguns Kariri-Xocó. Essas pessoas procuraram ajudar de diversas formas: viabilizaram a
venda do artesanato indígena para os seguidores das religiões de matriz africana que
demonstraram interesse em comprar cocares; durante a noite, esses Kariri-Xocó foram
levados a um bar para que expusessem e vendessem seus artesanatos. Por meio dessa
mobilização em rede e por meio daqueles que puderam ajudar financeiramente com doação
em dinheiro, passagens de ônibus foram compradas para que Ytay e Pataká regressassem à
aldeia. Cada passagem custou mais de trezentos reais em ônibus clandestino.
Diferentemente de Ytay e Pataká que não moram no estado de São Paulo, Kayrrá é um
exemplo de vida indígena fora da aldeia. Segundo ele, sua saída de Porto Real do Colégio
teve como objetivo ajudar financeiramente sua família, tendo perseguido esse propósito desde
muito cedo, quando ainda garoto. A primeira viagem de Kayrrá foi para jogar futebol
profissionalmente. O incentivo veio do prefeito de Porto Real do Colégio, cujo filho era
considerado amigo de Kayrrá, uma vez que ambos jogavam bola juntos. O então prefeito
comentou com Kayrrá sobre um time de futebol no Nordeste que faria treinos para escalar
meninos para se tornarem jogadores profissionais. Disse a Kayrrá que pagaria a passagem de
139

ônibus para que ele pudesse disputar uma vaga no time. A mãe de Kayrrá foi contrária à ideia
do filho de sair da aldeia, mas isso não impediu a ida do garoto. Segundo Kayrrá, entre os
meninos do processo seletivo, ele era o único indígena. Foi aprovado nas diversas etapas. Em
uma das fases da seleção, Kayrrá pensou não ter sido aprovado, sendo que tal equívoco foi
cometido pelo fato de não saber ler em Língua Portuguesa e, por isso, ter “confundido” os
nomes na lista de divulgação. Um desses nomes (não aprovado para o time profissional) era
muito semelhante ao nome em Português de Kayrrá: Silvanio dos Santos. Kayrrá afirma ter
sentido enorme alegria por torna-se jogador oficial de futebol. Desse clube inicial, jogou em
diversos outros times, mas decidiu abandonar a carreira de atleta e retornar à Terra Indígena.
Com o dinheiro que recebeu como jogador de futebol, comprou uma moto. Infelizmente, um
dos seus irmãos sofreu acidente com a motocicleta ao estar alcoolizado, tendo batido a cabeça
fatalmente. Segundo Kayrrá, o alcoolismo é um problema sério entre alguns Kariri-Xocó na
aldeia.
Embora tenha voltado a Porto Real do Colégio, Kayrrá decidiu se ausentar da aldeia.
Dessa vez, saiu acompanhado por seu tio paterno. Ao invés de irem a Salvador, uma vez que
já havia um grupo Kariri-Xocó instalado no estado da Bahia, resolveram seguir rumo a São
Paulo. Ao chegarem à capital paulista pegaram o primeiro ônibus que viram à frente: Vila
Zilda. Ao chegarem nesse bairro, perguntaram de “boca em boca” onde havia um quarto para
alugar. Indicaram a casa de dona Madalena. Bateram à porta, Madalena atendeu e confirmou a
vaga de um quarto, porém, era preciso realizar o pagamento adiantado. Kayrrá e seu tio
afirmaram não terem condições financeiras para o aluguel, mas que procurariam emprego. No
quarto em que se hospedaram penduraram na parede o artesanato indígena que trouxeram para
vender na cidade grande. Um dia, duas Testemunhas de Jeová bateram à porta do quarto,
viram o artesanato e perguntaram a eles se eram indígenas. Obtiveram uma resposta positiva.
Essas mulheres convidaram Kayrrá e seu tio para irem à igreja. Eles aceitaram. Ao chegarem
à igreja, as Testemunhas de Jeová comunicaram que estes Kariri-Xocó estavam à procura de
emprego. Uma mulher contratou-os como pedreiros para que construíssem um muro. Segundo
Kayrrá, eles não faziam ideia de como construí-lo, por isso, afirma que o resultado foi
desastroso. Apesar da contratante não ter aprovado o serviço, fez o pagamento no valor de
cem reais para cada um.
Em um determinado dia, o tio de Kayrrá soube que sua filha estava doente e assim
decidiu voltar à aldeia. Kayrrá o acompanhou até a rodoviária do Tietê e emprestou os cem
reais para seu tio comprar a passagem. Portanto, Kayrrá ficou sem dinheiro, mas afirma ter
ficado satisfeito em ter realizado o sonho de seu tio de voltar para a aldeia. Ao retornar para
140

o quarto onde estava na Vila Zilda, um dos vizinhos chamou Kayrrá para ser cobrador em
uma lotação de van. Kayrrá faz questão de frisar que pelo fato de não saber ler e escrever em
Português, dava o troco errado, inclusive a mais para que os passageiros não reclamassem.
Afirma que ser cobrador de van não era seu ramo. Além disso, afirmou ter uma cultura para
cuidar, ou seja, o seu trabalho deveria ser por meio de apresentações do Toré e da venda do
artesanato indígena. Desse modo, ele não correspondeu às habilidades de serviço requeridas
na cidade, seja como pedreiro, seja como cobrador, e recorre aos conhecimentos tradicionais
para viver na cidade grande entre os brancos, sendo índio.
A escolha de ir para Bragança Paulista foi motivada pelo fato de que ouvia falar muito
do Bragantino, time de futebol, portanto, mesmo sem ter contatos na cidade, decidiu ir até lá.
Ao chegar, dirigiu-se à Prefeitura para solicitar ajuda: disse que era índio. O prefeito não
acreditou e perguntou se havia um telefone para que ele pudesse ligar e confirmar o
pertencimento étnico de Kayrrá. Este, por sua vez, forneceu o telefone do orelhão que ficava
em frente à casa do pajé da aldeia. Atenderam a ligação. O prefeito perguntou se alguém
conhecia Kayrrá, tendo obtido resposta negativa. Kayrrá então orientou o prefeito: fala que é
o Coquinho, seu apelido. Imediatamente foi identificado pela pessoa que atendeu a ligação e
que confirmou que Kayrrá é indígena. Sendo assim, o prefeito ajudou fornecendo alimentação
e um quarto para Kayrrá morar. Durante esse período, Kayrrá relata que um dia estava em
frente a um clube de Bragança Paulista quando um carro com uma moça de Atibaia (São
Paulo) parou e perguntou se ele era índio. Kayrrá respondeu positivamente. Diante dessa
resposta, a moça procurou saber se Kayrrá não gostaria de fazer parte do elenco de uma
novela chamada “Cidadão Brasileiro”, rodada no ano de 2006 pela rede de televisão Record.
Kayrrá aceitou a proposta e começou a gravar as cenas. Enfatiza que como não sabia ler em
Português, essa moça o ajudou a decorar as falas. Além dele, Kayrrá lembra que havia índios
Guarani participando da novela. Com essa oportunidade de trabalho, Kayrrá afirma ter
comprado um carro para transportar seu artesanato e não precisar pegar mais ônibus. Além
disso, afirma que as coisas melhoraram para ele, uma vez que as escolas passaram a solicitar
a presença dele para realizar apresentações de cantos e danças Kariri-Xocó e venda de
artesanato indígena.

3.4.1 “Aldeia vertical” e o calçadão em Copacabana


141

Um dos sonhos de Kayrrá era conhecer a “cidade maravilhosa”, a concretização desse


desejo se deu em agosto de 2016, ano em que os Jogos Olímpicos foram sediados no Rio de
Janeiro. Atentos à realização de importantes eventos em território nacional, Kayrrá, Wiryçar e
Tawy (os três Kariri-Xocó) partiram rumo à capital carioca. A ida ao Rio de Janeiro foi
viabilizada por Tamikuã, índia Pataxó, atualmente habitante de uma cidade do interior
paulista. Kayrrá e Tamikuã se conheceram em um evento comercial em que vendiam seus
artesanatos indígenas. À época, se tornaram amigos e desde então viajam juntos para diversas
cidades e estados brasileiros. Os parentes de Tamikuã moram no Rio de Janeiro, por isso, nos
hospedamos no apartamento de seus primos.79 O imóvel foi construído em um conjunto
habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida destinado a indígenas da Aldeia Maracanã.
Assim, dentre os diversos prédios erguidos no antigo Presídio Frei Caneca, no bairro Estácio,
um deles (bloco quinze) é reservado a indígenas de diversas etnias, entre elas, a Pataxó. O fato
de morarem em um conjunto habitacional faz com que recorram ao emprego da palavra aldeia
vertical em alusão à vida vivida em um prédio. Este termo “aldeia vertical”, ouvi da boca de
um cacique que ali estava morando. Cada apartamento é reservado a uma família e/ou a um
grupo indígena. Nos hospedamos no apartamento de Arassari Pataxó e também frequentamos
diariamente o de Pacari Pataxó.
Conforme o combinado, encontrei Kayrrá, Tawy e Tamikuã na cidade de Atibaia para
que fôssemos juntos ao Rio de Janeiro. Eu os acompanharia nesta viagem para conhecer e
aprender a respeito do funcionamento desse grupo ritual Kariri-Xocó que atua fora da aldeia:
como se relacionam entre si, com outros indígenas e com não indígenas. E também viajei com
o intuito de ajudá-los nas vendas dos artesanatos. Durante a viagem, os assuntos eram
corriqueiros, referentes aos trabalhos nas exposições e feiras, sobre os acontecimentos
engraçados que viveram juntos, conversas de assuntos íntimos, tudo isso ao som de uma vasta
trilha sonora: desde Toré, Forró, Arrocha, Sertanejo e Zé Ramalho, com Kayrrá afirmando ter
predileção pela música “Um índio”, interpretada por esse cantor. Desse modo, ouvia tal
canção repetidas vezes em sua Kombi Volkswagen, onde transporta todo o artesanato
indígena, além de ser o meio de transporte utilizado por ele em suas viagens, seja a trabalho,
seja para ir a Porto Real do Colégio. Em busca do nosso destino final, o bairro Estácio no Rio
de Janeiro, nos perdemos no caminho, indo parar na Lagoa Rodrigo de Freitas. Decidimos
pedir informação a um frentista sobre qual caminho seguir. Tamikuã se apresentou dizendo

79
Acompanhei Kayrrá por uma semana no estado do Rio de Janeiro para realizar observação participante.
142

que éramos índios. Orientados chegamos ao local final: condomínio Zé Keti. Fomos recebidos
por um dos primos de Tamikuã e aos poucos conhecemos alguns dos moradores indígenas.
Era comum diversos indígenas de etnias diferentes se reunirem no apartamento em que
estávamos, principalmente, à noite, após o trabalho para conversar, jantar e/ou assistir
televisão. Sendo que todas as vezes em que os Kariri-Xocó se reuniam no apartamento de
Pacari Pataxó, dançavam e cantavam o Toré, tanto os de autoria Pataxó, como os de autoria
Kariri-Xocó. Bastava se verem, fosse de manhã ou à noite para que dessem início ao Toré. O
som dos cantos, dos maracás e dos pés batidos no chão ecoavam pelos andares do bloco
quinze. Além do Toré, mais um elemento diacrítico era fortemente marcado por esses
indígenas do Nordeste ao estarem juntos: fumar cachimbo. Contudo, empregam nomes
diferentes para esse objeto. Enquanto os Kariri-Xocó utilizam o termo paewí, fumado com
ervas como Mescla, Velandinho e Imburana, os Pataxó denominam como timbeiro.
Assim como os Kariri-Xocó, os Pataxó também produzem seu próprio artesanato a ser
vendido. Desse modo, os apartamentos de nossos anfitriões sinalizavam a produção de
maracás, apitos e brincos da etnia Pataxó. Kayrrá e Tawy observaram os cocares que enfeitam
os apartamentos e indagaram como eram feitos pelos Pataxó. Kayrrá testou os apitos e os
maracás, considerando bem-feitos. Neste período em que os acompanhei ao Rio de Janeiro, o
local de venda dos objetos indígenas Pataxó e Kariri-Xocó foi o calçadão de Copacabana. Os
grupos se dividiam: Quati Pataxó vendia em um posto específico da praia. Já Kayrrá, Tawy,
Wiryçar, Tamikuã e Aroeira Pataxó faziam seu comércio em outro ponto do calçadão. A
divisão entre o grupo que acompanhei era da seguinte forma: Kayrrá estendia seu pano e
expunha separadamente; os irmãos Tawy e Wiryçar montavam a sua própria “banca” ao lado
da de Kayrrá e as Pataxó montavam a delas ao lado desses dois irmãos. Ou seja, todos
estavam contíguos, mas cada um era responsável não só pela montagem de seus “stands”, mas
também por seus objetos. No entanto, isso não inviabilizava que um ajudasse ao outro. Assim,
Tamikuã atendia os turistas que se interessavam pelos produtos de Kayrrá. Tawy e Wiryçar
ajudavam Tamikuã a montar o arco e flecha que ela venderia, bem como mostravam e
ensinavam aos turistas como esse artefato deve ser manuseado. Estes índios recorriam uns aos
outros para empréstimo de dinheiro para facilitar o troco nas vendas, além disso, um pintava o
corpo do outro antes de começarem a expor o material a ser vendido.
Eu participava ativamente de tudo isso. Assim, ajudava, sobretudo, Kayrrá a expor seu
artesanato, mas contribuí com todos em suas vendas, principalmente quando estrangeiros se
interessavam pelos artefatos indígenas. Como não sabem falar outro idioma que não seja a
própria língua indígena e o Português, estes Kariri-Xocó e Pataxó recorreriam a mim como
143

mediadora linguística que arriscava falar em Inglês e/ou Espanhol. No entanto, se fosse
preciso vender sem minha ajuda, conseguiam se comunicar gestualmente com os turistas não
brasileiros e assim garantir as vendas. Aqueles que nos viam faziam questão de me identificar
como não indígena e justificavam isto pelos meus traços físicos. Outro motivo era justificado
pelo fato de eu nunca estar pintada, nem com as indumentárias indígenas, como cocares,
brincos, colares e adereços nos braços e pernas. Diferentemente destes Kariri-Xocó e Pataxó
que sempre estavam com pinturas corporais e tais adornos como recursos para afirmarem
perante o não indígena seu pertencimento étnico. Portanto, vestimentas e pinturas indígenas se
apresentam como importantes marcadores da diferença ao estarem em contato com
seguimentos da sociedade nacional e estrangeiros.
Um desses indígenas comentou por alto que cansou de tirar foto de índio com os
turistas, fazendo referência ao fato de estar cansado de ser fotografado com cocar e pintura
corporal. Mas fazer referência a esta frase não significa que esteja anulando seu
pertencimento étnico ao não utilizar cocares e/ou ao estar sem marcas corporais comumente
associada aos índios. Pelo contrário, os Kariri-Xocó se autoafirmam como índio em todas as
circunstâncias em que estive com eles. Na contemporaneidade, eles ainda usam vestes que até
então eram símbolos da alteridade entre o “homem branco” e o “índio”. Na visão Ocidental, o
não indígena usa calças, camisas, tênis, casacos, etc.; enquanto o “índio” anda nu. Conforme
ouvi de um idoso Kariri-Xocó: viemos saber o que é roupa boa depois que os gringos
andaram por aqui. No entanto, reafirmo que o fato de utilizarem tais vestimentas não anula de
modo algum a identidade étnica, afinal, esses indivíduos se autodefinem como Kariri-Xocó e
recebem tal atribuição étnica pelos próprios membros de seu grupo étnico80. Além disso, em
termos tutelares, a Carteira de Identidade Indígena emitida pela Funai reconhece oficialmente
esses indígenas como sendo da “etnia Kariri-Xocó”.
Podemos assim considerar que esse indígena que “cansou de tirar foto de índio” sabe
muito bem qual é a imagem que a maioria dos não indígenas reproduz sobre os povos
indígenas: vivem em meio à floresta, andam nus, fazem uso do arco e flecha e não falam a
Língua Portuguesa. Caso sejam vistos com roupas, celulares, televisão e se comunicando
oralmente em Português, são considerados pelo senso comum brasileiro como “aculturados”.
Logo, esse jovem Kariri-Xocó sabe muito bem como e em quais momentos deve manipular
essa imagem romantizada do índio (OLIVEIRA, 1994, p. V), alimentada no imaginário social
de muitos brasileiros. Isso de fato acontece, uma vez que os Kariri-Xocó e as Pataxó ao

80
Ver Barth, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In. O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas (2000).
144

estarem adornados, eram vistos como “exóticos” por turistas brasileiros e estrangeiros. De
modo oposto, ao estarem na aldeia Kariri-Xocó não é urgente acionar esses marcadores
étnicos. Assim, em meu trabalho de campo na aldeia, não vi os Kariri-Xocó utilizarem
cocares, nem estarem com o corpo todo pintado. Desde que conheci Kayrrá (em um contexto
urbano) sempre o vi pintado de jenipapo, no entanto, quando estive na aldeia, o vi sem pintura
e adereços indígenas. No entanto, um dia antes de deixarmos a aldeia para voltarmos a São
Paulo, Kayrrá recorreu à pintura corporal. A tinta de jenipapo foi preparada por um menino
Kariri-Xocó de doze anos de idade que coletou o fruto no quintal de sua casa. A pintura no
corpo de Kayrrá foi feita por um jovem Kariri-Xocó que também fez a pintura corporal em
mim que voltaria a São Paulo com Kayrrá após a minha primeira etapa de trabalho de campo.
Outros Kariri-Xocó que moram na aldeia e saem de Porto Real do Colégio a trabalho,
realçam seus corpos com elementos figurativos indígenas. Todavia, enquanto estão na aldeia
não é preciso pintar o corpo para comunicar ao Outro a identidade étnica, uma vez que ali há
o reconhecimento e a vivência coletiva da indianidade. Enquanto permaneci na aldeia, ouvi os
Kariri-Xocó dizerem que sabem quem ali na aldeia é índio e quem não é, neste caso, faziam
referência aos cabeças secas que se casaram com Kariri-Xocó. Além disso, ao andar na
cidade de Porto Real do Colégio e na cidade de Propriá (Sergipe), não vi nenhum Kariri-Xocó
com pinturas corporais ou com cocares. Isto pode ser justificado pelo fato de que os não
indígenas de Porto Real do Colégio e de Própria sabem quem são os Kariri-Xocó, uma vez
que convivem secularmente. Desse modo, quando eu andava com Kayrrá por estas cidades,
cumprimentava e conversava normalmente com os moradores não indígenas.
Em uma noite, fomos a um povoado próximo da aldeia Kariri-Xocó para ver um show
ao vivo de forró. Muitos Kariri-Xocó estavam por lá e circulavam normalmente entre os
cabeças secas. No caso de Kayrrá, era cumprimentado por muitos não indígenas que já
jogaram futebol com ele. Além disso, não podemos desconsiderar que os cabeças secas que
moram no centro da cidade em Porto Real do Colégio frequentam a aldeia. A permanência
dos não indígenas na aldeia segue normas sociais impostas pelos Kariri-Xocó. Desse modo,
ouvi Tawanã dizer que os brancos não podem ter na aldeia o mesmo comportamento que eles
têm na cidade.
Os Kariri-Xocó, bem como as Pataxó que acompanhei ao Rio de Janeiro, já se
adornavam antes mesmo de se retirarem da “aldeia vertical” para irem à praia. Se porventura,
isso não acontecia, assim que chegavam em Copacabana trajavam seus cocares e pintavam
seus rostos. Além disso, faziam uso constante do paewí ou do timbeiro. Mas, atualmente,
esses índios precisam portar outros objetos, a exemplo, da Carteira de Identidade Indígena.
145

Digo isto baseada em um evento ocorrido em um dos dias de trabalho de campo em


Copacabana, em que presenciei a atuação de agentes policiais sobre estes indígenas. Até
então, estávamos tranquilos expondo os artesanatos indígenas quando subitamente vimos
alguns vendedores ambulantes correrem da Guarda Municipal. Fomos informados, por
pessoas que estavam na orla, que era preciso permissão da Prefeitura do Rio de Janeiro para a
venda de produtos à beira mar. Kayrrá imediatamente exclamou de que estava legalmente
respaldado, isto é, caso solicitassem comprovação de que ele poderia vender seu artesanato,
mostraria a Carteira de Identidade Indígena emitida pela Funai. Nesse documento constam as
seguintes informações, conforme li na Carteira de Identidade Indígena de Ytay: “Índio
tutelado do Governo Federal, de conformidade com a Legislação Vigente – Lei 6001. Às
autoridades Civis e Militares, encareço facilidades que objetivem o livre trânsito do(a)
referido(a) índio(a), bem como no que concerne as suas pretensões”.
Então, a Guarda Municipal do Rio de Janeiro se aproximou de nós. À espera de que
isto pudesse ocorrer, Kayrrá mostrou o documento a um dos guardas que após conferi-lo não
impediu a venda dos artesanatos indígenas. Além disso, ao ler no documento a informação de
que Kayrrá é “cacique”, expressou contentamento pelo fato de estar diante de tal autoridade.
Disse: “Parabéns, moço! Você é cacique! Só vocês que podem [vender]”. Diante deste fato,
Kayrrá afirmou que tudo tem que ter documento para comprovar quem é índio e quem não é.
Como disse a mim: o seu RG [Registro Geral] é igual o meu para dizer que é índio?. Tal
acontecimento gerou opiniões de outros indígenas: um deles afirmou que no momento da
venda do artesanato, muitas pessoas querem se passar por índio: nessa hora todo mundo é
índio, logo, a Carteira de Identidade Indígena comprovaria quem de fato é. Este
acontecimento observado em Copacabana aponta que as populações indígenas são igualmente
envolvidas em “processos de identificação” (PEIRANO, 2009, p. 54) legal em que a Carteira
de Identidade Indígena funciona como uma espécie de RG (Registro Geral).
Acompanhei Kayrrá em outras situações (fora do Rio de Janeiro e sem estar trajado de
cocar e indumentárias “típicas” Kariri-Xocó) em que foi preciso mostrar sua Carteira de
Identidade Indígena para adentrar lugares fechados, a exemplo de um clube privado que
exigia, por “questões de segurança”, a identificação daqueles que entrassem no recinto. Nesta
situação, não caberia a Kayrrá dizer que é índio (como fez em outras vezes), como tentativa
de se livrar de tal exigência. A sua palavra de índio não seria levada a sério, uma vez que para
ser legitimado como cidadão brasileiro em contextos fora da aldeia Kariri-Xocó é necessária
comprovação documental, ou seja, é “como se só existisse no mundo o que está corroborado
no papel” (PEIRANO, 2009, p. 70). Assim:
146

No mundo moderno [do qual os Kariri-Xocó fazem parte], documentos são objetos
indispensáveis, sem os quais não conseguimos demonstrar que somos quem dizemos
que somos. Precisamos de provas materiais que atestam a veracidade da nossa
autoidentificação, já que, por nós próprios, esse reconhecimento é inviável. Nossa
palavra não é suficiente. (PEIRANO, 2009, p. 63)

Pelas falas que ouvi durante a conversa entre esses indígenas, podemos considerar que
a documentação é importante, sobretudo, para as autoridades, uma vez que entre eles índios
utilizam critérios de atribuições étnicas, porque a gente conhece a família, a gente conhece
todo mundo; outra pessoa não vai saber da língua [indígena], falar sobre a cultura; para ser
índia tem que ser de uma tribo. A tribo é a identidade dela.
A existência dos Pataxó para alguns turistas não era novidade, uma vez que muitos já
estiveram em Porto Seguro e/ou Barra Velha, rotas turísticas do sul da Bahia. No entanto, não
era de conhecimento dessas pessoas que há indígenas em Alagoas. Desse modo,
desconheciam a existência do povo Kariri-Xocó. Assim, se recorrermos a epígrafe citada no
início deste capítulo em que Kayrrá afirma ter saído no meio do mundo para aprender e
ensinar sobre a sua cultura indígena, ensinando para o não índio [...], mostrando a tradição,
isso é possível por meio do trabalho da venda do artesanato, pelas apresentações do Toré em
escolas, feiras e exposições, além dos cursos ministrados por Kayrrá que ensina aos não
índios como se faz a maraca e o paewí.
Na ida ao Rio de Janeiro, três episódios apontam para os possíveis desdobramentos do
contato interétnico: (i) o primeiro é de uma mulher branca que demonstrou encanto e
admiração pelos artesanatos indígenas. Ao saber que Kayrrá trabalha com pajelança, solicitou
uma orientação de saúde, uma vez que apresentava distúrbio físico. Por isso, conversaram
entre si (em um faixa de areia) sem haver a interferência dos demais membros indígenas. Foi
combinado que no dia seguinte essa não indígena apareceria novamente à praia para que fosse
fornecida uma planta que deveria ser consumida, como chá, em prol de sua saúde. No dia
posterior, compareceu conforme o combinado. (ii) O segundo episódio se deu com um jovem
casal não indígena que comprou um arco e flecha e ao fazer a compra iniciaram uma conversa
com Kayrrá, tendo no final trocado contato entre si, inclusive com convite para visitarem a
aldeia Kariri-Xocó. (iii) E o terceiro episódio foi o reencontro de Kayrrá com uma moça
cabeça seca na Fundição Progresso. Nesse dia, o objetivo era que os Kariri-Xocó
participassem da Feira Cultural Indígena durante os Jogos Olímpicos. Tal moça se tornou
amiga de Kayrrá em um curso de maracá dado por ele na cidade de São Paulo. O contato
estabelecido por eles, via curso, foi estendido para outros âmbitos, desse modo, Kayrrá avisou
147

que estaria no Rio de Janeiro. As amizades de Kayrrá com não indígenas é um fato, sendo
firmadas justamente nos trabalhos desenvolvidos por ele em escolas, cursos de maracá e
cachimbo, feiras de artesanato, entre outros. Presenciei momentos dessas amizades em lugares
diversos, como nas cidades de Bom Jesus dos Perdões (São Paulo), Nazaré Paulista (São
Paulo) e Rio de Janeiro, e em situações variadas, inclusive em gira de umbanda em que a
figura do caboclo era imprescindível, motivo, segundo Kayrrá, de ter sido chamado para estar
presente.
Além disso, presenciei a forma como é estabelecido o contato inicial entre indígenas e
não indígenas, no caso específico, entre Kariri-Xocó com pessoas da região serrana do Rio de
Janeiro. As redes sociais da Internet foram a primeira porta de abertura para o contato e
necessárias para os próximos passos a um encontro presencial. O jovem Wiryçar mantém
ativa sua página no Facebook por onde divulga seus trabalhos. Quais sejam: palestras e
apresentações rituais sobre a cultura Kariri-Xocó em escolas e universidades, venda de
artesanato indígena e cursos de maracá. O fato de divulgar seu trabalho pelas redes sociais faz
com que qualquer pessoa tenha acesso a esse conteúdo digital e possa contatá-lo. Desse modo,
uma não indígena moradora de Lumiar (Rio de Janeiro) entrou em contato com Wiryçar para
que ele se apresentasse na Feira Agroecológica e Agricultura Familiar Arte e Cultura de
Lumiar e Arredores. O fato de estarmos no Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos facilitou a
ida a Serra. Nesta viagem permanecemos mais uma vez unidos, isto é, os Kariri-Xocó:
Kayrrá, Tawy e Wiryçar e as Pataxó: Tamikuã e Aroeira. Torna-se importante frisar que
Tawy e Wiryçar têm seu próprio grupo de apresentação ritual, ou seja, grupo diferente ao de
Kayrrá; no entanto, isso não inviabiliza que ambos se unam quando preciso, como ocorreu
nesta viagem em que os três Kariri-Xocó formaram um só grupo por meio do laço de
parentesco, uma vez que o pai de Kayrrá e o pai dos irmãos Tawy e Wiryçar são primos
paternos. Indo além, associaram-se ao grupo duas mulheres Pataxó.
Porém, ao estarem reunidos há uma hierarquia a ser seguida e obedecida. Conforme
um dos jovens Kariri-Xocó: aqui na cidade, ele [Kayrrá] é superior a mim. A posição de
Kayrrá como cacique do grupo era legitimada por seus companheiros: muitas vezes em
Copacabana, Kayrrá fumava seu paewí na areia e pedia a um dos jovens Kariri-Xocó para
atender os clientes que se interessavam por seu artesanato indígena. Kayrrá observava ao
longe. Um dia, no almoço, um desses jovens Kariri-Xocó exclamou que se serviria só depois
que o cacique Kayrrá tivesse se servido. Se alguém fizesse uma pergunta específica na
presença desses três Kariri-Xocó, quem respondia era Kayrrá, sendo que os demais só
emitiam uma palavra caso Kayrrá autorizasse. Assim, Kayrrá não hesitava em chamar a
148

atenção de tais Kariri-Xocó, caso fosse necessário. No entanto, conforme Kayrrá: o cacique
pede, ele não manda. Assim, aqueles sob o comando de Kayrrá devem respeitá-lo, inclusive
as mulheres Pataxó. Conforme explicação: se são os Kariri-Xocó que negociam um evento
(como o de Lumiar), elas ao estarem com Kayrrá devem respeitar as decisões dele. Porém, se
o contrário acontecer, isto é, de as Pataxó negociarem um evento e esses Kariri-Xocó
acompanharem, o papel é invertido: quem orienta são essas mulheres Pataxó e esses Kariri-
Xocó devem obedecê-las.
Tal condição hierárquica foi observada na praça de Lumiar em que venderam
artesanatos indígenas e apresentaram o Toré ao público. As mulheres Pataxó expressaram
vontade de dançar e cantar o Toré mais de uma vez, considerando que isso atrairia o público
para olhar e/ou comprar o artesanato. No entanto, os Kariri-Xocó se posicionaram de modo
contrário e firmes nessa decisão, o que gerou uma situação desconfortável entre eles. Porém,
Kayrrá esteve aberto à opinião alheia e escutou as mulheres não indígenas que solicitaram que
dançassem e cantassem o Toré novamente. Após a primeira apresentação, Kayrrá discursou
no coreto81:
Sua fala enfatizou que o objetivo do seu grupo de apresentação do Toré é a divulgação
da cultura indígena, uma vez que, segundo ele, tem muitas pessoas que nunca viram um índio
pessoalmente. Tocou na questão do preconceito para com as populações indígenas e para com
a população negra. Recorreu à ideia de que o Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido e
que, portanto, os indígenas são os habitantes originários do país. Atrelado a isso, considerou
em sua fala que o Brasil [é] uma aldeia e que os brasileiros têm sangue de índio. A fala
proferida por Kayrrá se assemelha a outros discursos Kariri-Xocó que podem ser lidos na
Internet. Como dito anteriormente, os trabalhos dos grupos rituais Kariri-Xocó que se
apresentam fora da aldeia são divulgados em sites eletrônicos. Essas páginas em redes sociais
são produzidas pelos próprios Kariri-Xocó e/ou por pessoas conhecidas dos indígenas, a
exemplo de Kayrrá que tem uma página no Facebook que é mediada por uma não indígena.
Nesses espaços virtuais divulgam todos os trabalhos desenvolvidos em escolas, universidades,
“exposições e feiras”; fotografias e venda virtual dos artesanatos Kariri-Xocó; vídeos das
apresentações do Toré; programação dos eventos que participarão e manifestações Kariri-
Xocó pela garantia de seus direitos constitucionais.

81
Áudio obtido em vídeo divulgado na Internet por uma das organizadoras do evento em Lumiar.
https://web.facebook.com/valeria.apolinario.7?lst=100000380053631%3A100002293436873%3A1491583893,
acessado em 07 de abril de 2017.
149

Existe ainda uma página na Internet reservada à divulgação do trabalho da “tribo


Kariri-Xocó” que “visa a educação patrimonial”, “promover uma interação que transcenda o
preconceito”, e que os não indígenas “reconheçam em nós, índios, as raízes ancestrais da
cultura brasileira”.82 Assim, ouvi de um adulto Kariri-Xocó sobre a importância de mostrar a
visão do índio pelos próprios índios, sendo também uma das questões norteadoras desses
grupos de apresentação do Toré Kariri-Xocó fora da aldeia, em que afirmam “esclarecer
dúvidas, passar informações verdadeiras sobre a cultura indígena”, uma vez que “muita gente
só conhece índio por livro”83 e/ou pela televisão.

3.4.2 Lumiar

Nem mesmo um frio de oito a doze graus em plena praça de Lumiar (Rio de Janeiro),
no período noturno, foi impeditivo para que os Kariri-Xocó e as Pataxó vestissem suas
indumentárias para venderem seus artesanatos e apresentarem o Toré ao público. Os homens
indígenas apenas de bermudas, pintados corporalmente e com cocares, enquanto as mulheres
vestiam shorts, com saias feitas de lã, tops de tricô, braceletes e tornozeleiras de plumas.
Assim, mais uma vez, comunicavam ao público sinais diacríticos do pertencimento étnico.
Por Kayrrá ser o cacique do grupo Caça Feita, ele era o puxador do Toré.84 Além da
apresentação na praça da cidade, os Kariri-Xocó e as Pataxó estiveram presentes em uma
Feira Agroecológica da cidade. Como de costume, expuseram o artesanato indígena e
cantaram, tocaram e dançaram o Toré. Kayrrá convidou os comerciantes e compradores da
feira para participarem de um Toré que fazia referência à demonstração do casamento na
aldeia Kariri-Xocó. Antes dessa encenação, Kayrrá enfatizou que no Brasil tem muitas etnias,
muitas aldeias [...], mas dança diferente, regime diferente e, principalmente, o casamento. O
importante dessa fala é o marcador da diferença entre Kariri-Xocó e demais etnias indígenas,
no que se refere às alianças matrimoniais. Segundo Kayrrá, enquanto em algumas aldeias, a
escolha do casal de noivos é feita sob a ordem do pajé e do cacique, na aldeia Kariri-Xocó

82
Disponível em Tribo Kariri-Xocó: http://www.karirixoco.com.br/2006/index.php?pag=noticia&noti=7,
acessado em 31 de janeiro de 2017.
83
Disponível na reportagem Índios da tribo Kariri-Xocó faturam com artesanatos na Olimpíada, data
20/08/2016, http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/08/indios-da-tribo-kariri-
xocofaturam-com-artesanatos-na-olimpiada.html, acessado em 30 de janeiro de 2017.
84
O mesmo ocorre com Pawanã, cacique do grupo Sabuká. Desse modo, aos caciques dos grupos de
apresentação ritual do Toré, cabe a organização do cantar e dançar, bem como a administração do grupo ritual.
Os caciques também sãos os “tesoureiros” dos grupos, isto é, eles que negociam o valor das apresentações, são
quem recebem a remuneração pelo trabalho prestado e dividem o dinheiro entre os membros do grupo
(MITCHELL, 1956).
150

quem escolhe o casamento entre o noivo e a noiva são os dois corações”, versão romântica do
casamento tão cara aos brancos. Dito isto, Kayrrá chamou uma mulher não indígena para
encenar a dança do casamento. Assim que a apresentação do Toré foi encerrada, voltaram à
venda dos artesanatos indígenas. As crianças não indígenas se interessam, sobretudo, pelo
arco e flecha; as mulheres pelos brincos, colares, pulseiras e anéis; os homens pelos arcos e
flechas, pelas lanças e pelo paewí em que solicitam permissão a Kayrrá para fumarem o
cachimbo. O pedido é sempre autorizado, sendo uma forma de interação entre Kayrrá e os não
indígenas. 85
Prestes a encerrar o turno da Feira Agroecológica houve trocas de mercadorias entre
Kariri-Xocó, Pataxó e alguns feirantes: uma das mulheres Pataxó recebeu uma grande
quantidade de alimentos orgânicos e em troca deu uma espátula de madeira e um colar a moça
que entregou o regalo. Já Tawy e Wiryçar deram um cocar ao casal que os convidou para se
apresentarem na região serrana e receberam em troca camisetas tie dye. Kayrrá deu ao casal
um machado indígena de pedra e recebeu camisetas feitas à mão. Essa troca também ocorreu
entre os próprios indígenas, como por exemplo, Tamikuã que deu um colar para Wiryçar e em
troca entregou a ela um cocar. Tais situações exibem atos de reciprocidade, ou seja, ações de
“dar, receber e retribuir” (MAUSS, 2003 [1950], p. 243) os regalos que podem ser desde bens
alimentícios, a roupas e objetos. Ao perguntar a Wiryçar o porquê desse tipo de troca,
respondeu: isso foi uma troca da amizade, né, porque ela queria muito o cocau, aí ela falou:
“Ô, Wiryçar, vamos fazer uma troca de amizade? Dá os cocau e eu dou as camisetas a você.
Você leva pra aldeia para os meninos lá”? Tá bom! Nós fizemos essa troca.
O trecho acima deixa transparecer que a finalidade da troca “é antes de tudo moral, seu
objetivo é produzir um sentimento de amizade entre as duas pessoas envolvidas” (MAUSS,
2003 [1950], p. 211). Podemos interpretar que Wiryçar teve a obrigação de aceitar/receber as
camisetas, do contrário, seria um sinal de negação da amizade intencionalmente solicitada
pela moça de Lumiar. No entanto, não bastava apenas aceitar o presente, uma vez que a
doadora expressou em sua fala que deveria haver essa transação de receber e retribuir – “você
dá os cocares e eu dou as camisetas”, portanto, a obrigação de retribuir concretizou o laço de
amizade. Caso não aceitasse as camisetas e não retribuísse com o cocar seria um sinal de
desapreço pela amizade proposta por essa mulher, portanto, seria “recusar a aliança e a

85
Segundo Appadurai: “podemos, pois, falar do quadro cultural que se determina a candidatura de coisas ao
estado de mercadoria [...]” (2008 [1986], p. 29). Os Kariri-Xocó sabem que o arco e flecha, de sobremaneira,
desperta a imaginação social sobre o “índio genérico” e o interesse do comprador branco em comprar tal
produto, desse modo, é um item cultural que não pode faltar no momento da venda. O mesmo ocorre com os
cocares, as lanças, os colares e o paewí.
151

comunhão” (ibidem, p. 202) possível entre eles. Não podemos deixar de pensar que a cada
contato que os Kariri-Xocó fazem com não indígenas e que, porventura, seja estabelecido um
vínculo de amizade, há maiores possibilidades de alianças no sentido de que são mais pessoas
aliadas à causa Kariri-Xocó.
A observação participante em Lumiar e na cidade do Rio de Janeiro faz com que eu
sugira que há um comércio configurado pelas seguintes situações mercantis: (i) os Kariri-
Xocó e as Pataxó vendem seus artesanatos; (ii) por vezes, esses objetos são comprados por
outros indígenas; (iii) ou são vendidos a não indígenas. Os artesanatos produzidos na aldeia
Kariri-Xocó são feitos com a intenção de serem vendidos, mas também de reafirmarem a
identidade étnica em um âmbito que ultrapassa a aldeia. Podemos pensar que a venda desses
artefatos indígenas é um exemplo de “transações que transpõem fronteiras culturais, em que
tudo o que se combina é o preço [...]” (APPADURAI, 2008 [1986], p. 28), uma vez que
muitos desses objetos são vendidos para não indígenas que acabam por enfeitar suas casas
com tais artesanatos. Ou ainda, enfeitam a si mesmos com colares, brincos e pulseiras como
signos étnicos. Segundo Kayrrá, há diferença entre troca e compra, categorias empregadas
por ele. Conforme Kayrrá, o ato de trocar envolve artefatos que não serão agregados valores
financeiros86, enquanto a compra implica um valor monetário sobre o artefato.
Essa forma mercantil que envolve moedas se dá também entre os próprios indígenas.
Assim, presenciei a negociação da venda de colares Pataxó entre Tamikuã e Aroeira e os
jovens Tawy e Wiryçar. Esses Kariri-Xocó compraram diversos modelos de colares Pataxó. A
mim solicitaram que fizesse as contas e somasse o total dos produtos. Outro momento de
compra e venda entre indígenas, ocorreu entre Kayrrá e um homem Pataxó que negociaram
entre si um arco e flecha. Outro exemplo é o de quando estive na aldeia Kariri-Xocó com
Kayrrá e o vi comprar artesanatos produzidos por outros Kariri-Xocó, como maracás, cocares,
lanças e cachimbos para que fossem levados a São Paulo e vendidos nos eventos em que
Kayrrá trabalha, assim criando uma circulação de bens externa e interna à aldeia.
Cabe dizer que os grupos de apresentação ritual do Toré Kariri-Xocó, ao viajarem,
transportam todo o artesanato indígena produzido na própria aldeia. A produção artesanal é
feita o ano inteiro, mas entre o mês de fevereiro a março a produção é intensa, uma vez que se
preparam para viajar para outros estados brasileiros em virtude das comemorações do
denominado “Dia do Índio”. Pode ser considerado que esse tipo de comércio étnico mobiliza

86
Appadurai (2008 [1986]) considera que há “dois tipos de troca que são convencionalmente contrastados com a
troca de mercadorias. O primeiro é a permuta (algumas vezes chamada de troca direta); o segundo é a troca de
presentes”. O autor sugere que a permuta “se trata de uma troca mútua de objetos sem alusão ao dinheiro [...]”
(p. 22-23).
152

a aldeia Kariri-Xocó, uma vez que esses indígenas veem na produção artesanal uma
importante renda financeira, conforme enfatizado pelos mesmos.
Além dessas formas comerciais, existe aquela em que os cabeças secas vendem aos
próprios índios materiais necessários à confecção de objetos artesanais. Esse fato ocorreu em
Copacabana quando uma das índias procurou negociar com um “homem branco” a compra de
sementes de tucum para fazer colares. Pode haver também, em uma mesma situação, o ato de
comprar e de trocar, como vivenciado por mim que comprei colares feitos com sementes de
Pau-Brasil, vendidos por Tamikuã, e que em troca deu-me seu timbeiro.
Importante destacar que além de cocares, brincos, pulseiras, arco e flecha, lança,
maracás, apitos e cachimbo, os Kariri-Xocó produzem e vendem cerâmica, atividade
exclusivamente feminina (MATA, 2014, p. 101), apesar dos homens ajudarem na queima do
barro no forno, como observei na aldeia ao ir à casa de uma louceira que vendia sua produção
de potes e panelas a pessoas de fora da aldeia que revendem esses produtos. Diversos Kariri-
Xocó (homens e mulheres) afirmam que a venda da cerâmica sofreu redução ao longo dos
anos e que restam poucas produtoras desse tipo de artefato. Quanto à diminuição da produção
da cerâmica, é vista pelos índios, como consequência do falecimento das ceramistas e da
tecnologia elétrica de resfriar água potável: chegou a geladeira. Assim, se antigamente a água
para ficar fresca era depositada nos potes feitos pelas ceramistas, hoje em dia pode ser
substituído pela refrigeração. Mas, em algumas casas na aldeia, a exemplo da que fiquei
hospedada, não se abandonou o uso do pote para armazenar água para beber, sendo
simultaneamente utilizado com a geladeira.

3.4.3 “Festival de cultura indígena”

Findada a estadia em Lumiar, o grupo de Kayrrá retornou à capital carioca. Além de


estarem em Copacabana, compareceram ao evento “Festival de Cultura Indígena” na
Fundição Progresso, ocorrido no mês de agosto durante os Jogos Olímpicos. Este Festival foi
organizado em parceria com a Associação Indígena Aldeia Maracanã e por demais
instituições.87 Kayrrá assim que chegou ao Festival, conversou com os indígenas de outras
etnias que já conhecia de outros eventos. Enquanto conversava, comecei a dispor e expor os
artesanatos indígenas que ele venderia. Ao meu lado estavam Wiryçar e Tawy para venderem

87
Disponível na página do Facebook – Cultura Indígena na Fundição Progresso:
https://web.facebook.com/events/1059336430823432/, acessado em 30 de janeiro de 2017.
153

seus artesanatos, e ao lado deles estavam Tamikuã e Aroeira juntas com os seus parentes
Pataxó para venderem seus artefatos. Pouco tempo depois, resolvi circular pelo local e vi
Kayrrá, Tawy e Wiryçar em uma conversa com uma jovem que afirmava ser Kariri-Xocó. A
questão é que Tawy, Kayrrá e Wiryçar não conheciam essa mulher que se identificava como
sendo Kariri-Xocó. Na tentativa de identificarem se tal moça é ou não Kariri-Xocó,
indagaram-na sobre: (i) o nome do pai e da mãe dela; (ii) se sabia a língua indígena; (iii) e se
conhecia um dos cantos Kariri-Xocó: você sabe algum canto, a língua?, perguntou Kayrrá.
Para os Kariri-Xocó existem critérios de pertencimento étnico pautados no:
(i) parentesco. Ao procurarem saber sobre determinado índio Kariri-Xocó, indagam:
Quem é seu pai?, pois conforme disseram a mim: todo mundo da aldeia em Porto Real do
Colégio se conhece. É só perguntar;
(ii) Toré. Os Kariri-Xocó afirmam que criança até adulto sabe cantar o Toré. Pode
ficar dez anos longe da aldeia que sabe cantar o Toré;
(iii) Ouricuri. Afirmam que o verdadeiro Kariri-Xocó para nós é aquele que entra no
Ouricuri. Então, ele tem que ser conhecedor do Ouricuri;
(iv) parte espiritual. Segundo Tawanã:

Então, o que que faz um índio saber que o outro é índio? Será que é só pela
aparência, pelo cabelo, pelos olhos puxados ou é pelo conteúdo principal que é a
parte espiritual? Então é através dos cantos, através do sentir, mesmo sem cantar,
só a presença na concentração, o índio seja ele da Amazônia, seja de onde ele for,
se se concentrar de um para outro, ele vê que o que tem por trás e o que tem na
frente daquele índio é o mesmo índio que nem ele é. Então, ele é aceito assim,
através… quando ele canta um canto, vários, vinte Xavante cantando… aí, vão vinte
Kariri-Xocó cantando… então, eles cantam primeiro, nós cantamos, quando eles
cantam, eles abalam nós, ele faz sentir que ali existe natureza pura, coisa firme e
quando nós cantamos faz neles também. Aí, é onde eles conseguiram nos engolir,
assim. Dessa forma, entendeu, que não é porque nós somos do Nordeste e tem uma
mistura, que nós não somos índios. (TAWANÃ)

(v) conhecer outros elementos da cultura Kariri-Xocó:

[...] porque existem muitos Kariri fora, né. Mas para poder ele estar fora, ele esteve
antes, ele teve que nascer aqui. E têm muitos Kariri-Xocó que nasceram em São
Paulo, nasceram em Rio de Janeiro, nasceram na Bahia, mas depois que ele nasceu
lá, ele teve que vir para cá. Então, nessa vida nós já sabemos: às vezes, ele veio
criança. Olha, têm casos que ele (o índio) veio criança, nasceu aqui e foi embora
para São Paulo, ele com oito anos de idade e depois na vinda para ele poder entrar,
aí o pajé não é o mesmo, o cacique não é o mesmo, aí têm algumas índias mais
velhas que estão ali para tentar lembrar. Tem algum que tem uma memória boa:
“não, o filho de fulano de tal, eu lembro quando ele entrou pequenininho e assim,
assim, assim. Então ele é Kariri-Xocó.” E quando nós nos batemos, aí nos cantos,
se você disser assim: “Eu sou Kariri-Xocó, uma Kariri-Xocó. Vamos lá puxar um
Toré, bora. Puxar um canto. Mas, existe Kariri-Xocó que não é fluente, digo assim,
não é muito de cantar e dançar. É mais de artesanato, é mais de observar, é mais
154

com as ervas. Aí, às vezes, se eu puxar cantos para tentar ver se ele é índio ou não,
às vezes ele pode até se perder. Pode cantar dois ou três, acompanhar, mas é
porque aquele Kariri, ele é mais voltado para as ervas, mas nisso eu vou sentir se é
Kariri-Xocó [...]. (TAWANÃ).

(vi) questão de sangue: nosso sangue e a nossa alma [são] indígena[s]. Pawanã
afirma que indígena é apelido. Nós somos nativos. Está na nossa alma. No sangue.
Após o inquérito étnico que aos presentes pareceu ser negativo, Kayrrá, Wiryçar e
Tawy se reuniram com alguns Pataxó e Fulni-ô para apresentarem o Toré ao público formado
por todas aquelas etnias indígenas participantes do Festival e pelos não indígenas
(profissionais da mídia e pessoas interessadas nas compras dos artesanatos e das
apresentações indígenas). Vale lembrar que neste momento três grupos indígenas do
Nordeste, respectivamente dos estados de Alagoas, da Bahia e de Pernambucano, se
agruparam para apresentação do Toré que “vem promovendo o referencial da autoctonia
nordestina” (GRÜNEWALD, s/d, p. 44). É relevante pensar a importância deste festival em
relação ao que o encontro interétnico pode gerar, no caso específico: (i) a interação entre
Kariri-Xocó, Fulni-ô e Pataxó, viabilizada pelo Toré, possibilitou a esses índios sinalizarem e
comunicarem aos espectadores um marcador da diferença étnico-cultural entre índios do
Nordeste e o “homem branco”; (ii) a afirmação da indianidade aos indígenas das demais
regiões do país que participavam do Festival e que, porventura, podem vir a questionar a
identidade dos “índios do Nordeste”. Levanto esta última proposição baseada no relato de
Tawanã que afirma que há décadas, os índios do Nordeste não eram aceitos pelos demais
índios, por conta do próprio índio ver que nós já tínhamos uma diferença”. Ao se referir ao
termo “diferença”, Tawanã correlaciona à ideia de “mistura” atribuída aos índios do Nordeste
(OLIVEIRA, 1998). Assim, segundo Tawanã: a pessoa é uma loira, né, mas é uma loira que
tem a mistura com um negro e índio. Aí, é onde o índio canta, dança que desperta aquilo [na
pessoa que tem sangue indígena].
Os Kariri-Xocó elaboram discursos de afirmação étnica como este proferido por
Tawanã, uma vez que na aldeia em que vivem há índios de cabelos lisos e/ou enrolados, de
pele clara e/ou escura, resultantes dos casamentos interétnicos com não índios. Essa “mistura”
motiva a construção de estereótipos e preconceitos produzidos por cabeças secas, entre eles,
posseiros e fazendeiros que estão envolvidos na disputa territorial Kariri-Xocó. Segundo os
Kariri-Xocó, esses cabeças secas questionam a condição étnica Kariri-Xocó, sobretudo, por
considerarem que os mesmos estão “integrados à sociedade”. Assim, conforme afirmou um
homem Kariri-Xocó: [...] estamos com essa luta na justiça onde os posseiros aqui no
município alegam que nós não somos indígenas.
155

Por fim, para finalizar este capítulo, é relevante fazer um breve comentário a respeito
de mais uma situação etnográfica que apresenta como materiais culturais emergem quando
duas etnias indígenas se encontram. Durante o Festival de Cultura Indígena, Tamikuã sentiu-
se mal fisicamente, por conta disso, seu primo Pacari Pataxó entoou: eu canto é para Tupã.
Para Tupã me ajudar. Nesse momento, Kayrrá começou a cantar com Pacari, além de ter
dado um assopro nos dois ouvidos de Tamikuã. Em seguida, Quati juntou-se a eles e deu a
Tamikuã um pouco de Mescla. Tamikuã, por sua vez, acendeu seu timbeiro e soprou sobre
seu corpo a fumaça do cachimbo, como forma de se benzer. Por meio desse conjunto de ações
em que cada indígena acionou suas formas de cura, Tamikuã dirigiu-se a mim e falou: você
acredita que melhorou?
A variação cultural entre diferentes grupos indígenas nas práticas de cura convergem
em um resultado comum observado na própria expressão de bem estar da paciente indígena.
CAPÍTULO 4 – TERRITÓRIO DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL KARIRI-XOCÓ

Para os Kariri-Xocó, a vida nativa se desenvolve em um território circular associado


ao ciclo solar: o sol nasce e se põe na terra da gente, porque o sol tem que fazer esse círculo.
[...]. Então, onde o sol nasce e se põe é um horizonte completo, nossa terra tradicional,
afirmou Nhenety que desenhou e intitulou o mapa acima88:

Terra Indígena Tradicional, porque essa é a demarcação dos antepassados. Nossa


terra indígena, ela não é delimitada com a cerca, com légua de terra, não. Nossa
terra ela é completa. Ela é um horizonte em círculo, com o rio São Francisco no
centro, formando o nosso mundo.

Conforme Nhenety: o mundo tribal é a Terra Indígena. Os Kariri-Xocó utilizam os


recursos ambientais desse território para a manutenção da vida: fazem uso da água do rio São
Francisco para beberem e tomarem banho; para pescarem e navegarem; para se refrescarem
do calor e para as crianças brincarem. Das lagoas extraem o barro para a cerâmica e pescam.
A terra arável possibilita o roçado e os alimentos. A mata fornece plantas medicinais e paus
de madeiras para a construção. Determinados locais do território indígena são considerados
sagrados, como a mata do Ouricuri. Outros servem como local de habitação indígena,
88
Solicitei a Nhenety que fizesse o respectivo desenho. A reprodução é autorizada, desde que citada a fonte
bibliográfica.
157

sobretudo, na aldeia que se encontra em um círculo central imaginário em frente ao rio São
Francisco, na metade sul da Terra Indígena Kariri-Xocó, correspondendo ao Estado de
Alagoas. Os limites da Terra Indígena Kariri-Xocó são considerados indissociáveis da
natureza:

O limite é onde o céu se encontra com a terra, onde o céu se encontra com o rio,
onde o céu se encontra com as serras, com os morros e o sol nasce e se põe nesse
horizonte. [...]. Antigamente, esse mundo aqui, ele era coberto de florestas,
pequenos rios. (NHENETY).

Os marcos territoriais da ocupação tradicional Kariri-Xocó atingem os Estados de


Alagoas e de Sergipe. Os limites do lado sergipano são: o Morro Jundiaí, local em que o sol
se põe e a Serra da Tabanga. Os limites do lado alagoano são: o Morro Itiúba, em que nasce o
sol, a Serra da Apreaca e Serra da Maraba. Nesse território indígena encontra-se o Morro Alto
do Bode, antigo local de realização do Ouricuri Kariri-Xocó. Mais do que um relevo
geográfico, é extremamente importante para os Kariri-Xocó que atribuem a ele um enorme
simbolismo, tanto no sentido espiritual, como no sentido de resistência étnica. Durante
séculos, os Kariri-Xocó moraram nesse local e realizaram o Ouricuri nesse Morro. Como
afirma Nhenety: é nesse morro aqui que era nossa antiga taba [o Ouricuri]. [...]. Aqui era a
nossa aldeia tradicional. Com a chegada dos jesuítas, retiraram os indígenas dessa área,
sendo aldeados em outra localidade. Enquanto estiveram tutelados pela ordem religiosa,
houve por parte dos párocos, uma tentativa de acabar com o ritual, no entanto, os Kariri-Xocó
se mobilizaram internamente para que o mesmo permanecesse. Assim, como os próprios
indígenas afirmam, continuaram a realizar o ritual às escondidas no Morro Alto do Bode.
Os Kariri-Xocó estabeleceram múltiplas formas de utilização dos recursos ambientais
do território tradicional. Conforme Alfredo Wagner Berno de Almeida existem “diferentes
modalidades de apropriação dos recursos naturais que caracterizam as chamadas terras
tradicionalmente ocupadas” (2012, p. 379). Ainda podemos acrescentar uma grande
diversidade de apropriação extrativista e agrícola entre os Kariri-Xocó no uso desse território
de ocupação tradicional. De acordo com Nhenety:

O território indígena, ele não tem todas as coisas em um só lugar. Por causa da
diversidade do ambiente, têm certos lugares que nascem um tipo de planta, outros
[lugares] não nascem. Por isso que a gente ocupava toda essa região [para] tirar o
que a gente necessitava. Nossa cultura. Seja semente, seja mel, seja barro.
158

O território de ocupação tradicional Kariri-Xocó pode ser delimitado pelo


levantamento de topônimos, “por meio dos quais seus membros designam os lugares de caça,
coleta, agricultura e extrativismo, segundo o tipo de meio ambiente e os nichos ecológicos
que formam seus ecossistemas” (O’DWYER, 2012, p. 322). Estes, por sua vez, são
referências culturais, como afirmou Nhenety:

[...]. Porque, quem define a cultura, um dos elementos fortes para definir uma
cultura é o meio ambiente. Um povo que mora na beira do rio, ele tem
características pesqueiras. Tem características também pelo ecossistema, pela Mata
Atlântica, pela Caatinga. Ele vai usar elementos para a cultura, provenientes da
fauna, da flora, que tem nesses ecossistemas.

Deste modo, segundo Nhenety, o território indígena Kariri-Xocó seria composto pelos
biomas Mata Atlântica (no estado de Alagoas) e a Caatinga (no estado de Sergipe), sendo as
denominadas “referências culturais” indígenas desenvolvidas de acordo com a fauna e a flora
de cada um desses biomas. No plano da aldeia Kariri-Xocó, o território de ocupação
tradicional abrange esses dois estados nordestinos, apresentarei a seguir as áreas extrativistas
localizadas ao Sul, no estado de Alagoas, as quais foram expropriadas pelos brancos:
Serra da Maraba: os Kariri-Xocó extraíam tauá (argila branca);
Serra da Apreaca: retirada da fibra de Embira;
Morro Vermelho: remoção da pedra vermelha utilizada para pintura;
Várzea de Itiúba: plantação de arroz. Essa área é atualmente ocupada pela Companhia
de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF). Aliás, as três várzeas (Itiúba,
Propriá e Telha) destacadas na representação gráfica do plano da aldeia são de propriedades
da administração da CODEVASF. Ao trafegar-se pela BR 101 são vistas placas sinalizadoras
das propriedades da Companhia. Até o final de 1970 inúmeros Kariri-Xocó se empregaram
como mão de obra nessas várzeas, atualmente não trabalham mais nesse tipo de atividade
agrícola.
As lagoas estão por toda parte do território indígena: Lagoa Grande localiza-se entre a
aldeia e a cidade, mas apenas em época de chuva é formada pelo alto índice pluviométrico.
Nesse local, os não indígenas têm um projeto de construção de condomínios;
Lagoa do Coité, Lagoa do Capim e Lagoa do Barro eram utilizadas para a retirada do
barro: fazer nossa cerâmica. Além do barro, antigamente, a gente pescava nelas, afirmou
Nhenety.
Determinados acidentes naturais, sobretudo, os rios são empregados como pontos
limítrofes do território tradicional indígena: rio Boacica, limite sul e o rio Apreaca, limite
159

norte. Segundo Nhenety, o rio Boacica é um divisor de marco: ele era um dos marcos da
gente, do lado sul. Descendo o rio, ele é o marco aonde ia o nosso horizonte. Na região desse
rio, bem como na dos rios Maraba e Itiúba existiam as fazendas dos jesuítas, afirmou
Nhenety, consideradas partes do território de ocupação tradicional Kariri-Xocó.
Do lado norte de Sergipe:
Serra da Tabanga: os Kariri-Xocó realizavam atividades pesqueiras, sendo utilizados o
puçá e o caniço. Entende-se por puçá, “também conhecido como gererê, coador ou sarrico,
um petrecho de pesca confeccionado com rede e ensacador, instalado em uma armação em
forma de aro” (ICMBIO, s/d). 89
Por caniço compreende-se uma espécie de vegetação que
cresce à beira das lagoas. Os peixes ali se concentram e os indígenas utilizam redes para
pescá-los (HOHENTHAL, 1960);
Pindoba, local de extração da palha de palmeira Ouricuri e da timbira (fibra) para fazer
cordas;
Várzea de Propriá e Várzea da Telha: atividade pesqueira e agriculta de arrozal. A
pesca era para a subsistência indígena, enquanto o arroz era plantado, segundo dizem, visando
o lucro do cabeça seca. Lembremos que essas várzeas estão sob o domínio da CODEVASF.
Nhenety, ao discorrer sobre o território de ocupação tradicional Kariri-Xocó, emprega
a concepção horizonte cultural:
Horizonte cultural é o círculo onde estão mencionados todos os elementos da nossa
cultura, literalmente. O sol, a lua, as estrelas, o rio, a dimensão da terra. Esse horizonte é um
horizonte cultural de um povo indígena.
A forma indígena de pensar, perceber e viver nesse território é diferente da do não
indígena que também ocupa esse espaço. Desse modo, conflitos interétnicos são criados pelos
distintos atores sociais, uma vez que desenvolvem práticas socioculturais próprias e
atribuições de significados territoriais díspares imersos em relações de poder. Assim, para os
Kariri-Xocó, o território é um local de origem, ou seja, de nascimento, vida e morte dos seus
antepassados, portanto, um território histórico e afetivo. É nesse território ou em partes dele
que a vida indígena transcorre no presente etnográfico e que será o chão da vida das futuras
gerações. Nesse território, os Kariri-Xocó desenvolvem suas tradições. Conforme Nhenety:

Na linguagem Kariri, cultura para a gente, a gente chama nhenety que significa
tradição, tradições. Nhenety quer dizer as tradições. Já na linguagem Xocó, os Xocó

89
Informações disponíveis no site do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO):
http://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/artes_de_pesca/artesanal/armadilha/puca.pdf, acessa do em 05
de fevereiro de 2018.
160

também, eles foram falando na língua geral, na língua Tupi. Na linguagem deles é
tekoa, lugar sagrado, terras tradicionais de nossa cultura, de nosso povo.

Desse modo, temos três palavras-chave imbricadas entre si: território, cultura e
tradição. O território é o espaço do fazer cultural, isto é, de produzir as tradições Kariri-Xocó,
que são conforme Nhenety: caçar, pescar, coletar; e igualmente fazer seus rituais. Os rituais
do Ouricuri, como disse, a gente pratica sempre nessas terras, assim como o Toré e o canto
da Jurema. Na visão dos Kariri-Xocó, os ocupantes não indígenas que estão no território de
ocupação tradicional Kariri-Xocó visam tal espaço para atividades de lazer mediante a
construção de chácaras com piscinas, churrasqueiras, campo de futebol e baias para animais;
assim acabam igualmente promovendo a destruição do meio ambiente com o desmatamento
da mata para criarem fazendas com pastagens para o gado e visando a obtenção do lucro com
as plantações de arroz e empreendimentos imobiliários, a exemplo do projeto de construção
de um condomínio em área indígena. Por conseguinte, é neste sentido que apontam a
existência de dois horizontes culturais: o indígena e o não indígena que divergem sobre as
maneiras de pensar e utilizar o território. Por serem visões distintas e antagônicas pelo fato
dos não indígenas permanecerem em um espaço oficialmente demarcado pela União (isto é,
pela Funai e pelo Executivo brasileiro), este território passa a ser uma área de conflito
interétnico.
São consideradas igualmente território tradicional Kariri-Xocó, áreas ocupadas por
não indígenas que vivem na cidade de Porto Real do Colégio e nos povoados dos municípios
de Porto Real do Colégio e de São Brás. Conforme Nhenety, a origem desses povoados é
indígena:

Nasceram do povo indígena. A primeira aglomeração humana era a aldeia


indígena. Aí, depois da aldeia indígena tradicional que não tinha branco, só era
índio que morava. Aí quando vieram os jesuítas, aí reuniram várias etnias
indígenas: Kariri, Karapotó, Aconã e outros grupos. Dentro desse projeto de
aldeamento jesuítico, claro, vieram portugueses, vieram negros para trabalhar
aqui, fizeram engenho de cana e tal. E esse aldeamento, ele passou a ter cruzamento
de indígena com branco (português) e com negro. E aí esses brancos foram fazendo
propriedade e foram dando origem junto com os índios, com o cruzamento de
indígena, foram nascendo vários povoados em Colégio.

Assim, alguns desses povoados recebem nomeações indígenas: Tibiri, Itiúba, Girau de
Itiúba, sendo que girau significa pequeno armário de vara; Tapera, cujo significado é aldeia
abandonada; Tucuns que significa Palmeira, uma fibra forte e a linha dela servia para fazer
linha de pescar; Angico que é uma árvore que a gente tem no Ouricuri; Sucupira; Maraba e
Apriaca. Cabe dizer que esses povoados estão dentro do horizonte circular dos Kariri-Xocó,
161

portanto, no território desses índios. Conforme os próprios indígenas, o território de ocupação


tradicional Kariri-Xocó deveria ser delimitado em 7.220 hectares; no entanto, sua demarcação
oficial é de 4.419 hectares, tendo sido perdido todo o lado sergipano. Como afirma Nhenety:
este lado sergipano é um passado remoto invisível para o Estado. As áreas deixadas de fora
da demarcação oficial são:
(i) cidade de Porto Real do Colégio. Conforme Pawanã: na verdade, toda a cidade
é, era nossa, né, a cidade todinha, né, mas foi tirada a cidade quando fizeram
a demarcação deixaram a cidade, tiraram;
(ii) a parte em que se localiza o Projeto Itiúba da CODEVASF (Alagoas);
(iii) a beirada do povoado Carnaíba (Alagoas);
(iv) povoados de Tapera e Lagoa Funda, localizados no município de Porto Real do
Colégio;
(v) povoados Sampaio e Tibiri, situados no município de São Brás (Alagoas);90
(vi) Pedra do Castro (Alagoas);
(vii) Serra da Tabanga (Sergipe);
(viii) Pindoba (Sergipe);
(ix) Várzea de Propriá (Sergipe);
(x) Várzea da Telha (Sergipe);
(xi) Morro do Urubu (Sergipe);
(xii) Morro Vermelho, Serra da Apreaca, Serra da Maraba e Morro Jundiaí
(Alagoas).
Para referir-se às áreas perdidas e às reivindicadas como território de ocupação
tradicional, Nhenety emprega as definições: território antigo e território novo de retomadas
mais recentes (1980). O antigo corresponde à ocupação territorial dos antepassados indígenas,
ou seja, os 7.220 hectares. Entretanto, conforme Tawanã, esse território era ainda muito mais
amplo:

Nós tínhamos o quê: uma terra inteira. [Por] que se nós olharmos aqui dá 150,
mais ou menos, 150 mil hectares de terra na história dos mais velhos, de um falando
para o outro. Pelo que eles contam, o índio naquela época marcava subindo em um
morro, determinava com a sua visão. Assim, desse morro para aquele outro, para
aquela árvore, para aquele rio é do povo Kariri. Então, quando outra aldeia vinha,
que chegava aqui nessa região já sabia que tinha marcas Kariri. Então, respeitava.
Através de tanques escavados, através de pinturas e através até de canto de
comunicação com eles que sabia que: “não, daqui para cá é o povo Kariri que

90
Conforme Nhenety: as terras nas imediações e ao redor de Lagoa Funda, [dos Povoados] Sampaio, Itiúba,
Tibiri, São Caetano, a periferia norte de Porto Real do Colégio e sul do município de São Brás permaneceram
na demarcação da Terra Indígena Kariri-Xocó. Porém, ainda não foi homologada.
162

habita. Então, nós não podemos. Pode até ir visitar, mas isso aqui a gente não pode
avançar como nosso. Então, daqui para cá é do povo Tingui. Daqui para lá é do
povo Vassu.”

Desse modo, como afirma Bourdieu (1989, p. 114): “ninguém hoje poderia sustentar
que existem critérios capazes de fundamentar classificações <<naturais>> em regiões
<<naturais>>, separadas por fronteiras <<naturais>>”. As delimitações territoriais são
resultantes das ações humanas e, no caso, de demarcação das terras indígenas há interesses
políticos e econômicos envolvidos que se opõem ao reconhecimento desse direito
constitucional. Assim, o antigo território Kariri-Xocó foi drasticamente reduzido e o
denominado território novo equivale a área delimitada em 4.419 hectares, insuficientes para a
reprodução das antigas atividades agrícolas, extrativas e produção da cerâmica. Até esse
espaço já delimitado, como permanece ocupado por não indígenas, os Kariri-Xocó afirmam
que estão sob posse efetiva de apenas 600 hectares de terra. Por isso, dizem que decidiram se
mobilizar para retomar as áreas do território tradicional ocupadas pelos não índios.

4.1 Conflitos territoriais e retomadas das áreas de ocupação tradicional

Os conflitos territoriais ocorridos nas áreas de ocupação tradicional Kariri-Xocó estão


envolvidos em processos sócio-históricos, políticos e econômicos iniciados no período do
Brasil Colônia com a presença missionária no Baixo São Francisco, cujos objetivos eram: a
evangelização indígena, a ocupação territorial e a criação de gado (LIMA, 2006; MATA,
2014). Conforme Nhenety, anterior à chegada dos jesuítas, os Kariri-Xocó viviam na Colina
Alto do Bode considerada, segundo os próprios nativos, a aldeia original dessa população;
todavia, os religiosos removeram os indígenas dessa localidade e os aldearam no entorno de
uma capela, atualmente, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (LIMA, 2006, p. 16). Nesse
período ainda não havia sido fundado Porto Real do Colégio. O topônimo era Urubumirim,
uma fazenda doada ao Colégio Jesuíta do Recife (LIMA, 2006; MATA, 2014). Essa
propriedade tornou-se o local do aldeamento indígena que ficou conhecido como Aldeia de
Nossa Senhora da Conceição. Os jesuítas foram expulsos dessa região e o Diretório dos
Índios (1910) assume a política nacional voltada aos povos indígenas. Nesse período, as terras
que faziam parte do território tradicionalmente ocupado pelos Kariri-Xocó foram arrendadas
pelos colonos; posteriormente, com a extinção da Diretoria dos Índios e a crescente ocupação
por não indígenas da área tradicional Kariri-Xocó, forçou a ida desse povo para espaços
urbanos, mais especificamente, as “casas das ruas” da Vila de Porto Real do Colégio,
163

sobretudo, na Rua dos Índios ou Rua dos Caboclos, como também já foi chamada. Entretanto,
alguns Kariri-Xocó conseguiram retornar à antiga aldeia no Alto do Bode. 91
Figura 12 - A seta indica a localização da Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Porto Real do Colégio

Fonte: Google Earth 2017.

Em 1944, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) criou o Posto Indígena Padre Alfredo
Dâmaso que agrupava os Kariri-Xocó dispersos em um só logradouro: a Rua dos Índios.
Segundo Nhenety: “o agente do S.P.I recomendou que todos os índios espalhados na cidade
em anos anteriores fossem agrupados”92 nessa área urbana. No entanto, conforme relatos, na
aldeia da Rua dos Índios tutelada pelo SPI não havia terra suficiente para plantar. Além disso,
era muito ruim. Era no meio do branco. Nós não nos acostumávamos. Muito ruim, a gente
vivia imprensado. Imprensado na rua dos brancos, misturados com os brancos. [...]. Era
muito humilhada ali, afirmou Maria do Carmo Kariri-Xocó.
O problema fundiário e do contato com os nãos indígenas mobilizou os Kariri-Xocó
para a retomada de suas terras. Conforme Nhenety: [quando] nós vivíamos na cidade, nós não
tínhamos terra [vivíamos] numa periferia de rua. Então, nós retomamos a Sementeira,

91
Informações disponíveis no blog “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 29 de setembro de 2017.
92
Informação disponível no blog “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 29 de setembro de 2017.
164

porque nós estávamos precisando da terra. Nós temos que viver nossa cultura separada do
branco. Ao morarem na cidade ocorreram conflitos entre índios e não índios, inclusive, com
episódio de violência e interdição policial do Toré. Conforme José Nunes de Oliveira (2000):
“[...] Os brancos da cidade, principalmente a polícia perseguia os indígenas, proibindo de
dançar o Toré na rua em que moravam. [...]” (p. 286).
Ao se referirem ao processo de retomada do território de ocupação tradicional, os
Kariri-Xocó empregam o termo terras (no plural). Conforme o índio Ivanildo: os Kariri-Xocó
conseguem suas terras aos poucos. O mesmo é dito por Pawanã: essa aldeia aqui, ela tem
uma história muito interessante, né. Que as terras, as nossas terras todas foram tomadas,
tudo retomado, retomamos tudo de pedaço, até hoje, até hoje ela só foi retomada de
pedacinho. Assim, o uso do plural para o substantivo terra indica que os Kariri-Xocó tiveram
seu território fragmentado em processo de territorialização de longa duração, no qual áreas
específicas foram brutalmente ocupadas por forças de interesses externos, como as missões
religiosas responsáveis pela criação dos aldeamentos indígenas; ações político-
desenvolvimentistas voltadas para atender interesses econômicos, a exemplo dos projetos de
irrigação do Baixo São Francisco; políticas de incentivo agrícolas em benefícios de arroz para
plantação de arroz e criação de gado. Contemporaneamente, e apesar do território Kariri-Xocó
ser oficialmente demarcado, há uma concentração permanente de ocupantes não indígenas
nesse espaço territorial. Simultaneamente, em forma de protesto, alguns Kariri-Xocó vestem
uma camiseta com a frase estampada: “Na luta pela retomada das terras aldeia Kariri-Xocó”.
O emprego da frase “retomada das terras” aponta para um processo de territorialização em
que os Kariri-Xocó se organizam internamente de inúmeras formas: (i) etnicamente, no
sentido de comunicarem uma distintividade cultural (Toré, Ouricuri, pintura corporal e
artesanato); (ii) politicamente, pois criam mecanismos próprios para tomadas de decisões e de
representações (OLIVEIRA, 1998, p. 56); (iii) ritualmente em que o Ouricuri será sempre
consultado para as ações da sublevação indígena perante o Estado brasileiro; (iv) e na
tentativa de um controle sobre o território, tanto no sentido de expulsarem os ocupantes não
indígenas, como no sentido de preservação ambiental dos espaços relevantes para o modo de
vida Kariri-Xocó, como o Ouricuri, o rio São Francisco e as áreas de plantio. Essas
características elencadas no processo de territorialização Kariri-Xocó são inspiradas em João
Pacheco de Oliveira que assim define o próprio termo:

O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente, o


movimento pelo qual um objeto político-administrativo – nas colônias francesas
seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as
165

“comunidades indígenas” – vem a se transformar em uma coletividade organizada,


formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e
de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que os
relacionam ao meio ambiente e com o universo religioso). (OLIVEIRA, 1998, p.
56).

As terras já retomadas são: Colônia, Sementeira, Cercado Grande, Fazenda Três


Amores, Fazenda e Menina do Rio.93 No entanto, dizer que foram retomadas não implica que
todas essas terras sofreram ações legais de reintegração de posse favoráveis aos Kariri-Xocó.
Dessas áreas retomadas, apenas a Colônia, a Sementeira e o Cercado Grande estão livres da
ocupação não indígena. Enquanto que as demais terras se encontram em processos judiciais,
isto é, os fazendeiros e/ou posseiros têm acionado a justiça para que a mesma impeça a
desintrusão das áreas que compõem o território indígena. As retomadas podem ser pensadas e
explicadas como parte do processo de territorialização. Mais uma vez, recorro à definição
conceitual de Oliveira (1998, p. 54):

Como argumentei anteriormente (Oliveira 1993), “a atribuição a uma sociedade de


uma base territorial fixa [a aldeia] se constitui em um ponto-chave para apreensão
das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento de
suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”. Nesse sentido, a
noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que
implica: 1). a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento
de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismo políticos
especializados; 3) a redefinição do controle sobre os recursos ambientais; 4) a
reelaboração da cultura e da relação com o passado.

A primeira retomada se deu à época do extinto Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso,
em que os Kariri-Xocó na década de 40 (1947-1948) reivindicaram ao órgão indigenista um
pedaço de terra que viria a ser conhecido como Colônia, localizada no perímetro da Fazenda
Modelo ou Sementeira. Cabe dizer que essa fazenda foi formada sobre o território de
ocupação tradicional Kariri-Xocó. Assim, a segunda retomada indígena foi a da Sementeira,
local onde foi instalado o Campo Experimental das Sementes (MATA, 2014, p. 87-88), sob a
égide do Ministério da Agricultura. Aliás, a viabilidade da Colônia (uma pequena área de terra
de 50 hectares a ser disponibilizado pelo Estado brasileiro) foi mediada pelo chefe do posto
indígena que contatou o agrônomo responsável pelo tal Campo de Sementes94.
Conforme consta no relatório do SPI, Posto Indígena de Alfabetização e Tratamento
Padre Alfredo Dâmaso, 31 de janeiro de 1944:
Em 1924 o sr. Costa Rêgo, governo do Estado, mandou lotear e separar 500 hectares
de terras para um Campo de Experimentação Agrícola (o qual estão hoje sobre

93
Além do termo retomada, ouvi a palavra reconquista. Porém, o primeiro vocábulo é mais recorrente.
94
Ver M. A. Serviço de Proteção aos Índios. Relatório do Posto Indígena Padre Alfrêdo Dâmaso, referente ao
ano de 1948.
166

jurisdição do Mº da Agricultura), e o restante dos lotes para serem vendidos. Os


terrenos atualmente se encontram nas seguintes condições: a) parte ainda sob o
domínio da Fazenda Estadual; b) parte ocupada pelo Campo de Sementes; c) parte
que algumas pessoas requereram, tendo uns concluído os pagamentos das quotas
outros não.

Portanto, do ponto de vista dos Kariri-Xocó, o poder executivo de Alagoas usurpou


parte do território de ocupação tradicional. A política desenvolvimentista brasileira para a
região do Vale do São Francisco incide sobre as populações ribeirinhas e indígenas. Estava em
curso um megaprojeto hidrelétrico com a construção da barragem de Sobradinho, a Usina de
Três Marias, Paulo Afonso II, III e IV que alterariam o curso do rio São Francisco, as áreas de
inundações sazonais e, consequentemente, o modo de produção agrícola e de pesca dos
habitantes do Velho Chico (IPEA, 1992; MATA, 2014). Assim, existiram diversos agravantes
com as construções das hidrelétricas: determinadas áreas foram submergidas pelas águas,
enquanto outras deixaram de ser naturalmente inundadas pelas vazões do rio São Francisco.
Desse modo, houve uma desapropriação territorial em que seres humanos tiveram que deixar
suas terras e se deslocaram para regiões livres das inundações provocadas pelo homem;
enquanto outras áreas precisaram ser desapropriadas para a implantação do II Plano Nacional
de Desenvolvimento que visou a aplicação de projetos de irrigação no Baixo São Francisco
(MATA, 2014). Esses planos de irrigação estiveram sob a supervisão política da CODEVASF
“criada pelo Decreto-Lei 6088, de 16.07.74, com o propósito de dar prosseguimento ao
trabalho de promoção do desenvolvimento sócio-econômico do Vale do São Francisco”
(IPEA, julho de 1992, nota de rodapé 1)95. Cabe dizer que o surgimento do II Plano Nacional
do Desenvolvimento foi uma condição imposta pelo Banco Mundial que exigiu do governo
brasileiro uma compensação dos danos provocados pela política desenvolvimentista no Vale
do São Francisco a partir da construção de hidrelétricas (MATA, 2014). Pode-se questionar
sobre a execução dessa política, que atores sociais são de fato priorizados, já que o resultado
dela levou a maior concentração de terras e expropriação das áreas indígenas e de populações
ribeirinhas, além do disciplinamento dos Kariri-Xocó como parceleiros e/ou colonos da
CODEVASF.
No II Plano Nacional do Desenvolvimento é posto em prática o Projeto das Várzeas
Inundáveis e o Projeto Itiúba, ambos abrangendo a localidade de Porto Real do Colégio
(MATA, 2014). Como dito anteriormente, esses projetos visavam uma política de irrigação
geradora de uma reformulação fundiária do Baixo São Francisco por meio de desapropriações

95
Projetos de Irrigação no Vale do Baixo São Francisco, produzido por José Ancelmo de Góis, Maria de Fátima
Araújo Paiva e Sônia Maria Goes Tavares, julho de 1992. Disponível em
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2517/1/TD%20268.pdf, acessado em 21 de outubro de 2017.
167

de terras e distribuição de lotes aos pequenos e médios produtores, conhecidos como


parceleiros, entre eles, os Kariri-Xocó (ibidem, p. 202-233). Essa política econômica
implantada pelo Estado brasileiro é criticada pelos Kariri-Xocó e por segmentos da população
local que não enxergam muitas vantagens na forma como os projetos de irrigação são
desenvolvidos e na relação estabelecida entre os parceleiros e as cooperativas participantes
dos projetos das várzeas inundáveis. Os parceleiros “[...] tem de pagar à cooperativa por
adiantamentos, assistência técnica, compra de sementes e a de adubo [...], sendo a
cooperativa, o proprietário para quem tem de entregar parte e às vezes, toda a sua produção”
(ibidem, p. 225). Em relação aos Kariri-Xocó que eram parceleiros, Mata considera que havia
um “forte preconceito contra o trabalhador índio” (ibidem, p. 228) que eram vistos pelos não
indígenas, como “preguiçosos”, inaptos à agricultura, “ladrões” e “não obedece[m] [o]
horário” das horas trabalhistas, uma vez que não abdicavam de suas idas ao Ouricuri, mesmo
que para isso faltassem ao trabalho (MATA, loc.cit).
Vale destacar, conforme publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), “antes da implantação dos projetos [de irrigação], encontravam-se no Baixo São
Francisco as comunidades indígenas dos Xocó, Kariri, Karapotó, Tinqui-Botó, Gerinpancó,
Fulni-ô, Xucuru, Kapinawá e Kambiwá” (1992, p. 9). Em relação ao II Plano Nacional de
Desenvolvimento, os Kariri-Xocó sentiriam fortemente o impacto dessa política, uma vez que
a CODEVASF implantaria na área da Sementeira um projeto agropecuário, posteriormente
sucedido pela piscicultura (MATA, 2014, p. 247).
Figura 13 – Rua dos Índios identificada com a seta. Fonte: Google Earth 2017.
168

4.2 A Retomada da Sementeira

Na segunda metade da década de 1970 houve uma mobilização e articulação indígena


para a retomada dessa área em questão denominada Sementeira. Retomada é uma categoria
recorrentemente usada pelos Kariri-Xocó para significar as ações de recuperação do território
de ocupação tradicional. Segundo Valdete Kariri-Xocó: nós estamos retomando o que é
nosso. Conforme o índio Manuel Santos: nós não tomamos nada de ninguém. Nós entramos
numa área que é nossa. Agora como foi ocupada muito tempo, muitos anos pelo branco, [...]
aí ficou o branco usando. Em conformidade, Josete Kariri-Xocó afirma que o sentido da
retomada: é pegar o território tradicional.
À época de sua pesquisa de doutorado, Mata (2014) afirma que os Kariri-Xocó “se
referem ao movimento de ocupação das terras como “entrada”. [...], o grupo “entrou” na
Sementeira” ” (nota de rodapé 15, p. 254). Portanto, deve-se considerar uma mudança lexical
diretamente atrelada ao uso político dos termos. O emprego da palavra retomada é um
contraponto argumentativo indígena às alegações dos cabeças secas (fazendeiros, posseiros e
seus representantes legais - advogados) que consideram os Kariri-Xocó não donos dessas
terras por alegarem que os mesmos não podem ser definidos como índios por serem
“integrados à sociedade nacional”. Em contrapartida, o termo retomada enfatiza a auto-
identificação indígena e as ações de recuperação do território de ocupação tradicional, como
diriam os Kariri-Xocó: o que é nosso, desde o princípio, muito antes da chegada dos
portugueses ao Brasil. Por conseguinte, o emprego do termo retomada é um recurso jurídico
Kariri-Xocó na tentativa de atestar e garantir o direito originário. 96
Um dos marcos da história dos Kariri-Xocó é a data de 1978, ano da retomada da
Fazenda Modelo, denominada pelos Kariri-Xocó como Sementeira. Uma retomada de terra
exige planejamento, estratégia e cumprimento ritual.97 Desse modo, previamente à
reconquista da terra, os Kariri-Xocó se concentraram no Ouricuri por ser um espaço secreto,
longe dos olhares e dos ouvidos do não indígena, além de sagrado, onde os Kariri-Xocó se
conectam com os seres espirituais. Segundo Pacoá, um dos Kariri-Xocó que participou dessa

96
Jane Beltrão e Assis Oliveira (2011) ao debaterem sobre as “dificuldades de superar sistemáticas violações aos
Direitos Humanos relativas aos povos etnicamente diferenciados” (p. 57), remetem ao conceito de Geertz das
“sensibilidade(s) jurídica(s) como noções sobre o que é, “exatamente”, justiça e sobre as maneiras como ela deve
e pode ser exercida, para discutir os modelos de autonomia e de embate político entre os povos indígenas e as
populações afrodescendentes na América Latina” (ibidem, p. 59). Ainda segundos os autores, “as
sensibilidade(s) jurídica(s) traduzem conceito de justiça específico, um sentido de Direito particular a cada
cultura, variando conforme o saber local” (op.cit.; p. 59). A partir de uma lógica indígena do Direito pode-se
considerar que as retomadas Kariri-Xocó são formas próprias de pensar e de fazer justiça.
97
Ver Mata, Vera Lucia Calheiros (2014, p. 257).
169

retomada, entrevistado durante o meu trabalho de campo, o Ouricuri é o local mais seguro
para decisões políticas:

Reunião para resolver o problema que está acontecendo de errado para nós. O
branco está entrando muito na nossa área. E lá nós decidimos o que deve fazer. Lá é
o local mais ideal e mais seguro para nós. [...]. Lá é o único local que a gente faz
essa reunião e o branco não participa.

Para a retomada da Sementeira, segundo Pacoá: para nós agirmos foram várias
reuniões, porém, nem todos os Kariri-Xocó apoiaram a ação reivindicatória:

Pode botar ao público aí. Não foi pajé e cacique, não. Foi a comunidade
[indígena]. A comunidade [indígena], os grupos, a comunidade [indígena]. Se fosse
por pajé e cacique, nós não estaríamos aqui. [...]. Quando nós entramos aqui [na
Sementeira], eles estavam fora do mesmo jeito. [...]. A única coisa que eles
andaram, luta junto comigo, que eu levei foi para Brasília [...] para a
documentação. Mas para enfrentar tomada de terra... (PACOÁ).

Se a retomada da terra esteve envolvida em um conflito entre índios e não índios, a


articulação étnica para recuperar o território perdido se deu em meio a uma disputa interna e a
uma divisão de grupos: aqueles que estiveram na batalha da retomada e os que não se
envolveram diretamente na luta. As retomadas Kariri-Xocó envolvem laços de parentesco.
Nesse período, as lideranças eram o pajé Francisco Queiroz Suíra e o cacique Cícero
Daruanda. Enquanto a citação acima enfatiza a não participação do cacique e do pajé da
época, os familiares dos mesmos constroem um discurso contrário em que ressaltam a
participação dessas lideranças na retomada da Sementeira. Torna-se importante dizer que na
atualidade existe uma disputa entre a família do ex-cacique Cícero Daruanda e a família do
ex-pajé Francisco Queiroz Suíra. Assim, a sobrinha materna de Cícero Daruanda destaca o
papel do tio nessa retomada e frisa de modo afirmativo a não participação do pajé. As parentes
femininas de Cícero Daruanda, isto é, uma de suas netas e uma de suas sobrinhas maternas,
destacaram que o antigo cacique trocou as terras de São Pedro (Sergipe) pertencentes ao seu
povo Xocó, para lutar com os Kariri pela Sementeira a pedido do ex-pajé Francisco Queiroz
Suíra:

Cícero, meu filho, me faça esse pedido, me faça esse pedido, pelo leite que você
mamou no peito da sua mãe, não vamos fazer isso, não vamos voltar para Xocó.
Que nós aqui não podemos mais nos dividir. Vamos entrar na Sementeira, na
Sementeira em troca de lá de Xocó. Ele fez esse pedido a ele, a Cícero Daruanda,
porque foi na casa da minha mãe que eu vi ele fazer esse pedido.

Nadinho, filho de Daruanda, relembra de uma reunião em que ambos (pai e filho)
estiveram com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva para debaterem acerca da
170

demarcação da Terra Indígena Kariri-Xocó. Brasília é frequentemente referenciada pelos


Kariri-Xocó quando o assunto é a reivindicação de suas terras, sobretudo, a Sementeira e/ou
para a aprovação de projetos que beneficiem a aldeia. Portanto, no imaginário social desses
indígenas, o Distrito Federal é um local simbólico da negociação em torno da garantia dos
direitos dos povos originários.
Contrariando os demais discursos que afirmam que o ex-pajé Francisco Queiroz Suíra
não lutou diretamente pela retomada da Sementeira, o atual pajé Júlio Queiroz Suíra defende a
liderança de seu pai e afirma que antes da retomada houve uma ida ao Ouricuri:

Meu pai foi quem marcou a viagem [ao Ouricuri] para avisar todo mundo que ia
fazer. Ele tinha conhecimento que isso estava ao nosso critério. Que nós íamos ter o
direito, mas ninguém sabia [...]. Só tinha conhecimento meu pai e Cícero
[Daruanda] e eu. Só tínhamos nós três o conhecimento. Meu pai fez a viagem [ao
Ouricuri] com todo mundo. Quando foi lá que ele publicou, organizou e preparou
todo mundo. Já viemos direto para aqui [na Sementeira]. Essa época, eu já era
substituto do meu pai, eu já estava sendo substituto do meu pai.

4.3 Em direção à Sementeira

Conforme Mata (2014), o cacique da época havia recorrido mais de uma vez ao
Ministério do Interior, com o objetivo de reivindicar a Sementeira. Em um desses pedidos, o
Ministério e a CODEVASF acordaram a devolução de cem hectares correspondentes a “área
mais afastada do rio e formada de terras secas. Nela não estariam incluídas, por exemplo, as
lagoas, importantes para o cultivo do arroz e para a obtenção de barro” (p. 248). Desse modo,
os Kariri-Xocó recusaram essa devolutiva, uma vez que não reivindicavam qualquer pedaço
de terra, mas sim, a Sementeira integralmente (ibidem, p. 248-249). Em função da morosidade
do Ministério do Interior em solucionar a reivindição indígena, os Kariri-Xocó decidiram pela
retomada da Sementeira. Assim, ao saírem do Ouricuri, seguiram em direção ao destino
programado.98 Primeiramente, somente os homens, enquanto as mulheres esperaram na Rua
dos Índios. No momento da retomada que ocorreu às quatro horas da madrugada, os
funcionários da fazenda encontravam-se em suas camas dormindo. No entanto, conforme
Manuel Santos: a briga não era com eles, era com o proprietário. A questão não era com
eles. A terra era do proprietário. Nós não íamos atingir esse pessoal, não íamos complicar
essas pessoas. Desse modo, o embate era direcionado e o alvo era o Estado brasileiro, já que a
Sementeira estava sob posse da empresa pública CODEVASF. Ao chegarem, os Kariri-Xocó

98
Ver Mata (2014), capítulo V – De caboclo a índio – a indianidade e a reconquista da terra.
171

bateram nas portas das casas e comunicaram que estavam retomando esse pedaço de terra.
Solicitaram a saída dos funcionários. Posteriormente, no romper da aurora, as mulheres
vieram da Rua dos Índios para lutarem com os homens. Segundo a índia Valdete:

Entramos com um monte de bagagem, de trocha, balaio, cesto cheio de panela. A


gente vinha de lá [da Rua dos Índios] para cá. Aí eles saíram e nós entramos. O
chefe de posto que era Seu Santana trancado dentro do posto [indígena] irradiando
[por rádio] para os lugares todinhos [sobre] essa retomada que nós entramos na
Fazenda Modelo.

Após a retomada, as autoridades governamentais agiram frente ao ato político-


reivindicatório Kariri-Xocó. Segundo Valdete: a justiça veio e os doutores [de Maceió]
vieram tirar nós de dentro da fazenda [...]. Aí eles disseram: “vocês têm que sair daqui”. Aí
nós todos por uma boca só: “[...] nós não saímos daqui. E fiquemos, fiquemos, fiquemos. Ao
retomarem a Sementeira, os Kariri-Xocó se organizaram e proibiram a entrada de não
indígenas na área. As negociações com os doutores (isto é, a Funai, a CODEVASF e o
Ministério do Interior) foram feitas no portão de entrada da Sementeira. Conforme Pacoá: a
questão todinha foi lá. Toda a conversa de sim ou não, se fica, se não fica, se está bom, se
não está, se recebe, se não recebe foi lá. Portanto, o portão é o símbolo da negociação e da
luta indígena, em uma palavra, da reivindição Kariri-Xocó pela terra. Fora isso, o portão
representava a possibilidade de uma nova vida. Mas esse local pode ser pensado como uma
zona fronteiriça, uma vez que do portão para fora ficavam os não indígenas e do portão para
dentro os Kariri-Xocó. Conforme Pacoá: ninguém entrou aqui dentro [da Sementeira], só os
índios aqui dentro, mas outra pessoa não entrava. O portão também foi o local escolhido para
a objetivação da identidade étnica em que sinais diacríticos eram produzidos e comunicados
pelos Kariri-Xocó perante o não índio (BARTH, 2000 [1969]). Pacoá afirma:

Quando nós entramos em uma área de terra, quando nós ocupamos ela, nós
continuamos no portão, os índios todos pintados, aí quando chegava uma entidade
que vinha resolver o problema ou de mal [...] nós apresentávamos o Toré. [...]. O
Toré é uma tradição nossa. [...]. Se o branco não vier participar, hoje ou amanhã,
nós dançamos do mesmo jeito. Se ele vier, nós continuamos dançando. É a nossa
presença (é aquela).

Além do Toré, os Kariri-Xocó vendiam sua arte indígena em frente ao portão, sendo
que, segundo Pacoá: o artesanato também era nossa presença. Importante considerar que essa
presença não é somente no sentido físico, uma vez que assume uma dimensão étnica, isto é,
um grupo social com uma distintividade cultural em que o Toré e o artesanato são sinais
172

diferenciadores e relevantes para a construção da identidade Kariri-Xocó que é objetivada nas


interações sociais com os nãos indígenas.

Figura 13 – Morro Alto do Bode e Lagoa Comprida

Fonte: Google Earth 2017.

4.4 Documentos oficiais e a reivindição indígena ao território tradicional

A reivindicação Kariri-Xocó pelo direito ao território de ocupação tradicional é


composta por etapas que envolvem ações específicas dos próprios indígenas para com o
Estado brasileiro, a fim de que suas esferas administrativa e executiva cumpram de modo
efetivo os preceitos da constituição federal. A primeira ação Kariri-Xocó na luta territorial foi
munir-se de uma documentação oficial, mais especificamente, os relatórios do SPI que
registram a presença secular dos Kariri-Xocó no Baixo São Francisco. O índio Pacoá estava
ciente de que para tentar assegurar o direito Kariri-Xocó à terra, teria que lidar com papeladas
oficiais comprobatórias da presença indígena em Alagoas e que seria preciso acionar e
pressionar a esfera político-administrativa do país. Em um determinado momento de sua vida,
Pacoá teve que ir à Funai em Brasília, por motivos de saúde de sua esposa. Ao estar no
173

Distrito Federal, conheceu um índio Fulni-ô de Águas Belas que informou a Pacoá sobre a
existência de relatórios do SPI arquivados no Museu do Índio (Rio de Janeiro) e de como ele
deveria proceder em relação a isso. De volta à aldeia Kariri-Xocó, Pacoá comunicou ao pajé
Francisco Queiroz Suíra e ao cacique Cícero Daruanda sobre esses documentos. O local
escolhido para revelar a existência desses relatórios foi o Ouricuri. Pacoá agiu como um
articulador político, uma vez que após a reunião no Ouricuri, doze índios, inclusive, as
lideranças decidiram ir a Brasília. Pacoá resume:

[...] marcamos reunião com o presidente [...]. Quando chegou no ponto final [da
reunião], foi essa documentação, aí o presidente ainda falou para nós. [...]:“vocês
têm certeza que tem esse documento no Museu do Rio de Janeiro?”. Eles [cacique e
pajé] que estavam de frente se calaram. Aí, eu lá detrás falei: eu tenho certeza. [...].
Faz o seguinte: o senhor liga para lá [para o Museu do Índio]. Aí, ele mandou o
assessor dele ligar. Falou com a chefe lá do Museu do Índio. [...]. [O assessor
presidencial falou]: “o pajé e o cacique da aldeia Kariri-Xocó querem ir aí pegar
essas documentações. Tem como?”. [Respondeu a chefe do Museu do Índio]:
“Tem!”. Aí foi confirmado que tinha. [Então, o presidente ordenou]: “Pronto, nós
vamos fazer assim pajé: são quantas pessoas?”. Doze. “Para eu mandar doze
pessoas para lá pegar um documento, a despesa é grande. Vamos fazer assim:
vamos mandar dois [índios para o Rio de Janeiro] e o resto retorna para lá, para a
área de vocês [Porto Real do Colégio]”.

Os Kariri-Xocó Pacoá e Ernani foram ao Rio de Janeiro obter esses documentos.


Desde então se iniciou um longo processo para a identificação, delimitação e demarcação do
território indígena envolvendo “dispositivos jurídicos [que] refletem disputas entre diferentes
forças sociais” (ALMEIDA, 2012, p. 380), no caso, a indígena e a dos fazendeiros e/ou
posseiros. Segundo Nhenety, em 03 de novembro de 1986, a antropóloga Lígia T. Lopes
Simonian “recomendou a Brasília proposta de Delimitação da Área Indígena Kariri-Xocó”99.
Anos depois, em 26 de novembro de 1991 é publicado no Diário Oficial da União, Seção I,
“RESOLVE nº 600 – I – declarar como de posse indígena, para efeito de demarcação, a Área
Indígena Kariri-Xocó, com superfície aproximada de 664 ha (seiscentos e sessenta e quatro
hectares)”. Consta no documento oficial informação adicional relevante. A saber: a Área
Indígena Kariri-Xocó é “caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena,
nos termos do artigo 231 da Constituição Federal e do artigo 17 da Lei n. 6.001 de 19 de
dezembro de 1973”.100 Em 04 de outubro de 1993, o ex-presidente da República Itamar
Franco “homologa a demarcação administrativa da Área Indígena Kariri-Xocó, localizada no

99
Informação disponível em Índios OnLine – “Kariri-Xocó na Nova Ordem Indigenista” (17 de fevereiro de
2007): http://www.indiosonline.net/kariri_xoco_na_nova_ordem_indigenista_4/, acessado em 19 de outubro de
2017.
100
Informação disponível em Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência da República, Portal da Imprensa
Nacional, acessado em 19 de outubro de 2017.
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/11/1991&jornal=1&pagina=8
174

Estado de Alagoas”. 101


Todavia, segundo Nhenety: os fazendeiros contestaram a
demarcação dizendo que a gente não era índio. Aí, o juiz federal mandou um antropólogo.
Marcos Tromboni que, conforme Nhenety, realizou o Reestudo de Identificação e
Delimitação da Terra Indígena Kariri-Xocó. No relatório antropológico destaca-se a proposta
indígena de ampliação do território de 699 hectares para 4419 hectares. Contudo, houve nova
contestação em que segundo Nhenety:

Os fazendeiros [na Sementeira] não concordaram com a demarcação, […], disse


que não era ali a terra da gente, que a terra da gente não era aquela ali […]. Aí, o
juiz federal acatou e mandou um antropólogo dela mesmo.[...] Aí, mandou o
relatório para o juiz na época. O juiz derrubou a liminar [perpetrada pelos
ocupantes não indígenas]. (NHENETY)

Assim, a Funai em processo administrativo nº 08620-2.401/2001 e a Portaria n°


2.358/2006 do Ministério da Justiça “determinaram a ampliação dos limites das terras
indígenas dos índios Kariri – Xokó”102. Em 18 de dezembro de 2006, publica-se no Diário
Oficial da União, Nº 241, seção I, ISSN 1677-7042, p. 53:

GABINETE DO MINISTRO PORTARIA No - 2.358, DE 15 DE DEZEMBRO DE


2006 O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições e tendo
em vista o disposto no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, e ainda o que
consta do processo FUNAI/BSB/2401/2001, e CONSIDERANDO a proposta
apresentada pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, que objetiva ampliar os
limites da Terra Indígena Kariri - Xokó; CONSIDERANDO que a área atual,
homologada pelo decreto de 04 de outubro de 1993, encontra-se em
desconformidade com o território total a que têm direitos históricos os índios Kariri
- Xokó; CONSIDERANDO que a Terra Indígena localizada nos Municípios de
Porto Real do Colégio e São Braz, ambos no Estado de Alagoas, ficou identificada
nos termos do § 1º do art. 231 da Constituição e inciso I do art. 17 da Lei nº 6.001,
de 19 de dezembro de 1973, como sendo tradicionalmente ocupada pelo Grupo
Indígena Kariri-Xokó; CONSIDERANDO os termos do Despacho do Presidente da
FUNAI nº 37, de 1° de junho de 2005, publicado no Diário Oficial da União de 3 de
junho de 2005 e no Diário Oficial do Estado de Alagoas de 8 de agosto de 2005;
CONSIDERANDO, finalmente, os termos dos pareceres da FUNAI, que concluem
pela improcedência das contestações opostas à ampliação da Terra Indígena Kariri -
Xokó, resolve: Art. 1º Declarar de posse permanente do Grupo Indígena Kariri -
Xokó a Terra Indígena KARIRI - XOKÓ, com superfície aproximada de 4.419 ha
(quatro mil, quatrocentos e dezenove hectares) e perímetro também aproximado de
41 Km (quarenta e um quilômetros).103

101
Informação disponível em Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência da República, Portal da Imprensa
Nacional, acessado em 19 de outubro de 2017.
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=9&data=05/10/1993 e
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/10/1993&jornal=1&pagina=10&totalArquivo
s=48
102
Informação disponível em Portal da Justiça Federal da 5 Região: http://www5.trf5.jus.br/noticias/5797,
acessado em 21 de outubro de 2017.
103
Informação disponível em Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência da República:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=53&data=18/12/2006, acessado em
21 de outubro de 2017.
175

No entanto, conforme Nhenety:

Se fosse atingir nossa demarcação seria 7.200 hectares, desse 7.200 são duas léguas
de frente [para o rio São Francisco], uma de fundo. É isso o que a tradição oral
fala e a escrita oficial fala 104. [No] 7.200 hectares está a cidade de Porto Real do
Colégio, está o Projeto Itiúba, está o povoado de Itapera, povoado Lagoa Funda, o
povoado Tibiri e povoado Sampaio.

Porém, os Kariri-Xocó procuram manter uma relação de boa vizinhança com os


moradores colegienses que, segundo Nhenety:
Sabe[m] que a terra é nossa. Nós não vamos mexer com esse povo, vamos deixar.
Vamos fazer nossa demarcação deixando esse povo fora [...]. Aí, nós fizemos a demarcação
circulando, tal. Ficamos com 4.400 e poucos [hectares].
Portanto, existe “uma enorme distância entre direitos potenciais (a amplas extensões
de terras utilizadas no passado) e direitos efetivamente adquiridos (a áreas indígenas
reconhecidas e regularizadas).” (OLIVEIRA, 2012, p. 371). Desse modo, como ainda adverte
João Pacheco de Oliveira:

Apesar das expectativas de que as terras indígenas correspondam às concepções


nativas desse espaço, os processos de estabelecimento de territórios levadas a cabo
pelo Estado nacional são efeito de um feixe de propostas, legislações, interesses e
estratégias de território que raramente expressam a representação fidedigna do que
os grupos indígenas concebem como o próprio território (2012, p. 371).

Além do embate Kariri-Xocó com o Estado brasileiro, esses índios mantêm relações
conflituosas para com os de fora de Porto Real do Colégio, isto é, com a população não local
que tem propriedade no território indígena. Em vista da decisão do então Ministro de Estado
da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, perpetrou-se um pedido de nulidade do processo de
ampliação demarcatória do território Kariri-Xocó. Os embargantes foram os fazendeiros que
têm propriedades rurais no território tradicional indígena demarcado em 4.419 hectares.
Conforme o cacique Cícero Queiroz Suíra e os demais Kariri-Xocó, o que preocupa
sobremaneira é um destes fazendeiros, considerado representante de peso da classe
agropecuária da região. Segundo Cícero Queiroz Suíra, tal fazendeiro:
É um homem muito poderoso na política. [...]. Você vê gado, é dele. Tudo é dele.
[...]. Tem 70% de toda área indígena na mãe dele. [...]. Ele é a peça principal. [...].
É o protetor de todos os posseiros. [...]. Ele já tem advogado dele para ajudar o
próprio posseiro. [...]. Todos esses posseiros pequenos que não têm condições de
gastar dez mil, quinze mil e não tem mesmo [...] de pagar advogado, então ele dá os
advogados de graça. [...]. Agora, a intenção dele de dar advogado é para na frente
ele querer o retorno. [...]. Se ele cair, todos caem.

104
Ver Mata, Vera Lucia Calheiros (2014).
176

Conforme pajé Júlio e seu filho Cícero, esse fazendeiro:

Desmatou todo o mato. Foi processado pelo Ibama. [...]. Mata de quatrocentos e
tantos anos, ele estourou. [...]. A terra ligada ao nosso ritual, ligadinha, vizinha ao
nosso ritual [...]. Ali para frente era um mato só. Ele largou trator de esteira,
derrubou tudo. [...]. Ao redor ele comprou, só tem hoje o nosso mato. O mato que
tem só é o nosso. [...]. E todas essas áreas, ele já comprou sabendo que estava
demarcada.

Conforme noticiado pela mídia em 31 de março de 2011, o Ministério Público Federal


processou um grupo de não indígenas pela “responsabilidade por danos causados ao meio
ambiente, em área tradicionalmente ocupada por índios Kariri-Xocó e de preservação
permanente”.105 Portanto, o fazendeiro citado pelas lideranças Kariri-Xocó não foi o único a
ser judicialmente punido em termos ambientais. Durante o período da minha pesquisa de
campo, houve o falecimento desse fazendeiro, mas a preocupação dos Kariri-Xocó
permanece, uma vez que a propriedade foi transferida ao filho do finado.
Segundo essas lideranças indígenas (pajé Júlio e seu filho cacique Cícero), as terras do
território Kariri-Xocó foram negociadas entre terceiros: tem muitos posseiros pequenos,
depois de demarcada [a área indígena] venderam, já venderam. A demarcação foi feita para
aquele posseiro que estava. Agora esses que já compraram, compraram de má fé. O território
de ocupação tradicional Kariri-Xocó é entrecortado pela rodovia federal BR 101 e pela
estrada estadual AL 225 que liga Porto Real do Colégio a São Brás. Os moradores não
indígenas que vivem em casas à beira da pista AL estão vivendo sob área indígena e ao se
instalarem ali agiram, segundo palavras do cacique: de má fé: essa pista todinha [área
indígena invadida] usou de má fé. Além disso, como dito anteriormente, existe um projeto de
construção de um condomínio na área indígena demarcada. Cícero disse que se mobilizará e
afirma: [...] vou comunicar ao procurador que eu não vou aceitar essa construção. [...]. É
área indígena.

4.5 Socioespacialidade da aldeia Kariri-Xocó: à época da Fazenda Modelo (Sementeira)


e no presente etnográfico

Já discorrido a respeito das denominadas referências culturais do território de


ocupação tradicional Kariri-Xocó, bem como das terras retomadas que compõem esse

105
Informação disponível em gazetaweb.com/notícias: http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-
old.php?c=228765&e=31, acessado em 31 de outubro de 2017.
177

território reduzido em seu tamanho original, cabe a partir de agora apresentar uma área central
na configuração física e social do Território Indígena: a aldeia. O percurso que traçarei será
pela socioespacialidade da Aldeia Kariri-Xocó, à época da Fazenda Modelo ao presente
etnográfico. Para isso, recorro à memória social do grupo, sendo que logo de início apresento
um desenho elaborado pelo Kariri-Xocó Manoel Barbosa (apelido Buru) que atendeu ao meu
pedido de reproduzir, a partir de sua memória e experiência vivida, a socioespacialidade da
Fazenda Modelo, denominada pelos Kariri-Xocó de Sementeira. Como é de conhecimento,
esse imóvel rural estava sob a posse da CODEVASF, por meio dos depoimentos nativos há de
se considerar que foi instalada uma propriedade latifundiária de produções diversas, com
plantios de árvores frutíferas, hortaliças, algodão, arrozal, lagoas com peixes, baia para os
animais, além de uma fábrica de arroz, uma oficina e um escritório. Veremos como esse
cenário foi modificado ao longo dos anos, de acordo com as conjunturas sócio-histórica e
política.

A porta de entrada para a antiga fazenda é o portão representado em cor amarela. Foi
nesse local que ocorreu toda a negociação entre indígenas e não indígenas após a retomada da
Sementeira. Atualmente, este portão contém o escrito “aldeia Kariri-Xocó” e uma placa da
Fundação Nacional do Índio que atesta a demarcação oficial da área em contestação judicial.
178

Posteriormente à retomada, iniciou-se um processo de elevação da aldeia Kariri-Xocó.


Para tanto, houve uma ocupação residencial em que os indígenas passaram a viver nas
residências que eram destinadas aos funcionários da Fazenda Modelo e nos demais espaços da
propriedade, como a baia, o curral, a casa do ferreiro, o escritório, a oficina e a fábrica de
arroz. Contudo, como havia um número expressivo de famílias indígenas para poucas
habitações, nem todos puderem se acomodar nos espaços já construídos; consequentemente,
alguns Kariri-Xocó se empenharam em construir seus próprios ranchos106. A escolha para a
ocupação dos locais já disponíveis na fazenda se deu de modo aleatório. Segundo Nhenety,
que à época da retomada tinha quatorze anos de idade, houve mobilização indígena para a
ocupação das casas, em que homens e mulheres Kariri-Xocó se deslocaram à Fazenda Modelo
para tentar pegar uma casa para ficar morando para quando os pais viessem de manhã, já ter
um local para morar. Então, não foi escolha não, nem seleção não, foi assim
espontaneamente [...], cada família que pegasse o local estava pegado mesmo (NHENETY).
Como a propriedade era considerada, segundo Nhenety, um bem de todos, não houve critério
hierárquico para a ocupação das casas, isto é, as lideranças (cacique e pajé) não tiveram
prioridade na escolha. As residências foram ocupadas por inúmeras famílias Kariri-Xocó que
passaram a dividir o mesmo teto. O número de famílias em uma mesma moradia variava de
acordo com o tamanho de cada imóvel, assim, em residências menores encontravam-se de três
a cinco famílias indígenas. Enquanto que na casa grande moravam mais de vinte famílias107.
As regras para as ocupações das residências não eram regidas pelas relações de
consanguinidade, mas sim, pelos laços de vizinhança estabelecidos no período em que
moravam fora da fazenda. As famílias que moravam na Colônia ocuparam em sua maioria o
local da baia da fazenda. As famílias da parte alta da Rua dos Índios foram morar na escola da
fazenda e as famílias da parte baixa (parte debaixo) da mesma rua passaram a viver juntas na
casa grande da Sementeira. Portanto, houve uma manutenção dos laços de vizinhança e de
amizade e há mais, pois a divisão espacial da aldeia reproduz a organização do espaço na Rua
dos Índios. Além disso, o vínculo étnico, ou seja, o pertencimento à etnia Kariri-Xocó era
condição imprescindível para viverem em um mesmo espaço territorial: a Sementeira. No
entanto, havia exceções: como já existiam relacionamentos exogâmicos (Kariri-Xocó com não
indígenas) antes da retomada da Fazenda Modelo, a esses cabeças secas incorporados pelo
casamento fora permitida a permanência no local retomado. Na atualidade, existem Kariri-

106
Ver o blog de “Nhenety Kariri-Xocó Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Histórias...”
http://kxnhenety.blogspot.com.br/search?updated-max=2013-08-01T06:29:00-07:00&max-
results=7&start=21&by-date=false, acessado em 24 de outubro de 2017.
107
No desenho de Buru, a casa grande é identificada como posto.
179

Xocó que vivem fora da aldeia, nas casas localizadas nas ruas da cidade. Moram ali por
motivos diversos: relacionamentos com não indígenas, desentendimentos entre famílias que
motivaram a saída de alguns parentes da aldeia e falta de recursos para construírem uma casa
na aldeia.
Anos decorridos (já na década de oitenta - 1980), houve a implantação de um projeto
de residências fomentado por uma parceria público-privada entre a Fundação Nacional do
Índio e a embaixada canadense. A história dessa cooperação é peculiar, por isso mesmo
curiosa: segundo Nhenety, havia um administrador da Funai, cujo nome era Leonardo Reis,
que registrou por meio de fotografias, as condições das moradias da Sementeira e a situação
em que se encontrava a aldeia Kariri-Xocó, logo após a retomada. Munido dessas imagens,
viajou a Brasília. Durante a viagem de avião, Reis olhava essas fotos e ao seu lado estava um
passageiro da embaixada canadense que se interessou pela história registrada imageticamente.
Reis explicou que era uma população indígena do Estado de Alagoas que havia retomado uma
parte de seu território de ocupação tradicional. O discurso, atrelado à categoria sofrimento por
não haver moradia suficiente para todos os Kariri-Xocó, sensibilizou o funcionário da
embaixada. Assim, conforme Nhenety, o administrador da fazenda exclamou:
[Os Kariri-Xocó] estão sofrendo, não tem uma moradia para morar.
A partir dessa conversa, a embaixada canadense elaborou um projeto para financiar a
construção de cento e dez casas. Desse modo, deu-se continuidade ao processo de expansão
da aldeia Kariri-Xocó, por meio da construção de novos espaços residenciais. As casas
construídas (de tijolos) eram pequenas e ao longo dos anos foram modificadas pelos indígenas
que aumentaram o tamanho das mesmas, compraram mobílias como camas, geladeiras,
televisão, sofás e fizeram garagem. Cabe dizer que ao saírem da Rua dos Índios, os Kariri-
Xocó em sua maioria venderam suas casas. O mesmo já não ocorre nas residências da aldeia
que são proibidas de serem vendidas aos não índios. Só pode ocorrer compra e venda se a
negociação for de índio para índio. Conforme Manuel Santos: o branco não pode comprar
uma casa aqui dentro. O mesmo ocorre com os aluguéis das casas na aldeia que só podem ser
feitos entre os próprios índios. Porém, se o branco mantiver relacionamento com uma índia e
os Kariri-Xocó reconhecerem essa relação como constituidora de laços familiares, ele tem
autorização para comprar uma residência na aldeia.
Dois dias após chegar em Porto Real do Colégio, solicitei a Wytaiha (sobrinho
materno de Kayrrá) que me levasse para conhecer o território indígena Kariri-Xocó. Conheci
Wytaiha anos antes de ir à aldeia, uma vez que ele se apresentara com Kayrrá na escola em
que trabalhei no interior de São Paulo. Ao estar na aldeia em 2016 e conviver diariamente, o
180

Wytaiha tornou-se um dos meus principais interlocutores. Assim, estava quase todos os dias a
minha espera para que pudéssemos caminhar pela aldeia e arredores, irmos à padaria na
aldeia, acompanhados das demais crianças nadarmos no rio São Francisco, acompanhar-me às
casas da aldeia e ao centro da cidade em Porto Real do Colégio. Neste dia em que fui fazer
um reconhecimento da área indígena, encontramos Jacó (irmão de Kayrrá, tio materno de
Wytaiha) que quis nos acompanhar pela longa caminhada. De imediato, Wytaiha alertou-me:
se você prestar atenção na aldeia, ela tem uns conjuntos de casas que são praticamente
iguais. Aqui era uma Fazenda Modelo, hoje ela se chama Sementeira. Os conjuntos de casas
a que Wytaiha se referiu são as moradias construídas pela Funai. Segundo Jacó, à época da
Fazenda Modelo: era tudo tanque [de peixe] e tinha fábrica de arroz. Contudo, atualmente, a
configuração espacial da aldeia se modificou: se antes havia um portão (como retratado no
desenho de Buru), atualmente existem três, as ruas da aldeia são de terra, sendo proibido o
asfaltamento. Conforme Wythaia: aqui não pode calçar, porque nós índios, a gente gosta
assim de ficar junto com a natureza.
A aldeia Kariri-Xocó, segundo Nhenety, “está organizada no aspecto urbano em
diversas ruas” (2013, p. 38), além de possuir sistema elétrico e saneamento básico. Em tom de
quase lamento, Nhenety disse em entrevista:

Quando os jesuítas chegaram, […], a aldeia era redonda, em círculo. Quando os


jesuítas chegaram: “não, não pode ser redonda, tem que ser linear, de ruas. A gente
no passado morava em casas coletivas, malocas grandes.

Como retomaram uma área em que já havia a construção de diversos estabelecimentos


por entre as ruas da fazenda, a aldeia não assume tal aspecto circular, diferentemente de outras
aldeias indígenas brasileiras. Além disso, em Kariri-Xocó não há uma divisão espacial
definida a partir do gênero, ou seja, não existe uma residência destinada exclusivamente às
mulheres ou uma casa frequentada apenas pelos homens. Contudo, se fosse para eleger um
espaço exclusivamente masculino dentro da aldeia, poder-se-ia considerar o terreiro em frente
à igreja, local em que os homens jogam diariamente dominó. Cabe ressaltar que em momento
algum observei as mulheres participarem desse tipo de jogo. Deve-se observar também que
não há necessariamente uma vicinalidade entre os membros de uma mesma família, uma vez
que as elevações residenciais seguem o modo de expansão da aldeia. Por exemplo: uma das
primeiras casas a serem construídas foi a de Maria do Carmo e Seu Antônio, localizada na
parte da entrada da aldeia. Toda essa área foi ocupada por moradias. Ao terem seus filhos
crescidos era inviável a construção de residências ao lado da sua, uma vez que não havia área
181

disponível. Portanto, a casa de Maria do Carmo e Seu Antônio não são contiguas às
residências de seus filhos. A proximidade das casas entre os integrantes de uma mesma
família Kariri-Xocó assume condições variáveis: Kayrrá (apesar de morar em São Paulo) tem
uma casa na aldeia que é ao lado da casa de sua sogra e de seu sogro. Comprou essa
residência de um outro índio e aluga-a para um Kariri-Xocó. Sua prima Shinaré mora na
mesma rua e em frente à casa de seus pais (Dioclecio e Ivonete), porque havia um terreno ali
disponível. Já Pawanã mora na rua paralela à casa de sua mãe. Portanto, se tem área
disponível, os Kariri-Xocó constroem suas residências ao lado das dos seus parentes
próximos; do contrário, elevam as casas onde existem espaços vazios.
Ao entramos na aldeia vemos casas de ambos os lados, sendo que as árvores frutíferas
(à época da Fazenda Modelo) não existem mais, tendo sido justamente substituídas por
residências. Há o constante transitar das pessoas, dos carros, das motos, das bicicletas, das
carroças e dos caminhões que transportam materiais para a construção de novas casas
indígenas do Minha Casa Minha Vida, crianças a brincar, além de pequenos estabelecimentos
comerciais, como mercadinhos e/ou mercearias, cujos proprietários são os próprios indígenas.
A aldeia tem uma configuração própria, sendo as residências amplamente dispersas ao longo
da área indígena. Comumente, ouvi os Kariri-Xocó que moram nas denominadas casas azuis
(construídas pelo Minha Casa Minha Vida) se referirem a esse local como: lá no alto. Desse
modo e para um entendimento da espacialidade da aldeia, recorrerei aos termos: parte baixa,
parte central e parte alta da aldeia.
Todas as vezes que eu andava pela aldeia, o ponto de partida das minhas andanças era
a casa de Maria do Carmo e Seu Antônio, situada na parte baixa, ou seja, próxima ao portão
principal da aldeia. Diversas vezes em que andei acompanhada pelos Kariri-Xocó, eles faziam
questão de frisar a localização da residência do pajé Júlio Queiroz Suíra, na área da antiga
baia da Fazenda Modelo. Dentre os indígenas que me levavam para conhecer os locais da
aldeia, estava o “curumim” Audo Santos Neto, doze anos de idade, a quem solicitei que
desenhasse os espaços da aldeia que considera mais importante, já que era meu guia na
localização espacial da aldeia. No desenho, ele destacou a casa do pajé Júlio Queiroz Suíra, a
casa do cacique Cícero Queiroz Suíra, a escola indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra, o posto
de saúde indígena, a entrada principal da aldeia, o sítio Alegre Aracaré Parrancó, o campo de
futebol e o rio São Francisco, com sua croa (parte de areia) formada pelo baixo volume
182

d’água. Os locais representados nos seus desenhos não devem ser vistos apenas como espaços
físicos, mas sim, espaços com significação social:108
O portão principal: em seu alto, os dizeres Aldeia Kariri-Xocó comunicam aos de fora
a condição étnica de quem habita essa área oficialmente demarcada. O etnônimo (Kariri-
Xocó) grafado no portão é essencial para que o não índio saiba que nesse território (definido
como aldeia) há uma existência coletiva:

O portão da aldeia para mim é um significado muito bom, porque quando a gente
vai para Porto Real, a gente sai por ele. Quando a gente volta, a gente volta por ele
também. Aí, por isso que tem uma importância para mim, porque nós moramos
dentro dele, nós saímos dentro dele. Por que existe o portão dentro da aldeia Kariri-
Xocó? É um sinal, quando alguém entra, desconhecido. Quando alguém [...], algum
perdido que quando entra lê: Aldeia Kariri-Xocó [...]. E hoje nós estamos aí com o
nosso portão de um lado ao outro.

A casa do pajé é significada como espaço de cura, proteção e acolhimento:


A gente quando está precisando de alguma coisa vai lá. “Ó pajé, estou doente. Você
pode rezar em mim?”. Ele reza. Mas não reza com a mão. Ele reza com as sete
folhas. [...] Reza com três ou sete folhas. Mas é bom com três, porque três tiram o
olhado, o outro tira o mau humor e o outro bota a alegria. O Crista de Galo tira o
mau humor. O Pião bota alegria. O Velandinho para afastar as maldades, os olhos
maus.

Tanto a casa do pajé, como a casa do cacique assumem uma sacralidade. Segundo
Neto: [a] casa do pajé é muito sagrada. A casa do cacique é muito sagrada. Podemos
receber o acolhimento quantas vezes a gente quiser e quantas vezes a gente puder.

108
As divulgações dos desenhos foram autorizadas por Ytay, pai do Neto, apenas com finalidade acadêmica.
Assim, não é permitida a reprodução das mesmas em outras esferas, a não ser nesta Tese.
183

Acima: figura 14 - Portão principal da aldeia


Abaixo: figura 15 - Casa do pajé Júlio Queiroz Suíra. No entanto, Neto colocou o nome do ex-pajé
Francisco Queiroz Suíra, evidenciando assim uma continuidade do direito de sucessão baseado em uma
linha de descendência paterna
184

Figura 16 - Casa do cacique Cícero Queiroz Suíra

Ao caminhar mais para frente da casa do pajé, em direção a parte central da aldeia, vê-
se a Escola Estadual Indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra, contígua ao Posto de Saúde
Indígena e ao campo de futebol. Adjacente a estes espaços estão as casas azuis. Para a
edificação dessas residências é preciso consultar as lideranças locais que se reúnem para
encontrar um local adequado. […]. O pajé ou o chefe [do posto indígena] assina. O pajé
assina, pronto, aí libera e faz.
Além dessas casas já entregues pelo programa federal de habitação Minha Casa Minha
Vida, outras residências estão sendo construídas por meio da mesma iniciativa pública. Já
foram finalizadas cem casas e mais duzentas estão em fase de acabamento. Ao andar pela
aldeia é possível observar alguns Kariri-Xocó trabalharem na edificação dessas moradias.
Para que possam morar nessas casas, os indígenas despendem do pagamento de uma taxa
mensal. Mais adiante, após ultrapassar a área das residências azuis é possível ver o Sítio
Alegre Aracaré Parrancó. Neto (o curumim) estabelece uma relação de parentesco para com
esse local. Em suas palavras: é a parte do meu viver. [...] eu gosto muito de ir para lá. Tenho
tio, tenho tia [materna].
Já na parte alta da aldeia avistam-se os roçados. Ao falarmos em espaços de plantio
dos Kariri-Xocó devemos recorrer às suas próprias classificações: tarefa, roça e quintal.
Sendo que:
185

Tarefa é a quantidade de terra, uma unidade de medida. Que um hectare, um


hectare é dez mil metros quadrado, dez mil metros quadrados. Uma tarefa é um
terço de um hectare. Já a roça, a roça é geralmente duas, três, tarefas. Uma tarefa,
uma tarefa é mais ou menos… pronto, é mais ou menos um hectare uma roça
normal (NHENETY).

Já o quintal:

Não é igual uma roça. O quintal ali geralmente é plantado fruteiras. É como se
fosse uma agroecologia, né. Culturalmente tem um pé de coqueiro, um pé de
goiabeira, plantar ervas medicinais […], mas ali não é de plantar o milho, o feijão.
Ali é mais para um suporte, uma ajuda. Criar uma galinha. […] Quintal é uma
coisa. A roça é outra coisa. A roça é o milho, o feijão, é mandioca, mas se o quintal
for grande, grande sim, aí pode fazer uma roça também (NHENETY).

Todavia, muitas casas Kariri-Xocó não dispõem de um quintal grande para fazer uma
roça. As residências do Minha Casa Minha Vida não são construídas com amplo espaço
externo para atender esse tipo de demanda. Nessas residências observei somente pequenos
quintais e não há divisão territorial por cercas. No caso de Itainãn que vive em uma dessas
casas, suas plantas não crescem, uma vez que os animais criados por alguns Kariri-Xocó
avançam seu quintal e destroem o que foi plantado. O mesmo ocorre na casa de Maria Kariri-
Xocó (que não foi construída por meio do fomento público). Em sua residência planta
macaxeira, batata, coentro, pimentão, tomate, pé de coqueiro, jaqueira, jenipapeiro,
mamoeiro, bananeira, dentre outras árvores; contudo, os bichos (porcos e cavalos) de alguns
indígenas invadem seu terreno e comem as frutas e os legumes. Além disso, Maria reclama de
uma fossa construída ao lado de sua casa que, segundo ela, acabou com uma parte de seu
quintal. Este fato motivou altercação entre Maria e demais Kariri-Xocó.
186

Figura 17 - Sítio Alegre Aracaré Parrancó. Neto tem descendência materna Fulni-ô, desse modo, as
palavras no desenho estão em Iatê

A casa dos pais de Kayrrá é um exemplo de residência com quintal e roça. No quintal
há plantas, pé de coqueiro e galinhas. Ao fundo, dividido por um muro, está o roçado. Seu
Antônio plantou feijão de corda em 2016, no entanto, a chuva não veio e a plantação não
vingou. Ao caminhar pela aldeia, Wytaiha e Jacó mostraram-me outras roças que não
puderam ser colhidas por causa da estiagem em 2016. Os Kariri-Xocó lamentaram o ocorrido.
A atividade produtiva na aldeia segue um calendário sazonal: a plantação é no findar do
primeiro semestre do ano; no segundo semestre termina a pesca, sendo que: quando termina a
pesca, nós vamos em artesanato para trabalhar no mês de abril [...] fora [da aldeia]. É
parcelado. Termina um, nós deixamos, vamos para outro, entendeu? (Wytaiha). Assim
explica a sazonalidade das atividades produtivas.
Segundo o ex-pajé José Bonifácio, ao entrarem na Sementeira, a terra era como uma
área comunitária [...], quer dizer, não tinha um dono específico. [Aquele Kariri-Xocó que
quisesse plantar]: aí botava. Vou plantar outro pedaço aqui, aí plantava. Todavia, há uma
nova configuração social da apropriação da terra para o plantio. Esse fato está diretamente
relacionado ao crescimento demográfico Kariri-Xocó e a ocupação da maior parte do
território tradicional indígena por posseiros e fazendeiros de fora. A aldeia está crescendo,
187

nascendo criancinha, desenvolvendo mais índio e [sobra] pouco espaço, um hectare dividiu
para três, quatro pessoas, afirmou Pawanã. Segundo José Bonifácio:

Foi [então] que cada um começou a cercar um pedaço [de terra para o roçado].
[...]. Que viu que ia se acabar, não ia dar [terra] para todo mundo. Então, aqueles
[Kariri-Xocó] que tinham vontade de trabalhar, disseram assim: “não posso ficar
sem um pedaço de terra para trabalhar”. Aí ia cercava um pedaço [...], aí ficou a
divisão por causa disso.

Os Kariri-Xocó consideram que a permanência de não indígenas no território


demarcado inviabiliza a utilização do mesmo para o roçado e para a construção de futuras
residências. Desse modo, Nhenety afirma: o que está dando problema para nós [...] são esses
fazendeiros que [ocuparam] essas terras, né. Tem muito ‘proprietário’ de terra. Desse modo,
os Kariri-Xocó afirmam que para haver espaço suficiente para plantarem e erguerem novas
casas é necessária a retirada definitiva dos posseiros e dos fazendeiros da área indígena.
Segundo Pawanã:

[...] não temos mais lugar para fazer as nossas casas. A aldeia está crescendo. Você
vê a minha casa, aqui. Eu tenho a minha casa. Moram três filhos comigo, aqui.
Estão pequenos, tudo bem, mas você vê, eu não tenho quintal, não. Você pode ver
com seus próprios olhos mesmo. Eu não tenho quintal. Se eu quiser fazer, crescer
ela agora só para cima, eu não quero fazer isso. Eu não gosto disso.

De acordo com José Bonifácio, à época da Sementeira, a Funai:

Disponibilizava um recurso para fazer a área, fazer o preparo do solo, aí chegavam


os tratores e arava essa faixa todinha [...]. Aí vinham os índios, cada um pegava um
pedaço e trabalhava a comunidade todinha. Mas hoje se fizer isso não dá a área
que nós temos. Não dá para cada um botar um quarto (1/4) de terra, porque é muita
gente. São muitas famílias.

Atualmente, a Funai não disponibiliza essas formas de recursos. Por conseguinte, os


Kariri-Xocó se mobilizam por conta própria ao contratarem uma pessoa não indígena (da
cidade), dona de um trator para arar a terra. Ou senão, fazem o trabalho manualmente: arado
no braço. Outro agravante para a redução de oferta de áreas aráveis é que, segundo dizem,
têm partes que a área da terra não é produtiva e têm áreas ocupadas por posseiros e não dá
para os índios plantarem, afirmou José Bonifácio. Contudo, se há terra suficiente para
plantar:

A pessoa vai lá, escolhe a área. Isso é cultural, vai lá. Aí faz a primeira tarefa.
Escolhe a área. Segundo, vai roçar, roça. Depois faz a coivara. Coivara é queimar,
queimar […] o mato cortado. [...]. Isso faz parte da preparação do solo. [...]. Aí
começa a plantar o milho e o feijão (NHENETY).
188

O usufruto da terra é partilhado entre os familiares. Esse é o caso de José Bonifácio


que cercou um pedaço de terra equivalente a dez tarefas. Conforme enfatiza, a área já está
dividida entre os parentes: filho, sobrinho e genro: cada um, um pedacinho [...]. A gente vive
assim: nesse controle dentro [da aldeia]. O laço de parentesco garante a herança da terra,
desse modo, ao haver o falecimento do patriarca, a tarefa é transferida aos filhos, como dizem,
cedida para a família. Além disso, o matrimônio dá o direito à obtenção de um pedaço de
terra para o roçado, como aconteceu com Iracema Souza Suíra:

A minha [roça] eu tenho através do meu marido, né, porque é do pai dele. É
também assim: de pai para filhos. Meu pai tem aquele terreno lá, ele não pode mais
trabalhar, meu irmão toma de conta ou eu como filha. Ele vai passando de um para
o outro. E no caso, a minha [roça] hoje é de meu marido, né, que era do pai dele.
Hoje é dele [do meu marido] e de outro irmão.

Contudo, aqueles que não têm terra para plantar adotam o sistema de arrendar a terra
em troca de parte da produção colhida e deste modo podem utilizar a tarefa (área) de outro
índio por meio de um arrendamento temporário:

Depois [de usada] entrega a terra da pessoa de novo. Mas muita gente faz isso. Até
hoje ainda faz isso para quem não tem. [...] Se eu não tenho [a terra] e tem a pessoa
que é da aldeia que é muito conhecida: “rapaz, eu queria tanto plantar um pedaço
de terra esse ano, mas eu não tenho terra, eu queria tanto comer”. “Não, Cema, eu
tenho a minha terra lá, tenho duas tarefas, se você quiser um pedaço eu lhe dou
para você plantar”. Então, eu plantei, comi, entreguei a terra de novo. Isso é
normal. [...]. Que na verdade, está nessa questão para ganhar mesmo [a
homologação da terra indígena] é por causa disso mesmo: para cada um ter o seu
[roçado] (IRACEMA).

Outra forma de obtenção da terra é pela compra e venda restrita aos índios. Na
verdade, segundo José Bonifácio, o que se vende é a cerca roçada. [Isto é, a área
trabalhada], a terra não. O valor pago deve compensar o trabalho do agricultor indígena por
ter zelado pela terra e por tê-la cercado. José Bonifácio explica de modo breve, o momento da
negociação:
“Rapaz, eu trabalhei muito tempo por ali. Zelei muito tempo. Você quer me pagar o
meu trabalho que eu tive para zelar?” O cara vai: “É tanto o meu trabalho”. Aí o
camarada vai, paga o trabalho que ele teve para zelar e para cercar, mas a terra
não se pode vender.

Portanto, existem duas concepções de usufruto da terra: (i) a familiar e (ii) a coletiva.
A terra enquanto um espaço doméstico, restrito a um regime de economia familiar, mas que
pode ser utilizada por terceiros desde que haja permissão do proprietário. E a terra como um
bem coletivo, no sentido de que todos aqueles que pertencem à etnia Kariri-Xocó têm o
direito de viver e usufruir desse território tradicionalmente ocupado. Esta noção de uso
189

coletivo do território torna-se mais clara ao ser levado em consideração o fato de que mesmo
aqueles Kariri-Xocó que não estão nas retomadas das terras terão o direito a elas assim que os
posseiros e/ou fazendeiros a desapropriarem e a terra indígena for homologada. Desse modo,
segundo Iracema: quando sair, todo mundo vai receber tudo igual. Da mesma maneira,
afirma José Bonfim: nós recebendo essas terras, todo mundo vai ganhar. De acordo, Valdete
corrobora: quando resolver [...] é para todos nós.
Já na parte bem alta da aldeia está a Colônia. Atualmente ali não mora mais nenhum
Kariri-Xocó, sendo a área utilizada para reuniões políticas entre os Kariri-Xocó e
concentrações para as ações de retomada de terra. Nesse topo é possível observar toda a
aldeia, a cidade de Porto Real do Colégio e o rio São Francisco. Maria do Carmo viveu na
Colônia, assim como a índia Maria Sirlene que constrói uma representação do passado em que
afirma:

Lá era muito gostoso naquela época. [...]. Morava o pajé velho [Francisco Queiroz
Suíra]. [...]. Morava a metade lá [na Colônia] e a metade morava na Rua dos
Caboclos [Rua dos Índios], mas a maioria dos mais velhos morava lá na [Colônia],
porque gostava de trabalhar [plantando], né, aí morar no mato, né.

O discurso dessa Kariri-Xocó é construído a partir de uma vivência passada,


equiparada com a do presente, tendo como referência as relações interétnicas (isto é, entre
indígenas e não indígenas):

Eu mesmo achava a vida da gente melhor do que a vida aqui da Sementeira, porque
lá era mais tranquilo de tudo. Mas também naquele tempo não existia a violência
que existe hoje, né. Lá a gente tinha paz, [...] não tinha preocupação. [...] a gente
vivia libertamente. Não é como nós vivemos na Sementeira, [por]que na Sementeira
nós não vivemos libertamente, porque aparece o de fora e vem junto com os
parentes, muitos que são errados, né, aí vai fazer erro também. Aí nós não temos
paz, nesse ponto não tem. [...]. Na Colônia entrava cabeça seca, mas só que nós não
éramos atingidos muito não. Não éramos atingidos e nem nada. De jeito nenhum.

A palavra liberdade pode assumir diversas conotações, mas todos os significados são
construídos a partir de uma vivência intersubjetiva, isto é, numa relação entre Kariri-Xocó e
não índios. Um dos sentidos atribuído à liberdade seria o de viver a tradição do Toré em
qualquer espaço da aldeia, sem se preocupar com os não indígenas. Assim, segundo o índio
Pacoá:

Nós não dançamos aqui na área direto. [...]. Nós estamos parados, por que eu vou
te explicar: porque hoje nós estamos com muitos brancos aqui dentro. [...]. Aí tem
horas que a gente não tem espaço para continuar aquela tradiçãozinha certa. Mas
antes, quando nós morávamos na Colônia e outra parte aí da cidade, essa tradição
nós permanecíamos lá na Colônia. Mas hoje nós estamos com muitos brancos aqui
190

dentro. É o tipo da coisa: nós estamos [nos] achando imprensados. E a gente quer
resolver essa parte, não pode, porque vem um filho meu, casa com uma branca. Vem
uma filha minha e casa com um branco.

Desse modo, existem situações específicas em que o Toré é cantado e dançado, como
nas retomadas, no falecimento de um Kariri-Xocó, em época de São João e no Ouricuri. A
noção de liberdade cerceada também é associada à condição de reserva indígena e à falta de
terra para a livre circulação. Desse modo, segundo Wythaia:

Para quem antes era livre, tinha toda liberdade de terra. Nós índios vivemos em
uma reserva. Para você ver a que ponto o Brasil chegou. Se nós tínhamos a mata
para a gente ser livre, hoje a gente está em reserva. E nós só queremos um pouco do
que é nosso, só para ficar um pouco livre. Estamos presos só em reserva.

Essa falta de liberdade referida por Wythaia deve ser associada a uma noção estatal de
territorialização, isto é, “uma intervenção da esfera política que associa – de forma prescritiva
e insofismável – um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem
determinados” (OLIVEIRA, 1998, p. 56). Essa forma de territorialização é um “ato político –
constituidor de objetos étnicos através de mecanismos arbitrários e de arbitragem (no sentido
de exteriores à população considerada e resultante das relações de força entre os diferentes
grupos que integram o Estado).” (OLIVEIRA, loc.cit).

Figura 18 - Campo de futebol, aldeia Kariri-Xocó


191

Figura 19 - Escola Pajé Francisco Queiroz Suíra


192

Figura 20 - Posto de Saúde Indígena

4.6 Retomada do Cercado Grande

Relativamente próximo a Colônia encontra-se o Cercado Grande. Em 1994, os Kariri-


Xocó decidiram, após uma reunião no Ouricuri, que retomariam essa porção de terra ocupada
por posseiros. À época, o pajé Francisco Queiroz Suíra já havia falecido; portanto, seu filho
Júlio Queiroz Suíra assumiu a posição do pai e o cacique era Cícero Daruanda. A questão da
escassez de terra para o plantio indígena era mais uma vez o pano de fundo para a reconquista
da área em questão. Conforme Nhenety em entrevista:

Nos anos 90, no Cercado Grande foi para a gente plantar, porque a gente tinha a
terra daqui, tinha a lagoa, mas a gente tinha que ter uma terra… essa terra do
Cercado Grande era uma terra que era anexa, era da Sementeira, aí os fazendeiros,
os pequenos proprietários tomaram essa terra, ela fazia parte da Fazenda
[Modelo].

Assim como a retomada da Fazenda Modelo, a do Cercado Grande resultou conflitos


externos (isto é, entre os Kariri-Xocó e os não indígenas) e embates internos, ou seja, entre os
próprios indígenas que se dividiram e atuaram em grupos: os favoráveis e os contrários à
retomada. Dentre os representantes do grupo contrário estavam o pajé Júlio Queiroz Suíra e o
193

cacique Cícero Daruanda. Inicialmente, houve uma aproximação entre os líderes de ambos os
grupos, sendo o cacique e o pajé consultados sobre a emergência de retomar o Cercado
Grande. Em cada retomada de terra, os Kariri-Xocó cumprem comportamentos específicos
que não podem ser ultrapassados: consultam o Ouricuri; em seguida, no período da
madrugada e de surpresa adentram o espaço da reconquista; os homens sempre à frente,
comunicam aos funcionários dos fazendeiros e/ou aos posseiros que estão sob uma retomada
de terra e que eles Kariri-Xocó estão ali para reivindicar seus direitos. Na retomada do
Cercado Grande o conflito se acirrou com os parentes do posseiro reagindo:

Chegaram lá, poucas conversas e foi metendo bala. Atirando no chão. Eles
atiraram intimidando. Nós não fomos matar ninguém. Nós fomos para retomada da
nossa área que é nossa. Avisamos os moradores que saíssem numa boa, tranquilos,
sem agressão nenhuma (MANUEL SANTOS).

A reação indígena foi paradoxal, enquanto uns correram para a mata do Ouricuri
(adjacente ao Cercado Grande), outros reagiram em defesa própria. O balanço final do
conflito foi o derramamento de sangue em que aconteceu até morte. [...]. O índio levou três
tiros e eu levei um de raspão na cabeça. E morreram duas pessoas dos posseiros, porque [...]
foi matar os caboclos, afirmaram Manuel Santos, Tawanã que levou o tiro de raspão e
Valdete.
Extremamente preocupados com represália, uma vez que um dos posseiros mortos era
policial, os Kariri-Xocó temeram que os colegas do falecido aparecessem para se vingarem.
Desse modo, os índios fizeram vigília dia e noite nos portões da aldeia. Além disso,
mobilizaram uma rede étnica formada por laços de amizade e afinidade com os Fulni-ô
(Águas Belas - Pernambuco) que se deslocaram em dois ônibus para Porto Real do Colégio.
Felizmente, nada de mais grave aconteceu.
Devido à morte de não indígenas no território Kariri-Xocó, órgãos públicos como a
Funai e o Ministério da Justiça foram acionados. Segundo relatos durante o trabalho de
campo, nesse momento, as lideranças Kariri-Xocó posicionaram-se em relação à retomada: a
hora que bateu na justiça, eles [cacique e pajé] tiveram que ir a pulso, foram forçados a ir à
justiça dar o depoimento deles. Conforme pajé Júlio, mesmo que ele tenha se posicionado de
modo antagônico à retomada do Cercado Grande, interveio por ser o seu povo. Todavia, pajé
Júlio justifica seu posicionamento contrário à retomada. Para isso, recorre mais uma vez ao
Ouricuri como fundamento para suas decisões e centralização de seu poder. Afirma: nós,
primeiro, vamos [ao Ouricuri] se acobertar. Que lá nós nos acobertamos para que não haja
miséria. O termo acobertar significa proteção espiritual, sendo o Ouricuri local para se estar
194

com Deus. Se por acaso não ocorrer essa proteção divina, cujo termo utilizado pelo pajé é
desacobertado, haverá malogro e infortúnio. Segundo pajé foi o que aconteceu na retomada
do Cercado Grande em que houve morte. Enfatiza que nessa retomada, os seus oponentes:

Fizeram sem a minha determinação. E eles foram para o ritual sem a minha
autorização. [...] Foram para o Ouricuri [sem o pajé saber], não souberam chamar
a cobertura para salvá-los, para garanti-los certo. E depois do que existiu, só quem
teve o pulso... dos que entraram lá, ninguém teve pulso para resolver. Só quem
resolveu fui eu, fui para a justiça (JÚLIO QUEIROZ SUÍRA).

Pajé Júlio credita a resolução da homologação da Terra Indígena Kariri-Xocó à justiça:


Não está na justiça? A justiça não está procurando resolver por leis e por direito, com
documentação? Todavia, há divergências entre indígenas na forma de se fazer justiça, assim,
deve ser considerada uma oposição interna quanto à concepção pragmática de justiça:
enquanto os integrantes contrários à retomada acreditam e esperam o cumprimento da
legislação brasileira (em que os posseiros deveriam ser indenizados e retirados do território
indígena), o grupo favorável à retomada defende uma justiça nativa: mobilizada pelos
próprios Kariri-Xocó e, se necessário, lutar no corpo a corpo com os posseiros para que seja
feita a desintrusão da área. Os membros do grupo favorável alegam morosidade da justiça
para com a homologação do território Kariri-Xocó. Portanto, decidiram fazer justiça por conta
própria, uma forma encontrada para terem suas terras de volta e de pressionarem as
autoridades a darem continuidade ao processo de homologação do território indígena. O ato
indígena de retomar suas terras pode ser visto como um processo de desintrusão nativa, isto é,
os Kariri-Xocó mobilizam recursos próprios para que os ocupantes não indígenas se retirem à
força da área demarcada. Esse ato de desintrusão, ou seja, de desocupação da área indígena,
deveria ser garantido pela constituição federal, uma vez que o território Kariri-Xocó é
demarcado e urge homologação. Entretanto, como o processo legal para o levantamento das
benfeitorias, seguido da homologação, está paralisado, os índios decidiram aplicar a lei em si:
vamos retomar o que é nosso e nós só conseguimos retomando. Nenhum povo indígena no
mundo, nunca conseguiu suas terras sem eles se manifestarem, não, disse Pawanã.

4.7 Retomadas no Povoado Sampaio

Em fevereiro de 2015, na continuidade do processo de retomada de suas terras, os


Kariri-Xocó decidiram reconquistar mais uma fazenda: a Três Amores. Para entender o
contexto dessa tomada de decisão indígena faz-se necessário uma retrospectiva conjuntural.
195

Segundo o índio Ivanildo, do ano de 2006 para o de 2007, o ex-presidente Luís Inácio Lula da
Silva e o ministro da justiça da época:

Decretaram e deliberaram para demarcar a Terra Kariri-Xocó. O Ministério da


Justiça formou uma equipe, contratou junto a Funai uma equipe de GT, uma
empresa, aí eles vieram e colocaram as placas. A Terra Kariri-Xocó está decretada
Terra Kariri-Xocó. Só demarcada. Botaram as placas e identificou o território
(IVANILDO).

Porém, em represália, os ocupantes não indígenas da área demarcada retiraram tais


placas. Diante disso, as lideranças Kariri-Xocó se manifestaram ao Ministério Público e
aguardaram providências, sobretudo, para a continuidade do processo de homologação da
Terra Indígena. Anos posteriores, o cenário indicava mudanças, assim, em 2014, a Funai
iniciou o levantamento e a avaliação das benfeitorias de não indígenas no território Kariri-
Xocó. Consta no Diário Oficial da União, seção 2, número 226, 21 de novembro de 2014,
portaria Nº 1.271:109

[...] considerando os procedimentos de regularização fundiária da Terra Indígena


Kariri-Xocó, resolve: Art. 1º Constituir Grupo Técnico para realizar o levantamento
e avaliação de benfeitorias implantadas por não-índios na Terra Indígena Kariri-
Xocó, localizada nos municípios de Porto Real do Colégio e São Brás, Estado de
Alagoas.
[...] Art. 3º Autorizar o deslocamento do Grupo Técnico a referida Terra Indígena e
às cidades Porto Real do Colégio, São Braz, Recife e Maceió, concedendo o prazo
de 31 dias para execução do levantamento de campo, apresentação do relatório
fundiário e do material técnico da avaliação das benfeitorias, a contar de 19 de
novembro de 2014.

Todavia, o trabalho do grupo técnico da Funai sofreu interrupção em consequência de


uma ação perpetrada por um fazendeiro que, segundo afirmou Ivanildo: é o presidente da
Associação dos Fazendeiros, dos posseiros, ele entrou com uma ação impedindo essa equipe.
E o juiz simplesmente atendeu e suspendeu a equipe.
Porém, já havia indícios das ações impeditivas dos ocupantes não indígenas antes
mesmo da decisão judicial. Segundo Tawanã: [a] Funai foi e entrou com o levantamento da
terra para ir pagando já os posseiros. Aí em toda terra que eles iam, os posseiros não
deixavam eles entrarem. Conforme quadro demonstrativo da Funai110 encontram-se cem
ocupantes não indígenas no território de ocupação tradicional Kariri-Xocó. O quadro recorre à

109
Informação disponível em Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência da República:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=26&data=21/11/2014, acessado em
30 de outubro de 2017.
110
O documento “Quadro demonstrativo de ocupantes não-índios” na Terra Indígena Kariri-Xocó STI. Sistema
de Terras Indígenas DAF/FUNAI – 3/9/2008, foi disponibilizado (formato impresso) por Denizia Cruz Kariri-
Xocó, estudante de Direito, durante o trabalho de campo na aldeia Kariri-Xocó, ano de 2017.
196

variável “situação da ocupação” para classificar se o imóvel localizado em área indígena é


uma propriedade ou uma posse, desse modo, utiliza-se o termo “proprietário” ou “posseiro”.
Essa centena de ocupantes não índios têm imóveis localizados nos marcos do território Kariri-
Xocó, como por exemplo: Pedra da Mesa, Tibiri, Sampaio, Lagoa Grande, Lagoa Funda,
Lagoa da Enxada, etc.
Por conseguinte, diante desse cenário de morosidade da justiça em prosseguir o
processo de homologação do território indígena, houve uma mobilização interna da aldeia
Kariri-Xocó: um grupo formado por jovens e adultos indígenas decidiram que era hora de
agir, mesmo que as lideranças cacique e pajé fossem contrárias a uma nova retomada. Os
Kariri-Xocó que lideraram a ação de retomada de mais uma terra carregavam no peito o
sentimento de serem enganados pela justiça brasileira, conforme expressou Ivanildo:
enganando a gente, enganando as lideranças e as lideranças passando para a gente a
enganação que foi feita com os Kariri-Xocó.
Mais uma vez, a tônica do discurso de reação para a retomada giraria em torno de
noções de justiça:

Os mais velhos estavam dizendo o quê? “Tem que respeitar a justiça. Nós temos que
respeitar a justiça”. Mas, tem momentos que a justiça tem que ser afrontada para
poder… como é que ela vai fazer algo se você bota uma papelada lá e você não
[tem] advogado para estar lá todo dia cobrando. Então, como você não tem
condições de botar um advogado lá cobrando para ter um bom entendimento… é
como se fosse assim: a pessoa rica que tem a fazenda mantém advogado com
dinheiro. E o advogado vai lá no juiz e interrompe o processo, faz de tudo para ficar
parado. Mas, nós não temos condições. As condições que nós temos é a Funai. [...].
Mas a coisa mais certa que tem é entrar na terra (TAWANÃ).

Na visão dos Kariri-Xocó, a esfera jurídica deveria garantir a aplicação da lei, porém,
como há uma lentidão judicial, é preciso subverter a ordem. Assim, disse Ivanildo:
Quando a força da lei não prevalece, [...] a lei da força prevalece, que somos nós. E
aí revoltados com tudo isso, nós fizemos a ocupação. [...]. Então, vamos se articular e vamos
fazer essa retomada. Segundo disse Ivanildo.
Ao considerar que não aguentam mais esperar pela justiça, os Kariri-Xocó assumem o
protagonismo da luta pela posse imemorial do território, portanto, falam “em seu próprio
nome”, “como autores das [suas] ações” (DANTAS, SAMPAIO E CARVALHO, 1992, p.
450). Para reconquistarem mais um pedaço de terra, os Kariri-Xocó se organizaram por meio
de uma reunião convocada na escola indígena. Segundo Ivanildo: todo mundo ficou
informado, todo mundo aceitou que a gente teria que fazer algo. Aí nós marcamos o dia de
fazer a retomada que foi no dia 27 de fevereiro [de 2015].
197

Apesar de definida a data, os Kariri-Xocó, como de práxis, foram se assegurar no


Ouricuri. Nesse local aconteceu uma reunião, momento em que os articuladores da retomada
obtiveram uma resposta do posicionamento dos demais indígenas: foi uma negação, porque o
povo não foi. Se acharam lá na reunião, lá no Ouricuri dezesseis pessoas para fazer essa
retomada. [...]. Eram pessoas mais novas, jovens e também pessoas pouco idosas. [...] Só
homens. Consequentemente, decidiram não realizar a retomada e reavaliaram suas estratégias
ainda no Ouricuri. Por ser um local sagrado, o Ouricuri favorece o contato com entidades
sobrenaturais, desse modo, segundo Ivanildo: chegou uma ordem superior, uma ordem divina
que a gente deveria pensar e fazer o jeito certo. [...]. E o melhor caminho seria o quê? A
gente retornasse não para a aldeia, mas que ficasse em um lugar chamado Colônia, próximo
a BR 101.
Ivanildo nomeia o ser divino que ordenou a ida deles à Colônia: o espírito guerreiro.
Portanto, do Ouricuri seguiram para a BR 101. O movimento começou com uma pequena
participação indígena de trinta pessoas. Segundo Tawanã:

A nossa intenção era chamar a atenção dos outros daqui. Chamar a atenção dos
líderes e mostrar para eles que o certo é fazer isso. [...]. Tem que entrar. Se não
ocupar a terra, terra nenhuma não foi conseguida até hoje sem o índio ter entrado e
nem ter conflito, não. Aí, só que eles acharam que nós íamos ganhar a terra só
esperando pela justiça, não. Nós temos no mínimo estar cutucando fora. Fazendo.
Fechando BR, tudo mais.

Com a interdição da rodovia, esses Kariri-Xocó conseguiram mobilizar mais pessoas


da aldeia que se juntaram ao movimento. A BR 101 ficou interditada por quatro horas. A
mídia local (rádio e televisão) cobriu o ato. As redes sociais foram utilizadas pela Rede de
Apoio ao Povo Kariri-Xocó que registrou e divulgou no Youtube as imagens do ato
reivindicatório. A frase de abertura do vídeo é: “Na luta pela retomada das terras indígenas
Porto Real do Colégio – Alagoas – Brasil. Junte-se a essa causa”. Na cena inicial do vídeo, os
Kariri-Xocó realizam o Toré, usam arco e flecha e cocar, ateiam fogo em pneus e utilizam
galhos de árvores para barrarem a passagem de veículos na rodovia. Um homem Kariri-Xocó
é entrevistado por um repórter. Na cena seguinte, saem da BR em direção as suas terras, um
grupo formado por homens (adultos, jovens e crianças) entoam o Toré. Logo em seguida é
formado um grande círculo de homens e mulheres para dançar e cantar o Toré.
Posteriormente, seguem múltiplos depoimentos Kariri-Xocó, já na área retomada. No final do
vídeo cantam uma música, seguida de uma legenda: “Indígenas Kariri Xocó Lutam pela
198

Terra: Direito Sagrado”. 111


Esse vídeo é um recurso importantíssimo para os Kariri-Xocó,
uma vez que encontram nas imagens produzidas e nos depoimentos nativos (de homens,
mulheres, adultos, idosos e crianças) a possibilidade de denúncia e protagonismo indígena em
relação à luta de suas terras. No vídeo, os Kariri-Xocó dão o recado ao “branco de bom
coração: queremos a nossa terra”. Na visão deste povo indígena há brancos de “bom coração”,
com quem esperam contar para a luta e brancos de coração ruim (digamos assim) de quem
cansaram de esperar pela ajuda para a garantia do direito pleno ao território. Nos vinte e um
depoimentos que dão corpo à produção visual e força às falas nativas, torna-se evidente quem
são os brancos maus: prefeito, senador, deputado e presidente, que despertam o sentimento
indígena de sentirem-se desprezados e desassistidos politicamente. Desse modo, é eloquente o
discurso indígena no que se refere à política brasileira como não engajada na luta dos direitos
dos povos indígenas.
Nos depoimentos do vídeo há o emprego da autodenominação “índio”, cujo sentido é
diretamente relacionado à terra, à natureza, aos antepassados e aos rituais:

Por que resolvemos retomar? Porque não aguentamos mais sofrer com um espaço
que nós não temos. E hoje estamos aqui aderindo a este movimento. Espero da
justiça que nos dê favorável à nossa luta. [...]. Que nós indígenas nós só somos
felizes se nós tivermos terra. Porque a terra é nossa. A mãe terra, a natureza
pertence a nós, né. E até porque a nossa terra ela foi demarcada há muito tempo
[…] desde a família real demarcou, o rei delimitou esta terra para nós, né. De
muito tempo sabemos que temos, mas está nas mãos… estava nas mãos dos
posseiros, mas agora é nossa. Não saímos dela para nada, né. Só Deus é que tira a
gente desta terra, mas o ser humano não, porque ela é nossa. Está comprovado que
esta terra é nossa. A justiça sabe disso. Nós não saímos dela para nada. Para
sobreviver, porque o índio sem terra não é ninguém. Existe o povo sem-terra, mas o
índio tem a sua própria terra. (Depoimento de Natuyê – Kariri-Xocó).

Porque da terra nós tiramos tudo: tiramos nosso alimento, tiramos a nossa crença,
a nossa medicina, nossos remédios, né, nossas ervas, a nossa tinta, os nossos
objetos patrimoniais que é nosso artesanato, tiramos educação, tudo da terra, nossa
moradia, tudo. (Depoimento de Pawanã Crody Tinga Kariri-Xocó).

Dom Pedro II é figura central e recorrente no discurso e no imaginário social Kariri-


Xocó ao se referirem ao direito originário de suas terras. Mata (2014) que realizou trabalho de
campo (1979-1983) entre essa população indígena, já havia ouvido referências ao imperador
de Portugal. Segundo a autora: “A população índia de Porto Real do Colégio [...], está
convencida de que a posse das terras, que reivindica e das quais invadiu uma parte em 1978,
foi confirmada pelo imperador” (p. 75-76). Conforme a história oral dos índios do Nordeste e

111
Publicado pela Rede de Apoio ao Povo Kariri-Xocó, Youtube em 22 de setembro de 2015, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=9OL6zuDajk8, acessado em 20 de julho de 2016.
199

registros documentais, Dom Pedro II ao viajar para Paulo Afonso (Bahia) em 1859 e início de
1860112, aportou em “Porto Colégio” e foi recebido pelo índio Kariri Manuel Baltazar. Em
função dessa passagem imperial a tal localidade, a tradição oral indígena (e não indígena que
vive em Colégio) afirma que houve uma substituição dos topônimos: de Porto Colégio, sendo
oficializado para o nome Porto Real do Colégio, uma clara menção à família real de Portugal
(MATA, p. 77). Assim como Mata, também ouvi os Kariri-Xocó aludirem a Dom Pedro II na
contemporaneidade. Essa população indígena não é a única a reportar ao imperador lusitano
quando o assunto é o direito às terras indígenas. Desse modo, existe a “figura quase
messiânica do imperador, a quem a tradição oral de muitos grupos atuais do Nordeste atribui a
doação das terras que hoje habitam” (DANTAS, SAMPAIO E CARVALHO, 1992, p. 450).
Os Kariri-Xocó ao trazerem à baila a célebre visita de Dom Pedro II a Porto Real do Colégio,
ainda atribuem ao então período da realeza portuguesa a possibilidade de garantia de seus
“direitos sobre as terras” (ibidem, p. 450).
No vídeo do Youtube, os Kariri-Xocó se dizem “índios sofredores”, sendo recorrente o
uso do termo sofrimento relacionado à falta de terra, a morosidade da justiça para homologar
o território e às condições em que se encontram na retomada atual. Para esses índios, a
retomada de suas terras é representativa da luta das populações indígenas. A causa é
considerada gigantesca, legítima e necessária: “que não é só o povo Kariri-Xocó, é o povo
indígena do Brasil e do mundo inteiro que precisa de suas terras” (Kajaby Tinga – Kariri-
Xocó afirma no vídeo).
Para a retomada da fazenda Três Amores no Povoado Sampaio, houve uma articulação
de jovens e adultos Kariri-Xocó que formaram um grupo à parte, uma vez que as lideranças
antigas apoiadas por demais pessoas da aldeia não apoiaram a ação reivindicatória da terra.
Desse modo, o faccionalismo Kariri-Xocó na luta pelas retomadas da terra se expressa por
meio da formação de grupos opostos: os autodenominados guerreiros, favoráveis e
organizados para a retomada versus a liderança tradicional, em parte, contrária a certo tipo de
ação de retomada, já que delegam à justiça a desintrusão dos ocupantes não indígenas e a
homologação do território Kariri-Xocó. Cabe dizer que a nomeação grupo dos guerreiros é
motivada pela própria referência nativa ao termo, uma vez que os Kariri-Xocó das retomadas
referem-se a si mesmos como guerreiros. Enquanto no vídeo citado acima, os Kariri-Xocó
atribuem a si a identidade “índios sofredores”, há simultaneamente a construção de uma
identidade positiva: índios guerreiros. Para um Kariri-Xocó, autodefinir-se guerreiro significa

112
Ver Dantas, Sampaio e Carvalho (1992).
200

estar em ação e luta por suas terras. Segundo Tawanã: guerrear é lutar e agir. Em
conformidade, ouvi um homem Kariri-Xocó afirmar: nossa trajetória é essa mesma:
guerrear. Nossa doutrina é essa: lutar pelo que é nosso. Em uma retomada, a identidade de
guerreiro assume diversas formas: o guerreiro do alimento, o guerreiro espiritual, o guerreiro
vigilante, o guerreiro da ação:
[...] tipos de guerreiros que ficam para organizar a parte da alimentação; guerreiro
espiritual para fortalecer o grupo, né; outros ficam na parte para... tipo vigilante para vigiar
a área e têm outros que vão para a ação, né. Nós somos guerreiros para a ação. Esta
explicação partiu de um jovem Kariri-Xocó, cujo nome tem definição atrelada ao vocábulo
guerreiro. Dyjawby: guerreiro para a ação, grande guerreiro.
Com o fechamento temporário da pista BR 101, a polícia rodoviária federal interveio e
procurou dialogar com os Kariri-Xocó que liberaram a estrada. Segundo Valdete Kariri-Xocó:
nós saímos, viemos para a Colônia, para os pés de mangueira na Colônia. Nessa localidade
permaneceram por praticamente um mês. Em tal circunstância, a tensão social interna se
acirrou. Conforme um homem Kariri-Xocó:

As lideranças [cacique e pajé] naquele momento quando viram o povão, ficaram


contra o movimento. [...]. Inclusive fizeram um documento e mandaram para o
coordenador da Funai, dizendo que as pessoas que estavam à frente desse
movimento [...] não seriam pessoas bem quistas dentro da comunidade.

Mas, não intimidados, o grupo dos guerreiros realizou uma reunião em que acionaram
a Funai para esclarecer sobre a documentação da Terra Indígena Kariri-Xocó. Na Colônia
decidiram retomar a fazenda Três Amores. A distância de ambos os lugares é de cerca de sete
quilômetros. Para essa retomada, os Kariri-Xocó se deslocaram por dentro da aldeia. Valdete
relembra: zero hora [meia noite], viemos caminhando. Os homens na frente e as mulheres
ficaram... para ir posteriormente. Vejamos como se deu o momento da ação do grupo da
frente:

Quando nós chegamos perto da Fazenda, alguns quiseram desistir. Paramos. Na


verdade, o povo parou. [...] Já que eu prometi ao grande espírito que nós vamos
fazer a retomada e o grande espírito já assinou isso, eu não vou decepcionar o
nosso grande espírito guerreiro [...]. Quando nós chegamos ao redor da casa, eu
anunciei que eles [posseiros] estavam [cercados por] trezentos homens, guerreiros
indígenas. Que a Fazenda deles naquele momento estava sendo retomada e que nós
não queríamos nada com ele e que nós não estávamos ali para fazer nenhum mal a
ele, só queria que ele pegasse o carro dele e fosse embora. E que ele fosse embora e
que buscasse os direitos dele que ele também tem. [...]. Nós soltamos fogos, porque
quando a gente chega a uma terra que é nossa, prometida, a gente comemora a
nossa retomada ali naquele momento, demarcamos o terreno logo cantando Toré,
soltando fogos (IVANILDO).
201

Com a saída dos não indígenas, as mulheres Kariri-Xocó se dirigiram à retomada.


Segundo Valdete: chegamos de uma para as duas da madrugada. Ao retomarem a terra, os
Kariri-Xocó ergueram ranchos dentro da fazenda Três Amores. A partir do momento em que
fizeram a retomada iniciou-se um embate jurídico entre os Kariri-Xocó e os ocupantes não
indígenas: o fazendeiro da área retomada tratou de acionar a justiça e os Kariri-Xocó
contestaram. No total três liminares: nas duas primeiras, os Kariri-Xocó contestaram as ações
e tiveram seus pedidos judiciais deferidos, no entanto, na terceira liminar perpetrada pelo não
índio, os Kariri-Xocó, ao questionarem a mesma, receberam o indeferimento judicial.
Consequentemente, saíram da fazenda, mas não se deram por derrotados. Desse modo,
decidiram retomar uma propriedade contígua à fazenda Três Amores. Essa área retomada é
denominada pelos Kariri-Xocó como Fazenda. Enquanto a Três Amores é somente de um
proprietário, a área ao lado é ocupada por mais de uma pessoa não indígena, totalizando cinco
posseiros. Ao retomarem essa faixa de terra, os Kariri-Xocó foram interceptados por uma
nova liminar que ordenava a saída dos mesmos. Todavia, os indígenas derrubaram essa
liminar e permanecem na retomada até os dias de hoje.
A retomada pode ser pensada como a construção de uma fronteira étnica (BARTH,
2000 [1969]) em que os Kariri-Xocó estabelecem a proibição para a entrada de não indígenas
na área reconquistada. No portão da retomada da Fazenda há uma placa com a frase: proibido
entrada de brancos. A circulação de cabeças secas deve ser autorizada pelos indígenas,
mesmo que os Kariri-Xocó sejam casados com pessoas não índias. Assim, conforme uma
mulher branca que mantém relacionamento com um Kariri-Xocó: quando tem cabeça-seca eu
venho [à retomada], senão, não pode.
A minha inserção na retomada da Fazenda se deu aos poucos. Na primeira ida à aldeia
Kariri-Xocó (em 2016) fui acompanhada por Kayrrá que mora em São Paulo e que estava de
passagem em Porto Real do Colégio. Nesse período, Kayrrá comparecia à retomada
praticamente todas as noites e eu ia com ele, desse modo, era permitida minha permanência na
área. No decorrer do campo, sua madrinha Zélia que também participa da retomada,
convidou-me para dormir uma noite em seu rancho. De lá para cá tive livre acesso à retomada
e pernoitei em outros ranchos. No período noturno existe maior concentração indígena na
retomada, uma vez que durante o dia a maioria dos Kariri-Xocó retornam à aldeia para
cumprirem seus afazeres: levar os filhos à escola, cuidar da casa e trabalhar. Desse modo, a
retomada é frequentada de diversas formas: há índios que permanecem a semana; outros só
dormem e retornam à aldeia durante o dia; enquanto alguns só comparecem aos finais de
202

semana. Em 2016, a retomada apresentava um expressivo contingente indígena, mas no ano


posterior (2017) houve uma baixa considerável, com redução dos ranchos. As justificativas
para essa mudança são várias:
Primeiramente é relevante destacar que todos os Kariri-Xocó são a favor da luta pelas
suas terras, mas a divergência é na maneira como as retomadas são desencadeadas. Desse
modo, as argumentações nativas em relação à retomada da fazenda Três Amores e da Fazenda
ocorrem sobre a forma e os desdobramentos das reconquistas das terras. Há um grupo Kariri-
Xocó formado por dissidentes, isto é, inicialmente participaram das retomadas, mas
posteriormente as abandonaram. Os Kariri-Xocó que não apoiam essas retomadas consideram
que o objetivo das mesmas:
São as nossas terras. E lá teve uma falta de controle de alguns organizadores que
aconteceram coisas que não deveriam. [...]. Nós estamos atrás de terra. Disse o cacique
Cícero Queiroz Suíra.
Os desacordos e eventuais desentendimentos acerca da retomada da Três Amores se deu
pelo fato de um grupo Kariri-Xocó não concordar com a ação de outro grupo em ter pego os
bens materiais contidos na casa do fazendeiro. Sendo assim, os membros do grupo dissidente
afirmam: a nossa luta é pela terra e não pela benfeitoria. Além disso, os membros do grupo
contrário a essa atitude dizem sentir temor de que todos os Kariri-Xocó sejam definidos pelos
não indígenas como ladrões, o que representa um modo de deslegitimar e criminalizar as
ações de retomadas do território organizadas sem concordância da liderança tradicional.
As ações daqueles indígenas que consideraram legítimo o ato de pegar os objetos do
fazendeiro, se contrapõem ao ethos do grupo contrário a tomar o bem material alheio.
Portanto, existem padrões de comportamentos distintos em que cada grupo define as formas
de agir que consideram adequadas às circunstâncias da retomada. Outro contrassenso é sobre
a derrubada dos imóveis dos não indígenas. Um grupo é favorável à destruição parcial ou total
das residências e existe o grupo desfavorável a esse tipo de ação, uma vez que afirmam que a
luta é pela terra. Contudo, segundo a defesa de uma senhora Kariri-Xocó, os índios atingiram
a residência do fazendeiro depois que a liminar da justiça autorizou a reintegração de posse da
fazenda Três Amores, sendo que para efetuá-la derrubaram os ranchos Kariri-Xocó. Portanto,
a justificativa do grupo favorável à destruição da Três Amores é de que se os brancos
invadem as nossas terras que são oficialmente demarcadas, nós podemos retomá-las por
direito legítimo. Se houve a destruição dos nossos ranchos, podemos atacar ou até mesmo
destruir os bens materiais do fazendeiro.
203

O fato do pajé Júlio Queiroz Suíra não apoiar as retomadas das fazendas localizadas
acima do Povoado Sampaio é vista como uma motivação para muitos Kariri-Xocó não
participarem das mesmas. Como vimos, pajé Júlio se apoia no Ouricuri para suas tomadas de
decisões. Afirma: a religião tem que me autorizar. É quem vai me dizer se está no momento.
Se eu posso ou não, para eu decidir para eles. [...]. Que a religião é contra aquele momento.
Em relação à Três Amores, conforme pajé Júlio, a resposta da religião foi: vocês não estão
preparados e não é o momento. Aguardem a minha decisão. Disse isso na terça-feira. Assim,
o pajé faria uma nova consulta no Ouricuri que, segundo ele: ficou para no domingo a
religião dar uma decisão a eles: ou sim ou não. Na quinta-feira eles, sem saberem disso, sem
saber nada, meteram a cara. Diante disso, o pajé afirma ter tomado a decisão de não apoiar o
movimento de retomada. Para essa liderança, o grupo transgrediu os ensinamentos da religião:
não desobedeceram a mim, desobedeceram a uma ordem superior [religiosa]. Desse modo é
o poder político do líder espiritual que está em jogo, em uma desassociação entre dois
domínios até então imbricados.
A conceituação sobre “ritual de rebelião” de Max Gluckman (2011 [1963]) pode ser
aplicado ao Ouricuri no contexto das retomadas. O autor ao analisar as cerimônias bantos do
sudeste da África afirma que “a característica mais marcante de sua organização é a maneira
como revelam tensões sociais”:

[...]. Por isso, eu as chamo de rituais de rebelião. Demonstrarei que seguem


esquemas tradicionais estabelecidos e sagrados nos quais são questionadas as
distribuições particulares de poder e não a própria estrutura do sistema. Isso permite
protesto institucionalizado, além de renovar a unidade do sistema de várias e
complexas maneiras (GLUCKMAN, 2011, sem numeração).

Para qualquer retomada de terra, como tem sido demonstrado ao longo deste capítulo,
os indígenas recorrem ao Ouricuri, por ser uma tradição sagrada e institucionalizada
socialmente. É unânime entre os Kariri-Xocó que o pajé Júlio é o líder espiritual desse ritual,
no entanto, essa centralização de poder é questionada no contexto específico das reconquistas,
mesmo que o pajé alegue que é o poder divino (consultado por ele no Ouricuri) que
deslegitima algumas das ações de retomada de terras. A consulta ao Ouricuri é uma forma de
obter autorização ou desautorização sagrada para a reconquista da terra. Apesar de pajé Júlio
afirmar ter recebido resposta divina desfavorável para a retomada da Três Amores e, portanto,
não ter apoiado a mesma, um dos homens favoráveis a essa retomada e que participou da
reunião no Ouricuri sem a presença do pajé, alega que a decisão de lutar pela terra se deu a
partir do espírito guerreiro que transmitiu no Ouricuri a mensagem de que a reconquista
204

deveria ser efetuada. Portanto, o grupo de guerreiros contestou o poder do pajé: suas ordens e
seu discurso desfavorável à retomada. Assim, colocaram em cheque a liderança do pajé em
decidir por todos, sinalizaram que a voz é do povo Kariri-Xocó e de que eles é quem decidem
o rumo de suas lutas. Desse modo, são apresentados dois discursos em que cada grupo (o dos
guerreiros e os contrários a retomada) desautoriza os argumentos do outro.
As retomadas revelam tensões sociais internas e disputas à liderança. Pajé Júlio e
cacique Cícero Daruanda não eram partidários da retomada da Três Amores e da Fazenda.
Com o falecimento de Daruanda, Cícero Queiroz Suíra assumiu a posição de cacique e, assim
como seu pai Júlio, posicionou-se contrário a tais retomadas. Conforme informações de
campo, cacique Nadinho também não era adepto ao grupo dos guerreiros. Já Pawanã que se
define e é reconhecido por alguns como pajé, sempre foi defensor e atuante, tendo sido um
dos principais líderes da retomada das Três Amores, assim como da atual retomada da
Fazenda. Porém, esse quadro se modificou após a morte de Daruanda, seu filho Nadinho
reivindicou para si a sucessão de chefia do pai que se apresenta como cacique da aldeia
Kariri-Xocó. A partir desse momento, estabeleceu aliança política com o “novo pajé” Pawanã
e começou a apoiar igualmente a retomada da Fazenda. Por conseguinte, acirrou-se ainda
mais a disputa entre as facções cacique e pajé; de um lado, pajé Júlio e cacique Cícero,
respectivamente pai e filho do tronco Suíra que se define como Kariri; do outro, o cacique
Nadinho e o pajé Pawanã, ambos do tronco Souza que pertence aos Xocó. Cícero e Júlio
decidiram reafirmar suas lideranças e a forma encontrada para manterem seus poderes
religioso e político foi a elaboração de um discurso em prol da retomada da Fazenda e a
mobilização do povo Kariri-Xocó. Segundo Cícero Queiroz Suíra:

Nós não concordamos com essa retomada no começo, mas, hoje, hoje... quando [eu]
não era cacique eu fui contra. E até um tempo desse quando [eu] era cacique fui
contra uma coisas que estavam fazendo. Não dizendo assim: contra o povo. Porque
quando a gente vai para uma retomada, nosso objetivo são as nossas terras. E lá
teve uma falta de controle de alguns organizadores que aconteceram coisas que não
deveriam acontecer. [...]. Eu vou dar continuidade a retomada.

Assim, conforme Cícero, ele assumiria a continuidade da retomada: agora eu vou


começar a agir dentro da tribo, para a terra. Eu não vou fazer uma nova retomada. A
retomada já existe. A questão é que para Cícero, as lideranças que podem assumir o controle
da retomada seriam seu pai (pajé Júlio) e ele enquanto cacique. Portanto, mais uma vez,
deslegitima Pawanã e Nadinho como pajé e cacique. Além disso, anula a autoridade de
Pawanã e de seus companheiros que decidiram desde o começo liderar a retomada da
205

Fazenda. Cícero afirma: Eles queriam ser lideranças, eles mesmos lá [na Fazenda]. Por isso
que não foram para frente. E hoje tem eu: o cacique para partir de frente [com] o meu povo.
Desse modo, Cícero Queiroz Suíra anunciou (em um carro com alto falante), para toda
a aldeia ouvir, que convidava os Kariri-Xocó a comparecerem em uma reunião na Escola Pajé
Francisco Queiroz Suíra, cujo assunto seria a retomada das terras Kariri-Xocó, mais
especificamente, a da Fazenda. Durante a reunião comunicou que compareceria à retomada
para realizar um Toré no período da noite. Neste caso, o Toré é visto por Cícero como um
meio de comunicar aos posseiros que os Kariri-Xocó não desistiram de lutar por suas terras:
[...] que nós não estamos parados, nós não nos apagamos [...]. A Fazenda não está
abandonada. Contudo, o Toré também é o momento de colocar o oponente indígena à prova:
assim, ouvi um homem Kariri-Xocó dizer que um dos caciques: não sabe cantar, nem pegar
uma maraca [...] para cantar um canto do Toré. Portanto, a ascensão ao cargo de cacique
passaria pelo conhecimento da tradição do Toré. Como escutei durante o trabalho de campo:
Por que ele [oponente] quer ser cacique? Não sabe nem cantar um Toré.
Por fim, Cícero compareceu à retomada em que dançou e cantou um Toré, depois
disso não o vi mais. Conforme informações obtidas após a minha saída da aldeia em junho de
2017, o cacique Cícero não compareceu mais à Fazenda e decidiu retomar outra faixa de terra
ocupada por um não índio dentro do território de ocupação tradicional. Assim, um homem
Kariri-Xocó afirmou que as retomadas têm representantes distintos. Desse modo, parece
existir uma disputa interna e um faccionalismo político e religioso, inclusive na divisão das
terras a serem retomadas.
206

Figura 21 - Porto Real do Colégio e a aldeia Kariri-Xocó identificada com a seta preta

Fonte: Google Earth 2017.

A figura acima exibe a localização de Porto Real do Colégio e a aldeia Kariri-Xocó


(destacada pela seta). Do símbolo gráfico ao número 1 corresponde o início da aldeia, ou seja,
a parte baixa. Do número 1 ao 2 delimita-se a parte central e do número 2 ao 3, a parte alta da
aldeia. Os números 4 referem-se ao rio São Francisco.
207

Figura 22 - Marcos indígenas do Território Kariri-Xocó

Fonte: Google Earth 2017.

Figura 23 - Localização do Povoado Sampaio e das áreas retomadas: Três Amores e Fazenda. Fonte:
Google Earth 2017.
208

Figura 24 - Localização das Três Amores e da Fazenda

Fonte: Google Earth 2017.

4.8 Divisão de gênero na Retomada

A presença das mulheres é marcante nas retomadas Kariri-Xocó. Em relação à


Fazenda existe uma onipresença feminina em que vale destacar um proeminente grupo
formado por jovens mulheres universitárias. A porta de entrada para a atuação desse grupo
feminino se deu durante o fechamento da pista AL 225. Segundo um homem Kariri-Xocó, o
fechamento da estrada atingiu diretamente o governo. O bloqueio da L chamou a atenção dos
políticos, com isso, reiniciou-se o julgamento do processo homologatório do território Kariri-
Xocó. Mas, havia um porém: os homens indígenas não sabiam como agir em termos jurídicos.
Segundo Denizia Cruz Kariri-Xocó: os meninos estavam fragilizados pela questão da
documentação e como a gente estudava, aí eles não sabiam como lutar através da justiça,
quais eram os caminhos. Consequentemente, recorreram às universitárias Kariri-Xocó que se
articularam e formaram um grupo composto por indígenas matriculadas em diversos cursos de
graduação: Antropologia, Direito e Enfermagem, inclusive na Universidade de Brasília
(UNB). Dessas mulheres, duas são netas do pajé Júlio Queiroz Suíra e uma outra é
considerada importante líder feminina na aldeia, formada em Pedagogia, pós-graduada em
209

Psicologia e graduanda em Direito. Ela será a primeira mulher advogada Kariri-Xocó e autora
do livro “Kariri-Xocó - contos indígenas” (2014).
Desse modo, essas mulheres começaram a orientar as lideranças masculinas na
retomada. Para isso, criaram um grupo feminino que passou a estudar o processo da área
indígena Kariri-Xocó. Segundo disseram, a atuação feminina foi na parte administrativa [do
processo jurídico], política. [Enquanto a dos homens]: na parte de guerrear. O
conhecimento das jovens mulheres acerca dos trâmites legais possibilitou autonomia indígena,
no sentido de não mais dependerem dos cabeças secas em orientá-los nos procedimentos
legais. Conforme depoimento:

Eram as pessoas de fora que ajudavam eles [Kariri-Xocó] naquela época [das
retomadas anteriores]. Que eram os não indígenas que ajudavam e enrolavam, na
verdade, porque eles poderiam muito bem chegar lá e dizer: “Ó, o documento fala
sobre isso, isso e isso”. Mas não diziam quais eram as brechas. E a gente não, a
gente cai em cima e vemos quais são as brechas.

Apesar das mulheres anciãs não terem participado do grupo de estudo, são
consideradas fundamentais na retomada da Fazenda, uma vez que já tiverem experiências
anteriores, isto é, participaram das retomadas da Sementeira, do Cercado Grande e das Três
Amores; portanto, como afirma Denizia: elas são mais experientes [...]. Elas têm uma
bagagem enorme para passar para a gente. Considera-se que as anciãs: vem de uma missão
de luta muito antiga. Já enfrentaram, já sabem. É atribuído a essas senhoras o papel de
fortalecedoras da luta pela terra: vão dar força aos guerreiros e vão dar força às guerreiras.
Tanto na parte espiritual quanto na parte também da questão da sabedoria.
A retomada da Fazenda tem uma configuração espacial e uma organização social que
lhes são próprias. A disposição territorial segue uma estratégia de combate: é reservada aos
homens uma área próxima ao portão de entrada da Fazenda em que permanecem a noite toda
como vigias, deitados em suas redes e ao redor de uma fogueira. Esse local é privilegiado por
ter uma vista panorâmica da área retomada: vê-se quem entra pelo portão à frente, pela parte
detrás da fazenda e pelos lados direito e esquerdo. Existem duas rotas de acesso à retomada:
por dentro da aldeia ou pela estrada AL 225 que leva ao Povoado Sampaio. Para se chegar à
Fazenda passa-se por dentro do povoado. A movimentação indígena é observada pelos
moradores da localidade.
Ao retomarem a Fazenda, os Kariri-Xocó construíram seus ranchos (também
chamados de barracos) um ao lado do outro, formando um retângulo com o meio livre, onde
se transforma em uma arena política e ritual em que frequentemente realizam reuniões,
210

assembleias e o Toré. Os barracos são erguidos com paus de madeira, suas paredes feitas de
lonas e panos, o teto de Brasilit e o chão batido de areia; há camas, redes, mosquiteiros;
banheiro e cozinha improvisados. Os barracos abrigam famílias formadas por pai, mãe e
filhos; avós, netos e netas; marido e mulher.
Na retomada existe uma divisão de tarefas: (i) o responsável pela arrecadação e
distribuição dos alimentos. A doação de mantimentos é feita pelos próprios indígenas ou por
pessoas não indígenas que apoiam a luta Kariri-Xocó; (ii) aquele que cuida da limpeza do
espaço; (iii) os que vigiam a retomada, inclusive nos dias em que ocorre o Ouricuri, portanto,
a retomada nunca fica abandonada; (iv) os organizadores das reuniões; (v) os que recebem as
pessoas de fora, uma vez que é autorizada a entrada de cabeças secas que visitam a aldeia e
que querem conhecer a retomada.
Na noite de 02 de junho para o amanhecer do dia 03 de junho de 2017, fui recebida
pelo casal Nary e Pawanã para dormir em seu barraco. No romper da aurora (antes das 6
horas) estávamos em pé, uma vez que esses pais levariam seus três filhos que pernoitaram na
retomada à escola. Aos poucos, os demais Kariri-Xocó levantaram-se: homens, mulheres
como Marinita, Valdete, Isabel e Milly, e as crianças. Nós mulheres nos reunimos em frente a
um dos barracos para conversar enquanto os meninos jogavam bola. Em alguns barracos, o
café da manhã era feito. Dirigi-me ao barraco de Edileusa Kariri-Xocó e de seu marido.
Edileusa é mãe de Dadá e tia materna de Kayrrá. Nesse rancho, o casal instalou uma televisão
e logo cedo assistiam ao jornal local. Além do aparelho televiso, havia uma pequena fogueira
em que esquentavam mocotó e café que serviriam a mim como refeição matinal. Logo em
seguida, retornei à área externa da retomada em que Marinita e eu começamos a capinar o
terreiro que estava repleto de plantas rasteiras. Era preciso carpir, uma vez que o terreiro é o
local para a realização de atividades sociais e culturais Kariri-Xocó. Como dito anteriormente:
Toré, reuniões e assembleias. Enquanto limpávamos essa área, outros índios trabalhavam em
suas plantações, pequenos roçados feitos na parte detrás dos ranchos. Plantar na retomada é
uma estratégia nativa para sinalizar às autoridades a importância de sua luta pela terra e de
que a retomada não é um local de ociosidade, mas sim de vida a pulsar. Além das roças, há
indígenas que constroem pequenos galinheiros, como é o caso de Isabel. Há aqueles que
pescam na Lagoa do Coité, localizada na área retomada e cozinham os peixes para serem
servidos na própria Fazenda.
211

4.9 Retomada Menina do Rio

Em 04 de junho de 2017, à noite, houve uma assembleia na Fazenda cuja discussão


era a votação para mais uma retomada de terra ocupada por não indígenas: a chácara Menina
do Rio e propriedades adjacentes. Mais uma vez, reclamavam sobre a morosidade da justiça
em marcar um julgamento, uma audiência em torno da homologação da Terra Indígena
Kariri-Xocó. Os Kariri-Xocó afirmaram que o assunto aqui [na assembleia] é terra. Benefício
da terra para nós todos. [...]. [Que estão] cansados de tanta mentira da justiça, de tanta
humilhação do branco. Não dá mais para recuar. Vamos lutar. Vamos! Permanecer na luta.
Apesar das mulheres participarem da assembleia, eram os homens que majoritariamente
opinavam. Apenas duas mulheres mais velhas expressaram seus pontos de vista. Pajé Júlio e
cacique Cícero não participaram. Contrariamente, Pawanã e Nadinho fizeram-se presentes.
Dadá vereador também, diferentemente de Uilio. A maioria votou a favor de uma nova
retomada. Decidiram que a mesma ocorreria na manhã do dia seguinte.
Durante essa assembleia, havia a presença de cabeças secas, como eu e cônjuges de
alguns índios. Porém, logo após a votação, solicitaram que nos retirássemos e que fôssemos
para outro local, uma vez que dariam continuidade às questões envolvendo a próxima
retomada. É importante dizer que antes de haver essa assembleia, os Kariri-Xocó se
mobilizaram previamente. Desse modo, dias antes, já planejavam a possibilidade de
retomarem a Menina do Rio. Uma arrecadação de alimentos estava sendo feita, aqueles
indígenas que quisessem apoiar a retomada doavam os mantimentos que podiam. Um dos
representantes do grupo favorável à retomada saiu de porta em porta na aldeia solicitando a
doação de comida. O assunto corria de forma sigilosa, uma vez que temiam vazamento de
informação. Desse modo, a ascensão de uma nova retomada era questão interna em que
somente os moradores da aldeia poderiam saber.
Após a assembleia noturna, uma parte dos Kariri-Xocó regressou à aldeia e outros
permaneceram na retomada. No dia 05 de junho de 2017, os guerreiros indígenas despertaram
logo cedo. Cerca de seis homens começaram a entoar um Toré, enquanto esperavam os
homens que estavam na aldeia chegarem a Fazenda para de lá seguirem coletivamente rumo à
nova retomada. Aos poucos, os índios chegavam. Nesse ínterim, um dos homens começou a
preparar tinta para pintura dos seus corpos. As justificativas nativas de pintarem o corpo da
cabeça aos pés eram: (i) simbolizar o momento de guerrear; (ii) não mostrar a fisionomia ao
branco; (iii) a pintura como forma de afirmar a identidade étnica: nós somos índios ou não
212

somos? Vamos pintar o rosto. E se apresentar como uma identidade coletiva. Assim, em torno
da fogueira e enquanto fumavam o paewí, os corpos dos guerreiros iam sendo pintados. Nesse
momento, Pawanã, Tawanã, Dadá, entre outros homens que participaram como lideranças de
retomadas anteriores não estavam presentes. Apareceram horas depois. No entanto, homens
como Ivanildo e Ytay que apoiaram e lutaram nas demais retomadas faziam-se presentes com
jovens Kariri-Xocó que eram novatos na linha do front. Já haviam estado presentes na
retomada do Cercado Grande, porém eram muito pequenos. Nas retomadas existe uma
hierarquia: os mais velhos não perdem seus postos de líderes frente aos mais jovens. Pelo
contrário, os mais novos aprendem com eles, inclusive a serem líderes. Portanto, já se notava
na retomada da Menina do Rio, jovens indígenas começando a agir como lideranças:
convictos de suas opiniões, expressavam de modo persuasivo seus pontos de vista, falavam
em tom combativo, sempre criticando a morosidade da justiça e a invasão dos posseiros na
Terra Indígena Kariri-Xocó. Essas novas lideranças encontram-se na faixa etária dos vinte aos
trinta anos.
De corpos pintados, um grupo formado por dez a quinze homens saiu da Fazenda e
seguiu para a pista AL 225. Antes de retomarem a Menina do Rio, interditariam a estrada por
volta das 8 horas. A altura para o bloqueio da mesma foi estratégica, sendo diametralmente
ocupada da altura do portão de entrada da chácara Menina do Rio até a casa de uma família
Kariri-Xocó que fica na beira da pista AL. Essa casa servia de base de apoio ao movimento da
retomada. Para bloquearem a pista fizeram uso de toras de madeira e arbusto de árvores. Em
cada ponta ficavam homens indígenas como vigias para impedirem a passagem dos cabeças
secas. Conforme dito: esse movimento aqui é para indígena. Branco não é nem para estar
aqui. Durante o período do bloqueio da estrada, os cabeças secas procuravam negociar a
liberação com os Kariri-Xocó que impediram a passagem de qualquer veículo (carro, moto,
trator e caminhão), a não ser ambulância. A pé, a passagem estava liberada. Um homem não
indígena atravessou a pista e disse: caboclo é tudo viado. Os índios se sentiram aviltados e
reagiram verbalmente. Enquanto um grupo de homens Kariri-Xocó controlava a circulação de
não indígenas no perímetro interditado, outro grupo formado só por homens começou a
dançar, tocar e cantar Toré, se deslocando de uma ponta a outra da pista fechada por eles.
Inúmeros cantos do Toré foram entoados: Kariri-Xocó Sabuká, Urubu de Serra Negra,
Piriquitinho, Dança-boi; Guerreiro índio. Permaneceram até o anoitecer na entoada de sua
tradição. Ao longo do dia, mesmo com o sol a pino, aumentou o número de Kariri-Xocó para
apoiar o movimento formado por homens, mulheres, crianças e adolescentes. O chefe do
posto indígena compareceu, mas foi dito por um homem Kariri-Xocó que esse funcionário do
213

órgão indigenista (Funai) não tem atuação suficiente para solucionar o problema das terras.
Esse funcionário se encontra em uma situação delicada, uma vez que precisa atuar com as
diferentes esferas: Funai, pajé Júlio que não apoia as retomadas e os guerreiros que
reivindicam suas terras. No fim, o papel do chefe do posto indígena é satisfatório apenas
enquanto um burocrata que assina e emite papéis, a exemplo da carteira de identidade
indígena.
Um almoço foi preparado por algumas mulheres indígenas. Aqueles que estavam
incansavelmente reivindicando por seus direitos constitucionais em relação à terra indígena
repuseram suas energias para continuarem firmes na luta da retomada. Ao entardecer, os
homens se reuniram para decidir se haveria mesmo a retomada da Menina do Rio e como
iriam proceder para efetuarem tal ação. Às 17h38min liberaram a pista AL. As mulheres se
retiraram da estrada e um grupo formado apenas por homens entoou o Toré que lhes daria
força e proteção para seguirem em direção a mais uma retomada de terra. À noite, a chácara
Menina do Rio já estava sob posse Kariri-Xocó. Apesar disso, os Kariri-Xocó não
abandonaram a retomada da Fazenda, sendo assim, houve uma segmentação em que parte dos
Kariri-Xocó permaneceram na Fazenda, enquanto outros na chácara. Nós que estávamos na
Fazenda ouvíamos os cantos do Toré entoados pelos índios da Menina do Rio.
Durante a interdição da pista, ouvi muitos Kariri-Xocó se referirem aos termos união e
desunião. Cito abaixo algumas frases pronunciadas:
(i) Essa aldeia está desunida;
(ii) Todo mundo já sabe que o nosso ponto fraco é a desunião;
(iii) União: numa luta dessa é para estarem todos;
A desunião seria a fragmentação ou a divisão interna da aldeia Kariri-Xocó
configurada no separatismo de suas lideranças: de um lado estão pajé Júlio, cacique Cícero e
seus seguidores; do outro, pajé Pawanã, cacique Nadinho e seus seguidores. Os embates e as
disputas políticas entre esses líderes gera desestabilização interna em que cada grupo acusa e
desmoraliza o outro. O povo Kariri-Xocó também se divide, uma vez que muitos indígenas
tomam partido e escolhem qual grupo apoiar, enquanto outros Kariri-Xocó ficam reticentes
em se posicionarem contrários ao pajé Júlio. Os que estão ao lado de Júlio e Cícero deixam de
comparecer às retomadas. Como me foi dito: se as lideranças estivessem junto, vinha a aldeia
toda. Desse modo, há quem defenda uma retomada certa em que todos os Kariri-Xocó se
uniriam para retomar suas terras. Em conformidade, um jovem Kariri-Xocó afirmou: tem que
ser um para todos e todos por um. Isso foi o que os nossos mais velhos deixaram para a
gente.
214

Figura 25 - Localização da Chácara Menina do Rio e da estrada AL 225

Fonte: Google Earth 2017.

Figura 26 - Toré na interdição da pista AL 225

Foto: Manuela Venancio.


215

Figura 27 - Portão de entrada da Fazenda

Foto: Manuela Venancio.

Figura 28 - Cozinha na retomada da Fazenda

Foto: Manuela Venancio.


216

Figura 29 - Ranchos na retomada da Fazenda

Foto: Manuela Venancio.

Figura 30 - Área para a visão estratégica da Fazenda

Foto: Manuela Venancio.


217

Figura 31 - Plantação na retomada da Fazenda. Ao fundo, rio São Francisco

Foto: Manuela Venancio.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da elaboração desta tese, intrigava-me a existência ou não de um dualismo


Kariri-Xocó. O discurso recorrente dos indígenas é de que na aldeia existe um só povo:
Kariri-Xocó e que não existem dois lados (Kariri e Xocó) vivendo em um mesmo território
indígena. Apesar dessa assertiva, os Kariri-Xocó sobre a formação da aldeia apresentam
indícios de uma divisão em metades. Ao serem indagados: “O que é ser Kariri-Xocó?”,
respondiam que antes existiam os Xocó da Ilha de São Pedro e os Kariri de Porto Real do
Colégio, como os primeiros foram expulsos de suas terras vieram se refugiar em Alagoas
formando o etnônimo Kariri-Xocó. Havia entre esses indígenas relações rituais que foram
estendidas ao âmbito das alianças matrimonias. Levantamos a hipótese de que pode ter havido
uma troca de mulheres entre os grupos Kariri e Xocó que posteriormente levou à criação do
etnônimo Kariri-Xocó.
Lévi-Strauss em As estruturas elementares do parentesco (1982)113 ao debater as
noções “primitivas” de reciprocidade mencionara as trocas de mulheres:

Ora, a troca, fenômeno total, é primeiramente uma troca total, compreendendo o


alimento, os objetos fabricados e esta categoria de bens mais preciosos, as mulheres.
(LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 100)
A inclusão das mulheres no número das obrigações recíprocas de grupo a grupo e de
tribo a tribo é um costume tão geral que não bastaria um volume inteiro para
enumerar os exemplos. Observemos antes de tudo que o casamento por toda parte é
considerado como uma ocasião particularmente favorável para a abertura ou o
desenvolvimento de um ciclo de trocas. (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 102-103)

Ao analisar a organização dualista, o autor considera:

Este caráter fundamental do casamento considerado como forma de troca aparece de


maneira particularmente clara no caso das organizações dualistas. Este termo define
um sistema no qual os membros da comunidade - tribo ou aldeia - são distribuídos
em duas divisões, que mantêm relações complexas, as quais vão da hostilidade
declarada à intimidade mais estreita, e a que se acham habitualmente associadas
diversas formas de rivalidade e de cooperação. (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 108)114

Por meio das “trocas matrimoniais” são estabelecidos “vínculos sociais” (ibidem, p.
103) em que as “duas metades são ligadas uma à outra não somente pelas trocas de mulheres,
mas pelo fornecimento de serviço e de retribuição de serviços recíprocos de caráter
econômico, social e cerimonial” (ibidem, p. 108). No caso dos Kariri-Xocó, o caráter
cerimonial pode ser associado ao Ouricuri em que os Xocó incorporados aos Kariri passaram
113
Capítulo V. O princípio de reciprocidade; capítulo VI. A organização dualista.
114
Ainda segundo Lévi-Strauss: “Conforme procuraremos mostrar, o sistema dualista não dá nascimento à
reciprocidade, mas constitui somente a organização desta” (1982, p. 109).
219

a frequentar conjuntamente o espaço sagrado para o cumprimento de seus rituais. Mesmo


assim, se tomarmos por referência o trabalho de Mota (2007), o Ouricuri no início de cada
ano é guiado com base em uma divisão entre metades, em que os Kariri lideram a primeira
semana cerimonial e os Xocó comandam a semana posterior, “assim mantendo as duas
tradições, apesar de serem consideradas idênticas, porém baseadas em segredos e objetos
sagrados que se originam de duas localidades diferentes [...]”. (MOTA, 2007, p. 116).
Segundo Lévi-Strauss, a organização dualista apresenta formas de cooperação ou
solidariedade, o que pode ser visualizado no caso dos Kariri-Xocó, mais especificamente, em
relação à luta pela terra indígena e pelo reconhecimento da identidade étnica. A unificação
Kariri e Xocó para a criação do etnônimo Kariri-Xocó se deu no ano de 1970, década
referente à retomada da Sementeira para posteriormente ser transformada em aldeia Kariri-
Xocó. Ambas as etnias encontravam-se em situação de expropriações de seus territórios, os
Xocó na Ilha de São Pedro e os Kariri em Porto Real do Colégio. Conforme as narrativas
ouvidas no trabalho de campo, o ex-pajé Francisco Queiroz Suíra (Kariri) pediu ao ex-cacique
Cícero Daruanda (Xocó) que permanecesse em Porto Real do Colégio para lutar pelas terras
da Sementeira. Os descendentes de Cícero Daruanda afirmam que o mesmo trocou as terras
de São Pedro (Sergipe) pertencentes ao seu povo Xocó para permanecer em Porto Real do
Colégio. O momento histórico do pedido de Francisco Queiroz Suíra a Cícero Daruanda pode
ser extraído da seguinte fala fornecida por uma das sobrinhas maternas de Daruanda: Cícero,
meu filho, me faça esse pedido, [...] não vamos voltar para Xocó. Que nós aqui não podemos
mais nos dividir. Vamos entrar na Sementeira, na Sementeira em troca de lá de Xocó.
O contexto sócio-histórico no qual foram envolvidos os Kariri e os Xocó, desde a
atuação das missões religiosas às frentes de expansão agrícola que os expulsaram de seus
territórios tradicionais engendrou “formas de resistência” (MOTA, 2007, p. 34) e interesses
comuns, dentre os quais, a luta pela garantia de uma área territorial indígena que levou ao
processo de fusão Kariri-Xocó. Deve-se considerar que neste processo de fusão criou-se uma
nova configuração social e étnica pautada em duas autoridades Kariri-Xocó oriundas de etnias
distintas: do lado Kariri o ex-pajé Francisco Queiroz Suíra e do lado Xocó o cacique Cícero
Daruanda. Uma estratégia política legítima desses indígenas que sentiram a necessidade de se
juntar para reivindicar um território indígena comum perante as esferas públicas (Funai,
CODEVASF e Ministério do Interior).
Tem havido, porém, conflitos entre os troncos Kariri e Xocó, cujos descendentes
matrilineares ou patrilineares de Cícero Daruanda e Francisco Queiroz Suíra rivalizam-se na
defesa da garantia da governança sobre o povo Kariri-Xocó. Os descendentes de Cícero
220

Daruanda (seu filho Nadinho) e os descendentes de pajé Júlio Queiroz Suíra (seu filho Cícero
Queiroz Suíra) recorrem aos troncos dos quais veem para legitimar o direito de sucessão
patrilinear. As divisões entre duas metades Kariri e Xocó parecem emergir em situações
específicas, como a disputa aos cargos de pajé e cacique Kariri-Xocó. Ou ainda em relação à
tradição, como ilustrado a seguir:
Aqui não existe divisão, não existe dois grupos, mas nos meus costumes, nas minhas
tradições, eu sou Xocó. Mas, eu sou Kariri-Xocó, porque a comunidade [indígena] se tornou
uma só: Kariri-Xocó.
Muito provavelmente, o interlocutor indígena que proferiu a frase acima refere-se à
tradição no sentido religioso em que seu “regime de índio” está alicerçado em “segredos e
objetos sagrados” (MOTA, 2007, p. 116) exclusivos aos Kariri-Xocó.
A recorrente separação étnica, Kariri e Xocó, também é revelada nas situações de
filiações patrilinear ou matrilinear. Esses indígenas sempre explicavam a sua origem familiar
por meio de uma referência à linha de descendência materna ou paterna:

[...] se os meus avós eram Kariri, eu me considero Kariri, mas também se é


descendente de Xocó, se considera Kariri-Xocó. Mas Kariri-Xocó, a gente conhece
pela família. Eu mesmo sou Kariri legítimo pela minha avó. A minha avó era Kariri
legítima, já meu avô era Xocó. Mas eu sou mais Kariri que Xocó.

Neste caso, a definição em ser “mais Kariri que Xocó” se deu pela linha de filiação
matrilinear. O importante de ser considerado é que tal dualismo está relacionado a situações
intra-aldeia, isto é, às formas como os Kariri-Xocó se relacionam entre si por meio de um
sistema classificatório do parentesco, o que não nega de maneira alguma a noção Kariri-Xocó
como um povo só. Assim, mesmo diante dos dualismos internos, esses indígenas se
autoproclamam para os de fora como Kariri-Xocó e reconhecem uns aos outros como Kariri-
Xocó, mesmo em situações de disputas internas. Pajé Júlio e seu filho (o cacique Cícero)
deslegitimam Pawanã e Nadinho como autoridades na aldeia, mas enfatizam que reconhecem
esses seus opositores como índios Kariri-Xocó.115
O processo de fusão e fissão (ERIKSEN, 2001) Kariri-Xocó está baseado em uma
organização das metades Kariri e Xocó. As origens desse dualismo marcado por cisões
internas emergem por questões que evocam (i) o sistema de parentesco; (ii) a lealdade aos
parentes, sendo que “os agrupamentos de parentes constituem particularmente fortes unidades
cooperativas, seus membros ajudando-se mutuamente e dependendo uns dos outros”

115
Barth considera (2000 [1969]) que “os grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras empregadas
pelos próprios atores” (p. 27).
221

(GLUCKMAN, 1987 [1958], p. 257), a exemplo do que foi observado nas eleições a
vereadores indígenas; (iii) a lealdade do povo Kariri-Xocó ao chefe espiritual Júlio Queiroz
Suíra que exerce seu poder exclusivo ao espaço sagrado do Ouricuri; (iv) a ações políticas
divergentes concebidas diversamente entre gerações Kariri-Xocó, sobretudo, quando a
questão são as retomadas do Território de ocupação tradicional Kariri-Xocó. Assim, as
relações intra-aldeia são “marcadas por separação e [até mesmo] reserva” (GLUCKMAN,
1987 [1958], p. 242). Os únicos momentos do trabalho de campo em que observei Pawanã,
Nadinho e Cícero Queiroz Suíra compartilharem um mesmo espaço social, o que não significa
dizer que estavam juntos, foi em uma noite na retomada da Fazenda e durante o dia na
retomada da Menina do Rio em que houve reunião com a Funai.
O fato de terem se reunido nessas situações poderia ser indicativo de “um interesse em
comum, abandonando [temporariamente] a separação” (cf. GLUCKMAN, 1987 [1958], p.
243), sendo no caso, o interesse comum as terras do Território Kariri-Xocó. Mesmo que haja
um faccionalismo116 interno Kariri-Xocó, esses indígenas, sem exceção, mantêm o “interesse
comum” de lutarem por suas terras, mesmo que para isso apresentem um pragmatismo
divergente: enquanto uns esperam ação da justiça brasileira, outros fazem justiça com “as
próprias mãos”, isto é, pelas retomadas. Se por acaso houver uma ameaça (de morte, por
exemplo) advinda de não indígenas para aqueles índios que estão no front das retomadas das
terras, todos os Kariri-Xocó se mobilizarão, deixando de lado os desentendimentos. Pelo
menos era isso o que alegavam em campo, diziam que “se mexeu com um índio Kariri-Xocó,
mexeu com todos os Kariri-Xocó”. Discurso alinhado à frase: “mexeu com um, mexeu com
todos”. Outro ponto convergente entre os Kariri-Xocó é o espaço sagrado do Ouricuri, em que
alegam que a religião os une. Assim, “dentro de ambientes sociais especiais”, a exemplo do
Ouricuri, os Kariri-Xocó mantêm “relações amigáveis [...]. Nesse caso, a cordialidade e
cooperação são a norma social” (GLUCKMAN, 1987 [1958], p. 252). O Ouricuri é
extremamente fortalecido por esses indígenas, sinal diacrítico da diferença entre eles e os
cabeças secas. Os Kariri-Xocó são ativos na produção e manutenção do Ouricuri,
frequentando-o de quinze em quinze dias e mantendo-o em segredo. Esses exemplos ilustram
que a “cisão [Kariri-Xocó] não é absoluta” (ibidem, p. 253).

116
João Pacheco Oliveira (2015) define “facções”: “unidades relativamente estáveis que dirigem a vida política
da aldeia, tendo em vista porém que os mecanismos institucionais de resolução do conflito podem estar ausentes,
não havendo também uma única forma idealizada de existência na aldeia” (p. 220). As “facções” são unidades
políticas opostas e conflitantes entre si, têm seus líderes e seus seguidores. Os “[...] princípios de mobilização de
seus seguidores, o recrutamento” se faz “de acordo com uma configuração de vínculos de alinhamento (religião,
parentesco, vizinhança, grupos de trabalho), diversa e própria” (ibidem, p. 222).
222

Mesmo que o reconhecimento étnico Kariri-Xocó tenha sido iniciado antes dos anos
1980, com a criação do Posto Indígena pelo Serviço de Proteção aos Índios em 1944 e,
posteriormente, com a retomada da Sementeira em 1978, transformada em aldeia, os Kariri-
Xocó ainda têm que mobilizar ações e falas retificadoras da condição étnica. As viagens que
fazem para fora da aldeia privilegiam nos contextos das interações, a reafirmação das
fronteiras étnicas. Em relação aos trabalhos referentes à apresentação ritual do Toré, em que
os Kariri-Xocó são contratados por escolas ou convidados por centros universitários, podemos
considerar esses espaços como uma área de intencionalidade onde grupos sociais diversos
(índios e brancos) se encontram. Segundo Oliveira, pode-se considerar “a dimensão da
intencionalidade, área onde são conectadas com os interesses e as ideologias dos atores
sociais [...]” (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 57, grifo do autor). Nessas situações, o interesse
desses indígenas não é unicamente monetário, segundo dizem, a intenção é ensinar ao não
índio sobre a cultura Kariri-Xocó. No caso do grupo Sabuká, comandado por Pawanã, é
igualmente denunciar aos não índios os conflitos fundiários entre essa população indígena e
os “posseiros” e/ou “fazendeiros” brancos no município de Porto Real do Colégio, mais
especificamente em torno das terras do território de ocupação tradicional Kariri-Xocó. A
intenção de Pawanã é comunicar ao não índio que os Kariri-Xocó são os nativos da terra.
O contato interétnico entre os grupos de apresentação ritual Kariri-Xocó e os brancos
indica que a construção de fronteiras étnicas é situacional, ou seja, enquanto as barreiras
étnicas são demarcadas em relação ao Ouricuri em que é terminantemente proibida a entrada
dos cabeças secas, em outras situações sociais, os Kariri-Xocó produzem intencionalmente
contextos de interação social com o não indígena: os convidam para dançar o Toré, para
fumarem o paewí, realizam consultas espirituais e pinturas corporais no não índio. Acontece
que mesmo com as relações interétnicas desenvolvidas entre índios e brancos interagindo
nesse contexto escolar ou universitário, a “clivagem étnica” é “o fator ordenador básico das
relações sociais” (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 55).
Em outros contextos, o contato dos Kariri-Xocó com os cabeças secas se dá em
situação de “conflitos relacionados ao controle de recursos socialmente valorizados”
(OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 11), como as terras do Território Indígena Kariri-Xocó. Aqui a
situação do contato se dá em termos de uma fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1981) em que não se trata somente da relação entre o indígena e o branco, entre “entidades
contrárias”, mas sim “contraditórias, i.e., que a existência de uma tende negar a da outra”
(ibidem, p. 25, grifo do autor). Conforme relatos do trabalho de campo na aldeia Kariri-Xocó,
os fazendeiros e/ou os posseiros anulam a identidade étnica desses indígenas, pois alegam que
223

os Kariri-Xocó estão “integrados” à sociedade nacional, o que na visão dos cabeças secas
“descaracteriza” a identidade étnica Kariri-Xocó. Para desconstruir o discurso do opositor, os
Kariri-Xocó assim que entram e permanecem em uma retomada constantemente dançam o
Toré e, se por acaso, recebem “visitas” de autoridades públicas, os indígenas além de
cantarem e dançarem o Toré, pintam seus próprios corpos e utilizam cocares. Ao estar na
retomada da Fazenda e entrar nos ranchos ali construídos observei em uma dessas
construções, um cocar deixado na cabeceira da cama utilizado como símbolo identitário da
nova morada em território indígena, também utilizado em situações de fricção interétnica e
negociação fundiária com o branco.
Pelo que ouvi, vi e vivi na aldeia Kariri-Xocó, estes indígenas não desistirão de lutar
pela retomada do território de ocupação tradicional. Afinal, se autodefinem filhos da terra,
como na música usada para concluir esta tese, e que foi cantada por Kayrrá antes de viajar
com ele a campo, como uma enunciação do que me esperava e do que esperavam de mim :

Sou o amante do sol, sou filho da terra. Sou soberano dos ares,
brilhante como uma luz. Eu surjo das águas, corro nas matas. Vivo
cheio de graças, meu Deus me conduz. Eu tenho o instinto da águia,
eu vejo além do infinito, percebo a intenção do inimigo antes de ele
atacar. Represento a força e a luta e a garra de um povo. Uma tribo
que pede socorro pra não se acabar. Caraí, Aiby, Kanghí, Keru, Será,
Iratá. Voando bem alto só luto para melhorar. Uma tribo que pede
socorro para não se acabar. Caraí, Aiby, Kanghí, Keru, Será, Iratá.
Voando bem alto só luto para melhorar e uma tribo que pede socorro
para não se acabar. Caraí, Aiby, Kanghí, Keru, Será, Iratá. Caraí,
Aiby, Kanghí, Keru, Será, Iratá: branco de bom coração, queremos a
nossa terra. 117

117
A música encontra-se no vídeo do Youtube publicado pela Rede de Apoio ao Povo Kariri-Xocó, 22 de
setembro de 2015, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9OL6zuDajk8, acessado em 20 de julho de
2016.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente ocupadas. In. Antropologia e
direito: temas antropológicos para estudos jurídicos / coordenação geral [de] Antonio
Carlos de Souza Lima. - / Rio de Janeiro / Brasília: Contra Capa / Laced / Associação
Brasileira de Antropologia, 2012. pp. 369-374.

APPADURAI, Arjun. Mercadorias e a política de valor. In. A vida social das coisas: as
mercadorias sob uma perspectiva cultural / Arjun Appadurai; Tradução de Agatha Bacelar
– Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. pp. 15-88

ARRUTI, José Maurício P. A . O Reencantamento do Mundo Trama histórica e Arranjos


Territoriais Pankararu. Dissertação apresentada ao PPGAS do Museu Nacional, Rio de
Janeiro, 1996. pp. 313

_______ A árvore Pankararu: fluxos e metáforas da emergência étnica no sertão do São


Francisco. In. A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste
indígena. João Pacheco de Oliveira (org). 2ª ed. Contra Capa Livraria / LACED, 2004. pp.
231-279

_______ A produção da alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas. In: Paula


Motero. (Org.). Deus na aldeia - missionários, índios e mediação cultural. São Paulo:
Globo, 2006, v. 1, pp. 381-426. Disponível em Academia.edu, acessado em 19 de julho de
2017.http://www.academia.edu/1588521/A_PRODU%C3%87%C3%83O_DA_ALTERIDAD
E_O_TOR%C3%89_E_AS_CONVERS%C3%95ES_MISSION%C3%81RIAS_E_IND%C3
%8DGENAS

AUGÉ, Marc. Os domínios do parentesco: filiação, aliança matrimonial, residência.


Título original: Les Domaines de la Parenté. Tradução: Ana Maria Bessa – Capa: A.S
Coutinho. Edições 70, Lisboa, 1975.

BARTH, Fredrik. Cosmologies in the making. A generative approach to cultural


variation in inner New Guinea. Cambridge studies in social anthropology; n. 64, Cambridge
University Press, 1995 [1987].

_______ Other Knowledge and Other Ways of Knowing. Journal of Anthropological


Research. Vol. 51, No. 1 (Spring, 1995), pp. 65-68

_______ Os grupos étnicos e suas fronteiras. In. O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. – Fredrik Barth. Tradução de Jonh Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra
Capa Livraria. 2000 [1969]. pp. 25-67.

_______ Etnicidade e o Conceito de Cultura. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto,
Antropolítica, Niterói, n.19, p. 15-30, 2 sem. 2005.

BELTRÃO, Jane Felipe e OLIVEIRA, Assis Costa da. Identidade, autonomia e direitos
humanos: desafios à diversidade étnica no Brasil. Hendu 2(1): 56 - 70 (2011).
225

BENSA, Alban. Da micro-história a uma antropologia crítica. In. Jogos de escalas: a


experiência da microanálise / Jacques Revel; organizador; tradução Dora Rocha. – Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. pp. 39-76.

Bourdieu, Pierre. A identidade e a representação – elementos para uma reflexão crítica sobre a
idéia de região. In. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Memória e Sociedade.
Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1989. pp. 107-132

BRUNER, Edward M. Ethnography as Narrative. In. The Anthropology of experience.


Edited by Victor W. Turner and Edward M. Bruner, University of Illinois Press, 1986. pp.
139-155

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Capítulo 1 Introdução: a noção de fricção interétnica.


In. O índio e o mundo dos brancos. 3.ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília; São
Paulo, Pioneira, 1981. pp. 15-30.

CRUZ, Denízia. Kariri-Xocó – Contos Indígenas. SESC, 2014.

DANTAS, Beatriz G; SAMPAIO, José Augusto L; CARVALHO, Maria Rosário G.de. Os


povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In. História dos Índios no
Brasil / organização Manuela Carneiro da Cunha – São Paulo: Companhia das Letras:
Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992. pp. 431-456

Diccionario de Antropología – Thomas Barfield [Ed]. Bellaterra, 2001.

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. Ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Título original:
Purity and Danger. Tradução de Sónia Pereira da Silva. Revisão de tradução de Artur
Lopes Cardoso. Revisão tipográfica de Artur Lopes Cardoso. Lisboa: Edições 70,
Depósito legal n.° 43388/91 ISBN 972-44-0794-2. 1991 [1966].

ERIKSEN, Thomas Hylland. Ethnic Identity, National Identity, and Intergroup Conflict: The
Significance of Personal Experiences. In. R. Ashmore et al., eds., Social Identity, Intergroup
Conflict, and Conflict Reduction, Oxford University Press, 2001. pp. 42-68

EVANS-PRITCHARD, E.E. Tempo e Espaço. In: Os Nuer: Uma descrição do modo de


subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo, Editora Perspectiva,
1978.

FORTES, M e Evans-Pritchard, EE. Introdução. In. Sistemas Políticos Africanos. M. Fortes


e E.E. Evans-Pritchard. Tradução de Teresa Brandão. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1981. pp. 25-62.

GLUCKMAN, Max. Rituais de rebelião no sudeste da África. Brasília, 2011, traduzido por
Ítalo Moriconi Júnior do original: “Rituals of Rebellion in South-East Africa”, in Gluckam,
Max. Order and Rebellion in Tribal Africa, Cohen & West, London, 1963 (reimpressão de
1971), capítulo III, pp. 110-136. Originalmente publicado nos Cadernos de Antropologia da
Editora UNB.
226

_______ O reino dos Zulu na África do Sul. In. Sistemas Políticos Africanos. M. Fortes e
E.E. Evans-Pritchard. Tradução de Teresa Brandão. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1981. pp. 63-115.

______ Análise de uma situação social na Zululândia Moderna. In. A antropologia das
sociedades contemporâneas / organização e introdução Bela Feldman-Bianco. São Paulo:
Global, 1987, pp. 227-344.

GOODY, Jack. Foreword. In. Cosmologies in the making. Cambridge studies in social
anthropology; n. 64, Fredrik Barth, Cambridge University Press, 1995 [1987]. pp. vii-xi

GÓIS, José Ancelmo de; PAIVA, Maria de Fátima Araújo; TAVARES, Sônia Maria Goes.
Projetos de Irrigação no Vale do Baixo São Francisco, produzido por José Ancelmo de
Góis, Maria de Fátima Araújo Paiva e Sônia Maria Goes Tavares, julho de 1992.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2517/1/TD%20268.pdf, acessado em 21 de
outubro de 2017.

GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Etnogênese e ‘regime de índio’ na Serra do Umã. In. A


viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. João
Pacheco de Oliveira (org). 2ª ed. Contra Capa Livraria / LACED, 2004. pp. 139-174

_______ As múltiplas incertezas do toré. In. Toré: regime encantado do índio do Nordeste
/ Organizador: Rodrigo de Azeredo Grünewald. – Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005.
pp. 13-33.

_______ Toré: regime encantado do índio do Nordeste / Organizador: Rodrigo de Azeredo


Grünewald. – Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005.

_______ Toré e Jurema: emblemas indígenas no Nordeste do Brasil. Cultura


Indígena/Artigos. s/d. acessado em 07 de fevereiro de 2017, disponível em
http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v60n4/a18v60n4.pdf

HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da Antropologia Transnacional.


Mana 3(1):7-39, 1997.

HOHENTHAL JR., W. D. 1960. "As Tribos Indígenas do Médio e Baixo São


Francisco". Revista do Museu Paulista (nova série), XII:37-86.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O princípio de reciprocidade. In. As estruturas elementares do


parentesco; tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes, 1982. pp. 92-107

_______ A organização dualista. In. As estruturas elementares do parentesco; tradução de


Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes, 1982. pp. 108-122

LIMA, Ronaldo Pereira de. Às margens do Rio-Rei. Porto Real do Colégio, Alagoas:
(Gráfica Editora J. Andrade), Aracaju/Sergipe, 2006.

L’ESTOILE, Charlotte de Castelnau. Estratégias evangelizadoras e modelos missionários no


Brasil colonial. Francisco Pinto (1552-1608), jesuíta e caraíba. In. A presença indígena no
227

Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de


memória. João Pacheco de Oliveira [org.]. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. pp. 9-112.

LOPES, FÁTIMA Martins. As mazelas do Diretório dos índios: exploração e violência no


início do século. In. A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização,
modos de reconhecimento e regimes de memória. João Pacheco de Oliveira [org.]. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2011. pp. 241-265.

MATA, Vera Lucia Calheiros. A semente da terra: identidade e conquista territorial por
um grupo indígena integrado. – Maceió: EDUFAL, 2014.

MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoas, a de “eu”. In.
Sociologia e Antropologia. Título original: Sociologie et anthropologie. Tradução: Paulo
Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. pp. 367-397

_______ Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedade arcaicas. In.
Sociologia e Antropologia. Título original: Sociologie et anthropologie. Tradução: Paulo
Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. pp. 183-314

MAYBURY-LEWIS, David. Vivendo Leviatã: Grupos Étnicos e o Estado. Anuário


Antropológico 1983, pp. 103-118.

MITCHELL, Clyde J. The Kalela Dance. Aspects of social relationships among Urban
Africans in Northern Rhodesia. The Rhodes-Livingstone Institute by Manchester University
Press, 1956.

MOTA, Clarice Novaes da. Performance e significações do Toré: o caso dos Xocó e Kariri-
Xocó. In. Toré: regime encantado do índio do Nordeste / Organizador: Rodrigo de Azeredo
Grünewald. – Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005. pp. 173-186

_______ Os filhos de Jurema na floresta dos espíritos: ritual e cura entre dois grupos
indígenas do nordeste brasileiro / Clarice Novaes da Mota; tradutores: Clarice Novaes da
Mota, Marcelo Rangel. – Maceió: EDUFAL, 2007.

NASCIMENTO, Marcos Tromboni. Toré Kiriri: o sagrado e o étnico na reorganização


coletiva de um povo. In. Toré: regime encantado do índio do Nordeste / Organizador:
Rodrigo de Azeredo Grünewald. – Recife: Fundaj. Editora Massananga, 2005. pp. 39-69.

NHENETY, Kariri-Xocó. Fulkaxó: ser e viver Kariri-Xocó / Organizado por Ulysses


Fernandes; Serviço Social do Comércio. – São Paulo: Edições SESC SP, 2013.

NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes (1981


[1944]). Disponível em Biblioteca Digital Curt Nimuendajú:
http://www.etnolinguistica.org/biblio:nimuendaju-1981-mapa, acessado em 26 de julho de
2017.

O´DWYER, Eliane Cantarino. Introdução. In. Antropologia e direito: temas antropológicos


para estudos jurídicos / coordenação geral [de] Antonio Carlos de Souza Lima. - / Rio de
Janeiro / Brasília: Contra Capa / Laced / Associação Brasileira de Antropologia, 2012. pp.
318-335.
228

_________ Estratégias de redefinição do Estado no contexto de reconhecimento das Terras de


Quilombo no Brasil. In. Novos Debates fórum de debates em antropologia, v.1, n.1 –
janeiro 2014. pp. 80-86

OLIVEIRA, Carlos Estevão. O Ossuário da “Gruta-do-Padre”, em Itaparica e algumas


notícias sobre remanescentes indígenas do Nordeste (1942). Boletim do Museu Nacional
XIV-XVII (1938-1941), Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. pp. 151-184.

OLIVEIRA, José Nunes de. Um pouco da minha vida. In. Índios do Nordeste: temas e
problemas – II / organizadores Luiz Sávio de Almeida, Marcos Galindo, Juliana Lopes Elias
– Maceió: EDUFAL, 2000. pp. 277-300.

OLIVEIRA, João Pacheco de. “A viagem de volta: reelaboração cultural e horizontes


políticos dos povos indígenas do Nordeste”. In: Atlas das Terras Indígenas/Nordeste. Rio
de Janeiro: PETI/Museu Nacional/UFRJ, 1994.

_______ Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos
culturais. Mana 4(1):47-77, 1998. pp. 48-77.

_______ Prefácio. In. Toré: regime encantado do índio do Nordeste / Organizador:


Rodrigo de Azeredo Grünewald. – Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005. pp. 9-11.

________ Trama histórica e mobilizações indígenas atuais: uma antropologia dos registros
numéricos no Nordeste. In. A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2011. pp.653-687.

_________ Terras Indígenas. In. Antropologia e direito: temas antropológicos para


estudos jurídicos / coordenação geral [de] Antonio Carlos de Souza Lima. - / Rio de Janeiro /
Brasília: Contra Capa / Laced / Associação Brasileira de Antropologia, 2012. pp. 369-374.

__________ Capítulo III. Ordem política precedente. In. Regime tutelar e faccionalismo.
Política e Religião em uma reserva Ticuna. / João Pacheco de Oliveira. Manaus: UEA
Edições, 2015. pp. 129-158.

___________ Considerações finais: o caso Ticuna e as teorias sobre o faccionalismo.


In. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. / João
Pacheco de Oliveira. Manaus: UEA Edições, 2015. pp. 217-226.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Apresentação. In. “O nosso governo: os Ticuna e o
regime tutelar / João Pacheco de Oliveira Filho. São Paulo: Marco Zero; [Brasília, DF] :
MCT/CNPq, 1988. pp. 9-59.

PALMEIRA, Moacir. Política ambígua / Moacir Palmeira e Beatriz Maria Alasia de Heredia.
– Rio de Janeiro: Relume-Dumará: NUAP, 2010. pp. 7-14

PEIRANO, Mariza. Os rituais hoje e ontem. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003.
229

_________ O paradoxo dos documentos de identidade: relato de uma experiência nos Estados
Unidos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 32, p.53-80, jul./dez. 2009.

PEREIRA, Edmundo. Música indígena, música sertaneja: notas para uma antropologia da
música entre os índios do Nordeste. In. A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. João Pacheco de
Oliveira [org.]. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. pp. 577-603.

PERES, Sidnei. Terras indígenas e ação indigenista no Nordeste (1910-67). In. A viagem de
volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste Indígena. João Pacheco de
Oliveira (org.). 2 ed. Contra Capa Livraria/LACED, 2004. pp. 43-91.

REESINK, Edwin. O segredo do sagrado: o Toré entre os índios no Nordeste. In. Índios do
Nordeste: temas e problemas – II – organizadores Luiz Sávio de Almeida, Marcos Galindo,
Juliana Lopes Elias. – Maceió: EDUFAL, 2000. pp.359-405

RADCLIFFE-BROWN, A.R. Prefácio. In. Sistemas Políticos Africanos. M. Fortes e E.E.


Evans-Pritchard. Tradução de Teresa Brandão. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981,
pp. 3-24.

TURNER, Victor. Os símbolos no ritual Ndembu. In. Floresta de símbolos – aspectos do


ritual Ndembu/Victor Turner; tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005, pp. 49-82.

_________ Betwixt and Between: o período liminar nos “ritos de passagem”. In. Floresta de
símbolos – aspectos do ritual Ndembu/Victor Turner; tradução de Paulo Gabriel Hilu da
Rocha Pinto – Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005, pp. 137-158.

SECUNDINO, Marcondes. “Índios do Nordeste”: alguns apontamentos sobre a formação de


um domínio da antropologia. In. A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. João Pacheco de
Oliveira [org.]. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. pp. 631-652.

SIGAUD, Lygia. As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social,


revista de sociologia da USP, v. 17, n. junho, 2005. pp. 255-280

SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Livraria Editora Cátedra. Rio de Janeiro.


1978.

TONKIN, Elizabeth. In. Jlao an introductory case study. In. Narrating our pasts. The social
construction of oral history. Cambridge University Press, 1995. pp. 18-37

VAN VELSEN, J. A análise situacional e o método de estudo do caso detalhado. In. A


antropologia das sociedades contemporâneas / organização e introdução Bela Feldman-
Bianco. São Paulo: Global, 1987. pp. 345-374.

WEBER, Max. Comunidades étnicas. In. Economía y Sociedad: Esbozo de sociología


compreensiva. Edición preparada por J Ohannes Winckelmann. Nota preliminar de José
Medina Echavarría. Fondo de Cultura Económica de España, S.L Fernando el Católico, 86.
28015 Madrid, 2002. pp. 315-327.
DOCUMENTOS DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS (SPI):

Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso. Cicero Cavalcante de Albuquerque. Relatório. Porto
Real do Colégio – AL, 31/dez./1944 .
Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso. Agenôr da Silva Guédes. Relatório. Porto Real do
Colégio – AL, 6/jan./1948.
Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso. Agenor da Silva Guedes. Memorando: nº4. Porto Real
do Colégio – AL, 2/mar./1949.
4ª Inspetoria Regional do Recife. Raimundo Dantas Carneiro. Ofício n.79 – I.R.4. Recife, 3 de
junho de 1952.
4ª Inspetoria Regional do Recife. Francisco Sampaio. S.P.I – I.R. 4. Recife, 28 de maio de
1952.
“RELATÓRIO DE DENÚNCIA” DO CONSELHO INDÍGENA MISSIONÁRIO:

Povos Indígenas do Nordeste Impactados com a Transposição do Rio São Francisco,


disponível em Conselho Indígena Missionário: https://www.cimi.org.br/wp-
content/uploads/2017/11/relatorio_impactados-transposicao-sao-francisco.pdf, acessado 11 de
dezembro de 2017.
SITES CONSULTADOS:

Biblioteca Digital Curt Nimuendajú:


http://www.etnolinguistica.org/biblio:nimuendaju-1981-mapa, acessado em 26 de julho de
2017.
Blog “Nhenety Kariri-Xoco Cultura Digital, Cultura Popular, Blogs, Historia...”:
http://kxnhenety.blogspot.com.br/, acessado em 29 de setembro de 2017 e em datas
posteriores.
Câmara dos Deputados:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562, acessado
em 08 de fevereiro de 2018.
Coordenação Geral de Gestão de Documentos – Coged. Mapa Memória da Administração
Pública Brasileira, escrito por Dilma Cabral em 13 de julho de 2016:
http://linux.an.gov.br/mapa/?p=9759, acessada em 04 de janeiro de 2017.
Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira Museu do Estado de Pernambuco:
https://www.ufpe.br/carlosestevao/museu-virtual-fotoetno-busca.php, acessado em 17 de
fevereiro de 2017.
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio são Francisco:
http://cbhsaofrancisco.org.br/a-bacia/, acessado em 25 de julho de 2017.
Cultura Indígena na Fundição Progresso:
https://web.facebook.com/events/1059336430823432/, acessado em 30 de janeiro de 2017.
DNIT:
http://www.dnit.gov.br/noticias/ponte-sobre-rio-sao-francisco-segue-em-ritmo-acelerado,
acessado em 29 de novembro de 2016.
Eleições 2016:
https://www.eleicoes2016.com.br/, acessado em 07 de setembro de 2017.
Facebook:
https://web.facebook.com/valeria.apolinario.7?lst=100000380053631%3A100002293436873
%3A1491583893, acessado em 07 de abril de 2017.
Funai (Fundação Nacional do Índio):
http://www.funai.gov.br/terra_indigena_2/mapa/index.php?cod_ti=7901, acessado em 07 de
agosto de 2017
GAZETA:
http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-old.php?c=228765&e=31, acessado em 31 de
outubro de 2017.
Globo.com: Reportagem Índios da tribo Kariri-Xocó faturam com artesanatos na Olimpíada,
data 20/08/2016:
http://g1.globo.com/rio-de janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/08/indios-da-tribo-kariri-
xocofaturam-com-artesanatos-na-olimpiada.html, acessado em 30 de janeiro de 2017.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia):
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_dos_Indigenas
/pdf/tab_3_01.pdf, acessado em 28 de agosto de 2017
Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência da República, Portal da Imprensa Nacional:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/11/1991&jornal=1&pagina
=8, acessado em 19 de outubro de 2017 e datas posteriores.
Índios OnLine – “Kariri-Xocó na Nova Ordem Indigenista” (17 de fevereiro de 2007):
http://www.indiosonline.net/kariri_xoco_na_nova_ordem_indigenista_4/, acessado em 19 de
outubro de 2017.
233

IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada):


http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2517/1/TD%20268.pdf, acessado em 21 de
outubro de 2017.
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO):
http://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/artes_de_pesca/artesanal/armadilha/puca.pdf,
acessa do em 05 de fevereiro de 2018.
Jesuítas Brasil:
http://www.jesuitasbrasil.com/newportal/institucional/quem-somos/, acessado em 11 de
dezembro de 2017.
Sistema Chesf Sobradinho:
www.chesf.gov.br, acessado em 03 de outubro de 2017.
PAC (Programa de Aceleramento ao Crescimento): www.pac.gov.br, acessado em 03 de
outubro de 2017.
Portal da Justiça Federal da 5 Região: http://www5.trf5.jus.br/noticias/5797, acessado em 21
de outubro de 2017.
Tribo Kariri-Xocó:
http://www.karirixoco.com.br/2006/index.php?pag=noticia&noti=7, acessado em 31 de
janeiro de 2017.
ANEXO: DISCURSO DE PAWANÃ A ALUNOS DE UMA ESCOLA NO ESTADO DE

SÃO PAULO

O depoimento de Pawanã foi dado no contexto de uma apresentação ritual do Toré em


uma escola de São Paulo. Após o ritual, alunos e professores fizeram várias perguntas, e
Pawanã, como cacique do grupo, respondeu as questões. Na transcrição abaixo utilizo o termo
cabeça seca para designar a plateia que dirigia suas perguntas a Pawanã.
***
Cabeça seca: Como você vê os juízes, a política brasileira em relação a esse assunto
[das demarcações das Terras Indígenas]?
Pawanã: Falar sobre essa questão, eu gosto muito, né. É uma das coisas que eu mais
gosto, apesar da dificuldade que temos, mas eu gosto muito. [silêncio]. Falar só a respeito das
nossas terras, que isso me alimenta, me dá mais força, né. E em especial, falar para vocês
(alunos e professores) e [ao] compartilhar [minhas experiências] nasce [uma] esperança em
mim. Porque vocês serão o futuro do nosso país. Você sabe que onde os nossos parentes
habitam pelo Brasil, todas as terras onde tem indígena, tem o posseiro118 lá tentando tomar,
né? Ou seja, já tomaram toda a nossa terra. Imagine: nós éramos assim de terra [faz uma
expressão corporal em que indica uma grande quantidade territorial], hoje nós somos assim
[indicando uma redução da Terra Indígena]. Nós Kariri-Xocó, nós dominávamos a cidade
inteira. Uma cidade de mais de dez mil habitantes, chamada Porto Real do Colégio. Antes de
existir essa cidade, existiam nossos antepassados. O que é que aconteceu? A cidade, eles
vieram destruindo, derrubando as árvores, acabando com a mata e formando a cidade. E aí a
gente chegou a morar em uma rua estreita na cidade, porque eles foram nos imprensando,
imprensando ali. Como eles conseguiram? Comprando essas terras, tomando mesmo,
entendeu? Nossos antepassados, porque eles enganaram os nossos antepassados, entendeu? E
isso aí antes de nós sermos protegidos pelo governo, pelo Ministério da Justiça. Porque o
indígena, ele já passou por diversos ministérios: o Ministério da Fazenda, Ministério não sei
do que, passou por vários; terminou agora no Ministério da Justiça. Quando ele passou a ser
protegido pelo Ministério da Justiça, aí nós ficamos com uma certa força e aí nós fomos lutar
por nossas terras. Só que vocês, eu acho, a idade que vocês têm, vocês devem saber que [para]

118
O termo posseiro é usado no depoimento para assinalar os ocupantes não indígenas nas terras de ocupação
tradicional, como forma de deslegitimar qualquer pretensão de título de propriedade, mesmo se tratando de uma
grande fazenda.
235

os indígenas retomarem as suas terras é uma luta muito grande, muito arriscada, muito
preconceituosa, porque nós lutamos contra todos, principalmente, o governo. E o governo
nunca mostra para... apesar de mostrar que nos apoia, mas ele mostra para vocês uma imagem
que não existe da gente, que vocês [cabeças secas] chegam até ficar com medo de nós. Aí fala
que o índio é preguiçoso, que o índio quer toda a terra do mundo. Não é assim. Nós
estávamos apenas quietos em nosso canto. Vieram mexer com nós, entende? Nós estávamos
quietos em nosso canto. Nós, indígenas no mundo, não queremos uma terra do mundo inteiro.
Até porque nós sabemos que todos nós precisamos da terra. Não é só indígena que precisa da
terra. Vocês também precisam. Agora, fazer o que com ela, aí é diferente. Porque nós
aprendemos, nascemos nos criando dando vida à terra, à mata, os animais. [Você] já soube
que índio explora animais? Já soube disso? Não existe. Você já ouviu falar que indígena
explora da terra, do rio? Ele só explora o que é o suficiente para ele. Ele consegue atender a
natureza, porque uma coisa é você receber o que a natureza pode lhe dar. Uma coisa é você
explorar. Quando fala de exploração já vem um lado, um sentido ruim, entende? Então, a
gente... eu conheço, né. Hoje, eu sou uma liderança do meu povo de três mil indígenas. Sou
uma liderança, sou cacique do grupo [Sabuká], mas na minha comunidade [indígena], eu sou
uma liderança. Hoje, somos quatro lideranças: dois pajés, dois caciques. Eu sou um deles. E
pelo que eu alcancei dos meus antepassados: do meu avô, do meu pai, nós tivemos quatro
gerações no nosso povo, eu assisti quatro, [...] mas o que eu alcancei foram quatro. E em cada
quatro gerações foram quatro retomadas e a que eu alcancei, a gente já era apoiado pelo
Ministério da Justiça, pela Funai. Nós tivemos quatro retomadas de terra. Porque na história,
na lei, Kariri-Xocó é dono de quatro mil quatrocentos e dezenove hectares de terra. Sabe
quanto hoje nós encontramos em mão? Depois de grandes retomadas? Seiscentos hectares. Se
vocês entendem de hectares, nós somos três mil indígenas, são mais de seiscentas famílias
para viver, sobreviver dentro de seiscentos hectares, não tem como. Para vocês pode parecer:
“É grande”. Eu conheço uma pessoa só [...] que é dono de dez mil hectares. Nós estamos em
luta por quatro mil hectares. Eu conheço posseiros que têm mais de dez mil hectares de terra.
Olha, uma nação indígena luta por quatro mil [hectares] que é dele [indígena] por direito.
Desde que se criou, desde o começo do mundo aquela terra é dele. Eu conheço posseiro que
tem dez mil. Uma pessoa só, uma pessoa só que tem dez mil hectares de terra. Nós estamos
em luta por quatro mil e quatrocentos e dezenove hectares para ver se nós conseguimos viver
um pouco melhor do que nós vivemos. Mas dizem: “Para que que o índio quer terra?” Isso
não são vocês que dizem. Isso são os posseiros. Isso são os latifundiários, os ruralistas dizem
para nós. [...]. Então a luta é muito grande. Nós estamos lá, existiram quatro retomadas. A
236

primeira foi totalmente muito em paz, muito pacífica. Que é uma [...], nós temos uma aldeia a
quinhentos metros da cidade. Nós temos uma aldeia que foi um pedaço de terra que nós
retomamos, que é nosso. Mas, já tinha [sido] feita uma fazenda, já tinha formado uma fazenda
lá. Nós retomamos, que é a nossa terra. Não teve nada de conflito. Simplesmente a Funai
chegou. Que para fazer uma retomada é feito um levantamento com os antropólogos. Ele vai
lá faz um estudo para saber se a terra é indígena ou não, entendeu? Um antropólogo fez e
reconheceu que a terra é nossa. E aí é quando a Funai tinha liberdade de fazer a demarcação.
Para depois da demarcação ir para a homologação. Que a homologação é quando ele já vai
homologar para entregar a terra, mas isso só pode ser acontecida a homologação, depois que o
Ministério, os tribunais que são os desembargadores, que aí que decide se a terra é nossa ou
não. É que ele permite que a Funai faça a homologação das terras. Quando faz a homologação
a terra já é nossa. Aí, não tem mais ninguém que tire. Porque já vai trabalhar a indenização
dos posseiros. Que os posseiros entram, eles fazem as casas, né, fazem as fazendas, tudo mais.
Aí vai homologar para indenizar aqueles posseiros. É assim que é feito. Então, nós partimos
para uma outra retomada que foi em 94 [1994]. Essa eu já estava... [...], eu tinha a idade de
vocês, [dirigindo-se diretamente aos alunos], onze anos. Foi em 94 que isso aconteceu. Aí,
teve conflito. Que isso é importante de vocês saberem. Porque quando a gente ataca um
posseiro, de repente é mostrado para o mundo: “um indígena atirou um arco e flecha e matou
uma pessoa”. A gente recebe bala de fogo, é matada liderança, caciques, isso o mundo não
sabe. Isso a imprensa não mostra para vocês. A justiça não mostra para vocês. Aí, de repente,
o mundo inteiro é sabedor. Por quê? Porque o intuito deles é mostrar a nossa imagem ruim
para vocês. Isso a gente vem quebrando há muitos anos. Por isso que a gente vem aqui às
escolas, às universidades, mostrar a nossa realidade a vocês, até porque, vocês serão o nosso
futuro, vocês um dia vão me defender. Vocês, um dia, quando se formarem professores,
advogados, um historiador, vocês vão falar a nossa verdade em História. “Ah, em 2017, teve o
cacique Pawanã da tribo Kariri-Xocó e ele estava falando da realidade”. Isso para nós é
importante. “O cacique Pawanã falou da retomada dele, a luta dele e ele não falou só da luta
do povo dele. Ele falou que todos os índios no Brasil sofrem essa luta por suas terras. O
cacique Pawanã falou que não consegue viver dentro dos seus costumes, com alimentação...
porque foram tiradas as terras dele”. Um dia, vocês vão falar isso. E, talvez, [se] esses
políticos que ainda se encontram hoje lá no poder, não tenham tido essa vivência que vocês
estão tendo aqui agora com a gente. Por isso, agem da forma que estão agindo: sem ter
respeito à cultura indígena, sem ter respeito às culturas tradicionais, como a cultura afro, à
cultura até de vocês mesmos. [...]. Que nós somos um país rico em cultura, nós só não temos
237

apoio para botar em prática. [...]. Voltando para a retomada, em 1994 teve um conflito. A
gente teve que tirar a vida dos dois posseiros, porque eles iam matar todos nós. Quando a
gente vai para uma luta, para ter a nossa defesa, nós temos os nossos objetos, nós temos o
nosso arco e flecha, nós temos as nossas bordunas. O outro da cidade grande, não é com isso
que ele vai lutar com a gente. Quando ele vem, ele vem com arma de fogo e ele com arma de
fogo pode matar todo mundo. Só que se a luta fosse na cidade, a gente poderia ter levado
desvantagem, mas nós estávamos dentro da nossa mata e aí nós estávamos quietos. Aí, o
governo, a Funai não soube trabalhar nessa questão, aí foi quando teve o conflito. Eles foram
lá. Nós estávamos lá com mais de quase duas mil pessoas. Entre essas duas mil pessoas eram
crianças, eram os anciãos [...] e o cara chegou [...] veio atirando em todo mundo, não quis
saber de acordo não. [...] E a gente tentando correr para não morrer. E aí? Tivemos que atacar
também. [...] Só que antes disso, a gente tentou fazer a coisa pacífica, né. Colocamos....
buscamos nossos apoios, direitos humanos, buscamos tudo, só que a justiça quando vem agir
já é tarde. E vocês têm que saber que a maior parte das terras indígenas só foi recuperada
através de derramamento de sangue, infelizmente. É assim que funciona o nosso país. Nós
estamos agora, recente [...], estamos lá [em uma retomada], com dois anos. Sem conflito por
quê? Graças a Warakidzã [deidade], o posseiro não quis medir força com a gente, isso eu falo,
no braço, né. [...]. Nós procuramos sempre manter o diálogo, mostrar a paz, mas as pessoas
não pensam como nós. Às vezes, acham que são os donos do mundo. Aí querem vir, acham
que a gente não sabe se defender, aí quer vir matar a gente. Mas, tudo bem. Então, nós
estamos lá, agora, recente com a luta lá muito grande. A nossa sorte que não aconteceram
conflitos gravíssimos, por conta desse trabalho que nós fazemos com vocês. Que através de
vocês [alunos], a gente conhece as professoras. As professoras de repente fazem uma ligação
com a gente, faz um intercâmbio, faz um contato com nós. E a gente conseguiu através desse
trabalho levantar uma rede de apoio aqui em Campinas. Aonde nessa rede de apoio tinham
advogados de direitos humanos, entendeu? Pessoas maravilhosas que conseguiram levar o
conhecimento dessa retomada para o mundo. Então, o posseiro que tivesse com vontade, com
maldade de querer agredir a gente, de qualquer forma, ele sabia que nós estávamos
conhecidos mundialmente. Então para ele ia ser ruim, entendeu? Foi diferente dos Guarani
Kaiowá [...]. Morreu muita liderança lá. Eu digo a vocês, porque a gente se fala, os Guarani
Kaiowá. Nós nos falamos com outras etnias e eles passam para nós o que acontece. E eu vi o
desastre que aconteceu nos Guarani Kaiowá. Eu sei de tudo. Eu falo para vocês e o meu
coração chora, porque eu sei o sofrimento que eles passaram, entendeu? E eu sei o que é uma
luta pela terra. [...]

Você também pode gostar