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“Etnografia Angolana” (1935-1939):

histórias da coleção fotográfica


de Elmano Cunha e Costa
CLÁUDIA CASTELO
CATARINA MATEUS

A coleção fotográfica de carácter etnográfico produzida pelo advogado e


escritor Elmano Morais da Cunha e Costa, na colónia de Angola, na segunda
metade da década de 1930, destaca-se pela sua dimensão, conteúdo informa-
tivo e qualidade estética. Atualmente preservada no Arquivo Histórico Ultra-
marino (AHU) em Lisboa, encontra-se descrita e é passível de visualização na
íntegra na plataforma «Arquivo Científico Tropical Digital» (ACTD), do Insti-
tuto de Investigação Científica Tropical (IICT) 1.
A coleção cruzou-se com personalidades, instituições e acontecimentos
marcantes das primeiras décadas do Estado Novo e foi objeto de controvérsias
e negociações que a visualização das fotografias não revela. Assim, neste texto
procedemos à revelação das tramas invisíveis sob(re) as imagens, potenciando
uma leitura mais abrangente e historicamente sustentada do conjunto. Optá-
mos por fazer uma biografia imbrincada do fotógrafo e da coleção, incorpo-
rando contributos das historiografias da antropologia, da ciência, da fotografia
e do imperialismo para debater as interações entre fotografia etnográfica,
investigação científica e império. Abordamos também as características físi-
cas e técnicas da coleção, os procedimentos de conservação a que foi subme-
tida no AHU, e a sua disponibilização on-line. As fontes mobilizadas incluem
a própria coleção, os catálogos das exposições que recorreram a fotografias de
Cunha e Costa, os livros e outros escritos do autor, informação biográfica e
contextual em diversos fundos de arquivo.

Percurso de vida de um “amador fotográfico


e amador de etnografia”

Elmano Cunha e Costa nasceu em Aveiro, a 8 de setembro de 1892, filho de


José Soares da Cunha e Costa (1868-1928), reputado advogado, escritor e jor-
1
  Disponível em: http://actd.iict.pt/
collection/actd:AHUECC (acesso em
nalista, vários anos emigrado no Brasil, e de Edviges de Morais da Cunha e
02/02/2014). Costa. Morreu em Lisboa, em 12 de maio de 1955 2.
  «Falecimentos: Dr. Elmano da Cunha e Frequentou o Liceu Camões em Lisboa e em 1910 iniciou o curso de Direito
2

Costa», in Diário de Notícias (Lisboa, 13 de


maio, 1955) p. 5. na Universidade de Coimbra, tendo entre os seus colegas António Oliveira

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1.  Classificação / Missão

Salazar e Manuel Gonçalves Cerejeira. Concluiu o bacharelato, a 30 de outubro dos Advogados, Fundo da Secretaria do
Conselho Geral da Ordem dos Advogados,
de 1916, com 15 valores. Foi vereador da Câmara Municipal de Cascais e depu- Processo n.º 10/1285. Agradecemos a
tado monárquico eleito nas últimas eleições legislativas da I República 3. Ade- Duarte Catalão, responsável pela Biblioteca
da Ordem dos Advogados, a generosa e
riu ao Estado Novo mas continuou sempre a afirmar-se monárquico. pronta ajuda na recolha da informação
Exerceu a advocacia em Lisboa, colaborando com o pai. Inscreveu-se na biográfica sobre Elmano da Cunha e Costa
Ordem dos Advogados em 1926. Em outubro de 1929, “solicitado por pes- e ao chefe do Departamento Administrativo
da Ordem dos Advogados a disponibilização
soas amigas”, partiu para Angola “a advogar importantes pleitos” 4. Em Moçâ- do correspondente processo.
medes exerceu advocacia, tendo como principais clientes a firma Duarte de 5
  A partir do n.º 66, de 13.5.1933, o jornal
teve como subtítulo “Semanário Defensor
Almeida, Lda. e o Banco de Angola. Além de advogado, foi diretor e proprietá- da Situação”.
rio do jornal O Sul de Angola, de Moçâmedes, entre 1933 e 1936, imprimindo- 6
  Elmano Cunha e Costa, «A eloquência dos
números», in O Sul de Angola, Moçâmedes,
-lhe um cariz declaradamente pró-Estado Novo 5. O seu primeiro editorial é ano 2.º, n.º 63 (22 de abril 1933), p. 1.
um elogio à “Situação”, ao equilíbrio das contas públicas de Angola, a Salazar 7
  Elmano Cunha e Costa, O Regaleira e os
e a Armindo Monteiro, ministro das Colónias, a quem o prendiam “laços de seus fantasmas: segunda jornada, p. 9.
8
  Anónimo, «Jardim Zoológico», in O Sul de
afectuosa camaradagem” 6. Angola, Moçâmedes, ano 5.º, n.º 224
Durante os anos que viveu em Moçâmedes praticou a caça e gastou “somas (13 de junho, 1936), p. 1. Agradecemos à
Dra. Patrícia Diniz do Arquivo Histórico da
enormes com a captura e compra de animais para o Jardim Zoológico, que Presidência da República que nos prestou
merecia ser protegido e acarinhado por todos os coloniais” 7. A administração informação sobre a fundamentação da
proposta de condecoração, constante no
do Jardim Zoológico e de Aclimação em Portugal reconheceu as suas “dádi- processo n.º 279, 1935.
vas valiosas” em espécies animais, entre as quais zebras, antílopes, linces, aves 9
  O decreto (alvará), datado de 22.3.1935,
e outros, o que fundamentou uma proposta de condecoração feita pelo minis- foi publicado no Diário do Governo, Lisboa,
I série, n.º 69, da mesma data.
tro da Instrução Pública à presidência da República 8. Como corolário Elmano 10
  Elmano Cunha e Costa, «Alguns aspectos
Cunha e Costa foi agraciado com o grau de comendador da ordem da Instru- dos estudos etnográficos», Boletim Geral
das Colónias, n.º 220 (1943), p. 101.
ção Pública, pelo presidente da República Óscar Carmona 9. 11
  Segundo Cunha e Costa, o
Dedicou-se afincadamente e prolongadamente à fotografia etnográfica “documentário fotográfico realizado entre
1935-1938 […] junto das cinquenta e oito
como autodidata. Mais tarde esclarecia: “É velha na minha família a mania da tríbus indígenas que povoam […] a vasta
fotografia, que em mim reveste o carácter duma paixão absorvente» 10. Essa província de Angola (…) [foi uma] amável
paixão e a sua curiosidade etnográfica, combinadas com a mística imperial solicitação do Governo Português, [que
concretizou] em colaboração com o Padre
do Estado Novo, de que comungava, e uma preocupação com o atraso por- Carlos Estermann, ao tempo superior das
tuguês na chamada “ocupação científica” das colónias, terão levado Cunha e Missões Católicas no Planalto da Huíla
(Elmano Cunha e Costa, «Alguns aspectos
Costa a pedir ao ministro das Colónias, Armindo Monteiro, que o incumbisse, dos estudos etnográficos», p. 5).
a ele e ao padre Carlos Estermann (1896-1976), Superior da Missão Católica Já o missionário refere: “Por iniciativa do
Sr. Dr. Elmano Cunha e Costa, que então
da Huíla (da Congregação do Espírito Santo), da elaboração de um Álbum exercia a advocacia em Moçâmedes, fui
Etnográfico de Angola 11. Dedicaram-se a esse trabalho entre 1935 e 1938. Não nomeado para conjuntamente com este
localizámos nenhum documento a formalizar a ‘encomenda’. Colocamos a senhor elaborar um álbum etnográfico de
Angola” (Carlos Estermann, Etnografia do
hipótese de a mesma ter sido formulada oficiosamente por ocasião da confe- Sudoeste de Angola. vol. 1: Os povos
rência que o padre Estermann proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa, não-Bantos e o grupo étnico dos Ambos
(2.ª ed., Lisboa: Junta de Investigações do
em 19 de janeiro de 1935, sobre a ação civilizadora e cristã das missões cató- Ultramar, 1960 [1956]), p. 10). No artigo
“Os meus contactos com os Bochimanes
do Sudoeste de Angola”, publicado
originalmente no Boletim Cultural da
Câmara de Sá da Bandeira, em 1974,
3
  Elmano Cunha e Costa, O Regaleira… e os Ordem dos Advogados, datada de Lisboa, menciona que foi “incumbido com Elmano
seus fantasmas! (Lisboa: Imp. Lucas, 1943), 24.1.1943, esclarece: “Não fui para a África da Cunha e Costa, a pedido deste, pelo
p. 18. em 1929 por erros ou actos desonestos ministro Armindo Monteiro de elaborar um
4
  Elmano Cunha e Costa, O Regaleira e os praticados no exercício da profissão. / Foi Álbum Etnográfico da província da Huíla
seus fantasmas: segunda jornada (Lisboa: porque, tendo jogado, me endividei e quis (Carlos Estermann, Etnografia de Angola
Imp. Lucas, 1953), p. 7. Em carta para o honradamente pagar. /Refiz a vida e paguei, (Sudoeste e Centro), vol 1 (Lisboa: IICT,
Doutor Acácio Furtado, Bastonário da à custa de sacrifícios sem conta.” Ordem 1983), p. 70). Ênfase nossa.

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“Etnografia Angolana” (1935-1939)

licas da Huíla 12. A conferência foi iniciativa do Secretariado de Propaganda


Nacional (SPN), dirigido por António Ferro, que abriu a sessão, ficando a
apresentação do conferencista a cargo de Cunha e Costa. O ideólogo da «polí-
tica do espírito» 13 começou por referir que a Nação e a Igreja se olhavam,
naquele momento, “com simpatia, quase amorosamente”; “estranhá-lo [era]
ignorar a nossa história”: “Deus e Portugal andaram sempre juntos” 14. Depois
explicou que devia a Elmano da Cunha e Costa, “herdeiro de um nome ilus-
tre da nossa jurisprudência e da nossa eloquência”, o conhecimento do padre
Carlos Estermann e terminou instando o coronel Lopes Mateus, ali presente,
que acabava de ser nomeado governador de Angola, a proclamar “definitiva-
mente o Estado Novo [naquela colónia], ajudado por Cunha e Costa e por
12
  Anónimo, «Uma sessão missionária na outros nacionalistas da sua têmpera” 15.
Sociedade de Geografia de Lisboa», Boletim Refira-se que a ideia de uma origem divina da Nação Portuguesa, cuja
Geral das Colónias, vol. XI, n.º 115 (1935),
p. 112.
“essência orgânica [...] [era] desempenhar a função histórica de possuir e colo-
13
  Sobre a chamada “política do espírito” nizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se
desenvolvida por António Ferro à frente do compreendam”, foi uma das pedras de toque do nacionalismo imperialista do
SPN/SNI e o panorama cultural do Estado
Novo nos anos 30-40, vide Jorge Ramos do Estado Novo 16. Cunha e Costa, além de ser um acérrimo defensor do programa
Ó, Os Anos de Ferro: O dispositivo cultural político-ideológico do salazarismo, de cariz católico, conservador e imperial,
durante a política do espírito 1933-
-1949 (Lisboa: Estampa, 1999). relacionava-se com destacadas figuras do regime. A fotografia publicada no jor-
14
  António Ferro, A fé e o império (Lisboa: nal O Século, de “Algumas das individualidades que assistiram à conferência
Editorial Império, 1935), p. 8.
15
  Ibidem, p. 10.
do reverendo Carlos Estermann na Sociedade de Geografia”, ilustra essas rela-
16
  Artigo 2.º do Ato Colonial. Decreto ções. Da esquerda para a direita, perfilam-se: Artur Maciel (jornalista e escritor
n.º 18570, Diário do Governo, Lisboa, I série, nacionalista), António Ferro, padre Carlos Estermann, cónego Manuel Ana-
n. 156, de 8.7.1930, p. 1309.
17
  Arquivo Nacional da Torre do Tombo quim (vigário geral do Patriarcado), D. Manuel Gonçalves Cerejeira (cardeal
(ANTT), Fundo da Empresa Pública do patriarca de Lisboa), general António Óscar Carmona (presidente da Repú-
Jornal O Século, Serviço de Fotografia,
Álbum n.º 33, disponível em: http:// blica), Armindo Monteiro (ministro das Colónias), coronel Lopes Mateus
digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=1017137 (que tomaria posse como governador-geral de Angola a 26 de janeiro), general
(acesso a 08/04/2014).
18
  Carlos Estermann e Elmano Cunha e
Domingos de Oliveira (presidente do Ministério de 1930 a 1932, amigo pessoal
Costa, Negros (Lisboa: [s.n.], 1941). de Salazar, e governador militar de Lisboa) e Elmano Cunha e Costa 17.
  Caso das fotografias a comprar ao Como veremos mais à frente, Cunha e Costa e o padre Estermann nunca
19

Dr. Elmano da Cunha e Costa (27.7.1938).


ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, PC-8E, chegaram a publicar o Álbum Etnográfico de Angola; juntos apenas deram à
cx. 561, pt. 1, 51.ª subd. O contrato foi estampa o livro Negros (1941) 18. No contexto da preparação das Comemora-
celebrado a 12 de junho de 1938, conforme
é referido no ofício n.º 3598 do secretário ções Centenárias da Fundação e Restauração da Nacionalidade, o advogado foi
da presidência do Conselho para o chefe incumbido de uma ‘missão fotográfica’ a Angola, onde voltou a fotografar entre
de gabinete do ministro das Colónias,
datado de 16 de setembro de 1941. Arquivo
meados de 1938 e outubro de 1939. Embora tenha celebrado um contrato com
Histórico Ultramarino (AHU), Ministério a Comissão Executiva dos Centenários “para o fornecimento de fotografias,
do Ultramar (MU), Gabinete do Ministro colhidas nas várias tribos angolanas”, Salazar impôs que “em caso algum [...] se
(GM), Comemorações centenárias (1939-
-1941), Processo 4/63, sala 6, n.º 536. daria carácter oficial à missão” e esclareceu: “Só por equívoco pode alguém ter
20
  Henrique Galvão, Exposição do Mundo ficado com a ideia de portaria a publicar pelo Governo” 19.
Português: Secção Colonial (Lisboa: Imp.
Neogravura Ltd, 1940). Grémio Português Elmano Cunha e Costa regressou a Lisboa em finais de 1939 e permaneceu
de Fotografia, Quarto salão internacional na capital cerca de dois anos. Neste período figurou como colaborador foto-
de arte fotográfica (Lisboa: Bertrand,
1940). Elmano Cunha e Costa, «Exposição
gráfico da secção colonial da Exposição do Mundo Português e participou no
etnográfica de Angola», Mundo Português, 4.º Salão Internacional de Arte Fotográfica (1940) 20.
n.º 7, (Lisboa, 1947) pp. 45-51. Em outubro de 1941, estabeleceu-se na Guiné, onde exerceu a advocacia
21
 Costa, O Regaleira e os seus fantasmas,
p. 14. e assumiu as funções de juiz substituto durante alguns meses 21. Aí fotografou

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1.  Classificação / Missão

a viagem do ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, que pre-
sidiu às cerimónias de transferência da capital, de Bolama para Bissau, no dia
19 de dezembro 22.
Decidido a fixar-se definitivamente a Lisboa, em janeiro de 1943 solicitou
a sua reinscrição na Ordem dos Advogados, que deliberou “negar a reinscri-
ção [...] com o fundamento no parágrafo terceiro do artigo setecentos e vinte e
sete do Estatuto Judiciário”, o qual determinava: “Pode a Ordem recusar a ins-
crição quando o requerente careça manifestamente de idoneidade moral” 23.
Em resposta, Cunha e Costa pediu à Ordem dos Advogados a abertura de um
inquérito à sua vida profissional em África, também esse negado. Este litígio
arrastou-se alguns anos e fez correr muita tinta. Cunha e Costa escreveu dois
“folhetos” sobre o assunto que reproduzem cartas de diversas personalidades
da área jurídica, política, entre outras, que atestam a boa conduta e o profissio-
nalismo do visado 24. Entre as diversas cartas abonatórias transcritas naqueles
folhetos encontra-se uma carta do governador-geral de Angola António Lopes
Mateus, datada de Luanda, 15 de novembro de 1937, confirmando a admira-
ção do advogado pela obra de Salazar e a sua dedicação à etnografia de Angola. 22
  Anónimo, «Viagem do sr. Ministro
das Colónias à Guiné e a Cabo Verde», in
Boletim Geral das Colónias, vol. 18, n.º 200
Sobre os estudos etnográficos a que V. Exa. se vem dedicando com (Lisboa: 1942), pp. 95-106.
o mais tenro carinho e bem vincado desinteresse material – porquanto a 23
  Ordem dos Advogados, Fundo da
Secretaria do Conselho Geral da Ordem dos
falta de uma compensação remuneradora não amortece o seu entusiasmo
Advogados, Processo n.º 10/1285. Nenhum
– basta ouvir os que têm apreciado os seus magníficos trabalhos para se documento do processo esclarece porque é
concluir quanto eles vão valorizar o nome da nossa Colónia. que a Ordem dos Advogados não reconhece
a Cunha e Costa idoneidade moral. Fica
De alguns deles, fui eu, portador para Lisboa onde foram sobre- apenas a suspeita de que o motivo pode ter
maneira apreciados – todos fazendo justiça ao seu esforço valioso e a ver com factos ocorridos na Guiné.
24
  Estes folhetos foram proibidos
desinteressado 25. pela censura por conter “referências
desprimorosas e chocarreiras à Ordem dos
Advogados. ANTT, Secretariado Nacional
No mesmo folheto encontra-se também uma carta de Henrique Galvão 26, de Informação, Censura, cx. 629, mct.
garantindo que Cunha e Costa cumpriu escrupulosamente as obrigações que 1, Relatório n.º 2337, de 30.6.1943. O
assumiu com a Comissão dos Centenários através da Secção Colonial da Expo- despacho proibindo o livro é de 14.7.1943.
Cópia digital on-line. Disponível em: http://
sição do Mundo Português. Além disso: digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4331836
25
 Costa, O Regaleira e os seus fantasmas,
p. 15.
Em qualidade, o seu trabalho não foi menos valioso pois assegurou ao 26
  Ibidem. Carta datada de Lisboa, 26 de
Estado a posse do mais notável documentário fotográfico da etnografia janeiro de 1943.
27
  Idem, ibidem, p. 16.
de Angola a que esta Colónia tem dado lugar e também a melhor que 28
  ANTT, PIDE/DGS, Registo Geral de
conheço entre as que conheço de outras colónias africanas 27. Presos, livro n.º 78, n.º 15413.
29
  ANTT, PIDE/DGS, SC, PC 1438/942
8 (12 vols.) NT 4778-4779. O volume
Dadas as relações sociais de Elmano Cunha e Costa, foi com surpresa que respeitante a Elmano da Cunha e Costa
nos deparámos com o seu nome na série Registo geral de presos, da PIDE, no é o vol. 3.º. A partir das referências às
atividades de «Armando» na Guiné, nome
Arquivo Nacional Torre do Tombo. Na sua biografia prisional consta que, em do código de Cunha e Costa, que constam
7 de janeiro de 1944, foi preso pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado no diário de Guy Lidell, diretor do M15
(contraespionagem britânica), Rui Araújo
(PVDE, antecessora da PIDE) para averiguações, tendo recolhido à cadeia do chega a Elmano de Morais da Cunha e
Aljube; sendo restituído à liberdade condicional a 1 de abril do mesmo ano 28. Costa, de quem traça uma breve biografia.
A acusação ou o motivo da prisão foram atividades alemãs nas colónias por- Rui Araújo, O diário secreto que Salazar
nunca leu (Lisboa: Oficina do Livro, 2008),
tuguesas 29. Elmano de Morais Cunha e Costa é um dos arguidos no subpro- pp. 98-111.

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“Etnografia Angolana” (1935-1939)

cesso referente a “actividades sobre assuntos de espionagem na nossa Colónia


da Guiné”. Tudo indicia que Elmano Cunha e Costa aceitou passar informa-
ções a Ernest Schmidt sobre o movimento de navios aliados, sendo pago para
o efeito. A coberto de uma missão de estudos etnográficos e da preparação
de um álbum etnográfico de Angola e Guiné por uma editora de Hamburgo,
Cunha e Costa tencionava viajar até ao arquipélago dos Bijagós, para verifi-
car a passagem de “comboios”, mas a escassez de gasolina na colónia impediu
a concretização do projeto. Foi transmitindo informações fantasiosas aos ale-
mães. O cônsul britânico desconfiou dele e o governo de Lisboa viu-se ‘for-
çado’ a investigá-lo. A PVDE concluiu que pesou mais o interesse monetário
do que a ideologia no envolvimento do advogado com uma organização de
espionagem alemã.
Enquanto esteve impedido de exercer a sua profissão, Cunha e Costa
empenhou-se na venda da sua coleção fotográfica e de uma carta etnográfica
de Angola, de sua autoria, ao Ministério das Colónias. Neste período, tam-
bém fez diligências para ser chamado a colaborar em estudos etnográficos nas
colónias. Paralelamente, escreveu em jornais, fez palestras radiofónicas e tra-
duções. Apenas em 17 de março de 1949, o Conselho Geral da Ordem dos
Advogados viria a autorizar a sua reinscrição na Ordem.

Contexto e condições de produção da coleção

A coleção fotográfica em estudo foi produzida entre 1935 e outubro de 1939,


na colónia portuguesa de Angola, por Elmano Cunha e Costa. É uma repor-
tagem em película negativa de 120 mm, realizada com uma Rolleiflex 30, esco-
lhida por ser um pequeno aparelho, de pequeno formato, o que facilitava a
acomodação, fator importante em longas viagens, e o controlo dos custos dos
filmes, da revelação, etc.31. Terão sido necessários, no mínimo, 730 rolos foto-
gráficos para a realização do “documentário”, o que nos dá uma ideia da quan-
tidade de material que era necessário transportar para o campo e da destreza
requerida no processo fotográfico para não desperdiçar recursos. A fotogra-
fia foi mobilizada para registo das “58 tribos” que habitavam Angola e como
fonte de evidência empírica sobre as suas características físicas e práticas
quotidianas.
Entre 1935 e 1938, Cunha e Costa fotografou o grosso da coleção, sendo
acompanhado e orientado pelo padre Carlos Estermann, na vasta província
da Huíla. O missionário foi seu “guia seguro e precioso colaborador”, devido
aos seus conhecimentos etnológicos, ao contacto prolongado com o terreno,
30
  Costa, «Alguns aspectos dos estudos
etnográficos», p. 106. ao domínio das línguas locais e ao prestígio que gozava entre os diversos gru-
31
 Cf. ibidem, p. 101. pos étnicos do sudoeste de Angola 32. Logo em 1935, realizaram duas saídas
32
  Agência Geral das Colónias, Catálogo da
exposição de etnografia angolana de Elmano
de campo para a região do Cunene, concretamente para o Cuanhama (onde o
Cunha e Costa (Lisboa: SNI, 1946). padre Estermann tinha fundado a missão da Omupanda e onde permaneceu
  Carlos Estermann, Etnografia de Angola de 1928 a 1932) e para a região da Mupa, onde tinha iniciado a sua atividade
33

(Sudoeste e Centro) (Lisboa: IICT, 1983),


vol. 1, p. 67. missionária em 1924 33.

89
1.  Classificação / Missão

Através de relatos posteriores de Elmano Cunha e Costa temos acesso a Figura 1.  Hora de repouso.
[Autoretrato de Elmano Cunha e Costa
algumas informações sobre o trabalho de campo. A divisão das tarefas decor- e Padre Estermann. Em cima da mesa
ria das competências de cada um: o padre dedicava-se à parte etnográfica, o estojo da máquina Rolleiflex] Moxico,
Angola. 1935-1939. Digitalização a
observando as práticas quotidianas, conversando com os nativos e tomando partir de negativo em película de
apontamentos no seu caderno de campo; Cunha e Costa tirava fotografias que nitrato de celulose, p/b, 6x6cm,
documentavam as observações etnográficas 34. Além disso, o advogado, por Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC1122, ID8533.
sua iniciativa, indagava as “denominações dadas às tribos indígenas, locali-
zando-as geograficamente” com vista à elaboração de uma carta etnográfica 35.
O trabalho dos dois homens devia interligar-se e resultar num objeto único: 34
  Ibidem.
o Álbum Etnográfico de Angola. Pontualmente, contaram com a colabora- 35
  Agência Geral das Colónias, Catálogo da
ção de outros missionários católicos, como o padre Laagel “que há dezenas exposição de etnografia angolana de Elmano
Cunha e Costa, s.p.
de anos evangeliza, civiliza e estuda” os “Bundos”, “tribo que vive na região de 36
  Estermann e Costa, Negros, p. 61. Na
Caconda, no planalto da Huíla” 36. Também contaram com a ajuda das autori- passagem do livro, Elmano Cunha e Costa
refere que a sua máquina fotográfica
dades administrativas, como o governador do Bié: “velho amigo, figura presti- ia fixando as práticas de feitiçaria que
giosa de colonial – D. António de Almeida – herdeiro da “D. Arlete”, a roulote “pacientemente o Padre Laagel explicava
que Cunha e Costa usou nas viagens por Angola, puxada por uma carrinha e Padre Carlos Estermann seguia
atentamente” (p. 83).
Ford 85 cavalos 37. Dessa forma terá percorrido mais de cem mil quilómetros 37
  Ibidem, p. 180.

90
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

por todo o território. Para aliciar o público leitor e numa estratégia de auto-
promoção e glorificação da sua atividade num meio exótico e adverso, escre-
veu que “muitos dos clichés foram obtidos em lugares do interior depois de
penosas viagens a pé, em carro boer, a cavalo, de piroga em rios [...] traiçoei-
ros, ou na velha machila de tão belas tradições” 38. A construção de uma nar-
rativa credível e heroica passou também pela reprodução de excertos do seu
diário:

Dia 10 de Agosto de 1939


Tomamos «mata-bicho» de garfo em casa do Administrador Joaquim
Henriques [em Gago Coutinho], [...] que lealmente me avisa: «daqui por
diante viaja sob sua responsabilidade. Não lhe garanto nem a estrada
nem as pontes. Precisa ir com as maiores precauções 39.

Não sabemos ao certo qual o roteiro seguido por Elmano Cunha e Costa
com e sem o padre Carlos Estermann nem quanto tempo permaneceram/per-
maneceu junto de cada grupo étnico. Cunha e Costa virá a afirmar que no
Cuando, onde foi já sem o missionário, não pôde ficar o tempo suficiente para
um estudo profundo 40.
Sabemos que a prática fotográfica de Cunha e Costa se processava no qua-
dro da relação colonial, estando o fotógrafo investido de uma autoridade face
aos fotografados, que lhe advinha de ser branco e de se apoiar na autoridade e
conhecimentos dos missionários e da administração colonial. Mas não temos
informação específica sobre como se processava a interação entre o fotógrafo e
os fotografados nem a intervenção de possíveis intermediários.
À semelhança do que tem sido apontado por historiadores da ciência
– o contributo vital dado nos bastidores da ciência por assistentes técnicos e
outros com menor grau de instrução, foram essenciais para construir instru-
mentos, organizar laboratórios, realizar experiências mais rapidamente, etc. 41
– auxiliares africanos participaram nas saídas de campo (na coleção há foto-
grafias que o atestam) e contribuíram, direta ou indiretamente, para a realiza-
ção do “documentário fotográfico”, mas ficaram na sombra ou foram relegados
para o plano do anedótico e do pitoresco, como o motorista, os carregadores,
os informantes ou o cozinheiro. Num excerto que supostamente reproduz do
seu diário, relativo a novembro de 1938, escreveu:

Perto da noite chegámos ao Golungo Alto, onde compro pão.


Meto-me a caminho e noite fechada páro junto duma sanzala onde o
chefe indígena nos cede uma cubata nova com dois quartos.
38
  Agência Geral das Colónias, Catálogo da No de dentro o cozinheiro acende o lume; no outro ponho a trabalhar
exposição de etnografia angolana de Elmano o meu excelente Phillips.
Cunha e Costa, s.p.
Ouvimos a hora de saudade da Emissora Nacional.
39
  Estermann e Costa, Negros, p. 198.
40
  Ibidem, p. 207. O chefe preto, bem falante, espertalhão, bom ambaquista, esqui-
41
  Patrícia Fara, Ciência: 4000 anos de va-se a responder às minhas perguntas sobre usos e costumes daqueles
História (Lisboa: Livros Horizonte, 2012),
p. 219. povos.

91
1.  Classificação / Missão

Com ar superior tem esta tirada estupenda: «queimámos tudo depois


da vinda dos padres católicos. Agora só tratamos do Divino».
Temos à nossa volta uma multidão de pretos a ouvir telefonia, que o
meu cozinheiro cabinda explicava assim: «o patrão tem um telefone de
vento».
Bom filósofo o meu Caianga Francisco Pitra.
Preguntei-lhe um dia se ele sabia o que era um avião.
Sem hesitar respondeu: «sei sim patrão. É uma coisa que anda muito
devagar e chega muito depressa» 42.

Embora não fosse um fotógrafo profissional, Cunha e Costa tinha conhe-


cimentos técnicos de fotografia (dos equipamentos, dos filmes, de revelação,
de conservação, etc.) e quis afirmar a sua competência em textos que produ-
ziu sobre a sua prática fotográfica. Num artigo que publicou, explicava que
um documentário fotográfico como aquele que realizou em Angola, capaz
de captar os traços da “inconfundível personalidade” dos retratados, impli-
cava “[t]rabalho metódico, moroso, paciente, de devoção”, e “demanda[va]
estudo teórico, fervorosa aplicação prática, e naturalmente sensibilidade artís-
tica” 43. Cunha e Costa dava como exemplo as tatuagens ou mutilações: “raras
vezes representam um enfeite (…) [c]onhecer-lhes o significado é função de
paciente estudo, mas fixá-los pela imagem com lentilhas de aproximação, bem
expostas à luz clara iluminando o pormenor sem sombras desnorteantes, que
confundam o detalhe, é só trabalho de paciente investigação” 44.
Durante a realização do “documentário”, Cunha e Costa teve a preocu-
pação de preservar os filmes e “defendê-los do calor das viagens, guardando-
-os em caixas de fôlha com carbonato de cal [cálcio, CaCO3] que absorvesse
a humidade (…) preservando-os do bolor e da humidade com meticulosos e
constantes cuidados” 45. Uma das principais características do filme em nitrato
de celulose é a sua composição instável, que ao envelhecer acidifica, catalisado
por valores elevados de humidade relativa e temperatura, podendo iniciar um
processo de decomposição a temperaturas de 38º C, libertando gases de ácido
nítrico que podem causar a perda total do filme 46. Os cuidados prestados por
Cunha e Costa não eram casuais e o uso do carbonato de cálcio é explicado
através das suas valências: no seu estado puro, é um composto sólido, tem a
forma de pó fino cristalino, de cor branca, fácil de encontrar na natureza (már-
more, calcário). Por ser um material que apenas se decompõe a temperaturas
de 470°C, por ser estável e não inflamável, não corrosivo e atóxico, permite 42
  Estermann e Costa, Negros, pp. 193-194.
43
  Costa, «Alguns aspectos dos estudos
criar uma barreira entre os negativos e a temperatura e humidade externas, etnográficos», pp. 100 e 101.
criando um microclima seco, fresco, neutro e não nocivo, prevenindo também 44
  Ibidem, pp. 101 e 102.
45
  Idem, ibidem, pp. 12 e 13.
a precoce acidificação do nitrato enquanto absorvedor de humidade e gases. 46
  Para consulta mais detalhada: Health &
A revelação dos filmes foi outra das suas preocupações. Em Angola eram Safety Executive, The dangers of cellulose
raros os “laboratórios em condições de efectuarem operações perfeitas”. nitrate film (U.K, 2003); Bertrand Lavédrine,
Les collections photographiques: Guide de
Garante: “Nunca revelei filmes senão em Mossâmedes. (…) as águas são más e conservation preventive (Paris: Ed. Arsag,
uma má lavagem torna precária a conservação do cliché 47. Uma das principais 2000).
47
  Elmano Cunha e Costa, «Alguns aspectos
causas de amarelecimento da imagem de prata em fotografia é o seu deficiente dos estudos etnográficos», pp. 100-101.

92
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

processamento durante a revelação: uma insuficiente lavagem ou uma lavagem


dos filmes com água pouco purificada pode levar, por um lado, ao desenvol-
vimento de manchas amarelas de oxidação devido à remoção insuficiente do
tiossulfato de sódio, agente fixador do filme 48; por outro, o depósito de impu-
rezas da água na forma de minerais ou sais também leva a posteriores manchas
e ausência de transparência, fundamental para a boa impressão do negativo.
Estes aspetos são fundamentais para compreender não só o grau de conheci-
mento do autor sobre os materiais que utilizava como o bom estado de conser-
vação desta coleção até aos dias de hoje.
Qual terá sido o lugar da fotografia de Elmano da Cunha e Costa na
fotografia antropológica coeva? Numa breve comunicação de Mendes Cor-
reia sobre a utilização da fotografia nos estudos antropológicos em Portugal,
percebe-se que a sua utilização era limitada: “exclusiva ou quase exclusiva-
mente empregada para a indispensável figuração de espécimes antropológi-
cos vivos”; “Nos mais recentes trabalhos de craniologia e de antropologia do
vivo publicados em Portugal, o uso da fotografia predomina sobre o desenho
dos exemplares” 49. O diretor do Instituto Antropológico do Porto referia-se a
uma fotografia de objectificação antropológica, usada noutras paragens entre
finais do século XIX e inícios do século XX, em que o fotógrafo usava técni-
cas de distanciamento e de descontextualização que transformavam os sujei-
tos em objetos antropológicos 50, fotografados de pé, nus, encostados a uma
grelha de medição ou registados de frente e de perfil para uma comparação
quantitativa 51.
Apesar de não ter qualquer formação etnográfica, a fotografia de Cunha
e Costa reflete um certo olhar etnográfico (provavelmente tributário do olhar
do padre Carlos Estermann). Ao contrário da fotografia de pura objectifica-
ção antropológica, as suas fotografias, não obstante também fazerem parte de
uma história visual da raça, não obedecem a padrões de representação tão rígi-
dos e estereotipados, além de não abdicarem de referências naturais e sociais.
Tendo em conta a história do papel da fotografia na emergência e desen-
volvimento do campo da antropologia, diremos que a fotografia de Cunha
e Costa já não é apenas um instrumento de registo fidedigno de variações
fenotípicas e da cultura material (como foi entendida pelos antropólogos no
século XIX), embora também ainda não incorpore plenamente a consciência
48
  James Reilly, IPI Storage Guide for
acetate film (Rochester: Image Permanence
da exposição do fotógrafo à realidade que pretende registar (após Franz Boas e
Institute, 1993). Malinowski) 52. Mesmo sendo um amador, o seu trabalho situa-se no momento
  António Mendes Correia, «Notas sobre em que a câmara se tornou uma metáfora do processo de coleta de evidências
49

a fotografia aplicada à Antropologia em


Portugal» in Separata das Memórias da etnográficas.
Academia das Ciências de Lisboa, (Lisboa: É indiscutível que a produção desta coleção decorre das relações privile-
ACL, 1940), p. 4.
50
  Nancy Leys Stepan, Picturing tropical giadas de Cunha e Costa com os círculos do poder. “Colonial” fixado no Sul
nature (London: Reakting Books, 2001), de Angola durante o período de produção da coleção, corporizava o ideal não
p. 123.
51
  Patricia Fara, Ciência: 4000 anos de
só do colonizador como do viajante explorador científico e acreditava numa
História, p. 234. suposta missão civilizadora portuguesa em África. Quis realizar um inventá-
  Christopher Pinney, Photography and rio rigoroso e sistemático e uma classificação objetiva dos povos de Angola, no
52

Anthropology (London: Reaktion Books,


2011) pp. 18-62. quadro da ocupação científica do império e da propaganda imperial. Os foto-

93
1.  Classificação / Missão

Figura 2.  Danças da circuncisão,


Luimbes. Província do Bié – Postos
Cuemba e Chachingues, Angola.
1935-1939. Digitalização a partir de
negativo em película de nitrato de
celulose, p/b, 6x6cm, Arquivo Histórico
Ultramarino, IICT, ECC/NC5519,
ID12722.

grafados eram colonizados de várias etnias, reduzidos a espécimes representa-


tivos – sem direito a serem identificados pelo seu nome próprio nas legendas
das fotografias. A fotografia desenvolvida por Cunha e Costa (tal como a ante-
riormente desenvolvida por Cunha Morais), “com destaque para a represen-
tação de grupos humanos, obedece a uma classificação que funde numa peça,
natureza e cultura, originando daí a noção de tribo, como um todo colectivo,
onde as características somáticas e os hábitos culturais estabelecem uma rela-
ção unívoca” 53. A coleção oculta as tensões, a exploração económica e laboral
e a discriminação racial e social inerentes ao próprio sistema colonial, com-
pondo uma visão atemporal, estática e harmoniosa dos diferentes povos sub-
metidos ao domínio português no território angolano.
53
  Teresa Matos Pereira, «Uma travessia da
Estas asserções, estando corretas, não devem impedir que o historiador colonialidade: Intervisualidade da pintura,
explore outras possibilidades interpretativas. Tal como Morton, considera- Portugal e Angola» tese de doutoramento
mos que, para além da perspetiva colonialista do fotógrafo, não se deve esque- em Belas-Artes, Pintura, (Lisboa: Faculdade
de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,
cer a agência ‘indígena’ na construção do arquivo fotográfico etnográfico 54. 2011), p. 245.
Dever-se-á questionar a primazia dada à intencionalidade do fotógrafo e ten- 54
  Christopher Morton, «Double alienation.
Evans-Pritchard’s Zande and Nuer
tar recuperar os traços históricos dos sujeitos retratados. Embora não seja Photographs», in Photography in Africa:
nosso propósito interpretar a coleção, é possível entrever que os fotografados ethnographic perspectives, dir. Richard Vokes
(Suffolk: James Curry, 2012), pp. 33-55.
também terão influenciado a prática fotográfica de Cunha e Costa e que terá 55
  Ibidem, p. 33. Morton, ao estudar as
havido diferentes atitudes face à câmara 55. fotografias de Evans-Pritchard dos Zande
e dos Nuer, identifica respostas indígenas
diferenciadas à câmara do antropólogo
britânico.

94
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

Figura 3.  Tipo feminino, Quipungos. Província da Huíla, Figura 4.  Fumando cânhamo, Bochimanes. Angola. 1935-1939.
Angola. 1935-1939. Digitalização a partir de negativo em película Digitalização a partir de negativo em película de nitrato de
de nitrato de celulose, p/b, 6x6cm, Arquivo Histórico Ultramarino, celulose, p/b, 6x6cm, Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC6683, ID13811 IICT, ECC/NC874, ID8285.

Circulação, usos e públicos da coleção

Elmano Cunha e Costa e Carlos Estermann tencionavam publicar um Álbum


Etnográfico de Angola em dez volumes, com uma centena de gravuras cada
um, ilustrações legendadas em quatro línguas, e um texto bilingue – português
e francês – servindo de introdução e explicação a cada volume 56. Por motivos
alheios à vontade dos autores, e sobretudo por falta de financiamento oficial,
o projeto nunca se concretizou. Porém, em 1941, saía o livro Negros, de Ester-
mann e Cunha e Costa 57. Trata-se de um livro desequilibrado e desconexo.
Os três primeiros capítulos são assinados pelo padre Estermann – “Bochima-
nes”, “Corocas e Cuissis” e “A tribu Cuanhama” (pp. 1-48) –, sendo o resto
do livro, do capítulo “Raças e Tríbus indígenas de Angola” até “Os Camaxis”
(pp. 49-207), da responsabilidade de Cunha e Costa. São reproduzidas apenas
56
  Carlos Estermann, Etnografia do Sudoeste dez fotografias. Em 1956, o missionário refere que “O Sr. Dr. Elmano Cunha
de Angola. vol. 1: Os povos não-Bantos e
o grupo étnico dos Ambos, 2.ª ed. (Lisboa:
e Costa incorporou o texto explicativo dos dois primeiros volumes [do proje-
Junta de Investigações do Ultramar, 1960 tado Álbum] no livro Negros, texto que ali está um tanto ou quanto deslocado
[1956]), p. 10. por faltarem as gravuras que lhe serviam de base” 58. No artigo “Os meus con-
57
  Em carta de Cunha e Costa para o eng.º
Bacelar Bebiano, datada de 17.05.1941, o tactos com os Bochimanes do Sudoeste de Angola”, publicado originalmente
advogado oferece-lhe o livro e esclarece: no Boletim Cultural da Câmara de Sá da Bandeira, em 1974, afirma:
“A edição, de conta própria, é muito
cuidada, como Vossa Exª vê, mas, mesmo
esgotada, dá um prejuízo de alguns contos.” De tudo o que se observou em diversos sítios tiraram-se centenas
Arquivo IICT, proc. 150, doc. 8.
de fotografias e tomaram-se páginas de apontamentos. Infelizmente, e
58
 Estermann, Etnografia do Sudoeste de
Angola, p. 10. mau grado os seus autores, o Álbum não veio a lume. Todavia o texto

95
1.  Classificação / Missão

introdutório referente à parte dos Bochimanes foi publicado como


primeiro capítulo, por iniciativa do Dr. E. Cunha e Costa, num pequeno
volume intitulado «NEGROS» (Lisboa, 1941). Contudo, como as imagens
não acompanharam a descrição com elas relacionadas, ficando separados,
assim, dois elementos destinados a andarem juntos e unidos, tem-se a
impressão de um escrito mal concebido e redigido 59.

Percebe-se que o padre Carlos Estermann se queria demarcar daquela


obra, eventualmente publicada à sua revelia. Mais tarde, o missionário etnó-
grafo terá sentido necessidade de explicitar essa distância em relação às opções
do “amador fotográfico”, a quem faltavam credenciais académicas, num con-
texto em que o trabalho científico de Estermann era reconhecido e financiado
pela Junta de Investigações do Ultramar 60. Refira-se também que o missio-
nário passou a integrar a fotografia como forma de registo na sua prática
etnográfica.
Desde cedo, Elmano da Cunha e Costa deu a conhecer o trabalho fotográ- 59
 Estermann, Etnografia de Angola
(Sudoeste e Centro), vol. 1, p.68
fico que tinha em curso em exposições, em Angola e em Lisboa 61. A sua ‘estreia’ 60
 Estermann, Etnografia do Sudoeste
na capital teve lugar em 1938, no estúdio do SPN com a Exposição de Fotogra- de Angola, vol. 3: O grupo étnico Herero
(Lisboa: JIU, 1961), p. 9.
fias de Angola. A exposição integrava o rol de iniciativas de propaganda do 61
  Logo em 3 de abril de 1937 inaugurou
império colonial português, tendentes a divulgar junto do público metropoli- uma exposição em Benguela. A notícia,
tano a diversidade dos povos sob soberania portuguesa e o génio colonizador intitulada “Exposição de Estudos
Etnográficos” referia que “Já regressou a
e civilizador português. Um momento alto de apresentação pública do seu tra- esta cidade o nosso prezado amigo sr. Dr.
balho aconteceu para o público vasto e heterogéneo da Exposição do Mundo Elmano Cunha e Costa, distinto advogado,
que, em colaboração com o Reverendo
Português: as suas fotografias foram expostas nos pavilhões das Províncias Padre Carlos Estermann, ilustre e respeitado
Ultramarinas (sala 6, respeitante à etnografia de Angola e Moçambique) e da Superior das Missões Católicas da Huíla,
vem realizando obra de grandioso vulto
Caça e Turismo do Império (na parte turismo cinegético) da Seção Colonial e com a elaboração do «Album Etnográfico
uma seleção integrou o respetivo catálogo 62. Na sede do SNI, Cunha e Costa do Império Colonial Português». / O sr.
viria ainda a realizar a Exposição de Etnografia Angolana (1946) e a Exposição Dr. Cunha e Costa que, em Benguela, nos
salões do Palácio do Comércio, expôs no dia
de Penteados e Adornos Femininos dos Indígenas de Angola (1951) 63. As inau- 3 do corrente 100 fotografias pertencentes
gurações, sempre presididas por altas figuras do Estado (o presidente, o minis- ao «Album Etnográfico», realizou antes da
abertura da referida exposição uma valiosa
tro das Colónias ou a primeira-dama), tiveram grande destaque na imprensa conferência subordinada ao título «Os meus
generalista. A exposição de 1946 foi também alvo de uma recensão de Fran- bonecos»”. A notícia também referia que já
tinham sido obtidas até àquele momento
cisco José Tenreiro, na Seara Nova, uma revista ligada à oposição democrática 3900 fotografias. Noticias em: «Exposição
com grande prestígio e penetração no mercado 64. O poeta são-tomense reco- de Estudos Etnográficos», O Sul de Angola,
nhecia que se tratava de “uma bela coleção” e não duvidava que a seleção das Moçâmedes, a. 6.º, n.º 267 (17 de abril de
1937), p. 1; e «Em Benguela, A Exposição
fotografias fora presidida por “notável bom gosto” mas dadas “as mais amplas Etnográfica do Sr. Dr. Elmano Cunha e
ambições” do documentário, considerava que as legendas eram “demasiado Costa», O Sul de Angola, Moçâmedes, a. 6.º,
n. 268, (24 de abril de 1937), pp. 2 e 6.
sóbrias” e o catálogo totalmente ineficaz. A sua crítica mais contundente era, 62
  Henrique Galvão, Exposição do Mundo
contudo, dirigida à organização da exposição: por apenas se realizar na capi- Português: Secção Colonial, pp. 271 e 282.
63
  Sobre estas exposições ler artigo Inês
tal e se dirigir a uma elite. Vieira Gomes «Imagens de Angola e
Por outro lado, a coleção de Cunha e Costa foi utilizada para ilustrar obras Moçambique na metrópole. Exposições
de diversa natureza – divulgação científica e histórica, literatura de viagens e de fotografia no Palácio Foz (1938-1960)»,
nesta publicação.
propaganda colonial – vendidas em fascículos e destinadas a um consumo de 64
  Fancisco José Tenreiro «Exposição de
massas. É o caso de: Raças do Império, de Mendes Correia, publicada a partir etnografia angolana», in Seara Nova, ano
XXVI, n.º 1020 (Lisboa, 15 de fevereiro
de 1943, com 98 fotografias de Cunha e Costa, já na posse da Agência Geral 1947), p. 18.

96
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

das Colónias 65; A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses, de Cas-


tro Soromenho, dada à estampa entre 1946 e 1948, ilustrada com largas deze-
65
  Mendes Correia, Raças do Império (Porto: nas de fotografias de Cunha e Costa (não creditadas) 66; e da segunda edição do
Portucalense Editora, 1943). As fotografias livro de Henrique Galvão, Outras terras outras gentes: viagens em África, tam-
nesta publicação encontram-se creditadas
como; E. Cunha e Costa (Age. G. Col.)
bém com numerosas imagens do fotógrafo 67.
66
  Castro Soromenho, A Maravilhosa Apesar do projeto do Álbum Fotográfico nunca se ter concretizado,
Viagem dos Exploradores Portugueses,
1.ª ed. (Lisboa: Terra Editora, 1946);
as fotografias de Elmano Cunha e Costa tiveram uma ampla circulação em
2.ª ed. (Lisboa: Editorial Sul, imp., 1956). diversos suportes e um amplo consumo simultâneo ou imediato à sua pro-
Curiosamente, a segunda edição inclui uma dução 68. Na época, contribuíram de forma decisiva para o modo como os
nova seleção fotográfica do mesmo autor,
mais uma vez sem os devidos créditos. povos de Angola, os seus “usos e costumes” e as paisagens onde se moviam
67
  Henrique Galvão, Outras terras, outras foram percecionados pela comunidade nacional. Tal como Nuno Porto, consi-
gentes: viagens em África (Porto: Empresa
Jornal de Notícias, [195-]), 2 vols. deramos que a fotografia participa no processo de constituição mútua de uma
68
  Teresa Matos Pereira, «Uma travessia da consciência nacional que é, como a outra face da moeda, uma consciência
colonialidade: Intervisualidade da pintura,
Portugal e Angola», p. 89
colonial. A circulação de textos e imagens impressas tem um papel fundamen-
69
  Nuno Porto (coord.), Angola a preto tal neste processo mediante a distribuição de um conjunto de representações
e branco: Fotografia e ciência no Museu sobre o assunto, por uma população espacialmente fragmentada. Também por
do Dundo, 1940-1970 (Coimbra: Museu
Antropológico da Universidade de Coimbra, meio da sua circulação, em suma, se constitui a comunidade nacional e se virá
1999), p. 18. a pensá-la como una, do Minho a Timor 69.
70
  Afirma que em finais de 1939, voltou
a Lisboa, para “entregar trabalhos Em cumprimento do contrato com a Comissão dos Centenários, Cunha e
[fotográficos] à Comissão Nacional Costa procedeu à entrega de 896 clichés. Porém, a acreditar nas suas palavras,
dos Centenários e para tentar receber
importante soma do Estado [pelos mesmos]
não terá recebido qualquer pagamento 70. Depois da extinção daquela Comis-
[...]. Durante dezoito meses de negociações são, os clichés “foram remetidos à Presidência do Conselho para lhes ser dado
com o Governo Português, [esteve] inactivo, o conveniente destino” 71. Por indicação do gabinete do ministro das Colónias,
gastando avaras economias primeiro, e
contraindo encargos depois.” O presidente os clichés ingressaram na Agência Geral das Colónias 72.
do Conselho, determinou, em julho ou Não conseguimos confirmar se a venda do grosso da coleção fotográfica
agosto de 1941, que não era oportuna
qualquer liquidação. Cf. Relatório entregue (negativos, álbuns, ampliações, etc.) e da carta etnográfica de Angola (desta
por Elmano de Morais da Cunha e Costa à última falaremos mais à frente) ao Ministério das Colónias se concretizou na
PVDE, [6 de dezembro de 1943]. PT, ANTT,
PIDE, SC, PC 1438/942 8 NT 4778-4779.
sequência de uma carta de Cunha e Costa para o chefe de gabinete do minis-
Vol. 3.º, cit. in Araújo, «O diário secreto que tro das Colónias, em 25 de junho de 1943, na qual o advogado referia que tinha
Salazar nunca leu», p. 106. “imperiosa necessidade de liquidar compromissos contraídos para a realiza-
71
  Ofício n.º 3598 do secretário da
presidência do Conselho para o chefe de ção dos trabalhos [etnográficos de Angola] e ainda a conveniência de fazer a
gabinete do ministro das Colónias, datado entrega à Agência Geral das Colónias, por não ter onde guardar muitas coisas,
de 16 de setembro de 1941. PT, AHU, MU,
Comemorações centenárias (1939-1941), especialmente os quadros grandes cuja armazenagem [pagava]”. Pedia uma
Processo 4/63, sala 6, n.º 536. solução que lhe permitisse receber em julho, pois havia garantido ao Banco
72
  Ofício n.º 2107, do chefe do Gabinete
[do ministro das Colónias] (Álvaro da
Nacional Ultramarino que lhe pagava nesse mês, “de harmonia com a pro-
Fontoura) para a o chefe de gabinete messa de Sua Excelência o Ministro”. Sublinhava que a entrega dos materiais
do presidente do Conselho, datado de devia ser feita de imediato, para o aliviar de encargos. Terminava dizendo:
24 de setembro de 1941. PT, AHU, MU,
Comemorações centenárias (1939-1941), “Limito a este ponto as minhas pretensões, já que não é possível obter-se uma
Processo 4/63, sala 6, n.º 536. situação que me permita viver, agora que sou vítima duma infâmia sem nome
73
  Carta de Elmano Cunha e Costa para o
major Álvaro de Fontoura, chefe de gabinete que me tolhe a maneira de ganhar o pão” 73. Segundo se depreende do preâm-
do ministro das Colónias, datada de 25 de bulo ao catálogo da Exposição de Etnografia Angolana, a coleção não chegou a
junho de 1943. AHU, MU, GM, sala 6,
n.o. 533-2. Proc. 4/159, Junta das Missões
custar ao Estado duzentos contos, o que ressarcia Cunha e Costa dos encargos
(1942-1943). que havia contraído no terreno com “a compra duma caminheta Ford, mate-
  Agência Geral das Colónias, Catálogo da rial fotográfico, pagamento a pessoal, combustíveis, vencimentos a colabora-
74

exposição de etnografia angolana de Elmano


Cunha e Costa, s.p. dores brancos, presentes a indígenas, etc.” 74.

97
1.  Classificação / Missão

Disputando autoridade científica sobre


a Etnografia Angolana

A coleção fotográfica de Elmano Cunha e Costa parece ter estado sempre sob
escrutínio científico. Salazar concordou que a Comissão dos Centenários esta-
belecesse um contrato com Cunha e Costa para o fornecimento de fotografias
de Angola, desde que “estivesse demonstrado o valor científico da colecção (...)
já existente e a probabilidade de completá-la ou enriquecê-la” 75.
O “amador” fotográfico e etnográfico procurou por diversas vezes vali-
dação científica e cobertura institucional para o seu trabalho. Em 11 dezem-
bro de 1940, ‘ofereceu’ ao Ministério das Colónias, por intermédio da Agência
Geral das Colónias, uma carta etnográfica de Angola por si elaborada, “docu-
mentada com fotografias representando um homem e uma mulher dos tipos
mais característicos de todas as tribos que povoam Angola”, deixando o preço
ao critério do Ministério 76.
Para poder avaliar a qualidade científica da carta, o subsecretário de
Estado das Colónias mandou ouvir o professor de Etnografia da Escola Supe-
rior Colonial, António de Almeida 77. Face às reservas levantadas pelo pro-
fessor, a aquisição não foi autorizada. O advogado ainda desvalorizou a sua
autoridade, “que em Angola esteve ao todo 2 meses nos Dembos”, mas depois
de conferenciar com ele, introduziu as alterações sugeridas e foi pedir pare- 75
  Caso das fotografias a comprar ao
cer sobre a nova versão aos missionários do Espírito Santo 78. Com base neste Dr. Elmano da Cunha e Costa (27.7.1938).
ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, PC-8E,
parecer, francamente positivo, submeteu a nova carta e respetivo “mostruário cx. 561, pt. 1, 51.ª subd. Ênfase nossa.
fotográfico” ao Agente Geral das Colónias para ser apresentada ao subsecretá- 76
  Cópia de carta de Elmano da Cunha e
rio de Estado das Colónias 79. Costa para o Agente Geral das Colónias,
Júlio Cayolla, datada de Lisboa, 17 de
Desta feita, o subsecretário de Estado pediu um parecer à Junta das maio de 1941. Portugal, Arquivo do IICT,
Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (JIC) “acerca da exacti- Processo 150, doc. 7 (anexo).
77
  António de Almeida (1900-1984),
dão e mérito científico da carta etnográfica”. A JIC, reunida em 4 de junho médico, antropólogo físico, e deputado à
de 1941, analisou esta carta etnográfica, comparando-a com outras anterio- Assembleia Nacional (1938-1957), desde
1935, lecionava Quimbundo e Etnologia
res, como a publicada em 1916 pela então Secretaria dos Negócios Indíge- Colonial na Escola Superior Colonial e
nas, que considerou bastante completa e representativa; e com o esboço já havia feito trabalhos antropológicos
etnográfico inserto na publicação sobre Angola preparada para o 1.º Cru- em Angola (1934). Veio a pertencer à
Junta de Investigações Coloniais, como
zeiro de Férias às Colónias Portuguesas 80. A Junta começou por reco- vogal do Plenário, chefe do Centro de
nhecer que entre os seus vogais não tinha “ninguém com os necessários Estudos de Etnologia Ultramarina (depois
Centro de Antropobiologia) e da Missão
conhecimentos para se poder pronunciar minuciosamente, como convém, Antropológica de Timor. Entre 1948 e 1955,
sobre a exatidão e mérito científico da referida carta”. O parecer que emitiu realizou várias missões de estudo a Angola.
78
  Carta de Cunha e Costa para o eng.º
reflete a forte presença da engenharia geográfica no plenário da Junta. Lê-se no Bacelar Bebiano, datada de 17.05.1941.
parecer: Arquivo do IICT, proc. 150, doc. 8.
79
  Ofício do Agente Geral das Colónias,
Júlio Cayolla, para o presidente da JMGIC,
a) a carta não mostrava “a distribuição geográfica das diferentes tribos datado de 24.5.1941. Arquivo do IICT, Proc.
pela forma usualmente empregada”, isto é, marcando os limites do ter- 150, doc. 9.
80
  Angola: Generalidades sobre Angola para o
ritórios por elas ocupado; 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias Portuguesas
b) a carta não assinalava certos acidentes geográficos, sobretudo os rios (Luanda: Imp. Nacional, 1935). Informação
n.º 35 da JIC, assinada pelo presidente
mais importantes, “que frequentemente limitam os territórios ocupa- J. Bacelar Bebiano, e datada de 16.6.1941.
dos pelas diferentes tribos”; Arquivo do IICT, Processo n.º 150.

98
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

c) não dava “uma ideia do sistema de projecção em que se baseia, devido


à ausência de meridianos e paralelos no exemplar examinado”; e final-
mente;
d) não tinha vantagem “ser desenhada na escala de 1:1.500.000 a não ser
que se destine a exposições” 81.

Quanto às “fotografias dos vários tipos de indígenas que o Snr. Dr. Elmano
da Cunha e Costa juntou ao mapa examinado”, a JIC reconhecia o seu inte-
resse, mas considerava que lhes faltavam “os indispensáveis elementos de iden-
tificação antropométrica e topográfica”. Assim sendo, “a Junta é de opinião que
a carta etnográfica apresentada [...], como se encontra elaborada, não apre-
senta interesse científico que justifique a sua aquisição” 82.
Face à decisão da JIC, Cunha e Costa pediu por duas vezes ao respetivo
presidente orientações para continuar a trabalhar na sua carta etnográfica de
Angola 83. Afirmava que não desejava alimentar qualquer “controvérsia”, ape-
nas aperfeiçoar o seu trabalho, guiado pelas instituições culturais e científicas
do Ministério das Colónias. Não encontrámos qualquer resposta a estas soli-
citações.
Na mesma altura em que decorria a contenda entre Cunha e Costa e a
JIC em torno da valia científica da sua carta etnográfica, o advogado apre-
sentou à Junta uma proposta de Missão Etnográfica a Angola, que compre-
81
  Ibidem. endia o estudo de folclore indígena e de direito natural indígena; fotografias
  Idem, ibidem. sobre tatuagens, adornos, etc.; e gravação de discos. A resposta do presidente
82

83
  Cartas de 15 de julho e 28 de agosto de
1941, de Elmano Cunha e Costa para o da instituição foi que naquele ano económico não havia disponibilidade finan-
engenheiro Bacelar Bebiano, presidente da ceira, mas como os estudos linguísticos e etnográficos estavam previstos no
JIC. PT, Arquivo do IICT, Processo n.º 150,
documentos 17 e 23. “Plano de Trabalho de Investigação Científica”, talvez pudesse concretizar-se
84
  Proposta de Elmano da Costa e Costa, em 1943 84. Interessa referir que Mendes Correia, em resposta a uma solici-
dirigida ao presidente da JMGIC, datada
de 2.5.1941 (doc. 6), Informação n.º 34 da
tação da Junta, já elaborara um «plano de estudos antropológicos coloniais
JMGIC (doc. 12) e resposta do presidente (antropologia, arqueologia e etnografia)» (datado de 12 de março de 1941) 85.
da JMGIC para Elmano da Cunha e Costa, Em julho de 1943, Elmano Cunha e Costa envia diretamente ao gabi-
datada de 2.7.1941. Arquivo do IICT, proc.
150. (doc. 15). nete do ministro das Colónias uma exposição sobre “o problema dos estudos
85
  Patrícia Ferraz de Matos, «Mendes etnográficos nas Colónias e da melhor forma de sua solução”, e afirma-se “ao
Correia e a Escola de Antropologia do
Porto: Contribuição para o estudo da dispor do Ministério para qualquer trabalho mais detalhado” 86. Ali dirige crí-
relação entre antropologia, nacionalismo ticas à organização da investigação científica nas colónias estabelecida pela JIC
e colonialismo» tese de doutoramento
em Ciências Sociais, Especialidade:
(missões de curta duração que decorriam na época seca dependentes do apoio
Antropologia Social e Cultural, (Lisboa: logístico concedido pelas autoridades administrativas locais) e defende que
ICS-UL, 2012), p. 234. as missões de estudos etnográficos devem permanecer no terreno 3 a 4 anos,
86
  Carta de Elmano Cunha e Costa para o
major Álvaro de Fontoura, chefe de gabinete sem qualquer ligação à burocracia colonial (“o preto não esquece que a auto-
do ministro das Colónias, datada de 25 ridade administrativa é a entidade que o castiga, que lhe cobra o imposto, que
de junho de 1943, remetendo em anexo
“Algumas considerações sobre o problema o obriga a trabalhar [...] Assim o preto retrai-se, desconfiado, mas para não
dos Estudos Etnográficos nas Colónias”. desobedecer ilude, inventa com a sua fértil imaginação e despista, induzindo
O despacho, de 20 de julho, determinava
que fosse enviada cópia à Junta das Missões
em erro”) 87.
[Geográficas e de investigações Coloniais]. Os estudos que preconiza incluem a realização de “mensurações” (diz que
AHU, MU, GM, sala 6, n.o. 533-2. Proc. já elaborou uma “ficha antropológica” para o efeito) e a recolha de “outros ele-
4/159, Junta das Missões (1942-1943).
87
  Ibidem, fl. I. mentos e dados de observação: estudo geográfico, fauna e flora, agricultura

99
1.  Classificação / Missão

e indústria indígenas, vida doméstica, direito indígena, regime de proprie-


dade, direito familiar, sucessões, medicina, cirurgia, artes e ofícios, cerimó-
nias fúnebres, ritos de transição, tatuagens, mutilações, vida intelectual, etc.”
Expõe ainda um programa de registo fotográfico, cinematográfico, das can-
ções, danças e cânticos das populações locais. A propósito da fotografia explica
que “exige contacto permanente com os indígenas e portanto permanência
nas colónias”. Nada que pudesse ser feito por “turistas... científicos... que vão
fazer a safra, que vão a banhos às Colónias, no verão, este verão de canícula
na Metrópole.” Disponibiliza-se a trabalhar pelas colónias, pois “não há pro-
blemas transcendentes, nem a ciência se ajeita a monopólios. Com brio e tena-
cidade tudo se consegue”; e “é fácil ganhar o tempo perdido, que na verdade
justifica algumas das acusações que nos são feitas” 88.
Como não podia deixar de ser, as críticas de Cunha e Costa foram muito
mal recebidas na Junta, chamada a pronunciar-se sobre o documento. Refira-
-se que a JIC havia sido criada em 1936; só em meados de 1940 ficara consti-
tuída regularmente; e de imediato se manifestara a deficiência da sua orgânica
para dirigir o plano de atividades científicas traçado para o quinquénio 1942-
-1947, dados os parcos recursos humanos e materiais ao seu dispor 89.
Em defesa do plano de investigação científica colonial aprovado pela JIC,
o seu presidente esclarece que durante a época de chuvas é impossível realizar
trabalho de campo em África. Quanto às afirmações sobre a relação das autori-
dades administrativas com os indígenas, salienta que punham em causa a obra
civilizadora do Estado nas colónias.
Para apreciar o trabalho de Cunha e Costa no seu aspeto técnico, a Junta
recorre a António Augusto Mendes Correia e Joaquim Rodrigues dos Santos
Júnior, respetivamente diretor e investigador do Instituto Antropológico do
Porto. O parecer deste último, um parágrafo apenas, desvaloriza liminarmente
as considerações de Elmano Cunha e Costa: “Li a exposição, que a meu ver,
não merece pormenorizada análise, visto que imediatamente transparece que
o autor não tem ideias precisas nem da finalidade nem dos métodos dos estu-
dos a que se refere” 90. O parecer de Mendes Correia, mais extenso, arrasa as
pretensões do advogado, a quem não reconhece qualquer competência cientí-
fica na matéria.

Uma ficha de observações antropológicas só pode ser elaborada por


quem saiba Antropologia, esteja a par dos aspectos sobre que ela incide 88
  Idem, ibidem, fls. II-III.
nas suas aplicações e se encontre exercitado devidamente nos respectivos
89
  Portugal, Ministério das
Colónias. Ocupação científica do Ultramar
métodos. De pouco ou de nada servem para uma tarefa com a desejada Português: Plano elaborado pela Junta das
amplitude, materiais colhidos à toa por simples curiosos, desprovidos de Missões Geográficas e de Investigações
Coloniais e Parecer do Conselho do Império
qualquer preparação ou pior ainda, por improvisados pseudo-cientistas Colonial. Legislação. Actividade da Junta.
desejosos de alardear serviços ou movidos por intenções extra-científicas. Resumo em língua inglesa (Lisboa: Agência
Geral das Colónias, 1945).
As considerações anteriores não se aplicam apenas à Antropologia 90
  Parecer de Santos Júnior, datado do
física ou somática. Na própria Etnografia e na Pré-História como noutros Porto, 30 de julho de 1943, dirigido ao
ramos das ciências de observação, até as mais circunscritas prospeções presidente da JIC, fl. 1. AHU, MU, GM, sala
6, n.o. 533-2. Proc. 4/159, Junta das Missões
exigem uma iniciação que o autor da exposição mostra não possuir. [...] (1942-1943).

100
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

Isto não quer dizer que um diletante, um fotógrafo amador, um simples


curioso, não possa arquivar um ou outro facto de interesse científico,
mas, se não possuir a preparação referida, não pode fazer, apenas por
si, o desejável trabalho sistemático, e muito menos dar orientações de
trabalho a outrém. [...]
Lamento, enfim, que o interesse da Ciência e da Nação me force a
dizer verdades tão nuas e cruas sobre os ambiciosos e inconsistentes
devaneios do Snr. Dr. Cunha e Costa. 91

Esta longa citação traduz de forma eloquente uma tomada de posição com
vista à delimitação do campo científico – a Elmano Cunha e Costa, outsider
pretendente ao campo, era-lhe negada qualquer legitimidade para fazer parte
do mesmo pois não tinha habilitações formais e era movido por ‘outros inte-
resses’ –, e reflete a luta travada pela hegemonia da autoridade científica (defi-
nida como capacidade técnica e poder social) 92 sobre a antropologia colonial.
Embora Mendes Correia, na época, já gozasse de prestígio e reputação no seio
do campo científico colonial 93, a sua estratégia permitiu-lhe, a breve trecho,
reforçar o seu poder: em 1946, foi nomeado diretor da Escola Superior Colo-
nial e da JIC, as duas instituições-chave que, a partir do centro metropolitano,
detinham o monopólio da atividade científica sobre e nas colónias.
No catálogo da Exposição de Etnografia Angolana onde a carta etnográfica
esteve exposta, Cunha e Costa escreveu:

Afirmam os missionários, entre os quais o etnógrafo Monsenhor


Doutor Alves da Cunha, que a minha Carta está exacta e Castro
Soromenho nos estudos a que procedeu para a obra em publicação
– «A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses» – opina que foi
a mais completa que encontrou 94.

Implicitamente contrapunha à autoridade científica da JIC e dos antropó-


91
  Parecer de Mendes Correia, datado do logos profissionais a autoridade etnográfica dos missionários que estavam no
Porto, 30 de julho de 1943, dirigido ao terreno e de um escritor consagrado que tinha vivido em Angola mas, para se
presidente da JMGIC, fls. 2-3. Ênfase nossa.
PT, AHU, MU, GM, sala 6, n.o. 533-2. Proc.
defender de potenciais críticas, também fez questão de afirmar:
4/159, Junta das Missões (1942-1943).
92
  Pierre Bourdieu, «La spécificité du
Não tem, não podia ter este trabalho, entregue a um amador com
champ scientifique et les conditions sociales
du progrès de la raison», in Sociologie et cinco réis de sensibilidade artística e viva curiosidade mental, mas sem
Societés, vol. 7, n.º 1 (Paris, 1975), pp. 91-92. especialização nas complexas questões de etnografia, etnologia e
93
  Em 1935 elaborou para a Junta de
Educação Nacional um relatório sobre sobretudo antropologia, objectivos de rigor científico, nem como tal se
a ocupação científica das colónias. Em apresenta ou foi considerado. Procurei apenas, em primeiros lugar realizar
resposta a um pedido da JIC, preparou um
plano de estudos antropológicos coloniais
um documentário que não se fizera ainda, e depois carrear materiais para
(antropologia, arqueologia e etnografia) base de estudos científicos que aos Mestres compete fazer 95.
para um período de 6 anos (12.03.1941).
Matos, «Mendes Correia e a Escola de
Antropologia do Porto», p. 234. Aproveitava ainda para elogiar a ocupação científica das colónias portu-
 AGC, Catálogo da exposição de etnografia guesas, que tinha sofrido “enorme incremento” nos últimos tempos (aludia
94

angolana de Elmano Cunha e Costa, s.p.


95
  Ibidem, s.p. à reorganização da JIC de dezembro de 1945) “cujos frutos não podem natu-

101
1.  Classificação / Missão

ralmente colher-se dum instante para o outro”. A talhe de foice, enumerava as


missões científicas que estavam a desenvolver trabalho de campo nas colónias
naquele momento e explicava que eram superiormente orientadas pela JIC,
“a que hoje preside a figura de cientista de renome mundial que é o Professor
Mendes Correia” 96.
Elmano Cunha e Costa nunca conseguiria financiamento público para a
realização de estudos etnográficos nas colónias, nem mesmo para trabalhos
no domínio da sua especialidade, a fotografia. Cientistas profissionais, inves-
tidos da necessária autoridade, negaram valor científico à sua coleção fotográ-
fica e à sua carta etnográfica, remetendo-as para o domínio da propaganda
colonial 97. Nessa qualidade foram integradas na Agência Geral das Colónias.
Porém, como vimos atrás, foram abundantemente usadas numa obra científica
do próprio Mendes Correia.

A coleção fotográfica de Elmano Cunha e Costa no AHU

A coleção fotográfica de Elmano Cunha e Costa foi transferida para o Arquivo


Histórico Ultramarino (AHU), numa remessa de documentação da Agência
Geral do Ultramar (AGU), em 1984. É composta por 8718 negativos a preto e
branco em película de nitrato de celulose e cerca de 535 provas ampliadas des-
ses mesmos negativos, distribuídas por 12 álbuns.
No final da década de 1980, a historiadora alemã Beatrix Heintze, espe-
cialista em história de Angola, encontrou esta coleção no AHU, designando-a
“Etnografia Angolana”, como vinha discriminada no auto de transferência para
o Arquivo. Na altura, os negativos encontravam-se acondicionados em 116
pastas (pequenos álbuns de negativos) e ainda não tinham sido digitalizados
nem submetidos a procedimentos de conservação ou de descrição documental.
A consulta fez-se em condições de acesso muito precárias: era extremamente
difícil apreender o conteúdo das imagens a partir dos negativos 98. Talvez por
isso, ao referir-se ao contexto de produção da coleção, Heintze afirmou que
foi realizada sob “instruções do governo português”, o que à luz da nossa atual
investigação deve ser matizado. Julgamos ter demonstrado que embora o autor
comungasse do projeto imperial do Estado Novo, foi uma iniciativa e uma
empresa em grande medida individuais e não uma resposta a uma demanda do
poder colonial que visasse uma administração mais ‘racional’ dos povos con-
trolados ou a controlar. A historiadora questionava o valor da coleção enquanto 96
  Idem, ibidem, s.p.
fonte documental e histórica devido às suas limitações intrínsecas, fruto das pre- 97
  A Carta Etnográfica foi publicada no
missas ideológicas que conduziram à sua realização, da falta de profundidade Catálogo da exposição de penteados e adornos
femininos das indígenas de Angola (Lisboa,
na escolha dos temas e de uma identificação insuficiente. No entanto, reconhe- 1951), (segundo a capa), embora não a
cia que seria superficial e preconceituoso assumir que as fotos de Cunha e Costa tenhamos encontrado em nenhum dos
exemplares consultados.
simplesmente reproduziam a sua ideologia colonialista e racista. Uma vez que 98
  Beatrix Heintze, «In Pursuit of
a coleção registava muitas coisas que raramente ou mesmo nunca tinham sido a Chameleon: Early Ethnographic
fotografadas e que já pertenciam ao passado, fazia parte da herança cultural de Photography from Angola in Context», in
History in Africa, vol. 17, (1990), pp. 153.
Angola, sendo um tesouro valioso que urgia preservar 99. 99
  Ibidem, pp.145-146.

102
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

Nos últimos anos, a coleção foi alvo de tratamento de conservação e dispo-


nibilizada on-line no repositório digital ACTD 100. O grosso da coleção diz res-
peito ao “documentário fotográfico” realizado em Angola, embora seja ainda
composta por duas pastas constituídas por uma reportagem fotográfica da via-
gem do Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, à Guiné em
dezembro de 1941.
Os negativos, cuja organização original foi mantida após tratamento, estão
organizados por três grandes conjuntos temáticos: o primeiro, “arte indígena”,
ordenado por províncias (divisão administrativa da colónia); o segundo, “gru-
pos étnicos” ordenado alfabeticamente pela designação de cada grupo (alguns
com direito a mais de 600 imagens); e, por fim, um conjunto menor, intitulado
de “várias etnias” (I a XVI) onde Elmano incluiu fotografias de outras etnias ou
imagens complementares das etnias anteriormente individualizadas. O porquê
desta “divisão” não é totalmente percetível e ao contrário do que inicialmente
se supunha não se pode concluir que este último conjunto se refere à segunda
“missão fotográfica” (1938-39). Uma análise comparativa entre as imagens
revela que se mantém o carácter de unidade entre os m­ilhares de fotografias e
nalguns casos encontram-se imagens sequenciais entre os dois conjuntos.
Quanto ao primeiro conjunto, uma recente e valiosa pista leva-nos ao catá-
logo Álbum Comemorativo da Exposição-Feira de Angola em Luanda, 1938,
graças à qual verificamos que as fotografias da “arte indígena” de Elmano são
maioritariamente um levantamento fotográfico à arte exposta naquela Expo-
sição-Feira 101. Quanto aos 12 álbuns, contêm provas fotográficas correspon-
dentes a alguns negativos da mesma coleção e estão organizados com a mesma
sequência. No entanto, apenas existem álbuns referentes aos Bosquímanos,
Bundos, Corocas, Cuissis e Cuanhamas. Estes álbuns, embora de fraca qua-
lidade de materiais, despertam curiosidade: não só as provas são impressas
em papel fotográfico mate e com viragem a sépia, conferindo-lhes um certo
carácter “artístico”; bem como a legenda das imagens é manuscrita em 4 lín-
guas (português, alemão, inglês e francês) e decorada por desenhos de artefac-
tos africanos ou elementos alusivos ao “exótico”, que mudam para cada grupo
100
  ACTD – Arquivo Científico Tropical étnico. Não havendo qualquer informação adicional sobre os álbuns, ficam
Digital. O tratamento desta coleção está
integrado num projeto-piloto denominado algumas questões em aberto: qual a intenção da realização dos mesmos? Qual
Arquivo Científico Tropical, que visa o o critério desta seleção? Onde estarão os outros álbuns? (no AHU existem os
tratamento e disponibilização das Coleções
Históricas e Científicas do IICT. Tem como
álbuns n.º 2 a 4 dos Bundos e não existe o n.º 1, por exemplo). Atrevemo-nos a
principais objetivos melhorar a gestão e pensar que, dadas as 4 línguas das legendas, estes álbuns poderiam ser um pro-
o acesso ao património, através de ações tótipo para o Álbum Etnográfico de Angola.
de tratamento e informatização das várias
tipologias de coleções. Mais informações É patente a opção metódica de Cunha e Costa de fotografar transver-
em http://www2.iict.pt/?idc=119 (acesso em salmente os mesmos assuntos em todos os grupos étnicos (traduzidos em
31/01/2014).
101
  Álbum Comemorativo da Exposição-Feira legendas sumárias): “paisagem”, “habitações”, “tipo masculino”, “tipo femi-
de Angola em Luanda, (Litografia Nacional nino”, “garoto”, “feitiços”, “penteado”, “tatuagens”, “mãe e filho”, “trajar mas-
do Porto, 1938). Agradecemos o olhar
atento de Alexandre Pomar que nos indicou
culino”, “trajar feminino”, “vida doméstica”, “redes de pesca”, “a cozinhar”, “na
o referido catálogo onde encontramos aldeia”. Outras temáticas, como “os músicos”, “festa da puberdade”, “circunci-
algumas esculturas e artefactos patentes são”, “fabrico de cestos” ou ainda “olaria” estão menos representadas mas ainda
na Exposição-Feira que comprovam ser os
mesmos fotografados por Cunha e Costa. assim aparecem com alguma frequência. É notória a tentativa de sistematiza-

103
1.  Classificação / Missão

Figura 5.  Grandes cestos, Ganguelas.


Vila Ponte, Cuando, Angola. 1935-1939.
Digitalização a partir de negativo em
película de nitrato de celulose, p/b,
6 x 6cm, Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC4127, ID11432.

ção, organização e classificação das fotografias tiradas, numa busca de maior


objetividade. Cada fotografia tem uma legenda individual, que presumimos
terá sido manuscrita pelo próprio fotógrafo, após comparação visual da sua
caligrafia. A organização e ordenação da coleção foram plasmadas no ACTD e
as legendas originais foram integralmente transcritas para o repositório digi-
tal, sem atualização da ortografia ou da nomenclatura do período colonial.
Não se sabe se a totalidade das fotografias tiradas estão hoje neste acervo.
Existem algumas incoerências entre a informação que foi publicada – “pos-
suo mais de 700 clichés da vida, usos e costumes dos Cuvales” 102 – com a atual
coleção – foram encontrados 533 negativos respeitantes aos Cuvales.
Os cuidados de Cunha e Costa com os negativos durante a viagem, já
referidos neste texto, revelaram-se muito eficazes: os nitratos de celulose que
constituem esta coleção encontram-se em bom estado de conservação, não
apresentando sinais aparentes de desvanecimento, acidificação ou manchas.
Apenas são visíveis algumas marcas ligeiras da embalagem, onde estiveram
acondicionados durante décadas, impressas na gelatina.
A conservação destes negativos teve um carácter mais preventivo, consis-
  Carlos Estermann e Elmano Cunha e
102

tindo na limpeza e acondicionamento em materiais estáveis quimicamente de Costa, Negros, p. 105.

104
“Etnografia Angolana” (1935-1939)

Figura 6.  Penteado, Cuanhamas,


Angola. 1935-1939. Digitalização a
partir de negativo em película de
nitrato de celulose, p/b, 6x6cm.
Arquivo Histórico Ultramarino,
IICT, ECC/NC7901, ID150007.

forma a serem embalados e congelados como recomendado 103. A digitalização


em alta resolução foi considerada prioritária, não só porque se pretendia evi-
tar o manuseamento constante dos negativos mas também para permitir o
103
  Destacam-se algumas referências sobre
este assunto: Reilly, IPI Storage Guide for acesso a uma imagem positiva, indo ao encontro das necessidades de investi-
acetate film; Mark Mc-Cormick-Goodhart, gadores e público em geral. De facto, após a digitalização, foi notória a “revela-
«On the Cold Storage of Photographic
Materials in a Conventional Freezer
ção” da qualidade técnica destas imagens, patente nas imagens disponibilizadas
using the Critical Moisture indicator no repositório ACTD. Simultaneamente, o acesso digital realçou uma colecção
(CMI) Packaging Method», (Smithsonian até então quase desconhecida, e verifica-se uma constante consulta on-line des-
Institute, 2003); Sue Bigelow, «Cold storage
of photographs at the city of Vancouver tas imagens.
Archives», Report prepared for the Canadian Atualmente, esta coleção está a ser alvo de uma pesquisa de doutoramento,
Council of Archives Preservation Committee
(CCA, Março 1984). tendo sido selecionada enquanto caso de estudo devido ao seu contexto de
104
  Projeto de Tese de Doutoramento de produção, ao registo documental realizado por Cunha e Costa sobre a meto-
Elia Roldão em Ciências da Conservação:
Black and white: a study on the ageing
dologia de processamento fotográfico e de acondicionamento dos negativos
and conservation of acetate and nitrate durante a expedição e, por fim, devido ao seu excepcional estado de conser-
photographic negatives in Portuguese vação. Esta colecção permite avaliar, cientificamente, a importância do correto
collections, Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. processamento e acondicionamento na preservação e conservação de coleções
Estudo financiado pela Fundação Ciência e de negativos em película 104.
Tecnologia, FCT-MCTES, através da bolsa
SFRH/BD/72560/2010.

105
1.  Classificação / Missão

Conclusões

A reconstituição da biografia de Elmano Cunha e Costa, a sua ideologia, as


suas motivações, a sua rede de sociabilidades, as lutas que travou (aberta-
mente com a Ordem dos Advogados; veladamente com antropólogos profis-
sionais e com o organismo que coordenava a atividade científica nas colónias),
forneceu-nos informação sobre o contexto de produção, os usos e as histó-
rias da coleção fotográfica que realizou em Angola entre 1935 e 1939. Trata-
-se de uma coleção com propósitos de inventário etnográfico das “58 tribos”
de Angola, no seu “cenário” natural e social (práticas quotidianas, festas, ritos
de passagem, etc.). Distancia-se da fotografia dos antropólogos físicos de finais
do século XIX e inícios do século XX e das suas práticas mais coercivas 105.
Talvez por isso tenha sido contestada no campo científico, maxime por aque-
les que a breve trecho seriam os “donos” incontestados do campo da Antro-
pologia colonial – Mendes Correia e António de Almeida – e relegada para o
domínio da propaganda e das exposições coloniais. Aliás, enquanto “docu-
mentário” de “tipos” característicos servia sobretudo propósitos de divulga-
ção das diferentes populações indígenas que habitavam o território de Angola,
junto do público metropolitano, cristalizando uma visão atemporal e aconfli-
tual daquela diversidade humana e social, e ocultando a exploração, a discri-
minação e a tensão inerentes ao próprio sistema colonial.
Adquirida pela Comissão dos Centenários e pelo Ministério das Colónias,
integrada na Agência Geral das Colónias, ingressou no AHU na década de
1980, onde permaneceu por um longo período na penumbra. Graças à digi-
talização levada a cabo nos últimos anos e à disponibilização integral da cole-
ção no ACTD foi possível ter uma ideia precisa do seu âmbito e conteúdo.
Também só recentemente se pôde confirmar a qualidade das imagens, fruto
das competências técnicas e da sensibilidade artística do fotógrafo, manifes-
tamente superiores à sua abordagem intelectual, explanada nos seus trabalhos
escritos. À luz do exercício de contextualização que ensaiámos neste texto,
sobressaem não só a atividade do produtor da coleção como o valor da mesma
enquanto fonte documental e histórica. 105
  “Para dar ao público uma ideia do
Sem escamotear o contexto colonial de produção da coleção fotográfica cenário angolano, juntei às imagens dos
de Elmano da Cunha e Costa, sem negar que as imagens que resultaram desse habitantes gentílicos alguns aspectos da
natureza” (Agência Geral das Colónias,
‘encontro’ fotográfico foram usadas para classificar e objetificar as etnias de Catálogo da exposição de etnografia angolana
Angola, consideradas inferiores à sociedade e civilização europeias e interna- de Elmano Cunha e Costa, s.p.).
mente diferenciadas entre si, importa que futuras interpretações da coleção   Richard Vokes, (ed.), Photography in
106

Africa: ethnographic perspectives (Suffolk:


estejam atentas à agência ‘indígena’ na sua construção 106. James Curry, 2012), p. 9.

106

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