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1. Classificação / Missão
Salazar e Manuel Gonçalves Cerejeira. Concluiu o bacharelato, a 30 de outubro dos Advogados, Fundo da Secretaria do
Conselho Geral da Ordem dos Advogados,
de 1916, com 15 valores. Foi vereador da Câmara Municipal de Cascais e depu- Processo n.º 10/1285. Agradecemos a
tado monárquico eleito nas últimas eleições legislativas da I República 3. Ade- Duarte Catalão, responsável pela Biblioteca
da Ordem dos Advogados, a generosa e
riu ao Estado Novo mas continuou sempre a afirmar-se monárquico. pronta ajuda na recolha da informação
Exerceu a advocacia em Lisboa, colaborando com o pai. Inscreveu-se na biográfica sobre Elmano da Cunha e Costa
Ordem dos Advogados em 1926. Em outubro de 1929, “solicitado por pes- e ao chefe do Departamento Administrativo
da Ordem dos Advogados a disponibilização
soas amigas”, partiu para Angola “a advogar importantes pleitos” 4. Em Moçâ- do correspondente processo.
medes exerceu advocacia, tendo como principais clientes a firma Duarte de 5
A partir do n.º 66, de 13.5.1933, o jornal
teve como subtítulo “Semanário Defensor
Almeida, Lda. e o Banco de Angola. Além de advogado, foi diretor e proprietá- da Situação”.
rio do jornal O Sul de Angola, de Moçâmedes, entre 1933 e 1936, imprimindo- 6
Elmano Cunha e Costa, «A eloquência dos
números», in O Sul de Angola, Moçâmedes,
-lhe um cariz declaradamente pró-Estado Novo 5. O seu primeiro editorial é ano 2.º, n.º 63 (22 de abril 1933), p. 1.
um elogio à “Situação”, ao equilíbrio das contas públicas de Angola, a Salazar 7
Elmano Cunha e Costa, O Regaleira e os
e a Armindo Monteiro, ministro das Colónias, a quem o prendiam “laços de seus fantasmas: segunda jornada, p. 9.
8
Anónimo, «Jardim Zoológico», in O Sul de
afectuosa camaradagem” 6. Angola, Moçâmedes, ano 5.º, n.º 224
Durante os anos que viveu em Moçâmedes praticou a caça e gastou “somas (13 de junho, 1936), p. 1. Agradecemos à
Dra. Patrícia Diniz do Arquivo Histórico da
enormes com a captura e compra de animais para o Jardim Zoológico, que Presidência da República que nos prestou
merecia ser protegido e acarinhado por todos os coloniais” 7. A administração informação sobre a fundamentação da
proposta de condecoração, constante no
do Jardim Zoológico e de Aclimação em Portugal reconheceu as suas “dádi- processo n.º 279, 1935.
vas valiosas” em espécies animais, entre as quais zebras, antílopes, linces, aves 9
O decreto (alvará), datado de 22.3.1935,
e outros, o que fundamentou uma proposta de condecoração feita pelo minis- foi publicado no Diário do Governo, Lisboa,
I série, n.º 69, da mesma data.
tro da Instrução Pública à presidência da República 8. Como corolário Elmano 10
Elmano Cunha e Costa, «Alguns aspectos
Cunha e Costa foi agraciado com o grau de comendador da ordem da Instru- dos estudos etnográficos», Boletim Geral
das Colónias, n.º 220 (1943), p. 101.
ção Pública, pelo presidente da República Óscar Carmona 9. 11
Segundo Cunha e Costa, o
Dedicou-se afincadamente e prolongadamente à fotografia etnográfica “documentário fotográfico realizado entre
1935-1938 […] junto das cinquenta e oito
como autodidata. Mais tarde esclarecia: “É velha na minha família a mania da tríbus indígenas que povoam […] a vasta
fotografia, que em mim reveste o carácter duma paixão absorvente» 10. Essa província de Angola (…) [foi uma] amável
paixão e a sua curiosidade etnográfica, combinadas com a mística imperial solicitação do Governo Português, [que
concretizou] em colaboração com o Padre
do Estado Novo, de que comungava, e uma preocupação com o atraso por- Carlos Estermann, ao tempo superior das
tuguês na chamada “ocupação científica” das colónias, terão levado Cunha e Missões Católicas no Planalto da Huíla
(Elmano Cunha e Costa, «Alguns aspectos
Costa a pedir ao ministro das Colónias, Armindo Monteiro, que o incumbisse, dos estudos etnográficos», p. 5).
a ele e ao padre Carlos Estermann (1896-1976), Superior da Missão Católica Já o missionário refere: “Por iniciativa do
Sr. Dr. Elmano Cunha e Costa, que então
da Huíla (da Congregação do Espírito Santo), da elaboração de um Álbum exercia a advocacia em Moçâmedes, fui
Etnográfico de Angola 11. Dedicaram-se a esse trabalho entre 1935 e 1938. Não nomeado para conjuntamente com este
localizámos nenhum documento a formalizar a ‘encomenda’. Colocamos a senhor elaborar um álbum etnográfico de
Angola” (Carlos Estermann, Etnografia do
hipótese de a mesma ter sido formulada oficiosamente por ocasião da confe- Sudoeste de Angola. vol. 1: Os povos
rência que o padre Estermann proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa, não-Bantos e o grupo étnico dos Ambos
(2.ª ed., Lisboa: Junta de Investigações do
em 19 de janeiro de 1935, sobre a ação civilizadora e cristã das missões cató- Ultramar, 1960 [1956]), p. 10). No artigo
“Os meus contactos com os Bochimanes
do Sudoeste de Angola”, publicado
originalmente no Boletim Cultural da
Câmara de Sá da Bandeira, em 1974,
3
Elmano Cunha e Costa, O Regaleira… e os Ordem dos Advogados, datada de Lisboa, menciona que foi “incumbido com Elmano
seus fantasmas! (Lisboa: Imp. Lucas, 1943), 24.1.1943, esclarece: “Não fui para a África da Cunha e Costa, a pedido deste, pelo
p. 18. em 1929 por erros ou actos desonestos ministro Armindo Monteiro de elaborar um
4
Elmano Cunha e Costa, O Regaleira e os praticados no exercício da profissão. / Foi Álbum Etnográfico da província da Huíla
seus fantasmas: segunda jornada (Lisboa: porque, tendo jogado, me endividei e quis (Carlos Estermann, Etnografia de Angola
Imp. Lucas, 1953), p. 7. Em carta para o honradamente pagar. /Refiz a vida e paguei, (Sudoeste e Centro), vol 1 (Lisboa: IICT,
Doutor Acácio Furtado, Bastonário da à custa de sacrifícios sem conta.” Ordem 1983), p. 70). Ênfase nossa.
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a viagem do ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, que pre-
sidiu às cerimónias de transferência da capital, de Bolama para Bissau, no dia
19 de dezembro 22.
Decidido a fixar-se definitivamente a Lisboa, em janeiro de 1943 solicitou
a sua reinscrição na Ordem dos Advogados, que deliberou “negar a reinscri-
ção [...] com o fundamento no parágrafo terceiro do artigo setecentos e vinte e
sete do Estatuto Judiciário”, o qual determinava: “Pode a Ordem recusar a ins-
crição quando o requerente careça manifestamente de idoneidade moral” 23.
Em resposta, Cunha e Costa pediu à Ordem dos Advogados a abertura de um
inquérito à sua vida profissional em África, também esse negado. Este litígio
arrastou-se alguns anos e fez correr muita tinta. Cunha e Costa escreveu dois
“folhetos” sobre o assunto que reproduzem cartas de diversas personalidades
da área jurídica, política, entre outras, que atestam a boa conduta e o profissio-
nalismo do visado 24. Entre as diversas cartas abonatórias transcritas naqueles
folhetos encontra-se uma carta do governador-geral de Angola António Lopes
Mateus, datada de Luanda, 15 de novembro de 1937, confirmando a admira-
ção do advogado pela obra de Salazar e a sua dedicação à etnografia de Angola. 22
Anónimo, «Viagem do sr. Ministro
das Colónias à Guiné e a Cabo Verde», in
Boletim Geral das Colónias, vol. 18, n.º 200
Sobre os estudos etnográficos a que V. Exa. se vem dedicando com (Lisboa: 1942), pp. 95-106.
o mais tenro carinho e bem vincado desinteresse material – porquanto a 23
Ordem dos Advogados, Fundo da
Secretaria do Conselho Geral da Ordem dos
falta de uma compensação remuneradora não amortece o seu entusiasmo
Advogados, Processo n.º 10/1285. Nenhum
– basta ouvir os que têm apreciado os seus magníficos trabalhos para se documento do processo esclarece porque é
concluir quanto eles vão valorizar o nome da nossa Colónia. que a Ordem dos Advogados não reconhece
a Cunha e Costa idoneidade moral. Fica
De alguns deles, fui eu, portador para Lisboa onde foram sobre- apenas a suspeita de que o motivo pode ter
maneira apreciados – todos fazendo justiça ao seu esforço valioso e a ver com factos ocorridos na Guiné.
24
Estes folhetos foram proibidos
desinteressado 25. pela censura por conter “referências
desprimorosas e chocarreiras à Ordem dos
Advogados. ANTT, Secretariado Nacional
No mesmo folheto encontra-se também uma carta de Henrique Galvão 26, de Informação, Censura, cx. 629, mct.
garantindo que Cunha e Costa cumpriu escrupulosamente as obrigações que 1, Relatório n.º 2337, de 30.6.1943. O
assumiu com a Comissão dos Centenários através da Secção Colonial da Expo- despacho proibindo o livro é de 14.7.1943.
Cópia digital on-line. Disponível em: http://
sição do Mundo Português. Além disso: digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4331836
25
Costa, O Regaleira e os seus fantasmas,
p. 15.
Em qualidade, o seu trabalho não foi menos valioso pois assegurou ao 26
Ibidem. Carta datada de Lisboa, 26 de
Estado a posse do mais notável documentário fotográfico da etnografia janeiro de 1943.
27
Idem, ibidem, p. 16.
de Angola a que esta Colónia tem dado lugar e também a melhor que 28
ANTT, PIDE/DGS, Registo Geral de
conheço entre as que conheço de outras colónias africanas 27. Presos, livro n.º 78, n.º 15413.
29
ANTT, PIDE/DGS, SC, PC 1438/942
8 (12 vols.) NT 4778-4779. O volume
Dadas as relações sociais de Elmano Cunha e Costa, foi com surpresa que respeitante a Elmano da Cunha e Costa
nos deparámos com o seu nome na série Registo geral de presos, da PIDE, no é o vol. 3.º. A partir das referências às
atividades de «Armando» na Guiné, nome
Arquivo Nacional Torre do Tombo. Na sua biografia prisional consta que, em do código de Cunha e Costa, que constam
7 de janeiro de 1944, foi preso pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado no diário de Guy Lidell, diretor do M15
(contraespionagem britânica), Rui Araújo
(PVDE, antecessora da PIDE) para averiguações, tendo recolhido à cadeia do chega a Elmano de Morais da Cunha e
Aljube; sendo restituído à liberdade condicional a 1 de abril do mesmo ano 28. Costa, de quem traça uma breve biografia.
A acusação ou o motivo da prisão foram atividades alemãs nas colónias por- Rui Araújo, O diário secreto que Salazar
nunca leu (Lisboa: Oficina do Livro, 2008),
tuguesas 29. Elmano de Morais Cunha e Costa é um dos arguidos no subpro- pp. 98-111.
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Através de relatos posteriores de Elmano Cunha e Costa temos acesso a Figura 1. Hora de repouso.
[Autoretrato de Elmano Cunha e Costa
algumas informações sobre o trabalho de campo. A divisão das tarefas decor- e Padre Estermann. Em cima da mesa
ria das competências de cada um: o padre dedicava-se à parte etnográfica, o estojo da máquina Rolleiflex] Moxico,
Angola. 1935-1939. Digitalização a
observando as práticas quotidianas, conversando com os nativos e tomando partir de negativo em película de
apontamentos no seu caderno de campo; Cunha e Costa tirava fotografias que nitrato de celulose, p/b, 6x6cm,
documentavam as observações etnográficas 34. Além disso, o advogado, por Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC1122, ID8533.
sua iniciativa, indagava as “denominações dadas às tribos indígenas, locali-
zando-as geograficamente” com vista à elaboração de uma carta etnográfica 35.
O trabalho dos dois homens devia interligar-se e resultar num objeto único: 34
Ibidem.
o Álbum Etnográfico de Angola. Pontualmente, contaram com a colabora- 35
Agência Geral das Colónias, Catálogo da
ção de outros missionários católicos, como o padre Laagel “que há dezenas exposição de etnografia angolana de Elmano
Cunha e Costa, s.p.
de anos evangeliza, civiliza e estuda” os “Bundos”, “tribo que vive na região de 36
Estermann e Costa, Negros, p. 61. Na
Caconda, no planalto da Huíla” 36. Também contaram com a ajuda das autori- passagem do livro, Elmano Cunha e Costa
refere que a sua máquina fotográfica
dades administrativas, como o governador do Bié: “velho amigo, figura presti- ia fixando as práticas de feitiçaria que
giosa de colonial – D. António de Almeida – herdeiro da “D. Arlete”, a roulote “pacientemente o Padre Laagel explicava
que Cunha e Costa usou nas viagens por Angola, puxada por uma carrinha e Padre Carlos Estermann seguia
atentamente” (p. 83).
Ford 85 cavalos 37. Dessa forma terá percorrido mais de cem mil quilómetros 37
Ibidem, p. 180.
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por todo o território. Para aliciar o público leitor e numa estratégia de auto-
promoção e glorificação da sua atividade num meio exótico e adverso, escre-
veu que “muitos dos clichés foram obtidos em lugares do interior depois de
penosas viagens a pé, em carro boer, a cavalo, de piroga em rios [...] traiçoei-
ros, ou na velha machila de tão belas tradições” 38. A construção de uma nar-
rativa credível e heroica passou também pela reprodução de excertos do seu
diário:
Não sabemos ao certo qual o roteiro seguido por Elmano Cunha e Costa
com e sem o padre Carlos Estermann nem quanto tempo permaneceram/per-
maneceu junto de cada grupo étnico. Cunha e Costa virá a afirmar que no
Cuando, onde foi já sem o missionário, não pôde ficar o tempo suficiente para
um estudo profundo 40.
Sabemos que a prática fotográfica de Cunha e Costa se processava no qua-
dro da relação colonial, estando o fotógrafo investido de uma autoridade face
aos fotografados, que lhe advinha de ser branco e de se apoiar na autoridade e
conhecimentos dos missionários e da administração colonial. Mas não temos
informação específica sobre como se processava a interação entre o fotógrafo e
os fotografados nem a intervenção de possíveis intermediários.
À semelhança do que tem sido apontado por historiadores da ciência
– o contributo vital dado nos bastidores da ciência por assistentes técnicos e
outros com menor grau de instrução, foram essenciais para construir instru-
mentos, organizar laboratórios, realizar experiências mais rapidamente, etc. 41
– auxiliares africanos participaram nas saídas de campo (na coleção há foto-
grafias que o atestam) e contribuíram, direta ou indiretamente, para a realiza-
ção do “documentário fotográfico”, mas ficaram na sombra ou foram relegados
para o plano do anedótico e do pitoresco, como o motorista, os carregadores,
os informantes ou o cozinheiro. Num excerto que supostamente reproduz do
seu diário, relativo a novembro de 1938, escreveu:
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Figura 3. Tipo feminino, Quipungos. Província da Huíla, Figura 4. Fumando cânhamo, Bochimanes. Angola. 1935-1939.
Angola. 1935-1939. Digitalização a partir de negativo em película Digitalização a partir de negativo em película de nitrato de
de nitrato de celulose, p/b, 6x6cm, Arquivo Histórico Ultramarino, celulose, p/b, 6x6cm, Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC6683, ID13811 IICT, ECC/NC874, ID8285.
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A coleção fotográfica de Elmano Cunha e Costa parece ter estado sempre sob
escrutínio científico. Salazar concordou que a Comissão dos Centenários esta-
belecesse um contrato com Cunha e Costa para o fornecimento de fotografias
de Angola, desde que “estivesse demonstrado o valor científico da colecção (...)
já existente e a probabilidade de completá-la ou enriquecê-la” 75.
O “amador” fotográfico e etnográfico procurou por diversas vezes vali-
dação científica e cobertura institucional para o seu trabalho. Em 11 dezem-
bro de 1940, ‘ofereceu’ ao Ministério das Colónias, por intermédio da Agência
Geral das Colónias, uma carta etnográfica de Angola por si elaborada, “docu-
mentada com fotografias representando um homem e uma mulher dos tipos
mais característicos de todas as tribos que povoam Angola”, deixando o preço
ao critério do Ministério 76.
Para poder avaliar a qualidade científica da carta, o subsecretário de
Estado das Colónias mandou ouvir o professor de Etnografia da Escola Supe-
rior Colonial, António de Almeida 77. Face às reservas levantadas pelo pro-
fessor, a aquisição não foi autorizada. O advogado ainda desvalorizou a sua
autoridade, “que em Angola esteve ao todo 2 meses nos Dembos”, mas depois
de conferenciar com ele, introduziu as alterações sugeridas e foi pedir pare- 75
Caso das fotografias a comprar ao
cer sobre a nova versão aos missionários do Espírito Santo 78. Com base neste Dr. Elmano da Cunha e Costa (27.7.1938).
ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, PC-8E,
parecer, francamente positivo, submeteu a nova carta e respetivo “mostruário cx. 561, pt. 1, 51.ª subd. Ênfase nossa.
fotográfico” ao Agente Geral das Colónias para ser apresentada ao subsecretá- 76
Cópia de carta de Elmano da Cunha e
rio de Estado das Colónias 79. Costa para o Agente Geral das Colónias,
Júlio Cayolla, datada de Lisboa, 17 de
Desta feita, o subsecretário de Estado pediu um parecer à Junta das maio de 1941. Portugal, Arquivo do IICT,
Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (JIC) “acerca da exacti- Processo 150, doc. 7 (anexo).
77
António de Almeida (1900-1984),
dão e mérito científico da carta etnográfica”. A JIC, reunida em 4 de junho médico, antropólogo físico, e deputado à
de 1941, analisou esta carta etnográfica, comparando-a com outras anterio- Assembleia Nacional (1938-1957), desde
1935, lecionava Quimbundo e Etnologia
res, como a publicada em 1916 pela então Secretaria dos Negócios Indíge- Colonial na Escola Superior Colonial e
nas, que considerou bastante completa e representativa; e com o esboço já havia feito trabalhos antropológicos
etnográfico inserto na publicação sobre Angola preparada para o 1.º Cru- em Angola (1934). Veio a pertencer à
Junta de Investigações Coloniais, como
zeiro de Férias às Colónias Portuguesas 80. A Junta começou por reco- vogal do Plenário, chefe do Centro de
nhecer que entre os seus vogais não tinha “ninguém com os necessários Estudos de Etnologia Ultramarina (depois
Centro de Antropobiologia) e da Missão
conhecimentos para se poder pronunciar minuciosamente, como convém, Antropológica de Timor. Entre 1948 e 1955,
sobre a exatidão e mérito científico da referida carta”. O parecer que emitiu realizou várias missões de estudo a Angola.
78
Carta de Cunha e Costa para o eng.º
reflete a forte presença da engenharia geográfica no plenário da Junta. Lê-se no Bacelar Bebiano, datada de 17.05.1941.
parecer: Arquivo do IICT, proc. 150, doc. 8.
79
Ofício do Agente Geral das Colónias,
Júlio Cayolla, para o presidente da JMGIC,
a) a carta não mostrava “a distribuição geográfica das diferentes tribos datado de 24.5.1941. Arquivo do IICT, Proc.
pela forma usualmente empregada”, isto é, marcando os limites do ter- 150, doc. 9.
80
Angola: Generalidades sobre Angola para o
ritórios por elas ocupado; 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias Portuguesas
b) a carta não assinalava certos acidentes geográficos, sobretudo os rios (Luanda: Imp. Nacional, 1935). Informação
n.º 35 da JIC, assinada pelo presidente
mais importantes, “que frequentemente limitam os territórios ocupa- J. Bacelar Bebiano, e datada de 16.6.1941.
dos pelas diferentes tribos”; Arquivo do IICT, Processo n.º 150.
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Quanto às “fotografias dos vários tipos de indígenas que o Snr. Dr. Elmano
da Cunha e Costa juntou ao mapa examinado”, a JIC reconhecia o seu inte-
resse, mas considerava que lhes faltavam “os indispensáveis elementos de iden-
tificação antropométrica e topográfica”. Assim sendo, “a Junta é de opinião que
a carta etnográfica apresentada [...], como se encontra elaborada, não apre-
senta interesse científico que justifique a sua aquisição” 82.
Face à decisão da JIC, Cunha e Costa pediu por duas vezes ao respetivo
presidente orientações para continuar a trabalhar na sua carta etnográfica de
Angola 83. Afirmava que não desejava alimentar qualquer “controvérsia”, ape-
nas aperfeiçoar o seu trabalho, guiado pelas instituições culturais e científicas
do Ministério das Colónias. Não encontrámos qualquer resposta a estas soli-
citações.
Na mesma altura em que decorria a contenda entre Cunha e Costa e a
JIC em torno da valia científica da sua carta etnográfica, o advogado apre-
sentou à Junta uma proposta de Missão Etnográfica a Angola, que compre-
81
Ibidem. endia o estudo de folclore indígena e de direito natural indígena; fotografias
Idem, ibidem. sobre tatuagens, adornos, etc.; e gravação de discos. A resposta do presidente
82
83
Cartas de 15 de julho e 28 de agosto de
1941, de Elmano Cunha e Costa para o da instituição foi que naquele ano económico não havia disponibilidade finan-
engenheiro Bacelar Bebiano, presidente da ceira, mas como os estudos linguísticos e etnográficos estavam previstos no
JIC. PT, Arquivo do IICT, Processo n.º 150,
documentos 17 e 23. “Plano de Trabalho de Investigação Científica”, talvez pudesse concretizar-se
84
Proposta de Elmano da Costa e Costa, em 1943 84. Interessa referir que Mendes Correia, em resposta a uma solici-
dirigida ao presidente da JMGIC, datada
de 2.5.1941 (doc. 6), Informação n.º 34 da
tação da Junta, já elaborara um «plano de estudos antropológicos coloniais
JMGIC (doc. 12) e resposta do presidente (antropologia, arqueologia e etnografia)» (datado de 12 de março de 1941) 85.
da JMGIC para Elmano da Cunha e Costa, Em julho de 1943, Elmano Cunha e Costa envia diretamente ao gabi-
datada de 2.7.1941. Arquivo do IICT, proc.
150. (doc. 15). nete do ministro das Colónias uma exposição sobre “o problema dos estudos
85
Patrícia Ferraz de Matos, «Mendes etnográficos nas Colónias e da melhor forma de sua solução”, e afirma-se “ao
Correia e a Escola de Antropologia do
Porto: Contribuição para o estudo da dispor do Ministério para qualquer trabalho mais detalhado” 86. Ali dirige crí-
relação entre antropologia, nacionalismo ticas à organização da investigação científica nas colónias estabelecida pela JIC
e colonialismo» tese de doutoramento
em Ciências Sociais, Especialidade:
(missões de curta duração que decorriam na época seca dependentes do apoio
Antropologia Social e Cultural, (Lisboa: logístico concedido pelas autoridades administrativas locais) e defende que
ICS-UL, 2012), p. 234. as missões de estudos etnográficos devem permanecer no terreno 3 a 4 anos,
86
Carta de Elmano Cunha e Costa para o
major Álvaro de Fontoura, chefe de gabinete sem qualquer ligação à burocracia colonial (“o preto não esquece que a auto-
do ministro das Colónias, datada de 25 ridade administrativa é a entidade que o castiga, que lhe cobra o imposto, que
de junho de 1943, remetendo em anexo
“Algumas considerações sobre o problema o obriga a trabalhar [...] Assim o preto retrai-se, desconfiado, mas para não
dos Estudos Etnográficos nas Colónias”. desobedecer ilude, inventa com a sua fértil imaginação e despista, induzindo
O despacho, de 20 de julho, determinava
que fosse enviada cópia à Junta das Missões
em erro”) 87.
[Geográficas e de investigações Coloniais]. Os estudos que preconiza incluem a realização de “mensurações” (diz que
AHU, MU, GM, sala 6, n.o. 533-2. Proc. já elaborou uma “ficha antropológica” para o efeito) e a recolha de “outros ele-
4/159, Junta das Missões (1942-1943).
87
Ibidem, fl. I. mentos e dados de observação: estudo geográfico, fauna e flora, agricultura
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Esta longa citação traduz de forma eloquente uma tomada de posição com
vista à delimitação do campo científico – a Elmano Cunha e Costa, outsider
pretendente ao campo, era-lhe negada qualquer legitimidade para fazer parte
do mesmo pois não tinha habilitações formais e era movido por ‘outros inte-
resses’ –, e reflete a luta travada pela hegemonia da autoridade científica (defi-
nida como capacidade técnica e poder social) 92 sobre a antropologia colonial.
Embora Mendes Correia, na época, já gozasse de prestígio e reputação no seio
do campo científico colonial 93, a sua estratégia permitiu-lhe, a breve trecho,
reforçar o seu poder: em 1946, foi nomeado diretor da Escola Superior Colo-
nial e da JIC, as duas instituições-chave que, a partir do centro metropolitano,
detinham o monopólio da atividade científica sobre e nas colónias.
No catálogo da Exposição de Etnografia Angolana onde a carta etnográfica
esteve exposta, Cunha e Costa escreveu:
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Conclusões
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